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PLANO DE ENSINO ÁREA: Ciências Sociais Aplicadas CURSO: Direito PERÍODO: 6° Semestre TURNO: Diurno DISCIPLINA: Direito e Políticas Públicas CARGA HORÁRIA SEMANAL: 02 horas/aula I — EMENTA Conceito de políticas públicas: problematização do papel do Estado na definição e implementação de políticas públicas. A questão social na sociedade contemporânea. Estado, democracia e políticas públicas no Brasil. Dinâmica socioeconômica e desigualdades sociais. II — OBJETIVOS GERAIS Desenvolver conteúdos relacionados ao direito e regulação, tendo como enfoque o redimensionamento da atuação estatal por meio das políticas públicas, voltada para a efetivação de direitos sociais e difusos, assim como as formas de regulação com o objetivo de garantir o acesso e a eficiência dos serviços públicos. III — OBJETIVOS ESPECÍFICOS Preparar para utilização de conteúdos relacionados ao eixo temático, garantindo a idéia de um perfil profissiográfico contextualizado regionalmente. Promover o desenvolvimento das competências e habilidades definidas no perfil do egresso, quais sejam: Leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas; Interpretação e aplicação do Direito;
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Pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do Direito; Adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilização de processos, atos e procedimentos; Correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito; Utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica; Julgamento e tomada de decisões; Domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito. IV — CONTEÚDO PROGRAMÁTICO Políticas Públicas como Foco de Interesse para o Direito Público. 1.1. Políticas Públicas e Dirigismo Estatal. 1.2. A Articulação entre Direito Constitucional e Direito Administrativo em Torno das Políticas Públicas. Conceito de Políticas Públicas em Direito. A Questão Social na Sociedade Contemporânea. Estado, Democracia e Políticas Públicas No Brasil. Dinâmica Socioeconômica e Desigualdades Sociais. Desenvolvimento e Crise do Estado de Bem-Estar Social. Gestão e Financiamento das Políticas Públicas. Controle Social das Políticas Públicas.
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9. Planejamento, Avaliação e Acompanhamento de Políticas Públicas. 9.1. Planos e Programas Governamentais do Brasil nos Últimos 20 Anos. 9.2. Programa Plurianual do Governo — PPA. 9.3. Instrumentos de Implementação, Acompanhamento e Avaliação de Políticas Públicas. V — ESTRATÉGIA DE TRABALHO A disciplina será desenvolvida com aulas expositivas e práticas, sendo incentivada a participação dos alunos nos questionamentos e discussões apresentadas, acompanhadas de metodologias que privilegiam a integração entre teoria e prática, entre elas: estudos de casos, análise de jurisprudência, elaboração de trabalhos práticos e produção de textos, realização de seminários (elaborados pelos alunos da disciplina) e ciclo de palestras (com professores convidados, profissionais da área e/ou de áreas afins), quando pertinente. AVALIAÇÃO A avaliação será realizada por intermédio de provas regimentais e atividades desenvolvidas em sala de aula, conforme solicitação do professor da disciplina, tendo como referência as metodologias adotadas de integração entre teoria e prática. BIBLIOGRAFIA Bibliografia Básica: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. ESTEVES, Júlio César dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca; FORTINI, Cristiana. Políticas públicas: possibilidades e limites. SP: Fórum, 2008.
MIYAMOTO, Shiguenoli; SANTOS JR, Raimundo B. dos; SERAINE, Ane Beatriz Martins dos Santos. Estado, desenvolvimento e políticas públicas. ljuí: Unijuí, 2008. Bibliografia Complementar: APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional. SP Fórum, 2007. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. FREIRE JUNIOR, Américo Bede. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005. REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta. Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUN/SC, 2008. XAVIER, Roberto Salles; et aí. Trajetória das políticas públicas no Brasil. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2007. VIII.
CRONOGRAMA DAS ATIVIDADES SEMANAIS
DATAS AULAS
ATIVIDADES
06/08
Apresentação do Plano de Ensino e perspectivas da disciplina
13/08
Política constitucional, política competitiva e políticas públicas. COUTO, Cláudio. Em: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. SP: Saraiva, 2006.
20/08
O conceito de política pública em direito. BUCCI, M.P.D. Em: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. SP: Saraiva, 2006. Parte I
27/08
O conceito de política pública em direito. BUCCI, M.P.D.
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Em: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. SP: Saraiva, 2006. Parte II 03/09
Dimensão jurídica das políticas públicas. MASSAARZABE, Patrícia Helena. Em: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. SP: Saraiva, 2006.
10/09
Políticas públicas e a ciência política. GONÇALVEZ, Alcindo. Em: O conceito de política pública em direito. BUCCI,
M.P.D. Em:
BUCCI,
Maria
Paula
Dallari.
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. SP: Saraiva, 2006. 17/09
Revisão do primeiro bimestre
24/09
NP1
01/10
Correção da NP1
08/10
Apontamentos sobre o controle judicial de políticas públicas. NETO, Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Em: ESTEVES, Júlio César dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca;
FORTIM,
Cristiana.
Políticas
públicas:
possibilidades e limites. SP: Fórum, 2008. 15/10
As políticas públicas como instrumento de ação do Estado
contemporâneo
e
objeto
do
Direito
Administrativo. Em: BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional. SP: Fórum, 2007. 22/10
A dignidade da pessoa humana como elemento fundante e estrutural do Estado Constitucional. Em: BREUS, Thiago
Lima.
Políticas
públicas
no
Estado
Constitucional. SP: Fórum, 2007. 29/10
A Organização das Nações Unidas e as políticas públicas
nacionais.
RODRIGUES,
Gilberto
Marcos
Antônio. Em: BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. SP:
Saraiva, 2006. 05/11
DECRETO N 2.829, que estabelece normas para a elaboração e execução do Plano Plurianual e dos Orçamentos da União, e dá outras providências. Em: http://www2.camara.leg.brileginfied/decret/1998/decreto2829-29-outubro-1998-343368-publicacaooriginal-1pe.htrn1
12/11
Revisão do segundo bimestre
19/11
NP2
26/11
Sub
03/12
Correção da NP2
10/12
Exame
17/12
Vista de notas
Política constitucional, política competitiva e políticas públicas *
UCC. 1 (\Ag .1) , foLitia9 p
Cláudio Gonçalves Couto
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R-CF. LgiõE5 ~c), couese tr0 -Cdttibi Go . 5
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Introdução. Constitucionalismo, democracia e governaSumário: bilidade. Considerações finais. Referências bibliográficas. Decisões de governo e normas constitucionais terneMti nuraspaificado distinto. Enquanto as primeiras dizem respeito à_psinS__ Arrio se „.j.t.-3:19ca, ao jogo democrático corriqueiro, as segundaa 1 _fora do campo de _p_ jáRiS.J. , ---fmiçis~ento_da_dernacracia, ficando, arit temas que são objeto da deliberação democrática cotidiana. O objetivo do artigo é verificar de que forma aqueles autores que lidaram com a questão das teorias constitucional e democrática — do ponto de vista da ciência política — discutiram esta dicotomia.
INTRODUÇÃO A repetição do termo "política" no título deste artigo visa chamar a atenção do leitor para uni problema que será trabalhado ao longo do política e suas implicatexto: a relação entre três diferentes dimensões da ções mútuas. Será com base na distinção entre elas que procurarei desenp 'ticapúbli9 da volver aqui uma discussão atinente ao conceito de _ perspectiva de um cientista politica, porem preocupada com questões de ordem jurídica relevantes para uma reflexão sobre a democracia. define a estruturação A primeira dimensão, a da política constitucional, básica do Estado, a sua conformação normativa fundamental, que expressa
" A pesquisa que permitiu a elaboração deste texto contou comLua o apoio do CNPq e Nova: Revista de da CAPES. Uma versão dele foi publicada como artigo em n. 65,2005. Este texto 6 uma versão modificada desse artigo. Cultura e Polidca,
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À 7244co.;-) do , ...e
4C-t-444 *" CiL20-ute).01‘ a correlação de forças sociais e políticas vigente, assim corno os valores e crenças fundamentais e politicamente relevantes de urna dada sociedade. A ordem constitucional estipula quais são os direitos fundamentais, os procedimentos decisórios governamentais e os critérios de partiéipação política que definem normativamente a natureza política do Estado. A depender de como esses são definidos, conformar-se-á a natureza específica do Estado em questão. Por exemplo, uma normatividade constitucional poderá ser considerada de~ tiça a depender dos procedimentos (quem governa e como governa) que estipula, mas também como social, ou de bemestar social, caso assegure a seus cidadãos direitos sociais mínimos (o que garante o Estado como direitos). Utilizando a denominação dada a esta dimensão em linguagem corrente no inglês (já que em português a palavra "política" é sempre a mesma, permitindo confusões), poderíamos definir a política constitucional, consubstanciada no ordenamento normativo superior do Estado, com o termo jolity. 1:214 Jetkzto A segunda dimensão, a da política competitiva, concerne a atividade política que tem lugar no âmbito da institucionalidade estatal. Política aqui é jogo, com suas diversas possibilidades: conflito, cooperação, alianças, vitórias, derrotas, empates, ganhos, perdas etc. Pode-se dizer que em certa medida toda atividade política é, ao menos em certo grau, competitiva', mas é em regimes poliárquicos (democráticos sobretudo, mas mesmo os liberais sem sufrágio universal) que a competição política ganha relevo', na medida em que se torna não apenas um elemento de fato da atividade política, algo posto e inevitável, mas também algo legítimo e mesmo desejável'. Tendo isto em vista, a noção de política competitiva trabalhada no texto terá como referência sobretudo o desenvolvimento da atividade política em regimes poliárquicos. Por um lado, é do desenvolvimento desta atividade, no bojo da institucionalidade estatal, que resultam a ocupação de postos de governo pelos competidores nas eleições, assim como as decisões governamentais. Por outro lado, é o desenrolar desta atividade que permite a transformação da estrutura estatal vigente. Mais uma vez usando o termo em inglês, teríamos aqui a policia.: 1 erm142:91.12
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' Nos termos de Weber (s.d.: 56), política e o "conjunto de esforços feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado". Logo, é luta, competição. 2 DAIIL, Robert A. (1997). 3 Como aponta Bobbio (1988), para o liberalismo, 'o antagoniund é fecundo". 98
dit-ps
Finalmente, a terceira dimensão, a das políticas públicas, concerne ao produto da atividade política que tem lugar nas instituições de Estado. E política pública tudo aquilo que o Estado gera corno um resultado de seu funcionamento ordinário. Podemos dizer, por isso, que a produção das políticas públicas é condicionada tanto pela política competitiva como pela política constitucional, sendo que esta ultima define duas coisas. Primeiramente, a Constituição define os parâmetros possíveis no âmbito dos quais a competição política pode se desenvolver — ou seja, as regras do jogo. Em segundo lugar, ela estipula os conteúdos legítimos das políticas públicas que resultam ,dos desfechos do jogo político — determinando quais programas de ação governamental poderão ser iniciados, interrompidos, alterados ou prosseguidos. Na denominação em inglês, teríamos aqui a policy. Discutirei adiante a relação entre essas três dimensões, com especial atenção para a polity — a dimensão constitucional.A questão a ser explorada é, portanto: de que maneira o arcabouço constitucional conforma a política competitiva, de modo a definir o espaço possível da produção de políticas públicas? Esta é uma questão chave para que possamos saber de que modo constitucionalismo, democracia e governabilidade (condição para a produção de políticas públicas) se relacionam.
CONSTITUCIONALISMO, DEMOCRACIA E GOVERNABILIDADE "O Constitucionalismo (...) é essencialmente antidemocrático. A função básica de uma Constituição é remover certas decisões do processo democrático, ou seja, amarrar as mãos da comunidade."'
Esta epígrafe, retirada de um trabalho de Stephen Holmes, não expressa na realidade seu pensamento acerca do constitucionalismo. É uma afirmação que o autor faz referindo-se a uma perspectiva particular sobre o tema, sustentada, segundo ele, pelo juiz da Suprema Corte norte-americana, Robert Jackson. Numa importante declaração citada por Holmes, jacicson afirmou: "O verdadeiro propósito da Declaração de Direitos foi retirar certos assuntos das ylojssitudes da controvérsia política para colocá-los além do alcance de maiorias e autoridades e estabelece-los como princípios a ' HOLMES, Stephen,"Preconunitment and the paradox of democracy". In ELSTER, Jon 8c SLAGSTAD, Rune (1988: 196).
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serem aplicados pelos tribunais. O direito das pessoas à vida, á liberdade e à livre expressão, uma imprensa livre, a liberdade de culto e reunião e outros direitos fundamentais não podem ser subingtidos a voto; eles não dependem do desfecho de eleição alguma". Talvez mais exatamente do que antidemocrático, o constitucionalismo seja, segundo esta citação do juiz Jackson, pré-democrático. Isto porque não há aqui uma afirmação de que um texto constitucional, como a Declaração de Direitos (Bill of Rights), deva excluir da vontade democrática majoritária o direito de decidir sobre quaisquer questões, mas apenas sobre aquelas que sejam consideradas como precedentes à controvérsia política eleitoral e governativa. Sem que os direitos civis básicos enunciados por Jackson sejam resguardados de vontades majoritárias (do povo e/ou de seus representantes eleitos) e, por conseguinte, assegurados ao conjunto dos cidadãos (inclusive as minorias derrotadas), é duvidoso que seja garantida a própria disputa eleitoral — e, conseqüentemente, a possibilidade de que as maiorias sigam no futuro expressando seus interesses e pontos de vista, influenciando as decisões de governo. Assim, não caberia a eventuais maiorias vitoriosas eleitoralmente decidir sobre assuntos constitucionais, ao menos no que diz respeito à possibilidade de manter ou revogar certos direitos. No máximo, ser-lhes-ia possível decidir acerca das formas específicas mediante as quais tais direitos poderiam ser assegurados; mas isto de um modo tal que se a garantia desses direitos fundamentais fosse ameaçaria pelas políticas públicas escolhidas, os tribunais poderiam revogálas ou obstaculizá-lass. É por conta disto que pode fazer sentido a suposição do constitucionalismo como antidemocrático.Afinal de contas, um texto constitucional, fixado num determinado momento, por certas pessoas, restringe a liberdade decisória de outras pessoas, noutro momento. Isto talvez significasse um atentado à democracia, entendida aqui como a possibilidade que tem a maioria dos cidadãos de eventualmente decidir acerca da forma como será governada a sua sociedade, mediante certas políticas públicas. Uma
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Nies Virgínia State Board of Education v. Barnette, 319 U.S. 624, at. 638 apud HOLMES (1988: 196), Neste caso, a Constituição exerce sobretudo um papel de proteção negativa de direitos, impedindo que sejam revogados por vontades rnajoritárias.Veremos adiante que a Constituição também pode impor que certos direitos sejam satisfeitos, assegurando-os portanto positivamente. A este respeito uma referência importante CANOTILHO (1994).
Constituição gera comprometimentos prévios, pois decisões hoje tomadas por uma maioria ou por uma geração acabam por vincular maiorias ou gerações futuras. Isto poderia justificar a inexistência de um texto constitucional, caso se considerasse necessário garantir a plenitude da vontade daqueles que tomariam decisões no figuro, desobrigando-lhes de qualquer coisa que pudesse restringir o exercício de sua vontade livre e desimpedida. prévias Porém, o que se pode alegar é que sem garantias constitucionais o próprio exercício futuro da vontade desimpedida seria prejudicado, uma vez que ele depende da possibilidade de que estejam abertos os caminhos para sua efetivação. Noutros termos, a criação de restrições e comprometimentos prévios, ao mesmo tempo que limita em alguns aspectos a liberdade de gerações faturas, pode garantir-lhes proteção contra a ameaça de agentes que, por não terem quaisquer limites à sua própria ação, acabem por eliminar as condições garantidoras da liberdade dos demais.Tais agentes podem ser grupos existentes num dado momento que tanto restrinjam a liberdade de seus contemporâneos como de sua posteridade'. Por exemplo, se uma determinada maioria, hoje, decide "democraticamente" acabar com o processo eleitoral, com os mandatos por tempo determinado e com o direito à participação de certos grupos políticos, ou resolve instituir um rodízio não-eletivo de determinados grupos no poder, ela sacrifica a possibilidade de que maiorias futuras escolham seus próprios governantes. Stephen Holmes aponta que restrições constitucionais à vontade popular da maioria teriam, antes de tudo, o_fito de retirar-lhe condições de acabar com o próprio jogo democrático, garantindo a terceiros (ou a , 7
ELSTER (1989: 145) aponta que diante de sua racionalidade imperfeita, os homem constroem instrumentos que lhes permitem atar-se a si mesmos, como forma de proteção contra a própria irracionalidade. As Constituições, sob este ponto de vista, seriam macroinstrumentos de autolimitação, pelos quais as sociedades procuram evitar sucumbir a ações que do ponto de vista do interesse coletivo (da manutenção da coletividade) poderiam ser consideradas irracionalidades coletivas momentâneas, que ameaçam as suas próprias fundações. O elemento problemático aqui presente diz respeito ao fato de que normas constitucionais não permitem apenas que as sociedades limitem a si mesmas, mas a outros (a sua posteridade, outros grupos sociais etc.). Dai urna pergunta fundamental, que anima esta discussão: até que ponto é legitimo atá-los? O confronto entre maiorias e minorias e, conseqüentemente, entre regras decisórias de diferentes graus de exigibilidade ganha sentido neste contexto.
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novas configurações dessa mesma maioria) o direito futuro de escolha. Diz ele: "Para assegurar poder a todas as finuras maiorias, com certeza, uma Constituição deve limitar o poder de qualquer maioria em particular. Comtituições liberais, de fato, tratam-se em boa medida de metarestrições: regras que compelem cada maioria a expor suas decisões à crítica e possível revisão, regras que limitam a capacidade de cada geração furtar a seus próprios sucessores escolhas significativas, É possível encarar de duas formas esta questão apontada por Holmes. Uma, considerando o texto constitucional como aquele que fixa limites à ação de uma maioria qualquer em particular, impedindo-lhe de tomar certas decisões que terão conseqüências inescapáveis sobre gerações futuras (o texto restringe o hoje, para-manter aberto o amanhã). Outra, é considerar o texto constitucional como algo que, elaborado por uma maioria qualquer em particular, deixa aberta a gerações posteriores a possibilidade de fazer as escolhas que quiser, de forma não cerceada por qualquer maioria precedente (o texto mantém abertos o hoje, o amanhã e o depois de amanhã). No primeiro caso, o texto constitucional pode simplesmente estabelecer limites à ação de maiorias eventuais, determinando a priori o que elas poderão ou não fazer sobre determinados assuntos. Assim, um texto fixado num momento T2 definirá para maiorias existentes nos momentos T1 T2, T3... TH quais serão as decisões cabíveis ou não de serem tomadas. Lidgo, nenhuma delas poderá decidir coisas que afetarão suas sucessoras, cerceando-lhes. Todavia, todas essas maiorias terão tido sua liberdade de decidir previamente restringida pela maioria constituinte, existente no momento TO, e conseqüentemente não poderão decidir inclusive sobre coisas que afetem a elas próprias. Há, portanto, a presunção de que esta maioria inicial tinha condições de estipular o que seria bom ou mal para seus sucessores, impedindo-lhes de decidir sozinhos. Noutras palavras, muito embora uma certa geração não tenha sido cerceada por decisões tomadas por diversas gerações precedentes, após o momento da decisão constituinte todas elas foram igualmente restringidas por aquela resolução que se, por um lado, "protegia-lhes", por outro, retirava-lhes a capacidade de escolha autônoma. No segundo caso, o texto constitucional não estabeleceria quaisquer limites à ação futura sobre diversos assuntos, simplesmente calando-se
° Op. cit., p 226. 102
sobre eles. Desta maneira, as diversas maiorias existentes após a decisão constitucional poderiam tomar decisões sobre tais temas, as quais teriam efeitos sobre a sua posteridade. Todavia, como o texto constitucional é aberto, as diversas gerações futuras teriam a possibilidade de decidir de forma variável ao longo do tempo sobre as matérias, podendo, se quisessem, mudar a realidade criada por seus antecessores — ao menos na medida em que decisões anteriores não tivessem gerado situações irreversíveis na prática. O texto constitucional elaborado num momento To cala sobre determinado tema, sobre o qual se decide de uma certa forma no momento Ti , podendo tal decisão ser mantida ou transformada nos momentos T2, T3,T4...T, assim como qualquer decisão tomada em cada um desses momentos pode ser mantida ou transformada posteriormente. Como a maioria constituinte decidiu deixar a seus sucessores a total liberdade de fazer e desfazer o que desejassem sobre uma série de assuntos, tornou inviável a qualquer geração limitar a liberdade de suas sucessoras, pois qualquer coisa que fizesse hoje, poderia ser transformada (e mesmo revogada) amanhã. Tbdavia, diante do problema da restrição da vontade de maiorias futuras, surge uma questão fundamental: restrição a quê? Quando Holmes faz referência a "regras que compelem cada maioria a expor suas decisões à crítica e possível revisão, regras que limitam a capacidade de cada geração furtar a seus próprios sucessores escolhas significativas", ele fala sobretudo de definições procedimentais para si e para as gerações sucessivas. Isto fica mais claro na seguinte passagem': "A Constituição é um instrumento de autogoverno, uma técnica por meio da qual a cidadania dirige a si mesma. De que modo poderia uma grande comunidade administrar os seus próprios negócios? Uma coletividade não pode ter propósitos coerentes de forma dissociada de todos os procedimentos de tomada de decisão. O povo não pode agir como urna bolha amorfa". Trata-se, portanto, de fixar apenas regras para o jogo democrático no hauro ou de estipular os temas sobre os quais as futuras maiorias poderão decidir? São problemas de ordem distinta, na medida em que no primeiro caso apenas se define como se tomarão as decisões, ao passo que no segundo se define sobre o quê serão tais decisões. Mesmo neste segundo caso, é possível haver diferenças importantes com respeito à liberdade decisória
Op. cit., p.230 (grifo meu). 103
futura. Unia Constituição genérica apenas estabeleceria parâmetros básicos, do tipo; é possível decidir sobre tal tema desde que não se ultrapasse determinado grau de especificação, ou desde que se garanta certo limiar básico. Já uma carta detalhista definiria a priori quais decisões caberiam às futuras gerações ou maiorias e, desta forma, não apenas impeou ao menos decisões de feitio distinto — diria que novas decisões fossem tomadas sobre certos temas, como ainda compeliria a que certas resoluções fossem tomadas, mesmo que a contragosto das maiorias do momento. ---4> O modelo constitucional pensado por Holmes atém-se, portanto, à definição apenas de .procedimentos decisórios, sendo alheio ao conteúdo das decisões e, portanto, das agendas a serem implementadas pelos futuros governos. A distinção entre estas duas coisas está relacionada (mas não é idêntica) à diferença entre o que poderíamos chamar de normas constitucionais e políticas públicas. As primeiras conformam as características básicas da estrutura institucional do Estado e estipulam os direitos fundamentais dos cidadãos, ao passo que as segundas são o instrumento de efetivação de decisões ordinárias de governo. Definindo a priori normas constitucionais, uma Carta define para as gerações ou maiorias futuras duas condições básicas: (1) um ambiente institucional dentro do qual se trava a disputa politica, constituído de dois elementos: a conformação básica do Estado, as regras fundamentais do jogo político; (2) limiares mínimos e limites últimos às decisões de governo, correspondendo à garantia de direitos fundamentais, sejam eles civis, políticos ou sociais. Esquematicamente, teríamos o seguinte quadro: Princípios Constitucionais CONDIÇÕES BÁSICAS
_
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS CONFORMAÇÃO BÁSICA
REGRAS FUNDAMENTAIS
AMBIENTE
DO ESTADO
DO JOGO POLITICO
INSITTUCIONAL
(macroambiente constitucional)
(ambiente governamental e de competição política)
LIMIARES
DIREITOS
E
FUNDAMENTAIS
LIMITES
(civis, políticos e sociais)
Tendo isto por base, podemos então recolocar a questão: uma Constituição cerceia o exercício da vontade democrática de futuras gerações ou maiorias? Vejamos como se pode responder a ela tendo em vista cada um dos elementos de uma Constituição. Se entendermos que é inerente à democracia o direito de cada nova maioria re-inaugurar o Estado sempre que assim o desejar, logo estipular constitucionalmente sua conformação básica será antidemocrático. Todavia, se considerarmos que o exercício da vontade democrática é algo que tem lugar no ambito de um Estado já um existente, então tal cerceamento não existe. Como a democracia é regime político, ou seja, uma forma institucional específica de organizar o exercício do poder no âmbito de um Estado, carece de propósito que uma maioria decida transformar a re-inauguração do Estado num ato corriqueiro de governo. Ademais, fazê-lo implicaria põe em risco a sobrevivência da própria democracia e tem mais a ver com a lógica da revolução — neste caso não apenas permanente, mas também sem propósito. Se entendermos que é direito democrático de uma maioria qualquer alterar as regras fundamentais do jogo político a ponto de revogar os princípios democráticos em vigor, então a existência de princípios constitucionais que fixassem regras democráticas do jogo político de forma perene seria algo antidemocrático. Contudo, é ilógico afirmar ser antidemocrática a proibição de revogar as regras democráticas. Portanto, uma Constituição que as fixe para a posteridade apenas lhe assegura que possa seguir desfrutando do direito de decidir democraticamente. Se entendermos que é prerrogativa democrática de uma maioria qualquer revogar direitos fundamentais, então também será antidemocrático garantir constitucionalmente tais direitos.Todavia, o próprio exercício da democracia requer que ao menos alguns desses direitos sejam assegurados aos indivíduos: basicamente os direitos de liberdade (de expressão, de pensamento, de crença, de reunião, de organização, de imprensa etc.) e os direitos políticos (de voto, de elegibilidade, de participação etc.). Desta forma, revogar por decisão majoritária tais direitos implicaria em anular requisitos básicos para o funcionamento do regime, na medida em que subtrairia aos cidadãos capacidades necessárias ao exercício democrático do poder. Portanto, a manutenção constitucional de tais direitos — sendo eles indispensáveis à operação do regime — é parte constitutiva da própria democracia, 105
104
ti
e
mesmo numa concepção minimalista desse regime, como a schumpeteriana Chamá-los-ei aqui, portanto, de direitos fundamentais operacionais do regime político. 4. Podemos também entender como prerrogativa democrática de qualquer eventual maioria revogar direitos cuja posse não seja diretamente necessária ao exercício da democracia, supondo que sua proteção constitucional significaria uma séria 'restrição à democracia, por limitar a liberdade decisória da maioria. Um exemplo disto é a proteção ao direito de propriedade. Nada impede que num sistema em que a propriedade privada seja abolida o regime político vigente siga sendo o democrático: os cidadãos seguem tendo o direito de voto, sendo elegíveis etc. Da mesma maneira, sim regime democrático pode vigorar num contexto em que direitos sociais não sejam garantidos pelo Estado. É razoável supor, contudo, que ao não serem garantidos tais direitos, condições sociais mais amplas, necessárias à existência da democracia, ficariam ameaçadas. O mesmo vale para a proteção a certos valores (como os religiosos) reputados como de grande valia para certos grupos sociais em determinadas sociedades, que não aceitariam pacificamente a sua transgressão. Pode-se entender, portanto, que seja necessário garantir certos direitos fundamentais aos cidadãos (e, por conseguinte, a determinados grupos sociais cujos interesses podem estar em conflito com os dos demais segmentos) para que a democracia sobreviva. Tais direitos não seriam, como os mencionados no item 3, constitutivos da própria democracia, mas condições externas necessárias à sua preservação. Tendo isto em vista, defini-los-ei aqui como direitos fundamentais condicionantes do regime politico. Note-se que tanto os direitos de propriedade como os direitos sociais garantem condições materiais e de bem-estar de cidadãos que
I° Segundo Joseph Schumpeter (1984: 339), "nenhuma sociedade tolera a liberdade absoluta, nem mesmo de consciência ou de fala, nenhuma sociedade reduz tal esfera a zero —, a questão se torna claramente uma questão de grau. Vimos que o método democrático não garante, necessariamente, uma liberdade individual maiOr que a permitida por qualquer outro método em circunstâncias similares. Pode muito bem ocorrer o contrário, Mesmo assim, porém, persiste uma relação entre os dois. Se, ao menos em princípio, todos forem livres para competir pela liderança política apresentando-se ao eleitorado, isso na maioria dos casos (embora não em todos) significará considerável liberdade de discussão para todos". 106
podem pertencer a diferentes classes e grupos sociais. Da mesma forma, o tratamento diferenciado que algumas Constituições conferem a grupos religiosos ou lingüísticos específicos implica num reconhecimento de distinções entre os seus cidadãos. Por isso, a constitucionalização de tais direitos tem para o exercício da democracia implicações diversas da proteção aos direitos de liberdade ou de exercício do poder político, em princípio igualmente benéficos a quaisquer pessoas, independentemente de seu pertencimento grupai ou de classe. Se os direitos operacionais, para além de sua importância intrínseca, são também direta e inerentemente necessários à democracia, os direitos condicionantes apenas o são de forma indireta. Contudo, esta importância indireta para um dos aspectos do ordenamento político de uma sociedade — o regime político — não reduz a sua relevância crucial para o funcionamento geral do sistema. Afinal, a estipulação de tais direitos como fimdamentais resulta da aceitação de condições que os cidadãos e os grupos sociais politicamente relevantes consideram indispensáveis, de modo que sua própria adesão ao ordenamento político vigente passa pelo respeito perene a tais direitos e por sua proteção pelo Estado, a despeito do que possa momentaneamente desejar qualquer maioria política. Noutras palavras, diante de uma possível ameaça a esses direitos, acarretada por decisões tomadas segundo regras democráticas, certos grupos e indivíduos prefeririam abandonar o jogo poliárquico, muito provavelmente apostando no conflito aberto como forma de preservar seus inegociáveis interesses materiais ou valores fundamentais. E por isso que sua proteção é um elemento crucial à estruturação da política constitucional. Excluí-los ou sujeitá-los às decisões de maiorias eventuais poderia levar ao colapso do sistema político vigente". Por tudo isto, nada mais natural que a enunciação de tais preceitos esteja presente na Carta, afinal, se a natureza de um Estado é definida com base nos direitos fundamentais que assegura a seus cidadãos, ela é algo próprio à Constituição. Ambos os conjuntos de direitos e mais o regime político desempenham com relação ao ambiente estatal o papel de subsistemas constitucio-
" Esta questão corresponde ao problema apontado por DAHL (1997: 36-7), referente ao cálculo poliárquico. Os atores políticos relevantes optam pela poliarquia tendo em vista duas ordens de custos: os custos da tolerância (de seus adversários políticos e de suas políticas) e os custos da repressão (desses mesmos adversários), Na medida em que os custos da tolerância são elevados a ponto de superar os custos da repressão, talvez o rompimento com as regras poliárquicas do jogo político se mostre algo proveitoso. 107
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nais, cumprindo as funções que mencionei acima: obter dos indivíduos e grupos a adesão ao ordenamento estatal vigente (direitos condicionantes), permitir-lhes participar do jogo político estipulado pelo regime político em vigor (direitos operacionais) e, por meio do funcionamento do regime, permitir que o Estado seja governado e, conseqüentemente, garanta os direitos fundamentais e preserve o próprio regime. Esquematicamente, poderíamos representar a relação entre esses elementos para o funcionamento geral do sistema constitucional da forma apresentada na figura a seguir.
Da mesma forma, se uma Carta estipula com maior detalhamento regras nesses âmbitos, estreitando ainda mais a liberdade decisória dos governantes (ou legisladores), o regime específico se torna, por isso mesmo, mais rígido e restritivo. Se o faz, ademais, não apenas fixando negativamente o que não deve serfeito pelo governante, mas positivamente, qual deve ser a agenda a ser seguida por ele, nos moldes de uma Constituição dirigente'', ainda mais restritivo torna-se o regime. Diante disso, caberia ainda indagar: regras constitucionais num regime democrático podem ser antidemocráticas? Creio que sim. De forma óbvia, isto pode ocorrer sempre que tais regras definirem normas que contrariem princípios fundamentais da democracia. Robert Dahl" elenca oito requisitos necessários para a vigência de um regime poliárquico: )
Liberdade de formar e aderir a organizações. Liberdade de expressão. Direito de voto. Elegibilidade para cargos públicos. 5, Direito de líderes políticos disputarem apoio e votos. Fontes alternativas de informação.
Importância funcional de cada subsistema constitucional para os demais Tendo em vista o que discuti até o momento, parece desprovida de sentido a idéia de que as restrições estipuladas por um ordenamento constitucional sejam obstáculos ao exercício pleno da democracia. Elas se mostraram, na verdade, requisitos funcionais para tal exercício. Pode-se afirmar que se as regras do jogo poliárquico numa democracia são o que constitui o regime político, a normatividade constitucional que fixa direitos também estabelece regimes naquilo a que tais direitos dizem respeito. Nesse sentido, regras de propriedade e relativas ao cumprimento de contratos no âmbito econômico fixam um regime econômico; normas referentes aos direitos sociais estabelecem um regime social, e assim por diante'',
"Algumas políticas públicas podem criar situações de fato de tal modo consolidadas que sua modificação por um governo apresentaria custos proibitivos. Desta forma, constituem regimes informais. Pode-se dizer, exemplificando, que regras de disciplina fiscal acabaram por se tornar um regime informal para economias perifêricas como a brasileira, na medida em que tentativas de seguir caminhos alternativos apresentam custos elevadíssimos para os governos que as tentam. O estabelecimento de legis108
Eleições livres e idôneas. \\_ 8. Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência. Portanto, qualquer regra constitucional que eliminasse um desses requisitos poderia ser considerada antidemocrática, na medida em que anularia a vigência de um daqueles direitos que aqui defini como operacionais. Por exemplo, uma regra constitucional discriminatória do tipo "os membros da etnia x não têm o direito de voto", seria flagrantemente antidemocrática. Neste caso, o problema não estaria no fato da Constituição restringir a vontade democrática de uma eventual maioria resultante das eleições, mas sim no tipo de restrição que estabelece. Ao
!ação que sanciona tais regimes apenas confirma este fato.A fixação de normas desse gênero na Constituição, contudo, daria caráter de regime formal a tais princípios de disciplina fiscal. No Brasil, a Lei de Responsabilidade Fiscal se encaixa no primeiro caso, o Sistema Único de Saúde, constitucionalizado, no segundo. " A respeito da noção de Constituição dirigente e da vinculação a que são submetidos os governantes, ver CANOTILHO, op. cit., p. 257 e s. H Op. cit., p. 27. 109
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excluir um segmento populacional do demos em virtude de sua etnia, Constituição erige um regime não-democrático em sua própria essência, na medida em que nega a seus membros o direito de voto. Logo, não teríamos a tensão entre dois ordenamentos políticos supostamente antagônicos — o constitucional, de um lado, o democrático, de outro —, mas sim o estabelecimento pela própria Constituição de um regime político não-democrático. Dada a obviedade deste ponto, creio que não é o caso de continuar tratando dele. Assim, a indagação apenas pode seguir fazendo sentido se disser respeito a outros problemas. O cerne da idéia que contrapõe a democracia ao constitucionalismo reside na suposição de que a vontade das maiorias deve ser soberana num regime democrático. De que Maneira — sem voltar ao que já foi discutido — tal soberania se veria prejudicada? Isto ocorreria sempré que, respeitados os direitos findamentais e as regras do jogo democrático, a vontade da maioria fosse obstaculizada. Noutras palavras, teríamos uma constitucionalidade antidemocrática em duas situações: (1) sempre que removesse do processo decisório poliárquico decisões que não atentassem contra a preservação dos direitos fundamentais nem contra o regime, atando as mãos da coletividade em assuntos sobre os quais ela desejasse legitimamente decidir pelo voto da maioria de seus membros; ou, alternativamente, (2) sempre que impusesse às maiorias decidir de uma maneira predeterminada acerca de assuntos nos quais a discricionariedade decisória não atentaria contra direitos fundamentais ou o regime democrático. E que assuntos seriam esses? Seriam todos aqueles que: versassem sobre temas situados fora do campo dos direitos Lindamentais e das regras do jogo democrático; ou pudessem ser (ratados sem o risco de violar tais direitos ou regras, mesmo versando sobre temas incluídos nesse campo. Assim sendo, a vontade soberana da maioria numa democracia não vale para tudo, mas apenas o que estiver situado fora do campo das normas constitucionais. Noutras palavras, o âmbito da política competitiva e distinto (e mais restrito) que o âmbito da política constitucional. Quer isto dizer que os princípios constitucionais são intocáveis ou inalteráveis? De modo algum.Apenas não podem ser tocados pela vontade estrita da maioria. Isto, inclusive, e algo que nos permite discutir com mais precisão a questão da vinculaçâo das vontades de gerações futuras a gerações passadas. Tratarei deste ponto mais adiante. 110
Por ora, basta ter em vista a seguinte premissa: DecisOes democráticas podem ser livremente tomadas pela maioria dos membros do corpo político ou de seus representantes,- respeitados os direitos fundamentais e as regras do jogo poliárquico. Cabe então indagar: o que está situado fora do campo das normas constitucionais (e da política constitucional), sendo objeto por natureza das decisões democráticas (e da política competitiva)? As políticas públicas. Com base nos pontos (A) e (B), destacados logo acima, as políticas públicas dividem-se em duas categorias principais — para os fins da discussão aqui promovida". Urna, a das políticas públicas concernentes a assuntos estranhos aos princípios constitucionais. Outra, a das políticas públicas que, mesmo relacionadas a tais princípios, não os negam, apenas os especificam, detalham ou criam conclipiies para sua efetivação.Vejamos alguns exemplos disto. Imaginemos uma lei, aprovada pelo Parlamento, que estabelecesse o seguinte: "As empresas de capital nacional e de pequeno porte, sediadas no pais, terão tratamento favorecido por parte do Estado". Unia decisão conto esta, claramente relacionada a uma certa opção em termos de estratégia de desenvolvimento econômico, é unia típica política pública de caráter regulatório", que nenhuma semelhança tem com direitos fundamentais (civis, políticos ou sociais), ou com regras do jogo poliárquico — a menos que se trate de um país no qual ou o grupo social dos pequenos empresários nacionais esteja disposto a pegar em armas e sublevar-se contra o regime caso não receba tratamento privilegiado (o que não parece algo muito plausível), ou o tecido social se veja ameaçado de esgarçamento caso isso não seja feito (o que também não parece verossímil). Por isso mesmo, a sua aprovação ou revogação pela vontade da maioria em nada ameaçaria a preservação do Estado Democrático de Direito na maior parte dos países de que temos notícias. Dessa
'S Menciono isto porque são diversas as possíveis formas de classificação das políticas públicas. Talvez a mais notória dentre elas seja aquela estabelecida por Theodore Lowi (1995), entre as políticas de tipo distributivo, regulatório e redistributivo. O que há de comum entre a análise de Lowi e aquela que pretendo desenvolver aqui é que ambas partem de uma discussão acerca do conteúdo das políticas públicas para dep‘ discutir as suas conseqüências para o processo decisório. 1 ° LOW!, Theodore, op. cit. 111.'
forma, não haveria qualquer motivo para que tal norma estivesse incluída num texto constitucional, ao menos numa democracia. Se considerarmos a posição de Carl Sclunitt (um teórico da Constituição que muito pouco apreço tinha pelo regime democrático), faria pouco sentido que tal decisão constasse de qualquer texto constitucional, democrático ou não. Em seus termos, uma Constituição em sentido absoluto é uma "regula* legal fundamental, ou seja, um sistema de normas supremas e últimas". E essa regulação fundamental "não se trata de leis ou normas particulares, ainda que muito importantes e produzidas com determinadas características externas, mas de uma normatinção total da vida do Estado, da lei fundamental no sentido de uma unidade fechada, da 'lei das leis'. Todas as outras leis e normas têm que poder ser referidas a essa uma norma"u. Portanto, se uma Constituição diz respeito a princípios fundamentais de organização do Estado, o dispositivo legal hipotético enunciado acima nada tem que ver com isto, mesmo em regimes não-democráticos. Mas seria ainda mais grave a presença de uma norma como essa no texto constitucional de um Estado democrático, pois seria bem provável que em algum momento um novo governo, eleito pelo voto da maioria dos cidadãos, quisesse modificá-la. Esse governo poderia considerar, por exemplo, que uma boa estratégia de desenvolvimento é aquela que estimula a concentração de capital em grandes empresas, sejam elas de capital nacional ou estrangeiro, de modo que o tratamento favorecido de firmas como as descritas na norma seria indesejável. Se este governo, que recebera de seus eleitores um mandato para proceder assim, fosse impedido de modificar tal decisão anteriormente tomada pelo fato de ela constar da Carta constitucional, então a democracia teria sido ferida, Estaríamos diante do problema a que se refere Holmes19 , pois uma eventual maioria ou geração que lograra inserir tal dispositivo na Constituição, amarrou as mãos de sua posteridade, impedindo-lhe de se governar da maneira que melhor lhe aprouvesse — lesando a soberania popular. Mas se o exemplo acima diz respeito a um tema completamente estranho a normas constitucionais, este que se segue pode ser visto como
" La teoria de la Constitución, Madrid: Alianza, 1982, p. 33. 18
HOLMES,Stephen."Precommitment and the parador of democracy", in ELSTER, Jon, SLAGSTAD, Rune (eds.). Constitutionalism and demovo,. Cambridge: Cambridge University Press, 1988a.
um caso de detalhamento de tais normas para sua efetivação mediante políticas públicas. hnaginernos uma lei que estabeleça o seguinte: "O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garimpeiro e o pescador artesanal, bem como os respectivos cénitiges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercializa* da produção e farão Jus aos benefícios nos termos da lei".
Como se nota, é evidente que aqui não são enunciados princípios fundamentais, mas sim detalhes acerca da efetivação de uma política pública, no caso referente a direitos sociais. Define-se de que modo categorias profissionais peculiares podem contribuir para o financiamento da seguridade social, fazendo jus aos benefícios. Novamente, a criação de uma norma como esta ou sua modificação em nada ameaça direitos básicos, sejam eles aqueles a que concerne tal política — os direitos sociais — ou quaisquer outros.Também é improvável que pescadores, garimpeiros e suas famílias encampassem uma luta revolucionária tendo como motivação o método específico escolhido pelo governo para recolher sua contribuição à seguridade social, a não ser que esta fosse escorchante — mas neste caso o problema seria a espoliação a que estivessem sendo submetidos, não o modo de cobrar-lhes. Em suma, parece não fazer qualquer sentido que um texto constitucional contenha um dispositivo como este, mas se o contivesse, novamente a democracia seria arranhada. Por que motivo não poderia uma eventual maioria ou o governo por ela escolhido decidir recolher tal contribuição por outros meios, por exemplo, com base na declaração de rendimentos? Se estivesse impedida de fazer isto, novamente a soberania popular estaria sendo ferida — sem mencionar, claro, o patético de tal situação. Mas poderia ocorrer que urna Constituição contivesse normas como essas em seu texto. O que significaria isto? Em primeiro lugar, evidentemente, a violação de um princípio básico da democracia: aquele segundo o qual compete à maioria do povo em cada momento (na eleição, por exemplo) decidir como se governar. Em segundo lugar, o rebaixamento da Constituição à mera condição de lei constitucional, nos termos de Carl Schmitt.Vejamos o que afirma o autor: "Toda distinção objetiva e de conteúdo se perde em conseqüência da dissolução da Constituição única numa pluralidade de leis constitucionais distintas, formalmente iguais. Para este conceito 'formal' é indiferente que a lei constitucional regule a organização da vontade estatal ou tenha qualquer outro conteúdo. 113
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Tais detalhes da lei constitucional são todos igualmente 'fundamentais' para uma consideração fonnalista e relativista sem distinções. (...) Mas claro está que com tal formalização não recebem caráter fundamental de nenhum modo aquelas prescrições particulares, mas, ao contrário, as autênticas prescrições fundamentais são rebaixadas ao grau de detalhes da lei constitucional" ". Carl Schmitt faz esta crítica tendo em mira a Constituição alemã da
República de Weimar. Ela incorporava em seu texto diversos elementos que muito pouco tinham a ver com os princípios constitucionais supramencionados. Mas por que razão isto teria ocorrido?Vale novamente citar o autor. Segundo ele, as regulações legais "converteram-se em leis constitucionais mediante sua incorporação pela 'Constituição'. A incorporação pela Constituição se explica pela situação histórica e política do ano de 1919. Os partidos em cuja cooperação se baseava a maioria da Assembléia Nacional de Weimar quiseram com afinco dar a estas prescrições o caráter de normas constitucionais. Não se pode encontrar uma razão objetiva para distinguir com força lógico-jurídica estas prescrições particulares de outras também muito importantes"20.
Mas se não é possível uma explicação lógico-jurídica para a inclusão dos detalhes no corpo da lei, a oportunidade politica criada pela Assembleia Constituinte num dado momento histórico explica bem o porquê do texto conter certas coisas. Isto é ainda melhor sumarizado, de forma genérica, nesta passagem: "As Constituições dos distintos Estados aparecem como uma série de diversas nonnatizações legais de conjunto: prescrições orgânicas sobre as autoridades mais importantes do Estado, programas e diretrizes de caráter geral, garantias de certos direitos e numerosas prescrições particulares que apenas foram inscritas na Constituição porque se quer subtrai-las das cambiantes maiorias parlamentares e porque os partidos que determinam o conteúdo da 'Constituição' aproveitam a ocasião para prestar o caráter de leis constitucionais aos seus postulados de partido"2'.
Fica evidenciado nesta passagem justamente o caráter antidemocrático inerente à inclusão de políticas públicas num texto constitucional.
" SCHMITT, op. cit., p. 37-38. 20 Idem, ibidem. 2i Idem, ibidem, p. 40.
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É interessante como a expressão aqui enunciada por Can Sclunitt é muito semelhante àquela de Holmes, supracitada. Fala-se aqui em subtrair decisões dos mais diversos tipos às "cambiantes maiorias parlamentares", ao passo que antes se descreviam as Constituições liberais como conjuntos de regras que "limitam a capacidade de cada geração furtar a seus próprios sucessores escolhas significativas". Ora, o que os artífices da Constituição de Weimar fizeram foi
justamente impedir que seus sucessores realizassem escolhas de caráter meramente partidário— e são os partidos que disputam a preferência momentânea das maiorias eleitorais. Portanto essa Carta foi, neste sentido, não apenas muito pouco liberal, mas também muito pouco democrática. Portanto, uma Constituição dirigente seria antidemocrática caso, ao definir os fins a serem perseguidos,pelo legislador (ou pelo governante), o fizesse de modo demasiadamente restritivo, acabando por embotar a discricionariedade decisória necessária para que tivesse lugar a satisfação da vontade popular nos marcos da controvérsia partidária historicamente aceita numa dada sociedade. Se uma Constituição vincula formalmente questões que são objeto da Controvérsia política cotidiana dos partidos nas arenas eleitoral e parlamentar, ela extrapola a normatividade propriamente constitucional, reduzindo o grau de democracia. Este ponto de vista, que norteia minha pesquisa, pressupõe um tipo ideal de Estado democrático que seja um veículo à consecução de vontades majoritárias, cambiantes ao longo do tempo. Toma portanto como tipo ideal de Constituição um modelo antagônico ao da Constituição dirigente de Canotilho, tida por ele como um "instrumento de governo".Todavia, nem por isso se enquadra noutro marco teórico antagônico ao da constituição dirigente, criticado pelo constitucionalista português e por ele descrito na passagem abaixo: "A teoria da sociedade e do Estado subjacente à Constituição dirigente não corresponde a uma teoria contratualista liberal ou neoliberal: o Estado não se reduz a um processo de decisão, sem fins próprios (interesses públicos), ou a um método de maximização dos interesses individuais (mecanismo de garantia da 'alocação' e da distribuição espontânea das preferências individuais)".
Esse modelo analítico descrito por Canotilho é basicamente o de Buchanan e Tbllock. Para esses autores, estando contidos numa Constituição princípios fundamentais ao convívio social, cuja modificação altera de forma significativa as condições básicas da vida de todos os indivíduos,
CANOTILHO, op. cit., p. 390.
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neoliberal, como afirma Canotilho. Ele próprio reconhece que há críticos temerosos de que uma Constituição dirigente crie riscos de "expectativas escalantes", "sobrecarga do governo" ou "ingovernabilidade"". Entretanto, isto não se daria aqui pelo fato de que são criadas expectativas excessivas de direitos, ocasionando urna sobrecarga de demandas sobre um Estado institucionalmente incapacitado para processá-las, como apontaria Huntington em seu diagnóstico sobre a crise de governabilidade". Neste caso, o problema adviria simplesmente do fato de que a constitucionalização de políticas públicas que são objeto da politica competitiva dificulta a mudança democrática do status quo, gerando uma fonte de instabilidade para o funcionamento normal de um regime caracterizado pela alternância dos partidos no poder e, por conseguinte, pela correspondente mudança das politicas governamentais".
Em outros termos, a ingovernabilidade não seria conseqüência do excesso de democracia, mas sim causa de um déficit democrático, provocado pelo impedimento constitucional das maiorias decidirem questões de teor partidário. Mas qual a razão para que uma Constituição tenha este poder restritivo sobre a capacidade decisória das maiorias de ocasião? Não se trata de qualquer sacralização do texto constitucional como algo intocável, mas simplesmente dos requisitos decisórios bem mais restritivos que normalmente salvaguardam um texto constitucional, Dificilmente altera-se uma Constituição por procedimentos majoritários comuns. Ao invés disso, requer-se o voto de uma maioria qualificada dos representantes politicos, ou ainda exige-se um trâmite decisório muito mais árduo e complexo do que o habitualmente requisitado para decisões comuns de governo". Um exemplo particularmente notável neste sentido é o da Constituide dos Estados Unidos.A proposição de emendas à Carta requer o voto ção dois terços dos membros de cada uma das duas Casas do Congresso, ou o endosso de dois terços das Assembléias Legislativas dos Estados. Depois disto, as emendas devem ser aprovadas por três quartos das Assembléias ou então pelo mesmo número de Convenções Estaduais convocadas para este fim. Diante de tais exigências, é de se espetar que a Constituição dificilmente seja modificada". E é justamente esta a intenção que justifica a criação de tantas dificuldades. Isto por se entender que, estando comidos na Carta princípios fundamentais à existência da nação, cuja modificação alteraria de forma significativa as condições básicas da vida dos cidadãos, eles apenas deveriam ser alterados quando houvesse um forte consenso entre os diversos segmentos de que é composta. a sociedade.
" BUCHANAN &TULLOCK (1999: 85). " CANOTILHO, op. cit., passitn. "Idem, ibidem, p. 391. "Idem, ibidem, p. 392. 21 HUNTINGTON, Samuel. A ordem política nas sociedades em mudança, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Edusp, 1975. 280 que se nota aqui é o risco apontado por George TSEBELIS, de que a excessiva estabilidade das políticas públicas pode levar à instabilidade do regime ("Processo decisório em sistemas políticos: veto playen no presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e pluripartidarismo", Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 12, n. 34, julho de 1997,p. 92).
"Para uma análise comparativa desses procedimentos, ver o trabalho de Donald Luiz, "Toward a theory of constitutional amendment". In LEVINSON,Sanford.Responding io impeorection: the theory and pracnce of constitucional amendment. Princeton: Princeton University Press, 1995. " A Constituição dos EUA foi aprovada na Convenção Constitucional da Filadélfia em setembro de 1787, sendo ratificada em julho do ano seguinte. Em dezembro de 1791 foi ratificado um pacote de 10 emendas que ficou conhecido como Bill of Righis, cuja aprovação já havia sido negociada à época da ratificação original, como uma condição para que esta se desse. Neste sentido, tais entendas compõem como que uma parte adicional ao próprio texto constitucional originário. Desde então, apenas 17 emendas foram aprovadas, em mais de 215 anos de história, dentre elas, por exemplo, a que baniu a escravidão (Emenda XIII, 1865).
eles apenas devem ser alterados quando houver forte consenso entre os diversos atores de que é composta a sociedade. Tal regra permite reduzir os custos esperados das decisões coletivas sobre questões constitucionais. Ou seja, exigindo-se um amplo consenso — no limite, a unanimidade" —, dificulta-se a tomada de decisões, mas se torna menos provável que qualquer um seja prejudicado, já que sua cooperação para a tomada de decisões torna-se necessária — e, no caso da unanimidade, indispensável. O que aponto aqui, todavia, é algo além desta mera percepção da Constituição como "instrumento de governo", Refiro-me aqui ao fato de que certos conteúdos normativos, caso constitucionalizados, numa certa sociedade, restringem o grau de democracia em vigor. Parece-me, portanto, pouco adequada a presunção segundo a qual uma Constituição dirigente seria adequada a uma ordem socialista ou social-democrática", enquanto urna não-dirigente seria apropriada a uma ordem liberal ou
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Tal regra permite promover urna redução dos custos esperados das decisões coletivas3' sobre questões constitucionais. Ou seja, exigindo-se um amplo consenso — no limite, a unanimidade32 —, dificulta-se a tomada de decisões, mas se torna menos provável que qualquer um seja prejudicado, já que sua cooperação para a tomada de decisões torna-se necessária — no caso da unanimidade, indispensável. Neste caso, quem eventualmente se visse prejudicado por uma provável decisão poderia vetá-la, bastando, para isso, negar seu consentimento. Com isto, é bastante reduzido (ou mesmo eliminado) o risco decorrente da modificação seja de regras básicas do jogo político, seja de normas garantidoras de direitos fundamentais. A criação de uma tal proteção faz todo o sentido no que diz respeito a decisões constitucionais, tendo em vista o fato de que alterar preceitos contidos na Carta implicaria transformar condições elementares de existência da coletividade — da polity. Mas isto muda bastante de significado quando se supõe que tais restrições poderiam valer para outras decisões, referentes a políticas públicas — policies. Neste caso, promover a redução dos custos esperados das decisões ordinárias, elevando-se os custos do processo decisório", apenas tornaria mais árduas as condições habituais de governo, reduzindo a possibilidade de que mandatários eleitos para implementar a vontade momentânea da maioria pudessem fazê-lo. Seria, portanto, um procedimento flagrantemente antidemocrático. Não é a mera inclusão de uma norma qualquer na Carta que dá a ela caráter constitucional no sentido aqui assinalado. Isto apenas lhe dá estatuto formal de lei constitucional, como aponta Schmitt'''. O formalismo não altera a natureza do conteúdo da norma em questão. Isto tornaria descabida qualquer pretensão de defesa de uma determinada ordem normativa, composta por diversas leis constitucionais, sob a alegação de que se trata de uma defesa "da Constituição". Contudo, tal defesa teria cabimento no bojo de um texto constitucional heterogêneo, composto de princípios constitucionais e políticas públicas simultaneamente, caso fosse direcionada aos primeiros, não às últimas. Afinal, realmente é pou-
BUCHANAN, James M. & TULLOCK, Gordon. The calculas of consent: logical foundations of constitutional democracy, Indianapolis: Liberty Fund, 1999. "Idem, ibidem, p. 85. 33 Idem, ibidem, passim. "Op. cit., p. 37.
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co favorável à estabilidade politica um texto constitucional passível de transformações constantes e reiteradas — desde que, é claro, ele realmente seja um texto constitucional. Decisões referentes a políticas públicas stricto sensu são controversas, ou seja, seu conteúdo é típico "objeto da controvérsia politico-partidária cotidiana, dizendo respeito às plataformas governamentais apresentadas [aos eleitores] pelos partidos em seu embate pelos postos de governe's. Isto quer dizer que tais decisões são resultado contingente da competição democrática, podendo se dar de forma muito variável de acordo com o desfecho das disputas eleitorais. É possível que uma determinada política implementada por um partido quando no governo seja completamente revertida por aquele que lhe suceder. Tal possibilidade é inerente ao governo democrático e uma tal mudança de rumos, promovida pelo grupo guindado à condição de situacionista, é algo perfeitamente legítimo. Negar aos novos governantes eleitos o direito de alterar os rumos do governo seria o mesmo que negar a seus eleitores a possibilidade de escolher quais políticas públicas querem que sejam implementadas. Que motivos poderíamos ter, numa ordem social e politica pluralista, para considerar ilegítimas certas opções de políticas públicas? Evidentemente, diferentes indivíduos, partidos e grupos sociais são portadores de preferências distintas com relação àquilo que desejam ver implementado por seus governos. Perder uma eleição ou ter o seu candidato preferido derrotado implica provavelmente em ter também a sua politica predileta preterida pelo governo que tomará posse. Isto é algo inevitável num jogo político competitivo. E de se esperar que os setores derrotados ficarão insatisfeitos com os rumos tomados pelo governo e, conseqüentemente, lhe farão oposição. O questionamento decorrente da ação oposicionista também é parte inerente à política competitiva, de modo que suas demandas, assim como suas propostas alternativas, são dotadas de uma legitimidade equivalente àquela das políticas que são implementadas, pois o fato de terem sido derrotadas não as torna ilegítimas por si mesmas. Tanto que, se numa nova rodada da competição política os partidos ora vencidos tornarem-se vencedores, terão tanta legitimidade quanto os atuais detentores dos cargos decisivos para implementar
" COUTO, Cláudio Gonçalves & ARANTES, Rogério Bastos. Constitución o políticas públicas? Una evaluaciOn de los ailos FHC, in PALERMO, Vicente (org.), Marca &rasam-ia contempordnea: de Coltor a Lula as afim de transformación. Buenos Aires, 2003, p. 95-154.
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suas ações. Que tipo de proposta poderia ser considerada ilegítima num cenário como este, de competição democrática? Em primeiro lugar, seriam ilegítimas as ações por parte de' situacionistas ou oposicionistas que procurassem burlar as regras do jogo estabelecido ou violar direitos fundamentais consagrados na Constituição. No caso disto ocorrer, tais ações deveriam ser obstaculizadas pelas autoridades e instituições competentes para tal. Um instrumento para isto é o controle constitucional, exercido pelas cortes sobre as normas produzidas, sejam elas leis ou atoe administrativo., Assim, uma plataforma partidária contrária a preceitos constitucionais, mesmo que aprovada nas urnas, não poderia ser legitimamente implementada. A não ser, é claro, que contasse com um amplo consenso dentre as forças políticas de modo que fosse possível alterar a Constituição seguindo os exigentes procedimentos normalmente fixados para tal. Neste caso, contudo, a plataforma não seria propriamente controversa, mas sim consensual, pois o consenso é uma condição necessária para a superação dos obstáculos institucionais à aprovação de Modificações constitucionais. Em segundo lugar, seria ilegítimo retirar de maiorias eventuais e/ou seus representantes eleitos o direito de decidir sobre questões controversas, pois é justamente para isso que serve a democracia, Revestir normas partidariamente controversas de salvaguardas válidas para normas consensuais significaria aprisionar a coletividade a escolhas particulares cuja revogação não ameaça os fundamentos da ordem social e política. Significaria impor a todos, de forma perene porque majoritariamente incontestável, as preferências partidariamente controversas de alguns. Isto implicaria — no que concerne às políticas públicas elevadas à condição de lei constitucional — anular a possibilidade de alternância democrática no poder. Seria como afirmar aos governantes ou a um partido vencedor numa eleição: "Votes venceram as eleições, mas não poderão implementar as políticas com as quais estão comprometidos e legitimados pelo voto popular". Do ponto de vista do conteúdo efetivo do governo — para além da mera ocupação dos postos — trata-se de um equivalente lógico do popular "ganha, mas não leva", Evidentemente, mesmo princípios constitucionais não são absolutamente consensuais, isto é, unânimes. Justamente por isso, a regra da unanimidade, aventada por Bucharian e Tullock" apenas como um procedi-
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Op. cit., passim.
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mento decisório ideal no mundo do modelo analítico, seria bastante problemática caso fosse adotada de fato como necessária para aprovar constituições ou modificá-las.Afinal de contas, sempre há aqueles que se opõem à adoção de preceitos constitucionais sem os quais o sistema político não se mantém em pé; e se os atores X considerarem indispensável o resguardo constitucional a matérias vetadas pelos atores Y para o seu consentimento, inviabiliza-se o sistema de segurança mútua a que alude Dahl. É o caso do direito de propriedade; é possível que agrupamentos políticos de extrema esquerda, cujo voto fosse necessário à aprovação de urna Carta, se colocassem firmemente contra a proteção constitucional à propriedade privada. Isto ocorrendo, porém, tornaria a situação dos setores proprietários tão vulnerável que, eles talvez não considerassem proveitoso apostar na manutenção do regime democrático; o custo da repressão seria superado pelo custo da toleiância e o edificio constitucional (que é um sistema de segurança mútua) se inviabilizaria. Ao invés da unanimidade, ou do consenso absoluto, certo grau de consenso relativo é necessário à sustentação de .uma ordem constitucional poliárquica. Um conjunto de regras constitucionais cuja aprovação exija concordância unânime provavelmente será tão anódino e vago que se tornará inútil, pois criará uma proteção débil aos interesses sociais e políticos relevantes. Já o consenso relativo implica no consentimento de setores sociais mais amplos do que a maioria estrita a regras e condições básicas cujo respeito é necessário para que o processo político competitivo e o modo de vida tido como aceitável tenham lugar, eliminando motivos para o uso da violência como instrumento de resolução dos conflitos políticos, da busca de objetivos particulares ou da promoção de mudanças sociais". Neste quadro, caso segmentos relevantes prefiram uma ordem constitucional distinta da existente, não conseguirão promovê-la sem a anuência de amplos setores. Esta perspectiva aproxima-se — mas não equivale — à de Russell Hardin. Para ele, urna Constituição é antes um instrumento de coordenação que o fruto de um contrato:
" O Dicionário H0140iSS define consenso, dentre outras coisas, como "concordância ou uniformidade de opiniões, pensamentos, sentimentos, crenças etc., da maioria ou da totalidade de membros de uma coletividade". Creio que são mais úteis para nós aqui as idéias de concordância e maioria (ainda que qualificadas) que as de uniformidade e totalidade.
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"Por não ser um contrato, mas uma convenção, uma Constituição não depende para a sua efetivação de sanções externas ou comprometimentos auto-impostos fundamentados em nada que não seja uni acordo suposto ou hipotético. O estabelecimento de uma Constituição é um ato massivo de coordenação que cria unia convenção, a qual depende para sua manutenção de incentivos autogerados e expectativas"". Hardin compara as regras constitucionais às regras de trânsito que estabelecem as mãos das vias de tráfego. Os ingleses preferem circular pela pista da esquerda, contrariando a tendência predominante, simplesmente pelo fato de que se habituaram a fazê-lo e isto gerou uma coordenação espontânea entre eles. Ainda que alguém considere melhor circular pela pista da direita, não haveria motivo para mudar a convenção estabelecido, na medida em que o processo de mudança seria altamente custoso e os custos da mudança provavelmente superariam os ganhos. Da mesma forma, uma Constituição estabeleceria regras de coordenação entre os cidadãos e grupos sociais, permitindo-lhes viver de forma ordenada, sem contudo gerar ganhadores e perdedores de antemão, configurando um equilíbrio estável. Parece-me que a definição de Hardin confere excessiva neutralidade ao ordenamento constitucional, fazendo dele um conjunto de regras que não teriam por que gerar entre os homens grandes diferenças ou tensões. O fato de que normas sejam consensuais supõe na realidade o reconhecimento de que não vale a pena brigar sobre certas coisas, sendo melhor asseguralas corno direitos e gerar uni sistema de segurança mútua, a correr o risco de provocar uma guerra civil ou um cenário de grande instabilidade. Preferencias como as referentes aos direitos de propriedade, por exemplo, não são fracas como as relativas às vias de tráfego. Ao contrário — e a história é pródiga em demonstrar isto —, podem gerar agudos conflitos entre seres humanos. Estes, contudo, podem preferir não entrar em disputas constitucionais em torno de questões desse tipo, ainda que considerem que a garantia de certos direitos crie entre eles situações profundamente indesejáveis. É sobretudo a discordância em torno dos direitos condicionantes do jogo político (não-procedimentais) que cria dificuldades para que um consenso pleno possa existir. Poder-se-ia esperar, como apontam Buchanan e Tullock, que a unanimidade emergisse no momento da tomada de decisões constitucionais, desde que entendidas como dizendo respeito às
HARD1N, Russell (1999: 140). 122
"propriedades operacionais de regras alternativas"" — ou seja, dizendo respeito aos direitos operacionais (procedimentais), apenas. Na realidade, decisões constitucionais tocam também em pontos que — dizendo respeito a condições fundamentais do convívio social e político — são ultracontroversos, pois fixam limites além dos quais a controvérsia não pode ir, na politica competitiva cotidiana. Os limites da controvérsia admissivel numa poliarquia são aqueles fixados pela preservação dos direitos condicionantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Como já apontou Olson em seu texto clássico", indivíduos racionais e dotados de interesses comuns não agem necessariamente de modo a atingi-los. Isto faz com que seja necessária uma força coercitiva externa, garantidora da consecução de tais objetivos, podendo levar a formas contratuais de estruturação de atores coletivos capazes de impor a cada um dos indivíduos membros de um grupo o cumprimento das decisões coletivas, permitindo atingir interesses comuns. Todavia, remanesce o problema acerca de como os membros de um grupo se convencem a firmar um contrato. É improvável que decorra, simplesmente, de um pacto espontâneo entre todos, tendo nalgum ente coercitivo externo apenas uni garantidor neutro; também provavelmente não decorrerá de uma convenção. Este "contrato", para ser firmado, dependerá de atores dotados de poder diferenciado, capazes de forçar os demais a aderir a um ordenamento normativo que lhes interesse. Sendo assim, a noção de Schmitt, do estabelecimento de uma Constituição como ato soberano, ainda que deva ser tomada cum grano salis, parece-me mais sugestiva (e realista) que o modelo contratualista nos moldes de Buchanan & Tufiock — e, também, que o modelo da Constituição como convenção, defendido por Hardin —, mesmo para a compreensão do que é uma ordem constitucional democrática. O interesse e a capacidade política mais fortes de alguns grupos sociais podem lhes permitir erigir uma ordem constitucional amoldada a suas preferências. Entretanto, na medida em que os demais grupos disputam espaços no interior dessa ordem, mitigando o predomínio dos mais poderosos, podem também impedir sua conversão numa hegemonia — pensada aqui nos termos propos-
" "Uma teoria individualística do processo político". lii EASTON, David (org.). Modalidades de análise política, Rio de janeiro: Zahar, 1970, p. 43. OLSON, Mancur. fie !agir of collective action: puhlic goods and alie theory of groups, Cambridge, London; Harvard University Press, 1965.
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tos por Dahl (1997), como não-poliarquia. Tal entrechoque de forças, em contexto pluralista, conforma o regime poliárquico, dando a ele o caráter de um pacto pluralista assimétrico — assimétrico por contemplar elementos impostos pelos grupos sociais mais poderosos, capazes de assegurar constitucionalmente direitos que resguardam a sua própria superioridade política, social ou econômica numa dada sociedade. Undo isto em vista, poderíamos afirmar que, na realidade, uma Constituição possui, simultaneamente, elementos contratuais e não-contratuais, Os direitos condicionantes, ainda que possam ser incorporados à Carta por meio de decisões consensuais (no limite unânimes) dos legisladores, concernem a urna realidade social externa e conformadora do próprio pacto constitucional firmado (hegemonia agora na acepção gramsciana, de correlação de forças e compromisso)". Há uma realidade social externa ao ordenamento constitucional, fundamentada nas relações sociais de poder e no controle sobre os instrumentos de coerção,A Constituição é feita em conformidade com essa realidade, que fornece parcialmente (e apenas parcialmente) uma condição que Hardin" aponta como necessária à Constituição como contrato:a existência de um garantidor externo, que assegure seu cumprimento. Essa garantia externa parcial para o cumprimento, novamente recorrendo a Dahl, é dada pelo sistema de segurança mútua engendrado tácita ou explicitamente pelos próprios atores em interação política, na forma de um pacto assimétrico. É. assimétrico por tratar-se de um pacto imposto pelos setores sociais e políticos mais poderosos. Aos demais segmentos da sociedade — dada a correlação de forças — não resta outra alternativa que não a de aceitá-lo nos termos em que é estabelecido,podendo-se contrapor apenas certas condições e soluções de compromisso, sempre dentro dos limites da ordem imposta. Por conseguinte, pode-se questionar a afirmação schmittiana de que a Constituição não resulta de um pacto, exceto no caso das federações. Schmitt nega à Constituição a condição de pacto pelo fato de ver nela o fruto da vontade do soberano, que não resulta de um pacto. Isto poderia ser verdadeiro
GRAMSCI,Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 33-50. Gramsci observa que a hegemonia, contudo, supõe que o grupo dominante considere os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais exerce seu predomínio, precisando gerar um equilíbrio de compromisso e sacrificios dos seus interesses imediatos (econômico-corporativos) até o limite da sua preservação. 42 Op. cit„ p. 117. 41
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no caso de constituições impostas, em regimes autocráticos; mas não é se a aprovação da Catta ocorrer no âmbito de um regime representativo pluralista e sob regras decisórias que exijam por parte dos constituintes a formação de um consenso entre diversas forças sociais e políticas. Neste caso, mais urna vez a lógica pactuai faz-se presente — ainda que de forma assimétrica, Restaura-se, assim, urna condição necessária à Constituição como contrato, percebida como ausente por Hardin: a existência de um garantidor externo que faça cumprir tal contrato. Condições sociais limítrofes, propiciadoras de conflitos fundamentais entre diferentes setores sociais, podem exercer sobre o estabelecimento de acordos constitucionais um papel similar ao de um ente coercitivo externo sobre os que fixam um contrato: elas garantem que se esse contrato não for cumprido segundo os termos estabelecidos, a coação sobrevirá, ainda que na forma de conflitos sociais agudos — quiçá generalizados — que acabarão por emergir. Isto acaba por estimular ao menos um dentre os atores sociais relevantes a buscar estabelecer urna ordem que lhe seja favorável, gerando a reação dos demais, que assim buscam acomodações aceitáveis. Por exemplo, ainda que classes proprietárias tenham condições mais vantajosas na imposição de seus direitos de propriedade (condicionantes), incorrerão em custos de coerção proibitivos caso se recusem em contrapartida a acatar direitos sociais (também condicionantes) reivindicados pelas classes não-proprietárias. Portanto, desde que tomada de forma mitigada, a premissa marxista segundo a qual é o Estado um instrumento de classe encontra certo ftmdamento43. Isto também corresponde a certos pressupostos pluralistas, presentes na obra de Dahl (1997): em contexto pluralista e com um Estado democrático, é fato que alguns setores da sociedade têm mais proteção (a suas condições privilegiadas) do que os demais, assim como têm também a capacidade de imprimir mais efetivamente sua marca à estruturação básica do Estado na garantia de sem direitos. A democracia como forma pacífica de resolução de conflitos sobre políticas públicas apenas pode ocorrer no interior de fronteiras fixadas por tal estruturação básica. A ultrapassagem de tais limites leva a situações em que pode ser mais vantajoso às partes recorrer à violência para garantir seus interesses, deteriorando o convívio social estabelecido. Isto pode ocorrer pela revolta politicamente organizada contra a ordem vigente (na forma de uma sublevação), pela percepção difusa da ineficácia do Estado em garantir condições tidas pelos indivíduos como indispensáveis, estimulando uma
"É isto o que caracteriza também a abordagem clássica de Ferdinand Lassalle (2000).
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busca anêmica da satisfação privada (que redunda em violência, desrespeito sistemático às regras de sociabilidade, às leis etc.), ou, na menos danosa das hipóteses, deflagrando uma crise de legitimação do Estado. Como se nota, nenhum desses cenários permite qualquer alento. Nota de pesquisa Procurei apontar aqui algumas distinções relevantes entre o que podemos considerar normas constitucionais e politicas públicas, expondo a inconveniência, do ponto de vista democrático, de que Cartas constitucionais contenham dispositivos que sejam, na realidade, referentes a decisões comuns de governo. Os dois exemplos de típicas decisões de governo que nenhum papel teriam a desempenhar num texto constitucional foram retirados, na realidade, da Constituição brasileira de 1988. O primeiro deles é uma versão levemente modificada do que traz o art. 170, inciso IX, de nossa Carta Magna. O segundo exemplo (referente às formas de contribuição social de meeiros, pescadores, garimpeiros etc.) é uma transcrição literal do art. 195, § 82, da mesma Constituição. Uma discussão dos efeitos para o processo de governo que pode ter uma Carta como essa vem sendo desenvolvida por mim em parceria com Rogério Arantes". Em nossos trabalhos procuramos apontar de que forma o modelo constitucional brasileiro se refletiu no processo político brasileiro recente. Este artigo desenvolve teoricamente algumas das questões por nós enunciadas em outros textos. Um problema empiricamente relevante para a pesquisa, portanto, é verificar o que uma Constituição contém ou não — e daí o que ela subtrai ao alvedrio das maiorias. Uma Constituição que contenha muito do que é objeto da disputa político-partidária cotidiana de um país provavelmente restringirá consideravelmente a liberdade que terão os partidos vencedores nas urnas para implementar suas agendas governamentais. Inversamente, uma Carta que pouco avance sobre ternas estranhos aos fundamentos da convivência política e social de uma dada coletividade permite que a decisão sobre políticas públicas se dê com base na correlação de forças em competição democrática numa certa conjuntura. Com base nesta aferição é possível determinar o caráter mais ou menos democrático de uma Carta constitucional e suas possíveis implicações para o processo de governo.
"COUTO & ARANTES, op. cit., e COUTO, Cláudio Gonçalves & ARANTES, Rogério Bastos, "Constituição, governo e democracia no Brasil", Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 21, n. 61, 2006. 126
E ai aparece um segundo problema empiricamente importante: a forma concreta como o ordenamento constitucional vigente afeta o jogo político cotidiano. Os governos têm maiores dificuldades (ou facilidades) para implantar suas agendas em função do marco constitucional? É a Constituição alvo constante de iniciativas governamentais ou ela apenas emoldura a disputa político-partidária? Como a apreciação judicial de políticas públicas é afetada pelo marco constitucional? O interesse por este tema surgiu da constatação de que os governantes brasileiros no período pós-1988 levaram a cabo algo similar a urna agenda constituinte", ou seja, orientaram-se para a promoção de sucessivas modificações do marco constitucional apenas recém-implantado: aprovaram-se 45 emendas constitucionais até janeiro de 2005 (ECs) e mais 6 emendas constitucionais de revisão (ECRs) na revisão constitucional de 1994. Aliás, vale observar que essas emendas aprofundaram o caráter pormenorizado do texto e vincularam ainda mais os futuros governos a politicas públicas preceituadas constitucionalmente. Desde a aprovação da EC n. 1, de 31 de março de 1992, a média de modificações da Carta brasileira foi de 4,15 por ano, número impressionante. Mas, para superar o impressionismo, caberia questionar: é esse padrão brasileiro peculiar ou ele se aproxima do verificado noutros países? Caso se aproxime de alguns casos e se distinga de outros, é possível identificar, nos textos constitucionais, elementos que sugiram padrões de impacto do modelo constitucional sobre o processo decisório governamental? A comparação entre diferentes casos constitui um terceiro problema empírico relevante, a partir de cujo estudo é possível aprofundar a elaboração teórica acerca das implicações dos tipos de constituição para o processo de governo em poliarquias. Se tomarmos o estudo seminal de Lute", o número de emendas à Constituição brasileira é elevado mesmo em termos comparativos. É interessante observar que ele chama a atenção para o fato de que Constituições extensas tendem a ser mais emendadas do que as sucintas. Segundo
COUTO, Cláudio Gonçalves. "A agenda constituinte e a difícil governabilidade", Lua Nova, São Paulo, ri. 39,p. 33-52, 1997;"A longa constituinte: reforma do Estado e fluidez institucional no Brasil", Dados: Revista de Cindas Sociais, Rio de janeiro, v. 41, n. 1, p. 51-86, 1998; "O avesso do avesso: conjuntura e estrutura na recente agenda política brasileira", São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 32-44, 2001. COUTO, Cláudio Gonçalves, e ABRUCIO, Fernando Luiz, "O segundo governo FHC: coalizões, agendas e instituições". Revista Tempo Social, São Paulo, v. 15, n. 2,?' 269-301,2003. COUTO 8c ARANTES, op. cit. " LUTZ, op. cit. 127
ele, isto se deve a que essas Cartas tenderiam a contemplar um maior niunero de "funções de governo"", o que tornaria inevitável o seu maior emendaincuto. Se por "funçõ es de governo" podemos entender"políticas públicas", não surpreende que a Constituição brasileira de 1988 seja tão emendada. Os governos brasileiros no período pós-1988 buscaram construir maiorias congressuais bem superiores às comumente necessárias para a aprovação de políticas no Congresso. Não bastaria ter a maioria absoluta, uma vez que a implementação de algumas políticas-chave requereria o emendamento da Constituição e, portanto, exigiria bases de sustentação parlamentar superiores aos 60% na Câmara e no Senado — quorum mínimo necessário para a aprovação de emendas constitucionais. Fernando Henrique Cardoso logrou obter tal sustentação nas duas Casas"; Lula chegou a contar com tal apoio apenas na Câmara dos Deputados, enfrentando dificuldades bem maiores no Senado. Durante o mandato do primeiro, 35 Emendas Constitucionais foram aprovadas e, durante o mandato do segundo, 13 Emendas Constitucionais até o momento em que redijo este artigo. A esmagadora maioria delas foi de iniciativa do próprio Executivo. Considerando-se as dificuldades bem maiores para a tramitação de Emendas Constitucionais no Congresso, se comparadas aos projetos de lei, não é razoável supor que os presidentes poderiam ter simplesmente optado pelo encaminhamento destes, ao invés daquelas, tendo em vista as mesmas políticas. Portanto, pode-se afirmar com segurança que os presidentes, a despeito de contarem com apoio parlamentar majoritário, tiveram de expandir esse apoio para avançar suas agendas — arcando com os custos políticos disto, que não são poucos, como os tristes episódios do suborno de parlamentares para a obtenção de apoio deixaram claro. Vê-se assim que nosso modelo constitucional — uma Carta que compreende políticas públicas (policy) além de normas estruturantes do convívio político (polity) — tem implicações diretas para o processo de governo no Brasil. Isto, contudo, não tem sido objeto de atenção pelos estudiosos de nosso ordenamento institucional no âmbito da ciência política, salvo raríssimas exceçõ er. As atenções têm se voltado a outros aspectos relevantes de nossa institucionalidade política, notadamente as relações entre os poderes, o fim-
Idem, Ibidem, p. 244. " FIGUEIREDO & LIMONGI (1999). 49 Além dos trabalhos meus e de Rogério Arantes, uma das poucas exceções a isto são os estudos de Marcus Melo, Reformas constitucionais no Brasil. Instituiciies políticas e processo decisório, Rio de Janeiro: Revan, 2002;"0 sucesso inesperado das reformas de segunda geração: federalismo,reformas constitucionais e política social",Dados:Repista de Ciências Sociais, v. 48, n. 4, 2005. 128
cionamento interno das casas legislativas, o federalismo e as relações intergovernarnentais, as relações entre Judiciário, Ministério Público e política, assim como os estudos eleitorais e partidários. A Constituição, porém, apenas aparece como pano de fundo dessas investigações, não sendo ela mesma objeto de pesquisa. As análises feitas por estudiosos do campo do Direito têm preocupações de outra ordem, não respondendo aos questionamentos teóricos e empíricos pertinentes à ciência política.
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Direito público subjetivo e políticas educacionais 267
Clarice Seixos Duarte
Política urbana e regulação urbanística no Brasil— conquistas e desafios de um modelo em construção 279
Renato Cymbalista
Coordenação da ação pública. A experiência dos comitês de bacia hidragráfica
l eUCC. j JA. ÇD.
Maria Paula Dallari Bucci 301
Maria Luiza Granziera
COLA-103S 013/-1
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O conceito de política pública em, direito
Sumário: 1.A temática das políticas públicas como objeto de interesse para o direito. 2. Concretização dos direitos sociais: um novo problema que se apresenta para a teoria do direito. 2.1. Os direitos sociais como inovação no paradigma jurídico do Estado liberal. 2.2. Positivação constitucional dos direitos sociais. 3. Expressões jurídicas de políticas públicas. 3.1. Politicas com suporte legal. 3.2. Políticas no texto constitucional 3.3. Políticas de Estado e políticas de governo. 3,4. Outros suportes jurídicos de políticas públicas. 4. Controle judicial de políticas públicas. 4.1, Objeto do controle judicial. 4,1.1. Política pública como atividade. 4.1.2. Política pública como norma, 4,2. Intervenção do Poder judiciário na conformação ou aplicação de politicas públicas, 5. Formulação de um conceito jurídico de políticas públicas. 5.1. Programa. 5.2. Ação-coordenação. 5.3. Processo. 5,4. Metodologia jurídica de políticas públicas. Bibliografia.
1. A TEMÁTICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO OBJETO DE INTERESSE PARA O DIREITO As políticas públicas constituem temática oriunda da Ciência Política e da Ciência da Administração Pública. Seu campo de interesse — as relações entre a política a ação do Poder Público — tem sido tratado até hoje, na Ciência do Direito, no âmbito da Teoria do Estado, do direito constitucional, do direito administrativo ou do direito financeiro. Na verdade, o fenômeno do direito, especialmente o direito público, é inteiramente permeado pelos valores e pela dinâmica da política. Daí ser compreensível, num primeiro momento, certa resistência ao que parece, à primeira vista, um modismo. Não obstante, definir as políticas públicas como campo de estudo jurídico é um movimento que faz parte de uma abertura do direito para a interdisciplinariedade. Alguns institutos e categorias jurídicas tradicioXII
1
nais, hoje despidos de seu sentido legitimador original, buscam novo sentido ou nova força restabelecendo contato com outras áreas do conhecimento, das quais vinha se apartando desde a caminhada positivista que se iniciou no século XIX. Ter-se firmado como campo autônomo, dotado de "objetividade" e "cientificidade" — desafios do positivismo jurídico —, é um objetivo até certo ponto realizado pelo Direito, o que permite a seus pesquisadores voltar os olhos às demandas sociais que fundamentam a construção das formas jurídicas. Do ponto de vista da atuação concreta do direito, a idéia de um sistema hierarquizado de normas jurídicas, sintetizado na figura da pirâmide normativa, tendo por ápice a norma fundamental hipotética — expressão formal do pacto fundamental de um povo, com a dimensão subjetivo-política da legitimidade, consubstanciada na sua efetivação—, dentro de certa medida, dá conta da operação cotidiana do sistema jurídico. Suas ulteriores evoluções, a percepção da complexidade normativa, diferenciando normas de conduta e organização, a introdução dos valores nos sistemas de direito positivo e todo o aparato jurídico conceituai construído a partir daí, não invalidam o modo de organização básico dos sistemas jurídicos. Entretanto, o desafio atual é enfrentar o problema da "esterilização" do direito público em sua função de organização das relações entre Estado, Administração Pública e sociedade, processo que resultou do seu distanciamento em relação a urna realidade cambiante e dinâmica.
2. CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS: UM NOVO PROBLEMA QUE SE APRESENTA PARA A TEORIA DO DIREITO 2.1. Os direitos sociais como inovação no paradigma jurídico do Estado liberal Há uma razão intrinsecamente jurídica que inspira o delineamento do espaço epistemológico dessa nova figura no direito. E essa razão relaciona-se à profunda transformação que se operou no universo jurídico do século XX, desde que as Constituições ultrapassaram os limites da estruturação do poder e das liberdades públicas e passaram a tratar dos direitos fundamentais em sentido amplo, dispondo especificamente sobre os direitos sociais. Os direitos sociais representam uma mudança, de paradigma no fenômeno do direito, a modificar a postura abstencionista do Estado para 2
enfoque prestacional, característico das obrigações de fazer que surgem com os direitos sociais. A necessidade de compreensão das políticas públicas como categoria jurídica se apresenta à medida que se buscam formas de concretização dos direitos humanos, em particular os direitos sociais. Como se sabe, os chamados direitos humanos de primeira geração, os direitos individuais, consistem em direitos de liberdade, isto é, direitos cujo exercício pelo cidadão requer que o Estado e os concidadãos se abstenham de turbar. Em outras palavras, direito de expressão, de associação, de manifestação do pensamento, o direito ao devido processo, todos eles se realizariam pelo exercício da liberdade, requerendo, se assim se pode falar, garantias negativas, ou seja, a segurança de que nenhuma instituição ou indivíduo perturbaria seu gozo. Já os direitos sociais, tiiiiPQS do século XX, que aparecem nos textos normativos a partir da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, de 1919 (entre nós, com a Constituição de 1934), são, se assim se pode dizer, direitos-meio, isto é, direitos cuja principal função é assegurar que toda pessoa tenha condições-de gozar os direitos individuais de primeira geração. Como poderia, por exemplo, um analfabeto exercer plenamente o direito à livre manifestação do pensamento? Para que isso fosse possível é que se formulou e se positivou nos textos constitucionais e nas declarações internacionais o direito à educação. Na mesma ligha, corno pode uni sem-teto exercer o direito à intimidade (art. 5a, X, da Constituição brasileira)? Isso será uma ficção enquanto não lhe for assegurado o direito à moradia, hoje constante do rol de direitos sociais do art. 62 da Constituição. E assim sucessivamente. Como se pode ver, os direitos sociais, ditos de segunda geração, que mais precisamente englobam os direitos econômicos, sociais e culturais, foram formulados para garantir, em sua plenitude, o gozo dos direitos de primeira geração. Da mesma forma, os direitos de terceira geração, tais como o direito ao meio ambiente equilibrado, à biodiversidade e o direito ao desenvolvimento, foram concebidos no curso de um processo indefinido de extensão e ampliação dos direitos originalmente postulados como individuais, também em relação aos cidadãos ainda não nascidos, envolvendo cada indivíduo na perspectiva temporal da humanidade, por isso intitulados "direitos transgeracionais". O conteúdo jurídico da dignidade humana vai, dessa forma, se ampliando à medida que novos direitos vão sendo reconhecidos e agregados ao rol dos direitos fundamentais. Isso ao mesmo tempo em que se multiplicam as formas de opressão, tanto pelo Estado como pela economia. 3
A percepção dessa evolução evidencia que a fruição dos direitos humanos é uma questão complexa, que vem demandando um aparato de garantias e medidas concretas do Estado que se alarga cada vez mais, de forma a disciplinar o processo social, criando modos de institucionalização das relações sociais que neutralizem a força desagregadora e excludente da economia capitalista e possam promover o desenvolvimento da pessoa humana. Os críticos consideram ingênua a "inflação de direitos" promovida nesse processo. Alertam para o fato de que, como disse certa vez umjurista, "a Constituição não cabe no PIB". Haveria um excesso de direitos, correspondentes a aspirações sociais cuja satisfação depende da macroeconomia, da organização dos setores produtivos, da inserção do Estado na economia mundial, enfim, de variáveis estranhas ao direito, Panos países em desenvolvimento, o rol de direitos inspirado nas Declarações Internacionais e nos textos constitucionais dos países avançados constitui ideal irrealizável, em vista dos meios disponíveis. Mais do que isso, em certos momentos, como ocorreu nos anos 80 com o declínio do Estado de bem-estar nos países europeus, a multiplicação de direitos, particularmente os direitos sociais, seria um fator de perda de competitividade dos Estados, na medida em que tais direitos imporiam a criação e manutenção de pesadas e dispendiosas estruturas de serviços públicos de saúde, educação etc. Deve-se, desde logo, relativizar a tradução dessa situação para os países periféricos na economia mundial, tendo em vista que neles não é o Estado social, mas a falta dele uma das responsáveis pela pequena competitividade. Hoje, quando o fator domínio tecnológico é um importante diferencial na concorrência entre empresas e Estados, a extensão do cumprimento do direito à educação (para citar apenas um) é uma das variáveis a definir a posição relativa de um Estado no cenário mundial, em termos de desenvolvimento. Outros direitos sociais, como a saúde, a assistência social e hoje o direito ao meio ambiente, direito de terceira geração, são referenciais que permitem aferir a posição relativa de uru país no cenário mundial, no que diz respeito ao desenvolvimento humano. Embora possa haver algum questionamento sobre o quesito competitividade entre os países que têm índices de desenvolvimento huniano (IDH) elevados, é indubitável que o IDH baixo está associado a reduzida capacidade de competição e inserção na economia mundial.
Esse processo de ampliação de direitos, por demanda da cidadania, enseja um incremento da intervenção do Estado no domínio econômico. A intervenção do Estado na vida econômica e social é uma realidade, a partir do século XX. E apesar das alterações qualitativas dessa presença estatal, que foram realizadas em diversas ocasiões, a pretextos variados, ao longo desse período, o fato essencial é a indispensabilidade da presença do Estado, seja como participe, indutor ou regulador do processo econômico, A garantia dos direitos — também pela mediação do Estado — é a outra face dessa realidade. No plano das relações jurídicas, cada um desses movimentos, com sua dinâmica própria, gerou um tipo de transformação para o direito, A Constituição brasileira de 1988, com seus capítulos sobre a Ordem Econômica e a Ordem Social, representa as duas faces dessa moeda. O paradigma dos direitos sociais, que reclama prestações positivas do Estado, corresponde, em termos da ordem jurídica, ao paradigma do Estado intervencionista, de modo que o modelo teórico que se propõe para os direitos sociais é o mesmo que se aplica às formas de intervenção do Estado na economia. Assim, não há um modelo jurídico de politicas sociais distinto do modelo de políticas públicas econômicas. A alteração na ordem jurídica que demanda essa nova conceituação provém da mesma fonte histórica, que é a formação do Estado intervencionista. Essa, embora tenha desenvolvimentos particulares em cada ordem jurídica nacional, pode-se demarcar a partir dos primeiros contratos de concessão de serviço público, no final do século XIX, de quando data, também, a primeira legislação antitruste, o Shertnan Act, em 1890. Há um salto significativo na década de 1930, com o New Deal do governo Roosevelt e as políticas correspondentes em cada país (no Brasil, é o momento da industrialização), que irá desembocar nos chamados trinta anos gloriosos, que vão do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, ao choque do petróleo, em 1974. Esse período do pós-guerra consagra o apogeu do Estado social, quando são formuladas as constituições que fornecem a matriz da Constituição brasileira de 1988 (embora o constitucionalismo brasileiro já viesse esboçando o caminho do Estado social desde 1934 e 1946). O que há de inovador no constitucionalismo do pós-Segunda Guerra, inaugurado pela Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, em 1949, não é apenas a estruturação em regras e princípios, nem a aparente generosidade com a referência a direitos, especialmente os direitos sociais. 5
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O que realmente altera o paradigma do constitucionalismo é a instituição dos Tribunais Constitucionais, mais uma vez sob o pioneirismo do Tribunal Constitucional da Alemanha, em 1950. Todas as experiências constitucionais importantes desse período realizaram a projeção institucional da nova força da constituição no Tribunal. Constitucional. Alemanha, Portugal, Espanha incluíram no desenho institucional a atuação da corte especializada. Até mesmo a França, cuja tradição jurídica não incorpora o controle de constitucionalidade, instituiu a figura do Conselho Constitucional, de modo a conferir um acompanhamento efetivo do cumprimento da Constituição. Um aspecto notável desse novo constitucionalismo reside justamente em introduzir a dimensão do conflito na vida institucional cotidiana. Os conflitos sociais não são negados e mascarados sob o manto de uma liberdade individual idealizada. Ao contrário, ganham lugar privilegiado, nas arenas de socialização política, em especial o Poder Legislativo, mas também, de certa forma, o Poder judiciário, os embates sociais por direitos. E se há uma idéia que pode sintetizar, na ordem jurídica, essa nova visão, é a da "força normativa da Constituição", título de uma conferência proferida por Konrad Hesse' , juiz do Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, que expressa a valorização da efetividade das normas constitucionais, não mais expressões simbólicas do pacto politico, mas prescrições com força vinculante sobre a conduta dos indivíduos e do Estado. O movimento de requalificação da presença do Estado nas décadas de 1980 e 1990, com as privatizações e o desenvolvimento da função de regulação, em lugar da prestação direta dos serviços públicos, não chega a alterar o paradigma das politicas públicas.
2.2. Positiva* constitucional dos direitos sociais Se o sentido politico dos direitos sociais é de fácil apreensão, o mesmo não ocorre com a sua configuração jurídica. A enunciação contida no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, art. 212, é bastante ilustrativa da peculiaridade dessa categoria de direitos:
' A força normativa da Constituição,
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Porto Alegre: Sérgio António Fabris, Editor, 1991.
"Art. 22-1. Cada Estado-parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas"2. Na verdade, a introdução dos direitos sociais representa uma tormentosa questão no panorama do sistema jurídico. A "realização progressiva" a que alude o Pacto sugere direitos enfraquecidos, na medida em que apenas enunciados, sem condição assegurada de exercício. Isso porque, especialmente nas sociedades com _menor_Sgarazitia de liberdades _e.mais_atrasadas-do-pontõ de vista_das.condições_ecanamicas e sociais de seu povo, a introdução dos direitossociais sõ faz sentido, do ponto de vista normativo, se estiver associada a um conjunto deaias equivalente ao que permitiu que os direitos individuais' Sefiaiisfarmaásem em pilar e referencial político e jurídico dos Estadosdemocráticoodemos. A preservação da esfera individual de liberdade em face do Estado, a partir do século XVIII, foi possível graças à criação de estruturas e à formação de uma "consciência institucional garantística" que se inseriu de diferentes modos nas realidades de cada país. Na Inglaterra, graças à tradição liberal, pela via do Parlamento; nos Estados Unidos, pela Constituição. Nos Estados que tardaram mais a criar as condições de funcionamento do Estado liberal, as demandas por liberdade vêm associadas a um pleito pela realização do Estado social. Isso explica que a tarefa constitucional nos Estados de democratização mais recente seja imensamente maior e mais onerosa do que nos Estados onde as tarefas básicas da civilização foram cumpridas há mais tempo, num período em que as relações sociais não haviam sido permeadas tão profundamente pelo direito, como ocorre hoje. Mesmo a Alemanha, cuja reconstrução constitucional, após a experiência do nazismo, em 1949, serviu de modelo para a Constituição brasileira de 1988 — passando pela influência intermediária da Constituição portuguesa de 1976 — não foi muito longe em matéria de direitos sociais. Konrad Hesse, analisando o lugar central dos direitos fundamentais na Lei Fundamental, observa que o catálogo de direitos nela contido não é exaustivo, admitindo que outros direitos não enunciados como tais podem
José Augusto Lindgren Alves. A arquitetura internacional dos direitos humanos, São Paulo: FTD, 1997, p.75 (grifo meu). 7
ser considerados como fundamentais, e adverte que "não obstante, considerados em conjunto, os direitos fundamentais da Lei Fundamental se circunscrevem basicamente aos clássicos direitos humanos e civis. Os constituintes de 1949 evitaram conscientemente incluir regulações da vida econômica, social e cultural que transcendem tais direitos, como se continham — ainda que só como programa não vinculante para o legislador, segundo a interpretação dominante — na Constituição do Reich de 1919''. O papel dos direitos fundamentais evolui no sentido de garantir a liberdade em face das ameaças perpetradas não mais pelo Estado, mas pelos poderes não estatais (como o poder econômico interno, além das forças econômicas e políticas exteriores ao Estado). Evolui também para a ampliação do seu sentido, que agrega às liberdades fimdamentais os direitos de participação ou de prestação. Há, no entanto, para Hesse, uma debilidade inerente aos direitos sociais no que tange ao seu estatuto constitucional, na medida em que esses, no seu entendimento, não consubstanciam direitos subjetivos—
cujo descumprimento gera direito de ação frente ao Estado — mas direitos cuja realização depende de "tarefas de Estado", programas de objetivos sujeitos a amplas margens legislativas e políticas de configuração4. Ernest Benda considera a cláusula do Estado social na Lei Fundamental da Alemanha como "categoria jurídica voltada ao futuro".
Konrad Hesse et ai,, "Significado de los derechos fundamentales", in Manual de derecho constitucional, Madrid: Marcial Pena, 1996. Hesse, op. cit., p. 97. Ainda assim, o Tribunal Constitucional alemão, em sentença de 18-7-1972 sobre questionamento da limitação do acesso à Universidade, deixou assentada a correlação entre o avanço nas relações de liberdade entre Estado e cidadãos e "a exigência complementar de garantir como direito fimdamental a participação em prestações estatais". O comentário sobre essa sentença agrega o seguinte: "Se a Constituição impusesse ao processo de formação política de vontade não apenas objetivos e diretrizes, mas obrigações determinadas, se contrairia a ordem democrática da Lei Fundamental como marco do processo político em liberdade. Isso levaria a substituir a política —judicialmente fiscalizada — por uma execução da Lei Fundamental e, desse modo, a restringir decisivamente o campo em que deve formar-se a vontade parlamentar como fundamento de uma ordem democrática aberta.A contradição sistemática entre direitos fundamentais como direitos originários de participação e ordem democrática põe, em conseqüência, limites a tais direitos originários de participação constitucionalmente fundamentados. Não são adequados para fazer justiça à problemática dos direitos fundamentais em um Estado provedor de prestações". 8
"A referência ao consenso e à capacidade para a mutação são condições essenciais para que os princípios constitucionais básicos conservem sua eficácia também na hipótese de mudanças. Para a cláusula do Estado social há consideráveis abertura e flexibilidade, com o que cumpre tais condições. O fato de que s6 em pequena medida caiba inferir diretamente respostas materiais é um inconveniente apenas em uma primeira e elementar aproximação. O mandamento constitucional continua existindo. Não cabe à discrição da maioria parlamentar executá-lo ou não. Mas o detalhe do que deva ser feito não está tão predeterminado que não exista margem para a busca da melhor alternativa'''.
Essas ressalvas não devem ser entendidas com olhos puramente liberais, como se os direitos sociais fossem normas sem eficácia. Importante a observação final de Benda, no sentido de que as normas constitucionais são ditames que devem (imperativamente) ser realizados. Quando o próprio texto constitucional não instituiu as tarefas de realização, cabe ao legislador infraconstitucional fazê-lo. Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, após formular como idéia reitora a de que os direitos fundamentais "são posições tão importantes que sua outorga ou não outorga não pode recair em mãos de simples maiorias parlamentares", sustenta a existência de direitos a prestações de diferentes tipos: 1) direitos a proteção; 2) direitos a organização e procedimento; e 3) direitos a prestações fáticas (prestações em sentido estrito). Dentre esses, ressalta o direito a prestações normativas e a medidas estatais de tipo organizativo'. O próprio Alexy, no entanto, reconhece o caráter polêmico do debate sobre direitos a prestações, referindo algumas decisões do Tribunal Constitucional que indicam um desenvolvimento do tema mais rico do que enuncia o texto da Lei Fundamental: "Se se inclui o Tribunal entre os participantes dessa discussão, pode dizer-se que ocupa uma posição intermediária no espectro de opiniões que se estende desde uma ampla rejeição: 'Os direitos fundamentais não podem ser ambas as coisas [...] direitos a uma ação estatal e sua negação', até sua aceitação mais ampla: 'Em uma sociedade industrial sumamente complexa, os direitos fundamentais são direitos de participação ou não existem'.
s "El estado social de derecho", in Manual de Derecho Constitucional, cit. ° Teoria de las derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 419-501.
A polêmica sobre os direitos a prestações está caracterizada por diferenças de opinião sobre o caráter e as tarefas do Estado, do direito e da Constituição, inclusive os direitos fundamentais, como também sobre a avaliação da situação atual da sociedade. Como nela, entre outras coisas, se trata de problemas de redistribuição, sua 'explosividade politica' é óbvia. Em nenhum outro âmbito é tão clara a conexão entre o resultado jurídico e as valorações gerais práticas ou políticas: em nenhum outro âmbito se discute tão tenazmente. É sintomático que nessa situação se fale — com intenção critica ou positiva — da 'mudança de compreensão do direito fundamental' e se peça idesdemonizar, desideologizar e desemotivizar o conceito dos direitos fundamentais social?"7. No contexto brasileiro, a polêmica é ainda mais acirrada. pe um lado porque, a Constituição brasileira de 1988 foi carregada com os direitos compreendidos na tarefa de redemocratizaçâo do país e sobrecarregada com as aspirações relativas à superação da profunda desigualdade social produzida ao longo de sua história. O desafio da democratização brasileira é inseparável da equalização de oportunidades sociais e da eliminação da situação de subumanidade em que se encontra quase um terço da sua população. De outro lado porque, sendo um texto mais recente, a implementação constitucional, no caso brasileiro, vale-se de figuras apenas esboçadas em outros contextos, nos quais a Constituição não tinha a centralidade na vida politica que a Constituição brasileira de 1988 adquiriu. Por essa razão, seria absolutamente frustrante, do ponto de vista politica, aceitar a inexeqüibilidade dos direitos sociais. Do ponto de vista jurídico, isso representaria tornar inócuo o qualificativo de "Estado social de direito" afirmado no art. 12' da Constituição. Partindo da conhecida máxima de interpretação de que a lei não contém palavras inúteis, não se pode tomar tal locução como sinônimo de "Estado de Direito", omitindo a carga finalística do adjetivo "social" num Estado em que as tarefas sociais ainda estão por ser feitas. Avançando a partir dessa discussão, o fato é que a Constituição brasileira enumerou um rol bastante generoso de liberdades e direitos, em especial os direitos sociais (arts. 62 e 72), complementando esses últimos com as disposições pertinentes ao Título VIII,"Da ordem social", em que se definem os modos ou estruturas básicos de concretização dos direitos sociais (arts. 193 a 232).
Op. cit., p. 426-427. 10
3. EXPRESSÕES JURÍDICAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS O primeiro desafio para o trabalho sistemático com a categoria das políticas públicas em direito é identificar o objeto de que se está falando. Coloca-se o problema de saber qual a forma exterior, reconhecível pelo sistema jurídico, que assume uma política pública. As políticas públicas têm distintos suportes legais. Podem ser expressas em disposições constitucionais, ou em leis, ou ainda em normas infralegais, como decretos e portarias e até mesmo em instrumentos jurídicos de outra natureza, como contratos de concessão de serviço público, por exemplo. Outra questão a observar são as menções normativas a "política" (política nacional de abastecimento, por exemplo) cuja classificação como política pública é discutível, visto não disporem sobre os meios de realização dos objetivos fixados, nem prescreverem metas ou resultados que, conforme se verá adiante, são elementos do programa de ação governamental. Finalmente, deve-se afastar, para um trabalho mais sistemático de busca de um conceito ou padrão de politica pública para análise jurídica, a consideração de que todo direito é permeado pela política. Conquanto inegavelmente verdadeira essa assertiva, ela remete à distinção entre os termos em inglês politics e policy. Enquanto o primeiro se refere à atividade politica em sentido amplo, o segundo conota os programas governamentais. E é desses últimos que se ocupa o presente estudo. Façamos um sobrevôo pelo direito positivo brasileiro, a fim de verificar em que termos se expressam as políticas públicas. Adotemos como referencial a definição provisória de politica pública como programa de ação governamental, visando realizar objetivos determinados.
3.1. Políticas com suporte legal Na análise do direito positivo brasileiro, percebe-se a edição de grande número de normas gerais, leis-quadro, especialmente a partir da década de 1990, tendo por objeto a instituição de políticas setoriais. E o caso, por exemplo, da Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Segundo seu art. 12, a Lei n. 6.938 "estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, constitui o Sistema Nacional do Meio Ambiente — SISNAMA" e dá outras providências. O art. 22 estatui os objetivos da PNMA, pormenorizados no art, 40, e os incisos 11
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do art. 2' explicitam os seus princípios. O art. 5° refere-se às diretrizes da PNMA, que "serão formuladas em normas e planos, destinados a orientar a ação (.,.)" de agentes públicos, segundo o caput, e de atividades empresariais públicas e privadas, segundo o parágrafo único. O art. 62 organiza entidades e órgãos do Poder Público nos diversos níveis federativos, na forma de um sistema, e finalmente o art. 9° cuida dos instrumentos da PNMA. Assim, temos os elementos fins, objetivos, princípios, diretrizes, instrumentos e sistema como estruttirantes da arquitetura jurídica da Política Nacional do Meio Ambiente na Lei n. 6.938, A lei não contém disposição específica sobre meios (pelo menos no que se refere a meios financeiros). Tampouco estabelece resultados ou metas a alcançar dentro de marcos temporais determinados. Ainda assim, poder-se-ia considerá-la suporte de uma política pública, a Política Nacional do Meio Ambiente, na medida em que organiza os meios estruturais para a concretização das disposições contidas nos arts. 23,VI e VII, e 235 da Constituição Federal. Interessante cotejar essa estrutura com a da Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), regulamentando o art. 21, XIX, da Constituição. A lei dispõe sobre os fundamentos (art. 12), objetivos (art. 22), diretrizes gerais de ação (art. 3a) e instrumentos (art. 52) da PNRH. Entre esses, arrolam-se os Planos de Recursos Hídricos, definidos no art. 62 como "planos diretores que visam a fundamentar e orientar a implementação da PNRH e o gerenciamento dos recursos hídricos". Regulamentando essa figura, o art. 7° trata do seu conteúdo e, no caput, estabelece a seguinte referência temporal: "Os Planos de Recursos Hídricos são planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível com o período de implantação de seus programas e projetos (...)". Também se fala em Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Titulo II). Portanto, além das noções-chave que apareciam na Política Nacional do Meio Ambiente — objetivos, diretrizes, instrumentos e sistema — aqui há referência a planos, programas e projetos, como formas de realização da política. Vale a pena explorar uma modificação introduzida pela Lei n. 9.984, de 17 de julho de 2000, que dispôs sobre a criação da Agência Nacional de Águas, e denota o caráter equívoco do termo política no contexto legal, Como vimos, a Lei n. 9.433 instituiu a PNRH (ementa da lei: "Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos ...). Dito de outro modo, ela é a própria PNRH. Não obstante, a Lei n. 9.984 atribui ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos competência para "formular a 12
Política Nacional de Recursos Hídricos" (art. 22), estabelecendo, portanto, uma outra iiblitica, cujo suporte serão as deliberações do Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Abstraindo o problema das competências do Conselho ou eventuais atecnias da lei que não importa aqui considerar, o ponto digno de nota é a assunção da política ao mesmo tempo como gênero e espécie, ou, em outros termos, como norma macro (a PNRH, lei-quadro instituída pela Lei n.9.433) e como norma ou decisão micro (as deliberações do CNRH, ações contingentes). Por sua vez, em matéria de telecomunicações, a Lei ri. 9.472, de 16 de julho de 1997, Lei Geral de Telecomunicações, que não é suporte de politica, atribui à Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) competência para "implementar, em sua esfera de atribuições, a politica nacional de telecomunicações" (art. 19, I), cabendo ao Conselho Diretor da Agência "propor o estabelecimento e alteração das políticas governamentais de telecomunicações" (art. 22, III) além do dever de executar as políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo. A lei não explicita, contudo, qual o veículo, juridicamente considerado, de tais politicas. Cabe o registro histórico do Plano Nacional de Viação, instituído pela Lei n. 5,917, de 10 de setembro de 1973, que contém as noçõeschave de sistema, objetivos, coordenação de entes públicos. Destaque-se a previsão de revisão periódica, a cada cinco anos, constante do art. 92. Há outros exemplos de leis que, sem qualquer referência expressa a política setorial ou geral, realizam, concretamente, o fim de uma politica pública. É o caso da Medida Provisória n. 213/04, convertida na Lei n.11.096, de 13 de janeiro de 2005, que instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni). Em termos de estrutura legislativa, a lei nada mais faz senão regulamentar a imunidade constitucional do art. 195, § 72, para entidades educacionais beneficentes, e a disciplinar hipótese de isenção tributária para as demais instituições participantes. A lei também não explicita marcos temporais ou resultados. No entanto, concretiza um programa de inclusão de alunos pobres em universidades privadas, na medida em que estabelece condições estruturais (novas, esse talvez seja o ponto distintivo, em termos temporais), para o ingresso de alunos que preencham as condições do art. 22 da Lei n. 11.096/05 no ensino superior. Considerando que a Lei n.11,096/05 não contém metas ou resultados, traço definidor da política pública por excelência, o que se poderia reconhecer como sucedâneo desse elemento seria a "impressão digital 13
governamental" nela contida, isto é, o fato de se tratar de um programa de governo, com um vetor qualitativo ou ideológico (se assim se pode dizer) bastante nítido: a inclusão social, via aumento das oportunidades de acesso ao ensino superior de estudantes oriundos do ensino médio público, deficientes ou professores da rede pública carentes, segundo os limites de renda definidos no art. 12 da lei. Contudo, como se trata, do ponto de vista jurídico, de nada mais que a regulamentação de hipóteses de imunidade (instituições beneficentes) e isenção tributária (instituições com ou sem fins lucrativos), o programa passa a assumir, no sistema jurídico, feição permanente. Após a sua implantação, nada mais indica que se tratava de uma política pública. Do ponto de vista do direito, trata-se de uma lei como outra qualquer, associada a uma dimensão operativa particular (órgão ou sistema de acompanhamento), mas que também se consubstancia num conjunto de disposições jurídicas gerais. Isso ilustra porque a política pública é definida como uni programa ou quadro de ação governamental, porque consiste num conjunto de medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública ou, na ótica dos juristas, concretizar um direito.
3.2. Políticas no texto constitucional Merece consideração à parte a situação das políticas públicas que têm por suporte normas constitucionais. A Constituição portuguesa de 1976, Constituição de orientação socialista e feição dirigente, inspirou como modelo a Constituição brasileira de 1988, embora esta última tenha sido elaborada num ambiente político muito mais fragmentado, cuja mainstream política e ideológica era ocupada pelo chamado "Centrão", resultante, entre outras coisas, de uma deformação originária do Congresso com poderes constituintes, em lugar de uma Assembléia Constituinte. Assim é que as referências que a Constituição portuguesa faz com clareza e organicidade aos planos (arts. 91 a 948) e às políticas agrícola,
O art. 92, com a redação da LC 1989, teve suprimida a referência á força jurídica do plano (redação anterior: "1. O Plano rem caráter imperativo para o sector público estadual e é obrigatório, por força de contratos-programa, para outras actividades de interesse público. 2. O Plano tem caráter indicativo para os sectores público não estadual, privado e cooperativo, definindo o enquadramento a que hão de subme14
comercial e industrial (arts. 96, 101, 102 é 103), dentro da parte da Organização Económica — bastante alteradas pelas revisões constitucionais de 1982 e 1989 —, são imitadas apenas em parte e sem o mesmo eixo estruturante na Constituição brasileira, o que faz oportuno buscar a racionalidade que resulta das diversas referências constitucionais ao termo política, tomado como sin6nimu_4e política pública. O primeira destaque, como 'seria natural, é o que trata do Catulo TãO e-Orçamento, da ^ Trilrotas II, Das Finanças Publicas, do Título 'çãO Federal...Os instrumentos orçamentários 'dispostos na Constrons -tittu tituição Federal, plano plurianual (PPA), lei de diretrizes ors_amentárias (LD0).e lei orçamentária podem ser..con:sideratios_as_expressbnajuklicas celência. Essa vocação é da própria natureza do instrumento e já vinha afirmada no art. 22 da Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964, que se refere à "politica econômico-financeira" e a "programa de trabalho do Governo", que vem a ser, aliás, a razão de ser da lei orçamentária: "Art. 22 A Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade". Curioso notar, todavia, que na dicção constitucional só o PPA e a LDO são tratados em termos propriamente políticos, isto é, referindo-se a objetivos, metas e prioridades da Administração Pública: "Art. 165. (...) § 12 A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas a programas de duração continuada.
ter-se as empresas desses sectores"). Ainda assim, mantém-se a centralidade e a racionalidade política do plano na redação em vigor: "Os planos de desenvolvimento econômico e social de médio prazo e o plano anual, que tem a sua expressão financeira no Orçamento do Estado e contém as orientações fundamentais dos planos sectoriais e regionais, a aprovar no desenvolvimento da política económica, são elaborados pelo Governo, de acordo como seu programa". Interessante observar a relação com o art. 91, que trata da "coordenação da política econômica com as políticas social, educacional e cultural, a preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo português".
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§ DIA lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento". Há uma explicação jurídico-política para esse tratamento; "Não previu a Lei n. 4.320/64 a elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A obrigatoriedade da elaboração dessa lei, nas três áreas do Governo federal, estadual e municipal, é uma inovação e imposição da Constituição Federal em vigor (art. 165,!!). Na verdade, foi a Carta Constitucional da República de 1988 o primeiro texto constitucional pátrio a tratar da elaboração desta lei. Na prática, o objetivo maior a ser alcançado com a institucionalização da Lei de Diretrizes Orçamentárias é o de oferecer a oportunidade de permitir que o Poder Legislativo participe, de forma atuante juntamente com o Poder Executivo, na construção do Plano de Trabalho do Governo a ser posto em concreto, através da execução da Lei Orçamentária Anual. Tratará, a LIDO, do estabelecimento, pelo Poder Legislativo, das regras de orientação obrigatória para a elaboração do orçamento anual'''. Mas esse exemplo não esgota as referências constitucionais a políticas. Os Títulos da Ordem Econômica e da Ordem Social também contêm algumas referências, embora menos sistemáticas do que seria de se esperar. Constam do texto da Constituição menções à política urbana, politica tCola ey c In ca de—siii de . ri
Comparando-se as estruturas dos Títulos VII, Da Ordem Econômica e Financeira, e VIII, Da Ordem Social da Constituição Federal, verifica-se que o segundo é ordenado ratione materiae, por direitos (seguridade social; educação, cultura e desporto; ciência e tecnologia; comunicação social; meio ambiente etc.), enquanto o primeiro apresenta uma diferenciação estrutural; Capítulo I — princípios gerais da atividade econômica; Capítulo II —política urbana; Capítulo III política agrícola e fundiária e da reforma agrária; e Capitulo IV — sistema financeiro nacional. Disciplinando a política urbana, o art. 182 da Constituição fixou: "A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo (...)", A Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que instituiu o Estatuto da
Afonso Gomes de Aguiar, Lei n. 4.320 comentada ao alcance de todos, Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 48-49. 16
Cidade, estabelece as diretrizes gerais da política urbana, disciplinando seus instrumentos, de forma semelhante, em termos estruturais, ao que ocorre com as leis da Política Nacional do Meio Ambiente e da Politica Nacional de Recursos Hídricos, retrocitadas. Quanto à política agrícola, limita-se o art. 187 a estabelecer que "será planejada e executada na forma da lei (...)". Outra acepção do termo política no texto constitucional aparece no art. 175, parágrafo único, inciso II, com referência à política tarifária nos contratos de concessão de serviço público. Poderia a norma constitucional ter se referido ao regime tarifário, de acordo com a terminologia mais estabelecida na tradição brasileira. Contudo, não apenas não o fez a Constituição, como também optou pelo termo política o legislador, na Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, cujo Capítulo IV disciplina a política tarifária. Talvez fosse mais preciso, do ponto de vista jurídico, falar-se em regime tariario, uma vez que não há nada na lei que conote política (com base em elementos econômicos ou extrajuriclicos) e que não possa ser suficientemente disciplinado em termos de regime juriclico.Tal conclusão é possível em vista da comparação com o texto do art. 3n, d, da Lei n. 5.917/73, que instituiu o Plano Nacional de Viação. No que diz respeito à saúde, o art. 196 da Constituição dispõe: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Mas mais importante que essa definição é a própria estruturação das prestações estatais em matéria de saúde, que a Constituição Federal ordenou, de forma inédita, no Sistema Único de Saúde. Resultante de um aprimoramento de modelos anteriores à Constituição de 1988, a partir da evolução das primeiras propostas técnicas, mas, mais importante, agregando a mobilização política e social do movimento pela democratização da saúde, o SUS é inscrito nos arts. 198 a 200 da Constituição, com vistas a alcançar o nível máximo de garantia proporcionado pelo sistema jurídico. Seria de se pensar se isso não desnaturaria seu caráter de política pública; que, como vimos; tem como nota distintiva atingir objetivos sociais em tempo e quantidade previamente determinados. O SUS não é um programa que visa resultados, mas uma nova conformação, de tipo estrutural, para o sistema de saúde, cujo objetivo é a coordenação da atuação governamental nos diversos níveis federativos no Brasil ("rede regionalizada e hierarquizada", cf. art. 198 da CF), para a realização de três 17
diretrizes: descentralização, atendimento integral prioritariamente preventivo e participação da comunidade. Há, ainda, exemplo de política consubstanciada em Emenda Constitucional, como é o caso da Emenda n. 29, de 13 de setembro de 2000, destinada a "assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde". A Emenda n. 29, em seu art. 72, vale-se de um expediente bastante discutível do ponto de vista da técnica constitucional, a alteração do Ato das Disposições Transitórias, para estabelecer obrigações delimitadas no tempo para União, Estados e Municípios em matéria de financiamento da saúde. Nesse sentido, é inquestionável que se trata de política pública, visto ser programa com resultados definidos, por meio do aumento da vinculação de recursos dos entes federativos à efetivação do direito à saúde. O FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), criado pela Emenda Constitucional n. 14, de 12 de setembro de 1996, é outro exemplo de politica pública com suporte constitucional. O FUNDEF também se valeu do expediente de alteração das Disposições Transitórias para, alterando o seu art. 60, passar a vincular as receitas da educação disciplinadas no art. 212, com vistas à universalização do atendimento à educação fundamental e à remuneração condigna do magistério, em outras palavras, à melhoria das condições da prestação do direito à educação. É digno de nota o fato de que, em vias de expirar o prazo de dez anos estabelecido na Emenda 14 o governo que sucedeu o seu autor proponha a renovação do programa, agora ampliado para atender também o ensino médio (conforme a proposta original do Poder Executivo, por isso intitulado "Fundo da Educação Básica" — FUNDEB), a educação infantil e as creches, utilizando-se da mesma técnica de alteração das Disposições Transitórias, art. 60, para um objetivo de incremento e redistribuição dos orçamentos da educação no país.
3.3. Políticas de Estado e políticas de governo Tão problemático é esse exemplo dentro da família normativa que se faz uma observação à parte sobre as chamadas "politicas de Estado", quese_oporiani às ditas "políticas de governo', estas últimas, os programas de ação governamental em sentido próprio. _ £0 Vejam-se os artigos de Sueli Gandolfi Dallari e Fernando Aith, neste volume.
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A política pública tem um componente de ação estratégica, isto é, incorpora elementos sobre a ação necessária e possível naquele momento determinado, naquele conjunto institucional e projeta-os para o futuro mais próximo. No entanto, há políticas cuk_o horizonte temporal é ine_dir do em décadas — são as chamadas "políticas de Estaor—, e há .outras, que se realizam como_partes.de_um_programa maior, são_ as_ditas ?políticas.. de governo". Se adotássemos o critério do suporte normativo das políticas, tenderíamos a dizer que as políticas constitucionalizadas seriam com certeza políticas de Estado, enquanto as políticas meramente legisladas seriam provavelmente políticas de Estado e as políticas com suportes infralegais seriam políticas de governo. Mas esse critério, é forçoso reconhecer, é um tanto falho. Há quem defenda a supressão das políticas públicas da Constituição Federal, a fim de que o texto constitucional seja expurgado de elementos contingentes, expressivos, não dos valores fundamentais de determinada sociedade, mas de correlações de forças cambiantes e fortuitas". Sobre essa objeção, podem-se fazer três comentários. O primeiro deles é que ela se inspira numa visão liberal, cujo ideal constitucional são os Estados Unidos, sempre lembrados como exemplo de país que logrou elaborar uma Constituição duradoura, mas nem sempre considerando o fato de que a Constituição americana é completada pela jurisprudência constitucional da Suprema Corte, intensa e vigorosa o suficiente para acomodar inflexões profundas na vida do país (como a abolição da escravidão, após a Guerra Civil, por exemplo), sem a ab-rogação da Lei Fundamental. Esse exemplo é único na história mundial e deve ser descartado como modelo, dadas as condições absolutamente peculiares de seu surgimento, no mundo pré-industrial do século XVIII e infinitamente menos complexo que o atual. Nenhuma Constituição dos países desenvolvidos seguiu esse padrão. Os países europeus em regra regem-se por Constituições do século XX, em textos reelaborados após períodos de trauma, como a Segunda Guerra Mundial (Alemanha, Itália, França), ou regimes ditatoriais (Espanha, Portugal), seguindo um padrão semelhante ao adotado pelas Constituições brasileiras promulgadas no século XX (1934, 1946 e 1988). Mesmo as Constituições outorgadas de 1937 e a Emenda Constitucional de 1969 seguem modelo analítico. Não há outros paradigmas de constituição sintética. O segundo comentário diz respeito à questão da governabilidade e nesse sentido é procedente a objeção feita, na medida em que a constitu-
" Esse e o entendimento de Cláudio Couto, em artigo neste volume.
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cionalização de matérias (que não foram consideradas fundamentais pelo constituinte originário), como expediente de reforço de garantias de certos mecanismos de implementação de direitos, propostos por determinado governo, resulta no "engessamento" do espaço de ação de governos futuros. O programa constitucionalizado ocuparia, dessa forma, o terreno próprio da política, que deveria ser preenchido segundo composições de forças e entendimentos a selar em cada questão contingente'2. Finalmente, o terceiro comentário relaciona-se com os anteriores, na medida em que a constitucionalização das matérias consideradas mais importantes por determinados segmentos em momentos específicos da vida do país é um caminho político ambíguo e até mesmo contraditório. De um lado, revela a realização do ideal da "Constituição como norma", a norma primeira do Estado, dotada de caráter vinculante, e não apenas carga simbólica de compromisso político. De outro, provoca a banalização do texto constitucional, o que esvazia exatamente seu caráter de norma fundamental, na medida em que disposições contingentes (e portanto não "(lundamentais") passam a ditar uma dinâmica de provisoriedade constitucional, cujo maior sintoma é o elevadíssimo número de emendas constitucionais". Não se pode desprezar o componente político e histórico indissociável de toda experiência constitucional. Não há Constituições em abstrato; cada constituição é expressão de uma dada composição social e política e espelha tanto as tensões existentes no seio dessa sociedade, como os espaços e mecanismos concebidos para a harmonização desses conflitos. De todo modoLtanto do ponto de vista estritamente normativo clássico como do ponto de vista das políticas públicas, as chamadas políticas de Estado com assento constitucional integram uma categoria sui generis, não subsumivel facilmente a nenhum dos dois gêneros:1
0 exemplo mais eloqüente dessa forma de constitucionalização foi a Emenda ri. 29/2002 que instituiu a vinculação de receitas para o financiamento do Sistema Único de Saúde. "Também é preocupante a pouca densidade ou objetividade de certas propostas de emenda constitucional, algumas que chegam a se converter em texto definitivo. Há situações espantosas, do ponto de vista do processo jurídico-político, como é o caso da Emenda Constitucional n. 19, que tratou da reforma administrativa. Tal era a inadequação da proposta à compreensão do texto da Constituição de 1988 e tais foram os percalços da tramitação, a modificar e remodificar a redação da Emenda, que o resultado final restou inexeqüível. A maior parte da Emenda n. 19 é até hoje letra morta. 12
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3.4. Outros suportes jurídicos de políticas públicas • Exemplos da espécie normativa mais típica das políticas públicas encontram-se no Plano Diretor (CE art. 182), nas Normas Opera-621s Básicas de Saúde (NOB 1/93, NOB 2/96, NOAS 2000). Outro tipo normativo dentro da mesma categoria são as diretivas adotadas pela União Européia em diversas matérias, tais como os contritos públicos. E ainda outros tipos, caracterizados pela indução à ação padronizada em relação a assuntos determinados, por meio da adoção de modelos de formalização e de institucionalização, como se poderia citar, por exemplo, o Decreto n. 82.597/78, que instituiu o Planasa — Plano Nacional de Saneamento. Isto sem falar de programas instituídos por ato administrativo ou por programas que resultam de uma combinação de atos administrativos, ordenados em procedimento ou não. É o caso, por exemplo, de sistemas de transporte municipal nas grandes metrópoles, em que o formato jurídico dado aos contratos de concessão de serviço público, as cláusulas remuneratórias, as condições de oferta do serviço, podem atender ao interesse predominante das companhias de ônibus ou dos usuários, dessa combinação resultando a conformação da política pública de transporte municipal. Ou a política de nacionalização de insumos ou bens, como foi o caso da encomenda de plataformas de exploração de petróleo pelo governo brasileiro, em que o edital definiu as condições de participação de empresas nacionais e estrangeiras, como medida de política de incentivo à indústria nacional e à criação de empregos no Brasil. Todas essas situações são, até certo ponto, modalidades de soft law, isto é, situações em que a atuação do direito se faz não pela coação estatal (a violência legítima weberiana), mas pela indução à ação pré-definida. Trata-se do "Estado-incitador" a que alude Charles-Albert Morand, em Le Droit Neo Moderna des Politiques Publiques. A atuação das agências internacionais de fomento em relação às politicas dos Estados nacionais dá-se basicamente dessa forma". Há algumas conclusões possíveis a extrair desse singelo e despretensioso rol. A primeira delas é que nem o constituinte nem o legislador brasileiro utilizaram sistematicamente o termo política, não se podendo extrair
"Como destaca Gilberto Rodrigues em artigo que compõe este volume.
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esse caráter de disposições hauridas na linguagem natural e não na linguagem técnico-jurídica. Deve-se ponderar, no entanto, que se a prática do direito não tem pretensões de rigor científico, à ciência do direito não é negado ver além do fato posto, desvendando estruturas até então ocultas aos olhos do leigo. Uma outra conclusão possível seria no sentido de traçar uma linha divisória mais rígida entre as políticas, tal como aparecem nos textos verdadeiros programas de ação governanormativos, e as políticas públicas, mental, despidos de suas roupagens jurídicas. Nem tudo o que a lei chama — de política é política pública. Como já afirmei em outra passagem, a exteriorização da política pública está muito distante de um padrão jurídico uniforme ë claramente apreensível pelo sistema jurídico. Essa característica dificulta muito o trabalho sistemático do cientista do direito nesse campo, unia vez que o seu objeto é multiforme e com grandes áreas de interseção com outros domínios científicos. No plano prático, coloca-se o problema da vincularividade dos instrumentos de expressão das políticas — o seu caráter cogente em face de governos e condições políticas que mudam— além da dificil solução do controle judicial das políticas públicas, isto é, os modos de exigir o seu cumprimento em juízo. to
4. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS O tema que mais tem despertado atenção dos estudiosos do direito, no que concerne às políticas públicas, é o seu controle judicial, da perspectiva da possibilidade e limites desse controle. Cumpre ressalvar que a atuação judicial na conformação das politicas públicas seria, de certo modo, imprópria, unia vez que a formulação das políticas públicas cabe, em regra, ao Poder Executivo, dentro de marcos definidos pelo Poder Legislativo. Entretanto, o debate judicial sobre a aplicação de politicas públicas é o que se revela mais intrinsecamente jurídico, porque é onde se leva ao limite a questão da vinculatividade, isto é, o poder de coerção da norma jurídica, em relação ao direito, em especial aos direitos sociais. E nesse debate se revela, conto em nenhum outro, a característica ontologicamente particular dos direitos sociais, cuja implementação justifica que se considere que o seu surgimento define um novo paradigma rio cenário jurídico.
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Duas ordens de qUestões se apresentam. A primeira, no âmbito da teoria geral do direito, com relação à classificação jurídica do objeto que se submete ao controle. Abrem-se as alternativas de entender-se a política pública, de um lado, como categoria jurídica nova ou, de outro, como resultante da reorganização ou nova sistematização de categorias que integram a ordem jurídica tradicional, a partir de uma perspectiva de abertura do direito para a intenção com fenômenos próprios da política, da economia e da dinâmica social. A segunda ordem de questões é de cunho jurídico-institucional e decorre do problema da separação de poderes. Uma vez que a política pública é expressão de um programa de ação governamental, que dispõe sobre os meios de atuação do Poder Público — e portanto, com grande relevo para a discricionariedade administrativa, amparada pela legitimidade da investidura do governante no poder—, como pode, e até que ponto, o Poder Judiciário apreciar determinada política pública sem que isso represente invasão indevida na esfera própria da atividade politica de governo?
4.1. Objeto do controle judicial 4.1.1. Política pública como atividade Ensaio pioneiro de Fábio Konder Comparato ("Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas") já detectara a dificuldade em estabelecer o conceito jurídico dessa figura. "A primeira distinção a ser feita, no que diz respeito à política como programa de ação, é de ordem negativa. Ela não é uma norma, ou seja, ela se distingue nitidamente dos elementos da realidade jurídica, sobre os quais os juristas desenvolveram a maior parte de suas reflexões, desde os primórdios da iurisprudentia romana. Este ponto inicial é de suma importância para os desenvolvimentos a serem feitos a seguir, pois tradicionalmente o juízo de constitucionalidade tem por objeto, como é sabido, normas e atos. Mas se a política deve ser claramente distinguida das normas e dos atos, é preciso reconhecer que ela acaba por englobá-los como seus componentes. É que a política aparece, antes de tudo, como uma atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de uni objetivo determinado. O conceito de atividade, que é também recente na ciência jurídica, encontra-se hoje no centro da teoria do direito empresarial (em substituição ao superado 'ato de comércio') e constitui o cerne da moderna noção de serviço público, de procedimento administrativo e de direção estatal na economia.
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A política, como conjunto de normas e atos, é unificado pela sua finalidade. Os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, sio de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio. • De onde se segue que o juízo de validade de uma política — seja ela empresarial ou governamental — não se confunde nunca com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem. Urna lei editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstitucional sem que esta última o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão da finalidade por ela perseguida, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que vinculam a ação do Estado sem que nenhum dos atos administrativos, ou nenhuma das normas que a regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais"5. Destaque-se a conclusão final do parágrafo transcrito, que sustenta a possibilidade de julgar determinada política inconstitucional, por descumprimento de normas ou diretrizes constitucionais, sem que os atos ou normas que a estruturam sejam, em si, inconstitucionais. Segundo esse entendimento, estaríamos diante de uma categoria jurídica nova, a partir da noção de atividade. Tratar-se-ia, em conseqüência, de um novo instituto a ser descrito e analisado pela teoria geral do direito. Disso decorreria a existência de um regime jurídico próprio das políticas públicas".
r.
Esse ponto do raciocínio, com o profundo respeito que se deve a esse ensaio e a seu eminente autor, oferece um caminho extremamente espinhoso para o desenvolvimento do tema. No corpo do texto citado, consta urna citação de Ruy Cirne Lima, bastante elucidativa para a reflexão em curso: "A administração pública é atividade que merece, como conjunto, o reconhecimento e a proteção do direito para os fins que a governam. Essa atividade, entretanto, decompõe-se em fatos e em atos jurídicos, praticados, uns e outros, pelas pessoas administrativas e pelas pessoas privadas incumbidas da execução de serviços pUblicos"17.
IS Fábio Konder Comparato, "Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas", in Estudos em homenagem a Gemido Ataliba (org. Celso António Bandeira de Mello), São Paulo: Malheiros, 1997, v. 2, p. 353-354. '6 Idem, ibidem. No mesmo sentido, José Reinaldo de Lima Lopes, op. cit. 17 Princípios de direito administrativo, apud Comparam, op. cit., p. 353.
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A atividade, portanto, de acordo com Cirne Lima, decompõe-se em fatos e atos jurídicos, de tal forma, concluímos, que a se falar em controle judicial da atividade, esse incidiria sobre os atos e fatos, conforme o regime jurídico tradicionalmente aplicável a tais atos e fatos. O conceito de atividade, portanto, Pão configuraria propriamente um novo regime, mas unia perspectiva de agregação, para análise e aplicação do direito, segundo um ponto de vista mais largo que aquele relacionado diretamente a cada ato ou fato. Abrindo parênteses, a noção de serviço público, em direito administrativo, fornece um paralelo interessante. Trata-se de noção de tormentosa conceituação, mas cuja importância se mede pela prática. Dos três critérios adotados para a classificação de uma atividade como serviço público (subjetivo, material ou formal), o critério formal, isto é, o da disciplina legal, é o mais seguro ao tratamento jurídico. Do ponto de vista da técnica de organização e funcionamento do serviço publico, o que gera o regime jurídico peculiar do serviço público é a sua definição formal como tal O que não quer dizer, evidentemente, que seja irrelevante o caráter reconhecido como essencial de determinada atividade, O que sustento, ao contrário, é que essa essencialidade, do ponto de vista jurídico, deve traduzir-se numa disciplina jurídica que assim o expresse. Feche-se o parêntese para concluir, neste ponto, que o entendimento da política pública como atividade administrativa redunda, no que diz respeito á sua sindicabilidade judicial, no conhecido tema do controle da discricionariedade administrativa, com seus também conhecidos problenus e limites. Daí, por esse prisma, não se reconhecer à noção de política pública o sentido de uma categoria nova no direito. 4.1.2. Política pública como norma
Outra hipótese de trabalho seria entender a política pública como categoria normativa. A lei, como categoria jurídica, caracteriza-se pela generalidade e abstração. Embora tenha uma dimensão teleológica, isto é, vise atingir um fim, isso não lhe confere, necessariamente, "endereço certo". As políticas, diferentemente das leis, pão são gerais e abstratas, mas, ao contrario, são forjadas para a realização de objetivos determinados. "Princípios são proposições que descrevem direitos; políticas (policies) são proposições que descrevem objetivos".
18 Ronald Dworkin, Thking nghts seriously, p. 90.
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Ronald Dworkin aprofundou esses conceitos em sua critica ao positivismo jurídico, quando, na década de 1970, pretendeu demonstrar que a solução das questões jurídicas levava em conta mais do que regras, em sentido estrito. Em um ensaio de Taking Rights Seriously colocou lado a lado as figUras das regras, princípios e políticas (policies). O original nesse ensaio é exatamente a inclusão dessa última figura, que não integra as sistematizações consagradas das espécies jurídicas. "(...) quando advogados raciocinam sobre ou questionam direitos ou obrigações, particularmente nos casos dificeis em que nossos problemas com esses conceitos parecem mais agudos, eles usam padrões (standanis) que não funcionam como regras, mas operam diferentemente como princípios, políticas (policies) e outras espécies de padrões. (...) Chamo política aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo para ser atingido, geral: "Mente tinia melhoria de caráter econômico, político ou social na comunidade (...) e princípio um padrão que deve ser observado, não porque vá proporcionar ou assegurar uma situação económica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça, eqüidade ou alguma outra dimensão de moralidade". O paralelo com essa discussão é limitado, para nós, uma vez que a crítica de Dworlcin ao positivismo no ensaio em questão repousa sobre a convicção da insuficiência do sistema de regras, já que tanto os princípios quanto as politicas, parâmetros necessários para a solução de casos dificeis, estariam fora das regras. No caso brasileiro, a leitura deve ser outra, uma vez que há, num certo sentido, um excesso de direitos e princípios positivados (dentro do sistema de regras, portanto), embora permaneça o problema do critério a adotar para a realização efetiva dos direitos, com base em princípios ou políticas nos casos concretos (ou "casos dificeis"). Poder-se-ia dizer que. 35 políticas públicas atuam de forma complementar, preenchendo os espaços normativos e concretizando os princípios e regras, com vista a objetivos determinados. Caberia, então, encontrar lugar (ou melhorar os seus contornos) para uma categoria jurídico-formal, situada provavelmente abaixo das normas constitucionais e acima ou ao lado das infraconstitucionais. Por esse raciocínio, as políticas públicas corresponderiam, no plano jurídico, a diretrizes, normas de um tipo especial, na medida em que romperiam as amarras dos atributos de generalidade e abstração — que extremam as normas dos atos
c' Dworkin, "The modal of rales I", p22.. 26
jurídicos, esses sempre concretos —, para dispor sobre matérias contingentes. Na pirâmide kelseniana, tais normas não seriam de a& acomodação. Nos anos de 1960-70, época de grande prestígio da temática do planejamento, muito se discutiu sobre a natu,reza jurídica das normas do plano. O livro Planejamento Econômico e Regra Jurídica, escrito em 1978 pelo hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau, aprofundou-se no tema. Nele propõe-se urna. tipologia cias_ regras jurídicas que passaria a contemplar, além das normas de conduta descritas tradicionalmente e as normas de organização propostas por H. L. Hart, um terceiro tipo, as normas-objetivo, referidas no direito soviético, pelo jurista Chebanov, com base em texto de Pribulda: "As normas-objetivo estabelecem os direitos e as obrigações dos diversos organismos, organizações e funcionários pela indicação de um resultado determinado, expresso sob forma monetária ou material, para cuja realização estes organismos e organizações devem administrar a utilização dos recursos e bens do Estado que estejam sob seus cuidados'°°. Em que pese um inevitável olhar passadista sobre o contexto da economia planificada, o fato é que a discussão sobre a natureza e o regime das leis do plano não só permanece atual, como se aplica, em grande medida, à discussão sobre as políticas públicas e sua disciplina jurídica. As políticas públicas são, de certo modo, microplanos ou planos, pontuais, gue visam a racionalização técnica da ação do Poder Público para a realização de objetivos determinados, com a obtenção de certos resultados. Outro paralelo evidente com a discussão das políticas públicas é o debate, intenso àquela época, sobre a possibilidade de exigir em juízo o cumprimento das medidas do plano, que tem similitude com a discussão acerca dos direitos sociais como direitos subjetivos e sua judicialidade. Finalmente, outro aspecto cuja pertinência para o debate em questão merece destaque é o do caráter programático do plano, isto é, a adaptabilidade dos seus objetivos à realidade emergentem.
"Eros Roberto Grau. Planejamento cunham e regra jurídica. São Paulo: Revista dos nibunais, 1978, p.243. fiGrau, op. cit. A discussão sobre a natureza e regime jurídico do plano se faz atualmente em relação ao Plano Diretor, para o que se destaca o trabalho de Victor Carvalho Pinto, Direito urbanística Plano diretor e direito de propriedade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. Nesse trabalho, o plano é definido como lei em sentido 27
Essa discussão nos remete ao problema da efetividade das chamadas normas programáticas, a partir do estudo clássico de José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais. O autor parte das lições do jurista Vazio Crisafulli, a propósito da Constituição italiana e suas disposições de principio, com citações que vale aqui reproduzir; "Para ele, inicialmente, elas constituíam um verdadeiro programa de ação (e, antes de tudo, de legislação): 'um programa tendo como objeto principal a disciplina das relações sociais, e, mais em geral, da ordenação da
sociedade estatal, ou seja, do Estado em sentido amplo, segundo princípios democraticamente avançados e realistas, em coerência com a definição do art. 12, pelo qual a República italiana é findada sobre o trabalho'. Programáticas — define em outro lugar — são 'aquelas normas constitucionais com as quais um programa de ação é assumido pelo Estado e assinalado aos seus órgãos, legislativos, de direção política e administrativos, precisamente como um programa que a eles incumbe a obrigação de realizar nos modos e nas formas das respectivas atividadern. O que sempre causou polêmica, na discussão sobre as normas programáticas e induziu a reflexão mais aprofundada do autor, apresentada na 31 edição da obra, foi a questão da efetividade das normas programáticas. Pois o fato de entender as normas programáticas como de eficácia limitada, isto é, carentes de normatividade ulterior integrativa de sua eficácia plena, sugeria, na opinião do próprio autor, a idéia de que não se trataria de autêntico direito atual, de imediata aplicabilidade. Na .31 edição do livro, o ilustre publicista enfatiza o caráter vinculativo das normas programáticas, deixando claro que "o fato de dependerem de providências institucionais não quer dizer que não tenham eficácia. Ao contrário, sua imperatividade direta é reconhecida, como imposição constitucional aos órgãos públicos"B.
formal, comparado às leis-medida ou leis de efeitos concretos referidas por Hely Lopes Meirefies. E embora definido como instituto próprio do direito urbanístico, com base no art. 24 da Constituição Federal, para efeito de controle de legalidade, as disposições do plano podem ter natureza de ato normativo ou ato administrativo e a sua impugnação se faz pelos meios disponíveis para a contestação do ato administrativo (p. 236 e 251).As adaptações a alterações conjunturais também fazem parte da dinâmica do Plano Diretor. "José Afonso da Silva. Aplicabilidade das normas constitucionais, 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 137-138. 23 José Afonso da Silva, op. cit., p. 155.
E conclui; as normas programáticas têm eficácia jurídica imediata, direta e vinculante nos casos seguintes: I — estabelecem uni dever para o legislador ordinário; II — condicionam a legislação futura, com a conseqüência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; III — informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; IV — constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V — condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; VI — criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem"".
Um dos efeitos da aplicabilidade das normas programáticas é a proibição-de omissão dos Poderes Públicos na realização dos direitos sociais. C) direito processual que sanciona as omissões, enunciado na Constituição Federal (arts. 102, I, g, e 103, § 22) seria um dos caminhos para a efetivação das normas programáticas, em face da inércia do Poder Público na iniciativa das medidas legislativas ou administrativas necessárias à implementação do direito. Há, entretanto, inúmeras dificuldades a transpor para o completo funcionamento de um modelo de sancionamento das omissões do Poder Público, ainda mais nas hipóteses em que tais omissões decorram de inequívocas limitações de meios, dado o reconhecimento da escassez de recursos para atendimento pleno e simultâneo de todas as demandas sociais decorrentes dos direitos afirmados na Constituição. Em que pesem os esforços para a afirmação do caráter obrigatório das normas instituidoras de direitos a prestações, esses esforços têm cunho antes politica ou juridico-politico, uma vez que demarcam o terreno que privilegia uma visão mais promocional e igualitarista do direito, do que jurídico, no sentido da teoria do direito. O diálogo mantido entre o constitucionalista carioca Luís Roberto Barroso e o jurista lusitano Joaquim Gomes Canotillio, por ocasião do debate sobre a revisão da concepção da Constituição dirigente por este
" José Afonso da Silva, op. cit., p. 164.
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último, é muito elucidativo sobre o caminho que se abre para unia formulação como a das politicas públicas em direito enquanto expediente capaz de transcender a limitação inerente às normas constitucionais definidoras de direitos a prestações, entre as quais os direitos sociais. O questionamento de Barroso é feito nos seguintes termos: 'A única observação pontual que gostaria de fazer refere-se a uma passagem do seu Prefácio, em que o senhor critica a transposição do conceito aplicabilidade direta e imediata para os direitos sociais. Eu então gostaria de entender se a sua posição é a de que as normas referentes a direitos sociais não deveriam estar lá, ou se e a de que os direitos sociais deveriam ser tratados como sendo juridicamente inferiores às outras posições jurídicas asseguradas pela Constituição, ideia com a qual — confesso — eu não estaria de acorda Acho que foi urna vitória importante na experiência constitucional brasileira assegurar juridicidade a essas normas, e, ainda quando haja algum exagero, eu certamente consideraria um retrocesso nós abandonarmos essa ideia'''. Ao que responde o Professor Canotilho: " (...) creio que precisamos de maior imaginação na captação normativa dos direitos sociais, na captação normativo-constitucional da socialidade. Penso que o nosso discurso está um pouco saturado e muitas vezes não conseguimos soluções concretas a partir de uma teoria constitucional dos direitos sociais, económicos e culturais. (...) Por outro lado, e esta é outra questão, quando dizemos que os direitos económicos, sociais e culturais nunca são direitos originários, mas sempre direitos derivados do legislador, podemos não estar a aproximar-nos do âmago da problematicidade. Penso que o direito ao trabalho, ou o direito à segurança social podem não ser concretizados diretamente pelas normas constitucionais, mas estas normas continuam a ser normas vinculativas e continuam a ser premissas importantes para as políticas legislativas. Portanto, se me pergunta se os direitos sociais devem ser retirados da Constituição, eu respondo que não. De modo algum. O que pode estar em causa são políticas de direitos sociais, mas não a negação dos direitos económicos, sociais e culturais. Uma terceira nota. É uma característica dos juristas discutir a estrutura dos direitos econômicos, sociais e culturais, e neste aspecto tenho dito que há aqui urna espécie de ' jogo de sombras que não são meramente
"jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Canotilho e a Constituição dirigente, Rio de Janeiro—São Paulo: Renovar, 2003, p. 32. 30
chinesas. Qual é o jogo de sombras? Quando ouvimos dizer que os direitos econômicos, sociais e culturais não são verdadeiros direitos, porque não há poder subjetivo de obrigar à sua realização ou porque pressupõem sempre prestações estatais, recorta-se a priori uma estrutura de direito subjetivo pretensamente válida para todos os direitos e ramos do direito. (...) mesmo neste questionamento dogmático, não temos grandes certezas e é preciso aprofundar o tema"". Nesse debate, delineia-se como linha de trabalho mais fecunda a da admissão das políticas públicas como programas de ação destinados a realizar, sejam os direitos a prestações, diretamente, sejam a organização, normas e procedimentos necessários para tanto. As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instituída pelo 'direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico.
4.2. Intervenção do Poder Judiciário na conformação ou aplicação de políticas públicas A possibilidade de submeter uma política pública a controle jurisdicional é inquestionável, diante da garantia ampla constante do art. 52, XXXV, da Constituição Federal: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". A proposição constitucional centra-se na proteção a direito, sendo esse o elemento de conexão a considerar. O Judiciário tutela as políticas públicas na medida em que elas expressem direitos. Excluem-se, portanto, os juízos acerca da qualidade ou da adequação, em si, de opções ou caminhos politicos ou administrativos do governo, consubstanciados na politica pública. Nesse sentido, os modos de acionar o controle judicial das políticas públicas são vários, Alguns desses mais "compreensíveis" ou adequados à atuação do Poder Judiciário e outros menos. As ações coletivas, como mecanismo de processamento de demandas coletivas e massificadas, a partir das class atam norte-americanas, são o meio, por excelência, de solução de conflitos envolvendo os direitos sistematizados em políticas públicas.
" Continha, op. cit., p. 36.
31
É sem dúvida um marco no direito brasileiro a edição da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985. Conjugando-se com o Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078, de 1990, que deu grande amplitude à legitimação processual, com a adoção de um conceito amplo de interesse, alterou-se o paradigma da defesa judicial. Os efeitos sociais mais significativos dessa legislação, no entanto, não repousam no horizonte temporal imediato. É menos importante o resultado de cada ação civil pública, em si, que a alteração de cultura que vá se produzir acerca da tutela dos interesses coletivos, individuais homogêneos ou difusos e sua repercussão para a superação de uma cultura privatista, isto é, individualista e patrimonialista do direito. Não por acaso, a elaboração mais desenvolvida no direito a respeito das políticas públicas não está no campo do direito público — como seria de se esperar, em virtude da interação obrigatória dos agentes públicos com os instrumentos jurídico-institucionais que balizam a atuação do Poder Público —,mas no campo processual. E também não é por acaso que o Ministério Público tem a experiência mais consolidada neste campo, graças a instrumentos instituídos com o advento da Lei da Ação Civil Pública, o inquérito civil (art. 8, § 12, da Lei n.7.347/85) e o termo de ajustamento de conduta, que têm induzido comportamentos ativos, por parte dos titulares das competências para a formulação e implementação das políticas públicas, no sentido de superar omisstlies, dentro dos limites concretos postos para sua ação. Nesse sentido, o mecanismo do ajustamento de cOnduta parece, em geral, mais conveniente ao interesse público, porque insta o administrador público a agir, sem lhe tolher certa margem de discricionariedade, que lhe permita manter íntegra a lógica do conjunto da ação do governo ou do órgão público. A pesquisa jurídica dessa matéria, no entanto, fica bastante prejudicada pelo fato de não se ter registro sistematizado e público dos termos de ajustamento de conduta firmados, ao contrário do que ocorre com a jurisprudência. Essa, além de ter o estatuto jurídico de fonte do direito, goza de autoridade estabelecida perante a comunidade jurídica, consistindo em manancial de consulta regular e sistemática, com base nos repertórios de jurisprudência. (Seria de se cogitar de publicação semelhante pelos órgãos do Ministério Público, o que contribuiria muito para a formação de uma cultura indutiva de efetivação de direitos.) Entretanto, em que pese a importância do ajuizamento de ações para exigir a efetividade das normas asseguradoras de direitos, em especial os direitos fundamentais, a crítica que se pode fazer a essa forma de atuação diz respeito à possível ocorrência da concorrência entre direitos. 32
A atuação judicial, via de regra, tem o efeito de pulverizar os pleitos por direitos. Na medida em que o juiz não está vinculado à lógica da disponibilidade dos meios, como está o Poder Executivo, as conseqüências de uma decisão judicial específica sobre o universo de direitos alheio aos limites da lide são imprevisíveis. Além disso, pode tomar corpo o fenômeno da judicialização da política", em que o ativismo judicial de promotores de justiça e juízes passa a se substituir à iniciativa do Poder Executivo, que tem titulo legal para o plano de governo (CF, art. 84, XI), além de iniciativa legislativa nas matérias em torno das quais ;e estrutura a realização de políticas públicas, notadamente orçamentária, administrativa e de serviços públicos (CP, art. 61,11, b). A despeito desse risco, não deve ser menosprezada a importância das ações civis públicas para a inclusão dos direitos fundamentais no cenário judicial. Essa atuação, em especial por iniciativa do Ministério Público, tem gerado um novo patamar jurídico de cidadania no Brasil. Sobre isso, o juiz federal Eduardo Appio, que há muito vem se dedicando ao estudo do controle judicial das políticas públicas no Brasil, alerta: "Um governo de juízes seria de todo lamentável, não pelo simples fato de que não tenham sido eleitos para gerirem a máquina administrativa ou para inovarem no ordenamento jurídico, mas pela simples razão de que não detêm mandato fixo. (...) Não há qualquer garantia de que um governo de juízes seria moralmente superior ao de representantes eleitos, na medida em que os valores e princípios constitucionais são maleáveis por conta de sua textura aberta, permitindo uma interpretação muito ampla acerca de seu conteúdo, o que poderia conduzir à prevalência dos interesses do Poder Judiciário enquanto grupo político, e não os interesses reais dos cidadãos. A principal função do Poder Judiciário brasileiro no contexto político do século XXI será a de permitir a efetiva participação de grupos e segmentos da sociedade que não têm acesso aos canais de comunicação com o poder político. Neste sentido, não cabe ao Poder Judiciário se utilizar de uma discricionariedade política quando do exame das omissões do Estado, mas sim, possibilitar que o jogo político se desenvolva a partir de regras eqüitativas que considerem com igual respeito todos os cidadãos".
v Ver artigo de Alcindo Gonçalves, neste volume. Discridonariedade política do Poder Judiciário, Curitiba: Ed. Jurua, 2006. 33
Ainda é muito incipiente a jurisprudência brasileira em matéria de politicas públicas. Seja porque as decisões a elas relacionadas não são indexadas como tais, mas conto questões de aplicação do direito comum, o que decorre do fato de não se reconhecerem tais questões como de polificas públicas, mas simplesmente questões legais, envolvendo competências dos Poderes Públicos —,seja porque a matéria de políticas públicas é decidida, comumente, em ações civis públicas e outras ações coletivas, sendo essa a jurisprudência que deve ser procurada.
Após a exposição de vasta fundamentação doutrinária, refutando os argumentos da Municipalidade, conclui o eminente ministro:
Merecem destaque, no entanto, algumas decisões do Supremo Tribunal Federal. Em especial, o Ministro Celso de Mello tem enfrentado o tema e em decisões sucessivas (ADPF 45, entre outras) tem buscado delinear os fundamentos e os limites do controle judicial -de politicas públicas.
"É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário — e nas desta Suprema Corte, em especial — a atribuição de formular e de implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, como adverte a doutrina, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Os deferimentos das medidas liminares e das r. sentenças obrigando as matrículas das crianças em creches, adequando o Estatuto da Criança e do Adolescente à realidade Stica, não pode vigorar, pois essa disposição configura indevida ingerência do Poder Judiciário no poder discricionário do Executivo, o que difere do poder jurisdicional daquele em analisar a legalidade dos atos administrativos praticados pela Administração".
Impende assinalar, no entanto, que tal incumbência poderá atribuirse, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descwnprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame"".
Na decisão de Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 410.715-5, o relatório, baseado na petição do Ministério Público Estadual agravante, põe em relevo não apenas o fundamento jurídico da limitação do Poder Judiciário para a ingerência no poder discricionário do Executivo — a separação, ou independência de poderes, nos termos do art. 22 da Constituição —, mas as limitações financeiras para a implementação do direito: "(...) não há como se cobrar, somente do Município, a manutenção do sistema de ensino, especificamente o atendimento a crianças em creches e escolas de educação infantil. A oferta de educação pública, obrigatória e gratuita, pois, é dever do Poder Público Federal, Estadual e Municipal, de acordo com o dispositivo da CF alterado pela Emenda Constitucional n. 14/96 (...). Importam na situação de atendimento organizado a centenas de crianças a qualidade, a segurança e a proteção, dentro da razoabilidade que o orçamento público permite. A carência de novos aportes de recursos para financiar a educação infantil limitou o atendimento em todo o Município e a possibilidade de ampliação do atendimento em educação infantil. (...) considerando a enorme demanda de crianças carentes de creches ou pré-escola no âmbito do Município, e considerando que as instituições de ensino público em funcionamento abrigam crianças matriculadas muito acima do limite de vagas e da capacidade das salas de aulas, em razão de dezenas de liminares judiciais, obviamente, há grande comprometimento do Erário, da ordem administrativa, da qualidade do ensino e da educação transmitida aos abrigados. 34
Os fundamentos jurídicos da decisão levaram em conta, de um lado, o caráter fundamental dos direitos em questão (direitos da criança e do adolescente, art. 208, IV, da CF; tratava-se da abertura de vagas em creches e escolas de educação infantil no Município de Santo André-SP, cuja oferta era insuficiente diante da enorme demanda de crianças carentes) e, de outro lado, o que poderíamos qualificar de "vícios do processo decisório legislativo-governamental", que resultaram na omissão no cumprimento da disposição constitucional em exame. A técnica decisória utilizada teria paralelo no controle judicial dos atos administrativos, em que são sindicáveis não o mérito do ato, mas os vícios alegados, como desvio de poder, por exemplo, de que há amostra jurisprudencial bastante representativa. No caso em questão, o trecho final da fundamentação deixa clara essa estratégia ao referir-se à "ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos do cidadão, a
21'
Diário da justiça de 3-2-2006; por medida de brevidade, suprimi as referências doutrinárias, que podem ser consultadas no texto do acórdão, disponível em www.stf.gov.br. No mesmo sentido, RE 436.996-AgRg/SP. 35
dei
incapacidade de gerir recursos públicos, a incompetência na adequada implementação da programação orçamentária em tema de educação pública, a falta de visão política do administrador na justa percepção do enorme significado social de que se reveste a educação infantil e a inoperância fimcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais estabelecidas em favor das pessoas carentes". • Essa estratégia caracteriza um caminho que faz lembrar a célebre "Corte Warren", a Suprema Corte americana, presidida pelo Juiz Earl Warren, nos Estados Unidos dos anos de 1950-60, cujo ativismo foi responsável por decisões, em matéria de eliminação do racismo, que implantaram o que nem a vitória do norte industrializado contra o sul racista na Guerra Civil havia conseguido, um século antes, como no caso Brown x Soarei of Education, de 1954. A questão se coloca sob o prisma da "reserva do possível", já identificada na jurisprudência constitucional alemã, que nada mais expressa senão o fato de que os direitos sociais têm custos e que, no limite, pode haver concorrência pelo atendimento de direitos. A pulverização dos conflitos na arena judicial, mesmo quando agregados os interesses coletivos sob a representação processual do Ministério Público, não impede que ocorra, de modo desordenado e sem uma racionalidade explícita e consciente, unia seleção de prioridades, segundo as condições concretas de cada grupo de interesse de se fazer defender perante o Poder Jucliciáriom. O efeito indesejado que pode decorrer desse fato é o deslocamento (e desorganização) do processo de seleção de prioridades e reserva de meios, cerne da construção de qualquer política pública, dos Poderes F3er•-• elltiVO e Legislativo, onde se elabora o planejamento e se define, como conseqüência, o orçamento público, segundo uma ótica global, para o contexto isolado de cada demanda judicial, cuja perspectiva, mesmo nas ações coletivas, é do indivíduo ou grupo de indivíduos (ou talvez de uma comunidade, mas nunca ou quase nunca com a mesma abrangência das leis orçamentárias, de âmbito municipal, estadual ou federal).
3° É sabido que o sucesso de certas medidas judiciais sobre políticas públicas se beneficia da afinidade política dos integrantes do tribunal ao governante que a implementa; isso não apenas no Brasil, como também em outros lugares, destacando-se os Estados Unidos. Entretanto, outro componente desse sucesso, nem sempre adequadamente considerado, é a capacidade de "assimilação" da medida judicial proposta pelo sistema jurídico, 36
5. FORMULAÇÃO DE UM CONCEITO JURÍDICO DE POLÍTICAS PÚBLICAS O direito tem um papel na conformação das instituições que impulsionam, desenham e realizam as políticas públicas. As expressões da atuação governamental correspondem, em regra, a formas definidas e disciplinadas pelo direito. A importância de se teorizar juridicamente o entendimento das políticas públicas reside no fato de que é sobre o direito que se assenta o quadro institucional no qual atua uma política,Trata-se, assim, da comunicação entre o Poder Legislativo, o governo (direção política) e a Administração Pública (estrutura burocrática), delimitada pelo regramento pertinente. A confluência entre a política e o direito, nesse aspecto, dá-se num campo em que é mais nítida a participação de cada uma das linguagens. À política compete vislumbrar o modelo, contemplar os interesses em questão, arbitrando conflitos, de acordo com a distribuição do poder, além de equacionar a questão do tempo, distribuindo as expectativas de resultados entre curto, médio e longo prazos. Ao direito cabe conferir expressão formal e vinculativa a esse propósito, transformando-o em leis, normas de execução, dispositivos fiscais, enfim, conformando o conjunto institucional por meio do qual opera a política e se realiza seu plano de ação. Até porque, nos termos do clássico princípio da legalidade, ao Estado só é facultado agir com base em habilitação legal. A realização das políticas deve dar-se dentro dos parâmetros da legalidade e da constitucionalidade, o que implica que passem a ser reconhecidos pelo direito — e gerar efeitos jurídicos — os atos e também as omissües que constituem cada política pública. O problema passa a ser, então, o de desenvolver a análise jurídica, "de modo a tornar operacional o conceito de política, na tarefa de interpretação do direito vigente e de construção do direito futuro". O risco dessa interpenetração entre direito e política é a descaracterização da lei, em sua peculiaridade, pela lógica das políticas, como vetores de programas para a realização de direitos, como adverte Jürgen Habermas:
Comparato, Juizo de constitucionalidade de políticas públicas. 37
"Mesmo no Estado social, o direito não deve ser completamente reduzido à política se a tensão interna entre facticidade e validade, e dessa à normatividade da lei, não quiser ser extinta: IA lei se torna um instrumento da política se a tensão interna, e ao mesmo tempo o próprio meio legal estipula as condições procedimentais sob as quais a política pode ter a lei à sua disposição"'". A generalização negativa, que recusa qualquer associação entre di-
reito e política pública, é tão perniciosa quanto a generalização inversa, essa última que associa todo direito público a uma politica pública. Se fosse Verdadeira, seria rigorosamente desnecessária uma sistematização jurídica sobre a compreensão das políticas públicas. As categorias tradicionais da ciência do direito seriam suficientes a explicar e disciplinar os fenômenos políticos e não haveria sentido introduzir urna figura jurídica nova. Uma coisa é aproveitar a aragem — entre nós, nova, mas pelo menos trintenária (senão mais velha) nos Estados Unidos — de urna abordagem mais articulada entre direito e política para atualizar e revigorar o direito público, superando visões formalistas e que distanciam o direito público de seu objeto, o Estado e a Administração Pública. Coisa distinta é compactar as noções de política pública e direito público num todo indiviso e disforme, que perde a capacidade de explicar e organizar o conhecimento e a ação, seja num campo, seja no outro. O trabalho de delinear um conceito só se justifica se agrega algo novo à capacidade de compreensão dos fenômenos tratados pelo conhecimento estabelecido. Feitas essas ponderações, convém propor um conceito de política pública, que possa ser posto em prática e experimentado na atuação do sistema jurídico-institucional. formulei a seguinte Em meu Direito administrativo e políticas públicas, proposição: "Políticas públicas são programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados". O princípio de reflexão alinhavado naquela oportunidade carecia
de desenvolvimento sob o aspecto processual. Na verdade, a política pública
" Between facts and nonns, p. 428. " Op. cit., p. 239. 'IR
só pode ser compreendida como arranjo complexo, conjunto ordenado
de atos (e assim deve ser tratada também na esfera judicial). O aspecto processual como elemento' de conexão dos múltiplos componentes desse arranjo destaca-se na proposição de Jean-Claude Thõenig: "Programas de ação de autoridades governamentais formando um conjunto de processos e de interações concorrendo ao enfrentamento e à solução de um certo número de problemas postos na agenda das autoridades"". A idéia de conjunto de processos está presente também na literatura norte-americana: "Though a drastic oversimplification, public policy malcing can be considered to a set a processes, including at least (I) the setting of the agenda, (2) the specification of alternativas from wich a choice is to be made, (3) an authoritative choice arnong those specified alternatives, as in a legislative vote or a presidencial decision, and (4) the implementation of the decision"".
Agregando esse aspecto, a formulação original evoluiu para a seguinte proposição: "Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados — processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial — visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o
atingimento dos resultados",
Apud jean-Louis Quennonne,"Les politiques institutionnelles.Essai d'interprétation et de typologie", in Madeleine Grawitz e Jean Leca, Traité de science politique. Les Politiques Publiques (v. 4):"Programmes d'action des autorités gouvemementales en tua qu'ils forment un ensemble de processus et d'interactions concourant à la prise , en charge et à la solution d'un certain nombre de problèmes placés sur l'agenda dês autorités". hn ICingdon, Agendas, alternatives and public policies, USA: Harper Collins College Publishers, 1995, p. 2-3.
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Decompondo-se o conceito proposto, extraem-se os elementos de estruturação a seguir comentados: ação-coordenação, processo e programa.
5.1. Programa O uso do termo programa é equívoco e controvertido. Autores mais cautelosos, no campo da ciência política, preferiram evitá-lo, utilizando, no lugar, a expressão "ouits da atividade politica"36, o que inteligentemente elimina o problema de se ter que adotar uma forma específica para a ação administrativa. Como se viu acima, dentre as várias expressões possíveis de uma política pública, nem todas se caracterizam como "programas", em sentido estrito. A utilidade do elemento programa é individualizar unidades de ação administrativa, aos resultados que .se pretendàEC _. _ relacionadas . Na literatura específica, o programa remete ao conteúdo propriamente dito de uma política pública.A definição prévia desse conteúdo se faz necessária não apenas quando se delineiam as alternativas, mas também quando se toma a decisão que redunda na implementação da política. Do mesmo modo, a fase de avaliação requer os contornos precisos dos resultados propostos na fase inicial. O programa corresponde ao delineamento geral da política: "Programa administrativo — desenho da política (policy &s(n) — conjunto das normas e das diretivas federais e cantonais que os governos e os parlamentos consideram necessárias para aplicar a concepção da política pública por intermédio dos planos de ação e por uma regulamentação administrativa dos grupos-alvo, Esse programa administrativo deve respeitar o princípio da legalidade. As políticas públicas dispõem de programas administrativos mais ou menos detalhados (densidade regulamentar), mais ou menos centralizados (alta ou baixa densidade regulamentar da parte do programa administrativo gerado ao nível federal), e mais ou menos coerentes (adequação dos elementos constitutivos dos programas administrativos). Esses últimos compreendem a definição dos objetivos, os elementos de avaliação e operacionais (instrumentos de intervenção), as decisões sobre o arranjo político-administrativo, sobre os recursos, bem como sobre o procedimento e sobre as modalidades de intervenção administrativa"".
"Maria das Graças Rua, Análise das políticas públicas: conceitos básicos (mimeo, ENAP, 2004). " Peter Knoepfel, et ai., "Les politiques publiques comme objet d'évaluation", ia Politiques publiques. Évaluation, Paris: Economica, 1998, p. 67.
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(—) "ós objetivos e instrumentos de realização das políticas pertencem aos programas administrativos (polity designs). Esses definem, em termos jurídicos, os mandatos políticos formulados pelo legislador a título de solução do problema coletivo, Essas normas constituem a fonte de legitimação primeira de uma política pública. Do ponto de vista formal, elas se compõem de vários documentos escritos (antes de tudo leis, ordens de execução, diretivas administrativas). Do ponto de vista material, elas compreendem objetivos normativos da solução visada para resolver o problema, os meios postos à disposição para esse efeito, a organização administrativa da operação, bem como a definição dos grupos-alvo e de seu papel na realização da política pública". No núcleo do programa administrativo constam os objetivos con-
cretos da política, nas suas camadas internas, os elementos operacionais (instrumentos) e os elementos de avaliação, e finalmente, nas camadas externas, os elementos instrumentais e procedimentais, bem como os arranjos político-administrativos, os meios financeiros e outros recursos". A idéia de desenho de uma política encontra correspondência, no campo do urbanismo, com o programa urbanístico que orienta as intervenções urbanas, especificamente as obras de arquitetura e engenharia. O direito financeiro brasileiro adotou a figura do programa como base para a elaboração orçamentária, nos termos do art. 25 da Lei n. 4.320/64: "Art. 25. Os programas constantes do Quadro de Recursos e de Aplicação de Capital sempre que possível sedo correlacionados a metas objetivas em termos de realização de obras e de prestação de serviços. Parágrafo único. Consideram-se metas os resultados que se pretendam obter com a realização de cada programais".
"Peter Knoepfel et al., "Les objets et les critéres d'évaluation", in Éoaluation, Werner Bussmann, cit. "Idem, ibidem. 1° A norma de regulamentação da Lei n. 4.320/64, a Portaria n. 42, de 14-4-1999, do então Ministério do Orçamento e Gestão, organiza os conceitos fundamentais da prática orçamentária nas categorias função, subfunção, programa, projeto e atividade, conforme as seguintes definições: função — o maior nível de agregação das diversas áreas de despesa que competem ao setor público; subfunção — uma partição da função, visando a agregar determinado subconjunto de despesa do setor público (as subfunções podem ser combinadas com funções diferentes daquelas a 41
Outro referencial, no direito público, é o programa de governo dos regimes parlamentaristas, como descreve Canotilho: "(...) a frouxa elaboração doutrinal revela que na teoria do Estado de Direito o 'programa de ação de um governo continua a ser equacionado através da sua concretização em atos normativos (deslocação para os terrenos da legalidade e da inconstitucionalidade) ou da sua conexão constitucional com o 'processo' de formação e investidura de governos. Não admira, assim, que de 'programa de governo' se tenha, por vezes, urna concepção mais política do que constitucional: (1) o programa de governo identificado com o programa eleitoral das forças políticas; (2) o programa ou acordo político efetuado por dois ou mais partidos ou facções políticas com vista à formação de um governo"' ou coligação; (3) acordo político entre governo e parlamento (ou algumas facções), em que se fixam os pontos essenciais, considerados pelo governo como indispensáveis à sua ação, e que a facção parlamentar 'apoiante' se compromete a aceitar e dinamizar. Um programa eleitoral partidário ou um acordo partidário-governamental-parlamentar não são, rigorosamente, uni programa constitucional de governo. Não obstante as normas constitucionais variarem, neste aspecto, de país para país, a noção de programa de governo que tende a alicerçar-se (pelo menos nos países com governos dependentes do parlamento) é esta: programa de trabalho apresentado perante o parlamento, individualizador dos fins e tarefas que o governo se propõe realizar em conformidade com a Constituição, durante determinado perlado (em geral no começo do 'mandato' do governo ou no início da
nova legislatura) '''2.
Á dimensão material da política pública está contida rito programa. É nele que se devem especificar os objetivos a atingir e os meios corres-
que estão subordinadas); programa — instrumento de organização da ação governamental visando à concretização dos objetivos pretendidos, sendo mensurado por indicadores estabelecidos no plano plurianual; projeto — instrumento de programação para alcançar o objetivo de um programa, envolvendo um conjunto de operações, limitadas no tempo, das quais resulta um produto que concorre para a expansão ou aperfeiçoamento da ação de governo; atividade — instrumento de programação para alcançar o objetivo de uni programa, envolvendo um conjunto de operações que se realizam de modo contínuo e permanente, das quais resulta um produto necessário à manutenção da ação de governo. "'A formação de governo deve ser compreendida no cenário do regime parlamentarista, como é Portugal, de onde é oriundo o autor. José Joaquim. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo 42 para a compreensão das normas constitucionais programáticas, Coimbra: Coimbra Ed., 1994, p. 467-468.
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pondentes. Os programas bem construídos devem apontar também os resultados pretendidos, indicando, ainda, quando possível, o intervalo de tempo em que isso deve ocorrer. Tais parâmetros serão úteis na avaliação dos resultados da política pública, após a sua implementação. Qpnograma contém, portanto, os dados extrajurídicos da política pública. Os instrumentos de formalização jurídica da política podem Wciilicitar de forma mais ou menos clara os termos do programa, mas é certo que quanto mais próximo ambos estiverem, maior é a condição de efetivação jurídica da politica.É o que se chama de "modelagem jurídica". 'nata-se de um esforço de pactuação de uma linguagem para uso tanto na esfera do direito como da administração pública e da política. O ideal seria organizar esses conceitos, de modo a traduzir a estruturação no campo da Teoria da Administração para a linguagem jurídica e viceversa, o que resultaria num referencial conceituai mais significativo, na medida em que mais adequado tanto à operacionalização da atividade administrativa como da forma jurídica conferida à política pública".
5.2. Ação-coordenação A nota característica da política pública é tratar-se de programa de ação. Nesse sentido, ao situar-se entre as categorias da validade e da eficácia
jurídica, na classificação kelseniana,.ressalta na política pública a dimensão da eficácia social, a chamada efetividade. O ideal de uma política pública, vista pelo direito, não se esgota na validade, isto é, na conformidade do seu texto com o regramento jurídico que lhe dá base, nem na eficácia jurídica, que se traduz no cumprimento das normas do programa. 0.icieal de uma _política pública é resultar no atingimento dos objetivos sociais (mensuráveis) a que se propôs; obter resultados determinados, em certo espaço de tempo.
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Isso, todavia, nem sempre acontece. À guisa de exemplo, tome-se um manual de teoria geral da administração (Idalberto Chávenato, Introdução a teoria geral da administração, edição compacta, São Paulo: Campus, 1999,4. ed., p. 140), que ao tratar da "administração por objetivos" dispõe-nos numa escala hierárquica em que figuram, a partir do topo da pirâmide em direção à base, as seguintes figuras: i) objetivos organizacionais, ii) políticas, diretrizes, iv) metas, v) programas, vi) procedimentos, vii) métodos e, no final, viii) normas. Essa sistematização é diversa da consagrada no direito, em que figura a norma constitucional no ápice da pirâmide e as infraconstitucionais logo abaixo. Seguem-se, no sentido descendente, as políticas, essas integradas por programas (que contêm metas), que, por sua vez, resultam de processos (mais que meros procedimentos, como se verá).
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Não há, evidentemente, antagonismo entre validade e eficácia. O que justifica o entrosamento da Teoria do Direito com os saberes da Teoria da Administração Pública e Ciência Política é a busca de uma conformação da política pública ajustada às exigências do sistema jurídicoinstitucional, de modo que a realização dos seus objetivos seja abrigada e apoiada pelo sistema e não minada por eles. Um objetivo a perseguir com a adoção da categoria das políticas públicas em direito é a compreensão da ação do Poder Público no seu conjunto, contemplando-se, portanto, necessariamente, a coordenação, A preocupação com a coordenação deve ser ínsita à atuação do Poder Público. Ela visa que o Estado seja um instrumento de indução à ação, isto é, à obtenção de resultados desejados e não mais um elemento (ou conjunto de elementos) na lógica caótica do universo de direitos em tensão. Pensar em política pública é buscar a coordenação, seja na atuação dos Poderes Públicos, Executivo, Legislativo e Judiciário, seja entre os níveis federativos, seja no interior do Governo, entre as várias pastas, e seja, ainda, considerando a interação entre organismos da sociedade civil e o Estado. Por essa razão tem crescido a importância, na gestão pública, de instrumentos consensuais como os convênios e consórcios.Veja-se a menção constitucional à "gestão associada de serviços públicos" (art. 241), como uma saída viável para os dilemas que resultam da definição constitucional das competências comuns (art. 23). Trata-se de figuras jurídicas cuja implementação é bastante ajustada à abordagem jurídica das politicas públicas.
5.3. Processo
Disposições que tratam da participação popular nos processos políticos, os conselhos de direitos previstos na Constituição Federal e em leis que regulamentam direitos sociais, tais como a Lei Orgânica da Saúde, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação ambiental, a legislação da assistência social, entre outros, também carecem de operacionalização adequada. Como notava Celso Daniel ao tratar dos conselhos gestores de políticas públicas, "os Conselhos são espaços que não são meramente estatais nem meramente comunitários. Do ponto de vista jurídico, eu não sei sequer se é fácil classificá-los, porque o nosso sistema jurídico trabalha muito separadamente o direito privado e o direito administrative", Essa avaliação parece verdadeira, não apenas no que diz respeito à separação entre direito público e direito privado, mas também em relação ao entendimento sobre o lugar da participação popular nas instituições jurídico-políticas tradicionais. E esse lugar é, entre outros, o da geração e execução das politicas públicas, A ampliação da noção de interesse processual, após o advento da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei ri, 8.078/90), alargou muito as possibilidades judiciais para a admissão de lides envolvendo interesses coletivos e difusos, que passaram a abranger um universo jurídico muito mais amplo que o abarcado pelo direito processual tradicional. A Lei do Processo Administrativo (Lei n. 9.784/99) acompanhou essa tendência ampliadora e democratizadora, no campo do processo administrativo federal. O próprio conceito de interesse público abre-se ao diálogo com a pluralidade de interesses que o direito passa a disciplinarn . Uma das verten-
O termo _processo
conota. seqiiência de atos tendentes a_um fim, procedimento, agregado do elemento contraditório. Este último, no contexto da formulação de políticas públicas, associa à abordagem jurídica inequívoca dimensão participativa'''.
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Como foi destacado por Patrícia Massa-Arzabe e Gilberto Rodrigues em artigos que compõem este volume, a intensa evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que funciona como referencia aos direitos nacionais e consubstancia, por assim dizer, a face integradora da globalização, contou com a realização de diversas conferencias na década de 1990, todas elas culminando com programas de ação. Um desses é a Agenda 21, cuja importância é menos o enunciado dos valores ambientais, e mais a definição de modos concretos de atuação, a orientar os Estados-partes e os demais atores no processo de implementação do direito ao meio ambiente. 45 Ver artigo de Marcos Augusto Perna, neste volume.
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" "Conselhos, esfera pública e co-gestão", entrevista concedida em 7-11-2000 a Ana Claudia Teixeira, Maria do Carmo Carvalho e Natalino Ribeiro (Conselhos Gestores de Políticas Públicas, ia Maria do Carmo Carvalho e Ana Claudia Teixeira, orgs., Pais. Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, São Paulo: Polis, 2000). p. 129. ""Assim, sob essa acepção política, o interesse público se apresenta como rim arbitrage entre les divers intérêts particuliers'. Ora, essa arbitragem se prende tanto a critério quantitativo (por exemplo, na consolação de uma estrada, sacrifica-se o interesse dos proprietários lindeiras, privilegiando-se o interesse dos que a usarão, porque estes são mais numerosos), quanto a critério qualitativo (os doentes pobres, em certa comunidade, podem ser pouco numerosos; mas o valor do interesse à saúde pública prevalece sobre os interesses pecuniários dos demais cidadãos higidos; logo, a estes cabe contribuir para um funda de assistência médica gratuita aos necessitados).Ainda para aqueles autores [GeorgesVedel e Piaria Delvolvé], o interesse público, sob a acepção jurídica, tem por base a questão da competência para a arbitragem entre os interesses particulares" (Rodolfo de Camargo Manente), Interesses &figos. Conceito e legitimação para agir, 6. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004).
45
tes do estudo das politicas públicas na ciência politica norte-americana é aquela relacionada aos grupos de interesses, bastante desenvolvida no campo jurídico pela análise econômica do direito, na medida em que essa abordagem cuidou de estudar os impactos econômicos das decisões jurídicas". Outro aspecto do elemento processual no conceito de política pública é a consideração sistemática do fator temporal. Tanto no que diz respeito ao período para a obtenção dos resultados visados pelo programa, como no que concerne aos períodos propícios ou não para a inclusão de questões na agenda pública, para a formulação de certas alternativas, para a adoção de certas decisões, e assim por diante. A forte relação entre as políticas públicas e o calendário eleitoral no cenário brasileiro tem grande expressão no processo decisório- público. 5.4. Metodologia jurídica de políticas públicas
na elaboração dos veículos jurídicos das políticas públicas. "Modelizar" a ação administrativa, como propõe Danièle Bourcier", fornecendo uma tipologia normativa e processual ideal seria um avanço, que repercutiria sobre os modos de controle judicial das políticas públicas. A existência de uma conceituação jurídico-formal aplicável ao trabalho com políticas públicas — e é disso que trata o presente trabalho — se justificaria do ponto de vista da funcionalidade do direito, isto é, das condições de atuação dos vários agentes, públicos e privados, envolvidos na concretização dos direitos sociais e, mais que isso, em toda gama de intervenções do Estado sobre o âmbito privado. Embora estejamos raciocinando há algum tempo sobre a hipótese de um conceito de políticas públicas em direito, é plausível considerar que não haja um conceito jurídico de políticas públicas. Há apenas um conceito de que se servem os juristas (e os não juristas) como guia para o entendimento das políticas públicas e o trabalho nesse campo. Não há propriamente um conceito jurídico, uma vez que as categorias que estruturam o conceito são próprias ou da política ou da administração pública.
Em vista do quanto foi dito, evidencia-se que para o estudioso do direito e. extremamente difícil sintetizar em um conceito a realidade multiforme das políticas públicas. Uma política pública carrega, necessariamente, elementos estranhos às ferramentas conceituais jurídicas, tais como os dados econômicos, históricos e sociais de determinada realidade que o Poder Público visa atingir por meio do programa de ação. O jurista deve saber percebe-los, reconhece-los e traduzi-los para o universo conceituai do direito, o que caberia no espaço epistemológico da teoria geral do direito. Essa, contudo, tradicionalmente trabalha o fenômeno jurídico a partir da norma posta, não antes. Daí que a direção de seu desenvolvimento são os métodos de interpretação, aplicação e, quando muito, construção do direito, a partir do direito positivo. Por outro lado, a contribuição da ciência política e da economia, e particularmente aquela que se ramifica na escola da análise econômica do direito, tem o mérito de jogar luz sobre a questão da escassez dos recursos para a realização dos direitos. Mas pertence a uma tradição estranha ao nosso ordenamento formalizado. Nesse sentido, entendo que a melhor contribuição que pode ser dada por um trabalho de sistematização conceituai das políticas públicas fornecer um conjunto de referências aos Poderes Executivo e Legislativo
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46
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Dimensão jurídica das Políticas públicas' Patrícia Helena Massa-Arzabe
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Sumário: Direito e política. Direito e políticas. Precisão terminológica.Aspectos jurídicos de políticas públicas sociais,A política pública como estrutura normativa de ação. O ciclo da política social: formação, execução, controle e avaliação. Conclusão. Bibliografia,
DIREITO E POLÍTICA Hoje é indissociável à noção de Estado a ação sobre os rumos da sociedade, ação esta que deve estar direcionada a buscar o aprimoramento da vida em comum como requisito de legitimidade e de legitimação. É também assentado que o Estado deve valer-se do direito para tanto, fazendo inscrever os objetivos a serem alcançados em normas jurídicas, sejam elas constitucionais, sejam infraconstitucionais. Com isto, o direito passa a apresentar, além de suas funçôes tradicionalmente identificadas, outra já plenamente enraizada, em que vem caracterizado como medium para o estabelecimento desses objetivos, cuja materialização é implementada por meio de políticas públicas econômicas e sociais. Nenhum assombro ou estranhamento pode causar esta afirmação, posto que direito e política sempre estiveram umbilicalmente ligados, constituindo as duas faces de uma mesma moeda, Como bem sublinhado no artigo anterior', o tema das políticas públicas pertence também ao
' A presente argumentação constitui um desenvolvimento do tema tratado anterior-
mente em minha tese de doutorado O direito à proteção contra a pobreza e a exclusão social, defendida em 2002. .2 Ver, supra, artigo de Maria Paula Dallari Ducci,"0 conceito de política pública em direito".
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direito, não podendo ser considerado seara exclusiva da ciência da administração ou da ciência política. Mas é claro afirmar que seu estudo no campo jurídico decorre de uma percepção nova das relações entre o direito e a política', percepção esta que passa pelo necessário reconhecimento de que as políticas públicas contemporâneas encontram-se efetivamente inscritas no direito. Isto porque elas "são tributárias, senão decididas por lei (notadamente as leis financeiras e as leis-programa); dependem cada vez mais de uma multiplicidade de instâncias de juridicidade e contêm sempre uma regulamentação produtora de normas", como aponta Philippe Warin". A par disso, a instância jurídica não é mais vista predominantemente como urna mônada, um sistema ou um subsistema isolado dos demais. Ao lado de sua função tradicional de regramento primário de condutas, seu caráter próprio de "ordenação", isto é, de organização de práticas, registra sensível incremento tanto na regulação econômica como na regulação política', sobretudo quanto à modificação dos modos de governança e à inserção dos Estados em estruturas policêntricas, relacionadas à reorganização dos blocos nacionais e a consolidação de organismos supranacionais.
DIREITO E POLÍTICAS As políticas públicas constituem atualmente a forma precípua da ação estatal, sendo, nos dizeres de Charles-Albert Morand, co-substanciais ao Estado. Nesta medida, evidencia-se para o direito um papel fulcral, mas que só começa a ser divisado pelos publicistas na segunda metade do século XX. As formas de Estado dirigente, intervencionista e gestionária, ou seja, as formas efetivas de Estado, requerem para sua atuação e relegitimação um modelo jurídico próprio, ao qual chamo de direito das políticas públicas. Tal é o direito que implementa programas de ação postos pelo Estado para atender a finalidades relevantes as mais diversas: o
4
Cf. Jacques Caillosse, "À propos de Yanalyse des politiques publiques: reflexiono critiques sur une théorie sons droit", in La juridicisation du politique, p. 47. "Mire en oeuvre des politiques et production normative: angle mort de Yanalyse cir., p. 151. des politiques publiques?", in La Sobre o terna dos novos usos do direito na regulação política, ver Bruno Jobert,"Les nouveatut usages du droit dans la regulation politique", in La juridicisation..., cit., p. 125-134. li droit néo-moderne des politiques publiques, p. 72.
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fortalecimento de determinados setores da economia interna, o enfrentamento do problema do desemprego, da poluição ou do analfabetismo, a implantação de maior igualdade de gênero, de raça e etnias. Não se cuida, então, do direito voltado a ordenar o já estabelecido, mas de um direito voltado para ordenar o presente em direção a determinado futuro socialmente almejado. Essa ordenação prospectiva, que é plasmada por meio de políticas públicas, exige, além das normas de conduta e de organização, normas definidoras de diretrizes e de metas a serem alcançadas. No início da década de 1960, Miguel Reale já identificava a transformação no eixo primário de atuação do Estado, ao indicar a necessidade de urna ação estatal ativamente voltada à conformação da vida do país. Para ele, "objetivando a realização de uma comunidade concreta, seria absurdo continuarmos a pregar uma concepção de Estado apático e anêmico, disposto a agir só quando provocado, ao sabor dos intermitentes apelos dos grupos particulares interessados; um. Estado sem visão planificadora de conjunto, sem finalidades próprias e sem diretrizes claramente definidas, sem refletir a autoconsciência do destino nacional'. O planejamento, como atividade planificadora de racionalização do emprego dos meios disponíveis para deles retirar os efeitos mais favoráveis' e como método de intervenção social e econômica, de um lado, e o plano, de outro, como a "peça técnica" que adota a forma normativa para tornala juridicamente vinculante, constituem os exemplos dessa atuação politico-jurídica do Estado. Segundo Comparato9 , em todos os países, a atividade de governar muda de configuração, pois o government by policies veio substituir o government by Jau), passando a exigir o exercício combinado de várias tarefas em que o governar não se restringe à administração da conjuntura, mas, sobretudo, ao planejamento do futuro, por meio do estabelecimento de políticas a médio e longo prazos. Observe-se, desde logo, que não se trata de afirmar antes inexistente a ação governamental por políticas, com vistas a moldar a realidade, mas
' "Direito e Estado numa comunidade concreta", in Pluralismo e liberdade, p. 244. (3 Sobre a temática do plano e do planejamento, vide adiante o texto de Gilberto Bercovici,"Planejamento e políticas públicas: por uma nova compreensão do papel do Estado" eWashington Peluso Albino de Souza, Primeiras linhas de direito econômico, p. 370-394. "Planejar o desenvolvimento: a perspectiva institucional", in O desenvolvimento ame9 açado, p. 74.
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de firmar que esta técnica se torna predominante. Enquanto o government precipuamente voltado à redução da complexidade na ordenação da sociedade e à estabilização da tensão inerente entre facticidade e validade'', o govemment by policies responde pelo fenômeno da chamada inflação legislativa, ou seja, caracteriza-se por urna complexidade normativa aparentemente caótica. A ação estatal por meio de políticas públicas vem exatamente dar conta da complexidade social, sem reduzi-la ao medo como o modelo anterior o fazia. by law é
Freqüentemente, a concepção e implantação de políticas públicas constituem respostas a algum aspecto da vida social que passa a ser percebido como problemático suficientemente forte para demandar uma intervenção por parte do Estado. Esta "descoberta" de um novo problema social usualmente relaciona-se a informações anteriormente não disponíveis ou, se disponíveis, não reconhecidas". Ao oferecer respostas institucionais ou, antes, caminhos para solucionar os problemas identificados, o direito das políticas públicas abre espaço para o aprimoramento das condições de vida e para a consecução do ideal de vida boa [good yd para as pessoas em dada sociedade. Esta nova faceta, vale notar, relegitima o papel do direito enquanto instância mediadora de poder — quer do Estado, quer da sociedade — e de composição de conflitos em sociedade. A ação do Estado por políticas se faz vinculada a direitos previamente estabelecidos ou a metas compatíveis com os princípios e objetivos constitucionais, de forma que, ainda quando aqueles a serem beneficiados não tenham um direito a certo beneficio, a provisão deste beneficio contribui para a implementação de um objetivo coletivo da comunidade política". Desde logo, pode-se fazer a associação entre a teoria da política pública e a doutrina do serviço público, tomada em sua fase inicial. A definição dada por Duguit a serviço público nas primeiras décadas do século XX pode perfeitamente ser hoje plasmada para a de política pública, quanto ao seu aspecto de indispensabilidade para a realização e desenvolvimento da coesão social. Para ele, "a noção de serviço público parece que pode ser formulada deste modo: é toda atividade cujo cumprimento deve ser regulado, assegiitado e fiscalizado pelos governantes, por ser in-
Habermas, Between facts and norms, p. 444. " Cf.ALan Hunt,"Law as a constitutive mode of regulation", in Explorations in latv anel society, p.316. "Ronald Dworkin, Taking rights seriously, p. 294. 54
dispensável à realização e ao desenvolvimento da interdependência social e de tal natureza que não pode ser assegurado completamente senão pela intervenção da força governante". O desenvolvimento da doutrina do serviço público conduziu principalmente à especificação de atividades indispensáveis ao cotidiano da sociedade urbana, como transporte público, energia elétrica, água e gás, podendo ser considerada como integrante, neste ponto, de um conjunto mais amplo, a teoria da política pública. Em trabalho anterior, considerei que p serviço público pode ou não estar vinculado a uma política pública e pc;Cle estar inserido, conforme o ,sri, no conjunto de ações e serviços no âmbito de uma poTifica".EntreEátanto, revendo minha po- sição, entendo que o serviço público sempre estará inserido no âmbito de uma política pública, como quando se fala em Politica urbana. Também, é de se observar que, muitas vezes, os serviços Públicos estão fortemente relacionados à realização de direitos humanos. Assim, por exemplo, o fornecimento de energia elétrica, sob regime de concessão ou não, é condição atualmente para o direito à segurança, no tocante às vias públicas, e entre outros, ao direito à informação, quando esta é veiculada por meios eletroeletrônicos. Do mesmo modo, água e saneamento básico estão vinculados ao direito à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida. Sob a perspectiva da teoria geral do direito e da hermenêutica jurídica, Dworkin, na obra que o celebrizou, identifica a existência, no direito, de outros padrões normativos que guiam a decisão em casos complexos, além das regras jurídicas. Segundo esse autor, advogados raciocinam ou disputam sobre direitos utilizando padrões que não funcionam como regras, mas operam de modo diverso, como princípios, diretrizes [policies] e outros tipos de padrões. Dworkin não esclarece o que sejam os outros tipos de padrões normativos, mas explica utilizar o termo "princípio" ora em sentido amplo, abarcando também as diretri- zes, ora em sentido estrito, designando, neste caso, uma exigência de justiça, de eqüidade ou uma dimensão da moralidade. Diretriz, para ele, significa "o tipo de padrão que estabelece uma meta a ser atingida, geralmente o aprimoramento em algum aspecto político, econômico ou social
13 Las tmnsforrnationes dei derecho público y privado, p. 37. (tese de doutoramento), Capítulo 4. ' O direito à proteção contra a pobreza e a exclusão social 55
da comunidade — sendo que algumas metas podem ser negativas, no sentido de estipular que algum aspecto presente seja protegido de mudanças adversas"ts. Em curtas palavras, as policies na nomenclatura de Dworkin, que traduzimos por diretrizes, são proposições normativas que descrevem metas'''. A constatação de que o sistema jurídico não se resume a regras jurídicas traz para o direito um campo de estudo que já vinha se desenvolvendo na ciência da administração, na economia, na filosofia e nas ciências sociais. Assim, por exemplo, Michel Foucault'' efetuou uma genealogia da atuação estatal na implementação de políticas sociais e adentrou na sua relação com o direito, na dimensão coercitiva tradicional, particularmente ao analisar o surgimento da medicina social na França, identificada na passagem dos hospitais da Igreja para o Estado, e no emprego de técnicas do urbanismo, na remodelação da cidade de Paris, para solucionar questões sanitárias. Valendo-se de enfoque diverso, Pierre Bourdieu'a alertou para a violência simbólica que políticas públicas sociais podem veicular pelo medium jurídico, como no caso de políticas educacionais assimilacionistas em sociedades multiculturais. Tal é o caso da imposição de uma língua oficial única no ensino, ou a proibição do uso do "chador" pelas alunas muçulmanas em escolas pUblicas francesas. Na doutrina jurídica, verifica-se crescentemente a constatação de que o direito passa por uma mudança radical e estrutural com a ampliação da atuação do Estado por meio de politicas públicas. Habermas aponta que a moderna prática administrativa caracteriza-se por "um elevado grau de complexidade, dependência conjuntural e incerteza que não pode ser inteiramente antecipada pelo legislativo e, conseqüentemente, determinada no nível normativo. O tipo clássico de norma jurídica em larga medida se dissolve, pois ele consiste em uni programa condicional que define ofensas listando as condições sob as quais o Estado está autorizado a intervir e as conseqüências jurídicas nas quais se estipulam as medidas
15 Taking rights seriously, cit., p. 22. "Op. cit., p90.
11 Micresica do poder, Capítulos V e VI. 18
Outline of a theory ofpnictice, apud Alan Hunt, "Law as a constitudve mode of regu-
lation", cit., p. 331. 56
que o Estado pode adotar'. Percebe-se que o arco normativo passa a agregar formas normativas especiais, incluindo legislações especiais, leis temporárias experimentais e diretivas regulatórias abrangentes, com reflexos evidentes no aspecto funcional da separação dos poderes20. Constata-se a norma jurídica instrumentalizada sob novo viés, a serviço da realização dos objetivos de politicas". Note-se que a política pública funciona numa dimensão diferente da norma tradicional estruturada sobre a coerção. É importante ressaltar que a ação estatal meramente repressiva é insuficiente e não raro inócua para dar cabo de situações disseminadas e culturalmente toleradas na sociedadelk estrutura da política pública, ao contrário, permite o encaminhamento e tratamento do problema de forma mais razoável e possibilitando aos agentes causadores do problema em questão uma reconceitualização de si, de suas próprias ações frente ao mundo e da realidade de seu entorno. Seja isto com questão ambiental, quanto ao poluidor, seja sna questão social, com a prostituição infantil ou o trabalho infantil, como modo de obtenção de renda para mitigar a pobreza familiar. Sob este prisma, pela via da participação na implantação da política pública, as crianças, os pais e a comunidade dialogam com o Estado, passam a respeitar a si próprias e tornam-se respeitados como pessoas dignas de serem ouvidas e como cidadãos. Assim, em lugar tão-somente da via repressiva, pela vedação de determinada atividade ou conduta, que consistiria no caminho mais simples, mas de duvidosa efetividade, como mostra a experiência, busca-se interferir nas causas do problema, no caso, a necessidade de complementação da renda familiar. E a intervenção do Estado em estreita participação da sociedade dá-se, positivamente, por essa porta.
" Between facts and nom, cit., p. 431. No mesmo sentido, Morand, op. cit., p. 76 e 46,
aqui explicando que o direito moderno não era dotado de finalidades específicas, e Hunt, op. cit., p. 314, esclarecendo, especificamente, que o foco na regulação abrange modalidades normativas que transcendem a dicotomia coerção/consentimento. Habermas, op. cit., p. 431 e 433. Comparato esclarece que a legitimidade do Estado passa a fundar-se na realização das finalidades coletivas, a serem alcançadas programadamente e que, conseqüentemente, o critério classificatório das funções e dos poderes estatais sé pode ser o das políticas públicas, ou programas de ação governamental. Ver "Ensaio sobre o juízo de constitucion.alidade das políticas públicas", p.44. 21 Ver Comparato,"Ensaio...", cit., p. 45, e Morand, op. cit., p77. 57
É necessário frisar que as políticas públicas não se limitam à organização da ação do Estado sobre a sociedade. Ao estabelecer metas, e os caminhos para a consecução dessas metas, as políticas públicas vinculam, além dos órgãos estatais, também agentes econômicos, organizações da sociedade civil e também os particulares, como indica uma rápida lançada - de olhos sobre políticas econômicas ou as políticas sociais de saúde, de educação, de trabalho.
a) A idéia de governança Por conta de seu caráter finalistico de estabelecimento e realização de objetivos socialmente relevantes e mesmo necessários, as políticas pú-
d'intégration politique et sociale et eu termes de capacité d'action Poser cette question revient à réexaminer les interrelations entre societé civile, État, marche et les recompositions entre ces différents sphères dont . A idéia de governança atinge, portanto, a les frontières se brouillenen estrutura de organização e gestão do poder, posto que, nos dizeres de Muller e Surel, "a governança
surge como um modo de governar, em
&sentido largo, no qual a ação.pública (construção de problemas públicos, das soluções e de suas formas de implementação) não mais passa pela ação de urna elite politico-administrativa relativamente homogênea e centralizada (que tende a perder, por este fato, seu relativo monopólio na consnormativa de políticas públicas), mas pela trução de matrizes cognitivas e
blicas pertencem ao âmbito do que vem se denominando na doutrina anglo-americana de governante ou governança. O termo designa não o ato ou a estrutura, mas o processo de governar.Distingue-se de governabilidade, pois esta expressão designa, antes, a capacidade de governo. Hunt auxilia no esclarecimento da mudança paradigmática representada por esse conceito;
coordenação de múltiplos níveis e múltiplos atores, onde o resultado, nunca certo ou seguro, depende da capacidade dos atores públicos e privados, de definir um espaço comum de sentidos, mobilizando conhecimentos de origens diversas e pondo em prática formas de responsabilização e de legitimação das decisões tanto no universo da política eleitoral, quanto da política dos problemas". A inovação deste processo consiste, então, em dois pontos básicos, a saber, a modificação no eixo da ação estatal, que
"O foco em 'governança' abre um espaço que nos permite pensar em governo mais como processo do que como uma instituição e romper com os hábitos de há muito instilados pela dominância da nação-Estado de que apenas governos governam. O termo 'governança' ajuda-nos a focalizar as muitas dimensões da experiência e das conseqüências de ser governado... Colocando em termos diferentes, esta concepção de governança trespassa a distinção entre Estado e sociedade civil; é de ser achada em ambos os lados, e não em apenas una deles, minando a equação do senso comum de governo com imposição externa ou vertica1"23.
deixa de ser apenas vertical, de cima para baixo, e a transformação da relação entre Estado e sociedade civil, não mais se podendo falar na
A_governança, mais do que preconcebida, foi sendo percebida como
forma de governar, constatada na esfera do mundo real. Seu surgimento está abertamente vinculado à necessidade de um tratamento mais adequado à complexidade inerente à sociedade. O desenvolvimento de redes de ação pública constitui a manifestação mais evidente da governança. Les Galês aponta que "on retrouve dans la gouvernance les idées de conduite, de pilotage, de direction, mais sans le primat accordé à l'État souverain. Poser la question de la gouvernance suggère de comprencire l'articulation des différents types de régulation sur un territoire, à la fois en termes
No sentido de que o objetivo das políticas públicas é precipuamente o de organirnr a ação estatal sobre a sociedade, ver Morand, Le droit néo-moderne..., cit., p. 76. 23 Hunt, op. cit., p. 306.
22
58
dicotomia público-privado. A idéia de boa governança pressupõe o direcionamento das ações estatais para a efetividade dos direitos sociais e para o encaminhamento de soluções a problemas sociais que encontrem os objetivos fundamentais da sociedade. Fica evidente, deste modo, que a perspectiva da governança surge como essencial para o desenvolvimento e implementação de toda espécie de politicas públicas, e particularmente das políticas de efetivação de di-
ateountability
reitos sociais, em especial porque também abrange as noções de Não despropositadamente e sob o ângulo que lhe é e de responsivenesr1-6 .
peculiar, identifica o Banco Mundial a necessidade de se centrar a ação " Patrick Les Gales, "Régulation, gouvernance et territoire", in COMMAILLE, J., L'Analyse des Politiques JOBBAT, B. (dir.), La régulation politique, apud IVIuller e Surel, Publiques, p. 95. 25 Op. cit., p. 96-97. Estes termos estão relacionados à noção de responsabilidade mas o primeiro expressa a idéia de se poder cobrar resultados das ações, ou de prestação de contas, enquanto se aproxima da ideia de respostas adequadas (responsáveis) às demandas o segundo mais postas ao Estado. 59
publica nas prioridades sociais e aponta o Estado como o principal agente para enfrentar as desigualdades e promover uma expansão do patrimônio material e intelectual das pessoas em situação de pobreza, a partir de três princípios que considera básicos: a redistribuição pelo Estado, a governança efetiva e o uso dos mercados, e a participação".A idéia de boa governança voltada para as pessoas em situação de pobreza e desigualdade compreende, para essa instituição, entre outros aspectos, o aprimoramento da prestação dos serviços públicos para que alcancem e sejam efetivamente utilizados pelas pessoas em situação de pobreza e de exclusão social; a retirada desses serviços públicos da esfera de influência das elites; o fortalecimento dos governos locais; o asseguramento de que as preferências e valores das comunidades estejam refletidos na escolha e na estrutura das intervenções; a reforma agrária; o envolvimento dos beneficiários nos processos de decisão".
PRECISÃO TERMINOLÓGICA Se o termo "política" é polissêmico, a expressão "políticas públicas" o é duplamente. Iniciando pelo primeiro, podemos nos valer da língua inglesa para melhor mostrar a polissernia do termo. Essa língua traz expressões diferentes para designar os sentidos que as línguas latinas reúnem sob o termo política. Designando a esfera política em contraposição a uma esfera da sociedade civil, usa-se polity, enquanto politics designa a aividade política e policies, a ação pública". A expressão "ação pública", por sua vez, também é multívoca, pois, como diz Hunt", o campo de significados de ação estatal ampliou-se, para compreender políticas, programas, estratégias, projetos e táticas. O adjetivo "pública" igualmente é alvo de sentidos múltiplos, pois às vezes é usada como equivalente de estatal, do Estado, e outras vezes, daquilo que é de todos, onde a dicotomia tradicional público-privado perde a função e as fronteiras entre Estado e sociedade tornam-se borradas e permeáveis". Podemos afirmar que a utilização
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World Development Report 2000/2001, p. 93.
p. 85 a 93. " Muller e Surel, L'onalyse der politiques publiques, cit., p. 13. " Op. cit., p. 311. 31 Hunt. op.cit., p. 311. Para esse autor, também a concepção de direito público passa por modificações. Segundo afirma, "mais do que estar vinculado pelas atividades territoriais dos poderes públicos, seja no âmbito nacional, estadual ou municipal, a concepção de 'público' de que precisamos abarca a atividade regulatória dos poderes
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da expressão política pública serve para designar não a política do Estado, mas a política do público, de todos e para todos.Trata-se da política voltada a fazer avançar os objetivos coletivos de aprimoramento da comunidade e da coesão — ou da interdependência — social. As expressões "políticas públicas", "políticas econômicas" e "políticas sociais" são utilizadas com larga freqüência em textos técnicos assim como na linguagem comum. Intuitivamente, relacionamos a expressão com as ações conjugadas que o Estado envida para determinado fim. Expressões como política ambiental, política agrícola, política econômica, política internacional contribuem para esse entendimento. Vejamos primeiramente os sentidos de política pública encontrados na doutrina, no âmbito do direito e da sociologia, para posterior confronto com aqueles achados na legislação. Mencionei há pouco que, para Dworkin, policy significa o tipo de norma jurídica que estabelece um objetivo a ser alcançado, geralmente destinado a aprimorar aspectos sociais, econômicos ou políticos da comunidade. De acordo com o sentido estabelecido por Dworlcin, podemos seguir Eros Grau" quanto ao uso da palavra "diretriz" para traduzi-la, a coincidir com a noção de normaobjetivo que desenvolveu". Sendo assim, não podemos prontamente
públicos, a enorme produtividade regulatória de instituições quasi estatais, as entidades profissionais e institucionais e a atividade regulatória das instituições econômicas" (op. cit., p. 307). "Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), p. 183. " De fato, a idéia de norma-objetivo desenvolvida por Eros Grau indica urna das principais percepções de que algo novo no direito surgia e urna nova espécie de norma jurídica foi se aninhando para dar resposta institucional às novas necessidades com as quais o Estado vinha e vem se defrontando.Tal noção, inicialmente delineada pelo autor para tratar do planejamento económico em Planejamento econômico e regra jurídico, e "A Lei do Plano", in RDP, 53/54, vem depois aprimorada em seu Direito, conceitos e normas jurídicas, onde o professor Grau observa que "o continuo crescimento do Estado-ordenamento e do Estado-aparato induz o surgimento de normas que não definem nem conduta nem organização, mas resultados concretos que devem ser alcançados por seus destinatários. [,..] Determina, fixando-os, fins a serem alcançados. Fixa objetivos". Adiante, referindo a obra de autor italiano publicada em 1955 a respeito de diretivas econômicas, Grau anota que "através delas o Estado não se propõe mais a manter uma ordem justa na sociedade, mas a alcançar um certo resultado de caráter econômico e tal escopo predispõe os meios — ou melhor, estabelece anteriormente aqueles que os consorciados devem empregar. Assim, a diretiva económica surge como um programa de ação econômica, como posição de
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verter policies como políticas p`úblicas. Esta configura uma das possibilidades, sendo a idéia de diretriz uma alternativa distinta, reconhecida a polissemia do termo também em línguas estrangeiras. Grau nomeia.poli_ticas públicas o conjunto de "todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social". Esta parece ser conceituação muito aberta, especialmente tendo em conta o modo tradicional de intervenção do Estado na.vida social por meio das regras jurídicas, Sônia Draibe" concebe políticas públicas como cordunto de ações e programas continuados no tempo, que afetam simultaneamente várias dimensões das condições básicas de vida da população, organizados numa determinada área de implantação. Vemos, aqui, a política como ação que se protrai no tempo e é territorialmente localizada, mas não há menção explicita à influência positiva na vida da comunidade como um objetivo seu. Quanto a este aspecto, a definição de Duran é mais exata, pois, segundo ele, "uma politica pública é a busca explicita e racional de um objetivo graças à alocação adequada de meios onde a utilização razoável deve produzir conseqüências positivas"". A busca pública é concretizada pelo procedimento, isto é, pela sucessão de atos desenvolvidos de forma a alcançar o destino posto. A aproximação com o entendimento de Comparato é evidente, pois, para ele, política pública "aparece, antes de tudo, como atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de uns objetivo determinado"", O.que dá unidade à política é, portanto, a sualmaliclade, Podemos estabelecer, então, que uma só ação governamental não constituí politica pública. Do mesmo modo, um único programa não chega a caiac-. rerizar uma politica pública, sendo preciso o conjunto articulado de programas operando para a realização de um objetivo, como partes de um todo.
determinados fins a perseguir, bem assim de escolha e critério de emprego de meios para conseguir tais fins. [...] As normas jurídicas do novo tipo, que surgem, estão voltadas, então, para a definição jurídica desses múltiplos e específicos fins" (Direito, conceitos „., p, 130-138). 34 A ordem econômica 20. Nos mesmos termos, O direito posto e o direito pressuposto, p.26. " A comum* institucional da política brasileira de combate à pobreza: perfis, processos e agenda, p. 28.. 36 Apud Morand, op. cit., p. 76-77. " "Ensaio...", cit., p. 45. 62
Especificando um pouco mais quanto à vinculação social dos objetivos e envolvendo a atuação dos agentes privados, Maria Paula Dallari Bucci enuncia que "políticas públicas são programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados"", ou definindo-as, ainda, em outro trabalho,"como programas de ação governamental voltados à concretização de direitos". Deste modo, mesmo as politicas públicas relacionadas apenas mediatamente com a concretização de direitos, como a politica industrial ou a política energética, também carregam um componente finalístico; que é o de assegurar o pleno gozo da esfera da liberdade a todos e a cada uns dos integrantes do povo, de forma que toda politica pública também pode ser considerada uma política social". Esta observação se confirma no texto constitucional, pois, como vimos, a ordem econômica está orientada para asseguramento, a todos, da existência digna (art. 170 da CF), devendo o mercado interno voltar-se a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico e o bem-estar da população (art. 219 da CF) e, sobretudo, todos, pessoas e agentes econômicos, estão vinculados à persecução dos objetivos fundamentais da República (art. 32 da CF). Sintetizando, ainda que toscamente, os diferentes entendimentos, as políticas públicas podem ser colocadas, sempre sob o ângulo da atividade, como conjuntos de programas de ação governamental estáveis no tempo, racionalmente moldadas, implantadas e avaliadas, dirigidas à realização de direitos e de objetivos social e juridicamente relevantes, notadamente plasmados na distribuição e redistribui* de bens e posições que concreti-, zem oportunidades para cada pessoa viver com dignidade e exercer seus direitos, assegurando-lhes recursos e condições para a ação, assim como a liberdade de escolha para fazerem uso desses recursos°. Vale observar que ao componente finalistico deve ser agregado o aponcaráter cognitivo que a politica pública comporta. Muller e Surel°
Direito administrativo e políticos públicas, p. 239.
"Buscando um conceito de políticas públicas para a concretização de direitos luamanos", p. 7. " Idem, ibidem. "Em outros termos, políticas públicas não se confiandem com práticas e programas desenvolvidos em espaço curto de tempo ou postos para satisfazer ânimos pré-
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'9
eleitorais. 42
L'Analyse.., , cit., p. 18-19.
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caril que, para a existência de uma política pública, além do vínculo normativo, é preciso que as diferentes decisões e declarações emanadas dos diversos órgãos ou esferas governamentais possam ser reunidas sob um quadro geral de ação que funciona como uma estrutura de sentido, isto é, mobilizando valores, conhecimentos e também instrumentos particulares de ação para a consecução dos objetivos construídos em comum entre o Estado e a sociedade civil. E como processo destinado a alcançar um objetivo ainda não realizado de melhoria da vida em comunidade, ou de realização de direitos, as políticas públicas engendram a característica de construção e de transformação de espaços de sentido, no seio dos quais os problemas são postos e redefinidos e as soluções propostas são testadas. Sob essa perspectiva, "fazer uma política pública não significa 'resolver' um problema, mas construir uma nova representação dos problemas, dando lugar às condições sociopolíticas para seu tratamento pela sociedade e uma nova estrutura, por meio da ação do Estado'''. ASPECTOS JURÍDICOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIAIS A análise da legislação infraconstitucional parece apontar para uma estrutura já formada, mas ainda não tratada pela doutrina. A Constituição, evidentemente, refere de maneira genérica às políticas públicas, como no caso da política de crédito, política de câmbio, política nacional de transportes (art. 22,VII e IX), política de educação para a segurança do trânsito (art. 23, XII). Encontramos, também, referências com maior precisão, especificando a observância de diretrizes e objetivos, como no caso da política de desenvolvimento, que, de acordo com o que dispõe o art. 182 da CE deve ser executada pelo Poder Público municipal, em conformidade com diretrizes gerais fixadas em lei, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Outro exemplo é encontrado no art. 196, que estabelece a garantia do direito à saúde por meio do dever do Estado de implementar políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua proteção, promoção e recuperação. As políticas públicas, aqui, explicita" Muller e Surel, op. cit., p. 31. t64
mente constituem a garantia do direito social à saúde, definindo a norma constitucional os objetivos de tais políticas, isto é, o objetivo final e amplo de garantia do direito de todos à saúde é de ser atingido pelo objetivo específico de redução de riscos e de observância dos princípios de universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de proteção, promoção e recuperação da saúde. A legislação infraconstitucional, por sua vez, parece ter consagrado uma certa ordem na positivação de políticas sociais, encontrando-se em vários textos normativos a especificação de elementos bem definidos, a saber, (a) a finalidade da política, (b) seus princípios reitores, (c) as diretrizes, (d) a forma de organização e gestão, (e) as ações governamentais, com atribuição de deveres e competências, e (f) a identificação das fontes de recursos financeiros. Este conjunto de elementos está presente, por exemplo, na Politica Nacional do Idoso (Lei n. 8.842, de 4-1-1994), na Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde e constitui o Sistema Unico de Saúde — SUS, na Lei Orgânica da Assistência Social — LOAS (Lei n. 8,742, de 7-121993), na Politica Nacional de Assistência Social, instituída pela Resolução n. 207/93 do Conselho Nacional de Assistência Social e na Lei ri. 7,853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência. É preciso, entretanto, não perder de vista que as políticas públicas sociais podem não se manifestar tão claramente. Pode ocorrer de se encontrarem os objetivos visados pela política nos consideranda de uma lei ou de um ato normativo, ou na mensagem de encaminhamento de um anteprojeto ou em debates parlamentares e mesma em atas de reuniões interministeriais preparatórias à decisão". A doutrina jurídica até o momento parece ainda não ter estabelecido uma distinção clara entre princípio e diretriz, mas o legislador pátrio de políticas sociais utiliza de maneira geral a expressão "diretriz" para estabelecer parâmetros de operacionalização da política, como a descentralização politico-administrativa, a participação da sociedade civil organizada, por meio dos conselhos, na formulação das políticas e no con;,' cole das ações, a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política. Exemplificando, temos no Estatuto da Criança e do Adoles-
" Muller e Surel, op. cit., p 9
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cente, dentre as diretrizes previstas, a "municipalização do atendimento", a "criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa", ou no Código Estadual de Saúde, dentre as diretrizes, "eqüidade, como forma de suprir as deficiências do tratamento igualitário de casos e situações" e "racionalidade de organização dos serviços, vedada a duplicação de meios para fins idênticos ou semelhantes"". Enquanto as diretrizes atribuem os eixos operacionais de atuação, os princípios conferem o influxo ético-jurídico com que esta atuação deve se dar, como, por exemplo, "a supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica"", "a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida", "integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e continuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos em cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema". A estatuição de princípios e diretrizes em textos normativossetn,a evidente finalidade de vinculação dos órgãos dos poderes públicos à sua Observância, assim como a vinculação de sua atuação aos órgãos e instâncias controladoras, com a incorporação destes princípios e diretrizes nas ações e burocracias estatais, de sorte que os objetivos visados pelas políticas sociais possam se concretizar. Neste sentido, não há margem para juízo de discricionariedade ao Poder Público. A positivaç'áo das metas e dos caminhos para sua consecução constitui, aliás, procedimento que, antes ausente no ordenamento, vem reduzir drasticamente o campo de discricionariedade da Administração, com razão ainda maior em virtude de tais políticas voltarem-se à realização de direitos sociais, imprescindíveis à dignidade de cada pessoa em sociedade. Uma outra observação ainda necessita ser feita. Venho referindo a política pública como conjunto de programas de ação eminentemente
45 Art. 88,1 e III, da Lei n. 8.069/90. "Art. 12, I, c e J: da Lei Complementar estadual n. 791/95. 47 Art. 4',!, da Lei Orgá'nica da Assistência Social. " Art. 32,1, da Política Nacional do Idoso. " Art. 711, II, da Lei n. 8.080/90. 66
estatais, ou seja, espacialmente situadas dentro de territórios nacionais. Todavia, os blocos regionais de Estados e a própria Organização das Nações Unidas também desenvolvem conjuntos de programas de ação organizados sob a forma de normas e atos e voltados à realização de objetivos coletivos para o aprimoramento da qualidade de vida de cada pessoa da comunidade, O programa de ação estabelecido pela Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, emViena, tem todas as características de uma política pública, para implementação pelas Nações Unidas. Aos Estados caberá a incorporação ou o fortalecimento, em suas agendas internas, dos direitos e objetivos relacionados na parte declaratória do documento, o que deve se dar em paralelo aos objetivos, diretrizes e meios a serem seguidos pela ONU".
A POLÍTICA PÚBLICA COMO ESTRUTURA NORMATIVA DE AÇÃO Mantendo-nos no âmbito interno, as políticas públicas são conjuntos de ações e programas de ação governamental que se valem precipuamente de normas jurídicas para moldar e impulsionar a consecução dos objetivos estabelecidos. A norma jurídica desempenha a função de plasmar os objetivos, as diretrizes e os meios da atividade estatal dirigida. Por isso, a norma é fundamental no contexto presente tanto para viabilização da política como para a realização dos direitos que se visa proteger. Desse modo, a necessidade de aprofundamento dos estudos jurídicos neste campo é inquestionável e imprescindível. A complexidade do tema sob o ponto de vista jurídico não é pequena. A pirâmide kelseniana não é adequada a explicar a normatividade da política pública em seu conjunto. Enquanto as políticas anteriormente citadas são, por assim dizer, encabeçadas por leis, outras políticas são
"Um debate a respeito é conduzido por Muller e Surel, que apontam a instituição de um "novo contexto de ação pública, onde se definirão as normas fundamentais em tomo das quais nossas sociedades pensarão sua relação com o mundo" e em que, nesta premissa, "é provável que as condições de intervenção dos grupos de interesse nos sistemas de decisão pública irão se modificar."Vale aduzir que "a extensão da agenda comunitária e dos sistemas de ação pública não significam a existência de consensos sobre o tratamento de problemas, visto que se isto não é verdadeiro no . nível nacional, menos ainda o será no nível comunitário" ou global (L'anolyse das politiques publiques, cit., p. 99 e 100) Ver, também, adiante, o artigo de Gilberto Rodrigues,"A Organização das Nações Unidas e as políticas públicas nacionais". 67
estruturadas a partir de atos normativos, portarias ou resoluções e, posteriormente, decretos e mesmo leis são editadas como parte da estrutura da política. Em outros termos, decretos ou leis podem estar subordinados à racionalidade de unia portaria ou de uma resolução, e esta peculiaridade da política pública, desde que respeitados os objetivos e limites constitucionais, deve ser acatada por ocasião de eventual controle jurisdicional da politica. Exemplo mais claro disto pode ser encontrado no "Programa Comunidade Solidária", existente no governo Fernando Henrique Cardoso, que não foi explicitamente instituído, tendo apenas seu Conselho sido criado por decretos'. Para melhor operacionalização das ações encetadas dentro de seu âmbito para o enfrentamentp da pobreza e da vulnerabilidade, foi promulgada uma lei, instituindo a figura das organizações da sociedade civil de interesse público — OSCIPs e estabelecendo um termo padrão de parceria onde a entidade acordaria com o Poder Público uni plano de trabalho (o objeto do contrato), em que se estipulam metas e resultados a serem atingidos, critérios objetivos de avaliação de desempenho por meio de indicadores de resultado, receitas e despesas e periodicidade de apresentação de relatórios de acompanhamentos'. Outros exemplos são o Programa de.? ortalecimento da Agricultura Familiar — PRONAF, inicialmente instituído por uma resolução do Banco Central em 1995 e somente no ano seguinte disciplinado por decretos' e o Programa de Geração de Emprego e Renda — PROGER, instituído pelo Ministério do Trabalho ainda no governo Itamar Franco e operacionalizado por uma série de resoluções do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador — CODEFAT, destinado a promover ações que gerem emprego e renda mediante
Decreto Presidencial n. 1.366, de 12-1-1995, posteriormente revogado pelo Decreto n. 2.999, de 25-3-1999. n. 9.790, de 23-3-1999, com alterações posteriores por medidas provisórias. Esta lei é regulamentada pelo Decreto n. 3.100/99. " Resolução BACEN n. 2.191/95.0 Decreto Presidencial n. 1.946, de 18-6-1996, recebeu alterações, atualmente vigorando a redação dada pelo Decreto n. 3.508, de 14-6-2000, que além de dispor sobre o PRONAF, regula, também, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, de constituição paritária com a sociedade civil, com a atribuição de deliberar sobre o Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, trazendo as diretrizes, objetivos e metas dos Programas Nacionais de Reforma Agrária! Fundo de Terras, Banco da Terra, PRONAF e do Programa de Geração de Renda do Setor Rural. SI
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concessão de crédito a setores que normalmente têm pouco ou nenhum acesso ao sistema financeiro". Resta evidente que esta complexidade encaminha outra, a do regime jurídico da política pública, especialmente da política social. Conforme indica Comparato, "os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, são de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio. De onde segue que o juizo de validade de uma política não se confimde nunca com o juizo de validade das normas e dos atos que a compõem. Uma lei, editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstitucional, sem que esta o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão de sua finalidade, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que vinculam a ação do Estado, sem que nenhum dos atos administrativos praticados, ou nenhuma das normas que o regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais"". Vale lembrar que toda política pública está diretamente amarrada aos princípios estruturantes da Administração Pública, assim como as partes do conjunto que engendra, isto é, os programas, os projetos, as ações, merecendo ênfase particular o princípio da eficiência". COMP as politigas públicas existem em função de objetivos que devem ser concretizados, a avaliação de seu procedimento e dos resultados que vai alcançando devem ser pautados pelo exame de eficiência. O critério da eficiência aqui não tem a ver tanto com a otimização do uso dos recursos financeiros quanto com a satisfação o mais aproximada possível das metas traçadas, obedecidos os princípios e as diretrizes previamente estabelecidos. É exatamente tendo em conta esse princípio que, freqüentemente, ajustes devem ser efetuados ao procedimento, sempre com vistas ao aprimoramento — jamais com a redução das metas. Tenta-se, no item seguinte, especificar um pouco melhor o ciclo da política pública, tornando mais clara a vinculação desta modalidade normativa com o princípio da eficiência.
" A primeira foi a Resolução CODEFAT n. 43, de 12-5-1993. ""Ensaio...", cit., p. 45. "Para urna análise comparada do principio da eficiência e seus reflexos no direito administrativo brasileiro, ver Maria Paula Dallari Bucal, Direito administrativo e políticas públicas, especialmente p. 176-188, onde a autora afirma que o princípio da eficiência, "positivado no texto constitucional, é o vetor jurídico-axiológico que habilita os operadores do direito a buscar o cumprimento da legalidade material, em detrimento da interpretação formalistica que perverta seu sentido". 69
O CICLO DA POLÍTICA SOCIAL: FORMAÇÃO, EXECUÇÃO, CONTROLE E AVALIAÇÃO A política pública é tida, pelo senso comum, como procedimento linear em que fases perfeitamente distintas sucedem-se, de modo a se partir da formação, passando pela implementação, finalizando com a avaliação. É necessário ao jurista o conhecimento do ciclo da política pública para tornar possível o controlejurídico de seu processo e de seus resultados. Desde logo,:é preciso ter claro que a política pública dá-se por ciclos, não sendo possível discernir de forma definitiva suas fases", Por se .verificar um processo de retroalimentação, onde a avaliação não é feita ao final, mas no curso da execução. Isto introduz novos elementos no quadro inicialmente proposto, modificando-o, de forma a adequá-lo à realização do objetivo. De maneira genérica, entretanto, pode-se afirmar que a fase da formação compreende a identificação dos problemas a serem tratados, estabelecendo uma agenda [agenda setting], assim como a proposição de soluções, abrangendo a realização dos estudos multidisciplinares necessários para delimitá-lo, a especificação dos objetivos que se pretende alcançar adequados ao problema e a indicação dos melhores modos de condução da ação pública, tratando-se, aqui, da formulação da política. Sucintamente, "a fase de formulação baseia-se em estudos prévios e em um sistema adequado de informações, definindo-se não só as metas, mas também os recursos e o horizonte temporal da atividade de planejamento". Cabe notar que a própria percepção da pobreza ou exclusão social como problemas a serem tratados enuncia uma transformação paradigmática, principiadora de uma mudança cultural, a exemplo do enfrentamento da prostituição e trabalho infantis. Sobrevindo a decisão conformadora da política, inicia-se a implementação, que deverá observar os princípios e diretrizes, prazos, metas quantificadas etc. A avaliação, que se dá por vários métodos, vai verificar o impacto da política, se os objetivos previstos estão sendo atingidos e se há algo a ser modificado", isto é, irá aferir a adequação de meios a fins,
Neste sentido, Muller e Surel, op. cit., p. 28, e Pedro Luís Barros Silva e Marcus André Barreto de Melo, O processo de implementação de pol ene públicas no Brasil: características determinantes da avaliação de programas e projetos, p. 4. "Silva e Melo, op. cit., p. 4. "Ver Muller e Surel, op. cit., p. 28. 57
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promovendo a relegitimação ou a deslegitimação da ação pública e também fornecendo elementos para o controle judicial, social ou pelos tribunais de contas. É importante vincar, por fim, que os órgãos e instâncias diretamente envolvidos na execução da política, assim como entidades do setor privado, nas hipóteses de convênios ou parceriasw, não agem em livre discricionariedade, mas guiados e vinculados numa perspectiva ampla, pela Constituição e pelos tratados internacionais de direitos humanos, e numa perspectiva estrita, pelos princípios, diretrizes e objetivos imediatos e mediatos traçados na política públicam .
CONCLUSÃO Como vimos, a inserção das políticas públicas no universo jurídico não é propriamente nova mas, a despeito desse fato, a doutrina pátria mal começa a desenvolver o tema em sua exata dimensão, O tratamento adequado das políticas públicas no âmbito do direito permitirá recolocar análises postas sob ângulos que, ainda quando importantes ou largos, não sejam suficientemente para dar conta de todas as implicações jurídicas. Este foi o caso de Carlos Ari SundfelP, que inovou a doutrina nacional ao tratar do direito administrativo ordenador. Corretamente, o autor afasta terminantemente a noção de poder de polícia. Também corretamente, distingue a ordenação administrativa da ordenação legislativa e reconhece sua atuação na organização da vida privada. Mas na medida em que governo e administração pública não são noções coincidentes, a dimensão jurídica das políticas públicas transcende o âmbito da administração ordenadora.
"Refiro-me, aqui, aos convénios firmados pelos Poderes Públicos com organizações não-governamentais e aos termos de parceria, estabelecidos com as "organizações da sociedade civil de interesse público". Silva e Melo demonstram detalhadamente os problemas e dificuldades que entravam 65 muitas vezes o sucesso de urna política pública, que vai desde a visão irrealista de urna administração pública perfeita, dotada de informação perfeita, de recursos ilimitados, coordenação perfeita, clareza de objetivos, implementação de regras claras, linhas únicas de comando. Também são considerados os aspectos relacionados à capacidade institucional, a eventuais resistências e boicotes realizados por setores ou grupos afetados negativamente, não raro dentro da própria estrutura estatal (O processo de implementação..., cit., p. 5-8). O controle administrativo e judicial das políticas públicas, neste sentido, tem o efeito, também, de impor ao Estado o dever de se organizar para melhor desempenho de suas funções e objetivos, aprimorando seus procedimentos. 71
A análise da política pública sob o enfoque do direito vai além da constatação da existência de uma nova espécie de norma jurídica, e exige o reconhecimento de que os conjuntos de programas de ação ordenados ao aprimoramento da sociedade, isto é, as políticas públicas plasmadas em corpos normativos valem-se, além de diretrizes ou normas-objetivo, também de normas de organização e de normas de conduta.
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Por fim, é preciso ainda atentar para o fato de que a consolidação das políticas públicas como modo prospectivo de ordenação da vida em sociedade transformou não só as feições tradicionais do direito, como trouxe consigo a transformação do próprio Estado, no tocante a seu modo de relacionar-se com a sociedade, urna vez que esta é a porta pela qual entrou a antes absolutamente utópica democracia participativa.
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Políticas públicas e a ciência política Alcindo Gonçalves Sumário: 1. As definições de políticas públicas. 2.0 Estado como agente das políticas públicas. 3. Produção de poder ou distribuição de poder nas políticas públicas. 4. As políticas públicas como processo co risco da judicialização da política.
1. AS DEFINIÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS Quando são apresentadas definições de políticas públicas' , percebese que elas tendem a focalizar o Estado como o agente central de sua promoção, constituindo-se sistematicamente em ações de governos. É o caso de Eros Grau, que nomeia políticas públicas o conjunto de "todas as atuaç5es do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do Poder Público na vida social". Maria Paula Dallari Bucci enuncia que políticas públicas são "programas de aço governamental voltados à concretização de direitos". Ao sintetizar várias definições, Patrícia Arzabe escreve que "políticas públicas podem ser colocadas, sempre sob o ângulo da atividade, como conjuntos de programas de ação governamental estáveis no tempo, racionalmente moldadas, implantadas e avaliadas, dirigidas à realização de direitos e redistribuição de bens e posições que concretizem oportunidades para cada pessoa viver com dignidade e exercer seus direitos, assegurando-lhes recursos e condições para a ação, assim como a liberdade de escolha para fazerem uso desses recursos". As definições convergem também em outro ponto: a preocupação com o resultado e o efeito das políticas públicas. Para Fábio Konder Comparam politica pública "aparece, antes de tudo, como atividade, isto
' As definições a seguir são extraídas dos papas de Patricia Helena Massa-Arzabe, Políticas públicas sociais: aspectos de sua dimensão jurídica. Os destaques são nossos. 74
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é, um conjunto de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado". Duran escreve que "uma política pública é a busca explicita e razoável de um objetivo graças à alocação adequada de meios onde a utilização razoável deve produzir conseqüências positivas". Vale ainda destacar a instigante definição proposta por Maria Paula Dallari Bucci em novo trabalho2 , buscando um conceito que possa ser operacionalizado na atuação do sistema jurídico-institucional. Segundo ele, política pública seria o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados — processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial. São três eixos importantes, sobre os quais serão dedicadas as próximas seções: a) a ação do Estado como agente das políticas públicas (e a discussão sobre a evolução do papel do Estado); b) a valorização do aspecto "produção de poder" em detrimento da "distribuição de poder" nas análises que são feitas sobre políticas públicas; c) a excelente idéia de definir políticas públicas conto "processos", mas com o cuidado de não reduzi-los apenas a processos jurídicos, o que poderia conduzir a uma perigosa "judicialização" da política.
2. O ESTADO COMO AGENTE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS A política na época moderna acabou por significar "ciência do Estado", "doutrina do Estado", sendo que a palavra passou a ser comumente usada para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a polis, ou seja, o Estado'. E evidente, portanto, que, ao analisar o tema das políticas públicas sob o ângulo da Ciência Politica, deva-se dedicar atenção especial a duas visões clássicas sobre o Estado: uma vinculada ao 'Ware State (ou Estado do Bem-Estar Social), e outra ao pensamento liberal, centrado no chamado Neoliberalismo. Urna outra forma de abordar a questão é a proposta por Muller e Sore' , que apresentam duas concepções tradicionais do Estado: a aborda-
O conceito de politicas públicas em direito, neste volume. Norberto Bobbio,"Política", in Dicionário de politica, org. de Norberto Bobbio, Nicola Mateucci e Gianfranco Pasquino, 5. ed., Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993, p. 954. 4 Pierre Mulles e Yves Surel, Diuudyse eles politiques publiques, Paris: Montchrestien, 1998, p, 34-41.
gem "estatal", que trabalha com a idéia da sociedade produzida pelo Estado, característica da tradição européia, que, sendo originária da filosofia alemã (Hegel) e do marxismo-leninismo, com uma orientação mais sociológica a partir de Durkheim e Weber, percebe que a sociedade moderna não existe sem Estado; e a abordagem "pluralista", onde o Estado é produzido pela sociedade: o conteúdo de uma política é o resultado de diferentes pressões exercidas pelos grupos de interesse envolvidos, que existem independentemente de sua relação com o Estado. Nesta última visão, não há grande sentido no conceito de interesse geral, na medida em que a ação do Estado não passa de um resultado aleatório do livre confronto dos interesses particulares. A análise das políticas públicas aproxima-se da abordagem pluralista, já que ela alimenta o que se pode chamar de uma forma de "desconstrução" do Estado, exibindo uma multiplicidade de racionalidades concorrentes no seio do Estado, sustentadas por atores cujos interesses não coincidem necessariamente, e que são sobretudo distintos do que poderia ser o interesse geral. Como salientam Muller e Surel, a análise das políticas públicas rompeu com a concepção weberiana do Estado (o Estado não é mais uma "máquina" a serviço do Príncipe, aplicando sina ira et studio as vontades dos governantes), como também com a marxista ortodoxa, que fazia do Estado um instrumento a serviço da classe dominante. Na verdade, para um analista das politicas públicas, o Estado não existe como entidade global suscetível de um tratamento específico. Somente sua ação deve ser o objeto de atenção do pesquisador, e assim pode-se compreender que uma das contribuições da análise do tema seja a colocação em evidência dos múltiplos contatos que o Estado mantém com seu ambiente. Mas o que é basicamente o Estado Social? O Welfare State, Estado Assistencialista, ou do Bem-Estar Social, ou Estado Protetor, é uma construção européia desenvolvida especialmente após a 21 Guerra Mundial, representando "uma tentativa explicita ou implícita de implantar os ideais da democracia social"5. O ponto central é a participação estatal na sua realização. Esping-Andersen salienta que uma definição comum nos manuais é a de que o Liktfare State "envolve responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar básico dos cidadãos'''. Seu êxito foi real: "A
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Hélio Jaguaribe, Um estudo crítico da história, São Paulo: Paz e Terra, 2001, v, 2, p. 597. Gosta Esping-Andersen,"As três economias políticas do fc1/2.1fare State", Lua Nova, n. 24, setembro de 1991.
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concepção de uma economia social de mercado, implantada através do assistencialismo estatal, teve um grande êxito. Esse sucesso decorre do fato de que, se administrado de uma forma razoável, ele combina as vantagens da economia de mercado — e, de modo geral, o dinamismo inerente ao sistema capitalista — com os beneficias do socialismo democrático, proporcionando, além dos serviços fundamentais do Estado, educação, serviços médicos, facilidades de habitação e transporte, pensões, entretenimento popular, estabilidade no emprego, salários razoáveis, pleno emprego e, finalmente, o que não tem menos importância, uma redução significativa das desigualdades sociais", No Estado Social, é evidente o ativismo estatal no que tange à promoção das políticas públicas. Mas, com a crise deste modelo, notada a partir dos anos 70 e aprofundada durante a década de 19808, surgem, vigorosas, as teorias neofiberais. Para elas, a ação do Estado do Bem-Estar Social é inverso ao que se propõe: buscando proteger o cidadão das desgraças da sorte, o Estado, aparentemente benfeitor, acaba na verdade produzindo um inferno de ineficácia e clientelismo, pesadamente pago pelo mesmo cidadão que à primeira vista procurava socorrer'. Os grandes males e pecados do Estado intervencionista são os seguintes, na visão neoliberal: a regulação legislativa, a atuação do Estado-empresário e a oferta de bens públicos, e os serviços de proteção social confundem os sinais emitidos pelos mercados, o que leva ao emprego irracional dos recursos materiais e, não menos importante, dos empenhos subjetivos dos agentes (deseduca os indivíduos); o Estado transforma-se em instrumento dos grupos de pressão que tentam firmar seus privilégios utilizando o discurso demagógico das políticas sociais; o crescimento das despesas públicas leva ao aumento das necessidades financeiras dos governos (endividamento, emissão monetária, inflação);
Hélio Jaguaribe, op. cit., p. 599-600. ° Para Hélio Jaguaribe, as causas principais da crise do Welfare State estão ligadas a dois fatores: internamente, o poder excessivo dos sindicatos, em detrimento das agências governamentais e do interesse público, de modo geral; externamente, a supercompetitividade de alguns países e das suas melhores firmas, em relação aos países que adotam o assistencialismo estatal (op. cit., p. 600). Reginaldo Moraes, Neoliberalismo —De onde vem, para onde vai?, São Paulo: SENAC, 2001, p. 36.
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o crescimento da tributação pode provocar efeitos indesejáveis que se Propagam por todos os poros da sociedade: falta de estimulo ao trabalho, evasão e fraudes fiscais, desenvolvimento da economia subterrânea (informal)10 . O intervencionismo estatal propicia "situações de renda", isto é, posições na sociedade que permitem a um agente (seja ele indivíduo, grupo ou empresa) capturar vantagens superiores àquelas que ele obteria no mercado, no reino dos preços e dos "custos de oportunidade". Confi(que se poderia traduzir por capgura-se assim o processo de rent-seeking tura de rendas), onde há busca de rendas extzamercado através do controle do Estado. Daí advêm dois males: os agentes investem seus esforços e recursos na busca predatória de privilégios em vez de aumentar o produto global; os "tomadores de decisão",na administração pública, são "ofertadores de renda", isto é, empregos ou legislação em troca de beneficias monetários (corrupção) ou apoio político. A solução, na perspectiva neoliberal, é evidentemente opor as virtudes do mercado a esses vícios inevitáveis da intervenção estatal'. Há três grandes linhas no pensamento neoliberal: a primeira delas, de onde originou-se a corrente, é a chamada escola austríaca, liderada por Friedrich von Hayek; a segunda é representada pela escola monetarista de Chicago, onde desponta o economista Milton Friedman; e a terceira é a chamada escola de Vírginia, ou public chofre (escolha pública), onde se destacam James Buchanan, Anthony Dovvns e Mancur Olson. Todas elas têm em comum a luta "contra o alargamento das fronteiras do Estado, o paternalismo e o cerceamento da liberdade individual. Todas defenderam o mercado regido pelo sistema de preços contra o planejamento central, a economia mista e o . ativismo macroeconamico"22. Interessa-nos especialmente a última, a public chofre, também denominada teoria da escolha pública. Ela é originalmente atribuída a James Buchanan. No mundo do pós-guerra, dominado pelos economistas keynesianos (que Buchanan chama de "socialistas anti-libertários"), e no
Reginaldo Moraes, op. cit., p33. " Reginaldo Moraes, op. cit., p. 50-52. Luiz Carlos Bresser Pereira, "Cidadania e res Filosofia polhica — nova série, Porto publica: a emergência dos direitos republicanos", Alegre: L&PM, 1997v. 1, p. 124. "Eduardo Gianetti da Fonseca, "Quem tem medo do neoliberalismo? — 1", Folha de S. Paulo, 24-7-1994, p. 2-8.
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qual se assistia a um grande crescimento do Estado, através do Welfare State, Buchanan funda, junto com Warren Nutter, o Centro de Economia Política na Universidade de Virgínia. Tratava-se, segundo ele, de lutar contra um ambiente intelectual dominado pelos economistas que não tinham a liberdade individual como principal valor para a constituição da sociedade, aqueles que não atribuíam ao mercado um valor positivo e que acreditavam na superioridade do controle de uma instância reguladora sobre as liberdades individuais''. Os teóricos da escolha pública utilizam-se do ferramenta' microeconômico clássico e da teoria dos jogos para analisar o processo político, compondo uma abordagem radicalmente individualista e fundada no método positivo".Trata-se assim de construir uma "teoria estrita da politica", de caráter afirmativo e proposicional, recorrendo para isso à perspectiva e aos instrumentos próprios da ciência econômica, mais precisamente da microeconomia. O caráter científico da economia aplicar-se-ia não apenas numa espécie de bens e transações distinguidos por sua característica intrínseca, e sim a toda e qualquer situação ou processo em que estivesse envolvido um problema de escassez. Desta forma, a teoria econômica se tornaria "equivalente a uma teoria do comportamento racional conto tal, aplicável a qualquer arena (seja ela convencionalmente designada conto 'econômica', 'politica', 'social') em que tenhamos um problema de utilização de meios escassos para a realização de objetivos de qualquer natureza". O ator político é assim o hamo econarnicus dos economistas clássicos e neoclássicos, "caracterizado pelo empenho de manipulação eficiente das condições que lhe oferece o ambiente de maneira a maximizar a realização de seus objetivos"". O elemento racional é chave nas concepções "econômicas" da political'. Pode-se demarcar dois campos: as análises que operam sob a ótica
13 Rudinei Toneto Jr., "Buchanan e a análise económica da politica", Lua Nova, n. 38, 1996, p131. '' James Buchanan e Gordon Tullock, apud André Borges, "A teoria da escolha pública", Lua Nova, n. 53, 2001, p. 159-160. " Fábio Wanderley Reis, 'Política e políticas: a ciência política e o estudo das políticas públicas", ira Mercado e utopia: teoria política e sociedade brasileira, São Paulo: Edusp, 2000, p. 47. 16 Fábio Wanderley Reis, op. cit., p48. 17 Pode-se fazer uma distinção analítica entre a teoria da escolha pública e teoria da escolha racional, embora ambas se valham do método individualista da análise, e
da legitimidade e da legalidade, e aquelas onde há maior preocupação com a eficácia, ou seja, análises que observam a politica sob o enfoque dos custos e retornos relativos à ação dos agentes sociais. Estas, que constituem as teorias econômicas da politica, consistem portanto na aplicação dos métodos e pressupostos da análise microeconômica à atividade política, e assumem que os indivíduos são egoístas, maximizadores de vantagens, atores racionais interessados em si mesmos, e que tais características definem qualquer comportamento político, seja ele o de um eleitor, de um político ou de um burocrata". Nelas, o comportamento individual obedece sempre ao critério da racionalidade, ou seja, ao cálculo objetivo de custos e beneficios que qualquer pessoa faz diante de uma dada situação. As decisões são avaliadas segundo suas conseqüências, o que leva à conclusão de que a melhor decisão para o indivíduo é a que lhe dá máxima vantagem; para a sociedade, é aquela que garante a máxima vantagem para o maior número de pessoas". Segundo Jon Elsterw, a teoria econômica aplicada à política baseiase na idéia de que as pessoas sempre escolherão o curso da ação que preferem ou que julgam melhor: agir racionalmente é escolher a melhor opção no conjunto viável. Mas escolher não é um ato individual e unilateral, já que as condições e preferências de vários atores são em geral interdependentes entre si. A teoria dos jogos trabalha exatamente a intenção
estão apoiadas em pressupostos de comportamento individual racional. A teoria da escolha racional admite a ocorrência do comportamento altruísta, e não está necessariamente vinculada com as raízes filosóficas liberais da escolha pública. Há vários autores, ditos marxistas analíticos, como Jon ELster,Adam Przeworski e John Roemer, que trabalham nos marcos da escolha racional (ou do chamado individualismo metodológico). Cf. André Borges, op. cit., p. 161. Cf. Dennond S. King, lhe new right: politics, markets and citizenship, London: MacMillan, 1987. '9 Isso traduz claramente a origem utilitarista das teorias da escolha racional. Jeremy Bentharn, o maior teórico da filosofia utilitarista, formulou o "princípio da utilidade", segundo o qual o único critério que deve inspirar o bom legislador é o de emanar leis que tenham por efeito a maior felicidade do maior número, uma vez que os homens desejam o prazer e rejeitam a dor, e em conseqüência a melhor sociedade é a que consegue o máximo de felicidade para o maior número de seus componentes (Norberto Bobbio, liberalismo e democracia, São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 63.Ver também Leif Lewin, "Utilitarianism and rational choice", EuropeanJournal of Political Restará, Dordrechrt: Kluwer Academie Publishers, 1988). "Marz hoje, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, 81
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entre indivíduos, trabalhando especialmente com a idéia de que a escolha de cada um depende das escolhas dos outros, através da antecipação e do cálculo estratégico. O melhor exemplo da teoria dos jogos é o famoso Dilema do Prisioneim21. Nele, dois prisioneiros, A e B, suspeitos de terem participado de um crime, são colocados em celas separadas, sem comunicação alguma entre si. O Estado não tem evidências para condená-los — os elementos disponíveis no processo somente permitem condená-los a uma pena menor, um ano de reclusão para cada um, O promotor deseja condená-los a uma pena maior, e pressiona cada um individualmente para denunciar o outco. A proposta é esta: "Se você denunciar o seu parceiro e ele não, você estará livre e ele receberá uma pena de dez anos. Se ocorrer o inverso — ele denunciar e você não — ele estará livre e você receberá a pena de dez anos. E se os dois denunciarem, ambos serão condenados, mas somente a três anos". Esquematicamente, teríamos o seguinte; PRISIONEIRO B
5: P., PRISIONEIRO A —
Denuncia (não coopera)
Não denuncia (coopera)
Denuncia (não coopera)
3 anos A, 3 anos B
A livre, 10 anos B
Não denuncia (coopera)
10 anos A, B livre
1 ano A, 1 ano B
Já que os dois prisioneiros não podem comunicar-se entre si, e ambos irão comportar-se racionalmente, o resultado será a dupla denúncia (a dupla não-cooperação). Sendo maximizadores, a estratégia não cooperativa é dominante para cada um separadamente (trair o companheiro para se safar), e o resultado acaba sendo pior para ambos, em conjunto (a melhor solução, a chamada Pai:cio-ótima, seria a dupla cooperação, com apenas 1 ano de prisão para cada um, contra 3 anos que acabam conseguindo). Mas note-se como há racionalidade nas decisões individuais. Para o prisio-
Jon Elster, Nuts and Bolts for the Social Sciences, Cambridge: Cambridge lJniversity Press, 1989, p. 29, e Robert Wright, No,, Zero —The logic of human destiny, New York: Pantheon Boolcs, 2000, p. 340-341. "Diz-se que uma dada situação é Ótimo de Pareto, Pareto-Otima etc. quando é impossível melhorar a situação de um indivíduo sem piorar a dos demais. 2'
neiro A, se B denunciar, é melhor que ele denuncie também, porque assim receberá 3 anos (se se calar, vai conseguir 10 anos!): se B calar-se, não denunciando, é melhor que ele denuncie, porque estará livre (se não denunciar, ainda vai ficar 1 ano preso). O jogo demonstra portanto que a racionalidade individual conduz à irracionalidade coletiva, ou seja, sujeitos racionais, buscando maximizar custos e beneficios em interesse próprio, ao interagir entre si, podem fazer com que a ação produzida leve a resultados subótimos". Da mesma forma, surge o problema da ação coletiva, descrita por Mancur Olson". Segundo ele, quando um determinado grupo precisa empreender um esforço coletivo conjunto para a produção de determinado bem público (ou seja, algo que atende ao interesse comum), muito provavelmente a ação coletiva fracassará na ausência de determinadas condições. Os bens públicos têm duas características básicas: são ofertados em conjunto e nenhum participante do grupo pode ser excluído das vantagens ou da satisfação proporcionada por sua consecução. O problema reside exatamente neste ponto: em grandes grupos, os indivíduos, não passíveis de exclusão dos beneficias coletivos, comportam-se como conseguindo um bem coletivo ou públiautênticos "caronas" (free-riders), co (como, por exemplo, a elevação de salário ou qualquer serviço público promovido pelo governo) sem pagar os seus custos (não participando de greves, ou não pagando os impostos devidos). Como Olson afirma: "Embora todos os membros do grupo tenham um interesse comum em obter esse bem coletivo, eles não têm o mesmo interesse em pagar o custo de proporcionar o bem coletivo. Cada um preferiria que os outros pagassem o seu custo e, regra geral, receberia qualquer beneficio fornecido, tivesse ou não pago uma parte do custo'.
" Uma possibilidade se obter resultados étimos, e a cooperação, é através da repetição sucessiva dos jogos. Mesmo sem a comunicação entre os participantes, a observação sobre o que fez um jogador em situação anterior pode trazer informações importantes sobre o seu comportamento Muro. Esse acúmulo de informação e sua transmissão ao futuro permite o estabelecimento de estratégicas cooperativas, de tipo soma não-zero, demonstrando a importância da evolução de "tecnologias de confiança" desenvolvidas freqüentemente por leis e normas estabelecidas pelos governos (cf. Robert Wright, op. cit., p. 342-343). adiou, London: Harvard University Press, 1965. 24 The !agir of collective " Mancur Olson, op. cit., p. 19.
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Exceto em pequenos grupos, onde os custos individuais da ação coletiva são pequenos em relação aos benefícios, a não-participação/cooperação tende a ser a estratégia dominante para indivíduos racionais. A única forma de superar o dilema da ação coletiva é a oferta de incentivos separados e seletivos para estimular assim um indivíduo racional de um grupo "latente" (onde não há cooperação) a agir sob a orientação de seu grupo. Há dois tipos de incentivo: positivos (vantagens pessoais para indivíduos isolados do grupo, que seriam assim "comprados" para cooperarem) ou negativos (de natureza coercitiva, impondo-lhes certo comportamento). Surge assim a idéia de instituições como forma de estabelecer mecanismos de cooperação. Trata-se de, como já observado acima", verificar que as leis e normas contribuem para fixar "tecnologias de confiança" capazes de produzir resultados de soma não-zero em atividades sociais. Há uma vertente do chamado institucionalismo moderno (ou neo-institucionalismo) denominado da "escolha racional", na qual é ressaltado o papel das instituições como redutoras da incerteza e fator determinante da produção e expressão das preferências dos atores sociais". Essa posição — importância das instituições na teoria da escolha racional — não é entretanto consensual,Vários autores destacam o contrário. Douglass North é explicito ao referir-se ao "mundo não institucional da teoria neoclássica"". Timothy Luke observa que a sociedade na teoria da escolha é mecanicamente reduzida a unia agregação em uma função matemática de prefe-
"Ver nota 23. " Q neo-institucionalismo não se reduz, entretanto, a essa dimensão. Os trabalhos de March e Olsen, marcos dessa escola, insurgem-se contra as teorias comportarnentalistas (behavioralistas) vigentes ate então, nas quais as instituições não passavam de arenas onde o comportamento político, movido por outros fatores, acontecia. Mas opõemse às teorias da escolha racional: "As idéias (neo-institucionais) não enfatizam a dependência do Estado em relação à sociedade, ao contrário, agem em favor de uma interdependência entre instituições políticas e sociais relativamente autônomas; não enfatizam a simples primazia de microprocessos e histórias eficientes, buscando em seu lugar processos relativamente complexos e a ineficiência histórica; não enfatizam metáforas de escolha e resultados fixados — destacam outras lógicas de ação e a centralidade da ação significativa e simbólica" (James (3, March e Johan Olsen, "The new institucionalism organizational factors in political life", American Political Science Reviam v. 78, 1984, p. 738). Structure and change in economic history, NewYork/London:WW.Norton & Company, 28 1981, p. 355. 84
rendas individuais interdependentes, sendo o governo visto apenas como um conjunto de técnicas, ou a máquina que permite que a ação coletiva tenha lugar: "Logicamente, urna importante implicação dessa noção surge com sua evidente rejeição das instituições políticas, grupos sociais ou processos culturais como existentes de forma mi generis"". Da mesma forma, Leif Lewin escreve que "os modetnos herdeiros do utilitarismo consideram partidos e organizações como maquinaria política cuja tarefa é automaticamente processar as preferências dos cidadãos, qualquer que seja sua qualidade"". George Tsebelis vai na direção oposta. Negando um aparente paradoxo (a escolha racional descuidando de indivíduos ou atores e preocupando-se com instituições políticas e sociais), a ação individual é vista como adaptação ótima ao ambiente institucional, sendo a interação entre individuos unia resposta ótima para cada um. "Assim, as instituições predominantes (as regras do jogo) determinam o comportamento dos atores, o que por sua vez produz resultados políticos ou sociais"". Na mesma linha, Margaret Levi" salienta que as instituições podem resolver problemas de ação coletiva, fazendo com que ocorram contribuições de indivíduos que não conseguiriam realizar seus objetivos a menos que exista alguém que tenha o poder de coordenar, coagir ou mobilizar um conjunto de pessoas a agir conjuntamente. Trata-se assim de reconhecer que a. teoria da escolha racional pode ser ampliada, integrando a análise em nível individual (o homem econômico que minimiza custos e maximiza benefícios) com o macroknOmeno, onde "os atores racionais e estratégicos podem simultaneamente criar ao mesmo tempo em que são limitados por regras sociais baseadas em normas e instituições"". É interessante finalmente notar que em seu último livro, publicado após sua morte, em 1998, Mancur Olson destaca que a existência de merca-
"Reason and rationality in rational choice theory", Social Research, v, 52, n. 1, 1985, p72. " Op. cit., p. 47. " Nested games: rational choice in comparativa politics,Berkeley:University of California Press, 1982, p. 40, " "A logic of institutional change", in Karen 5, Cook e Margaret Levi (ed.), The Limils of Rationality, Chicago: Chicago University Press, 1990. " Margaret Levi, Karen 5. Cook, Jodi A. O'Brien e Howard Paye, "Introduction: the limite of rationality", in Karen S. Cook e Margaret Levi (ed.), op. cit., p. 15. 29
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dos não é condição suficiente para o bom funcionamento das economias e a prosperidade das nações. Não há dúvida, para ele, que as economias prósperas são economias de mercado. Isso, porém, não basta. Mercados existem em todos os lugares, desde tempos imemoriais. Como explicar então por que razão, num mundo de mercados ubíquos, existem tantos países pobres e miseráveis? A resposta é simples e direta: "Uma economia de mercado somente pode alcançar seu potencial completo se todos os participantes dessa economia, sejam eles indivíduos ou empresas, tenham o direito de garantia imparcial dos contratos que decidam realizar. Pode também atingir seu potencial completo apenas se todos os participantes tiverem direitos de propriedade seguros e precisamente delineados. Estes direitos não são jamais dados pela natureza, mas são muito mais resultado da construção social, geralmente governamental". Em outro trecho, salienta:"Para obter os ganhos do comércio (...) é preciso existir um sistema legal e uma ordem política que garanta contratos, proteja os direitos de propriedade, cumpra acordos hipotecários, torne os riscos limitados para empresas, e facilite um duradouro e amplamente generalizado mercado de capitais que faça os investimentos e empréstimos mais líquidos do que seriam se eles não existissem. (...) Sem tais instituições, uma sociedade não conseguirá obter a totalidade dos beneficies de forma segura para produzir, de forma eficiente, bens complexos que requerem a cooperação de muitas pessoas em longo período de tempo (...) Sem o correto ambiente institucional, um país estará restrito apenas a atividades comerciais que possam ser garantidas por si próprias"". E alerta: "As economias movem as esferas políticas e as esferas políticas governam as economias. Assim, teorias dos mercados que deixam de lado os governos — ou concepções de política em que a economia é exógena — são intrinsecamente limitadas e desequilibradas. Elas não nos dizem muito sobre as relações entre a forma de governo e as riquezas de uma economia nem explicam adequadamente por que algumas sociedades são ricas e outras pobres"". É importante finalmente salientar que as abordagens que privilegiam as instituições (o neo-institucionalismo moderno) dão destaque a duas dimensões importantes da ação pública nas sociedades complexas37.
Mancur Olson, Power and Prospera), — Outgrowing Communist and Capitalist Dictatorships, New York: Basic Books, 2000, p. 196. 35 Op. cit., p. 185. " Op. cit., p. "Ver a respeito Pierre Muller eYves Surti, op. cit., p. 42-43.
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A primeira é que as instituições são fatores de ordenamento, ou seja, reduzem o caráter caótico da competição. São regras extremamente variadas, cujo caráter múltiplo e por vezes contraditório faz com que a ação política não esteja perfeitamente determinada, oferecendo aos atores numerosas possibilidades de escolha. A segunda é que o conceito de instituição não se limita apenas a regras, procedimentos, convenções e estratégias em torno das quais a atividade politica é organizada, mas diz respeito também a crenças, paradigmas, códigos e culturas que envolvem, sustentam e elaboram tais regras e rotinas, As instituições não são, portanto, apenas fatores de organização, e sim também contribuem para dar sentido às ações que os indivíduos desenvolvem. March e Olsen são claros a mspeito:"A personalidade individual e a vontade dos atores politicos são menos importantes do que as tradições históricas registradas e interpretadas no interior de um conjunto de regras. Um cálculo de identidade e conveniência é mais importante do que um cálculo de custos e beneficios.APrender como está registrado em normas e rotinas dependentes da História é mais importan, te, expectativas sobre o futuro são menos importantes" Finalmente, cabe chamar a atenção para um ponto importante a ser desenvolvido na próxima seção: o fato de que o neo-institucionalismo preocupa-se com os meios, as formas de produção das ações políticas, reduzindo a ênfase nos resultados. Para March e Olsen, a política é vista como urna forma de educação, um lugar de descoberta, de elaboração e expressão de sentido, estabelecendo concepções partilhadas (ou opostas) da experiência, dos valores e da natureza da existência. Assim, a politica não é percebida somente baseada na escolha, mas também construída sobre os mecanismos de construção e interpretação do mundo, isoláveis mais nos processos do que nos resultados das políticas públicas".
3. PRODUÇÃO DE PODER OU DISTRIBUIÇÃO DE PODER NAS POLÍTICAS PÚBLICAS A essa altura, vale retomar o tema específico das políticas públicas e observar sua realização no Estado Social e no Estado Neoliberal. Em primeiro lugar, cabe resolver uma questão fundamental: políticas públicas são
the organizational basis o James G. March e Johan P Olsen, Rediscovering institutions: politics, New York: Free Press, 1989, p. 38. " Pierre Muller e Yves Surti, op. cit., p. 43.
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sempre e necessariamente empreendidas pelo Estado. Mesmo que algumas definições possam admitir a produção de bens coletivos através de ações planejadas e organizadas ao longo do tempo e do espaço a partir de organizações não-governamentais, entendemos que o conceito de politicas públicas exige a presença e a ação estatais para dar a elas o sentido de abrangência e não-exclusividade de seus resultados. Somente o Estado possui os atributos de legitimidade social, de permanência e organização jurídico-legal indispensáveis à produção conseqüente e duradoura das politicas públicas, cuja elaboração por organizações privadas (ou pelo nercado, mais generalizadarnente) seria inviável ou pelo menos incompleta. Grupos de interesse tem papel importante no processo de definição das políticas públicas; organizações não-governamentais podem ser entidades encarregadas de realizar as políticas públicas. Mas a definição delas é atributo exclusivo do Estado. No Estado Social é clara e visível a ação estatal na promoção de politicas públicas. O problema surge no Estado Neoliberal: neste que, caracteristicamente, desconfia e critica o papel do Estado, buscando limitar suas fronteiras econômicas e promover a liberdade individual, desapareceriam as políticas públicas? Em primeiro lugar, cabe indagar se existe um Estado absolutamente neoliberal, e a capacidade efetiva de governos neoliberais de implantar, de maneira efetiva e permanente, suas propostas. A resiliência do sistema social britânico às investidas do governo Thatcher dos anos 80 é bom exemplo dessa permanência da atividade pública. Buscando identificar as mudanças ocorridas no grau de intervenção do Estado em economias desenvolvidas e em desenvolvimento desde os anos 70, Flávio da Cunha Rezende analisou a evolução de gastos públicos por função segundo a renda em uma amostra de 64 países. E concluiu que os governos dos países ricos vêm interferindo mais na economia e exercendo maior intervenção social que os países em desenvolvimento, em contraste com o que convencionalmente apregoa o ideário do "Estado mínimo".
mais ousadas de ação estatal no combate à pobreza — idéias que vêm sendo encampadas por partidos de esquerda em todo o Primeiro Mundo — partiram de autores neoliberais". Gianetti cita Milton Friedman, da escola de Chicago, que propõe a criação de um "imposto de renda negativo" para os que ganham menos: trata-se de substituir o vasto arsenal de beneficios fornecidos em espécie pelo Estado — em programas de saúde, educação, habitação, seguro-desemprego — por pagamentos diretos, em dinheiro, para os que recebem rendas mais baixas, reduzindo assim o desperdício nos gastos sociais do governo e eliminando boa dose do corporativismo predatório que sufoca o Estado. Da mesma forma, Hayek sugere a criação de uma "renda mínima garantida" para todo e qualquer cidadão cuja capacidade de ganho esteja abaixo de um certo nível, financiada por impostos. Gianetti cita John Gray (curiosamente um autor que, de ardoroso defensor do ideário neoconservador, tendo inclusive participado do governo Thatcher, tornou-se um crítico contundente na Nova Direita): "Hayek argumenta que o Estado possui funções positivas que incluem o suprimento de alguns bem públicos, a provisão de um nível mínimo de proteção contra a privatização aguda e a adoção de medidas para aprimorar a competição de mercado"". Milton Friedman defende a individualização do acesso ao bem público, substituindo um mecanismo de manifestação de preferências — as decisões politicas — por outro mais eficiente e confiável, o mercado. Em vez de uma política pública de educação, deixa-se que os indivíduos façam a sua política de educação no mercado de serviços escolares. Defende ele a distribuição de "cupons" aos pais, dando-lhes as oportunidades de escolher e comprar serviços educacionais fornecidos pela iniciativa privada. Fica aqui evidente a separação nítida entre a provisão do bem e sua
Fica, então, a pergunta: Seria o neoliberalismo contrário a qualquer tipo de intervenção do Estado, inclusive no campo social? Eduardo Gianetti da Fonseca insurge-se contra essa idéia. Para ele, "algumas das propostas
Eduardo Gianetti da Fonseca, "Quem tem medo do neoliberalismo? —2", Folha de Pauk, 31-7-1994. " Reginaldo Moraes, op. cit., p. 57. " Segundo Gianetti, há uma pequena corrente neoliberal, formada pelos "marcocapitalistas" ou "libertários" (Nozick, Rothbard e David Friedman, o filho "rebelde" de Milton), que são efetivamente defensores do Estado mínimo e sonham com a interrupção pura e simples de toda e qualquer transferência de renda extramercado nos moldes do Estado do Bem-Estar Social.
4° "Gastos públicos e mudanças recentes no papel do Estado nacional — urna análise
comparada entre países desenvolvidos e em desenvolvimento", Novos Estudos CEBRAP, n. 62, março de 2002. 88
produplo".
Desta maneira, os neoliberais, ao criticarem o Estado do Bem-Estar Social, não estão defendendo pura e simplesmente seu desmantelamento",
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nem deixando de oferecer alternativas de política social, voltadas para a sua substituição ou aperfeiçoamento, A questão-chave para os neoliberais seria, portanto, a forma de realizar as políticas públicas. Críticos contumazes da ineficiência estatal, propugnam eles pela transferência aos indivíduos (ao mercado) das tarefas de realizar políticas públicas. Não se trata, portanto, de eliminar políticas públicas, nem mesmo de retirar do Estado seu papel de defini-las. A diferença com o Estado Social é que neste o Estado é o produtor-realizador das políticas públicas; no Estado neoliberal é o indutor-provedor delas. Mas em ambas as situações, cabe ao Estado elaborar políticas públicas, e, portanto, qualquer que seja o modelo de governo, é de fundamental importância a existência de um arcabouço jurídico-legal-institucional capaz de permitir o controle e a aplicação dessas políticas. Neste campo surgem as propostas de reforma do Estado, tema que vem despertando grande interesse nas análises sobre políticas públicas no Brasil. Essa idéia, que "passou a ser o princípio organizador da agenda pública nos anos 80 e 90", reforça a importância do desenho institucional no tema". Para os defensores da reforma, sua intenção é a de reconstrução do Estado, para que este possa realizar "não apenas suas tarefas clássicas de garantia da propriedade e dos contratos, mas também seu papel de garantidor dos direitos sociais e de promotor da competitividade do seu respectivo país"". Ou seja: a reforma do Estado não se confunde necessariamente com a agenda neoliberal, e até opõe-se a ela. Bresser Pereira e Nuria Curull Grau partem da crise do Estado no último quartel do século XX rumo a duas soluções: nos anos 80, a onda neoconservadora com sua proposta de Estado mínimo; nos anos 90, diante do "irrealismo da proposta neoliberal", o movimento segue na direção da reforma ou reconstrução do Estado. O século XXI assistiria assim ao desenvolvimento do "público não-estatal", dimensão-chave da vida social. O "público não-estatal" é definido pelos autores como "organizações ou formas de controle 'públicas' porque voltadas ao interesse geral; 'nãoestatais' porque não fazem parte do aparato do Estado, seja por não utilizarem servidores públicos, seja por não coincidirem com os agentes po-
Marcus André Mello, "Estado, governo e políticas públicas", Sergio Miceli (org.), O que ler na alteia social brasileira (1970-1995)— Ciéncia Política (volume 111), São Paulo, 45
Sumarê/ANPOCS, Brasilia: CAPES, 1999, p. 81. Luiz Carlos Bresser Pereira, "A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle", Lua Nova, n. 45, 1998, p. 49.
liticos tradicionais". E adiante, definem a função das organizações sociais, realizadoras dos serviços públicos: "A reforma do Estado que está ocorrendo nos anos 90 deverá conduzir a uni Estado fortalecido, com suas finanças recuperadas e sua administração obedecendo a critérios gerenciais de eficiência. Mas a reforma também deverá alcançar a garantia, pelo Estado, de que as atividades sociais, que não são monopolistas por natureza, sejam realizadas competitivamente pelo setor público não-estatal e por ele controladas ainda que com seu apoio financeiro, de maneira a conseguir a ampliação dos direitos sociais". Retomemos o tema das políticas públicas, cotejando-o com o desenvolvimento da teoria da escolha pública. Fábio Wanderley Rei?' faz uma interessante gênese do estudo das políticas públicas, destacando que ela representa uma área em que os cientistas políticos encontraram razões para ter esperanças que seriam capazes de emular os economistas quanto à precisão e ao rigor". A ciência política teria se preocupado historicado processo político, e, através do rigor mente com as questões de ímpia científico em que se baseia o estudo das políticas públicas, poderia agora dar conta mais dos aspectos de output. Mas observemos a convergência entre políticas públicas e a public ambas estão preocupadas com considerações de eficiência e racionachoiie: lidade. E dois aspectos se revelam associados a essa aproximação. Em primeiro lugar, observa-se a tendência a considerar os problemas que têm tradicionalmente sido tratados pela ciência política ou sociologia política da irracionalidade na vida social e política. Em tradicional como o locas
" Luiz. Carlos Bresser Pereira e Nuns Cunill Grau (orgs.), "Entre o Estado e o mercaRio de Janeiro: do: o público não-estatal"; O público não-estatal na reforma do Estado, FGV, 1999, p. 15-17. 47 Ibid. Muller e Surel (op. cit., p. 10) escrevem que a análise das políticas públicas foi original48 mente formulada nos Estados Unidos como um conjunto de dispositivos de pesquisa tendo por ambição produzir as receitas do "bom" governo. Já Mateus André Melo (op. cit., p. 64), referindo-se a Theodore Lovvi, afirma que a área de políticas públicas, e a opinião pública/comportamento eleitoral, converjuntamente com a publir choice teram-se em subdisciplinas acadêmicas hegemônicas nos Estados Unidos, em virtude de seu potencial para abordagens quantitativas, nas quais importam-se instrumentos conceituais da ciência econômica, denominada por Lowi como "a nova linguagem do Estado", em substituição ao direito. Segundo Melo, mais do que uma expansão disciplinar, pode-se entrever nesse movimento uma certa americanização, expressa cru temáticas e estilos de análise, da ciência política em escala global. 91
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segundo lugar, esse traço de irracionalidade tende a ser vinculado com os elementos de tensão e conflito que têm sido destacados como característicos da vida política. Contra eles, estaria a racionalidade, que se vincula ao consenso e à coesão social. Citando Vernon Van Dyke, Reis traz a seguinte definição: "Chamamos uma política 'ou decisão de não-política quando ela é adotada [...] por meio da aplicação racional do conhecimento pertinente sobre a base de valores ou princípios consensuais; e chamamos urna politica ou decisão de política quando ela resulta da barganha, ou luta, ou desejo ou opinião arbitrária [...]"49. O especialista em políticas públicas associa assim o racional ao consensual em sua análise. A perspectiva característica desses estudos tende inevitavelmente em dar ênfase à eficácia global das políticas ou decisões. A pergunta que segue é inevitável: O estudo das políticas públicas exige o preço da despolitização, impondo-se uma opção entre fazer análise de políticas ou fazer ciência política? A política seria então o reino do irracional? Para Reis, a resposta é claramente negativa: "Não há qualquer afinidade especial entre o favorecimento do consenso, por um lado, e, por outro, o recurso à suposição de racionalidade ao se tratar de construir uma teoria abstrata e proposicional da politica, como se dá na teoria da public choice.Ao contrário, os supostos em que se baseiam os esforços teóricos desta têm suas raízes na tradição contratualista do pensamento político, que postula a divergência de interesses entre agentes capazes da racionalidade como seu ponto de partida"". Admitindo a pertinência da aplicação do método econômico à teoria politica, unia vez que a referência à escassez — e, portanto, à racionalidade — dá uma chave unificadora para a ciência social em geral, Reis salienta, entretanto, um traço distintivo entre a política e a ciência econômica: o fato de que a escassez, ou a forma politicamente relevante de escassez, tem a ver com a interferência dos objetivos (ou preferências, ou interesses) de uma pluralidade de indivíduos ou grupos entre sP', Deslocase assim o interesse exclusivo da produção do poder para a distribuição de poder, ou seja, "o problema da produção de poder para a realização de objetivos co-
Fábio Wanderley Reis, op. cit., p. 49. Os destaques são nossos. " Fábio Wanderley Reis, op. cit., p. 51. '' O exemplo citado por Reis é elucidativo. Robinson Crusoé, solitário em sua ilha, defronta-se com problemas económicos; somente porém quando Sexta-Feira entra em cena é que podemos falar em problema político, já que agora os interesses ou objetivos de cada um devem levar em conta, de alguma forma, os -do outro. 49
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letivos, que pode ser visto corno o problema central da análise 'técnica' de políticas públicas orientada por considerações de eficácia, somente adquire significado do ponto de vista da ciência política porque se encontra relacionado de maneira complexa à questão da distribuição do poder'. Analisada a questão sob a ótica dos direitos, pareceria natural que a defesa dos direitos liberais privilegiaria as questões de distribuição do poder (já que se trata de conter e limiar o poder relativo do Estado sobre a sociedade), enquanto a defesa dos direitos econômico-sociais inclinar-se-ia para o tema da produção do poder (pois se trata de criar as condições de eficácia para a atuação de um Estado ativo na promoção de determinados fins). As coisas não são, porém, tão simples. Por um lado, há a necessidade de recupeler a atuação do Estado como fator positivo de promoção dos direitos liberais, Isso significa que para a garantia desses direitos o Estado tem não apenas de ser contido ou neutralizado em certos aspectos de sua atuação, mas também construído de maneira adequada, e o êxito desse processo é condição para sua contenção eficaz. De outra parte, o intervencionismo estatal pode significar não a conquista dos direitos sociais para todos, e sim um instrumento para garantir graus diferentes de liberdades positivas para diferentes classes, ou para restringir a participação econômico-social de determinadas classes. Em suma: a questão da distribuição social de poder é chave. Ela diz respeito a saber a que interesses o Estado é sensível (ou, no limite, quais interesses controlam o Estado) e precede à questão da forma positiva ou negativa assumida pela atuação do Estado tanto no que se refere aos direitos liberais quanto no que diz respeito aos direitos sociais. São exatamente as vicissitudes da luta política relacionada à distribuição social de poder que determinam a atuação do Estado em ambas as direções. "Assim, a discussão do problema do Estado enquanto agente da promoção eficaz de fins, dados está condicionada, em ambas as áreas, pelo problema da distribuição de poder, o que significa precisamente que os fins não são dados, mas surgem da confrontação e do embate políticos"".
4. AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO PROCESSO E O RISCO DA JUDICIALIZAÇÁO DA POLÍTICA Quando se definem políticas públicas como processos, privilegiase sua dimensão constitutiva e não seu aspecto teleológico. E evidente
52 53
Fábio Wanderley Reis, op. cit., p. 53. Fábio Wanderley Reis, op. cit., p. 60. 93
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que as políticas públicas visam produzir efeitos, realizar metas, proporcionar bens e serviços à população. Mas elas não se resumem a fins: se assim fosse, bastaria encontrar e aplicar técnicas eficientes e racionais para obter resultados positivos. Desapareceria assim a questão política, reduzida a mero problema de eficácia econômica. E mesmo a questão institucional — a necessidade de regras, normas e procedimentos — estaria enfraquecida, já que a finalidade e a consecução dos objetivos sobrepor-se-ia a qualquer consideração sobre os meios, Ao abordar o tema sob a ótica do processo, privilegia-se ainda a dimensão participativa na produção das políticas. Resgata-se a noção do contraditório na sociedade, evitando assim as definições simplistas de "boas" ou "más" políticas. Ao contrário, nesta perspectiva resultam complexas as tomadas de decisão. O arcabouço institucional organiza o processo de definição das políticas, interage com ele (as instituições não são apenas cenário fixo), mas deixa margem para a livre tomada de decisões. Fica ainda evidenciada a dimensão estratégica da atuação no nível do Estado. Processo pressupõe planejamento, decisão (momentos onde a distribuição de poder é chave) e execução da ação. Exige-se, portanto, uma coordenação eficiente e apropriada entre meios e fins, indispensável à formulação adequada das políticas públicas. Finalmente, um rápido comentário sobre o risco de um excessivo tratamento jurídico da questão. Quando se definem políticas públicas como programas que resultam necessariamente de processos jurídico-institucionais, seja na sua dimensão constitutiva, seja no plano da exigência do cumprimento, não se estaria próximo de uma outra variante da despolitização? Não será exagero dizer que "políticas públicas são conjuntos de ações e programas de ação governamental que se valem precipuamente de normas jurídicas para a consecução dos objetivos estabelecidos"54. O primeiro aspecto relativo diz respeito ao fato que, como destaca Patrícia Arzabe, a pirâmide kelseniana não é adequada para explicar a normatividade da política pública em seu conjunto. Nas políticas públicas, freqüentemente decretos e leis estão subordinados à racionalidade de uma portaria ou de uma resolução, e muitas vezes são implementadas por pressões da sociedade organizada à qual responde o Estado com atos e programas, nem sempre juridicamente formulados.A pergunta que se faz: isso é desejável ou não? "Amarrar" os procedimentos e os programas a um
" Patricia Helena Massa-Arzabe, op. cit., p. 15.
conjunto formal de regras, ou mesmo preocupar-se em definir constitucionalmente a neüessidade e o alcance das politicas públicas, não são formas de impedir ou atrasar sua realização? A segunda questão aponta na direção da transferência ao Judiciário do controle da execução das políticas públicas.Vale neste ponto citarAntoine de 1999, salienta ele a crescenGarapon. Em sua obra O juiz e a democracia, te influência que a justiça exerce sobre a sociedade francesa e a crise de legitimidade que assola as democracias ocidentais como parte de um processo de mudança social. O aumento da influência do Poder Judiciário estaria relacionado com o enfraquecimento do Estado pelo mercado e pelo desmoronamento simbólico do homem e da sociedade democrática". Dessa maneira, o aumento da litigancia processual seria provocado pelo individualismo capitalista e o rompimento com laços sociais anteriores — família, Igreja, Estado Provedor etc. Tudo o que era antes controlado pela relação interpessoal passi a ser regido por um contrato jurídico, com a invasão do direito de arenas que eram exclusivas de outras instituições sociais. E é importante salientar que a interferência judiciária é um fenômeno facilitado, na prática, pelos próprios políticos. A inflação legislativa tem um rebatimento imediato no Judiciário, já que aumenta a área de atuação do mundo jurídico. E o resultado disso é que o cidadão individualizado não mais se envolve em questões de mobilização social e a justiça se torna um verdadeiro balcão de queixas sociais: "A dimensão coletiva do político desaparece. O debate judiciário individualiza as obrigações: a dimensão coletiva certamente se expressa ai, porém de maneira incidental. Ela encoraja um engajamento mais solitário do que solidário"56. Vale finalmente reproduzir um trecho do trabalho de Vanessa Oliveira e Ernani Carvalho, comentando a obra de Garapon: "Antoine Garapon vislumbra com precisão que a judicialização não é um aumento puro e simples da litigincia jurídica. Por trás desse fenômeno existe uma ampliação da aplicabilidade do direito sem precedentes na história do mundo ocidental. Os fatores que mais influenciaram este processo são: o fim da guerra fria (ou do socialismo real), a internacionalização do cincho como ordenador do poder supranacional, a crise de legitimidade representativa (seja pela apatia popular e/ou inércia do poder político) e a contratualização das relações sociais (devido a falência das instâncias. mediadoras tradicionais).
" Antoine Garapon apud Vanessa Oliveira e Ernani Carvalho, A judicialização da polirira: um tema em aberto. " Antoine Garapon, apud Vanessa Oliveira e Ernani Carvalho, op. cit., p. 6. 95
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Assim, afirma que a evolução da democracia transformou a atuação dos juízes e vice-versa. Enquanto a democracia reforça a identidade do sujeito individualista, a justiça destitui a autoridade tradicional. Segundo ele, a relação entre democracia e os juízes faz parte de urna profunda mudança social que está em curso. As conseqüências deste processo ainda sio urna incógnita. Por fim, Garapon enxerga de forma positiva a transformação da justiça em símbolo da moralidade pública e da dignidade democrática, entretanto, ele deixa claro que o mundo político não pode ser substituído pelo jurídico e alerta sobre as conseqüências de um uso excessivo das prerrogativas constitucionais do Judiciário, ou seja, um possível "governo de juízes".
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Op. cit., p. 6. Os destaques são nossos.
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CRISTINA FORTINI, JÚLIO CÉSAR tX)S SANTOS ESTEVES, NORATEREZA FONSECA DIAS (Org.)
Juarez Freitas pontifica que o controle que se irá exercer é um controle de demérito, analisando se a escolha, se o contrato, é aceitável. Em outras palavras: não caberá ao Juiz dizer o que é oportuno e conveniente, mas caberá denunciar a ocorrência de situações em que não se demonstrarem razões capazes de lastrear o contrato. Sendo controle de legalidade ou de demérito, o que
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Apontamentos sobre o controle judicial de políticas públicas
importa é garanti-lo. Referências São
AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social de serviços públicos. Paulo: Max Limonad, 1998. ARAGÃO, Alexandre Santos. O marco regulatório dos serviços públicos. Interesse Público, n. 27, 2004. FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração. São Paulo: Malheiros, 2007. GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. 4. ed. São Paulo: RT, MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 2000. sentido da vinculação OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. ed. Rio STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. de Janeiro: Forense, 2003. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: orçamento na Constituição. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 382.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular de Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes. Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior das Forças Armadas. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
Sumário: 1 Dois prólogos necessários - 1.1 Um breve prólogo antropológico -1.2 Um breve prólogo histórico -2 A epopéia do controle do poder - 2.1 Do controle religioso ao controle laico - 2.2 Dividir para controlar - 2.30 último baluarte do arbítrio - 3 A mutação dos paradigmas do direito público - 3.1 Democracia e política - 3.2 Direitos fundamentais - 4 A judicialização das políticas públicas - 4.1 Constitucionalização da ação estatal - 4.2 Do controle objetivo ao controle subjetivo - 4.3 Do ato administrativo à política pública - 4.4 Do controle da vontade ao controle do resultado - 5 Um epílogo ainda em construção - 5.1 Prosseguimento da luta inadiável contra o arbítrio - 5.2 As conseqüentes mazelas do arbítrio: desperdício, malversação, corrupção, ineficiência e a omissão do gestor - 5.3 Ascensão da cidadania ativa: demandas de participação, de parceria e de diversificação dos controles - 5.4 Uma nota final sobre a crescente preocupação dos juristas com o controle das políticas públicas - Referências
1 Dois prólogos necessários Informação bibliográfica deste capitulo, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): FORTIM, Cristiana. Controle,jurisdicional dos contratos administrativos: controle da legitimidade do gasto público pelo Poder Judiciário. In: FORTIM, Cristiana; ESTEVES, Júlio César dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca (Org.). Políticas públicas: possibilidades e limites. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p 41-48. ISBN 678-854700-155-2.
1.1 Um breve prólogo antropológico O poder é fenômeno conatural ao homem e elemento central para a compreensão do surgimento e do desenvolvimento da política e do direito nas sociedades humanas
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O poder tem suas próprias leis, algumas inexoráveis e, dentre elas, está a tendência à concentração e à ocupação de espaços. O primitivo conceito do poder, mágico e religioso, envolveuem uma aura mística, que dominou um longo período da socialização do homem e o acabou marcando, bem como a autoridade, que dele se derivou, com matizes míticos e preconceitos arraigados.
1.2 Um breve prólogo histórico A superação do velho conceito' mágico e religioso do poder se processou lentamente, ao mesmo tempo em que a sua difusão elevava a sociedade de objeto a co-protagonista do poder. Com o Renascimento, na Europa Ocidental, o surgimento do Estado moderno, a laicização da autoridade e a revitalização do Direito Romano se foram abrindo as oportunidades para a racionalização e, com ela, a juridicização do poder político. Um dos primeiros sinais desse avanço foi a diferenciação, que veio a ser feita no direito sucessório regaliano francês, entre as leis do rei, por este disponíveis por mera expressão de sua vontade, e as leis do reino, por ele indisponíveis, o que seria uma primeira ruptura da milenar afirmação axiomática do princeps
legis soluto. 2 A epopéia do controle do poder 2.1 Do controle religioso ao controle laico A laicização do poder na Europa Ocidental desmitificava a onipresente monarquia absoluta e abria espaço para a afirmação paulatina de interesses protegidos de segmentos sociais, tais como e desde logo, a nobreza e a burguesia. A laicização, impulsionada pelas Universidades, a partir da Alma Mater de Bolonha, incentivava o conhecimento científico e,
especificamente, no campo das Ciências Jurídicas, disseminava cultivo do Direito Civil — primeiro ao lado e depois acima do Direito Canônico. Desse modo, com a difusão do conhecimento, a Reforma, a intensificação e sofisticação do comércio, o humanismo, o Direito Internacional, para citar algumas entre outras motivações políticas, econômicas e culturais do Renascimento, estavam plantadas as sementes dos ideais de liberdade, que germinariam e se propagariam nos séculos seguintes, iniciando a erosão histórica das formas autocráticas e tirânicas de exercício do poder.
2.2 Dividir para controlar Foram esses ideais pós-renascentistas que, trabalhados por espíritos iluminados, como os de Locke, Rousseau e Montesquieu, viriam a se afirmar com as três Revoluções Liberais da Idade Moderna: a inglesa, a americana e a francesa. Cada uma delas introduzindo um específico avanço no controle do poder político e na construção das liberdades públicas: a inglesa, com a instituição do Poder Legislativo; a americana, com a outorga de autonomia ao PoderJudiciário, e a francesa, com a estruturação do Mar Executivo — entendidos esses três poderes originários como expressões orgânicas, autônomas entre si, do mesmo poder estatal. Estava iniciado o processo de fragmentação do poder monolítico' dos reis e descoberto o caminho para a instituição de controles estatais recíprocos, como um grande passo histórico na luta contra o poder absoluto e contra o arbítrio. Todavia, a evolução desses três ramos originários não foi homogênea. Os legislativos, capitaneados pelo exemplo do Parlamento inglês, desenvolveram-se rapidamente logo a partir do século XVIII, afirmando tanto a sua autonomia como a sua atuação controladora; já os judiciários evoluiriam mais lentamente, ainda porque os exemplos juspolíticos norte-americanos, da unidade da jurisdição e de uma corte constitucional de cúpula não seriam
POLITICAS PÚBLICAS: POSSIBIUDADES E LIMITES
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CRISTIANA FORÚNI. JÚLIO CÉSAR DOS SANTOS FSTEVES, MARIA TEREZA FONSECA DIAS (Org.)
adotados na Europa Continental senão bem mais recentemente, pois que nela se preferiu o modelo francês de separação radical de poderes, em que se instituía uma jurisdição própria para a Administração Pública — o contencioso administrativo. Por estas e outras razões, a seguir examinadas, os executivos permaneceram por mais de um século os ramos do poder político menos infensos às mudanças liberais. 2.3 O último baluarte do arbítrio
Encastelaram-se, destarte, no ramo executivo do poder do Estado, as velhas prerrogativas regalianas do jus imperii, que só cederiam a controles externos, especialmente os de juridicidade, depois de uma saga apropriadamente denominada e descrita por Eduardo García de Enterria como "A luta contra as imunidades do poder".' Destacadamente, essa luta, que cada País travou e muitos ainda a travam, se concentrou em três campos de batalha, assim apresentados por Enterría: 1°. a imunidade dos poderes discricionários; 2°. a imunidade dos poderes de governo; e 3°. a imunidade dos poderes normativos do Executivo, decorrentes da função regulamentar e das várias formas de exercício de funções legislativas delegadas. Não obstante, como tanto a formulação de políticas públicas como a sua execução ficaram concentradas maciçamente nas funções desse mesmo ramo executivo e, até certo ponto, nele se confundindo, nele é que permanece concentrado e vigente o velho mito da imunidade. Em suma, em razão dessa unidade conceptual— política e administrativa — que se atribui às políticas públicas, que prestigia Madrid: ' GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La lucha contra Ias inmunidades de) poder. Thomson-Civitas, 1974 (1. ed.); 1979 (2. ed.); 1983 (3. ed.) e reimpressões em 1989, 1995 e 2004.
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o político em detrimento do jurídico, nelas se encastela a resistência ao controle judicial; tanto sob uni pretexto supérstite da independência do Poder Executivo no exercício dessa função, não obstante mista, como sob o pretexto ultrapassado da suficiência do controle democrático formal, pelas urnas, para legitimar suas decisões. Ambas as justificações já não mais procedem: tanto pela releitura contemporânea da separação de poderes, hoje muito mais uma separação constitucional de funções, quanto pela emergência do conceito material e valioso de democracia. 3 A mutação dos paradigmas do direito público 31 Democracia e política
Este é o primeiro dos dois grandes paradigmas que mudaram dramaticamente a política e o direito na passagem do século XX para o século XXI, juntamente com o que se segue, o dos direitos fundamentais. Ora, o antigo conceito formal de democracia, como produto da expressão censitária da vontade de um eleitorado, não importa como se o defina em termos de sua composição, de tal modo abalado pelas trágicas experiências políticas do século XX, que culminaram com a propagação de ideologias totalitárias e radicais de que resultaram as hecatombes de três guerras mundiais, duas quentes e uma fria, mas não menos letal, transmutou-se, auspiciosamente, em um conceito material de democracia, definido por sua carga própria de valores. Assim é que: uma simples vontade da maioria não ilide os direitos das minorias (argumento contra-majoritário); a presunção de legitimidade originária, que deriva tão-somente da forma de investidura, cede ante a evidência de ilegitimidade no desempenho e na destinação do poder (argumento legitimatório); a manifestação de vontade estatal, ainda que democraticamente
recolhida, se subordina à axiologia constitucional (argumento da constitucionalidade) e, ainda, a mera representação política do cidadão, nos legislativos e nos executivos, não mais comunica suficientemente a sua vontade, tão específica e perfeitamente como pode fazê-lo a sua participação direta ou semidireta nos processos decisórios (argumento da ação comunicativa). Em suma, pode-se afirmar que os modelos de democracia encontrados até o final da Segunda Guerra Mundial, com poucas exceções, voltavam-se à obtenção de consensos apenas formais — eleitorais e representativos—, enquanto que os modelos desenvolvidos a partir de então prestigiam a obtenção de consensos substantivos — procedimentais e participativos. Por evidente, o conceito contemporâneo de políticas públicas já não pode ser o mesmo que se sustentou ao longo da modernidade, impondo-se uma revisão que privilegie a democracia em sua expressão pós-moderna.
dignidade da pessoa humana,' a contrapartida e conseqüência lógica desta indisputável prelazia material e formal há de ser a afirmação a de seu direito) como da instrumentalidacle do Estado (e, a fortiori, a entidade a que incumbe certificar, tutelar, promover e realizar esses valores. Esse cometimento de funções não faz do Estado um deus ex machina nem nele se justifica o reconhecimento essencial de supremacia política e muito menos jurídica, mas, como instrumento democrático, apenas o reconhecimento da titularidade das prerrogativas jurídicas necessárias a desempenhá-las. Portanto, do mesmo modo que se afirmou quanto ao paradigma democrático, o conceito contemporâneo de políticas públicas tampouco poderá ser o mesmo que prevaleceu ao longo da modernidade, impondo-se hoje uma nova expressão juspolitica própria da pós-modernidade, que privilegie os direitos fundamentais e contribua eficazmente para a sua plena realização.
3.2 Direitos fundamentais
4 A judicialização das políticas públicas
Como proclama Antonio-Enrique Perez Lufio em seu já clássico Os direitos fundamentais , 2 está assentado que "[...3 o constitucionalismo atual não seria o que é sem os direitos fundamentais", instituídos ao lado das normas que consagram a forma de Estado e estabelecem o sistema econômico. A função da constitucionalização formal desses direitos fundamentais é dúplice: sob o ângulo substantivo, vem a ser a de afirmar os valores básicos de urna sociedade e, sob o ângulo adjetivo, a de estabelecer o marco regulatório de proteção dos direitos subjetivos deles decorrentes. Em razão dessa importância e indisputada centralidade constitucional dos direitos fundamentais — que espelham a própria posição central e a
4.1 Constitucionalização da ação estatal Foi ainda Eduardo Garcia de Enterría que, examinando outro dos paradigmas mutantes do século XX — a plenificação La Consda normatividade constitucional — em seu consagrado titución como _norma y el tribunal constitucional,4 observou que o Direito Constitucional com ela readquiria toda sua expressão jurídica, retornou ao Direito Público e, na sua própria expressão — se rejuridicixou. Com efeito, deixando de ser, como o era, um direito meramente institucional, como expressão da Ciência Política, e abandonando a situação ambivalente em que atuava como "[...] um
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PEREZ LUNO, Antonio-Enrique. Os direitos fundamentais. Madri: Tecnos, 1984; 2004(8. ed.) e reimpressão em 2005.
Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 1°, III. La Constitución como norma y e/ tribunal constitu-
4 GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. cional. Madri: Civitas, 1991.
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CFUSPANA FORNI, 11)110 CÉSAR DOS SANTOS ES1'EVES, MARIA TEREZA FONSECA DIAS (Org.)
catálogo de receitas políticas vagamente obrigatório", o Direito Constitucional voltou a ser um direito relacional, notadamente com a inclusão dos direitos fundamentais. Portanto, como Estado e seu Direito se subordinam à estatuto do poder estatal dotado Constituição, assim entendida como de Soim normatividade, com efetividade de seus comandos, é extreme de dúvidas que nenhuma ação estatal terá validade jurídica, seja de que poder, órgão, ou agente dimane ou de que pretexto se valha, sem que esteja por ela balizada e vinculada à realização de seus princípios e preceitos. Em razão da plena constitucionalização das ações estatais, que não admite espaço para exercício de voluntarismo político de qualquer natureza fora de seus comandos, Maria Paula Dallari Bucci, meritória pioneira brasileira na matéria, em seu Direito Administrativo e políticas públicas, assim sintetiza a importância do estudo jusadministrativo dessa categoria: "Cuida-se, portanto, de buscar uma formulação jurídica mais adequada para impor ao Estado, na gestão dos negócios internos, a efetivação das disposições constitucionais",' tendo-se em vista — e a autora o recorda apropriadamente em sua obra — a afirmação conceptual de Eduardo Garcia de Enterría e de Tomás-Ramón Fernández, de que o Direito Administrativo é o direito público interno por excelência dos Estados contemporâneos. Como se observa, há uma forte coincidência doutrinária, nitidamente em ascensão, no sentido do reconhecimento de que em seus duzentos anos de existência, o Direito Administrativo evoluiu de urna concepção original apenas liberal, pois que dirigida ao balizamento da atuação do Estado-administrador, para uma concepção sócio-liberal ,já que constitucionalmente referida, como um sistema de garantias dos direitos fundamentais dos administrados. São Paulo: Saraiva, BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e polfticas públicas. 2002 (1. ed.); 2006(2. ed.), p. 37.
POLITICAS PORUCAS: POSSIBILIDADES E OMITES
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4.2 Do controle objetivo ao controle subjetivo A lógica original do controle sobre a ação administrativa, a partir do modelo revolucionário francês de separação de poderes, havia sido a manutenção da legalidade objetiva, ou seja, mesmo se provocado pelo particular, a finalidade do controle era sempre assegurar a observância da lei pela Administração.' A mudança de paradigmas também transformou a natureza desse controle de objetivo a subjetivo, ou seja: "[...] deixou de se conceber como um instrumento em defesa da legalidade benevolamente confiada aos cidadãos" para ser um direito processualmente garantido ao cidadão para "[...] pedir justiça ao juiz para a proteção de um direito material concreto",7 destinado, assim, a tutelar os direitos subjetivos dos administrados, assegurados pelo direito. Para essa ampliação do conceito subjetivo do controle aponta-se como marco relevante a afirmação do art. 19.4 da Lei Fundamental de Bonn, com a seguinte dicção: "Toda pessoa cujos direitos' sejam vulnerados pelos poderes públicos tem direito a obter a tutela efetiva dos juízes e tribunais". 4.3 Do ato administrativo à política pública Também no campo dogmático, o enfoque tradicional de controle também se alteraria, expandindo-se do exame de legalidade adstrito ao ato administrativo, perscrutado elemento por elemento, para encompassar o complexo de atos que conforma um processo administrativo, ganhando com isso uma dimensão finalística até então inexistente. 'A respeito, a mais recente obra de GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Las Transformaciones de la Justicia Administrativa. Madri: Thomson: Civitas, 2007, tema originalmente exposto no Rio de Janeiro, em 3 de outubro de 2006, como conferência inaugural do Congresso Internacional de Direito Administrativo organizado pela Procuradoria Geral do Município de Rio de Janeiro. Id. p. 132-133. Expressão com nosso destaque.
Mas a mudança de paradigmas está em vias de se superar em seus resultados a partir de uma nova categorização jurídica das políticas públicas como um complexo de processos, que, partindo daforrnulação de atividades coerentes finalisticamente vinculadas, passam pelo planejamento, orçanzentaçã o e chegam à execução dos cometimentos administrativos postos constitucionalmente a cargo do Estado. Com a definição desse complexo de processos administrativos encadeados, as fases políticas e administrativas se tornam nítidas, sem perder sua unidade, de modo a permitir a clara incidência dos controles adequados sobre cada uma delas, mas garantindo-se sempre o controle judicial, não importa em que fase, sempre que houver direito subjetivo ameaçado ou violado. 4.4 Do controle da vontade ao controle do resultado Ainda no campo das mudanças dogmáticas destinadas a dar sustentação aos novos caminhos do controle, o enfoque se deslocaria do exame da manifestação da vontade administrativa, com a preocupação de confrontá-la com os padrões de legalidade, para o exame da efetividade da vontade administrativa, em termos de resultado, ou seja, do efetivo atendimento dos cometimentos e condicionamentos constitucionalmente impostos ao Estado. Com efeito, o controle de resultado se afigura muito mais abrangente, pois, além da aplicação dos parâmetros tradicionais sobre a manifestação da vontade administrativa, admite e pede a formulação de novos parâmetros, como os de legitimidade, de moralidade e de eficiência, inclusive no que toca ao atendimento de normas técnicas: tão importante na civilização atual altamente demandante de tecnologia. Desenhou-se, em síntese, uma progressão segura na caracterização jurídica do agir da Administração: partindo da validade à eficácia, e desta à eficiência — etapa fmal em que se alcança o
que os mestres italianos denominaram de buona amministrazione, assim alçada no Brasil a parâmetro constitucional.' 5 Um epílogo ainda em construção
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5.1 Prosseguimento da luta inadiável contra o arbítrio Duzentos anos de progresso do Direito Administrativo produziram extraordinários frutos em prol da racionalidade e mas o necessário da moralidade nas atividades da burocracia, prosseguimento dessas conquistas exigirá que se adentre essa zona cinzenta, indefinida, volúvel e desafiadora, que se situa mais além: no espaço que vai da política à administração pública, onde se encastelou o arbítrio nos Estados contemporâneos, com a sua corte de mazelas. Para tanto, é mister, desde logo, reconsiderar a missão do Direito Administrativo a partir de suas próprias conquistas, repensando tanto a sua nova dimensão pós-moderna quanto o instrumental que será necessário para provocar mais um salto qualitativo — desta feita, visando ao controle do ciclo de políticas públicas, um conceito ainda em formação, mas que oferece um aberto desafio ao Direito em razão da resistência de seu núcleo hard duro, impérvio ao judicial review, não obstante os avanços do look review em prática no direito norte-americano e em todo o mundo,'° até mesmo porque expressiva parcela da classe política ainda resiste ao que considera uma perda de poder. São, todavia, os paradigmas e os corolários conceitos incorporados ao Direito Públiéo pós-moderno, a que integrou de pleno o Constitucional — tais como os de efetividade normativa
da Constitulçâo da República Federativa do Brasil, conceito contido no Art. 37, caput, principio da eficiência. Comparative Judicial Review and • l° Expostos, entre outros documentos, na coletânea organizada por Donald W. lackson e C. Neal Tate. Westport: Greenwood Public Policy, Press, 1992.
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e, das normas constitucionais, de supremacia dos direitos fundamentais que sobretudo, de universalidade do controle de constitucionalidade, estão oferecendo os parâmetros jurídicos necessários ao triunfo da racionalidade, da moralidade e da eficiência da ação políticoadministrativa, em sua luta milenar contra o arbítrio.
5.2 As conseqüentes mazelas do arbítrio: desperdício, malversação, corrupção, ineficiência e a omissão do gestor Desperdício, malversação, corrupção, ineficiência e omissão do Estado-administrador são mazelas da Administração para as quais os controles juspolíticos tradicionais da democracia representativa se mostram cada vez mais insuficientes. Para se ter uma idéia da importância e da magnitude desse desafio, que justifica plenamente o desenvolvimento de um controle judicial sobre as políticas públicas, um estudo empreendido pela OCDE — Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico — mostrou que 15 dos Estados membros da União Européia poderiam cortar comodamente 27% de seus gastos públicos, mantendo os mesmos serviços, ou seja, reduzindo no total a participação do setor público de 50% para 35% do produto interno bruto (PIB)." No extremo negativo, aponta o estudo a Suécia, indubitavelmente, um reputado modelo de welfare state, que, não obstante tal reconsideração, apresenta em sua notoriamente eficaz administração pública o mais alto grau de ineficiência na Europa, pois poderia cortar 43% de seus dispêndios sem que lhe fizessem falta.., desde que alcançasse o nível de eficiência atingido pelos Estados Unidos da América. " REATA. Allister. Europe's Public Sectors Yield Increasing Evidence of Waste, Gross London Knight Ridder/Tribune Business News, B Mar. inefficiency. Sunday Business, 2003.
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Os autores do estudo — o competente Vito Tanzi, com Antonio Alfonso e Ludger Schuknecht, estes dois últimos, técnicos do Banco Central Europeu — apontam, em contraste, o Japão, Luxemburgo, a Austrália e a Suíça como os países que apresentam os mais elevados indicadores de eficiência da administração pública. É intuitivo que se a ineficiência está presente em tal grau em países da Comunidade Européia, em continente que apresenta a maior concentração de países desenvolvidos, considere-se então a magnitude e a gravidade desse problema nas nações em desenvolvimento, como é o caso da América Latina e, particularmente, o do Brasil. Com efeito, com relação ao Brasil, os dados mais recentes sobre desperdíciol2 são ainda mais estarrecedores, pois dão conta de que "corrupção e ineficiência administrativa consomem um terço da arrecadação", ou seja: perde-se a astronômica importância de 234 bilhões de reais por ano, o equivalente a 123 bilhões de dólares norte-americanos, um desvio, em números relativos, de 32% da arrecadação de tributos no País. Para se ter uma idéia do que representa esta fantástica cifra de desperdício, ela seria suficiente para cobrir o déficit, sempre crescente, da previdência social, por quase seis anos seguidos; construir 13 milhões de moradias populares ao custo unitário de R$17.000,00; abrir 19,5 milhões de novas salas de aula, ao custo em média de R$12.000,00 cada uma; ampliar para todas as cidades do País o sistema de água canalizada e esgoto tratado, obra estimada em 220 bilhões de reais pela Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais, ou restaurar toda u Publicados em O Globo, Caderno de Economia, p. 29, da edição de quarta-feira, 4 out. 2006, que divulga o estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário —1BPT.
malha rodoviária estadual e federal, de 156 mil quilômetros, e mantê-la por 70 anos consecutivos, segundo os cálculos da Associação Brasileira de Infra-estrutura e Indústrias de Base. Ainda recentemente, um levantamento inédito feito pelo Tribunal de Contas da União" revelou dados ainda mais estarrecedores sobre o descaso com os dinheiros públicos no Brasil: dá-nos conta da paralisação inexplicável e indesculpável de 400 obras pela Administração Federal — paralisadas há um ano ou simplesmente abandonadas — representando um total de 3,5 bilhões de reais do orçamento, dos quais já foi gasto 1,9 bilhão. É nesse quadro que assoma, terrível e acabrunhante, a constatação da inanidade dos instrumentos jurídicos tradicionais para lograr reduzir a níveis admissíveis esse astronômico desperdício dos preciosos recursos aportados pela sociedade, que, se fossem eficientemente empregados, poderiam superar tanta carência e marginalidade, cumprindo a tarefa constitucional que se espera de um Estado-solidário. Trata-se, portanto, repondo ao tema em outros termos, de realizar efetivamente os valores constitucionais, sem desvio e sem dissimulação, nem pelo emprego desabusado da charlatanice de legisladores — pelo uso imoderado de leis — mais preocupados com os efeitos mididticos de seus projetos do que com os efeitos jurídicos das normas legais que propõem e votam, conforme tem denunciado veementemente Tomás-Ramón Fernández, nem, muito menos, pela difundida prática viciosa e nefanda da demagogia de administradores inescrupulosos, quase sempre na exploração vil da ignorância e da miséria de seus eleitores:4
"Dados publicados na Edição de O Globo de quinta-feira, dia 21 jun. 2007, na primeira página e desenvolvimento da reportagem na página 11.
14 A referência é à sua exposição no Congresso Internacional de Direito Administrativo, referido na nota 7, supra.
5.3 Ascensão da cidadania ativa: demandas de participação, de parceria e de diversificação dos controles O aperfeiçoamento do controle judicial das políticas públicas, preconizado agora por inúmeros juristas no exterior" e no Brasil,'6 não deve ser entendido como a substituição do político e do administrador pelo juiz, mas, precisamente, no reconhecimento de que cabe a este zelar pelo Direito e não apenas pela lei, como se preferiu enfática e exemplarmente declarar na Constituição espanhola em seu art 103.1: a submissão da Administração à Lei e ao Direito. Assim, como o Direito não tolera o arbítrio, tampouco há de aceitar as suas nefastas conseqüências, como as mazelas referidas do desperdício, da malversação, da corrupção, da ineficiência e da omissão do Estado administrador. Uma última mudança de paradigmas a recordar, toca ao modo de administrar os interesses públicos, consistindo na distinção, cada vez mais nítida, entre as fases complexas de
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Pode-se mencionar, exemplificativamente, a bibliografia de cem autores de todo o organizada mundo oferecida na obra Comparativa Judicial Review and Public Policy, por Donald W. Jackson e C. Neal Tate (Westport: Greenwood Press, 1992), às quais se acresce, mais recentemente, outras nove consistentes relações bibliográficas organizada por internacionais encontradas na obra Análisis de Políticas Públicas, Margarida Rérez Sánchez (Granada: Universidad de Granada, 2005). Pode-se mencionar, também exemplificativamente, como pioneiros: o articulista Rodolfo de Camargo Mancuso (A ação civil pública como instrumento de controle judicial das chamadas pollticas públicas. In: MILARÉ, Edis (Coord.). Ação Civil Pública - Lei 7.347/1985- 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001), e os monografistas São Paulo: Saraiva, Maria Paula Dallari Bucci (Direito administrativo e políticas públicas. políticas públicas como foco de interesse para o Direito 2002) — que prenunciava as (Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Público (p. 241) e Eduardo Appio Curitiba: Juruá, 2005)— obra com substanciosos aportes doutrinários ao tema. Como articulistas mais recentes, demonstrando o crescente interesse dos jovens juristas brasileiros pelo tema: Américo Bedê Freire 1r. (2005) Flavio Dino de Castro Costa (2005), Marcos Juruena Villela Souto (2006), Eduardo Casar Marques (2006), Claudio Gonçalves Couto e Rogério Bastos Arantes (2006), Ivani Figueiredo (2006), Ana Paula de Barcellos (2006), Alceu Maurício Jr. (2007), Sergio Cruz Arenhart (2007) e Vanice Lírio do Valia (2007),
POLITICAS PLMUCAS: POSSIBILIDADES E LIMITES
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CRISTIANA FORTINI, JÚLIO CÉSAR DOS SANTOS ESTEVES. MARIA TEREZA FONSECA DIAS (Org.)
da política pública, admitindo, em uma formulação e de execução e outra, por instrumentos próprios, a participação de entes da sociedade, caracterizando-se a abertura de um fértil ciclo de administração pública consensual, em que parcerias e toda sorte de relações de cooperação e de colaboração facilitarão imensamente, pelo menos, o controle da execução, quando não o da própria formulação das políticas em marcha. Por derradeiro, essa aproximação entre os complexos de sistemas públicos e privados, de Estados e de sociedades plurais e fragmentados, tão bem prenunciada por Massimo Severo Giannini, vem facilitar a desejável multiplicação de controles, externos e internos, públicos e privados, de fiscalização e de correção, de toda sorte e natureza, com imenso proveito para a sociedade, sem que se venha a suscitar qualquer preocupação com uma eventual duplicação, superposição ou superfetação, pois é mais conveniente que abundem do que faltem, ainda porque, a cláusula geral de acesso ao Judiciário será sempre a solução final para os conflitos. 5.4 Uma nota final sobre a crescente preocupação dos juristas com o controle das políticas públicas A literatura é incipiente, mas já impressiona pelo dinamismo de sua expansão, impulsionada não apenas pelo compreensível anseio de restringir ao necessário a discricianariedade políticoadministrativa, como de evitar ao máximo os arbítrios cometidos a pretexto de exercê-la. Mais recentemente, já em 2006, as políticas públicas foram assunto recorrente do Congresso Internacional de Direito Administrativo, promovido por sua Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, com a presença de expositores da Argentina, da Espanha, da França, da Itália e nacionais, ainda que não tenha sido o seu tema central.
Na ocasião, entre os palestrantes brasileiros, mencionaramnas Vanice Lírio do Valle, ao tratar da flexibilização do conceito de competência à luz da solidariedade; Odete Medauar, ao referir-se como a relação entre Estado e Sociedade interfere na sua formulação e ao fazer uma justa crítica ao sentido distorcido que se tem empregado a expressão entre nós, na linguagem menos rigorosa da comunicação social; Carlos Ari Sundfeld, ao mencionar a dificuldade de submeter as políticas públicas no tempo; Ricardo Lobo Torres, apontando concretamente, no gerenciamento do Fuste, no Brasil, o exemplo gritante de uma política pública escancaradamente descumprida, e Marcos Juruena Villela Souto, ao profligar as políticas públicas demagógicas e falsas, pois, afinal, não se vinculam a nenhum valor constitucional e que, por isso, não são nem políticas públicas nem, muito menos, constitucionalmente eficientes.' 7 É previsível que este interesse só venha a aumentar, aqui e alhures, notadamente estimulado pelo sofrível desempenho que vem apresentando a administração do setor público, mesmo em países desenvolvidos. Deve-se saudar essa tendência sadia e renovadora do Direito Administrativo, cada vez mais "o direito público interno por excelência", recordando tersa expressão de García de Enterría, e uma dinâmica ciência posta a serviço da afirmação e do aperfeiçoamento da cidadania. Teresópolis, inverno de 2007.
'' Recolhido da exposição dos juristas mencionados, em suas respectivas intervenções, no I Congresso Internacional de Direito Administrativo, promovido pela Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, proferidas entre 3 e 5 de outubro de 2006, Sub censura.
Referências APPIO, Eduardo. Controle judicial daspolíticaspública.s no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.
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BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. GARCIA DE ENTEARIA, Eduardo. La lucha contra las in unidades dei poder Madrid: Thomson: Civitas, 1974. GARCIA DE ENTEARIA, Eduardo. La lucha contra las inmunidades dei poder. 2. ed. Madrid: Thomson: Civitas, 1979. GARCIA DE ENTEARIA, Eduardo. La lucha contra las inmunidades dei poder. r . 3. ed. Madrid: Thomson: Civitas, 1983. GARCIA DE ENTEARIA., Eduardo. La Constitución como norma y el tribunal constitucional. Madri: Civitas, 1991. GARCIA DE ENTEARIA, Eduardo. Las 73-ansformaciones de la Justicia Administrativa. Madri: Thomson: Civitas, 2007. HEATH, Mister. Europe's Public Sectors Yield Increasing Evidence of Waste, Gross Inefficiency. Sunday Business, London Knight Ridder/ Tribune Business News, 8 Mar. 2003. JACKSON, Donald W; TATE, C. NEAL (Org.). Comparative Judicial Review and Public Policy. Westport: Greenwood Press, 1992. MANCUSO, Rodolfo de Camargo A ação civil pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis (Coord.). Ação Civil Pública — Lei 7.347/1985: 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. O GLOBO. Caderno de Economia, p. 29, da edição de quarta-feira, 4 out. 2006, que divulga o estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário — IBPT. O GLOBO. Edição de quinta-feira, dia 21 jun. 2007, na primeira página, com desenvolvimento da reportagem na página 11.
Informação bibliográfica deste capitulo, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): MOREIRA NETO, Dlog o de Figueiredo. Apontamentos sobre o controle judicial de políticas públicas. In: FORTINI, Cristiana; ESTEVES, Júlio César dos Santos; DIAS, Maria possibilidades e Tereza Fonseca (Org,). Politica públicas: limites. Belo Horizonte: Fórum, 2008. a. 49.67. ISBN 9788S-7700.155-2.
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THIAGO LIMA BREUS
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foL. fim da satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais, assim como do desenvolvimento."' Com vistas a examinar as questões sumariadas relacionadas às políticas públicas, dá-se início a esta terceira parte do trabalho com a análise do desenvolvimento da atuação do Estado por meio das políticas públicas, de modo que se busca confirmar, nesta parte do estudo — o que já foi mencionado na Parte 1—, que a noção clássica do Estado de Direito passa a incorporar uni elemento pertinente à cogente e impostergável.promoção social, transmudando-se para o Estado Social de Direito e sua denominação contemporânea, Estado Constitucional, Para atingir esse escopo, uma multiplicidade de direitos foi incorporada e assegurada na Constituição, de modo que, para que eles sejam devidamente protegidos e promovidos pelo Estado, há de se ter uma teoria constitucionalmente adequada.'" sobre as políticas públicas, conforme se intentará demonstrar na seqüência do trabalho.
d/ Segundo Gilberto Bercovici, "é necessária urna politica deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento económico como o social, que, apesar de Interdependentes, não há um sem o outro, O desenvolvimento só pode ocorrer com a transformação das estruturas sociais, o que faz com que o Estado desenvolvImentista deva ser um Estado mais capacitado e estruturado do que o Estado Social tradicional". In: 8ERCOVICI. Constituiçáo económica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 67. un Uma teoria constitucionalmente adequada sobre as políticas públicas não se bastaria como afirmou Clemerson Medir, Clève, em um discurso denúncia, nem se bastaria também no "discurso antropologicamente simpático ou amigo (amigo das classes populares, amigo dos pobres, amigo do humanismo, amigo das esquerdas, etc.), como diz Canotilho, Mais do que Isso, importa, hoje, para o jurista participante, sujar as mãos com a lama impregnante da prática Jurídica, oferecendo, no campo da dogmática, novas soluções, novas fórmulas, novas interpretações, novas construções conceituais. Este é o grande desafio contemporaneo. Cabe Invadirum espaço tomado pelas forças conservadoras, lutando ombro a ombro, no território onde elas Imperam, exatamente para, com a construção de uma nova dogmática, alijá-las de suas posições confortavelmente desfrutadas". In: CLÈVE, Clèmerson Medir'. A teoria constitucional e o direito alternativo: para uma dogmática constitucional emancipatória. In: UMA vida dedicada ao direito: homenagem a Carlos Henrique de Carvalho. São Paulo: R. dos Tribunais, 1995. p. 37-38.
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Capítulo 6
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As políticas públicas como instrumento de ação do Estado contemporâneo e objeto do Direito Administrativo
Es neeesario advertir, adentas, que Ma es una visión 671 construcción, en la cuca apenas se contienza a abrir cantina y queda muelio por avalizar, Carlos Salazar Vargas
Sumário: 6.1 Entre a estrutura e a conjuntura: o desenvolvimento da idéia de "política políticas públicas pública" corno o mecanismo de ação do Estado brasileiro - 6.2 As como "categoria" juridica e objeto do Direito Administrativo contemporâneo - 6.3 O por meio dos princípios: a principiologia constitucional controle das políticas públicas aplicável às formas de atuação
O exame das políticos públicas requer análise sobre o atual estágio de desenvolvimento das formas de atuação do Estado para a realização dos Direitos Fundamentais sociais, econômicos e culturais. Com vistas a isso é que se fará, doravante, a análise desta modalidade de ação estatal. O escopo essencial deste capitulo é a promoção de um exame acerca da concretização das políticas pública?" sociais. Trata-se, logo, de uma investigação acerca da intensidade, da In De acordo com Cristiana Deranl, "as poilticas são chamadas de públicas, quando estas ações são comandadas pelos agentes estatais e destinadas a alterar as relações sociais existentes. São politicas publicas porque são manifestações das relações de forças sociais reltelidas nas instituições estatais e atuam sobre campos institucionais diversos, para produzir efeitos modificadores na vida social. São pollticas púlicas porque empreendidas pelos agentes públicos competentes, destinadas a alterar as ações do Estado as relações sociais estabelecidas". In: DERANI. Privatizaçào e serviços públicos: na produção econômica, p. 239.
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abrangência, das formas e dos valores que subjazem à concretização das metas e dos objetivos assentados pelas constituições, em particular pela Constituição Federal de 1988, para o Estado brasileiro contemporâneo.'" A narrativa histórica demonstra que o poder jurídicopolítico estatal, a partir de sua matriz moderna, teve por desígnio , a realização dos mais diversos fins: desde a busca pela repressão dos intentos de emancipação popular e a imposição de valores de uma determinada posição ou classe social, passando pela disseminação de uma ideologia da aceitação e pela salvaguarda da liberdade individual, chegando à realização de tarefas designadas como de interesse comum, público, e à salvaguarda dos Direitos Fundamentais, de forma que, para cada uma dessas finalidades estatais, houve o delineamento de um modelo de Estado distinto ao menos quanto aos valores que lhe informavam."' Como mencionado na primeira parte, o modelo atual, em relação à sua estrutura jurídica, concreta e axiológica, é designado como Estado Constitucional, uma vez que sua Constituição — ao contrário das Cartas Magnas outorgadas ao tempo do Estado de Direito, cujo objetivo central era a limitação do Poder Público — estabeleceu metas, diretrizes ou princípios vinculados abertamente a valores e a opções políticas gerais por meio das suas espécies jurídico-normativas, 472 com o escopo, para citar um exemplo, da redução das desigualdades sociais, por intermédio do estabelecimento de políticas específicas, como a prestação de serviços de educação e saúde, com vistas à superação de um grave quadro social, no qual a maioria da " Cf. FRISCHEISEN.Politicas públicas: a responsabilidade da administrador e do Ministério Público, p.81 et seq. "' MEDAUAR. O direito administrativo em evolução, p. 79. FERRAJOIL Pasado y futuro dei Estado de Derecho. In: CARBONELL, Miguel (Org.) NeoConsiltucionalismo(s), p. 14. 4
POLITICAS PÚBLICAS NO ESTADO CONSTITUCIONAL
THIAGO UMA BREUS
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população não consegue exercer, em plenitude, sua dignidade humanaf's A compreensão da passagem do modelo liberal, protecionista, para o constitucional, ainda protecionista,'" mas igualmente prestador, requer o exame da forma de ação utilizada por cada um desses paradigmas do Estado brasileiro, como se fará no tópico subseqüente. 6.1 Entre a estrutura e a conjuntura: o desenvolvimento da idéia de "política pública" como o mecanismo de ação do Estado brasileiro Até o início do século XX prevaleciam absolutamente as idéias em torno de um Estado mínimo que assegurasse apenas a ordem, por meio de aparatos de segurança pública e de garantia da propriedade, que não interferiria no mercado, o qual era considerando autónomo e agente de regulação natural das relações sociais.'" Por sua vez, o modo como se estruturou o Estado liberal é mais voltado à limitação do poder para a garantia das liberdades individuais, em sentido omissivo, do que à ação do Estado, em sentido comissivo e construtivo. Os poderes públicos não foram conformados ao caráter prestacional e de gestão assumido pela administração contemporânea.476 " De acordo com Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva, "a mudança do modelo de Estado Implicou, sobretudo, transformações ao nivel da função administrativa. Já que, num Estado que se tornou social, a Administração, até então, apenas considerada como agressiva dos direitos dos particulares vai ser entendida como o principal Instrumento de realização das novas funções e de satisfação das novas necessidades que são, agora, atribuídas ao Estado. Assim, a Administração passa de agressiva a prestadora ou constitutiva, e essa sua nova função torna-se a principal caracterlstica do Estado social que é, necessariamente, um 'Estado de Administraçao"*. PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996. p. 74. " Protecionismo, no sentido aqui referido, jurídico e não econômico, quer significar a garantia dos 4 direitos Individuais, ou de primeira dimensão. E as constituições tinham a mesma sorte no sentido de que exigia-se do Estado um "não fazer" de 0) tal forma que nada interferisse nas relações entre os indivIduos. In: FRISCHEISEN. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e do Ministério Público, p. 29. RERCOVICI. Constituição econâniica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
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1988, p. 58 et seq.
OrtLl/li
Nesse quadro, a posição social de cada um dos cidadãos era derivada pelo grau de sua inserção no mercado. Os cidadãos ausentes do mercado eram excluídos, tanta da produção quanto do uso dos bens e serviços indispensáveis à própria sobrevivência. No transcurso do século XX, entretanto, inúmeras crises desse sistema fundado na dicotomia Estado, de um lado, e mercado, de outro, surgiram. Desde a crise econômica de 1929, passando pela segunda grande guerra, os momentos de anormalidade fizeram com que as relações do mercado como Estado se alterassem profundamente. De maneira gradativa, passou-se a admitir que o mercado dependeria profunda e diretamente da intervenção estatal.'" Da mão invisível do mercado teorizada por Adam Srnith, que regularia todas as situações, passa-se a verificar a atuação de uma mão visível,'" estatal, a qual passa a ser o principal agente de mediação e de influência dentre os atores da sociedade civil. Para que o Estado possa influenciar a atuação"' da sociedade é elaborada urna série de mecanismos jurídicos para que sua atuação ocorra a contento. Nesse contexto, o instrumento utilizado para a promoção dessa participação perante as relações sociais são as políticas públicas."' civil,
Por conseguinte, como agente central de implementação das políticaspúblicas, o Estado torna-se uma arena de disputa pelo acesso "1 GRAU, O Estado, a liberdade e o direito administrativo. Crítica Jurídica — Revista Latinoamericana de Política, filosofia Derecho, p. 167 et seq. 01 Cf MARQUES; MOREIRA. A mão visível: mercado e regulação. '79 Embora as expressões atuação e intervenção possam ser, à primeira vista, cambiantes entre si, adverte Eros Roberto Grau que atuação tem uma conotação mais ampla e que a intervenção dirigese à atuação em área de outrem, de onde se verifica que o Estado não pratica intervenção quando presta serviço público ou regula a prestação de serviço público". In: GRAU. A ordem económica na Constituiçáo de 1988, e. 84 et seq. 'es Em assim sendo "a realização dos direitos sociais levará ao fim da posição tradicional de antagonismo entre Estado e Sociedade (...) deduz-se, pois (...) a substituição do modelo positivo e apenas juridico das constituições liberais pelas cartas que já afirmavam os direitos socais e firmavam as bases do Estado Social de Direito, cuja representante primeira foi a Constituição Mexicana de 1917, oriunda de uma revolução, e a Constituição de Welmar da República Alemã, datada de 1919". In: FRISCHEISEN. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e do Ministério Público, p. 33.
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à riqueza social, haja vista que as políticas públicas, inequivocamente, envolvem conflitos entre as camadas sociais e, de modo invariável, implicam escolhas"' que resultam no atendimento de um interesse em detrimento de muitos outros. Nas últimas décadas do século XX, na maioria dos países, houve um forte ajuste econômico, principalmente nos países em desenvolvimento, o que agravou a problemática social. Ao mesmo tempo em que se deparava com um aumento contínuo da longevidade, houve o surgimento do desemprego setorial, com a inexistência de postos de trabalho suficientes para todas as pessoas em idade economicamente ativa, o que, por conseqüência, ocasionou uma precarização das relações trabalhistas por meio da desregulamentação de determinados direitos,'" No Brasil, a crise decorrente do esgotamento do "milagre econômico", entre o final da década de '70 e o início da década de 80, permitiu o surgimento de uma conjuntura favorável ao movimento da sociedade civil em direção à redemocratização e, a partir disso, a um rearranjo da sociedade civil e das instituições públicas. De onde resultou a instalação da Assembléia Nacional Constituinte com a tentativa do estabelecimento de uma nova ordem social, por meio da promulgação de uma nova Constituição, programática e democrática, que garantisse que os direitos sociais,'" de algum modo, pudessem ser inseridos e 411 Diante da escassez de recursos, alguns direitos serão suprimidos em detrimento de outros, por mais imprescIndiveis. As escolhas, desta forma, significam o conteúdo ético das escolhas politica', "escolhas realmente trágicas". Por conseguinte essas escolhas significarão uma opção trágica no sentido de que, em certa medida, algum dos direitos não será atendido. In: GALDINO. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores, p. 159. sr Surge, portanto, uma critica aos direitos formalmente assegurados pela Constituição, Neste tocante vale lembrar as anotações de Luiza Fonseca Frischeisen: pois "de nada adianta ter direitos universalmente declarados, se os mesmos não são passiveis de exercício na comunidade na qual o indivíduo vive, ou seja, se sua cidadania e suas características próprias não são reconhecidas (,..) esse é precisamente um dos dilemas do direito Constitucional contempodneo: como passar da esfera abstrata de princípios à concretude das normas e exercido dos direitos estatuldos na Constituição." In: FRISCHEISEN. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e do Ministério Público, p. 33. recursos, 4" Em razão da natureza dos direitos sociais, reclamando do poder politica uma demanda de a escolha política a qual sofre pressões ideológicas sob o fundamento de uma aplicabilidade plena, busca o ideal de uma sociedade livre, justa e solidaria, meta este estipulada pelo texto Constitucional. In: ALMEIDA. A fundamenta/idade dos direitos sociais.
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traduzidos, também, como deveres do Estado, por meio da
as restrições políticas e econômicas postas à sua imediata
realização de políticas públicas. A década de oitenta do século XX ficou mareada, no Brasil, como uma década reformista, em que se visava a uma grande transformação para o país, com a inserção na Constituição de metas e objetivos que poderiam ser cumpridos, tais como a redução das desigualdades regionais, a erradicação da pobreza, o crescimento sustentada, a ampliação do emprego, uma melhor distribuição de renda, a universalização do acesso ao sistema de seguridade social, que foi inserido na Constituição segundo o tripé previdência, saúde e assistência social; a reforma agrária, dentre outros.
implementação.'''' Com vistas à indicação de alguns aportes que possam indicar as possibilidades de efetivação desses direitos indicados e assegurados pela Carta Constitucional, é que se buscará, nos tópicos a seguir, delimitar o sentido e o alcance contemporâneo da noção de políticas públicas sob o arcabouço teórico do Direito
Além disso, a Carta Constitucional de 1988 promoveu uma descentralização. do Poder Público e a promoção de regulação social de políticas, numa interação entre a sociedade civil e o Poder Público. Entretanto, esse otimismo brasileiro, tardio, já se encontrava na contramão dos processos de reestruturação social e econômica dos países centrais, que sob a bandeira neoliberal, buscavam conter gastos e minimizar a cobertura no atendimento das necessidades sociais, retirando competências do Estado e as passando novamente ao mercado. Na década de 1990, no entanto, verificou-se a luta de ' determinados setores da sociedade civil pela regulamentação e pelo atendimento aos Direitos Fundamentais previstos na Constituição. Por essa razão, foram regulamentadas as áreas de proteção à criança e ao adolescente, da seguridade social, da saúde, da assistência social, da educação, da previdência social, do consumidor, etc. A virada para o século XXI, portanto, ficou marcada no Brasil pelo conflito entre a expectativa da implementação das políticas públicas que concretizassem esses direitos conquistados, assegurados pela Constituição, e
Administrativo. 6.2 As políticas públicas como "categoria" jurídica e objeto do Direito Administrativo contemporâneo As políticas públicas se tornaram uma categoria de interesse para o direito há pouco tempo, havendo pouca literatura jurídica acerca do tema, do seu conceito, da sua situação entre os diversos ramos jurídicos, assim como do regime jurídico a que estão submetidas a sua criação e realização,'" E isso porque as necessidades sociais, ao tempo do modelo de Estado antecedente, eram subsumidas à noção de interesse público. Atualmente, com o aumento do pluralismo social, "necessidades sociais nunca antes sentidas passaram a reclamar ações do Poder Público, muitas de natureza prestacional, atingindo áreas da vida pessoal e social que estavam fora do âmbito da política",4" por isso, mostra-se premente a análise jurídica das
políticas públicas , '"Com efeito, Manha Lourido dos Santos aponta como três os fatores para estudar as politica! públicas: "estão ligadas ao resguardo dos direitos sociais e políticos, pois estes demandam do Estado prestações positivas e significam o alargamento do leque de direito fundamentais; o desenvolvimento de certos setores e atividades do mercado significou a geração de novas demandas, como os direitos dos consumidores, que transitam entre as atividades económicas e a regulação estatal; ao planejamento inerente á noção de políticas públicas tornou-se necessário para garantir maior eficiência da gestão publica e da própria tutela legal. Importa elevar o nivel de racionalidade das decisões, evitando processos económicos, sociais e políticos de cunhas cumulativas e não reversíveis, em direções Munia. Interpretação constitucional no controle judicial das políticas Indesejodas". In: SANTOS, públicas. p. 25. p. 241. "' BUCCI. Direito administrativo e pollticas públicas, p. 54. "4 SOUZA JÚNIOR O tribunal consinurional corno puder,
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do governo, para a realização de objetivos determinados tium espaço de tempo certo'?"
a duração de um governo, urna vez que os objetivos da Constituição não podem ser sacrificados pela alternância do poder.
A política pública, pois, transcende os instrumentos normaLIVOS do plano ou cio programa. Há um paralelo entre o processo de formulação da política e a atividade de planejamento."' mas as escolhas das diretrizes da política pública e os objetos de determinado programa não são simples princípios de ação, pois que a formulação da política consiste num procedimento de coordenação entre os programas e atos complexos de governo."'
A efetividade de urna política pública, de qualquer natureza, está relacionada com a qualidade do processo administrativo que precede a sua realização e que a implementa. As informações sobre a realidade a transformar, a capacidade técnica e a vinculação profissional dos servidores públicos, a disciplina jurídica dos serviços públicos determinarão em concreto os resultados da política pública como instrumento de desenvolvimento.
As linhas gerais daspolíticaspúblicas, corno enunciado durante todo o percurso do trabalho, devem estar na Constituição. O Poder Legislativo pode organizá-las na forma das leis, para que Poder Executivo possa realizá-las de modo mais adequado, o que não significa necessariamente um aumento da sua competência.
Eis, pois, as razões pelas quais deve o Direito Administrativo, ao lado do exame dos demais mecanismos promotores dos escopos do Estado Constitucional, como os serviços públicos, voltar a estudá-la.
Isso porque este poder não se limita à administração do presente, mas ao planejamento do futuro," por meio da realização de políticas públicas de longo prazo, com vistas ao desenvolvimento econômico e social, Eis por que é adequado falar que as políticas públicas compõem-se de projetos de longo prazo e a sua realização ultrapassa "e BUCCI. Direito administrativa e política: publicas, p. 140. 'o' Em relação ao planejamento, tem-se como ImprescIndivel sua utilização, uma VEIE que é o melo capaz de utilizar de forma adequada e pertinente os recursos disponivels, selam eles materiais, humanos ou ainda financeiros, possibilitando, dessa forma, uma racionallteçao no modo de agir mais eficaz e eficiente, visando atingir os objetivos propostos, Cm se tratando do Poder Público, como os recusem são escassos se faz ainda mais Imperiosa a presença do deneismento com o Intuito de prestigio de melhores serviços, otimizando os-recursos, comportandogse, desta forma enquanto "proposta técnica", que faz com que haja uma organização no que se refere aos serviços públicos, avaliando, também, os processos de redução ou elevação das desigualdades sociais, buscando igualdade de oportunidades, dentre outros. In: MILESKI. O controle da gestão pública, p. 5Z. "0, Neste aspecto. os planejamentos, pianos e programas serão os instrumentos pelos quais serão instrumentalizadas ás politicas públicas, na qual, para tal, expressar-se-ão em leis que permitam institucionalizar suas diretrizes e metas. Contudo, a termo politica pública ê mais abrangente que o de plano ou de programa (os quais apenas escolhem meios de realização das metas de governo), compreendendo, para tanto, um ensejo de opção entre os objetivos (havendo, portanto, uma hierarquização) a qual depende dos agentes através de uma escolha de prioridades. In: SANTOS, Mareia. Interpretação constitucional no controle judicial das políticas públicas. p. 84. )", Segundo Gilberto Bercovici, "um Estado que abre mão de planejar o futuro, desta forma, abre mio, também, de uma das caracterlsticas fundamentais de sua própria estataild:ade". In: BERCOVICI. Constituição económica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 68.
Com o objetivo de apresentar alguns elementos para a estruturação das políticas públicas no âmbito do edifício do Direito Administrativo brasileiro contemporâneo, é que se fará, adiante, estudo da principiologia que informa este ramo jurídico e que pode ser aplicado às políticas públicas, com vistas a que os escopos estatais por elas veiculados possam ser efetivados. 6.3 O controle das políticas públicas por meio dos princípios: a principiologia constitucional aplicável às formas de atuação O presente tópico volta-se ao exame dos princípios, tomados na forma de normas jurídicas que apresentam pautas sintetizadoras de noções ou valores basilares do sistema jurídico, essenciais à disciplina das relações em que o Estado integram e que, portanto, " 0e acordo com Paulo Ricardo Schier, a Constituição tem por finalidade definir e proteger um determinado núcleo de Direitos Fundamentais, além de racionalizar, fundamentar, legitimar, limitar, etc, o exercido do poder (em vistas da proteção daquele referido núcleo de Direitos Fundamentais), Neste sentido há de se compreender que diversas são as formas de alcançar tal mister e, de acordo com a variação de cada modelo adotado, será possível também encontrar as especificidades dê cada comunidade. É, assim, a partir das opções fundamentais que se faz em determinado momento histórico, que se estruturam as constituições. Logo, ao lado da definição de um quadro de Direitos
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podem ter incidência sobre as políticas públicas, haja vista que estas são tomadas como um dos seus mecanismos cardeais, na atualidade. Para tanto, conveniente se mostra dar destaque à dimensão conferida ao processo de incorporação dos princípios ao ordenamento jurídico. Demonstrou-se, no caminhar do trabalho, que o constitucionalismo atual possui grande preocupação com os valores que integram o sistema. A necessidade de superação do positivismo normativista conduziu a teoria jurídica a uma reaproximação com a ética e a moral, que haviam sido, no auge do positivismo, apartadas. As constituições provenientes do período posterior à Segunda Guerra Mundial promoveram essa reabilitação da ética e da moral com o Direito. Ela se deu, essencialmente, pela inserção dos princípios entre as normas legais. Todavia, essa inserção dos valores no Direito não resultou em um retorno aojusnaturalismo, que buscava, sob critérios de justiça e moral, apresentar a razão última das normas jurídicas. Esse modelo de sistema jurídico, levado a efeito no último quarto de século, qualifica os princípios como um "critério imanente à ordem jurídica"" ou como um "núcleo de condensação de valores"." Desse modo, não são os princípios mera representação de valores transcendentes situados fora do ordenamento Fundamentais, as constituições, materialmente, também se formam a partir de algumas opções fundamentais: opções por principias estruturantes do Estado, do Direito e da comunidade. Neste sentido, as opções explicitas ou implicitas por determinados princIplos fundamentais numa Constituição prestam-se a diversas finalidades. São os principias fundamentais que (i) nortearão os diversos sentidos e certas dimensões da extensão dos Direitos Fundamentais, (II) definirão as formas básicas de legitimação, fundamentação, racionalização e exercido do poder, (iii) explicitarão as opções fundamentais da comunidade, (1v) as opções jurídicas e estatais fundamentais, (/) os seus valores mais caros, a partir dos quais serão estruturados a sociedade, o Estado e Direito. Substanciam, por isso, os principias fundamental, verdadeira sintam-matriz do Direito. Expressam a "carteira de identidade" da sociedade, o "ser-em-comum" dentro da diversidade comunitária, o ponto de encontro que permitirá a função de unificação política, referida por Hesse, diante dos quadros sociais Cada Vez Mais plurais e complexos. In: SCHIER, Novos desafios da filtragem constitucional no momento do ~constitucionalismo. ,48,C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, p. 157. in BETTI, Emílio. Interpretazione de/is Legee e degliAtti Giurldici. Milão, 1949. p. 52. apud B001310, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Ed. UnB, 1991. p. 158. 10° CANOTILHO; MOREIRA. Fundamentos da Constituição, p. 49.
jurídico. Ao contrário disso, eles incorporam e representam valores eleitos por meio de processos históricos ou tão-só racionais que, a partir daí, precisam ser encontrados, de modo explícitb ou implícito, dentro do próprio ordenamento que compreende o sistema jurídico. A rigor, pode-se dizer que a teoria dos princípios propicia a inserção de um substrato ético-moral no Direito — característico do jusnaturalismo, sem o comprometimento da unidade sistemática deste — próprio do positivismo. Os princípios característicos desse novo modelo jurídico, do Estado Constitucional, contudo, não se identificam integralmente com aqueles princípios gerais do Direito, indicados no artigo 4°, da Lei de Introdução ao Código Civil, Esses "novos" princípios não se prestam apenas ao preenchimento de lacunas na lei, pois se constituem como efetivas normas jurídicas, ao lado das regras, como já explicitado na Parte I. Os princípios desempenham, desse modo, para além da função integrativa, as funções de fundamentação, interpretação e direção do ordenamento jurídico. Por isso é que os princípios representam, no atual estágio de desenvolvimento do ordenamento jurídico, "critérios ou diretrizes basilares do sistema jurídico, traduzindo-se em disposições hierarquicamente superiores do ponto de vista axiológico, em relação às normas e aos próprios valores, sendo linhas mestras de acordo com as quais se deverá guiar o intérprete quando se defrontar com antinomias jurídicas".507 Mas não apenas isso. O papel dos princípios como vetores axiológicos cresceu muito nos últimos anos. O Direito Administrativo, como disciplina jurídica voltada à regência das relações que o Estado integra, também não permaneceu imune a essa WI FREITAS: A interpretaçáo sistemática cio direito, p. 47.
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nova dimensão dos princípios jurídicos. Isso nau significa dizer qu e o "direito" da Administração Pública ate então desconhe-
cesse os princípios, ao contrário, sempre esteve governado por princípios gerais, como os princípios do interesse público e a perspectiva clássica do princípio da legalidade, decorrente de uma concepção liberal do Estado de Direito. A dimensão contemporânea trazida pelos principms do Estado Constitucional, porém, é outra. Relaciona-se com o fenómeno da constitucionalização da Administração Pública," que agrega ao Direito Administrativo preocupações materiais, relacionadas aos valores fundamentais estabelecidos pela Constituição e não apenas as preocupações de mera organização do aparato de Estado, como era a função dos princípios do modelo anterior Nessa linha, os princípios propiciam urna base mais ampla, bem corno uma progressiva legitimação para a Administração Pública na consecução dos seus fins, de modo que o seu estudo pode Facilitar o controle das suas ações e, por decorrência, das suas políticas. Na seqüência, portanto, far-se-á a análise de princípios constitucionais vetores da Administração Pública, que são plenamente aplicáveis às políticas públicas, propiciando o seu controle, na perspectiva da realização dos seus fins. O primeiro princípio constitucional de destaque aplicável à Administração Pública é o princípio da legalidade, que se encontra previsto no artigo 5', inciso 11, e artigo 84. inciso TV capta, da Constituição Federal, assim como no artigo 37, capta Ele c,em previsão legal na disciplina jurídica infraconstaucional, na Lei n° 4.71 7/6 5, que disciplina a ação popular, assim como na Lei n° 8.429/92, que regula a improbidade Administrativa, a Lei n°8565/93 que estabelece normas gerais sobre Licitações e Cl, SAPTISTA. Op. cit.. p. 82 et seq.
Contratos Administrativos, e na Lei n° 9.784/1999, que regula o processo Administrativo na esfera brasileira federal. Esse princípio, na forma como é conhecido, é coevo ao Estado de Direito, porquanto é fruto do Estado liberal, que visava à limitação do poder. A legalidade veio a estabelecer-se como a fonte do Direito que não se encontra mais em nenhuma instância transcendental à comunidade, senão nela própria, na sua vontade geral."' Em seu sentido contemporâneo, o que o principio da legalidade quer significar é que não se pode submeter a administração apenas à lei formal, mas sim a todo o ordenamento e seu poder normativo, que contempla a democracia, a soberania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, com vistas a construir uma sociedade melhor e mais justa, um Estado de Direito Material, isto é, um Estado Constitucional, pelo que passa a ser chamado também como princípio da juridicidade, ou seja, de submissão da Administração ao Direito:31° Como visto, a legalidade decorre do princípio do Estado de Direito, sendo fundamental para a formação do regime jurídico administrativo. É ela que impõe aos mandatários do poder popular "um quadro normativo que embargue os favoritismos, perseguições e desmandos".5" O princípio da legalidade que significa a subordinação da atividade administrativa à função legislativa possui duplo sentido: negativo e positivo. No negativo, significa que a atividade encontra limite formalmente insuperável na lei, tanto em relação à finalidade TI' (ITERO. Legalidade e Administração Pública, O sentido da vInculacio administrativa A Jurldlcidade, p. 45 et seg. COSTALDELLO. A Invalidada dos atos administrativos: uma construção teórica fronte ao principio da estrita legalidade e da boa-fé, p. 126. BANDEIRA DE MELLO, C. Curso de direito administrativo, p91.
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quanto aos meios e formas. No sentido positivo, significa que a lei pode vincular a atividade administrativa, indicando-lhe fins, meios e formas. No duplo sentido, tem-se que a legalidade impõe àAdministração o ônus de fazer somente aquilo que a lei consente, Enfim, o princípio da legalidade torna a atividade administrativa infralegal, No Brasil, o referido princípio possui natureza estrita, não havendo flexibilidade como em outros países nos quais o Executivo pode editar regulamentos com força de lei e não apenas destinados à execução da lei. Por isso que no Brasil se fala em obediência estrita à legalidade, ou seja, a administração deve observar integralmente o disposto pelo Poder Legislativo, cabendo ao Executivo apenas a expedição de atos normativos secundários, de natureza instrumental. Como ressaltado no capitulo primeiro, há uma profunda mudança no papel da legalidade para o papel do Estado Constitucional. Isso porque a grande maioria das leis insere-se hoje no 'quadro de políticas governamentais e tem por função não mais a declaração de direitos e deveres em situações jurídicas permanentes, mas a solução de questóes de conjuntura. E a tendência, ao que parece, é o alargamento da competência normativa do governo.'12 E como se dá a aplicação do principio da legalidade às políticas públicas? As políticas públicas, como instrumentos de ação do Estado para concretizar as suas finalidades, estão, por evidente, submetidas ao principio da legalidade, no sentido de que, tanto em relação aos meios quanto aos fins, a inobservância do princípio da legalidade pode gerar a invalidação da política pública, por meio da declaração de nulidade dos atos que lhe dão substrato.'" Cf. MAL. Controle judicial da regulamentação de políticas públicas. Ire SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO, 4. Constitucional. Revista da Academia Brasileira de Direito Constlfucional. "1 Cf, COMPARATO. Ensaio sabre o juizo de constituclonalldade de perime públicas, "3
Não se pode ciesOurar, outrossim, que, como os princípios constitucionais da Administração Pública explícitos: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência se aplicam a todas as atividades da Administração Pública, eles necessariamente funcionam como vetores axiológicos das políticas públicas, Como, porém, todos eles derivam, em última análise, do princípio da legalidade, pois este se apresenta como o substrato para os demais, positivados, optou.se no trabalho pelo exame deste princípio em particular, o que, todavia, não implica a ausência de aplicabilidade direta dos princípios referidos às políticas públicas e aos atos administrativos que lhes dão sátentabilidade.
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exercê-la em igualdade de condições"' e, tal isonomia substancial pressupõe o exercício de certos direitos precedentes, como o direito à saúde, à educação, necessários para que a deliberação coletiva possa se concretizar adequadamente, Eis por que, para o recorte teórico tracejado pelo presente trabalho, colocam-se, como fins do Estado Constitucional, a dignidade da pessoa humana, em sua dimensão normativa, ínsita ao sistema jurídico, e os Direitos Fundamentais dela decorrentes,'" consoante será examinado nos dois capítulos subseqüentes. O que não implica, de modo algum, a exclusão dos demais objetivos postos pela Constituição da República Federativa Brasileira. Ao contrário, entende-se que eles serão realizados, em maior ou menor intensidade, na medida em que os Direitos Fundamentais e os direitos sociais sejam efetivamente promovidos e a dignidade humana seja a todos os cidadãos plenamente assegurada.
In O °Imelda da democracia depende da. pronto* antecedente dos Direitos Fundamentais que permitem aos CIMA*, exercer cem plenitude o seu direito de particIpaedo democrática, Mas o prOMoçâo desses Direitos Fundementalépela.AdmInittrano Pública também exige que os atores
sociais participem da delibera*, para formular e exigir a execuçáo de politicas públicas 'adequadas à garantia do exercido destes direitos. Nessesentido, acerca de necessidade de rompimento com a perspectiva tradicional que concebe a Administraçáo Pública como atividade meramente institucional, sustenta Rogério Gesta Leal que "o conceito de democracia procedimental estruturais de Poder 'Político e de PartIcfpacio Política, baseados mUme implica outros conceitos sustentaçáo teórica dual,
relacionado, na() -apenas, com a formaçáo da vontade política institucionalizada na dicçáo parlam-entar, mas também cárrí uma nacdo de esfera pública revitalizada, que aioca a um conjunto orgânico de arenas politicas Informais, composta de velhos e emergentes atores/cidadaos, dialogicamente discursivas e democráticas, inovadoras competências soberanas de interlocuçâo, deliberaçâo, formulaçâo e execuçáo de políticas publicas sociais". In: LEAL, R, Estado, Administra* Pública e sociedade: novos paradigmas, p. 77. in Em regra, é possível considerar os Direitos Fundamentais tomo concretizações, em maior ou menor grau, do principio da dignidade da pessoa humana, podendo•se, inclusive sustentar que "esse principio éque acaba sendo assegurado mediante a proteção outorgada aos Direitos Fundamentais, e No estupor aquele. Cuida-se, no mínimo, de uma Influência reciproca e, portanto, de unia via cie duas maos". In: SAMLET. 4 eficácia dos direitos lundamentals, p. 408.409,
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Capítulo 4
A dignidade da pessoa humana como elemento fundante e estrutural do Estado Constitucional
Tudo o que pode ser comparado, pode ser trocado, tem um preço; o que não pode ser comparado, não pode ser trocado, não tem preço, mas dignidade: o homem, Immanuel Kant
sumário: 4,1 O percurso histórico da noção da dignidade humana • 4.2 Os alicerces filosóficos do principio-fundamento • 4.2,1 A Igualdade • 4,2.2 A Integridade psicoffsica -4.2.3 A liberdade Individual - 4.2.4 Asolldadedade social 4,3 A dignidade da pessoa humana como tarefa (função) e limite dos poderes públicos no Estado Constitucional
Este capítulo tem por escopo o estudo da dignidade da pessoa pumana, elevado a fundamento da República Federativa Brasileira pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1°, inciso III, Para tanto, será concretizada breve incursão histórica acerca do tema, seguida da exposição dos seus alicerces. Além disso, buscar-se-á, ainda, a realização de uma espécie de decomposição do seu núcleo, visando a uma regência da sua aplicabilidade, haja vista a sua extensão e amplitude, nos princípios que se encontram implícitos no juízo da dignidade humana: igualdade, integridade psicofísica, liberdade e solidariedade. Nesta linha, ainda, relacionando a dignidade humana como valor fim de qualquer política pública, será efetuado exame do princípio em foco, como limite e tarefa da atuação do Estado.
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4.1 O percurso histórico da noção da dignidade humana Embora o surgimento de questões relacionadas à dignidade do homem, entendida como valor intrínseco da pessoa humana, tenha raízes longínquas no pensamento clássico e na doutrina cristã, pode-se afirmar, consoante lição de Ingo Wolfgang Sarlet, que "no pensamento filosófico e político da antigüidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana condizia, em regra, com aposição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade",'" e que somente após o fim da segunda grande guerra a concepção contemporânea da intangibilidade da dignidade da pessoa humana veio a consolidar-se. No período medieval, profundamente influenciado pelos pensamentos eclesiástico e estóico, destaca-se Santo Tomás de Aquino, que trouxe a lume o termo "dignita,s humana", Expressão essa que veio a ser, inclusive, cunhada no período renascentista e na idade moderna. Foi com o pensamento cristão, no entanto, que a idéia de uma dignidade pessoal, atribuída a cada indivíduo, foi concebida. Neste diapasão, pode-se afirmar que Tomás de Aquino compreende a dignidade sob dois prismas diferentes: "a dignidade é inerente ao homem, como espécie; e ela existe in actu só no homem como indivíduo, passando desta forma o homem deve agora não mais olhar apenas em direção a Deus, mas voltar-se para si mesmo, tomar consciência de sua dignidade e agir de modo compatível. Mais do que isso, para Tomás de Aquino, a natureza humana consiste no exercício da razão e é através desta que se espera sua submissão às leis naturais, emanadas diretamente da autoridade divina"."' SARLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 30. "6 BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato aelológico e conteúdo normativo, In: SARLET 'noa Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 110,
POUTICAS PÚBLICAS NO ESTADO CONSTITUCIONAL
Nos séculos XVII e XVIII, período fértil no pensamento jusnaturalista, Ingo Wolfgang Sarlet salienta que a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade."' Destacaram-se, nesse período, Samuel Pufendorf, para quem "mesmo o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana, considerada esta como a liberdade cio ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção?" e Immanuel Kant, um dos grandes expoentes do desenvolvimento da temática.'" A concepção Kantiana acerca da dignidade tem corno pressuposto a autonomia ética do ser humano, que engloba a liberdade de que dispõe a pessoa humana de optar de acordo com a razão e de agir conforme o seu entendimento e opção,'" A análise da conceituação de dignidade da pessoa humana elaborada por Immanuel Kant será exposta, de forma mais detida, no item subseqüente, que disserta sobre os alicerces da dignidade humana, Apesar da grande influência do pensamento do citado filósofo alemão no pensamento ocidental contemporâneo, as constituições contemporâneas passaram a adotar a dignidade da pessoa humana como fundamento, caso da CF/88, ou como um princípio tão-somente, após a segunda metade do século XX, quando, no âmbito do Direito Internacional, começa a delinear-se um sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos."' "1 BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axIolOgico e conteúdo normativo. In: SARLET. Moo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 32, '' 01.1FENDORF, Samuel apud SARLET. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1908, p. 32. '° ROCHA. O principio da dignidade da pessoa humana e a excludo social. Revista Interesse Público, p. 27. 3" SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 33, COMPARATO. A afirmado histórica dos direitos humanos, p. 52.
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Merece destaque o fato de que as bandeiras do movimento constitucionalista europeu, levantadas no final do século XVIII, coincidem exatamente com a limitação do poder do Estado e a preservação dos direitos individuais. Não obstante, somente cerca de duzentos anos depois, esses direitos vieram a ser positivamente albergados, sendo que a sua efetivação ainda pode ser questionada. 346 Nesse sentido, interessante a transcrição do artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "Toda sociedade, em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição","7 No Brasil, somente em 1988, com a promulgação da atual Constituição, é que se erigiu "um sistema constitucional consentâneo com a pauta valorativa afeta à proteção ao ser humano, em suas mais vastas dimensões, em tom nitidamente principiológico, a partir do reconhecimento de sua dignidade intrinseca","" Sistema esse já' assegurado pela Lei Fundamental Alemã (Grundgesetz) desde 23 de maio de 1949; pela Constituição Portuguesa, desde 02 de abril de 1976 e pela Constituição Espanhola desde 29 de dezembro de 1978. É preciso destacar que a elevação da dignidade da pessoa humana à posição de centralidade nas cartas magnas da maioria dos países, no final do século XX, deve-se principalmente aos genocídios causados pelas grandes guerras mundiais. Nesse sentido argumenta Fábio Konder Comparato: I" Buscando colocar os Direitos Fundamentais como algo vivo e presente no cotidiano das sociedades, faz-se necessária diminuir n fosso abissal existente entre sua afirmação teórica e prática efetiva. Para dar inicia a afta cammhada da efetivação dos Direitos Fundamentais é imperativo que se parta de uma hermenêutica constitucional que efetivamente coloque a Constituição como centro real do ordenamento, buscando, assim, uma aplicabilidade direta das normas e principias constitucionais. Nesse passo, ê sob as lentes da dignidade da pessoa humana que afta problematizaçâo deve ser focada enquanto escopo e fundamento necessários e presentes no núcleo dos Direitos Fundamentais. PIOVESAN; VIEIRA. A força normativa dos principias constitucionais; a dignidade da penoa humana. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). Temas de direitos humanos, p. 357. f" PIOVESAN; VIEIRA. A força normativa dos princípios constitucionais: a dignidade da pessoa humana. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). lemas de direitos humanos, p. 358.
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Após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio a aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos."° Inaugura essa fase de proteção internacional dos direitos humanos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, e a Carta das Nações Unidas de 1945. Esta última, em seu preâmbulo, faz referência à dignidade da pessoa humana, nos seguintes termos: Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indivisíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos Direitos Fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como nas nações grandes e pequenas No mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem indica no seu artigo 1°: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros num esph;ito de fraternidade". Na Carta Magna de 1988, o legislador constituinte brasileiro, consentâneo com as influências das constituições européias já nomeadas, erigiu a dignidade da pessoa humana, como anteriormente afirmado, a princípio fundamental da República, no artigo 1°, inciso III, Expressa Romeu Felipe Bacellar Filho que "diferentemente das sete constituições anteriores, a atual é fruto da participação de todos os seguimentos da sociedade, Ainda que impregnada por determinados vícios, começa como a pessoa humana, sendo COMPARATO. A ailrmeçao h/intrica dos direitos humanos, p. 54. if° ROCHA. O principio da dignidade, da pessoa humana e a excluslo social. Revista Interesse Público, p. 30.
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chamada de 'Constituição cidadã"."' Acentua ainda o citado autor que a dignidade do ser humano, sendo erigida a fundamento do Estado Democrático de Direito, demonstra que o seu principal destinatário é o homem em todas as suas dimensões,352 Além de fundamento da República (artigo 1°, III), o texto constitucional brasileiro recepciona a dignidade da pessoa humana em outras três ocasiões: (O como a finalidade assegurada no exercício da atividade económica, tanto pelo Estado quanto pelos particulares (artigo 1'70, capta); (ii) como princípio essencial da família (artigo 226, §7°) e (iii) como direito fundamental da criança e do adolescente (artigo 227, capta). Merece anotação o fato da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, promulgada em 2000, prever em seu artigo primeiro a proteção à dignidade humana: "A dignidade do ser humano é inviolável, Deve ser respeitada e protegida", Dedica a recém-editada Carta um capítulo à dignidade da pessoa humana, tutelando o direito à vida, à integridade do ser humano, à proibição de torturas e tratamentos desumanos ou degradantes e à proibição à escravidão e ao trabalho forçado."3 É preciso afirmar que a dignidade da pessoa humana, como principio fundaniental, é um valor que foi edificado ao longo da evolução histórica da humanidade, A essa espécie de juízo opõem-se concepções jusnaturalistas, que entendem dignidade como um valor superior, fundado em um modelo abstrato ou ideal, e que possui validade independentemente de considerações espaciais ou temporais,"4
Sobre a dignidade da pessoa humana pode-se afirmar que, no sentido em que é compreendida contemporaneamente, "como princípio fundamental, de que todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas?" não foi constituída como valor fundamental desde os primórdios da história. Ou seja, não derivou de algum direito ideal constituído previamente ao ordenamento jurídico e válido perenemente. Ao contrário, a sua validade e eficácia como norma que foi elevada acima das demais regras e princípios derivam da necessidade própria da sua integração e sua proteção nos sistemas normativos.'" É com este viés de reflexão que se passará ao exame dos fundamentos do princípio da dignidade humana.
4.2 Os alicerces filosóficos do princípio-fundamento Antes de analisar os fundamentos filosóficos da dignidade da pessoa humana, fiz-se premente a verificação da posição normativa do referido princípio no ordenamento jurídico brasileiro. O Direito positivo pátrio, influenciado por outros ordenamentos, erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio normativo fundamental da RepUblica, que lhe dá substrato e conduz as suas finalidades. Essa relação intrínseca e fundamental entre a República e a dignidade da pessoa humana também se faz presente na Constituição portuguesa, sobre a qual é imprescindível a citação de José Joaquim Gomes Canotilho, haja vista a sintetização do ideário promovida pelo autor: Outra esfera constitutiva da República Portuguesa é a dignidade
da pessoa humana (artigo 2°). O que é ou que sentido tem uma " BACELLAR FILHO. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar, p. 21. BACELLAR FILHO, Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar, p. 21. I" BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axiolágico e conteúdo normativo. In: SARLET: logo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 115. Considerações Importantes acerca de concepções Jusnaturallstas dos Direitos Humanos podem ser eptraldas da obra de Nelson Saldanha, Cf. SALDANHA. Direitos humanos: considerações históricas Críticas. In: MELLO, Celso D. Albuquerque TORRES. Ricardo Lobo (Rir.). Arquivos de direitos humanos.
República baseada na dignidade da pessoa humana? A resposta deve tomar em consideração o principio material subjacente à idéia de
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JUSTEN FILHO. Conceito de interesse público e a personalização do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, p. 125. " JUSTEN FILHO. Conceito de interesse público e a personalização do direito administrativo. Revista Trimestral de (Wein, Público, p. 117. 355
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dignidade da pessoa humana. irata-se dOprolCipie aILITOpleu que acolh a idéia pré-moderna e moderna da dirtzta,s-hominis (Pico delia Miran-e dola), ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual (plaste,c ei (rsior) 3" Além disso, sustenta o autor que: (...) Por último, a dignidade da pessoa humana exprime a abertura da República à idéia de comunidade Constitucional inclusiva pautada pelo multiculturalismo wultiin divi dual, religioso ou filosófico. O expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana como núcleo essencial da República significará, assim, o contrário de "verdades" ou "fixámos" políticos, religiosos ou filosóficos, O republicanismo clássico exprimia esta idéia através dos princípios da ndo idanlificaptio e da neutralidade, pois a República só poderia conceber-se corno ordem livre na medida em que não se identificasse com qualquer "tese", "dogma", "religião" ou "verdade" de compreensão do mundo e da vida. O republicanismo não pressupõe qualquer doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente (J. Rawls) (grifos no original)." Com esta mesma perspectiva acerca da dignidade e dos
valores pautados como essenciais pelo e para o Estado Democrático de Direito, assevera Carmem Lúcia Antunes Rocha que o princípio da dignidade da pessoa humana é posto como fundamento da própria organização política do Estado Democrático de Direito, significando que este princípio "existe para o homem, para assegurar 'condições políticas, sociais, econômicas e jurídicas que permitam que ele atinja os seus fins; que o seu fim é o homem, como fim em si mesmo que é, quer dizer como sujeito de dignidade, de razão digna e supremamente posta acima de todos os bens e coisas, inclusive do próprio Estado" '" Asseverou-se, durante a incursão histórica neste capitulo, que o principio da dignidade da pessoa humana desenvolveu-se, sobretudo, após e a partir dos estudos de Immanuel Rant. Foi o '' CANOTILHO. Direito constitucional e Teoria da Constituição, p. 225-226. CANOTILHO. Iiireito constitucional e reoria da Constituição, p, 225-226, " ROCHA. O principio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Revista Interesse Púbfico, o. 34.
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pensador alemão que, intentando, na obra "Fundamentação da Metafísica dos Costumes" (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten), dar fundamento a um dos imperativos categóricos universais por ele formulados, a saber: "Age como se a máxima da tua ação se devesse tornai; pela tua vontade, em lei universal da natureza","° demonstrou, pois, o caráter único e finalístico em si mesmo do ser humano, Argumenta o filósofo que "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim"°' (grifo no original). Apresentou, o autor em questão, este fundamento para alicerçar o seguinte imperativo categórico: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como melo""" (grifo no original), De acordo com Kanl, na sociedade existem duas categorias de valores: o preço (Freis) e a dignidade (Würclen). Enquanto o primèiro representa uni valor exterior, de mercado e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor interior (moral) e é de interesse geral. As coisas, nesse sentido, têm um preço; as pessoas, dignidade. O valor moral, por conseguinte, encontra-se indiscutivelmente acima do valor de uma mercadoria porque, ao contrário deste, não admite ser substituído por equivalente. Daí advém, pois, a máxima kantiana de que o KANT. Fundamentaçao da metaffslca dos costumes. In: p. 224. KANT. Fundamentaçao da metafIslca dos costumes, In: p. 229. KANT. Fundamentação da metaflsica dos costumes. In: U. 229,
. Crítica da razão pura e outros textos, . Crítica da razão pura e outros textos, . Critica da razão pura e outros textos,
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homem não pode jamais ser transformado em meio para alcançar quaisquer fins, Independentemente de toda a contribuição teórica historicamente produzida sobre a dignidade do ser humano, alguns autores o classificam como um conceito fluido, elástico, indeterminado, porque, de maneira distinta do que ocorre com outros Direitos Fundamentais, riflo Se pauta exclusivamente em aspectos restritos da vida humana, como a intimidade, a integridade física, conceitos cuja compreensão mostra-se mais simples. Ao contrário, a dignidade humana se pauta em uma idéia mais ampla que engloba e exterioriza todos essas expressões que se sintetizam nela. Pode-se, entretanto, afastar o argumento da abstração e indeterminação do principio infra por vários ângulos, a começar pela própria exiStência concreta da dignidade do ser humano, que se manifesta como um valor próprio que identifica o ser humano como tal, bem como pelos diversos matizes em que pode se revelar. Superando a concepção de que a dignidade da pessoa humana seria um conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por uma "ambigüidade" e "porosidade" marcantes em um conceito cuja natureza é necessariamente polissémica," diversos autores têm buscado uma delimitação do princípio-fundamento da dignidade da pessoa humana. Recepcionando a contribuição de Rant para a edificação do princípio da dignidade, bem como a necessidade da sua proteção pelo ordenamento jurídico, destaca-se Ingo Wolfgang Sarlet, que conceitua a dignidade da pessoa humana como:
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venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vicia em comunhão com os demais seres humanos.' 1
A concepção apresentada mostra-se, na medida exata em que permite a c' ompreensão do que seja a existência da dignidade da pessoa humana, de uma maneira concreta, garantindo as condições mínimas para uma vida saudável, bem como permite mecanismos de proteção a ela, seja em face dos particulares, seja em face do próprio Estado, Alexandre de Moraes, ao seu turno, concebe e expõe de maneira exauriente a noção da dignidade da pessoa humana a partir das suas manifestações em outros direitos e garantias fundamentais, no estabelecimento da normatividade da família, bem como a sua inter-relação com os princípios conformadores da ordem política e social do Estado Democrático de Direito, Conquanto extensa, faz-se importante a sua citação: A dignidade é um valor espiritual e moral inerente (a] pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar; de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos Direitos Fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos, O direito à vicia privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparecem conto consequência imediata da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. 935
Argumenta ainda o autor que: (..,) a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, Como 'I SAFILET.
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais' na Constituição Federal de 19fin,
p. 3n.
Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A idéia da dignidade da pessoa humana encontra no novo 2,4 5AtkLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de I" MORAES, Direitos humanos fundamentais, p, 50-61,
1988, p, GO.
lexl0 Lonsutuelonal Lota] aplicabilidade em velaçao ao pianeki
rei-nu lainiliar, considerada a familia célula da sociedade. sela derivada do casamento, seja de união estável entre homem e mulher, pois fundamento nos princípios ela dignidade da pessoa e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão clo casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos por parte das instituições oficiais ou privadas (CE ART. 225, §r). O princípio Fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos, Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade do seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. A concepção dessa noção de dever hindamental resume-se a três princípios do direito romano: honestere vivorre (viver honesminente), alterum nau laedere (não prejudique ninguém; suum migue tribuere (dê a cada uni o que lhe ê devido). Ressalte-se, por fim, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução n° 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 12-10-1948, e assinada pelo Brasil na mesma data, reconhece a dignidade como inerente a todos os membros da Família humana e como fundamento da liberdade e PRZ no 1111.111do, 3"
Embora estas concepções demonstrem o caráter material e concreto da dignidade da pessoa humana, não são
poucos os autores que refutam a idéia da dignidade da pessoa humana como valor palpável, recepcionado pelo ordenamento juHdico porque possui uma aplicabilidade concreta, Ao contrário, há a afirmação, por parte da doutrina, de que a dignidade da pessoa humana"' é um conceito por demais abstrato, devendo apenas servir de base para a aplicação de outros princípios fundamentais, corno a intimidade, a autodeterminação, a Integridade psicofísica, etc. Joe MORAES. Direitos humanos fundamentais, p. 60.61, Critica contundente 5 doutrina que nega a aplicabilidade Imediata 5 dignidade da pessoa humana é realizada por 11122ATTO NUNIES. O principio constitucional da dignidade'da pessoa humana: doulhno e Jurisprudência,
Recusando está visão que se afasta de uma práxis transformadora, a filosofia do Direito traz, atualmente, um argumento definitivo para fundamentar o caráter concreto e auto-aplicável da dignidade da pessoa humana. Trata-se, pois, do paradigma, recentemente difundido, da vida concreta de cada sujeit0.968 Este novo modelo tomou corpo a partir do paradigma da razão comunicativa"' de Jürgen Habennas. Em outras palavras, a idéia da razão comunicativa visa à demonstração de que a linguagem é condição essencial de possibilidade para a existência humana. A partir desta ordem de idéias funda-se o quarto (4°) momento de apreensão jusfilosófica, que tem sua condição de possibilidade de existência para tudo (vida humana e/em sociedade), na própria vida. Nesse diapasão, a vida deixa de ser o primeiro e mais fundamental direito tutelado pelo ordenamento jurídico para se tornar condição essencial de possibilidade dos outros direitos, Desenvolve-se aí a concepção da supremacia da vida humana e que, para ser entendida como vida, necessariamente deve ser digna. Este paradigma impõe pensar a vida sob um aspecto material, ou seja, o ponto de partida deste modelo é a vida como um conteúdo material, pois, a principio, a vida é também biológica. Assim sendo, pode-se afirmar que a vida nunca irá reduzir-se at uma mera abstração, haja vista seu substrato concreto, físico e biológico.'" As críticas apresentadas à dignidade da pessoa humana, como urna concepção puramente abstrata, baseiam-se, ainda, no ideário cartesiano, haja vista que René Descartes suprimiu uma visão física e biológica do seu pensamento, o qual traz em si urna índole essencialmente racionalista, própria do iluminismo: "penso, logo existo", Cf. DUSSEL, Ética da libedaçáo: na Idade da globalização e da exclusact, 2000, HMEHMAS. Direito c. democracia: entre felicidade e validade, no MATURANA; VAROLA, A kora do conhecimento: o bons biológicas da compreensão humana.
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Esse novo paradigma filosófico demonstra, portanto, o fundamento material da dignidade da pessoa humana, soterrando as críticas quanto a sua feição abstrata e intangível. Ultrapassadas, enão, essas questões relativas à materialidade da dignidade da pessoa humana, convém, neste momento, apresentar o núcleo do princípio em questão, que não visa apenas garantir o respeito e a proteção da dignidade, no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de garantias à integridade física do ser humano.",
A partir dessas premissas, a doutrina intentou viabilizar o substrato conceituai do princípio-fundamento em tela, novamente a partir da concepção kantiana, Baseou-se nos postulados filosóficos cio autor alemão para determinar que o conceito de dignidade, como um valor intrínseco à pessoa humana, deve afastar e mitigar tudo aquilo que puder reduzir a pessoa à condição de um objeto direcionado a um fim. Como conceito plurívoco e aberto torna-se impossível "reduzir a uma fórmula abstrata e genérica aquilo que constitui conteúdo da dignidade da pessoa humana". Assim, esta
Ao contrário, pela sua amplitude não abstrata, é que a dignidade do ser humano deve ser assegurada. Nesse sentido, manifesta-se Maria Celina Bodin de Moraes:
discussão acerca da dignidade e a delimitação do escopo que esta toma por base apenas pode ser levada a cabo no caso concreto. Deve haver na "verificação no caso concreto uma efetiva
Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste, De modo que terão precedência os diretos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei. Nestes casos estão as crianças, os adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências físicas e mentais, os não-proprietários, os consumidores, os contratantes em situação de inferioridade, as vítimas de acidentes anônimos e de atentados a direitos da penonalidade, os membros da família, os membros de minorias, dentre outros."'
agressão contra a dignidade da pessoa humana".3" Não obstante a dificuldade de delimitação, Ingo Wolfgang Sarlet identifica a integridade física, a isonomia, a proteção da vida e o resguardo da intimidade enquanto pilares fundantes do conceito hodierno de dignidade da pessoa humana. Por sua vez, Ana Paula de Barcellos, ao estudar a materialidade do princípio da dignidade, indica que ele pode se assentar sobre o denominado mínimo existencial. Para a autora:
Sob este olhar, não é possível olvidar que a dignidade da pessoa humana abrange todos os setores da ordem jurídica, Entretanto, esta qualidade (amplitude) do princípio em tela traduz dificuldade, tendo em vista a ampliação desmesurada das conotações que enseja. A generalização absoluta que pode abrolhar, em última análise em vasta abstração, quiçá, de alguma maneira, inviabilize a sua aplicação concreta. "1 BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axIolOgico e conteddo normativo. In: SARLET. logo Wolfgang (Org.). Constiturcio, direitos fundamentais e direito privado. p. 116. In BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axIolO gico e conteúdo normativo. In: SARLET. 'non Wolfgang (Org.), Constituloáo, direitos fundamentais e direito privado, p. 117.
mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis a existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física — a sobrevivência e a manutenção do corpo — mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um áeu próprio desenvolvimento, (,..) Em suma: mínimo existencial e núcleo material da dignidade da pessoa humana descrevem mesmo fenômeno."' 173
SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 107. BARCELLOS. A eficácia Jurídica dos princípios constitucionais: o principio da dignidade da pessoa hununa, p. 1913.
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Consoante a referida citação, esse /amimo tio/damentaí. ou melhor, o núcleo da dignidade da pessoa humana cinge-se em quatro elementos principais — três materiais e um instrumental: educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e acesso à justiça. Com o mesmo objetivo, Maria Celina Bodin de Moraes promoveu a fixação e o desdobramento do substrato material da dignidade da pessoa humana em quatro postulados: "(i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; (ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofisica que é titular; (iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; (iv) é
parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado" . 3”
igualdade, a mais básica, que pode ser denominada de "igualdade formal", cujo principal postulado é o de que "todos são iguais perante a lei". Essa forma de igualdade, todavia, é insuficiente para atingir os escopos deste princípio, isto é, não privilegiar, nem discriminar, haja vista as diferentes condições sociais, psicológicas e econômicas entre as pessoas. Para a consecução destes fins, deve ser adotada mais Uma modalidade de igualdade, que é a igualdade substancial, que prevê a necessidade de tratar as pessoas quando se encontrarem em posição de desigualdade, em conformidade com a sua desigualdade. Esta pode ser considerada a formulação mais avançada da igualdade de direitos."' Celso Antônio Bandeira de Mello nessa linha acentua:
Desta elaboração levada a efeito por Maria Celina Bodin
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de obrigações e direitos.'"
de Moraes acerca dos alicerces sobre os quais a noção da dignidade da pessoa humana se apóia, são corolários os seguintes princípios jurídicos: a igualdade, a integridade física e psíquica, a liberdade e a solidariedade. A cada um destes princípios decompostos do princípio-fundamento da dignidade da pessoa humana será efetuado exame particular a seguir. Quanto ao mínimo existencial, Ear-se-á exame mais detido no capítulo
seguinte, refe-
rente à salvaguarda dos Direitos Fundamentais. 4.21 A igualdade É de simples percepção a manifestação do princípio fundamental da dignidade da pessoa no substrato do princípio da igualdade. Pode-se depreender deste último principio, primeiramente, o direito de qualquer pessoa não receber tratamento discriminatório, bem como o direito
de ter direitos iguais a todos os demais. Esta formulação é, sem dúvida, uma modalidade da
O princípio da igualdade é assegurado pela Constituição Federal‘ de 1988, no artigo 5 0, caput. Contudo, para que ele possa ter aplicação adequada, tanto quando se manifestar formalmente, perante a lei, quanto na igualdade substancial, assevera o professor citado que é necessária atenção com alguns juízos críticos, dentre os quais se destaca a correlação lógica entre o fator de discrímen e a ausência de equiparação procedida, bem como a imediata consonância da discriminação com os interesses protegidos na Constituição. Em outras palavras, significa que é 3"
1, * SARLE7. A eficácia dos dfieltos fundamentais, p. 117.
OODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: iubitrato aalológico e conte0clo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Conslituipio, direllos fundamentes Mito privado, p. 119, BANDEIRA DE MELLO, C. Conteúdo )fildico do principio da Igualdade, P, 13.
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necessário investigar o que é erigido como um critério discriminatório -- pode-se dizer que deve estar em consonância com a tábua valorativa erigida pela CF/88 — e se existe justificativa à vista da desigualdade, para a atribuição do específico tratamento jurídico edificado em função desta desigualdade afirmada. Sintetizando, nas palavras do mencionado professor, para a devida concretização do princípio da igualdade, procede afirmar que: "é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arrendamento do gravame imposto".'" O Estado Constitucional, com efeito, impinge à igualdade real, ou material, a necessidade de impor-se, anteparando a mantença do dogma liberal da igualdade formal que, escondida sob o véu de tratamento igualitário a toda coletividade, encobre a circunstância dos fragilizados e desfavorecidos que prescindem de tratamento desigual face às desigualdades sociais."° Em outras palavras, não se pode olvidar que, para além da igualdade formal assegurada pela ordem jurídica desde as bandeiras levantadas pela Revolução Francesa no século XVIII, impõe-se a implementação de uma igualdade substancial, que se consubstancia na afirmação da diferença. A concretização da referida eqüidade, contudo, somente se mostra possível com práticas sociais de apoio e de proteção, realizadas pelas comunidades e entes públicos.'" "I BANDEIRA DE MELLO, C. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 38. "Neste sentido, Joaquim Barbosa Gomes: "Do embate entre as visões formal e substancial do problema Igualitário que resultou o surgimento, em diversos ordenamentos Jurídicos internacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos, de patroas sociais de apoio e promoção de determinados grupos fragilindos. (...) Dal a consagração normativa das ações afirmativas." In: GOMES. Direito, sociedade civil e minorias no Brasil da virada do milênio. In: DORA, Denise Dourado. Direito e mudança social.
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'e GOMES. Direito, sociedade civil e minorias no Brasil da virada do Milénio. in: DORA, Denise Dourado. Direito e mudança social.
4.2.2 A integridade psicofisica Por longa data, esteve plasmada a idéia de que o princípio da dignidade da pessoa humana reportava-se ou significava direta e exclusivamente a compreensão da integridade psicofísica de qualquér pessoa. A noção de integridade psicofísica, nomeadamente no Direito Privado, tem recebido especial atenção nos últimos anos, haja vista que a sua compreensão tem servido de garantia a diversos direitos de personalidade, como a vida, o nome, a imagem, a honra, a privacidade, o corpo, a identidade pessoal entre outras. A exegese da problemática atual, no tocante à integridade psicofIsica, depende em grande parte, da compreensão da formação e do entendimento da racionalidade moderna. Assim sendo, o sujeito Moderno é concebido corno ser que se autodetermina, que decide livremente sobre a sua vida, com vistas ao autodesenvolvimento da personalidade, já que este possui capacidade de dominar a si e à natureza através da razão, Afirma Ingo Wolfgang Sarlet, neste influxo, que "não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente o respeito e a proteção da integridade física e corporal do indivíduo"."' Adiciona ainda o referido professor que é justamente esta centralidacle que permite o desenvolvimento e a manutenção da integridade corpórea e psíquica como "momento de sua própria, autônoma e responsável individualidade"."" Aduzindo à acuidade da proteção à integridade da pessoa, José Antônio Peres Gediel argumenta que "o direito à integridade física, do mesmo modo que o direito à vida e todos os demais direitos da personalidade, prescinde de expressão puramente SARLÉT. A eficácia dos direitos fundamentais, p.109. SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. p 108.,
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econômica para ver afirmada sua existência, conforme anterior mente destacado. Pela mesma razão, a tutela a esses direitos não deve se limitar a conferir mera reparação econômica do dano a eles causados"."" Embora a noção de que a proteção à integridade psicofísica do ser humano tenha se desenvolvido sobremaneira nos últimos anos, a noção de que a dignidade da pessoa humana restringe-se à integridade psicofisica não deve ser levada em conta, haja vista os outros direitos e garantias a que ela também engloba, como a igualdade, por exemplo, tanto formal quanto substancial. 4.2.3 A liberdade individual Discorrer sobre a noção de liberdade pode traduzir-se em uma das tarefas mais difíceis ao intérprete destinado a tal desígnio, porquanto ela se manifesta nas mais variadas formas e é tratada de modo fragmentário pelos doutrinadores. Nada obstante, ela se constitui em elemento essencial à noção da dignidade humana. razão pela qual impende-se o seu destaque. Gerada a partir de uma concepção iluminista clássica, a 'liberdade é o baldrame fundamental sobre o qual se erigem todos os direitos ditos de defesa ou de primeira geração. Sua preocupação primeira é a de definir urna área de atuação estatal e outra, paralela e simultânea, de domínio individual, na qual estaria tecida uma jurisdição inteiramente inóspita a qualquer admissão estatal. São as chamadas "liberdades públicas negativas", pois exige do Estado uma abstenção. Contudo, a liberdade encerrada apenas neste viés não fornece a satisfação das necessidades mínimas para que se encontre dignidade e sentido na vida humana. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, "onde não houver limitação do poder não haverá espaço para a dignidade da pessoa GEDI El. Os transplantes de órgãos e a tutela da personalidade, p. 80.
humana".584 Deste Modo remonta-se à concepção iluminista clássica de liberdade que exige do Estado, frente aos particulares, uma atuação negativa, ou melhor, uma não atuação. Neste influxo, adiciona o mencionado autor: "Na medida em que o exercício do poder constitui permanente ameaça para a dignidade da pessoa humana, há quem considere a limitação do poder como uma exigência diretamente decorrente desta, acarretando, entre outras conseqüências a necessidade de se tolerarem ingerências pessoais apenas com base na lei e desde que resguardado o princípio da proporcionalidade".'" Pode-se afirmar, por conseguinte, que o princípio da liberdade individual se consubstancia, presentemente, em um espectro que compreende inúmeras perspectivas que vão desde a privacidade, a intimidade, até o livre exercício da vida privada. A liberdade individual, neste horizonte, significa, cada vez mais, a possibilidade de realização, sem interferências, as próprias escolhas individuais, para além disso, segundo Maria Celina Bodin de Moraes, o próprio projeto de vida, exercendo-o cOmo melhor convier."' A relação deste princípio com a noção da dignidade e principalmente com a da solidariedade social podeser extraída da seguinte passagem: "Ao direito de liberdade da pessoa, porém, será contraposto — ou com ele sopesado — o dever de solidariedade social, no sentido que se exporá a seguir, mas já definitivamente marcado pela consciência de que, se por um lado, já não se pode conceber o indivíduo como um homo clausus — concepção mítica e ilusória —, por outro lado, tampouco existem direitos que se reconduzam a esta figura ficcional". Neste influxo, pode-se declarar que os princípios jurídicos e os direitos existem para serem exercidos em contextos GEDIEL. Os transplantes de Urgias e a tutela da personalidade, p. 109. GEDIEL. Os transplantes de tírgáos e a tutela da personalidade, p. 108. " BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato aslológIco e conteúdo normativo. In: SARLET. Ingo VVolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais. direito privado, p. 136.
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sociais, em que a relação entre as pessoas não ocorre isoladamente, ao contrário, os seres humanos vivem e desempenham seus papéis sociais organizados, uns em meio aos outros, razão pela qual não há que se falar nesses princípios que preenchem o conteúdo da dignidade da pessoa humana, isoladamente.
4,2,4 A solidariedade social A noção de solidariedade social deriva da criação e assimilação do conceito de humanideide, que foi criado e elaborado para dar uma resposta satisfatória aos genocídios praticados no período das grandes guerras mundiais. Segundo Maria Celina Bodin de Moraes, foi a noção de "crimes contra a humanidade", até então inexistente, que possibilitou que se começasse a pensar na humanidade como uma coletividade merecedora, enquanto tal, de proteção jurídica. Nesse passo, afirma a autora que "assim é que os incisos do artigo 3° conclamam os poderes a uma atuação promocional, através da concepção de justiça distributiva, voltada para a igualdade substancial, vedados os preconceitos de qualquer espécie. Não há lugar, no projeto constitucional, para a exclusão; mas também não há espaço para a resignação submissa, para a passiva aceitação da enorme massa de destituídos com que (mal) convivemos",587 Argumenta, ainda, Maria Celina Bodin de Moraes que, "de acordo com o que estabelece o texto da Lei Maior, a configuração de nosso Estado Democrático de Direito tem por fundamentos a dignidade humana, a igualdade substancial e a solidariedade social, e determina, como sua meta prioritária, a correção das desigualdades sociais e regionais, com o propósito de reduzir os desequilíbrios entre as regiões do País, buscando melhorar a qualidade de vida de todos os que aqui vivem".58 2
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TEIIAGOLIMA BREUS
" BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axiologico e conteúdo normativo. In: SARLET. logo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado, p. 138. "2 BODIN DE MORAES. O conceito de dignidade humana: substrato axIologico e conteúdo normativo. In: SARLET. logo Wolfgang (Org.). Constituiçào, direitos fundamentais e direito privado, p. 138.
Em consonância com essa compreensão, enfatiza Jacques Távora Alfonsin que "sem uma consciência generalizada da alteridade (...) não há corno garantir-lhes (aos Direitos Fundamentais) eficácia, passe o truísmo, pois, essa não é somente vertical — válida somente contra o Estado — mas é também horizontal — válida ainda quando lhe opuserem circunstâncias episódicas próprias das crises que está sujeito o chamado livre mercado","° De acordo com essa ordem de idéias, o discurso jurídico tradicional deve libertar-se das amarras da singularidade e lançar mão do "nós","° pronome plural e coletivo que consubstancia a construção de um espaço de inclusão do outro, sempre com vistas à efetivação e solidificação da dignidade da pessoa humana. 4.3 A dignidade da pessoa humana como tarefa (função) e limite dos poderes públicos no Estado Constitucional Consignou-se durante toda a exposição deste capítulo que o princípio da dignidade da pessoa humana impõe (em um primeiro momento) limites à atividade estatal, urna vez que impede a violação, por qualquer dos poderes veiculados pelo Estado, da dignidade pessoal de qualquer particular. Em um segundo estágio, o princípio-fundamento da dignidade da pessoa humana também vincula os poderes públicos a sua efetivação, não apenas de modo programático, mas também concreto. A doutrina é unânime na acolhida dessa perspectiva, porquanto é derivada da própria natureza intrínseca da dignidade da pessoa humana como principio fundamental e que promove a integração normativa do ordenamento jurídico. Consoante com esse entendimento, pode-se transcrever: " ALFONSIN. Dos nós de uma lei e de um mercado que prendem e excluem aos nós de uma justiça que liberta. M: DORA, Denise Dourado. Direito e mudança social, p. 345.
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is° ALFONSIN. Dos nós de uma lei e de um mercado que prendem e excluem aos nós de uma justiça que liberta. In: DORA, Denise Dourado. Direito e mudança social, p. 345.
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C..) a dignidade humana, então, não é criação da ordem constitucional, embora seja por ela respeitada e protegida. A Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democratica. Com efeito, da mesma Forma que Kant estabelecera para a ordem moral, é na dignidade humana que a ordem jurídica (democrática) se apóia e constitui-se."'
Capítula 5
A supremacia dos Direitos Fundamentais no Estado Constitucional
Dal deriva, portanto, o fato de que a dignidade da pessoa vincula o Estado a ter como meta permanente "a proteção, promoção e realização concreta de urna vida com dignidade para todos".392 Destarte, a dignidade da pessoa humana, consoante Jorge Miranda, conforma-se na "Concepção que faz da pessoa fundamento e Fim do Estado",3 sendo protegida, em última análise, pela salvaguarda dos direitos fundamentais. Nesse passo, é possível sustentar que o Estado Constitucional está incumbido de proteger esses direitos, não apenas abstendo-se de ofendê-los, mas também se obrigando a criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos. Expostos, pois, os fundamentos que erigiram a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental da República Federativa Brasileira; as diversas manifestações nos valores, direitos e garantias fundamentais que dela decorrem: a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade; e a cogente proteção e concretização do princípio em questão pelo Estado, impende-se o exame, com conseqüência do já afirmado, dos Direitos Fundamentais decorrentes da própria noção apresentada.
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ALPONSIN. Dos nós de uma lei e de um mercado que prendem e excluem aos nós de urna justiça que liberta. In: DORA, Denise Dourado, Direito e mudança social, p. 115, "1 SARIET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constitulçao Federal de 1988. p, 108, MIRANDA, Jorge apud SARLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constitulçao Federal de 1988, p,29.
O Estado Constitucional dos Direitos Fundamentais, com a rede de implicações derivadas das complexidades sociais de nosso tempo, é uma praça de guerra onde porfiam interesses, valores, pretensões, reivindicações, em contextura de luta que fez da estabilidade do sistema a luta dos governos. Mas nem por isso a conquista daqueles direitos, em progressão alentadora, há cessado, em meio à refrega e o dinamismo da sociedade.'"
Sumario: 5,1 A fundamentablIldade dos Direitos 'Fundamentais • 5,2 Perspectivas contemporâneas dos (e para os) direitos fundamentais prestacionals • 5.3 Os direitos. sociais como condlOo para a participação democrática e para o exercício dos demais Direitos Fundamentais
o presente capítulo, inserido na segunda parte do presente estudo, investiga alguns aspectos do atual estágio da Teoria dos Direitos Fundamentais, a qual eleva os referidos direitos à posição de supremacia no ordenamento jurídico, uma vez que esses direitos, derivados do ideário da dignidade da pessoa humana que recebeu exame apartado no capitulo anterior, acabam por representar. Os Direitos Fundamentais, nesse passo, substituem os interesses públicos que se apresentavam como o escopo fundamental 111
BONAVIDES, Do absolutismo ao constitucionalismo, Reviste da Academia Brasileira de Direito Constitucional, p, 576.
A Organização das Nações Unidas e as políticas públicas nacionaisl
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Gilberto Marcos Antonio Rodrigues
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Suniário; Origem, papel e objetivos das Organizações Intergovernamentais (OlGs), Os primórdios: a OIT. Sedução e influência: a ONU e as Conferências Mundiais. Exercendo a ingerência: o Banco Mundial. Ingerência rechaçada... Ingerência bem-vinda? Quais relações? Referências bibliográficas. "PODER. RelaciOn dei Norte con el Sur. Dicese también de la actividad que eu el Sus ejerce Ia gente dei Sue que vive y gasta y piensa conto si fuera del Norte." EDUARDO GALEANO, Ser conto eitos "Um galo sozinho não tece uma manhã: Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele E o lance a outro; de um outro galo Que apanhe o grito que um galo antes E o lance a outro; e de outros galos Que com muitos outros galos se cruzem Os fios de sol de seus gritos de galo, Para que a manhã, desde urna teia tênue, Se vá tecendo, entre todos os galos," JOÃO CABRAL DE M. NETO, Tecendo a manhã Se fosse possível registrar o perfil dos ânimos de nosso tempo através de unia câmara digital, certamente as cores fortes seriam as do protesto e
' Gostaria de agradecer, na pessoa da Profa. Dra. Maria Paula Dallari, o interesse e os comentários do grupo do Seminário de Pesquisa sobre o Conceito de Políticas Públicas em Direito realizado na Unisantos, e is importantes observações de Dirimas Donizete da Silveira sobre a primeira versão deste texto. 193
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da mudança. Essa tela virtual mostraria críticas duras a modelos econômicos e políticos contra as reformas neoliberais das organizações econômicas internacionais — o FMI, o Banco Mundial e a OMC, em âmbito global, e o BID na região das Américas2; mas de igual maneira esse visor captaria manifestos e ações em favor de politicas de proteção do meio ambiente, dos direitos humanos e sociais, da democracia e de um vasta gama de assuntos respaldados em redes públicas e privadas de solidariedade planetária, que passaram a ter no Fórum Social Mundial sua mais alta e global expressão'. O termo política (policy) de tal ou qual organismo internacional vem sendo há muito utilizado por eles próprios, por governos e suas chancelarias, noticiado e comentado pela mídia e analisado pela academia de forma difusa, o mais das vezes retorcida e confusa, sem enfrentar uma questão básica que emerge desse rico debate; quais são as relações entre as políticas das organizações internacionais e as políticas públicas dos Estados? A relevância de uma tal indagação se ampara na necessidade de compreender o próprio fenômeno da globalização que se desenvolve a olhos vistos em escala mundial e dilui as fronteiras entre o "interno" e o "externo", fazendo com que a agenda internacional impacte a agenda doméstica dos países e vice-versa'. Neste cenário, as organizações intergovernamentais (01Gs) têm papel importante, em muitos casos único. Dentre elas, a Organização das Nações Unidas (ONU) se destaca por sua vocação universal. Por isso a opção em estudá-la como meio de começar a responder à questão proposta, investigando seus estatutos, objetivos, seu papel e sua evolução recente nas relações internacionais. Longe de pretender oferecer respostas conclusivas,
FMI — Fundo Monetário Internacional; OMC — Organização Mundial do Comércio; BID — Banco Interamericano de Desenvolvimento. 3 O Fórum Social Mundial (FSM) surgiu como contraponto ao Fórum Econômico de Davas (Suíça) e representa a institucionalização do debate critico e dos protestos antiglobalização que tiveram seu marco em Seattle, na tentativa frustrada de lançamento da Rodada do Milênio da OMC, em dezembro de 1999. De 2001 a 2003,0 FSM foi realizado no mês de janeiro, na cidade de Porto Alegre. ' Para conhecer melhor essas questões na perspectiva brasileira, recomenda-se a leitura de: Rubens Ricupero, O Brasil e o dilema da globalização (2001); Celso Lafer, A identidade internacional do Brasil:passado, presente e futuro (2001); Gilberto Rodrigues, O que são relações internacionais (1999); Clóvis Brigagão e Gilberto Rodrigues, Ciobafixação a olho nu (1998). 194
este texto visa a instigar a reflexão sobre a existência de políticas públicas internacionais, geradas a partir e no âmbito do sistema das Nações Unidas. O propósito deste ensaio é demonstrar que as políticas da ONU existem desde sua criação e foram sendo modificadas e ganhando maior poder de influência ou ingerência no correr dos anos. O método aqui escolhido, assim, é o de verificar os documentos constitutivos da OIT, da ONU e do Banco Mundial ird) e analisar suas atuações recentes, as quais têm produzido grande influência na geração e execução de políticas públicas nacionais'. É preciso reconhecer que a riqueza de origens, de formas e de objetivos no universo do próprio sistema da ONU é surpreendente, um verdadeiro caleidoscópio.Ao final, lançam-se algumas sínteses sobre a questão formulada e umas tantas pistas a esboçar um possível conceito de políticas públicas internacionais'.
ORIGEM, PAPEL E OBJETIVOS DAS ORGANIZAÇÕES 1NTERGOVERNAMENTAIS (01Gs) Como bem lembra René-Jean Dupuy, "a organização internacional procede do colóquio; ela está na origem da perenidade da conferência diplomática"? . A Comissão para a Navegação do Reno, de 1815, é considerada a primeira organização com esta vocação de perenidade. Desde então, a evolução das OIGs só fez por acelerar. Marcel Merle observa que "a proliferação destas organizações criou, acima da tradicional rede de relações diplomáticas, um novo circuito de comunicação que oferece aos Estados um marco permanente para o tratamento coletivo dos problemas que os afetam'''. A existência de assuntos
s O critério aqui adotado levou em. conta analisar: a mais importante e universal das OlGs, a ONU; a mais antiga e democrática organização especializada, a OIT; e a instituição de financiamento ao desenvolvimento mais importante no 'ambito global, o Banco Mundial, Também compõe o critério o fato de o Brasil ser membro fundador e ativo participante dessas organizações, as quais possuem escritórios de representação instalados em Brasília-DE ° Optou-se em não incluir as organizações internacionais de integração (União Européia, Aladi etc.) posto exercerem alcance sub-regional ou regional e de muito variado grau de profundidade, não atendendo ao critério de universalidade que se desejou para este trabalho. 7 O direito internacional, p. 110. Sociologia de las relaciones internationales, 1991, p. 384. 195
de interesse comum, de ternas que comportam níveis de interdependência entre Estados, é unia realidade que passou a ser seriamente encarada pelos Estados no âmbito das OIGs.
Aqui caminha..--se em terreno pantanoso, uma vez tratar-se de terna pouco estudado e carente de regulamentação em suas manifestações recentes. No Brasil, Ricardo Seitenfus está entre os que melhor pesquisaram este fenômeno. Ele afirma serem "tênues os limites que circundam o relacionamento interestatal, seja de cooperação, integração ou comunhão de interesses, e a imissão externa em assuntos internos. Esta tensão se aprofunda na medida em que se intensificam as relações comerciais e cooperativas entre as nações"u.
É importante destacar o aspecto voluntarista das OIGs, pois nenhum Estado está obrigado a ingressar ou aderir a uma OIG, porquanto ser esse um ato de soberania; mas, uma vez o fazendo, deverá seguir suas regras. De acordo com Ricardo Seitenfus, elas podem ser definidas como "urna sociedade entre Estados, constituída de um Tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns através de unia permanente cooperação entre seus membros'''.
Dentre as várias modalidades de exercício da ingerência, Seitenfus aponta a"concessão de empréstimos de órgãos multilaterais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, na medida em que os tornadores adotem medidas internas preconizicias por estas instituições ou pelo Fundo Monetário Internacional".
Perante o direito internacional, as OIGs passam a ser reconhecidas como sujeitos de direito internacional, após a Opinião Consultiva emitida pela Corte Internacional de Justiça, em 11 de abril de 1948, a pedido da Assembléia Geral da ONU, no caso das Reparações por danos sofridos em
serviço das Nações Unidas, em que se reconhece a personalidade jurídica
objetiva da ONU. Esse reconhecimento é o marco de uma atuação juddico-formal autônoma das OIGs, independente dos Estados-membros. Analisando as OIGs corno atores, Mede considera que elas exercem quatro tipos de função: a) oferecer aos Estados um marco preestabelecido e permanente para o diálogo; b) legitimar situações de fato; c) gerar informação, a qual serve de referência comum a todos os membros; d) atuar como redutor de tensão em escala internacional'°. No transcorrer da segunda metade do século XX, as OIGs firmaram-se como atores necessários para a boa convivência internacional e o equacionamento de inúmeros desafios comuns. A espetacular evolução das OIGs, sobretudo na última década do século passado, desencadeou novas problemáticas, com respeito à soberania estatal, que passaram a merecer mais atenção dos internacionalistas: o da ingerência internacional nos assuntos internos dos Estados. Ninguém mais duvida de que a esfera de domínio reservado dos Estados entrou em franco processo de erosão, ganhando crateras e brechas- por onde penetram valores, políticas e programas de natureza internacional. Isso começou a ficar claro no inicio dos anos 90, quando a ONU incorporou o debate sobre os limites da soberania estatal no terna dos direitos humanos e do direito humanitário".
Tornou-se lugar-comum denunciar a manipulação que as organizações econômicas internacionais exercem sobre os governos que delas dependem. A respeito do poder de influência do FMI, é interessante considerar a opinião de Alexandre Kafka, diretor-executivo representante do Brasil na organização por trinta anos (1966-1998), em cujo depoimento ao CPDOC/FGV afirmou: "O Fundo é muito forte onde o país precisa do seu dinheiro ou da sua chancela. Quando o país não precisa disso, o Fundo tem influência na medida em que puder dizer alguma coisa que convença o governo de que ele está realmente incorrendo em erros, E isso varia muito com o tamanho do pais, (...) Naturalmente, há pressões a que todos os governos, mesmo os maiores, acham dificil resistir". O que se pode concluir até aqui é que as relações entre as políticas das organizações intergovernamentais e os assuntos internos dos Estados, ai incluídas suas políticas públicas, manifestam-se de duas maneiras: 1) peta adesão progressiva de normas e políticas negociadas e consensuadas no âmbito das OIGs, respeitado o voluntarismo dos Estados; 2) pela aceitação de modalidades de ingerência, em graus diversos, exercidas por algumas OIGs, em razão de sua natureza e de sua evolução vis-à-vis os novos cenários e os novos temas das relações internacionaisis.
Op. cit., p. 66. Ibidem, p. 68. '1 Alexandre Kafka, Depoimento, 1998, p. 226. 12
' Manual das organizações internacionais, 2000, p. 26.
Ibidem, p. 401-407. n Cf. ONU. Los limites de
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soberania, 1992.
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Para um panorama sobre os grandes temas internacionais da atualidade. ver Gilberto M. A. Rodrigues, O que srio relações internacionais (1999).
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Para ilustrar a primeira forma, verificam-se os casos da OIT e da ONU (Carta e Conferências). Para exemplificar a segunda, analisa-se o exemplo do Banco Mundial".
OS PRIMÓRDIOS: A OIT A Organização Internacional do Trabalho (01T) é o mais antigo organismo especializado do sistema das Nações Unidas. Ela é fruto de um movimento em prol de uma legislação internacional do trabalho, que teve como precursor o francês Daniel Le Grand (1783-1859) e que redundou em várias conferências internacionais e finalmente na criação da primeira Oficina Internacional do Trabalho, inaugurada na Basiléia, Suíça, em 190117. Sua história é, assim, anterior à da própria ONU, e sua formalização se deu ao fim da Primeira Guerra Mundial, compondo a Parte XIII do Tratado de Paz de Versalhes, de 1919. Desde então, sua Carta sofreu várias emendas, mas pode-se identificar em seu Preâmbulo importades diretrizes que se explicitam da seguinte forma: Considerando que existen condiciones de trabajo que entraria', tal grado de injwsticia, miseria y privadones para gmn numero de seres humanos, que el descontento causado constituye una arricnaza para la paz y armonia ttniversales; y considerando que es urgente niejorar dichas condiciones, por ejemplo, en lo conderniente a reglamentacián de las horas de tmbajodijacián de la duracián máxima de la jornada y de la semana de trabajo, tontratación de la mano de obra, lucha contra el desempleo,garantia de un talado vital adernado, proteccián dei tmbajador contra Ias enfermidades, sean o no profesionales, y contra los accidentes de trabajo, protección de los niiios, de los adolescentes y de las »tufares, pensiones de vejez y de invalidez, proteccián de los internes de los trabajadores ocupados en cl extranjero, reconochniento dei principio de &alaria igual por un trabajo de igual valor y del principio de libertad sindical, organizaa'ón de la enseiiaza profesional y técnica y atras medidas analogas;
Neste preâmbulo, como se vê, estão contempladas diretrizes de políticas públicas trabalhistas, que terão seus desdobramentos na negociação
e aprovação de inúineros convênios e resoluções subseqüentes. Na mesma linha, e com maior grau de profundidade nos detalhes, a Declaração relativa aos fins e objetivos da OIT, de 1944, conhecida como Declaração de Filadélfia, reconhece a obrigação da OIT de fomentar programas que permitam alcançar e adotar inúmeros beneficios, como pleno emprego, oportunidade de formação profissional, proteção da vida e da saúde, da infância e da maternidade, dentre outras19. É a partir da incorporação desta Declaração ao ordenamento da OIT que o mandato da organização ampliou-se para estabelecer padrões mínimos (standards) trabalhistas que mesclam políticas sociais com direitos humanos". Com sede em Genebra, a OIT é classificada como organização de cooperação técnica, cujo papel é o de aproximar posições e propiciar iniciativas conjuntas entre os Estados-membros. Dentre seus objetivos e atividades estão os de "promover a justiça social para os trabalhadores de todo o mundo. Formular políticas e programas internacionais para contribuir no melhoramento das condições de vida e de trabalho'''. De um universo de 183 Convenções aprovadas pela OIT, sete são consideradas essenciais pelo organismo e alçadas à condição de prioridade mundial: Convenção 29, sobre Trabalho Forçado (1929); Convenção 87, sobre Liberdade Sindical (1948); Convenção 98, sobre Direito Sindical e Negociação Coletiva (1949); Convenção 100, sobre Igualdade de Remuneração (1951); Convenção 101, sobre Férias Pagas (1952); Convenção 138, sobre Idade Mínima (1973); e a Convenção 182, sobre Proibição de Trabalho Infantil Insalubre (1999)22 . "O caráter tripartite é ao mesmo tempo a pedra angular da OIT e característica que a diferencia fundamentalmente das outras organizações das Nações Unidas", no dizer de seu ex-diretor-geral, Michel Hansenne". Ainda de acordo com Hansenne, "ao associar representantes dos governos, empregadores e trabalhadores a todas as suas deliberações e decisões, a OIT garante a pertinência, a atualidade e a eficácia de sua ação, tanto na
Declaración relativa a los fines y objetivos de la Organización Internacional dei Itabajo, '6 É muito importante esclarecer que estas categorias adesão/ingerência constituem uma tentativa metodológica de indicar duas grandes tendências nas relações entre a ONU e as políticas públicas dos Estados. Dito isto, afastam-se quaisquer posições ortodoxas e maniqueístas de que estas organizações somente agem desta forma. O espaço de contradições e matizes está, democraticamente, garantido. PLas normas internarionales dei trabajo, 1992, p. 1-5. "Constitución de la OIT, Preimbulo, p. 5.
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Anexo a la Constitución de la OIT, p. 23-24. 2
° What are international labour standards? www,iIo.org (acesso era outubro de 2002). ' ABC de Ias Naciones Unidas, 1995, p. 296.
2
"Destas, somente a Convenção 87 sobre Liberdade Sindical não foi ratificada pelo Brasil, cf. OIT começa a rever convenções e quer aumentar força de normas, Valor Econtirnico, 30-9-2002, p. E-1. "A OIT. In: Para que servem 3.5 Nações Unidas, O Correio da Unesco, 1995, p. 45.
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elaboração das normas quanto em sua aplicação pratica"24 . Tal singularidade confere às políticas da OIT um tipo de ingerência tangencial, já que os próprios trabalhadores e empresários poderão exercer pressão e controle entre si e contra o governo dentro do pais, a partir das políticas acordadas em âmbito internacional.
SEDUÇÃO E INFLUÊNCIA: A ONU E AS CONFERÊNCIAS MUNDIAIS A Carta das Nações Unidas é o tratado constitutivo daquela que é considerada a principal organização internacional de cooperação, de caráter universal, do pós-Segunda Guerra. Assinada em 26 de junho de 1945, entrou em vigor em 24 de outubro do mesmo ano. A Carta constitui o núcleo do que se convencionou denominar Sistema das Nações Unidas, composto por órgãos centrais previstos no próprio instrumento (Assembléia Geral, Conselho de Segurança, Conselho Econômico e Social, Secretaria Geral, Conselho de Tutela e Corte Internacional de justiça) e o conjunto de organizações especializadas em variados campos". Os órgãos da Carta são regidos pelo princípio da igualdade entre os Estados, salvo o Conselho de Segurança, formado por cinco membros permanentes com direito a veto (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia). As políticas da ONU são, em sua maioria, formuladas e implementadas em órgãos centrais e organizações especializadas em que os Estados têm os mesmos direitos e obrigações (como e o caso da OIT).
nitário. Para esses problemas que extrapolam o caráter nacional, a ONU deverá buscar soluções, mediante o instrumento da cooperação internacional. Parece claro que tais soluções deverão assumir um caráter internacional. Poder-se-iam incluir as políticas públicas como formas de solução? Caso positivo, é licito considerar que a própria Carta da ONU enseja a formulação e a execução de políticas públicas internacionais. No curso de mais de cinco décadas de existência, as Nações Unidas aumentaram sobremaneira o escopo de seu mandato de cooperação internacional. Após o fim da Guerra Fria, no final dos anos 80, a organização assumiu novos desafios. O ex-secretario-geral da ONU, o jurista egípcio Boutros Boutros-Ghali, definiu bem a nova situação, ao afirmar que "a degradação do meio ambiente, a crescente disparidade entre ricos e pobres e o aumento de pressões econômicas de alcance mundial colocam problemas para o bem-estar humano que ultrapassam as forças dos Estados, individualmente considerados"". Com efeito, os anos 90 converteram-se na década das conferências globais. Patrocinados pela ONU, estes megaeventos passaram a reunir mais de uma centena de chefes de Estado e de Governo, milhares de técnicos e diplomatas, e foram progressivamente invadidos pelas organizações não governamentais (ONGs), tendo como marco a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em junho de 1992, no Rio de Janeiro, e seu principal documento, a Agenda 21.
No Capítulo I da Carta, que trata dos Propósitos e Princípios, verifica-se que no item 3 do artigo primeiro que dentre os propósitos das Nações Unidas estão o de:
Desde então, como em nenhum outro tempo, as Nações Unidas vem se dedicando a debater, a esmiuçar, a negociar e a lançar diretrizes de ação amplas e determinadas visando influenciar de maneira definitiva a geração de políticas públicas em todo o mundo".
Realizar ia cooperación internacional en la soluciOn de problemas internacionales de caráter económico, social, cultural o humattitario, y eu el desarmilo y estimulo dei respeto a los derechos humanos y a las libertades fundamentales de todos, siri hacer distinción por motivos de raza, sexo, idioma o religión; (—) 24.
Segundo um documento da própria ONU, "graças ao processo das conferências toda a Comunidade Internacional tem se reunido a fim de acordar valores comuns, metas compartilhadas e estratégias para alcançá-las.
O texto é curto, porém significativo. Nele se entrevê a existência de problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou huma-
" Ibidern. "Para urna visão global do sistema, ver a obra ABC de Ias Naciones Unidas (1995) e o fite oficial da ONU: Jutp://nwun ocg 2.° Carta
de Ias Nadastes Unidas, p.3 (versão oficial, 1991). 0 texto em português da Carta pode ser consultado em Vicente Marotta Rangel, Direito e relações internacionais (2000).
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Introducción, 1;1: ABC de Ias !times Unidas, 1995, p. xiii. " Nesta década de Conferências, destacam-se: Cúpula Mundial em Favor da InEncia (Nova Iorque, 1990); Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio de janeiro, 1992); Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993); Conferencia Mundial sobre a População e o Desenvolvimento (Cairo, 1994); Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995); Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995); Segunda Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos/Habitat II (Istambul, 1996); Cúpula Mundial sobre a Alimentação (Roma, 1996), cf. Lis Conferencias Mundiales, 1997.
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Estas ações destacam um dos aspectos mais sólidos do sistema das Nações Unidas:a capacidade dos Estados-membros de avançar na tomada de consciência à formulação de programas, ao acordo sobre a ação"". Na perspectiva dos países, em especial da América Latina, o impacto da década das Conferências se fez sentir de maneira muito forte sobre as políticas públicas, fato reconhecido porVerônica SilvaVillalobos, da Divisão Social do Ministério do Planejamento do Chile, ao contentar que "apesar das políticas sociais setoriais mais tradicionais continuarem sendo centrais nos países, a iniciativa das Nações Unidas em convocar e desenvolver Cúpulas Mundiais (...) [teve] um alto impacto no traçado de novas políticas sociais em nossos países ou, pelo menos, uma reorientação das existentes'. Nesse processo de forja de políticas públicas da ONU, a partir dos anos 90, um elemento fundamental entrou no jogo para alterar bastante o desenho das negociações e das próprias políticas: a participação direta de governos subnacionais (municípios, Estados, províncias etc.) e das ONGs. As políticas públicas municipais, estaduais e provinciais, transformadas em best practices, inverteram a tradicional ordem de verticalidade internacional-nacional-local introduzindo as agendas locais no tabuleiro global. Esse processo, rico de trocas, intercâmbios e interfaces de políticas públicas locais no espaço transnacional, a alimentar inúmeras negociações definidoras de políticas internacionais, tornou-se,por isso, mais descentralizado e, possivelmente, mais democrático". Em busca da resolução daqueles problemas internacionais estampados no Preâmbulo de sua Carta, a ONU vem contribuindo também para criar índices, medidas, indicadores e parâmetros universais para aferir a situação socioecontnnica dos países. Nesse campo, um poderoso instrumento de sua política direcionada ao desenvolvimento constitui o processo de avaliação e classificação pelo critério do desenvolvimento humano. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a principal fonte de financiamento para o desenvolvimento sustentável administrada pelas Nações Unidas, adotou o índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com base nos estudos do economista Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia (1998), incluindo-o em seu relatório anual.
" Las Conferencias Mandiales, Introcluccitin, 1997, p, 1, 3°O Estado de bem-estar social na América Latina: necessidade de redefinição, 2000, p. 52. 31 Cf. Gilberto Marcos Antonio Rodrigues, Clobalización y gaitemos subnacionales en Bina 2002.
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Elaborado pela composição de três fatores — renda per capito, esperança de vida ao nascer e escolaridade — o IDH tornou-se referência fundamental da ONU porque conferiu transparência à real posição dos países, substituindo o obsoleto e enganoso indicador da renda per capitcru. A partir de uma escala de O a 1, os países avaliados são classificados como sendo de desenvolvimento baixo, médio ou alto". Essas características fazem do IDHPNUD um parâmetro global que pauta a avaliação e o direcionamento de políticas públicas nacionais no campo socioeconômico e serve de referência a agências de financiamento e a investidores internacionais, públicos e privados. Sua adoção e edição periódica 6 um fator novo e por vezes gerador de tensões e polêmicas nas relações entre a ONU (PNUD) e os países-membros. Tentando alinhavar os pontos vistos até aqui, podem-se colher duas grandes lições oferecidas pelo sistema da ONU e as conferências globais no tocante às relações entre suas políticas e os Estados: 1.A ONU possui diretrizes visando o desenvolvimento de seus paísesmembros, e exerce influência a partir de sua Carta constitutiva e dos diversos instrumentos jurídicos e políticos, sobretudo aqueles produzidos nas Conferências globais, sobre as políticas nacionais dos países, 2. As políticas da ONU não são necessariamente manipuladoras ou deletérias A identidade dos Estados-membros e à sua soberania. O Brasil não deve ser tomado como paradigma, por sua condição híbrida", mas para a grande maioria dos países em desenvolvimento as Nações Unidas constituem a principal fonte de apoio e aquisição de conhecimento e de ajuda para um desenvolvimento com condição de romper com as políticas públicas obsoletas clegracladoras do ambiente, desumanas e antidemocráticas e substituí-las.
32 Obtido a partir da divisão da renda total de um país por sua população. " No mnking de 2002, por exemplo, entre 173 países da lista o Brasil encontra-se na 73' posição (0,757), estando na faixa de desenvolvimento médio, mas abaixo da media da América Latina e do Caribe (0,767). Os três melhores posicionados na região são Barbados, em 31G (0,871), Argentina, em 34° (0,844), e Chile, em 38° (0,831). O México, país que mais se aproxima do Brasil em termos socioeconômicos, está em 54° (0,796). Cf. Crescimento do IDH se desacelera. Folha de S. Paulo, 24-7-2002, p, A-11. " Condição híbrida aqui refere-se ao fato de o País estar entre as dez maiores economias do planeta, pertencer à Unctad e ser observador e candidato à OCDE, estar abaixo da média do IDH da América Latina e ter a 4° maior concentração de renda do mundo pelo índice Gini (2002).Vale lembrar a idéia de Edmar Bucha quando cunhou a expressão Belindia (Bélgica + índia) para mostrar a complexidade socioeconfimica do Brasil.
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Como última palavra, há que se recordar que os resultados. das conferências globais se concretizam em convenções ou tratados, declarações e planos de ação e são incorporados pelas agendas dos órgãos centrais ou pelos organismos especializados do sistema da ONU. As respostas e a eficácia destes organismos não são nem podem ser homogêneas, pois cada um tem sua história de atuação, um orçamento limitado e, muito importante, cada qual cuida de um tema que poderá reunir maior ou menor nível de consenso internacional e de aceitação nacional por parte dos países-membros. Nesse sentido, quaisquer criticas e julgamentos sobre as políticas da ONU em relação aos países-membros deve levar em conta sua diversidade.
EXERCENDO A INGERÊNCIA: O BANCO MUNDIAL "Há 50 anos (...) reunia-se no Hotel Mount Washington, no vilarejo de Bretton Woods, nas montanhas de New Hampshire (EUA), a grande conferência monetária internacional que criou o FM1 e o Banco Mundial (Bird)", palavras de Roberto Campos, que participou do evento como diplomata da delegação brasileira, presidida por Souza Costa, ministro da Fazenda de Vargas". A expressão Banco Mundial (World Bank) engloba mais de uma organização financeira. Aquela fundada em Bretton Woods, em 1.944, é oficialmente denominada Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird). Além dela, há que se registrar a Corporação Financeira Internacional (CFI), criada em 1956; a Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA), criada em 1960; e a Agência Multilateral de Garantia dos Investimentos (AMGI), criada em 1988. O conjunto destas organizações compõem o chamado Grupo Banco MundiaP6, O Banco Mundial é classificado como organização internacional de gestão, pois presta serviços aos Estados-membros no campo do desenvolvimento, o que lhe confere grande alcance na formulação de políticas públicas para os países-membros.
a partir dos quais o Banco deverá guiar-se em todo seu processo decisório". São eles: (i)To assise ia fite reconstruaion and development ofterritories of metnbers byfacilitating lhe investment ofcapitalforproductive purposes, including cite restoration of economies destroyed ar disrupted by toar, fite recorwersion of productive facilities to peacetince needs and fite encouragement ajeite development of produdive facilities and resources in less developed countries. (ii)To promote private foreign investment by means ofgaratttees ar participations ia loans and other investments made by private investors; and when private capital is not avaliable on reasonable terias, to supplement private investment by providing, ou suitable conditions,financefor productive purposes out of its ouot capital,ftinds raised by it and its other resources. To prontote the long-range balanced grouth of international trade and fite inaintenante of equilibrium in balances of payments by ettcouraging internacional investment of lhe development of the productive resources of members, thereby assisting in raising productivity, lhe standard of living and conditions of labor in their territories, To arrange lhe loans mede or garanteed by te ire relatiotu to internacional forms through other chainnetels so that fite more useful and neta projects, lawe and small alike, will be dealt urith first. (ti) To conclua its operations with due regard Co lhe efect of internacional investment ou business conditions ia lhe territories of ntembers and, ia lhe inunediate postwar ycars, to assist ia bar:ging about a sinooth transidos+ from a tvartinw to a peacetime economy. A essência germinal do Banco era o imperativo de reconstrução dos países arruinados pela Segunda Guerra Mundial, sobretudo os da Europa. O auxílio à reconstrução e ao desenvolvimento de países-membros, viabilizando investimentos para a produção, incluídas a recomposição de economias destruídas ou alquebradas pela guerra, a reconversão de meios de produção para uma economia de tempos de paz constituem esse espírito que animou a criação do Banco naquele momento. Integra também seus propósitos o incentivo ao desenvolvimento de meios e recursos em países
menos desenvolvidos. São essas as diretrizes estampadas no inciso i, a idéiaforça da instituição.
Segundo o Acordo de Constituição do Bird (com as emendas de fevereiro de 1989), seus propósitos (purposes) estão &cucados no Artigo I,
Outra função do Banco nitidamente presente em seus propósitos é a de atuar como promotor de investimentos estrangeiros e de ser facilitador
" Roberto Campos. Meio século depois. O Estado de S. Paulo, 31-7-1994, p. 2. lb the World Bank Group, lutp://www.worldhank orit (acesso em outubro de 2002).
" IBRD Articles of Agreement: Article I http://www.worldbauk.org (acesso em outubro de 2002).
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entre os tomadores de empréstimo (Estados-membros) e a banca privada, ou seja, os agentes financeiros do mercado, tal como se vê no inciso ii. A promoção de um aumento equilibrado, com perspectiva de longo prazo, do comércio internacional e do equilibrio do balanço de pagamentos mediante o incentivo de investimentos nos setores produtivos, mediante a assistência no aumento da produtividade, na qualidade de vida e das condições de trabalho, é outra das funções do Banco, registrada no inciso iii. Garantir que os projetos mais úteis e urgentes, independentemente de seu tamanho, tenham prioridade — inciso iv — e garantir uma transição suave do período imediatamente posterior à guerra a uma fase de paz —inciso v— completam o conjunto de propósitos do Estatuto do Banco. Tanto o FMI quanto o Banco Mundial mudaram muito no curso do tempo. A esse respeito, Roberto Campos recorda que "o Banco Mundial, sob Robert Macnamatz, passou a ser socialmente orientado, com 'prioridade para z infra-estrutura social de educação e saúde. Mais recentemente se orientou no sentido da promoção do desenvolvimento sustentado"". De fato, com o ingresso do meio ambiente na agenda global", a perspectiva do desenvolvimento sustentável é, possivelmente, a melhor para se entender o funcionamento do Banco Mundial e suas relações com as políticas públicas dos Estados-membros, 0 Relatório Nosso Futuro Comum, preparado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, publicado em 1987, é o marco da adoção do conceito de desenvolvimento sustentável e de um chamamento global para novas políticas integradoras da preservação do meio ambiente e do desenvolvimento. Num de seus tópicos, o Relatório trata da reorientação das instituições financeiras multilaterais e reconhece que "o Banco Mundial lidera de modo significativo a reorientação dos empréstimos, demonstrando grande sensibilidade para corri problemas ligados ao meio ambiente e ao apoio ao desenvolvimento sustentável", mas completa, sugerindo que "não é o bastante. A menos que seja acompanhado pelo empenho básico, por parte do Banco, no sentido do
Ibidem. Gilberto Rodrigues,"De Estocolmo 72 a Montego Bay 82.0 ingresso do meio ambiente na agenda global, in Direito ambiental internacional: Santos: Leopoldianum, 2001.
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desenvolvimento sustentável e por uma transformação de sua estrutura e processos internos, de modo a garantir a concretização desse empenho" 40, Na esfera do Banco Mundial, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1992, denominado Desenvolvimento e Meio Ambiente, estabelece diretrizes sobre políticas de desenvolvimento e meio ambiente, "Dois amplos conjuntos de políticas são necessários para combater as causas fundamentais da deterioração ambiental. Nem um nem outro é suficiente por si só: 1) Políticas que aproveitem os vínculos positivos entre desenvolvimento e meio ambiente, corrigindo ou prevenindo falhas, aumentando o acesso a recursos e tecnologias e promovendo um aumento eqüitativo da renda, 2) Políticas que visem problemas ambientais específicos; regulamentações e incentivos necessários para forçar o reconhecimento de valores ambientais no processo decisório". O Relatório também dispõe sobre a aplicação das políticas. E pergunta; Como esses princípios podem ser aplicados na prática? O Banco Mundial elege, então, os seguintes temas: a) água e saneamento; b) emissões de fontes energéticas e industriais; c) problemas do meio ambiente rural; d) problemas ecológicos de âmbito internacional (neste último tópico, a ênfase recai sobre o aquecimento global e a proteção da biocliversidade). Segundo Alberto Ninio, funcionário da organização, "ao contrário de corno freqüentemente anunciado na imprensa, não e,cistem projetos de desenvolvimento `do Banco Mundial'. O Banco não executa projetos, porém se dispõe, de acordo coni certas condições, inclusive ambientais, a financiá-los' 42. Urna das políticas ambientais do Banco é a previsão de que todo e qualquer projeto deverá ser submetido a um processo de classificação ambiental. Através dele, os projetos de efeito adverso e significativo ,recebem classificação "A" e demandam necessariamente estudo de impacto ambiental completo e profundo (e.g., projetos de infra-estrutura). Projetos que afetam o meio ambiente em menor escala têm classificação "II" e estarão livres de um estudo de impacto detalhado, mas deverão apresentar documentação mostrando os efeitos ambientais esperados (e.g., pequenas construções). Finalmente, projetos que não produzem impacto ambiental recebem classificação "C", estando isentos de condições nessa
COITIIIIII, p. 377. 'G Nossa 4 ' Banco Mundial, Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial '1992, p. 11. °Banco Mundial e meio ambiente: perspectivas legais e institucionais, 1999, p. 58.
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esfera (e.g., assistência técnica, educação etc.)." Ninio destaca que "vários projetos deixam de ter apoio financeiro do Banco se o país beneficiário . não concordar com as medidas ambientais mitigadoras aprovadas pelos técnicos do Banco"44. O Banco Mundial estabeleceu políticas e procedimentos que "ajudam a garantir que suas operações sejam econômica, financeira, social e ambientalmente relevantes". Essas políticas e procedimentos estão codificadas no Manual Operacional do Banco".
INGERÊNCIA RECHAÇADA... O termo Consenso de Washington foi cunhado pelo economista inglês John Williamson, para definir um conjunto de idéias que se consolidaram no final dos anos 80 no âmbito das organizações multilaterais econômicas. Seu conceito original "era o que defendia as seguintes políticas: disciplina macroeconômica, economia de mercado e abertura comerciar". Williamson crê que essas idéias continuam válidas, mas reconhece que o FMI e o Banco Mundial erraram ao "vendê-las" como uni pacote de idéias que resolveria Os problemas da América Latina". Ao comentar sobre este Consenso e o papel do FMI e do Banco Mundial, Aldo Ferrer sublinha que "atualmente, a política econômica dos países latino-americanos, em maior ou menor medida, é formulada, condicionada e monitorada do exterior"48. Completa o professor argentino dizendo que "a globalização, particularmente a financeira, influencia a situação de todos os países que integram a ordem global e limita os níveis de liberdade das políticas nacionais". Um dos mais contundentes e vorazes críticos das Instituições de Bretton Woods, Michel Chossudovsky denuncia o sistema de controle presente no esquema FMI-Banco Mundial. O economista canadense ex-
°Alberto Ninio, ibiclem, p. 59. " lbidem, p. 58. 45 The World Bank Operacional Manual bttp://www.worldbank.orn (acesso em outubro de 2002). " O Consenso de Washington falhou, kéfa, 6-11-2002, p. 14-15. " Ibidem. " De Cristóbal Colou a Internet: América Latina y In globalizartiOn, 1999, p. 77-78. " 208
plica que "em muitos países endividados, o governo é obrigado (...) a delinear suas prioridades num 'Documento de Prioridades Políticas' (Alley Framework Paper). Embora sendo oficialmente uni documento do governo determinado por autoridades nacionais, o DPP é escrito sob a rigorosa supervisão do FMI e do Banco Mundial, segundo um formato padrão preestabelecido"50. De acordo com Chossudovsky, na divisão de tarefas entre as duas organizações financeiras, o Banco Mundial assume o processo de reforma efetiva e "está presente em muitos ministérios: as reformas na saúde, educação, indústria, agricultura, transporte, meio ambiente etc, estão sob sua jurisdição. Além disso (...) ele supervisiona a privatização de empresas estatais, a estrutura do investimento público e a composição dos gastos públicos através da chamada 'Revisão dos Gastos Públicosi(RGP)"",
INGERÊNCIA BEM-VINDA? Nem só de criticas contrárias à sua atuação vive o Banco Mundial. Na área ambiental, o reconhecimento da importância da participação popular, sobretudo nos contextos locais, nos vários processos de políticas públicas nacionais, ampliado pela crescente participação das ONGs e dos poderes locais no campo internacional, tornou-se uma realidade na estrutura institucional do Banco. O Relatório de 1992 do Banco sublinha que "atribuir Maior responsabilidade aos governos locais é parte importante desse processo. Os órgãos públicos necessitam de treinamento em técnicas de participação, e os dirigentes devem indicar claramente a importância da participação"". As condicionalidades do Banco, referentes à participação da população e dos poderes locais na formulação e execução dos projetos, constituem, em muitos casos, uma ingerência esperada, ansiosamente recebida pela sociedade civil, quando os governos centrais ou regionais ou locais não se pautam por práticas democráticas e lícitas, Ambientalistas, líderes de ONGs, técnicos e académicos atuantes na área ambiental, sentem que muitos conselhos de defesa do meio ambiente, estaduais e municipais, tiveram sua alavancagem em razão das exigências de organismos da ONU,
"A globali2ação do pobreza, 1999, p. 45-46.
Ibidem. Ibidem, p. 17. 209
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incluindo o Banco Mundial. À revelia de suas culturas políticas anacrônicas, muitos prefeitos e governadores instalam conselhos ambientais e os mantêm funcionando, tentando manipulá-los e cerceá-los, mas ainda assim os conservando para receber os recursos das agências multilaterais. Há uma percepção por parte de lideranças dos movimentos sociais de que o governo não quer a participação efetiva da sociedade civil no campo das políticas públicas". Seria esse, então, o caso de uma ingerência bem-vinda?
QUAIS RELAÇÕES? Segundo Graham Evans e Jeffrey Newnham, a formulação de políticas (policy-tnaking) é um atributo de atores coletivos, incluindo Estados e organizações intergovernamentais. Os autores definempolictninking como "a decisão de adotar certos programas de ação (ou inação) com o fito de atingir objetivos desejados". Completam com dizer que se trata de "um dos processos básicos das relações internacionais'. A partir da análise feita sobre a principal expoente das OlGs com alcance universal, a ONU, verifica-se que a formulação e fixação de políticas internacionais é um seu atributo matricial, posto que presente em suas cartas constitutivas; é também uma atribuição que vem ganhando em escopo, seja no aspecto quantitativo (número de assuntos), seja no perfil qualitativo (profundidade e detalhamento dos ternas). Essas políticas internacionais, hoje, compõem um guarda-chuva que abriga (e a muitos também constrange) os países-membros, balizando e conformando suas políticas domésticas. No sistema da ONU, de suas conferências globais e organismos especializados, há amplo espaço para uma participação igualitária; cujos resultados traduzidos em politicas internacionais podem ser mais equânimes e sensíveis às realidades nacionais e locais. Nas OIGs econômicas, como o Banco Mundial, a influencia de uma certa concepção de política é exercida de maneira mais contundente, atendendo aos interesses de seus principais coristas, os membros
si Cf. Samyra Crespo et al., O que o brasileiro pensa do meio ambiente, do desenvolvimento e da sustentabilidade. Pesquisas com lideranças, 1998, p. 86.
Graham Evans and Jeffrey Newnham, The Pinguin Dictionary of International Relations, 1998: "Policy-making is, in short the decision to embark apoia cercamn . prograrnmes of action (or inaction) in order to achieve desired goals (...) is one of the basic processes of international relations" (p. 440).
do G-755, e criando cenários de ingerência com poder de desfigurar e enfraquecer as soberanias nacionais, em muitos casos sem ao menos o beneficio de contrapartidas que se poderia esperar. Mesmo assim, há que se evitar as visadas preconceituosas e reconhecer que certas condicionalidades exigidas em nome da governança" podem ser mais úteis ao planeta ou povo de um país do que ao seu governo, a exemplo das questões ambientais. Hoje, o debate crítico da globalização parece invocar uma volta aos clamores pelo direito à•autodeterminação, mas no sentido de defender a soberania política nacional contra a racionalidade econômica globais?. Abandonar o "guarda-chuva", porém, não é visto como alternativa, porque "ficar na chuva" implica um ônus político e econômico que mesmo países com alto grau de autonomia, corno a China, não estão mais propensos a arcar". As relações entre as políticas da ONU e as políticas públicas nacionais são de mútua influência, mas com distintas intensidades. As políticas das ONU influenciam a grande maioria das políticas públicas dos países-membros, em especial dos países com baixo e médio níveis de desenvolvimento. Para muitos desses países, o apoio e o auxílio da ONU é benfazejo, é condição de sobrevivência. O Brasil integra reduzido grupo de países que se equilibra entre sofrer influência e exercê-la nos foros internacionais e na execução de programas para países de menor desenvolvimento".
O Grupo dos Sete, criado em 1975 por iniciativa do então presidente francês Giscard D'Estaing, é um grupo informal que congrega Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido e que se reúne periodicamente para acertar posições conjuntas em temas econômicos globais. A Rússia ingressou no grupo, em 1997, a convite dos EUA e por razões político-estratégicas. " O termo governança (governance, em inglês) vem sendo utilizado cada vez mais pelo sistema da ONU, sobretudo depois da publicação do Relatório Nossa Vizinhança Comum (Our Global Neighbourhood ),da Comissão sobre Governança Global da ONU, em 1995, que aponta a necessidade de criar meios de gestão de assuntos de interesse comum planetário, incorporando todos os atores interessados (Estados, OlGs, empresas, ONGs, indivíduos etc.). "Para uma discussão sobre as relações entre economia e política no Brasil, cf, o artigo de Alcindo Gonçalves,"Econotnia e politica:quem determina quem?", Leopoldinmitn, 2002. "A República Popular da China acedeu à OMC em 11-12-2001, tornando-se o 1438 membro da Organização. " Caso da forte atuação brasileira na construção nacional de Timor Leste, que ingressou na ONU em 2002. 55
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Da verificação dessas relações, que provam ser intensas sem ser necessariamente unilaterais, extrai-se unia necessidade urgente: a de aumentar e qualificar a participação da sociedade civil nos debates acerca da formulação e da execução da política externa brasileira em foros multilaterais. Tal medida não significa substituir ou alijar o Ministério das Relações Exteriores de suas atribuições, ao contrário, visa agregar consistência à atuação do Itamaratr. Visa também conferir mais legitimidade ao processo, pois, segundo Maria Paula Dallari Bucci,"urna política pública também deve ser expressão de um processo público, no sentido de abertura à participação de todos os interessados, diretos e indiretos, para a manifestação clara dos interesses em jogo"". Somente a ampliação qualificada do debate sobrem& rumos da política externa pode garantir a legitimidade necessária para decidir o "corno, quanto e quando" o Brasil irá se (des)comprometer e/ou se (des)condicionar internacionalmente. Cabe lembrar as palavras do emérito professor Milton Santos: "A cessão de soberania não é algo natural, inelutável, automático, pois depende da forma como o governo de cada pais decide fazer sua inserção no mundo da chamada globalização"". No fim desta trilha, vale reproduzir um trecho de um edital de oferta de bolsa de estudos, publicado na Revista The Ecottomist, que abre vagas a um Programa de Mestrado em Políticas Públicas, promovido pela Woodrow Wilson School of Public and International Affairs da Princeton University e pelo Banco Mundial, o qual destaca: Este rigoroso programa proporciona a líderes emergentes em políticas públicas nacionais e internacionais uma oportunidade para desenvolver suas capacidades no campo da economia e de formulação de polhicas em ambiente acadêmico reconhecido mundialmente por sua excelência (destaque nosso)". Essa chamada mostra claramente que no início do século XXI já se trabalha, ao menos da perspectiva dos EUA e do Banco Mundial, com a idéia de política pública internacional. Da perspectiva do Brasil e da América Latina, compreender e elaborar um tal conceito é tanto mais
°É o que advogam Clóvis Brigagão e Domicio Proença Júnior com respeito à formulação de uma PoLitica Nacional de Defesa para o Brasil. Cf, Concertapio 2002, 61 Direito administrativo e pollticas públicas, 2002, p. 269. 62 Por tuna outra globalização, 2000, p. 78. " The Economia, September 286 2002, p. 96 (tradução livre do autor). 212
desafiador na medida em que, segundo Luciano Tomassini", o tema das políticas públicas tem sido pouco analisado na região, sobretudo pelo mundo acadêmico. O convite à reflexão sobre o terna está lançado. Um conceito de politica pública internacional, em âmbito universal, que reflita as relações entre as políticas da ONU e as políticas públicas nacionais, tem de levar em conta os distintos matizes que colorem ricamente o cenário internacional: matizes de cooperação, de distintos graus de desenvolvimento dos países, de altos níveis de adesão aos temas globais, de influência de governos nacionais e subnacionais na concepção das políticas do sistema da ONU, de ingerência forçada nos assuntos internos dos Estados...É imperioso seguir avançando nesse debate para dar forma a esse conceito.
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Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidação do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos humanos Fernando Aith Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica dos direitos humanos: o Estado como instrumento de promoção e proteção dos direitos humanos. 3. O Estado de Direito conto fundamento de organização da sociedade política. 4. O ordenamento jurídico como fonte de orientação das políticas públicas. 5.As políticas públicas de Estado e de governo. 5.1. Políticas públicas de Estado x políticas públicas de governo. 5.1.1. Os objetivos da política pública. 5.1.2. A forma de elaboração, planejamento e execução da política pública. 5.1.3. Forma de financiamento. 5.2. Controle das políticas de Estado e de governo. 5.3. O controle judicial das políticas públicas fundamentadas em lei ou ato normativo. 6. Conclusão. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO As sociedades políticas apresentam-se, hoje, majoritariamente organizadas sob a forma de Estados. O ser humano reconheceu, há muito tempo, a necessidade de um mínimo de organização política para que a vida em comum possa ser possível. Conforme ensina Jorge Miranda,"quanto Mais uma sociedade global é heterogênea, quanto mais integra grupos ou estratos diferentes pela cultura, pela posição social e pelo papel na divisão de trabalho, tanto mais o seta sistema político tende a organizar-se em funções diferenciadas, especializadas, ligadas umas às outras por unta rede complicada de relações hierárquicas'. O Estado moderno é definido através de três elementos ou condições de existência — povo, território e poder político soberano — e apresenta um grau de complexidade bastante elevado, exigindo de todos
' Manual de direito constitucional, 6. ed., COmbra: Coimbra Ed., t. 1, p. 46.
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