vol3 - O Último Cavalheiro Notável - Suzanne Enoch

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O Último Cavalheiro Notável Always a Scoundrel

Suzanne Enoch

Londres, 1815 Patife ou cavalheiro? Lorde Bramwell Johns, segundo filho de um duque, é um estroina, um libertino, um rebelde... e orgulha-se disso. Agora que seus dois maiores amigos estão, lamentavelmente, assentados e felizes em sua vida de casados, Bram está se sentindo estranhamente inquieto. Nem mesmo arrombar as residências dos aristocratas desonestos de Londres o entusiasma mais... até a noite em que ele escuta uma briga. Tudo indica que lady Rosamund Davies está prestes a ser forçada a se casar com um escroque pior até do que ele próprio... Rose está ciente da reputação escandalosa de Bram, por isso, qualquer motivo para aquele súbito interesse dele é um tanto suspeito... ainda mais porque ele é amigo do homem que pretende arruinar sua família! Mas Rose tem um plano, e Bram talvez seja exatamente quem ela precisa... contanto que ela se lembre que ele só pensa em si mesmo... contanto que ela se lembre que os beijos dele nada significam... contanto que ela consiga parar de ficar imaginando se pode confiar a um homem patife e infame o seu coração...

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Querida leitora, Lady Rosamund se considera uma pessoa prática. Se ela tem de se casar, melhor que seja com um patife com título de nobreza do que com um cavalheiro sem um tostão. Mas o que dizer de um patife sem título de nobreza? Porque, de repente, Bram começa a aparecer em todos os lugares aonde ela vai, e parece decidido a encantá-la e seduzi-la... Se ela não tomar cuidado, pode começar a achar que patifes regenerados são os melhores maridos... Leonice Pompônio Editora

Copyright © 2009 by Suzanne Enoch Originalmente publicado em 2009 pela HarperCollins Publishers PUBLICADO SOB ACORDO COM HARPERCOLLINS PUBLISHERS. NY, NY — USA Todos os direitos reservados. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. TÍTULO ORIGINAL: ALWAYS A SCOUNDREL EDITORA Leonice Pomponio ASSISTENTES EDITORIAIS Patrícia Chaves EDIÇÃO/TEXTO Tradução: Cristina Tognelli ARTE Mônica Maldonado MARKETING/COMERCIAL Andréa Riccelli PRODUÇÃO GRÁFICA Sônia Sassi PAGINAÇÃO Ana Beatriz Pádua Copyrigh © 2010 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Texas,lll, si. 20A, Jardim Rancho Alegre, Santana do Parnaíba - SP www.novacultural.com.br Impressão e acabamento: Prol Editora Gráfica

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Prólogo

Fevereiro de 1815 Londres — Não quero uma vida previsível. — Lorde Bramwell Lowry Johns terminou o copo de uísque e pegou a garrafa para voltar a enchê-lo. — Eu morreria de tédio em duas semanas. — Você acha isso só porque equipara previsibilidade a fastio — Sullivan Waring observou do outro lado da mesa, abaixando a voz no meio da cacofonia reinante do estabelecimento de Jezebel após a meia-noite. — Para alguém com a sua reputação, você é extremamente ingênuo. — Você é quem é ingênuo — Bramwell retrucou, um tanto aborrecido e também surpreso pela palavra não ter explodido no ar depois de ser empregada para descrevê-lo. — Consegue me imaginar casado e sentado fazendo... Sei lá, bordados? Jogando uíste com a adorada cabeça de vento? Bebendo chá e tentando sustentar uma conversa? — Estremeceu, sem tentar disfarçar o horror que sentia ante essa imagem. O terceiro membro do grupo, Phineas Bromley bufou. — Não culpe a instituição do casamento pelo fato de você nunca ter desejado se casar com nenhuma das mulheres cujas saias levantou. Só precisa escolher melhor... Bram emitiu um som desdenhoso. — Não estou falando das esposas de vocês, portanto não precisa se ofender. Conseguiram encontrar as únicas mulheres decentes do país e, mesmo assim, eu não trocaria de lugar com nenhum de vocês. — Sinto-me reconfortado com isso — Sullivan disse, bebericando seu uísque. — É bom mesmo. Assim conseguem apreciar o fato de que tenho algum comedimento e, com a exceção de suas senhoras, somente escolho não exercê-lo. — Quer dizer que só não encontrou uma noiva devido aos seus escrúpulos. Bram enfrentou Phineas. — Eu acrescentaria também um pouco de horror e compaixão. Posso ser insensível, mas não desejo me impingir a nenhuma moça numa base permanente, seja ela inocente ou não. Não tenho a obrigação de perpetuar o nome da família, então não consigo pensar em motivo algum que me faça entrar em uma igreja antes de estar confinado num caixão. — Portanto pretende passar o resto da sua existência com vadias, bebendo e apostando, sem falar nas outras coisas ultrajantes em que consegue se meter? Bram se empertigou. Fazia questão de falar a sério o mínimo possível e não tinha a intenção de discutir com aqueles dois recém-casados os méritos de ser algemado. 3

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— Por favor, Phin, eu jamais pensaria tão pequeno. Sabe que meu objetivo maior é baixar os limites da moralidade a tal ponto que tudo possa se tornar aceitável. — Acho que foi isso o que aconteceu em Sodoma e Gomorra — Sullivan sugeriu. — É o que se pode esperar. E vocês dois, o que pensam que estão fazendo? Sermões sobre moralidade e domesticidade para mim? Além de ser uma tremenda perda de tempo, um de vocês foi ladrão e o outro, salteador. Dificilmente ocupações a serem seguidas como exemplo por qualquer cavalheiro. Notável da parte de vocês... e egoísta... acreditar que podem ser os únicos a se comportarem mal... Seus dois amigos trocaram olhares. Conhecia-os havia anos, desde que os três tinham servido o Primeiro Regimento da Cavalaria Real na península. Conhecia Sullivan fazia mais tempo ainda, desde Oxford. E reconhecia aquele olhar. Estava prestes a receber conselhos. Bom Deus! Se tivesse algo melhor a fazer naquela noite, já teria se levantado. Levando a garrafa consigo, afinal para que desperdiçar uma boa bebida? Todavia, Londres na baixa estação oferecia pouco entretenimento. — Falando de nossas escapadelas em especial... — Phin, o mais racional dos três, voltou a falar. — Sério, Bram, o que tem na cabeça? Esse seu novo jogo é temerário e sem sentido. E perigoso. — Temerário até certo ponto, Phin. — Ele lançou um olhar significativo para Sullivan antes que o criador de cavalos também se envolvesse no assunto. — E foi você quem me deu a idéia, Sully. Eu só a aperfeiçoei. — Não me agradeça pelo seu passatempo, por favor — Sullivan retrucou. — Eu tinha meus motivos. — Sim, as coisas que roubou eram suas, para início de conversa. Estou contente que tenha lutado por uma causa. Eu não tenho uma. — Então não roube mais ninguém. — Eu disse não ter uma causa, mas tenho meus motivos. — Que seriam?... — Nada que lhes interesse. Estão começando a me aborrecer. Sullivan se inclinou para a frente. — Não me envergonho do que fiz. Eu faria tudo de novo, levando-se em conta que assim conheci Isabel. Mas há conseqüências, Bram. Quase fui enforcado. Isso teria acontecido se... — Se eu não tivesse me passado por você e cometido outro assalto. — Bram olhou para Phin. — Também fingi ser você a fim de salvar sua desprezível vida. E a propriedade do seu irmão. Por isso, parem com esse sermão e, em vez disso, ajudem-me a terminar esta garrafa. Sei muito bem o que estou fazendo. Não preciso da aprovação de vocês. — A questão é — Phin disse, erguendo copo para ser servido novamente — se você saberá quando parar. Autocontrole... — É uma desculpa inventada por aqueles sem coragem de terminar o que 4

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começaram. É extremamente maçante — Bram o interrompeu, cada vez mais aborrecido. — Assim como vocês dois, agora que estão casados. Parecem frangos velhos, reclamando da diversão do galo. — Bram... — Diversão essa que eles costumavam ter... — interrompeu-o mais uma vez — e agora só fazem criticar porque foram castrados pelas sras. Waring e Bromley que não os deixam mais se divertir. — Os dois já não se divertiam com ele como antes. Os três juntos tinham conquistado notoriedade e agora dois deles estavam acomodados na domesticidade. Chocante! Uma desgraça, até! Respirando fundo, Phin deu de ombros. — Deus bem sabe que não sou um santo, e, por isso, não vou fazer sermão quanto aos perigos de se burlar a lei. Combatemos na guerra juntos e também nos metemos em muita confusão, sabe muito bem no que está se envolvendo. — Sim, eu sei. Meus objetivos só são diferentes dos seus. Estão felizes, que bom. Quanto a mim, não desejo ter uma vida longa e adequada. — Bram pediu mais uma garrafa. — Já ouvi tolices demais por uma noite... — Diz saber das conseqüências — Sullivan concluiu depois de um instante. — Só espero que as conheça de fato. — Conheço e anseio por elas. — Bram curvou os lábios num sorriso.

Capítulo I

Maio de 1815 Lorde Bramwell Lowry Johns entrou no vestíbulo bem diante dos aposentos do mordomo. Encostado à parede, com um saco cheio de jóias junto ao peito, ouviu o criado passar a poucos metros até entrar na porta mais próxima. As velas dentro do cômodo foram apagadas uma a uma. Soltando a respiração, Bramwell seguiu para a porta da frente, abriu-a e saiu sorrateiramente. Assim que a fechou às suas costas, trotou pela escadaria até a rua. O marquês de Braithewaite precisava contratar criados com melhor audição. E também precisava melhorar a companhia que freqüentava se desejasse não ser alvo de novos furtos. Sorrindo, ele dobrou a esquina e desceu a rua onde uma carruagem negra o aguardava nas sombras. 5

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— De volta à Mansão Ackley — pediu ao entrar e se acomodar no assento confortável. — Mas pare na Brewer Street. Vou caminhar a partir dali. — Pois não, milorde. — Estalando a língua, Graham incitou os cavalos a se moverem. Aquilo fora fácil. Sem confusão, pouca chance de ser descoberto e uma carruagem à espera. A única coisa que faltava era o coração e o pulso acelerados. Nunca se perguntara por que ansiava por essa excitação, ou o que levara a correr cada vez mais riscos a fim de obtê-la. Mas a cobiçava. A seleção de vítimas era farta, mas secundária. Os itens roubados ficavam em terceiro lugar. Sem se dar ao trabalho de analisar os itens dentro da sacola, Bram abriu uma gaveta escondida debaixo do assento da frente, jogou-a lá dentro e voltou a fechá-la. A igreja St. Michael em Knightsbridge teria uma grande surpresa a sua espera na caixa de coleta de donativos naquele domingo, não que ele fosse confessar tal caridade. Não era Robin Hood. Só não precisava daquelas coisas. Gabava-se por descer a tal nível, mas não cobiçava os bens de seus pares. Com a notável exceção das esposas deles, claro. Na manhã seguinte Mayfair fervilharia com a novidade: o Gato Negro atacara mais uma vez, aliviando outro membro da alta sociedade de algumas de suas quinquilharias. Aquele estava longe de ser o primeiro ladrão a aterrorizar a nobreza londrina, mas ele se responsabilizava por levar certo estilo à profissão. E, a menos que algo mais interessante surgisse, não tinha intenção alguma de parar suas atividades. Diferentemente de certos cavalheiros conhecidos seus, não desejavam embolsar alguns itens e em seguida encontrar o amor, se tornar um tolo piedoso e viver numa armadilha para todo o sempre. — Milorde? — A voz de Graham veio do alto da carruagem quando ela parou. — Brewer Street. Descendo da carruagem, Bram disse: — É só por hoje. Volto por conta própria para casa. — Sorrindo completou: — Ou para qualquer outro lugar. Os criados estavam acostumados a não saber seu paradeiro. Assentindo, Graham recolocou a carruagem em movimento. Olhando ao redor, Bram subiu no muro de pedras que circundava o jardim posterior da Mansão Ackley, bateu a poeira do casaco e das calças e passou pelo laguinho de peixes seguindo até o terraço. Vinte minutos se passaram e ninguém deu pela sua falta. Agora um belo drinque, quem sabe uma... Uma mão o segurou pelo braço. — Aí está você... — lady Ackley sussurrou. — Eu começava a acreditar que você tivesse encontrado outra companhia. E lá estava sua chance de combater a agitação que o acometia. — Outra companhia? Não esta noite, Miranda. Por que não me mostra o adorável afresco de que me falou antes?

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Confusa, ela perguntou: — Que afresco, Bram? — Foi a desculpa que usei caso alguém estivesse nos escutando — ele disse com paciência, refletindo que se precisasse dela para uma conversa, ficaria muito desapontado. — Não há ninguém por aqui. Eu mesma olhei. E lorde Ackley está na biblioteca mostrando seu novo atlas. — Ótimo, então. Onde podemos ir para cometer o adorável pecado da luxúria sem sermos interrompidos? Dessa vez ela riu, sem problemas para compreendê-lo. — Para o mirante. Temos uma chaise-longue lá...

Lady Rosamund Davies se perguntou se sua família um dia conseguiria chegar a algum evento social na hora certa se ela não alterasse estrategicamente os relógios da casa dependendo de quem os consultasse. A mãe, a condessa de Abernathy, chegaria antes mesmo da orquestra porque odiava a idéia de perder alguma fofoca. A irmã mais velha, Beatrice, chegaria com atraso comedido, como era de bom costume, pois afinal, Bea era a perfeição na forma humana. Por isso se casara aos dezoito anos e com homem importante e gracioso. Na verdade, ela pensaria em trocar de brincos ou mudar o penteado até quando os criados estivessem acordados. Graças aos céus, Beatrice e seu importante e gracioso marido Peter, lorde Fishton, haviam decidido permanecer o restante da temporada londrina com a família Davies porque administrar duas casas ao mesmo tempo seria trabalho demais. Rose suspirou, perscrutando o salão abarrotado dos Ackley. E lá estava seu pai, conde Abernathy, que insistia em chegar na hora especificada no convite, o que é claro, nunca daria certo. Apesar do fato de que graças à sua intercessão eles sempre chegavam na hora mais apropriada, se os membros de sua família fossem comparar a hora entre si, ela estaria perdida. Endireitando os ombros, Rose esticou a mão para segurar o membro mais jovem da família, o mais provável a se desgarrar e nunca chegar a nenhum evento. Ele não precisava de um relógio, mas sim de um vigia. E por mais de um motivo. — Dance comigo, James. O jovem balançou a cabeça. — Não posso, Rose. Não quero perdê-lo. Com um suspiro, ela o puxou. — Á quem se refere? — Eu o vi antes. Foi o único a vencer todas as apostas feitas no White's durante uma mesma temporada, sabe. Ela não sabia se seria mais prudente contentar ou distrair James, o visconde Lester.

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— Quem é esse admirável estatístico? — Estatístico! Isso é o mesmo que falar que o capitão Cook era um camarada que gostava de viajar ou que Shakespeare era alguém que sabia escrever ou... — Eu disse admirável — ela repetiu, pensando, e não pela primeira vez, que os pais deveriam investir numa tranca de primeira qualidade para a porta do quarto dele. — Lorde Bramwell Johns não é um estatístico. Ele é... Um deus. — Ora, por favor. — Por que o irmão não podia ter feito amizade com algum camarada mais velho que gostasse de jogar apenas uíste? — Semideus, então. Pelo menos. — James encarou-a. — Como não sabe quem lorde Bram Johns é? Falo dele o tempo todo. — Não disse que nunca ouvi falar dele. Você apenas não me disse quem estava procurando. — Voltou a puxá-lo pela manga. — Ainda quero dançar. Estamos num baile agradável, oras... — Um baile com uma sala de jogos. — Não pensou que esse seu semideus tenha deixado a casa dos Ackley em busca de algo mais... clandestino? — Por Júpiter, você pode ter razão! — Ele soltou-se dela. — Diga a papai que vou até Jezebel. Se Johns não estiver lá, sei quem pode estar. — James, por favor, fique. Faça-me companhia. Ele lançou um sorriso por sobre o ombro. — Não se preocupe, Rose. Não vou dar o passo maior que as pernas. Só de ir para Jezebel era um passo grande demais. Contudo, ir atrás do jovem de dezoito anos só o deixaria mais determinado a provar suas habilidades nas cartas, ou nos dados ou no que quer que ele decidisse apostar aquela noite. Certamente já ouvira falar de lorde Bramwell Lowry Johns. Pela reverência usada pelo irmão ao mencioná-lo no último mês, ele parecia mais mito do que homem. Só não se lembrava de tê-lo visto. Se um dia isso tivesse acontecido, se sentiria inclinada a socá-lo no nariz pelo modo hediondo com que se comportava, fazendo com que um jovem inexperiente desejasse imitá-lo. O ancião lorde Ogilvy se arrastou pelo salão e parou diante dela. — Posso ter esta dança, lady Rosamund? Só se prometer não morrer no meio da música. — Claro, milorde — ela disse em voz alta, forçando um sorriso. Pelo menos a dança a distrairia do caminho de perdição em que James, e por conseqüência a família, estava seguindo. Ajustar os relógios de nada adiantaria naquele caso, por isso precisava encontrar rápido um modo de conter seu irmão desajuizado. Por mais que detestasse as histórias das perdas no dia seguinte, quase desejava que 8

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James se deparasse com lorde Bramwell Johns, pois a alternativa significava problemas muito maiores. Só lhe restava ter esperanças de que o estabelecimento da Jezebel fosse cordato demais para o marquês Cosgrove. Pelo bem de todos.

Lorde Bramwell ajeitou o casaco e voltou para o salão principal. Os bailes na casa dos Ackley eram sempre muito freqüentados, e aquela noite não era exceção. Enquanto uma dança de quadrilha era anunciada, ele pegou um drinque, sentindose inquieto ainda apesar da noite agitada com roubo e sexo... Lançou um olhar para a mesa de refrescos onde lorde Braithewaite enchia a papada com biscoitos e lascas açucaradas de laranja. O bicho preguiça imenso tornara seu roubo fácil demais. Esse era o problema. Não houve desafio algum em encontrar a caixa de jóias debaixo da cama da suíte principal. Mais fácil que isso, só se o velhote as tivesse colocado numa sacola pendurada na janela com a inscrição "jóias caras". Bram queria um desafio, e o roubo a Braithewaite não contentaria sequer um moleque de calças curtas. Outro homem se aproximou da mesa de refrescos. Pressionando a mandíbula, Bram pensou que Braithewaite deveria agradecer aquele homem pelo fato de ter sido roubado. O maldito duque de Levonzy. Lorde Braithewaite precisava melhorar seu gosto tanto em doces como em amigos. Dando as costas, procurou as quatro pessoas ali, cuja companhia tolerava. Logo em seguida, os avistou rodopiando pelo salão. Casados havia somente seis meses, Phineas e Alyse Bromley olhavam-se com uma expressão enjoativa de amor e felicidade. Bem, ninguém era perfeito, e Phin era simplesmente humano. O pobre-coitado. — Sua expressão está deveras azeda — uma voz disse às suas costas. — Ainda mais ao contemplar um casal tão feliz. Ah, a terceira pessoa que tolerava: visconde Quence em sua cadeira de rodas com o valete de sempre a acompanhá-lo. — William — Bram o cumprimentou, estendo a mão. — Não me importo que seu irmão e sua cunhada sejam felizes, o problema é que a felicidade deles apodrece meus dentes... Quence riu. — Prefiro seus dentes estragados a ver Phin retornar para o Exército. Ela salvou a vida dele, sabe... Bram achava que o salvamento fora mútuo, mas disse simplesmente: — E a de muitos soldados franceses. — Relanceou o olhar ao redor do visconde. — Falando em vidas salvas, sua irmã está por perto? — Beth está dançando com o mais recente admirador. Agora que foi apresentada à sociedade, acho que superou a paixonite que sentia por você. — Graças aos céus. Sabe o quanto ela me aterrorizava. 9

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— Hum. Se não quer admitir que foi honrado por poupá-la de sua reputação abismal, não vou contradizê-lo. — Admito de boa vontade a minha reputação abismal. Sabe como foi difícil conquistá-la... Uma sucessão de jogatinas e bebedeiras das quais muito me orgulho. — Concordo que seja bom nisso. — O homem mais velho balançou a cabeça. Apesar do título e da muito promissora propriedade de águas termais, o visconde estava só. Bram engoliu sua impaciência junto com a vodca e continuou a conversar com ele até a quadrilha terminar. Havia coisas piores a fazer, mas nada melhor, por certo. Quando Phin e Alyse se juntaram a eles, ele já estava na metade de seu segundo drinque. Tomando a mão da recém-chegada e se curvando, disse: — Tem certeza de que não quer mudar de idéia quanto a este camarada desagradável? — perguntou. — Sou muito mais charmoso e bonito e conheço algumas pessoas que poderiam mandá-lo para a Austrália num piscar de olhos. — Obrigada pela oferta, Bram. — Ela riu. — Mas estou muito feliz com a situação. — Mas já se passaram seis meses... — Ele ergueu uma sobrancelha. — Eu não apodreço como fruta depois de uma ou duas semanas — Phin intercedeu, recuperando a mão de Alyse. — E deixe minha esposa em paz, seu patife. Qualquer outra pessoa teria razão em alertá-lo para manter distância, mas Bram não cruzava uma linha, a da lealdade. Phineas Bromley era seu amigo, mas, se não podia nem se fingir de lobo, seria melhor se enforcar... — O único motivo que me trouxe aqui foi valsar com sua esposa — disse. — Ou com você. Não tenho preferências nesse caso. Phin olhou por sobre o ombro dele, aguçando o olhar. — Alyse, me dê um minuto, por favor. — Depois de se afastar, perguntou em voz baixa: — Por acaso você é a razão pela qual lady Ackley está sem um brinco e lorde Ackley parece prestes a tirar o sabre da parede? Phin foi sempre observador. — Maldição! Às vezes aprecio uma mulher que não sabe manter a boca fechada, mas fora do quarto, prefiro um pouco de discrição. — Está na casa do marido dela! Isso não é ousado demais, mesmo para você? Bram bufou. — Alguns minutos atrás eu estava na mulher dele... E você também não é nenhum santo. — Nunca disse ser, mas tenho mais do que a mim mesmo para considerar agora. Se Ackley pretende chamá-lo para um duelo, não quero que esteja perto de Alyse. — Esplêndido! Aproveite sua domesticidade açucarada, Phin. Via de regra, Bram não permitia que censuras o abalassem, mas a conversa de Phin 10

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estava difícil de agüentar. Juntos, ele, Phin e Sullivan tinham deixado um rastro de confusão por meio continente, ou pelo menos nas áreas em que a Inglaterra tentava afastar de Bonaparte. Sexo, jogo, luta, morte... Tinham feito de tudo. Mas agora, pouco mais de dois anos de seu regresso junto com o de Sully e um ano do de Phin, ele parecia ser o único homem sobrevivente. Podiam chamar aquilo de vergonhoso, alegando que ele seria mais feliz casado, mas nenhum deles ousava mandar moças respeitáveis em idade de casar em sua direção. — Bram? — O que foi? — Ele piscou e se concentrou no amigo. — Preciso dançar com minha irmã. Ainda estamos discutindo ou sairá batendo o pé? — Não posso fazer isso agora que sugeriu. — Ah, lamento. Bram respirou fundo, pensar em ficar mais algumas horas ali, evitando tanto lady quanto lorde Ackley, o enojava. — Venha comigo até Jezebel. — Eu não... — Eu lhe conto quem roubei hoje. Phin abriu a boca, depois voltou a fechá-la. Devia ser difícil para ele, Bram concluiu, mostrar-se moralmente superior diante de alguém que conhecia todos os seus pecados. No momento, porém, Bram não simpatizava nem um pouco com ele. — Deixe-me adivinhar — a antigo salteador e atual marido apaixonado disse por fim, lançando um olhar na direção da mesa de refrescos. — Braithewaite ou Abernathy. — Abernathy? — Bram se virou. Um terceiro imbecil se juntara aos outros dois. — Ora se essa não é uma agradável mudança no curso dos eventos. Cancelo meu convite para irmos à Jezebel. — Maldição, Bram, não pode roubar as casas de todas as pessoas que falarem com Levonzy! — Sabe que detesto ser contraditório, mas acho que posso. — Sorriu com o coração acelerado. Um segundo roubo na mesma noite. Todos falariam do Gato Negro no dia seguinte. Mesmo Levonzy. — O duque sabe o que você anda aprontando? — E quem se importa? Eu não. — Ele é seu pai. — Essa é a única coisa em minha vida da qual não tenho culpa. Por favor, não me lembre. Phin revirou os ombros. 11

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— Vejo que isso não vai nos levar a lugar algum. Mas me diga, não foi visto o outro dia na companhia do filho de Abernathy? — Sim. Visconde Lester. Ele vem perseguindo Cosgrove e a mim como um filhotinho abandonado. O queixo de Phin se retesou um instante, mas o bastante para Bram notar. Se isso representava mais um maldito sermão, sairia dali. — Então você roubaria a casa de um amigo. — Eu não disse que Lester é meu amigo. E essa não é a sua queixa. Pode dizer, Phin, vá em frente. — Não. Não vou insistir no assunto. Bram forçou uma risada. — Vá dançar com Beth, então. E peça perdão a Alyse por mim, por não poder valsar com ela. Depois de se curvar em despedida, cruzou o salão. Todos o viram, portanto ninguém o apontaria como sendo o Gato Negro. Agora tinha outra tarefa para ocupar a noite. Só restava esperar que roubar a casa de Abernathy se mostrasse mais satisfatório do que a de Braithewaite. Se não fosse, não fazia idéia do que poderia entretê-lo em seguida ou ainda que passatempo, que atividade permanecesse encoberta, inexplorada e não rejeitada. Visto a pouca satisfação obtida no roubo à casa de Braithewaite, Bram pensou em outra estratégia para a casa de Abernathy. Não conhecia ninguém mais além de James, o enfadonho visconde Lester, daquela família. Só isso já acrescia uma pitada de perigo... Nunca fora convidado à Mansão Davies, portanto desconhecia a planta da casa. Claro que algumas coisas eram óbvias: o quarto principal seria no andar superior, a prataria estaria trancada no armário, e os bens mais valiosos estariam próximos ao dono da casa... Recostou-se à parede do estábulo. A família voltara do baile dos Ackley uns trinta minutos antes e algumas luzes ainda iluminavam o andar superior. Poderia ter entrado e saído antes do regresso deles, mas já fizera isso naquela noite e ele detestava se repetir. Mastigou uma palha, enquanto observava a casa. Phin havia se tornado um verdadeiro santarrão nos últimos seis meses, desaprovando seus roubos quando ele próprio fizera a mesma coisa e quase tendo uma apoplexia ante a menção de Cosgrove. Kingston Gore, o marquês de Cosgrove, nunca fizera mal algum a Phin, Sully ou às famílias deles e isso por sua causa. Eles deveriam agradecer sua amizade com o marquês. Conhecia Cosgrove fazia mais tempo do que Phin, até mesmo Sullivan. O homem praticamente o criara, ou pelo menos demonstrara ser um tutor eficiente depois que ele e Levonzy se distanciaram moralmente logo após seu aniversário de dezesseis anos. Outra vela se apagou no andar superior e Bram se aprumou. Não fazia sentido facilitar demais as coisas e, além disso, estava bem frio ali no estábulo. Jogou a palha no chão e amarrou a máscara. Uma leve excitação farfalhou em seu âmago e ele se deteve um instante para saborear a sensação. Pena que poucas coisas o fizessem se sentir vivo nos 12

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últimos tempos. Talvez sua próxima tarefa devesse ser a criação de um oitavo pecado capital. Quem sabe arredondá-los de vez para dez? O diabo bem sabia que ele estava escolado nos sete existentes. Com um sorriso nos lábios, aproximou-se de uma janela e espiou. Escuro e deserto. Empurrou a veneziana e esta se abriu. Tolice excessiva da família Davies deixar uma janela destrancada. Afinal, um ladrão vinha aterrorizando as famílias abastadas de Mayfair. O segundo pecado deles era o descuido, sendo o primeiro o patriarca ser visto de conversa com o duque de Levonzy. Assim que entrou, Bram voltou a fechar a janela. Na saleta de café da manhã havia algumas peças de decoração, porém nada que chamasse a atenção. Esperava encontrar algo melhor no andar superior. Uma nova contribuição de peso talvez incitasse os freqüentadores da igreja St. Michael a rezar pelo misterioso benfeitor deles. Com cautela, Bram abaixou a maçaneta e viu que havia uma vela no vestíbulo, possivelmente para o visconde Lester, já que o rapaz não regressara para casa com a família. Ele devia estar na companhia de Cosgrove, perdendo as calças. De novo. Frangote tolo! A escada principal estava logo em frente. Devagar e prestando atenção aos barulhos da casa, ele subiu, suas vestes negras fazendo-o se misturar às sombras. Quem moraria ali? Além do patriarca, de James e da condessa, a filha solteira que só podia ser virginal ou comum demais para captar sua atenção. A filha casada e seu irritante marido também pareciam estar se hospedando ali. Seis, então, fora o triplo de criados à disposição. A receita ideal de um roubo excitante, mas não excessivamente preocupante. Um que o satisfaria. Pelo menos até o dia seguinte. Uma voz abafada se fez ouvir à sua esquerda. Abernathy. Uma segunda voz, dessa vez feminina, o fez parar e prestar atenção. As vozes vinham de um cômodo com a porta encostada na ala norte do corredor, talvez fosse a biblioteca ou outra sala de visitas. Isso, de certa forma, o aliviou, pois significava que não teria de roubar o conde enquanto ele dormia. Talvez houvesse uma ou duas coisas nesta vida que o assustassem. Primeiro, porém, precisava encontrar a suíte do conde. Guiando-se pelo sol da manhã, começaria pelos quartos do lado oeste da casa. Sem conseguir conter um sorriso de satisfação, seguiu pelo corredor. Se não andasse tão agitado, talvez admitisse ser melhor pesquisar seus alvos. No caso de Braithewaite, sabia que o marquês tinha especial afeição pelas pérolas da esposa, mas não fazia idéia do tipo de jóias que lorde e lady Abernathy possuíam. Que assim fosse. Não estava à procura de um desafio? — ...que eu entenda que querem me casar com aquele salafrário para nos salvarmos dele — a voz feminina disse. Bram parou no corredor. A porta logo adiante estava somente encostada, não era possível ver o que se passava ali, mas conseguia ouvir. E ele, curioso como um gato, parou para escutar. 13

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— Porque o maior montante que James deve é para ele — Abernathy replicou. — Acha que esta família possui dez mil libras? — Tenho certeza de que Cosgrove prefere nos conceder algum tempo para juntarmos tal soma em vez de nos ver ir à bancarrota. Nem por sonho, Bram pensou. Chamavam-no de insensível, mas Cosgrove perdera a alma muito tempo atrás. A moça, porém, havia mencionado casamento. O que uma coisa tinha a ver com a outra? Aproximando-se da porta, cerrou os punhos para não ceder à tentação de abri-la mais. — Você leu a carta dele, Rose. Ele deixou bem claro que quer o pagamento da dívida ou a sua mão. É possível que eu consiga retardar esta situação até o fim do mês pelo bem das aparências, mas é só. Se nada acontecer, então nós vamos mesmo à falência. — Pelo amor de Deus, papai, não sou uma mercadoria para ser trocada a fim de sanar uma dívida. — Você é exatamente isso. E um membro desta família e vai cumprir seu dever. Ela emitiu um som desdenhoso. — Isso foi obra de James. Ele que se case com Cosgrove! Afinal James passa mais tempo com ele e com seus camaradas do que com a própria família. — Se quer discutir, ao menos diga coisas com sentido. — Não me pediu para ser a voz da razão. Boa noite, mamãe e papai. Bram deslizou para o lado, escondendo-se nas sombras. A porta da biblioteca se abriu e um vulto de seda passou por ele, levando uma leve fragrância de lavanda consigo. Tomado pelo desejo de ver a moça, ele a seguiu, mas o tecido verde desapareceu ao virar no fim do corredor. Bem, aquilo era inesperado. O mais surpreendente era que Cosgrove parecia ter decidido se casar... Ele arruinara vidas e fortunas antes, não havia nada de novo nisso, mas casamento... — Ela não vai concordar com isso. — Outra voz feminina se fez ouvir. A condessa, sem dúvida. — Você deveria ter me deixado dar a notícia. Sempre consegui fazer com que ela me entendesse. — Não precisamos que ela entenda, Joanna. Este é o dever dela. Você teve de deixar a irmã dela se casar com o inútil Fishton, por isso ela já não está mais disponível. — Mas Fishton é um visconde, querido. E tome cuidado com sua voz, eles estão no quarto logo no fim do corredor. — Sim, mais um fardo. E James é um idiota, mas é meu herdeiro. Tem de ser Rose, não importando seus protestos. Ela não serve para mais nada mesmo. — Tem certeza de que isso é o melhor que ela pode fazer? Ela poderia se casar com alguém do círculo do príncipe ou alguém com mais poder no governo do que Fishton. Ou... 14

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— Ela não tem uma aparência boa o bastante para isso. Não. Será Cosgrove. Não sei por que ele a quer, mas fique grata que isso esteja acontecendo. Pelo menos ele tem posses e título. Não temos outro modo de sair deste buraco no qual James nos enfiou. — A reputação de Cosgrove não é lá grande coisa. — É horrível, mas pelo menos haverá um casamento e não lhe deveremos mais nada. Quem sabe Rose não lhe confira um pouco de respeitabilidade? Vou me encontrar com ele amanhã, só espero que ele nos dê um mês ou todos saberão de nossa precária situação financeira. Bram voltou para o canto escuro e se recostou à parede. Então Abernathy era mais um daqueles que via a prole como peões ou marionetes? Nada de extraordinário nisso. Ele mesmo era um desses peões, apesar de que Levonzy seria extremamente estúpido se tentasse usá-lo desse modo agora. O que o incomodava era ouvir essas palavras de modo tão claro, palavras que lhe soavam tão familiares. Não o magoavam porque afinal nada mais provocava isso nele, mas, para alguém que apreciava ironia como ele, desejou que houvesse alguém ali para reconhecer que treze anos antes ele ouvira discurso semelhante e se voltara para Cosgrove em busca de consolo. E agora essa lady Rose Davies estava sendo empurrada na direção de Cosgrove por causa do mesmo motivo. Ficou ouvindo mais alguns minutos, porém quando ficou claro que o conde e a condessa não diriam nada mais interessante, ele desceu as escadas e saiu pela mesma janela pela qual entrara. Já tinha alguma coisa agendada para amanhã: falar com Cosgrove e descobrir o que motivara o filho do demônio a se casar com uma moça obscura. E já que a curiosidade do Gato Negro fora provocada, quem sabe o que mais ele acabaria fazendo no dia seguinte?

— Rose, podemos ir agora? Rose terminou de assinar o nome e pegou o livro do balcão. — Obrigada, sr. Simms — disse ela. — Eu o devolverei em quinze dias. O bibliotecário curvou a cabeça. — Vou ver se consigo localizar aquele livro sobre lendas da navegação que a senhorita procura. Bom dia, lady Rose, lady Margaret. Sorrindo, Margaret Havendish seguiu para a porta, praticamente arrastando Rose atrás de si. — Não escapei do chá com mamãe e tia Joanna para vir até a biblioteca — afirmou. — Ascott jamais virá me visitar novamente se me considerar uma literata. — A leitura não torna ninguém um literato, Maggie. Citar o que se lê, sim. — Rose sorriu. — Ascott... O aconteceu com "lorde Benthem"? A prima miúda enrubesceu até a raiz dos lindos cabelos loiros. — Ele implorou que eu o chamasse pelo nome de batismo. Rose colocou o livro sob o 15

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braço conforme caminhavam pela Bond Street. Normalmente apreciava o vai e vem de Mayfair, mas naquele dia a multidão a fazia se lembrar que já era quase meio-dia. Faltava pouco para que seu pai se encontrasse com o marquês de Cosgrove. O fato de James ter perdido outras quarenta libras na mesa de faraó na noite anterior de nada adiantava à já precária situação da família. Ela tentara falar com ele, convencê-lo a raciocinar com clareza, mas, obviamente, Cosgrove tinha muito mais influência sobre seu irmão do que ela. Supunha que devia ser grata ao marquês por ele oferecer uma alternativa em vez de mandar a família para a prisão dos devedores, ainda que não conseguisse entender por que o casamento com ela valesse dez mil libras. Tinham se encontrado em duas ocasiões apenas, e brevemente, e em ambas as vezes ela deixara bem claro que o desprezava. Estava perturbada. Passara a noite acordada, tentando encontrar um modo de obter a soma. Nada, além de vender James para piratas, viera-lhe à mente. Por mais que a idéia fosse divertida, naquele instante sentia-se... simplesmente arrasada. — Venha, Rose. Vamos comprar algumas fitas. É disso que precisa para melhorar seu humor. Um saco de dinheiro caindo do céu melhoraria seu humor, mas ela concordou com um sorriso fraco nos lábios. — Sim, é disso que... — Abrindo a boca para se desculpar com o homem em quem acabara de esbarrar, Rose se virou. E parou. — História do Mundo Novo. — Ele leu o título do livro, endireitando-se com ele nas mãos. Olhos negros como o carvão a fitavam. Rose nunca vira olhos como aqueles. E ser alvo direto deles era... Enervante. Ao seu lado, Maggie arfou. — Obrigada por pegar meu livro, senhor — disse, lutando para não deixar a voz tremer. — Posso tê-lo de volta? Quando ele inclinou a cabeça um pouco para o lado, uma mecha de cabelo escuro caiu sobre a testa. Viu que ele vestia-se de negro, à exceção da camisa e da gravata brancas que aplacavam o ar severo. Severo não. Predatório. Em todo o seu metro e oitenta de altura. — Tem interesse pelos americanos? — perguntou ele num tom baixo que ressoou pela espinha de Rose. — O aprendizado me interessa — ela disse ao esticar a mão. O canto da boca dele se curvou e ele lentamente lhe devolveu o livro. — Se é assim, eu poderia lhe ensinar algumas coisas, lady Rosamund — ele murmurou. Lançando um último olhar, virou-se e desapareceu na multidão como se nunca tivesse estado ali. Como se fosse fruto da imaginação de Rose. — Oh... — Maggie sussurrou e a segurou pelo braço. — O quê? — Rose assustou-se. — Você o conhece? 16

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— Não. Mas já ouvi falar dele. E você também. — Quem é ele? Céus, ele me chamou pelo nome!... — E o modo como o pronunciara... E o que ele dissera... Ela sentiu-se corar. — O céu nada tem a ver com ele. Meu pai o apontou para mim e me alertou para me manter ao largo dele. — Maggie... — Aquele era lorde Bramwell Lowry Johns. Bram abriu o relógio de bolso, se Abernathy ia se encontrar com Cosgrove ao meiodia, já estava quase atrasado. — Vamos, Titã — ordenou ao cavalo, mas só conseguiu prosseguir a trote devido ao movimento da hora. Se a moça não tivesse se demorado tanto na biblioteca... ou se ele tolerasse a idéia de entrar em tal lugar, talvez tivesse ganhado alguns minutos. Contudo, havia limites até para o que ele fazia. E entrar numa biblioteca pública era um deles. O livro que ela pegara o surpreendeu, e ele não esperava que nada a respeito dela o interessasse. Tinha feito uma imagem mental do que esperar. Ela seria quietinha, de personalidade fraca, olhos e sorriso tímidos, se vestiria até o queixo e não saberia conversar. E o livro que pegaria seria um daqueles tolos romances góticos que as mocinhas pareciam favorecer. Os olhos dela não tinham nada de tímidos, mas o intrigavam. Eram verdes e combinavam com os cabelos afogueados. E mais: ela o fitara nos olhos. As mulheres não costumavam fazer isso. Por certo virgens tímidas não faziam isso. O pai dela estava certo ao dizer que ela não era linda, pois os seios estavam bem longe de serem amplos e a boca era um tantinho grande demais. Era mais alta que a média das mulheres e havia pelo menos meia dúzia de sardas espalhadas no nariz. Ele entregou as rédeas de Titã para o cavalariço diante do Society Clube, pedindo que o exercitasse, pois não se demoraria. Tão logo subiu as escadas, o porteiro o cumprimentou. — Jones, Cosgrove está aqui? — Sim, senhor, na sala de almoço. Ele está aguardando... — Sim, eu sei. — Bram passou pelo vestíbulo e entrou na sala de almoço ampla e escura. O lugar estava permeado pelo aroma de faisão assado e de vinho e, apesar do adiantado da hora, metade do salão já estava tomado. Entretanto, uma figura solitária parecia ter pelo menos uma mesa vazia em todo o seu redor. — King — disse Bram ao se sentar diante do marquês. Não gostava de dar as costas para o salão, mas como Cosgrove chegara antes, não havia o que fazer. — Bramwell. Que bela surpresa. — O marquês levantou a garrafa de vinho do 17

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Porto e serviu-lhe uma taça. Olhos azuis pálidos o fitaram por um instante. — Tenho um almoço marcado. Negócios. Eu mesmo o evitaria, mas... — Sim, eu sei, está arranjando seu casamento. — Bram sorveu um gole do vinho doce. — Vim parabenizá-lo em adiantado. Bram podia contar nos dedos de uma mão as vezes em que Cosgrove se surpreendera e aquela era uma delas. A expressão dele, contudo, não mudou, exceto por um ligeiro estreitar de olhos. Para quem observasse o marquês, Cosgrove se parecia com um anjo caído dos céus. Loiro de olhos azuis e tez clara, ele era um modelo para os poetas. Conhecendo-o fazia treze anos, porém, Bram sabia que a pele clara era devido ao fato de ele mal sair durante o dia e resultado do absinto que o marquês bebia quase que diariamente. A expressão angélica era como uma máscara num baile, e a criatura que jazia por trás dela era cruel e insensível. — Um dia desses — Cosgrove disse por fim —, vai ter de me contar quem você paga para obter suas informações. — Mantenho um oráculo em minha adega em troca de alguns pequenos animais e, vez por outra, uma criancinha a fim de que ela me conte tudo o que quero saber. — Tudo? — King voltou a atenção para o salão, como de costume. Ele provavelmente tinha mais inimigos mortais do que Bram. Em outras circunstâncias, Bram detestaria ser o segundo colocado em qualquer competição: jogatina, mulheres, conversas inadequadas, hábitos insalubres... Mas quando o vencedor da competição era Kingston Gore, o segundo lugar era o suficiente para conferir bastante notoriedade. — Tudo o que importa — ele disse. — Então deve saber quem vem acompanhando lorde Abernathy. Bram se inclinou para a frente. — O que quero mesmo saber é por que você resolveu se casar e por que escolheu a menina Davies? Os lábios de Cosgrove se curvaram num sorriso sem humor. — Porque ela é de boa linhagem e a família não tem poder de decisão neste caso. Também porque está na hora de ter um herdeiro e ela não vai ousar se opor às... minhas atividades corriqueiras. — O marquês olhou para além de Bram. — Abernathy, Vossa Graça, obrigado por virem me encontrar aqui. Lamento dizer que minha agenda anda muito ocupada esses dias. Bram se empertigou antes de conseguir se conter. Maldito Cosgrove. Então era aquilo a que ele se referia: o duque de Levonzy era o acompanhante de Abernathy. — Só estou aqui atendendo a um pedido de Abernathy — o duque disse, passando o olhar do filho para o marquês. — Você tem reputação de não negociar justamente. — Uma reputação conquistada a duras penas — Cosgrove rebateu com 18

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desenvoltura. — Vai ficar, Bramwell? Sei que não aprecia tratar de negócios. King bem que poderia ter dado uma desculpa melhor, mas já que o marquês se interessava somente em si mesmo, era o que ele faria. Até pensou em ficar, mas ao se lembrar que teria de ficar na companhia do duque por uma hora, desistiu. Levantou-se e disse: — Vou embora. — Olhou para Abernathy. — Pode vender sua filha sossegado. O conde enrubesceu de imediato. — Eu... — Não lhe dê importância, Lewis — o duque interrompeu. — Ele não entende os conceitos de dever e propriedade. — Não tenho como discutir isso, no entanto devo dizer que nunca fui mais feliz por não ser considerado um cavalheiro apropriado. Cosgrove... — Com um aceno, Bram passou por entre as mesas até sair do salão. Tomando as rédeas de Titã do cavalariço, ele ficou sem saber para onde ir. Poderia voltar para casa e descansar até uma hora mais decente ou visitar Phin... Mas o que desejava fazer era ter uma longa conversa com lady Rosamund Davies. Nada daquilo deveria interessá-lo. Afinal, casamentos arranjados eram mais antigos que as pirâmides do Egito. No entanto, estava curioso. Entendia Cosgrove e suas motivações. O marquês decidira ter um herdeiro que deixasse para trás as esperanças do primo Thomas Wyatt. Assim, escolhera uma esposa a qual pudesse controlar e que pudesse manter a fachada enquanto ele continuasse com sua vida mundana. O que havia de errado naquilo? Nada, a não ser o fato de a pretendente ler livros sobre a história da colônia. Estava acostumado a analisar o caráter das pessoas em poucos instantes e, apesar das poucas palavras trocadas, ela não parecia ser uma moça ignorante e fraca que concordaria em ser a piada da sociedade sem protestar. Era raro ele errar, mas isso já havia acontecido antes. Olhou de novo para o clube. Adorava decifrar mistérios e aquele parecia um excelente. Cosgrove havia sido um bom professor, mas Bram fora um aluno extraordinário. E tudo o que poderia lhe favorecer, merecia melhor estudo. Consultou o relógio. Quase meio-dia e meia. Onde o fedelho James Davies disse que estaria? Normalmente lorde Lester tagarelava tanto que ele mal prestava atenção. Pensando bem, talvez fosse bom visitar um lugar. Chegando ao ringue de boxe de Jackson, ele se perguntou o que pretendia ao tentar entender as maquinações de Cosgrove, que normalmente não lhe rendiam frutos. Não era de seu feitio perseguir algo com o qual não lucrasse. Devia ser a maldita curiosidade. — Lorde Bram! Suprimindo um suspiro, virou-se e fitou o único filho e herdeiro do conde Abernathy. Pelo menos não precisara percorrer a cidade inteira para encontrá-lo. O 19

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frangote o olhava sorridente. — Lester. — Nunca pensei que fosse encontrá-lo no ringue de Jackson. — E por que não? — Bram ergueu uma sobrancelha. — Considera-me incapaz de me defender numa disputa? Lorde Lester corou. — Não. Claro que não. E só que você me parece mais do tipo de prefere espadas... Ou pistolas. — Exato. Lutar com os punhos é muito... sujo. — Depois de observar a aula de boxe um instante, voltou-se para o rapaz. — Já que nos encontramos, por que não me acompanha no almoço? — Mas é claro. Só preciso de um minuto para pegar meu casaco. Enquanto esperava, Bram só desejou descobrir algo que valesse a pena passar algumas horas com o rapaz. Antes havia planejado passar a tarde com a srta. Heloise Blanchard para certo tipo de esporte depois dos ensaios matinais da atriz. Mas já que estava ali, não tinha ninguém a quem culpar senão a si mesmo por uma tarde de celibato na companhia de um idiota. — White's? — Lester comentou ao apearem, pouco depois. — Eles servem um excelente faisão — Bram respondeu, lembrando-se mais uma vez do motivo que o levava até ali. — Onde achou que iríamos? — Pensei que pudesse me levar a Jezebel. Faz semanas que ouço Cosgrove falar do lugar. Tentei entrar ontem, mas eles devem ter uma senha ou sinal secreto para permitir a entrada. Ou pagar um xelim para o porteiro. O olhar do visconde era quase engraçado. — Não se vai a Jezebel para comer, James. — Sim, mas as mesas de faraó são lendárias. Ao entregar as luvas e o chapéu, Bram tentou sufocar o aborrecimento que ameaçava tomar conta. Era conhecido por apostar altas somas, mas jamais apostava aquilo que não tinha. Estava claro que o jovem tolo não conhecia seus limites. — Acha que encontraremos seu pai aqui? — perguntou, querendo parecer casual. — Não. Papai está almoçando com Cosgrove e me proibiu que acompanhá-lo. — James acompanhou Bram até a mesa perto da janela. — Eu disse que queria ir, afinal, Cosgrove é meu amigo. Cosgrove não era amigo de ninguém. Mesmo conhecendo-o havia mais de uma década, Bram o considerou seu mentor apenas, e mais recentemente um conhecido com o qual partilhava uma visão cínica e decadente da vida. 20

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— Sem querer me intrometer, mas o que seu pai quer com Kingston Gore? Por um segundo, Lester pareceu genuinamente envergonhado. — Estou devendo um pouco de dinheiro a Cosgrove. Estão decidindo os termos do pagamento. — Ah!... — Eu disse a papai que poderia recuperar o dinheiro, mas ele prefere me tratar como um moleque. Bram tentou se lembrar de um tempo em que fosse tão inocente e estúpido quanto James Davies, mas nada lhe veio à mente. Quaisquer inclinações que tivesse haviam sumido quando completara dezesseis anos. Lembrava-se bem da data. Dezessete de maio. E também lembrava que somente dois dias mais tarde encontrara-se com Kingston Gore pela primeira vez, sabendo que estava vendendo a alma para o diabo. Talvez fosse essa a diferença entre ele e o ingênuo James. O visconde queria ser visto como adulto pela família. Bram queria dominar todo e qualquer vício humano, quem sabe até inventar alguns novos. Mas era difícil evitar as garras de King, como ele bem sabia. Balançou a cabeça, tentando se livrar das lembranças que só sabiam amargar a boca. Procurava nunca fazer tal coisa em público. Só podia ser por causa da conversa ouvida na noite anterior. O conde de Abernathy e o duque de Levonzy tinham mais em comum do que se esperava. — O que deseja, milorde? E lá estava ele perdido em pensamentos de novo. — Faisão — respondeu, saindo de seu transe. — E uma garrafa de seu melhor vinho tinto. Depois que o garçom se afastou, Lester perguntou: — O que acha dos Jardins Vauxhall? Meu pai diz que não é um lugar para cavalheiros, mas ouvi dizer que até o príncipe o freqüenta. — Eu o evito sempre que possível. A menos que aprecie "damas" por um centavo. — Mas e quanto... — Como seu pai vai pagar a dívida? — ele o interrompeu. — Você não deve somente para Cosgrove. — Ele mesmo só tinha poucas centenas de libras a receber, pois toda vez que Cosgrove começava a se divertir à custa de alguém, ele achava mais prudente se distanciar da carnificina. Mas a dívida lhe dava o direito de perguntar. Lester fez um gesto de dispensa. — Visto que fui exonerado do encontro, imagino que não me diga respeito. — Pode ser. — Bram se serviu de vinho e tomou um gole. — Qual o próximo evento social que a sua família participará?

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— Vamos à Mansão Clacton hoje à noite. Lady Clacton é tia de minha mãe. São chatos, mas se eu não for, papai me dá uma bengalada na cabeça. Maldição! Lady e lorde Clacton. Os dois ainda passavam talco nos cabelos... Durante um momento pouco sóbrio, Bram jurou que preferiria cometer suicídio a participar de qualquer evento oferecido por eles. Assim que voltasse para casa, porém, enviaria uma mensagem aceitando o convite em cima da hora. O motivo de fazer tal sacrifício, ele não sabia explicar. Alguma, coisa em tudo aquilo não parecia certo. Contudo, ele detestava deixar um mistério sem solução. Mesmo que desgostasse da resposta.

Rosamund Davies demorou o quanto pôde para se vestir e pentear. Era adepta da idéia de que a aparência de uma mulher tinha a mesma função da armadura dos cavaleiros e, naquela noite, ela definitivamente tinha de enfrentar uma batalha. Por isso queria parecer inteligente, não pautada pelas emoções, por mais dispersa que estivesse. Era sempre a responsável pela supervisão das coisas a fim de que tudo corresse bem e, na maioria das vezes, a família não reconhecia seu valor. Escolhia o cardápio do dia, administrava a criadagem, aprovava as compras domésticas e agora sentia como se tivesse levado um chute. Após vinte anos, subitamente eles haviam começado a valorizála, como moeda de troca para saldar uma dívida. E pela primeira vez ela se perguntou se eles não estavam pedindo, ou melhor, exigindo demais dela. Bateram à porta do quarto. — Venha, Rose — a mãe chamou. — Seu pai não quer chegar atrasado. Eles já estavam atrasados, apesar de ela ser a única a saber disso. Rosamund não atendeu ao chamado de imediato, pois queria ver se lady Abernathy entraria no quarto. Levando-se em conta que os pais a tinham evitado desde que o conde voltara do encontro no almoço, não se surpreendeu ao ouvir os passos dela se afastando da porta. Deu uma fungadela e concluiu que era mais fácil ficar indignada e com raiva do que simplesmente se recostar e pensar no que ainda estava por vir. Adorável saber que aos olhos da família ela servia para uma coisa somente... Nova batida à porta. — Rose?... Era James dessa vez. Com um resmungo, ela levantou-se e calçou as luvas. No dia anterior, o descuido do irmão somente a aborrecera; hoje, porém, parecia um ato criminoso. E claro que ele escaparia às conseqüências de seus atos. Respirando fundo, ela abriu a porta. — Aí está você — disse ele, dando um passo para trás. — Pensei que estivesse se escondendo em algum lugar. — Não tenho motivos para me esconder; não fiz nada de errado. — Fitou-o direto nos olhos e, como esperado, ele desviou os dele. — Não se sente nem um pouco 22

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responsável pela situação horrorosa em que colocou nossa família? E a mim? — Papai lidou mal com a situação — ele murmurou, ficando para trás quando ela começou a descer as escadas. — Ele deveria ter deixado que eu falasse com Cosgrove, afinal ele é meu camarada. Eu poderia ter jogado com ele para saldar a dívida. Sou praticamente imbatível no faraó. Foi ele mesmo que me disse isso. — James, você lhe deve mais do que o valor desta casa. Está claro como água que você não é imbatível no faraó. Ouso dizer que mesmo eu sei jogar melhor do que você. Pelo menos eu saberia quando parar. — Se você para quando está por baixo, jamais recuperará suas perdas. — Idiota! — Não pode falar comigo assim, Rose — ele reagiu. — Não tenho mais quinze anos. — Não, tem dezoito, mas age como se tivesse dois. — Não é bem assim e, aliás, não sei o que deu em você: Cosgrove a considera a altura de uma dívida de dez mil libras. Você é praticamente a rainha de Sabá. — Se o considera tanto assim, case-se você com ele. — Você nem o conhece. Ele vai ao baile hoje, e olhe que ele nunca faz esse tipo de coisa. Certamente é porque quer vê-la. Um tremor de desconforto a atravessou. — Ele quer me ver... — repetiu. — Se ele quisesse me... cortejar, teria vindo até aqui e me convidado para um passeio. Não teria me comprado pelo valor de uma dívida. — Papai o convenceu a esperar até o fim do mês antes do anuncio do casamento, assim ele poderá levá-la para passear. Ouso dizer que você poderá até vir a gostar dele. Aquilo parecia extremamente improvável. Ao chegar ao vestíbulo, Rose recebeu um olhar severo do pai antes de seguirem para a carruagem. Nenhum deles via problema naquela situação. Cosgrove poderia perdoar a dívida de James, mas se ela se casasse com o marquês, ele teria uma posição permanente na vida do irmão cabeça mole. Na vida de todos eles. Dez mil libras poderiam ser somente um aperitivo. Entretanto, quaisquer que fossem os planos de Cosgrove, ele calculara mal. Bem, o marquês poderia se insinuar na vida deles, mas ela também estaria envolvida. E por mais furiosa que estivesse com todos da família, ainda era uma Davies. A única a mantê-los de pé. E não estava pronta para se afastar e vê-los sendo arruinados. Não se pudesse evitar de algum modo. Subiu na carruagem, resignada a manter silêncio até a Mansão Clacton. Preferiria ficar sossegada, imaginando com alguma satisfação de que modo os pais pretendiam anunciar à sociedade que a filha deles logo se casaria com um notório patife depois de um mês de suposto namoro. Sim, afrontada e indignada era muito melhor do que pensar que essa filha que deveria se casar com o patife era ela mesma. — Rosamund — o pai disse de repente. — Sabe que nenhum de nós está contente com essa situação. — Lançou um olhar para James sentado ao lado dela. — Mas espero 23

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que se comporte e controle sua língua. — Sim, papai. James mudou de posição. — Não vejo como isso pode ser um sacrifício para Rose. Cosgrove está sendo bem generoso. Ele sabe tudo a respeito de todas as coisas. — Lorde Cosgrove perdoou sua dívida atual, James — o pai resmungou. — Não tenho nada mais para entregar para ele ou para qualquer outra pessoa, portanto, peço que não repita o que fez. — Sim, James — Rose concordou —, se chegar perto de destruir a família uma segunda vez, poderá ter de arcar com as conseqüências... — Ah, você acha que Cosgrove e os amigos dele me consideram um alvo fácil. Pois fique sabendo que Bram Johns me convidou para almoçar com ele hoje e nós fomos ao White's. Não apostamos nada e mesmo assim ele me perguntou dos meus planos para esta noite. Disse que também vai estar neste baile. Outro tremor percorreu a espinha de Rose. Lorde Bramwell devia ter se encontrado com James logo depois daquela... conversa pouco convencional que eles haviam tido. Tudo o que ela precisava naquele instante era mais alguns daqueles comentários que ele considerava tão brilhantes e que, sem dúvida, acelerava os corações das mulheres. Bem, ela podia ser obrigada a se comportar com lorde Cosgrove, mas ninguém mencionara o nome de lorde Bram nesse sentido. Ir ao baile anual dos tios Clacton costumava ser um fastio, visto que atraía no máximo alguns casais de idade avançada que lá pelas onze horas da noite já se recolhiam para suas camas. Por isso o congestionamento de carruagens na rua da mansão os surpreendeu. — Céus! — exclamou a condessa ao descer da carruagem. — Há algum outro evento por aqui esta noite? — Não que eu saiba — lorde Abernathy respondeu com a expressão cada vez mais séria, não porque se aproximava o momento de ver o homem que se casaria com a filha, mas por haver mais testemunhas. O mordomo apareceu esbaforido no vestíbulo. — Lorde Abernathy — ele resfolegou, gesticulando para um dos lacaios apressados. — Desmond guardará os casacos dos senhores. — O que está acontecendo, Wiltern? — Muitas confirmações de última hora, milorde. Lorde Clacton está preocupado que o estoque de vinho Madeira termine antes do segundo serviço. — Ele pode sempre recorrer à adega. — É isso o que ele teme. Antes que Rosamund se encontrasse preparada, já estavam no meio do salão. 24

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Estava tão abarrotado que ela mal conseguia ver a mãe. Quem sabe assim Cosgrove também não a visse? Talvez vendo o elevado número de carruagens na rua, ele tivesse desistido e dado meia-volta, indo para um de seus destinos habituais. Foi então que ela o viu e sentiu o coração gelar. Ele estava vestido num costume marrom que parecia ressaltar os cabelos loiros e o ar angelical que disfarçava seus demônios interiores. Involuntariamente deu um passo para trás. Quanto mais pudesse retardar aquele encontro, melhor. Sorrateiramente virou-se para que ele não a visse, só para ver outro patife do lado oposto do salão. Lorde Bramwell estava perto da escadaria acompanhado por duas jovens e um homem alto de cabelos escuros e cicatriz na face direita. As duas damas riram de algo que o segundo filho do duque de Levonzy disse. Risadas? Olhando de esguelha para Cosgrove, ela aproximou-se do grupo que conversava. Risadas e o companheiro de coração negro de James não pareciam combinar. — Não acredito que tivesse medo de mim — a mais jovem das moças dizia. — Até eu chegar a Londres, eu não fazia idéia que sua reputação era tão horrível quanto Phin insistia em me contar. Foi muito gentil em fugir de mim. Bram Johns deu uma tossidela. — Eu lhe preveni mais de uma vez quanto à minha reputação. E você tentava me aterrorizar com sua... inocência. Eu ainda estremeço com isso, Beth. — Bem, não posso dizer nada de mal a seu respeito, não importa o quanto você deseja que eu o faça. — É uma moça muito cruel, minha querida. E quanto a você, Alyse? Estou certo de que também pensa em algo terrível a meu respeito. — Por que não pergunta para mim? — o camarada com a cicatriz perguntou, rindo. — Não interrompa, Phin. A segunda mulher se recostou contra o ombro de Phin. — Fico feliz em ser sua amiga, Bram. E ainda mais feliz por não ser sua inimiga. Bram assentiu. — Isso pelo menos se parece com um elogio às avessas. Ao falar, ele percebeu que lady Rosamund Davies estava por perto. Ela rapidamente se virou para seguir numa terceira direção que não levasse a patife algum. Seria desgosto ou medo? Ambos os sentimentos o intrigavam, provavelmente mais do que deveriam. — Com licença, Bromleys... — ele disse, saindo de perto dos amigos para segui-la. — Não recomendo uma corrida — murmurou em tom arrastado atrás dela. — Não está vestida para isso. Com os ombros empertigados Rose se virou. — Lorde Bramwell Johns. 25

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Ele curvou a cabeça num cumprimento. — Vejo que descobriu minha identidade. — Sim, seus delitos o tornaram famoso. Ou mal afamado, melhor dizendo. Tive esperanças de que James nos apresentasse antes. Um sorriso ligeiro curvou os lábios dele. Não era o medo, então. E ela também não parecia uma tola, o que de fato seria se desejasse conhecê-lo. — E por que isso, lady Rosamund? — perguntou, gostando do som do nome dela em seus lábios. — Porque eu queria socá-lo no nariz por encorajar meu irmão a uma vida de depravação. Bram riu. As mulheres mal o surpreendiam nesses tempos, contudo ela conseguira. Duas vezes no mesmo dia, se considerasse o livro de História que ela pegara emprestado. — Tolice... — ele disse, ainda rindo. — Os homens vão sozinhos de encontro à própria depravação. Não mereço o crédito por isso. — Acredita-se responsável pelas perdas dele na mesa de jogo? — Ele me deve algumas centenas de libras. — Bram deu de ombros. Inclinando a cabeça, considerou o próximo movimento naquele tabuleiro de xadrez. — Faça uma coisa para mim e eu perdoarei essa dívida. — O que, exatamente, espera de mim? — perguntou ela, erguendo uma sobrancelha. Aquela era uma pergunta mais interessante do que ela podia supor. E ele ainda não tinha uma boa resposta, mas pretendia descobrir. — Uma dança — disse ele. Surpresa, Rose os braços diante do peito nem um pouco generoso. — Não vou dançar com você. Vai sim. A força de seu pensamento o perturbou um pouco, mas desejava se contentar pelo momento, já que não tinha nada melhor para fazer. — Se casamento vale dez mil libras, acho que posso ter uma valsa por trezentas. Rose cerrou os dedos antes de responder: — Então sabe sobre a dívida. Ele assentiu. — Se eu soubesse do prêmio, eu teria apostado uma soma maior com seu irmão. — Não estou à venda. Era óbvio que ele podia argumentar, mas o horror abrupto que surgiu nos olhos de Rose denunciava que ela sabia que essa era a verdade. Ele fora forçado a fazer coisas por causa de dinheiro, ou pela ameaça de ficar sem um tostão, mas no caso dela esperavam complacência. E o que ela ganharia com isso?

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Casar-se com Cosgrove. Quando Rose começou a se virar a fim de se afastar, ele a tocou no ombro de leve. Mesmo através da seda do vestido, ele sentiu os dedos queimarem, por isso os afastou. — Uma troca, então — continuou quando ela o fitou novamente. Flexionou os dedos lutando contra a vontade de tocá-la mais uma vez. — Não faço idéia do que está propon... — Depois que o restante de Mayfair souber que vai se casar com Kingston Gore, poucos cavalheiros irão se arriscar a pisar no salão de baile com você. Mas, se dançar comigo hoje, prometo dançar com você mais tarde, quando mais ninguém se atrever. E perdoarei a dívida de seu irmão. Queria tocá-la de novo para ver se aquele calor estranho se repetiria, contudo a idéia o preocupava. Gostava de sexo, não importava com qual mulher. Tocar o braço de uma moça não o deixava naquele estado, ainda mais com um tecido entre eles. Os olhos verdes de Rose o analisavam de um modo franco e desconcertante. — Vai perdoar a dívida de James. — Sim. — E não vai mais apostar com ele. — Isso requer duas danças. Rose relançou o olhar na direção dos pais que, tolamente, tinham se distanciado o bastante dela. Claro que se foram tolos para permitir que o filho afundasse a família em dívidas e oferecer a filha em sacrifício, essa falta de cuidado não era inesperada. — Duvido de que haja uma valsa neste baile. Bram fez uma careta, lembrando-se de qual baile estavam. — Uma quadrilha, então. E a promessa de uma valsa para o próximo baile. — Está bem — concordou ela, devagar. — Ótimo! — Bram abriu um sorriso e estendeu-lhe a mão. — Vamos selar nosso acordo? Rose abriu a boca, e ele sentiu vontade de beijá-la. Outra esquisitice, já que ele raramente beijava. O que quer que houvesse de estranho com ele, certamente a envolvia. Quando ela encostou sua palma à dele e curvou os dedos, um calor subiu pela mão, descendo pela espinha indo direto para sua virilha. Bram precisou de muito mais controle do que o habitual para não arrastá-la para seus braços. Rose emitiu um som estrangulado e puxou a mão, flexionando os dedos ao fazer isso. Então ela também sentira. Bram encarou-a e, de modo inédito, ficou sem saber o que dizer. Um braço passou pelos seus ombros. — Ah, Bramwell, vejo que conheceu minha noiva — King disse, olhando para ela. 27

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— Sim, vim parabenizá-la. — Bram ouviu-se dizer, notando que a quase noiva de King empalidecera um pouco. — E consegui a promessa de uma quadrilha — continuou —, pois ao que parece valsar é proibido neste baile. — Uma pena — Cosgrove respondeu. — Onde mais além da valsa e do leito matrimonial um homem e uma mulher podem ficar tão íntimos? — O marquês sorriu. — Além de claro num bordel ou num quartinho de despejo ou numa carruagem... Ou num baile mais liberal? A cor de Rose retornou de súbito às suas faces. — Com licença — ela disse com uma mesura apressada —, vejo que minha mãe me chama. O olhar de Bram baixou para a curva dos quadris dela conforme ela se afastava. Já ouvira aquele comentário de Cosgrove, mas a companhia feminina na ocasião não era nem um pouco virginal. — Ah, imagino que agora eu tenha de ir atrás dela. — King suspirou. — Fico me perguntando se a mãe e a irmã são igualmente frígidas. — Por que se importa com ela, nesse caso? — Bram perguntou, conseguindo imprimir um tom cínico na pergunta. Pela primeira vez, esse tom soou estranho em seus lábios porque, surpreendentemente, ele não se divertia coma situação. — Por que me importar?... — King repetiu. — Porque vai ser muito, muito divertido. Ouso dizer que em seis meses você não reconhecerá a centrada e adequada lady Rose Davies. — Apertou mais o ombro de Bram. — O maldito pai dela forçou-me a esperar um mês. Pelo que disse, quer que pareça que este seja um casamento baseado no amor. Só pode haver o dedo de Levonzy nessa história, mas isso torna o jogo mais interessante... Por isso, mantenha esse acordo entre nós, está bem? Mais interessante... — Sou um túmulo. — Perfeito. — Os olhos azuis se fixaram em Rose. — Olhe para ela, Bramwell. Ela acha que pode me enfrentar. Isso só me deixa ainda mais irrequieto. Cosgrove o deixou para se aproximar de Rosamund que tentava mostrar interesse na conversa de lady Abernathy com o cunhado. Bram acenou pedindo um copo de uísque, descontente com o aperto no peito. Sorveu um bom gole e deu as costas para o grupo. Vira o marquês de Cosgrove por as garras em inúmeras pessoas antes, a maioria sem saber onde estava se metendo. Provavelmente havia sido o único que o procurara sabendo exatamente onde pisava, recebendo de peito aberto os ensinamentos que o tornaram no que ele era hoje. Desta vez, porém, o jogo de Cosgrove o aborrecia. Rosamund Davies não queria nada com o marquês, estava sendo forçada a ficar com ele. Claro que ela também não queria nada com ele, Bram, mas não podia culpá-la por isso. Sabia muito bem que sua alma era mais negra do que piche. E lady Rosamund era... boa. Bram tomou todo o uísque e deixou o copo de lado. Sim, ela era boa e ele, não. E só ia dançar a maldita quadrilha com ela por ter se comprometido antes. 28

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— Não acho que devamos esperar para fazer o anúncio — Cosgrove disse baixo para o conde, mas tinha o olhar fixo na filha dele. — Concordou em esperar, Cosgrove. Será melhor para todos. O marquês teve de concordar. — Imagino que sim. Todos se convencerão de que minha união com Rose é baseada no amor, e ninguém precisa saber o quão perto sua família ficou da miséria. Muito astuto de sua parte, Abernathy. Rose viu que o pai não gostou do comentário, mas, visto que era verdade, ele não pôde dizer nada. Seria agradável vê-lo sendo colocado em seu lugar, mas, no fim, ela continuaria a pagar o pato. Bram Johns também a transformara numa forma de barganha, a diferença é que negociara diretamente com ela, que teve a chance de concordar com os termos ou não. Não esperava isso de alguém com a reputação como a dele, mas talvez só não estivesse familiarizada com todas as maquinações de patifes como ele. Ao mesmo tempo, se não tivesse ouvido a conversa amigável dele com aquelas moças, que pelo visto gostavam de sua companhia, ela não teria concedido a quadrilha. Olhou para Cosgrove, depois desviou o olhar. Ao que tudo indicava, acabaria se familiarizando pelo menos com um patife em particular, a menos que conseguisse encontrar uma maneira de saldar a família sem ter de se casar. Se falhasse nisso, seria forçada a viver com ele. Hum. Talvez fosse bom aprender algumas coisas, ainda mais se esse aprendizado servisse para afastar Cosgrove de seu irmão James. Se ninguém se preocupava com isso, tomaria o problema para si. Havia ainda a questão de autopreservação, contudo ainda não sabia como poderia se proteger. A primeira quadrilha da noite foi anunciada e ela sentiu o coração pular. Lorde Bramwell não disse qual quadrilha ele desejava, mas com Cosgrove parado ao seu lado, seu cartão de dança continuava vazio. Não que costumasse ficar completo, de qualquer modo. Bramwell Johns havia acertado. Suas noites de dança pareciam ter chegado ao fim. — Com licença — a voz que ela começava a reconhecer a atingiu por trás —, mas acredito que esta seja a nossa dança, lady Rosamund. Quando ela se virou para fitá-lo, percebeu o olhar que se passou entre ele e Cosgrove. Curioso. Sabia que eram amigos, entretanto não havia nada de amigável naquele olhar. Ignorando o pigarrear da mãe ao seu lado, como se uma associação com Cosgrove fosse muito melhor do que dançar com Johns, Rose estendeu a mão. Um alerta a percorreu, conforme ele a conduziu para a pista, soltando-a para tomar seu lugar na longa fileira dos homens. Quando a música começou, ela fez uma mesura e ele se curvou. — Responda-me uma coisa, lorde Bramwell — ela disse quando a dança os aproximou. — Talvez — ele replicou, observando-a com aquele olhar inescrutável. 29

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— Você e lorde Cosgrove não são aliados? — Nós geralmente temos o mesmo ponto de vista. — Um músculo saltou em seu maxilar. — Por que pergunta? — Estou tentando descobrir qual o seu papel nisso tudo. E não me diga que nosso encontro hoje de manhã foi casual. Conhece James há mais de um mês e mesmo assim só nos conhecemos na manhã em que Cosgrove cobrou a dívida de meu irmão? Veio me procurar de propósito. — Com isso você me decifrou. — Mas imagino que o amigo do futuro noivo não diga aquele tipo de coisas para a futura esposa... Separaram-se, trocando de parceiros antes de voltarem a se encontrar. — Não sou do tipo muito formal — disse ele, baixinho. Rose prendeu a respiração. — Então acha que devemos nos tornar... amantes? Ele apertou um pouco mais os dedos dela. — Definitivamente é o que penso. — E o que seu amigo vai achar disso? — ela perguntou quando conseguiu recuperar a voz. — Lady Rosamund, se está tentando jogar um contra o outro, recomendo outro plano de ação. Nenhum de nós é muito enfadonho e, apesar de hoje eu estar me portando de maneira... agradável, você não deve se fiar nisso quando se referir a mim. — Você foi agradável com aquelas moças antes. — Alyse e Beth Bromley? Elas são minhas amigas. Não mexo com amigos. — Fitoua. — Você não é minha amiga. Pela primeira vez desde que o vira naquela noite, Rose sentiu-se pouco à vontade. Esse homem com quem conversava e dançava já arruinara vidas antes. Mulheres com escândalos, homens com dinheiro. Lutou na guerra da península e havia rumores de que ele matara antes e depois dessa expedição. Bebidas, mulheres, jogatinas... De acordo com James, lorde Bramwell não pisava numa igreja fazia mais de uma década, por receio de ser atingido por um raio. — Por que está aqui, então? A dança chegou ao fim e Bram parou diante dela, ignorando o aplauso dos casais. A figura de cabelos e vestes escuros a fitou, tal qual um lindo demônio. — Decidi que vou lhe prestar um favor. — E que favor seria esse? — perguntou ela, segurando as mãos diante do corpo. — Kingston Gore a comerá viva — ele respondeu, dando um passo à frente. — A começar por sua honra e terminando com sua alma. — Eu... 30

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— Sei disso, pois ofereci a minha muito tempo atrás. — Bram segurou-a pela mão e beijou-lhe os nós dos dedos. Ela queria fechar os olhos ante a sensação deliciosa da boca cálida contra sua pele. — Considero-me avisada. — Abaixou a mão. — Obrigada. Minha família precisa que eu me una a lorde Cosgrove e é isso o que eu farei. Ouso dizer que saberei lidar com ele. Bram balançou a cabeça e uma mecha de cabelo caiu sobre sua testa. — Não sem minha ajuda. — Pegou a mão dela de novo, dessa vez pousando-a em seu braço. — Conheço-o melhor do que ninguém, à exceção do próprio Satã. — Conduziua na direção dos pais, onde Cosgrove os fitava. — O que você poderia fazer para me ajudar? — Ajudá-la a fugir. — Não brinque. — Eu mesmo estou surpreso, mas estou falando sério. — Não! — Rose tentava se recompor antes de sofrer uma apoplexia no meio do salão dos tios. — Pelo amor de Deus. Esconder-me em alguma adega não vai ajudar minha família. — Mas eles a estão vendendo para Cosgrove. Fitando-o diretamente nos olhos, ela concluiu que eram pessoas diferentes. Ele parecia não ter nenhum senso de honradez e lealdade. — Não gosto de minha família — sussurrou antes que se aproximassem deles —, mas eles são minha família. Dependem de mim e é assim que precisam de minha assistência. — Quanto a como se sentia com relação a isso, não era da conta dele. Devagar Bram soltou o braço de Rose, parando enquanto ela dava mais um passo. — Permita-me, então, ensinar-lhe como se joga esse jogo — murmurou atrás dela. A voz ressonante ecoou em seu peito. Os céus bem sabiam que ela precisava de ajuda. O horror que sentiu ao olhar de novo para o marquês deixou isso bem claro. Sua vida estaria amarrada à dele para sempre. Aquilo era demais. O surpreendente, porém, era que ela não sentia o mesmo terror quando olhava para o amigo dele. Bem, a cavalo dado não se olham os dentes, concluiu ao assentir de costas. Aprenderia o que quer que Bram Johns pudesse lhe ensinar sobre os demônios que habitavam Londres. Logo.

Bram levantou-se cedo no dia seguinte. Cedo para seus padrões pelo menos. Algumas horas antes do meio-dia mais especificamente. — Mostin — disse ele pronto para se barbear —, há quanto tempo trabalha para mim? 31

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O valete terminou de abrir as pesadas cortinas que cobriam todas as janelas do enorme quarto. — Sete anos, milorde. — E durante esse tempo, já me viu fazer alguma coisa de modo abnegado? — Abnegado, senhor? — Não se faça de desentendido, Mostin. Sabe muito bem a que me refiro: uma ação sem benefício próprio, financeiro ou de outro tipo. Seja honesto. — Sim, senhor, já o vi agir abnegadamente. Droga, não era o que ele esperava ouvir! Não depois de toda a estranheza da noite anterior. — Quando? O valete pigarreou. — Diversas vezes o senhor foi almoçar com lorde Quence, mesmo tendo de cancelar encontros com... jovens damas. — Ah, isso. Deixe-me explicar melhor. Estou me referindo a algum ato que não envolva as famílias de Phin Bromley e de Sullivan Waring. — Ah! Nesse caso, não, senhor. Nunca o vi fazer nada que não fosse em benefício próprio. — Exato. — Embora tenha passado três anos no continente e sei muito pouco a seu respeito nessa época. — Eu estava na guerra. Ninguém é abnegado nessa situação. — Como quiser, senhor. A pergunta, então, era: o que ele esperava obter ao se prontificar para elucidar o abismo da alma de Kingston Gore a lady Rosamund Davies? E o que a levara a aceitar a oferta? Aparte o fato de que ele mesmo não valia muito, isso só tornaria seu amigo em inimigo. Sua sugestão não fora abnegada, claro. Considerava Rosamund interessante, até mesmo intrigante e atraente, e isso o surpreendia. Conhecera duquesas, cantoras de ópera, cortesãs e até mesmo mercenárias trabalhando contra os franceses na Espanha. Uma jovem de quadris cheios, peito pequeno e olhos verdes inexperientes e com tendências literárias não deveria ter lhe chamado a atenção. O que era aquilo, então? Precisava passar mais uma ou duas horas conversando com ela, aconselhando-a a ficar ao largo do absinto e do láudano. E de Cosgrove quando este se embriagava com as substâncias. E a escolher um quarto com uma tranca o mais longe possível do marquês. Só assim ele poderia voltar a assaltar as casas dos amigos e ser um estorvo como antes. Bram guardou o relógio, dinheiro, um charuto, um lenço e diversos cartões de visitas nos bolsos antes de descer as escadas. 32

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A Mansão Lowry, na qual vivia, estava na família Johns havia três gerações. Ele tinha se mudado da casa na Stratton Street assim que regressara de Oxford e seu pai se mostrara satisfeitíssimo de se livrar de suas amizades. Nos últimos tempos vinha recebendo pistas, bem próximas de declarações claras, de que seus dias ali estavam contados. Afinal, seu irmão mais velho August, o marquês de Haithe, tinha um herdeiro de quase dez anos. O garoto de ouro precisaria de uma residência própria em uma década ou alguns anos mais, e a Mansão Lowry era a terceira melhor propriedade da família em Londres. Portanto, se quisesse evitar ser removido de sua própria casa, Bram teria de morrer nos próximos dez anos. E essa possibilidade não era improvável. Enquanto pensava nisso, o mordomo abriu a porta da frente assim que ele chegou ao último degrau. — Bom dia, lorde Haithe — Hibble entoou. Bram parou onde estava. — Ah, não... — murmurou, girou sobre os calcanhares e voltou a subir a escada. — Ei, Bram. Estou surpreso em vê-lo de pé — o irmão disse, entregando o chapéu a Hibble e começando a subir os degraus também. — Pensei que teria de esperar horas na sala de estar até que você descesse. — É exatamente isso o que terá de fazer, August — Bram disse ao chegar ao topo da escada e seguir para o quarto. — Acabei de voltar das festividades de ontem à noite e vou me deitar. Bom dia. — Felizmente seu quarto tinha uma boa tranca. Nunca se sabia quando algum marido zangado podia aparecer. — Você não está vestido com roupas de noite. Bram olhou para suas roupas, pretas como de costume. — O que está querendo saber, August? — Você assaltou Braithewaite? Cerrando o maxilar, Bram parou de recuar. — Depende. Quem quer saber? — perguntou, virando-se para encará-lo. — Papai está convencido de que você roubou, portanto, sou eu quem está perguntando. — Então, sim, fui eu quem o roubou. Considerando-se outros irmãos mais velhos, August devia estar na média. Por ele ter onze anos a mais, Bram jamais o considerara um amigo. Fora os cabelos negros dos Johns, nem mesmo se pareciam e esses anos a mais e a... satisfação geral com a vida tinham tornado a cintura de August um tanto mais larga. — Tem de parar de roubar seus amigos, Bram. — Eles não são meus amigos. August franziu o cenho, claramente tentando decifrá-lo, algo que aborrecia Bram tremendamente. Como se o mimado primogênito conseguisse entender o que motivava o caçula. Como se Bram soubesse o que o motivava na maior parte das vezes. — Podem não ser seus amigos, mas não cometeram mais pecados do que você — o 33

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irmão disse por fim. — E podem mandar prendê-lo se algum deles perceber que é você quem vem invadindo as casas. — É o meu anseio. Mais alguma coisa? Porque tenho algumas pilhagens agendadas para hoje. — Sim. Venha jantar conosco amanhã. As crianças querem vê-lo. Bram arqueou a sobrancelha. — Essa desculpa é um tanto fraca mesmo para você. — Não vou me desculpar por não ser tão superficial quanto você. Traga alguns de seus amigos se isso aumentar as chances de você vir. Mas não o maldito Cosgrove. Não o quero em minha casa. — Vou pensar. Acenando, August fez menção de descer, mas antes que Bram conseguisse respirar aliviado, ele se virou. — Pode me responder uma pergunta honestamente, Bram? — Depende da pergunta. — Cosgrove. Por cinco anos, mesmo quando você não estava na guerra da península, mal manteve contato com ele. Neste último ano, porém, parece que voltaram a ser amigos. Por quê? Por um instante Bram considerou ignorar a pergunta e se refugiar em seu quarto até que August saísse. Se fosse o pai a fazer essa pergunta, ele diria algo no sentido de que qualquer coisa significava uma melhora depois de uma conversa com Levonzy. — Eu tive dois bons amigos — respondeu por fim. — Na ausência deles, digamos que preferi a companhia de alguém cujos defeitos já conheço. — Esses amigos, eles morreram na guerra? Se eu soubesse, eu... — Não, foi um fim pior do que a morte — Bram interrompeu o irmão. — Os dois se casaram e estão terrivelmente felizes. É repulsivo, garanto. — Bram... — Bom dia, August. De fato tenho um compromisso. — Muito bem. Espero você amanhã às sete em ponto. Com um resmungo como resposta, Bram o viu partir. Para o caso de ele voltar, deulhe cinco minutos de vantagem antes de descer. — Ficarei fora o dia inteiro — informou a Hibble ao calçar as luvas e vestir o casaco preto. — Se alguém perguntar por mim, diga... Diga que fui para a Escandinávia. — Sim, senhor — o mordomo assentiu. — Voltará para o jantar? — Duvido. Mas peça para a cozinheira deixar algum ensopado pronto para o caso de eu voltar.

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— Providenciarei isso, senhor. Bram montou em Titã e seguiu para a Mansão Davies. Já que, como Mostin dissera, ele nunca agira abnegadamente, precisava decifrar o que esperava conquistar ao se tornar amigo de Rosamund Davies. Na noite anterior sonhara com a boca da moça, que fizera todas as coisas que as bocas das mulheres faziam, e muito mais: eles conversaram. No sonho tinham falado sobre muitas coisas e ele tinha gostado. Conversar. Com uma mulher. E depois de ter feito sexo com ela. Sexo de primeira qualidade, devia admitir. Comovente. Melhor se familiarizar com ela, com a família e com os planos de King para depois decidir o que desejava de tudo isso. Aparte deitar-se com Rose quando estivessem acordados... Levando-se em conta as circunstâncias e sua suposta amizade com o futuro noivo, isso não seria nada fácil de conseguir. — Que diabos ele faz aqui? — o conde Abernathy disse ao levantar o cartão de visitas da bandeja de prata do mordomo. Rose ergueu os olhos do livro que lia quando seu pai se levantou. Durante toda a manhã, sempre que alguém aparecia à porta, seu coração parecia querer saltar de dentro do peito, listava surpresa que ainda estivesse respirando... Até o momento, porém, ninguém merecedor de tal reação, como um dos amigos de James, havia aparecido. — Devo perguntar, senhor? — Elbon disse em seu tom monótono de sempre. — Bram Johns! — a voz excitada de James se fez ouvir do vestíbulo. — Que diabos o traz aqui? Engraçado como praticamente as mesmas palavras pudessem carregar sentimentos tão diversos, Rose pensou ao fechar o livro. Quanto a si mesma, não sabia o que sentia. Qualquer um que conhecesse o caráter de Cosgrove seria bem recebido, mas quando essa pessoa tinha uma reputação tão maculada quanto a do marquês, tudo se tornava muito confuso. Os dois homens entraram na sala. James, como um sol com seus cabelos claros e olhos verdes; Bram Johns, pálido e de cabelos e vestes escuras, o oposto. Ele devia ter alguma ascendência hispânica, hipnotizante. E perigoso. Rose se levantou junto da mãe e as duas fizeram uma mesura. Em resposta, lorde Bram se curvou. O homem tinha modos, mesmo que ela nunca tivesse ouvido falar a respeito. Olhos negros percorreram a sala e se fixaram nela. — Bom dia — ele disse. — Pensei em convidar James para um passeio a cavalo. Quem sabe lady Rosamund não gostaria do ar fresco também? O dia está lindo. — Rose vai comigo à Bond Street fazer compras — a mãe disse, secamente. — Mas, mamãe, James e eu temos cavalgado tão raramente nos últimos tempos. E essa situação não deve melhorar. — Rose esperava que os pais entendessem que depois que ela se casasse, eles se veriam cada vez menos. Os pais trocaram um olhar e o pai assentiu.

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— Muito bem. Pelo menos com Rose presente, dificilmente James irá se meter em apostas. — Pai! — o visconde reclamou, enrubescendo. — Temos visitas. Perto da porta, lorde Bramwell tirou um fiapo imaginário da manga do casaco. Se estava se divertindo ou se aborrecendo, Rose não tinha como saber. — Verdade seja dita, James — ela disse, esperando não ser excluída do passeio depois disso —, não acho que seja necessário disfarçar. Lorde Bramwell deve estar familiarizado com suas habilidades de apostador. — Sim, estou — Bramwell respondeu. — Mas já que não costumo apostar durante o dia, é seguro dizer que as bolsas estão a salvo. Vamos? — Dê-me cinco minutos, por favor — ela pediu, apressando-se para fora da sala sem esperar pela resposta. Ao passar por ele, seus dedos se tocaram. Não soube dizer se por acidente, mas seu pulso acelerou, deixando uma coisa bem clara: não podia confiar em seu corpo no que se referia a lorde Bramwell. Se ele fosse lhe ensinar como lidar com Cosgrove, ela teria de perceber sua própria... suscetibilidade a ele. A última coisa de que precisava era mais problemas com os companheiros de James. Assim que abotoou o casaco de montaria, desceu as escadas, apressada. Conseguia ver James e o amigo pela porta entreaberta, mas uma mão a segurou pelo braço antes que lá chegasse, arrastando-a para a saleta novamente. — Mamãe! — Shh. Só preciso de um minuto. — O que foi? — ela perguntou. — A reputação desse homem é tão ruim quanto a de Cosgrove. Tentar jogar um contra o outro só trará a sua ruína e a desta família. Rose se livrou da mão da mãe. — Não estou fazendo nada. Em vez de me censurar por querer cavalgar, deveria ter tentado falar com James antes que ele perdesse dez mil libras no jogo. — Cuide de seus afazeres — lady Abernathy sibilou antes que ela saísse. Como se ela precisasse ser lembrada. Era sempre ela quem cuidava de tudo. O que fariam sem ela, não havia como saber. — Ele é magnífico — James elogiava o cavalo. — Pode me deixar montá-lo? — Não — Bram respondeu e se virou para ajudar Rose a montar, já que o irmão não parecia inclinado a tal. Ela prendeu a respiração quando lorde Bramwell escorregou as mãos por sua cintura, detendo-se alguns segundos antes de soltá-la e subir na própria montaria. Um dia antes Rose teria sido capaz de esmurrá-lo. Sabia que ele tinha reputação de 36

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ser charmoso quando desejava, mas ela não sentia que ele estava tentando impressioná-la. Ao mesmo tempo, deveria detestá-lo por sua parcela de responsabilidade na ruína de James. — Obrigada, milorde — agradeceu alguns minutos depois. — Bram — ele disse, trazendo o cavalo para junto da égua. — Seu Titã faz meu Swift parecer desengonçado — James reclamou ao lado de Bram. — Quero conquistá-lo no jogo. — Não. — Mas ele é do Haras Waring, não? — Sim. Sullivan Waring ó um bom amigo meu. Vá para o lado de sua irmã. — Mas... — Uma dama deve estar sempre protegida. E não quero que fique cobiçando meu cavalo o caminho inteiro. Com evidente relutância, James foi para a direita, assim Rose ficou com um homem de cada lado. Quer lorde Bramwell... Bram... estivesse tentando mostrar respeito ou se só estava aborrecido pela insistência de James, ela não sabia, mas apreciou o gesto. Também gostou do modo como ele tinha chamado Sullivan Waring de amigo. Uma declaração simples e honesta que revelava muito a seu respeito. E isso era algo inesperado. — Quando me devolveu o livro ontem — ela começou —, disse que poderia me ensinar muitas coisas. Presumo que essas coisas não sejam as que mencionou quando fez a mesma oferta ontem à noite. Olhos negros, inescrutáveis e investigadores, prenderam os seus. Os homens não costumavam olhar para ela com interesse, a menos que precisassem arredondar o número de casais numa dança. E agora ela tinha um secreto quase noivo e um pretenso tutor. Um parecia um anjo; o outro, um demônio. E ambos tinham péssima reputação. O melhor seria se lembrar de que nenhum deles teria nada de bom em mente em relação a ela. — Então, hoje você não enrubesce, nem tem medo? — perguntou ele depois de um instante, usando o mesmo tom baixo e intimista que ela. — Dadas as circunstâncias, prefiro ser prática. Bram incitou o cavalo a se aproximar um pouco. — Acha que pode me enfrentar de igual para igual, lady Rosamund? — Acho que palavras são só palavras. Ar com som. Ele continuou a fitá-la. — Se acha isso mesmo — disse, por fim, num tom sensual —, então não conhece as mesmas palavras que eu. — Garanto que sou bem-edu... — Fornica, por exemplo — ele interrompeu. — Ou vulva. Bramwell pronunciou as 37

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palavras de modo tão... tão trivial que Rose se surpreendeu. Respirou fundo. Se era assim que ele queria prosseguir, bem, ela poderia ser superior. — O vocabulário dos estivadores e das prostitutas não me impressiona. — Não foi para impressioná-la, Rosamund. — Para quê, então? Por mais sofisticada que ela quisesse aparentar, essas duas pequenas palavras quase provocaram-lhe um ataque de apoplexia. Cosgrove não precisaria dos seis meses alegados para destruí-la. E isso sem mencionar o que o marquês poderia fazer na cama com ela. — E então? — ela o instigou. — Ou são só essas palavras que tem a oferecer? — Foi apenas uma demonstração — ele replicou, aborrecido pela imagem dela na cama de Cosgrove deixá-lo irritado. Mais do que isso, enfurecido. Deixou essa reação de lado para futura análise. — Coloque uma princesa entre porcos e ela vai acabar cheirando como um deles. — Ela ainda agirá como uma princesa. E mesmo um porco pode aprender alguns truques. — E a princesa pode ser obrigada a andar de quatro e grunhir. Ela acabará se tornando uma porca. Ou pior. Rose corou. — Eu não me tornarei uma porca! Nem pior. — Já vi princesas depois de passarem pelas mãos de Cosgrove. E elas começaram com mais experiência no trato com os homens do que você. O medo trespassou os olhos de Rose, e ele considerou isso um bom sinal. Ela precisava entender os fatos se pretendia sobreviver a Cosgrove com um pouco de dignidade. Não sentia raiva de si mesmo por assustá-la. Sentia raiva dela por ser tão ingênua a ponto de necessitar de sua assistência. — Se vou ser forçada a... a chafurdar na lama, então o que você tem a dizer que poderá me ajudar? Deus, ela tinha coragem! Bram olhou para o irmão dela, mas agora que haviam chegado ao Hyde Park, ele estava absorto observando as carruagens e o entorno. — Eu posso sugerir mais uma vez que considere voltar para o campo em vez de permanecer cm Londres — sussurrou. Ele não queria nem precisava de Cosgrove como inimigo, porém, acabara de descobrir que um limite, pelo menos, ele não conseguia transpor. Não sem dizer algo antes, pelo menos. Até onde suas convicções o levariam, ele não sabia. — Está falando sério? — Rose pareceu chocada pela segunda vez na mesma manhã. — Que bem isso me faria? — Não se casaria com Cosgrove. Se é tão bem-educada como diz, eu poderia lhe arranjar um emprego como governanta em algum lugar. Conheço um punhado de pessoas 38

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que não são desprezíveis. — E Cosgrove tentaria recuperar as dez mil libras com minha família e eles ficariam duplamente arruinados. Uma vez por causa de James, a segunda por minha causa. — Ora, tudo pode levar a James no fim das contas. As ações dele a forçariam a agir desse modo. — E quanto aos meus pais? — Eles a venderam para um monstro — ele replicou, surpreso. — Podem ir para o inferno. Rose o fitou daquele seu modo direto e desconcertante. O que seria isso... Pena? Dele ou de si própria? — Não havia percebido que a ajuda oferecida seria um conselho para fazer algo que ferisse ou traísse minha família — disse ela com suavidade. — Não farei isso, portanto, obrigada pelo seu tempo, mas não posso contar com seu auxílio. As contraposições deturpadas e corrosivas dos seres humanos raramente o surpreendiam, mas aquilo o pegou o desprevenido. Lady Rosamund o surpreendia. — Você é uma tola, Rosamund. — Talvez. Mas uma tola leal. Mesmo que eu não tivesse nenhuma obrigação por meus pais terem me criado, tenho uma irmã, um cunhado e um casal de sobrinhos em Somerset. Eles pagariam pelo meu egoísmo. E deve admitir que se Cosgrove tem uma chance de mudar meu... caráter, eu também posso fazer isso com o dele. — Você não tem chance alguma. — Ele nunca quis se casar antes. E agora está disposto a mudar. — Quem, exatamente, você está tentando iludir? Porque isso não está funcionando comigo, querida. Rose engoliu em seco e baixou o olhar para as mãos. — Então fique com a sua opinião, pois eu tenho meu dever a cumprir para com a minha família. Portanto, acho que não temos mais nada a discutir. Bram tinha feito mulheres chorarem antes, mas aquilo era diferente. Sentia-se como se tivesse descido mais alguns degraus no inferno. Provavelmente o último. Mas o que era pior? Não dizer nada e testemunhar Rosamund Davies caminhar até o altar e ser destruída sem saber o que esperar? Ou remover quaisquer vestígios de esperança antes da hora? Ele se empertigou, desgostoso da tensão em seu estômago. E quando se deparava com tal sensação, agia a fim de se livrar dela. Maldição! — As lições que mais lhe beneficiariam — disse, devagar —, são aquelas que uma dama de linhagem só deveria receber do marido. Rose levantou a cabeça de novo. — Uma lição não passa de palavras. 39

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Ele anuiu, sentindo algo muito parecido com esperança. Por certo a reconhecida na expressão dela. Aquilo representava definitivamente uma melhora. — Ar com som. — Não há nada de errado em falar a respeito. Acredito que saber o que esperar seria bom para mim. — Concordo. — Os lábios de Bram se curvaram. — De qualquer modo, ainda não pode me dispensar, pois me deve uma valsa. — Talvez você não seja tão ruim quanto acreditei que fosse, Bram Johns. — Sugiro que contenha sua opinião a esse respeito, milady. É, muito cedo ainda. Visto que acabara de se comprometer a ensinar uma jovem dama, uma que ele considerava atraente, a respeito dos hábitos e desejos de um salafrário sem de fato tocá-la, não podia se responsabilizar pelo seu juízo ou sanidade. Aquilo fazia seus assaltos parecerem quase... Simplórios. — Qual a possibilidade de Sullivan Waring me vender um cavalo? — o visconde Lester perguntou de supetão. — Seria muito melhor se você tivesse dinheiro — Bram replicou. — Empreste-me a quantia — o rapaz sugeriu. — Ou melhor, aposto a quantia com você. Seria um modo fácil de ganhar mais umas cem libras, mas Bram não precisava do olhar de Rosamund fixo nele para saber que aquilo não era algo que desejasse fazer no momento. — Não jogo o que não posso perder — ele rebateu. — Se ainda não percebeu isso, Lester, é um péssimo apostador. — Ei! — O rosto do jovem estava rubro. — Isso não foi muito generoso de sua parte, Bram. — O que quer que eu diga? A primeira regra no jogo é nunca apostar aquilo que não pode perder. Já falhou nisso, devo dizer. — Cosgrove diz que temos de perder antes de ganhar. É assim que aprendemos a avaliar os competidores. Por Deus, Lester parecia ainda mais jovem do que aparentava ser! Sentiu vontade de dar um tabefe na cabeça no frangote. — Perdeu dez mil libras, James. Acho que já mostrou para Mayfair inteira do que você é capaz. — Cosgrove diz... — Vou jantar na casa de meu irmão amanhã à noite — Bram o interrompeu antes que pudesse mudar de idéia. — Você e lady Rosamund são meus convidados. Vamos jogar faraó depois do jantar e testar sua habilidade.

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Rose não gostou nada daquilo, claro, mas foi o melhor que ele conseguiu pensar para evitar que o rapaz se metesse em mais encrencas, às quais ela teria de pagar. Pelo menos estando sob sua supervisão, poderia controlar as perdas de Lester. O irmão, porém, era a parte mais fácil. Como fazer para manter a palavra com Rose e não irritar Cosgrove era outra coisa completamente diferente. Ainda mais quando ele não se sentia nem um pouco fraternal em relação a ela. Controle nunca havia sido seu forte. De fato, não se lembrava sequer de ter tentado usá-lo algum dia.

Será que ela havia cometido um erro? Rosamund amarrou o chapéu, preparando-se para ir até o jardim a fim de colher flores frescas para seu quarto. E em busca de um pouco de paz sem as vozes da mãe e da irmã ecoando em sua cabeça e entre as paredes da casa. Os pais a tinham vendido ao diabo. Em seguida, ela se virara e se colocara, voluntariamente, no caminho de outro demônio, selando um pacto com ele. Eles tinham feito para salvar a família; ela, para salvar a si mesma. Mas eles não teriam de viver sob o teto de Cosgrove. E se Bram pudesse de algum modo explicar-lhe o que esperar do marquês, o mínimo que ela podia fazer era tentar se preparar. Nada do que ele tinha lhe dito até então a acalmara. De fato, o efeito fora contrário. Se um patife sem coração chamava outro homem, seu amigo, de monstro, isso era aterrador. Ainda mais quando ela tinha menos de um mês antes de passar o resto da vida com ele. Sentiu um arrepio descer pela espinha. Por uma semana ou um pouco mais poderia fingir que aquilo não estava acontecendo, que era somente um pesadelo ou que o pai encontraria um modo de levantar aquela soma exorbitante. Quanto mais perto a data, mais reais as circunstâncias. E mais difícil seria ignorar a sugestão de fuga de Bram. Mesmo com os sons de Mayfair e da casas da vizinhança, o jardim sempre havia sido um lugar tranqüilo. E ela merecia um bocado de paz depois do caos dos últimos dias. Um pensamento passageiro quanto à existência de um jardim na casa de Cosgrove surgiu, mas ela logo o dispensou. Só pensaria nisso quando fosse absolutamente necessário. Dever, dever, dever... Por que ela aprendera essa lição tão bem, enquanto ninguém pedia isso de James? Ajoelhada, pegou as tesouras e começou a cortar lírios, colocando-os no cesto ao lado. Preferia rosas, mas as flores tinham florescido antecipadamente aquele ano. — Uma rosa entre lírios — uma voz profunda veio do passeio da carruagem. Rose sentiu o coração falhar, mas passou a bater descompassado ao perceber que o recém-chegado não era quem ela imaginara. — Lorde Cosgrove — disse ela, olhando por sobre o ombro e em seguida voltando a atenção para as flores. Resolveu que elas mereciam uma bela poda —, meu pai e meu irmão estão dentro de casa.

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— Já se perguntou — ele continuou como se ela não tivesse dito nada — por que eu a considero a altura de dez mil libras? Cosgrove estava recostado no tronco de um carvalho, longe de onde Rose continuava ajoelhada. Ela não gostava da idéia de lhe dar as costas, mas tampouco queria se virar e dar a entender que apreciava aquela conversa. Afinal, não tinha companhia ali e ninguém além da família e de Bram, sabia do acordo entre eles. — Não faço idéia, milorde — respondeu depois de alguns minutos de silêncio. — Quer que eu lhe conte? Rose respirou fundo, fechando os olhos por um breve instante, desejando que alguém os visse pela janela e viesse em seu socorro. — Faça o que desejar, milorde. — Eu sempre faço. Pergunte. — Como disse? Ela o ouviu se aproximar e postar-se bem atrás dela. — Talvez ainda seja cedo para eu lhe dar ordens — ele disse, baixinho. — Mal nos conhecemos, afinal. — Sim. Estou certa de que quando nos conhecermos melhor, veremos que somos compatíveis. — Mesmo sabendo que tagarelava de nervosismo, Rose não conseguia se calar. — O amor nem sempre é necessário no início de um casamento porque com a familiaridade vem a afeição. E... — Pensei que a familiaridade trouxesse o desdém. — Oh, não! Acho que não. O... — Vai cavar um buraco até a China? Rose olhou para baixo. Tinha desbastado tanto a planta que ela estava arruinada, bem como as tesouras com a força que tinha utilizado. — A planta tinha uma praga — ela improvisou. Lorde Cosgrove acercou-se dela, parando com as botas meticulosamente limpas no que sobrara dos lírios. — Olhe para mim, Rose. Ela devia ter se levantado assim que o ouviu chegar... Tentando cravar um sorriso simpático, ergueu o rosto e olhou para cima, fixando-se no rosto dele. A expressão langorosa dos olhos azuis a gelaram por dentro. Todos os rumores, os boatos, a degradação sussurrada a respeito dele lhe veio à mente. Bem como a voz de Bram falando de porcos e damas com mais experiência do que ela. — Sua aparência é muito boa, vista daqui de cima — o marquês murmurou. — Temos de nos lembrar disso no futuro. Tentando juntar coragem, Rose levantou a mão e disse: 42

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— Ajude-me a me levantar, por favor. Assim que ele a segurou, ela percebeu que nunca haviam se tocado. Cosgrove a segurava com firmeza ao levantá-la, mas apesar de um momento de esperança, tudo o que Rose sentiu foi um medo terrível. Ele a trouxe para junto de si. — Sabe o quanto é difícil, querida Rose, encontrar uma mulher com as suas qualidades? — ele murmurou. — E que qualidades seriam essas, milorde? — A voz dela não estava muito firme, o que não era nenhuma surpresa. O marquês, obviamente, tentava intimidá-la e estava conseguindo isso muito bem. Os lábios se curvaram num sorriso que não chegou aos olhos. — Imagino que irá descobrir isso muito em breve. Ele colocou os dedos debaixo do queixo dela e, embora não a forçasse, dava a nítida impressão de que o faria caso ela não levantasse o rosto. Por favor, não me beije, ela implorou mentalmente ao mesmo tempo em que se perguntava por que se importava. Em um mês, Cosgrove poderia beijá-la quando bem quisesse. E não parada nisso. Ao fitar os olhos azuis angelicais, entendeu que Bram estava absolutamente certo: ela não teria a mínima chance contra aquele homem. Não tinha conhecimentos suficientes para lutar naquela batalha, quanto menos vencer. Ou sobreviver. — Tem medo de mim? — perguntou ele no mesmo tom suave, os rostos a centímetros de distância. — Sugiro que diga sim, — S-sim. O marquês passou a língua nos lábios dela. — Sim, sinto o gosto do medo — ele disse, dando um passo para trás ao mesmo tempo. — Delicioso. — Com outro ligeiro sorriso, olhou-a de alto a baixo, depois se virou e saiu pelo mesmo caminho que viera. — Deus do céu... — Esfregando a boca, Rose foi até o banco do jardim e deixou-se cair. — Meu Deus! — O que haveria de fazer quando ele não se afastasse? Quando ela tivesse que... que cumprir seus deveres de esposa? — Mas que droga, ele já foi! — James disse, vindo da ala de serviço. — Você viu Cosgrove comigo? — Rose perguntou, indignada. — Bem, sim. Quis lhes dar uns minutos de privacidade, para você se convencer de que ele não é um homem horrível, mas agora ele se foi... Ele veio a cavalo ou a pé? — O irmão correu até o portão. — Como é que eu vou saber? Com o cenho franzido, James olhou-a por sobre o ombro.

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— Não grite comigo. Não é minha culpa se ele veio quando você está vestida desse modo. Cosgrove não se importa com... — O quê? — Rose se levantou e aproximou-se do irmão. — Não é sua culpa, James? Claro que é! Se tivesse um mínimo de juízo, perceberia que estou tentando salvar nossa família da ruína que você causou! Ele recuou, erguendo as mãos. — Não precisa ficar histérica, Rose. Já tem vinte anos e durante o inverno inteiro mamãe ficou reclamando sobre o fato de você ainda não ter se casado. Acho que cuidei disso, como era meu dever, não? Havia toda necessidade de ficar histérica. E estava claro que James não era a melhor pessoa com quem falar. Seria muito bom que Bram Johns não tivesse mudado de idéia, porque, definitivamente, ela precisava de ajuda. Mais do que imaginara a princípio. Bram não conseguia se livrar da sensação de que cometera um engano. Não só aceitara o convite de August, mas lhe dissera que levaria amigos. Amigos. Só convidara Lester porque a irmã precisaria de um acompanhante e depois disso mal pensara no fedelho. Ele havia pensado somente em Rosamund, não em si mesmo. O único lugar no mundo no qual não se sentia ele próprio era na presença de sua família. Deu do céu, nem sabia se o duque pretendia ir também. E agora que Rosamund iria... Gemeu. Levonzy sabia do acordo entre Abernathy e Cosgrove. — Se me permite dizer, milorde, o senhor não parece muito bem. Talvez devesse ficar em casa hoje. — Eu deveria mesmo ficar. — Bram colocou o chapéu e calçou as luvas, em seguida colocou uma bolsinha pesada no bolso. — Não espere acordado por mim, Mostin. O valete assentiu. — Tenha uma boa noite, milorde. Isso seria improvável. O clima estava agradável e ele bem poderia escolher o coche ou a caleche, mas para o caso de o duque estar lá, pediu a carruagem. Enorme e negra, requeria duas parelhas de cavalos para puxá-la, mas, em sua opinião, a melhor qualidade era a ausência do brasão da família na portas. Levonzy, por certo, tinha o brasão tatuado até nas nádegas, porém ninguém o encontraria na Mansão Lowry. Bram deu o endereço da Mansão Davies ao condutor e se recostou no assento quando Hibble fechou a porta do veículo. Era muito bom o fato de que apreciava disseminar o caos, porque era muito provável que fosse ficar bem no meio de um naquela noite. Estava acostumado a encontrar mulheres à espera de seu coche em vez de ter de desembarcar e bater à porta, todavia, as boas maneiras, pelo visto, precisavam ser exercitadas na presença de uma moça de boa família. Ele reprimiu um suspiro poucos minutos mais tarde quando Lester desceu as escadas para encontrá-lo no vestíbulo. O idiota, claro, também se vestira de preto e, juntos, pareciam agentes funerários.

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— Vocês dois parecem agentes funerários — uma voz feminina disse do alto das escadas. Os pelos dos braços de Bram se eriçaram. Respirando fundo ele se virou. Vira Rosamund vestida com trajes de noite na festa dos Clacton. Por mais intrigante que a considerasse então, não havia nada que ele pudesse fazer ao pensar que, talvez, ela tivesse se vestido especialmente para se encontrar com ele. O cabelo fora prendido de modo artístico no alto da cabeça, deixando algumas mechas soltas nas têmporas e na testa. Ela usava um vestido amarelo e lilás, e as mangas e o decote eram recobertos por renda que ao mesmo tempo em que protegia, também incitava. — E você não se parece nada com um — ele replicou, inclinando a cabeça quando ela se juntou a eles no vestíbulo. Aquilo era ridículo. Bram teve de flexionar os dedos para evitar tocá-la. Mesmo que estivesse acostumado a acompanhar donzelas, o que não era o caso, Rosamund Davies era alta, franca, e de outro modo imperceptível. Só podia ser a tentação do fruto proibido... Cosgrove a reclamava para si e logicamente ela teria de se tornar uma figura assexuada aos seus olhos, um entidade a ser tolerada quando necessário, mas não alguém em quem pensasse com luxúria. Exceto pelo fato de que era exatamente assim que pensava nela. E isso não era o pior. Colocara-se na posição de servir de tutor para ela, o que era tanto absurdo quanto inconcebível no que se referia a ele. — Quantos convidados seremos esta noite? — Rose perguntou, enquanto o mordomo a ajudava com o xale. — Somente nós — Bram respondeu e franziu o cenho. — E possivelmente mais um. — A menos que o duque tivesse algo mais importante a fazer. — Mais um? A voz dela soou um tanto tensa. Bram olhou dela para James e em seguida deu um passo à frente e ofereceu-lhe o braço. — Talvez o duque de Levonzy — disse, acompanhando-a pela escadaria que levava à carruagem. — Ele estava com seu pai quando ele fez o acordo com Cosgrove. — Sua Graça é um dos amigos mais próximos de meu pai. A mera menção de Levonzy lhe causava uma apoplexia, mas ele sentiu os dedos dela relaxarem em seu braço. Portanto, não era o duque quem a preocupava. — Algo a incomoda? — indagou, gesticulando para que Lester seguisse adiante. — Nada. Ele colocou a mão sobre a de Rose antes que ela se afastasse. — Não estou acostumado a sensibilidade. Se quer minha ajuda, sugiro que seja franca e direta. Ela o fitou por um instante e assentiu. — Lorde Cosgrove veio aqui hoje. E ele... me beijou. De certo modo. 45

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A maneira como os dedos dela o agarraram o alarmou. — De que modo? As faces de Rose enrubesceram. — Ele... ele lambeu minha boca — ela sussurrou tão baixo, que Bram quase não ouviu. A cabeça de lorde Lester surgiu à porta da carruagem. — Vocês vão entrar ou não? Maldito fedelho! — Cale-se e sente-se, James. Com um olhar de surpresa, o visconde voltou para dentro do veículo no mesmo instante. — Ele está certo — Rose disse. — Nós... — Cosgrove conhece muito bem o modo mais adequado de beijar uma mulher — ele a interrompeu, aproximando-se dela para poder baixar a voz ainda mais. — Ele também sabe o que choca uma jovem dama e está tentando derrubá-la, Rosamund. Ela assentiu e se virou de frente para ele. — Ele... Aquilo... Eu não queria que meu primeiro beijo fosse assim. Por certo não o primeiro beijo de meu futuro ma... — Uma lágrima escorreu pela face e Rose a enxugou. Uma sensação sombria e desagradável se apoderou do íntimo de Bram. Se aquele primeiro encontro com Cosgrove a aborrecera daquela maneira, ela acabaria se matando depois de um mês de casada. Por que diabos ela não tentava fugir? — É melhor irmos — disse seco, mudando de posição para ajudá-la a subir. — Para a Mansão Marsten, Graham — instruiu o condutor e fechou a porta. — Trouxe vinte pratas para apostar no faraó — James disse, dando um tapinha no bolso. — Quais as minhas chances? Bram o observou por um segundo. — Deve voltar com a mesma quantia, suponho. — Esplêndido. Quero dizer, é a sua família e eu não quero esvaziar os bolsos deles, mas deve saber que estou melhorando meu jogo. — Todos conhecem suas habilidades, Lester. — Virando-se para Rosamund, sentada ao lado do irmão, ele perguntou: — Lady Rosamund, você joga? — Não. E se meu irmão tivesse algum juízo, também não jogaria. E nem você, Bram. Era bom ouvir a raiva na voz dela, mesmo que estivesse parcialmente voltada para ele. E ela o chamara pelo nome. Se ainda conseguia ficar brava, então Cosgrove não a afetara permanentemente. Ainda. — Acho que vai gostar desse jogo. Ficarei muito contente em ser seu instrutor. — Rose não joga — o visconde se intrometeu. — Tampouco vai gastar a mesada em apostas. Acredite em mim, já tentei convencê-la antes. 46

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— Eu lhe darei tudo o que precisar para a aposta — Bram disse. — Não perderá um centavo. Eu lhe dou minha palavra. Rose permaneceu cética, mas obviamente não o conhecia o bastante para saber que quando Bram dava sua palavra, algo raro, ele sempre cumpria. Um dos lacaios de August abriu a porta da carruagem quando lá chegaram. Bram soltou a respiração, observando os dois irmãos descerem da carruagem. A opinião e o julgamento de seu irmão mais velho pouco tinha importado no passado. Houvera vezes em que ele levara companheiros e mulheres aos jantares de família, nos quais os sobrinhos tiveram de se recolher para os quartos antes da hora. Pela primeira vez, ele se perguntou por que August continuava a convidá-lo e insistia para que fosse lá. E naquela noite queria que o irmão gostasse de pelo menos um de seus convidados. Não que Rose fosse voltar à Mansão Marsten depois de se casar com Cosgrove. — Tio Bram! Um borrão da altura do bolso de sua calça desceu correndo a escada e se chocou contra sua cintura. Um segundo e um terceiro de tamanhos variados o seguiram, e em instantes ele estava cercado. — Bom Deus, quem são esses ouriços de dedos grudentos? — ele perguntou. — Será que lorde Haithe sabe que vocês estão morando na casa dele? — Sim! — as crianças responderam em coro, rindo. As duas meninas se lembraram de seus modos antes, soltaram-no e fizeram uma mesura diante de Rose e James. — Lorde Lester, lady Rosamund, permitam-me apresentar Oscar, lorde Kerkden; lady Louisa e lady Caroline. Pessoas pequenas, meus amigos: James e Rosamund Davies. Crianças. Rosamund, aturdida, acompanhou com o olhar quando lorde Bram Johns levou as duas mais novas pela cintura, debaixo de cada braço, escada acima até a sala de estar. Com sua reputação, o esperado seria que ele nem soubesse o que seriam crianças, quanto menos como conversar e brincar com elas. Os sobrinhos claramente o adoravam. E aquela camada de ceticismo que ele vestia como um segundo casaco parecia ter sido retirada ao passar pela soleira da porta junto com o chapéu e as luvas. Ela perguntou-se quantos dos amigos dele conheciam aquela faceta e por que ele escolhera deixar que ela e James a conhecessem. Tudo aquilo parecia estranho demais para um homem que vencera todas as apostas feitas no White's na temporada passada. — Que diabos é isto? — James sussurrou logo atrás dela. — Pensei que tivéssemos vindo jogar cartas. — Ele disse que seria um jantar familiar, James. Venha. O irmão estava aturdido com o fato de haver crianças por perto, mas Rose se viu sorrindo. E isso era um feito e tanto depois do dia que tivera. Estranho como a única pessoa com quem podia conversar, que parecia compreendê-la, fosse um dos homens mais infames de Londres. Ou talvez ele só conseguisse acobertar suas reais intenções melhor do 47

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que Cosgrove. Não, aquele era um pensamento aterrador. Porque ela não fazia idéia do que o futuro marido planejava para o próximo encontro deles e ela desesperadamente desejava que Bram pudesse lhe contar. Ao entrarem na sala de estar, Bram jogou as duas crianças no sofá e se curvou diante de um homenzarrão e de uma mulher pequenina que estavam junto da lareira. Rose já tinha visto o marquês e a marquesa de Haithe em diversas ocasiões, mas nunca tinham sido apresentados. E se ela tivesse de adivinhar, nem em cem anos diria que Haithe e Bram eram irmãos. Era verdade que tinham a mesma tez clara e cabelos negros, mas enquanto Bram era delgado e elegante como uma pantera, o irmão mais se parecia com um enorme urso, largo, alto e nem um pouco sutil. Ou perigoso, já que seria muito fácil vê-lo se aproximar. — August, Emily, permitam-me apresentar-lhes visconde Lester e sua irmã lady Rosamund... James, Rosamund, lorde e lady Haithe. O casal trocou um olhar, que Rose não conseguiu interpretar. Então a marquesa se adiantou. — Bem-vindos ao nosso lar bem barulhento — ela disse, sorrindo até os olhos. — Obrigada por nos convidar. — Rose fez uma mesura. — Tio Bram — Oscar interrompeu-os, puxando-o pela manga. — Trouxe uma boa quantidade para cobrir suas perdas? — Trouxe o bastante para garantir minha vitória — Bram comentou ao pegar a bolsinha pesada de dentro do bolso e entregando-a James, que se mostrou animado. O jovem visconde, então, virou o conteúdo da bolsa numa mesinha lateral. Amendoins descascados se espalharam por todos os cantos. — Olhem só! — exclamou. — Vou ter indigestão por uma semana! — Só se você vencer. Ponha de volta na sacola, pirralho. — Ao terminar de falar, Bram olhou de soslaio para Rose. — Eu lhe disse que não perderia um centavo sequer. — Vocês apostam amendoins? — James exclamou alto, parecendo mais jovem do que Oscar. — Pesa menos no bolso — Bram replicou. — Ainda mais quando se está aprendendo a jogar. — Eu sei jogar. — Sim, mas permita-me esclarecer: estou lhe oferecendo uma aula de como jogar e vencer, James. Aproximando-se de Bram, o visconde disse baixinho: — Estou um tanto ofendido, Bram. — Então fique à vontade para perder para um menino de dez anos. Posso até lhe 48

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oferecer assistência uma vez, mas não espere que eu repita a oferta. — Mas eu... — August, você ainda tem aquele horrendo tapete turco na biblioteca? — Sim, mas ele não é horrendo. — Oscar, Lester, dividam os amendoins em três partes. Lady Rosamund e eu voltaremos em alguns minutos. — Assim dizendo, tomou a mão dela, acomodando-a no braço. — Devo acomp... — Conheço o caminho — Bram interrompeu o irmão. — Lady Rosamund aprecia História. — História americana — ela o corrigiu, sentindo as faces arderem. Era óbvio que Haithe não aprovava a sua saída com Bram, estando desacompanhada de uma dama de companhia, e ela tinha de concordar. Já estava metida em muitos problemas. — História americana? Tenho diversos livros a respeito dos nativos. Estão no canto da direita, ao lado dos vasos gregos. — É mesmo? — Venha. — Bram a puxou até a porta. — Vamos encontrá-los. — Isso não foi muito sutil — ela sussurrou ao caminharem pelo corredor. — Não? Lamento. Eu lhe disse que não tenho muita prática nisso. — Sim, mas sua família pensará que você e eu... que estamos aprontando alguma coisa. — E estamos. — Não, não estamos. — Ela soltou a mão da dele. — Nada nefasto, de qualquer modo. Bram sorriu, a expressão suavizando o belo rosto. — Nefasto. Que palavra esplêndida. — Empurrou uma porta. — Por aqui. Franzindo o cenho, Rose o seguiu. Só esperava poder aprender alguma coisa a respeito de Cosgrove. — Você... — Ela parou de falar ao ver a enorme tapeçaria pendurada numa das paredes da biblioteca. — Isso é maravilhoso. É muito antigo? — Isso supostamente mostra a criação dos Jardins Suspensos da Babilônia. Sim, é muito antigo. August sabe tudo a respeito, mas cuidado, se ele souber de seu interesse, falará sem parar. Rose admirou as cores vibrantes mais um pouco antes de ceder à curiosidade. — O que queria me contar? Ele fechou e trancou a porta, depois cruzou o cômodo até perto dela. 49

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— Eu não queria fazer isto. — Um músculo no maxilar saltou. — Outra coisa na qual não tenho muita prática. O coração de Rose começou a saltar assim que ela ouviu a porta se fechar. — Do que está falando? Mudou de idéia quanto a me ajudar? — Não. Estou falando de autocontrole. — Bram respirou de leve. — Disse que nunca foi beijada. — O beijo de lorde Cosgrove pode não ter sido um beijo de fato, mas... — Ela engoliu em seco. — Não, não foi. Esse não conta. O olhar dele a prendia. Ela era alta para uma mulher, mas ainda tinha de levantar o rosto para fitá-lo nos olhos. Não pela primeira vez desejou saber o que ele pensava. — Um beijo se trata de intimidade — ele murmurou, esticando a mão para passar o dedo pelo pescoço delgado. — Cosgrove passou do limite em que se sentia confortável, e fez isso de propósito. A mente de Rose parou na palavra "intimidade". Bram queria ser seu aliado, mas ela não sabia se o teria escolhido em outras circunstâncias. Poucos dias antes era capaz de odiá-lo. Porém, depois de conhecê-lo, surpreendeu-se ao ver que ele era astuto, inteligente e espirituoso, tendo modos mais cavalheirescos do que outros de seus conhecidos. — Não me deu muito tempo para refletir a esse respeito — ele prosseguiu —, mas só vejo um modo de você se sentir mais confortável com os avanços de um homem. — Sim? — A voz dela saiu entrecortada. — Sim. Bram deu um passo à frente, o olhar fixo nela, e segurou-lhe o rosto entre as mãos. Inclinou-se e tocou os lábios de Rose com os seus. Por vontade própria, os olhos dela tremularam com a carícia suave. Quando ele se afastou alguns centímetros, como se avaliando se gostava do sabor dela, Rose ficou desapontada. Ainda assim, aquilo foi muito melhor do que havia sentido com Cosgrove. — Isso foi... Ele a beijou de novo; a boca a procurou, moldou-se à sua, de modo suave, porém persistente. O desejo, chocante em seu repentino ardor, a atravessou. Deus, ele sabia beijar! Rose arfou, apoiando as mãos no peito dele como para afastá-lo, mas em vez disso, segurou-o pela lapela e se levantou nas pontas dos pés a fim de trazê-lo mais para perto. Bram aprofundou o beijo, a língua resvalando a dela. Pressionou-a até que ela se encostasse na estante, mordiscando e provocando os lábios até que ela não conseguisse mais resistir. Nada deveria ser tão bom assim. Certamente nada vindo de alguém com a reputação de Bram Johns. A mão deixou o rosto e desceu pela lateral. Tudo o que ele tocava, mesmo por sobre o vestido, se mostrava ardente. Quando os dedos cravaram nas nádegas ao encontro de sua virilha, ela gemeu. 50

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Saindo do transe com o sangue latejando nos ouvidos, Bram deu um passo para trás. Não havia como disfarçar o sinal de sua ereção, mesmo porque ele se sentia cego. Pelo menos Rose o olhava no rosto, ainda que devesse tê-lo sentido por sobre as saias. Quase a despira. Mentalmente o fizera. Refestelou-se com o rosto corado e os lábios inchados e úmidos diante de si. Respirando fundo, deu-lhe as costas. Sua reação o transtornava de tantas maneiras que não conseguia definir qual a melhor, ou a pior delas. Diga alguma coisa, maldição, ele se ordenou. — Agora já foi beijada. — Acho que preciso me sentar um segundo — disse ela com voz trêmula. — Sim — ele disse por sobre o ombro, tentando formar imagens de senhoras de idade, pouco atraentes, homens até, tudo o que pudesse diminuir a pressão na virilha. :— Descanse um minuto. E lembre-se de procurar um dos livros que meu irmão mencionou. — Ele a ouviu se sentar. — Bram? A voz suave o deteve à porta. — Sim? Ela pigarreou. — Essa foi uma boa lição, mas acho que ele não tem intenção de parar com os beijos. A raiva repentina que as palavras dela provocaram fez com que ele recobrasse o controle. — Não, acho que não. — Você... Você não terminou então, terminou? — ela perguntou, cruzando as mãos no colo para que ele não visse o quanto tremiam. — De me ajudar, quero dizer. — Francamente, Rosamund, contar o quanto dói um tapa não o torna menos doloroso quando você o recebe. Rose se levantou e se aproximou dele. Ele chegou a acreditar que ela fosse beijá-lo, mas sem nenhum aviso, a mão dela subiu em direção ao seu rosto. Instintivamente Bram bloqueou o golpe, segurando-a pelo pulso. — Se eu souber o que esperar — ela disse, abaixando a mão — eu poderei tentar evitar o golpe para início de conversa. Embora eu espere que você esteja falando metaforicamente. Não necessariamente. — Ainda assim não vai dar ouvidos à razão? — Não vou abandonar minha família. Vai me ajudar? — Eu... Sim, claro. Mas este não é o lugar. — Olhou-a de novo, perdendo-se nas 51

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profundezas dos olhos verdes. — Primeiro, porém, algumas lições de faraó — disse e saiu da biblioteca. Por Lúcifer! Não se sentia excitado assim desde a sua primeira vez aos dezesseis anos com uma atriz de ópera. Por que, em nome de Deus, um beijo da virginal lady Rosamund o fizera se lembrar daquilo? Provavelmente por se sentir vivo naquela noite. Ciente de tudo: de cada toque, respiração e som. Era assim que se sentia ao beijar Rosamund. Vivo. Considerando-se que em boa parte dos dois últimos anos a sensação maior sentida havia sido o tédio, aquilo era deveras perturbador. Pois, pelo que se lembrava, não sentira tédio nenhuma vez sequer desde que pusera os olhos sobre Rosamund Davies. Nem um pouco. O jantar, depois que Rose se recompôs o bastante para se juntar aos demais, foi barulhento e divertido. Mesmo James pareceu ter se recuperado do espanto quanto ao tipo de moeda utilizado no jogo e se unido nas brincadeiras. — Viu? — Oscar dizia para a irmã. — Eu lhe disse! Também vou cavalgar de costas como fez o tio Bram, de Brighton até Londres. Será difícil, mas sou um excelente cavaleiro. — Acho melhor não fazer isso, jovenzinho — uma voz profunda e nova disse da soleira. — Se quebrar o pescoço seu tio será o herdeiro, e nenhum de nós quer isso. As crianças, bem como lady Haithe e o marido, depois James se levantaram. Rose os imitou instintivamente, apesar de Bram, ao seu lado, permanecer sentado e até mesmo continuar a comer. O duque de Levonzy entrou na sala de jantar, passando o olhar por cada um dos presentes, detendo-se nela um segundo antes de parar no primogênito. — Desculpe meu atraso, August — disse ao se sentar na cabeceira da mesa, onde um lacaio se apressou a colocar pratos e talheres. — Tive uma reunião. — Não é preciso se desculpar, pai. Já conhece lorde Lester e sua irmã lady Rosamund? Meu pai, o duque de Levonzy. — Vossa Graça — ela disse, fazendo uma mesura. Do outro lado da mesa, James curvou a cabeça antes de voltar a se sentar. — Sim, já nos encontramos, embora Lester nem usasse calças ainda e a moça mal falasse. A mais velha, Beatrice, é a bonita da família. Rose voltou a atenção para o prato. Ouvir uma opinião quanto à sua aparência não era nenhuma novidade, visto que sabia muito bem quem era a beldade da família. Pareceu-lhe, no entanto, como um tapa no rosto ouvir um estranho dizer isso. Contudo, como Levonzy era amigo dos pais havia anos, o duque sem dúvida estava ciente e partilhava do conceito dos Davies. — E assim fala o corvo em meio aos pombos — Bram comentou, alcançando mais um pãozinho e gesticulando para pedir o pote de manteiga. O marquês de Haithe quase engasgou e intercedeu: 52

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— Como vai o duque de Melbourne? — Considerando que a família dele não o ofende, eu diria que bem. — O duque finalmente olhou para Bram. — Não sabia que estaria aqui. — Eu preferiria que isso continuasse assim. Melhor, que perceba que estou aqui apenas para direcionar seus insultos a mim, deixando os convidados de August em paz. — Ele não os convidou — Levonzy rebateu. — Eles são seus convidados. Aliás, por que os trouxe? — Esta é a minha casa — Haithe intercedeu, inesperadamente. — Todos são meus convidados. E já que Oscar está determinado a conseguir um quilo de amendoins, acredito que o ditado "quanto mais, melhor" se aplica neste caso. — Dois quilos — Oscar corrigiu. — Trouxe sua parte, vovô? — Não vou participar dessa tolice. Bram riu, sem humor algum no som. — Ele tem medo de perder, Oscar. Não se preocupe. Você e eu entendemos que o desafio é metade do divertimento. Lady Haithe parecia disposta a ir para fora e enfrentar um dilúvio em vez de ter de permanecer ali. Rose tinha esperanças de estar disfarçando seu incômodo melhor. — Diga-me, jovem lorde Kerkden, qual a sua opinião quanto à Mansão Lowry? — o duque perguntou, recusando as batatas que o criado lhe oferecia. — A casa do tio Bram? Acho bonita. — Sabe que ela será sua quando atingir a maioridade. É herdeiro de seu pai, portanto, meu herdeiro. O menino pareceu confuso. — Mas onde tio Bram vai morar? — Eu? Imagino que vou me tornar um fazendeiro, criador de ovelhas. Seu avô certamente será meu maior comprador. — Piscou para o jovem visconde. — Ou quem sabe não me mudo para os trópicos e cultivo amendoins. — Vai ficar rico! — Oscar riu. — Sim, acho que sim. Falando nisso, Vossa Graça, como tem passado Braithewaite? Ouvi dizer que foi roubado. Pelo Gato Negro. O duque empalideceu. — Está indo longe demais. — Isso é impossível. Rose olhou de pai para filho. Deus do céu! Ela estava para se casar com um monstro para ajudar a família. E Bram, pelo visto, seria removido de seu próprio lar para atender às conveniências da própria família. Eles tinham mais em comum do que supunha.

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Ser magoado pelos outros, isso ela entendia. Bram a olhou de soslaio como que para lhe dizer que não se alarmasse. Ela, contudo, estava curiosa. E, acima de tudo, desejava mais uma lição de beijos.

Phineas Bromley olhou ao redor pela sétima vez. O antigo coronel do Exército tinha um forte instinto de sobrevivência, mas Bram duvidava de que pudessem sofrer uma emboscada na mostra egípcia do Museu Britânico. — O que estamos fazendo aqui, mesmo? — Phin perguntou. — Estou tentando agir de maneira inefasta. Como nunca seduzi ninguém aqui, até onde me lembre, pensei que este lugar serviria. — Sabe que isso não é uma palavra: inefasta. — Acabei de inventá-la. E agora me deve um centavo por tê-la usado. — Hum. Eu deveria estar numa reunião com um arquiteto agora de manhã. — Então o salvei dessa sina. Agora me deve um favor e um centavo. — Eu queria encontrá-lo. Estamos quase finalizando os projetos dos banhos termais em Quence. Bram vagou ao largo de um enorme sarcófago decorado. — Não sente falta? — De quê? — Por dez anos arriscou a pele diariamente, Phin. Guerra, mulheres, apostas, bebidas, perigo... Ora essa, até salteador você foi! Phin se aproximou. — Abaixe a voz, sim? E não, não sinto saudades. Estou perfeitamente bem com minha vida atual. — Bateu as luvas no pulso. — É por isso que estamos aqui? Quer que eu admita que fui domesticado para poder me ofender e me chamar de touro capado mais uma vez? Já passamos por isso. Precisa encontrar outro argumento, Bram, esse já está gasto... Alguma mulher o rejeitou e por isso está entediado? — Não. Não é nada disso. — Se ao menos esse fosse o problema. — Não dormi em outra cama que não a minha na última semana. E sozinho, se quer saber. O amigo riu. — Desculpe. Não está se sentindo bem. Suas partes começaram a apodrecer e cair finalmente? Bram estreitou o olhar. — Maldição! Eu sabia que deveria ter procurado Sullivan. Mas o maldito criador de cavalos não nunca vem a Londres. — Ele viria se você pedisse. — Phin o analisou. — Pare de dar voltas e vá direto ao ponto. O que o incomoda? 54

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— Não sei. — Não se sentia ele mesmo havia dias. E não poderia ir até Sussex para se encontrar com Sullivan porque Rosamund só tinha três semanas antes que o noivado fosse anunciado e poucos dias mais para o casamento. Com Cosgrove. Estremeceu. — Roubei lorde Villiers antes de ontem e nem isso me ajudou. — Bram! Tem de parar com isso. Ouvi os rumores. O Gato Negro está sendo procurado pelos homens de Bow Street em toda a cidade. — Espero que sim. Seria uma grande perda de tempo de minha parte se ninguém me notasse. Levonzy o notara, claro, mas não havia feito nada além das costumeiras imprecações e maldições. A bem da verdade, Bram não se esforçara em suas excursões noturnas na última semana, e por isso, talvez, não tivesse sido convocado para um sermão. — Não sei como aconselhá-lo, amigo. Venha jantar conosco. Beth está encantada por lorde John Elliot, por isso você estará a salvo. Bram hesitou. — Posso levar dois amigos? De pronto, Phin ficou sério. — Que amigos? Sufocando seu desagrado, Bram curvou os lábios. — Não Cosgrove, se é isso que o incomoda. — Sinto dizer que minhas preocupações vão além disso, ultimamente. Sou responsável por uma ameaça de dezoito anos e tenho uma esposa que já suportou escândalos demais. — Bom Deus! — Bram exclamou. — Você foi castrado mesmo! — Bram... — Lorde Lester e a irmã. Eu... Eu tomei o rapaz para debaixo de minha asa. — E não via Rosamund desde a noite em que a beijara três dias atrás. Afastar-se dela, contudo, não acabara com a sensação estranha que se apossava de seu peito toda vez que pensava nela. — Traga-os, então. Sete horas. — Phin pegou o relógio do bolso. — Acho que ainda consigo participar da reunião com o arquiteto. Vou deixá-lo agora, mas não roube nada do museu ou eu mesmo o denunciarei. — Sim, sim. Vá correndo... Com um sorriso, Phin bateu em seu ombro e se afastou. Depois de alguns minutos, Bram também saiu do museu. Precisava informar Lester do convite para o jantar. Um bilhete seria o mais apropriado, porém vinha negligenciando suas obrigações para com Rosamund. E, maldição, como desejava encontrá-la. Com tal idiotice em mente, seguiu até a Mansão Davies e bateu à porta. — Milorde — disse o mordomo, curvando-se.

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— Lester está em casa? — Não, milorde. Ele foi almoçar com lorde Cosgrove. Maldição! — E lady Rosamund? — Se quiser esperar na sala de estar, vou verificar. Pelo menos ela estava em casa. E lhe deram permissão para entrar na casa. Havia ocasiões, freqüentes, que nem o deixavam aguardar no vestíbulo. Agora que Rose tivera três dias para pensar se ainda queria sua ajuda para o próximo encontro com Cosgrove, ele se perguntava se ela desejava vê-lo. Irrequieto, foi até a sala de estar e aguardou, impaciente. — Bram. Ele se virou ao ouvir a voz. Vestida em verde e amarelo, ela estava linda, mesmo com uma mecha úmida de cabelos sobre a testa. — Rosamund. Eu... estou interrompendo alguma coisa? Ela passou a mão pelos cabelos. — Eu estava ajudando a reorganizar alguns móveis no andar de cima. Uma criada entrou na sala e ele ficou ainda mais aborrecido. Maldita propriedade! — Devo me retirar, então? — Não sei. Por que veio? A mente dele estava vazia como uma tela em branco. Então se lembrou o que o levara até lá. — Vim convidar você e seu irmão para jantarem comigo na casa de lorde Quence. Mansão Bromley. Fica na St. George Street. Conhece? — Você é amigo de lorde Quence? — Sou mais próximo do irmão, Phin, mas sim, somos amigos. Gostaria de ir? Os lábios macios se comprimiram. — Martha, por favor, pode sair um minuto, sim? — Mas sua mãe... — Acredito que minha reputação esteja a salvo — Rose a interrompeu. — Um momento, por favor. A criada fez uma mesura e se retirou, fechando a porta atrás de si. Bram, no entanto, ficou onde estava, com meia sala entre eles. Normalmente entendia o caráter e as intenções das pessoas em questão de segundos; era um dom valioso no que se referia a apostas e para evitar duelos com maridos traídos. Naquele dia, porém, ele não fazia idéia do que Rose pensava. — Pensei que tivesse mudado de idéia — ela disse pouco depois. — Que depois de me beijar tivesse se divertido o bastante ou acertado alguma aposta com Cosgrove e 56

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partido para sua próxima conquista. — Está brava comigo? — Bram ergueu uma sobrancelha. — Por quê? Por que ter parado depois de um beijo? Por não tê-la arruinado? — Não. Sim! Em poucas ocasiões Bram se sentira tão aturdido. — Pensei estar agindo de modo honrado. Mas posso estar errado, já que não tenho muita prática. Rose bufou. Por fim, ele se aproximou. — Acha isso engraçado, não? Se fizesse idéia do que eu gostaria de fazer com você, correria para o outro lado da sala. O humor abandonou os olhos verdes. — Está tentando me convencer de que não há diferença entre você e lorde Cosgrove? Sem conseguir se conter, ele percorreu o braço nu com a ponta do dedo. — Não muita — admitiu. — Somos dois hedonistas egoístas. — Mas me ofereceu ajuda. Sim, e o motivo estava se tornando cada vez mais complicado. — Eu sei. Isso me parece estranho também. Mas lhe dei minha palavra, e pretendo mantê-la. — Você é um homem muito interessante — Rose declarou. — E tem amigas mulheres. De verdade. Imagino que lorde Cosgrove não possa afirmar isso. Ele sorriu, contente com o elogio. — Obrigada, milady. Bem, já que estou aqui, vamos nos beijar novamente ou prefere continuar de onde paramos? Ela deu um passo para trás. — Isso não foi muito romântico. Ele precisou de mais controle do que imaginava pára continuar onde estava, sem segui-la. — Tampouco o é seu futuro marido. Não espere flores, a menos que seja de beladona. Rose hesitou. — Acha que ele pretende me matar? — Imagino que não. — Bram a avaliou um instante. — King manipula as pessoas — disse devagar, incerto quanto ao melhor modo de continuar. — A fim de ele vencer o jogo, suas vítimas precisam pisar além do que um dia imaginariam, ou ousariam. Alguns deles acabaram arruinados. Destruídos. Outros acabaram mortos. Pelas mãos de outros ou pelas 57

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próprias. Ela forçou uma risada. — Ora, ora, imagino que não disponha de dez mil libras para me emprestar, ou sim? Foi a vez de ele sorrir sem entusiasmo. — Recebo uma mesada tal qual seu irmão. Normalmente. No momento ela foi cortada. — Na verdade vivia do que ganhava no jogo, mas ela não gostaria de saber disso. — Bem, este problema não é seu, Bram. Eu não deveria ter pedido a sua ajuda. Uma raiva renovada o assolou. Cosgrove, Lester, os Abernathy, todos eles faziam os acordos que melhor os serviam, e ela, a parte mais interessada, tinha de pagar o preço. A indignação era uma emoção nova, e ele tinha certeza de que não gostava dela. — Há um serviço que posso lhe prestar, Rosamund. Antes que considerasse que, a seu modo, ele também a usava, Bram a segurou pelas mãos e a aproximou. King lhe dera motivos para ajudá-la, mas a verdade era que ele não a beijara para ajudá-la, mas porque quisera beijá-la e com um desejo desesperado que o incomodava de fato. Dessa vez quando os lábios se encontraram ele estava preparado para a eletricidade, o calor que se espalhou pela espinha. Inclinou a cabeça, aprofundando o contato das bocas. Estranho, para um homem que não era muito ligado a beijos como ele, ansiar tanto por um. O dela. O pensamento o abalou um tanto, e ele deu um passo para trás. Sim, era uma criatura que apreciava se deitar com o sexo oposto, mas não lhe cabia cobiçar a mulher escolhida por Cosgrove. Estava prestando um favor a ela ao mostrar o que King pretendia fazer. Removeria o choque do primeiro beijo, do primeiro toque, do primeiro tudo que ela lhe permitisse. E nada mais. Era caridade. Nada além de uma boa ação torcida e prazerosa. — Bram? Ele piscou. — Estou me debatendo — ele improvisou. — O que fazer em seguida? Mãos ou boca. — Já me mostrou a boca — ela disse com o olhar fixo nos lábios dele. Bram estreitou o olhar ao sentir um calor descer até a virilha. — Se acha isso, tenho algo mais a lhe mostrar. Dessa vez, quando se aproximou, evitou a boca erguida e percorreu os lábios pela curva da mandíbula, descendo até o pescoço. Ela emitiu um arquejo tipicamente feminino que o deixou excitado. Bem, se tinha de lhe dar uma aula, que fosse completa. Bram passou os dedos pelo ombro, escorregando pela manga do vestido, para que os lábios tivessem caminho livre. Ela enrijeceu perceptivelmente ao sentir a boca na base do pescoço, mas no instante seguinte enroscava os dedos nos cabelos negros. Um obstáculo transposto. Com um suspiro, Bram continuou seu assalto. 58

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Tivera muitas amantes, mas não conseguia se lembrar de ter sentido tamanha sincronia como com a mulher em seus braços. Nunca levara uma virgem para a cama, mas, por certo, não era por isso. A respiração ofegante e superficial, as pernas inquietas, o perfume de lavanda que emanava dela... Ela era a moça mais inebriante que ele já havia provado. Estavam tão envolvidos que ele mal percebeu as vozes se aproximando pelo corredor. Mas no fim seu senso de preservação falou mais alto e ele colocou a manga do vestido no lugar, conduziu Rose até o sofá e foi para trás dele. A porta se abriu num rompante. — Rose! Lorde Bramwell! O que... Bram se endireitou sobre os joelhos, segurando o espaldar do sofá com uma mão, enquanto com a outra tentava ajeitar a ereção. — Lorde Abernathy — cumprimentou, calmo, e se abaixou de novo. — Não estou encontrando, lady Rosamund — prosseguiu. — Não que eu conseguisse reconhecer uma agulha de bordar mesmo que ela me perfurasse. Por baixo do sofá viu que os pés da condessa se aproximavam dos do marido. Eles tinham todo o direito de desconfiar de sua presença, ainda mais sem acompanhante nessa visita para a filha, todavia, bem que esperaram bastante antes de se intrometerem, permitindo que ele roubasse tanto a virtude da filha quanto outros bens, se ele desejasse. — É prateada e curva — Rose disse num tom baixo. Boa garota, ele a aplaudiu mentalmente. Ela tinha astúcia e sabia muito bem quando e como empregá-la. — Tem certeza de que não está enfiada em alguma tapeçaria? — Por fim, quando sentiu e aparentou mais compostura, Bram se levantou e espanou os joelhos das calças. — Acho que terá de comprar outra. — Sim, acredito que sim. Dando a volta no sofá, Bram estendeu a mão ao conde. — Peço desculpas por vir sem que Lester estivesse presente, mas pensei em convidá-lo para o leilão de cavalos em Tattersall. — E quando viu que ele não estava, resolveu convidar Rose no lugar dele? — a condessa perguntou. Então na família Davies as mulheres eram quem tinham a maior inteligência. Teria de se lembrar disso. — Já que eu estava aqui, convidei lady Rosamund e seu filho para se juntarem a mim num jantar na casa de lorde Quence — ele replicou. — E como eu mencionei ter perdido uma agulha por aqui, lorde Bram se ofereceu para encontrá-la, pois alega ter os sentidos de uma raposa — Rosamund completou, levantando-se. 59

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Abernathy olhou de um para outro. — Muito bem, lorde Bramwell, uma palavra antes que saia, por favor. Bram lançou um olhar para Rosamund, sem querer se arriscar em segurar-lhe a mão. — Claro. Eu já estava de saída de qualquer modo. Virei buscá-los às seis e quarenta. — Curvando-se, saiu da sala e esperou pelo conde no corredor. Um minuto depois Abernathy apareceu e o conduziu para seu escritório. — Seu pai e eu somos amigos — ele disse assim que se viram sozinhos. — Estou ciente disso e prometo que isso não deporá contra o senhor. — Exceto pelo quase roubo, mas como não o levara a cabo, ele não contava. A venda da filha para Cosgrove, contudo, era outra história. — Só estou lhe dizendo isso para que entenda que esse é o único motivo pelo qual não o expulso a pontapés. Imagino que saiba da dívida de James e do arranjo que fiz com Cosgrove. Dividido entre apontar que se fosse expulso a pontapés a briga terminaria em sangue e zombar da idéia de "arranjo" do conde, ele simplesmente assentiu. — Sim, estou a par. — Portanto, quer sua presença seja em favor de Cosgrove ou sua própria, terá de deixar Rose em paz até que o bem-estar e a reputação dela estejam fora de minhas mãos. Não quero mais confusões nesse assunto. Bram exalou devagar. — Como o bem-estar dela só estará em suas mãos por mais três semanas, imaginei que seria melhor deixá-la se familiarizar com o círculo de amigos de Cosgrove. Convidei a ela e a Lester para um jantar com o visconde Quence e a família. Por certo não tem objeções quanto a sua filha jantar na casa de um homem com uma reputação irretocável como a de William Bromley. — Não, problema algum. Mas cuidado, senhor, pois estarei de olho. De maneira muito eficiente, Bram pensou antes de assentir. Conseguira o que queria pelo momento: jantar com Rosamund. Depois disso, seria melhor recobrar o juízo antes que Cosgrove ou Abernathy cortassem seus testículos. — Trouxe Cosgrove comigo — James anunciou ao entrar na sala de estar. — Mencionei que você não estava feliz em se casar com um desconhecido e ele disse que isso não poderia continuar assim. Antes que Rose pudesse ralhar, o marquês entrou na sala. Ela de pronto se levantou. Apesar do pânico que ameaçava tomá-la, ela procurou se lembrar que sabia o que estava por vir. Não ficaria chocada com os avanços dele, graças a Bram. Quem sabe mostrando um pouco de fortaleza interior, ela pudesse convencer Kingston Gore que não aceitaria zombarias. Talvez com isso ele passasse a tratá-la com mais respeito dali por diante. 60

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Não gostava de guerras, preferia evitá-las, especialmente se o oponente fosse muito mais experiente do que ela. Ainda que estivesse se informando, não desejava que ele soubesse disso. Essa estratégia, claro, não tinha nada a ver com o fato surpreendente de que gostava de beijar e de ser beijada por lorde Bram... — Boa tarde, milorde — disse com um leve sorriso e uma mesura. Cosgrove inclinou a cabeça. — Sei que mal nos conhecemos — ele disse, arrastado, gesticulando para que ela voltasse a se sentar e se acomodando ao seu lado —, mas nós devemos nos esforçar nesse sentido antes que nosso acordo se torne público. Não concorda? Seria aquele um teste de sua força interior ou de sua memória? Ela desejava que ele fosse do tipo conciliatório e honrado, mas também queria que ele soubesse que ela não era nenhuma tola. — Acredito que podemos nos tornar amigos — disse com cautela — se individualmente conseguirmos manter a língua civilizada. E reservada. Ele sorriu. — James, sente-se ali e nos conceda um pouco de privacidade. — Apontou para o outro extremo da sala. O fato de o irmão ter atendido ao pedido de pronto, pegando um livro para se entreter, algo inédito, demonstrou a influência que o marquês tinha. — Portanto, quer que eu mantenha minha língua para mim mesmo, Rose? — Sim. Não fiz nada para merecer outro tipo de tratamento que não o de respeito e gentileza. — De fato. Está disposta a me mostrar o mesmo respeito e gentileza? Uma esperança brotou dentro dela. Parecia improvável, mas talvez lorde Cosgrove só fosse... desajeitado com as mulheres. — Claro que sim. Eu posso ter desejado uma união baseada no amor, mas não tenho ilusões. Compreendo a impossibilidade de meu pai de saldar a dívida de outro modo e sempre cumpri minhas obrigações para com a família. — Muito bem posto. Eu poderia ficar ofendido caso não aceitasse se casar comigo, se tivesse como optar, mas saber que pretende dar o melhor de si neste casamento me agrada. — Estou contente em ouvir isso, lorde Cosgrove. — O que quero dizer é que você me agrada — ele continuou, pousando a mão sobre a dela no joelho. — Feri seu orgulho e você concluiu que se tratava de um teste, e que se mostrasse força e coragem, oferecendo a outra face, eu me esforçaria para ser gentil. — Funcionou? O sorriso dele se aprofundou.

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— Em nossa noite de núpcias, vou deixá-la de quatro e montarei em você como os cães fazem com as cadelas. E ficará sobre suas mãos e seus joelhos até que eu permita que se levante. Não aprecia minha nova decisão de ser franco? Rose o encarou, sentindo o corpo gelar. — Não vejo motivos para que fale comigo desse modo. — Não era de se admirar que Bram tivesse zombado quando ela alegara que palavras não podiam ferir. Ela não fazia idéia até então. — Verdade — ele respondeu. — Eu poderia ter mantido segredo de minhas intenções até que recitássemos nossos votos, eu de adorá-la, você de me obedecer, mas quero que pense nessa noite tanto quanto eu. — O marquês respirou fundo. — De fato, só de falar já sinto prazer. — Apertando a mão dela, retirou-a do colo dela para o seu. — Permita-me demonstrar o grau do desejo que sinto neste exato momento. Ela soltou a mão. — Não me toque — sibilou ao se levantar. — Não vou tocá-la até a próxima vez em que decidir fazer isso — disse baixo, também se levantando. — E por mais que não duvide que tenha conseguido chamar a atenção de Bram Johns, aviso que ele só aprecia confusões provocadas por ele mesmo. Ao primeiro sinal de problemas, ele lhe dará as costas, sem nem olhar para trás. Agora posso dizer que você não tem mais ilusões. — Não sei a que se refere. E não lhe desejo bom dia, pois só quero que se retire. — Com isso, saiu num rompante, só parando ao chegar ao quarto. Lá andou, de um lado para outro até ficar sem fôlego e se deixar cair na cama. Ocorreu-lhe de súbito que as palavras dele não tinham o intuito de deixar seu futuro mais sombrio, simplesmente esclarecia o que ele planejara. E ela sabia o bastante a respeito de guerras para ter certeza de que não se alertava o inimigo sobre seus planos. Ele cometera um erro, tanto ao falar deles quanto de admitir que o medo dela aumentava seu prazer. Bram chamara Cosgrove de monstro. Pela primeira vez ela percebeu que isso estava absolutamente correto. E o pior nisso era que sua percepção dos fatos foi mudada de tal forma que agora ela via claramente como seria o caminho adiante que a conduziria até o matrimônio com o marquês de Cosgrove. Pouco depois, na biblioteca, quando James a deixou sozinha de novo. Rose abriu um livro. Ler, porém, permanecia uma impossibilidade. Levou os dedos aos lábios, Se... Quando Cosgrove se aproximasse novamente, ela teria de refrear o impulso de sair correndo. Teria de ouvir para aprender tudo o que ele pretendia fazer. Se ela conseguisse usar alguns dos truques que Bram lhe ensinara, talvez pudesse exercer alguma influência no futuro marido. Por mais que os avanços de Cosgrove a amedrontassem e nauseassem, as carícias de Bram amoleciam seus joelhos. Teria acontecido o mesmo com ele? Saiu de seu transe. A grande questão era se conseguiria afetar positivamente 62

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Cosgrove, não Bram. Se de algum modo convencesse o marquês a não apostar mais com James, já seria um progresso. Por algum motivo, Cosgrove a considerava interessante. O bastante para querer se insinuar em sua vida e controlá-la. Quanto mais persuasiva conseguisse ser, melhor para ela, para o irmão e para qualquer pessoa com quem Cosgrove decidisse brincar. E agora ela tinha mais uma coisa para pensar. Se todos os instantes de seu casamento fossem um pesadelo terrível, ela desejava ter algum prazer de que se lembrar. Beijar, e ser beijada por Bram, era muito, muito prazeroso. Ao mesmo tempo, tinha de entender o que lorde Bramwell Lowry Johns esperava conseguir em troca. Diversas vezes ele se autoproclamara egoísta, e Cosgrove dissera a mesma coisa. Ele devia gostar de beijá-la, senão não teria repetido. Aparte isso, ela não era cega. Quando ele a empurrara para o sofá, ela vira a prova do interesse dele. Claro que, em se tratando de Bram, ele se interessaria por qualquer mulher. Mas ela não era nenhuma das belezas exóticas e experientes a que ele estava acostumado. E mesmo assim, ele a beijara uma segunda vez. Céus, quase a desnudara! Mas a protegera quando os pais os tinham surpreendido. De algum modo, ela duvidava de que Cosgrove fosse capaz disso. Sabia o que queria de Bram, e acreditava que ele o faria se ela pedisse. Isso lhe daria certa vantagem ao lidar com Cosgrove, e pelo menos serviria de vingança para as maquinações perversas que o marquês admitia. Aquilo não se tratava mais de ouvir sobre o golpe que poderia receber. Referia-se e a ser capaz de se lembrar de uma carícia de um homem enquanto era abusada por outro. Havia algumas dificuldades no caminho, entretanto. Porque, somente após uma semana, já pensava com carinho no segundo filho do duque de Levonzy. A pergunta era se seria capaz de arriscar um coração partido para resguardar sua alma.

Bram desceu as escadas antes da hora e ficou aguardando no vestíbulo. Essa obsessão por lady Rosamund tinha de chegar ao fim. Aparte o fato de que não haveria recompensa alguma após a perseguição, tinha lá suas regras quanto a virgens, todas as vezes que pousava os olhos sobre ela, sua vida ficava mais complicada. E detestava tudo o que significasse complicações. Um jantar, quem sabe mais um beijo e ele seguiria em frente. — Acabou de chegar um bilhete, milorde — Hibble disse, segurando a bandeja de prata. Bram logo reconheceu a letra. Cosgrove. Com um relance para o relógio, resolveu abrir o bilhete no qual era praticamente intimado a comparecer ao estabelecimento de Jezebel às três horas da madrugada. Interessante. Podia contar em uma mão as vezes em que fora intimado por Cosgrove. Naquele caso podia apostar que se tratava de um conversa a respeito de Rosamund Davies. Visto que já havia decidido se afastar depois do encontro daquela 63

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noite, a cronometragem de Cosgrove não poderia ter sido melhor. — Algum problema, milorde? — o mordomo perguntou, segurando o chapéu de Bram. Respirando fundo, ele guardou o bilhete no bolso e pegou o chapéu. — Nada além do usual. Ficarei fora a noite toda, mas peça a Mostin que deixe uma garrafa de conhaque pronta para quando eu regressar. — Sim, senhor. O que quer que tivesse dito ao mordomo, aquela noite não tinha nada de usual. E não era só porque o convite de Cosgrove retardaria seu assalto à casa de lorde Montgrieve. Sabia que a causa de sua agitação não estava relacionada nem ao marquês, nem ao assalto. — Acho que não vamos jogar cartas hoje, não é mesmo? — Lester perguntou sem preâmbulos quando se encontraram no passeio da carruagem diante da Mansão Davies. — Hoje não — ele respondeu, oferecendo a mão para ajudar Rosamund. Numa mulher mais delicada, o vestido escolhido poderia ser definido como etéreo, nela só havia uma palavra: régio. — Como tem passado, lady Rosamund? — perguntou, trazendo-a para o seu assento antes que ela se acomodasse ao lado do irmão. — Bem, obrigada. A curva do lóbulo da orelha o enfeitiçava e, para encobrir sua repentina descompostura, ele se apoiou na porta novamente: — Para a Mansão Bromley, Graham. A carruagem se movimentou e Bram refletiu se não errara ao tê-la tão junto de si. Não só praticamente a sentia por baixo das suaves dobras do vestido, mas não conseguia ver seu rosto enquanto conversavam. — Eu tinha esperanças de que pudesse me dar mais instruções — James recomeçou o assunto. — Tirei trinta libras de Cosgrove hoje no almoço, graças a você. Será que a intimação se referia àquilo? Ter ensinado um pirralho não tão talentoso a ganhar uma ninharia? Até poderia ter esperanças, mas Lester era insignificante demais para ele ou para King. Além disso, Bram deixara de ter esperanças muitos anos antes. Pragmatismo e cinismo eram muito melhores. E os dois lhe diziam que o assunto era Rosamund. — Contou a ele que venho sendo seu tutor, James? — Ele sabia. Depois que ganhei uma rodada, ele disse: "Bramwell tem se mantendo ocupado, não é mesmo?" Notável como ele parece saber de tudo o que acontece... Mais notável ainda era a bem-disposta rede de espiões do marquês. — De fato. Sente-se bem em continuar a apostar com o homem que se casará com sua irmã? — Ele será meu cunhado. Com quem mais posso me sentir à vontade?

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— Não tem outro cunhado? — Fishton? Não entendo como Bea não apunhala os ouvidos para fugir à conversa enfadonha dele. Bram olhou de esguelha para Rosamund, só para descobrir que ela olhava pela janela. — Não o conheço. Ele é tão entediante assim? Rose se endireitou, olhou para ele, depois desviou o olhar novamente. — Lamento concordar. O maior problema é ele acreditar que só existe uma solução possível para cada obstáculo. — Ah. Ele a aconselhou quanto ao casamento iminente? — Bram curvou os dedos para não ceder à tentação de tocá-la. — Sim. "Nenhum homem consegue ficar insatisfeito quando a casa é bem administrada". Ao que tudo indica, também preciso descobrir qual o drinque preferido do marquês a fim de prepará-lo todas as noites antes de ele chegar. — Absinto — Bram esclareceu. — Não que deva se aproximar disso. — Experimentei uma vez — Lester interrompeu de novo. — Bebida pesada. Vinte minutos mais tarde eu passava mal na calçada. — Vai me ensinar a prepará-lo? — Rose perguntou, encarando Bram. — Não. — Se me mostrar, ele não terá de fazer isso — ela disse, abaixando a voz. — Quero aproveitar todas as oportunidades de me afastar dele. Bram sustentou seu olhar. Ela parecia estar se referindo a outra coisa além de um drinque potente, mas ele não poderia perguntar o que diante do irmão dela. — Muito bem. — Afastar-se significava não beijá-la nem tocá-la, mas ele nunca fora bom em resistir a tentações. Mesmo assim, uma hora de demonstração de como se prepara absinto significava que poderia ficar diante dela afastado por uma mesa. Muito mais seguro assim. — Obrigada. Depois que a carruagem parou, Lester foi até a porta e desceu sem esperar. Rose enroscou os dedos nos de Bram com força. — Preciso falar com você em particular antes do fim da noite — avisou e depois desceu do veículo. Bram prendeu a respiração um instante, depois a soltou lentamente. Sabia exatamente o que tinha de fazer depois de terminar seu assunto com Cosgrove de madrugada. Encontrar lady Ackley ou Charlotte DuCampe ou qualquer outra mulher disposta conhecida sua. Estava sem sexo havia mais de uma semana. Esse era o problema. O celibato estava acabando com seu cérebro, deixando-o suscetível a uma jovem franca e de 65

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peito pouco farto que só representava problemas. Muitos problemas. E por mais que normalmente costumasse receber bem esse tipo de coisa, tentava evitar confusão com os amigos. Franziu o cenho ao descer. Cosgrove era um amigo. Afinal, sem a influência e a tutela dele, sua vida teria sido completamente diferente, somente nos últimos dias ele começara a ter certas... reservas no que se referia às ações do amigo. E quem era ele para questionar os motivos de alguém? — Lorde Bramwell — o mordomo dos Bromley disse, curvando-se —, encontrará lorde Quence na sala de bilhar. — Obrigado, Graves — ele respondeu, colocando os dedos de Rose em seu braço antes de subirem a escadaria. — Pode me dar uma pista? — indagou, resolvendo que o barulho que Lester fazia atrás deles ao subir abafaria qualquer comentário. — Meu irmão trouxe o companheiro de almoço para casa depois que você saiu — ela disse numa voz mal audível —, e eu gostaria que tentasse me convencer a fugir de Londres novamente para que eu possa pensar em novos motivos para ficar já que os antigos estão começando a parecer insuficientes. — O que ele fez? — Bram exigiu saber. Rose engoliu em seco, visivelmente tentando controlar as emoções. — Mais tarde — ela murmurou. Tentando se livrar da sensação perturbadora que ameaçava tomar conta, Bram abriu a porta da sala de bilhar e entrou. — Cuidado com isso — disse quando Phin se inclinou para dar uma tacada. — Já o vi abater um cavalo com o taco. — A penalidade por entrar numa taverna a cavalo — devolvendo um sorriso, Phin se endireitou. — Rosamund, James — disse ele, acenando —, meus amigos, lorde Quence, Phin Bromley e sua esposa Alyse, e a srta. Beth Bromley. Bromleys, lorde Lester e sua irmã, lady Rosamund Davies. — Bem vindos. — Com um sorriso, William, lorde Quence, fez seu valete aproximar a cadeira de rodas da mesa de bilhar. — Obrigada por nos convidar — Rosamund agradeceu com uma mesura. — Ou melhor, obrigada por permitir que lorde Bramwell nos trouxesse. — Tolice. — Phin se aproximou de Bram e o tocou no ombro. — A única razão pela qual continuamos a convidá-lo é pela possibilidade de ele nos apresentar a mais pessoas interessantes. Após alguns minutos, o grupo conversava como se fossem velhos amigos. Apesar da sensação estranha no fundo do estômago, causada pelo comentário de Rosamund, Bram relaxou um pouco. — Lester não é aquele que perdeu a herança para seu amigo? — Phin perguntou em 66

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voz baixa assim que terminaram de jantar e as damas seguiram para a sala de estar. — Se não consegue mencionar o nome de Cosgrove, então não vou lhe responder pergunta alguma a respeito dele — Bram respondeu aceitando um cálice de vinho do Porto. Phin sentou-se numa poltrona ao lado. — Não precisa ficar ouriçado. Só estava curioso. Estou atrasado nas últimas novidades visto que tem vindo nos visitar pouco. — Pensei que seria cruel de minha parte lembrá-lo das diversões que está perdendo por estar casado. — Bram, eu... — Você não deseja abandonar sua esposa e sair para se divertir. Eu não tenho ninguém para negligenciar. Se quero sair, tenho de ir sozinho. — Não consigo entender como prefere a companhia de Cosgrove à própria. — Bramwell — lorde Quence interrompeu no melhor momento, como de hábito —, lorde Lester me contou que você os levou à casa de seu irmão. Por que todos tinham de sublinhar suas boas ações? Não era de se admitir que as cometesse raramente. — Pensei que ele e Oscar poderiam ter aulas sobre apostas. — Perdi quase um quilo em amendoins descascados — o frangote comentou, mostrando senso de humor. Claro que qualquer um capaz de perder dez mil libras e não estourar os miolos não podia ser levado a sério. — Conheci Oscar — o visconde disse. — Dentro de alguns anos ele bem pode ser um adversário à altura do tio. — Espero que ele encontre algo melhor com que se ocupar — Bram opinou e se levantou. — Com licença um instante. — Inclinou-se para perto de Phin. — Mantenha o fedelho aqui. Phin o segurou pelo pulso. — Não vou ajudá-lo a arruinar uma jovem dama debaixo do meu teto. — Quando foi que se tornou tão pudico? — Bram. — De qualquer modo este não é seu teto, é de seu irmão. E não vou arruiná-la. Só preciso fazer uma pergunta e o irmão dela é um intrometido irrecuperável. Com um aceno, Phin disse: — Comporte-se. — Quase nunca. Ele poderia ter sido mais sutil e esperar até mais tarde, levando-a para um canto 67

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sem que ninguém notasse, mas o pedido dela o atormentara o jantar inteiro. Antes ela parecia determinada a se afogar caso o dever assim o mandasse. Quanto antes ele descobrisse o que Cosgrove aprontara para perturbá-la àquele ponto, logo poderia encontrar algo para confortá-la. E se conseguisse um beijo, tanto melhor. Em seguida iria ao encontro de King e tentaria convencê-lo diplomaticamente a... a quê? A parar de atormentar Rosamund? A ser mais gentil e perceber que poderia ter escolhido esposa muito pior? O que quer que dissesse, teria de se afastar daquela confusão. Não queria o marquês de Cosgrove como inimigo. E seus encontros com Rosamund só serviram para atrapalhar seus pensamentos e sua rotina. E seu sono. Parando à porta da sala de estar, esperou que ela o visse, depois acenou para que ela o seguisse. — Com licença um minuto, sim? — ela disse para as outras jovens e seguiu para o corredor onde Bram havia se recolhido. Ele a conduziu à sala de música logo em frente. — O que aconteceu? — ele perguntou ao fechar a porta depois que ela entrou. Por um bom tempo ela apenas o observou, mostrando-se tensa e hesitante. — Detesto procurá-lo toda vez que Cosgrove vem me ver. Não sou uma flor delicada. — Não me importo. — Bram deu de ombros. — Não tenho mais nada para fazer. — Só um assalto e uma bebedeira, mas ele poderia cuidar dos dois no dia seguinte. — Você é amigo dele? A pergunta o surpreendeu. — Eu o conheço desde os dezesseis anos. Credito a ele parte do homem que me tornei. — Sim, mas ele é seu amigo? No passado ele declarara amizade com Cosgrove, mas nunca pediram que definissem honestamente seu relacionamento com o marquês. E não era um idiota, por algum motivo sua resposta agora seria significativa. — Tenho um relacionamento social com ele, mas eu não lhe contaria meus segredos. Não mais. Portanto sua resposta é sim e não. Rosamund assentiu. — Estou aliviada de certo modo. — Por quê? — Lorde Cosgrove passou diversos minutos descrevendo seus planos para a noite de núpcias — respondeu, revirando os dedos. — Ele pretende me humilhar e me degradar e quis que eu soubesse disso. Bram engoliu em seco. Houvera vezes em que ele chegara a fazer coisa semelhante, 68

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mas somente quando a dama em questão mostrava interesse. Rosamund, entretanto, nunca tivera poder de decisão no assunto. Tudo o que havia feito fora prender a atenção de Cosgrove num instante em que ele estava à procura de um novo jogo. Maquinações e manipulações... Conhecia-as muito bem. Inferno, tinha sido Cosgrove a lhe apresentar aos demônios gêmeos e ele os abraçara com o coração aberto. Ou assim acreditava, até então. — Você pediu que eu lhe dissesse isso, porém está falando sério quanto a partir de Londres? Sei que sente certa obrigação para com sua família, mas, Rosamund, o que lhes deve que possa fazê-la ficar? — Eles me deram a vida. — Assim como vacas têm bezerros, mas não conheço nenhum filhote que se entregue ao matadouro para poupar os pais. — Sim, mas não sou uma vaca. — Um leve humor chegou aos olhos verdes. — Cuido de minha família, Bram. Sempre fiz isso. Eles são... tolos, na maioria das vezes. Eu não sou. Não sei que de que outro modo eles podem sobreviver a essa dívida. — Então eles se salvam e você... paga o preço. — Ele ia dizer que ela não sobreviveria, mas não queria que ela o considerasse dramático. — Alguém tem de pagar. — Ela inspirou fundo. — Sei que não gosta de se imiscuir nos problemas alheios, mas preciso lhe pedir um último favor. Ultimo favor. Era como se ela tivesse percebido sua intenção de se afastar depois daquela noite. — O que quer? — Que me arruíne. Bram piscou, a observação inteligente prestes a emitir morrendo nos lábios. Vinha imaginando-a sem roupas a semana inteira, mas ouvir tal sugestão partindo dela... Parecia bom demais para ser verdade. — Por mais que eu me sinta lisonjeado — disse começou —, como isso seria melhor para sua família do que simplesmente fugir? — Por que isso ficaria somente entre nós. Seria uma forma de ficar acima dos planos de Cosgrove. — Ela deu um único passo à frente. — Quero saber o que pode acontecer entre um homem e uma mulher antes que ele me mostre a versão dele. — Está colocando um enorme peso em meus ombros, Rosamund. — Que o deixava mais desconfortável do que ele queria admitir. — Se Cosgrove quer jogar, eu também posso. Vou me casar com ele por dever, mas não vou ser um cordeiro, ou um bezerro, conduzido ao matadouro. Se ele quer destruir meu espírito, descobrirá que essa será uma tarefa bem árdua. Não sou uma mosca cujas asas ele pode arrancar antes de matar com uma pisada. Sou... sou uma abelha cuja ferroada vai fazê-lo recuar. Bom Deus. Bram decidiu não observar que as abelhas morriam depois de ferroar. Ela logo descobriria isso. Ele a desejava e ela queria vingança pelo casamento forçado a ser 69

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realizado em poucas semanas. Aquela era uma reviravolta inesperada. — Não está à altura? Vai para a cama com mulheres o tempo inteiro ou não, Bramwell Lowry Johns? Não depois de ter pousado os olhos nela. — Não sou do tipo de homem que tolera provocações, Rosamund Luisa Davies — disse num tom baixo, sentindo um calor diferente se espalhar. — Tenho certa reputação e esteja certa de que ela é merecida. Vou perguntar outra vez, o que significa mais do que geralmente concedo: tem certeza de que quer que seja eu a lhe levantar as saias? Tem certeza de que sua experiência será melhor em minhas mãos do que nas de Cosgrove? — Tem sido até agora — ela replicou. — Somente não me desaponte, por favor. Ele lançou um sorriso. Com qualquer outra mulher, ele a teria deitado nesse instante, sem se importar com o lugar onde estavam. — Deixe a porta de seu quarto destrancada esta noite. Se mudar de idéia, vá dormir em outro cômodo, pois tenho a intenção de visitá-la à meia-noite.

Capítulo II

Se os amigos de Bram acharam estranho o fato de ele ter outro compromisso após o jantar, nada disseram. Até onde Rose podia supor, ele sempre tinha encontros marcados tarde da noite. Aquela noite, entretanto, ela era seu encontro. Outro tremor a trespassou enquanto esperava à penteadeira. Tinha conseguido, apesar de não saber de onde viera, a coragem para fazer o pedido. Bem, ainda poderia ir dormir em outro cômodo, mas não queria isso. O relógio cuco anunciou a meia-noite. A casa estava silenciosa. Talvez fosse mais seguro Bram subir pela treliça da janela. Romântico até, refletiu ao afastar as cortinas e ver uma única carruagem passar pela rua. Mas aquilo não tinha nada a ver com romantismo, e sim com conhecimento e mudança das regras impostas por outro homem. A porta se abriu. Por um segundo no meio da escuridão ela não conseguiu ver nada, pois ele se vestia todo de negro. — Resolveu não fugir — disse ele depois de entrar e trancar a porta. — Isto foi minha idéia, se bem se lembra — disse ela com mais bravura do que sentia. — Sim, eu me lembro. 70

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Bram inclinou a cabeça, observando na luz tênue da vela solitária na mesinha de cabeceira. E Rose se lembrou vividamente do primeiro encontro, antes de saber que ele se tornaria seu aliado. Na época em que Bram lhe dissera ser capaz de ensinar-lhe muitas coisas, antes de ela saber quem ele era, ele era somente um predador perigoso. De súbito ela se deu conta que ele voltara a ser aquele homem. Talvez tivesse sido o tempo inteiro, e estivesse jogando com ela... Era desse homem, contudo, que ela precisava. — Como devemos agir? Ele tirou as luvas e as deixou sobre a penteadeira. Estas pareciam fora de lugar entre seus pentes e grampos. — Primeiro tem de me contar exatamente o que Cosgrove lhe disse para que você se arriscasse nesta aventura. — Isso importa? — perguntou com o coração aos saltos. Não quero que ele seja minha primeira experiência. Bram continuou a fitá-la. — Conte-me mesmo assim. Percebo que deve ter sido algo terrível para que se decidisse me tornar sua primeira experiência. — Tirou o casaco, colocando-o no espaldar da cadeira. — Você é uma escolha tão ruim assim? Ele suspirou. — Se tem de me perguntar isso talvez seja melhor eu ir embora. Mas não sou bonzinho. Nem tento tanto autocontrole. — Acho difícil acreditar nisso. — Rosamund, se conversar é tudo o que quer fazer, por favor, desça e pegue chá com torradas para nós. Senão, conte-me o que ele lhe disse. — Respirou fundo. — Se está pouco à vontade em me contar os detalhes, pense que em poucos minutos eu a verei nua e não terá mais nenhum segredo para mim. Rose se sentou na ponta da cama, depois, ao se lembrar que era ali que resolveriam as coisas entre eles, voltou a se levantar. — Ele disse que em nossa noite de núpcias ele me deixaria de quatro e montaria em mim como os cachorros fazem com as cadelas. Algo cruzou a expressão de Bram tão rapidamente, que ela não soube determinar o que era. Raiva? Surpresa? Não devia ser nada disso, afinal, era muito provável que ele tivesse ouvido, e dito, a mesma coisa antes. — Essa... posição — ele disse, devagar, desabotoando o colete — pode ser muito prazerosa para os dois participantes. — E depois ele disse que me forçaria nessa posição até que ele me desse permissão para levantar. Os dedos de Bram se detiveram um instante. — Quanto a isso, acho que não posso ajudar. 71

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— Eu sei. Ele disse que você se afastaria assim que as coisas se tornassem desagradáveis para você, por isso imagino que nos separaremos muito antes de minha noite de núpcias. Mas como queria saber exatamente o que ele me disse, eu contei. — Está agindo com muita lógica hoje, não? — O colete foi para junto do casaco e a gravata logo se seguiu. Ele se sentou para tirar as botas, deixando-as no chão sem barulho algum. De passagem ela pensou na própria experiência em passar despercebido enquanto pais e maridos dormiam por perto. — Não vejo porque me tornar emocional — ela replicou, dizendo mentalmente que sua súbita fascinação pelo colarinho aberto dele só significava que num futuro próximo seu coração não estaria batendo tão forte como naquela hora. — Um sentimento partilhado por muitos homens. — Bram voltou a se levantar e tirou a camisa de dentro da calça. — Quer se despir sozinha ou deseja que eu faça isso por você? Ela sentiu os joelhos trêmulos. — Eu... O que prefere? — Pode ser uma experiência bem íntima — ele explicou, pensativo. — Talvez seja melhor eu fazer isso por você. Ah, ela queria que ele a tocasse. — Muito bem. Você tem mais vivência nessas coisas do que eu. Desabotoando os punhos enquanto caminhava, Bram diminuiu a distância entre eles. Rose esperou ser beijada ou receber uma carícia no rosto, entretanto ele a virou de costas. Fechando os olhos, repetiu mentalmente que escolhera passar a perna em Cosgrove. A virgindade seria entregue a Bram e não ao futuro marido. Era apenas sorte que ela também desejasse fazer aquilo. Com Bram Johns. Os dedos hábeis a tocaram nos cabelos, soltando com destreza um penteado que levara vinte minutos para ser feito. — Assim está melhor. — Ele penteou os cabelos com os dedos. Depois, um a um os botões foram abertos. O calor a atingiu na nuca com a suave carícia dos lábios em sua pele que se arrepiou toda. A boca desceu pelos ombros quando ele abaixou o vestido pelos braços, a respiração a excitá-la. Num instante ela estava somente de combinação, ainda de costas com respiração entrecortada. Rose engoliu em seco, resolvida a não fazer nada que o convencesse a parar por ali. — Levante um pé — ele pediu com um distanciamento como se estivesse falando de bolinhos. Ela levantou um pé, depois o outro, desvencilhando-se por completo do vestido. — E agora? — ela perguntou. 72

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As mãos dele estavam em seus ombros, pressionando-os para baixo. — Primeiro tente relaxar. Não quero que me bata ou chute. — Estou relaxada — ela mentiu. — Mesmo? — Bram respirou junto à sua orelha, depois desceu a mão para um seio. Ela deu um pulo e um gritinho. — Hum... — Você só me pegou de surpresa — ela conseguiu dizer. — Pode sentir prazer nisso, quaisquer os motivos que a fizeram me escolher para seduzi-la. Rose respirou fundo o que só serviu para tornar o toque das mãos dele em seus seios mais íntimo. — Certo... — A propósito, trouxe preservativo — ele disse —, para evitar que você engravide. Ela balançou a cabeça, um calor começando se espalhar. — Não se preocupe. Estarei casada em menos de um mês. — Tem certeza disso? Porque eu não sei se quero um filho meu sendo criado por Cosgrove. Ela não havia pensado nisso, concentrando-se somente no fato de que preferiria ter um filho cujo pai fosse Bram. — Quer me dizer que se importa com alguma coisa, então? — Touché! — Ele riu. — Recoste-se em mim. Rose se apoiou no peito firme. Sentia a respiração dele, a movimentação dos músculos sob suas costas e a crescente ereção ao encontro de seu quadril. Então ele voltou a mexer os dedos, circundando os mamilos que se tornaram túrgidos debaixo da combinação, a fricção com o tecido algo muito sensual. Quando ele estalou o mamilo com a unha, ela prendeu a respiração. — I-isto é mesmo necessário? — Gosta? Oh, sim... — É p-prazeroso, mas acha que Cos... — Para sua informação — ele a interrompeu, a voz profunda reverberando no corpo dela —, mencionar um homem na companhia de outro nunca é uma boa idéia. — Movendo-se, passou os dedos por debaixo das alças da combinação, fazendo-as escorregarem pelos braços, desnudando os seios. — E já que quer ter a reputação arruinada, podemos fazer do jeito certo. E ele parecia estar fazendo tudo direitinho porque, mesmo com a combinação na cintura, ela estava trêmula, mal conseguindo raciocinar. 73

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— Alguma reclamação até aqui? — Bram murmurou, descendo os lábios dos ombros até a parte interna do cotovelo. — Não. Ainda. — Ela arfou. Ele deu um passo para trás e, colocando a mão em seu braço, puxou-a para que se virasse de frente. — Se algo surgir, me diga. — Acredito que algo já está surgindo. — Ela olhou para a parte alta das coxas dele. — De fato. — Por um bom tempo, seu olhar se deteve no rosto dela, mas Rose não sabia o que ele via ali. Em seguida ele percorreu o dedo pelo pescoço descendo até a combinação na cintura, deixando-a cair no chão. De repente ela se sentiu vulnerável e bem consciente de que estava nua diante de um patife experiente. Empertigou os ombros. — Vai me beijar? — quis saber. — Há melhores usos para a boca. — Ele se abaixou e depositou um beijo na lateral do seio, seguindo um caminho até abocanhar o mamilo, excitando-o com a língua e os dentes. — Bram... — Ela arqueou as costas. Ignorando a exclamação dela, passou a atender o outro seio. Sentindo-se queimar por dentro, ela levantou as mãos e o segurou pelos cabelos, trazendo para junto de si. — Hora de se deitar — ele murmurou, passando a mão por trás dos joelhos para erguê-la. Deitando-a no centro da cama, inclinou-se para lamber um seio, enquanto o outro recebia a atenção de seus dedos hábeis. Uns minutos depois ele se endireitou e ela protestou. Não poderia ter terminado ainda... Não enquanto ela sentisse aquela... necessidade em suas entranhas. Bram puxou a camisa por sobre a cabeça, revelando uma trilha estreita de pelos que descia pelo abdômen, desaparecendo por baixo da calça. Rose o tocou no peito e perguntou ao sentir os músculos se retraírem: — Gosta do meu toque assim como gosto do seu? — Sim. — Ele pegou a mão e a abaixou até a calça. — Por que não desabotoa para mim para que eu lhe mostre. Com os dedos trêmulos ela conseguiu desabotoar o primeiro botão. Em algum momento ela parará de pensar em Cosgrove, na família que a educara para não se arruinar nas mãos habilidosas de Bramwell Johns... Mas, se eles a tinham criado para ser negociada em troca de uma dívida, ela não podia valorizá-los tanto assim. E quanto ao que ela faria, estava pronta a se sacrificar ao marquês, mas antes ela queria aquilo. Queria Bram Johns. Quando o último botão se abriu, ele abaixou as calças até as coxas, revelando sua 74

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masculinidade protuberante. — Sabe para que serve isto, não? — ele perguntou, seguindo o olhar dela. Com a boca seca, ela assentiu. — Imagino que sim. — Ótimo. Então não precisa de uma aula de anatomia e podemos continuar a explorá-la. — Ame ex... Uma mão desceu por seu ventre, passando pelos caracóis de pelos e chegando lá. Ela arfou de novo quando os dedos a tocaram. — Você está úmida — ele anunciou com suavidade. — Isso é ruim? Os lábios se curvaram. — Não. É muito, muito bom. — Chutando as calças, ele se inclinou para sugar os seios novamente e depois a boca desceu para continuar o trabalho da mão muita ocupada. Rose definitivamente estava para morrer. Nada deveria ser tão excitante assim. Um lampejo repentino explodiu ao seu redor. Cada toque e carícia a incendiava. Quando ele começou a beijar o interior de suas coxas, ela meio que esperou que o coração fosse explodir tamanha a velocidade com que batia. E mesmo assim ele parecia não ter pressa. Quando a boca se juntou aos dedos, ela emitiu um gritinho, agarrando-o pelos cabelos. — Shh, Rosamund — ele murmurou com humor na voz. — E relaxe os dedos a menos que queira que eu fique calvo. — Desculpe — ela choramingou. — Não consigo... Isto é demais, Bram. — Nunca é demais. — Ele abaixou a cabeça de novo. — Bram, por favor. — Ela revirou os olhos com a cabeça pensa para trás. Por fim ele se apiedou, voltando a se concentrar nos seios túrgidos. — Como se sente? — Queimando... — respondeu franca e ofegante. Separando os joelhos dela, acomodou-se entre as coxas. — Isso vai doer um pouco — disse, olhando-a de perto. — Mas só desta vez. Ele não vai poder fazer isso com você. A última parte saiu num gemido, mas antes que ela pudesse pedir maiores explicações, ele se posicionou e investiu. A sensação dele empurrando dentro dela era... indescritível. Sentiu uma pressão, a hesitação dele, depois uma dor aguda e repentina quando ele a preencheu por completo. Ela arfou e sufocou o grito contra o ombro dele. 75

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— Rosamund. Percebendo que tinha os olhos fechados abriu-os e o fitou. Bram a beijou, com suavidade a princípio, aumentando a intensidade em seguida. Ela o abraçou pelos ombros, acostumando-se ao ritmo do quadril que acompanhava o dos beijos. Quanto mais fundo ele investia, mais tensa ela ficava. Então, numa vibração excitante, ela se sentiu partir. Tudo ficou claro e luminoso, quente e extraordinário. Quando conseguiu se recobrar um tanto, Bram ainda se movia dentro dela, com o olhar fixo e atento. — Jesus... — ele murmurou. — Quero repetir isso. Ele riu. — Ainda não terminei — disse, e num tom baixo, perguntou: — Quer que eu lhe mostre o que Cosgrove disse? — O nome do outro saiu forçado de seus lábios, pois não queria mencioná-lo. Nem ela o desejava, mas Kingston Gore era a razão de tudo aquilo. — Mostre-me. Bram se retraiu, ainda excitado. — Vire-se. Rose rolou e apoiando-se nas mãos e nos joelhos, sentiu-o afastar suas pernas. Quando ele voltou a entrar, não houve mais dor, apenas a incrível sensação de plenitude. Ele a circundou para acariciar o seio enquanto a penetrava. A cada investida ela se sentia mais perto da deliciosa sensação que agora era uma conhecida sua. Rose apertou o lençol entre os dedos, reprimindo um grito ao chegar ao ápice novamente. Com um gemido abafado, Bram se movimentou até encontrar o próprio êxtase. Soltando-se, ele se deixou cair na cama ao lado dela, puxando-a de encontro ao peito. — Agora você está arruinada — disse e a beijou. Bram, deitado de costas com Rosamund enroscada ao seu lado, tentava recuperar o fôlego. Sentia-se completamente saciado, apesar de ter sido ele a fazer todo o esforço. E aquele contentamento não era a única coisa estranha naquela noite. Assim que entrou no quarto se excitou ao vê-la iluminada pela vela. Depois ao ouvir suas dúvidas enquanto tentava agir de maneira lógica, apesar das circunstâncias, abalou-se um pouco. Ela devia estar desesperada se conseguiu coragem para convidá-lo e recebê-lo em sua cama. Ele poderia nomear aquilo de boa ação, mas boas ações não deviam ser tão prazerosas. Mesmo depois de satisfeito, queria beijá-la. Queria que ela dormisse em seus braços e vê-la acordar pela manhã. — Bram? — Hum? — ele perguntou, despertando de suas fantasias domésticas. 76

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— Obrigada. Virou-se de lado para fitá-la. — Não foi uma imposição para mim — disse com o cenho franzido —, afinal faço esse tipo de coisa o tempo todo, se bem se lembra. — Ela abriu a boca para falar, mas ele não deixou. — Está arruinada e pode estar grávida, um risco que eu não deveria ter tomado, não importando o que disse a respeito. Pelo amor de Deus, não me agradeça. — Se eu engravidar, prefiro que a criança seja concebida num ato de gentileza e não de crueldade. Então ela não perdera o foco. De alguma forma, ainda conseguia manter a praticidade. Com isso, ele procurou algo cínico com que responder: — Você é uma moça singular, Rosamund. — Não parecia adequado, mas era o melhor que ele podia arranjar. Ela inclinou o rosto, os olhos verdes fitando-o. — Isso foi um elogio? — Não sei. Diga-me, era isso o que você queria? Ela se sentou e Bram sentiu uma vontade louca de puxá-la de volta para seus braços. O que diabos estaria acontecendo? Era ele quem sempre saía da cama primeiro, anunciando que tinha de estar em algum outro local, à procura de um lugar a salvo antes que a mulher em questão começasse a suspirar e a encará-lo com olhos sonhares. — Sim, era isso o que eu queria. — Com um último olhar na sua direção, ela saiu da cama e pegou a combinação, voltando a se vestir. Era uma pena tremenda cobrir aquelas curvas deliciosas. Quando ela pegou as calças dele e jogou em sua direção, ele disse: — Desculpe, mas está tentando me expulsar? — Não quero que o descubram aqui, Bram. — Agora que a servi, terminamos? — Ele nem sabia por que perguntava aquilo. Depois de ir para a cama com uma mulher, costumava perder o interesse. E antes só era expulso da cama se um marido estava para chegar. Rosamund fez uma careta. — Já sei o que esperar agora — disse por fim. — E ele saberá que não sou a flor virginal que esperava. Mas descobrirem você aqui não vai me ajudar em nada. Não posso me envolver com você. — Ora, ora, diga, por favor, o que a fez chegar a essa decisão? — Você é amigo dele. Bebe, joga... Vai para a cama com quem não deveria. Se não fosse por essa estupidez com Cosgrove, eu não haveria de querer nada com você. Bram ficou imóvel, fascinado pela recitação de seus pecados. — Continue. 77

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— Admito que me surpreendeu em diversas ocasiões — ela confessou com o cenho franzido. — Mas a realidade ainda é a mesma. Quando eu me casar com Cosgrove, ele perdoará uma dívida de dez mil libras, e eu poderei ter a oportunidade de convencê-lo a não jogar com James. — Seu irmão está melhorando no jogo, graças a mim. Lembre-se disso. — Ah, sim, você o está encorajando a achar que sabe jogar. Eu sou melhor nas cartas do que ele. Ele tem de parar de jogar. Não posso forçá-lo a isso, mas Cosgrove pode convencê-lo. — Portanto considera Cosgrove um melhor candidato a marido do que eu. — Não que ele desejasse se casar, mas nunca fora afrontado daquele modo por outra pessoa que não seu pai. — Por favor, Bram, se vista. Com um suspiro que encobria o aborrecimento, ele se levantou. Embora notasse a direção do olhar dela, preferiu não comentar nada. Maldição, pensou que poderiam repetir a dose antes de se encontrar com Cosgrove e sair daquela confusão toda. Por mais que tivesse sido insultado, ele ainda a desejava. Ela deu as costas para juntar o resto das roupas dele. — Acho sua opinião quanto ao meu caráter fascinante — ele comentou, colocando as calças. — Eu desconhecia que você soubesse tanto a respeito da natureza humana, que depois de duas semanas você conseguisse me analisar tão profundamente a ponto de enfiar um alfinete em mim e me colocar em exposição numa caixa com o subtítulo "Bram Johns, destruidor e desprezível". Bram vestiu a camisa e o colete sem se importar em abotoá-los. Colocou o paletó, enfiou a gravata no bolso, pegou as botas e seguiu para a porta. — Boa noite, Rosamund. Com a porta entreaberta, ele parou. Conhecia pessoas que não se importavam com nada além da lógica e do lucro ou do benefício próprio. Rosamund Davies não era como essas pessoas. Respirando fundo, virou-se e caminhou até perto dela, pôs a mão na nuca delicada e a beijou. Depois de dois segundos, os lábios de Rose relaxaram e ela se deixou beijar, com excitação e paixão. — Foi o que pensei. — Ele retrocedeu e saiu pela porta. Quando Bram conseguiu endireitar as roupas, buscar o cavalo e atravessar Cheapside até chegar ao estabelecimento de Jezebel já passava das três. Em seu presente estado de espírito seria melhor evitar Kingston Gore, mas passara a última década equilibrando-se entre meia dúzia de esquemas e mulheres, tudo isso sem dar um passo em falso. Aquela situação não era muito diferente. King estava na mesa de costume do salão mal iluminado. O ambiente rústico do lugar sempre agradara a Bram. Até aquela noite. Pediu uma garrafa de uísque antes de se sentar. 78

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— Cosgrove — ele o cumprimentou. — Pensei que estivesse ocupado com alguma outra coisa a esta hora. Ou com outra pessoa. — Quem era ela? Por mais clarividente que Cosgrove pudesse ser por vezes, Bram sabia que aquilo era apenas uma ilusão, criada pela combinação de alguns palpites astutos associados às informações de seus espiões. Dado o modo como Bram costumava passar as noites, o palpite do marquês seria acertado de qualquer modo. Pegando a garrafa, ele se serviu de uma dose. — Ora, mas isso já faz mais de uma hora! Esqueci o nome dela. Cosgrove o fitou, depois acrescentou açúcar e água à bebida verde em seu copo. — Duvido. A minha queria saber se eu voltaria a procurá-la depois que o marido retornasse da península no mês que vem. — Você vai? — Não vejo motivo para não ir, já que eu a procurava antes mesmo que ele viajasse. — Estará casado no mês que vem. Não acha que terá as mãos ocupadas? — Seria mais prudente manter-se ao largo do assunto "Rosamund", ainda mais depois de ter sido expulso do quarto dela, mas a maldita garota, ou algo mais, o desequilibrava. — Hum... — Hum, o quê? — Só considero interessante que você ache que o casamento faça qualquer um, ou a mim, fiel. Com quantas mulheres casadas se deitou? — Não estou falando delas; estou falando de você, que nunca pareceu talhado para o casamento. Deixando a colher de lado, o marquês tomou uma golada da potente bebida. — Tenho trinta e seis anos, preciso de um herdeiro legítimo. Para isso, preciso de uma esposa. Não precisarei dela para nada além disso, mas nada me impede de me divertir um pouco já que a estou comprando. — Ou você poderia deixá-la de lado e encontrar outra mulher que tenha os mesmos interesses que os seus. — O divertimento vem do fato de que ela não partilha dos meus interesses. — Cosgrove acendeu um charuto na vela da mesa. — E esta é uma oportunidade única. A família dela me deve uma soma tão substancial, que a garota não tem nenhuma alternativa. Ela me detesta e me teme. É uma delícia. Inebriante, mesmo. Se por acaso conhecer uma moça de boa família com perspectivas limitadas e um idiota como irmão, recomendo isso. — A boca se curvou num sorriso preguiçoso. — Por mais desesperada que ela fique, a família jamais conseguirá comprar a liberdade dela, pois eu me certificarei em manter grande influência sobre Lester. Bram já havia imaginado tudo aquilo, mas ouvi-lo falar, ainda mais depois dos 79

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acontecimentos da noite, fazia com que ele se sentisse nauseado. E Rosamund achava que os dois eram farinha do mesmo saco. — O que me diz disso? — Pode ser divertido no início — Bram deu de ombros, falando no tom mais debochado que conseguiu —, mas o resultado será o mesmo: você estará amarrado a uma esposa e a um filho. Acredito que você não aprecie particularmente nenhum dos dois. — Um deles eu preciso, o outro servirá para me agradar quando eu bem entender. — Cosgrove sorveu outro gole, fechando os olhos para apreciar a bebida. — E você sabe muito bem que sou muito detalhista quanto aos meus prazeres. — Então sentiu necessidade de aterrorizar alguém e como lady Rosamund não é nenhuma beldade adorada, não tem fortuna, mas tem bastardos como pais e um irmão idiota, você a escolheu. — Sim. — Cosgrove ergueu uma sobrancelha. — Você me parece zangado, Bramwell. Sirva-se de mais um drinque e relaxe. Bram virou seu segundo copo de uísque. Estava bravo. Os músculos dos ombros estavam tão rígidos que faltava pouco para se partirem e mais do que o mal-estar causado pelos planos de Cosgrove, ele sentia uma necessidade irrefreável de socar seu mentor. O que ele precisava descobrir, e logo, era se suas sensibilidades estavam finalmente sendo afetadas ou se era essa... afeição crescente por Rosamund que incitara esse seu motim mental. Se fosse especificamente por causa de Rosamund, ela deixara bem claro o que pensava a seu respeito. Ela não pedira sua ajuda, sua proteção, somente que ele fizesse aquela boa ação e, por melhor que tivesse sido sua atuação, ela o chutara para fora do quarto. Além disso, ainda não gostava da ideia de se casar com King, mas planejava seguir em frente. Ele detestava essa mistura de conflito e emoção. Não havia nada de bom para ele ali e ficar no meio daquela história só transformaria Cosgrove em seu inimigo, nenhum apreço por parte de Rosamund e um mundo de problemas. — Normalmente quando você ou eu começamos nossos jogos, King — ele disse que qualquer modo, com muito mais cuidado do que antes na vida —, pensei que escolhêssemos a vítima por ela ser merecedora. Isso não parece se aplicar. — Conduzir um pecador a cometer mais pecados não é desafio algum, mas corromper alguém que se considera incorruptível... Ah, isso sim é uma demonstração de habilidade. Bram secou mais um copo. — Deixe estar, King — murmurou por fim. — Console-se com a ideia de que eu lhe deverei um favor. — Bem — disse o marquês, recostando-se na cadeira —, isto é interessante. Posso lhe perguntar por que decidiu poupar Rose Davies?

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— Imagino que seja porque gosto da ideia de que existem boas pessoas para balancear as almas podres como as nossas. Cosgrove o observou, bebendo absinto. — E acha que entrar debaixo dos lençóis com ela a rebaixará menos do que se ela se casasse comigo? — Não estou falando disso. — Você tem levado os irmãos Davies para jantar com sua adorada família e amigos porque gosta do irmão dela, então? Malditos espiões... — Ela é... agradável. Considero a inocência dela divertida. — Então qual a diferença entre nós? — Não estou tentando levá-la à loucura ou ao suicídio. — Não vou tolerar isso. — O que disse? — Não decidi isso num impulso, bem decidi, sim, mas precisei de semanas para descobrir a ética de Abernathy, atrair Lester e fazê-lo perder tal soma. Não tenho intenção alguma de alterar meus planos só porque você vê um modo de salvar sua alma ou quaisquer tolices do tipo quando olha para ela. — Eu não disse nada disso — Bram protestou, lutando contra a vontade de subir na mesa e esganar o amigo. — Só pedi que a deixasse em paz. — E eu estou lhe dizendo para que não se meta em meus negócios ou será o alvo de meu próximo jogo. Eu preferiria continuar com a nossa amizade. — Deu uma baforada no charuto. — Portanto, reflita, é nesse assunto que quer se opor a mim, Bramwell? Por Lúcifer, o que estava fazendo ali, oferecendo seu pescoço por uma garota que o havia ofendido? Terminando seu quarto copo de uísque, Bram se pôs de pé. — Suponho que teremos de descobrir isso — disse e saiu do clube. Precisava falar com alguém em quem confiasse e seu primeiro pensamento, surpreendentemente, foi para Rose, mas ela, obviamente, não o queria de volta em seu quarto. Isso restringia suas possibilidades, de certa forma. Phineas Bromley despertou como se uma batalha estivesse acontecendo do lado de fora de sua porta. Alyse acordou, sobressaltada, um segundo depois. — Phin, o que... — Vá para trás do armário — ele ordenou, os instintos de soldado falando mais alto ao pegar a pistola na mesinha de cabeceira. A porta se abriu. Phin mirou a pistola quando uma silhueta escura entrou, sendo seguida por duas mais claras que tentavam segurá-la. — Isso, estoure meus miolos! — Bram exclamou com fala arrastada. 81

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Com um suspiro, Phin abaixou a arma. — Podem soltá-lo — disse aos criados que o acompanhavam. Bram tirou o paletó e disse: — Você está nu, sabia? — E você está bêbado. — E quando Bramwell Johns dava sinais de bebedeira, é porque consumira quantidades massivas de álcool. — Obrigado, Graves. Por favor, certifique-se de que William e Beth estejam bem. Eu cuido de tudo aqui. Alyse, envolta no lençol, esticou o braço por trás do armário e lhe entregou as calças. — Já passa das três, Bram. O que aconteceu que não pôde esperar mais três ou quatro horas antes de me procurar? — Quero falar com você. Em particular. — E eu vou para a cama — Alyse comunicou. — Mantenha-o longe daqui. — Vamos para a sala de estar — Phin sugeriu a Bram, saindo do quarto. Por mais que o amigo fosse confiável sóbrio, embriagado era completamente diferente, por isso era melhor mantê-lo longe de sua esposa. Pegando uma vela, Phin acompanhou Bram para a sala do andar térreo. O amigo ainda vestia a roupa do jantar, mas algo em sua aparência lhe conferia um ar mais... descuidado. Incomum para ele. Com frio por estar sem camisa, Phin jogou outra acha na lareira e se sentou numa poltrona logo em frente, ao lado do amigo. — Você ama Alyse — Bram disse, abruptamente. — Sim. — E morreria por ela. — Eu prefiro permanecer vivo para desfrutar da companhia dela, mas sim. — Phin franziu o cenho. — Do que se trata isso? Você se envolveu em outro assalto? — Não. E quanto a Isabel. Você morreria por ela? — Você e Sully são meus melhores amigos. São meus irmãos — Phin disse antes que o outro iniciasse uma lista das pessoas que amava. — Eu morreria por qualquer um de vocês, mas levando em conta que já sabe disso, podemos seguir para o real motivo que o trouxe até mim a esta hora da madrugada? — O que achou de lady Rosamund? Phin piscou. Aquilo tudo era por causa de uma mulher? — Ela pareceu agradável — opinou, sem querer se comprometer, pois não sabia como Bram se sentia em relação a moça. — Ela é irritante — Bram declarou. — Pois bem, a irmã de seu amigo o irrita. Bram emitiu um som de desdém. 82

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— Aquele fedelho é culpado por tudo isto. — Tudo o quê? — Ter um amigo monstro não me transforma em monstro, sabia? Cosgrove... — Não, não transforma. — Mas se eu o chamo de amigo, sabendo quem ele é e o que ele faz... E quanto às coisas que eu fiz? Sou o tipo de homem que pode dizer a outro que ele foi longe demais? Alguém deveria me procurar em busca de proteção? — Bram, você está começando a me assustar. O que está acontecendo? Bram se inclinou para a frente, esfregando a testa. — Nada. Só preciso tomar uma decisão. — Pôs-se de pé. — Desculpe, Phin. Volte para a cama e para sua adorável esposa. Phin também se levantou. — Bram, se precisar de ajuda, basta me pedir. — Não preciso. — Ele caminhou até o vestíbulo. — Seria bom se distanciar de mim, Phineas. Tenho a impressão de que as coisas vão se complicar. — Abrindo a porta da frente, saiu silenciosamente. Por um bom tempo, Phin permaneceu onde estava, depois foi até a escrivaninha da outra sala, onde pegou papel e pena. Bram adorava encrencas, mas aquilo, claramente, era uma coisa muito diferente. E preocupante. Parecia uma boa hora para pedir reforços. Quer Sullivan Waring gostasse de Londres ou não, ele era necessário.

*** Rosamund levou o lençol ao nariz e inspirou. Podia ser sua imaginação, mas a fragrância característica de Bram parecia impregnada no tecido. Graças aos céus ele tinha ido embora, ainda mais depois daquele beijo. Se ele tivesse ficado... Levantou-se e foi lavar o rosto. Se ele tivesse ficado, ela começaria a dar ouvidos à sugestão dele de fugir, e poderia fazer alguma tolice, como se apaixonar por um homem sem moral e com péssimo gosto em certas amizades. Ele fez o que ela tinha pedido, não só ajudando-a a passar a perna em Cosgrove como também demonstrando o que as ameaças aterradoras dele significavam. Agora já não o temia mais, apesar de que, ao pensar que Cosgrove a tocaria do mesmo modo como Bram fizera, ela já se sentia nauseada. Com isso, trocou uma preocupação por outra e, naquele instante, ela não sabia se sua situação havia melhorado. Exceto por se sentir melhor por dentro. Mais forte. Não fazia idéia de que a intimidade entre um homem e uma mulher pudesse trazer tanta vida e maravilha. Seria 83

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sempre assim ou só sentia isso por ter sido com Bram Johns? Esperava que não, por que, depois do que lhe dissera mais tarde, era bem provável que não voltasse a vê-lo tão cedo, nem pára beijos nem para o resto. A porta abriu. — Bom dia, lady Rose — a criada disse, apressando-se para abrir as cortinas. — Sua irmã mandou avisar que está esperando para ir às compras com a senhorita. — Diga a ela que estou com dor de cabeça, Martha — Rose respondeu, deixando-se cair na cama. A última coisa que queria era ter de ouvir a tagarelice animada da irmã. Queria pensar, ainda que se achasse além do ponto em que pensar fosse ajudá-la. — Ela disse que a senhorita diria isso, milady, e que não aceitará um "não" como resposta. — Desça logo, Rose. — A voz de Bea ecoou do andar de baixo. — Temos muitas coisas a fazer. Arrastando-se para fora da cama, foi até a penteadeira, enquanto Martha procurava um vestido adequado. — Ela lhe disse o que quer comprar? — Eu a ouvi comentar com sua mãe que se divertiu muito ao comprar o próprio enxoval e mal pode esperar para ajudá-la com o seu. A resposta de Rose não poderia ser proferida na presença da criada, a menos que não se importasse mais com seus status de "dama". Em vez de falar, sentou-se e pegou a escova. Nesse instante, viu as luvas de Bram. Com um gritinho de surpresa, colocou-as no colo. — Algum problema, milady? — Oh, não! Só não havia percebido o estado de meus cabelos — improvisou. — Pode abrir as janelas, por favor, preciso de ar fresco. Assim que Martha se virou, ela enfiou as luvas numa das bolsas menos utilizadas. Feito isso, voltou a se sentar. — Que horas são? — Dez e meia. Dormiu até mais tarde. — Eu estava cansada. Depois de se trocar, ela desceu e foi até a sala de café da manhã, encontrando toda a família reunida. — Aí está você — Bea disse contente, como de hábito. — Sente-se ao meu lado. Eu começava a pensar que tivesse a intenção de dormir o dia inteiro. — Desculpe. — Ela se serviu no aparador antes de se sentar. — Não dormi bem. — Algo a incomoda, Rose? Não, eu tinha um homem em minha cama. Olhou para a irmã um instante. 84

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— Nada além do fato de que preferiria não ter de me casar com o marquês de Cosgrove. — Pare de reclamar, querida — a mãe interferiu. — Vai se casar com um homem rico, com um título, um cavalheiro garboso. Rose tinha ressalvas quanto à parte de "cavalheiro", mas seria inútil argumentar. — Acha que é prudente de minha parte comprar um enxoval se nem estou noiva formalmente? — Precisará de um, tolinha — a irmã insistiu. — E papai disse que lorde Cosgrove pretende se casar logo após o anúncio. Ah, quem sabe não podemos encontrá-lo para almoçarmos juntos? Quanto mais os virem na companhia do outro, melhor. — Não quero almoçar com ele. — Só de pensar nisso, perdia o apetite. — Por que não jantam com ele, Fishton, papai? Se ele vai se tornar parte da família, vocês precisam se conhecer melhor. Fishton concordou ao sorver um gole de chá. — É uma excelente idéia. James pegou uma garfada de ovos poché e disse ao mesmo tempo: — Notei que me excluíram do convite. Mas para sua informação, eu tenho um almoço marcado com Cosgrove. Se quiserem se juntar a nós... — Oh, todos nós deveríamos ir! — Bea exclamou, batendo palmas. Enquanto James e Beatrice trocavam impressões quanto ao melhor lugar para o almoço, Rose pegou uma torrada e passou manteiga. Por que a única pessoa que sugerira uma saída daquela confusão era alguém de moral igualmente discutível? Mesmo tentando encontrar uma solução para evitar o almoço com o futuro marido, a visão de olhos negros, mãos elegantes e pele ardente apagavam a ameaça de Cosgrove. Ajudava na situação, mas por quanto tempo ela poderia usar seus pensamentos sobre um homem como escudo contra outro? Quando ouviu comentários sobre igreja e recepção, ela estremeceu e disse: — Sei que querem manter as aparências, mas eu apreciaria se ao menos em casa vocês reconhecessem que eu preferiria me casar com um peixeiro em vez de Cosgrove. — O que está feito está feito — Bea disse com sua voz alegre. — Claro que sabemos que não gosta muito dele, mas muitos casamentos começaram entre meros conhecidos, terminando com amor e amizade. — E quanto à reputação dele? — Rose inquiriu. — Nossa ligação com ele só poderá melhorá-la. E ele é um marquês! Rose fechou os olhos. O problema não era que sua família não enxergasse suas reservas, eles simplesmente as desconsideravam como sendo insignificantes. O mesmo se dava com ela, que se sentia como uma mera mercadoria. Não viam que ela podia fugir se assim o quisesse? Mas que ali estava para fazer como de costume: cuidar do bem-estar de 85

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todos. Pela primeira vez pensou que seria bom receber um mínimo de reconhecimento. — Bem, então por que não vamos correndo comprar esse enxoval? — disse, abrindo os olhos. — Agora está sendo sarcástica. — Bea se levantou. — Mas vou ignorar seu comentário até que seu humor melhore. James, nós vamos à Bond Street. Mande um bilhete para Cosgrove quanto ao almoço e depois vá ao nosso encontro. Rose sentiu a raiva se espalhar. Nunca se importara com a ingratidão da família, mas ao que tudo parecia, ela era invisível. Quando ela se fosse, eles notariam sua ausência. No momento ela valia dez mil libras. Mas se sentia cada vez mais desvalorizada. Estaria esperando demais deles ou de menos dela mesma? Nas duas horas seguintes seguiu a irmã de loja em loja, comprando uma coleção de chapéus, laços, xales e outras coisas que pouco importavam e que nem eram de seu gosto. Quando Bea escolheu um chapéu rosa, cheio de babados, ela bem que tentou distraí-la. Mas aquilo pelo menos tirava de sua mente o encontro iminente com o marquês. O chapéu muito rosa e muito babado de alguma forma acabou sendo embalado numa caixa colocada em seus braços... E desapareceu em seguida. — Interessante — uma voz conhecida chegou por trás. Bram segurava o chapéu, observando-o como se ele fosse algum inseto estranho. Ela sentiu os pelos dos braços eriçarem e um calor se espalhar pela espinha. Rose precisou de um segundo para se compor antes de se virar de frente para ele. — O que... — Interrompeu-se, surpresa. — O que está vestindo? — Roupas. — Ele olhou para si próprio. Ela esticou a mão e o tocou no peito. — Seu colete é cinza. Olhos negros divertidos a observaram. — Cinza-escuro. E seria melhor parar de me tocar. Apressada, ela recolheu a mão. — Perdão. — Não se desculpe. Sei que sou difícil de resistir. Assim como você seria neste chapéu. — Ele o virou no dedo. — Pare com isso! — ela disse, pegando o objeto e guardando-o novamente, procurando suprimir uma risada. Mas ele estava ali, numa loja feminina, atrás dela depois de ela praticamente tê-lo chutado para fora do quarto. — Beatrice acha que ficarei bonita com ele. — Você fica bonita com qualquer coisa — ele argumentou — ou com nada. Mas isso não muda o fato de este ser um chapéu horrível. O bom humor repentino bem como o surpreendente elogio a fez pensar. — O que faz aqui? Pensei ter deixado bem claro que apreciei sua... assistência, mas que não confio em você para mais nada. — Desejá-lo por perto era uma coisa, mas seria um problema. Pois tinha certeza de que encontrar-se com ele tornaria sua decisão de 86

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cumprir seu dever ainda mais difícil. Sem o chapéu, Bram pegou uma das camisolas e examinou-a. — Fiquei bem embriagado ontem depois que nos separamos — disse num tom pensativo. — Normalmente enfrento os insultos das pessoas como se fossem elogios. Um tremor a percorreu. Já tinha problemas demais, não precisava ter Bram Johns como inimigo. — Estávamos cansados — disse. — Eu... — Tenho de admitir — ele prosseguiu como se ela não tivesse dito nada — que desde que a conheci, percebi que, no que se refere à propriedade, eu tenho meus limites. Ela o fitou, observando os olhos negros inescrutáveis, as linhas de cansaço ao redor deles, a linha firme do maxilar. Ele de fato parecia perturbado. O que quer que o incomodasse, obviamente evitara uma boa noite de sono, a menos que ele tivesse algum outro encontro depois do dela que lhe provocasse essa falta de descanso. Não gostou nem um pouco da idéia, mas encobriu seu mal-estar recuperando a peça de roupa e colocandoa de volta na caixa. — Não concorda comigo. Não posso culpá-la; até ontem à noite, nem eu mesmo acreditaria em mim. Ainda não estou completamente convencido. Ele não parecia nem bravo nem ressentido, mas era um mestre do engodo. A última coisa de que precisava era que ele anunciasse no meio da loja que ela o convidara a arruinar sua reputação. Somente Cosgrove deveria saber disso. — Aonde quer chegar com essa epifania? — Vou resgatá-la. Ela bufou, para não tornar a situação ainda pior, tentou transformar o som num acesso de tosse. Bram parecia insultado, mas logo se recuperou. — Mocinha mal-agradecida. — Já me ajudou — disse rápido, olhando de esguelha para a irmã. — Acredito que não haja nada mais que possa fazer. — Então terei de provar que está errada. — Bram, você... — Rose, venha ou nos atrasaremos — Bea interrompeu, carregada de pacotes. Surpresa, a irmã disse: — Lorde Bramwell Johns. — E fez uma mesura. — Lady Fishton, presumo, — Bram se curvou. Rose viu a reação da irmã e se lembrou do efeito que aqueles olhos negros tinha nas mulheres. Beatrice era bela e delicada... Sem nem pensar, se interpôs entre eles. — Lorde Bram é amigo de James — explicou, pegando vários pacotes para em seguida vê-los nas mãos de Bram. 87

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— Para onde vão? — ele perguntou ao saírem da loja. — Vamos nos encontrar com lorde Cosgrove para almoçar — Beatrice informou antes subir na carruagem. — Passar bem, milorde. Bram segurou o cotovelo de Rose para ajudá-la a subir, mas em vez de soltá-la, segurou mais forte. — Cosgrove... Outro amigo meu. Talvez eu me junte a vocês. — Vamos encontrá-lo no White Lion à uma hora — Rose disse antes que Bea objetasse. — Então nos veremos lá. Quando ele recuou e fechou a porta, a carruagem se movimentou enquanto Bea admoestava a irmã quanto a más companhias. Rose nem prestou atenção. Estava contente com o fato de Bram se juntar a eles. Ele parecia a única pessoa que entendia sua repulsa pelo homem com quem se casaria e estava mais do que qualificado a enfrentar Cosgrove, mais do que qualquer um daquele grupo. E quanto ao resgate mencionado, ele podia se divertir o quanto quisesse, contanto que não desse ouvidos à última coisa que lhe pedira: que fosse embora. Um almoço com Cosgrove era a última coisa que Bram desejava, mas se era para orquestrar a própria ruína, que assim fosse. Além disso, sabendo como Rose se sentia em relação ao marquês e a conversa entre os dois durante a madrugada, ele não poderia deixá-la sem um aliado. Mesmo que ela não confiasse tampouco quisesse esse aliado em particular. Ou mesmo um aliado que não tivesse muita prática. Montando em Titã, seguiu na direção do White Lion. Havia se debatido a manhã inteira, mesmo com o aviso de Cosgrove e seu forte senso de autopreservação, o que mais o incomodava era a dispensa por parte de Rose. Estava mais velho e seus jogos haviam se tornado mais sombrios e elaborados. Estava ciente do perpétuo estado de enfado e da busca incessante do que mais afrontaria o pai. Não apreciara o plano de Cosgrove desde o início, mas quanto mais sabia, mais aprendia a respeito de Rosamund Davies, e menor a sua capacidade de perdoar tudo aquilo. Entretanto, condenar uma ação era completamente diferente de tentar evitaria. Muito diferente quando Kingston Gore estava envolvido. E isso levantava outra questão: se a mulher escolhida pelo marquês não fosse tão honesta e esperta ou não tivesse aquelas charmosas sardas no nariz, ele estaria tentado a agir como herói? Bram deixou suas reflexões de lado ao se aproximar da carruagem dos Fishton. Apreciava a companhia das mulheres por um motivo e já chegara ao seu objetivo com Rosamund. Tudo o mais seria tolice. E estava prestes a disseminar o caos... Algo mais absurdo, ridículo e perturbador estava para acontecer. Lester e Cosgrove já estavam sentados à mesa no fundo do restaurante quando Bram entrou atrás de Rose e da irmã tagarela.

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Ele fixou a atenção no marquês, observando-o quando este levantou o olhar na direção de Rose. O olhar possessivo fez com que Bram cerrasse os punhos. Com a aparência de King, se ele tivesse sido mais gentil, a sempre correta Rose teria concordado com o casamento sem protestar. Por um instante, Bram ficou feliz que seu dito amigo tivesse escolhido uma abordagem diferente. Os olhos do marquês passaram de Rose e se estreitaram ao vê-lo. Cosgrove esperaria, porém, antes de reagir. Afinal, os dois maquinaram esquemas juntos antes e sabiam como o outro agia. Por enquanto pelo menos, Bram estaria em vantagem. Diferentemente do passado, porém, ele não recuaria dando passagem para seu mentor. — Ora, onde encontraram Bram? —Lester perguntou contente. — Eu procurava um vestido que combinasse com meus olhos — ele respondeu, seco, sentando-se deliberadamente ao lado de Rose, mesmo que o mais sábio fosse colocar alguém entre eles. — Quem haveria de saber que gostamos das mesmas lojas? — Escolha interessante, a de sua roupa hoje. — Cosgrove apontou para o colete. — O que provocou isso? Ora essa, só porque naquela manhã resolvera que vinha usando preto em excesso, todos achavam que ele devia estar aprontando alguma. — Estou expandindo meus horizontes. — Interessante. — Fomos comprar algumas coisas para o enxoval — lady Fishton intercedeu, jovial. — Ah! — O marquês voltou a se concentrar em Rose, que se servia de um pãozinho. — Também comprei algumas coisas para minha futura esposa. — Que adorável! O que comprou? Precisa nos contar. Bram se perguntou se lady Fishton era meramente obtusa ou se simplesmente não tinha bom-senso. — Coisas que dizem respeito somente ao marido e à esposa. — Cosgrove deu um sorriso que não chegou aos olhos. — Ficarei feliz em contar para Rose mais tarde. — Ouviu que lady Gervais está oferecendo um de seus notórios bailes de máscara hoje à noite? — Lester perguntou. — Por certo você e Bram foram convidados, Cosgrove. — Sim, eu fui. Gostaria de ir, James? — Sim, claro que sim! Bram sentiu Rose se aproximar dele no banco. Ela ainda não dissera palavra alguma, o que era extraordinário, e quando sentiu os dedos dela por baixo da mesa tocarem os seus, foi como se um relâmpago o tivesse atingido no peito. Virando o pulso, apertou-lhe os dedos.

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— Também vou ao baile, Lester. Parece que seremos nós três. — Tudo o que bastava para que se colocasse diante do canhão era um mero roçar de dedos, então. Por algum tempo apenas comeram; lady e lorde Fishton entretendo a todos com suas conversas sem sentido. Rose permanecia calada, e Bram começou a se incomodar com o fato de que Cosgrove não começasse suas insinuações e afrontas costumeiras. Ele tinha pouca, ou nenhuma, experiência em bancar o herói e a dama em apuros ainda estava encrencada, e lá estava ele, tentando decidir quantas cartas mostrar na mesa. Quando Rose deixou os ombros penderem, ele decidiu agir. Era hora de pescar ou de abandonar a vara. — Alguma sorte, Lester, em conseguir o dinheiro para libertar lady Rosamund desta enrascada? Cosgrove, apesar de estreitar o olhar, nada disse. Foi o visconde Lester quem franziu o cenho. — Não chega a ser uma enrascada, Bram. Rose tem vinte e dois anos. Não acha que é hora de ela se casar? E Cosgrove é um amigo, assim como você. Bram pegou alguns papéis de dentro do bolso. As promissórias de jogo. —Não somos iguais — disse e rasgou-as. — Que bom para você, Bram. — Lester se esticou para pegar o papel picado. — Que coincidência ter essas promissórias no bolso quando se depara sem querer com os Davies e se convida para o almoço. — Cosgrove se serviu de vinho do Porto. — Eu gostaria de ressaltar, porém, que uma dívida de algumas centenas não se equipara a uma de dez mil libras. — Poderia ser, já que nenhum de nós trabalhou arduamente para obter esse montante. — Se tem... sentimentos pela moça, Bram, diga agora e quem sabe possamos entrar num acordo. Não poderia admitir tal coisa, pois isso racharia sua armadura. Só precisava afastar Cosgrove de Rosamund. — Só estou discutindo dinheiro facilmente conquistado e desnecessário. Seja um cavalheiro e deixe-os livres. O marquês plantou os cotovelos na mesa e apoiou o queixo entre os dedos. — Não. Se está interessado na dama, por que não pergunta quem ela prefere? Ela prefere a mim, Bram queria gritar, mas em vez disso forçou uma risada. — Estou falando de honra, não de garotas. Aparte isso, com o peso do que tem contra eles, essa não seria uma pergunta justa, não é mesmo? — É justa o bastante para mim. — O marquês voltou a olhar para ela. — Eu gostaria que minha futura noiva respondesse de qualquer forma. Qual companhia prefere, Rose?

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— A minha. — Sim, querida, mas quero que diga o meu nome ou o dele. Diga. Agora. — A sua, lorde Cosgrove. Por mais que desgostasse da resposta, Bram entendia. Tentou segurar a mão dela por baixo da mesa, mas ela se afastou. — Por favor, não torne as coisas ainda piores — ela sussurrou com a cabeça baixa. — Vê, Bramwell? A dama prefere a mim. E quem há de se admirar? Ele foi deserdado e se sustenta por meio do jogo. E cá está ele, dispensando cerca de duzentas libras as quais provavelmente necessita para sobreviver. — Sou deserdado pelo menos três vezes por ano — Bram redarguiu, feliz que a ira de Cosgrove estivesse direcionada para ele. — Tornei-me um perito em sobreviver, eu diria. — É assim que chama? Sobreviver? Eu prefiro fazer planos e levá-los adiante. Com isso em mente, acompanharei lady Rose ao baile dos Hampton na sexta-feira. Está na hora de as pessoas começarem a nos ver juntos. Agora, minha cara, diga a lorde Bramwell que deseja que ele se vá antes que eu me sinta insultado por você ter hesitado em responder à minha pergunta. Ele não queria ouvi-la repetir aquilo, coagida ou não. Bram se levantou e se afastou do banco. — Não é necessário. Tenho um compromisso. Bom dia a todos. Eu os verei hoje à noite, King, Lester. — Continuaremos esta conversa fascinante mais tarde, Bramwell. — Sim, pode ser. — De preferência depois que ele tivesse uma estratégia melhor do que simplesmente se sentar ao lado de Rose para tocá-la sempre que possível, a ingrata... Por mais excitante que fosse, era um plano bem pobre. Ser herói era mais difícil do que ele imaginava. — Adoro festas — Bea anunciou enquanto a família toda aguardava a chegada de Cosgrove. Rose usava seu vestido mais recatado, como se gola alta e mangas compridas pudessem ajudá-la a manter-se ao largo do marquês. Se pudesse vestiria calças, camisa de lã e um casaco bem pesado. — Você tinha de escolher esse vestido? — a irmã perguntou. — Mais parece uma governanta. — Levando-se em conta que passarei a noite na companhia do marquês de Cosgrove, achei melhor me vestir conservadoramente. — Ela tem razão — lorde Fishton concordou. — Ainda não estou convencido de que a proximidade com Cosgrove coloca em risco minha posição no gabinete. Depois que Fishton mencionou a possibilidade de perder o emprego como 91

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subsecretário, a opinião consideravelmente.

de

Beatrice

quanto

à

saída

daquela

noite

mudou

— Sabe, acho que não cabemos todos na mesma carruagem. Lorde Fishton e eu podemos ir à frente e encontrá-los no baile. — Sim, podem ir — Rose concordou. — Leve papai e mamãe com vocês. James e eu esperaremos pelo marquês. — Tem certeza, querida? — a mãe perguntou apesar de já se levantar. — Claro que é a você que ele quer ver. E o motivo pelo qual seu pai pediu um tempo foi para evitar escândalos. — Sei meu papel nisso tudo — Rose disse, sentindo enjôo. Uma falha em lidar com Cosgrove poderia acabar com a família. Daquele modo, só ela teria de se sacrificar. Por pior que fosse a situação, sentia-se em melhores condições de lidar com o marquês. Depois que a família partiu, ela se sentou para esperar, com exceção de James, praticamente sozinha. Mesmo a prima que morava tão perto, mais recentemente só se correspondia com ela. James não ficara para trás em solidariedade, mas por considerar o marquês praticamente um Deus. E já fazia três dias que não via Bram. Pelo menos ele pedira a Cosgrove que se afastasse dela antes de sumir do mapa, sendo assim, ele havia sido o único que se colocara ao seu lado. Ainda não entendia os motivos dele. Sem conseguir eliminar nem a dívida nem a influência de Cosgrove sobre James, o esforço se mostrara inútil. Não obstante, quando ele tinha saído do White Lion, foi como se sua última esperança tivesse ido com ele. E desde então ela se sentira muito só. — Ele costuma se atrasar, Rose. Gosta de fazer uma grande entrada, como ele mesmo diz. Não se preocupe que ele não se esqueceu de vir buscá-la. Nada a deixaria mais feliz. — Você não chegou a me contar sobre o baile de máscaras de lady Gervais. Foi como você esperava? O irmão chegou a corar. — Bram disse que aquele não era o tipo de lugar para ir com alguém com quem se importava. Não acreditei nele a princípio, mas depois de ver o lugar, até que fez sentido. — Ele foi? — Não. Enviou-me um bilhete, desculpando-se por não poder comparecer. Você conseguiu com que ele e Cosgrove se desentendessem. Apesar de sua resolução de se ater à realidade, ela sentiu o coração saltar. — Não pedi que ele fizesse isso. — Não sei de nada, mas também faz três dias que não o vejo. E Bram não é exatamente um eremita, você sabe. Sim, ela sabia muito bem disso. Mesmo antes de chegar a Londres ouvira histórias sobre Bram e suas apostas infames. O que não o tornava menos charmoso. 92

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Era possível que apreciasse a atenção dele e os beijos... E os ensinamentos mais íntimos. Mas não esperava que ele fosse capaz de acertar tudo o que havia de errado ao seu redor. Só pedira o que, para ele, eram pequenos favores. E só. Para si mesma, entretanto, poderia admitir que a única coisa pior do que se casar com um patife era se casar com ele, pensando em outro. A porta de entrada se abriu e, em seguida, Elbon anunciou a chegada do marquês. Rose permaneceu sentada enquanto o irmão o recebia esfuziante como sempre. — O conde e a condessa não nos acompanham? — ele perguntou. — Eles foram à frente com Bea e o marido, já que não haveria espaço para todos na carruagem — James respondeu. O marquês passou pelo visconde, parando diante dela. — Acha que ao se vestir desse modo me convencerá a deixá-la em casa? — Gosto deste vestido. — Eu não. Troque-o. — Não. Ela precisou de toda a sua coragem para enfrentá-lo e, pela primeira vez na vida, gostou de ser alta. Assim não teria de curvar o pescoço para trás para fitá-lo. Cosgrove podia se considerar poderoso e controlador, mas ainda não era capaz de aumentar sua estatura. — Lester, vá olhar meus novos cavalos — ele disse com o olhar fixo em Rose. Antes que ela conseguisse impedi-lo, James corria porta afora. — Prossiga. — Com o quê? — Cosgrove deu um passo à frente. Rose conteve a vontade de recuar, pois não queria ficar, acuada num canto. — Insulte-me ou lamba-me ou diga as coisas horríveis que vai fazer comigo depois que nos casarmos. Não foi por isso que mandou James sair? O marquês a observou com a expressão absolutamente inescrutável. Onde ela conseguira a coragem para dizer tudo aquilo, ela não sabia, mas estava feliz por tê-lo feito. — Ele a levou para a cama — constatou ele, placidamente. Um calafrio percorreu Rose por inteiro e ela se lembrou que aquele não era apenas um homem cruel, era um monstro. — Como disse? — perguntou, com fingida indignação. Claro que ela queria que ele soubesse disso, mas não quando pudesse se dar ares de superioridade. — Foi por isso que ele queria que eu a deixasse em paz. Extraordinário! Ele a teve e... Ainda a deseja. — O sorriso langoroso a gelou dos pés à cabeça. — Não foi isso o que planejei — continuou pensativo — mas Bramwell Johns sempre foi... imprevisível. Dessa vez Rose deu um passo para trás. — Não faço idéia do que esteja falando, mas peço que me trate com um mínimo de 93

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resp... Ele a esbofeteou. O tapa a desequilibrou e Rose teve de se apoiar numa cadeira para não cair. Colocando a mão sobre a face, ela se virou para sair. — Respeito? — Cosgrove chegou antes, bloqueando o caminho. — Foi isso o que me mostrou quando permitiu que ele ficasse entre as suas pernas? Nós vamos nos casar, minha cara. — Afaste-se de mim! — Nunca — ele murmurou perto dela. — O bom a respeito do inferno, meu bem, é que o diabo adora companhia. Você me pertence assim como meu cavalo. E agora Bram também, imagino. — Vá embora. — O único motivo pelo qual não a ponho de costas agora é que quero que aprecie a espera. Assim como eu. — Abra a porta ou grito. Ainda não é meu dono, lorde Cosgrove. Antes de destrancar a porta, ele perguntou: — Ele foi gentil, Rose? Disse seu nome? Você explodiu nas mãos dele? Com um suspiro de indignação, Rose passou por ele e subiu às pressas. Aquilo era horrível. Todas as vezes que achava que tinha alguma vantagem, Cosgrove conseguia superá-la. Soluçando, deixou-se cair sobre os joelhos. Como os pais podiam lhe pedir que se cassasse com aquele animal? Esfregou o rosto. O golpe não foi forte, mas poderia ter sido. — Rose? — James bateu à porta. — Estou me sentindo mal, James. Vá para o baile sem mim. — Mas Cosgrove quer que você vá conosco. Cosgrove podia ir para o inferno. — Não estou bem — ela repetiu. — Pois bem, mas ele não vai gostar. Ouviu os passos se afastarem. Mesmo que contasse o acontecido para os pais, as circunstâncias que a obrigavam a se casar não mudavam. Era mais provável que a acusassem de tê-lo provocado com suas reclamações. Deitada, o único rosto que a consolava era o de Bram. E agora Cosgrove iria atrás dele também. Para um homem que evitava complicações, ele estava numa situação bem desagradável. Talvez ela ainda não estivesse convencida em partir, deixando os pais enfrentarem o problema sozinhos, mas por certo Bram não teria dificuldade alguma em fazer isso com ela. — Está esperando por alguém? — Um braço se enrascou ao de Bram. — Pedi a lorde Ackley que procurasse pétalas de laranja açucaradas, mas elas não estão sendo 94

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servidas hoje... — Lady Ackley se aproximou, insinuante. — Excelente manobra, Miranda. — De frente para a porta de entrada, ele viu quando lorde e lady Abernathy chegaram com a filha mais velha e o genro. Onde estaria Rosamund? Miranda o puxou pelo braço. — Você não toca em mim há dias, Bram. Estou com saudade. Mas precisamos nos apressar antes que Ackley volte. A irritação que ele sentia pela tagarelice de Miranda se aprofundara tornando-se desgosto. — Não vou a parte alguma com você hoje, Miranda. — Meu diabinho não está se sentindo bem? Concordar com isso seria mais rápido do que contar que não se interessava mais por ela. — Isso mesmo. De qualquer modo é melhor não sermos vistos juntos. Com licença, Miranda — disse ao ver Lester e Cosgrove entrando. Para qualquer outra pessoa, o marquês parecia o de sempre, mas olhando atentamente, Bram percebeu que Kingston Gore estava furioso. Levando-se em conta que Rosamund não estava junto deles, nem fora ao baile com os pais, era justo imaginar que a raiva fosse direcionada a ela. Quando o marquês se distanciou, Bram se aproximou de Lester. — James, boa noite. — Bram! De onde você surgiu? — Lester perguntou, surpreso. — Das sombras. Esse é meu jeito. Onde está sua irmã? — Ela estava pronta; quando Cosgrove pôs os olhos nela e disse que ela trocasse de roupa, afinal o que ela usava mais se parecia com uma gover... — Ela mudou de roupa? — Bram interrompeu, redirecionando a história para o que interessava. — Bem, ela e Cosgrove conversaram a sós um minuto e depois ela subiu. Quando fui buscá-la, ela disse estar indisposta. Respirando fundo, Bram procurou controlar o humor. — Você a deixou sozinha com Cosgrove? — Eles estão noivos! E King estava com uma parelha nova de cavalos... — Idiota! — Ei, isso não é nada gentil. Eu... — Nunca deixe sua irmã sozinha com um homem a menos que ela peça — Bram sibilou. — Não importa quem seja o homem. Fui claro? 95

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Magoado, Lester assentiu. — Mas era Cosgrove... — ele reclamou como se isso explicasse tudo. — E Rosamund é sua irmã. Já a prejudicou demais, James. O mínimo que pode fazer é olhar por ela enquanto ela ainda está sob seus cuidados. Quando Bram terminou o sermão, James tinha a aparência de um rapazote ingênuo e crédulo, à beira das lágrimas. Quando foi que ele se tornara aquele que podia distribuir conselhos sobre adequação e propriedade? — Ouça seu coração. — Segurou-o pelo ombro. — Não há nada de errado com isso. Mas um homem também tem de ouvir a razão. Virou-se e viu Miranda com o olhar fixo sobre ele, e Cosgrove também totalmente absorvido por sua presença. Levando-se em conta sua má atuação três dias antes, ele devia mostrar uma expressão de desprezo ou triunfo. Em vez disso, porém, a raiva antes avistada parecia ainda mais intensa. Portanto, ele era o alvo. Poderia dar meia-volta e sair, todavia por mais que desgostasse se envolver em assuntos alheios, gostava menos ainda de dar as costas para alguém capaz de atingi-lo. E nunca confiara em Cosgrove. — Bramwell — o marquês disse quando ele se aproximou. — Cosgrove. Está sem sua quase noiva. Descuido de sua parte perdê-la de vista, levando-se em conta o trabalho a que se deu para apanhá-la. — Você me deve desculpas. — Devo? — Bram ergueu uma sobrancelha. — Sim. E espero receber você de joelhos diante de mim e de todas estas pessoas. Aquilo não parecia nada bom. E lá estava ele, desarmado, com a exceção da adaga na bota. — Está começando a parecer que você e eu não somos mais amigos — refletiu, notando que o espaço entre eles e os demais convidados aumentava. — Parece que sim — Cosgrove concordou. — Você a teve. Depois que deixei claro que ela pertencia a mim. — Tive tantas, King — ele respondeu com um sorriso que não sentia. — A quem especificamente se refere? — Se eu quisesse execrá-la publicamente, eu já o teria feito — Cosgrove grunhiu, fitando-o com os olhos angelicais de sempre. — Só piorou as coisas para ela. Se as palavras não surtirem efeito, terei de usar outros métodos. — Ou poderia escolher outra vítima. — Não. Se quer evitar o fim de nossa amizade, desculpe-se. Agora. Inclinando a cabeça, Bram viu que tanto o irmão quanto o pai os observavam junto aos demais convidados. Maravilha. De todas as coisas feitas, associar-se a Cosgrove havia 96

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sido o que mais irritara o duque, por isso não desejava que o pai testemunhasse o rompimento público das relações entre eles. Por outro lado, preferiria atirar na própria cabeça a se ajoelhar diante de qualquer pessoa. Ainda mais quando se considerava do lado certo. Ou não? — Tenho uma proposta. Deixe-a em paz. Esqueça toda a família e eu não vou levar isto além do fim de nossa amizade. Continue seu jogo e farei com que se arrependa. — Eu pagaria para vê-lo tentar me superar. Vá para o diabo! Bram se curvou. — Depois de você. — Com isso, girou sobre os calcanhares e se misturou à multidão. — Bram... — O irmão o segurou pelo braço. — Lamento, August, mas estou à procura de uísque. Claro que a bebida seria bem-vinda, mas não foi isso que surgiu em sua mente ao imaginar que Rose estivesse em apuros. Vinha entrando nas casas da aristocracia às escondidas havia tempos. Só a casa dos Davies invadira duas vezes. Uma terceira não faria diferença. Esperou que o baile começasse para poder sair despercebido. Deixou a carruagem e pegou um carro de aluguel, fato impensável antes. Isso por que Rosamund era mais importante. Como ela se tornara essa obsessão, consumindo seus pensamentos nas últimas semanas? Talvez fosse sinal de que estivesse se tornando um parvo, o que não seria uma surpresa, levando-se em conta o modo como vinha levando a vida. Por que ela? Por que não Miranda Ackley, muito mais experiente, ou Sarah Vischer? Não fazia sentido que fosse a sardenta, teimosa e obstinada Rosamund Davies. Desceu do carro de aluguel duas quadras antes e ao ver que as luzes de algumas janelas ainda estavam acesas, concluiu que não poderia entrar pela porta da frente. Mantinha-se em forma mesmo depois da volta da guerra, mas subir paredes para salvar damas em apuros não parecia combinar com seu estilo cínico. Essa constatação não evitou que ele subisse pelo cano que passava perto da janela de Rose. Como de hábito, o vidro estava apenas encostado e ele o afastou com a ponta da bota. Assim que o abriu o bastante, segurou o peitoril com as mãos enluvadas. Cravando as botas na parede, içou-se pela janela, mas algo o atingiu em cheio na testa e ele quase escorregou. — Rosamund — ele sussurrou. — Pare de me bater. Ela arfou, depois colocou a cabeça para fora da janela. — Bram? Meu Deus, pensei que fosse o Gato Negro! O Gato Negro já invadira aquela casa antes, mas só roubara a virtude dela. — James disse que você estava indisposta — disse, fitando-a, ciente de que as batidas estranhas em seu peito nada tinham a ver com o fato de estar pendurado bem longe do chão. Só faltava começar a recitar Romeu e Julieta. — Vim ver como você estava. — Poderia ter batido à porta de entrada. 97

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— Se não recuar e me deixar entrar, o delegado de polícia logo vai aparecer perguntando por que o corpo de um belo homem está estatelado em seu jardim. Rose recuou, e ele, um tanto desapontado já que esperava encontrá-la amedrontada e não daquele modo, entrou. — Olá — cumprimentou-a, batendo a poeira da roupa. Deixando cair o bastão de críquete no chão com o qual o atingira, Rose se lançou sobre ele, segurando-o pelo casaco, o rosto escondido em seu ombro. Bram fez o que achou correto: abraçou-a. — Rosamund, quieta. — Abaixou o rosto e aspirou o perfume dos cabelos ruivos. Não tinha prática em confortar. Diabos, podia contar nos dedos de uma mão as vezes em que ofereceu consolo a alguém. Ela levantou o rosto e começou a beijá-lo de leve no queixo, enlouquecendo-o. — Estou tentando ser compreensivo e oferecer apoio — sussurrou, inclinando a cabeça e revirando os olhos conforme ela continuava a mordiscá-lo. — Todos saíram, mas você veio ver como eu estava — disse com voz trêmula ao puxar a gravata. — Isto não é ser consolador — ele disse, controlando todos os músculos do corpo para não retribuir as carícias. — É o consolo que procuro — ela replicou, tirando a gravata e deixando-a cair no chão. Quando as mãos chegaram aos botões do colete, Bram resolveu que havia suportado mais do que o esperado de qualquer mortal, abaixou a cabeça e tomou-lhe a boca com um beijo ardente. Em parte ele se perguntava se aquele não era o modo de ela se vingar de Cosgrove, pelo que quer que ele tivesse feito que a fizesse se retirar para seu quarto. Ao sentir as mãos desabotoando suas calças, as motivações dela deixaram de ter importância. — Está vestida de modo um tanto convencional esta noite — ele observou, tirando os grampos do cabelo. — Foi intencional. Ele quase revelou que quanto mais a pele era encoberta, mas vontade de expô-la ele sentia, mas deteve-se a tempo. Bram Johns só dizia esse tipo de coisa visando seduzir, mas a moça em questão já tinha a mão em suas calças. — Não o arranque, pois ele está a caminho de onde você mais deseja. — Desculpe. — Ela removeu a mão das partes baixas e empurrou a jaqueta e o colete dele no chão. Tirando a camisa ele mesmo, virou-a para desabotoar o vestido e desnudá-la até a cintura. Não importavam os motivos que a levavam a ele, a qualquer momento ela poderia recuar e a urgência o dominava. 98

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Depois que se saciaram, ele puxou uma manta para cobri-los. Deitado com ela ao seu lado, a cabeça apoiada em seu ombro, ele só queria que o tempo parasse. Estava claro que precisava se libertar dessa sensação estranha. — Vai me contar o que aconteceu? — perguntou, depositando um beijo em seus cabelos. Por um instante, ela permaneceu em silêncio, depois disse num tom tristonho: — Cosgrove sabe que você... Que estivemos juntos. Eu não disse nada, mas imagino que não estava tão assustada quanto ele esperava. Abraçando-a, Bram deixou o olhar vagar pelo quarto: o bastão de críquete com o qual fora atingido no chão, a cadeira barrando a porta e, o mais revelador, uma mala cheia até a metade. Algo acontecera, pior do que as ameaças anteriores de Cosgrove. Algo que a fizesse se esquecer da lealdade absurda e motivasse a arrumar as malas. Acarinhou-a nas costas e ela começou a tremer. Um medo aterrador tomou conta dele. — O que ele fez? — Ele me bateu. Bram subitamente lamentou não ter feito uso da adaga no salão de baile. Até entendia o desejo de Cosgrove de controlá-la, mas bater... Estava acostumado a sentir raiva, passara boa parte da última década assim, mas o modo como se sentiu quando ela contou o que aconteceu foi algo mais selvagem do que nada antes experimentado. Era fúria pura e simples. — Espero que ele tenha aproveitado, pois nunca voltará a por as mãos em você. Ela levantou o rosto e o fitou. — Não vou deixar que isso aconteça. Vou sair daqui. — Acredito ter sugerido isso antes — disse com a maior calma possível. — E eu deveria ter-lhe dado ouvidos. Minha família... Ela será devastada, mas não posso passar o resto da minha vida ao lado dele. — A voz se partiu. — Não conseguirei, Bram. Pensei que pudesse, mas... — Mas chegou ao ponto em que precisa começar a cuidar de si mesma — ele determinou. — Descobriu que esse é o único modo de se viver. — Não, não é, mas estou sendo forçada a isso. — Tenho uma idéia — disse ele, devagar, prestes a quebrar outra de suas regras. — Fique comigo. Rose corou. — O que disse? — Fique na Mansão Lowry. Ninguém vai suspeitar. Eu... Eu a protegerei. Ela se inclinou e depositou um beijo suave no rosto dele. Bram fechou os olhos. 99

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Receber um beijo assim era quase melhor do que sexo. — Não estou reclamando, mas para que isso? — Você me protegeria de verdade, não? — Sim. — Até seu último suspiro. — De Cosgrove, de qualquer modo, mas não conseguiria me proteger da sociedade. E quem me protegeria de você? — Foi você quem me despiu. — Não foi isso o que eu quis dizer. — Explique, então. — Isso — ela correu um dedo pelo peito desnudo dele — é delicioso. Mas isto — ela pousou a mão no próprio peito — é outra coisa. Por mais que eu o deseje, não posso confiar em você. Bram franziu o cenho. — Case-se comigo e tanto a sociedade quanto eu seremos domados. Por um segundo ele não teve certeza do que disse, até ela se sentar e se afastar. No que estava pensando? Tinha feito um pedido de casamento... Bem, mas agora que estava feito, queria ouvir uma resposta. — E então? — ele a incitou, também se levantando. Rosamund limpou a garganta. — Oh, Deus... Admito, pensei que você fosse dar as costas e fugir para a Escócia, em vez de se colocar no caminho de seu amigo. — Ele não é mais meu amigo. Isso ficou muito claro esta noite. E obrigado pela fé depositada em meu caráter. — Não se trata de fé ou de falta dela. Eu tenho observado você, Bram. — Isso não é muito agradável. — Uma avaliação de seu caráter era o que ele precisava depois de propor casamento. Sim, havia muitas coisas a considerar, mas, puxa, estava bancando o herói. — Posso estar errado, mas acabei de pedi-la em casamento. Por favor, responda. — Eu o insultei quando disse que você e Cosgrove eram farinha do mesmo saco. Peço desculpas por isso. — Obrig... — Mas você ainda representa problemas. Muitos. Não vou fugir de um casamento mal-intencionado, o qual tenho bons motivos para acatar, para cair em outro que não oferece isso. Engolindo em seco, Bram se levantou e vestiu as calças. Uma única vez gostaria de ficar na cama e ler poesia ou qualquer outra tolice romântica antes que ela começasse a disparar desaforos. — Muito bem. — Seu primeiro instinto era sair pela porta sem se importar se os 100

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criados o vissem. — Se está saindo de casa para não se casar, não poderá ficar em Londres. — Pensei em conseguir emprego como governanta ou dama de companhia. Quem sabe em York ou Cornwall. Gosto do mar... Qualquer um desses lugares ficava longe demais. Outra preocupação o assolou. Se ela partisse, ele não conseguiria mais vê-la. — Não. — Não? Acho que isso não cabe a você decidir. Ele começou a caminhar pelo quarto. Durante anos se divertira com jogos, apostas e esquemas. Era um procedimento simples: descobrir o que queria e o melhor modo de obtê-lo. — Isto se trata de uma dívida de dez mil libras — ele disse, reflexivo. — Seu noivado não será anunciado antes de quinze dias. — Você não está me contando nenhuma novidade. Bram lhe lançou um olhar. — Estou pensando, se não se importa. — Pense o quanto quiser. Não vou ser acuada por aquele homem de novo. Finalmente ele parou diante dela, com o coração batendo tão rápido que ficou surpreso que não saísse pela boca. — Faça um acordo comigo, Rosamund. Conceda-me catorze dias. Se eu não a libertar das garras de Cosgrove antes do anúncio do noivado, cuidarei para que chegue em segurança no lugar de sua escolha com dinheiro suficiente para se estabelecer até encontrar emprego. Ela o fitou por um bom momento antes de perguntar: — O que ganha com isso? Você. — Sabe que gosto de um desafio. Se conseguir se impor a ele, com minha assistência, por mais duas semanas, não terá nada a perder. — Acabou de me propor casamento. Vai se comportar? Ele sorriu, divertindo-se pela primeira vez desde que falara com Lester naquela noite. — Nunca disse isso. Concorda? Por fim ela estendeu a mão. — Catorze dias, Bram. Estou confiando em você. Ele apertou a mão dela, depois a suspendeu para beijar os nós dos dedos. — Catorze dias. E se tudo corresse do modo como orquestrara apressadamente, no fim desses catorze dias ela estaria livre de Cosgrove e, se os céus ajudassem, totalmente perdida por 101

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ele. Aquela seria uma sedução, e o casamento com lady Rosamund Davies seu prêmio.

Rose estava a meio caminho da sala de café da manhã quando o pai saiu do escritório e disse numa voz contrita: — Venha aqui. Agora. Aprumando os ombros, Rose mudou de direção e entrou nos aposentos privados do conde. Aquele confronto não a intimidava como teria poucos dias antes, visto que passara muito mais horas considerando suas ações e repercussões do que o pai. E fizera o melhor para acomodá-lo, ainda que indo contra suas vontades. — Eu gostaria de me desculpar por não ir ao baile ontem. — Foi direto ao ponto antes que ele começasse um sermão. — Deve ter sido alguma coisa que comi. Ele se sentou atrás da escrivaninha. — A renda de minhas duas propriedades no ano passado foi de sete mil libras — ele disse sem preâmbulos. — Despesas, incluindo impostos, salários, a mensalidade de Oxford de seu irmão, alimentação, dentre outras coisas, totalizou seis mil e quinhentas libras. — Papai, eu... — Está claro — ele ergueu a voz para que ela se calasse — que não tenho como pagar dez mil libras a lorde Cosgrove. Como ele tem as promissórias assinadas por James, estou nas mãos dele. O marquês me ofereceu um acordo para saldar essa dívida. Aceitei os termos dele. Você entendeu? — Entendo que James o colocou numa situação difícil — ela concordou, devagar. — Também entendo que me entregar para Cosgrove foi o meio mais fácil para o senhor retificar o problema. — Mais fácil? — O senhor tem muitos amigos. Eu deveria ter pensado nisso antes, mas agora vejo que o senhor prefere me perder a abrir mão de seu orgulho. — Respirou fundo. — Se não houvesse alternativa, imagino que eu concordaria com maior facilidade. Já que me ilustrou os fatos, vou lhe contar os meus. Cosgrove me esbofeteou ontem à noite porque eu não quis mudar de roupa. Meu casamento poderia me permitir certo controle sobre as ações dele, porém, conforme comecei a conhecê-lo melhor, percebi que essa união só concederá a ele maior influência sobre James e toda esta família. Quaisquer que sejam os seus planos, eu ainda não tomei decisão alguma. Ele assentiu. — Quantos pedidos de casamento você recebeu? Excluindo o de lorde Cosgrove. Ela não poderia mencionar o da noite anterior, feito em seu quarto. — Dois. Não achei que houvesse compatibilidade com nenhum dos dois pretendentes. — Os dois rapazes tinham ainda menos juízo que sua família. 102

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— Talvez, então, você seja a arquiteta de seu destino. Se tivesse se casado, eu seria forçado a encontrar outros meios de pagar lorde Cosgrove, caso estivesse errada quanto a disponibilidade de empréstimo de soma exorbitante por parte de meus amigos, claro. Imagino que sua mãe e eu perderíamos tudo. Mas você escolheu não se casar e, francamente, quanto mais velha fica, só faz aumentar nossos gastos com você. Oh, deveria ter fugido há muito tempo! Ser desprezada quando ela trabalhava tanto pelo bem da família. Ela bem sabia disso, mas ouvir as palavras jogadas em sua cara... Bem, se tinha procurado esse destino, ainda havia tempo para mudar. Treze dias até Bram agir de acordo com seu plano e mais dois para planejar sua fuga. — Acredito que tenhamos nos entendido — ela disse, levantando o queixo. — Isso é tudo? — Sim, desde que tenha em mente que este casamento irá se realizar. E será melhor para todos os envolvidos, inclusive você, que ele aparente ser uma união de amor. — Lembrarei-me disso. Com os punhos cerrados, Rose seguiu para a sala de café da manhã, mas vendo o irmão enchendo o prato com fatias grossas de presunto, retrocedeu. Duvidava de que o pai tivesse gasto dez mil libras para criá-la. A batida na porta da frente ecoou pelo vestíbulo e Elbon se apressou em atender. Ela se virou para espiar, pronta para fugir para cima caso fosse Cosgrove. A silhueta na porta era outra, porém, mais magra e alta que a de Cosgrove, e seu pulso acelerou. Por alguns instantes naquela manhã, ela pensara ter sonhado com a visita de Bram na noite anterior, porque fazia mais sentido acreditar no fantasma dele do que nele próprio. Depois de trocar algumas palavras com o mordomo, ele entrou no vestíbulo. Olhos negros a fitaram, iluminados por um sorriso lânguido. — Bom dia, lady Rosamund. — Ele se curvou. Libertando-se de seus devaneios, ela fez uma mesura. — Lorde Bram. Nunca imaginei que se aventurasse pelas ruas a esta hora da manhã. — Estava preocupado. — Ele parou diante dela. — Lester me disse ontem que você não estava se sentindo bem. Espero que esteja se sentindo melhor. — Muito melhor, obrigada. Bram se inclinou e sussurrou, pegando-lhe a mão para se curvar diante dela: — Muito melhor? Ela assentiu. — Pelos próximos treze dias — ela respondeu no mesmo tom. — Hum... — Endireitando-se, ele a soltou. — Seu irmão está em casa? — Na sala de café da manhã. — Ah, acompanhe-me então, pois não estou familiarizado com nada que se refira a 103

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café tampouco manhã. Sorrindo apesar da irritação anterior, Rose enroscou os dedos no braço dele. Examinou-o antes de dizer: — Azul hoje? Seu valete deve estar se contorcendo. — Não faz idéia. Ele tentou furar os olhos hoje cedo... Mas você tinha razão: uso preto em demasia. Eu parecia um contador. Ou pior, um advogado. Ele se declarava seu aliado e quando aparecia, ela de fato sentia que não precisava enfrentar tudo sozinha. O tempo e a dedicação dele não o tornavam um anjo, longe disso, mas ele lhe oferecia uma chance de fuga. Manteria os olhos bem abertos, mas também se permitiria, por enquanto, se ater a uma centelha de esperança. — Lester — Bram disse, oferecendo a mão. — Bram. O que o traz aqui? — Você. Vou a Tattersall hoje. Gostaria de ir comigo? James pigarreou. — Vou almoçar com King e alguns de seus amigos. — Vá se preferir. — Bram deu de ombros. — Se conheço os amigos de King, eles estarão ocupados demais, tentando provar o quanto são espertos para notar se você está ou não lá. — Eu... — Vamos ao mercado de cavalos. Você tem um olhar clínico e estou precisando de um novo par. Vá ou fique, mas tenho certeza de que vou me divertir. Por fim James sorriu. — Vou trocar as botas. — E eu estarei aqui, comendo sua comida. Assim que o irmão saiu da sala, Rose se virou para Bram. — Isso foi muito direto de sua parte. — Foi? Só pode ser porque é cedo ainda. Sabe que prefiro rodeios. — Hum... O que está aprontando? — Vou levar seu irmão a Tattersall. — Ele levantou uma sobrancelha. — Quer nos acompanhar? — Por que não vai ao almoço de Cosgrove? — Porque não fui convidado. Isso a fez pensar. — Rompeu relações com ele mesmo, não é? — Eu disse que sim. — Ele deu meio passo na direção dela. — Talvez deva vir conosco. Cosgrove pode resolver que quer a sua companhia e esse almoço não é algo que deva presenciar. Ela não conseguiu conter o arrepio que a percorreu. 104

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— O que acontece nesses almoços? Bram levantou a mão e, sem se conter, percorreu um dedo na face macia, com o olhar fixo nos lábios. Como estavam acompanhados por lacaios, dificilmente poderia se dar o luxo de beijá-la. — As pessoas tiram as roupas — murmurou. — Bebem e chafurdam juntos. Alguns deveriam se envergonhar por ficarem nus. E caso se casasse com Cosgrove, ela, sem dúvida, teria de participar de tais orgias. As palavras eram horríveis, mas ele as disse com uma tranqüilidade que pareceu diminuir sua apreensão. Será que ele fizera de propósito? — Já participou desse tipo de almoço? Ele deixou a mão cair. — Em algumas ocasiões. Normalmente prefiro saborear minhas distrações em privado. Suas distrações... Ela devia se enquadrar nessa categoria. Mesmo sabendo disso, preferia olhar cavalos a arriscar um convite de Cosgrove. — Obrigada por me contar — comentou. — Vou vestir algo adequado para um leilão de cavalos. — Ótimo. — Ele lhe lançou um sorriso. Duas horas mais tarde ela se equilibrava na parte mais baixa de uma cerca com o amparo de Bram em seu cotovelo enquanto observava uma linda égua castanha trotar dentro de um cercado. Um homem do outro lado cobria os lances desesperadamente. — Quem é aquele? — Francis Henning. Pobre-coitado. Aquele cavalo é dele. Rose desceu da grade, sem apontar que Bram ainda a segurava. — Por que pobre-coitado? — Ele perdeu o animal numa aposta semana passada. Agora está tentando recuperá-lo antes que a avó volte para a cidade e descubra que ele anda jogando. — Então ele não deveria tê-lo apostado — James disso do outro lado de Bram. — Ele não deveria ter entrado num jogo que não podia cobrir, caso perdesse — Bram disse, seco. — Jogar é divertido. Qualquer um que o faça por outro motivo é um tolo. Rose olhou de um para o outro. Pela expressão fechada do irmão, percebeu que ele devia ter notado a reprimenda. — Isso não faz sentido — James reclamou. — Você ganha na maioria das vezes, mas já o vi perder. — Perco às vezes. — Bram pegou uma soma próxima de cinqüenta libras do bolso da jaqueta azul. — Só posso apostar isto no momento. Se eu perder, paro de jogar. — Mas e se a próxima mão for aquela em que sua sorte mudará e você poderá recuperar tudo? 105

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Com um suspiro, Bram guardou o dinheiro. — Não me importo de perder isso, pois tenho mais. Porém, se eu pedir emprestado para apostar e perder, serei obrigado a recorrer ao duque. Aparte o fato de que eu nunca, jamais farei isso, ele preferiria me mandar para a cadeia a gastar um centavo a mais comigo. — Então não tem escolha quando acaba seu dinheiro. Eu tenho... — Não, não tem. Vai sempre dever algo a alguém. Com isso perderá sua liberdade, ou a de alguém que lhe é caro. — Olhou para Rose. — E se Cosgrove tivesse dito que o único modo de saldar a dívida fosse atirando no conde Minster? Esses dois não são exatamente amigos. Empalidecendo e meneando a cabeça, James retrocedeu. — Ele nunca me pediria tal coisa. King é meu... — Amigo. E continuará a ser até que você se negue a fazer algo que ele pede, James. Confie em mim, já passei por isso. — Mas você e Cosgrove eram amigos até... Até recentemente — Rose comentou, incerta se deveria se intrometer, mas curiosa demais para ficar calada. Os olhos negros a avaliaram. — Eu fiz o que ele pediu. James arfou. — Mas nunca matou ninguém. — Na verdade, matei muitos homens, mas isso foi no tempo em que vestia uniforme. Não, o pedido dele foi muito mais simples. Lembra-se do anel de rubi que ele usa? Rose assentiu, já que ele parecia estar se dirigindo a ela. — Eu o ganhei de meu pai quando completei dezesseis anos. Ele esteve na família Johns por cinco gerações. Eu, contudo, devia três mil libras a Cosgrove e não tinha meios para pagar. O anel, apesar de lindo, não valia tudo aquilo, mas, obviamente, não era o que importava ao marquês. — O que Sua Graça fez quando soube? — Muitas coisas. — A expressão de Bram endureceu. Seria o anel o motivo do estremecimento entre pai e filho? Isso explicaria muitas coisas, mas não por que Bram decidira romper com Cosgrove. Rose observou o belo perfil quando ele voltou a atenção ao leilão. O anel de rubi não terminara com aquela amizade; teria sido ela a causa? Aquilo tudo era muito interessante. Aquela história a fez rever o que sabia sobre Bram. Nunca o imaginara ingênuo como James. Tampouco conseguia imaginá-lo numa 106

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posição em que teria de fazer algo contra sua vontade. Aquela devia ter sido uma lição muito dura, a qual ele obviamente aprendera, diferentemente de seu irmão. Sentiu um calor aquecê-la. Quem quer que fosse aquele homem, estava cada vez mais claro que não era gêmeo em caráter e comportamento de Kingston Gore. E quem ele era começava a intrigá-la muito, muito mesmo. Fingindo que prestava atenção ao leilão, Bram não conseguiu deixar de se perguntar se revelara demais. Aquele dia não era dedicado a contar história de sua estupidez, mas a tentar controlar o jogo de Lester. Pelo menos não contara o único benefício em perder o anel: o duque por fim havia declarado o que pensava de seu segundo filho. A conversa havia sido verdadeiramente reveladora. Ao sentir a mão dela em seu braço, ele gelou. — Disse antes que Cosgrove abusou de outros amigos. Como? — Rose perguntou. Ele quase se esquivou de responder, pois ela não precisava de mais uma lição dos horrores que Cosgrove era capaz de fazer. Mas como Lester estava prestando atenção, e Rose queria curá-lo do vício do jogo, ele faria o seu melhor. — Já ouviram falar de John Easterling? Os dois irmãos negaram. — Ele era o primogênito do visconde Hammond. — Era? — Rose repetiu, astuta como sempre. Bram assentiu. — Há quatro anos quando eu estava na península, Cosgrove se tornou amigo de Easterling e acabou com promissórias no valor de trinta mil libras. Assim que soube disso, Hammond o deserdou e dois dias mais tarde Easterling levou uma pistola à boca. — Se estava fora daqui — Lester perguntou, pálido —, como sabe disso? — Meu irmão era amigo de Easterling. — E August escrevera prontamente, contando-lhe tudo. — Não posso assegurar isto, mas, aparentemente, ao saber da morte dele, Cosgrove disse que era uma pena, pois ainda queria se divertir muitos anos à custa do outro. — Acho que vou passar mal — Lester disse, e Bram apontou para a lateral de uma construção. — Você inventou essa última parte, não? — Rose sussurrou, sem considerar, tampouco se importar, que chamava a atenção por ainda segurá-lo pelo braço. — Sim, mas é bem possível, considerando-se os hábitos de King. Ela o fitou de esguelha. — Você para mesmo de jogar quando acaba seu dinheiro? — Isso raramente acontece, mas, sim, eu paro. Não gosto de dever favores. — Ah, como eu queria que James fosse assim! — Rose suspirou. — Você não vai se casar com Cosgrove — ele anunciou com a delicadeza de um touro, mas pelo menos ela não riu de sua declaração, nem anunciou que não precisava de 107

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sua assistência. Rose apertou o braço dele um pouco mais. — Não pretendo me casar com ele. Porém, quanto mais coisas horríveis me conta a respeito dele, mais preocupada fico que ele consiga prever isso. Ele também começava a se preocupar com essa possibilidade, mas o herói tinha de levar todo o peso das preocupações nos ombros. — Agora me sinto insultado... Se há uma coisa na qual sou perito é antever problemas. — Bram Johns, seu patife! Bram ficou tenso e instintivamente se colocou entre Rose e a voz masculina. Ao se virar e ver por quem a multidão se abria, relaxou os dedos. Alguns poderiam chamá-lo problema, mas ele o chamava divina providência. — Sullivan Waring — disse, dando um passo à frente. — O que o traz aqui? — Ouvi dizer que estava com problemas. — O filho ilegítimo do marquês de Dunston sorriu ao cumprimentá-lo. — Não queria perder isso. Bram olhou para trás do amigo, onde Phin Bromley parecia contente consigo mesmo. — Você mandou chamá-lo. — Não faço idéia do que esteja falando. — Virou-se para Rose. — Lady Rose. Boa tarde. Praguejando baixinho, Bram voltou a pousar a mão dela em seu braço. — Rosamund, conhece Phin. Este é meu bom amigo, Sullivan Waring, o melhor criador de cavalos da Inglaterra. Sully, lady Rosamund Davies. Sullivan se curvou. — Lady Rosamund. Está sozinha com Bram? De pronto não tão feliz com a chegada do amigo, Bram forçou um sorriso. — O irmão dela está esvaziando o estômago ali atrás. — Veio para o leilão, sr. Waring? — Rose perguntou. — Não. Geralmente costumo mandar alguém com meu lote. Só vim para uma visita. Os olhos verdes debaixo dos cabelos castanho-dourados pareciam estar se divertindo, e chamavam a atenção de várias moças. Bram apertou a mão de Rose. — Imagino que Isabel ainda esteja em Amberglen? Isabel está grávida do primeiro filho deles, sabe. — Felicitações, sr. Waring. — Obrigado. Tibby insistiu em vir comigo para Londres. Estamos hospedados com 108

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os Bromley. — Assim que terminou de falar, voltou a atenção para Bram. — Que diabos está vestindo? — As pessoas não podem trocar um detalhezinho nas roupas sem que os continentes mudem de posição? — Nossa! — Lester exclamou ao voltar para junto deles. — Você é Sullivan Waring! — Pegou a mão de Sully e a chacoalhou. — Bram tem um de seus animais, Titã. Cavalo espetacular... — Sim, é um dos meus melhores. — Sully, este é o irmão de lady Rosamund, lorde Lester. — Ah, já terminou de vomitar. — Não foi minha culpa. — Lester corou. — As histórias de Bram a respeito de Cosgrove podem provocar isso em qualquer um. Bram gosta de zombar... Tudo o que ele precisava era que um de seus amigos concordasse com isso. O que precisava mesmo era de uma palavrinha com Sullivan. — James, Rosamund, poderiam mostrar a Phin o cavalo em que estou interessado? Rosamund se afastou para ficar junto ao irmão. — Claro. Por aqui, sr. Bromley. — Pode me chamar de Phin, milady. Quando não podiam mais ser ouvidos, Bram pegou o ombro de Sully. — Estou feliz em vê-lo, seu patife. — Digo o mesmo. — Isabel está bem? — Está tudo bem. Você saberia disso se viesse nos visitar. — O problema é que a felicidade doméstica de vocês faz meus dentes apodrecerem. — Muito engraçado... Relanceando olhos para o entorno, Bram o conduziu para uma área mais sossegada. — Phin escreveu para você, não? — O que esperava depois de invadir o quarto dele de madrugada e quase ter os miolos estourados? — Eu havia me excedido um pouco. — Hum-hum. O que Cosgrove tem a ver com a garota e a família dela? Sullivan não era conhecido por dar voltas num assunto. Isso o levara a problemas mais de uma vez, contudo Bram sempre apreciara sua franqueza. De certa forma, ele era bem parecido com Rose. Mantendo a voz baixa, contou sucintamente os acontecimentos das últimas 109

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semanas, deixando de fora somente seu envolvimento com Rose e o pedido de casamento. — E pensar que me chamam de bastardo... — Sully murmurou. — Nunca entendi por que continua a chamar esse patife de amigo, Bram. Ele... — Já não faço mais isso — Bram interrompeu. — Mesmo? — De que adiantava contar essa história se eu não estivesse disposto a fazer alguma coisa a respeito? — Na maioria das vezes você não tem propósito algum. — Verdade. Mas conheço King muito bem — continuou — e Rosamund é verdadeiramente uma boa pessoa. No que me diz respeito, ele pode continuar a chupar o sangue da sociedade, mas não vou permitir que a possua. Sullivan pareceu disposto a dizer algo mais, mas só assentiu. — O que posso fazer para ajudar? Ajuda... Bram oferecia ajuda. Na realidade salvara a vida tanto de Sully quanto de Phin em diversas ocasiões, mas pedir ajuda... Isso o fazia se sentir em débito. — Acho que tenho tudo sob controle no momento. Em todo caso, se você ficar na cidade mais um pouco, eu não me oporei. — Tudo bem. Tibby ainda tem algumas semanas antes de decidir onde quer ficar para o nascimento do bebê. Estou torcendo para que ela resolva ficar em Cornwall perto da família, pois começo a me sentir apreensivo... De qualquer modo, o que faz em Tattersall se não tenho nenhum de meus animais à venda? — Não estou aqui para comprar nada — Bram respondeu, grato com a mudança de assunto. — Cosgrove está oferecendo uma de suas orgias e estou tentando manter Lester afastado. — Mais algumas boas ações como essa e vão parar de se referir a você como patife... — Nem brinque. Quando Rose, James e Phin voltaram para junto deles, ela não conseguia parar de olhar para Bram. Os olhos negros se fixaram nos seus e ela sentiu o calor já conhecido se espalhar. Por que Bram Johns, um homem que seduzira e abandonara incontáveis beldades, estava tão fixado nela? Mas ela se sentia poderosa por ter a atenção do homem que tantas mulheres cobiçavam. Mesmo que fosse por mais um punhado de dias, mesmo que ele tivesse assumido uma espécie de papel de tutor de seu irmão. — O que me dizem de buscarmos Isabel e Alyse para um piquenique no Hyde Park? — Sullivan sugeriu, o olhar parando sobre ela um instante. Diferentemente do olhar predatório de Cosgrove, o dele demonstrou simples curiosidade, como se tentasse decifrar algum enigma. Com isso ela se perguntou o que Bram teria lhe dito. — Esplêndido! — James exclamou, contente por poder ficar junto a três homens 110

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antes conhecidos como os "cavalheiros notáveis". Rose assentiu, feliz em poder afastar o irmão de Cosgrove por mais um tempo. — Vamos comprar o almoço e encontramos com vocês na parte norte perto do lago — Bram sugeriu, oferecendo-lhe o braço. Rose o aceitou, pouco se importando se isso maculasse sua reputação. Recebia isso de braços abertos na esperança de que desencorajasse Cosgrove a seguir em frente com o casamento. Sem falar que Bram já se incumbira disso. — Por que está sorrindo? — ele perguntou, conforme seguiam de volta para a carruagem. — Eu só estava pensando que gostei muito desta manhã — ela respondeu. — Eu também. Estranho, não? — Sim? Talvez boas ações lhe caiam bem. Bram balançou a cabeça e uma mecha negra de cabelo caiu sobre a testa. — Conversar com alguém com meio neurônio me cai bem. Mas estou nisso só pelos problemas que vou causar. Poucas semanas atrás ela teria acreditado nisso, hoje, não estava tão certa assim. E nada do que testemunhara nas horas seguintes a convenceu disso. Depois de comprarem o almoço, foram para o parque. Longe de parecer um salafrário sem escrúpulos, Bram se mostrou divertido, generoso e solícito, não só para com ela, mas também com as esposas dos amigos. Tudo aquilo era muito confuso. Quem era o verdadeiro Bram Johns? O cínico ou o bondoso? E por que isso faria diferença desde que continuasse a ajudá-la? — Está me encarando — ele disse do assento defronte ao seu ao regressarem para a Mansão Davies. — Estou? — Ela piscou. — Sim, estou praticamente corando por conta disso. James bufou ao seu lado. — Nunca o vi corar antes, Bram. — Calor excessivo me faz corar — ele rebateu, sem desviar o olhar dela. — Sem dúvida me considera fascinante, mas posso perguntar por quê? A menos que os motivos sejam demais para enumerar, claro. — Sabe, estive escutando a conversa com seus amigos e me perguntei quais dos dez mandamentos ainda não quebrou. — O nono — ele respondeu, rápido. — Verdade? — E possivelmente o segundo. Pelo menos não me recordo de ter esculpido estátuas, mas é claro que eu poderia estar embriagado demais para me lembrar... — Esculpir não é o pecado, mas sim idolatrar a imagem esculpida — James 111

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esclareceu. — Mas qual é o nono? Estou confuso. — Não levantar falso testemunho — Rose explicou. — Não me parece um mentiroso, Bram, por isso acredito em você. — Obrigado. Isso, porém, ainda deixa um rastro de pecados mortais atrás de mim. — E quanto ao oitavo? — ela insistiu. — Seria o do dia santo? — É "não roubar". Bram continuava a olhá-la, mas não disse nada. Algo neles a intrigava, e ela quis saber se ele já roubara. Ao mesmo tempo, preferiria ficar na ignorância. Já tinha problemas demais. — Eu aposto como roubou a virgindade de dúzias de garotas — James zombou, rindo. Seria verdade? Nesse caso ela seria apenas mais uma de suas visitas noturnas? Não queria que fosse assim. — James não se pode roubar o que lhe é oferecido. Mas tenha certeza de que não tenho o hábito de ir para a cama com virgens. Não gosto de partir corações e os delas são frágeis demais. — Ele finalmente desviou o olhar, fixando-o para fora da janela. — Na maioria das vezes. Ela não sabia se aquilo era um insulto ou um elogio, mas não poderia perguntar na presença do irmão. Levando-se em conta que ele a pedira em casamento e teve o pedido negado, seria melhor deixar o assunto de lado. No entanto, havia algo que queria falar. — Você chama os Bromley e os Waring de amigos. — Eles são. Acho mais prudente manter uns poucos em quem confio por perto a ser circundado por muitos nos quais não posso. — Oh! — O que foi? — Eu ia dizer que... Que eu o considero um amigo. Bram sorriu. — Eu já havia decidido incluí-la nesse grupo, Rosamund. — Que bom. — Ela sorriu, contente. — Estou feliz por sermos amigos. — Assim como eu. — Fez uma pausa. — A propósito, adquiri um camarote no Drury Lane Theater... Gostariam de assistir a Sonho de uma Noite de Verão na quinta? Rose não sabia como uma noite no teatro a ajudaria a se livrar das garras de Cosgrove, mas estava tentada, mais do que deveria, a passar mais tempo na companhia de Bram. — Mas isso é amanhã à noite — James disse. — É a noite de faraó na Jezebel.

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Claro, o convite fora feito para o benefício de James, não para o dela. — James, eu adoraria ir — pediu. — Diga que vai, assim eu também poderei ir. — Está bem, está bem. — Ele apontou um dedo na direção de Bram. — Mas esteja certo de que confirmarei suas histórias com Cosgrove. — Espero que sim. Não se deve acreditar em ninguém sem desconfiar. A carruagem parou e James desceu primeiro. Rose começou a se levantar, mas Bram se sentou ao seu lado e a segurou. Inclinando-se, aspirou o perfume dos cabelos, fazendo-a estremecer. — O que está fazendo? — ela sussurrou. — Você é a minha única virgem... — Oh... — Ela corou. Aquilo tornava a noite deles especial novamente. Os dedos a resvalaram no braço. — Quer que eu a beije agora? — Sim. — Ela arfou. Bram pegou a mão e encostou os lábios no pulso. — Que bom — disse com um sorriso delicioso nos lábios. — Vá agora. Eu os encontrarei às sete amanhã. Ela precisaria de todo esse tempo para que o coração voltasse ao ritmo normal.

— Bom Deus, você se tornou um puritano! Entrando na biblioteca de sua casa, Bram deu de frente com Sullivan Waring apoiado na soleira da porta. — Um Calvinista — rebateu e voltou para as prateleiras de onde retirava os livros. — Ainda pior. — Sully se endireitou. — Vim perguntar onde vai estar esta noite, mas não esperava encontrá-lo... redecorando. — "Desdecorando". — Posso ver. Por quê? — Porque quis. Sabe que sempre faço o que quero. O lacaio apareceu trazendo caixas vazias. — Deixe-as perto da janela e traga mais — ordenou. — Usarei estas caixas para guardar minhas idiotices eróticas. Depois que o criado se foi, Sully se aproximou. — Não quero me intrometer, mas vai tirar todos os livros e gravuras? — Até que gosto da escultura nepalesa, mas o restante... Sim, vou tirar. O amigo segurou uma escultura de uma donzela e de um jumento e a levou para a mesa. 113

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— Para alguém que um dia me enviou metade de uma biblioteca com gravuras eróticas, isto me parece... inesperado. A menos que esteja planejando mandar tudo isto para o duque. Acertei? Até que seria uma boa idéia, se com isso o duque não soubesse que sua biblioteca estaria livre de toda aquela parafernália. — Não, tudo isso vai para o sótão até que eu consiga vender. — Por quê? — Cansei-me disso tudo. — Na verdade, concluíra que jamais poderia levar Rosamund ali onde em todos os cantos sexo era retratado como um simples unir de corpos. Algo de acordo com a mentalidade de Cosgrove. E com a sua, até pouco tempo atrás. — Quando tudo isso acont... — Você não é muito bom em bisbilhotar, Sullivan. Só decidi mudar o cenário. Não há nada de significante nisso. Sully apoiou outra escultura. — Por que não se senta e toma um conhaque? — sugeriu. Indo até a porta, fechou-a bem quando outro lacaio se aproximava. — Estou ocupado agora. — Perguntou-se como se livraria daquela sensação de inquietude dentro da própria pele. — Não vou me sentar com você e despejar o que me vai pelo coração, pois nós dois sabemos que não tenho um. — Hum. Exatamente quanto gosta dessa lady Rosamund Davies? Bram parou onde estava. Pensou que estava agindo a contento, mas Sully o conhecia melhor do que ninguém. Apoiando as mãos no tampo da escrivaninha, abaixou a cabeça um instante. — Ela me consome — murmurou, incerto se Sully o ouvira até que o amigo se deixou cair na poltrona. — Não esperava por isso. — Nem eu. — Com um grunhido, Bram jogou uma caixa no chão e começou a despejar sua arte lasciva. — Quando você propõe casamento para alguém e ela recusa, imagino que se distrair com prostitutas e bebidas seja uma reação adequada, mas cá estou eu limpando a casa. O silêncio só foi quebrado pelas coisas despejadas na caixa. — Você a pediu em casamento? — Sim, mas já que não sou muito melhor do que Cosgrove, também me ofereci para ajudá-la a saldar a dívida ou a fugir antes do casamento. — Acho que preciso de um drinque. — Sirva-se. 114

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Como conhaque já não parecia ser o bastante, Sully serviu dois copos de uísque. Dois lacaios entraram para retirar caixas e saíram em seguida. Aquela era uma conversa que Bram não desejava ter, ainda mais quando sua mente estava tão confusa por não encontrar uma saída. Sully voltou a se sentar, mas Bram continuou a andar pelo cômodo, como se isso o ajudasse a pensar. A única cura parecia ser ver Rosamund, mas ele não poderia invadir o quarto dela todas as noites. — O que vai fazer? — Farei com que ela mude de idéia a meu respeito. — E se não conseguir? Tinha de conseguir. Essa era sua única certeza. — Então eu a encaminharei para algum lugar no norte e a ajudarei a encontrar um emprego, como ela me pediu. — Bom Deus, Bram, de qualquer modo você vai provocar Cosgrove. Já pensou nisso? — Claro que sim. Eu até o preveni para que a deixasse, o que, obviamente, foi uma declaração de guerra. Ele seria um tolo se tentasse me atacar de frente, por isso presumo que tentará algo desleal. É o que eu faria. — Olhou por sobre o ombro, — Na verdade, seria melhor você levar sua esposa de volta para casa antes que alguma coisa aconteça. Diga o mesmo para Phin. — Quer que o abandonemos para que se vire sozinho? — É o que eu faria. — Bram deu de ombros. — Até parece. — Sullivan respirou fundo. — Quando recebi o recado de Phin, imaginei que seus problemas estivessem relacionados com o Gato Negro. Pensei encontrálo em Old Bailey e que eu teria de roubar alguém para livrá-lo da cadeia. — Isso não seria muito original — Bram replicou com meio sorriso. — Você nunca gostou de Cosgrove e eu... Bem, acabei indo para o lado dele já que você e Phin andavam muito ocupados com outras coisas. O que quer que ele tente, será por minha culpa por ter me metido nisso. Não quero sua ajuda, Sullivan. Você tem mais com que se preocupar. — Anotado. O que vai fazer em seguida? Com uma carranca, Bram se afastou da escrivaninha. — Não estou brincando. Posso não saber o que estou fazendo, mas vocês não fazem parte disso. Nem você, nem Phineas. Portanto, boa noite. Volte para sua esposa e pense em nomes de criança. Eu, por meu lado, sugiro Bramwell. — Eu jamais sobrecarregaria um bebê com nome tão infame. — Claramente relutante, Sully se levantou e foi para a porta. — Ficarei na cidade mais alguns dias, fazendo visitas e quem sabe comprando alguns cavalos. Só para sua informação. 115

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— Precisamos marcar um jantar antes que você parta. — Com certeza. E com isso Sully saiu da casa. Bram pegou o copo de uísque e o esvaziou numa golada. Doze dias até o anúncio do casamento. Deveria estar fazendo algo além de faxina. Mas por alguma razão, aquilo também parecia importante. Talvez se conseguisse limpar a bagunça de sua vida, pudesse fazer o mesmo com a mente. Ao mesmo tempo, isso lhe dava a impressão de que haveria mais espaço para pensar em Rose. — Maldição... — Pegando o paletó, saiu do escritório com uma bolsinha de dinheiro e desceu as escadas. — Hibble, providencie para que o escritório esteja limpo até amanhã. — Sim, senhor. Vai demorar a voltar? — Acredito que sim. Poderá me encontrar no White's ou no Society ou no Navy Club. Estou prestes a quebrar outra regra. — Sim, senhor. Era isso ou subir pela janela de Rose de novo. Colocou a mão no bolso. Tinha as cinqüenta libras mostradas a Lester, mais cerca de trezentas que guardava para manter a casa até que o duque resolvesse voltar a pagar a mesada. Dez mil era uma soma grande demais para conquistar numa noite, mas poderia começar. Tinha alguns favores a cobrar, se isso também fosse necessário. Sem falar que não pretendia perder. — Milady — Elbon disse ao entrar na sala de visitas —, a senhorita tem visitas. Visitas, no plural. Portanto não podia ser nem Bram, nem Cosgrove. Ao ver os cartões na bandeja de prata, pediu que as deixasse entrar. Desejava conversar com Alyse Bromley e Isabel Waring a respeito de Bram, mas no piquenique do dia anterior, tivera de se ocupar de James, que mais se comportara como um filhotinho desajeitado. Segundas chances eram raras nos dias atuais. — Bom dia, sra. Bromley, sra. Waring — cumprimentou-as, levantando-se. — Está surpresa em nos ver — Isabel comentou com um sorriso. — Sim, mas contente por terem vindo. — Que bom. Alyse e eu vamos passear pela Bond Street. Gostaria de ir conosco? — Vocês sabem de minhas... circunstâncias? Em caso negativo, teria de decidir o quanto revelar a respeito de Cosgrove. Se elas já soubessem, não poderia considerá-las aliadas, mas pelos menos não teria de fingir. Dessa vez foi Alyse quem sorriu. — Em parte, sim. Mas devo confessar que nós estamos acostumadas com homens astutos. Talvez possamos trocar algumas idéias... Rose se viu sorrindo também. — Ah, sim, seria ótimo. 116

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Tomaram a carruagem de lorde Quence até Bond Street, onde desembarcaram. Rose descobriu que Alyse e Tibby, como chamavam Isabel, só se conheciam fazia um ano, mas graças à amizade dos maridos, também descobriram afinidades. — Eles serviram na península juntos, não? Com Bram — Rose comentou ao caminharem pelas calçadas. Nos quarenta minutos seguintes conversaram, caminharam e fizeram compras. Rose gostou de Alyse e de Tibby, e pensar que podia estar fazendo novas amizades quando a própria família a evitava era um conforto. E saber que essas mulheres inteligentes e espertas eram conhecidas de Bram e gostavam dele dava-lhe esperanças de que não estivesse completamente louca. — Tenho alguma experiência com escândalo, Rose — Alyse dizia —, e Bram Johns vive no limite em que a maioria de nós não ousa chegar. Porém, já que o interesse dele em se relacionar com você parece legítimo, eu também diria que é sincero. Eu... Nós só queremos que saiba que ele tem qualidades. Quer elas sejam suficientes para equilibrar a... propensão dele para a ousadia, só você pode decidir. Contudo, o que quer que decida a respeito dele, queremos que saiba que seremos suas amigas. — Bom Deus! — Rose exclamou, cobrindo a boca com a mão. Elas a tinham procurado para falar de Bram. Será que sabiam a respeito de Cosgrove? — Isto... Quero dizer... Eu... Ele não... — Respire fundo, Rose — Tibby disse, dando tapinha em suas costas. — Alyse, acho bom nos sentarmos. — Vamos à confeitaria. — Alyse imediatamente pegou o outro braço de Rose. Depois que se acomodaram, Rose procurou se concentrar em sua respiração, conforme sugerido. — O que, exatamente, vocês sabem? — perguntou, depois que um dos empregados as serviu. — Não quero incomodá-la ainda mais — Tibby respondeu. — Mas... Sabem que Bram me pediu em casamento, não? — Queria confiar nessas mulheres, mas achou que elas não fossem responder, pois se entreolharam embaraçadas. Por fim Tibby cobriu a mão de Rose e disse: — Sim, Sullivan me contou que Bram a pediu em casamento e que você recusou. Vir procurá-la hoje, porém, foi nossa idéia. Ninguém sabe que estamos aqui. E ninguém saberá, se esse for seu desejo. — Bram só propôs casamento porque estou numa tremenda confusão — ela disse, aceitando o chá que Alyse lhe servia. — Pensei que fosse por isso que tivessem vindo me procurar. — Mais confusão do que ter Bram atrás de você? — Tibby perguntou surpresa. — Excelente pergunta — Rose replicou e contou tudo sobre a aposta de James e o acordo com Cosgrove. — Bram não gostou do que viu. Ele tem se mostrado um bom 117

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amigo. Quer se casar comigo somente para que Cosgrove não o faça. Nada além disso. — Nada que se permitisse acreditar, pelo menos. — Entendo. — Alyse remexia na xícara. — Então vai se casar com o marquês? — Não. Bram disse que vai me ajudar a sair de Londres antes que o noivado seja anunciado e a encontrar um emprego. Se ele não o fizer, eu mesma conseguirei fazer isso. — Respirou fundo.— Arruinarei minha família — continuou com voz trêmula —, mas não posso me casar com Cosgrove. Eu havia me conformado com isso, mas não posso. — E nem precisa — Tibby disse com firmeza. — O pior é que se Cosgrove tivesse se mostrado gentil ou se simplesmente tivesse mantido distância, eu teria concordado. — Ele é o tipo de homem que põe fogo no rabo do gato só para se divertir — Alyse comentou, cheia de desprezo. — Então não tem sentimentos românticos para com Bram? isso é uma benção. Sim, seria se fosse verdade. Tinha muitos sentimentos românticos para com ele. Como poderia esperar ansiosa para se ver livre de Cosgrove quando esse mesmo número de dias restava para usufruir a companhia de Bram? Bram não fazia idéia do que teria acontecido, mas quando Rose o encontrou defronte ao Drury Lane Theater, não só James a acompanhava bem como lorde e lady Abernathy e lorde e lady Fishton... — Desculpe — Rose sussurrou quando ele se curvou sobre sua mão enluvada. — Acho que você está começando a preocupá-los. Ele assentiu. — Cosgrove pode tê-los alertado que pretendo atrapalhar o arranjo deles. O que é verdade. Felizmente tenho um camarote bem espaçoso hoje. Ainda bem que convencera August a ceder seu camarote, pois ao convidar Rose não fazia idéia de como conseguir assentos, quanto mais privados. Oferecendo o braço, conduziu-a ate o salão do teatro. — James, você é quem deveria dar o braço à sua irmã — a condessa disse, aproximando-se de Rose e de Bram. — Precisamos cuidar da reputação dela. — Ah — Bram sussurrou, inclinando-se para Rose, isso seria como apagar a vela depois que a casa ruiu com um incêndio. Dois, na verdade. — Quieto! — Ela olhou por sobre o ombro. — Lorde Bram é um amigo e estamos em público. E ele é nosso anfitrião. Sua Rosamund tinha coragem. E considerando-se que ela jamais questionara sua lealdade para com eles ou se eram merecedores dessa lealdade, isso era impressionante. Sabia por experiência pessoal que não era fácil enfrentar a família. — Como vão os progressos para seu plano de resgate? — ela murmurou, fitando-o por um segundo. 118

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Levando-se em conta que na noite anterior ele transformara trezentas libras em duas mil, poderia dizer que vinha progredindo. Ao mesmo tempo, duvidava de que ela ficasse feliz com sua tentativa de levantar fundos por meio do jogo. Surpreendentemente, isso importava para ele. — Basta dizer que a bela donzela não vai se casar com o ogro fétido. Eu lhe dei minha palavra. — Assim diz o cavaleiro negro — disse ela, sorrindo. Ele abaixou o olhar para suas roupas. — Cavaleiro cinzento, por favor. — Afinal, aquilo tudo podia ter começado com uma tentativa de assalto, mas Cosgrove era muito mais vilão do que ele. No momento, esse não era um título a que aspirasse. Ao chegarem ao camarote de August, ele afastou as pesadas cortinas e deixou a família Davies entrar. No início, planejara se sentar na frente ao lado de Rose, deixando James no fundo. Agora via, que sem dúvida, ficaria no canto, bem longe dela. O mais estranho naquele encontro era que poucas semanas antes não os toleraria por mais de um minuto. Abernathy, por ser amigo de Levonzy, já se tornava inaceitável. James era aquele frangote com meio neurônio e os Fishton, entediantes além da conta. Todavia, lá estavam eles. Lady Fishton na beira do balcão acenando para algum conhecido enquanto a mãe distribuía os assentos. Bram encostou-se à parede com os braços cruzados, observando a cena. — Mamãe, não pode deixar Bram ali atrás — Rosamund admoestou a mãe. — Ele sequer a convidou, pelo amor de Deus! — Mas estou feliz que tenham vindo — Bram intercedeu rapidamente, tentando evitar uma briga. — James, sente-se ali — Rose continuou. — Ele vai adormecer depois de cinco minutos de peça de qualquer modo. Os lábios cerrados da condessa eram a evidência de que ela não gostava que lhe falassem daquela maneira. Esticando os ombros, Bram se endireitou. — Sento-me onde quiserem, mas confesso que esta é minha peça predileta. — Sim, deixe-me sentar aqui atrás — James disse. Ótimo. Agora Bram tinha de se preocupar em vigiá-lo para que ele não fugisse para Jezebel. Quase mudou de idéia e pediu seu lugar de volta, mas quando Rose o chamou para junto de si, tudo deixou de existir. — Sonho de uma Noite de Verão é sua peça favorita? — perguntou baixinho, apontando para a poltrona ao seu lado. — Não Fausto ou Macbeth? Sorrindo, ele se acomodou. — Com Fausto eu fico me perguntando se não fiz um pacto com o diabo ou se eu sou o próprio. Reflexões demais. Já Macbeth... Bem, mulheres em demasia maquinando. Isso me deixa um tanto desconfortável. 119

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Com um ar surpreendentemente sério, Rose o fitou. — Já encontrei o diabo, Bram, e você não é ele. — Você só conhece meu lado bom. A expressão dela se suavizou. — Sim. E por que será isso? Ele queria tanto beijá-la que doía se conter. — Não faço idéia — respondeu com honestidade. — Já vai começar! — lady Fishton exclamou. — Sentem-se todos! Como ninguém tentou tirá-lo de sua poltrona, Bram se ajeitou para assistir. Eles bem poderiam estar limpando o chão do palco, tanta atenção ele prestou... Em vez disso, ouvia cada suspiro, cada risada, cada respiração da mulher ao seu lado. Para um homem tão absorto consigo mesmo, aquela era uma revelação. Considerando-se o que ela vinha passando, ficou extremamente satisfeito de ter sugerido um passeio que a divertisse. Bem, pouco pensava em outra coisa que não girasse entorno de Rose. No instante em que se conheceram tudo havia mudado. Por esse motivo, estava grato a Kingston Gore. Se Cosgrove não tivesse começado esse jogo, ele jamais teria se apresentado a ela. Claro que ela estava prometida para outro e que ele teve seu pedido de casamento negado... Mas isso tudo mudaria. Tinha a estranha sensação que sua vida e sua sanidade dependiam disso. Rosamund continuava a espiar Bram, e não poderia fazer isso visto que os pais estavam logo atrás. Também porque não queria gostar tanto dele assim. No canto James já roncava, mas pelo menos estava ali em vez de perder mais dinheiro em jogos. Se nada mais acontecesse, já devia sua gratidão a Bram por isso, visto que James parecia dar ouvidos a ele. Infelizmente, ele também ouvia Cosgrove, e esse seria o único motivo que talvez a fizesse mudar de idéia, resolvendo se casar com o ogro fétido, como Bram o chamara. Acreditou que Bram fosse dar meia-volta ao vê-la chegar com a família em peso, em vez disso, ele pareceu se divertir com a presença deles. Ouvindo as personagens discorrendo sobre o amor, com seus encontros e desencontros, ela desejou ter ao menos isso. Ser capaz de sentir e agir de acordo, sem considerar como isso afetaria a família. Ser capaz de dizer sim ou não e ser atendida. Claro que James fazia o que bem entendia, e o resultado fora desastroso; isto é, não para ele. Mas James ainda não aprendera a ter juízo como ela. Mas ela queria... Queria lorde Bramwell Lowry Johns! E seu abundante bom-senso gritava que isso era uma idéia muito, muito ruim. Ele lhe pedira em casamento porque não queria que Cosgrove ganhasse aquele jogo. Talvez até o tivesse feito por considerar ser o certo a fazer. Ele tinha amantes, bebia e jogava, arriscava a vida e fomentava o caos só pelo prazer de testemunhar tudo isso. Mas ela o queria. 120

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No intervalo tremia de desejo de tocá-lo, de beijá-lo. Sentia-se queimar por dentro. Quando o público começou a seguir para o salão, ela se levantou tão rápido, que quase derrubou a poltrona. — Preciso de ar. — Eu a acompanho — Bram se prontificou. Se ele a tocasse, ela seria capaz de explodir em chamas. — Não. — Sacudiu o irmão. — James, me leve para fora um instante. Atordoado, ele se levantou. Assim que passaram pelas cortinas do camarote, ela esbarrou numa mulher que se apressava em sua direção. — Oh, perdão! — Só um instante, lady Rose. Ela se virou para encarar a mulher. — Nós nos conhecemos? — Acredito que temos que amigo em comum. Lorde Bramwell Johns? Um sino de alarme soou no cérebro de Rose. Bram parecia ter somente um tipo de amiga, e ela também se enquadrava nessa categoria. — Bram está no camarote, se deseja falar com ele — murmurou e puxou o braço do irmão. — Com licença. — Ele é um garoto muito levado, oferecendo-se para uma mulher prometida a outro homem. — Ela deu uma risadinha. — Mas é verdade, ele gosta de mulheres comprometidas. A cortina se afastou e Bram apareceu, os olhos negros frios como pedra. — Miranda. Uma palavrinha, por favor. — Gesticulou para que ela o acompanhasse. — Oh, não posso, Bram. Estou com amigos. — Fitou Rose de novo que estava dividida entre fugir e ficar ali, movida pela curiosidade. — Lorde Ackley está no interior e me deixou só em Londres. Bram estava muito interessado em saber disso, entende? — Rosamund, vá — Bram murmurou, dando um passo na direção de Miranda. — Se deseja causar um escândalo, minha cara, vamos fazê-lo onde todos podem apreciar. Onde disse que Ackley estava? No interior? Então não quis arriscar colocá-lo em meu encalço. Isso porque sabe que se forçar uma luta, acabará viúva e todo o dinheiro e propriedades serão entregues ao seu cunhado, não? Lady Ackley respirou tão fundo, que quase rasgou o corpete justo do vestido. — Não quero forçar uma luta, meu amor. Só quero que saiba que eu sei tudinho. Levantou a mão, como se a oferecesse para um beijo. Rose levou um minuto para perceber um anel de rubi grande demais no polegar dela e que esse anel lhe era familiar. 121

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Sufocando sua surpresa, olhou para Bram. Ele estava pálido, os olhos fixos no anel. — Ei, esse não é o anel de que falou antes, Bram? — James comentou, sem notar a tensão no grupo. — O anel de King? — Sendo sua amiga, Bram — Miranda continuou, abaixando a mão —, pensei em elucidar lady Rose quanto às suas outras conhecidas... — Deu nova risadinha. — Que não são poucas. Lorde Cosgrove não perdia tempo em aumentar a aposta. E agora estava atrás de Bram, porque, obviamente, Miranda Ackley não estava interessada nela a não ser para conseguir a atenção de Bram. Respirou fundo e desviou o olhar do anel para Rose. Depois de um instante no qual ela não conseguiu desvendar a expressão dele, Bram se aproximou. — Por favor, peça desculpas à sua família por mim — disse num tom sem emoção. — Eu a verei amanhã. — E se afastou. Por um instante Rose não conseguiu acreditar que fora deixada diante daquela mulher. Ele fugiu, exatamente como Cosgrove disse que ele faria. — Não se dê ao trabalho — respondeu, zangada. Os ombros de Bram ficaram tensos, mas ele continuou a andar até desaparecer no meio da multidão. Lady Ackley, parecendo desapontada, lançou um último olhar de desdém para Rose, fungou e se afastou. — Que diabos foi tudo isso? — James perguntou. — Uma briga de amantes? — Bram e... essa mulher são amantes? — ela forçou a pergunta, desistindo de tomar ar e voltar a tempo para o segundo ato. O irmão assentiu. — Acho que todos em Londres sabem, menos lorde Ackley. Bram disse que ela tem curvas nos lugares certos, mas que não sabe se calar. E por que ela disse aquelas coisas? Você não está caída por Bram, está? Afinal, você é noiva. — Não sou, não — replicou, combatendo o repentino desejo de chorar. — Vamos voltar para o camarote antes que Fishton venha atrás de nós. O que ela mais queria era ficar no relativo silêncio do camarote para pensar. Bem quando ela começava a acreditar e confiar em Bram, ele lhe dera as costas. Se não podia contar com a ajuda dele, precisava saber. Imediatamente, a fim de poder salvar a si mesma. Se Cosgrove podia mandar um amante ou um marido traído atrás de Bram, podia mandar bem uma dúzia. Se ele não conseguia enfrentar os próprios demônios, ele também não poderia ajudá-la a enfrentar, ou escapar, dos seus. Na manhã seguinte, enquanto todos tomavam café da manhã, Rose surrupiou a caderneta de endereços da mãe e subiu para o quarto. Uma vez lá dentro, começou a anotar os endereços de todas as amigas e conhecidas da mãe que não costumavam ir à cidade durante a temporada. Claro que não poderia pedir emprego a elas, mas pretendia 122

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escrever solicitando nomes de conhecidos que estivessem precisando de governanta ou dama de companhia em nome de uma fictícia amiga sua. Sentia-se enjoada, e chegara a vomitar uma vez. De nervoso, sem dúvida. Pelo menos tinha uma desculpa para não comer, pensou ao bebericar o chá de menta. Esperança, desespero, medo, raiva... Preferia essa sua nova resolução, ainda que desejasse não ter que recorrer a isso. As promessas de Bram a faziam se sentir especial e protegida. No entanto, a fama de salafrário dele não fora conquistada a toa. Enxugou a lágrima que rolou pela face. Queria que Bram fosse o homem que ela acreditava que ele fosse, não aquele de antes. Porém não podia se dar ao luxo de esperar e ver se ele a visitaria novamente, se continuaria a desempenhar o papel de herói ou se seria o patife que ela detestava antes mesmo de conhecê-lo. Graças aos céus ainda tinha tempo, mesmo sem um aliado. Enxugando outra lágrima, continuou a escrever.

Bram olhou por sobre o ombro para o mordomo. — Há quanto tempo trabalha par mim, Hibble? — Nove anos, senhor. — Nove anos. — Virou a poltrona para encarar o criado. — Poderia me dizer no que sou bom? O mordomo empalideceu: — Preciso lustrar a prataria, milorde. — Ora, não seja covarde. Em todo esse tempo, deve ter observado alguma coisa. Em quais atividades me considera proficiente. Quais as minhas habilidades? — Eu prefiro me abster de opinar, senhor. Com um suspiro, Bram pegou uma nota de dez libras do bolso. — Não será despedido, prometo. E se aparecer com alguma boa idéia, isto é seu. — O senhor cavalga bem — Hibble respondeu depois de um minuto. — O que mais? — Acredito que suas habilidades como apostador sejam lendárias. — Correto. E?... — As damas, milorde. O senhor é muito popular entre as damas. Hum. Ele esperava alguma revelação, algo que nem ele percebesse. Matemática, Ciência ou algo assim. — Mais alguma coisa, Hibble? 123

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— Sua letra cursiva é muito bonita. Já ouvi diversos elogios a respeito disso. Ah, acredito que seja bom atirador, saiba conduzir bem os cavalos. E suas roupas estão sempre impec... — Isso é tudo, Hibble. — Entregou a nota. O mordomo a guardou no bolso. — Obrigado, milorde. Espero ter ajudado. — De maneira alguma. — Eu... — Diga o nome de um cavalheiro. Alguém com astúcia e refinamento, um cavalheiro no caráter e nas maneiras. Respeitável e respeitoso. — Seu irmão, milorde — Hibble respondeu de pronto. — Embora ofendido por não ter dito meu nome, você tem razão. Peça para que selem Titã. Com um suspiro de alívio, Hibble se afastou. Bram continuou mexendo no café da manhã sem comer. Precisava de conselhos. Poucas semanas atrás, se alguma de suas amantes o tivesse abordado com ameaças, veladas ou diretas, como Miranda fizera na noite anterior, ele teria providenciado toda a atenção que ela merecia. Teria sido rude e brutal, sem considerar as conseqüências para a mulher em questão ou para si próprio. Na noite anterior, ele fugira. Mantivera-se por perto só para se certificar que com sua partida, Miranda também se afastaria. Cosgrove encontrara um modo de afetá-lo: ameaçando social ou fisicamente não a ele, mas àqueles de quem gostava. Qualquer um poderia ser o próximo. Phin, Sullivan ou as esposas. William, já estava confinado a uma cadeira de rodas, ou Beth, a moça ingênua que sempre se mostrara encantada por ele. Cosgrove seria capaz de destruí-la. E lá estava ele, proficiente numa coisa somente: escândalo. Estava claro que precisava mudar de vida. Tornar-se um homem melhor. Não só pelo bem de Rosamund, mas pelo seu. Bastou que ele conhecesse uma boa moça com problemas para perceber isso. Finalmente. Só esperava que não fosse tarde demais. Faltavam onze dias e oito mil libras para evitar um desastre, e ele se via disposto a fazer tudo para protegê-la. Mesmo pedir conselhos a um irmão que se cansara de oferecê-los. Mais tarde ao entrar no escritório do irmão, perguntou: — Você dispõe de um minuto? August o fitou. — O que fez desta vez e para quem? — Poupe-me. Sabe que não gosto de adiantar as fofocas. Estraga a surpresa. — O que quer, então? Uma recepção mais calorosa teria sido melhor, mas por certo August já tivera a mão mordida vezes sem conta para se arriscar novamente. Bram não podia culpá-lo pelo seu ceticismo. Quanto a ele, não fazia idéia do que pedir. 124

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— Pensei que poderíamos conversar — disse, aproximando-se da janela. — Sobre o quê? — Não sei — Bram respondeu, sentindo-se no limite do controle de seus nervos. — Sirva-me um uísque, então, por favor. — Não é um pouco cedo para isso? August se levantou. — Sim, mas você está aqui e não sabe sobre o que quer falar. Vou acabar bebendo, por isso, por que não começar logo? Isso fazia sentido. Bram pegou a garrafa e serviu dois copos. Quando se virou, August observava suas calças. — O que foi? — reagiu. — São, azuis. Isso não é crime. — Não o vejo vestir nada que não seja preto desde que tirou o uniforme. — Talvez eu esteja tentando ser um novo homem. O irmão respirou fundo. — Como vai o marquês de Cosgrove? — Por que está me perguntando isso? Você detesta Cos... Ah! Está perguntando porque presenciou minha discussão com ele na outra noite. Não faça rodeios... Se quer saber alguma coisa, pergunte. — Sua conversa com ele não me pareceu amigável. Ele não é o tipo de homem que aceita provocação. — Não preciso que me diga isso — Bram bufou. — Rompeu com ele, então? — Sim. Não quero mais saber dele, a não ser, claro, para me precaver a fim de que ele se afaste de mim e de meus amigos. Como viu, não nos separamos de modo amigável. — Isso está relacionado com lady Rosamund? Estou ciente do acordo entre ele e os Davies. Claro que sabia, Levonzy teria lhe contado... Bram deixou de lado seu aborrecimento com isso. — Ela foi posta numa posição insustentável e estou tentando ajudá-la. O que fez com que eu me opusesse a King. — Deu de ombros. — Se sua próxima pergunta é se vou voltar para o lado dele caso me canse desse jogo, a resposta é não. — E por que isso? — Pelo amor de Deus, August! Se vai continuar a me atormentar com as mesmas perguntas, acho que vou sair daqui. — Só estou tentando decifrar por que veio para cá se não tem nada para dizer. Era uma declaração justa. E não tinha tanto tempo disponível para decidir quanto seu orgulho lhe permitiria revelar. Fechou os olhos por um instante e começou a falar devagar: 125

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— Descobri que... que venho cometendo uma sucessão de erros. — Continue. — Isso não basta? — Bram olhou para August por sobre o ombro. — Você decide. Esta visita é sua. — Inferno! Está bem. Fiz certas coisas com o intuito exclusivo de provocar o duque. Mas repetir as mesmas coisas era enfadonho, então me aprimorei. — Respirou fundo, tentando solucionar essa equação na mente antes mesmo de falar. — A questão é que me desviei tanto do caminho que não sei como voltar para a estrada certa. Se é que quero voltar. — Sente-se, Bram. Bram se virou. — Ah, tem todas as soluções e quer minha total atenção antes de me curar. — Andou até a poltrona diante do irmão onde se largou. — Por favor, continue. — Durante anos — August girava o uísque no copo lentamente — pensei em você como sendo Hal. — Hal — Bram repetiu. — Pensou que mamãe e o duque escolheram o nome errado para mim. Bem, por mais que isso seja... revelador, acho melhor ir embora. — Hal, de Henrique V. — Quando Bram fez menção de interrompê-lo, August lhe apontou o dedo. — Hal antes da coroação. Quando seu melhor amigo e confidente era Falstaff. — Cosgrove. — Exato. Na verdade não era uma má analogia, pelo menos na superfície. Falstaff, de acordo com Shakespeare, era um camarada mais velho que corrompera o jovem príncipe, levando-a a se comportar muito aquém do o que recomendado. E quando Hal se opusera ao seu antigo mentor, saíra-se um rei mais sábio por causa das experiências vividas ao lado de Falstaff. — Com exceção de que você é o próximo rei, ou duque, ou qualquer título que queira usar — Bram argumentou depois de um instante. — Sou o segundo reserva agora que você tem Oscar. — Estou falando de caráter, não de herança. — O verdadeiro caráter de Cosgrove nunca foi um segredo. Eu sabia onde estava me metendo. — Tomou metade da bebida com uma carranca. — Tampouco fui ludibriado. Eu o procurei, na verdade. Não, rejeito sua hipótese. August chegou a gargalhar. — Não é uma hipótese. Só contei como eu o enxergava. — Isso não ajuda em nada. — Que tal isso? — O irmão apoiou os cotovelos nos joelhos. — Você é um dos 126

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homens mais brilhantes que já conheci. Assustadoramente brilhante. Só você pode saber o que precisa fazer para ser quem quer ser. Faça isso. Eu por certo não posso. — Bebeu todo o uísque. — Mas o que quer que pense de minha analogia, meus mais profundos desejos são de que você afaste Hal de Falstaff e se torne Henrique. Deixando o copo de lado, Bram se levantou. — Você é um tolo sentimental, August. — Sou um tolo esperançoso. E foi você quem veio me procurar, não o contrário. No meio do cômodo, Bram parou. Não importavam as conclusões do irmão, sabia que precisava de uma coisa. — Poderia me emprestar oito mil libras? — Não posso. Estreitando o olhar, Bram se virou. — Não pode ou não quer? — Não posso. Tenho ordens expressas. Se viesse me procurar pedindo dinheiro eu teria de mandá-lo procurar papai. Praguejando, Bram se virou na direção da porta de novo. — Posso ser o jovem Hal, mas pelo menos não sou um cachorrinho no capacho do duque. — Antes que insulte de novo a vida que escolhi — August se levantou —, olhe para a sua. Se quer oito mil libras, peça a papai. Bram o saudou com dois dedos na testa e saiu. Hal, Falstaff, a esperança e a maldita bolsa de moedas do duque, tudo isso era um monte de asneiras. Sim, queria mudar, mas não poderia se livrar de Cosgrove até que Rose estivesse livre. Não seria capaz de abandoná-la. Queria vê-la. Imediatamente. E com tal necessidade que o assustava. Era bem possível que estivesse perdendo a cabeça, pois só perto de Rosamund parecia um ser racional. Só a voz dela o enchia de nobres sentimentos que previamente o fariam vomitar na sarjeta. Ele vagara de pecado em pecado até que ela o deteve. O que quer que ela tivesse lhe feito, ele gostava dos resultados. E ansiava por ela. Tanto que nem olhara para outra mulher desde que haviam se conhecido. Mesmo as farpas de Miranda na noite anterior o aborreceram somente por também atingirem Rosamund. Agora a única coisa que queria dela era seu anel de volta. Fora isso, estava absolutamente obcecado por Rosamund Davies. Sabia, porém, que ela estava brava. Ouvira seu último comentário antes de se retirar do teatro. Como poderia encontrá-la, então? Sem a ajuda de August, teria de voltar aos clubes à noite, mas isso ainda deixava o começo da noite livre. Ao montar em Titã, parou. Não podia pedir que Lester o acompanhasse, esperando que ela fosse junto. Que sorte, então, que ele conhecia duas damas respeitáveis cujos 127

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maridos lhe deviam diversos favores... Rose não conseguia deixar de pensar em Bram. Sentiu falta de poder conversar com ele depois que ele havia partido na noite anterior. Talvez tivesse sido bom ele ter ido embora daquela maneira, pois de uma coisa ela tinha certeza, o casamento proposto não combinaria com ele. Diante da escolha entre um marido potencial o qual detestava e um pelo qual sentia afeição, mas que certamente lhe partiria o coração, sua alternativa era fugir. Para bem longe dali. Uma batida leve se fez em sua porta. — Quem é? — Elbon, milady. Um mensageiro acabou de chegar e aguarda uma resposta. Ela abriu a porta para pegar o recado. Depois de ler, respondeu: — Por favor, diga a ele que a resposta é sim. Mesmo com tantos problemas, um facho de luz conseguiu atingi-la. Alyse Bromley a convidava para um jantar íntimo e informal. Não era uma fuga total, mas serviria para aquela noite. Rose desceu da carruagem do pai, sendo acompanhada pela sua criada pessoal. Pelas expressões idênticas de seus pais ao sair da Mansão Davies, concluiu que eles perceberam que o pouco controle que tinham sobre suas ações era cada vez menor. Teria de tomar mais cuidado, senão passaria os seus últimos dias de solteira trancada no quarto, com a cadeira prendendo a maçaneta pelo lado de fora. — Rose! — Alyse se adiantou para cumprimentá-la. — Estou tão feliz que tenha vindo. — Obrigada por me convidar. — Rose se adiantou e ofereceu a mão ao visconde Quence. Estaria sempre em débito com Bram por ele ter lhe apresentado pessoas tão queridas, mesmo que o tempo que passassem juntos fosse curto. Eles eram tão diferentes de sua família. Eram amigos que cuidavam uns dos outros, como irmãos de verdade. Só desejava tê-los conhecidos em circunstâncias diversas. Cumprimentou Tibby e Sullivan Waring, depois seu olhar recaiu sobre a figura solitária no fundo da sala que a observava atentamente. Bram. Subitamente agitada, deu um passo para trás. — Isto foi idéia dele? — A hora sim — Alyse disse —, mas não o convite. Talvez fosse demais esperar por um grande gesto da parte dele, algo que demonstrasse que arrependimento por tê-la abandonado no teatro. — Está desapontada pelo fato de eu não ter armado uma emboscada. — Bram deu um passo para frente. — Pensei que estivesse cansada desse tipo de coisa. — Você me deixou com aquela mulher! 128

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— E por isso que está brava... — Talvez vocês prefiram usar a sala de bilhar para continuar essa conversa — lorde Quence sugeriu, enfatizando a palavra conversa. — Vamos para lá, então. — Bram segurou a mão dela. — Bramwell. Ele parou e olhou para o visconde por sobre o ombro. — Entendi o aviso. Saberei me comportar. — Assim espero. — Ele acreditou na sua palavra — Rose observou, um tanto surpresa, conforme era conduzida até a sala de bilhar. Bram fechou a porta antes que a dama de companhia também entrasse. — Quando dou minha palavra, eu a mantenho. — Inclinou a cabeça, fixando o olhar no dela. — Miranda queria me provocar — disse abruptamente. — Eu sabia que ela não sairia a menos que eu o fizesse. — E se ela resolvesse puxar meus cabelos ou me atacar de algum modo? — Eu estava por perto. Só deixei o teatro depois que ela se afastou. Eu não permitiria que nada lhe acontecesse. Ah, como ela queria abraçá-lo e beijá-lo até estarem ambos sem fôlego. Em vez disso, aproximou-se da mesa de bilhar e rolou uma bola. — Você aconteceu comigo. Os pelos da nuca eriçaram quando ele se aproximou por trás. — O que quer dizer com isso? — Quer dizer que prefiro estar entre você e sua amante mais recente quando forem discutir em vez de vê-lo dar as costas, fugindo. — Eu não... — Depositei minha confiança em você. Não deveria ter feito, por isso preciso saber a verdade. — Fiz uma promessa. Dez mil libras ou minha assistência na sua fuga. Como disse um instante atrás, não sou de fazer promessas, mas quando faço, cumpro. — Não sei se posso confiar em você, Bram. Ele a tocou no braço de leve. Um segundo depois deixou a mão cair. — Mas quer acreditar. — Quero saber que posso acreditar. — Virou-se e desejou não tê-lo feito. Ele estava tão sério e seu olhar recaiu na boca sensual. Ah, as coisas que desejava... — Foi amigo daquele monstro. E aquela idiota é o tipo de mulher que prefere. O que o faz prometer esse tipo de coisa para mim? 129

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Bram respirou fundo antes de responder: — Antes de conhecê-la, eu estava perfeitamente contente com a vida confusa que levava. Nunca esperei conhecer uma pessoa que me fizesse reconsiderar as coisas. Ela sentiu as entranhas aquecerem. Como poderia deixar de se sentir lisonjeada quando alguém tão atraente quanto Bram a considerava interessante? Mas isso não o tornava confiável. — E amanhã quando encontrar outra coisa ou pessoa que considere interessante? Não vai... — Não — ele a interrompeu. — Você e eu temos mais coisas em comum do que imagina. E você... Você lidou com a situação com muito mais dignidade e honra do que eu. Sinto como se... — Ele enroscou os dedos nos dela sem nem perceber. — Sinto que você é minha chance. Aquele momento em que lhe é dada uma oportunidade para acertar as coisas. Se não me quiser por perto depois, eu aceitarei. — Bram. — Se ele não parasse de falar, ela o agarraria ali mesmo sem pesar as conseqüências. — O que estou tentando dizer... É que estou tentando mudar. Por você. Por mim. E, sim, estou pedindo que confie em mim, que me dê uma chance de provar o meu valor, Rosamund. Por favor. Ela tinha a distinta impressão que ele não costumava suplicar com freqüência. Mas tinha menos de duas semanas, e não sabia se podia confiar seu futuro nas mãos dele. Abaixou o olhar, a mente seguindo milhares de diferentes direções. — Está vestindo preto de novo. Um leve sorriso se fez nos lábios dele. — Estou de luto pela minha vida anterior. — Quero ter certeza de que não voltará para ela. — Como posso fazer isso? Eu te amo, Rosamund. As palavras a atingiram como um golpe físico. O coração literalmente parou de bater. Bram Johns, o homem mais selvagem e amante mais procurado de Londres, a amava. — É tudo o que posso lhe oferecer no momento — ele continuou —, mas se permitir, eu concertarei tudo. Prometo. Devagar e meio que hipnotizada, Rose assentiu. — Vou confiar em você — sussurrou. Soltando o ar, Bram fechou os olhos. Rose se levantou na ponta dos pés e o beijou nos lábios. De pronto, ele a enlaçou, retribuindo o beijo e aprofundando-o. Trêmula, ela desejou entrar na pele dele, deixando-se levar pelos sentimentos de alegria e desejo que ele provocava. Mas não ousava. Ainda não. Aquela era a única chance deles. Estavam prestes a 130

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enfrentar Cosgrove. Se ele falhasse, era inteiramente possível que nenhum deles vivesse para lamentar o fato. As mulheres pediram licença e saíram da mesa. Bram lançou um olhar pesaroso na direção de Rose. Estava se tornando um sentimental. Apaixonar-se era algo poderoso e, ao mesmo tempo, aterrador. Como o modo como passara a última década, a aprovação de alguém pelos seus atos e comportamentos, atuais ou passados, não deveria significar nada. Mas no que dizia respeito a ela, não era bem assim. Rosamund não zombara quando ele oferecera ajuda. Tampouco se lançara aos seus pés implorando ajuda. Ela era mais ajuizada e circunspecta do que ele. Amor. Nunca antes ele pronunciara essa palavra se não fosse para desdenhar poesias ou para zombar das pessoas. Não era nada do que imaginava. E ele havia confessado seu amor, sem pensar no que ele desejava ou precisava. Estava absoluta e completamente preocupado com o bem-estar, felicidade e segurança de Rosamund Davies. Zombara muito de Phin e de Sullivan, falando em castração e domesticação, mas não se sentia fraco. Muito pelo contrário. E tudo isso sem que ela dissesse que sentia o mesmo. Sentiu uma fisgada de dor no peito. A ausência de resposta não era culpa dela. Ele quase não era um ser humano... Um desastre de bebedeira, fornicação e jogatina. Mas ela também não lhe dera as costas. Ao contrário, concordara em lhe dar uma chance de salvála e, com isso, salvar a si mesmo. — Obrigado, Bram — Quence agradeceu, depois que as moças se retiraram. — Não acredito que Beth tivesse dado ouvidos a ninguém senão você — disse referindo-se ao fato de que Cosgrove abordara Beth, e Bram lhe explicara que já não eram amigos por conta do caráter pouco confiável do marquês. Bram sorveu um gole de vinho do Porto. — Foi culpa minha. — A raiva, que sentiu com a confissão de Beth se espalhando pelas pontas dos dedos. — Seria melhor vocês se afastarem de mim. Isso foi só um aviso da parte de Cosgrove. — Devastador — Phin observou, sério. — Sugiro matarmos o bastardo. — Sullivan voltou a se servir de vinho. — Finalmente uma sugestão a contento. — Bram se levantou. Não havia nada de errado com jogos, desde que seus amigos não estivessem envolvidos. Ele mesmo faria aquilo. Por fim, Rose estaria livre, já que não poderia se casar com um cadáver. — Sente-se — o visconde ordenou. — Não vão planejar um assassinato na minha casa. — Vamos lá para fora — Phin redarguiu. — Sabe que poderia ter sido pior do que um beijo. — Vocês vão se afastar desse assunto. — Bram balançou a cabeça. — O assunto dele 131

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é comigo. Depois que ele enviou Miranda como isca ontem, eu deveria... — Ele o quê? Phin e seus detalhes... — Desfrutei da companhia de Miranda porque ela não exigia muito de minha inteligência. Infelizmente, ela não fica mais astuta em minha ausência. Cosgrove se aproveitou da estupidez dela para me afrontar, fazendo-a usar meu anel de rubi. — Ela é casada, Bram. — Não sou santo, William. — Ele respirou fundo. — Se isso melhora um pouco a situação, eu me afastei dela há semanas. O que provavelmente deixou o caminho aberto para Cosgrove. Mas ainda assim a situação me diz respeito. — E a lady Rose. — Ela é a única inocente nessa história. — Bram encarou Sullivan. — Aparte Beth. — Uma inocente a quem pediu em casamento. — O quê? — Eram poucas as vezes em que Phin era pego desprevenido. — Acho que minha cabeça vai explodir. — Alyse não lhe contou? — Sully perguntou. — Depois que contei a Tibby e a reanimei com sais, ela e Alyse ficaram empolgadas. — Pode parar de se meter? — Bram resmungou. — Sim, eu a pedi em casamento e ela recusou. Não é uma surpresa já que ela é... — Perfeita, miraculosa, magnífica. — Que ela é boa e não sou. — Bram... — Tenho dez dias para conseguir as dez mil libras de Cosgrove ou para ajudá-la a fugir da cidade. Estou tentando evitar isso, visto que, infelizmente, ela se sente responsável pela família. — E também por ele não suportar a idéia de não poder voltar a vê-la. — Onde vai conseguir esse montante? — Sullivan perguntou. — Tenho quase tudo investido no tropel, mas posso arranjar mil libras. — Nesse curto espaço de tempo, acho que conseguimos lhe dar a mesma quantia — Phin informou, confirmando com o irmão por meio de um olhar. Então eles se ofereciam para ajudar, mesmo quando seu próprio irmão se recusava. — Não. Não posso pegar o dinheiro que vocês precisam para outras coisas. Nem tentem negar. — Bram deu um sorriso fraco. — Acho que todos concordamos que sou proficiente em algumas coisas, no jogo entre outras coisas. Vou conseguir. — Não se quiser ficar com ela. — Bem, o que se há de fazer? Eu me amaldiçoei há anos e por mais que eu queria montar num cavalo branco para salvar a donzela, tudo o que posso fazer é tentar salvá-lo do modo como posso. E esperar não causar mais danos, quem sabe assim ela... Não sei. Só 132

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preciso ajudá-la. — Deus, Bram. Por mais que esteja tornando muito fácil para mim caçoar de você agora, você é astuto. Encontrará um meio. — Todos têm se mostrado tão atenciosos úteis ultimamente... — Se me permitem — William começou a dizer —, não combati os franceses, tampouco cometi heróicos atos suicidas, mas você fez tudo isso, Bram. E não precisa de um cavalo branco. Só faça a coisa certa. Ah, se ao menos fosse fácil assim... — Eu não... — Bram franziu o cenho. — Seja o herói — William o interrompeu. — Um coração fraco nunca conquista a mocinha — Sully disse. — Ataque. — Phin sorriu. — Seu bando de idiotas. Sabem disso, não? — Sim, mas somos leais. — Phin se mostrou sério. — Vá fazer o que sabe fazer, pelo amor de Deus, mas saiba que estamos aqui. Peça o que quiser, que faremos. — Agora vão me fazer chorar. — Tomou o último gole de vinho, e sentindo uma estranha esperança, os saudou. — Providenciem para que ela volte para casa em segurança. — O que vai fazer? — Sully perguntou. — Vou recuperar algo que me pertence e depois vou ver se consigo bancar o herói.

Capítulo III

Apesar de o Gato Negro ter sido criado para irritar o duque, Bram tinha de admitir que já não sentia satisfação ao entrar nas casas das pessoas e retirar objetos do quais não necessitava. Se essa sua relutância estava ligada ao fato de não querer magoar Rose ou se era apenas uma coincidência, pouco se importava. O que importava era que o Gato Negro desapareceria. Em uma semana ou em um mês suas aventuras seriam esquecidas e algum outro assunto tomaria seu lugar nas fofocas da sociedade. Bem, faltava pouco agora. Agachado nas sombras, Bram amarrou a máscara. As últimas luzes finalmente se apagavam na Mansão dos Ackley. Vestindo as luvas, esperou 133

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mais vinte minutos antes de sair do esconderijo e se aproximar da casa. Sentiu o coração bater rápido ao entrar pela janela da sala de almoço, fechando-a atrás de si. Pela primeira vez iria roubar algo que lhe pertencia. Era como se estivesse encerrando um capítulo. E assim poderia colocar um ponto final, sem olhar para trás. Pela primeira vez também, tinha algo no futuro com que se importar. Alguém cujo coração desejava conquistar, assim como ela conquistara o seu. Pelo menos daquela vez conhecia bem a planta da casa, como também sabia onde Miranda guardava seus tesouros. Lorde Ackley estava em Surrey, mas isso não significava que ela estivesse sozinha, o que podia significar mudanças na rotina da casa. Pensando bem, fora um idiota sem fim ao pular de mulher comprometida para mulher comprometida só para não ter de passar a noite em sua própria companhia. Como se isso o fizesse se sentir menos só. Interessante, porém, ter percebido nos últimos tempos que sua companhia já não era tão desagradável quanto se lembrava. Os quartos de Miranda e do marido eram ligados por um quarto de vestir. Movendo-se com cautela, abriu a porta do quarto do lorde. A porta do quarto de vestir estava parcialmente aberta. Espiou e viu que a porta do quarto de Miranda também estava encostada. Parou e apurou os ouvidos. Depois de uns instantes conseguiu ouvir o arfar de Miranda com seu companheiro da noite. Se o visitante fosse Cosgrove, a situação se complicaria. E ao mesmo tempo, era mais satisfatória. Procurando fazer o menor barulho possível, afastou duas caixas de chapéu, encontrando uma terceira por trás. Miranda achava que colocar seus tesouros numa caixa gasta despistaria qualquer um quanto ao seu conteúdo. Um ladrão experiente como ele, porém, saberia que aquele era o primeiro lugar a se procurar, visto que uma mulher vaidosa como lady Ackley jamais manteria uma caixa tão feia a menos que escondesse algo de valor. Inclinando a caixa para iluminar seu interior com o luar que entrava pela janela, viu as coisas que ela não queria que lorde Ackley soubesse da existência: um colar de pérolas, diversas pulseiras e pentes de cabelos, perfume francês... A versão adulta de um baú de tesouros das crianças. E no centro três anéis. Incluindo o seu de rubi. Bram sentiu a mão tremer um instante. Por treze anos ele o vira na mão de Cosgrove, um perpétuo castigo merecido. E agora era seu novamente. — Não pode perambular pela casa só de calça — Miranda disse. — Ackley tem um roupão que fica sempre ao pé da cama. Movendo-se devagar, Bram fechou a caixa e saiu do quarto de vestir. Colocando o anel no bolso, apressou-se para fora da suíte principal e seguiu pelo corredor. Pouco se importava se Miranda soubesse o que acontecera com a caixa inteira. Ficava satisfeito em poder contribuir com a caixa de coletas da igreja St. Michael. Se não fosse pelo pequeno espetáculo no teatro, ele poderia deixar de lado aquele assalto, mas quaisquer sentimentos beneméritos que sentisse por ela haviam sumido no 134

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instante em que ela insultara Rose. Agora Miranda teria de reiniciar sua coleção, sem a sua ajuda dessa vez. Com um sorriso, voltou à sala de almoço e saiu pela janela. Pronto. Ultima passada na igreja e o Gato Negro finalmente se aposentaria. Com alguma sorte, um novo herói logo tomaria seu lugar. O marquês de Cosgrove recuou da porta da sala de almoço. Se não estivesse esperando que Bram tentasse recuperar o anel, talvez não tivesse notado as duas caixas de chapéu fora do lugar. O que não antecipara foi ver lorde Bramwell Johns usando uma máscara negra, ainda mais com boatos sobre o Gato Negro correndo por todos os lugares. Aquilo levantava uma série de interessantes possibilidades... Vestindo a camisa que trazia na mão, caminhou pela casa e saiu por trás, onde seu cavalo esperava. Sem se importar com o frio da noite, seguiu na direção tomada por Bram. Depois de segui-lo pelas ruas de Mayfair até Knightsbridge, viu quando Bram parou perto de uma igrejinha e desmontou, levando a caixa que antes estava amarrada à sela. O camarada era ousado... Arriscar-se a entrar numa igreja depois de tudo o que fizera no passado. Seguiu-o e viu quando ele depositou a caixa no banco da frente, depois foi até a porta atrás do altar e bateu três vezes. Esperou e bateu mais duas vezes antes de sair novamente. Lentamente, Cosgrove voltou para a própria montaria. Aquelas batidas eram algum tipo de sinal. Um utilizado previamente. Bramwell Lowry Johns, segundo filho do duque de Levonzy, era o Gato Negro. Em retrospecto, tudo fazia sentido... Pela manhã ele retornaria àquele santuário de orações e faria com que o padre confirmasse suas suspeitas. Uma doação generosa, ou melhor, ameaças o convenceriam a colaborar. King acreditava em manipular a própria sorte, mas nada além da providência divina explicaria aquilo. Claro que queria ver Bram morto, mas jamais imaginara que poderia usar os meios legais da Inglaterra para conseguir isso. E só para tornar as coisas mais interessantes, informaria sua futura noiva que haveria uma ligeira mudança de planos.

— Tem certeza de que prefere caminhar? — Rosamund segurou o braço de Tibby depois de descerem da caleche de lorde Quence. — Ah, sim. Sinto-me desconfortável nas carruagens, por causa dos buracos das ruas e não agüento mais ficar sentada. — Também não tenho feito outra coisa senão ficar sentada com nada além da minha mente perturbada como companhia. — Obrigada por me acompanhar — Tibby disse. — Beth insistiu que Alyse a acompanhasse nas compras, e compras com Beth eqüivalem a uma maratona. Rose riu. Também se sentira nauseada no caminho até o parque, mas começava a se sentir melhor caminhando. Mas quando voltava a pensar em Bram, o farfalhar retornava. 135

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Ele a amava. Mesmo que se por azar ela não conseguisse se livrar de Cosgrove, Bram a amava... — Por que está sorrindo? — Tibby perguntou, puxando o braço dela. — Não sei. Não tenho muitos motivos para rir hoje em dia, mas a manhã está tão linda. — Está mesmo e Bram é um homem muito charmoso. Rose corou. — Não tentava me acautelar contra ele há poucos dias? — Eu estaria em falta se não o fizesse, mas tenho de lhe dizer algo mais. Nunca o vi agir como faz ao seu redor antes. — Isso é bom? — Rose sentiu o coração dar um pulo. — Sim, acho que sim. E eu detestaria ser a pessoa a atravessar o caminho dele. — É mesmo? Um gelo desceu pela coluna de Rose ao ouvir a voz atrás delas. Não sabia o que a assustava mais: o fato de Cosgrove estar ali ou de ele ser capaz de encontrá-la onde estivesse. — Continue andando, Tibby — sussurrou. — Desaconselho isso, pois detestaria ver a sra. Waring tropeçar no estado em que se encontra. Soltando o braço de Tibby, Rose se virou para encarar o marquês, colocando-se entre os dois. — O que quer? — Duvido que queira que eu diga em público o que quero de você. — Se está aqui para mais ameaças ou insinuações, sugiro que as escreva e as envie para mim mais tarde, para que possamos continuar nosso passeio. — Ora, ora, estamos cheios de coragem hoje, não? Fico feliz com isso, pois trago novidades. Esplêndidas para mim. Cosgrove deu um passo à frente e Rose não recuou. Só quem estivesse muito perto veria que aquilo não era interesse do marquês por ela, mas que havia tensão entre eles. — Se não vai embora, diga a que veio e nos deixe em paz. — Cuidado, querida, ou vou começar a achar que não gosta de mim. E com o anúncio de nosso noivado pronto para o Times publicar no sábado, não podemos permitir que... — Sábado? — Foi como se o ar tivesse saído de seu corpo. — Mas isso é daqui a quatro dias. Você disse que... — Sim, concordei em fazer o anúncio somente no fim do mês, mas como não tem se mostrado muito cooperativa... Eu poderia anunciar o noivado amanhã.

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— Por que não o faz, então? — Porque metade da diversão está na antecipação. Quis que você e Bramwell tivessem alguns dias para pensar no desenrolar dos eventos. Conseguiria sair da cidade em quatro dias? Teria de partir sem nada, só com as roupas do corpo. E nem sabia para onde ir. Não teria como falar com Bram, nem como beijá-lo ou... Tibby a segurou pelo ombro e ela despertou de suas reflexões. — Você disse desenrolar dos eventos. O que mais aprontou? — Está ficando cada dia mais esperta, não? Muito bem, mandei um de meus homens até Canterbury e ele regressou ontem com uma licença especial. Podemos nos casar amanhã! Ou até hoje se eu quisesse. Ao longe os sinos de uma igreja pareciam zombar dos sentimentos dela. — Não vou me casar com você. — Nem mesmo para preservar a reputação de sua família? — Não me deu nenhuma garantia de que os deixará em paz mesmo que eu me case. O marquês a encarou. — Tão inteligente... Há mais uma coisa a considerar, porém. Ela se recusava a perguntar o que era. — Eu deveria manter segredo, mas detesto quando meus amigos não têm todos os fatos a fim de chegar a uma decisão bem informada. — Não importa o que tem a dizer. Eu não me casarei. — Tenho provas de que lorde Bramwell Johns seja o Gato Negro. Rose estava pronta para argumentar que ele parecia desesperado para inventar tal mentira, quando o arfar de Tibby a deteve. Não por surpresa, mas por horror. Não podia ser... Estava começando a decifrá-lo... Aquilo era demais. — Se não concordar com o noivado em quatro dias e se casar comigo no quinto, eu farei com que ele seja preso. Depois usarei de toda a minha influência para que ele seja enforcado. — Segurou-a pelo queixo. — Entendeu bem? Ela se afastou. — Está errado a respeito de Bram. — Não me zangue, querida, ou se casará comigo e mesmo assim acabo com ele. — Curvou-se ao se despedir. — Passem bem, senhoras. Rose acompanhou com o olhar conforme ele se distanciava. Em poucas sentenças ele cortara seus dias de liberdade pela metade, fizera com que ela reconsiderasse seus planos de fuga e anunciara que o homem que ela passava a considerar insubstituível era um notório assaltante. Estava começando a perceber que não havia saída. Tibby a puxou pelo braço. 137

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— Venha, preciso contar a Sullivan o que acabou de acontecer. Rose parou. — Cosgrove estava falando a verdade, não? — Rose, eu... — Você sabia e eu não. — Precisa falar com Bram a esse respeito. Mas venha! Não temos muito tempo. Não, não tinham. Nem ela, nem Bram. E isso significava que era hora de ter algumas respostas do homem que obviamente sabia mais do que revelava. — O que me diz? — Bram perguntou, procurando refrear a impaciência. O sr. Pagey-Wright abaixou a lente de aumento. — É autêntico — sentenciou em tom reverente ao pegar o vaso e girá-lo na mão. — Da era helenística. — Foi o que lhe disse. Quanto quer pagar? — Como pode se separar de peça tão extraordinária? — O comerciante olhou para Bram, voltando a atenção para o cetro egípcio. — Quanto mais o elogiar, maior o preço, sabe disso... — Ah, sim, claro. — Ele riu. — Consigo lhe oferecer cinqüenta libras por ele. — Pague cem e o cetro também será seu. — Negócio fechado. — O comerciante estendeu a mão. — Obrigado por me procurar ao decidir vender esses objetos. — Ouvi falar de seu interesse e, francamente, eles só estavam juntando pó. Por ter uma reputação de fazer o que bem quisesse, ele podia vender algumas de suas obras de arte sem levantar suspeitas de que estivesse sem dinheiro. — O dinheiro estará à sua disposição por volta das três da tarde, se você concordar. — Está bem. — Bram puxou o relógio do bolso. — Agora, se me der licença, tenho outro compromisso. Depois que o comerciante se foi, Bram voltou para o escritório. Havia três dias que mal pregava os olhos, mas somando-se esse último negócio, estava perto de ter seis mil libras. Com mais dinheiro, podia apostar mais alto... Arriscado, mas só lhe restavam nove dias. E conhecendo Cosgrove, era perfeitamente provável que ele cobrasse juros sobre a dívida e ele tinha de estar preparado para cobrir isso também. Hibble bateu à porta. — Milorde, o senhor tem visita. Uma mulher. — Quem é? — perguntou sem prestar muita atenção. Poderia vender Titã de volta a Sullivan, mas isso faria com que o amigo ficasse com pouca liquidez. — Ela não informou, milorde. — Não estou. Mande-a embora. 138

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— Sim, senhor. August não se mostrara disposto a emprestar oito mil libras, mas quem sabe não fosse mais maleável com uma quantia menor. Havia um lugar no qual poderia pedir dinheiro, mas não tinha a mínima intenção de ir até lá. Jamais. Já era ruim ter de depender da mesada do duque, quando este não se mostrava inclinado a lhe entregar. Se não fosse por isso, jamais procuraria o velho patife. Maldita família... — Milorde? — O mordomo retornou. — Ela insiste. — Eu também. Não recebo mais nenhuma mulher, Hibble — disse isso com sinceridade. Em algum momento nas últimas semanas tornara-se homem de uma única mulher, mesmo sem que ela o quisesse. — Livre-se dela. — Tentei, senhor, mas ela ameaçou me chutar. — Ainda não sabe o nome dela? — Não. — Bem, como ela se parece? — Comum, ainda mais para seu gosto, senhor. Cabelos avermelhados e até mesmo sardas. Bram se levantou tão rápido que a cadeira caiu para trás. Sem dizer nada passou pelo mordomo e desceu até a sala de estar que estava vazia. Mesmo o vestíbulo se encontrava deserto. — Onde ela está? — Exigiu saber. — Na porta de entrada. Eu não permiti que ela entrasse já que... Bram abriu a porta da frente e se deparou com Rosamund que mordiscava o lábio inferior, parecendo extremamente desconfortável. — Entre. — Olhou para a rua movimentada. Ela se arriscara muito em ir até ali. O que quer que a incomodasse não podia ser nada bom. — Sempre deixa suas visitas na porta da frente? — Ela praticamente jogou o chapéu na direção do atônito Hibble. — Isso é um tanto rude, sabia? — Concordo. — Bram tentava descobrir o que havia deixado Rose tão agitada e brava. — Passei a recusar visitas femininas nos últimos tempos e como não pensei que viesse me procurar, não informei dessa exceção ao meu mordomo. Tirando as luvas, ela continuou pelo corredor. — Onde podemos conversar? Bram indicou a porta mais próxima. — Em meu escritório. Aceita chá ou café? Vinho talvez? — Não vou me demorar. — Ela entrou no escritório. Assim que ele a seguiu, fechou e trancou a porta atrás de si. Já que Rose não parecia preocupada com sua reputação, ele também se concentraria naquela visita e não em suas ramificações. — O que posso... 139

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— Está usando seu anel. Droga! Quando a lógica lhe faltava, ele sempre podia recorrer à bravata. — É meu anel. Rose ergueu a mão, mas antes de conseguir esbofeteá-lo, Bram a deteve, segurandoa pelo pulso. Puxou-a para perto e enfrentou o olhar bravo dela. — Não bata em mim. — Você é o Gato Negro! Como ousa me procurar, dizendo que mudou e que pretende só fazer coisas boas e nesse meio tempo entra nas casas das pessoas e as rouba? — Nunca disse que só faria coisas boas — rebateu ele, soltando-a antes que a braveza dela se transformasse em pânico. Ela já fora ameaçada demais. — Por que o fato de eu ter recuperado meu anel faz com que eu seja o Gato Negro? — Não tente me enganar, Bramwell Lowry Johns! Coloquei minha vida em suas mãos. Fitando-a ele viu além de raiva, profunda preocupação. E dor. Dor que ele provocara. — Pois bem — disse devagar. — Sim. Sou o Gato Negro. — Por quê? — perguntou, sentindo lágrimas nos olhos. — Não precisa roubar nada de ninguém! Bram franziu o cenho. Abrir mão de uma vida antiga e explicá-la eram duas coisas completamente diversas. — Sente-se. — Não quero me sentar! Quero que me diga... — Farei isso — ele interrompeu. — Mas levará um tempo. Minha estupidez se prolongou por muitos anos. Com suspeita no olhar, ela se acomodou na poltrona mais perto da porta. Por certo para fugir com mais facilidade, caso fosse necessário. Ele aproximou uma poltrona da dela e se sentou também. — Minha história começa lá atrás, então precisará de um pouco de paciência. Rosamund assentiu. — Obrigado. Não estou acostumado a me confessar. — Fez uma pausa. — Quando completei dezesseis anos, fiz algo que desagradou o duque. Não me recordo com precisão, pode ter sido uma briga na escola. De qualquer modo minha conduta o envergonhou e ele me chamou a Londres para elucidar exatamente qual era minha posição na família. Só nasci porque ele precisava de um segundo filho para o caso de algo acontecer com o herdeiro. — Sinto muito, Bram, mas isso não é novidade alguma. — Sei disso — ele rebateu, tentando conter os ânimos. — Sei desde que nasci, mas 140

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August tinha acabado de se casar e eu nunca fui de seguir regras. Uma "pessoa difícil" era como o oitavo tutor me descreveu. Foi o modo como o duque disse... Que uma vez que August tivesse um herdeiro, eu passaria a ser totalmente inútil, contrapondo o estado de quase absoluta inutilidade por mim conquistado. A analogia que ele fez foi a de que eu era um par de botas velhas e feias que ele detestava, mas que mantinha debaixo da cama para o caso de as botas preferidas se estragarem além de qualquer reparo. — Isso não foi muito gentil — disse ela, mais calma. — Foi o que pensei. Minha reação foi a de me tornar o par de botas mais horrendo e espinhento que o incomodaria durante a noite, impedindo-o de dormir, não importando o quanto ele quisesse ignorá-las. Dois dias depois abordei Kingston Gore e lhe contei exatamente isso. Ele concordou em ser meu mentor. — Ele aceitou isso mesmo você tendo somente dezesseis anos? — De boa vontade. Cimentei meu caminho com todos os pecados capitais. — Deu de ombros. — Consegui a atenção do duque, o que imagino tenha sido meu intento. Levonzy começou as ameaças de me deserdar ou de mandar para o Exército. Ele conseguiu essa última coisa. Levando-se em conta que meu bom amigo se juntou a mim para evitar que eu estourasse os miolos e que nós dois conhecemos Phin Bromley lá, imagino que meu curso tenha sido corrigido em parte. — Refere-se a Sullivan Waring? — Sim. — Isso foi há diversos anos. O Gato Negro só começou a atacar há poucos meses. — Persistente, não? — Tenho de ser. — Primeiro preciso que me dê sua palavra, pois o que vou lhe dizer agora precisa ficar entre nós. Faça o que quiser de minha estupidez, mas isto diz respeito aos meus amigos. Ela o analisou um segundo. — Está bem, tem a minha palavra. Quanto aos seus amigos. Como ela era teimosa... — Quando Sullivan voltou da península, descobriu que a pintura da mãe havia sido roubada dele. Com minha ajuda informando quando e onde encontrá-las, ele as recuperou. Você não estava em Londres na época, mas talvez se lembre do caso. Os jornais o chamaram de "o Saqueador de Mayfair". — Deus! Mamãe nos proibiu de vir para a cidade naquele ano por causa dos assaltos. — Bem, ele já não faz mais isso. No ano passado, porém, Phin deixou o Exército para ajudar o irmão. Por motivos que não vou explicar agora ele vagueou por Sussex disfarçado de salteador. 141

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— Seus amigos são... interessantes. — São, sim. De qualquer modo, os atos deles me deram a idéia de entrar nas casas dos amigos do duque para aliviá-los de alguns itens. Depois contei ao duque o que eu andava fazendo. Eis o motivo da minha presente falta de mesada e de minha incapacidade de lhe entregar o dinheiro devido a Cosgrove. — Foi por isso que ele cortou sua mesada? — Ele seria capaz de cortar minha cabeça, se encontrasse um meio de fazer isso sem fazer escândalo. Mas, caso isso importe, parei com os assaltos. Meu último foi na noite passada para recuperar meu anel. Essa foi a última aparição do Gato Negro. — Por que decidiu parar? — Porque encontrei alguém com motivos legítimos para desprezar a família e, no entanto, insiste em lhes ser leal, simplesmente por ser a coisa certa a fazer. Isso me fez perceber que venho sendo um idiota, que me tornei no inútil que me acusavam de ser. Ela enrubesceu e disse: — Acho que vou aceitar um copo de alguma coisa agora. O que prefere, uísque? — É o mais forte. — Sim, isso servirá. Bram se levantou para servir dois copos. — Recomendo que tome de um gole só. Não segure na boca. Ela fez como sugerido e começou a tossir. Bram pegou o copo das mãos dela e tomou o seu. Não seria cortês deixar uma dama beber sozinha. — Deus... do céu... — Ela engasgou. — Você faz parecer mais fácil do que é. — Anos de prática. — Esperou até que ela se recompusesse. — Você me odeia? A pergunta era estúpida, mas não explicava seu imenso alívio quando ela meneou a cabeça. — Se eu fosse homem e mais jovem quando tudo isso aconteceu, não sei se eu teria agido de modo diverso. — Teria sim — ele rebateu. — Você é uma pessoa melhor do que eu. — Tocou no braço dela, depois abaixou a mão. — O que me entregou como sendo o Gato Negro? — Cosgrove. Ele deve tê-lo visto ontem à noite — ela respondeu, empalidecendo. — De outro modo ele não teria esperado para fazer novas ameaças. Bram subitamente se pôs alerta. — Acho que terá de se explicar melhor. Que ameaças novas? — Ele me abordou hoje cedo, enquanto eu caminhava no parque com Tibby. Ele disse ter provas de que você é o Gato Negro e que, se eu tentasse fugir, ele mandaria 142

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prendê-lo. E também já enviou o anúncio do noivado para o Times para ser publicado no sábado. E o casamento se realizará no dia seguinte, pois ele conseguiu uma licença especial de Canterbury. Cosgrove não se esquecia de nenhum detalhe. Bram se levantou num pulo. — Precisa sair de Londres. Agora. — Foi até a porta e chamou o mordomo. — Hibble! Prepare minha carruagem. — Imediatamente, senhor. Rose o observava, dividida entre terror e algo que não sabia definir ao vê-lo se encaminhar para a escrivaninha. — Você é mais alta do que Alyse, mas Beth ou Tibby podem ter algo que lhe sirva até poder estar num lugar seguro. — Pegou a carteira e lhe entregou. — O que é isto? — Quase seis mil libras. Terei mais umas centenas, mas não no momento. Isso deve ajudar até que se acomode. Se for cuidadosa e souber investir, talvez nem precise trabalhar. — E quanto a você? — Cosgrove deve estar mantendo a casa sob vigilância. Ele sabe que você me procuraria. Vou providenciar uma distração enquanto você toma a carruagem até a casa dos Bromley para pegar alguns itens de primeira necessidade e quem sabe uma criada. — Bram, ele vai mandar prendê-lo! Ele a olhou de esguelha antes de se ocupar com algo na escrivaninha. — Se para eu expiar meus erros eu tiver de ser preso, que assim seja. Mas você não tem nada a ver com isso. — Pegou uma pistola. — Sabe como usar isto? — Meu Deus, não! — Vou deixá-la descarregada, então. Peça a Phin ou Sullivan que lhe mostre como atirar, mas procure não se demorar. Não posso garantir uma distração maior do que uma hora. Rose sentiu o coração dar um pulo. — Não vou embora. — Depositou a carteira no tampo da escrivaninha. — Claro que vai. Com essa licença especial ele pode arrastá-la para qualquer igreja e obrigá-la a se casar. Ele não vai tocar em você! — E seu plano é esperar para ser preso enquanto eu fujo? — Ele não teria como me prender se eu não tivesse feito nada de errado. — Não vou. Bram deu a volta na escrivaninha para segurá-la pelo braço. — Você vai. Não seja teimosa por minha causa, Rosamund. Estará melhor longe de 143

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nós dois. — Você não é como ele, Bram. — Não tenha tanta certeza. Agarrando o cabelo dele com a mão livre, ela o trouxe para baixo. — Eu tenho — sussurrou e beijou-o. — Só vou embora se você for comigo. Com a respiração entrecortada, ele a beijou. — Não posso fugir disso, Rosamund. — O beijo seguinte foi mais profundo e excitante. — Se eu fizer isso, nunca mais me erguerei. — Então é melhor pensarmos em outra coisa, porque descobri que estou me afeiçoando a você. — Sentia-se doente só de pensar em deixá-lo para trás. — Quer tenhamos dez ou quatro dias, Bram, fizemos um acordo. Se você fica, eu fico. — Moça teimosa — ele murmurou, sem, no entanto, estar bravo com esse motim. Ainda mais depois de ser beijado até perder a razão. Por fim levantou a cabeça, vendo-a se sentar. — Precisa ir embora. — Sei que sim. Minha família acredita que eu tenha ido visitar minha prima. — Ela suspirou. — Como se Maggie quisesse falar comigo depois de eu estar praticamente noiva do marquês de Cosgrove. — Vou lhe dizer uma coisa... — Bram passou o indicador pelo decote do vestido. — Se voltar a mencionar o nome de Cosgrove... Toda vez que o fizer, eu farei isto. — Devagar ele suspendeu as saias dela e escorregou um dedo para tocá-la intimamente. Rose arfou. — Pare com isso. — Não terminei ainda. Depois disso — ele separou suas dobras com os dedos —, farei isto. — Bram abaixou a cabeça para lambê-la. — Céus... — Ela arqueou as costas, cravando os dedos nos braços da poltrona. Ele riu, o som ecoando pelo corpo dela. Com um miado, ela se desfez em seus braços, retorcendo-se com os carinhos dos dedos e da boca. Como ele conseguia provocar aquilo nela com tanta facilidade? Como o toque de um homem podia levá-la além dos limites outrora conhecidos? Por fim Bram levantou a cabeça para observá-la entre a confusão das saias. Abriu a boca, mas antes que conseguisse dizer qualquer coisa tipicamente charmosa. Rose caiu no chão, abraçou-o pelos ombros e empurrou-o para o tapete. — Bruta — murmurou ele, sorrindo. — Só sei o que quero. — Beijou-o, contorcendo-se ao encontro da ereção que sentia entre as pernas. — É mesmo? — Alguém já lhe disse que você fala demais? 144

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Os olhos negros se iluminaram de contentamento. — Só meus amigos. — Então eu devo ser sua amiga. — Sim, você é, Rosamund. Ainda que eu nunca tenha feito isto com nenhum de meus amigos. — Desabotoando as calças, levantou as saias dela mais uma vez. Lentamente, ela se sentou, acomodando-o em seu íntimo. Então, nenhum de suas amantes fora sua amiga... Arfando, ela se movimentou enquanto ele gemia. Adorava quando ele gemia. Bram a agarrou pelo quadril, fazendo com que ela se movimentasse mais e mais rápido, num frenesi absoluto. Rose deixou-se cair sobre ele, acreditando que o coração fosse explodir. Ele a abraçou. Por um bom tempo ficaram ali deitados, os corações batendo em compasso com o ritmo imposto pelos corpos. — Agora seria melhor eu ir — ela murmurou. — Um dia desses — ele disse quando ela se afastou —, você e eu vamos passar um dia inteiro, não, uma semana inteira, nus juntos. — Uma semana? — ela repetiu, sentando-se na poltrona para ajeitar a roupa, fascinada pela metade dele que se encontrava despida. — Vamos acabar morrendo ao fim desse período. — É desse jeito mesmo que planejo morrer. — Ele sorriu. Pensar numa semana nua junto dele a fazia querer viver, isso sim. Isto porque uma hora, um dia, uma semana na companhia dele era o que ela mais queria. Caso os dois sobrevivessem. — O que vai fazer? — Rose perguntou, quando ele destrancou a porta. — Ainda temos quatro dias. Três se queremos evitar que o anúncio do noivado seja publicado. Tenho algumas idéias, porém vou demorar mais para explicar do que para começar a agir. — Sorriu. — Terá de confiar em mim, Rosamund. — Eu confio, Bram — ela disse, sincera. Ele a beijou na ponta do nariz antes que o mordomo aparecesse. — Obrigado. Agora vá para casa e fique longe dele, não importa a situação. — Bram se tornou mais sério. — Cosgrove pode acreditar que me ensinou tudo o que sei, mas vai descobrir que está errado.

Montado em Titã, Bram observava a casa cinza e branca da esquina. Naquele dia parecia que ele estava participando de uma caça à raposa, indo de um lado para o outro até nem saber mais que direção tomar. No café da manhã estava disposto a vender todas as suas posses para manter Rosamund em Londres. Na hora do almoço, acima de tudo, o que mais desejava era que ela se fosse da cidade, mesmo sabendo que isso o levaria para a 145

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cadeia ou até mesmo para a morte. Além do mais, ela admitira que sentia afeição por ele. Afeição. Como a que se sente por um cachorro ou um cavalo. E nem mesmo isso o fizera dar as costas. Se ela queria ficar, ele tinha a intenção de tornar isso algo seguro. O que o levara a andar diante da Mansão Johns. Nos últimos anos suas visitas à casa tinham sido somente para atender intimações que resultavam em ameaças e desprezo. Tendo duas noites à disposição, ainda era possível obter o resto do montante no jogo. Infelizmente também havia a possibilidade, ainda que remota, que ter uma noite de azar e perder parte do que já acumulara. Montantes maiores resultavam em maiores apostas, portanto, riscos elevados. E o que não podia permitir nesse caso era falhar. Aprumando os ombros, incitou o cavalo a se aproximar do passeio da casa. Manteria a calma, refrearia a língua e conseguiria o que precisava. Era sua única opção. O mordomo abriu a porta. — Lorde Bramwell. — Spake, Sua Graça está? — Acredito que esteja se vestindo para o jantar. Se puder esperar, vou averiguar. Depois de alguns instantes de espera, o duque apareceu no alto da escada. — Não mudei de idéia. Permanecerá sem sua mesada. — Sim, sei disso — Bram respondeu, calmo. — Não é por isso que vim até aqui. — O que é, então? August e eu vamos jantar com os ministros hoje. — Preciso de uma palavra em particular. — Spake podia saber dos segredos do duque, mas ele não confiaria os de Rosamund ao mordomo. — Vamos para a sala de música. — Um nervo saltou no maxilar do duque. Bram subiu as escadas, seguindo-o. Era interessante que o duque tivesse escolhido aquele cômodo, o preferido de sua mãe. O único lugar da casa em que Bram via a presença dela, Victoria Johns, o único raio de sol da Mansão Johns. Não tinha de imaginar se sua vida seria diferente caso ela não tivesse morrido tão precocemente. Sabia que teria sido. Talvez o duque tivesse escolhido o lugar na esperança de que ele se comportasse. Só Bram sabia, no entanto, que isso aconteceria não importando o cenário. O duque se aproximou da janela quando Bram entrou. — Obrigado por me receber. Levonzy pegou o relógio de bolso. — Você tem três minutos. — Vou direto ao ponto. Sabe do acordo entre Cosgrove e Abernathy. Por que ele não lhe pediu as dez mil libras de que precisava? 146

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— Porque teria de me devolver a quantia. Uma troca fazia muito mais sentido. — Mas você teria lhe emprestado caso ele pedisse. — Por que eu faria isso? A filha continuaria a custar e caso viesse a se casar mais tarde, ele ainda teria de providenciar um dote. Um bem substancial, levando-se em conta a idade dela e a aparência comum. O primeiro instinto de Bram era exigir desculpas, pois Rose estava longe de ser comum, mas algo na argumentação do duque chamou a atenção. — Abernathy pediu que lhe emprestasse o dinheiro — disse, a voz mostrando tensão apesar de seus esforços —, e você o convenceu do contrário. O duque deu de ombros. — Como já disse, fazia mais sentido financeiramente entregar a filha e acabar de uma vez com a dívida. — Você condenaria uma boa moça inocente a uma vida com Cosgrove? — Estava claro que ele a queria o bastante a ponto de trocar a dívida por ela. Que propósito melhor ela teria? Aquilo estava ficando pior do que Bram imaginava. Seguiu para a harpa e a dedilhou. Mesmo o som desafinado era belo. — O que preciso fazer para que me empreste dez mil libras? Levonzy bufou. — Seja outra pessoa. — Quem quer que eu seja? — Bram o encarou. — Ah, já é tarde demais para isso, Não me mostrou outra coisa que não desprezo e desrespeito em mais de dez anos. Ela é sua amante? É por isso que quer comprá-la de volta? Diabos, ela não vale tudo isso! Tenho certeza de que seu bom amigo marquês a partilhará com você por um preço bem mais razoável que esse. — Oito mil, então. — Não. — Seis mil. E eu lhe devolvo o dinheiro. Com juros. — Você já deve ter roubado mais do que isso de meus amigos. Use o que roubou para pagar. — Não fiquei com o que roubei. Doei tudo para a igreja. — Então por que... Ah! — O duque se apoiou no parapeito da janela. — Fez tudo aquilo para me aborrecer. Parabéns pelo seu sucesso. Não espere que eu lhe conceda um empréstimo depois do que fez. — Não é para m... A porta se abriu num rompante. — Graças a Deus! — August arfava ao entrar e fechar a porta novamente. — 147

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Nenhuma arma em vista. Bram fez uma carranca. Só o que faltava era o filho dourado para torná-lo ainda pior em comparação. — Isto não lhe diz respeito, August. Já o procurei e você me mandou para cá. Saia. — Ele é meu herdeiro — Levonzy replicou antes que o primogênito pudesse falar. — É bem-vindo em minha casa. Você não é. E seus três minutos se esgotaram. Boa noite, Bramwell. — Ele lhe pediu o dinheiro, então? — o marquês de Haithe se recostou à porta. — Sim, pediu. Consegue imaginar a audácia dele? Como se eu fosse capaz de cortar-lhe a mesada para em seguida entregar tal montante. — Pela última vez, o dinheiro não é para mim! — Bram rugiu, explodindo por fim. — Não? Não é sua intenção que seu amigo consiga o dinheiro de um membro bem quisto pela sociedade só para que possam rir à minha custa? Bram piscou. Era isso o que o duque acreditava? — Minha única intenção é retirar a obrigação de lady Rosamund para com Cosgrove. E você não perderá o dinheiro, pois eu o devolverei. Não é o tipo de coisa que costuma me fazer rir. — Acho que estou senil? — Acho que Bram está dizendo a verdade, pai — August intercedeu de repente. Tanto Bram quanto o duque encararam o marquês. — Está tomando o partido dele? — Só estou dizendo que os motivos dele são genuínos. — Tudo conversa. Dê-me um centésimo de prova de que isso não se trata de uma conspiração, outra manobra para me fazer de tolo ao mesmo tempo em que perco dez mil libras que nunca voltarei a ver. Respirando fundo e rezando para que Deus olhasse por Rose e por ele, Bram tirou o anel de rubi do dedo e deixou no tampo do piano. — Rompi relações com Cosgrove — disse baixo. Talvez um murmúrio surtisse melhor efeito do que um grito. — Permanentemente. Roubei isso, caso esteja se perguntando como o recuperei. E o estou devolvendo. Tenho certeza de que se arrepende de tê-lo dado a mim. — Sim. — Caminhando, o duque pegou o anel e voltou para perto da janela. Examinou-o como que para se certificar de sua autenticidade. — Esse foi meu último assalto. — E por que isso? Ele hesitou. — Avaliei meus atos. E vi que não sabia para onde estava indo.

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— E agora sabe? — Levonzy rebateu com sarcasmo. — Sim. Estou amando alguém. — Pronto, confessara. — De quem é a esposa? — De ninguém ainda, mas em quatro dias ela estará oficialmente noiva de Kingston Gore. — Não vou me deixar envolver em outro esquema só para que possa me envergonhar de novo.. Era o fim, Bram concluiu. Seu comportamento fora execrável por tanto tempo que não havia como se desfazer dos hábitos de patife. Era como se estivessem grudados à pele. — Se me dão licença, então, vou para as mesas. Preciso ganhar mais quatro, não, oito mil para ter uma margem de segurança antes de sexta-feira. — Esse era seu limite. Depois disso não haveria tempo para impedir o anúncio no jornal. — Oito mil? — August repetiu. — Eu lhe empresto. Bram parou sentindo a esperança bater em seu coração. — Você disse que eu teria de procurar Levonzy. — E você o fez. Seus motivos me parecem bons. Venha me procurar pela manhã. Dividido entre o desejo de abraçar o urso que era seu irmão e sair correndo antes que Haithe mudasse de idéia, Bram somente assentiu. — Obrigado, August. De verdade. — De nada. Conseguiria salvá-la. Tinha a oportunidade de se salvar também. Pensando nisso, ele tinha mais uma confissão a fazer. — Precisam saber que Cosgrove acredita que eu seja o Gato Negro. — Cuidaremos disso mais tarde. Levonzy grunhiu. — Eu o deserdarei se emprestar um centavo sequer, August. Nomearei Oscar. O ducado passará por você. — Está em seu direito, suponho. Embora eu duvide que meu filho recuse oito mil libras ao tio. — Então deserdarei todos vocês, seus patifes ingratos! O marquês deu de ombros. — Faça isso e aproveite o fato de ser o último duque de Levonzy, pai, se não consegue abrir o coração o bastante para dar uma última chance a Bram. O duque encarou um e outro. Bram duvidava de que August estivesse de fato disposto a arriscar a herança e os meios para sustentar a família em benefício de seu irmão desajuizado. A questão era se o duque acreditava. — Bah! — O duque fez um gesto de dispensa. — Faça o que bem entender, August. Não vou ajudar esse malandro.

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August assentiu. — Vamos jantar, então. Nos veremos amanhã às dez, Bram. — Estarei lá.

— Nunca teremos tempo para providenciar um vestido de noiva adequado — lady Abernathy disse, aborrecida. — Acho que vai fazer o que bem quer usando um dos vestidos que já vestiu. A idéia de que Rose estaria fazendo o que desejava era ridícula, ainda que se pudesse escolher, era bem isso o que faria... Num mundo perfeito, não se casaria com Cosgrove, tampouco teria de fugir para o interior. Sabia, porém, que seu mundo estava longe da perfeição. O único motivo que a levaria a se casar com Cosgrove era o de proteger Bram. Falara sério ao dizer que não fugiria sem ele, mesmo que os assaltos não lhe dissessem respeito. Ele fora magoado e reagira muito, muito mal. Mas certamente a esperança e a ajuda que ele havia lhe dado superavam alguns roubos sem importância. — Venha, Rose — Beatrice chamou das escadas. — Quando Fiona diz que devemos chegar às sete, sabe que ela quer dizer seis e meia. — Sim, Bea. — Fiona gostava de dar mais importância aos seus jantares do que eles tinham de fato. E, pela primeira vez Rose não mudara os relógios, portanto a mãe estava pronta havia uma hora, enquanto Beatrice ainda trocava chapéus e o irmão cochilava na sala de bilhar. E ela não se sentia nem um pouco culpada. Quando estava a meio caminho da carruagem um movimento no canto da casa chamou sua atenção. Era Bram que gesticulava na direção do jardim. — Volto num segundo — disse, retornando para a casa. — Quero meu outro xale. — Apresse-se, Rose. Não quero chegar atrasada. Ela se apressou pela casa. Algo de errado? Ele fora até ali avisar que ela teria de fugir imediatamente? Ele iria junto? Assim que ela saiu pela cozinha, Bram a segurou pelo braço. Antes que conseguisse sequer respirar, sua boca foi capturada por um beijo delicioso. Rose o segurou pela lapela e enroscou os dedos nos cabelos escuros. Quando foi que beijar Bram se tornara mais importante do que tudo e fazia seu coração flutuar? — Olá... — ele disse entre beijos. — Olá. — Ela não queria perguntar se algo dera errado. — O que o traz aqui? — perguntou em vez disso. — Você. Quero você, Rosamund. Ela estremeceu em antecipação. — Estão à minha espera na carruagem. — Sim, eu vi. — Afastou uma mecha de cabelo dela. — Ainda bem, pois eu estava 150

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prestes a subir e entrar pela janela de novo. Aonde vão? — Uma das amigas de Beatrice está oferecendo um jantar. Ela é terrivelmente pretensiosa, mas insistiu para que eu fosse. Acho que Bea contou que vou me casar com Cosgrove e agora Fiona se sente ameaçada porque fisguei um marquês enquanto ela se casou com um visconde. — Você não vai se casar com um marquês. Ele soou tão... Tão possessivo. Vindo de qualquer outra pessoa ela teria ficado alarmada. — O que aconteceu? — Consegui o dinheiro. O coração dela deixou de bater. — Você tem... Tem o dinheiro? — sussurrou numa voz trêmula. Bram assentiu, sorrindo. Uma expressão singular surgiu no rosto dele, deixando-o ainda mais belo e... fazendo com que seu coração sentisse algo inesperado. — Não agora, caso contrário teria batido à porta de entrada, mas August concordou em me emprestar oito mil libras pela manhã. Com o montante que tenho, será o suficiente para cobrir a dívida e os juros que Cosgrove exigir. — Você tem o dinheiro... — ela disse mais alto dessa vez. Um peso enorme saiu de seus ombros. Puxou-o e beijou-o, repetidamente até se sentir em fogo. Ele a salvara. De súbito percebendo como sua repentina afeição poderia ser interpretada por um patife como ele, ela se afastou. — Não estou beijando você por causa do dinheiro — ela gaguejou, corando. — Quero dizer, estou, mas... Bem, claro que... — Está aliviada — ele a interrompeu, sorrindo. — E feliz. Não há pecado nisso e, francamente, Rosamund, eu adoro beijar você. — Por que gosta de me beijar? — O que disse? — ele perguntou, arqueando uma sobrancelha. Rose hesitou. — Estou muito, muito agradecida e farei de tudo para que recupere o dinheiro, mas... — Tolice — ele interrompeu, o sorriso falseando. — Mas o quê? — Sou alta, Bram. E meus seios são pequenos. Tenho sardas. Não sou uma beldade. Conheceu inúmeras mulheres mais atraentes do que eu. Se sente obrigação de demonstrar afeto, não é preciso. Seja por causa da semelhança de nosso relacionamento familiar, isso não quer dizer que... — Que o quê? — ele interrompeu, com o semblante fechado. — Que tenha de dizer que me ama. Não tenho expectativ... — Já chega. — Bram a segurou pelos ombros, forçando-a a fitá-lo. — Como bem 151

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disse, Rosamund, sou experiente, conheço o mundo e causei muita confusão. Fui para a cama com mais mulheres do que me lembro. Acha que meu coração cede à obrigação ou piedade? Devagar ela balançou a cabeça. — Não, mas... — Você é a mulher mais interessante, bela e generosa que já conheci. Em toda a minha vida. Gosto de conversar com você, e nunca converso com mulheres. Você é... a vela em minha escuridão. E se eu tiver a sorte de conquistar o seu afeto assim como conquistou o meu, eu... — Deixou a frase por terminar. — Por favor, jamais volte a se diminuir em minha presença. — Obrigada, Bram — ela disse com lágrimas nos olhos. — Bem, sou eu quem agradece. E toda essa sinceridade me deixou tonto e, a menos que queira ir para o estábulo para rolarmos nus no feno, sugiro que volte para a sua família. Agora. Ah, mas como ela queria rolar nua no feno com ele... E queria que ele a pedisse em casamento de novo, já que depois daquele pequeno discurso ela passara a acreditar que adoraria passar o resto da vida ao lado dele, sendo ele malandro ou não. Na verdade, gostava de certos aspectos da malandragem dele. Foi só ao se sentar na carruagem junto de sua aborrecida família que algo lhe ocorreu: ele dissera ter conseguido os fundos necessários para ajudá-la, mas não havia dito nada a respeito de como poderia ajudar a si mesmo. Bram saiu bem cedo pela manhã, procurando evitar os caminhos de sempre. Já que Isabel estivera com Rose no último encontro com Cosgrove, Sullivan e Phin já deviam saber das últimas novidades e seguramente estariam planejando algum resgate astuto, um que ele não desejava. Sim, num mundo ideal aquilo tudo terminaria com Cosgrove sofrendo algum tipo de acidente ou simplesmente satisfeito em receber o dinheiro. Bram pediria Rose em casamento, ela aceitaria e o duque permitiria que ele continuasse a usar a Mansão Lowry. Flores e crianças floresceriam, ninguém jamais o confrontaria quanto ao seu passado notório e ele seria um bom camarada para todo o sempre. O problema era que ele estava bem próximo de ser o malandro de sempre. Os amigos tinham desobedecido a lei por motivos que ele considerava dignos. Ele o fizera somente por achar excitante numa vida cada vez mais entediante. O simples fato de ter se apaixonado ao tentar fazer um único ato de bondade não apagava todo o mal de antes. E Rose estivera certa ao chamá-lo de problemático. As dez horas em ponto chegou à Mansão Marsten e August tinha as oito mil libras com ele na escrivaninha. — Como conseguiu isso? — Bram perguntou. — Pensei que receberia um cheque e teria de percorrer os bancos da cidade para compensá-lo. — Tenho meus métodos. Não tão misteriosos ou excitantes quanto os seus, mas os 152

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tenho. — Não vou discuti7los com você tão cedo assim. Bram colocou o dinheiro junto aos seis mil conseguidos anteriormente numa sacola atravessada no peito. Aquela era uma bela fortuna, e ele até se sentia tentado a raptar Rose e cair no mundo. — Quanto a essa história do Gato Negro... Acha que... — Acho que você tem família e uma herança, e que não deveria se preocupar com isso. — Bram, não pode estar falando... — Sou um patife, August, como você bem sabe. Ainda bem que nossas relações não foram as melhores nos últimos anos, portanto nenhum escândalo ou fofoca afetará completamente a sua família. Farei com que isso não aconteça. — Levantou-se, ajeitando a alça da bolsa para amarrá-la firme, depois estendeu a mão. — Obrigado. Devolverei cada centavo nem que seja a última coisa que eu faça. — Sei disso. — August lhe deu a mão. — E se isso vale de alguma coisa, você e papai podem ter suas diferenças, mas não vejo por que nós dois não possamos continuar como nas últimas semanas. Exceto execução ou deportação para a Austrália... Bram assentiu. — Eu gostaria disso. — Tome cuidado. — Nem pensar! Às onze horas estava na Mansão Davies. As batidas do coração se aceleraram, não pela quantia exorbitante que estava prestes a entregar a um homem orgulhoso e um tanto suspeito, mas porque teria a chance de ver Rose de novo. A sua Rose, pelo menos por enquanto. Bateu à porta da frente e aguardou. — Milorde — o mordomo disse num misto de reserva e desdém. Uma habilidade e tanto. — Lorde Abernathy se encontra? — Se puder esperar no vestíbulo, vou verificar. Ah, confinado ao vestíbulo novamente... — O que deseja? — Abernathy perguntou, saindo do escritório, com o mordomo em seus calcanhares. — Somente trocar uma palavra, milorde. — Estou um tanto ocupado esta manhã. Se quiser deixar seu cartão de visitas e voltar amanhã... Bram endireitou os ombros e deu um passo. 153

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— Acredito que queira ouvir o que tenho a lhe dizer. Com uma carranca, o conde abriu passagem para que Bram entrasse no escritório. — Seja rápido, sim? Tenho de ir ao Parlamento. — Por certo. A porta, por favor. Depois que Abernathy a fechou, Bram tirou a bolsa do ombro e despejou seu conteúdo na escrivaninha. — Eis quatorze mil libras. Cosgrove é capaz de pedir doze mil, mas assim, terá meios de cobrir o que quer que ele exija. O conde fitou o dinheiro. — Não estou entendendo. — O que há para entender? Pague Cosgrove e afaste sua família da influência dele. — E ficar devendo para você? Não vejo como isso possa ser melhor. O casamento de Rose liquidará a dívida. Isso — gesticulou para o dinheiro — só fará com devamos para outro demônio. O que aconteceu com o ditado de não se olhar os dentes de um cavalo dado? — Não é um empréstimo, mas sim um presente. — Com que propósito? — Pelo amor de Deus! — Não querendo um convite, já que não esperava receber um, Bram se serviu de uma taça de vinho do Porto. — Considere isto como um modo de eu aliviar minha consciência. De certa forma ajudei seu filho a se desgarrar, portanto sou parcialmente responsável pela dívida dele, — Sim, mas o que espera receber em troca? O mesmo que Cosgrove. Sua filha. — Nada. — Ninguém oferece um presente dessa magnitude sem esperar algo em troca. Ainda mais alguém como você. Bram detestava por todas as cartas na mesa de uma só vez, mas se Abernathy resolvesse que vender Rose era mais fácil do que se envolver com ele, tudo aquilo teria sido em vão. — Muito bem. Tenho um pedido em troca desse presente. — Eu sabia. Seu pai sempre disse que não se pode confiar em você. — Milorde, considerando-se o que estou tentando fazer pelo senhor, eu refrearia a língua em vez de distribuir insultos. — Bram respirou fundo. Brigar com seu potencial futuro sogro não seria muito sábio. — Tudo o que peço é que me dê permissão para cortejar sua filha. — Então o que quer é roubá-la de Cosgrove? Ainda não vejo diferença entre as ofertas de vocês dois.

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— Não estou exigindo que Rosamund se case. Só quero ter a oportunidade de vê-la. O que quer que ela decida no fim, se aceita ou não se casar, o dinheiro será seu. Essa é a diferença. — E se eu negar esse seu pedido? — O dinheiro ainda será seu, contanto que o dê a Cosgrove e retire sua filha das negociações. — Tomou metade do copo. — E se aceitar, não terá de jantar com Cosgrove, ficar ao lado dele nos eventos sociais ou feriados. Não terá de enfrentar a humilhação de vê-lo desfilar com as amantes na frente de sua filha e ninguém saberá que a vendeu para saldar uma dívida de jogo. — Ninguém sabe disso. — Mas saberão se não livrar sua filha dessa confusão. Farei com que saibam. Estou fazendo uma boa ação, mas nunca declarei ser um bom homem. Por fim Abernathy se deixou cair na poltrona, toda a pompa abandonando-o. Era isso, então. Cuidado e preocupação com a filha não o convenciam, mas orgulho e medo de ser envergonhado diante da sociedade sim. Talvez Rosamund tivesse um pai ainda pior do que ele... — Por que você mesmo não entrega o dinheiro a ele? — o conde perguntou, parecendo derrotado. — Não estamos nos falando. E eu não lhe devo dinheiro; o senhor sim. — Pois bem, mas não serei grato pelo que está fazendo, pois sei que tem seus motivos para agir desse modo. — Tudo o que busco é um pouco de salvação. — Bram deixou o copo de lado. — Certifique-se de que Cosgrove retire o anúncio do noivado do jornal. Abernathy não gostou de receber ordens, mas outra olhada no dinheiro sobre a escrivaninha e ele sucumbiu. — Passe bem, milorde. Bram saiu do escritório, fechando a porta atrás de si. Só depois disso fechou os olhos e rezou em agradecimento para quem quer que estivesse ouvindo. Ainda não havia conquistado a bela dama, agora devia oito mil libras para o irmão e se tornara inimigo de um homem muito perigoso. Ainda assim sentia vontade de gritar e dançar. Sentindo os pelos dos braços eriçarem, abriu os olhos e viu Rose no alto das escadas. Ele levou um dedo aos lábios, prevenindo-a da presença do pai no escritório. Não precisavam que Abernathy os ouvisse para ter certeza de que aquilo se tratava de uma conspiração. Com um aceno ela terminou de descer, parando no segundo degrau. O mordomo não parecia estar por perto, por isso Bram a segurou pela nuca e a beijou com tanta suavidade que sentiu a alma flutuar. — Obrigada. — ela o fitou e tocou-o no rosto. 155

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— De nada. — Agora precisamos nos preocupar em salvá-lo. Bram se afastou dela. — Eu cuido disso. — Mas você me ajudou. Quero retribuir. — Você era inocente nisso tudo. — Ele cruzou os braços para não puxá-la ao seu encontro. — Eu não sou. Eu quero... Quero me declarar para você diante de todos, mas preciso pagar pelos meus pecados. E vou fazer isso sem arrastá-la junto. — Existe a possibilidade de Cosgrove estar blefando quanto a ter provas contra você, não? Ele só estava tentando forçar a sua mão... Com um meio sorriso, Bram se ergueu e a beijou de novo. — Está se tornando perita na terminologia do jogo. Sim, ele pode estar blefando. Acho que teremos certeza depois que seu pai aparecer com o dinheiro. — Pelo canto do olho, viu que o mordomo voltava ao posto. — Preciso ir. Ela o segurou pela manga. — Vai à festa dos Clement hoje à noite? Sorrindo, ele retrocedeu para a porta de entrada. — Agora vou.

— Algum sinal dele? — Sullivan perguntou, apeando Aquiles. Phineas meneou a cabeça. — Sabe que ele está se escondendo de propósito. — E infelizmente conhece Londres melhor do que nós dois juntos. — O lugar menos provável para encontrá-lo seria a Mansão Johns — Phineas disse depois de um instante. — Levonzy? Nem que nevasse no inferno. — Sullivan olhou ao redor de novo. — Vamos até lá? — Você vai na frente. Nem sei o maldito endereço... Bram estava sentado sobre um barril atrás do estábulo do duque. Mastigava um pêssego enquanto lia um livro de história romana emprestado da biblioteca do irmão naquela manhã. Custara-lhe cinco libras, mas o cavalariço e os meninos do estábulo haviam prometido não denunciar sua presença para ninguém, quanto menos a Levonzy. E Titã parecia estar apreciando a grama dali... Esconder-se dos amigos não devia ser um ato muito heróico, mas era o melhor que podia fazer para distanciá-los daquela confusão. Incrível como uma única boa ação desequilibrava seu modo de pensar, sua vida... Agora queria que todos estivessem em segurança e felizes... E o melhor modo de conseguir isso era se afastando. — Você me deve uma libra. — A voz de Phineas surgiu no canto do estábulo. 156

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— Bem, ele não está dentro da casa — a voz arrastada de Sullivan replicou —, por isso acho que não ganhou a aposta. Revirando os olhos, Bram fechou o livro. — Vocês dois são mais espertos do que imaginei — resmungou antes de dar mais uma dentada na fruta. — Ôba, me encontraram! Agora dêem o fora. — Fui ver lorde Haithe — Sully continuou, arrastando outro barril para se sentar. — Já deu o dinheiro a Abernathy? — Sim, já entreguei. — E?... — E o quê? Phin se recostou no tronco da árvore mais próxima. — O tempo está ótimo. Lindo dia para o filho do duque ser preso por assalto, não acha, Sullivan? — Não, o vento vem do leste — Sullivan seguiu. — O dia está melhor para fugir para a Escócia até que as coisas fiquem mais calmas. — Hum... Pode ter razão. O que acha, Bram? — Acho que vou à festa dos Clement hoje para dançar com lady Rosamund Davies. Podem sair de férias para onde bem entenderem. — Então não vai nem tentar se safar dessa? — Sully pegou uma pedrinha e a jogou no jardim. — Não ficou com nada do que roubou. Tudo aquilo deve ter servido para causas mais nobres do que se tivessem ficado com seus donos. — Isso não importa. — O que importa? — Phin perguntou, agitado. — O que importa, Phin, é que quero limpar minha ficha. Cansei de bancar o tolo por nenhum motivo. Não quero me livrar disso. Quero enfrentar a situação. Só estou me escondendo para evitar vocês dois e porque quero ver e dançar mais uma vez com Rosamund antes que a polícia me prenda. Pronto. Sou um sentimental agora. Não valho resgate algum. — Claro que se for preso não precisará se arriscar a pedi-la em casamento novamente e ver o pedido recusado uma segunda vez. Uma última dança romântica, um adeus covarde. Bram se levantou. — O que quer que eu faça, Sullivan? Negue tudo o que fiz? Culpe outra pessoa? Só vejo um modo de acertar as contas. — Isso tudo é muito nobre — Sullivan replicou —, mas também deixa Cosgrove livre e sua querida lady Rose desprotegida. — Vocês dois podem cuidar de lady Rose. — Bram se aproximou de Titã e 157

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recolocou as rédeas. — Façam um favor a si mesmos: fiquem em casa hoje. Sullivan e Phineas trocaram um olhar, enquanto Bram saía da propriedade. — Então agora teremos de proteger lady Rose — Sully murmurou. Com um sorriso, Phin balançou a cabeça. — Não foi isso o que ele disse. Ele disse que temos de cuidar dela, o que podemos interpretar como providenciar para que ela seja feliz. — Ah, bem, então é melhor fazermos isso.

Rose ficou com o ar suspenso até o pai e James voltarem para casa com as notas promissórias do irmão. Sua obrigação para com o marquês Cosgrove evaporara como fumaça. Por um bom tempo só ficou sentada no sofá, o alívio tomando conta de seu ser. Tão rápido quanto veio essa alegria, a realidade caiu sobre seus ombros, mas procurou manter a expressão serena para que a família de nada desconfiasse. Naquele momento ninguém mais deveria saber o que ela percebera de manhã: que seu fluxo mensal estava atrasado. Afastou tal pensamento. Ir de uma coisa que não podia controlar para outra era muito para ela. Mais tarde poderia ver se estava equivocada, se aquilo era uma chance de mudar de vida ou de colocar uma pedra sobre seu túmulo. — Tenho de dizer — a mãe comentou ao ver as promissórias queimando na lareira — que apesar de ser maravilhoso vê-la se tornar uma marquesa, Rose, a reputação de lorde Cosgrove deixava muito a desejar. — De fato — o pai concordou. — Há certa loucura no homem. Espero que nossos caminhos não se cruzem mais. — Olhou com propósito para James. — Sim, pai — James concordou, seu comportamento muito pacato, o que não parecia normal. Sentindo problemas no ar, Rose se levantou. — James, pode me ajudar a pegar um livro na biblioteca? Assim que se viram sozinhos, ela o segurou pelo braço. — Conte-me exatamente o que aconteceu. Ele soltou o braço. — Negócios. Não precisa ouvir essas coisas entediantes. — James Elliot Davies, conte-me ag... — Está bem, Rose. King ficou surpreso. Atônito. Como se tivesse sido pego sem calças. Nunca o vi daquele modo antes. Ele não ficou nada feliz. — Mas você conseguiu as promissórias. Ele aceitou o pagamento. James respirou fundo antes de prosseguir: — Ele quis saber mais e papai lhe disse que recebeu os fundos para saldar a dívida com um amigo. Cosgrove perguntou se havia sido Bram. Disse que Bram dera uma boa 158

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cartada, mas que perderia o jogo. Foi tudo muito... estranho. No início achei que era ele quem ficava no alto, segurando-nos como se fôssemos marionetes, mas agora não estou tão certo. Parece que esse é o papel de Bram, mas... Ele não vai se beneficiar em nada por ter nos dado o dinheiro. — Encarou-a. — Não é? — Nem ouse, James. Você provocou tudo isso. Só porque eu e Bram gostamos um do outro não significa que ele não seja altruísta. James deu uma risadinha. — Você acabou de usar "gostar", "Bram" e "altruísta" numa mesma frase. Rose riu a contragosto. — Admito que parece uma combinação esdrúxula. Mas ele também está se arriscando, mais do que você imagina. — Há poucas semanas você queria esmurrá-lo no nariz. — Há poucas semanas eu só conhecia as histórias que você contava a respeito dele. — Com o sorriso desvanecendo, olhou para o irmão. — Mas eu e você recebemos uma segunda chance, James. Diga de verdade: pretende voltar para junto de Cosgrove e perder montantes exorbitantes de dinheiro? Ele balançou a cabeça. — Não. Hoje vi um lado de King que desconhecia... Um que, bem, me provocou repulsa. E também me assustou. — Fez uma careta. — Se Bram não se importar, eu gostaria de ficar com ele um pouco e aprender novos truques. Esplêndido. — Que tipo de truques? De jogo? — Não, bem, talvez um pouco, mas principalmente o modo como ele sabe das coisas e como ele entra num lugar e todos o notam. Só esperava que aquilo não incluísse perder dinheiro. Se James queria imitar alguém, ela preferia que fosse o Bram que ela conhecera nas últimas semanas. Isso se ele tivesse a oportunidade. Sentiu o peito pesado. Se Cosgrove estava tão bravo quanto James dizia, acusações públicas seria a última das preocupações de Bram. Oh, por que não tentara convencê-lo a fugir com ela? Ainda mais agora que a ligação entre eles tornava-se literalmente mais tangível. Ou dentro de oito meses. — Rose? — Sim, o que foi? — Papai disse que Bram tem a intenção de vir vê-la. Não quero ser acusado de colocá-la em nova confusão, portanto, quer que eu peça que ele se afaste? Seria o mesmo que tentar separar uma mariposa da chama. — Não. Isso não é necessário. 159

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— Muito bem. Quer mesmo que eu a ajude a pegar um livro ou posso sair? — Pode ir. — Segurou o braço dele antes que ele se fosse, porém. — Aliás, preciso de um favor. Papai ficou com algum dinheiro depois de pagar Cosgrove? — Cerca de mil e quinhentas libras. Por quê? Rose hesitou. James não era exatamente sua primeira escolha em se tratando de um confidente, mas naquele instante não tinha muitas escolhas. E tecnicamente o dinheiro pertencia a Bram. — Bram e eu talvez precisemos fugir de Londres. — Como disse? — Ah, Deus... — Respirou fundo. — Bram é o Gato Negro, James. Ele não rouba mais, porém Cosgrove sabe e o está ameaçando. — Bram é o Gato Negro? — Sim. Preste atenção. Consegue descobrir onde papai guardou o dinheiro? Se tivermos de fugir, precisamos de dinheiro. — Se ele for acusado por que você tem de fugir? — Porque... Porque como eu disse, estou me afeiçoando a Bram. Demais. — Também gosto dele, mas isso não significa que vou me deixar ser arruinado por algo que ele cometeu. — Ele se envolveu em tudo isso por minha causa. Isso também me torna responsável... O olhar que James lhe lançou parecia indecifrável, mas em seguida ele assentiu. — Papai jamais me diria onde guardou o dinheiro, mas só há três esconderijos possíveis. Ele não tem muita imaginação. Dê-me algumas horas e depois eu lhe digo. — Obrigada, James. — Ele o beijou no rosto. — Não me agradeça ainda — ele resmungou. — Quando papai perceber o que aconteceu, é bem possível que eu tenha de fugir com você. Às oito da noite não havia ainda nenhum sinal de Bram, tampouco nenhuma notícia de que ele tivesse sido preso. Rose se vestiu com esmero, num tom que realçava os cabelos. — Está muito bonita hoje, querida — o pai disse assim que ela desceu. — Obrigada — agradeceu com uma ligeira mesura. — Fique perto se puder — ele continuou. — Pagamos Cosgrove, mas ele pode abordá-la do mesmo modo. Procure ser educada, pois até onde todos sabem, vocês são apenas conhecidos. Não queremos que nada mude essa noção no que se relaciona a nossos amigos. Por um segundo ela chegou a pensar que o pai se preocupasse com ela, mas logo viu que ele só tentava manter as aparências. 160

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— Nunca quis nada com ele e pretendo evitá-lo ao máximo. — Evite o amigo dele também. Não quero que nossa família se veja em meio a um desentendimento entre ele e Bram Johns. Aquilo é um ninho de cobras. A família, ou ela, já estava no meio de tudo aquilo. — Não tem com que se preocupar em relação a Bram, papai. Nós somos amigos. — Diga o que quiser, Rose, mas Bram Johns só é amigo de alguém que possa lhe dar algo. Guarde sua virtude ou ele se aproveitará de você e eu terei de expulsá-la de casa. Rose se sentiu tentada a contar que ele se aproveitara de sua virtude diversas vezes, que ela provavelmente estava grávida e que tudo aquilo havia sido sua idéia. Ainda bem que a mãe e James apareceram antes que ela dissesse algo de que pudesse se arrepender. Suspirou. Tinha pouco respeito pelos pais, mas também era verdade que o que eles tinham feito não era nada além do que as leis e os costumes ditavam. O melhor seria não esperar nada da parte deles. Bram, no entanto, fora além de qualquer regra para ajudá-la. E por isso ele tinha sua lealdade, amizade e respeito. E seu coração. Sim, amava-o. Levou a mão à balaustrada para se equilibrar ao se dar conta disso. — Rose, está se sentindo mal? — James a segurou pelo cotovelo. — Não, não, só senti uma leve vertigem. Como não percebera? Apreciava a companhia dele e certamente adorava a atenção e o toque dele. Mas de algum modo em meio a toda aquela confusão, percebeu que ele se tratava de um homem decente, bom, com moral maculada, mas de certa forma forte e, assim, tornando-se indispensável. — Prefere ficar em casa hoje? — a mãe perguntou. — Não posso dizer que ficarei desapontada se evitarmos encontrar Cosgrove e seus amigos. — Quero ir — disse, rápido. — Todos nós podemos aproveitar a noite para comemorar, não? — Exato — James concordou, conduzindo-a para a porta. Rose mal cabia em si de excitação. Queria vê-lo, saber se ele estava bem. Quanta mudança, deixando de se preocupar com o próprio futuro para se consumir de preocupação com o dele. Além disso, desejava sentir o calor dos olhos negros a fitarem-na com seu modo tão peculiar. A rua diante da Mansão Penn estava tomada de veículos a ponto de terem de estacionar duas quadras antes e caminharem até a porta. Lá dentro, mal havia espaço para se mexerem. Alguns minutos mais tarde, porém, a multidão se dissolveu um pouco e eles puderam subir para o salão de baile principal no segundo andar. Aquele não era o tipo de festa apreciado por Bram, mas ele disse que iria e, por isso, ela o procurava entre tantos rostos. Notou que muitos a fitavam, mas ao ver seu reflexo no espelho, não notou nada de 161

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errado que chamasse a atenção. — Lady Rose. Ela se virou e viu que não era nem Cosgrove, nem Bram. — Sr. Henning, não? O homem rotundo sorriu e a cumprimentou. — Gostaria de saber se posso reservar um lugar em seu cartão de dança. Haverá duas valsas, sabe. Ela nem pegara um cartão de dança, visto que não costumava ser muito requisitada. — A primeira quadrilha está disponível — disse. Já o vira dançar, e uma valsa seria um empreendimento muito arriscado. — Sinto-me honrado. — Mais um sorriso e ele se afastou. — Acho que preciso de um cartão — comentou ela. — Vou pegá-lo. — Ofereceu-se James. Ela não sabia se ele estava tentando fazer as pazes por causa de seu papel em toda aquela confusão ou se ele só estava tentando fugir dos pais, mas quando ele voltou com o cartão e um lápis, ela já tinha três outras danças tomadas. Enquanto escrevia os nomes dos parceiros, percebeu que as pessoas ao seu lado abriam caminho. Como o Mar Vermelho, um espaço se abriu revelando um Adônis vestido de cinza e preto. Ela sentiu o ar fugir ao notar o olhar dele. As pessoas deixavamno passar como se percebessem o perigo de um predador. — Boa noite — ele disse, parando diante dela, segurando ambas as mãos para beijálas. — Bram — ela sussurrou. Queria jogar-se sobre ele para se certificar de que ele era real. — Lorde Bramwell — o pai disse ao seu lado, fazendo-a se sobressaltar. Ela até esqueceu que não estava sozinha. Só depois de um instante Bram soltou as mãos dela. — Abernathy. Espero que seu dia tenha sido produtivo. — Foi. E você agora tem um amigo muito zangado. — Ele não é meu amigo, mas agradeço o aviso. — Bram levantou o cartão de dança dela, e Rose sequer havia percebido que ele tinha tomado. — Henning? — Ele pediu. Aliás, todos estão pedindo. Não sei por quê. Bram a fitou. — Não mesmo, não é? Você é linda, Rosamund. Eles é que demoraram a perceber isso. — Escreveu seu nome e devolveu o cartão. Rose olhou para o cartão e corou. 162

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— Não pode ficar com as duas valsas. — Apenas observe. — A boca se curvou num sorriso de derreter corações. — Não quero vê-la nos braços de outro homem — murmurou. Por mais adorável que aquilo soasse, ela sabia que ele tentava distraí-la de seus apuros. — Você o viu? — Está pensando em outro homem enquanto flerto com você? Isso me magoa. — Fale sério, sim? — Ela se aproximou um passo, alheia ao fato de que as pessoas os observavam. Todos sempre observavam Bram. — James disse que ele praticamente espumava pela boca ao receber o dinheiro. — Então é melhor não perdermos a primeira valsa. — Ele olhou por sobre o ombro. — Seu parceiro da quadrilha está aqui. — Por favor, Bram. Se o vir... — Eu o manterei longe de você. — Não foi o que eu... — Sei o que quis dizer. — Bram a tocou de leve no rosto, sem conseguir se conter. — Não serei nem morto nem arrastado para a prisão antes de dançar com você. — Tornou-se sério e disse: — Prometo. Aquilo soou uma tanto veemente demais, porém se Cosgrove sabia das coisas, saberia que a família Davies estaria naquela festa e que ele também iria para lá. Poderia ter se afastado e evitado Cosgrove, mas isso faria com que Rose tivesse de enfrentá-lo sozinha. Não, assim era melhor. Mais perigoso para ele, porém isso não importava. Mantendo metade de sua atenção em Rose, vasculhou a multidão sem reconhecer Phineas e Sullivan. Estava surpreso que tivessem lhe dado ouvidos, mas também muito aliviado. — Bram? — O que foi, James? — Acho que precisa saber — o visconde Lester disse num tom baixo e circunspecto, nada parecido com ele. — Rose meteu na cabeça que, se os policiais de Bow Street vierem atrás de você, vocês dois vão fugir de Londres. Bram franziu o cenho. — Eu jamais a arrastaria para a ruína — murmurou, ignorando por um segundo o fato de Lester saber a respeito de suas ações nefastas. Se Rose escolhera confiar nele, haveria de ter bons motivos. — O que me incomoda é ela pensar que você a quer com ela. Se tiver levado minha irmã pelas trilhas do jardim por assim dizer, ou pior, quero que saiba que farei de tudo 163

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para mandá-lo para trás das grades. — Eu a quero comigo — Bram resmungou, irritado por ter de ouvir sermões de um fedelho —, mas antes quero que ela fique a salvo. Preciso me livrar desta confusão antes de fazer qualquer outra coisa. — E se você for preso? — Não vou fugir, com ou sem Rosamund. — Ele fez uma carranca. — Não gosto de ter me explicar para você, mas pelo menos começou a cuidar do bem-estar de sua irmã. — Acho que aprendi minha lição. — Ótimo. E eu acho que aprendi a minha. Estou disposto a pagar. A quadrilha chegou ao fim e todos aplaudiram. Bram se aproximou para a primeira valsa. Estava disposto a pagar depois daquela dança. — Vamos? — Ele estendeu a mão. Rose pousou a mão enluvada na dele. Pelo modo como o fitava, ele percebeu que ela começaria um sermão quanto a ser visto em público. Estava mais do que disposto a ouvir, mas havia maneiras mais agradáveis de passarem aqueles poucos minutos juntos. A música começou, ele a segurou pela cintura, enquanto ela o enlaçava pelo ombro. Juntos, deslizaram ao som da valsa. — Evitou os pés de Henning com admirável destreza. — Obrigada. — Ela respirou fundo e disse: — Andei pensando. — Em quê? — Na relativa natureza menor de seus crimes comparada à pena que sofrerá caso o capturem. — Ah. Está pensando em ser minha advogada. — Não brinque, Bram. Acha mesmo que seus erros merecem anos na prisão ou deportação ou a forca? — Faz idéia de quanto desejo beijá-la neste exato instante? — murmurou, trazendoa um pouco mais para junto de si. — Não vai conseguir me distrair. De todas as conversas que poderiam ter, aquela não seria a escolhida por ele. — Quero que perceba uma coisa, Rosamund — disse com suavidade, girando-a no ritmo da música. — Vivi à sombra de um monstro por mais de uma década e, neste último ano, apesar de ter amigos de valor que muito admiro, voltei para ele porque andava entediado. Nem isso me bastou. Por isso comecei a assaltar as casas dos amigos de meu pai. Por mais que eu queira ser o homem que partilhará a vida ao seu lado, não posso fazer isso até... Até acertar as contas pelo patife que venho sendo. — Você não é como Cosgrove. — Sou exatamente como ele. A diferença é que me apaixonei por você. 164

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— Está tão longe de ser como ele que não acredito que seja tão obtuso a ponto de não enxergar isso. — Ou talvez você seja simplesmente boa demais e esteja imaginando coisas. Ela abriu e fechou a boca. — Quantos outros pupilos de Cosgrove completaram com sucesso a educação dele? — perguntou por fim. A pergunta o fez pensar. — Não sei. — Sabe, sim. Você nos contou daquele que se matou. Temos James, que teria se perdido se não fosse por você. Quem mais? — Roger Avelane — respondeu depois de um instante. — E onde ele está? — No cemitério. Ele foi para a cama da esposa do homem errado. Ou levou a culpa disso. — Céus. Só nos resta você, Bram. Você é o único que cruzou o caminho de Cosgrove e resolveu retomar a própria vida. É por isso que ele o odeia tanto. — Bem, falando assim você faz tudo parecer heróico — comentou, tentando brincar com a situação, mesmo tendo se abalado. Nunca antes enxergou sua vida como um triunfo só pelo fato de ter sobrevivido à influência de seu mentor, mesmo depois de romperem relações. — Em uma semana você fará com que eu comece a ajudar os órfãos. — Brinque o quanto quiser, mas você, meu amigo, é um bom homem. Ele riu. A idéia de que aquela mulher pudesse virar sua vida de ponta cabeça com tanta facilidade o entontecia. — Ah, eu gostaria de ser dramático o bastante e pedir que me espere, minha doce Rose, mas nenhum de nós sabe quanto vai durar essa espera. Tudo o que posso pedir é que encontre alguém que a faça feliz. Ela sentiu lágrimas nos olhos. — Você me faz feliz. A música chegou ao fim e, relutante, ele a soltou para aplaudir junto aos demais. Mesmo assim, não conseguia deixar de olhar para ela. Ela o considerava um bom homem. Claro que ela considerava aquilo um elogio, mas agora ele sentia uma necessidade premente de provar que ela estava certa. Deixar sua vida para trás e começar uma nova, sem um rastro de destruição em seu caminho. E se não estivesse contente em deixar sua vida de malandro para trás, ele não hesitaria em esquecer os problemas e fugir com Rosamund Davies para uma vida de luxúria e pecado. Droga... Ser mau tinha seu lado positivo. — É melhor levá-la de volta para os seus pais — murmurou. Ao se virar, parou. O 165

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marquês de Cosgrove acabava de entrar acompanhado por meia dúzia de policiais. Seria aquela noite, então. Diante de todos. — Bram — Rose murmurou, cravando os dedos no braço dele. — Eu lamento — ele sussurrou, soltando o braço dela. — Perdoe-me. — Afastou-se. — Lá está ele! — Cosgrove falou alto, chamando a atenção daqueles que ainda não haviam notado sua entrada. O mais alto dos seis homens se adiantou, com algemas a mostra. — Lorde Bramwell Lowry Johns — ele anunciou —, está preso. Por favor, acompanhe-nos sem fazer alarde. Controlando-se para ficar parado quando seus instintos o mandavam lutar, Bram estendeu as mãos quando o policial gesticulou. — Volte para junto de seus pais, Rosamund — murmurou quando as algemas se fecharam. Ela parecia ter a intenção de ficar ao seu lado, não importando as conseqüências. — Qual é a acusação? — alguém no meio dos convidados perguntou. Alguém com a voz muito parecida com a de Phineas Bromley. — Lorde Bramwell Lowry Johns está sendo acusado de ser o Gato Negro. Agora, por favor, abram passagem para que possamos fazer nosso trabalho. — Isso é impossível — a voz de Sullivan Waring veio do outro lado do salão, como se ele estivesse muito acostumado a participar de eventos sociais. — Eu sou o Gato Negro. — E então o filho ilegítimo de lorde Dunston deu um passo à frente. Bram fez uma careta. Diabos, a esposa de Sully estava grávida! — Deixe estar, Sullivan — ele ordenou. — Desculpem, mas eu sou o Gato Negro. — Phin se pôs diante de todos. — Não sei o que esses camaradas estão falando — August apareceu no meio da pista de dança —, mas certamente o Gato Negro sou eu. — Digam o que quiserem — Cosgrove disse em sua voz mais aveludada —, mas tenho provas. Uma declaração assinada pelo padre da igreja St. Michael na qual ele afirma que Bramwell Johns regularmente entrega objetos roubados para serem distribuídos entre os pobres. Uma risada cínica ecoou à esquerda de Bram. — Bram Johns não passaria pelas portas de uma igreja sem ser atingido por um raio. — O duque de Levonzy se adiantou. — É muito mais provável que eu seja o Gato Negro do que ele. Murmúrios e risadas se espalharam pelo salão. Bram, contudo, não conseguia desviar os olhos do duque. O homem não mentia por ele, mas definitivamente o encobria. Levonzy. Por ele! — Eu sou o Gato Negro! — James Davies apareceu, segurando a mão da irmã, mas 166

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sem tentar afastá-la dali. Abernathy foi para a pista também. — Nós dois somos. Trabalhamos em dupla. Um segundo depois um coro de vozes masculinas surgiu, no qual todos se proclamavam o Gato Negro. Lorde Darshear e o primogênito, o sogro e o cunhado de Sullivan entre eles. O visconde Bromley deslizou a cadeira de rodas. — Parece ter um problema, senhor — disse ao policial —, porque eu sou o ladrão que procuram. — Mas, milorde, o senhor é aleijado. — Mesmo assim, eu sou o Gato Negro. Dadas todas essas confissões, sugiro que leve para a prisão metade da Casa dos Lordes ou solte lorde Bramwell. — Voltou a atenção para Cosgrove. — E você, milorde, é melhor que encontre outro modo de dar vazão ao seu ciúme. Percebendo que estavam em menor número e abaixo em hierarquia, o policial abriu as algemas e deu um passo para trás. — Sinto muito, milorde. Não sabíamos que isto se tratava de uma animosidade pessoal. Bram esfregou os pulsos, só para se certificar de que estava de fato livre. — Não pode ser culpado por fazer seu trabalho, senhor — ele respondeu. — Afinal, eu, assim como qualquer um aqui presente, posso ser o Gato Negro. Quem sabe depois que tantos homens reclamaram sua identidade ele se sinta desencorajado a continuar seus assaltos? Eu diria que o trabalho de vocês hoje foi admirável. O policial se curvou, claramente aliviado porque nem ele nem seus homens teriam de sofrer quaisquer conseqüências. — Obrigado, milorde. Boa noite. — Lançando um olhar na direção de Cosgrove, ele e seus homens saíram da festa. King olhou de Bram para Rose, a expressão inescrutável em seu rosto pálido, antes de girar sobre os calcanhares e sair atrás dos policiais. Na confusão reinante de risos e autocongratulações dos tão astutos membros da sociedade que se juntaram na brincadeira de se autoproclamarem o Gato Negro porque todos o estavam fazendo, Rose manteve a atenção fixa em Bram. Ele parecia aturdido, como se não acreditasse no que acabara de acontecer. Nem ela tinha tanta certeza, mas pretendia enviar orações de agradecimento por todos os que tinham se prontificado a ajudá-lo. Todos eles, quer o tivessem feito como galhofa, para preservar suas reputações ou não. — Querem se sentar? — Phineas Bromley perguntou ao grupo de amigos de Bram que se encaminhou para o jardim. 167

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— Preciso de uísque — Bram respondeu. — Vocês se arriscaram demais. — Por um instante pensei que você insistiria em ser preso, apesar de todas as evidências contrárias. — De algum modo Sullivan o presenteou com um copo de uísque. — Posso estar buscando um novo caminho, mas também não sou um idiota — Bram redarguiu com uma ponta de humor. — Isso deve calar Cosgrove pelo menos — James intercedeu, dando todo indício de estar enlevado por fazer parte de um grupo tão notável de cavalheiros. Bram olhou de relance para ele, mas nada disse. O calor que Rose sentia no estômago esfriou um pouco. Será que ele ainda considerava Cosgrove uma ameaça? Ao refletir sobre o que sabia do marquês, uma humilhação pública só o deixaria ainda mais determinado a vencer aquele jogo, como ele o chamava... — Como conseguiram o apoio de Levonzy? — ele perguntou baixo, apesar de a música ter voltado a tocar no salão de baile. — Não o procuramos — Sullivan respondeu. — Falamos com August e eu procurei Darshear e Phillip. — Logo vi o que estavam fazendo e achei melhor me juntar a vocês — James acrescentou. — Que foi o que imaginamos que pudesse acontecer — Phin continuou. — Mas não esperávamos a participação de Levonzy. Ou de Abernathy. — Eu estava ao lado de Bram — Rose explicou. — Teria refletido mal em nossa família caso ele fosse preso naquelas circunstâncias. Por isso papai ajudou. — E é por isso que tinha de se afastar — Bram murmurou, puxando-a para perto. — Está claro que você não tem o mínimo senso de preservação. — Entrelaçou os dedos aos dela e observou as mãos dadas, como que fascinado. Saindo do transe, disse aos amigos: — Obrigado. A vocês dois. Sullivan deu de ombros. — Você também já nos ajudou. — Colocou o braço ao redor da cintura de Tibby. — Apesar do que pensa acreditar, Bramwell, há pessoas ao redor que gostam de você. — Hum. — Bram acenou de leve antes de se voltar para Rose. — Eu gostaria de ir à sua casa amanhã. Concorda com isso? Na verdade ela preferiria uma declaração de amor em pleno jardim, mas pelo visto ele tinha outras idéias. — Sim, concordo. — Bom. Tenho de cuidar de outra coisa antes que pode me tomar algumas horas. Estarei lá ao meio-dia. Prometo. Que tipo de coisa ela não sabia, mas se lembrou do olhar trocado entre ele e Cosgrove, antes que esse saísse. — Não faça nada que o leve para o mau caminho novamente — ela pediu. 168

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O olhar dele se estreitou. — Há coisas que estou disposto a arriscar, outras não. Você faz parte desse grupo. — Isso é muito tocante, mas espero que se lembre que você é uma das coisas as quais eu não quero arriscar. — Rose se apoiou no ombro dele e o beijou no rosto. Não tinham privacidade para algo mais. Por um instante debateu-se com a idéia de levá-lo para o lado e contar suas suspeitas quanto ao seu estado, mas ele não precisava de mais uma complicação naquela noite. Tampouco queria que ele tomasse decisões precipitadas pelos motivos errados. Tudo aquilo podia esperar. — Estarei à sua espera. — Precisa de companhia nessa nova empreitada? — Sullivan perguntou. — Sabe o quanto adoro as reuniões sociais. Bram meneou a cabeça. — Já fez o bastante. Mais até. E isso é algo que preciso fazer pessoalmente. — Segurou o braço de Rose. — No entanto, acho que posso me dar o luxo de mais uma dança. Preocupada ou não, ela tinha de admitir que Bram dançava magnificamente. — Concordo.

Bram se espreguiçou e revirou os ombros. Não era a primeira vez que via o sol nascer, mas não se lembrava de tê-lo feito do telhado da casa de alguém. Muito menos do telhado da casa da família da mulher amada. Com o sol se levantando, os criados começariam a trabalhar e a casa não ficaria mais desprotegida. Levantando-se para espanar as calças, Bram desceu pela lateral, usando a calha. Parou diante do quarto de Rose, tentado a visitá-la antes do horário combinado, porém tinha de se apressar. Cosgrove devia ter passado a noite em claro, ruminando as mágoas ao mesmo tempo em que maquinava uma vingança. Já que essa vingança certamente incluiria Rose, o marquês precisava ser detido. De uma vez por todas. Pegou um carro de aluguel para voltar para casa e, lá chegando, ordenou que preparassem Titã enquanto ele trocava de roupa. — Milorde? — Hibble bateu à porta. — Entre. O mordomo entrou com o jornal da manhã. — Há também uma carta do sr. Waring. — Está bem. — Colocou a missiva de Sullivan no bolso. — Ninguém apareceu ontem à noite? — Não. Colocamos um vigia conforme seu pedido, mas nada aconteceu. — Ótimo. Se alguém aparecer hoje cedo, diga que não estou. Se for Cosgrove, diga 169

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que estou ciente de sua... ira, e que estou agindo de acordo. Ah, e se ele tentar entrar, pode atirar. — Eu... Sim, milorde. Pegando o jornal, Bram o percorreu até chegar à parte dos eventos sociais. Ainda bem que havia fofoqueiras na cidade. Deixou o jornal de lado e, pegando papel e pena, escreveu sua mais importante peça literária. Dobrou o papel e rasgou o artigo de jornal, guardando-os junto à carta de Sullivan. Descendo as escadas, disse: — Cuide de tudo, Hibble. Galopar pelas ruas de Mayfair era mau visto e difícil de conseguir, mas mesmo assim, incitou Titã a se mover o mais rápido possível. Finalmente atingiu os limites do bairro onde se encontravam as mansões mais antigas. Desmontou e bateu a uma porta. Depois de alguns instantes, ela foi aberta por um mordomo ainda em roupa de dormir que o olhava curioso. — Em que posso ajudá-lo? Bram estendeu um cartão de visita. — Estou aqui para falar com o sr. Wyatt. Ele está? — O sr. Wyatt ainda está dormindo, milorde. Passa pouco das sete horas. — Sim, eu sei. O assunto é urgente, porém. Posso esperar por ele? — Eu... Sim, por favor, entre. A lareira da sala de estar está acesa. Finalmente um convite para esperar num lugar em que houvesse uma cadeira. Pena que estivesse tão agitado que não conseguisse parar quieto. Pouco depois, um homem alguns anos mais novo do que ele apareceu. — Lorde Bramwell Johns? — Sim, você deve ser Thomas Wyatt. — Sim, eu sou. O que há de tão urgente que o tenha feito vir a esta hora? — Não desejo alarmá-lo, mas muitas coisas chamaram minha atenção e creio que seja hora de lidar com elas. Podemos nos sentar? O homem mais jovem indicou as poltronas diante da lareira. — Claro. — Como deve saber sou um amigo próximo de seu primo. A expressão de Wyatt se endureceu um pouco. — Sim, estou ciente disso. — Tive a impressão de que vocês dois não tem um relacionamento muito próximo. Estou certo? — Sim. Do que se trata, milorde? — Não sei se existe um modo fácil de dizer isso. — Bram fez uma pausa para efeito. 170

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— Acredito que seu primo tenha enlouquecido. — Kingston Gore? — A sobrancelhas do homem se uniram. — Tem certeza disso? — Sim. Há algumas semanas ele começou um "jogo", como ele gosta de chamar, no qual culminaria no rapto de uma jovem de bom berço com o intuito de torturá-la e arruiná-la. — Maldição! Tem provas disso? — Tenho. Ele pretendia chantagear a família a fim de que a entregassem. Felizmente conseguimos detê-lo. E ontem à noite... Bem... — Bram pegou o artigo de jornal do bolso. — Precisa ver isto. Thomas Wyatt leu o artigo e, junto com descrença, Bram imaginou ter visto satisfação no semblante do homem. — Ele o acusou de ser o Gato Negro. — Diante de metade da sociedade e tendo levado meia dúzia de policiais para me prender. — Bram se sentou na ponta da poltrona. — Sabe que ele bebe absinto. — Ouvi dizer. — Ele bebe todas as noites. Diz que isso o torna imortal. — De novo, tem provas disso? Cosgrove tinha inimigos em número suficiente para que uma dúzia de homens concordasse que ele dizia isso. Portanto, disposto a quebrar o nono mandamento, o do falso testemunho, disse: — Sim. E há mais uma coisa. — O quê? — A dama que ele tentou seqüestrar está prestes a se tornar minha noiva. Acredito que depois que saiba das novidades ele reaja com violência. — Meu Deus. Assentindo solene, Bram se recostou. — Se eu não estiver equivocado, você tem suas próprias preocupações com relação à sanidade de seu primo. — Sim, sim. O tratamento que ele dispensa à minha família beira o sadismo. — Ele mencionou certa vez que aposta com a sua renda e só a entrega a vocês se vence. — Estou bem ciente disso. — Visto que lorde Hawthorne, um dos patronos de uma instituição mental, estava presente na festa dos Clement ontem, imagino que você tenha motivos sólidos para pedir que seu primo seja internado. — Em Bedlam? — Wyatt o encarou. 171

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— Sim, em Bedlam. Para a segurança dele, a sua, a minha, de minha noiva, da família dela e de quem quer que ele imagine tenha lhe feito mal. Devagar o homem se levantou e caminhou até a lareira. — Acha que ele... Que ele precisa ser internado imediatamente? — Antes que consiga fazer mal a alguém. Dizem que o absinto corrói a mente. — Sou o herdeiro dele, sabe, já que ele não se casou e não tem filhos. — Acredito que o absinto o tenha deixado estéril. — Podia ser verdade... — Dada a sua amizade com ele, você atestaria que o marquês de Cosgrove não está mais apto a manter sua posição, está correto? Bram pegou a carta que escrevera pouco antes. — Já deixei isso escrito. Lendo a declaração, Wyatt fitou o fogo por um bom tempo. — Ele é um homem mau, sabe. — Sim, eu sei. Testemunhei isso. — Quanto às suas próprias ações, era uma questão de sobrevivência. Sobrevivera e escolhera ser um homem melhor. Cosgrove só se tornaria pior, se lhe dessem a oportunidade. — Não desejo Bedlam a ninguém, mas tenho dois filhos em que pensar. Francamente, colocá-lo num lugar em que não possa ferir ninguém será um alívio. — Concordo. Wyatt o fitou novamente, — Por acaso sabe onde lorde Hawthorne mora? — Eu o acompanharei até lá, se quiser. — Dê-me alguns minutos para me trocar e informar minha esposa. Como Bram antecipara, Hawthorne era mais um dos que se cansara das maquinações de Cosgrove. Às dez horas, eles já tinham a papelada que faria o marquês ser levado ao hospício. — Seria melhor não estar conosco, milorde — Wyatt disse ao se aproximarem da Mansão Gore. — Não queremos briga e isso pode acontecer caso ele o veja. — Como preferir. Boa sorte, sr. Wyatt. Mas que droga, queria estar lá e ver a cara de Kingston ao ser levado. Mas fazia sentido se manter afastado já que seu intuito era proteger o futuro de Rose, não importando o que ela decidisse em relação a ele. Cínico como era, porém, queria se certificar de que o marquês seria realmente transportado para o manicômio. Foi para o fim da rua, perto o bastante para ver e ouvir o que se passava. Depois que o primo do conde e os outros entraram, houve uma comoção e uma quebradeira dentro da casa. Fez Titã se aproximar, para o caso de Cosgrove tentar escapar.

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Alguns minutos depois os sons diminuíram até cessarem. Meia dúzia de homens saiu levando Kingston amordaçado, Wyatt na frente da comitiva e lorde Hawthorne na retaguarda. Ainda que lutasse, o marquês foi empurrado para dentro da carruagem. Quando o suspenderem, ele olhou ao redor. E viu Bram. Bram sustentou o olhar dele, resistindo à tentação de saudá-lo, sorrir ou acenar. Não podia lamentar aquele fim já que conhecia Cosgrove melhor do que ninguém, mas também não conseguia ficar feliz. Caso não tivesse conhecido Rose, um dia desses podia ser a sua família internando-o num hospício. Depois que a carruagem desapareceu, seguiu para a Mansão Davies. Consultou o relógio ao subir os degraus da frente. Faltavam cinco minutos para o meio-dia. Além de benevolente, estava se tornando pontual.

— Se quiser esperar no vestíbulo, milorde — o mordomo disse. Droga, de volta àquilo... — Está bem. Enquanto aguardava impaciente para ver se Rose não havia mudado de ideia, pegou a carta de Sullivan do bolso. Estranho que com tantos acontecimentos naquela manhã, só agora começava a se sentir apreensivo... — Não seja tola só porque se sente grata, Rose — o conde disse. — Mesmo que ele apareça. — Não é por isso que estamos nos escondendo na biblioteca? — ela respondeu. — Para o caso de ele aparecer? — Conte a ela o que me contou, Lewis. A respeito das possibilidades dele. — Lady Abernathy disse, bordando. — Levonzy cortou a mesada dele meses atrás. A menos que se sustente com o jogo, ele estará sem recursos até o fim do ano. — Ainda mais depois de ter lhe emprestado dinheiro! — Rose replicou. Quanta hipocrisia. Então Cosgrove era mais aceitável apesar de sua monstruosidade simplesmente por ter recursos e um título. — O fato permanece. Ele tem uma terrível reputação, nenhuma herança, nem título, e sua única fonte de renda lhe foi retirada. Elbon bateu à porta. — Milorde, pediu que eu o avisasse quando lorde Bramwell Johns chegasse. Ele está aqui. O coração de Rose deu um pulo. — Obrigado, Elbon. Isso é tudo. — Olhando para a esposa, o conde disse: — Vou me livrar dele. Não precisa se preocupar, Rose. — Não quero que faça isso, papai. Não ouviu o que eu disse? 173

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— Não dou ouvidos a tolices. Rose cerrou a mandíbula. — Eu... Respirando fundo, James se levantou de perto da janela. — Desça para se encontrar com ele, Rose. Como disse antes, você recebeu uma segunda chance. Agarre-a. Sorrindo, contente pelo aliado inesperado, Rose se apressou para a porta até a escada. Bram estava no vestíbulo, concentrado num papel nas mãos. Parou no alto para observá-lo. Estava lindo de marrom... E ele a considerava bela. — Consigo vê-la aí — disse ele, depois de um instante. — Não quis interromper sua leitura. — Obrigado. Agora desça, por favor. — Com isso ele foi para a sala de estar. Assim que ela passou pela soleira, se viu imprensada na parede com a força dos beijos dele. Entregou-se às sensações, gemendo ao sentir as mãos passearem pelo seu corpo. — Assim está melhor — murmurou ele algum tempo depois, encostando a testa na dela. Rose se inclinou para um novo beijo. — Acho que deve se casar comigo — sussurrou, entrelaçando os dedos nos cabelos escuros. Ele a encarou e disse: — Eu ia dizer isso, sabe? — Eu não tinha certeza. Você parece ter uma péssima opinião própria, a qual não compartilho. — Hum. Primeiro preciso confessar uma coisa. — Confessar o quê? — perguntou ela, sentindo um frio pela espinha. — Meu último pecado cometido hoje cedo. — E contou tudo sobre a internação de Cosgrove. — Se ele se mostrasse razoável, eu não teria ido tão longe, mas eu o conheço não é de hoje e não podia me arriscar. Não mais. — Percorreu a face dela com um dedo. — Queria que você soubesse antes de continuarmos. — Pigarreou. — Agora que sabe, devemos continuar? Por um instante ela pensou na sorte da família, dela e de James por terem Bram como aliado. Não o queria como inimigo. O marquês também deve ter se dado conta disso. — Rosamund, vou acabar tendo uma síncope. — Sim, acho que podemos continuar. Levando-a pelas mãos até a poltrona, ajudou a sentar-se e depois se ajoelhou diante dela. 174

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— A carta que eu lia mudou o que vou lhe dizer — disse, lentamente. — Eu estava para lhe dizer que faria as pazes com o duque e que me esforçaria para ser um bom filho a fim de que ele voltasse a me dar a mesada. — Não vai mais fazer isso? — Não. Sullivan em toda a sua sabedoria decidiu sair de Londres de novo. Como já deve ter percebido ele não gosta muito da cidade. — Sim, notei isso. — Bem, do modo como a reputação e os negócios dele vêm crescendo, ele me ofereceu a tarefa de organizar e gerenciar as exposições e vendas de cavalos em Londres. Na verdade, ele me ofereceu sociedade. Visto que não quero arruiná-lo, procurarei fazer um bom trabalho. O que acha disso? Rose riu. — Acho maravilhoso. — Ótimo. Por que conto com você para que seja minha consciência até que a minha passe do estágio da infância. Se ele não estivesse segurando suas mãos, ela o abraçaria. — Sua consciência está ótima desse jeito mesmo. — Com voz entrecortada, ela continuou: — E se ainda não lhe disse: eu te amo. Tanto que não me importaria se resolvesse se tornar um pirata e tivéssemos que cruzar os sete mares. — Verdade? Isso me parece bem mais excitante do que criar cavalos. Antes que ela conseguisse responder, ele se inclinou e a beijou de novo. — Eu te amo. Você me devolveu um futuro que eu sequer sabia que queria ter. Nunca, jamais a trairei. Juro. Uma lágrima desceu pelo rosto dela. — Sei disso. Eu sempre digo que você é um homem honrado. — Mas quem sabe eu ainda possa ter um pouco de malandragem. Que tal? — Sim. — Ela riu. — Um pouquinho seria ótimo. — Então, case-se comigo, Rosamund. Ela fitou os olhos negros apaixonados. — Já que me confessou uma coisa. Também tenho algo a dizer. — O quê? — O sorriso dele diminuiu um pouco. — Em pouco mais de oito meses é bem possível que acabe com uma família maior do que a planejada. Ele piscou e a encarou. Com um grito, levantou-se e puxou-a ao seu encontro, girando-a num círculo. Ela sabia que estava certa em não contar nada antes, porque ele poderia se perguntar no futuro se mudara de vida pelos motivos certos. 175

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— Ainda estou esperando uma resposta, Rosamund. — Sim! Quero me casar com você, Bram. Já não tem como escapar. Com um sorriso, ele a beijou. — Não quero escapar... Você é uma mulher extraordinária. — E você é um homem extraordinário. — Juntos acho que temos boas chances de agitar Mayfair de tempo em tempos... Ah, era tudo o que ela queria.

Três anos mais tarde — Como foi que isso aconteceu? — Bram cruzou os braços e se recostou na soleira da sala de estar da casa de Sullivan em Amberglen. — Esta bagunça? — Phineas olhou ao redor do chão onde estava diante de uma pirâmide de cartas. — Ou... isto? — Sullivan, sentado no sofá, indicou a sala em geral. — Ambos. — Bram cruzou a sala, evitando uma pilha de brinquedos de madeira e se sentou diante da lareira. — Fui procurar uma garrafa em sua escrivaninha, Sullivan, e sabe o que encontrei? — Tenho medo de perguntar. — Uma garrafa. Mas em vez de uísque ela estava cheia de terra e minhocas. — Ah. Isso foi Henry. — Sully sorriu. — Ele sabe que as minhocas gostam de lugares escuros. — E o que o jovem Henry quer fazer com todas as minhocas de East Sussex? — É para pescar, tio Bram — Henry respondeu antes de equilibrar mais duas cartas. — Consegui, tio Phin! — Você tem mãos firmes, Henry. — Phin pegou a menininha que engatinhava na direção da pirâmide e a direcionou para o outro lado. — Esplêndido, Phin, mande sua filha na direção da lareira. — Sully pegou o bebê no colo. — Seu pai não tem juízo, Sarah. — A menina riu em resposta. — Eu sabia que você estava aí — Phin resmungou. — A propósito, Bram, a sua filha desapareceu. — Apontou com o queixo para trás da poltrona do amigo. — Eu devia saber que perderiam minha filha assim que eu desse as costas. — Bram se esticou. — Agora perdi minha April. O que farei? — Dobrando o braço para trás, tocou no cabelo sedoso. — Espere um momento, o que é isto? — Tateou a pequena cabeça. — Acho que encontrei uma abóbora! — Sou eu, papai! — ela exclamou numa risada. A menina de cabelos escuros deu a volta e se jogou em seu colo. Com pouco mais 176

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de dois anos, April Marie Johns era uma beldade. E esperta demais para sua idade. Bram beijou-a na testa, ainda admirado que ele e Rose tivessem criado esse pequeno milagre. — Achou um dia, Bram — Sully perguntou, enquanto brincava com a menina de Phin — que terminaríamos assim? Bram respirou fundo. A paz que sentia era uma novidade, mas ele adorava. — Não, nunca. — Levantou o olhar quando Rose entrou na sala, seguida por Alyse e Tibby. Sua luz, sua alegria e muito mais, pois nunca imaginou merecer tal presente. — Por que está sorrindo? — ela perguntou, sentando-se no braço da poltrona e abraçando-o pelos ombros. — Que você é tola o bastante para ter outro filho comigo — murmurou, entrelaçando os dedos da mão livre nos dela. — Mais um? — Sully perguntou, sorrindo. — Agora ele não vai mais embora, Rose, sabe disso, não? Rosamund deu um suspiro exagerado. — Sim, sei que ele é meio malandro, mas é ótimo na limpeza, pelo menos... Em meio ao riso e às felicitações, Bram manteve o olhar fixo na esposa. Apesar das tantas confusões no passado, devia ter feito pelo menos uma boa ação para merecer tal mulher. E tais amigos. Não se deram nada mal para um grupo de cavalheiros notáveis. Nada mal mesmo.

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vol3 - O Último Cavalheiro Notável - Suzanne Enoch

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