Astrologia como Sistema Narrativo

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O SISTEMA ASTROLÓGICO COMO MODELO NARRATIVO

Maria Elisabeth de Andrade Costa

2005

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

O SISTEMA ASTROLÓGICO COMO MODELO NARRATIVO

Maria Elisabeth de Andrade Costa

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Rio de Janeiro Agosto de 2005 ii

O SISTEMA ASTROLÓGICO COMO MODELO NARRATIVO

Maria Elisabeth de Andrade Costa Orientadora: Profa Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Tese de Doutorado submetida ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Aprovada por:

Presidente, Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Prof. Dr. José Guilherme C. Magnani

Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte

Prof. Dr. Marco Antonio Gonçalves

Prof. Dr. Emerson Giumbelli

Rio de Janeiro Agosto de 2005 iii

Costa, Maria Elisabeth de Andrade O sistema astrológico como modelo narrativo/ Maria Elisabeth de Andrade Costa. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2005 ix, 230f.; 21 x 29,7 cm Orientadora: Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2005 Referências Bibliográficas: f. 231-242 1. Astrologia. 2. Cosmologia. 3. Modelo narrativo. 4. Sistema de classificação. I. Costa, Maria Elisabeth de Andrade. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.

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A meus pais, Ieda e Edgard e A meus netos, Mateus e Tiago

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Agradecimentos

À minha orientadora, Maria Laura Cavalcanti, que soube aliar, primorosamente, carinho de amiga e rigor de mestre, zelos sem os quais esse trabalho teria deixado mais ainda a desejar.

Aos professores do IFCS, Elsje Maria Lagrou, Marco Antonio Gonçalves e José Reginaldo S. Gonçalves, que, juntamente com Maria Laura Cavalcanti, me levaram com mão firme pelos meus caminhos na Antropologia.

Aos companheiros Alexandre, Astréia, Cristina, Edileuza, Eliane Tânia, Guacira, Luciana, Márcia, Nilton, Renata e Ricardo, por todos os momentos em que estivemos juntos, trocando confidências e planos, alegrias e ansiedades.

Ao meu marido, Darc, aos meus filhos, Marcela, Flavia e Eduardo, e ao meu genro, Jesper, que, com a imensa ternura que lhes é própria, estão sempre ao meu lado nas minhas empreitadas.

Às amigas Zélia Prado, Cátia Miranda, Cristina Machado e Regina Mamede, por terem suportado, durante tanto tempo, minhas conversas sobre um único assunto.

Aos meus informantes, pela receptiva acolhida e pelas generosas contribuições.

Ao CNPq, pelo apoio financeiro durante a elaboração desse trabalho.

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RESUMO

O SISTEMA ASTROLÓGICO COMO MODELO NARRATIVO

Maria Elisabeth de Andrade Costa

Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Essa tese procura discutir uma matriz discursiva capaz de sustentar o aconselhamento astrológico tal como ele é oferecido e aceito em um setor restrito das camadas médias do Rio de Janeiro. Admitindo-se que a relação céu/terra, aceita pelo segmento-alvo, pode ser abordada como uma linguagem que detém uma sintaxe e uma semântica próprias, o sistema astrológico é primeiro examinado como um sistema de classificação, nos moldes dos sistemas ditos totêmicos. O objetivo é detectar os constituintes formais desse sistema simbólico antes de abordar a consulta astrológica, onde ocorre a leitura ritual de um mapa de nascimento. Por sobre a história que a pessoa conhece a respeito de si mesma, a leitura do mapa natal provoca a emergência de uma outra história, re-significando as experiências de vida. Este trabalho tenta demonstrar que o sistema astrológico oferece um peculiar modelo narrativo, caracterizando, à sua semelhança, as noções de tempo, espaço e agente. As implicações desse modelo na composição de narrativas de vida e o papel da intervenção de um astrólogo são algumas das questões discutidas.

Palavras-chave: astrologia, cosmologia, modelo narrativo, sistema de classificação.

Rio de Janeiro Agosto de 2005

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ABSTRACT

The Astrological System as a Narrative Model

Maria Elisabeth de Andrade Costa

Orientadora: Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

The present thesis aims at discussing a discursive grid that may support the astrological counseling as it is offered to and accepted by a restricted segment of the middle classes in Rio de Janeiro. Assuming that the connection sky/earth, admitted by the target group, can be approached as a language with its own syntax and semantics, the astrological system is first examined as a classificatory device, much like the so-called totemic systems. The purpose is to detect the formal mechanisms of this symbolic system, before approaching the astrological consultation, where the ritual reading of a natal map occurs. On top of the story that one knows about oneself, the reading of the natal map provokes the emergence of another story, prone to rectify the meanings attributed to life experiencies. This work attempts to demonstrate that the astrological system offers a peculiar narrative model, defining, in its own terms, the notions of time, space and agency. The implications of this model to the composition of life narratives as well as the nature of an astrologer’s intervention are among the issues discussed.

Key-words: astrology, classification system, cosmology, narrative model

Rio de Janeiro Agosto de 2005 viii

SUMÁRIO

Introdução

1

Capítulo 1: O Trabalho Etnográfico 1.1 O Espaço do Céu 1.2 Os eventos 1.3 Os grupos de estudo 1.4 A literatura especializada

10 18 35 47 58

Capítulo 2: O Sistema Astrológico como Sistema de Classificação 2.1 O céu superior: as estrelas no firmamento 2.2 O céu mediano: os planetas e os signos do Zodíaco 2.2.1 Os planetas 2.2.2 Os signos 2.3 O céu inferior: as casas astrológicas 2.4 O código cosmológico e seus desdobramentos 2.5 O mapa de nascimento como o discurso astrológico

63 80 91 92 100 115 125 135

Capítulo 3: A Consulta Astrológica 3.1 A consulta astrológica 3.2 Fazer um planeta 3.3 Uma retórica da crise 3.4 A consulta astrológica como um ato de fala

140 145 156 161 169

Capítulo 4: O Sistema Astrológico como Modelo Narrativo

171

Conclusão

197

Anexo 1: As 48 Constelações Conhecidas na Antiguidade Anexo 2: O Código dos Aspectos Anexo 3: Os Signos do Zodíaco Anexo 4: As Dignidades Planetárias Anexo 5: As Casas Astrológicas

201 203 207 220 225

Bibliografia

231

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Introdução

Quando a minha amiga Cláudia se separou, depois de 16 anos de casada, ela voltou a sofrer de crises de asma e procurou um tratamento homeopático. Lá pelas tantas nesse tratamento, o médico sugeriu que uma leitura de seu mapa natal poderia ajudá-la e recomendou-lhe o nome de uma astróloga. Assim que acabou a consulta, ela foi direto para minha casa, pediu um gravador e nos sentamos à mesa para escutarmos, juntas, a fita que a astróloga lhe havia dado, com toda a consulta gravada. Foi assim que eu tomei conhecimento, pela primeira vez, de que havia um atendimento astrológico individualizado, para além das colunas de horóscopos encontradas em jornais e revistas. De modo geral, as colunas de horóscopos baseiam suas mensagens apenas no signo solar, isto é, no signo em que o Sol se encontra no dia do nascimento. Quase todo mundo sabe em que dia nasceu, logo, sabe que é, por exemplo, ‘do signo de Gêmeos’ ou ‘do signo de Escorpião’. Mesmo esse único fator já é suficiente para uma pequena incursão na descrição e/ou explicação de padrões de comportamento. Uma das minhas vizinhas comentou estar planejando engravidar em um determinado mês para que o bebê nasça em dezembro porque “eu não sei direito, mas todo mundo diz que Sagitário é o melhor signo” (Fernanda, 27 anos, formada em Comunicação Social). Uma amiga explicava o seu desagrado com determinada atitude de sua filha de 16 anos e afirmou: “Vai ser difícil tirar essa mania dela porque ela é de Touro e Touro é assim mesmo” (Elza, 42 anos, dentista). Um colega, professor universitário, quase foi atropelado ao tentar atravessar a rua sem perceber que o sinal ainda estava aberto para os carros. Ainda assustado, ele comentou: “Vai ver é por isso que dizem que Gêmeos é distraído. Eu vivo fazendo isso” (Carlos, 36 anos, professor de Filosofia). Não é raro, então, que as pessoas lancem mão da tipologia dos signos como alternativa viável para a compreensão de atitudes e características pessoais. Hoje em dia, os próprios meios de comunicação, que divulgam e popularizam as colunas de horóscopos, voltam-se para o produto mais singularizado que a astrologia oferece: o exame de um mapa natal.

2 Um mapa natal é um diagrama das posições dos planetas no céu, tal como eles podem ser vistos em um determinado momento, de um local específico na Terra. A premissa astrológica é que as qualidades de qualquer entidade1 se confundem com as qualidades do estado do céu no momento em que ela surge para o mundo. Admite-se que aquele conjunto de circunstâncias planetárias é único, singularizando o nativo2. É importante ressaltar a impossibilidade de se abordar a astrologia como um sistema homogêneo. Este sistema se apresenta em inúmeras variantes e se compõe de diversos ramos (astrologia horária, médica, eletiva, mundial, horoscópica, etc), todos eles com peculiaridades a serem levadas em consideração. A escolha metodológica para o exame das categorizações astrológicas recai sobre a astrologia zodiacal, a versão mais comumente praticada no ocidente e adotada, particularmente, pelo grupo pesquisado. A divulgação de mapas natais nos meios de comunicação3 traz uma nova faceta para a popularização das categorias astrológicas. Termos técnicos mais específicos, tais como ‘ascendente’, ‘inferno astral’, ‘trânsito’ engrossam o vocabulário leigo. Não é raro ouvir comentários do tipo “devo estar no meu inferno astral” ou “tem que estar acontecendo algum trânsito pesado lá em cima”, mesmo quando as pessoas não sabem exatamente a que esses termos se referem. Estudos que tratam a astrologia em perspectiva histórica, realizados principalmente por historiadores e filósofos da ciência (Thorndike, 1955; Bouché-Leclerq,1963; Cumont, 1982, 2000; Rossi, 1992; Martins, 1995; Barton, 1995, 2002) delineiam os contextos da Antiguidade e da Idade Medieval nos quais a astrologia não só encontrava lugar entre as ciências,

como

também

lhes

emprestava

material

para

suas

práticas.

Na

contemporaneidade, esse empréstimo inverteu-se. É a astrologia que hoje co-opta as

1

Quando essa entidade é uma pessoa, a carta celeste é um mapa de nascimento ou mapa natal. Mas, a carta celeste pode também se referir a um evento, como a coroação de um rei, a posse de um presidente, a deflagração de uma guerra, a inauguração de uma loja, o lançamento de um livro. A edição de 26/09/2001 da revista Isto É publica, na página 80, uma interpretação astrológica do atentado terrorista a New York em 11 de setembro de 2001 com base no estado do céu na época. Em 10/12/2001, a coluna de Ancelmo Góis, no jornal O Globo, exibe o mapa do Brasil, com prognósticos para o ano de 2002. 2 O termo ‘nativo’, encontrado na literatura astrológica, refere-se àquele que nasceu em um determinado momento e um determinado lugar e que seria representado pelo estado do céu correspondente. 3

A revista Isto É, em 9/10/2002, publicou, nas páginas 40-44, os perfis astrológicos dos quatro principais candidatos à Presidência da República naquela ocasião. Encontra-se com facilidade, em revistas e em sites da internet, os mapas natais de pessoas famosas, sejam artistas, políticos ou os jogadores da seleção brasileira de futebol.

3 ciências estabelecidas, especialmente a Psicologia, para consubstanciar suas interpretações. Um exame, mesmo que rápido, da literatura temática já evidencia que as categorias psicológicas que descrevem a estrutura e a dinâmica da personalidade são aproveitadas para justificar alguns dos princípios astrológicos. Contudo, esse empréstimo trafega em uma via de mão dupla. É curioso observar que a crescente adesão à astrologia tem afetado o campo de atuação da Psicologia. Além de as categorias astrológicas serem utilizadas na clínica psicológica, principalmente por terapeutas comprometidos com o quadro teórico oferecido pela Psicologia Analítica de Jung e pela Psicologia Transpessoal4, o recurso à astrologia se expandiu a ponto de afetar também as áreas de seleção de pessoal e orientação vocacional, para as quais a Psicologia tem desenvolvido instrumentos específicos de testes e medidas. Alguns dos colegas de meus filhos se consultaram com astrólogos para decidirem sobre a escolha de carreira na época do vestibular. Um amigo meu, após ter sido admitido no departamento de marketing de uma empresa de grande porte, ficou sabendo que, em igualdade de condições com outro candidato para o mesmo cargo, foi escolhido por ter Leão como signo Ascendente. Na entrevista de seleção, o entrevistador lhe perguntou explicitamente se ele conhecia seu signo solar e o signo ascendente. Não se trata de um incidente isolado. O caderno Boa Chance, do jornal O Globo, publicou em 26 de maio de 2002, matéria de duas páginas intitulada ‘Está escrito nas estrelas?’, sobre a ajuda prestada pela astrologia a profissionais e empresas. Isso parece indicar que, para alguns, a caracterologia astrológica se mostra confiável a ponto de ser aproveitada como prognóstico de desempenho. A caracterização de uma pessoa e das circunstâncias de sua vida a partir de um diagrama, extraído de um congelamento das posições dos planetas no céu e vigente desde seu nascimento, costuma levantar uma indagação sobre a possível articulação entre liberdade e fatalidade, entre livre-arbítrio e determinismo, entre auto-direcionamento e 4

O principal foco da Psicologia Transpessoal recai sobre os estados de consciência que ultrapassam o self individual e contribuem para a integração do eu a um todo maior. Com nítida influência de doutrinas orientais, tais como o zen-budismo, a ioga e o sufismo, esse sistema psicológico enfrenta algumas dificuldades de aceitação, em parte porque o vocabulário técnico empregado é largamente religioso. Jung também estudou tradições orientais e aproveitou o conceito de mandala (palavra sânscrita para círculo ou diagrama circular, usado em meditação e outras práticas espirituais) como símbolo para o processo de individuação. No entanto, Jung enfatizou que os procedimentos orientais para o crescimento espiritual são geralmente inadequados para os ocidentais. Pesquisou as tradições ocidentais, principalmente a alquimia, como metáfora das transformações pessoais envolvidas na individuação. (Fadiman e Frager, 1986)

4 destino. Já que se admite um desenrolar previsível de eventos, parece que as experiências de vida independem de decisões, escolhas ou determinações pessoais, o que contribui para o fatalismo atribuído à astrologia. No entanto, na medida que o mapa astrológico circunscreve uma maneira de ser identificável e passível de ser descrita, levanta-se uma questão tão ou mais intrigante. Como aceitar uma descrição única de um ser que se altera continuamente? Investigando a construção da pessoa nas classes trabalhadoras urbanas, Duarte (1986:208/209) inclui as categorias astrológicas na dimensão das qualidades pessoais que diferenciam as pessoas pela nascença. Sublinha que a flexibilização admitida nesse modelo diverge daquela prevista nos modelos religiosos, uma vez que só comporta o recurso a um sistema complexo de interpretações, sem permitir qualquer manipulação mágica ou ética. Hoje em dia, porém, algumas tentativas de manipulação mágica podem ser observadas na eleição de momentos precisos para a ocorrência de um evento. Não é raro, por exemplo, que astrólogos sejam consultados antes que uma cesariana seja marcada, uma prática mais afeita às camadas médias urbanas do que às classes trabalhadoras enfocadas por Duarte. Está em jogo, portanto, uma questão cultural ampla, que exige uma reflexão sobre a disposição de um segmento intelectualizado e psicologizado das camadas médias urbanas a responder aos desafios do mundo moderno recorrendo a um sistema milenar, a interpretar a desestabilização contínua por meio da lógica do permanente e a recorrer a um sistema divinatório para auxiliar processos decisórios refletidos. Uma das vertentes dos estudos sociológicos sobre a adesão à astrologia nas sociedades modernas assume uma postura crítica, analisando o fenômeno à luz de um escapismo alienante, mantido por uma perspectiva obscurantista e subserviente ao capitalismo, na medida em que ajuda a persuadir as pessoas que seus destinos estão fora de seu controle (Adorno, 1900; Morin, Fischler, DeFrance,e Petrossian, 1981; Barthes, 1983). Talvez o mais contundente documento nesse sentido tenha sido o manifesto intitulado “Objeções à Astrologia”, publicado em 1976 pelo astrônomo B.J. Bok e endossado por 186 cientistas, dentre os quais dezoito ganhadores do Prêmio Nobel. Esse documento recomenda um esforço concentrado para eliminar de uma vez por todas essa antiga superstição que só contribui para o irracionalismo.

5 Estudos que abordam a relação entre as camadas médias urbanas, a ideologia individualista e sistemas totalizantes (Russo, 1983; Cavalcanti, 1983; Vilhena, 1990; Magnani, 1999; Amaral, 2000), apontam para a fragmentação da sociedade moderna em domínios múltiplos como o reverso da ênfase no caráter holista e harmônico da concepção de mundo professada por seus adeptos. Por esse viés, é possível supor que a crise das religiões institucionalizadas e/ou o enfraquecimento dos grandes sistemas totalizadores de sentido abriram espaço para a revitalização, nas sociedades modernas, das artes divinatórias em geral e da astrologia em particular. A diversificação da rede social em domínios paralelos enfatiza o conseqüente risco de fragmentação e dispersão (Velho, 1985). O enfraquecimento dos grandes sistemas totalizadores de sentido, principalmente políticos e religiosos, abre espaço para a emergência de outros focos de unificação, dentre os quais o próprio eu se destaca. Incapaz de dar conta de um social pulverizado, o indivíduo volta-se sobre si mesmo, afirmando-se como um dos loci possíveis e estáveis de integração e geração de sentido. Os estudos de Richard Sennet (1999) e Gilles Lipovetsky (1989) discutem a preponderância do privado e a emergência do narcisismo moderno nesse contexto. Analisando a crise de sentido nas sociedades urbanas modernas, Berger e Luckman (2004) apontam que o foco centrado no questionamento das identidades e no abalo das certezas, dois fenômenos decorrentes dos processos de modernização, pluralização e secularização da sociedade ocidental moderna, não deveria nos impedir de perceber os mecanismos dos quais as pessoas lançam mão para responder aos desafios que elas enfrentam nas grandes cidades. Dentre esses mecanismos, Berger e Luckman (2004:81) chamam atenção para as ‘instituições intermediárias’, estruturas parciais que apóiam pequenos mundos da vida. Nesses pequenos mundos da vida, os diversos sentidos oferecidos “não são simplesmente consumidos, mas são objeto de uma apropriação comunicativa e processados de forma seletiva até transformarem-se em elementos da comunhão de sentido”, impedindo que as crises de sentido se alastrem por toda a sociedade. Mesmo não apresentando uma tipologia geral dessas instituições, os autores sugerem que elas podem incluir a psicoterapia, práticas de meditação importadas do oriente, movimentos religiosos neo-ortodoxos e movimentos ecológicos. Talvez a

6 concepção de mundo que a astrologia propõe possa constar do rol dessas instituições intermediadoras entre a experiência coletiva e a individual, as quais “oferecem interpretações típicas para problemas definidos como típicos” (Berger e Luckman, 2004:68). Porém, vincular a adesão à astrologia a determinadas características da vida moderna, particularmente o modo de vida nas metrópoles, levanta uma questão interessante. Como um saber que se propõe como universal e atemporal se acomoda aos contextos culturais onde é instalado? A busca de uma tradição histórica contínua, que se estenda a todos os fatos englobados sob o nome de astrologia, arrisca-se a incorrer em deformações dos contextos estudados. As concepções de mundo a partir das quais se desenvolve o pensamento astrológico são variadas e mesmo contraditórias. Conforme Vilhena (1990:15) tão bem observou, não existe uma astrologia, mas astrologias, tantas quantas forem os contextos culturais. Um enfoque mais substancialista poderia considerar o atendimento astrológico, ou mesmo o consumo da literatura técnica, independentemente da interferência de padrões culturais. No entanto, não parece plausível que a astrologia, em si e por si, possa manter o tipo de coerência e consistência que seus adeptos apregoam. Basta observar a diversidade de vozes dos próprios astrólogos, sustentando posições divergentes, até opostas, com relação à teoria e à prática astrológicas, para que se vislumbre uma possível conexão entre os enfoques adotados pelos adeptos da astrologia e suas respectivas formações profissionais, as redes sociais na qual transitam, os segmentos sociais aos quais pertencem. Considerando a metrópole como sede da mais extrema divisão de trabalho (Simmel, 1976), parece razoável que os diversos contextos urbanos - a praça, o mercado, a academia, o consultório particular – deixem marcas nas práticas astrológicas que ali ocorrem. Mesmo que as colunas de horóscopos sempre tenham oferecido às camadas populares respostas para os dilemas da vida cotidiana – amor, trabalho, dinheiro e saúde – a consulta astrológica, que interpreta um tema de nascimento, está historicamente associada à nobreza e ao poder. Delineando a história da astrologia, Peter Burke (2001) salienta uma alternância no perfil de seus consumidores: da nobreza e do clero na Europa medieval, para as classes mais baixas (nos séculos XVII, XVIII e XIX) e, destas últimas, para as camadas

7 médias e altas (fins do século XIX e século XX). Há uma diferença significativa nos produtos astrológicos voltados para os diversos segmentos sociais. As colunas de horóscopos em jornais e revistas contemporâneos, assim como os almanaques publicados nos séculos XVIII e XIX, são os produtos consumidos pelas classes mais baixas e se limitam a oferecer diretrizes gerais e padronizadas: como será o dia de todos os leoninos, o que os milhões de taurinos devem temer, a melhor época para atividades de plantio ou corte de cabelo, os períodos favoráveis a investimentos ou a viagens, e assim por diante. Por outro lado, a carta natal se refere exclusivamente a um determinado ‘nativo’, singularizando-o, e este é, segundo Burke, o produto astrológico que interessa aos segmentos mais abastados e intelectualizados. Para o segmento social pesquisado, as consultas astrológicas oferecidas em feiras esotéricas, assim como as interpretações computadorizadas, adquiridas em quiosques montados nos corredores de shopping centers, são comparáveis às colunas de horóscopos veiculadas pela mídia, no sentido de que não constituem a verdadeira astrologia. Esta só pode ser encontrada na singularidade de um mapa natal, objeto de uma leitura compreensiva e detalhada. A crescente cobertura, por parte da mídia, de temas ligados à astrologia, assim como a divulgação dos mapas de pessoas famosas, evidenciam a entrada da consulta astrológica no mercado da sociedade de consumo. É possível tratar a difusão do aconselhamento astrológico como um fenômeno basicamente mercadológico, um modismo induzido por uma bem montada estratégia de marketing, capaz de criar uma demanda e supri-la com produtos e práticas diferenciadas, ao estilo do freguês. Se os adeptos da astrologia são clientes que escolhem os produtos segundo suas necessidades e interesses, o delineamento do perfil daqueles que recorrem à astrologia, identificados pela participação, mais ou menos regular, em uma rede de trocas simbólicas, via consultas, cursos, congressos ou fóruns na internet, tende a sublinhar a necessária cosmetização do produto para que ele atinja o público-alvo. Mary Douglas (2004), porém, salienta que o consumo é investido de valores sociais, funcionando como um código que classifica pessoas, bens e serviços por meio de um sistema de significações que permite uma leitura do mundo e da sociedade.

8 A ótica do mercado pode deixar escapar que, para além da mercantilização e do consumo, a adesão a um sistema simbólico implica, em maior ou menor grau, um comprometimento com uma visão de mundo. Uma visão de mundo constitui um modelo cognitivo que não necessariamente se ajusta rigorosamente às situações vivenciadas, mas que acaba por orientar a ação a partir da pressuposição de uma certa ordem no mundo. Logo, não se trata de um modelo puramente categorial, mas presume também uma conectividade reguladora, projetando sobre a realidade analogias e relações de causa e efeito à sua imagem e semelhança. Geertz (1989) distingue visão de mundo de ethos: ethos está associado a aspectos afetivos e estéticos, a estilo de vida, enquanto que visão de mundo enfatiza os aspectos propriamente cognitivos. Embora a distinção proposta por Geertz não coincida exatamente com a de Bateson, que separa ethos de eidos, Velho (1994) salienta que ambos colocam a dimensão cognitiva à parte, reproduzindo a dicotomia ‘cognição X emoção’, clássica no pensamento ocidental. Velho acredita que a noção de sistema cognitivo é indissociável da noção de sistema de crenças a qual, por sua vez, implica sentimento e emoção. Portanto, ele acha problemática a distinção de um cognitivo separado dos aspectos afetivos, estéticos e emotivos. Porém, se Geertz tem razão ao afirmar que a relação entre ethos e visão de mundo é circular, promovendo uma fusão simbólica entre elementos valorativos e cognitivos, ou seja, entre um conjunto de disposições e motivações e uma idéia de ordem, é justamente o fato de colocar as instâncias da vida cotidiana em contextos finais que torna um sistema simbólico capaz de integrar a dimensão cognitiva e a dimensão existencial, oferecendo modos pelos quais o vivido pode ser pensado. Logo, examinar os motivos e circunstâncias que promovem e sustentam a adesão ao sistema astrológico nas sociedades urbanas modernas não basta para analisar os processos de atribuição de sentido envolvidos. Em vista disso, não procurei delinear o perfil dos adeptos da astrologia, nem dos mais comprometidos com o sistema nem dos interessados ocasionais. Tampouco me detive nas estratégias de mercado capazes de facilitar a comercialização dos produtos e serviços astrológicos e assegurar uma clientela regular. Ao invés disso, tentei compreender os mecanismos simbólicos pelos quais as categorias

9 astrológicas se incorporam na vivência de pessoas pertencentes a um setor restrito das camadas médias urbanas da Zona Sul do Rio de Janeiro. Meu foco analítico recai sobre o dizer e o fazer astrológicos tal como eles se consolidam no Rio de Janeiro, no segmento social caracterizado como ‘erudito’ (Morin, 1981; Vilhena, 1990; Magnani, 2000), composto por aqueles que estudam o sistema astrológico e tentam manipulá-lo por conta própria. Este é o segmento social, no Rio de Janeiro, mais envolvido com a consulta astrológica. Com esse intuito analítico, tento detectar e descrever uma possível matriz discursiva que sustente o aconselhamento astrológico tal como ele é oferecido e aceito no segmento social - alvo. O primeiro capítulo apresenta uma descrição dos grupos que observei durante o período do trabalho de campo. No segundo capítulo, procuro delinear as principais categorias astrológicas, tratando o sistema astrológico como um sistema de classificação, com base na proposta teórica de Lévi-Strauss (1989), a partir da sugestão de Durkheim, Mauss (2001). O terceiro capítulo aborda a consulta astrológica, onde ocorre a leitura ritual de um mapa de nascimento, tal como ela é comumente praticada na sociedade carioca, buscando enfocar, mais especificamente, a natureza da orientação astrológica oferecida aos clientes. Finalmente, o quarto capítulo focaliza o sistema astrológico na qualidade de modelo narrativo e as implicações deste modelo na re-significação das experiências de vida. Procuro demonstrar como os constituintes formais do sistema astrológico entram na composição de narrativas de vida, remodelando e redimensionando as conexões que montam a trama de uma identidade montada narrativamente.

Capítulo 1 – O trabalho etnográfico

Os adeptos da astrologia estão longe de constituir um grupo coeso e homogêneo. São diversos os graus de adesão e comprometimento para com o sistema astrológico, assim como são diversas as combinações de bens e serviços disponíveis aos interessados. Esse grupo costuma ser dividido em três grandes segmentos: aqueles que se limitam a acompanhar as colunas de horóscopos divulgadas nos meios de comunicação, sem se envolverem em consultas particulares; aqueles que consultam astrólogos, em sessões particulares, mas que não procuram entender o sistema; e, finalmente, os mais comprometidos com o sistema astrológico, que se esforçam em compreendê-lo e manuseá-lo por conta própria. Magnani (2000) emprega o termo ‘erudito’ para descrever a parcela dos freqüentadores de circuitos neo-esotéricos que se relacionam com esse universo de forma mais consistente. Distinguem-se assim dos freqüentadores ocasionais (que atendem a modismos passageiros) e dos ‘participativos’ (que sentem afinidade com os temas e possuem alguma informação prévia, mesmo que esparsa). Ao analisar a apropriação da astrologia por parte da sociedade francesa moderna, Morin (1981) também emprega o termo ‘erudito’ para descrever o segmento social mais restrito que consome a literatura técnica oferecida àqueles que se dispõem a entender e manipular o sistema por conta própria. Composto pelos próprios astrólogos e por ‘estudantes’, este segmento estaria, segundo Morin, interessado em expulsar o acaso, ligando o sujeito moderno, fragmentado e desarticulado, a um todo maior, ao cosmos. Na análise de Morin, o segmento erudito deve seu envolvimento em tais práticas à crise da modernidade. Por outro lado, o consumo de massa, ligado a colunas de horóscopos divulgadas nos meios de comunicação, ofereceria consolações imaginárias para a rotina burocratizada, contribuindo para integrar o indivíduo à sociedade burguesa ao manter e alimentar o conformismo. Tomando o segmento erudito como objeto de estudo, Vilhena (1990) conclui que este grupo, no Rio de Janeiro, não chega a configurar um grupo desviante,

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circunscrito por uma fronteira simbólica constituída pela crença na astrologia. O trabalho de Vilhena mostra bem como a definição de fronteiras é resultado sempre transitório de um tenso diálogo entre domínios múltiplos mediante os quais as pessoas operam a construção de suas semelhanças e diferenças. Em muitos casos, a passagem de um para outro domínio não é compreendida pela pessoa como uma mudança, mas como correção de curso dentro da mesma trajetória. Vilhena discute a natureza da modernidade e o papel ocupado pelas camadas médias urbanas na veiculação de valores, enfatizando a relação ambígua que a modernidade estabelece com a astrologia: respaldada nos próprios valores e pressupostos da vida moderna, ela se apresenta como uma crítica a este modo de vida. Conclui ele que “ao contrário do que os teóricos do esoterismo supunham, a astrologia acaba por ser, na verdade, um veículo que expressa e problematiza as tensões dos próprios valores (modernos), mesmo quando, aparentemente, os nega”. (1990:203). Os adeptos do sistema astrológico, principalmente aqueles com um nível de escolaridade relativamente elevado, desempenham um papel estratégico na construção e veiculação de valores nas sociedades urbanas modernas, muito embora eles próprios se posicionem como críticos desses mesmos valores. Essas tensões contraditórias, que constituem a própria marca da modernidade (Velho, 1999), percorrem o ethos característico do grupo pesquisado por Vilhena, expressando-se nas trajetórias particulares de cada informantes. São, assim, dois os principais pontos nos quais o trabalho de Vilhena discorda do trabalho de Morin. Em primeiro lugar, apoiado em Simmel e em Gilberto Velho, ele salienta que a crise da modernidade não pode responder pela adesão a um sistema mágico-classificatório já que ‘crise’ é a própria marca da modernidade. Em segundo lugar, apoiado em Lévi-Strauss, ele discorda de uma abordagem que vê na astrologia um resíduo irracional de etapas anteriores da evolução do pensamento e que deixa de reconhecer no sistema astrológico uma sistematização e uma coerência semelhante às classificações científicas. Porém, tanto Morin quanto Vilhena identificaram uma sensível diferença na visão da astrologia naqueles informantes que não se interessavam em manipular o sistema por conta própria. A adesão a um sistema simbólico por parte de indivíduos voltados para a solução de problemas pessoais, sem comprometer-se com os demais

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aspectos do sistema, sejam eles éticos, estéticos, filosóficos, religiosos ou místicos, revela um acentuado traço mágico. O sistema astrológico chama atenção por um aspecto peculiar. Ele entrelaça cálculos matemáticos, figuras geométricas e coordenadas astronômicas com reflexões de cunho filosófico e religioso, sem deixar de sugerir técnicas para previsão e controle das contingências da vida. A principal implicação da natureza compósita da astrologia é que ela tende a dissolver as fronteiras entre magia, religião e ciência. O envolvimento no estudo do sistema astrológico, por parte desse segmento considerado erudito, implica uma construção sistematizada de um conhecimento promulgado, pelos próprios adeptos, como sendo de base racional, em um contexto capaz de atrair também aqueles mais voltados para valores mágicos ou místicos. É importante levar em conta que a astrologia constitui um sistema simbólico atrelado à escrita. Vilhena aponta as relações históricas mantidas entre as práticas divinatórias e certos sistemas de escrita, como o chinês e o mesopotâmico. “Estes eram monopolizados, nos dois casos, por castas sacerdotais e sua habilidade de ler signos gráficos relacionava-se diretamente com a capacidade de interpretar o significado divinatório de eventos naturais. Estava em jogo, evidentemente, uma idéia de controle, controle esse que legitimava a posição de poder dos sacerdotes”.(Vilhena, 1997:106). O uso sistemático de cálculos e relações geométricas, assim como a decifração de signos gráficos, são capacidades desenvolvidas na escolaridade formal da nossa sociedade, contribuindo para inverter uma tradição que destinava esse tipo de aprendizagem a uns poucos. A ampliação do grupo de pessoas dispostas a entender o sistema por conta própria é facilitada pelo desenvolvimento da tecnologia ligada à escrita. Sistemas informatizados, que dispensam a observação direta do céu e concentram os esforços na manipulação dos dados sobre o céu, despejam em instantes uma profusão de diagramas e cálculos, material sobre o qual se erigem as interpretações. Na medida que, na tradição letrada ocidental, ler e escrever se tornam cada vez mais atividades solitárias, dependentes da disposição do indivíduo (Goody, 1968), o autodidatismo torna-se, para alguns, a via preferencial para o estudo da astrologia. A

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facilidade de acesso às técnicas de cálculo, por meio de programas de computador, aliada à farta literatura temática encontrada nas livrarias, contribui para isso. No entanto, verifica-se, no Rio de Janeiro, um esforço no sentido de reestruturar o estudo da astrologia com vistas a adequá-lo ao estilo racionalista de produção de conhecimento. Ao valor concedido ao modelo de raciocínio científico, principalmente por parte do segmento-alvo, soma-se uma reestruturação do campo ocupacional, aproximando-o do estilo moderno de formação profissional. Um dos indícios dessa reestruturação é a tentativa de adotar uma organização burocrática nos moldes das organizações acadêmicas e profissionais. As escolas de formação de astrólogos, no Rio de Janeiro, surgiram em fins da década de 80 e na década de 90, durante o período considerado o ‘boom’ da astrologia carioca. Esses cursos pleiteiam reconhecimento por parte do MEC, montando currículos, ementas e cargas horárias tal como um curso universitário, incluindo supervisão para a prática de atendimento e a emissão de diplomas e certificados. A organização profissional está representada pelos sindicatos e associações. O reconhecimento da profissão de astrólogo, em tramitação no Congresso1, e a aprovação em assembléia do Código de Ética da categoria devem-se ao trabalho dessas instituições junto aos órgãos competentes. O SINARJ, Sindicato dos Astrólogos do Rio de Janeiro, foi fundado em 1989, por 48 sócios fundadores, e hoje conta com cerca de 500 sindicalizados devidamente registrados. Segundo a astróloga que ocupa a presidência deste sindicato, 78% dos filiados têm nível superior completo. Este sindicato promove também, anualmente, um simpósio, nos moldes de um congresso de âmbito nacional. O 1o Simpósio Nacional de Astrologia foi realizado em janeiro de 1997, no Centro de Convenções do Barrashopping. Em janeiro de 1998, o 2o Simpósio comemorou o ingresso de Netuno em Aquário e, em agosto de 1999, o 3o Simpósio teve como tema ‘O Grande Eclipse e a Transição de Milênios’. A diretoria do Sinarj, durante o período da minha pesquisa, organizou o 4o Simpósio, em agosto de 2002, realizado no Centro de Convenções do Hotel Florida, no Flamengo, com o tema “O trígono Saturno e Urano - a atualidade na tradição 1

A profissão de astrólogo ainda não está devidamente regulamentada. Tramitam, no Senado e na Câmara Federal, dois projetos para sua regulamentação. O primeiro foi apresentado em março de 2002 pelo Senador Artur da Távola (PSDB-RJ), e o segundo, em maio do mesmo ano, pelo Deputado Federal Luiz Sérgio (PT-RJ).

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astrológica”. Houve, nessa ocasião, uma convocação para trabalhos de pesquisa inéditos2, sobre os temas História da Astrologia, Simbolismo, Técnicas Astrológicas e Aplicação à Psicologia. O melhor dos trabalhos apresentados, escolhido por uma comissão do Sinarj, foi apresentado no Simpósio. Esta convocação foi mantida e ampliada nos dois simpósios seguintes. No 5o Simpósio, realizado em agosto de 2003, com o tema “Urano em Peixes”, foram apresentados quatro trabalhos de pesquisa inéditos. O 6o Simpósio, em agosto de 2004, com o tema “Astrologia e Interdisciplinaridade”, apresentou seis trabalhos inéditos. A preocupação em formalizar o estudo e a prática da astrologia contribuiu para ressaltar o papel das instituições na dinâmica social dessa atividade ocupacional. Os grupos de estudos informais e esporádicos convivem hoje com centros de estudos bem montados, que oferecem cursos regulares e voltam-se para a produção de uma literatura temática, começando a entrar no mercado editorial. Hoje em dia, verifica-se entre os adeptos da astrologia a mesma tendência que Magnani (1999) reconhece no grupo que ele denomina de neo-esotérico. Os usuários afastam-se dos antigos moldes do consumo clandestino e envergonhado e assumem mais aberta e explicitamente sua adesão a tais práticas. Conforme Magnani (1999:18), a emergência de novos padrões de comportamento no contexto das metrópoles, em consonância com determinadas tendências da vida contemporânea, resultaram numa oferta de bens e serviços desse gênero em endereços bem localizados, para um público consumidor formado por pessoas escolarizadas, de bom poder aquisitivo, interessadas em aprimorar a qualidade de vida. No Rio de Janeiro, os cursos e as escolas para formação de astrólogos localizamse majoritariamente na Zona Sul da cidade e na Barra da Tijuca, facilmente acessíveis por uma potencial clientela com recursos financeiros3. No entanto, isso talvez reflita muito mais o caráter urbano dos consumidores do que propriamente uma penetração nos círculos oficiais das atuações profissionais, principalmente aquelas que exigem o aval 2

A expressão ‘trabalho de pesquisa inédito’ é empregada pelo próprio SINARJ. Dentre os que tiveram seus trabalhos selecionados para o Simpósio de 2003, dois foram promovidos a palestrantes no simpósio seguinte. Isso indica que a elaboração de trabalhos desse gênero constitui uma possibilidade de reconhecimento e aceitação por parte do grupo ocupacional. 3 Os cursos são dispendiosos e muitas das pessoas que conheci em eventos públicos lamentavam a falta de condições financeiras para freqüentá-los. Na escola que freqüentei, cada disciplina cursada custava cem reais por mês. Era oferecido um desconto progressivo para quem cursasse mais de uma disciplina. Algumas alunas chegavam a cursar quatro ou cinco disciplinas em um período letivo.

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da ciência, muito embora um número não desprezível de adeptos da astrologia faça parte de grupos ocupacionais valorizados na sociedade brasileira por exigirem uma formação universitária. Entre as pessoas com quem convivi encontrei arquitetos, psicólogos, advogados, médicos, professores universitários, professores de ensino fundamental, filósofos, engenheiros, economistas e jornalistas. Chegamos a um ponto relevante aqui. Velho (1999:30) admite que certas premissas e categorias daqueles que exercem profissões e atividades ‘racionalizadas’ são, de certa maneira incompatíveis, pelo menos no nível da prática profissional, com as premissas e categorias mais associadas a um lado irracional ou místico, o que não impede que muitos profissionais liberais, em diferentes contextos, acreditem em práticas mágicas, mau-olhado, azar, etc. Há, portanto, um conjunto de variáveis - poder econômico, nível de escolaridade, circulação preferencial em certos espaços sociais da cidade, etc – que poderiam, tentativamente, descrever o segmento-alvo para nossa pesquisa. Preferimos, porém, nos ater a um traço marcante, percebido por Velho (1989, 1994, 1999), característico das camadas médias cariocas: um discurso psicologizante, no qual o sujeito individualizado aparece com nitidez, um sujeito que procura sua verdade, desenvolve suas potencialidades e que dispõe de um vocabulário bem desenvolvido para expressar verbalmente suas emoções. Embora as escolas de astrologia no Rio de Janeiro agreguem pessoas de diferentes níveis de escolaridade, de diferentes profissões e de diferentes visões não só da astrologia, mas também da própria sociedade mais ampla, esse grupo heterogêneo se reúne em torno de um interesse em comum – o estudo da astrologia – e seus encontros são regulares, favorecendo uma sociabilidade mais estreita do que a geralmente encontrada entre aqueles que se limitam a freqüentar os circuitos de fins de semana. A escolha de uma escola para formação de astrólogos como base do trabalho etnográfico pode ser justificada nessas linhas. Antes, porém, de apresentar o material etnográfico, preciso ressaltar que a rede de contatos acabou me levando a conviver muito mais com os astrólogos do que com a clientela leiga. É importante deixar claro que, quando apresento meus informantes como astrólogos, estou adotando esse termo em sentido amplo, nele incluindo todos aqueles que se dispõem a levantar mapas astrológicos e a manusear o sistema por conta própria.

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Entendo assim como astrólogo tanto os que exercem essa atividade profissionalmente, atendendo clientes e/ou ensinando astrologia, quanto aqueles que exercem essa atividade em tempo parcial, aliada ao exercício de uma outra profissão. Incluo também os que examinam os mapas astrológicos de amigos e familiares, e os seus próprios, sem se envolverem na prática de atendimento. O que os une, a todos, é a confiança na eficácia do sistema astrológico e o esforço envolvido para o entendimento deste. Dessa forma, é possível distingui-los dos historiadores e filósofos da ciência, que se dispuseram a estudar a astrologia sem necessariamente considerá-la eficaz, e dos consulentes em geral os quais, embora aceitem a contribuição da astrologia, não procuram entender o sistema. De modo geral, o reconhecimento de uma pessoa como astrólogo repousa sobre dois requisitos: o conhecimento técnico para a leitura de cartas celestes e a prática de atendimento. Para o grupo com quem convivi, entretanto, o conhecimento técnico é condição sine qua non para esse reconhecimento e a prática de atendimento não parece exercer a relevância que os leigos possam lhe atribuir. É comum perguntarem-se uns aos outros: “Mas, você atende?” Seja a resposta sim ou não, a reação costuma ser “Ah, é?” Não percebi sinais de que o não envolvimento nas práticas de atendimento seja critério para a exclusão do grupo. Até porque a constatação do meu ‘estudo’ da astrologia me franqueou a admissão no Sindicato dos Astrólogos do Rio de Janeiro. Fiquei interessada em filiarme, acreditando que este poderia ser um caminho para colher um tipo de material que talvez não fosse encontrado nos espaços que freqüentei. Perguntei a várias colegas do curso se elas eram sindicalizadas ou não e qual seria a vantagem da sindicalização. As que ainda não se tinham filiado, não demonstraram o menor interesse em fazê-lo. “Acho que não tem vantagem nenhuma. Quem é sindicalizado tem desconto nos simpósios, mas quem é aluno daqui também tem, então, pra que? Depois, a escola também distribui os boletins do sindicato, então a gente fica sabendo de tudo. Não vale a pena”. (Andréa) Aquelas que já eram sindicalizadas ofereceram muito incentivo para que eu me filiasse. Era ‘muito bom’, ‘muito importante’, ‘quanto mais gente melhor’. Uma das diretoras do Sinarj, aluna da escola, trouxe os papéis para a proposta de filiação na aula seguinte e se ofereceu para cuidar da admissão.

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“Preenche isso aqui, Beth, e assine. Pode deixar que eu mesma levo lá para o sindicato. Você nem precisa ir, eu me encarrego disso. A taxa da anuidade vai para sua casa, em boleto bancário. A carteirinha também vai pelo correio. Você precisa me trazer dois retratos. Não esquece, traz na aula que vem”. Quando eu participei dos simpósios de 2003 e 2004, já estava fazendo jus ao desconto oferecido aos sindicalizados na taxa de inscrição e já era devidamente registrada como astróloga. Em parte, a aceitação da minha presença nos grupos que freqüentei foi favorecida pela minha posição de pesquisadora acadêmica. Ao invés de enfrentar desconfianças quanto ao meu interesse no grupo, suspeitas quanto ao que eu poderia dizer ou escrever, ou resistências em me prestar esclarecimentos e me conceder entrevistas, o que é bastante comum em um trabalho de campo, vi-me diante de uma aceitação muito favorável, quase que um entusiasmo, pelo interesse - “até que enfim!” (Renata) - da universidade pela astrologia. O bom acolhimento de um pesquisador acadêmico, assim como todo e qualquer contato com representantes da ciência institucionalizada, parece contribuir para o estreitamento dos laços entre a astrologia e a academia4. Os pedidos de entrevistas foram prontamente aceitos com comentários do tipo: “Eu tenho mesmo muita coisa pra te dizer” (Célia); “Que bom que você está disposta a fazer a entrevista lá em casa, porque aí eu posso te mostrar onde e como eu trabalho” (Glória); “A hora que você quiser. Eu sei que você precisa disso. Só não sei se você vai gostar do que eu tenho pra falar sobre o meio astrológico” (Heloísa). As poucas relutâncias que encontrei alegavam uma desqualificação para a posição de informante, e não uma resistência à interlocução. “Olha, você tem certeza que quer me entrevistar? Eu não sei muita coisa, não sou assim metida nesse meio, estou só estudando” (Marília); ou então, “eu acho que não vou saber responder o que você vai me perguntar, eu não entendo tanto assim de astrologia” (Simone).

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A diretora da escola Espaço do Céu comentou: “Olha, esses debates entre astrólogos e astrônomos funcionam a nosso favor. Hoje, o Shermann (astrônomo do Planetário da Gávea) tem outra visão da astrologia. Aos poucos, eles vão conhecendo melhor porque, sabe, eles costumam criticar sem nem ao menos saber do que se trata. É um trabalho de paciência, aproveitar as oportunidades que eles mesmos nos dão para explicar como funciona a astrologia”.

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Era também comum que os comentários que eu ouvia no decorrer de conversas casuais, nos espaços que freqüentei, fossem ampliados e elaborados em meu benefício. “Vocês viram o que o Fulano falou lá no simpósio? Que coisa... Mas ele, já viu, é daquele jeito mesmo” – nesse ponto, a pessoa virava-se para mim e explicava: “Beth, você já conhece o Fulano? Ele faz esse gênero meio zen, eu já me consultei com ele, é do tipo que fica de olhos fechados, como se estivesse meditando e, de repente, diz uma coisa assim do nada e volta a meditar. É muito esquisito. E não foi só comigo, não. Conheço várias outras pessoas que contam a mesma história. A gente fica até meio sem graça, sem saber se ele está dormindo ou se ele está esperando que a gente diga alguma coisa” (Suzana). Dois fatores parecem ter contribuído para essa abertura. O ‘estudo’ e a ‘pesquisa’ como valores compartilhados e o fato de que a maioria dos meus informantes concebe o saber astrológico como uma ‘ciência’, digna de figurar entre as disciplinas acadêmicas entre as quais, aliás, ela já esteve, como alguns deles nunca se cansam de lembrar. O retorno da astrologia aos templos de saber acadêmico deverá acontecer, mais cedo ou mais tarde, “porque as pessoas estão cada vez mais se dando conta da contribuição que a astrologia sempre prestou ao conhecimento e quem se incomoda com isso são os cientistas de cabeça estreita que se acham donos da verdade. Não são nem todos os cientistas, porque muitos deles já estudam astrologia” (Adriana). A despeito das dificuldades e dos antagonismos que os astrólogos têm enfrentado na sua interlocução com a sociedade mais ampla (notadamente com o meio científico e religioso), era bastante generalizada a idéia de que o estado da arte da astrologia se encontra espremido entre um passado glorioso e um futuro promissor.

1.1 O Espaço do Céu

“O Espaço do Céu tem como objetivo a divulgação e difusão da astrologia com seriedade, visando seu engrandecimento e respeitabilidade. Informando, formando e incentivando pesquisas”. (www.espaco-doceu.com.br)

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Parte do trabalho de campo foi realizado em uma escola para formação de astrólogos, situada no Largo do Machado, na Zona Sul do Rio de Janeiro. A escola, denominada Espaço do Céu, funciona em uma sala no terceiro andar de um edifício semi-comercial, semi-residencial. A diretora da escola possui um consultório no mesmo prédio, onde atende sua clientela. O espaço é equivalente ao de um apartamento de quarto e sala. Entra-se por um corredor, que se abre em uma saleta, misto de secretaria e sala de espera. A sala de aula fica ao fundo e suas janelas dão para a rua. As janelas jamais são abertas, o barulho que vem da rua é muito grande, pois trata-se de uma rua bastante movimentada, de tráfego intenso. O ar condicionado é sempre ligado. Na saleta, há um balcão e uma mesa com um computador, onde trabalha a secretária. Ela é funcionária da escola desde que esta foi fundada. Teve oportunidade de assistir algumas aulas sobre astrologia, mas não levou o estudo adiante “porque não tenho tempo. O trabalho aqui toma todo o meu dia”. Na parede oposta ao balcão, existe uma bancada, com uma bandeja com café, água gelada, um pote com balas ou biscoitos. Entre o balcão da secretária e a bancada, há duas mesinhas com quatro cadeiras, onde os alunos esperam a hora da aula. Poucos chegam cedo. Na maioria das vezes, os alunos já se dirigem diretamente para a sala de aula, que conta com cerca de 20 carteiras.

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Nas paredes laterais da secretaria, duas vitrines fechadas expõem livros à venda. Um quadro de avisos exibe a programação da casa, os eventos patrocinados por instituições ligadas à astrologia e recortes de notícias extraídas de jornais e revistas sobre esse tema. Uma revisteira contém diversos exemplares de jornais distribuídos gratuitamente: Universus, Ganesha, Prana e Oxigênio. As paredes, tanto da secretaria quanto da sala de aula, são decoradas com quadros que retratam o sistema solar, as constelações, o planisfério e a figura humana como um microcosmo. A escola conta com uma equipe permanente de cinco professores e um grupo de convidados regulares que ministram palestras, seminários, workshops ou cursos de férias. Dentre esses convidados, encontram-se astrólogos de Brasília, São Paulo, Recife e Porto Alegre. A diretora da escola, Celisa Beranger5, era arquiteta antes de se profissionalizar como astróloga. Quanto aos outros professores, Cid de Oliveira era engenheiro, Cláudia Castelo Branco era filósofa e Gleide Gomes trabalhava como secretária executiva. Todos eles abandonaram suas profissões anteriores e trabalham com a astrologia em tempo integral. A diretora da escola iniciou seus estudos de astrologia em 1988, e começou a lecionar na Astroscientia, uma escola de astrologia que se dissolveu em 1996. A equipe permanente do Espaço do Céu é formada por antigos professores dessa mesma escola, que se localizava na Rua Sebastião Lacerda, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Um dos motivos para a escolha do Espaço do Céu para o trabalho etnográfico é que essa escola foi criada a partir de uma cisão do grupo da Astroscientia estudado por Vilhena (1990). Este grupo se dissolveu em 1995/1996 e as pessoas enveredaram por três caminhos diferentes. Uma parte montou uma escola no Leblon, denominada Zênite, a qual, dois anos depois de sua fundação, também se dissolveu. Os astrólogos que haviam se associado para montar essa escola passaram a ministrar aulas em casa, a grupos pequenos de alunos, embora oficialmente a Zênite ainda exista como razão social. Outra parte do grupo original de pessoas deixou de freqüentar escolas de

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Os nomes dos professores da escola e dos palestrantes em eventos públicos foram mantidos. Todos os demais foram alterados. Entretanto, quando os depoimentos ou comentários desses mesmos professores e palestrantes, citados no texto, foram colhidos por mim em entrevistas pessoais ou em conversas informais, seus nomes também foram trocados.

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formação, mas participa esporadicamente dos cursos de fim de semana, seminários e congressos oferecidos tanto pelas escolas quanto pelo sindicato de astrólogos. Finalmente, um terceiro grupo transferiu-se para a escola Espaço do Céu que funciona até hoje. O Espaço do Céu foi fundado em 1997 e funcionava, de início, na Rua Dois de Dezembro, no Catete. Poucos meses depois, passou para o endereço atual. Em 2001, transferiu-se para um edifício no mesmo quarteirão, um prédio comercial mais moderno. Mas, no segundo semestre de 2001, voltou ao endereço atual, pois as despesas no novo prédio estavam muito altas. A escola tem hoje cerca de 50 alunos. Já contou com 110 alunos, mas a freqüência vem diminuindo nos últimos anos. Em média, os alunos têm mais de 30 anos de idade e o nível de escolaridade é bastante diversificado. Todos os que conheci têm o segundo grau completo, muitos têm nível superior e uns poucos são pós-graduados. Os alunos são majoritariamente do sexo feminino. Dentre as minhas mais de 30 colegas, só encontrei três homens. O estudo de Morin, Défrance, Fischler e Petrossian conclui que a adesão à astrologia é um fenômeno predominantemente feminino, jovem e urbano. Apesar de estar lidando com um segmento social urbano diferente, o das classes trabalhadoras, Duarte afirma que, nos grupos por ele estudados, a consulta a horóscopos se faz, sobretudo, por mulheres e jovens, mas salienta que “este ponto ainda é insuficientemente pesquisado e conhecido” (1985:208). Vilhena (1990) identifica no estudo de Morin um certo biologismo, que transparece, por exemplo, na comparação da astrologia a um germe infeccioso que se propaga na sociedade moderna, ou no diagnóstico de que os adeptos dessa prática são aqueles que têm menos anticorpos contra a astrologia. Talvez seja esse mesmo biologismo o que leva Fischler a equacionar a predominância feminina por ele constatada a “une astrologie des tempéraments, des cycles et des rythmes bio-psychocosmiques” (Fischler, 1981:24). Isso parece vincular a mulher aos ciclos e ritmos que compõem a periodicidade da natureza, na esteira de uma concepção que enraíza o gênero em categorias essencialistas. A estreita aproximação do feminino à natureza tem sido amplamente discutida. Análises etnológicas questionam exatamente a generalização da equação

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‘mulher=natureza, homem=cultura’, juntamente com a correspondente hierarquização que submete a natureza à cultura, logo, submete a mulher ao homem (Overing, 1986; Strathern, 1988; Counihan, 1996, Héritier, 1996). Segundo Héritier (1989), este é o motor do trabalho simbólico exercido sobre a relação entre os sexos. Enquanto que a mulher verte seu sangue involuntariamente, o homem arrisca ferir-se, na guerra e na caça, por decisão. Nesse sentido, o sangue masculino é derramado voluntariamente. Conseqüentemente, a auto-determinação, acompanhada de suas congêneres (empenho, propósito, vontade e assertividade), pertencem estereotipicamente à esfera masculina, reservando-se à mulher a impulsividade, a irreflexão e a indecisão. Além disso, a mulher verte, por determinação biológica, não só sangue, mas também leite. Donde, cabe a ela o papel de mãe e nutriz. Respaldando, assim, a pressuposição de um instinto maternal (constitucional, posto que natural), o confinamento da mulher na domesticidade e na cotidianidade fica asseverado. Discutindo análises feministas sobre a opressão da mulher e seu atrelamento à esfera da domesticidade, Cavalcanti (1981) argumenta que a proposição ‘opressão da mulher’ decorre de uma série de categorias correlatas, tais como poder, desigualdade, direitos, e uma categoria matriz – a de indivíduo como valor enquanto sujeito moral. É através desse viés que as análises feministas, como a de Rubin e a de Simone de Beauvoir, permitem que se formule uma condição genérica de opressão e, ao mesmo tempo, postulem a existência de um gênero mulher universal. Magnani (1999:110-115) também assinala o perfil majoritariamente feminino no público que freqüenta os circuitos neo-esotéricos e oferece algumas vertentes para a explicação dessa predominância feminina: -a valorização, no segmento social investigado, de uma sensibilidade estereotipicamente marcada como feminina, na medida que a espontaneidade, o senso estético e a intuição são traços considerados dominantes dessa sensibilidade e determinantes na condução de algumas terapias alternativas nas quais esse público se engaja; - o resgate da figura da bruxa, considerada uma forma de poder tipicamente feminina;

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-o papel de agente conferido à mulher nas práticas neo-esotéricas (na qualidade de autoras de livros, professoras, terapeutas, diretoras de centros esotéricos, etc) em acentuado contraste com o papel subordinado que a mulher tem ocupado em sistemas religiosos de tradição judaica/cristã/islâmica. Embora eu não tenha investigado os motivos para a predominância feminina nessa escola para a formação de astrólogos, acredito que a análise de Gilberto Velho sobre o privilégio concedido ao domínio do privado nesse segmento social também contribui para as tentativas de explicação desse fenômeno. Ao investigar a busca de coerência entre os diversos códigos que operam nas sociedades complexas modernas, Gilberto Velho enfatiza que os grupos por ele pesquisados, dentro do universo de camadas médias da Zona Sul carioca, aparecem como os portadores mais típicos da vertente psicologizante do individualismo moderno. Essa vertente se caracteriza pela ênfase e importância concedida ao domínio mais intimista do privado, em contraposição ao domínio do público. Velho salienta que as diferenças entre o ethos masculino e o feminino são importantes, mas que, nesses grupos, homens e mulheres trabalham, empenham-se em planos de carreira e desempenham papéis públicos. As alunas da escola Espaço do Céu também exercem atividades profissionais e, mesmo aquelas que se dizem ‘donas-de-casa’, costumam trabalhar tempo parcial (uma delas ajuda o marido, comerciante, em seu negócio, atendendo na loja) ou são aposentadas (duas professoras de matemática, uma advogada, uma arquiteta, entre outras). A maioria delas tem mais de 30 anos de idade (algumas estão na casa dos 60) e têm curso superior completo (algumas com pós-graduação). Contudo, se um mapa natal pode ser concebido como uma topografia da interioridade, não é de se estranhar que esse estudo atraia aqueles mais engajados com o domínio do privado e da intimidade. Quase todas as alunas trazem, para as aulas, uma pasta com os mapas de seus familiares, principalmente maridos e filhos, além de seus próprios mapas, e esta pasta fica sobre a carteira, sendo por vezes consultada antes de se formular uma pergunta ou contar um caso que comprove um detalhe técnico. Mesmo quando nada é perguntado, escuta-se o barulho de pastas sendo abertas, folheadas e, depois, fechadas.

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Além disso, não são poucos os astrólogos que conheci, tanto homens quanto mulheres, que carregam seus mapas nas carteiras, em forma de xerox reduzida e plastificada – alargando mesmo a noção de carteira de identidade. Na escola Espaço do Céu, as aulas acontecem à tarde e à noite. Cada disciplina é ministrada uma vez por semana, em aulas de uma hora e meia de duração. O curso completo, dividido em 6 etapas básicas e uma etapa de supervisão, inclui as seguintes matérias:

1a Etapa: Simbolismo Elementos e Ritmos Fundamentos História da Astrologia Introdução à Astronomia Cálculo do Mapa Signos e Planetas nos Signos 3a Etapa: Técnica e Prática de Interpretação Trânsitos dos Planetas Lentos Ciclos Estrelas Fixas 5a Etapa: Lunações e Eclipses Casas Derivadas Figuras Interpretação Conjugada das Técnicas Retificação e Busca da Hora Nascimento Supervisão para Prática de: Mapas Natais Trânsitos Progressões Revoluções Solares

2a Etapa: Mitologia dos Signos e Planetas Casas e Planetas nas Casas Aspectos Cúspides e Regências

4a Etapa: Técnicas de Comparação de Mapas Progressões Evolutivos Revoluções Solares/Lunares Sinastria e Mapa Composto 6a Etapa: Eletiva Nodos Lunares Enquadramentos Partes Árabes de Horária Fundamentos Filosóficos

Além das disciplinas regulares, a escola oferece cursos extras, em função do interesse dos alunos que, vez por outra, solicitam determinados temas. Ao longo de período letivo, também é oferecido um ciclo de palestras abertas ao público, para as quais é preciso inscrever-se com antecedência devido à exigüidade do espaço de sala de aula. Uma vez lotado o espaço, os demais interessados ficam em uma lista de espera,

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sendo notificados da possibilidade de comparecerem caso haja uma desistência. No primeiro semestre de 2004, foram essas as palestras: 1. ‘Branca de Neve’, com Cid de Oliveira, em 30 de março; 2. ‘Trânsito de Vênus – a expressão do feminino’, com Celisa Beranger, em 29 de abril; 3. ‘Outros usos para o mapa composto’, com Gleide Gomes, em 27 de maio; 4. ‘A relação Saturno/Sol na carta natal’, com Bete Rua, em 1 de julho. Durante o mês de julho, a escola entra em recesso. Porém, durante o mês de janeiro, são oferecidos cursos de férias e workshops. Passa-se uma lista com várias propostas de temas, ainda em dezembro, e os alunos assinalam aquelas que mais lhes interessam, além de marcarem sua preferência quanto ao dia da semana e ao horário. Para janeiro de 2004, a lista de alternativas continha treze temas a serem ministrados por quatro professores. Celisa Beranger: aprendendo a usar o software Solar Fire, os movimentos da progressão secundária, mapa diário, como localizar acontecimentos marcantes e verificar a hora de nascimento, pontos médios. Bete Rua: aspectos em conjunto, casas derivadas, a dinâmica dos planetas nas casas. Cid de Oliveira: Netuno, Urano, introdução à leitura da Divina Comédia. Gleide Gomes: aspectos geracionais em mapas pessoais, o trânsito de Saturno nas casas. Cada curso custava cem reais e havia um desconto para quem se inscrevesse em mais de um curso e para quem tivesse freqüentado a escola durante o semestre anterior. Assim que me inscrevi como aluna na escola, em fevereiro de 2003, matriculeime em duas disciplinas. Uma, sobre mitologia dos signos, que era oferecida para os iniciantes. A turma tinha quatorze alunas. A outra, sobre uma técnica preditiva denominada ‘progressões’, era ministrada em um período mais avançado. A turma tinha oito alunos. O meu objetivo era me aproximar tanto das pessoas dispostas a iniciar um estudo de longo prazo sobre astrologia quanto das pessoas que tinham levado o estudo adiante, estando prestes a se ‘formar’. A minha primeira surpresa ocorreu na turma de iniciantes. Minhas colegas, de modo geral, não eram iniciantes. Estavam repetindo aquela disciplina “porque é sempre

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bom ouvir aquilo de novo, a gente acaba entendendo melhor” (Ângela). Algumas das alunas já atendiam clientes, outras já até faziam parte da diretoria do Sindicato de Astrólogos do Rio de Janeiro. Fui percebendo aos poucos que essa prática era comum. Algumas alunas alegavam que repetiam as disciplinas porque “só mais tarde eu percebi o quanto essa disciplina era importante. Na época em que eu fiz isso pela primeira vez, não prestei atenção em muitos detalhes que hoje eu vejo como são importantes. É muita informação junta. A gente não dá conta de assimilar tudo” (Clotilde). Ou então, elas tinham feito aquele curso em outro lugar, mas queriam uma abordagem diferente do mesmo assunto. “Vim fazer esse curso de Mitologia com a Bete Rua porque sempre me disseram que ela era ótima. Eu já estudei mitologia antes, mas não é a mesma coisa. Ela explica com muito mais detalhe, tem as aulas sempre bem preparadas e não dá para perder a oportunidade de ver a mitologia com ela” (Ana). No segundo período letivo, de agosto a dezembro de 2003, cursei a disciplina ‘Análise do Mapa Natal por Temas’, que era oferecida pela primeira vez, atendendo a pedidos dos alunos. O curso ficou lotado e, ao final, foi feita uma avaliação, com vistas a determinar se essa disciplina deveria se repetir. Os alunos foram unânimes em admitir sua importância e defenderam a necessidade de estabelecê-la como disciplina regular. Ela foi novamente oferecida no segundo semestre de 2004. No terceiro período, de fevereiro a julho de 2004, inscrevi-me em ‘Técnicas de Astrologia Empresarial’, um enfoque bastante especializado, voltado para o atendimento a empresas, com apenas seis alunos inscritos, dos quais dois eram do sexo masculino. Todos tinham um interesse específico no curso, seja porque atendiam ou pretendiam atender empresas, seja porque eram, eles mesmos, empresários. A fim de caracterizar a escola Espaço do Céu, algumas distinções se fazem necessárias. Uma primeira distinção é a localização da escola. Situada no Largo do Machado, ela fica facilmente acessível não só aos moradores da Zona Sul, mas também aos que trabalham no centro da cidade. O horário do final da tarde, após o trabalho e antes da volta para a casa, é um dos mais concorridos. Um dos alunos somente se inscreveu em uma disciplina oferecida no meio da tarde porque trabalhava no centro e ‘dava uma fugidinha’ até o Catete uma vez por semana. Todos brincavam com ele, dizendo que ele deixava o paletó no escritório para que os colegas de trabalho pudessem

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dizer “ele está aqui sim, olha lá o paletó dele no encosto da cadeira. Deve ter ido tomar um café”. Os alunos, de modo geral, moravam na Zona Sul, mas havia alunos que vinham até da Barra da Tijuca, embora haja uma escola de astrologia bem montada no Recreio dos Bandeirantes6. Uma segunda distinção é que se trata de uma escola e não de um curso livre. De modo geral, a astrologia é ensinada por pessoas que dão aulas em suas próprias casas, ou em salas e consultórios, em um esquema conhecido como ‘linha de mestre’. Um único professor transmite aquilo que sabe a um grupo de alunos disposto a aprender com ele. Na ‘linha de mestre’, a comparação do professor com o guru não é inapropriada. Esses mestres deram origem a ‘linhagens’ dentro da astrologia carioca. Os astrólogos que hoje atuam no Rio de Janeiro foram discípulos de Emma Costet de Mascheville, Martha Pires Ferreira, Cláudia Lisboa, Márcia Mattos, Maria Eugênia de Castro, Anna Maria Costa Ribeiro, entre outros, cada um desses mestres imprimindo, em seus alunos, uma orientação geral e uma perspectiva particular que marcam a abordagem astrológica adotada. Na equipe permanente do Espaço do Céu, dois professores tiveram sua formação fortemente marcada por Martha Pires Ferreira e uma outra adota uma abordagem peculiar do mapa astrológico, conhecida como Astrocaracterologia, que é creditada a Olavo de Carvalho. Isso significa que abordagens diversas, muitas vezes contrastantes, se fazem presentes na escola Espaço do Céu, expondo os alunos a controvérsias dentro de uma mesma disciplina. Durante a minha estadia ali, por exemplo, ocorreu um caso de discordância acentuada entre os professores. Respondendo à dúvida de uma aluna em aula, uma das professoras comentou que ‘aspectos ao Ascendente não são relevantes’, o que gerou uma enorme polêmica. A aluna consultou outros professores, que discordaram enfaticamente. A professora em questão foi chamada e avisada de que tinha sido mal interpretada pelos alunos. Ela, porém, confirmou seu comentário e insistiu em manter essa posição. Depois disso, o assunto voltou a ser mencionado várias vezes, ora em tom de crítica (“Para vocês verem como é difícil, até no nosso grupo, 6

O Astro*Timing foi inaugurado em 1992, na Barra da Tijuca, dirigido por Otávio Azevedo e Paula Salotti. Atualmente, a escola funciona no Recreio dos Bandeirantes, Av. das Américas 15000/sl 221 a 224, San Francisco Top Town, sob a responsabilidade de Paula Salotti.

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aqui dentro mesmo, tem gente que pensa que o Ascendente não é importante!”), ora em tom de orgulho (“Em nenhum outro lugar vocês escutariam, por exemplo, que o Ascendente é e não é importante. O importante mesmo é verificar, fazer pesquisa, não ir aceitando as coisas assim. Por isso, aqui, a gente convive com várias abordagens”). São dois os motivos principais alegados pelos alunos que optaram pelo Espaço do Céu após terem percorrido diversos desses professores particulares: a)

o esgotamento de uma abordagem particular à astrologia e a necessidade de buscar outra perspectiva. - “Eu já não tinha mais o que aprender com Fulano. Já tinha lido tudo que ele me recomendou. Aliás, eu já estava lendo até autores que ele não conhecia. Ele ficava repetindo, repetindo, e eu precisava de mais” (Andréa);

b)

um

modelo

de

produção/transmissão

do

conhecimento

mais

racionalista, aos moldes do estilo científico. - “Não me adaptei ao estilo do Fulano, muito solto, misturado com numerologia, interpretações filosóficas... Isso pode funcionar para ele, mas eu preciso de uma coisa mais sólida. Foi quando eu vi a apresentação da Celisa em um simpósio e vim pra cá. Gosto dessa coisa mais certinha, seguindo as regras mais de perto, me sinto melhor” (Mônica). No entanto, embora o modelo proposto pelo Espaço do Céu seja o de escola, entendido como a conjugação de uma pluralidade de abordagens decorrente da presença de uma equipe de professores, em contraposição ao professor único, ele não se afasta muito do ‘estilo de mestre’. O estilo Espaço do Céu é pesadamente marcado pela orientação de sua diretora e coordenadora a qual agrega, em torno de si, um grupo de estudantes de astrologia (já profissionalizados ou semi-profissionalizados) que comungam dos mesmos valores quanto ao trato com o conhecimento, quanto aos requisitos para a formação de astrólogos e quanto à prática do atendimento. Nesse sentido, os alunos do Espaço do Céu seguem a ‘linha da Celisa’. Esta minha observação pode dever-se às circunstâncias nas quais minha pesquisa ocorreu. No período em que cursei a escola, de fevereiro de 2003 a julho de 20047, 80% das aulas eram ministradas pela diretora. Dentre os quatro outros professores que 7 A partir de agosto de 2004, deixei de freqüentar os cursos regulares da escola e passei a me dedicar ao grupo de estudos sobre os autores da Antiguidade, composto por alunos da mesma escola, para o qual fui convidada. Freqüentei esse grupo de setembro de 2003 a julho de 2005.

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compunham a equipa docente, uma estava afastada por motivos de saúde, uma ausência que se prolongou durante os dois anos em que permaneci na escola. Esta professora, porém, apresentou-se em três dos eventos públicos a que compareci. Um outro professor, Cid de Oliveira, não ministrava disciplinas regulares durante este período. Ocupou-se basicamente das palestras extras e dos cursos de férias. As outras duas professoras da equipe, Bete Rua e Gleide Gomes, lecionavam disciplinas específicas dentro do que era considerado como suas ‘áreas de especialização’. A maior parte das disciplinas regulares e das técnicas relacionadas ao cálculo e ao conhecimento astronômico, os temas avançados de técnicas preditivas, as disciplinas extras, experimentadas no programa de cursos pela primeira vez, em suma, todo o restante das disciplinas ficava a cargo de Celisa Beranger. Por isso, quando alguém me perguntava onde eu estudava astrologia e eu respondia que era no Espaço do Céu, era comum a pessoa comentar “Ah, sei, o curso da Celisa”. Vale observar também uma característica marcante da relação professor/aluno que observei durante aquele período. Grande número de alunos registra as aulas em gravador. É intensa a procura pelos assentos na primeira fila, mais próximos do professor, de modo a facilitar a gravação das aulas. Quando o aluno chega mais tarde, é comum que ele peça permissão a alguém sentado nas primeiras filas para deixar o gravador em sua carteira. As aulas são depois transcritas e arquivadas. Conversas sobre as gravações são muito freqüentes (“já dei conta das transcrições de 2001, agora estou começando a transcrever as aulas de 2002, e você?”, ou “não pude vir semana passada, depois você me empresta a fita?” ou então “aquele curso foi uma repetição do curso que ela deu no ano passado. Eu tenho a fita, é a mesma coisa, não valeu muito a pena”). Por mais que os professores divulguem uma bibliografia especializada sobre o tema em foco, para a grande maioria dos alunos a relação primordial não é com os textos, mas com o mestre, aquele que transmite diretamente a astrologia para a pessoa. Em seu trabalho sobre o ressurgimento da astrologia nas sociedades modernas, Goody (1968) enfatiza o papel da escrita, encontrando eco tanto em Vilhena (1990) quanto em Maurice Bloch (1998), que confirmam as relações históricas mantidas entre as práticas divinatórias e os sistemas de escrita. Analisando a relação entre astrologia e escrita em Madagascar, Bloch salienta que os livros com conteúdo astrológico são

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preciosos e o prestígio associado à posse de tais livros se deve não apenas à sua origem estrangeira, mas também ao registro escrito. Contudo, Bloch afirma que a prática astrológica em Madagascar mantém tanto a estranheza quanto a dificuldade de acesso ao material escrito, muito mais para marcar uma elite letrada que tem acesso a bens raros, pouco contribuindo para a divulgação e sedimentação de formas de conhecimento pautadas em práticas leitoras. Uma atitude bastante semelhante ocorre entre os alunos do Espaço do Céu. Grande parte da bibliografia recomendada é estrangeira, não traduzida para o português e de difícil acesso. Os textos conseguidos com dificuldade são, muitas vezes, rateados e xerocados por grupos de alunos. Não é difícil consegui-los emprestados e todos os meus pedidos de cópia de algum material foram prontamente atendidos, às vezes com ofertas espontâneas (“Eu tenho isso. Comprei da última vez em que fui aos Estados Unidos. Você quer?”). Mas muitos me confessavam que não liam os livros. Até parece que têlos bastava. Eu percebia isso por comentários do tipo “Todo mundo diz que esse livro é muito bom. Se você quiser, eu posso te emprestar. Mas, eu ainda não li. Estou meio sem tempo”. As justificativas mais comuns para a falta de leitura era ‘não tenho tempo’, ‘estou deixando para mais tarde, quando eu entender um pouco mais da astrologia’, ‘estou lendo devagar porque não tenho muita facilidade com o inglês’ ou ‘tenho tantos livros que preciso ler antes que esse vai ter que esperar’. Logo, a dinâmica que gera a transmissão e a reprodução do conhecimento astrológico parece contradizer as formas típicas de práticas leitoras no estudo. O conhecimento que o ‘mestre’ transmite é integrado num processo de conversação recheado de comentários, exemplos, descrição de casos, críticas a outras interpretações, e assim por diante. Essa fala é armazenada em uma fita e/ou um caderno de transcrição, tal como ela ocorreu. Não vi qualquer tentativa de limpar a fala da conversação e reduzi-la ao conteúdo propriamente conceitual. Logo, o que se cristaliza é a própria relação mestre/aprendiz e o conhecimento adquirido não se descontextualiza dessa relação. Mesmo no grupo de supervisão que freqüentei, fora do Espaço do Céu, qualquer discussão sobre o que significava uma posição planetária geralmente começava com alguém do grupo ligando a resposta ao mestre que a formulou.

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“A Márcia Mattos dizia que isso significava aquilo ou aquilo outro.” ou então, “A Carla8 dizia que se o mapa mostra tal e tal, então assim e assado”. Na pausa de hesitação que muitas vezes se seguia a esses esboços de resposta, a pessoa costumava acrescentar: “Eu tenho todos os meus cadernos guardados. Se vocês quiserem, eu posso trazer”. Dessa forma, o prestígio do mestre, objetivado em fitas e cadernos, vê-se assegurado na multiplicação de citações. Essa questão também diz respeito aos diferentes modos de se conceber o conhecimento. O engajamento em uma transmissão informacional que mantém um caráter ‘autoral’ tende a tratar o conhecimento como propriedade ou poder, para além de considerá-lo pré-condição de pertencimento ao grupo ocupacional ou requisito para exercer o ofício. Esse poder tende a transformar os aprendizes em verdadeiros discípulos, que se amoldam à imagem do conhecimento ali construído. No caso do Espaço do Céu, encoraja-se o rebuscamento e a sofisticação de técnicas (há uma matéria exclusivamente sobre o conjunto total de técnicas preditivas aplicadas sobre um mesmo mapa) e a visão detalhista (‘se você não prestar atenção nesse detalhe, não vai perceber que... e vai errar na interpretação’). Uma terceira característica importante do Espaço do Céu é a exclusão de qualquer outro estudo considerado afim. A maior parte das outras escolas, tanto no Rio de Janeiro quanto em outros estados do Brasil, se dispõem a lidar também com tarô, numerologia, anjos, I Ching, e assim por diante, corroborando os estudos que observam um envolvimento dos adeptos da astrologia em terapias alternativas e estudos esotéricos. O Espaço do Céu, porém, se trata de uma escola voltada unicamente para a astrologia9. Segundo a diretora da escola, esta é a principal razão pela qual tanto a escola quanto sua equipe de professores são consideradas ‘puristas e elitistas’. Ao analisar a dinâmica social envolvida no esforço de regulamentar a profissão de astrólogo, Adriana Venuto (1999) divide o grupo ocupacional dos astrólogos em três subgrupos, que se distinguem pela maneira de conceber o saber e o fazer astrológico. O primeiro grupo, que ela chama de ‘prático’, aproxima a astrologia do campo religioso. Este é o grupo que tem colaborado para consolidar a imagem da astrologia na 8

Uma ex-professora da extinta escola Astroscientia, considerada especializada em astrologia horária. Certa vez, um conhecido tarólogo na cidade do Rio de Janeiro pediu para usar o espaço da escola para dar um curso. O pedido foi recusado “porque não era astrologia, era tarô”. 9

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tradição esotérica, propondo uma formação iniciática para os postulantes ao ofício de astrólogo. Venuto inclui nesse grupo os ‘espiritualistas’, dentre os quais se encontram os adeptos de uma visão cármica, e os ‘psicólogos’, aqueles que aliam o saber astrológico a teorias psicológicas. Esse grupo se caracteriza por uma leitura não sistematizada de autores da Psicologia e da Religião e pela associação com terapias alternativas ou esotéricas, como os florais, a cromoterapia, os cristais. O grupo dos ‘práticos’ tende a adotar um viés terapêutico, a partir da detecção, no mapa do cliente, de medos, traumas ou obstáculos que entravam sua vida. No Simpósio de 2004, conversei com dois astrólogos que lidam com florais, um que atende no Rio de Janeiro, o outro, no Paraná. Segundo eles me contaram, a maioria dos clientes vem se tratar com florais, acaba fazendo o mapa e, não raro, traz a família e os amigos. O segundo grupo, que Venuto chama de ‘elite’, considera a astrologia uma linguagem simbólica, muito mais afeita à arte do que à ciência ou à religião. A arte não pode ser adestrada, mas pode ser desenvolvida por uma educação humanista. Para esse grupo, a formação de astrólogo vai bem além do aprendizado das técnicas formais da disciplina e inclui uma formação multidisciplinar, ampla, diversificada e demorada, que requer incursões em outros campos do saber, notadamente Psicologia, Mitologia, Lingüística, Filosofia, História. O terceiro grupo identificado por Venuto é o dos ‘modernos’, que aproximam o saber astrológico do modelo racional-científico. Este é o grupo mais interessado na regulamentação da profissão de astrólogo e que mais participa das associações profissionais e instituições de ensino. Preocupam-se com a criação de critérios para o controle da atuação profissional e para a padronização do ensino da astrologia. Na escola Espaço do Céu, a necessidade do ‘estudo’ da astrologia é ressaltada em duas vertentes. Na primeira vertente, o estudo está vinculado à noção de que a astrologia é uma ciência complexa que, para ser devidamente compreendida, requer conhecimentos gerais sobre astronomia, matemática, mitologia, filosofia. Na segunda vertente, o estudo se apresenta aliado a um domínio de conhecimento de base racional, acessível a quem estiver disposto ao esforço de estudar, em contraposição a um entendimento intuitivo ou derivado de alguma habilidade extraordinária.

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O confronto entre crença e ciência permeia quase todos os depoimentos que colhi. Uma das entrevistadas se estendeu particularmente sobre isso: “A astrologia tem fundamentações. É uma ciência matemática. Infelizmente, muitas pessoas entendem a astrologia como sendo uma crença, talvez porque a astrologia teve uma importância muito grande na época em que se acreditava que os planetas eram deuses e, efetivamente, é óbvio que não se tem essa compreensão hoje. Mas ela sempre foi entendida como ciência, mesmo na época desses deuses. É óbvio que não são deuses, são planetas. Eu acho que não tem que se olhar a astrologia como os egípcios viam, mas sim de uma outra forma, que é perceber que tudo tem interação com tudo, constantemente, e compreender isso, ao invés de tentar negar uma coisa evidente. Acho que deveria haver uma postura um pouco mais séria em vez de tão somente tentar dizer que a astrologia não existe, que a astrologia é banal, ou coisa que o valha. Ou então aquela célebre frase ‘Você acredita em astrologia?’ o que é completamente absurdo. A gente acredita, eu acho, em Deus. Nós não estamos falando de Deus. Eu estou repetidamente falando de uma ciência, que é passível de comprovação, até quanto aos métodos mais cartesianos possíveis, a astrologia é sempre passível de ser submetida a esses métodos, Então, me causa até um estranhamento que, a essa altura do campeonato, em pleno século XXI, as pessoas ainda tenham um condicionamento de perguntar se acreditam ou não, ao invés de, ao contrário, tentar submeter a astrologia à metodologia, aos paradigmas cartesianos, newtonianos, seja lá o que for. Por que não se parte para uma postura um pouco mais séria nesse sentido?”(Renata) Esse aspecto vem de encontro às observações de Cavalcanti (1983) sobre o Espiritismo, que se apresenta não apenas como uma religião, mas também como uma ciência e uma filosofia. Considerando que, na tradição do pensamento ocidental, a razão se contrapõe à religião, a ênfase seja no caráter ‘místico’ seja no caráter ‘racional’ cria fronteiras dentro do próprio Espiritismo entre “uma maioria mística, que recobre seus aspectos ‘religiosos’, e uma minoria ‘intelectualizada’, que recobre seus aspectos ‘filosóficos e científicos’ ” (1983:25). Cavalcanti chama atenção para o fato de que as noções de ciência, razão, filosofia e religião, tal como empregadas no Espiritismo, somente podem ser entendidas como parte do próprio sistema de crenças espírita, não se confundindo, portanto, com essas mesmas noções no discurso científico ou filosófico.

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No caso da astrologia, é também necessário entender-se ‘ciência’, ‘pesquisa’, ‘intuição’, ‘razão’, ‘simbolismo’ como categorias nativas, re-elaboradas pelo próprio conjunto de crenças e valores dos adeptos do sistema astrológico. Pelo que pude observar no grupo que freqüentei, a ênfase em pesquisa e em verificação dos dados contribui para reduzir os perigos de uma especulação indiferente aos resultados de observação. Essa tendência constitui também uma reação contra os que supõem que meditação, reflexão, intuição é tudo de que se necessita para a compreensão e solução dos problemas apresentados à astrologia. Nesse grupo, a supervalorização do profissionalismo tenta desfazer a impressão generalizada de que o patrimônio de teorias e conceitos astrológicos tenha resultado da aplicação de métodos e técnicas inconseqüentes e falhos. Quando comecei a freqüentar os cursos do Espaço do Céu, a diretora da escola ocupava o cargo de presidente do Sindicato de Astrólogos do Rio de Janeiro, tendo sido eleita, em 2001, para um mandato de três anos10. Seu mandato expirou em 2004 e o Simpósio de agosto de 2004 foi o último evento organizado por sua gestão. Grande parte da diretoria do sindicato, por sua vez, era composta por alunas da escola que compartilhavam do enfoque da diretora sobre a astrologia, sobre a regulamentação da profissão de astrólogo e sobre os requisitos necessários para uma formação profissional. Isso significa que tanto a equipe de professores da escola quanto os alunos participavam ativamente da organização e execução dos eventos públicos que reuniam outras escolas, associações e entidades astrológicas. O estilo da escola transpareceu nos eventos patrocinados pelo Sinarj durante aquele período. Ouvi muitos comentários sobre como as coisas seriam diferentes na gestão seguinte, fosse ela qual fosse. O empenho para a regulamentação da profissão não seria o mesmo, os temas a serem abordados em futuros simpósios poderiam privilegiar outros enfoques, as formas de organização poderiam sofrer mudanças, talvez não houvesse mais espaço para a apresentação de trabalhos inéditos, etc. Conversando com Glória, na semana em que a programação do Simpósio de 2004 foi divulgada, ela me disse que:

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O Sinarj foi presidido, de 1989 até 1995, por Therezinha Gouveia, de 1996 até 2001, por Otávio Azevedo, e, de 2001 em diante por Celisa Beranger. De modo geral, os palestrantes regulares, que sobem ao palco nos simpósios e nos eventos públicos, estão entre os 48 sócios fundadores.

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“Eu só fui ao primeiro Simpósio. Depois, não fui mais. Só voltei a ir quando ele foi organizado pela Celisa. E, depois desse de 2004, não pretendo voltar. Você já viu como ele é, Beth? Tem muita bobagem, muito pouca coisa séria. A Fulana (uma das palestrantes que costuma lotar o auditório), por exemplo, que é uma excelente astróloga - eu gosto muito dela e respeito muito ela - vai lá e diz que Urano é transformação súbita, Netuno dissolve as situações. Ora, isso é para leigo. Nem leigo, gente, porque até os leigos já sabem disso. Então, o que a gente ouve de novo lá? Só a mesma coisa de sempre, é perda de tempo”. Eu havia lhe perguntado porque ela não seria uma das palestrantes, já que é uma profissional tão atuante. “Não, eu nunca me apresento em simpósios. Não sou pesquisadora. Eu vou trabalhando, estudando, mas não fico testando coisas novas, não fico descobrindo detalhes. Eu só aplico aquilo que aprendi. Acho que, num simpósio, você tem que apresentar os resultados de um estudo, de um trabalho de pesquisa. E eu não faço nada disso. Não sou muito disso”. Esse comentário confirma o privilégio concedido à pesquisa e ao estudo sistemático como marca da gestão da diretoria do Sinarj, na esteira do estilo Espaço do Céu.

1. 2. Os eventos

Também serviram como campo etnográfico os eventos, fóruns e simpósios que pude acompanhar no período entre fevereiro de 2003 e dezembro de 2004: 1. o 5o Simpósio Nacional de Astrologia, realizado em 16 e 17 de agosto de 2003, no Centro de Convenções do Hotel Flórida, no Catete, sob o tema “Urano em Peixes”; 2. o debate organizado pelo Planetário da Gávea, no dia 22 de setembro de 2003, cujo tema era ‘Sob o Signo da Ciência – a astrologia vista na perspectiva astronômica’, com a participação de Fernando Gewandsznadjer (biólogo), Rundsthen Vasques de Nader (astrônomo) e Henrique Lins de Barros (físico);

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3. o Fórum Astrologia Regional, realizado em um domingo, 5 de outubro de 2004, na Av. Rio Branco 311, 60 andar, no auditório da Domingues e Pinho Contadores, das 10 às 18 horas. O objetivo desse fórum era discutir o ensino e a divulgação da astrologia em âmbito nacional e, para tanto, os Fóruns Regionais foram realizados, simultaneamente, nas capitais dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal. Ficou acertado que cada Fórum Regional enviaria aos demais a ata de sua reunião e que, depois, seria organizado um segundo encontro, para a discussão das várias propostas regionais. Esse segundo encontro, previsto para dezembro de 2004, acabou sendo adiado para o ano de 2005. 4. a Mesa de Previsões para o ano de 2004, realizada no dia 6 de janeiro de 2004, na sala de convenções do Hotel Glória, um auditório com cerca de 300 lugares, que ficou repleto. Todos os assentos ocupados e mais pessoas de pé, no fundo da sala e nas laterais, esperavam o início das discussões sobre o ano de 2004, com mais de uma hora de atraso devido à dificuldade de acomodar o público. No palco, os astrólogos convidados a externar suas previsões: Celisa Beranger, presidente do Sindicato dos Astrólogos, Martha Pires Ferreira, Cláudia Castello Branco, Maria Eugênia de Castro, Márcia Mattos, Antonio Harres, responsável pela coluna de horóscopo do jornal O Dia, e José Maria Gomes Neto. A apresentadora e mediadora do debate era Therezinha Gouveia. 5. o evento “A Astrologia é para todos”, realizado no Centro de Convenções do Hotel Flórida, no Catete, em 20 de março de 2004, por ocasião do equinócio de outono, em comemoração aos 15 anos de existência do Sindicato dos Astrólogos do Rio de Janeiro; 6. o 6o Simpósio Nacional de Astrologia, realizado em 7 e 8 de agosto de 2004, no Centro de Convenções do Hotel Flórida, no Catete, sob o tema “Astrologia e Interdisciplinaridade”.

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Alguns desses eventos eram de entrada franca, abertos ao público em geral. Outros visavam diretamente o meio astrológico propriamente dito, composto por profissionais e estudantes, e abordavam questões teóricas ou da prática profissional. A seleção dos eventos públicos a que compareci obedeceu ao convite dos informantes, isto é, foram as pessoas que conheci que me levaram até eles. Vale observar que esses eventos não representam todos os tipos de encontros dos adeptos da astrologia, mas somente aqueles que foram por mim observados. De certa maneira, a participação nesses eventos contribuiu para uma melhor compreensão do Espaço do Céu no quadro geral do meio astrológico no Rio de Janeiro, pois a maioria deles tinha sido organizada pela equipe que a compunha. Esses eventos públicos colocam em contato uma rede de pessoas que compartilham do interesse pela astrologia. Ali se reúnem uma parcela de astrólogos que encabeçam as instituições e/ou que têm maior visibilidade nos meios de comunicação, além de um público diversificado, composto de: •

Curiosos, que alegam estar ‘acompanhando uma amiga’, ou terem ido dar uma espiada ‘porque eu sempre me interessei por essas coisas’;



Uma clientela que se consulta regularmente e que consome, esporadicamente, a literatura sobre o assunto. Esses muitas vezes comentam que estão ali para prestigiar os astrólogos que os atendem e que os convidaram;



Estudantes e profissionais da astrologia.

Volto a lembrar que Magnani (2000) divide os participantes dos circuitos neoesotéricos em três categorias: os eruditos (que se relacionam com o universo neoesotérico de forma mais consistente), os participativos (que sentem afinidade com os temas e possuem algum tipo de informação prévia) e os ocasionais (que atendem a modismos passageiros). Contudo, talvez porque esses eventos eram todos direta e unicamente voltados para a astrologia, o público flutuante era esparso e grande parte da mesma platéia poderia ser encontrada em quase todos eles. As pessoas se reconheciam, se cumprimentavam e trocavam notícias: “Então, o que você está fazendo?”; “Tem visto Fulana?”; “Estou doida para formar um grupo de estudo. Você toparia?” Essas frases eram entreouvidas com freqüência.

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Muitos lamentavam não participar dos cursos oferecidos pelas escolas, alegando, principalmente, que eram muito caros. Quando eu procurava conversar com as pessoas, durante os intervalos, era comum eu ouvir: “Ah, você está na escola Espaço do Céu! Que pena que eu não posso estudar mais. Mas não tenho condições de freqüentar essas coisas. É tudo muito caro e toma um tempo enorme. Por isso, eu não gosto de faltar a esses encontros aqui. É quando eu vejo as pessoas e fico sabendo o que elas estão fazendo. Até isso é caro para mim” (Vera). O comentário se referia à taxa de inscrição para o simpósio, que custava cerca de $150,0 (em pagamento parcelado, saía mais caro). Essa taxa incluía o jantar de confraternização, no sábado à noite. O simpósio propriamente dito era realizado em um fim de semana, das 10:00 da manhã de sábado até as 18:00 de domingo. Na sexta-feira à noite, a partir das 18:00, havia um ‘pré-simpósio’, de entrada franca, onde eram discutidas questões diretamente relacionadas às instituições de ensino, à regulamentação da profissão de astrólogo ou às associações de classe (os Sindicatos Estaduais, a União Nacional dos Astrólogos, a Associação Brasileira de Astrologia, etc). A organização do simpósio está a cargo do SINARJ. E a data na qual ele será realizado é ‘eleita’, isto é, determinada por critérios astrológicos. Os dois simpósios que assisti foram realizados em agosto (quando o Sol se encontra no signo de Leão) e a questão eletiva resumia-se a verificar em qual fim de semana as posições planetárias se mostravam mais auspiciosas. O Hotel Florida disponibiliza três salões para a realização deste encontro. Um deles se situa no andar térreo e os outros dois no primeiro andar. O primeiro andar dispõe de um auditório com cerca de 150 poltronas e duas salas menores. Uma delas, ao lado do auditório, é usada para a exposição de livros e programas de computador a serem comercializados. É visitada pelos participantes nos intervalos entre as palestras. A outra sala, ao final de um corredor à direita de quem sobre as escadas para o primeiro andar, abriga as palestras para as quais o público previsto é menor. O espaço no auditório é claramente hierarquizado. No palco, uma mesa para os palestrantes, os dirigentes do SINARJ responsáveis pela organização do evento e convidados11. Depois da sessão de abertura, quando são apresentados o tema do

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A abertura do Simpósio de 2003 contou com a presença do deputado Luis Sérgio, um dos responsáveis pelo projeto para a regulamentação da profissão de astrólogo.

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simpósio e os membros da mesa, os participantes se distribuem pelas três salas onde palestras simultâneas são realizadas. O simpósio é organizado em torno de um tema formalmente definido. O tema do Simpósio de 2003 era Urano em Peixes; o de 2004, Astrologia e Interdisciplinaridade; o de 2005, anunciado no boletim do Sinarj em abril de 2005, propõe como tema A Astrologia e suas Parcerias. Esses simpósios criam um espaço de sociabilidade que contribui para a consolidação de redes de relações, para o estabelecimento de parâmetros de pertencimento e mecanismos de inserção no grupo ocupacional. Em vista disso, pareceu-me pertinente tomá-los como ponto de ancoragem para pensar a interação de múltiplas concepções relativas à organização do grupo ocupacional e ao papel de suas instituições representativas, bem como o caráter da prática astrológica que essas instituições se dispõem a representar. Os participantes desses eventos públicos se unem em torno de uma concepção simbólica comum e o reconhecimento mútuo ajuda a sedimentar versões explicativas da realidade. A participação nesses eventos, mesmo que esporádica, fortalece uma rede de contatos que acaba por gerar laços de identificação, ajudando a configurar um Nós – os que aceitam a concepção astrológica e compartilham desse modelo explicativo da realidade. A platéia leiga nesses eventos inclui muitos que já tiveram contato com a astrologia, mas que não enveredaram por um estudo do assunto, optando por “não mexer com essas coisas que eu não entendo bem, embora respeite”. Mesmo assim, eles se distinguem dos clientes contumazes que não gostam de revelar seu envolvimento com a astrologia e não freqüentam esses encontros públicos. Ouvi muitas menções a clientes ‘importantes’ (figuras do meio político, empresarial, intelectual e financeiro) que recorrem aos astrólogos sem alardear esse fato. As conversas entre os astrólogos são pontuadas de referências a essas figuras de poder que não se declaram publicamente a favor da astrologia e que poderiam facilitar tanto os projetos para regulamentação da profissão quanto o acesso a certos segmentos de um possível mercado de trabalho (empresas, escolas, hospitais, prisões, etc), ou mesmo patrocinar pesquisas, conforme alguns astrólogos lamentaram no pré-simpósio.

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“Fulano bem que poderia ajudar, ele é meu cliente há mais de dez anos, mas não quero pedir a ele porque ele não gosta que saibam que ele se consulta com astrólogo” (Glória) ou “Ele (um astrólogo de outro estado) só conseguiu botar um telescópio na praça principal da cidade, para todo mundo ver a conjunção de Vênus com o Sol, porque o prefeito é cliente dele há anos e está sempre disposto a colaborar. Mas, aqui no Rio de Janeiro, não tem ninguém ajudando não”. (Célia) A prestação de serviços acarreta obrigações específicas dentre as quais se incluiria, a princípio, o retorno do comprometimento. Onde não há reciprocidade, onde não há obrigações mútuas, o senso de relação fica prejudicado. Porém, o que poderia ser entendido como uma quebra da lei de reciprocidade não parece gerar nem ressentimento nem mal-estar. Em parte, isso se deve a uma aproximação entre a consulta astrológica e a consulta psicológica, na medida que ambas se subordinam a uma norma de confidencialidade. Os terapeutas não costumam divulgar quem são seus pacientes e nem esperam, da parte destes, uma admissão pública dos serviços prestados. Contudo, as freqüentes menções a clientes que são ‘altos executivos’, ‘políticos de peso’, ‘grandes empresários’12 e ‘atores da Globo’ não deixa de elitizar a clientela típica da consulta individualizada, o que, de certa forma, reverte em prestígio para a própria astrologia. Foi possível perceber algumas divisões significativas que recortam os participantes nesses eventos. Naturalmente, não se trata de um grupo nem homogêneo nem isento de conflitos. Uma primeira divisão diz respeito aos defensores e opositores dos esforços para a regulamentação e a burocratização da prática astrológica. Uns aceitam de bom grado as normas de pertencimento ao grupo ocupacional estabelecidas pelos sindicatos e pelas associações13, alegando que elas constituem uma 12

Essas adjetivações provêm do discurso dos informantes. Quando um mapa é examinado em sala de aula, por exemplo, o nativo jamais é identificado, mas é comum que seja descrito como “esse aqui é um alto executivo, alto, alto mesmo. Está lá no topo de uma multinacional”. Ou então, “esse meu cliente é um grande empresário, já fez uma fortuna, eu não posso dizer em que, porque ele está sempre nos jornais, mas agora ele está passando por uma fase complicada, então vamos examinar as progressões para vocês verem o que está acontecendo”. 13 A inserção na categoria ‘profissional’ do Sinarj depende da apresentação de um histórico dos estudos realizados, comprovado por um professor reconhecido, ou pela aprovação em uma prova, corrigida por um membro da diretoria do sindicato. Em ambos os casos, a inserção precisa ser sancionada por alguém do quadro institucionalizado. Como a institucionalização no Rio de Janeiro é recente, aqueles que aprovam ou não o candidato ao ofício de astrólogo não se submeteram a este mesmo processo de seleção, e a legitimidade de sua competência para tal é contestada.

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espécie de defesa contra a invasão de pessoal desqualificado. Entre esses, encontram-se vários que encabeçam as instituições de ensino e as associações profissionais e que se empenham para a regulamentação da profissão. Outros se insurgem contra a mesma regulamentação, alegando que eles próprios não se submeteriam ao escrutínio de terceiros para a seleção dos que podem ou não ingressar no grupo ocupacional. Defendem a pluralidade de perspectivas para a formação de um astrólogo e temem a estreiteza de uma prática supervisionada por uma autoridade burocratizada. Uma segunda divisão distingue entre os fundadores da prática astrológica no Rio de Janeiro e os ‘recém-chegados’. Talvez porque a inserção da astrologia no meio urbano tenha sido problemática, aqueles que a ela se dedicaram antes que essa prática se visse consolidada no Rio de Janeiro são agraciados com uma posição cativa nos eventos públicos e olham com desconfiança a emergência de novas figuras expressivas no meio astrológico. “Esse pessoal novo nem imagina o que a gente já passou para conseguir estudar astrologia. Não tinha bibliografia, tudo era de boca em boca, nos reuníamos nas casas uns dos outros, as dificuldades eram muitas. Agora está tudo fácil, mas, no começo, a gente teve que tirar leite das pedras” (Alice). Uma astróloga reclamou que até hoje é considerada ‘nova’ no ramo. “Sabe o que eu ouvi, Beth? ‘Ah, você ainda é muito nova na astrologia para dar palpite’. Imagine só! Nova, com 14 anos de astrologia nas costas. As minhas alunas que ouviram isso ficaram com os olhos arregalados e depois foram comentar comigo: ‘se você é nova, imagine a gente!’ (Célia). Dentre os ‘novos’, uns reclamam da preponderância exercida pelos fundadores, preponderância esta baseada primordialmente no preceito que ‘antiguidade é posto’, e rejeitam os critérios estabelecidos para a aceitação de um membro no grupo ocupacional. Outros, talvez por estarem mais afinados com as normas de regulamentação de suas próprias profissões, não se opõem à institucionalização. Logo, os que se posicionam contra ou a favor da regulamentação da profissão são encontrados tanto entre os novos quanto entre os antigos, tanto entre os mestres quanto entre os alunos. A proposta de institucionalização do ensino e da prática

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astrológica os afeta de forma diferenciada. O cruzamento dessas posições é extremamente complexo. Um aspecto relevante nesse confronto pode ser assinalado pela ausência, nos eventos patrocinados pelas instituições astrológicas, de uma parcela significativa de astrólogos que contam com uma clientela estável, mas que insistem em se manter à margem do que eles chamam de ‘a astrologia institucionalizada’. Essa parcela abrange alguns dos que estudam o sistema astrológico por conta própria e lêem os seus próprios mapas e os mapas de amigos e familiares. Abrange também alguns astrólogos que já passaram por cursos e/ou escolas, mas que se mostram desinteressados em estreitar laços com os as entidades e instituições astrológicas. Nos contatos que consegui com pessoas desse grupo, os motivos alegados para tal desinteresse eram basicamente os mesmos: uma crítica acirrada da competência técnica de grande número dos astrólogos que regularmente se apresentam, um desdém pelo peso cada vez maior que as entidades institucionalizadas (escolas, sindicatos, associações, etc) procuram assumir no estabelecimento de diretrizes para as práticas astrológicas. “São sempre as mesmas pessoas, dizendo sempre as mesmas coisas. Não dá pra agüentar. Não tenho nada a aprender ali. Se eu fosse te contar quanta besteira eu já ouvi! Dá até vergonha. Você já foi lá. Você já viu, não viu? Eu só fui uma vez, para nunca mais voltar. A astrologia exige muito estudo. Meu tempo é curto, não posso me dar um luxo de ficar ouvindo coisas sem pé nem cabeça. Eu sei que tem gente séria, estudando astrologia com seriedade, mas esse pessoal não fica aí aparecendo. É uma pena”. (Renata) “Ninguém discute nada. É um grande show. Eles só querem aplausos, nada de controvérsia, nada de aprofundamento, debate – nem pensar. É melhor ficar em casa do que se dar ao trabalho de ir até lá. Você acha que eles querem discutir questões sérias, que eles querem testar a teoria? Eles só querem aparecer. Um monte de superficialidades, cheios de frases de efeito. E, você já viu quem eles agradam? Um público cativo, que os acompanha sempre. Um bando de gente que não entende metade do que escuta e menos ainda do que lê”. (Denise) “Essa turma que comanda esses espetáculos já distribuiu toda a astrologia entre eles. Fulano fala sobre isso, Beltrano sobre aquilo. Eles têm territórios. E, se você

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resolve dar um palpite, dizer que não concorda com alguma coisa, que aquela técnica não funciona ou que aquela outra você testou e deu certo, é um Deus nos acuda. Tudo ali tem dono. Você não pode discutir ou falar de um tema que ‘pertence’ a uma cabeça coroada. Então, se é só pra dizer Amém, o que eu vou fazer ali?”. (Heloísa) Isso significa que, na opinião daqueles que se recusam a participar, os eventos destinados ao debate público não cumprem o propósito da abertura à crítica, crucial, segundo eles, para um subseqüente desenvolvimento do corpo teórico da disciplina. O espírito crítico se recolhe frente ao espalhafato retórico das apresentações que almejam muito mais persuadir do que trocar idéias. No entanto, eventos desse gênero também possuem um importante aspecto de construção ritualizada de uma simbologia coletiva. Talvez por isso atraiam um público não interessado na polêmica. O debate parece ser interpretado como conflito e as discordâncias são ventiladas apenas nos bastidores. Quando os entrevistados se referem ao ‘meio astrológico’ - “Eu não freqüento o meio astrológico” (Denise). “Eu não tenho nenhum interesse em ser reconhecida nesse meio astrológico que está aí” (Renata) - essa expressão geralmente inclui essa parcela de astrólogos de maior visibilidade e seu público fiel. Não inclui o público esporádico, leigo ou não, que escapa à categorização de “fiel seguidor de Fulano” - “Coitados dos incautos que vão lá achando que vão ver uma discussão que vale a pena. Você já viu quanta gente que fica ali caladinha, boquiaberta? Eu fico pensando, meu Deus, o que será que eles estão achando disso tudo?” (Heloísa). O ‘nível’ dos palestrantes e da platéia também é freqüentemente mencionado. Uma astróloga que tentava me explicar a dificuldade para ‘elevar o nível’ dos debates citou justamente esse público leigo. “Uma vez, Beth, eu convidei um cliente meu, que tem doutorado em Física, ele é super importante, vive estudando, sabe, super sério. Pois bem, eu convidei ele para ir a um simpósio, quem sabe ele participava, fazia umas perguntas. Sabe o que ele me disse depois? Olha, a palestra de Fulana, eu gostei muito. Aí eu comentei. Mas a Fulana é assim meio tonta, a apresentação dela não tem um fio, ela vai contando uns casos que, no final não tem nada a ver. E ele respondeu: ‘É, não tem consistência nenhuma, mas foi agradável’. Então, você vê, Beth, se até ele, PhD, não reclamou, não discutiu, o que a gente pode fazer?” (Glória)

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E de se imaginar que parte dos antagonismos, das lutas pelo poder e dos conflitos de interesses, nesse grupo ocupacional, se deva a posturas em relação ao capital simbólico da astrologia em função de valores e procedimentos incorporados de outros campos de saber e de outras práticas profissionais a que os astrólogos tenham se dedicado. As tomadas de posição dentro desse grupo configuram divisões internas, muitas vezes conflitantes, que transparecem nas acusações mútuas, nas críticas veladas, nas exclusões do palco de eventos públicos. Entre os motivos para a insistência na regulamentação da profissão se encontra a aura de impostura e charlatanismo que costuma envolver aqueles comprometidos com sistemas divinatórios. Limpar a figura do astrólogo dessa imagem requer um esforço constante de persuasão que geralmente se desenrola em três frentes: na relação entre os astrólogos e a sociedade mais ampla, nas relações entre os próprios astrólogos e nas relações entre os astrólogos e seus clientes. Na interlocução entre os astrólogos e a sociedade mais ampla, defende-se uma concepção de ordem, no mundo e na vida humana em geral, que não pode ser acessada por outros campos de saber, o que legitima a especificidade do saber astrológico. No trato com os clientes, procura-se desmistificar o caráter oracular da astrologia, vinculando a orientação astrológica a um enriquecimento da experiência de vida. Nas relações internas, dentro do grupo dos astrólogos, luta-se por versões coerentes e consistentes do capital simbólico da astrologia. Para os grupos que acompanhei, que se mostram particularmente interessados em aproximar a astrologia do campo científico, são três as principais ressalvas ao desempenho de alguns praticantes, que acabam por configurar um tipo outro, que não pode ser incluído no grupo dos astrólogos ‘como nós’. Os outros são aqueles que: a) abusam do artifício de “suscitar espanto e admiração”, para usar uma expressão de Paolo Rossi (1992), e só se interessam pelos problemas e entraves que um mapa pode mostrar. “Essa Fulana é um horror! Não é à toa que ela está perdendo os clientes. Ela vai direto na posição de Saturno em um mapa e começa logo a descrever os problemas mais sérios que a pessoa tem. ‘Você não se dá com seus irmãos, não pode confiar neles; você vive brigando com seu chefe; seu pai morreu cedo’, coisas assim. Quando

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ela olha um mapa, você pode ver que ela sai logo procurando esses problemas para, logo de cara, o sujeito ficar todo ‘Oh, que coisa impressionante, como é que você descobriu isso’... Mas tem muita gente que não gosta. Tem gente que, quando vai a uma consulta, não desconfia que o mapa pode mostrar essas coisas e fica apavorada. A gente tem que ir devagar com as pessoas. Não pode ser assim, passar por cima do cliente como um trator”. (comentário de uma colega do Espaço do Céu, apontando-me uma astróloga na platéia durante a sessão de abertura do simpósio de 2004) b) Os alarmistas e trágicos, que prenunciam mortes na família, acidentes e divórcios iminentes; “Atendi uma moça, uma vez, desesperada. Ela estava grávida do primeiro filho e tinha consultado essa astróloga aí. Como o filho ia nascer em Escorpião, (a astróloga) tinha dito que alguém da família ia morrer quando a criança nascesse, porque Escorpião é signo de morte. Ela ficou em pânico e quis consultar outra astróloga para saber se isso era verdade”. (uma das astrólogas do grupo de supervisão, sussurrando ao meu ouvido um comentário sobre uma palestrante no Simpósio de 2003) c) Os ‘oraculares’, que afirmam a ocorrência de eventos: você vai conseguir o emprego em julho, a sua irmã mais velha vai ter um problema de saúde sério por volta de outubro, etc. Naturalmente, a restrição feita ao teor oracular das interpretações astrológicas não deixa de estar conectada à ideologia individualista moderna e seus corolários de autonomia, liberdade e auto-direcionamento de vida. Porém, pelo que pude observar, esta restrição tem a ver também com uma concepção de ‘simbolismo’ que mantém em aberto a determinação do referente último da interpretação astrológica. Durante uma das reuniões do grupo de estudos no Espaço do Céu, uma das astrólogas comentou: “Nossa, eles (os autores dos tratados clássicos) diziam assim, na batata, quantos irmãos você vai ter, se o seu pai vai morrer antes da sua mãe... É impressionante!” E a que estava ao seu lado retrucou: “É, eles eram assim, superobjetivos. Não tem nada de simbolismo aí não. Eles não trabalhavam com o simbólico”. O restante do grupo pareceu concordar, assentindo com a cabeça ou exclamando ‘isso mesmo!”, “é isso!”.

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Pelo que pude perceber, a concepção de ‘simbólico’ partilhada pelo grupo descarta uma relação de simbolizante a simbolizado que possa acarretar o ônus de uma referência objetiva, logo, verificável, substituindo-a por uma exegese mais dedicada a sondar os múltiplos encadeamentos convergentes. Essa questão será discutida mais detalhadamente quando abordarmos a consulta astrológica.

d) os que se encarregam das colunas de horóscopos divulgadas nos meios de comunicação. Ouvi freqüentemente a alegação de que o público em geral não conhece a ‘verdadeira’ astrologia, só conhece aquela que aparece nos jornais e revistas. Esta não é a astrologia correta, “a astrologia não é isso aí” (Denise), pois as colunas de horóscopos pecam pela generalização. “Uma vez me convidaram para fazer a coluna de horóscopo de um jornal, mas eu não consegui aceitar. Disse para eles que o máximo que eu podia fazer era dar umas explicações gerais sobre o que vem a ser signos, casas, planetas, essas coisas, explicar como a astrologia pode ajudar. Eles não quiseram. Mais do que isso eu não podia fazer. A astrologia não é assim, todo mundo de Áries vai encontrar alguém, todo mundo de Touro vai ficar doente, todo mundo de Gêmeos vai brigar no trabalho. Essa não é a verdadeira astrologia. E as pessoas que aceitam fazer isso não ajudam em nada a fazer com que a astrologia seja respeitada”. (Renata) No entender desse grupo, então, a ‘verdadeira’ astrologia é aquela voltada para o atendimento individualizado, para a singularidade e a especificidade de um indivíduo diferenciado e único. Os que trabalham em colunas de horóscopos são aqueles que “se submetem à pressão do mercado” (Denise). Porém, um número crescente de profissionais reputados no próprio meio astrológico está aderindo aos meios de comunicação, não só em jornais de grande circulação (como O Dia, O Globo, Folha de São Paulo, etc), como também em sites da Internet. Durante o Fórum Astrologia Regional, houve um certo confronto sobre essa questão. Contra a argumentação da mesa de que as colunas de horóscopos prejudicam a imagem da astrologia como uma disciplina ‘respeitável’, uma das astrólogas encarregadas de uma coluna de horóscopos questionou, de pé, sem apartes, a noção de

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que a astrologia ‘verdadeira’ era a leitura de um mapa natal. Argumentou que, durante os anos em que a astrologia viveu um certo ostracismo, principalmente nos séculos XVIII e XIX, foi a astrologia dos almanaques e das colunas de horóscopos que manteve vivo o saber astrológico. Ao invés de rejeitar esse tipo de astrologia, como prejudicial à causa da respeitabilidade da disciplina, os astrólogos deveriam experimentar uma dívida de gratidão para com aqueles que publicaram, ininterruptamente, os aforismos astrológicos. Ninguém mais se pronunciou sobre o assunto e passou-se para outro tema. Resta ainda comentar que a minha presença nesses eventos, assim como nos grupos de estudos que freqüentei, me permitiu acompanhar os diálogos dos astrólogos com outros astrólogos. Para além dos depoimentos colhidos em entrevistas, das conversas informais com aqueles que conheciam a minha condição de pesquisadora e das interlocuções que presenciei entre astrólogos e não-astrólogos (nas quais a validade da astrologia era um tema regular), foi importante ter tomado conhecimento do que os astrólogos discutem entre si e do que se dizem.

1.3 Os grupos de estudo

O campo etnográfico também se estendeu a três grupos de estudos para os quais fui convidada. O primeiro era realizado na própria escola Espaço do Céu, composto por um grupo de seis astrólogas, que estudavam autores da Antiguidade. O convite partiu do coordenador do grupo, um doutor em Filosofia pela PUC-RJ, que trabalhou com esse grupo durante um ano, em encontros quinzenais, estudando o Timeu de Platão. Durante o Simpósio de 2003, foi lançado o livro ‘O Timeu de Platão e a Astrologia’, resultado dos estudos desse grupo e editado pelo Espaço do Céu Centro de Astrologia Ltda. A tiragem de 100 exemplares se esgotou nas duas primeiras semanas após o lançamento e logo foi preparada uma segunda edição. Durante o jantar de confraternização desse mesmo simpósio, a diretora da escola apresentou esse filósofo a mim e a uma estudante de Filosofia da UERJ, cuja monografia de final de curso discutia a posição de alguns filósofos da Ciência com relação à cientificidade da astrologia. Fomos, então, nós duas, convidadas a participar desse grupo de estudo. O estudo do Timeu já tinha se encerrado e o objetivo agora seria

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estudar o livro Carmen Astrologicum, obra de Dorotheus de Sidon (autor do século I DC, anterior a Ptolomeu), recém traduzida para o inglês. Freqüentei esse grupo de setembro de 2003 até agosto de 200514. O grupo de se reunia a cada quinze dias, no espaço da escola, às quintas-feiras, de 14:00 às 16:00. Um ano depois que o grupo começou a trabalhar, em outubro de 2004, formou-se um segundo grupo de estudo sobre esses mesmos autores, que se reunia às segundas-feiras, à noite, na mesma escola. A diretora da escola, que fazia parte dos dois grupos, trazia comentários de um para o outro. Não cheguei a participar do segundo grupo, mas conhecia algumas pessoas que dele faziam parte, uma professora e alunos da escola. A insistência na leitura dos tratados clássicos acompanha a valorização do ‘estudo sistemático’, principalmente por parte dos astrólogos que querem subtrair a astrologia do campo esotérico e místico. Esse grupo de estudos, promovido no Espaço do Céu, cai nessa linha. Há todo um esforço envolvido na comparação dos textos de Dorotheus com o de outros autores clássicos com o objetivo de verificar consensos e discrepâncias quanto aos fundamentos das técnicas astrológicas. Embora muitos dos meus informantes defendam a necessidade de traduzir as interpretações clássicas “em termos atuais”, insistindo na inevitabilidade da modernização do discurso astrológico, não são poucos os que valorizam uma espécie de retorno ao conhecimento tradicional. “Eu sempre achei que havia muita coisa boa nos antigos. Afinal de contas, o básico, o fundamento está ali mesmo”. (Tânia) A importância dos autores clássicos também tem sido valorizada na literatura internacional. O Projeto Hindsight, promovido pelos astrólogos Robert Hand, Robert Zoller e Robert Smith, patrocina a tradução para o inglês de quatro tratados clássicos da astrologia helenística (‘Antologiae’ de Vettius Valens, ‘Mathesis’ de Firmicus Maternus, ‘Apotelesmatica’ de Hephaisto de Tebas e ‘Tetrabiblos’ de Ptolomeu) e promete o lançamento de um livro, com estudos e comentários, em uma edição especial, intitulada The Astrologuer’s Edition, que está sendo muito esperada. O projeto teve

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.A outra moça abandonou o grupo um mês depois, a fim de se preparar para a seleção para o mestrado em Filosofia na PUC-RJ. Foi aceita e não voltou ao grupo, mas apresentou, no Simpósio de 2004, um resumo da sua monografia. Este trabalho foi um dos ‘trabalhos inéditos’, selecionados pelo SINARJ, para o simpósio de 2004.

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início em 1993, com a tradução dos textos para a língua inglesa, e avançou para comparações e comentários que acabaram por delinear um sistema astrológico que o grupo de pesquisadores denominou Sistema Hermes e que é hoje ensinado na Faculdade de Astrologia do Kepler College15. O grupo de estudos que freqüentei estava disposto a uma tarefa semelhante. Os textos desses mesmos autores clássicos, mais o ‘Astronomica’ de Marcus Manilius, foram distribuídos entre os membros do grupo e cada um incumbiu-se de verificar como o autor que lhe foi atribuído abordava cada tema que era investigado. O grupo se reunia quinzenalmente e confrontava as versões das técnicas astrológicas. A coordenadora do grupo16 repetia com freqüência o quanto era importante ‘verificar’, e preparava o grupo para um escrutínio das anunciadas publicações do Projeto Hindsight. “Porque há erros, vocês estão vendo? Esta tabela aqui, que é apresentada como a de Ptolomeu, tem alguns errinhos. Pode ser erro de cópia, não sei. Então, não dá para a gente ficar aceitando as coisas assim, só porque foi publicada no livro do Fulano”. A ênfase na verificação inclui, também e primordialmente, os próprios autores clássicos. Não é porque essa ou aquela técnica foi descrita por Ptolomeu, por Valens ou por Manilius, que ela deva ser aceita sem ser ‘verificada’. Percebe-se assim uma resistência a erigir a autoridade tradicional como fonte de uma verdade que, por definição, é ‘transmitida’’. Pelo que pude observar, os meios de comprovação são extremamente fluidos, variando desde ‘na minha experiência pessoal, vejo que isso funciona’, até ‘pesquisas estatísticas já provaram que’. A idéia de que o saber e o fazer astrológicos são construídos socialmente, e que a visão de mundo astrológica é também uma construção social da realidade, pode ser melhor aproveitada quando se pode especificar as características desse universo. Pois, apesar de se tratar de uma construção social tanto quanto outros saberes e fazeres, como a própria astronomia, constitui um campo muito específico, irredutível a qualquer outro.

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O Kepler College, localizado em Seattle, nos Estados Unidos, está autorizado a oferecer bacharelado e mestrado em estudos astrológicos, desde julho de 2000. Além dele, há uma outra instituição de 30 grau, a Faculty of Astrological Studies, fundada em 7 de junho de 1948, em Londres. 16 O primeiro coordenador do grupo, um filósofo, deixou o grupo três meses depois, para se dedicar ao pós-doutorado. Foi substituído por uma das astrólogas que se manteve na coordenação do grupo até o final dessa pesquisa.

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Uma das especificidades desse universo é a tensa dinâmica entre a modernidade e a tradição. Muito embora a coexistência dos diferentes valores de dois modelos, o da tradição e o da modernidade, seja uma das marcas da vida nas sociedades modernas (Velho, 1994:98), os adeptos da astrologia a enfrentam em diversas frentes: nas relações com a sociedade mais ampla, nas relações internas do grupo ocupacional e no processo de formação dos postulantes ao ofício. Ela também se faz sentir no próprio corpo teórico da disciplina. O sistema astrológico tem uma história milenar, grande responsável pela robustez de seu banco de dados e pela alegada garantia de sua eficácia. Mesmo que os astrólogos se escorem no corpo sistêmico preservado pela tradição, testemunha inequívoca da longa prática da astrologia e de sua presumida consistência teórica, muitos deles descartam grande parte do conteúdo das interpretações tradicionais. Um rápido exame da literatura produzida na Antiguidade e na Idade Média, ou, mais especificamente, antes da descoberta dos planetas Urano, Netuno e Plutão, já dá indícios da razão desse repúdio. As técnicas astrológicas ali descritas resultam em respostas a dilemas e questionamentos que dificilmente se apresentam aos adeptos da astrologia na contemporaneidade. Por que passar horas tentando descobrir se um mapa natal promete vida ao recém-nascido, quando a taxa de mortalidade infantil, felizmente, diminui cada vez mais? Por que perder tempo tentando verificar se o futuro cônjuge é ou não um escravo, quando a escravidão não ronda mais com a mesma persistência? Por que saber com exatidão sob quais condições celestes se deve lançar uma embarcação ao mar, marcar um duelo ou colher uma erva medicinal, quando o consulente jamais pretende se envolver nessas atividades? Para se tentar compreender como os símbolos astrológicos vêm a significar aquilo que significam não basta reconhecer as diversas classificações e as regras de transformação a que eles estão submetidos. É preciso também confrontar essas categorizações e combinações com o contexto de uso e com as circunstâncias que cercam a produção do sentido. Isso porque os eventos que constituem os objetos do discurso astrológico estão sujeitos a constrições impostas pelas condições características da época ou da sociedade onde ocorrem. Essas constrições se modificam com o passar do tempo e diferem de contexto para contexto. Não é espantoso, então, que as

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interpretações astrológicas produzidas em outras épocas e em diferentes condições de vida se mostrem, na maioria das vezes, irrelevantes ou sem sentido. Os símbolos podem atravessar o tempo e o espaço, mas as significações neles impressas experimentam variações derivadas da própria cultura que os instala. É importante levar em conta a tensão entre a astrologia tradicional e a astrologia contemporânea não porque uma delas seja mais correta, mais coerente, ou melhor testada do que a outra, mas sim porque a contraposição entre as duas é parte integrante do discurso astrológico no Rio de Janeiro. Não só nas aulas que assisti, na escola Espaço do Céu, mas também nas palestras proferidas em eventos públicos, ouvi freqüentes comentários tais como: “A astrologia tradicional diz isso ou aquilo, mas, na minha experiência, isso não acontece”; “Segundo a astrologia antiga, se você tem planetas nesses e nesses graus, você corre o risco disso e daquilo, mas quase ninguém sabe disso porque são poucas as pessoas que estudaram os textos antigos”; “Os antigos não consideravam isso, mas Fulano fez uma pesquisa com a técnica tal, usando exatamente isso, e viu que dá muito certo”; “Esse ponto aqui era considerado crucial pela astrologia antiga e as pessoas deixaram de usar porque não entenderam bem o que era, mas Fulano analisou vários mapas com isso e descobriu que os antigos tinham razão”; “Esse negócio de malefício que a astrologia antiga fala, não é bem assim que acontece”. A oposição entre a astrologia tradicional e a contemporânea parece clara quando objetivada nos elementos estruturais do sistema astrológico. O sistema tradicional lidava com sete planetas enquanto que o contemporâneo opera com dez planetas17. A descoberta de Urano, em 1781 (seguida pela descoberta de Netuno, em 1846, e a de Plutão, em 1930) parece funcionar como um divisor de águas entre o tradicional e o contemporâneo para os astrólogos com quem conversei. Porém, esse tema atinge algumas questões mais problemáticas ao tocar as pressuposições que embasam o estatuto do conhecimento astrológico. Nos dois debates 17 Os sete planetas denominados ‘tradicionais’ são Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, todos eles visíveis a olho nu. O sistema contemporâneo inclui Urano, Netuno e Plutão, que são invisíveis a olho nu.

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entre astrônomos e astrólogos que tive a oportunidade de assistir18, a astrologia foi acusada de, ao contrário das ciências, não ter se desenvolvido, descartando princípios teóricos que tenham se demonstrado ineficazes e montando novos paradigmas. A questão do progresso da disciplina foi especificamente salientada no debate entre a Astrologia e a Astronomia durante o evento “A Astrologia é para todos”. O astrônomo lamentou que os astrólogos, por estarem fechados em um conhecimento milenar, não tenham lucrado com as duas revoluções científicas do século XX: a teoria da relatividade e a mecânica quântica. E alertou-os que “vocês vivem hoje uma mudança de paradigma na astrologia”, perguntando em seguida “Estão preparados para isso?”. Várias pessoas na platéia menearam a cabeça em assentimento. A idéia de que o conhecimento científico é sistematicamente ultrapassado, contrapõe a ciência tanto à religião, cujos dogmas são aceitos como verdades eternas, quanto à arte, que nunca é tida como obsoleta. Em ‘A Ciência como Vocação’, Weber explicitamente contrasta a ciência e a arte em termos da noção de progresso. Embora seja raro que uma argumentação em prol da astrologia deixe de enfatizar sua presença duradoura nos mais diversos tipos de sociedades, os astrólogos se vêem incentivados à inovação, principalmente desde que a descoberta dos três novos planetas, Urano, Netuno e Plutão, franqueou as portas para uma acomodação do sistema astrológico a novos arranjos estruturais. Porém, o que se vê, na literatura contemporânea, é uma multiplicação de técnicas preditivas19 e um proliferar de corpos celestes a serem incluídos no mapa (notadamente alguns asteróides, como Juno, Palas e Ceres, além de Quíron), o que parece tender muito mais a satisfazer uma completude mágica, do que a desenvolver um novo núcleo consensual, como parece sugerir o astrônomo, na linha dos paradigmas de Kuhn. A valorização de inovações teóricas me parece mais abraçada por aqueles que entendem a astrologia como uma ciência natural, produto de um conhecimento que pode ser justificado. Há, contudo, aqueles que a concebem como ciência sagrada, fruto de um 18 Um deles foi realizado no Planetário da Gávea, em setembro de 2003. Tratava-se de uma mesa redonda cujo tema era ‘Sob o signo da Ciência: a astrologia vista pela astronomia’. O outro ocorreu durante o evento ‘A Astrologia é para Todos’, em março de 2004, no Hotel Florida. 19 A escola Espaço do Céu oferece disciplinas sobre as técnicas preditivas desenvolvidas nos últimos anos: as Harmônicas de John Addey; Pro-luna e o Evolutivo de Neroman; os pontos médios de Ebertin, entre outras. Não cursei essas disciplinas e, com a exceção de duas astrólogas do grupo de supervisão que freqüentei, nenhum dos astrólogos entrevistados citou o emprego regular dessas técnicas preditivas.

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conhecimento revelado, ou ainda como arte divinatória, fortemente apoiada em processos intuitivos. O grupo com quem convivi se mostra particularmente inclinado a aproximar-se da ciência e afastar-se da religião e da arte divinatória. É importante observar que meus informantes não costumam se referir à astrologia de hoje como ‘moderna’ e sim como ‘contemporânea’. Parecem assim tentar escapar do caráter filosófico e histórico que o termo ‘modernidade’ evoca. Nos depoimentos colhidos, as noções de ‘tradicional’ e ‘contemporâneo’ são interpretadas dentro do próprio universo astrológico e buscam refletir sobre as mudanças na forma e no conteúdo das chaves interpretativas com as quais os astrólogos inevitavelmente se deparam. Cavalcanti (2001) chama atenção para o fato de que as tradições são históricas e, como tal, criadas, desfeitas, retomadas e, sobretudo, a idéia de tradição (e de seu par moderno) é ela mesma um valor trocado e transformado em teias de relações sociais que precisam ser contextualizadas. Embora as distinções estabelecidas sejam claramente demarcadas por questões astronômicas (concepção heliocêntrica, descoberta de três planetas), percebe-se, na oposição tradicional/contemporâneo, certas características mais problemáticas. Pelo que pude observar, a tensão maior incide sobre o sentido literal ou figurado das chaves interpretativas. No pré-simpósio de 2004, uma interpretação da posição “Sol em Sagitário na Casa 8”, feita por uma astróloga20 foi longamente criticada. Considerando as analogias Sol = pai, Sagitário rege as pernas e Casa 8 trata de morte ou perda, a astróloga vaticinou que a pessoa em questão “perderia ou o pai ou as pernas”. Um dos membros do Conselho do SINARJ, responsável pela prova de seleção para os postulantes à categoria ‘profissional’ do sindicato foi enfático: “Essa não seria aceita”. Depois desse episódio, quase todos os participantes na discussão sobre currículos das escolas de astrologia voltaram a citar essa interpretação como evidência incontornável de que a literalidade ronda os maus praticantes e precisa ser coibida.

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Essa astróloga não foi identificada, mas, segundo foi comentado, ela se apresenta regularmente em um programa de rádio.

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Grupo de supervisão

O segundo grupo não era propriamente de estudo, mas sim de supervisão. Era composto por três astrólogas que queriam discutir casos específicos, práticas de atendimento e novidades teóricas, sob a orientação de uma quarta astróloga, que é considerada especialista em retificação de hora21. O convite partiu de uma delas, cujo neto estuda na mesma escola que o meu neto. Conversando durante uma aula de futebol dos meninos, ela me contou sobre esses encontros e me convidou para participar. Entrei no grupo em maio de 2003. Nós nos reuníamos uma vez por semana, às quartas-feiras, das 18:00 às 20:30, na casa da supervisora. Apenas uma das participantes lecionava em uma escola de astrologia e vivia exclusivamente da prática astrológica. As outras também tinham uma clientela regular, mas continuavam a exercer suas profissões. O grupo era composto por uma arquiteta, uma advogada, uma professora, formada em Letras (Português/Inglês), que já havia lecionado em escolas de ensino médio, mas que atualmente trabalhava como tradutora. Duas delas continuavam a trabalhar, embora já fossem aposentadas. O grupo se dissolveu em agosto, em função de dois conflitos, cada um dos quais ocasionou a saída de uma pessoa. Nenhum desses conflitos ocorreu em função da supervisão propriamente dita. Aliás, eles aconteceram e foram resolvidos fora do horário de supervisão. O primeiro teve raízes em uma antiga ruptura da supervisora com uma outra astróloga que não participava do grupo, ruptura esta que ainda suscitava questões de tomada de partido. Melindrada com alguns comentários, a supervisora pediu que a moça se afastasse do grupo. O segundo foi provocado por uma incompatibilidade na maneira de encarar a prática astrológica. Questões relacionadas à confidencialidade da consulta, à forma de prestar serviços e à divisão de tarefas, em um projeto de atendimento a instituições que estava sendo planejado por duas das astrólogas, levaram uma delas a abandonar tanto o projeto quanto o grupo.

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Trata-se de uma técnica destinada a determinar a hora de nascimento quando a pessoa não dispõe desse dado ou quando ela acredita que a hora registrada na certidão de nascimento não é correta. Com base na data dos eventos que compõem a sua história de vida (casamento, nascimento de filhos, cirurgias, morte dos pais, promoções na carreira, e assim por diante), o astrólogo remonta o mapa natal que melhor corresponderia àquelas datações.

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A astróloga que havia me convidado propôs que a supervisora continuasse a orientá-la nos mesmos moldes semanais. E eu continuei a acompanhá-las no que, a partir de setembro, transformou-se em supervisão particular. Em junho de 2004, a supervisão foi encerrada, por questões de saúde de uma delas. A minha participação nas discussões desse grupo foi valiosa, no sentido de ter me dado acesso a questões que afligem, ou contentam, os astrólogos e os clientes durante uma consulta. Como o objetivo era uma supervisão, nos moldes de uma supervisão clínica, vários casos foram apresentados, tendo sido discutido o que havia sido dito ao cliente, como ele havia reagido, qual a melhor maneira de abordar certos problemas, como calcular o tempo nas técnicas preditivas (a grande pergunta: quando isso vai acontecer?). Essas questões serão examinadas no capítulo 3.

Academia Celeste

Um terceiro grupo de estudos surgiu durante o Simpósio de 2004. Seis trabalhos inéditos foram selecionados dentre dezoito que foram submetidos à apreciação de uma comissão do Sinarj. Todos eles foram apresentados em uma mesma sala durante o simpósio, o Salão Saturno22, e discutiam questões teóricas da astrologia. Uma parcela significativa da platéia do salão Saturno permaneceu fiel, raramente se ausentando para assistir uma palestra em alguma outra sala. Esse grupo também se reunia durante os almoços e nos intervalos para um café. No último dia de simpósio, um grupo de doze pessoas, entre palestrantes e membros da platéia do Salão Saturno, decidiu formar uma Academia Celeste, com o objetivo de reunir os interessados em estudar e discutir a teoria astrológica em moldes acadêmicos. O grupo incluía pessoas de outros estados (Minas Gerais, São Paulo e Paraná) e a primeira providência foi criar um grupo Yahoo que facilitasse a comunicação entre todos e onde pudessem disponibilizar seus trabalhos para os demais. A coordenação do grupo coube a um filósofo que, neste Simpósio, apresentou um trabalho sobre o conceito de divinação em Plotino. O grupo também convidou os

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O Simpósio foi realizado no Centro de Convenções do Hotel Florida, que dispunha de três salas. Duas ficavam no primeiro andar e uma no andar térreo. Essa do andar térreo foi chamada de Salão Plutão, o deus grego do mundo subterrâneo. O auditório do primeiro andar foi chamado de Salão Júpiter, o maior dos planetas. A sala menor do primeiro andar foi chamada de Salão Saturno.

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editores da revista virtual Constelar do Rio de Janeiro, o diretor da Escola Hermes de São Paulo e duas pesquisadoras paulistas, uma que apresentou a dissertação de mestrado em Filosofia da Ciência, O Repertório dos Tempos de André do Avelar e a astrologia em Portugal no século XVI, na PUC-SP, em 2001, e uma doutoranda em História da Ciência na PUC-SP que estuda a cosmologia de William Lilly, astrólogo inglês do século XVII. Foi também convidado Paulo Seabra, astrólogo de Brasília, presente ao Simpósio, que colaborou na pesquisa da UNB sobre a astrologia, realizada em 2003 e divulgada no início de 200423. Todos aceitaram o convite. A primeira reunião deste grupo após o simpósio foi realizada na casa do coordenador, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ficou decidido que este grupo ainda permaneceria fechado durante algum tempo, só incluindo aqueles que foram convidados quando o grupo se formou, pelo menos até que suas atividades fossem se consolidando. O objetivo de todos, e daí a necessidade de montarem um grupo distinto dos que já existem, era o de estudar exclusivamente a teoria astrológica, desvinculada de questões de ordem prática, isto é, sem atender a pressões do tipo “e como isso fica na interpretação de um mapa?”, ou “como é que isso funciona na prática?” Em todos os campos profissionais, há uma tácita divisão de trabalho entre teóricos e práticos24. Os primeiros, geralmente acusados de serem por demais ‘intelectuais’, se dedicam às questões mais gerais do seu campo de saber e não se mostram inclinados a responder à pergunta que os práticos elegem como prioridade: Para que serve isso? Hughes (1994) salienta uma relevante implicação dessa postura teórica: um desinteresse crônico por questões particulares, exatamente as questões que afligem os clientes, e este desinteresse impede o teórico de se comprometer com as demandas específicas de, digamos, um empregador. Hughes (1994:42) acredita que essa 23

O CEAM/NEFP – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares do Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais da Universidade de Brasília divulgou os resultados de uma pesquisa intitulada ‘Verificação dos efeitos das posições dos astros na eclíptica com respeito à formação do homem e seu cotidiano’, que contou com a participação de 100 voluntários. A partir dos dados de nascimento desses voluntários, uma equipe de astrólogos descreveu traços de personalidade de cada pesquisado e ofereceu previsões acerca de acontecimentos para o período seguinte de 40 dias. Os resultados foram acompanhados por uma equipe de psicólogos e apresentaram uma margem de acerto de 95%. 24 No evento ‘A Astrologia é para Todos’, a astróloga que se encarregou da palestra sobre Astrologia e Medicina (professora de astrologia, com vários livros publicados e um site na Internet) fez questão de se apresentar ao público como uma pessoa dedicada à ‘astrologia aplicada’, expressão que ela repetiu enfaticamente. A observação da astróloga, posicionando-se no lado dos ‘práticos’, talvez tenha sido muito mais dirigida aos seus colegas de profissão do que ao público leigo, para quem, presumivelmente, a astrologia aplicada não se distingue da própria astrologia.

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demarcação tende a desaparecer em algumas profissões, na medida que, em alguns casos, a formação acadêmica se mostra preocupada quanto à qualificação para postos de trabalho no comércio e na indústria e, por outro lado, os que praticam determinadas atividades se preocupam em desenvolver um corpo teórico cujo conhecimento seja exigido dos candidatos à profissão. O campo de atuação do astrólogo tem sido, historicamente, prático, voltado para o tratamento de questões predominantemente particulares. Aliás, trata-se de uma queixa bastante disseminada entre os ‘teóricos’. O corpo teórico herdado mais parece uma compilação de casos particulares do que um arranjo sistematizado de premissas, hipóteses e princípios gerais. O esforço de formalizar as bases teóricas e formais do sistema astrológico atrai os astrólogos mais afeitos ao campo da teoria e da metodologia e não é de se espantar que eles provenham dos meios universitários. A primeira proposta de colaboração do grupo foi com relação à literatura astrológica. A bibliografia estrangeira é de difícil acesso e todos oferecerem, uns aos outros, o material bibliográfico de que dispunham. Fui bastante favorecida por esse oferecimento generoso e, graças a esse grupo, tive acesso a obras de referência astrológica que não costumam ser obtidas com facilidade. Combinaram também que seriam disponibilizados, na Internet, os trabalhos que já estivessem prontos, “os trabalhos que a gente já fez e não aqueles feitos por encomenda, para satisfazer os outros” (Henrique). Uma das sugestões foi a organização de um livro com todos os trabalhos apresentados no Salão Saturno, “mesmo porque esse grupo não precisa começar do zero. Já temos um bom número de textos”. (Maurício) Nesse primeiro encontro, ficou agendado um segundo encontro para o final do ano de 2004, que acabou não acontecendo. Como os participantes residem em estados diferentes, toda vez que uma data era proposta, havia quem não pudesse viajar naquela ocasião. A comunicação entre eles acabou acontecendo via Internet, mas seguiu as diretrizes propostas. Os trabalhos foram disponibilizados uns para os outros, convites para fóruns, simpósios e cursos eram trocados, e todo material teórico encontrado era distribuído (dissertações e teses que, de alguma forma, tratavam de astrologia, artigos publicados em revistas indexadas, principalmente sobre História da Filosofia e Filosofia da Ciência).

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É interessante observar, nesse grupo, um viés preferencial pela Filosofia. Três dos membros já são pós-graduados em Filosofia (mestrado e doutorado em Filosofia da Ciência na PUC-RJ, e uma delas é professora de Filosofia em uma universidade federal). Dois outros membros demonstraram interesse em enveredar por essa disciplina. Um deles deseja montar um projeto para uma pós-graduação e o outro pretende prestar vestibular para Filosofia, ambos interessados em complementar seu interesse nessa área. O segundo encontro desse grupo finalmente aconteceu em abril de 2005, no apartamento de uma das astrólogas, no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ficou combinado que seria realizado um seminário, em setembro de 2005, após o Simpósio Nacional previsto para fins de agosto, onde os componentes do grupo apresentariam seus trabalhos para o próprio grupo ou mesmo para uma platéia convidada, caso fosse possível alugar um espaço para tal. Os trabalhos estão sendo reunidos pela coordenadora do grupo e várias propostas de aluguel de espaços estão sendo analisadas para a realização desse seminário. Um dos membros da Academia Celeste já comunicou aos demais que o Sinarj disponibiliza uma sala, de 20 lugares, para esse encontro.

1. 4 A literatura especializada

A literatura astrológica não pode deixar de ser considerada parte do trabalho de campo. Sem dúvida, a bibliografia recomendada pelas professoras do Espaço do Céu e os autores citados nos grupos de estudo contribuíram significativamente para a minha compreensão do sistema astrológico, tal como ele é enfocado nos meios astrológicos pelos quais transitei. Essa bibliografia era composta basicamente de autores estrangeiros. Poucos são traduzidos para o português, mas alguns são encontrados em espanhol. A maior parte dos livros está em inglês ou francês. Os livros podem ser encontrados em livrarias especializadas ou encomendados via internet. No Rio de Janeiro, há duas livrarias especializadas na literatura técnica astrológica: a livraria Pororoca, situada na Rua Visconde de Pirajá, 540, sl 309, em Ipanema, e a livraria Francisco Laissue, na Praça Olavo Bilac, 28, sl 201, no Centro.

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Foi importante também examinar a literatura nacional, principalmente aquela produzida pelos astrólogos que se apresentam regularmente nos eventos públicos. Dentre os mais de 30 palestrantes nos dois simpósios a que compareci, são poucos os que publicam, mas esses costumam estar no palco em todos os eventos públicos e são os mais convocados pela mídia para se manifestarem sempre que surge uma pesquisa que invalida a astrologia, um manifesto contra a astrologia por parte de algum cientista, ou então na virada do ano, época costumeira de previsões. Desde que comecei a pesquisa, essas personalidades do meio astrológico já foram diversas vezes entrevistadas no programa Fantástico da Rede Globo, no programa matinal de Ana Maria Braga na Rede Globo, no programa Sem Censura da TVE. Um panorama geral da literatura astrológica indica que ela se compõe de: 1.

uma extensa e apenas parcialmente traduzida herança de autores da Antiguidade e da Idade Medieval. Somente nas últimas décadas tem se verificado um esforço maior no sentido de traduzir os autores clássicos do árabe e do grego para o inglês. Esse esforço vem sendo patrocinado por instituições astrológicas na Europa e nos Estados Unidos e por alguns departamentos universitários cujas linhas de pesquisa, notadamente sobre História e Filosofia da Ciência, estão resgatando a obra de alguns astrólogos.

2.

uma farta literatura contemporânea, produzida principalmente na segunda metade do século XX, e que é a mais recomendada nas instituições de ensino no Rio de Janeiro. Ela inclui: a) manuais e tratados básicos de astrologia; b) livros especializados em temas específicos do corpo teórico, desde técnicas preditivas (revolução solar, progressões), a elementos do mapa natal (os nodos lunares, a roda da fortuna, o planeta Saturno), até especializações na prática astrológica (astrologia empresarial, vocacional, saúde, mundial, horária, sinastria); c) uma produção híbrida, ao estilo Nova Era, na qual os temas astrológicos são abordados juntamente com numerologia, tarô, yoga, taoísmo, princípios de auto-ajuda, exibindo títulos tais como, Feng

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Shui Astrológico, Mandala do Amor, Auto-realização através da Astrologia, a Era de Aquário, etc. 3.

uma produção virtual, on-line, apresentando artigos, resenhas ou editoriais. As mais citadas dessas publicações virtuais são: Revista Constelar, de Fernando Fernandes e Carlos Hollanda; Meio do Céu, de Cláudia Araújo e Valdenir Benedetti; Porto do Céu, de Roberta Tótora; Urania & Vila Bol, de Bárbara Abramo; Astro-sintese, de Carlos Hollanda; Stars Talk, de Lizzie Rodrigues. Há também o jornal Universus, produzido, desde 1994, pelo Centro de Astrologia Astro*Timing, localizado no Recreio dos Bandeirantes, cuja versão on-line foi lançada em 1996. Esse jornal, impresso, é distribuído gratuitamente em centros de astrologia, em farmácias homeopáticas, nas livrarias especializadas.

Ao examinar a literatura astrológica, eu tinha objetivos bem determinados. Num primeiro momento, tentei levantar os aspectos formais do sistema astrológico, procurando compreender os critérios de classificação e categorização que sustentam a interpretação. Num segundo momento, procurei mapear o campo dos discursos que atravessam o ensino e a prática da astrologia, procurando identificar os temas que se impõem. As dificuldades dessa tarefa foram muito grandes. Em primeiro lugar, há enorme discrepância entre a literatura contemporânea e os autores clássicos. Apesar do respeito professado por seus praticantes pela herança milenar do conhecimento astrológico, são poucos os astrólogos que se interessam pela literatura anterior à descoberta dos planetas Urano, Netuno e Plutão e, portanto, são poucos os que se dão conta do caráter peculiar da astrologia contemporânea, que se sustenta pesadamente em uma abordagem psicológica. Uma das professoras do Espaço do Céu me confessou que ‘jamais li um dos antigos. Só leio os autores contemporâneos’. E não é a única. Vários alunos de astrologia encontram-se também nessa situação. Além disso, há diversas escolas de pensamento na astrologia contemporânea, notadamente as de linha americana, francesa, alemã e inglesa. A escola americana e a inglesa, particularmente, são constantemente acusadas, pelo grupo pesquisado, de

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professarem uma astrologia ‘humanista’, tão semelhante a uma clínica psicológica que não é raro ouvir os professores do Espaço do Céu alertarem: “Olha, pessoal, atendimento astrológico não é terapia. Astrologia não é Psicologia nem Psicanálise”. Embora todas essas linhas encontrem adeptos entre os professores de astrologia no Rio de Janeiro, pude perceber que está surgindo um movimento de valorização da produção nacional. “Apesar dos percalços, a produção literária de astrólogos brasileiros tem sido significativa tanto em volume quanto em qualidade, especialmente a partir dos anos oitenta. Já podemos nos dar ao luxo de aprender astrologia apenas com material didático nacional, freqüentar listas de discussões em português e ler publicações onde a presença de textos estrangeiros é diminuta ou mesmo nenhuma, como é o caso da própria Constelar. Mas é preciso que o público se mobilize em torno da astrologia brasileira, de maneira a criar um mercado regular para o escoamento da produção que nasce abaixo da linha do equador.” (Fernando Fernandes e Carlos Hollanda, A hora da astrologia brasileira, Astro-síntese, edição 20, abril de 2004)

No Espaço do Céu, especificamente, a bibliografia recomendada é basicamente estrangeira. A diretora da escola já publicou dois livros e tanto ela quanto um outro professor publicam regularmente artigos em revistas e jornais on-line. Em abril de 2004, a diretora conseguiu publicar um artigo na revista francesa ‘L’Astrologue’ e esse fato foi muito comentado entre os alunos, em tom de orgulho. O que mais surpreende, no exame da literatura contemporânea, é a irrelevância atribuída à tradicional qualidade oracular da astrologia. Esta faceta é sistematicamente minimizada, em um esforço para reduzir o peso de um pressuposto determinismo. Durante uma das aulas que assisti, a professora comparava as concepções de dois ramos da astrologia (a Astrologia Horária e a Astrologia Empresarial) quanto às posições dos planetas Saturno e Marte (descritos freqüentemente na literatura clássica como maléficos), quando uma das alunas perguntou: “Mas, essa astrologia horária não é oracular?”A professora respondeu: “Você está enganada, é uma astrologia séria, com técnicas bem precisas, só que são diferentes das técnicas da astrologia que a gente

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usa”. A suspeita de que uma astrologia primordialmente oracular pode não ser ‘séria’ encontra ressonância na literatura contemporânea em geral. Tendo em vista essa pluralidade de vozes, muitas vezes conflitantes, optei por me ater ao enfoque do grupo com quem convivi. Os eventos públicos, que promovem a exposição de diversas perspectivas, contribuíram para tornar mais nítido esse enfoque.

Capítulo 2 – O Sistema Astrológico como Sistema de Classificação

No dia 22 de setembro de 2003, às seis horas da tarde, o Planetário promoveu uma mesa redonda sobre o tema ‘Sob o Signo da Ciência – a astrologia vista na perspectiva astronômica’. No palco, um biólogo e um astrônomo, como debatedores, e um físico como mediador. No auditório lotado, um número expressivo de astrólogos, claramente ressentidos por não terem um representante à mesa. Essa mesa redonda fazia parte de um ciclo de apresentações promovido pelo Planetário para o público geral. Uma vez anunciada na programação da casa, as escolas de astrologia, juntamente com o SINARJ, se encarregaram de divulgar a notícia entre os astrólogos, convidando-os a marcar presença. Enquanto eu esperava a sessão começar, conversei com um senhor de 72 anos que me contou que não perdia a programação do Planetário. Ele morava em um prédio vizinho e, já aposentado, gostava de freqüentar as palestras ali oferecidas. “São todas muito interessantes, minha filha, e assim eu deixo a minha mulher em paz um pouquinho, para ela ver as novelas dela. Hoje, eu estou entusiasmado. Sou do signo de Escorpião e quero saber se tenho chance de ficar rico”, disse ele sorrindo. Esse senhor era um dos pouco leigos presentes. Os astrólogos haviam chegado cedo, para não perderem as senhas de entrada, e lotaram o auditório. O clima acalorado não poderia ter sido menos propício ao debate. As apresentações dos debatedores foram interrompidas repetidamente por exclamações da platéia em tom acusatório. “Não se aprende astrologia pela internet”, exclamavam alguns. “Não é nada disso”, gritavam outros. Em contrapartida, não faltaram entonações desdenhosas e comentários irônicos por parte da mesa. Houve tamanho constrangimento que o diretor do Planetário chegou a subir ao palco e tomar a palavra, na tentativa de acalmar os ânimos1. O embate dramaticamente sustentado girava em torno da pretensa cientificidade da astrologia.

1

O astrônomo convidado para o evento ‘A Astrologia é para Todos’, realizado em março de 2004, foi exatamente o diretor do Planetário da Gávea que subiu ao palco para arrefecer os ânimos. Ao aceitar o convite, ele marcou uma consulta com a astróloga convidada para ser sua parceira de mesa e fez, com ela, a leitura de seu mapa natal, segundo ele mesmo declarou ao público na ocasião. E comentou que, na consulta, “nem me preocupei em olhar astronomicamente as posições dos planetas naquilo que vocês chamam de signos e nós de constelações”. Achei interessante ele ainda relacionar signos às constelações, quase um ano depois que essa idéia tivesse sido negada de forma veemente, e até irada, pelos astrólogos na platéia do Planetário, onde ele esteve presente.

64 O astrônomo se deteve especificamente na configuração astronômica de que os astrólogos se valem para descrever o estado do céu no momento do nascimento. Como é possível, argumentava ele, sustentar um sistema baseado em um trajeto do Sol ao redor da Terra quando todo mundo sabe que a Terra gira em torno do Sol? Como defender uma divisão arbitrária da eclíptica2 que confere homogeneidade aos signos, cada qual com 300 de extensão, quando as constelações correspondentes são de extensão, luminosidade e número de estrelas completamente diferentes? Como admitir uma caracterologia baseada em constelações que já não se encontram mais nos signos correspondentes, pois a precessão dos equinócios3 rompeu a justaposição entre signos e constelações? Segundo o astrônomo, como a constelação de Áries encontra-se hoje no signo de Touro, quem acha que é um ariano, na verdade é um taurino. A platéia discordou enfaticamente.

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A eclíptica é o plano da órbita terrestre, assim chamado porque é ali, nos pontos em que esse plano intercepta o plano do equador, que se observam as eclipses solares e lunares. Este plano tem uma inclinação de 23027’ em relação ao plano do equador, uma obliqüidade que diminui ao passo de 50’’ por século.

3

O fenômeno da precessão dos equinócios refere-se ao movimento retrógrado dos pontos equinociais, isto é, os pontos em que o plano da eclíptica intersecta o plano do Equador. O Sol cruza esses pontos duas vezes ao ano, assinalando os equinócios da primavera e do outono. O ponto equinocial da primavera (no hemisfério norte), ou vernal, coincidiria com o 00 de Áries, e foi escolhido para marcar o início da sucessão ordenada de signos zodiacais. Entretanto, devido a essa retrogradação, o ponto vernal deslocou-se para o signo de Peixes e continua a progredir em sentido inverso à sucessão de signos, em direção ao signo de Aquário. Não se pode precisar com exatidão o tempo necessário para que o ponto vernal percorra um signo por inteiro, mas supõese que seja por volta de 2000 anos. A este fenômeno astronômico vincularam-se diversos significados simbólicos, dentre os quais encontra-se a postulação de eras zodiacais. À medida que o ponto vernal atravessa um signo zodiacal, este signo imprime sua marca no mundo. Acredita-se que os últimos 2000 anos foram marcados pelo signo de Peixes, um período intimamente conectado a um cristianismo que apresenta o peixe como ícone. Graças, porém, à precessão dos equinócios, o ponto vernal eventualmente atingiria o signo de Aquário, inaugurando uma Nova Era. É daí que o movimento Nova Era extrai sua denominação.

65 Em suma, como aceitar uma concepção do estado do céu que qualquer pessoa minimamente informada sobre o sistema solar reconhece como falseada, deformada e refutada? Contudo, a faceta especulativa do pensamento humano, capaz de gerar sistemas de classificação e tipologias intrigantes e, por vezes, incongruentes, é justamente o que nos interessa. Ao descrever o sistema astrológico chinês como um sistema classificatório, Durkheim e Mauss (2001: 442-455) salientam que ele não deriva da morfologia social, como ocorre com os demais sistemas totêmicos que eles discutem, embora mantenha os mesmos princípios gerais, agrupando os seres em classes e espécies a partir de‘afinidades sociais. Esses autores atribuem aos sistemas divinatórios da China, da Grécia e da Índia um lugar intermediário entre as classificações totêmicas australianas e as taxonomias científicas modernas. Ressaltam, porém, que as classificações primitivas guardam semelhança com as taxonomias científicas na medida que constituem sistemas de noções não só agrupadas, mas também hierarquizadas, com o objetivo de tornar inteligível as relações existentes entre os seres. O que a ciência herda desses sistemas primitivos é a própria possibilidade de classificar, distinguindo-se deles, contudo, pela crescente independência com relação ao contexto e pelo crescente enfraquecimento de atitudes afetivas para com as noções. Nos sistemas primitivos, as coisas não são simplesmente objeto de conhecimento, mas assumem valores sentimentais em função da maneira como afetam a sensibilidade social. Para Durkheim e Mauss, a maior implicação dessa tonalidade afetiva é a dificuldade de estabelecer contornos nítidos para as classes. “É que uma classificação lógica é uma classificação de conceitos Ora, o conceito é a noção de um grupo de seres claramente determinado; seus limites podem ser marcados com precisão. Ao contrário, a emoção é uma coisa essencialmente vaporosa e inconsciente. Sua essência contagiosa brilha muito além de seu ponto de origem, estendese a tudo aquilo que a cerca, sem que se possa dizer onde se detém sua potência de propagação. Os estados de natureza emocional participam necessariamente do mesmo caráter. Não se pode dizer nem onde começam nem onde acabam; perdem-se uns nos

66 outros, misturam suas propriedades de modo que não se pode categorizá-los com rigor”. (2001:455). Seguindo a hipótese de Durkheim e Mauss segundo a qual os sistemas divinatórios podem ser analisados como formas de classificação, Lévi-Strauss (1989) deteve-se particularmente nos operadores de classificação. Estabeleceu uma distinção entre ‘signo’ e ‘conceito’, enfatizando que o conceito, como unidade básica de uma construção lógica e categórica, constitui um operador context-free, que fabrica estruturas para criar acontecimentos. Já o signo, a meio caminho entre o percepto e o conceito (1989:33), busca uma organização sistemática dos eventos, para atribuir-lhes significado a partir dessa ordenação. Portanto, ambos, signo e conceito, produzem, embora por meios radicalmente diferentes, uma modelização do real que não só investiga as conexões entre os eventos, mas também coloca em pauta categorias fundamentais do pensamento, tais como uno/múltiplo, igual/diferente, todo/parte, e assim por diante. Há, então, duas estratégias de pensamento frente à experiência, que são diferentemente objetivadas. Enquanto que o pensamento científico opera basicamente por meio de unidades conceituais decalcadas do plano sensível, o pensamento que Lévi-Strauss chama de selvagem opera por meio de unidades sígnicas que mantêm uma espécie de aderência às coisas, configurando o que esse autor caracteriza como “uma ciência do concreto” (1989:15-49). Cavalcanti (2002) salienta que a razão lévi-straussiana é totalmente encarnada em matéria, pois se exerce na e pela manipulação das qualidades sensíveis, fornecidas pela experiência corporal, e que são operadoras do inteligível. “Em Lévi-Strauss, o sensível que oferece ao pensamento suas categorias elementares é o sensível posto no solo etnográfico. A inteligibilidade das categorias empíricas – o cru e o cozido, o alto e o baixo, o fresco e o podre, o molhado e o queimado, entre outros pares e tríades – deriva de contextos culturais particulares”. (2002:6) Lévi-Strauss coloca o homem na natureza, mas não em uma natureza entendida como alteridade em relação ao homem e em relação à cultura. A natureza lévi-straussiana se compõe de estruturas elementares, que são as mesmas do espírito humano.

67 Em sua pesquisa sobre a astrologia, Vilhena (1990) procurou demonstrar que o sistema astrológico apresenta uma lógica comparável à dos sistemas totêmicos que foram analisados por Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem. Muito embora Lévi-Strauss tenha admitido que o pensamento selvagem ainda persista nas sociedades modernas, ele o restringe a alguns nichos4. Em La Pensée Bourgeoise, porém, Sahlins (2003:166-203) argumenta que a sociedade burguesa apresenta vários sistemas passíveis de serem tratados como sistemas totêmicos, entre eles a comida e o vestuário. Estudando o consumo, Everardo Rocha (1995) detecta, na publicidade, o modelo lógico do totemismo. Ao operar diferenças entre os produtos manufaturados, a lógica do consumo instaura um sistema de classificação por meio do qual se pode efetivar uma leitura do mundo e da sociedade. O caráter totêmico não se deve a resíduos de sistemas mágicos e míticos que sobrevivem, mas sim ao estabelecimento de uma lógica de diferenças e semelhanças que engenhosamente liga séries descontínuas. É esta mesma lógica que DaMatta (1999) analisa com relação ao jogo de bicho na sociedade brasileira. Em vista disso, procuro investigar as categorias que norteiam a classificação astrológica, adotando a hipótese de que o sistema astrológico compartilha as características que definem os sistemas totêmicos como sistemas classificatórios - a coerência interna e a capacidade ilimitada de extensão (Lévi-Strauss, 1975:243). Para chegar a essas categorias, apoiei-me nos tratados clássicos que compunham o material bibliográfico do grupo de estudos do Espaço do Céu que acompanhei durante dois anos: Astronômica, de Manilius; Carmen Astrologicum, de Dorotheus de Sidon; o Tetrabiblos, de Ptolomeu; os volumes I e VII da Antologia, de Vettius Valens; Mathesis, de Firmicus Maternus; Apolesmatica, de Hefaísto de Tebas5. 4

“...conhecem-se ainda zonas onde o pensamento selvagem, tal como as espécies selvagens, acha-se relativamente protegido: é o caso da arte, à qual nossa civilização concede o estatuto de parque nacional, com todas as vantagens e os inconvenientes relacionados com essa fórmula tão artificial; e é sobretudo o caso de tantos setores da vida social ainda não desbravados onde, por indiferença ou impotência e sem que o mais das vezes saibamos porque, o pensamento selvagem continua a prosperar.” (Lévi-Strauss, 1989:245) 5 O Astronomica de Manilius é tido como a fonte mais antiga de conhecimento astrológico que chegou completa até o século XX. Datado de pelo menos um século antes da obra de Ptolomeu, foi escrito sob a forma de poema didático, em cinco volumes. A coordenadora do grupo de estudos comentou, por diversas vezes, que os astrólogos não dão muita importância a Manilius justamente porque ele não escreveu em prosa. A obra que os astrólogos costumam adotar como a fonte clássica do conhecimento astrológico é o Tetrabiblos de Claudio Ptolomeu (século I), cuja grande obra de astronomia, o Almagesto, desenvolve a concepção geocêntrica do mundo em treze volumes. Inspirado na tradição egípcia de Nechepso e Petosiris, conhecida como a Vulgata Helenística, Ptolomeu apresenta a teoria astrológica em quatro volumes, sem, contudo,

68 Embora haja várias linhas teóricas na astrologia, o viés preferencial deve depender do grupo pesquisado. Não posso, então, deixar de me apoiar no material discutido pelo grupo de estudos sobre os autores da astrologia helenística, que foi o mais acompanhei, participando dele até mesmo depois que deixei de assistir as aulas convencionais da escola. Os textos consultados foram importados de editoras norte-americanas e inglesas, rateados e distribuídos pelo grupo. Cada um se responsabilizou pela apresentação do material teórico de um dos autores e a escolha de qual autor ficaria a cargo de qual membro do grupo dependia, em grande parte, do idioma em que o livro era escrito. Havia versões em francês, inglês e espanhol e as pessoas escolhiam seus respectivos autores de acordo com o idioma no qual tinham mais desenvoltura. No Simpósio de 2004, a coordenadora do grupo apresentou uma palestra sobre a obra de Dorotheus de Sidon e foi procurada por diversos professores de outras escolas, até mesmo de outros estados do Brasil, que ficaram interessados em obter esse material. Tive também oportunidade de conversar por diversas vezes com duas astrólogas que se apóiam nas técnicas clássicas descritas nesses tratados. Elas não participavam do grupo de estudos, mas me concederam entrevistas demoradas. Uma delas, Renata, possui uma farta clientela, que lhe permite viver exclusivamente de consultas astrológicas. Durante o período em que essa pesquisa foi realizada, sua carteira de clientes estava em franca expansão, pois estava sendo solicitada a atender também pessoas que moravam no exterior. oferecer um único mapa de nascimento como exemplo. Já a Antologia de Vettius Valens, obra em nove volumes, apresenta mais de cem mapas de nascimento que exemplificam a teoria apresentada. Ptolomeu e Valens eram contemporâneos, embora não haja evidências de influências recíprocas nesses autores. Os tratados de Valens e de Dorotheus de Sidon só começaram a ser traduzidos para o inglês em fins do século passado. A primeira tradução inglesa do Carmen Astrologicum de Dorotheus de Sidon (obra em cinco volumes) foi publicada em 1976. Esta edição inglesa foi traduzida do árabe, a qual, por sua vez, fora traduzida do persa, e é razoável admitir que contenha inserções e adaptações da obra original. Acredita-se que Dorotheus tenha vivido no século I, depois de Manilius, mas antes de Ptolomeu. Os tratados de Firmicus Maternus (Mathesis, em 8 volumes) e de Hefaísto de Tebas (Apolesmatica, em três volumes), autores do século IV, também foram discutidos nesse grupo de estudo. Hefaísto adota explicitamente as teses de Dorotheus e Ptolomeu; sua obra compila e resume os tratados desses dois autores mais antigos, que são por vezes citados extensamente. Três outros autores - Ibn-Ezra, (autor de ‘The Beggining of Wisdom’, no século XII), Guido Bonatus (autor de Animae Astrologicae, cuja primeira edição data de 1676) e William Lilly (autor de ‘Christian Astrology’, no século XVII) - foram consultados por alguns dos membros do grupo com o objetivo de verificar até que ponto as técnicas antigas haviam sobrevivido até a época medieval. Os autores medievais, porém, só serviram de contraponto, pois o objetivo era se deter especificamente na literatura da Antiguidade. Além disso, o grupo recorreu sistematicamente ao livro L’Astrologie Grécque, escrito, em 1899, por Bouché-Leclerq, historiador francês, professor da Faculdade de Letras de Paris. Fruto de extensa pesquisa sobre o sistema astrológico grego, essa obra, citada por Durkheim e Mauss (2001) nos estudos sobre sistemas de classificação, e ainda não traduzida para o português, foi usada como fonte de referência dos elementos helenísticos que compõem o sistema astrológico.

69 Tudo começou com um casal, que eram seus clientes há anos e que foram transferidos para Portugal. Ela continuou a atendê-los, enviando as fitas gravadas pelo correio. Algumas pessoas que esse casal conheceu na nova cidade se interessaram e pediram uma leitura de mapa. E ela passou a atender pessoas que nunca tinha encontrado pessoalmente, via correio. Quando o atendimento a essa clientela no exterior tomou corpo, ela passou a se comunicar com os clientes via Internet, chegando a comprar uma webcam para poder visualizar seus interlocutores. Segundo ela, “é tão melhor quando a gente pode ver a pessoa! Faz muita diferença. Sei lá, os gestos, o tipo físico, isso ajuda muito a gente ter mais certeza do que o mapa está mostrando”. Esses novos clientes são brasileiros expatriados (que moram na Austrália, na Inglaterra e em Portugal), e portugueses. Como essa prática começou recentemente, desde julho de 2004, não posso ainda avaliar se ela se restringe aos clientes que falam português por conta de uma barreira de línguas ou por conta de uma questão cultural. Essa astróloga, graduada em Direito, cursou uma pós-graduação em teoria junguiana, em uma faculdade de Psicologia da Zona Sul do Rio de Janeiro, segundo ela para ‘se embasar melhor’ em teorias da personalidade. Concluiu as disciplinas, mas não chegou a apresentar a monografia final. “Ia me exigir muito trabalho, um tempo enorme, para completar uma coisa que eu descobri que não me interessa. Quando eu tenho um tempo sobrando, o que é raro, prefiro estudar astrologia”. Durante o curso de pósgraduação, ela teve que apresentar um seminário sobre imagens arquetípicas e desenvolveuo com base no planeta Mercúrio. Ficou bastante satisfeita quando, depois desse seminário, foi procurada por três colegas e dois professores, que marcaram consulta. A outra astróloga, Mariana, percorreu o caminho inverso. Atendia regularmente, lecionava em uma escola de astrologia e abandonou tudo para cursar medicina. Quando ainda atendia, trabalhava associada a alguns médicos homeopatas, que a recomendavam a seus pacientes. Chegou a cursar, como ouvinte, o curso de especialização em homeopatia no Instituto Hahnemaniano do Brasil6. Quando ingressou na Universidade Federal Fluminense, localizada na cidade de Niterói, para estudar medicina, manteve sua prática de atendimento astrológico ainda por algum tempo. Porém, as exigências do curso logo lhe tomaram todo o tempo e ela abandonou as consultas. Conserva a reputação de um sólido 6

Localizado na Rua Frei Caneca, 94, Centro, Rio de Janeiro.

70 conhecimento nas técnicas clássicas e suas aulas ainda são referência para algumas das astrólogas que entrevistei (ela não leciona há quase oito anos). No grupo de supervisão que freqüentei7, uma de suas antigas alunas sempre se referia a ela em seus comentários (“Isso aqui, nesse mapa, a Mariana dizia que significava isso e aquilo” ou “Eu ainda tenho as anotações das aulas da Mariana, posso até verificar, mas, se não estou enganada, isso funciona assim e assado”). A decifração da língua astrológica esbarra em uma enorme dificuldade: a multiplicidade de significados que podem ser extraídos de um conjunto finito de símbolos sujeitos a determinadas regras de combinação. Para quem deseja se aventurar nesse empreendimento, o primeiro passo é examinar esse conjunto de símbolos, no qual se incluem: as estrelas, os planetas, os signos do Zodíaco, as casas astrológicas. A cada elemento desse conjunto de símbolos é conferida uma série de atributos ou características que precisam ser levados em conta sempre que este elemento entra em uma interpretação. Essas características, contudo, podem se mostrar alteradas, em maior ou menor grau, de acordo com sua posição relativa aos demais elementos do conjunto. O planeta Marte, por exemplo, sempre significará uma maneira marciana - que não se confunde com a de qualquer outro planeta - e sempre testemunhará sobre assuntos marcianos, que lhe são específicos. Entretanto, essa maneira marciana pode se mostrar atenuada ou intensificada, encontrar ajudas ou obstáculos, dependendo da posição específica de Marte no mapa de nascimento: em qual signo ele se encontra, em qual casa ele está localizado, e qual a sua posição em relação aos demais planetas. Em virtude disso, as questões governadas por Marte, para um nativo particular, podem tender a determinados resultados e não a outros. Antes de examinarmos mais detidamente os elementos que compõem o sistema astrológico, tentaremos elucidar a matriz geradora das principais categorias astrológicas. Em uma astrologia notadamente solar (tal como a praticada no Ocidente e, particularmente, nos grupos que freqüentei), as principais categorias derivam do Sol, que gera, inclusive, o tempo e o espaço astrológicos. O tempo astrológico é o tempo cíclico, pois é pautado na regularidade e constância do movimento solar. Uma das astrólogas entrevistadas comentou: “Por que usar os 7

Trata-se do grupo de supervisão, já mencionado, que se reunia às quartas-feiras, na casa da supervisora.

71 planetas para interpretar as situações? Por que não usar outras coisas, como plantinhas, abóboras ou cenouras? É porque a astrologia trabalha com ciclos que podem ser acompanhados”. Os principais ciclos com que a astrologia trabalha remetem à regularidade e constância do movimento solar. O primeiro, ao longo do Zodíaco, marca a periodicidade estacional e se completa em um ano. O segundo, ao redor da Terra, marca a alternância básica entre o dia e a noite e se completa em 24 horas. Evidentemente, a astronomia afirma que é a Terra que gira em torno do Sol, num movimento de translação, e em torno de si mesma, num movimento de rotação. Contudo, o que importa para a astrologia é o movimento solar tal como é percebido quando se olha para o céu. Para o observador na Terra, o Sol parece elevar-se no horizonte na aurora, culmina no céu ao meio-dia, põe-se no ocaso e fica invisível durante a noite, até elevar-se novamente na aurora seguinte. E, a cada dia, ele parece se deslocar por volta de um grau no seu caminho pelo Zodíaco, até percorrer os 360 graus do Zodíaco em cerca de um ano. Os intervalos de tempo derivados desses dois movimentos solares – um ano e um dia – fundamentam as técnicas preditivas mais empregadas na prática astrológica: a revolução solar, o arco solar e as progressões. As implicações desses ciclos temporais serão examinadas no capítulo 4, quando analisarmos o código cronológico que os astrólogos utilizam. Por ora, o que nos interessa salientar é o papel fundamental do Sol na determinação do tempo e do espaço astrológicos. Cada um desses dois movimentos solares é mapeado em um tipo diferente de espaço. O movimento solar anual é acompanhado contra o pano de fundo do Zodíaco, um cinturão virtual que envolve a Terra, onde ocorre o aparente caminho do Sol ao longo do ano. O zodíaco tropical se confunde com a própria eclíptica. Esse cinturão foi dividido em 12 arcos iguais, de 300 cada um, que constituem os doze signos. Ao contrário do que o astrônomo afirmava, no debate organizado pelo Planetário da Gávea, os signos do Zodíaco não são demarcados em função das constelações que interceptam a eclíptica. A dissociação entre signos e constelações já é mencionada por

72 Ptolomeu (I, 22), que justifica a marcação dos signos a partir dos equinócios e solstícios8, e não em função do espaço ocupado pelas constelações. Embora tanto a astronomia quanto a astrologia possam localizar os planetas no céu por meio de coordenadas zodiacais, o Zodíaco constitui um espaço propriamente astrológico quando é concebido como um espaço qualitativo e heterogêneo. Cada região desse espaço, isto é, cada signo, possui qualidades distintivas que supostamente informam os planetas quando estes por ali transitam. O movimento solar diário, por sua vez, é mapeado em um espaço conhecido como a Roda das Casas, um espaço eminentemente astrológico até porque não encontra equivalente astronômico. O Zodíaco tem uma existência, mesmo que virtual, e uma funcionalidade, para a localização dos planetas, que são compartilhadas tanto pela astrologia quanto pela astronomia. Por mais que os astrônomos confundam signos e constelações, se você conversar com um deles e disser que a Lua, no seu mapa natal, está localizada no vigésimo grau de Escorpião, ele vai reconhecer as coordenadas de localização que você está empregando. A Roda das Casas, por outro lado, é um espaço unicamente astrológico. Se você contar a esse mesmo astrônomo que essa Lua, no vigésimo grau de Escorpião, encontra-se na Casa 3, é bem possível que ele não tenha a menor idéia do que você está falando, pois a astronomia não reconhece a Roda das Casas. O espaço do Zodíaco, onde os planetas erram, faz a mediação entre o céu superior – a abóbada celeste – e a Terra, configurando um céu mediano. O espaço das Casas, por sua vez, promove a mediação entre o céu mediano e o homem, particularizando o estado do céu para um determinado nativo. Para um observador na Terra, o Zodíaco, essa ‘roleta do destino’, na expressão de Bouché-Leclerq (1963:256) se movimenta sem cessar, dando uma volta completa em torno da Terra em vinte e quatro horas. Quando um astrólogo ‘levanta’ um mapa de nascimento, ele constrói um diagrama onde são marcadas as posições dos planetas não só nos signos, mas também em relação ao observador na Terra. Alguns planetas podem estar acima do

8

Os dois equinócios, o de primavera e o de outono, são pontos de interseção do círculo da eclíptica com o círculo do equador celeste. Quando o Sol, no seu aparente movimento ao redor da Terra cruza esses pontos, o dia e a noite têm a mesma duração. Nos solstícios, o Sol se encontra em sua maior declinação boreal ou austral em relação ao equador celeste. No solstício de inverno, a noite tem sua maior duração e, no solstício de verão, a maior duração é a do dia.

73 horizonte, visíveis no céu sobre o nativo, outros abaixo do horizonte; alguns talvez se encontrem mais próximos ao nascente e outros, ao poente.

No exemplo que apresentamos, os planetas Júpiter (V), Plutão (Z), Netuno (Y) e Urano (X) encontram-se abaixo do horizonte, enquanto os demais planetas estão acima do horizonte. O Sol (Q) está perto do zênite e Marte (U) declina em direção ao poente. É importante notar que o poente é marcado na ponta direita da linha do horizonte e a aurora, na ponta esquerda, num posicionamento espelhado daquele que comumente utilizamos para marcar os pontos cardeais, onde o Leste fica à direita e o Oeste à esquerda. Esse espelhamento parece se dever à suposta preponderância da direita sobre a esquerda. Quando Lévi-Strauss discute os ritos dos osage, procurando demonstrar a convertibilidade recíproca dos classificadores concretos (animais e plantas) e dos classificadores abstratos (os números, as direções e as orientações), ele cita exatamente essa transferência para as direções do espaço.“Na imagem do sol nascente, na qual o homem que a contempla venera a fonte de toda a vida, olhando assim para o leste, o que efetivamente coloca o sul a sua direita e o norte a sua esquerda ...” (1989:165).

74 Ao que parece, o sistema astrológico espelha a direção leste-oeste a fim de que, olhando-se diretamente para o leste, o sul, que estaria colocado à direita, ficasse também na parte

elevada

do

mapa,

respeitando

a

correspondência

alto/baixo;

sul/norte;

direita/esquerda. Essas posições dos planetas no mapa de nascimento dependem das coordenadas do local onde o observador se encontra. Uma pessoa que nasce por volta do meio-dia, no Rio de Janeiro, tem o Sol no ponto mais elevado no céu que o Sol pode atingir naquele dia, como na figura acima. Nesse exato momento, nas coordenadas de Londres, o Sol já seria visto declinando no céu, pois meio-dia, no Rio de Janeiro, equivale a três horas da tarde no fuso londrino. É nesse sentido que um mapa de nascimento é bem mais topocêntrico do que geocêntrico, razão pela qual a concepção heliocêntrica não conseguiu abalar o sistema astrológico como se poderia supor9. Se é a Terra que gira em torno do Sol e não o contrário, essa questão é indiferente ao pensamento astrológico. Os astrólogos deixam claro que, afinal de contas, o homem nasce e vive na Terra e o estado do céu que lhe importa é aquele percebido do local específico onde ele se encontra. A supremacia do ponto de vista do observador passa ao largo de considerações astronômicas. Uma das funções cruciais das casas astrológicas é, portanto, qualificar o estado do céu não em relação à Terra como um todo, mas em relação a um ponto específico na superfície da Terra – aquele onde o nativo se encontra. A premissa astrológica é que o estado do céu, no momento exato do nascimento, quando observado do ponto de vista do nativo, qualifica a própria perspectiva do nativo, que vê o mundo, as pessoas e a si mesmo tal como viu o céu no instante de seu nascimento. Via de regra, o mapa de nascimento é apresentado sob a forma de uma mandala, cujo contorno é a Roda do Zodíaco.

9

Ver Rossi (1992) para uma discussão mais pormenorizada dessa questão. A derrocada da astrologia é geralmente creditada à instauração do sistema copernicano, que supostamente teria abalado as bases do sistema astrológico, ao transformar um sistema geocêntrico em um sistema heliocêntrico. Segundo Rossi, isso equivaleria a reduzir a astrologia a uma concepção do mundo natural, a qual, uma vez posta em causa, não teria mais como sustentar o sistema simbólico correspondente. Rossi apresenta três aspectos constitutivos do sistema astrológico que são negligenciados quando este enfoque predomina: (a) a mistura híbrida de temas religiosos e matemáticos, (b) as técnicas para controlar as forças da natureza e (c) a humanização do cosmos.

75

Se o Zodíaco circunscreve o espaço em torno da Terra, a Roda das Casas traz o céu para o espaço que cerca o nativo. Para tanto, no mapa de nascimento, são traçadas linhas ligando os signos ao centro do mapa, onde supostamente o nativo estaria representado, numa configuração radial que divide o espaço entre o zodíaco e o local de nascimento em doze setores heterogêneos e qualitativamente distintos – as doze casas astrológicas. As qualidades e atributos dos doze signos e das doze casas serão examinados mais adiante, quando enfocarmos a classificação desses espaços. Por ora, o que nos interessa ressaltar é que esses dois espaços são os cenários do movimento solar: o movimento anual (no caso da Roda dos Signos) e o movimento diurno (no caso da Roda das Casas). Considerando que toda significação emerge de um processo de discretização, logo, de descontinuidades, é a fragmentação que transforma um todo contínuo, como o Zodíaco ou a Roda das Casas, em um conjunto ordenado de unidades significativas. As fragmentações operadas nesses dois espaços se pautam em atributos solares. Nos sistemas míticos ameríndios examinados por Lévi-Strauss (1993), o Sol e a Lua são comutáveis quanto ao sexo10. A distinção significativa entre esses dois astros é que, 10

Quando o Sol e a Lua são considerados do mesmo sexo, a diferença se exprime pela faixa etária (um é mais velho, o outro é mais novo) ou por diferenças de comportamento (um é sensato, o outro é tolo), principalmente quando são gêmeos. Quando lhes são atribuídos gêneros diferentes, eles podem ser aparentados ou não (irmãos, pai e filho, cônjuges). (Lévi-Strauss, 1993:221)

76 embora ambos possuam o poder de iluminar, somente o Sol é capaz de aquecer. Para os ameríndios, a distinção dessas duas funções chega a ser mais importante do que a distinção entre os dois astros, que são, por vezes, designados pela mesma palavra. Também no sistema astrológico, os eixos de coordenadas que fundamentam a divisão dos signos se sustentam nas oposições que o Sol e a Lua significam: claro/escuro, na função iluminante, quente/frio, na função calorífica. Os equinócios (de primavera e outono) trazem um calor moderado, em consonância com o equilíbrio entre noite e dia. Os solstícios (de verão e de inverno) trazem, respectivamente, calor e frio intensos, assim como a maior desproporção entre o dia e a noite. Os solstícios, portanto, assinalam os extremos na intensidade de brilho e calor solares e uma inversão de sentido. No solstício de verão, a quantidade de horas diurnas, tendo atingido seu máximo, só pode agora declinar, até o dia alcançar sua mais curta duração, no solstício de inverno, quando volta então a se alongar. O declínio do calor (no eixo quente/frio) acompanha o declínio da duração do dia (no eixo claro/escuro). Os equinócios, por sua vez, assinalam a moderação na intensidade de brilho e calor solares, traduzida no clima temperado (no eixo quente/frio) e na mesma duração do dia e da noite (no eixo claro/escuro). A meio caminho dos extremos de luz e calor, assinalam a inversão na preponderância do dia sobre a noite ou vice-versa. A partir do equinócio de primavera, o dia passa a ser mais longo do que a noite, até o equinócio de outono, quando a duração da noite começa a suplantar a do dia. Portanto, ambos significam inversão, seja na direção (crescente ou declinante), seja na preponderância (maior ou menor) da luz e do calor. Os solstícios significam excesso enquanto que os equinócios significam moderação. Na Roda das Casas, os eixos de coordenadas que sustentam a divisão em doze setores também recorrem às polaridades claro/escuro e quente/frio, que remetem às funções calorífica e iluminante do Sol. Porém, como o espaço das casas está pautado no ciclo solar diário, os quatro marcos principais se baseiam na alternância entre o dia e a noite, e não na alternância das estações conforme a Roda dos Signos. O eixo horizontal corresponde à linha do horizonte, onde se verifica a aurora, na ponta leste, e o ocaso, na extremidade a oeste. O eixo vertical corresponde ao meridiano

77 traçado desde o zênite, o ponto mais elevado que o Sol atinge, por volta do meio-dia, até o ponto diametralmente oposto, o nadir, que corresponde à posição do Sol à meia-noite. Na periodicidade diária, a aurora e o ocaso constituem interseções do dia e da noite, tal como, na periodicidade anual, os equinócios assinalam os momentos do ano em que o dia e a noite são de igual duração. Todo astro, ao elevar-se no horizonte, torna-se visível para o mundo e, ao declinar no poente, passa a ficar invisível. O zênite e o nadir, por outro lado, constituem os momentos de maior e menor intensidade da luz e do calor solares, tal como os solstícios na periodicidade anual. Assinalam igualmente uma inversão de direção. A partir do zênite, o sol começa a declinar em direção ao poente. O nadir assinala a virada para a ascensão, em direção ao nascente. Apresentamos abaixo o quadro das correspondências entre a periodicidade estacional e da periodicidade diária:

ciclos

ZODÍACO

RODA DAS CASAS

Ciclo estacional

Ciclo diário

solares marcos dos

equinócio

solstício

equinócio

solstício

ciclos

de

de verão

de outono

de

primavera

aurora

zênite

ocaso

nadir

inverno

quente/frio;

equilíbrio

excesso

equilíbrio

excesso

interseção

excesso

interseção

excesso

claro/escuro

quente/frio;

de

quente/frio;

de frio,

dia/noite

de luz e

dia/noite

de

mesma

calor;

mesma

noite

duração

dia mais

duração

mais

dia/noite

longo

dia/noite

longa

direção da

dia

virada

noite

virada

luz e calor

virada

escuro e

virada

tendência

prevalece

para

prevalece

para

crescentes

para

frio

para

sobre a

declínio

sobre o dia

declínio

declínio

crescentes

ascensão

noite

do dia

calor

escuro e frio

da noite

É importante observar que, em um mapa de nascimento, a direção do movimento dos planetas no Zodíaco se faz em sentido anti-horário e, na Roda das Casas, em sentido horário. Eis porque as regiões desses espaços associadas ao máximo de vigor e intensidade

78 solares (o verão, em um caso, e o zênite, no outro) são marcadas em posições diametralmente opostas.

Os quatro pontos do mapa de nascimento associados aos marcos do ciclo diário são conhecidos como os ângulos do mapa. O Ascendente corresponde ao grau zodiacal que ascende, ou nasce, no horizonte na mesma hora que o nativo. O grau zodiacal diametralmente oposto, correspondente ao poente, é chamado de Descendente. Os ângulos marcados sobre o meridiano, associados ao zênite e ao nadir, são conhecidos como Meiodo-Céu e Fundo-do-Céu. O Meio do Céu é o ângulo correspondente ao momento do dia

79 que testemunha o máximo de vigor e intensidade solares, enquanto que o Fundo do Céu equivale à posição do sol à meia-noite.

Os quatro ângulos do mapa têm a potência de um corpo celeste, embora sejam graus zodiacais e não planetas ou estrelas. A premissa é que, quando esses pontos tocam, ou são tocados, por um astro, são capazes de significar eventos tantos quanto os corpos celestes. A partir desse panorama dos atributos solares que qualificam o tempo e o espaço com que a astrologia opera, podemos distribuir aqueles elementos astrológicos que desfrutam de um presumido poder de atuação (as estrelas, os planetas e os ângulos) pelos seus respectivos níveis espaciais:

Céu superior

As constelações na abóbada celeste

Céu mediano

Os planetas no Zodíaco

Céu inferior

Os ângulos na Roda das Casas

Iremos agora examinar cada um desses planos mais de perto, no esforço de esclarecer suas especificidades.

80 2.1 O céu superior: as estrelas no firmamento

Ao contrário do que o astrônomo, no debate promovido pelo Planetário, acreditava, os astrólogos não consideram os signos equivalentes às constelações. Esse ponto foi afirmado por diversos membros da platéia, que insistiam em corrigir, em voz alta, as alegações do astrônomo. Os signos correspondem a divisões da eclíptica, que constitui um cinturão virtual onde ocorre o observado trajeto do Sol ao redor da Terra. Essa faixa, como um todo, está associada ao poder solar e foi decomposta em doze setores distintos - os signos - que passaram a figurar como manifestações particulares desse mesmo poder. As constelações, por sua vez, se situam para além dessa faixa e, por isso, o plano de determinação creditado às constelações difere do plano de determinação dos planetas, uma concepção que remonta ao Timeu de Platão11. São 88 as constelações definidas oficialmente, em 1930, pela I.A.U. (International Astronomical Union12), a União Astronômica Internacional, órgão também responsável pela atribuição dos nomes aos objetos celestes. Entretanto, na Antiguidade, os astrólogos conheciam apenas 48 constelações visíveis a olho nu: 12 zodiacais, 21 boreais (hemisfério celeste norte) e 15 austrais (hemisfério celeste sul). Essas 48 constelações estão listadas no Anexo 1 e, ainda hoje, são a elas que a astrologia costuma recorrer. Cada constelação recebe seu nome da figura mítica que se acredita estar traçada no céu (catasterismo). Dentre as 88 constelações, doze interceptam a eclíptica e recebem os mesmos nomes dos signos do zodíaco. É possível que, em alguma época, as constelações zodiacais se localizassem em regiões coincidentes com os signos, mas, na opinião do grupo com quem convivi, isso não passa de especulação. A dissociação das constelações e dos signos é crucial para a interpretação astrológica do tema de nascimento. Ter nascido sob o signo de Virgem, por exemplo, 11

No Timeu, os princípios associados à visibilidade e ao movimento alocavam em diferentes níveis de atuação as determinações relacionadas ao movimento planetário e as determinações relacionadas às estrelas fixas. O círculo do Mesmo representa o equador celeste; o círculo do Outro, a eclíptica. O movimento do Mesmo representa o movimento da esfera celeste; o movimento do Outro, os movimentos dos astros errantes, os planetas (38 c, 38 d, 39 a). Quando entrei para o grupo de estudos no Espaço do Céu, esse grupo havia estudado, no ano anterior, o Timeu de Platão, com o objetivo de detectar as bases cosmológicas da astrologia helenística. Não participei desses estudos, mas, no meu convívio com o grupo, as referências a Platão eram freqüentes. 12 . A I.A.U. foi criada em 1919 e congrega 63 países membros. Além dos profissionais de astronomia associados, essa instituição também mantém relações com organizações de astrônomos amadores.

81 implica ter o Sol (ou, segundo alguns, o Ascendente) localizado em um dos trinta graus deste signo. A constelação de Virgem, entretanto, se estende desde o 200 do signo de Virgem até o 60 do signo de Escorpião. Sua estrela mais brilhante, Spica, localizada hoje no 230 do signo de Libra e é tida como uma das estrelas mais benéficas. Confere êxito, renome e progresso acima das capacidades do nativo (Robson, 1988:225). Isso significa que nascer sob o signo de Virgem não implica usufruir dos benefícios concedidos pela estrela Spica da constelação de Virgem. Na

Antiguidade,

as

estrelas

costumavam

ser

associadas

a

fenômenos,

principalmente meteorológicos, não por sua relação com outros corpos celestes, mas por sua ascensão e ocaso. Aldebaran, Regulus, Antares e Fomalhaut eram conhecidas como as Quatro Estrelas Reais da Pérsia, Guardiães do Céu. Elas ascendiam a intervalos de seis horas, marcando os quatro pontos cardeais. Aldebaran marcava o Leste; Regulus, o Norte; Antares, o Oeste; e Fomalhaut, o Sul. (Robson, 1988). Lévi-Strauss (1991) discute os mitos ameríndios associados às constelações (notadamente Órion, as Plêiades e o Corvo) pela vinculação destas às estações da seca e das chuvas. Visíveis a leste ao nascer do Sol, ou a oeste no ocaso, elas marcam o começo e o fim da estação seca e são anunciadoras das chuvas que terminam ou que estão por vir. LéviStrauss aponta que, no universo ameríndio, verifica-se uma transferência do eixo meteorológico para o das implicações biológicas e tecno-econômicas. O sistema astrológico também transfere o código meteorológico para outros códigos, não só biológico e tecnoeconômico, mas também para o das características psicológicas, direções do espaço, comportamentos, posições sociais, etc. O poder de atuação das estrelas fixas em um mapa astrológico é determinado segundo duas chaves interpretativas. A primeira se baseia na história mítica associada à constelação. Assim é que Algol, a estrela alfa da constelação de Perseu, hoje localizada no 260 grau do signo de Touro, representa a cabeça da Górgona Medusa, decapitada pelo herói Perseu13. É considerada uma das estrelas mais desfavoráveis do céu e indica possibilidade de decapitação, enforcamento, violência que causa a morte do nativo ou de outros (Robson, 1988:129), com base no episódio mítico associado à constelação. 13

Medusa era uma das três Górgonas, que tinha serpentes como cabelo e um olhar que petrificava quem ela encarasse. Ajudado pela deusa Atena, o herói Perseu usou um escudo de bronze tão polido que funcionava como espelho e conseguiu decapitar a Górgona sem olhar diretamente para ela (Brandão, 1990).

82 A segunda chave interpretativa descreve a influência das estrelas associando-as à natureza dos planetas. Por meio dessa analogia entre estrelas e planetas, a estrela Algol é tida como de natureza semelhante à do planeta Marte, provocando, tal como ele, violência e perigo de acidentes. Percebe-se, então, que as duas chaves interpretativas não levam a resultados muito divergentes. Apesar disso, os autores dos manuais e tratados que consultei divergem quanto a quais planetas vincular a quais estrelas, muito embora essa linha de associação já seja empregada desde Ptolomeu (I, 8). A única categoria classificatória reservada às estrelas divide-as em benéficas ou maléficas. Trata-se de uma categoria compartilhada pelos planetas (que também são avaliados como benéficos ou maléficos) e pelas casas (avaliadas como favoráveis e desfavoráveis). Apenas os signos parecem escapar a essa categorização14. Portanto, a categoria benéfico/maléfico atravessa os três níveis do sistema astrológico - as estrelas (no céu superior), os planetas (no céu mediano) e as casas (no céu inferior). Restritas a um caráter maléfico ou benéfico, as estrelas estão associadas a um determinismo forte pouco condizente com os critérios de autonomia e de liberdade característicos da mentalidade contemporânea. A escassa referência às estrelas, tanto na literatura contemporânea quanto nas conversas com os astrólogos que conheci, não deixa claro se o desinteresse no tema decorre dessa incompatibilidade e/ou se este plano de determinação peca por falta de comprovação empírica. Associadas a um fatalismo opressivo, as estrelas perderam muito de sua importância nas interpretações. No entanto, Mariana salienta que “as pessoas continuam sendo decapitadas, continuam sofrendo morte violenta, ou, por outro lado, são agraciadas com golpes de sorte imprevistos. Mas, hoje, as pessoas têm medo das estrelas fixas. Preferem nem saber, fingir que elas não existem”. Embora Edgar Morin (1981) estenda a disposição em expulsar o acaso ao sistema astrológico como um todo e veja aí uma das justificativas para a adesão à astrologia na 14

Embora o meu grupo não caracterize nenhum signo como benéfico ou maléfico, os tratados clássicos mencionam uma região no Zodíaco de 300, denominada Via Combusta, que se estende do décimo-quinto grau de Libra até o décimo-quinto grau de Escorpião, e que é considerada uma região penosa e difícil. Mariana acredita que essa divisão do Zodíaco é anterior à divisão em signos e me diz que isso demonstra um certo otimismo da astrologia. “Veja você, Beth, dos 3600 do Zodíaco, os astrólogos só consideravam que 30 deles eram difíceis. Não é o máximo?! Isso é que é uma visão otimista!” Porém, se formos levar em conta essa região zodiacal, até mesmo o Zodíaco partilharia a categoria benéfico/maléfico com os demais componentes do sistema astrológico.

83 contemporaneidade, os astrólogos dificilmente concordariam com ele, a não ser, talvez, no caso das estrelas. O aforisma segundo o qual “os astros impelem, mas não compelem”, geralmente atribuído a Plotino, tem servido de argumento contra a idéia de um determinismo forte. Eu o ouvi repetidamente durante meu convívio com o grupo pesquisado. Nesse contexto, o tema das estrelas fixas provoca um certo desconforto. Não é de se estranhar então que, no debate organizado pelo Planetário, a insistência do astrônomo em vincular a caracterologia astrológica às constelações tenha sido tão mal recebida pela platéia. Das pessoas que conheci, poucas se mostraram inclinadas a estudá-las mais profundamente15 e são duas as mais freqüentes justificativas para esse desinteresse. A primeira é que as estrelas não ‘funcionam’ como os antigos apregoam porque vivemos em um contexto de maior liberdade de ação, de maior mobilidade social e de maior conscientização. “O que os antigos podiam fazer? Você nascia filho de pedreiro, ia ser pedreiro. Você nascia filho de nobre, ia ser nobre. Não tinha escolha. Mas hoje você tem. Hoje, você pode decidir que caminho vai seguir. Então, os astros indicam algumas coisas, mas você pode tomar suas decisões e mudar a situação. Você só fica amarrado quando não se dá conta do quanto pode fazer, você mesmo. Sabe, essas pessoas que vivem reclamando do que acontece com elas e não percebem que elas ficam sempre nas mesmas situações e não fazem nada para mudar?” (Glória) A segunda justificativa trata as indicações das estrelas como simbólicas, em um sentido particular do que seja simbólico. “Os antigos diziam que se você tem Algol no mapa, você vai ser decapitado. Mas não é bem assim. Você pode, isso sim, ‘perder a cabeça’ com facilidade. E, quando você fica esquentado e perde a cabeça, não raciocina direito, acaba fazendo besteira e se dando mal. Mas esse negócio de perder a cabeça é simbólico. Não é assim de verdade”. (Célia) A concepção de simbólico parece reduzir-se a uma figura de linguagem, mais comumente a símile - é ‘como se’ você perdesse a cabeça.

15

Quando eu levantava o assunto das constelações, as pessoas me diziam que elas eram importantes, mas que sabiam muito pouco sobre elas, quem sabe, quando tivessem mais tempo, ou então quando encontrassem um grupo disposto a estudá-las.

84 Em um dos encontros do grupo de estudo que acompanhei, falou-se sobre um astrólogo de São Paulo que usufruía de uma certa notoriedade e que tinha previsto a própria morte – e errou. Depois desse ‘fracasso’, ele parece que sumiu, deixando de freqüentar os eventos e reuniões de astrólogos. Mas, sabe-se que está bem vivo, pois foi visto recentemente em um local público. Uma das pessoas comentou “mas, então, essa morte dele não deixou de acontecer, não é? Se ele não participou mais de nada. Foi uma morte simbólica. No fundo, ele acertou, Se o sentido próprio do determinismo forte creditado às estrelas é da ordem do literal, e o sentido figurado, da ordem do simbólico, o figurado aponta para um domínio de validação onde é possível experimentar campos de virtualidades. Abrir mão do sentido próprio implica então escapar de um sentido único, seja situando-o no plano do virtual, para lhe acrescentar um excesso de significação (é ‘como se’), seja reduzindo-o ao absurdo, para drená-lo de significação (nós temos escolhas, logo, não há sentido único, donde não há sentido próprio). Na literatura astrológica, o tema das estrelas fixas foi recuperado por Vivian Robson que publicou, em 1969, um livro onde compila dados sobre a influência das estrelas fixas desde a Idade Média. Seu objetivo declarado era o de estimular e fundamentar investigações futuras, e por isso se exime de oferecer comentários e críticas. Segundo Robson (1988), a influência das estrelas fixas difere da influência dos planetas, pois é muito mais dramática e repentina. Elas produzem efeitos marcantes em curtos períodos de tempo e têm a reputação de serem capazes de elevar o nativo a posições invejáveis e/ou fazê-lo cair em desgraça de forma inesperada. Robson apresenta uma lista das 15 estrelas tidas como de maior influência mágica16. Na Idade Média, desenhos representando essas estrelas eram usados como talismãs e amuletos. Em 1998, Bernadette Brady17, astróloga australiana, publicou o seu livro sobre estrelas fixas, apoiando-se fundamentalmente nos textos de Aratus e Anônimo 37918. Este 16

São elas, em ordem alfabética: Aldebaran, Algol, Algorab, Alphecca, Antares, Arcturus, Capella, Deneb Algedi, Plêiades, Polaris, Procyon, Regulus, Sirius, Spica, Vega. 17 Brady dirige uma escola de astrologia na Austrália e, em 1992, recebeu, da Federação Astrológica Australiana, o prêmio Southern Cross, pela excelência de sua pesquisa sobre as estrelas fixas, pesquisa esta transformada em livro em 1998. 18 Aratus (século IV a.C.) é autor de Phaenomena e Anônimo 379 é autor de nome desconhecido cujo tratado sobre as estrelas fixas - The Treatise on the Bright Fixed Stars - foi divulgado no ano 379, daí ser conhecido como Anônimo 379. A diretora do Espaço do Céu não só encomendou esses livros em uma editora inglesa,

85 livro é considerado, pelas pessoas do meu grupo de estudos, como o mais completo sobre o tema, desde a publicação do livro de Vivian Robson. Hoje em dia, Brady leciona em uma escola de astrologia londrina e uma das astrólogas do meu grupo matriculou-se em um de seus cursos de verão, durante os meses de julho e agosto de 2005. Brady sugere uma outra lista de 15 estrelas fixas, as que ela considera “absolutamente essenciais” para estudo (1998:30/31). Dessas, dez são benéficas, oferecendo vitória, sucesso, realizações. Outras cinco são mais difíceis, pois trazem maior intensidade nas paixões e violência19. Em uma astrologia predominantemente pautada nos planetas, o céu estrelado deixa de evocar as histórias e imagens que sustentavam uma parcela das interpretações astrológicas. Brady (1998:14) chega a lamentar que os astrólogos tenham abandonado as constelações e deixado o céu estrelado (segundo ela, o modelo das relações entre o homem e o cosmos) para os astrônomos. Em sua opinião, é preciso re-introduzir ‘astro’ na astrologia. Em virtude do determinismo forte creditado às estrelas, estas parecem particularmente concentrar a capacidade de promover eventos independentes das cadeias causais ordinárias, Nesse sentido, elas sugerem uma analogia com o conceito Zande de bruxaria, como Evans-Pritchard (1978) já havia observado com relação ao conceito ocidental de azar. Na qualidade de explicação para o infortúnio, a bruxaria Zande se converte em um modo de pensar uma causalidade primária que interliga cadeias causais independentes, entendidas como causas secundárias. Não é bruxaria o teto de um celeiro desabar, pois é natural que, com o passar do tempo, ele se deteriore. Não é bruxaria que as pessoas se reúnam sob o teto de um celeiro. Mas é bruxaria, um teto desabar justamente quando há

especializada em obras de astrologia, como também adquiriu o software montado por Bernadette Brady para localizar as estrelas fixas em um mapa de nascimento, nos moldes de localização preconizados por esses autores clássicos. 19 A lista de Brady inclui: • as 4 estrelas reais da Pérsia – Aldebaran, Antares, Regulus, Fomalhaut • as estrelas da constelação de Órion – Rigel, Betelgeuse, Bellatrix • Sirius, da constelação do Cão Maior; Spica, da constelação de Virgem, Canopus, da constelação de Carina Estas são as estrelas mais favoráveis. As cinco consideradas mais difíceis são: Fácies (Sagitário), Capulus e Algol (Perseu), Menkar (Baleia) e Zosma (Leão). As listas de Brady e de Robson possuem apenas seis estrelas em comum.

86 pessoas sob ele. A coincidência do momento do desabamento e a presença de pessoas e, mais ainda, daquelas pessoas especificamente, não é acaso, é bruxaria (1978:61). É comum que alguém dê uma topada em um toco de árvore ao caminhar na floresta. Mas, nem sempre a topada provoca um corte no pé. E, quando isso acontece, a ferida pode ser tratada. Por isso, uma topada que resulta em um corte que infecciona, apesar de todos os cuidados, é bruxaria, pois esse não é o desenrolar comum dos acidentes. Desse modo, a bruxaria Zande explica: •

O desenlace funesto de acontecimentos: porque o teto do celeiro desabou quando havia pessoas ali, porque a topada resultou em ferida, porque a ferida não cicatrizou;



O particularismo: porque justamente aquele lugar, porque justamente aquele momento, porque justamente aquele homem.

Evans-Pritchard (1978:90) salienta que a analogia com a concepção ocidental de azar só se mantém quanto a eventos já ocorridos, quando já não há mais o que fazer. Porém, em eventos em andamento, como uma enfermidade, a bruxaria Zande também demarca modos de comportamento capazes de controlar as condições que conduzem ao infortúnio. Portanto, se a noção Zande de bruxaria suscita, na vítima, um sentimento de raiva, ela não faz emergir um senso de impotência. Uma vez estabelecido que se trata de bruxaria, um Azande recorre a meios e procedimentos que lhe permitem identificar o autor da bruxaria a fim de neutralizar, minimizar ou vingar o dano. No pensamento ocidental, porém, o azar não oferece meios de controle para além das causas secundárias (tratar o próprio pé infeccionado). Mas, no caso das estrelas fixas, algumas ressalvas merecem ser feitas na comparação com a bruxaria Zande. Em primeiro lugar, as estrelas fixas não oferecem exclusivamente infortúnios. Honrarias, fama imprevista, posição social mais elevada do que seria de se esperar em condições normais, sucesso bem acima das capacidades ou dos esforços do nativo, tudo isso pode ser conferido por uma boa estrela. Em segundo lugar, as estrelas não são tidas como responsáveis por eventos comuns, como doenças ou pequenos

87 acidentes. Essa responsabilidade recai mais propriamente sobre os planetas, que parecem reger o desenrolar da vida cotidiana20. Hoje em dia, porém, parece que a esfera de ação dos planetas ampliou-se de modo inversamente proporcional à das estrelas fixas. Talvez isso se deva, pelo menos em parte, à erosão progressiva da distinção entre céu e terra, incompatível com as novas teorias cosmológicas que transformam a Terra em um planeta igual aos demais. Conforme uma das astrólogas do grupo de supervisão, “depois que Urano foi descoberto, o mundo todo mudou. A astrologia não pode ficar a mesma. Até ao céu nos já fomos!” (Beatriz) A naturalização do céu, no sentido de aproximá-lo do espaço onde os homens vivem parece ter contribuído para que, na oposição céu/terra, os dois níveis celestes (o firmamento, onde se situam as estrelas fixas, e o céu mediano, onde se situam os planetas) terem se reduzido a um único – o do zodíaco. De uma certa maneira, os três novos planetas – Urano, Netuno e Plutão - vieram a ocupar o papel reservado às estrelas. São descritos, na literatura astrológica, como ‘os grandes deuses da mudança’21, provocadores de grandes transformações, e seus trânsitos são os mais acompanhados. “Não é possível as coisas ficarem as mesmas quando um deles atravessa um dos ângulos do mapa” (Beatriz). A atual tendência a vincular as grandes mudanças de vida aos planetas volta a sugerir uma analogia com o conceito Zande de bruxaria. Não só a hegemonia dos planetas favorece um distanciamento do extraordinário e uma aproximação da vida cotidiana, como também oferece meios e procedimentos para se contornar as situações, meios esses que as estrelas parecem não disponibilizar. A reação de um Azande, diante da suspeita de bruxaria, começa por tentativas de identificar o autor do dano. Os adeptos da astrologia adotam comportamento semelhante, com vistas a minorar as situações que atravessam. Se você sabe qual o planeta que está 20

Segundo o meu grupo, trata-se de uma das implicações da diferença entre o movimento do céu mediano, onde se situam os planetas, e o movimento da abóbada celeste, onde ficam as constelações, conforme o Timeu de Platão. 21 Há um livro intitulado Os Deuses da Mudança (Sasportas, 1991) que aborda especificamente os trânsitos de Urano, Netuno e Plutão. Uma das professoras do Espaço do Céu me contou que, certa vez, atendeu um casal que a procurou porque estavam passando por grandes dificuldades no relacionamento com a filha adolescente. Pediram que ela examinasse o mapa da filha, a fim de verificar o que estava acontecendo ‘no céu’, e se ela poderia lhes indicar meios para lidar melhor com a situação. “A menina estava na maior rebeldia com os pais, mas, tinha virado grama para o namorado. Ele pisava nela o tempo todo”. Ela lhes recomendou a leitura deste livro, pois a filha deles atravessava um trânsito de Urano (um trânsito ‘pesado’, em sua opinião).

88 governando a situação, você dispõe de modos alternativos para desviar ou minimizar a influência planetária. Segundo a explicação de Renata, “Urano em trânsito no Meio do Céu não significa que necessariamente você vai perder o emprego22. Mas você vai ter que fazer algumas mudanças, procurar mais autonomia, inovar tecnologicamente, essas coisas de Urano. Se você insistir em não mudar nada, em ficar agarrado a uma situação que já não dá mais, então você vai ficando de mau-humor, rebelde, não acata ordens, quer fazer as coisas à sua maneira, o chefe começa a reclamar e você acaba sendo despedido. Quando você resiste, a perda do emprego pode ser uma maneira de obrigar você a assumir a energia de Urano”. Ao invés de inscrever uma demissão inoportuna na minha biografia, posso canalizar a urgência de autonomia (uma questão tipicamente uraniana) montando um negócio paralelo ou buscando uma atividade que não dependa tanto de um trabalho em equipe. Portanto, um passo importante para contornar os males que afligem o homem é, para um Zande, a identificação do ‘autor’ do dano, e, para um adepto da astrologia, a identificação do planeta ‘governante’ da situação. “No ano em que eu tive Marte na Casa 423, na revolução solar, fiquei com medo de problemas em casa, achei até que as brigas podiam piorar a situação lá em casa.. Mas, sabe o que aconteceu? Decidi fazer obras, pintei a casa, fiz um monte de coisas que eu estava adiando. Deu uma trabalheira danada, fiquei bastante cansada e um pouco irritada, sabe como é, obras em casa é sempre desagradável, uma poeirada, um barulho infernal. Mas, no fim, deu tudo certo. Esse Marte lá foi bem usado e ninguém saiu ferido”. (Helena) Isso leva a crer, então, que, tanto para um Zande quanto para um adepto da astrologia, a oportunidade de neutralizar os potenciais efeitos adversos, seja da bruxaria, seja da influência planetária, depende da correta identificação da fonte desses males. A diferença é que a reação Zande consiste em opor-se ou bloquear a bruxaria, enquanto que um adepto da astrologia deve identificar as demandas associadas ao planeta e assumir uma conduta em conformidade com aquela demanda que lhe pareça menos danosa. Ao invés de 22

Em um mapa natal, o Meio do Céu está relacionado à vida profissional. Isto será explicado mais adiante, quando enfocarmos as casas astrológicas. 23 Em uma mapa natal, a Casa 4 está relacionada à vida familiar, à casa.

89 bloquear a influência planetária, ele a desvia, contribuindo voluntariamente para dar ao desenrolar da situação, uma feição mais palatável. Finalmente, uma terceira diferença diz respeito ao particularismo dos eventos. As perguntas cuja resposta Zande é a bruxaria – por que isso aconteceu agora?; por que isso aconteceu com aquele homem? – referem-se à sincronicidade24 de eventos independentes e é sobre esse particularismo que a noção de bruxaria incide. Na visão astrológica, o particularismo dos eventos se subordina ao particularismo do sujeito afetado. É esse nativo que tem essa configuração de estrelas em seu mapa. A especificidade diz respeito ao sujeito e não aos acontecimentos. O particularismo do sujeito inverte a norma da bruxaria Zande. Ao invés de tributar o desenrolar incomum e prejudicial dos acontecimentos à bruxaria e não à vítima, explica o acontecimento em função das características do sujeito afetado. Evans-Pritchard argumenta que o dano pode ser fruto de bruxaria, mas não o erro. Uma conduta inadequada retira toda e qualquer possibilidade das conseqüências serem atribuídas à bruxaria. Um Zande não crê que seu vaso se quebra por bruxaria se ele foi mal preparado, mas, se tudo foi feito como manda o figurino, se todos os cuidados e precauções foram tomados e, mesmo assim, o vaso se quebra, então foi bruxaria. Isso significa que a bruxaria Zande não compele nem obriga – não adianta um adúltero alegar bruxaria para justificar o adultério. O particularismo do sujeito, porém, responde também pelas limitações, pelos deslizes, pelas inadvertências habituais. Particulares, porque típicas, características. Daí comentários do tipo: “É o meu Netuno que faz isso comigo” (Maurício); “O que eu posso fazer? Plutão em cima da Vênus não é mole não. Eu estou sempre metida nesses relacionamentos esquisitos” (Márcia); “Eu tenho um Saturno ‘ferrado’ que sempre me dá uma rasteira. Acabo metendo os pés pelas mãos (Lúcia). 24

O termo ‘sincronicidade’ é uma conhecida noção de Jung, que se refere ao entrecruzamento de cadeias de eventos independentes, tal como a noção Zande de bruxaria, e é bastante utilizada pelos adeptos de astrologia. No entanto, cabe ressaltar que a noção junguiana não é de causalidade. Pelo contrário, Jung (1997) a emprega para se referir a eventos relacionados de maneira a-causal. Para os Azande, contudo, a coincidência de eventos é causal, tanto no sentido de que foi provocada por um bruxo quanto no sentido de que se trata de uma causalidade primária, que entrecruza causalidades secundárias a fim de provocar dano.

90 Portanto, não só o dano, como também os erros, os enganos, as condutas inadequadas caem sob o registro da especificidade do sujeito. Resta uma última observação com relação às estrelas fixas. Se os adeptos da astrologia com quem tive contato, em sua maioria, parecem ter reduzido em um nível o sistema astrológico com que eles lidam, preterindo as estrelas fixas em prol de uma hegemonia dos planetas, essa redução pode ter sido bastante facilitada pelo fato de que as estrelas ‘não lançam raios’ (Robson, 1988:98). Isso significa que sua atuação somente se faz sentir quando estão corporalmente próximas a algum planeta ou ângulo do mapa. É por isso que ter uma estrela, no mapa de nascimento, não é comum e pressagia situações extraordinárias. A princípio, a capacidade de lançar raios parece natural nos corpos celestes que brilham. No entanto, conforme vimos apontando, as categorias construídas pelo sistema astrológico não se explicam pelos atributos empíricos. Se assim o fosse, as estrelas também lançariam raios, até porque há estrelas que brilham no céu mais do que os planetas. Tudo indica, portanto, que se trata de uma distinção de nível ‘céu superior X céu mediano’. Os planetas, no céu mediano, compartilham o poder do Sol de lançar raios, enquanto que as estrelas, no firmamento, só atuam a partir da intermediação seja de planetas, seja do plano do horizonte (de onde se deriva o eixo Ascendente/Descendente) ou do plano do meridiano (de onde se deriva o eixo Meio-do-Céu/Fundo-do-Céu). Observa-se, então, que, além de qualificar o tempo e o espaço propriamente astrológicos, conforme já discutimos, o Sol também modela a categoria de agente, qualificando os modos presumidos de atuação dos planetas. O Sol lança raios, iluminando, à distância, lugares onde ele não está, mas que são alcançados por sua luz. Do mesmo modo, a atuação dos planetas não se restringe aos lugares astrológicos (signos e casas) onde eles se encontram, estendendo-se até onde os seus raios alcançam. A questão se torna um pouco complexa porque os raios não são atuantes em todas as direções. Tal como o tempo e o espaço astrológicos são recortados em fragmentos qualitativamente distintos, essa ação à distância também está submetida a recortes. Os raios lançados somente são eficazes quando correspondem a determinados ângulos – os ângulos correspondentes a polígonos regulares inscritos em um círculo. Os raios são tidos como o

91 olhar de um planeta25 e, dependendo do ângulo de visão, um planeta pode lançar um bom ou um mau olhar. Os lugares reconhecidos como pontos cegos no campo de visão de um planeta26 não recebem os seus raios - o planeta não os vê. A maior implicação desse esquema visual é uma espécie de multiplicação da presença de um planeta. Corporalmente localizado em uma determinada região do Zodíaco ou da Roda das Casas, a sua atuação não fica ali encerrada e a sua presença se faz sentir em outros lugares. O ponto de incidência do olhar de um planeta funciona ‘como se’ o planeta estivesse também ali, onde sua vista alcança. Mas isso não acontece com as estrelas no firmamento. Elas não lançam raios e só atuam por meio da intermediação dos planetas, no céu mediano, ou dos ângulos, no céu inferior. Passemos então a examinar esses dois outros níveis celestes, onde se encontram os mediadores por excelência da relação céu/terra.

2.2 O céu mediano: os planetas e os signos do Zodíaco

O Zodíaco constitui um cinturão virtual que envolve a Terra e se confunde com a própria eclíptica. Esse cinturão foi dividido em doze arcos iguais, de 300, compondo os signos. É dentro dessa faixa que ocorre o observado27 trajeto do Sol e dos demais planetas ao redor da Terra.

25

O nome técnico para essa relação é ‘aspecto’. Vide Anexo 2 para maiores detalhes. 27 Voltamos a lembrar que, no entender do grupo pesquisado, o que importa, para o pensamento astrológico, é o ponto de vista do observador na Terra, e não o movimento dos planetas em suas órbitas ao redor do Sol. 26

92

Este céu mediano se encontra a meia distância entre o nativo e o firmamento e compartilha, com o céu superior, de uma chave interpretativa que associa os planetas e os signos a figuras e/ou episódios das histórias míticas. Por outro lado, o céu inferior, que liga o céu mediano ao nativo, não dispõe de uma chave interpretativa nesses moldes.

2.2.1 Os planetas

O sistema astrológico recorre a dez planetas ou ‘astros errantes’. O Sol e a Lua são chamados de ‘os luminares’, respectivamente a luz do dia e a luz da noite. Cinco dos planetas são denominados ‘tradicionais’, pois eram os conhecidos desde a Antiguidade, visíveis a olho nu. São eles Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. Os três restantes – Urano, Netuno e Plutão – só foram descobertos recentemente28 e a literatura astrológica sobre eles ainda é controvertida. São conhecidos como os trans-saturninos, pois suas órbitas se situam além da órbita de Saturno. Os planetas promovem a mediação entre o céu e a terra, mas os dois luminares – o Sol e a Lua – desempenham essa mediação de forma modelar, em virtude das oposições que eles significam. Além das polaridades claro/escuro, na função iluminante, e quente/frio, na função calorífica, comentadas por Lévi-Strauss (1993:221) com relação ao universo 28

Urano foi descoberto em 1781, Netuno, em 1846 e Plutão, em 1930.

93 ameríndio, acrescenta-se a oposição seco/úmido, pois confere-se à Lua o poder de umedecer. Nos dois primeiros pares de oposição, os pólos marcados são os primeiros termos: o claro e o quente. Neste terceiro par, seco/úmido, o pólo marcado é o úmido, qualidade notadamente feminina e fértil29. A classificação dos planetas aciona um conjunto de oposições organizadas em torno de dois códigos. O primeiro é um código sexual, que divide os planetas em masculinos e femininos. Graças à equivalência instituída entre o masculino e o dia, e entre o feminino e a noite, esse código se desdobra na divisão dos planetas em diurnos e noturnos. O segundo código se pauta nas duas qualidades fundamentais – calor e umidade – que remetem ao poder do Sol de aquecer e ao poder da Lua de umidificar. Com base nesse código, os planetas podem ser frios ou quentes, secos ou úmidos. Apresentamos abaixo a classificação geral dos planetas:

Planetas

Sexo

Setor

Qualidades elementais

Saturno

masculino

diurno

Frio e seco

Júpiter

masculino

diurno

Quente e úmido

Marte

masculino

noturno

Quente e seco

Sol

masculino

diurno

Quente e seco

Vênus

feminino

noturno

Frio e úmido

-

capta as qualidades do planeta com que está em contato

noturno

Frio e úmido

Mercúrio andrógino ou hermafrodita Lua

feminino

Se o pensamento humano opera por oposições binárias, toda forma empírica identificável, considerável ou pensável requer um complementar em relação ao qual ela se diferencie. O binarismo, como mecanismo fundamental do pensamento, se pauta na indissociabilidade do pensar algo e pensar seu complementar. Pensar o Sol como luz e como dia implica pensar a Lua como escuridão e como noite. Considerar o Sol masculino requer atribuir à Lua o feminino. Pensar o Sol como quente e seco exige pensar a Lua como fria e úmida.

29

Nos tratados clássicos, os signos considerados férteis são os signos de água (Câncer, Escorpião e Peixes), frios e úmidos, que seguem, portanto, a natureza da Lua, também ela fria e úmida.

94 Graças a essa primeira segmentação, o universo inteiro é dividido em duas metades (ou setores30, na terminologia astrológica): uma, masculina e diurna, valorada como positiva; a outra, feminina e noturna, valorada como negativa. Segundo Robert Hertz (1980), essa distinção cósmica se baseia na antítese religiosa fundamental que opõe o sagrado ao profano. “Os poderes que mantêm ou expandem a vida, que fornecem saúde, proeminência social, coragem e habilidade residem todos no princípio sagrado. O profano (na medida que viola a esfera sagrada) e o impuro, ao contrário, são essencialmente enfraquecedores e mortíferos: as influências funestas que oprimem, diminuem e danificam os indivíduos vêm deste lado. Assim, de um lado, temos o pólo da força, do bem e da vida enquanto no outro temos o pólo da fraqueza, do mal e da morte”.(Hertz, 1980:106/107) Essa divisão dispõe tudo que existe em setores opostos. Isso abrange até mesmo os pares de termos aparentemente equivalentes, como as duas mãos, os dois olhos, etc. Um pareamento que, a princípio, seria redundante, acaba por se constituir em uma relação assimétrica, polarizada e orientada. O corpo humano também possui um lado direito, masculino, forte, ativo e um lado esquerdo, fraco, passivo; uma mão direita, destra e hábil, e uma mão esquerda, inábil e canhestra. Pois, “como pode o corpo do homem, o microcosmos, escapar da lei da polaridade que tudo governa?” (Hertz, 1980:108). Hertz observa que, quando se atribui um sexo a todas as entidades que existem no mundo, em geral o masculino é sagrado, o feminino é profano. Também no sistema astrológico, a nobreza, a elite e o prestígio social se encontram associados ao masculino, solar, e o feminino, lunar, está associado ao povo, ao homem comum. Dentre as oposições investigadas por Lévi-Strauss nas Mitológicas, a polaridade homem/mulher desempenha um papel privilegiado. Seja qual for o código a que o mito recorre – alimentar, sociológico, astronômico, tecnoeconômico, etc – o homem e a mulher transitam

pelos

feixes

de

relações

contrastantes

fundamentais,

equiparando-se

sucessivamente a conteúdos diferentes.

30

O termo ‘sects’, encontrado na literatura técnica em língua inglesa, para a qual a maioria dos tratados clássicos foi traduzida, não tem equivalente preciso em português. No grupo de estudos que freqüentei, chegou-se ao termo ‘setores’ depois de uma longa discussão, durante a qual admitiu-se inclusive uma conotação de ‘seita’. Mas já escutei vários astrólogos usarem o termo ‘séquito’, numa transposição fonética, com a conotação de ‘cortejo’.

95 Na lógica astrológica, que opera simultaneamente em vários eixos, o código sexual se desdobra em diversos outros códigos que trabalham com oposições justapostas. Assim, a oposição masculino/feminino se justapõe à oposição dia/noite, quente/frio, seco/úmido, uno/múltiplo31, centro/periferia32. Em suma, o quadro de oposições significadas pelo Sol e pela Lua pode ser esquematizado como se segue:

céu terra

sagrado dia profano noite

masculino feminino

quente frio

seco úmido

uno centro Sol múltiplo periferia Lua

Somente os dois luminares conformam-se inteiramente a essas oposições. Todos os demais planetas invertem algum dos termos. Saturno é o único planeta masculino que não é quente. Sua masculinidade fica assegurada porque não contém umidade, uma qualidade atribuída ao feminino. Júpiter é úmido, mas conserva a masculinidade por ser quente. Marte é masculino, porém é noturno. Mercúrio não tem sexo nem qualidades definidas. E Vênus, o único planeta frio e úmido como a Lua, é tida como temperada – a proximidade com o Sol lhe confere um certo grau de calor (Ptolomeu, I, 3). Em um trabalho pioneiro de sistematização, Vilhena (1990:55-61) distribui os planetas em três planos33. O primeiro, ocupado pelo Sol e pela Lua, é hierarquicamente superior aos demais. Mercúrio faz a mediação entre o primeiro e o segundo planos, este 31

A oposição entre a pluralidade de luminares noturnos e a unicidade do luminar diurno é freqüente entre os ameríndios (Lévi-Strauss, 1993:222). O astro do dia fica sozinho no céu enquanto o astro da noite goza da companhia das estrelas. No sistema astrológico, a presença da Lua em uma casa inclinaria à instabilidade naquela área da vida (em virtude das fases da Lua) e à multiplicidade (por sua fertilidade). 32

Na concepção geocêntrica, pré-copernicana, o Sol ocupava o lugar central entre os planetas, com três planetas entre ele e a Terra e três planetas entre ele e os limites do cosmo. Na concepção helicêntrica, o Sol não perdeu sua condição de centro, agora centro do sistema solar, em torno do qual todos os planetas giram. As posições periféricas, porém, foram afetadas. A Lua continua assumindo a posição de astro mais próximo da Terra. Porém, antes da descoberta de Urano, Netuno e Plutão, o planeta Saturno era tido como localizado no umbral do cosmos, marcando os limites do mundo organizado. Hoje em dia, Plutão ocupa esse lugar. Entretanto, vale observar que Saturno não perdeu sua conotação de planeta associado a limites, um papel sedimentado na imagem dos anéis que o circundam. Vemos, então, que o sistema preserva suas chaves interpretativas sob diferentes formatos. 33 Os três planetas trans-saturninos comporiam um quarto plano. Embora as características desses planetas ainda sejam controvertidas, Vilhena (1989:69) observa que o estabelecimento do significado desses novos planetas “se fez dentro da estrutura preexistente, estendendo o contínuo centro/periferia, concedendo-lhes, naturalmente, o extremo mais externo”.

96 ocupado por Vênus e Marte. O segundo plano, por sua vez, faz a mediação entre o primeiro e o terceiro planos, este último ocupado por Júpiter e Saturno.

Planos 10 plano 20 plano 30 plano

Pólo positivo Sol Mercúrio Vênus Júpiter

Pólo negativo Lua Marte Saturno

Para Vilhena, esses três planos compõem oposições sucessivas, que invertem o pólo positivo de um nível para outro. No primeiro e no terceiro planos, o masculino é valorado como positivo. No segundo plano, intermediário, o pólo positivo cabe ao feminino. Segundo Vilhena (1989:61), a possibilidade de os planetas apresentarem uma natureza benéfica ou maléfica está ligada aos pólos positivo e negativo nos três planos. O pólo positivo corresponde ao caráter benéfico de Vênus e Júpiter, enquanto que o pólo negativo concede a Marte e Saturno um caráter maléfico. Isso somente se verifica no segundo e no terceiro planos, pois a Lua, embora no pólo negativo do primeiro plano, jamais foi considerada maléfica. Apresentando o plantel de planetas sob moldes diferentes do esquema proposto por Vilhena, podemos salientar outras questões que nos interessam. Este plantel inclui: •

Dois luminares: o Sol e a Lua



Um neutro: Mercúrio.



Dois benéficos: Vênus e Júpiter



Dois maléficos: Marte e Saturno

Pelo que pude entender, o caráter benéfico ou maléfico se deve a dois predicados: a) o teor de calor e umidade, qualidades entendidas como aquelas que geram e sustentam a vida34. b) a condição de temperado, em contraposição ao excesso. Os maléficos, Marte e Saturno, são, respectivamente, quente demais e frio demais.

34

Ptolomeu (I, 4) considera o calor e a umidade qualidades fecundas, “car d’elles toutes choses naissent et se fortifient”, enquanto que o frio e o seco são qualidades destrutivas “par lesquelles toutes choses se détruisent et périssent”.

97 Os predicados dos planetas se apóiam em suas qualidades sensíveis, em parte justificadas pela posição que ocupam na seqüência planetária paradigmática, chamada, pelos meus informantes, de ‘a ordem caldaica’. Lua – Mercúrio – Vênus – Sol – Marte – Júpiter - Saturno Saturno é um planeta frio e seco devido a seu afastamento tanto do calor do Sol quanto da umidade da Terra35. Carente do calor e da umidade, as duas qualidades que promovem a vida. Saturno é considerado o ‘Grande Maléfico’. Seu brilho pálido e sua marcha lenta contribuem para fazer de Saturno a imagem de um velho prudente, de humor melancólico, circunspecto, dado à reflexão. O tamanho avantajado de Júpiter, o maior dos planetas do sistema solar, e seu 36

brilho são as qualidades sensíveis que associam Júpiter à imagem de um homem maduro, de largas idéias, dado a expandir sua esfera de influência. Sua posição a meio caminho entre o frio excessivo de Saturno e o calor excessivo de Marte o torna bem temperado. Dotado tanto de calor quanto de umidade, nenhum deles em excesso, Júpiter é tido como o ‘Grande Benéfico’. Marte é seco e quente pela proximidade ao Sol. Seu excesso de calor e sua cor vermelha evocam a imagem de um humor destemperado, belicoso, dado a conflitos. É tido como o ‘Pequeno Maléfico’. O planeta Vênus, frio e úmido pela proximidade da Terra e da Lua, ganha um pouco de calor por que não está muito afastada do Sol. Assim temperada, Vênus é tido como o Pequeno Benéfico. O Sol e a Lua não se enquadram nessa categoria, mas, é importante salientar que, embora a Lua jamais seja considerada maléfica, o mesmo não se pode afirmar quanto ao Sol, apesar de ele, por si, não apresentar uma ‘natureza’ maléfica. Em toda a América, o pensamento mítico coloca o problema da alternância regular do dia e da noite, que implica na manutenção de uma distância razoável entre o Sol e a Lua. A aproximação ou o afastamento excessivos provocaria uma longa noite ou um longo dia, cuja ameaça é evocada por diversos mitos (Lévi-Strauss, 1993:226). 35

A umidade, para Ptolomeu, era uma qualidade derivada dos vapores exalados pela Terra. Por isso, a Lua, o astro mais próximo da Terra, era o astro mais úmido, seguido por Vênus, astro igualmente feminino e úmido. A partir do Sol, os astros perdem a umidade e se masculinizam. 36 Uma das professoras do espaço do Céu ressaltou em aula que Júpiter reflete quatro vezes mais a luz que recebe do Sol, como se tivesse uma espécie de luz própria.

98 A avaliação astrológica da proximidade de um planeta ao Sol, no mapa de nascimento, admite uma ameaça semelhante. Quando um planeta está a uma distância do Sol menor do 8030’, ele é tido como ‘em combustão’, queimado pelo Sol, e sua atuação é mais fraca. Ele fica ‘maleficiado’. Quando um planeta está a uma distância do Sol maior do que os 8030’ da combustão, porém menor do que 170, ele já se livrou da combustão, mas ainda está sob forte domínio solar. Os 8030’ que delimitam a área da combustão equivalem à metade dos 170 que delimitam a área descrita como ‘sob os raios solares’. Quando Mariana me explicou esse poder do Sol de ‘queimar’, ela ficou de pé, com os braços abertos, estendidos, e me disse: “Porque o lugar do Sol não é só o grau exato que ele ocupa, como esse lugar aqui onde os meus pés estão. É também tudo aquilo que ele consegue alcançar, como eu alcanço com as minhas mãos. É toda a envergadura. De uma ponta dos dedos até a outra ponta. Isso ocupa 170, segundo a maioria dos autores. Por isso, tem 8030’ de um lado e 8030’ de outro lado. Tudo isso fica sob o alcance dos raios solares. E queima. Sabe o que significa queimar? É que, quando você olha para o céu, você não consegue ver um planeta muito perto do Sol. O Sol brilha tanto que ofusca o planeta. Por isso, nenhum outro planeta fica queimado quando está perto demais de algum que não seja o Sol. Somente o Sol brilha a ponto de ofuscar. Só ele pode deixar um planeta combusto”. Apesar disso, o Sol não é considerado de natureza maléfica, como Marte e Saturno, porque somente sua proximidade corporal queima. Quando ele simplesmente ‘olha’ para outro planeta, ele não prejudica esse planeta. Marte e Saturno, porém, são capazes de ‘ferir’ um planeta só de olhar. Essas considerações acabam por deixar Mercúrio em uma situação única. Ele parece ser aquele planeta especialmente dedicado à questão da mediação. Nem diurno, nem noturno, não é de sexo definido nem tampouco de qualidades determinadas. Capta as qualidades e o sexo daqueles com quem entra em contato. Transitando livremente entre as disposições e os atributos dos demais planetas, ele encarna particularmente o papel de intermediário. Não se pode deixar de observar que os três novos planetas – Urano, Netuno e Plutão - também não têm sexo, nem qualidades, nem um caráter (seja benéfico, seja maléfico) determinados e precisos. Porém, essa indefinição decorre das divergências entre os autores

99 e não da natureza desses planetas. A indefinição de Mercúrio é de outra ordem - não ter uma natureza própria é a própria natureza deste planeta. Se deixarmos Mercúrio à parte, veremos que o plantel dos planetas tradicionais se divide em:

a) três planetas quentes, três frios b) três planetas secos, três úmidos c) três planetas diurnos, três noturnos

A divisão eqüitativa se quebra no eixo sexual: há quatro planetas masculinos e somente dois femininos. Vale observar que Dorotheus de Sidon é o único autor, dentre os examinados pelo grupo de estudos, que considera Saturno feminino (1993:23), o que completaria uma divisão eqüitativa em todos os eixos37. A alocação dos planetas nos setores diurnos e noturnos se justifica por semelhança (no caso de planetas benéficos) e por contraste (no caso dos planetas maléficos). Sol e Júpiter, quentes e brilhantes, são diurnos por uma condição de semelhança. Saturno, planeta frio e de brilho pálido, é alocado no setor diurno por contraste, com o objetivo de temperálo. O frio excessivo de Saturno se ameniza no calor do dia, atenuando seu caráter maléfico (Ptolomeu, I, 6). Lua e Vênus, planetas frios e úmidos, são noturnos por similaridade, enquanto Marte, um planeta quente em demasia, é noturno para que seu calor excessivo se amenize no frio da noite. A alocação dos planetas maléficos aos setores diurnos ou noturnos por contraste deixa de observar as correspondências frio/noite e quente/dia em prol de uma grade classificatória que visa neutralizar os predicados danosos ao homem e ao mundo (o frio e o seco) e potencializar os predicados vantajosos (o quente e o úmido). Resta ainda mencionar que parte das características dos planetas se deve à biografia das divindades míticas às quais eles devem seus nomes. Trata-se mais especificamente de 37

Isso gerou uma discussão no grupo, em parte por causa da relevância que o grupo atribuía à obra de Dorotheus, autor anterior a Ptolomeu e cujo tratado é bastante minucioso, apresentando diversos mapas de nascimento para exemplificar as técnicas. Foi argumentado que poderia se tratar de erro de tradução ou de impressão, embora o texto seja bem claro: “The feminine planets are Saturn, Vênus and the Moon, the masculine ones are the Sun, Júpiter and Mars”(Dorotheus, 1993:23). É interessante observar que, no esquema proposto por Vilhena, o terceiro plano é ocupado por Júpiter e Saturno – dois planetas masculinos – e Vilhena credita, de modo geral, o pólo não marcado ao feminino (que, no caso, corresponderia a Saturno).

100 um delineamento de características comportamentais e de traços de personalidade. Júpiter assume o perfil de um grande sedutor, dotado de extrema fecundidade, enquanto Marte é belicoso e Vênus, amante do prazer e do conforto. A vinculação a figuras míticas é compartilhada pelos planetas, pelas estrelas e pelos signos, mas não alcança as casas. Não há referências mitológicas no céu inferior. No caso das estrelas e dos signos, as histórias míticas a eles associados apóiam-se em episódios que parecem encapsular aspectos modelares da vida. No caso dos planetas, são as divindades do panteão grego que lhes emprestam seus nomes, revestidas de seus poderes e de suas idiossincrasias, o que transforma o plantel de planetas em uma comunidade. Os planetas não apenas possuem nome próprio e biografia, mas também experimentam amores e rancores, são amigos ou inimigos uns dos outros, oferecem ajuda mútua ou chegam a se ferir. Nesse sentido, as relações lógicas entre os planetas são comparáveis às relações sociais: constituem relações de parentesco, de aliança e de subordinação, de afeto e de antagonismo. Nesta sociabilidade planetária, admite-se que os planetas também tenham preferências e aversões, dentre as quais se destaca a predileção por certos locais, como se, durante sua errância pelo Zodíaco, eles, de vez em quando, atravessassem regiões inóspitas e, por vezes, transitassem por lugares acolhedores, como a própria casa ou a casa de um amigo. Passemos então a examinar esses locais por onde os planetas transitam – os signos do Zodíaco.

2.2.2 Os signos

Conforme já descrito, o Zodíaco constitui um cinturão virtual que envolve a Terra, onde ocorre o observado trajeto do Sol ao redor da Terra. Esse cinturão foi dividido em doze arcos iguais, de 300, compondo os doze signos. A classificação dos signos aciona um conjunto de oposições organizadas em torno de quatro códigos. O primeiro se baseia nos detalhes iconográficos das figuras míticas

101 desenhadas no céu e associadas aos signos. Por meio desse código, os signos se dividem em humanos e animais. O segundo é um código sexual que divide os signos em masculinos e femininos e, por extensão, em diurnos e noturnos. A seguir, aciona-se um código baseado nos quatro elementos da Antiguidade: fogo, terra, ar e água. Na medida que os quatro elementos se formam no cruzamento dos eixos quente/frio e seco/úmido, percebe-se que esses dois códigos, o sexual e o das qualidades elementais, são compartilhados pelos signos e pelos planetas. Mas, é importante ressaltar que a natureza dos planetas jamais é equiparada à natureza dos elementos – um planeta quente e úmido como Júpiter, por exemplo, não é descrito como um planeta ‘de ar’, embora o elemento ar seja quente e úmido. Finalmente, o quarto código, conhecido como ‘ritmos’38, está baseado na periodicidade das estações do ano e divide os signos em cardinais, fixo e mutáveis associando-os, respectivamente, ao início, ao meio e ao fim de cada estação. Esse código não é aplicado aos planetas, mas, como veremos mais adiante, encontra correspondente na classificação das casas. Cada termo da polaridade masculino/feminino é desdobrável em dois elementos e cada elemento, em três ritmos.

38

Na literatura astrológica, o código sexual é conhecido como ‘polaridades’, dividindo os doze signos em dois grupos; o códigos dos quatro elementos, como ‘triplicidades’, dividindo os doze signos em grupos de três; o código das estações é conhecido tanto por ‘ritmos’ como por ‘quadruplicidades’, dividindo os doze signos em grupos de quatro.

102

Duas observações preliminares podem ser apresentadas. Em primeiro lugar, os signos se acomodam plenamente às correspondências entre as categorias. Todos os signos masculinos são diurnos e quentes; todos os femininos são noturnos e frios e assim por diante. Em segundo lugar, a classificação dos signos constrói classes disjuntivas, com contornos nítidos, nas quais a inclusão de um termo é do tipo’ tudo ou nada’. Qualquer que seja o signo, é possível decidir-se de sua inclusão, por exemplo, na classe dos masculinos, ou dos cardinais, ou ainda daqueles do elemento fogo. Em classes desse tipo, todos os termos incluídos em uma classe são igualmente representativos daquela classe. Em vista disso, os signos não são hierarquizados, ao contrário das casas astrológicas no céu inferior. Nenhum signo é, por si só, mais relevante ou mais preponderante do que os demais. Apresentamos abaixo a classificação geral dos signos: Signo Áries Touro Gêmeos Câncer Leão Virgem Libra Escorpião Sagitário Capricórnio Aquário Peixes

humano/animal animal animal humano animal animal humano humano animal humano/animal animal humano animal

sexo masculino feminino masculino feminino masculino feminino masculino feminino masculino feminino masculino feminino

dia/noite diurno noturno diurno noturno diurno noturno diurno noturno diurno noturno diurno noturno

ritmo cardinal fixo mutável cardinal fixo mutável cardinal fixo mutável cardinal fixo mutável

elemento fogo terra ar água fogo terra ar água fogo terra ar água

103

Vamos começar a examinar a classificação dos signos em função do primeiro código, ou seja, a iconografia das figuras míticas. O termo zodíaco deriva do grego zodion, ligado à idéia de ‘vida’ ou ‘seres vivos’. Porém, de acordo com a noção popular, ele significa um círculo de animais (Gettings, 1990). No entanto, apenas seis das figuras representam animais: um carneiro, um touro, um caranguejo, um leão, um escorpião e um par de peixes. Três das figuras são humanas: um par de gêmeos, uma jovem segurando uma espiga na mão, um aguadeiro que derrama água de uma urna. Duas figuras retratam seres míticos: um centauro e uma cabra com rabo de peixe. E, por fim, uma figura retrata um artefato: a balança. No esforço de esclarecer as significações do Zodíaco, a primeira pergunta que se apresenta é porque foram escolhidos especificamente o carneiro, o touro, os gêmeos, o caranguejo, o leão, a virgem, a balança, o escorpião, o centauro, a cabra com rabo de peixe, o aguadeiro e os peixes. A escolha de uma figura para manifestar um determinado conteúdo depende do código mitologizado da cultura na qual ela surge (Lévi-Strauss, 1993). As unidades formais da linguagem mítica (mitemas) consistem em proposições que atribuem um predicado a um sujeito. Já que esta meta-linguagem parte de um termo não só predicável, mas também já predicado, o estabelecimento de parâmetros de significação não pode excluir informações sobre o contexto etnográfico. Se admitirmos que o léxico dos signos esteja, pelo menos em parte, calcado sobre o que se conhece a respeito dos atributos e ações das figuras míticas a eles associadas, a significação dos signos não pode excluir referências ao universo mitológico grego, o qual, na astrologia ocidental, é o mais evocado para a fundamentação desses símbolos. A mitologia dos signos foi uma das disciplinas em que me inscrevi, assim que me matriculei na escola Espaço do Céu. Esta disciplina faz parte do currículo da primeira etapa do curso, oferecida a iniciantes. A professora apresentou o panteão de divindades gregas e as histórias míticas mais famosas, inclusive os doze trabalhos de Hércules. O Anexo 3 apresenta as figuras míticas associadas aos signos de acordo com a mitologia grega, que é a versão adotada pelo meu grupo. Eventuais referências a outras mitologias, especialmente a babilônica e a egípcia, são por vezes citadas, mas a linha teórica adotada pelo meu grupo privilegia as raízes gregas.

104 Os signos humanos são aqueles simbolizados por figuras antropomórficas: Gêmeos, Virgem e Aquário. Libra, o único signo representado por um artefato, a balança, também se inclui entre os signos humanos. Os signos animais são aqueles simbolizados por figuras zoomórficas: Áries (o carneiro), Touro, Câncer (o caranguejo), Leão, Escorpião, Capricórnio (a cabra com rabo de peixe), Peixes. O signo de Sagitário, simbolizado pelo centauro, se distribui entre as duas classes. A primeira metade do signo, correspondente à figura do cavaleiro, é considerada humana e a segunda metade, correspondente ao corpo do cavalo, é tida como animal. Os signos animais são subdivididos em: •

Domesticáveis: Áries, Touro, segunda metade de Sagitário e Capricórnio (animais domesticados pelo homem – o carneiro, o touro, o cavalo e a cabra);



Semi-ferais: Câncer e Peixes (animais não domesticados, porém não inteiramente selvagens)



Ferais: Leão e Escorpião (animais selvagens)

Bonatus (Consideração 128) especifica as implicações dessa classificação. Segundo ele, é preciso observar qual é o signo do Ascendente ou de seu regente. Se for um dos signos humanos, o nativo é honesto, sociável e cordial. Se for um dos signos simbolizados por um dos animais domesticados pelo homem - o carneiro, o touro, o cavalo e a cabra - o nativo é submisso e humilde, mas muito sociável. Signos semi-ferais –o caranguejo e os peixes– indicam uma sociabilidade reduzida, enquanto que signos ferais –leão, escorpiãoindicam um temperamento selvagem, gosto pela caça e pela predação, pouca inclinação para o convívio social e pela vida doméstica, donde, o nativo tende a cedo se afastar dos pais e parentes próximos. Pode-se observar, então, que os signos animais são avaliados em função da falta de qualidades humanas ou da distância em relação ao convívio com os homens. O emprego dos animais como marcadores que dividem o continuum humano já foi analisado por Leach (1985), que sugere uma associação entre hábitos sexuais e alimentares a partir da categorização dos animais como comestíveis, comestíveis com restrições ou não comestíveis, em função do eixo próximo/distante em relação ao homem. Os animais de

105 estimação, não comestíveis, se associam às irmãs, proibidas para o relacionamento sexual. Os animais da fazenda, comestíveis se castrados, se associam às primas ou parentes próximas, disponíveis para um relacionamento sexual sob condições restritas. Os animais de caça se associam às mulheres disponíveis para o casamento, enquanto que as feras selvagens, não comestíveis, se associam às estrangeiras, afastadas demais para uma aliança de casamento. Já o plantel de animais do zodíaco é interpretável em três instâncias distintas. Em primeira instância, a figura mítica é acionada e a interpretação dos signos lança mão da história anedótica correspondente. Áries não é um carneiro, mas sim o carneiro de velo de ouro; Touro não é um touro, mas o touro de cornos em forma de lua crescente no qual Zeus se metamorfoseou para seduzir Europa, e assim por diante. Essa linha de interpretação é seguida desde os tratados clássicos até os manuais mais recentes. Firmicus, autor do século IV d.C., comenta que o signo de Áries, quando se encontra no Ascendente, inclina o nativo para viagens por terras e mares desconhecidos (como Frixo foi levado pelo carneiro voador para a terra distante de Cólquida) e não poupa a irmã de perigos, apesar de todos os cuidados (como Hele, que despencou do dorso do carneiro no meio da fuga). Renata me confirma a separação dos irmãos: “É muito comum que um ariano, principalmente com Áries no Ascendente, não tenha irmãos ou se afaste deles. Eu não sei bem porque, mas os irmãos acabam vivendo separados, tenham brigado ou não”. Na esteira da associação do signo de Leão com o leão de Neméia, asfixiado por Hércules, o astrólogo Eduardo Maia, de Pernambuco, afirma que, onde você tem Leão no mapa, esta é a área da vida onde você se deixa enforcar39, segundo uma das astrólogas do grupo de supervisão, que acrescentou: “adoro assistir as palestras do Eduardo Maia quando ele vem ao Rio”. Em segunda instância, a espécie animal é acionada como chave interpretativa. Segundo Lévi-Strauss (1989:170), as espécies se situam em posição intermediária, a igual distância lógica entre as formas extremas de classificação – os gêneros e os exemplares.

39

Isto tem a ver com as casas astrológicas. Em um mapa de nascimento, há dozes casas, que correspondem a doze áreas da vida. Os doze signos se distribuem pelas casas, em ordem seqüencial, a partir do Ascendente, que equivale à primeira casa. Portanto, em todo mapa de nascimento, o signo de Leão será encontrado em alguma casa, logo, estará associado a alguma área da vida.

106 Nesse plano de interpretação, os signos denotam características físicas, hábitos, atributos ou comportamentos típicos da espécie em pauta. Manilius (1, VII) associa a vida dos arianos a um eterno perder e ganhar, alternando entre um estado de penúria e um de abundância, pois que, depois da tosquia, a lã do carneiro volta a crescer com abundância. Maria Eugênia Castro (2000:86), uma das palestrantes assíduas nos eventos públicos, sugere que “o canceriano, como o caranguejo, é dotado de verdadeiras antenas sensitivas; mas também é muito precavido. Dá suas voltas circulares no ambiente para então se decidir como deverá agir”. Finalmente, em terceira instância, os signos são interpretáveis de acordo com atividades relacionadas com as figuras. A influência de Sagitário, por exemplo, inclina o nativo à equitação, enquanto que Libra, a balança, confere um espírito ordenador e legislador, dado a pesar e a contrabalançar sistematicamente antes de emitir juízos. Em suma, na caracterologia baseada na iconografia dos signos, supõe-se que o nativo: •

parece com o animal;



age como o animal;



lida e se envolve em negócios relacionados com o animal; e/ou



vive uma experiência semelhante ao episódio mítico protagonizado pelo animal.

A divisão em signos humanos e animais passa por uma gradação mais fina, baseada na postura e no modo de locomoção das figuras (Manilius, 2, 14). Nos signos humanos, as figuras estão eretas, com a exceção da balança, que se mostra achatada, como que pressionada para baixo. O Caranguejo e o Escorpião também estão achatados e Touro está inclinado, como que ‘vergado pelo peso do arado’. Capricórnio está contraído e retorcido pelo frio e os Peixes deslizam pela água. Esse código postural forma três grupos: •

quatro signos humanos (Gêmeos, Virgem, Libra, Aquário), dos quais três estão eretos, e um (Libra), está achatado;



quatro signos quadrúpedes (Áries, Touro, Leão, Sagitário), dos quais um (Touro) é mutilado, faltam-lhe as pernas e se arrasta; e

107 •

quatro signos rastejantes (Câncer, Escorpião, Capricórnio e Peixes) dos quais um (Capricórnio) é encimado por uma cabra quadrúpede, mas se locomove como um peixe.

Analisando as abominações do Levítico, Mary Douglas (1991:57-74) explica a classificação dos animais impuros como aqueles que escapam à classificação, (a) por não se conformarem por inteiro à sua classe, como os animais que vivem sobre a terra, mas que rastejam, deslizam ou fervilham, em movimento indeterminado; ou (b) por atentarem contra a completude e integridade, como os mutilados, os desproporcionados, os deformados e os híbridos. Se formos seguir esse esquema, o Zodíaco exibe sete figuras que estariam incluídas entre as abominações: •

Dois híbridos: Sagitário e Capricórnio (Capricórnio não só é híbrido como também se locomove deslizando).



Quatro que rastejam e deslizam: Touro (mutilado, sem a parte posterior, e, por isso, se arrasta), Câncer (cego), Escorpião (também mutilado, pois perdeu as pinças) e Peixes (que desliza)



Um achatado: Libra

108 Somente cinco se conformam propriamente à sua classe: •

Três humanos: Gêmeos, Virgem e Aquário;



Dois quadrúpedes: Áries, Leão.

Porém, a rigor, até o Carneiro está tosquiado e o Leão escalpelado. Na oposição inteiro/quebrado, somente as figuras humanas estão inteiras. Percebe-se então que esse código postural acaba por reafirmar a distinção entre humanos e animais. Para além dos detalhes iconográficos, que constituem apenas uma das facetas caracterológicas, a classificação dos signos recorre a outros códigos que conferem aos signos um conjunto diversificado de atributos e propriedades. O código sexual, que também é aplicado aos planetas, divide os signos em masculinos e femininos. O grupo dos signos masculinos inclui Áries, Gêmeos, Leão, Libra, Sagitário e Aquário. O grupo dos signos femininos inclui Touro, Câncer, Virgem, Escorpião, Capricórnio e Peixes. Na Roda do Zodíaco, os signos masculinos e femininos se alternam. Ptolomeu (I, 11) fundamenta a divisão dos sexos na precedência e prevalência do masculino sobre o feminino. Segundo ele, o masculino é sempre o primeiro e o mais potente, uma vez que o ativo sempre precede o passivo. Áries se qualifica como masculino tanto pela condição de primeiro signo quanto pela condição de signo equinocial, que garante sua potência. O círculo equinocial, que passa pelos signos de Áries e de Libra, causa a mais forte renovação de todas as coisas, argumenta Ptolomeu, atestando o vigor desses signos, logo, sua masculinidade. Já o código das qualidades elementais divide os signos em quatro grupos, cada um deles associado a um dos quatro elementos da Antiguidade: fogo, terra, ar e água.

Signos de fogo

Signos de terra

Signos de ar

Signos de água

Áries, Leão, Sagitário

Touro, Virgem, Capricórnio

Gêmeos, Libra, Aquário

Câncer, Escorpião, Peixes

Os quatro elementos se formam no cruzamento de dois eixos: frio/quente e seco/úmido.

109

O elemento fogo é quente e seco; o ar é quente e úmido. O elemento terra é frio e seco; a água é fria e úmida. Vilhena (1990:36) observou que os elementos podem ser organizados em um desdobramento da oposição alto/baixo. Os dois secos ocupariam os extremos dessa divisão e os dois úmidos ocupariam posições intermediárias, temperando tanto o calor quanto o frio. ALTO

BAIXO



fogo



quente e seco



ar



quente e úmido



água



frio e úmido



terra



frio e seco

Os elementos podem ser agrupados dois a dois, em função das duas qualidades primordiais: o calor e a umidade. No eixo quente/frio, fogo e ar compartilham a qualidade ‘quente’ e são, todos, signos masculinos. Terra e água, os signos frios, são femininos. A transferência do eixo quente/frio para o código dos temperamentos40 confere um caráter expansivo aos signos quentes (masculinos) e um caráter introvertido aos signos frios

40

Na interpretação de um mapa de nascimento, o código dos elementos se transfere para o código dos humores: o ar é sanguíneo; o fogo, colérico; a terra, melancólica e a água, fleumática (Arroyo, 1993).

110 (femininos). O eixo quente/frio, portanto, se sobrepõe à oposição masculino/feminino e à oposição alto/baixo, que reproduz a oposição céu/terra.

céu

alto

dia

masculino

quente

terra

baixo

noite

feminino

frio

Nos tratados clássicos, uma das chaves interpretativas distingue entre os signos falantes/mudos, distinção esta que se justapõe aos signos de ar/água. Na medida que esses elementos são, ambos, úmidos, é possível remeter essa distinção ao eixo quente/frio que os diferencia. A oposição falante/mudo é interpretável em função da iconografia dos signos. As figuras humanas falam, enquanto que o caranguejo, o escorpião e os peixes não emitem sons. Os demais animais balem, rugem ou mugem. Os signos humanos são assim considerados ‘de voz’, indicando desenvoltura na linguagem, eloqüência e sociabilidade. Câncer, Escorpião e Peixes eram caracterizados como signos mudos e os demais, de voz moderada. Isso não significa que os nativos de Câncer, Escorpião e Peixes sejam efetivamente mudos ou que tenham algum impedimento vocal. Bouché-Leclerq (1899:150) sugere que esse critério classificatório foi herdado do Egito e se refere à importância atribuída à voz justa nos ritos mágicos. Mas, é importante observar que, embora a oposição falante/mudo não seja mais enfatizada nos manuais contemporâneos, ela, de certa forma, se mantém preservada nas características atribuídas aos elementos. Os signos falantes pertencem ao elemento ar, associado a uma desenvoltura mental e verbal, mas também a um certo distanciamento emocional. Os signos mudos pertencem ao elemento água, caracterizado por uma sensibilidade extremada. Essa dicotomia acaba por reforçar duas oposições que permeiam o pensamento ocidental: razão versus emoção, mente versus corpo. Para os meus informantes, a desenvoltura verbal supõe uma boa articulação mental, enquanto que a emoção tende a ser silenciosa. Se a via de expressão preferencial da emoção é corporal (o rubor, as lágrimas, o tremor, o suor) e sua sede é imaginada no interior do corpo, os signos de água são

111 caracterizados como profundos, e os signos de ar como superficiais, no que diz respeito ao envolvimento emocional. Vilhena (1990:52) discute a associação entre os quatro elementos e as quatro funções psíquicas junguianas. A estrutura psíquica proposta por Jung (1994) postula duas atitudes fundamentais – introversão e extroversão – que ele acredita serem inatas e não passíveis de modificação. Essas atitudes se combinam a quatro funções psíquicas, duas das quais são racionais – pensamento e sentimento – e duas são irracionais – intuição e sensação. Segundo Jung, uma dessas funções é predominante, na estruturação da personalidade, enquanto que a função oposta41 é fraca. As duas restantes são auxiliares. Os astrólogos de inclinação junguiana associam a função pensamento ao elemento ar; a função sentimento, ao elemento água; a função intuição, ao fogo; e a função sensação, ao elemento terra. As atitudes básicas, por sua vez, são associadas à polaridade masculino/feminino. Como todos os signos masculinos são quentes, logo, expansivos, o masculino é associado à atitude extrovertida. Já os signos femininos, de natureza fria, são associados à atitude introvertida. Esse paralelismo entre as categorias junguianas e as categorias astrológicas coloca uma questão interessante. Jung (1994) sugere que cada função psíquica se atualiza ao longo de uma das duas linhas atitudinais. Isto é, há um pensamento introvertido e um pensamento extrovertido, um sentimento introvertido e um sentimento extrovertido, e assim por diante. No código astrológico, esse entrecruzamento seria inviável, pois não há signos de fogo nem de ar que sejam femininos (logo, não haveria intuição introvertida, nem pensamento introvertido), assim como não há signos de terra nem de água que sejam masculinos (logo, não haveria sensação extrovertida nem sentimento extrovertido). No grupo pesquisado por Vilhena, esse empréstimo a Jung era comum e pude também constatá-lo em algumas das palestras que assisti nos eventos públicos. No grupo com quem convivi, entretanto, isso não ocorria. Muito pelo contrário, havia um esforço explícito no sentido de separar a abordagem astrológica de qualquer outra abordagem, principalmente das teorias psicológicas. Isso se verificava também na insistência em afirmar que “astrologia não é terapia”, sempre que se discutia o que dizer ao cliente. Pelo

41

As funções racionais se opõem entre si. Quando a função pensamento predomina, a função sentimento é fraca. O mesmo ocorre com as irracionais. Quando a sensação predomina, a função intuição é fraca.

112 que pude perceber, tratava-se de um esforço no sentido de erigir a astrologia como ciência autônoma, como um saber que, ao invés de depender de outros saberes, era capaz de oferecer uma contribuição própria para o conhecimento humano. Por fim, o código baseado nas estações do ano, divide os signos em cardinais, fixos e mutáveis. Cada grupo engloba os signos que estão associados à mesma fase das quatro estações do ano. O primeiro grupo, o dos cardinais, reúne os signos nos quais as estações do ano têm início. Assim, Áries está associado à deflagração da primavera; Câncer, do verão; Libra, do outono e Capricórnio, do inverno. O segundo grupo, o dos fixos, reúne os signos associados ao período em que cada estação se mostra firmemente estabelecida: Touro (primavera), Leão (verão), Escorpião (outono) e Aquário (inverno). O terceiro grupo inclui os signos associados ao período em que cada estação vai perdendo sua força e apresentando os sinais da próxima estação. Esse período de transição, que apresenta características da estação que está terminando e da que está se aproximando, confere a Gêmeos, Virgem, Sagitário e Peixes um caráter oscilante, pelo qual eles são tidos como signos mutáveis42.

Signos cardinais

Signos fixos

Signos mutáveis

Áries, Câncer, Libra, Capricórnio

Touro, Leão, Escorpião, Aquário

Gêmeos, Virgem, Sagitário, Peixes

As estações mencionadas nos tratados astrológicos se referem sempre ao hemisfério norte. Embora, no hemisfério sul, a passagem do Sol pelo signo de Áries ocorra no outono, as características arianas continuam associadas à primavera. Renata me confessou que já tentou inverter o zodíaco e tratar os arianos como librianos, os geminianos como sagitarianos, mas alega que isso “não funciona”. Segundo ela, essa temática das estações é apenas uma das referências simbólicas e os demais campos de associação simbólica não podem ser assim invertidos e, portanto, “não vale a pena a 42

Lilly (1985: 89) explica o uso que se faz dessa distinção. Se o signo Ascendente ou o seu regente se encontram em um signo cardinal, o nativo é instável, inconstante, facilmente muda de opinião ou de resolução. Os signos fixos inclinam a uma resolução firme, perseverança, teimosia, manutenção da palavra e das decisões. Os signos mutáveis inclinam a uma atitude mista, ora perseverando, ora mudando de idéia e de decisão.

113 gente se incomodar com isso”. Além do mais, lembra ela, a simbologia estacional do hemisfério norte se impõe com muita facilidade no hemisfério sul. Renata usa a expressão ‘dominação simbólica’ para explicar porque a astrologia praticada no Rio de Janeiro preserva as associações entre os signos e as estações do hemisfério norte: “Nós fomos colonizados pela Europa e eles impõem as festas deles, os costumes deles, as comidas. Tem cabimento terno e gravata quando, no Rio, o calor é de 400? Como é que pode um Natal com frutas secas do deserto, tâmaras, damasco, nozes? E um Papai Noel com roupas pesadas de inverno, em pleno verão? É uma dominação simbólica que a gente nem percebe claramente, e vai assumindo. Então, acaba não fazendo muita diferença esse negócio de Áries ser primavera e Libra, outono, quando aqui é o contrário”. A construção simbólica que a astrologia faz da realidade não deriva de uma única fonte nem é monolítica. Há uma multiplicidade de padrões parciais, que interferem uns sobre os outros e montam uma coerência sustentável em um nível lógico mais elevado. Mesmo que um padrão parcial, tal como a alternância estacional, contradiga a experiência empírica, ele, eventualmente, se acomoda à tessitura simbólica que constrói o signo. Afinal de contas, Áries não é primaveril no hemisfério sul, mas continua sendo masculino, cardinal, do elemento fogo e representado por um carneiro. Quando Lévi-Strauss (1993:228) discute o sexo dos astros, ele afirma que “os mitos não tratam o sexo dos astros como um problema isolado. Combinam as noções a ele legadas com muitas outras, sem nunca levar em consideração sua origem empírica. Podese dizer do sol e da lua a mesma coisa que dos inúmeros seres naturais que o pensamento mítico manipula: ele não procura dar-lhes um sentido, ele se significa por eles”. Se substituirmos ‘sexo dos astros’ por ‘periodicidade estacional’, poderemos chegar à mesma conclusão. O sistema astrológico não trata a periodicidade estacional como um problema isolado. Combina as noções a ela relacionadas com muitas outras, sem levar em consideração sua origem empírica. O caráter oscilante dos signos mutáveis, mesclando as características de duas estações, merece uma observação. Gêmeos, Virgem, Sagitário e Peixes estão associados ao final das estações, quando os primeiros sinais da estação que se avizinha já se fazem notar.

114 Essa junção das duas estações, a que termina e a que começa, é o que lhes confere esse duplo caráter e são chamados, na terminologia astrológica, de signos duplos43. Nos tratados clássicos, porém, os signos duplos remetiam não só à periodicidade estacional, mas também às figuras míticas associadas aos signos. Gêmeos, Virgem, Sagitário e Peixes eram chamados de signos duplos, não só porque significavam uma transição nas estações do ano, mas também porque suas respectivas figuras são duplas. Os Gêmeos e os Peixes são simbolizados por pares – um par de jovens e um par de peixes. Virgem é simbolizado pela figura dupla de uma mulher segurando uma espiga de trigo, enquanto que Sagitário é simbolizado pela figura híbrida de um centauro, metade homem, metade cavalo. No entanto, a lista clássica de signos duplos incluía Capricórnio, pela figura híbrida de uma cabra com rabo de peixe. Manilius (4, XIX) afirma que, na primeira metade da vida, o capricorniano escala montanhas escarpadas, num esforço caprino, e, na segunda metade, desliza célere pelas águas, graças ao rabo de peixe. Porém, nos manuais contemporâneos, Capricórnio perdeu sua condição de signo duplo, pois é o signo que inaugura o inverno, não possuindo as características de final de estação. Apesar disso, a vida dos capricornianos ainda é descrita em duas fases, uma cheia de dificuldades e a outra, mais pródiga, colhendo os resultados dos esforços. Segundo entendi, essa característica capricorniana é tributada a Saturno, o planeta que ‘governa’ Capricórnio. Uma das facetas do planeta Saturno é a do ‘mestre’, que adquiriu sua maestria depois de muito esforço, tendo aprendido com seus inúmeros erros. “No reino de Saturno, a colheita vem depois de muito esforço. Você se torna mestre naquilo que era tão difícil para você”, me explica Glória.

43

Quando entrevistei uma das astrólogas do meu grupo de supervisão, ela me contou que ficou muito aborrecida quando fez a leitura de seu mapa pela primeira vez. Ela tem o signo de Sagitário, um signo duplo, na casa que se refere ao casamento e a astróloga lhe disse que ela ia se separar. “Mas, por que?”, perguntou ela. E a astróloga lhe disse que signos duplos ali costumam indicar dois casamentos, ou um casamento que passa por dois ‘estados’ bem marcados, daí ela achar que seria bastante provável ela se separar. Recém-casada na época, ela ficou descontente. Sua intenção declarada, ao me narrar esse episódio, era me mostrar o cuidado que um astrólogo deveria ter durante uma consulta, “não ir prevendo coisas, como se tivesse uma bola de cristal. Tem muita gente que faz isso e acaba dizendo bobagem. A gente deve ajudar o cliente a se entender melhor”. Mas, aí, eu fiquei curiosa e perguntei: “Afinal de contas, você se separou ou não?” E ela respondeu: “Eu me separei tempos depois. Mas, não foi pelas coisas que ela falou, não. Foi uma separação normal. Muita gente se separa hoje em dia. Esse tipo de previsão não tem nada a ver”.

115 As maneiras pelas quais o sistema astrológico consegue preservar suas chaves interpretativas sob outros formatos incluem, portanto, o deslizamento dos atributos conferidos aos signos para os planetas e vice-versa. Esse deslizamento se manifesta de forma particularmente intensa entre os signos e as casas. Vamos então examinar esse outro espaço astrológico: a Roda das Casas.

2.3 O céu inferior: as casas astrológicas

A Roda das Casas categoriza e organiza as principais experiências da vida social, desde o nascimento até a morte. Nela encontram lugar o casamento, a criação dos filhos, os laços de parentesco, a saúde e a doença, a carreira profissional, os estudos, as questões financeiras, os amigos e os inimigos, as alegrias e as dores. Na Roda das Casas, descreve-se o nativo em suas atividades cotidianas - trabalhando, namorando, indo a festas, viajando, estudando – e em diferentes estados de espírito – alegre e confiante, enfermo ou enlutado, esperançoso ou temeroso. Apresentamos, abaixo, de forma sucinta, os temas associados às doze casas:

Casas 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Temas Aparência física, temperamento, traços de personalidade Posses materiais Irmãos e parentes, viagens curtas, comunicação Pais, ancestrais, bens imóveis, túmulo Filhos e prazeres Empregados, trabalho rotineiro, pequenos animais Cônjuge, casamento, sociedades, inimigos declarados Morte e renascimento, perdas e crises Religião, estudos avançados, sonhos, grandes viagens Profissão, posição social conquistada, honras Amigos, protetores, desejos, expectativas e projetos Prisão, hospitalização, grandes animais, inimigos ocultos

Quando observamos os temas e os personagens que são alocadas nas diversas casas, a primeira impressão é de uma distribuição absolutamente aleatória e incoerente, que só começa a adquirir uma certa consistência quando levamos em conta os modos de

116 organização, valoração e hierarquização dos setores desse espaço. O Anexo 5 examina essa distribuição mais detalhadamente. O nosso interesse, por ora, não é discutir os temas associados às casas, mas sim investigar os critérios de fragmentação desse espaço, recortando-o em setores heterogêneos. No sistema astrológico, tanto os signos quanto as casas constituem espaços tópicos, ou seja, locais onde ocorrem eventos. Os signos seriam palco de eventos celestes em relação aos quais os eventos que ocorrem nas casas seriam comparados, extraindo daí sentido e valor44. Para determinar essa relação analógica, as casas e os signos podem ser pareados segundo suas respectivas ordens paradigmáticas.

Ordem paradigmática dos signos:

A

B

C

D E F G

H I J

K

L

Ordem paradigmática das casas:

1

2

3

4

8

11

12

5

6

7

9 10

Em virtude dessa equiparação entre signos e casas, é possível aplicarmos, na classificação das casas, os operadores de classificação que foram examinados com relação aos signos. Conforme já discutido anteriormente, os signos são classificados de acordo com quatro códigos básicos: a) a iconografia das figuras míticas associadas aos signos; b) sexo: masculino/feminino; c) elementos: fogo/terra/ar/água; d) ritmos: cardinal/fixo/mutável Não há, contudo, nem figuras nem episódios míticos associadas às casas. A Roda das Casas é, portanto, o único plano do sistema astrológico que não extrai significações da mitologia. Quanto aos outros códigos, muito embora as categorias relacionadas às casas não sejam exatamente as que se aplicam aos signos, é possível aproximá-las. As casas, por exemplo, não são divididas em masculinas e femininas, mas sim em ímpares e pares. Considerando que a Casa 1, ímpar, denota o nativo, é interessante observar que as casas

44

Essa concepção remonta à metafísica aristotélica, que estabelece uma distinção entre os mundos supra e sublunar. Para melhor entendimento das raízes aristotélicas na astrologia, ver Roberto Martins (1995).

117 ímpares são descritas como as mais favoráveis, envolvendo experiências propícias à afirmação do eu. Conformam-se assim ao princípio da similaridade presumido nas casas que são ‘da mesma natureza’ da Casa 1. A conotação desfavorável relacionada às casas pares, que são descritas como as que oferecem os maiores entraves à afirmação do eu, confirmam a natureza dessemelhante entre elas e a Casa 145. As casas ímpares e pares se alternam, tal como os signos masculinos e femininos.

O Zodíaco – signos masculinos e femininos

45

Com a exceção da Casa 10, relacionada à carreira profissional e ao prestígio conquistado, as casas apresentadas como as mais desfavoráveis são: a Casa 12, a Casa 6, a Casa 8, a Casa 2. Vide Anexo 5 para um detalhamento dos significados atribuídos às casas.

118 A Roda das Casas – casas ímpares e pares

Quanto ao código dos elementos, cabe a mesma observação. As casas não são consideradas de fogo, de terra, de ar ou de água, como os signos o são. Porém, elas são também agrupadas três a três, formando ‘os triângulos das casas’ (Marsh e McEvers, 1981:48). As casas 1, 5 e 9 formam o triângulo da auto-expressão, no qual o eu se afirma, cria e se expande, qualidades são muito próximas das qualidades atribuídas ao elemento fogo. As Casas 2, 6 e 10 compõem o triângulo das questões materiais (logo, semelhante ao elemento terra), ligando a capacidade de ganhar dinheiro (2), os encargos do dia a dia (6) e a profissão (10). As casas 3, 7 e 11 formam o triângulo dos relacionamentos: os contatos na vizinhança e na família (3), as parcerias de negócios ou de casamento (7) e as relações de amizade (11). Lidando basicamente com a capacidade de comunicação e com o estabelecimento de vínculos sociais, este triângulo remete à sociabilidade atribuída ao elemento ar. Já o triângulo formado pelas casas 4, 8 e 12, as que lidam com questões mais íntimas, está assimilado ao elemento água, e essas casas são tidas como casas emocionais: a vida privada (4), as crises (8), os conflitos internos (12).

119 O Zodíaco – signos de fogo, terra, ar e água

A Roda das Casas – os quatro triângulos

120 Finalmente, chegamos aos ritmos. Naturalmente, as casas não são classificadas em cardinais, fixas e mutáveis, até porque não estão relacionadas à periodicidade estacional que sustenta essa categoria. São, contudo, divididas em angulares, sucedentes e cadentes, em função da maior ou menor proximidade aos ângulos do mapa, os quais são marcos da periodicidade diária. “Os planetas em casas angulares têm grande potencial de ação dinâmica e sua influência é intensificada. Em outras palavras, as casas angulares têm qualidades cardinais. (As casas sucedentes), como os signos fixos, concedem estabilidade e propósito. (As casas cadentes) não têm tanta oportunidade de ação como as angulares, nem conferem estabilidade como as casas fixas , mas são adaptáveis. (Marsh e McEvers. 1981:49).

O Zodíaco – signos cardinais, fixos e mutáveis

121 A Roda das Casas –casas angulares, sucedentes e cadentes

Uma das implicações dessa estreita analogia entre signos e casas é a intercambialidade das qualidades de um espaço para o outro. Por exemplo, uma pessoa cujo mapa de nascimento não tenha um único planeta em signos de terra, é considerada carente desse elemento. Mas, se esta pessoa tiver planetas nas casas 2, 6 ou 10, isso poderia compensar a falta de terra, pois essas são as casas de realização material. Encontrei exemplos dessa quase-equiparação entre signos e casas tanto na literatura astrológica quanto nas palestras de alguns astrólogos que participaram dos eventos públicos. O grupo com quem convivi, entretanto, não compartilha dessa opinião. Volta e meia, eu ouvia uma crítica não só contra a confusão entre signos e casas, mas também contra a confusão entre os signos e os planetas. “Ele tem Marte no Ascendente, mas isso é muito diferente de ser um Ascendente Áries. Não se pode confundir planeta com signo”.

122 “Esse negócio de achar que muitos planetas na Casa 10 é a mesma coisa que ter muita terra não funciona. Ele vai ter mesmo é que lidar com as questões da Casa 10 do jeito que ele pode, com aquela água toda que ele tem”. Apesar disso, percebi que a distinção entre signos e casas não é muito fácil. Entretanto, há uma importante característica compartilhada pela Roda das Casas, no céu inferior, e pelas constelações, no céu superior – a fixidez da ordem canônica. Em qualquer mapa de nascimento, parte da interpretação dos elementos astrológicos parece se sustentar na comparação entre o arranjo estrutural específico do mapa e o modelo canônico que serve de paradigma. Esse modelo canônico dispõe os signos e os planetas em seqüências paradigmáticas que, a rigor, raramente se reproduzem nos mapas de nascimento. Como os planetas são astros ‘errantes’, eles avançam pelo Zodíaco em diferentes velocidades, aproximando-se e afastando-se uns dos outros, ultrapassando alguns, sendo ultrapassados por outros. Em um mapa de nascimento, portanto, a seqüência dos planetas, em comparação com a ordem planetária paradigmática, encontra-se ‘embaralhada’. A seqüência paradigmática dos signos, por sua vez, concede a Áries a posição de primeiro signo e deixa Peixes no outro extremo. Em um mapa de nascimento, a ordenação dos signos é sempre a mesma, eles se sucedem, uns aos outros, na mesma seqüência. O que se modifica é a posição de primeiro signo. Para um mapa específico, o primeiro signo é o signo Ascendente, qualquer que seja ele, e é a partir do signo Ascendente que a posição dos demais é modalizada para a devida interpretação. Isso significa que a posição dos planetas e dos signos, em um mapa, tende a se mostrar alterada em relação à ordenação paradigmática. No caso dos signos, somente a ordenação se altera, mas, no caso dos planetas, tanto a ordenação quanto a organização podem se alterar. As casas astrológicas, entretanto, são numeradas de 1 a 12 e são fixas. Em todo e qualquer mapa, as casas estão sempre na mesma posição e na mesma seqüência. Verifica-se assim que a Roda das Casas, sempre fixa, rebate o posicionamento - igualmente fixo - das constelações na abóbada celeste46.

46

As estrelas que compõem as constelações são chamadas de ‘fixas’ (em contraposição aos planetas, tidos como ‘errantes’) porque parecem imóveis. Na verdade, elas têm um movimento médio de 50’’ em longitude zodiacal por ano (Robson, 1988:13). Como esse movimento não é facilmente perceptível, ele não é levado em conta (já que, conforme comentado anteriormente, o que importa é o percebido) e as estrelas continuam sendo chamadas de fixas.

123 É possível então distribuirmos os elementos astrológicos em três níveis, de acordo com o potencial de variabilidade em um mapa de nascimento, quando confrontado com o modelo canônico: 10 nível – posicionamento fixo

As constelações

20 nível – posicionamento variável

Os planetas e os signos

30 nível – posicionamento fixo

As casas astrológicas

Há, porém, um artifício que consegue fazer girar a Roda das Casas tal como a Roda dos Signos gira, mais uma vez aproximando as características desses dois espaços. Este artifício quebra a fixidez presumida na Roda das Casas e introduz ali a mesma variabilidade admitida na Roda dos Signos: a seqüência é sempre a mesma, mas o ponto de partida varia. Dependendo do novo ponto de partida, as casas são re-numeradas, transformando-se em casas derivadas. Isso implica combinar também os significados básicos associados às casas, gerando significados derivados. Cada casa está basicamente associada a determinados personagens ou temas. A Casa 3, por exemplo, denota o irmão do nativo. Se quisermos detalhar as circunstâncias de vida deste irmão, basta fixar essa casa como a casa 1 deste irmão e interpretar as demais casas segundo essa re-numeração. Isso significa que a casa seguinte (que, no mapa do nativo é a Casa 4) passa a ser a Casa 2 deste irmão, denotando, assim, as questões financeiras deste irmão. Desse modo, é possível ver, em um mapa, detalhes da vida das pessoas que cercam o nativo, bastando, para tal, girar o mapa a fim de fixar como ponto de partida a casa que representa o personagem em questão. Tomando a minha casa 5 (filho) como ponto de partida, posso examinar, a partir do meu mapa, o dinheiro do meu filho, o meu segundo filho (o irmãos do primeiro), a casa do meu filho, o trabalho do meu filho, e assim por diante, aplicando o significado básico das casas sobre as casas re-numeradas. Isso pode ficar muito complicado, mas trata-se de uma questão bastante importante, pois está diretamente ligada às previsões. Se há algum trânsito ou progressão sobre um planeta localizado na minha Casa 7, as indicações podem apontar, entre outras coisas, para:

124 •

Uma questão no meu casamento – pois o significado básico da Casa 7 é o casamento;



Uma questão de saúde – porque a Casa 7 se opõe ao Ascendente que denota meu corpo físico e minha vitalidade;



Uma questão envolvendo obras na residência dos meus pais– porque a Casa 7 é a quarta casa (a residência) a partir da Casa 4 (meus pais)



Uma questão envolvendo meu sobrinho – porque a Casa 7 é a quinta (filhos) a partir da terceira (irmãos) e denota, por derivação, o filho do meu irmão.

No final das contas, isso significa que cada casa comporta todos os assuntos das demais casas, desde que não se perca de vista a que personagem específico cada assunto está relacionado. A Casa 5 pode mostrar o dinheiro, mas o dinheiro dos pais e não o dinheiro do cônjuge. Pode mostrar a escolaridade dos irmãos, mas não a dos cunhados. Pode mostrar os cônjuges dos amigos, mas não os cônjuges dos filhos. O artifício da derivação encapsula, em cada casa, a seqüenciação completa da Roda das Casas, retotalizando a fragmentação efetuada no contínuo desse espaço. Seria de se esperar que um encapsulamento semelhante pudesse ser encontrado nos signos do Zodíaco, completando a analogia entre signos em casas. E ele existe. Trata-se de uma partição de cada signo em doze setores – denominados dodecatemoria – cada um com 2030’ de extensão, que aglutinam a Roda dos Signos por inteira em um único signo (Ptolomeu, I, 20; Manilius, 2, 31/32). Tomando o signo de Áries como exemplo, teríamos:

A

00 a 2030’

2030’ a 50

50 a 7030’

7030’ a 100

100 a 12030’

12030’ a 150

150 a 17030’

17030’ a 200

200 a 22030’

22030’ a 250

250 a 27030’

27030’ a 300

A

B

C

D

E

F

G

H

I

J

K

L

Segundo as astrólogas do grupo de estudos, essas partições mais diminutas visam primordialmente estabelecer distinções mais finas entre um grau e outro do mesmo signo. Isso se torna particularmente relevante no caso de gêmeos, quando uma diferença muito pequena no horário de nascimento implica tão somente uma diferença de grau no Ascendente. Para que se possa legitimar diferenças de temperamento, por exemplo, em

125 gêmeos nascidos com minutos de intervalo, é preciso que o grau específico do Ascendente tenha qualidades e atributos próprios47. Embora os trinta graus do signo de Áries sejam, todos, arianos, as partições que remetem a outros signos acabam por acrescentar a esses graus uma tonalidade distinta.

2.3 O código cosmológico e seus desdobramentos

Até agora, temos tratado a classificação astrológica com base em categorias extraídas da luminosidade e do calor do Sol, dos picos e depressões dos ciclos solares. Por meio desses atributos, monta-se um sistema consistente e coeso, no qual estrelas, planetas e ângulos se distribuem em três níveis espaciais interrelacionados. A eficácia dessa configuração celeste, para emprestar significação aos acontecimentos no mundo sensível, depende de um código de simpatias segundo o qual é possível remeter todo e qualquer evento que ocorre na terra ao astro que detenha qualidades semelhantes e que, por conseguinte, ‘governe’ aquela situação. Para tanto, o sistema astrológico supõe relações fixas entre estrelas, planetas, signos e casas e tudo aquilo no mundo que encarne suas respectivas qualidades, caindo assim sob sua jurisdição. Trata-se de uma partição, em domínios astrológicos, de todas as coisas existentes no mundo, desde os seres animados ou inanimados, até as cores, os odores, os sons, os sabores, as texturas e as formas. O sistema astrológico, essa espécie de lógica combinatória, erigiu um vasto sistema de conexões que serve de base para a classificação das partes do corpo humano e dos humores, passando por minerais, vegetais e animais, até a classificação das artes liberais, dos vícios e das virtudes, dos dias da semana, das direções do espaço e das condições meteorológicas. Assim, todas as áreas de conhecimento, não apenas a cosmologia, mas também a botânica, a fisiologia, a anatomia, a geografia, a mineralogia, a ética, a psicologia, a sociologia, são abarcadas por esse sistema totalizante.

47

Os 360 graus do Zodíaco podem ser divididos em masculinos/femininos, claros/escuros, débeis/honoríficos (Lilly, 1985:116). Porém, a não ser em casos onde é absolutamente necessário particularizar o grau (como em nascimentos de gêmeos, por exemplo), essas distinções não costumam ser detalhadas.

126 A fragmentação do mundo sensível, em domínios subordinados aos astros, reproduz a fragmentação do próprio céu em domínios tutelados pelos planetas. Essa tutela planetária constrói um código cosmológico que vincula (a) cada planeta às estrelas de natureza semelhante; (b) cada planeta aos signos e casas que lhe pertencem. Isso acaba por conferir primazia aos planetas, na medida que subordina a eles todo o aparato astrológico. As relações fixas que montam o código cosmológico são de dois tipos: de semelhança e de posse. Conforme já explicado, quando discutimos as constelações, o determinismo associado às estrelas é traduzido por meio de duas chaves interpretativas. A primeira vincula as estrelas aos episódios míticos associados aos catasterismos. A segunda, que é a que nos interessa agora, vincula as estrelas aos planetas que são, supostamente, de natureza semelhante. Essa chave interpretativa aproxima estrelas e planetas, traduzindo o poder das estrelas na linguagem dos planetas. A estrela Sirius, da constelação do Cão Maior, por exemplo, seria da natureza de Júpiter e Marte; a estrela Capella, da constelação do Cocheiro, seria da natureza de Marte e Mercúrio, e assim por diante (Robson, 1988). Geralmente, cada estrela é considerada como de natureza semelhante a dois, por vezes, três planetas. Isso talvez se deva à suposição de que o poder das estrelas difere, em natureza e em grau, do poder atribuído aos planetas48, o que tornaria difícil que um único planeta traduzisse adequadamente o poder de uma estrela. As estrelas, no céu superior, não são classificadas de acordo com as categorias que norteiam as relações do sistema astrológico nos seus dois outros níveis: o céu mediano e o céu inferior. Elas não são nem frias nem quentes, nem masculinas nem femininas, nem secas nem úmidas. A relação ‘ser da mesma natureza’, ou ‘ser como’, repousa, portanto, em uma combinação das qualidades atribuídas aos planetas, combinação essa que não chega a ser sintetizada por nenhum planeta específico, mas sim por grupos de planetas. Por outro lado, no céu mediano, planetas e signos compartilham atributos ligados ao sexo e ao teor de calor e de umidade. A relação ‘ser como’, nesse nível celeste, desliza facilmente para a relação ‘ser de’, de modo que um signo de natureza semelhante à de um determinado planeta passe a pertencer a este planeta. Considera-se, por exemplo, que o

48

O determinismo associado às estrelas é muito mais forte e mais direcionado do que o determinismo associado aos planetas.

127 signo de Capricórnio, um signo de terra, frio e seco como o planeta Saturno, pertence a Saturno. Na qualidade de regente do signo de Capricórnio, Saturno passa a governar também qualquer planeta que por ventura atravesse o signo de Capricórnio. No nível do céu mediano, portanto, o código cosmológico implica relações de subordinação entre os planetas, pois, sempre que um planeta se encontra em uma região do Zodíaco que pertence a um outro planeta, fica subordinado ao dono daquele território. No céu inferior, as relações estabelecidas entre os planetas e as casas também pressupõem uma certa semelhança de natureza. No entanto, as conexões planetas↔casas são muito mais tênues do que as conexões planetas↔signos. O Zodíaco, no céu mediano, é mais pormenorizado e suas fragmentações exibem contornos bem mais nítidos do que a Roda das Casas no céu inferior49. O sistema astrológico, como os sistemas classificatórios em geral, apresenta uma estruturação mais rarefeita nos seus níveis extremos (Lévi-Strauss, 1989:174). O código cosmológico é de grande relevância na interpretação de um mapa de nascimento. Quando um astrólogo levanta um mapa natal, esse estado do céu, que é então congelado, perde sua condição de estado transitório e efêmero e passa a enunciar uma história de vida que se desenrola ao longo de um certo período de tempo, não raro superior a 70 anos. 49

O céu superior se fragmenta em grandes intervalos. A abóbada celeste é dividida em 88 regiões, - as constelações – e os espaços vazios de estrelas são também vazios de significação. No céu mediano e no céu inferior, não há espaços vazios. O Zodíaco e a Roda das Casas são espaços contínuos. As descontinuidades são construídas pelas fragmentações que transformam esses espaços em regiões qualitativamente diferenciadas. Porém, as regiões definidas pelas fragmentações, nesses dois espaços, se distinguem em dois aspectos importantes: a homogeneidade do tamanho e a nitidez dos contornos. No céu mediano, as divisões do Zodíaco são homogêneas. Cada signo ocupa 300. No céu inferior, as casas podem ter diferentes extensões, a depender do sistema de casas adotado. Além disso, os contornos dos signos são considerados verdadeiras barreiras, as quais, ao serem transpostas, implicam um salto qualitativo. Em outras palavras, um planeta que se localize no último grau de um signo, bastante próximo, portanto, do signo seguinte, não suscita dúvidas quanto à sua posição. Somente quando seu movimento o leva a efetivamente ultrapassar a barreira entre os signos é que ele pode ser considerado no signo seguinte. Já na Roda das Casas, essas barreiras são, de certa forma, permeáveis. Um planeta muito próximo do começo da casa seguinte é comumente, entendido como já atuando nos assuntos da casa seguinte. Na Roda das Casas, o ponto inicial de cada região (conhecido como a cúspide de uma casa) é o ponto de maior eficácia para os assuntos daquela casa. E essa eficácia vai se diluindo, quanto maior a distância da cúspide, até que, por fim, o final de uma casa chega a se confundir com o início da próxima. Os astrólogos, em sua maioria, admitem que um planeta a 50 de distância da casa seguinte já pode ser interpretado como se estivesse localizado na casa seguinte. No caso dos signos, esse gradiente de distanciamento não costuma ser admitido. Um planeta a 29059’ de um signo está nesse signo, e não no seguinte. Isso significa que os signos são construídos como classes digitais, cujos limites assinalam um salto; as casas são construídas como classes analógicas, com um gradiente de distância relativa ao ponto inicial.

128 As posições dos planetas no momento do nascimento são julgadas como ‘promessas’, seja de acontecimentos futuros, seja de traços pessoais, que irão se manifestar ao longo da vida. O código cosmológico funciona como balizador dessas tendências, permitindo que o astrólogo avalie a capacidade de um planeta cumprir a promessa encerrada em sua posição em um determinado signo e em uma determinada casa. A premissa astrológica é que, quando um planeta está em um signo ou uma casa cujas qualidades têm afinidade com as suas próprias qualidades, este planeta fica como que à vontade, parecendo não enfrentar obstáculos. Caso contrário, entende-se que o ambiente em que o planeta se encontra lhe seja pouco propício, o que acaba por restringir, retardar ou deformar a atuação deste planeta. A avaliação do posicionamento de um planeta como confortável/desconfortável recorre fundamentalmente ao código cosmológico. O princípio que avalia o bem-estar de um planeta em um signo ou em uma casa é mais ou menos o mesmo, mas a terminologia é diferente. Um planeta que se encontra confortável em um signo está ‘dignificado’. Um planeta confortável em uma casa está ‘em júbilo’. Apresentamos abaixo os júbilos dos planetas na Roda das Casas.

129 Observa-se que os planetas diurnos (Saturno, Júpiter e Sol) estão em júbilo no hemisfério acima do horizonte, iluminado e visível, enquanto que os planetas noturnos (Lua, Vênus e Marte) estão em júbilo no hemisfério abaixo do horizonte. Mercúrio, que não é noturno nem diurno, tem seu júbilo no nascente, onde os astros que estavam invisíveis se tornam visíveis. A condição de semelhança norteia essa disposição. Quando examinamos os júbilos planetários em termos de eixos diametrais, percebemos que eles estão dispostos aos pares, em três eixos, com a exceção de Mercúrio, isolado: a) Mercúrio, na Casa 1 b) Sol e Lua, no eixo Casa 3/Casa9 c) Vênus e Júpiter, no eixo Casa 5/Casa 11 d) Marte e Saturno, no eixo Casa 6/Casa 12

Esse esquema reproduz a divisão dos planetas em: a) dois luminares: Sol e Lua b) Mercúrio c) Dois benéficos: Vênus e Júpiter d) Dois maléficos: Marte e Saturno Vale salientar que os dois planetas maléficos, Marte e Saturno, estão em júbilo nas casas consideradas as mais desfavoráveis50, ambas pares. As demais casas pares (2, 4, 8 e 10) não são consideradas júbilos de nenhum planeta. Isso reforça a natureza desfavorável atribuída às casas pares, na esteira da correspondência par/feminino/negativo em contraposição à correspondência impar/masculino/positivo. Os dois luminares e os dois planetas benéficos encontram-se em júbilo nas casas ímpares. É interessante observar que os júbilos dos planetas femininos (Lua e Vênus) estão em casas ímpares (respectivamente Casa 3 e Casa 5), embora o feminino corresponda ao número par. Isso talvez se deva ao fato de que jamais esses dois planetas sejam considerados maléficos ou desfavoráveis, conforme já comentado. O sistema astrológico opera por meio de múltiplos planos justapostos e as contradições encontradas em um plano muitas vezes só podem ser resolvidas em um plano 50

São as Casas 6 e 12. Vide Anexo 5 para maiores detalhes.

130 superior, que organiza a hierarquização do sistema. O caráter benéfico da Lua e de Vênus parece assim preponderar sobre a equivalência par/feminino, mantendo-se a condição desfavorável das casas pares ao atribuir-lhes os júbilos dos planetas maléficos (embora masculinos) e não os júbilos de planetas femininos. Naturalmente, o esquema dos júbilos planetários é subproduto das relações ordenadas e hierarquizadas que transformam a Roda das Casas em um conjunto de regiões qualitativamente diferenciadas. O código cosmológico não é mais do que uma extensão coerente das categorias fundamentais, cuja lógica organiza e reflete a estrutura do próprio sistema astrológico. No céu mediano, o código cosmológico é bem mais detalhado e complexo. Para explicá-lo, os astrólogos comparam os signos do Zodíaco a lotes territoriais que pertencem aos planetas. Porém, além de usufruir ‘direitos de propriedade’ sobre um signo por inteiro, cada planeta também governa partes de outros signos51. O signo mais condizente com a natureza do planeta é considerado o seu domicílio. Quando o planeta se encontra nesse signo, ele está à vontade, como se estivesse em sua própria casa. Nessa situação, o planeta é considerado dignificado, ou seja, bem colocado, forte, capaz de atuar com desenvoltura. Os motivos que sustentam os direitos de propriedade dos planetas sobre os signos não são muito claros e provocam grandes controvérsias. Na verdade, a crítica que eu mais ouvi, por parte dos próprios astrólogos, é que os astrólogos tentam racionalizar um fato consumado: os signos foram distribuídos pelos planetas, sabe-se lá quando, sabe-se lá por quais critérios e, agora, só lhes resta encontrar argumentos para defender essa partilha. Pela proposta de Ptolomeu, que é a mais divulgada, decidiu-se, primeiro, quais os signos que seriam as casas do Sol e da Lua. Se o Sol cumpre suas funções calorífica e iluminante de forma plena no verão, sua casa deveria ser um signo estival. Além disso, a regularidade e a estabilidade percebidas no movimento solar apontam para um signo fixo como seu conveniente domicílio. Leão é o signo fixo do verão, logo, onde o Sol fica mais à vontade.

51

Vide Anexo 3 para maiores detalhes.

131 Uma vez decidido que o domicílio solar é o signo de Leão, coube à Lua o signo de Câncer não apenas porque é um signo feminino, de água (logo, frio e úmido como a Lua), mas também porque é contíguo a Leão e, assim, os dois luminares ficariam juntos. A partir da alocação desses dois signos aos luminares, os planetas receberam os signos subseqüentes, obedecendo à seqüência planetária paradigmática.

Os domicílios dos planetas

O Sol e a Lua possuem, então, cada qual, um único domicílio celeste, enquanto os cinco outros planetas tradicionais52 possuem dois domicílios. A proposta de Ptolomeu foi descrita pelos meus informantes como: “arrumadinha demais para o meu gosto” (Glória); “cheia de simetria e proporcionalidade, como ele gostava porque ele era matemático” (Marília);

52

Os cinco planetas tradicionais são aqueles visíveis a olho nu, que eram conhecidos desde a Antiguidade: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. A inclusão dos três novos planetas alterou essa distribuição. Vide Anexo 3 para um maior detalhamento das dignidades planetárias.

132 “parece até lógico, mas as coisas não precisam ser lógicas. Só que ele não conseguia aceitar uma coisa que ele não compreendia e, então, ele deu um jeito de explicar” (Carla). Em que pese a lógica ptolomaica nesse raciocínio, tão incômoda para alguns dos entrevistados, é importante reafirmar que os atributos solares – brilho e calor – organizam as categorias astrológicas, inclusive os ‘direitos de propriedade’ dos planetas sobre os signos. Para tanto, o calor e luminosidade passam por gradações mais finas. O calor pode ser forte, como no verão, ou fraco, como no inverno. Se Leão, o signo fixo de verão, é a casa do Sol, o signo fixo do inverno, Aquário, quando o calor e a claridade estão em sua gradação mais fraca, torna-se o ‘exílio’ do Sol, onde as funções solares se cumprem menos intensamente. Em contrapartida, Aquário é a casa de Saturno, o planeta de frio mais intenso. O código cosmológico também funciona como operador de classificação. A idéia de que um signo pertence a um planeta é freqüentemente acionada no detalhamento das características do signo. Nas aulas no Espaço do Céu, volta e meia os professores comentavam: “Não se esqueçam que Libra é também um signo de Saturno. Então, Libra ... (é assim e assado).” “Os nativos de Gêmeos e Virgem são nervosos porque esses são signos de Mercúrio e Mercúrio rege o sistema nervoso”. Os planetas bem colocados são alvo de comentários auspiciosos, tais como: “Como vocês estão vendo, (esse nativo) tem uma belíssima Lua em Câncer”. Ou ainda: “Mas, (ele) tem Marte domiciliado em Áries, então, ele tem a energia e a coragem necessárias para enfrentar tudo isso”. Já os planetas localizados em signos de qualidades pouco afins com as suas são descritos como estando ‘debilitados’, ‘em queda’, ‘em exílio’. A bem dizer, o juízo face à posição de um planeta em um signo é sempre normativo, na medida que preserva as categorizações que o sistema estabelece. Sob esse prisma, as dignidades e as debilidades dos planetas poderiam ser resumidas como ou o planeta está, ou

133 não está, no seu devido lugar. Nesse sentido, elas podem ser aproximadas da noção de pureza/impureza proposta por Mary Douglas. Conforme Douglas (1991:50), a noção de impureza é expressão de sistemas simbólicos e pode ser sintetizada como “qualquer coisa que não está em seu devido lugar”, subvertendo e ameaçando as nossas classificações e organizações mais arraigadas. Os sapatos não são impuros em si, mas é impuro colocá-los sobre a mesa de jantar. Um prato de comida não é impuro em si, mas é impuro deixá-lo no quarto de dormir. Sabonetes e pastas de dentes devem ficar no banheiro e não na sala de estar. Roupas devem ser penduradas nos armários ou guardadas em gavetas, e não amontoadas sobre uma cadeira. Se o impuro é o que não está em seu devido lugar, a impureza é muito mais posicional do que substancial. Podemos aplicar esse mesmo modo de pensar na questão das dignidades e debilidades planetárias. A Lua não é impura em si, mas é impuro encontrá-la em Escorpião ou Capricórnio. Júpiter não deve estar em Gêmeos ou Virgem, porque seu devido lugar é em Sagitário ou Peixes. Vênus torna-se impura quando se encontra em Áries ou em Virgem. A ‘impureza’ é contagiosa. Quando um planeta nessa condição afeta um outro, seja por aproximar-se dele ou por ‘olhá-lo’, sua influência é tida como danosa ou, pelo menos, pouco auspiciosa. O código cosmológico se desdobra em inúmeros códigos, que implicam tutela sobre o mundo sensível. São esses códigos que promovem as ligações entre séries descontínuas: a série dos corpos celestes e a série dos seres, objetos e eventos empíricos. •

Código geográfico, vinculando planetas, signos e casas a direções do espaço e a regiões geográficas;



Código espacial, vinculando-os a locais dentro e fora das casas;



Código meteorológico, vinculando-os a fenômenos climáticos, tais como chuvas, secas, ventos;



Código anatômico, vinculando-os a partes do corpo e, por extensão, a marcas corporais e a patologias;



Código sociológico, vinculando-os a figuras e a estatutos sociais;

134 •

Código

moral

e

psicológico,

vinculando-os

a

tendências

psíquicas

e

comportamentais.

Considerando que tudo e qualquer coisa encontra seu lugar no sistema – desde objetos e animais, até as horas do dia e os dias da semana – é preciso atentar para as qualidades e atributos de cada objeto, pessoa, local, mineral, vegetal ou animal em questão a fim de determinar sob qual tutela ele se encontra. A identificação do planeta que detém a tutela, vamos dizer, de uma planta, é tarefa das mais complexas, que não demanda apenas uma acurada capacidade de perceber suas qualidades empíricas (cor das flores, textura das folhas, odor), mas também uma engenhosa priorização dessas características de modo a conformar corretamente a planta ao patrono correspondente. Esta qualidade não é necessariamente percebida pelos sentidos. Pode depender, por exemplo, das propriedades medicinais da planta. O Sol rege as plantas de flores amarelas, de porte majestático, que crescem em locais ensolarados ou as que fazem bem ao coração. Cabe à Lua reger as plantas de folhas macias, arredondadas, úmidas e suculentas, que crescem em locais pantanosos e sombrios ou que fazem bem ao estômago (Lilly, 1985: 69 e 80). As relações simpáticas, que se instituem no jogo entre discriminar e assemelhar, constituem a forma primordial de apreensão das qualidades do mundo sensível submetidas à inteligibilidade dos corpos celestes. Assemelhar simpaticamente implica reconhecer que Saturno, por exemplo, se faz presente na melancolia e na magreza, no chumbo e na velhice, na montanha e na cicatriz, no jumento e nos odores ofensivos, no sábado e nas cores escuras. Discriminar a especificidade saturnina exige perceber que, no caso de uma doença, Saturno a cronifica; no caso de um esforço, o prolonga; no caso de um acontecimento, o retarda; quanto aos cabelos ou a pele, os escurece. Considerando que a patronagem planetária pode ser depreendida das leis de semelhança, de contigüidade ou até de implicação lógica, o código astrológico de simpatias parece oferecer um operador multidimensional para a investigação de qualquer problema. Cada conteúdo empírico é avaliado como extensão coerente de categorias fundamentais, cuja lógica é causa e efeito da estrutura do próprio sistema astrológico.

135 Parte substancial da patronagem planetária deriva da correspondente patronagem das divindades míticas gregas que emprestam seus nomes aos planetas. O planeta Mercúrio preside as viagens, o comércio e a comunicação em geral, assim como o roubo, a mentira e a fraude, na esteira do deus Mercúrio, mensageiro dos deuses, protetor dos viajantes, dos comerciantes, dos embusteiros e dos ladrões. O planeta Vênus preside os relacionamentos amorosos, a moda, as jóias, os perfumes e os adereços, tal como a deusa Vênus governa os jogos de amor e a arte da sedução. Por sua vez, o planeta Marte preside os combates e conflitos, em estrito acordo com a patronagem do deus Marte, o senhor da guerra. Dentre os três planetas trans-saturninos, somente Plutão está sistematicamente associado à figura mítica do deus dos Infernos. Preside a morte e o renascimento, isto é, as grandes mudanças de vida e as grandes crises. Urano e Netuno não suscitam muitas analogias com as figuras míticas correspondentes. A patronagem desses dois planetas está mais vinculada ao contexto geral na época de sua descoberta53.

2. 5 O mapa de nascimento como o discurso astrológico

Examinando-se o sistema astrológico como um sistema de classificação, percebe-se que o mapa ‘fala’ sempre a partir de um plano enunciativo, pela subordinação inevitável a um dentre os muitos códigos selecionáveis como chave interpretativa. Isto nos sugere de que cada elemento astrológico é uma unidade constituída a partir de um feixe de propriedades e características que demarcam um campo semântico, mantendo-se como um complexo significativo não por uma denotação, mas graças aos atributos e qualidades que o compõem. Essa caracterização é, portanto, puramente qualitativa, e não atrelada a uma referência. Caso contrário, estaríamos lidando com referências cristalizadas e as interpretações se resumiriam a um procedimento taxionômico. Para que a linguagem astrológica seja decifrada na leitura do mapa, é preciso modalizar 53

Assim é que Urano, descoberto em 1781, preside tudo que é inesperado, fora do comum e imprevisível, tal como sua descoberta surpreendeu, revolucionando a série planetária tida há séculos como fixa. Netuno, descoberto em 1846, está associado ao cinema, à fotografia e ao inconsciente, assumindo a tutela do irracional e da arte das aparências Uma das professoras do Espaço do Céu inclui, nessa arte das aparências, a publicidade e o marketing, os quais, segundo ela, cosmetizam a realidade, com o objetivo de seduzir o consumidor. Nesse sentido, Netuno é descrito como ‘a oitava superior’ de Vênus, levando a arte da sedução a níveis mais coletivos do que o nível dos jogos amorosos.

136 cada elemento estrutural, em virtude do arranjo estrutural específico encontrado em um mapa de nascimento. Apesar disso, a flexibilidade do esquema classificatório precisa respeitar limites, caso contrário seria impossível o reconhecimento de formas simbólicas que balizem a produção de sentido. Se essa hipótese for válida, a referência de um símbolo astrológico precisa ser construída a cada instância, na medida que o mesmo elemento pode assumir diversos valores referenciais. O ponto relevante é que cada elemento necessariamente se atualiza sob uma certa faceta e a referência depende de um recorte semântico, sempre determinado pelo código escolhido. Conforme Mariana salientou, “O mapa não diz nada, a não ser que você pergunte algo a ele. Você quer saber se vai conseguir o emprego? Olhe o signo que está na cúspide. É Aquário? Então, vai demorar. Aquário é um signo fixo, que retarda as coisas. Você está interessada em comprar uma casa e quer saber como ela é? O signo é Aquário? Então, ela fica em terreno elevado e irregular, é uma casa cheia de níveis, mas é bastante arejada, pois Aquário é um signo de ar. Tudo depende do que você pergunta ao mapa”. Os atributos básicos de cada símbolo astrológico podem ser tratados, assim, como propriedades em estado dicionarizado, até que sejam atualizados em um mapa. Logo, o mapa de nascimento pode ser considerado o discurso que atualiza a língua astrológica, composta de signos, no sentido lévi-straussiano. ‘Levantar um mapa de nascimento’ é a expressão empregada pelos astrólogos com quem convivi. Ao levantar um mapa, o astrólogo erige uma estrutura simbólica que verticaliza o nativo, conectando-o aos três níveis celestes postulados, e mobiliza, simultaneamente, todos os planos do sistema astrológico. Por meio do céu superior, recheado de estrelas, a cadeia de eventos que compõe uma história de vida sofre uma torção que costura uma causalidade primária nas cadeias causais ordinárias. Por meio do céu mediano, na errância dos planetas, reconhece-se uma variedade de predisposições imanentes, predisposições estas que, no confronto com as experiências de vida, inclinam a um certo tipo de comportamento e não a outro.

137 Por meio do céu inferior, coadunado com o ponto de vista do nativo, as instâncias de identificação do eu – o corpo (Casa 1), as posses (Casa 2), os parentes (Casa 3), e assim por diante, até os amigos (Casa 11) e os inimigos (Casa 12) – deixam de ser entendidas como aspectos contingenciais, colados ao eu como se fossem próteses, e passam a garantir uma heterogenia constitutiva, graças a um hibridismo entre a pessoa e o mundo que incorpora ao eu as suas relações com o mundo. Na qualidade de discurso54, o mapa atualiza e põe em funcionamento o acervo simbólico do sistema astrológico. Mas, para tanto, o que ele constrói não são classes ou conjuntos em relação aos quais determina-se a inclusão ou exclusão de um termo de referência. O que efetivamente se constrói são as coordenadas de localização de um termo dentro de um universo referencial. “Às vezes, a gente chega nos lugares, em festas de aniversário, em jantares na casa de amigos, reuniões assim, e tem sempre alguém que, quando descobre que você é astróloga, dá um jeito de chegar perto e perguntar: ‘Eu tenho Mercúrio em Gêmeos e todo mundo fala que isso é muito bom. Mas, o que significa isso?’ Como é que eu posso responder? Fica parecendo que é má vontade. Mas olha bem, Beth, Mercúrio é muitas coisas e tudo depende do resto do mapa. É o seu irmão mais novo? Então, ele tem o corpo comprido, é muito falante e não pára quieto. Mas, e se o Mercúrio está na Casa 6? Então, é provável que a pessoa tenha problemas respiratórios, bronquite, asma, essas coisas. Ou tonturas. E se estiver na Casa 10? Aí, ela vai escrever profissionalmente, o que pode levála a ser jornalista, advogado, secretária, sei lá. Ou vendedor, porque Mercúrio rege o comércio. Depois, preciso saber se esse Mercúrio está sozinho ou junto com algum outro planeta. Você entende? Como é que eu posso falar de um planeta se eu não sei como ele está? Mas as pessoas acham que eu não quero falar, ou que eu não sei, ou, o que é pior, que a astrologia não diz nada mesmo, que é tudo uma bagunça”. (Renata)

Para um sistema simbólico cujos componentes adquirem forma e valor ao serem localizados em um espaço de referência, é o levantamento do mapa natal que estabiliza o posicionamento desses componentes, uns em relação aos outros. É somente o mapa natal,

54

Estamos nos valendo da contraposição ‘discurso (ou fala) X língua’ proposta por Saussure (1995:21-22).

138 portanto, que viabiliza a eficácia simbólica desse sistema, ao instituir um todo passível de significação. ∗∗∗∗∗ Na mesa redonda patrocinada pelo Planetário da Gávea, o astrônomo insistiu em refutar a concepção de céu que os astrólogos adotam, deixando claro, em sua argumentação, que essa refutação necessariamente invalidaria a tipologia astrológica, já que, para ele, essa tipologia deveria se respaldar no céu empírico. Foi daí que partimos, apoiados na análise lévi-straussiana dos sistemas mágicos e míticos, para buscarmos a coerência interna do sistema astrológico, admitindo que o pensamento astrológico manipula os astros para se significar por meio deles. Procuramos demonstrar que o sistema astrológico constitui um sistema de classificação similar ao modelo do totemismo e que sua eficácia simbólica se instaura a partir do levantamento de um mapa natal. É na leitura ritual de um mapa, ou seja, em uma consulta astrológica, que o discurso astrológico se converte em um discurso sobre o eu e sobre o mundo. A leitura de um mapa natal pode ser entendida como uma tradução intersemiótica. Para que se compreenda o que um mapa ‘quer dizer’, é preciso parafrasear os símbolos astrológicos em linguagem corrente. Isso força a passagem de valores simbólicos para um universo de referência, passagem esta que gera enunciados do tipo “Você é uma pessoa organizada e metódica, que gosta de planejar as coisas com antecedência para não ser atropelada por imprevistos”. Esses aspectos substantivos da leitura de um mapa estão ligados às pretensões de validade do discurso astrológico. Essa questão também foi abordada no evento realizado no Planetário, não pelo astrônomo, mas sim pelo outro debatedor, um biólogo, apresentado ao público como especialista em metodologia científica. Este debatedor descreveu, em linhas gerais, o que ele entendia por método científico e relatou diversos resultados de pesquisas que buscaram comprovar a hipótese astrológica, isto é, que existe uma relação entre o estado do céu no momento do nascimento e as tendências psicológicas e comportamentais dos nativos. Todos os resultados encontrados nas pesquisas por ele mencionadas ou situavam o acerto dos astrólogos na faixa do acaso ou invalidavam as deduções astrológicas. As exclamações

139 de desagrado por parte da platéia provocaram nele um desabafo irritado: “O que é isso, gente? Então, astrólogo não aceita críticas? É a crítica que faz avançar a ciência. Todo cientista trabalha sempre com a crítica, tanto a dos outros, quanto a sua. Mas, astrólogo não? Não consegue nem ouvir uma crítica?!” Em vista dos resultados negativos das pesquisas, por que, perguntou ele, as pessoas continuam acreditando na astrologia e se recusam a aceitar evidências contrárias? Ele mesmo sugeriu uma resposta: a eficácia atestada pessoalmente pelos consulentes. Segundo ele, as pessoas encerram a questão afirmando: “É, mas o problema é que a astrologia funciona mesmo. Fiz o meu mapa com Fulano e tudo que ele disse é verdade”. Ou então, “Fulano fez a minha revolução solar e as coisas aconteceram exatamente como ele previu”. Para o biólogo, esse fenômeno não se deve à eficácia do sistema astrológico, mas sim à maneira como as interpretações são apresentadas. Em sua maioria, as descrições das características pessoais são vagas e generalizantes a ponto de se ajustarem a qualquer pessoa. “Você teme, às vezes, não dar conta de algumas responsabilidades e se sente oprimido”. “Nem sempre você se sente à altura do que lhe pedem para fazer e usa de alguns subterfúgios para cumprir seus compromissos”. “As pessoas exigem demais de você e não costumam oferecer apoio quando você mais precisa”. Proposições desse tipo não costumam ser negadas por quem quer que seja. O foco de sua argumentação contra a cientificidade da astrologia residia na dificuldade de se converter o discurso astrológico em proposições que possam ser julgadas verdadeiras ou falsas pelo critério de correspondência aos fatos – o critério, segundo ele, que caracteriza o juízo científico. Mesmo admitindo-se que o ponto nevrálgico do sistema astrológico, assim como o de qualquer sistema divinatório, é o vínculo estabelecido entre o significante e o estado de coisas significado, a questão levantada pelo biólogo dificilmente pode ser discutida sem se levar em conta o contexto da consulta astrológica, onde ocorre a leitura ritual de um mapa de nascimento. É isso que examinaremos no capítulo seguinte.

Capítulo 3 – A Consulta Astrológica

No dia 20 de março de 2004, quando o Sol ingressou no signo de Áries, marcando o equinócio de outono no hemisfério sul, o Sindicato de Astrólogos do Rio de Janeiro promoveu um evento, com entrada franca, denominado ‘A Astrologia é para todos’, no Centro de Convenções do Hotel Flórida, no Catete, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Esse evento, que comemorava os quinze anos de existência do Sindicato, visava atingir um público leigo, em um esforço para divulgar a possível contribuição da astrologia para diferentes campos de saber. Em palestras curtas, abertas a perguntas, pares formados por um astrólogo e um profissional de uma determinada área expunham seus respectivos enfoques sobre uma questão comum a um auditório de cerca de 150 lugares, que se manteve repleto desde as 10 horas da manhã até as 6 horas da tarde. Em uma sala ao lado do auditório, um grupo de cinco a seis astrólogos oferecia um plantão astrológico. Ficavam à disposição do público para responder perguntas, tirar dúvidas e dar orientações. Além do já clássico debate entre Astrologia e Astronomia, que abriu a série de palestras, ainda estiverem em pauta a relação entre a Astrologia e a História, a Medicina, a Psicologia, a Administração de Empresas, a Educação e a Orientação Vocacional. Os temas, portanto, fugiram do tripé Amor-Saúde-Trabalho que Barthes (1993) aponta como o interesse predominante da clientela, voltando-se, desta vez, para as possíveis áreas de atuação profissional dos astrólogos1. Um dos objetivos do evento “A Astrologia é para Todos” me pareceu ser justamente apresentar ao grande público a oferta de bens e serviços disponíveis a eventuais interessados, visando atingir uma clientela ainda sem demanda. A maior parte do público, porém, era composta por astrólogos, estudantes e simpatizantes da astrologia, já convencidos da pertinência da astrologia para suas vidas. De modo geral, as parcerias ali formadas entre astrólogos e profissionais de outros campos do saber não suscitaram grandes discordâncias. A exceção, já prevista, seria a parceria entre Astrologia e Astronomia, e foi isso mesmo que aconteceu. À pergunta da platéia sobre como astrólogos e astrônomos poderia colaborar mais de perto, o astrônomo 1

Nas parcerias que se apresentaram neste evento, procurou-se demonstrar as possíveis contribuições da astrologia para o processo pedagógico nas escolas, para os processos terapêuticos (tanto psicológicos quanto médicos), para a orientação vocacional e a administração de empresas

141 confessou que ainda não via como isso poderia acontecer, muito embora o Planetário, na qualidade de instituição pública, estivesse aberto a qualquer interessado em observação do céu ou em palestras e cursos sobre astronomia. Um tom dissonante foi novamente ouvido na última parceria que se apresentou. A psicóloga convidada para confrontar as técnicas de orientação vocacional com a visão astrológica sobre vocação, mostrou-se desnorteada com os critérios e definições de que a astróloga se valia para enfocar o tema. Repetidas vezes afirmou que talvez estivessem falando sobre coisas diferentes, que os conceitos de que ela dispunha sobre vocação e profissão não eram aqueles que a astróloga empregava. Essa astróloga é uma das mais conhecidas na cidade, com mais de 20 anos de atuação no meio astrológico, freqüentemente entrevistada em programas de rádio e de televisão e autora de livros de grande tiragem. Em certo momento, a astróloga afirmou que, quando uma pessoa encontra sua vocação, ela fica mais feliz, mais equilibrada, mais saudável. A psicóloga interrompeu-a para perguntar se Van Gogh poderia ser citado como exemplo de alguém dedicado à sua vocação e, conseqüentemente, equilibrado, saudável e feliz. Ao que a astróloga retrucou que Van Gogh era um dos gênios da humanidade e que os astrólogos, como ela e os colegas que se encontravam na platéia, não atendem gênios. Eles só lidam com pessoas comuns. É importante salientar que todos os temas discutidos neste ciclo de palestras pressupunham o exame de um mapa astrológico, seja o de uma pessoa física ou de uma pessoa jurídica. A astrologia voltada para um público de massa, tipicamente representada pelas colunas de horóscopos publicadas nos meios de comunicação, não encontrava lugar naquelas discussões. Portanto, as ‘pessoas comuns’ a que a astróloga se referia não seriam os leitores de almanaques e colunas de horóscopos, mas sim ‘os clientes que nós atendemos’, o que implica uma consulta individualizada. O preço médio de uma consulta astrológica gira em torno do preço de uma consulta médica2. Ao final da sua palestra, essa astróloga convidou a platéia para uma semana promocional de consultas a preços populares, no valor de setenta reais. Uma política de preços que restringe o atendimento a uma classe abastada lembra uma crítica que as

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Na coleta de preços que realizei a partir das entrevistas concedidas, os preços citados variavam entre $150,00 a $280,00. Os astrólogos que confessavam preços de $50,00 a $100,00 eram aqueles que estavam começando a atender e alegavam que ainda estavam praticando.

142 terapias psicológicas já receberam. Mas, tal como na clínica psicológica, a questão não se limita aos aspectos financeiros. Ela atinge também a prática do atendimento. Analisando o atendimento psiquiátrico oferecido às classes trabalhadoras, Duarte (1985) salienta a inadequação de se transpor os parâmetros de um atendimento individualizado a pessoas individualizadas para outros segmentos sociais que não se pautam por esses princípios e valores. Conforme Duarte, esses outros segmentos sociais resistem às versões e explicações da realidade oferecidas pelos sistemas simbólicos compartilhados pelos responsáveis pelo atendimento, tais como a medicina ou a psicanálise. É possível supor que, inversamente, o segmento social que se percebe e se entende sob princípios individualizantes resistiria a absorver versões padronizadas e generalizantes, tais como as colunas de horóscopos oferecidas pelos meios de comunicação, que dificilmente poderiam ser acomodadas em seu esquema de valores. Não é extraordinário, então, que o recurso ao sistema astrológico por parte das camadas médias e altas das sociedades modernas ocorra por meio de consultas às cartas natais, as quais constituem um atendimento individualizado a pessoas individualizadas. A restrição a segmentos sociais específicos não só formata o atendimento, mas também se insere no corpo teórico da disciplina. Um rápido exame dos manuais astrológicos que existem no mercado deixa entrever o perfil dos clientes em potencial. Eles estudam, trabalham, contratam empregados, agendam compromissos sociais, interessam-se por novidades tecnológicas, fazem terapia, cultivam hobbies, namoram, casam-se, têm filhos, usufruem de atendimento médico regular, têm planos de carreira, não dispensam atividades de lazer e costumam viajar. As técnicas astrológicas descritas nesses manuais conduzem a respostas para dilemas e questionamentos que tipicamente se apresentam aos segmentos sociais que dispõem de recursos financeiros, capital cultural e mobilidade social. A demanda de plausibilidade nas interpretações astrológicas resulta em uma conformidade aos modos leigos de pensar desses segmentos sociais atendidos pelos astrólogos, segundo o conhecimento de mundo que essas pessoas utilizam em suas vidas cotidianas e do qual se valem para compreender, justificar, explicar suas próprias ações e as ações dos outros. Talvez seja esse o prisma que constrói a percepção dos clientes da astrologia como pessoas comuns. Suas trajetórias pessoais refletem os possíveis cursos de vida em um dado contexto social.

143 Vale observar que, nos tratados antigos, a referência a diferentes segmentos sociais (pobres, escravos, nobres, etc), em um contexto de pouca mobilidade social, visava exemplificar a força de atuação de uma estrela, capaz de elevar um escravo a alturas jamais sonhadas ou, pelo contrário, provocar a queda de uma figura de poder. Hoje em dia, os astrólogos relutam em admitir variações tão fortes nas trajetórias de vida, na esteira de uma ideologia que delega ao indivíduo a responsabilidade por sua biografia e, conseqüentemente, renuncia a impactantes golpes do destino. A julgar pelo comentário da palestrante, aqueles que se destacam por uma vida fora do comum não costumam fazer parte de sua clientela nem da clientela de seus colegas de profissão. Assim circunscrito, o discurso astrológico explicita, enuncia, nomeia a experiência pessoal em termos do que os discursos sociais apregoam e em termos das competências pessoais requeridas para satisfazê-los. Este é o caráter nominalista atribuído à astrologia por Barthes (1993:109), que a descreve como a literatura degradada do mundo pequeno burguês. No entanto, o paradoxo surge em virtude do sucesso alcançado pela leitura do mapa. São freqüentes os testemunhos de que a pessoa se sentiu muito bem descrita por alguém “que nunca me tinha visto antes, como é que ela podia saber aquilo tudo?!”(Sônia) A leitura ritual de um mapa de nascimento é realizada em uma consulta astrológica. A descrição de uma consulta astrológica, proposta pelo astrólogo Cid de Oliveira, se mostra perfeitamente afinada com as posições assumidas pelas pessoas com as quais convivi e é dela que vou me valer. “A consulta astrológica consiste na interpretação e explicação do tema de nascimento. A consulta é uma viagem interior muito proveitosa na direção de uma tomada de consciência dos mecanismos internos, que são a base mesma dos comportamentos. Dentro dela, a interpretação deve ser vista como uma proposta do astrólogo, que será discutida com o cliente, e não como uma resposta autoritária, fatal e acabada, imposta a ele. Na sua forma atual, a consulta astrológica, ainda incipiente e imperfeita, é cópia da consulta médica e se compõe da descrição do caráter, baseada nas posições dos astros obtidas por cálculos astronômicos, unida a um aconselhamento psicoterápico, ao qual se junta uma complicada componente

144 oracular”. (Cid de Oliveira, membro da equipe de professores do Espaço do Céu, membro do Conselho do Sinarj, publicado na revista virtual Porto do Céu) Percebe-se, então, que a consulta astrológica assume uma lógica similar à dos processos terapêuticos, propiciando o exercício da reflexividade com vistas à conscientização de padrões comportamentais que bloqueiam maneiras alternativas de ser e de agir. Na vertente psicológica do individualismo moderno, investigada por Gilberto Velho (1989, 1994, 1999), o eu se torna um projeto que demanda dedicação, empenho criativo e avaliação em bases sistemáticas. Essa auto-avaliação promove esforços de autoconhecimento que estão subordinados ao objetivo preponderante de modelar um senso de identidade satisfatório. Este senso de identidade requer: (a) uma coerência, que decorre de um mapeamento cognitivo dos diferentes domínios da vida social pelos quais o indivíduo transita, e (b) uma coesão, que deriva da integração das várias fases e passagens da vida, englobando essas descontinuidades em um todo conexo (Velho, 1985). Em prol da coerência, o indivíduo é instado a avaliar suas condições de vida, cabendo-lhe planejar um direcionamento pessoal na rede de relações sociais. Em prol da coesão, o indivíduo é levado a se perguntar, a intervalos regulares, o que está acontecendo com ele e qual o sentido do que está vivendo. Para as camadas médias urbanas, a psicologização da vida cotidiana (Velho, 1999) cria também a exigência moral da auto-realização. O desenvolvimento pessoal implica vencer bloqueios e tensões que impedem a pessoa de desvencilhar-se de um falso eu, criado a partir de sentimentos e atitudes impostos pelos outros, principalmente na infância. Assumir o verdadeiro eu torna-se assim um fenômeno moral porque se respalda na premissa de que o valor pessoal está vinculado ao que se é, e não ao que os outros nos julgam ser ou nos impelem a ser. “Sob a perspectiva de camada média intelectualizada, nada mais natural do que a idéia de que cada indivíduo tem um conjunto de potencialidades peculiar que constitui sua marca própria e que a sua história (biografia) é a atualização mais ou menos bem sucedida daquelas”. (Velho, 1999:22)

145 O desvelamento do ‘eu verdadeiro’, uma revisão do passado atrelada a um futuro antecipado, a atribuição de sentido às experiências de vida, este parece ser justamente o material de uma consulta astrológica.

3.1 A Consulta Astrológica

De modo geral, quando um postulante ao ofício de astrólogo começa a atender, seus primeiros clientes são amigos e familiares. Essas são as pessoas cujos dados de nascimento ele consegue obter com facilidade e cujas histórias de vida ele conhece relativamente bem. Servem assim, de início, como cobaias para seu aprendizado. Os primeiros atendimentos são informais e geralmente resultam de pedidos dos próprios amigos e familiares que costumam perguntar “E, aí? Você viu alguma coisa no meu mapa?”; “Que negócio é esse de Ascendente Capricórnio? Eu não sou Sagitário? O que significa isso?”; “Que desenho é esse aqui? Ah, é Netuno! Então, é isso que está emperrando minha vida? Quando é que ele vai embora?” As informações extraídas de uma interpretação do mapa costumam suscitar comentários do tipo: “Você está dizendo isso porque me conhece. Quero ver você falar sobre uma pessoa que nunca viu antes”. O primeiro atendimento de ‘uma pessoa que você nunca viu antes’ é marcado por um longo preparo que inclui consultas minuciosas aos manuais disponíveis e muitas folhas com anotações. Quase todos os que entrevistei alegam que, de início, não conseguiam examinar mais do que um ou dois mapas por mês. Muitos requerem vários dias para se prepararem, até mesmo depois de muita prática. Por isso, de modo geral, a consulta astrológica é agendada com pelo menos uma semana de antecedência. Abordar um mapa natal sem esse detalhado preparo é entrar em um ‘esquema de risco’, expressão usada por vários astrólogos, nas discussões do présimpósio de 2004. “Tem gente que diz que bate o olho no mapa e sai falando. Não pode ser assim. Isso é um tremendo esquema de risco. Acaba saindo besteira e a astrologia é que perde”. (comentário de um astrólogo na platéia, endossado e repetido por outros ao longo do debate)

146 Para poder levantar um mapa de nascimento, o astrólogo precisa saber o dia, a hora e o local de nascimento do cliente. Não é raro que um cliente de primeira viagem pergunte se é necessário dar o nome completo. Os astrólogos que me relataram isso entendem essa pergunta como uma confusão da astrologia com a numerologia3. Alguns astrólogos lidam com outros sistemas simbólicos (como a numerologia ou o tarô), além do sistema astrológico, em uma mesma consulta4. Mas, o grupo que acompanhei não aprecia essa mistura. “Tem gente que mexe com tudo, astrologia, tarô, runas, até anjos. Nem sei como eles dão conta. Eles dizem que é por causa da clientela. Que é por causa do mercado. Acabam não fazendo nenhum deles direito. A astrologia já é difícil, muito complexa. A gente não pára de estudar. Não dá para parar. Esse negócio de abraçar o mundo com as pernas não pode dar certo”. (Célia) “Eu fico muito chateada com a imagem que as pessoas fazem da astrologia, misturando-a no mesmo saco com uma porção de outras coisas. Uma vez, a Revista Veja fez uma matéria sobre astrologia e botou, na foto que ilustrava a matéria, um gnomo em cima de um computador. Não tem nada a ver. É por esses pequenos detalhes que a gente vê a confusão que existe na cabeça das pessoas que estão por fora”. (Glória) “Tem gente que pergunta ‘prá fazer a consulta com você, eu preciso tirar o sapato?’ Vê se pode! Parece até que é preciso um clima, como se eu fosse receber um santo...”. (Lúcia) A necessidade de colocar a astrologia à parte de outros sistemas divinatórios é sistematicamente reafirmada na maioria dos depoimentos colhidos. Os astrólogos que entrevistei salientam dois tipos de regularidade na clientela. O primeiro diz respeito a uma rede social derivada da divulgação boca a boca. Sônia, que

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Uma das diretoras do SINARJ me contou que, em julho de 2004, uma emissora de televisão telefonou para o sindicato pedindo alguém que se dispusesse a fazer previsões para o mês de agosto de acordo com a numerologia. A pessoa que atendeu o telefonema explicou que numerologia é diferente de astrologia, mas quem telefonava insistiu, pedindo que pelo menos o sindicato recomendasse alguém. A pessoa respondeu que não podia fazer isso, pois não conhecia nenhum numerólogo. A confusão entre os sistemas divinatórios foi entendida, por quem me contou o episódio, como desconhecimento desrespeitoso tanto da astrologia quanto da numerologia. 4 Em 2002, uma de minhas amigas se consultou com uma psicanalista e astróloga que ela conheceu no Congresso da ABA, em Gramado. A fase de vida em que ela se encontrava foi descrita em termos de trânsitos e progressões astrológicos, e ciclos extraídos da numerologia.

147 trabalha no Tribunal de Justiça, diz que atende majoritariamente funcionários da Justiça, juízes e desembargadores. “Quando meus colegas lá no Tribunal descobriram que eu fazia mapas, comecei a receber alguns pedidos, pouco de início. Depois, a coisa foi aumentando. Teve um desembargador que me disse que demorou muito a ter coragem para me pedir isso. Ele estava com medo que eu fosse sair por aí, contando coisas dele. Mas, quando ele viu que eu atendia outras pessoas e nada era comentado, foi aí que ele resolveu marcar a consulta. Fiz o atendimento na hora do almoço, na sala dele. Ele fechou a porta e, depois de ouvir um pouco, começou a falar. Conversamos bastante e acho que ele se sentiu bem, com confiança. Eu gosto de deixar a pessoa falar. Botar prá fora, sabe. Faz bem Se isso ajuda a pessoa, eu também me sinto bem”. (Sônia) Renata conta que, certa vez, atendeu uma psicanalista e recebeu, depois, uma leva de clientes terapeutas, recomendados por essa psicanalista. Um atendimento bem sucedido, no sentido de que o cliente saiu satisfeito com a consulta, costuma deflagrar outros atendimentos a partir da rede de relações desse cliente. Uma segunda regularidade na clientela, muito citada pelos astrólogos, diz respeito a uma coincidência nas ativações no mapa do próprio astrólogo e nos mapas de seus clientes. “Estou com Urano quadrado ao regente do meu Ascendente e tenho recebido um monte de clientes com Urano pra todo lado: conjunto ao Sol, cruzando o MC, oposto à Lua. Você tem uma coisa acontecendo no seu mapa e aquilo parece um imã. Vai atraindo quem está com aquilo também”. (Lúcia) Essa situação é explicada pelos astrólogos por meio do princípio junguiano da sincronicidade (Jung, 1997) e vai engrossar a polissemia na interpretação do mapa. Um trânsito forte de Urano, no mapa do astrólogo, pode também indicar que ele vai lidar diretamente com uranianos ou pessoas que estão passando por uma forte ativação de Urano em seus próprios mapas. De modo geral, os astrólogos atendem em suas próprias casas. Não são muitos os que dispõem de um consultório, especialmente reservado para atendimento.

148 Os requisitos para o local de atendimento são poucos. É preciso que seja um cômodo reservado, preferencialmente a portas fechadas, que disponha de uma mesa onde possa ser colocado o mapa e, via de regra, um gravador. O uso de um gravador nos atendimentos é bastante freqüente. A consulta é inteiramente gravada e o cliente leva a fita com ele. Alguns dos astrólogos entrevistados gostam que a consulta seja gravada por medida de segurança. Eles comentam que é muito comum o cliente dizer que o astrólogo afirmou algo que o astrólogo nega e, por isso, a fita funciona como prova documental, para evitar mal entendidos. Porém, para a maioria dos astrólogos, esse recurso se justifica pela quantidade de informações que o cliente precisa assimilar. Tendo tudo gravado, ele volta e meia escuta a fita de novo e vai ‘compreendendo melhor’ o que foi dito. Dentre os poucos contatos que tive com clientes que não se envolvem no estudo da astrologia, um deles (diretor de uma empresa aérea, casado, sem filhos, 48 anos) me contou que guarda a fita da Revolução Solar (que ele faz todos os anos, há cerca de 8 anos) no porta-luvas do carro. Volta e meia, quando fica preso em um engarrafamento, ele a escuta. Diz ele que sempre percebe uma coisa nova, alguma coisa que não tinha entendido direito, mas que, a partir do que já foi acontecendo durante o ano, ele se dá conta do que significa. Quando Vilhena (1997) analisa as práticas leitoras em sociedade, ele salienta que a avaliação do impacto social da escrita não pode prescindir de uma avaliação correlata do ato de leitura. A escrita e a leitura não podem ser equacionadas a um processo mecânico de codificação e decodificação sem a interferência do contexto no qual ambas ocorrem. O fato de que a leitura seja realizada solitariamente, ou em voz alta, diante de um grupo de pessoas convoca os aspectos extra-textuais que interferem na produção de sentido. Quanto à gravação da consulta astrológica, a questão que nos interessa no momento não é tanto estabelecer como a gravação registra a consulta, mas sim o que ocorre no ato de ouvir. Vilhena (1997:109) comenta que a ambigüidade é uma das características de uma obra literária, principalmente na modernidade, permitindo múltiplas interpretações. Assim como a obra literária se abre a uma leitura interminável, submetida a diferentes sistemas de significação, a prática de ouvir e re-ouvir a gravação de uma consulta se configura como uma escuta interminável. Isso implica que o material desta gravação não é compreendido nem aceito, pelos clientes, como um acervo de dados informativos os quais, uma vez

149 conhecidos, se limitariam a fazer da gravação um auxiliar da memória. Trata-se bem mais de um material que supõe contínuas exegeses. A leitura ritual do mapa de nascimento está longe de se cristalizar em uma versão ‘original’, materializada e preservada idealmente por meio da fita de gravação. As constantes escutas não ocorrem sem acomodações. Por outro lado, o caráter de confidencialidade da consulta fica comprometido com a existência da fita gravada. Fiquei sabendo de dois incidentes desagradáveis relacionados à escuta da gravação. Uma aluna da escola Espaço do Céu me contou que tinha convencido o marido a fazer uma consulta com uma das astrólogas mais reputadas dentre as que costumam se apresentar em eventos públicos. Ele voltou da consulta sem comentar o que havia sido dito, mas confessou que adorou a experiência. Tempos depois, ela encontrou a fita gravada em uma gaveta, escutou-a e descobriu que o marido havia tido um caso com uma colega de trabalho (que já terminara, ao que parece). Mas, o que mais a incomodou, segundo ela, foi ter ouvido a voz da astróloga afirmando que “é muito bom você conseguir essas escapadas de vez em quando porque estou vendo aqui no mapa que sua vida de casado é muito chata”. Pelo que entendi, ela jamais contou ao marido que ouvira a fita, mas “fiquei com horror dessa astróloga. Nunca mais quero nada com ela ’. O outro incidente envolveu uma astróloga que eu não cheguei a conhecer. Durante uma conversa no intervalo entre duas aulas, a turma comentava sobre “a Fulana, você não conhece? Ela andou perdendo muitos clientes. Também pudera! Outro dia, o marido de uma cliente foi atrás dela, acho até que queria bater nela. Tudo porque ele ouviu a fita, onde ela recomendava à mulher que se separasse dele. Foi um Deus nos acuda! Mas ela é assim mesmo. Não quer nem saber. Diz logo o que acha, vai dizendo às pessoas o que devem fazer. Não é brincadeira, não. Já teve muitos clientes, mas hoje quase não tem mais. A turma foi ficando apavorada”. Uma consulta dura cerca de uma hora e meia a duas horas. Há astrólogos que suportam uma consulta de até quatro horas de duração, mas esse não é o padrão. Os que oferecem uma consulta assim tão prolongada contam que sentem dificuldades para encerrar o encontro. “É difícil, para mim, dar a entender que a consulta acabou. A pessoa fica falando, falando, contando seus problemas, suas preocupações, e eu não consigo cortar. Acho que esta é uma ajuda que eu posso dar. A pessoa tem um certo alívio quando ela pode falar

150 sobre o que a incomoda. Mas reconheço que é uma dificuldade minha. Eu devia fazer como os outros astrólogos, que marcam uma hora e pronto. Mas não consigo.” (Sônia) “Tem cliente que eu tenho praticamente que expulsar do meu consultório depois de três horas. Não quer sair”. (Célia) Apesar disso, alguns dos astrólogos entrevistados acreditam que o modelo da consulta astrológica, tal como ela funciona hoje em dia, não é adequado para a ajuda efetiva que a astrologia pode dar. “É impossível, numa consulta de uma hora, dar conta daquilo que uma leitura de mapa pode oferecer ao cliente. Talvez o ideal seja aquilo que o Cid falou no pré-simpósio: ter, no mínimo, seis sessões, ou, então, uma sessão a cada dois meses. Ir aos poucos, deixar a pessoa absorver as informações antes de continuar. Despejar um monte de coisas de uma só vez está longe de ser o ideal”. (Glória) Fiquei sabendo de um atendimento repartido em várias sessões. Uma de minhas amigas freqüenta um centro espírita em Botafogo. Em fins de 2004, sua mãe encontrava-se em estado precário de saúde, exigindo extremos cuidados, e ela procurou um médium lá no centro, buscando uma orientação sobre o estado da mãe. Ao contrário do que ela esperava, o médium pediu que ela fizesse uma leitura cármica de seu próprio mapa, pois, afinal de contas, era ela a responsável pelos cuidados com a mãe. Foi-lhe recomendada uma astróloga cármica. Logo depois da consulta, ela me procurou para dizer que ficou ‘impressionada’. As cargas e atribuições que ela tem enfrentado nessa vida foram todas bem descritas pela astróloga. O combinado era que ela levaria o mapa, com a devida interpretação, para o médium. A entidade que este médium recebe discutiu com ela diversos aspectos do mapa em várias sessões semanais. Cada sessão abordava um tema relacionado com alguma pessoa importante de sua vida (irmão, pai e mãe, marido, filhos, etc). Ela me contou que toda vez que ela tentava estender o assunto que estava sendo discutido, a entidade se recusava a fugir do tema enfocado na sessão e lhe dizia que isso seria conversado em uma sessão posterior. Foram, ao todo, quatro sessões de consulta. A escola de astrologia que freqüentei não costuma oferecer diretrizes para o atendimento a não ser quanto aos aspectos substantivos do discurso astrológico. “Não se pode tomar a decisão pelo cliente, ele é quem deve agir. O nosso trabalho é só de orientação. Você não deve dizer: ‘olha, não faça isso, ou não aceite esse emprego.

151 O máximo que você pode dizer é olha, se você for para São Paulo, é possível que seja uma mudança difícil, que você enfrente isso e aquilo, mas é só. Ele é quem decide”. (Denise) Há também uma recomendação sistemática no sentido de não se usar o ‘astrologuês’. “Não adianta ficar falando Saturno conjunto a Vênus, ou Plutão em trânsito sobre Marte, coisas assim. O cliente não entende e não tem obrigação de entender. Isso só deixa as coisas confusas e ele acaba não tirando nenhum benefício da consulta. Tem astrólogo que fala o tempo todo em astrologuês para dar impressão de muito conhecimento. Tem que deixar as coisas claras para o cliente. Falar com ele numa linguagem que ele entenda”. (Célia) Porém, o trato com o cliente em uma situação de intimidade, capaz de gerar vínculos de apego e dependência não é abordado. Fica entregue ao bom senso de cada um. No grupo de supervisão que freqüentei, as astrólogas reclamavam dos clientes que as procuram repetidamente, que telefonam perguntando detalhes sobre situações específicas que ocorrem ao longo do ano. “Eu escuto um pouco e depois tento cortar. Sugiro que ele escute a fita de novo porque o que eu tinha para dizer eu já disse. Consulta não é terapia. Isso é preciso deixar bem claro. Quando o cliente fica muito ansioso, me procurando sempre, não dá para continuar”. (Heloísa) Esse grupo também comentou que é comum o cliente deturpar um pouco as informações prestadas pelo astrólogo. Foram contados vários casos de telefonemas de clientes, tempos depois da consulta, para agradecer uma orientação dada e confirmar um prognóstico bem sucedido. “Olha, você acertou em cheio. Consegui o emprego em novembro, exatamente quando você disse que eu conseguiria”. E a astróloga me dizia: “Só que eu não tinha falado nada disso. Se eu falei em novembro, deve ter sido uma coisa do tipo ‘lá para o final do ano, esse período tenso vai se desanuviar, coisas assim. Eu jamais afirmaria uma coisa tão taxativa assim: você vai conseguir o emprego em novembro. Não sei de onde ele tirou isso, mas só respondi ‘ah, que bom, fico feliz por você”. (Heloísa)

152 Comentários desse tipo me foram relatados por quase todos os astrólogos que entrevistei. “A gente não sabe como aquilo que a gente diz vai bater no cliente. Tem o que você diz e o que ele entende. São duas coisas diferentes. E depois ele te procura e diz que você acertou, e só aí você percebe que ele entendeu tudo do jeito dele. É incrível!” (Sônia) Verifica-se então uma contradição muito interessante. Aquilo que os astrólogos se mostram mais relutantes em fazer – uma previsão objetiva, factual, precisa – acaba sendo o resíduo da consulta astrológica. Se é isso que o cliente busca, é isso que ele encontra, nem que seja por seus próprios méritos. Para os astrólogos, porém, o valor da consulta astrológica está bem menos em solucionar problemas particulares e muito mais em contribuir para a compreensão geral do mundo, enriquecendo a experiência e a personalidade. “É importante você não deixar o cliente conduzir a consulta. Se não, ele vai tentar te obrigar a resolver o problema dele”. (Beatriz) “A questão não é se ele deve aceitar o emprego em Furnas ou na Petrobrás. Essa é uma questão pequena. O mais importante é que ele compreenda quais são os valores envolvidos nessa decisão. Se é questão de status, pressão familiar, interesses específicos, dinheiro. O que o mobiliza. Traçar um quadro maior daquilo que ele deseja”. (Glória) Para a maioria dos astrólogos entrevistados, a função principal do astrólogo é ampliadora – cabe a ele apresentar ao cliente questões mais abrangentes do que o próprio cliente está se colocando, ‘abrir horizontes’ (para usar uma expressão que ouvi repetidamente). A orientação astrológica se converte na melhor opinião sobre um problema imediato justamente porque insere o problema em seu justo lugar, dentro de um panorama mais vasto. Mostrar a situação sob uma nova luz, reduzir a ansiedade do cliente, tirar o foco do problema que o aflige e alargar o leque de alternativas são as diretrizes para o papel do astrólogo mais citadas pelos entrevistados. “Se o trabalho do astrólogo é simbólico, o papel da gente é fazer com que o cliente se afaste e veja tudo numa perspectiva mais ampla, perceba oportunidades que ele não tinha visto antes por estar muito preso ao problema dele. A gente tem que dizer ‘olha, lembre de uma situação parecida que você já tenha vivido antes. Veja como você resolveu,

153 sobreviveu e ficou mais maduro’ É assim que a gente pode ajudar. Qualquer profissional que trabalhe com o simbólico pode ajudar – astrólogo, psicólogo. Muitas vezes, o problema dele não é bem o problema que ele pensa que tem, mas a maneira como ele está se colocando o problema”. (Denise) Ajudar a pessoa a conscientizar-se de padrões de comportamento ineficazes e contribuir para uma mudança de atitudes também é mencionado com freqüência. “Às vezes a gente tem que ser desagradável e botar um espelho na frente da pessoa. Ela fica repetindo comportamentos que não dão certo e, depois, reclama que a vida é difícil”.(Marília) No reverso das críticas mais fortemente explicitadas, é possível perceber um modelo idealizado do intérprete de um mapa natal. Este deve exibir: -simplicidade, evitando o jargão técnico da astrologia; -praticidade, auxiliando o cliente a avaliar as alternativas que se lhe apresentam; - bom senso e prudência, apresentando os temas desenvolvidos na consulta sem alarmar o cliente e sem sobrecarregar a astrologia com mais do que ela pode oferecer. Esse último ponto foi bastante enfatizado por alguns astrólogos, que procuram deixar bem claro que o mapa não revela TUDO sobre o nativo. Durante o debate sobre a regulamentação da profissão, no pré-simpósio de 2004, Cid de Oliveira (membro do Conselho do Sinarj e professor do espaço do Céu) argumentou: “Para começar, o mapa sequer diz se é uma pessoa. Pode ser um evento, uma pergunta, um cachorro. E, se for mesmo uma pessoa, o mapa não diz se é homem ou mulher, se tem bom caráter ou não, nem qual o seu nível de conscientização. A gente tem que parar com esse negócio de achar que a astrologia pode mais do que ela realmente pode. É preciso estipular os limites dessa ciência”. Esse aparte foi recebido com simpatia pela platéia. Várias pessoas assentiram com a cabeça e Maria Eugênia Castro, vice-presidente do SINARJ para o mandato que se iniciou em 2005, tomou o microfone para confirmar:

154 “É isso mesmo. Tem cliente que chega e pede para eu dizer tudo que vai acontecer com ele nos próximos anos. E aí eu pergunto: ‘Olha aqui, você tem certeza que marcou consulta com uma astróloga ou com Deus?’”. Mesmo que o astrólogo acredite ser o melhor juiz do que deve ser abordado em uma consulta, ele precisa ceder às perguntas feitas pelo cliente. As mais temidas são aquelas que exigem uma marcação fechada de tempo (“me diz aí quando é que eu vou me casar”) ou uma marcação fechada de potencialidades (“então, quer dizer que eu nunca vou ficar rico?”). Denise me contou que recebeu, certa vez, um cliente, dono de postos de gasolina, que veio confirmar uma previsão feita há mais de 15 anos por uma astróloga com a qual ele perdeu o contato. Quando ele fez o seu mapa naquela ocasião, a astróloga tinha afirmado que ele iria enriquecer por volta dos 50 anos de idade. Como ele tinha acabado de completar 49 anos, ele queria saber se isso era mesmo verdade, porque ele estava deliberando sobre uma mudança nos negócios. Ou expandiria a cadeia de postos de gasolina ou reassumiria uma função executiva numa distribuidora para a qual tinha sido convidado. Devolver a decisão para o cliente é tarefa árdua. “Até parece que o mapa é uma bola de cristal. (O cliente) fica ali perguntado:’diz aí o que você está vendo. Eu devo fazer isso ou aquilo?’. Como assim, o que eu estou vendo? Não é bola de cristal, não. São indicações, que servem de orientação. Mas a decisão não é minha, é dele. Depois, esse negócio de você vai ficar rico aos 50 anos, que negócio é esse? Tem gente que diz, ‘ah, você vai se casar depois dos 30 anos’. E diz isso quando a pessoa tem 22 anos. Joga pra frente, você entende. Porque aí não tem mais nada a ver com ela. Até lá, muita água já rolou debaixo da ponte e o astrólogo acha que não vai ser cobrado. O astrólogo, não. Mas, a astrologia, sim. Porque o cliente lembra. Aquilo, na vida dele, é importante. Ele lembra. E vai atrás da previsão”. Mariana é mais incisiva: “A astrologia não pode responder nenhuma pergunta sobre o que se deve fazer. Devo me mudar para São Paulo ou ficar aqui? Devo me casar com Fulano ou não? Devo aceitar esse emprego ou aquele outro? Nada disso a gente pode responder. Os ‘devos ou não devos’ não são da alçada da astrologia. Tem a ver com valores, ética, objetivos de

155 vida, essas coisas. E isso não é determinação astrológica. É determinação moral. O cliente tem que decidir por si.” Então, de que maneira se pode aproveitar a orientação astrológica? Célia me dá um exemplo: “Uma das minhas clientes se divorciou e, na partilha, insistiu em ficar com a casa. Urano estava passando por ali e eu sabia que ela teria que abrir mão daquilo. A casa era enorme, super dispendiosa, ela não teria como arcar com a manutenção, mas ela criou o maior caso. Quando o aspecto de Urano se completou, ela foi transferida para Brasília, teve que se desfazer da casa de uma hora para outra, cedeu ao marido pela quantia que ele ofereceu. Acabou fazendo um péssimo negócio, ficando com bem menos do que poderia para montar um apartamento em Brasília. A gente avisa, olha, é melhor você pensar melhor... Urano pede desapego, decisões mais racionais do que emocionais. Urano também mostra que a situação vai se transformar rapidamente, de maneira inesperada. Mas, nem sempre adianta. É um conselho. O cliente pode aceitá-lo ou não. Porque sempre o mapa se cumpre. Pode ser de um jeito que dá para a gente agüentar bem, se prevenir, ou pode ser aos trancos. Mas o mapa se cumpre”. Portanto, percebe-se também a construção de um modelo idealizado de cliente. O cliente ideal parece ser aquele aberto a novos enfoques, empenhado em tomar consciência de si e de sua maneira de agir e, o mais importante, disposto a tomar a si a responsabilidade pelo curso da ação. “Eu disse a eles (os sócios da empresa) quando examinei os mapas dos candidatos a gerente da loja. Esse aqui tem Plutão pra todo lado. Se ele entrar, vai entrar pesado. E foi esse que eles escolheram. E entrou pesado mesmo. Trocou funcionários de cargo, demitiu gente, mudou toda a maneira de administrar a loja. E parece que deu certo. A firma precisava mesmo de uma reestruturação. Mas, foram eles que escolheram esse gerente. Você pode ajudar, mas o cliente é quem tem que decidir”. (Célia) A valorização da responsabilidade pessoal vem acompanhada de ênfase semelhante em esforço, reflexão, disciplina e, daí, ações bem sucedidas. Embora esse composto de empenho e mérito possa ser remetido ao projeto de auto-aprimoramento tipicamente encontrado nas camadas médias urbanas (Velho, 1985), o grupo pesquisado faz uso de uma

156 expressão peculiar que empresta a esse auto-aprimoramento uma inflexão particular. O nativo tem que “fazer o planeta”.

3.2 Fazer um planeta A expressão ‘fazer um planeta’ é ouvida com freqüência: “Ela não está fazendo o Saturno dela”; “Para saber o que pode acontecer, é preciso ver como ela faz esse Netuno”; “Não adianta ficar fugindo dessas situações porque, mais cedo ou mais tarde, ele vai ter que fazer esse Sol/Plutão”. Fazer um planeta parece ter duas vertentes: a) assumir o planeta como ‘seu’ e não apenas como significador de outras figuras em sua vida (como o pai, a mãe, o cônjuge); b) assumir de bom grado as demandas típicas do planeta, transformando o obrigatório em desejável, para usarmos uma expressão durkheimiana. Quando um cliente não está fazendo um planeta, isso pode implicar que ele o está delegando a outra pessoa, ‘projetando-o’ no outro, conforme a expressão mais usada pelos meus informantes. “Ela está projetando esse Sol em Leão no marido. É ele o bem sucedido, é ele que ocupa sempre o centro do palco, e ela fica ali, de platéia, fazendo a vida dela girar em torno dele. Mais cedo ou mais tarde, ela vai ter que fazer esse Sol, vai ter que brilhar por conta própria”. (Lúcia) No mapa de nascimento, os planetas indicam inclinações e aptidões pessoais, funcionando como uma tipologia de traços de personalidade. O corpus astrológico se torna uma psicologia, que admite uma linha tênue e maleável entre o inato e o adquirido. Graças à justaposição de códigos, os planetas também encarnam figuras sociais (os pais, os irmãos, o chefe no trabalho, os amigos, etc) e, assim, transitam livremente entre uma gama de atitudes pessoais e uma rede de relações sociais. É nesse sentido que os modos-de-ser do nativo incluem suas relações com o mundo. “Uma vez, a Revolução Solar dessa minha cliente tinha o Sol na Casa 8, muito tensionado, e eu achei melhor alertar sobre algum problema com o marido dela. Dez dias depois, o problema apareceu. Foi descoberto um roubo na empresa do marido, parece que sério. E aí o marido veio me procurar, querendo saber como é que eu podia ter visto isso

157 no mapa dela. É porque afeta ela. Como ela não trabalha, e depende inteiramente dele, eu acho que o marido é quem faz aquele Sol dela”. (Célia) Pode-se admitir, no pensamento astrológico, uma ambigüidade com relação à definição de fronteiras entre o eu e o outro. As figuras representadas no meu mapa são o meu pai, o meu irmão, o meu marido, o meu inimigo, e assim por diante. Como tal, elas só adquirem sentido e valor em função de sua relação comigo, o nativo. Em um sentido, ser meu é a maneira pela qual supero a cisão que me separa do mundo, apropriando-me dele, internalizando-o. Nesse caso, ser de constrói uma noção de estado-do-ser, decorrente do contexto de vida (Ela não trabalha e depende inteiramente desse marido, então, ele é o Sol dela). Em sentido inverso, ser meu configura a maneira pela qual eu me defino, me separando daquilo que não sou. Esse Sol é o marido dela, logo, não é ela. Nesse caso, ser de constrói uma noção de alteridade, que mantém, contudo, um caráter intrinsecamente relacional. Fazer um planeta, nessa primeira vertente, implica transpor essa alteridade, sem, contudo, neutralizá-la. Cada planeta permanece sendo o outro, embora um outro que pode ser transformado no mesmo, se assumido como constitutivo, ou seja, quando é feito. Numa segunda vertente, fazer um planeta está ligado à justaposição de um terceiro código por sobre o código psicológico das aptidões pessoais e o código sociológico das figuras representadas. Em função desse terceiro código, detecta-se nos planetas uma significação moral, entendendo-os como virtudes ou vícios. O corpus astrológico se torna uma filosofia e uma ética, de caráter normativo. Na consulta astrológica, ajudar um cliente a fazer um planeta implica descortinar um panorama das boas qualidades oferecidas pelo planeta – os seus dons - e persuadir o cliente de que ele possui essas qualidades sob a forma de aptidões. “É preciso re-identificar o sujeito o tempo todo, lembrá-lo das potencialidades dele. Olha, você tem essa qualidade, você tem essa capacidade, você pode isso, você sabe fazer isso. Trazer o sujeito para a riqueza dele”. (Tereza) Por outro lado, cabe também alertar o cliente de que, caso ele não as incorpore como dons, as qualidades do planeta podem funcionar como que à deriva, transformando-se em obstáculos. Em um mapa de nascimento, por exemplo, um Netuno bem feito pode

158 oferecer uma sensibilidade refinada, dada às artes e à imaginação, e uma postura idealista e compassiva. Entretanto, um Netuno mal feito pode implicar um comportamento altamente influenciável, mentalmente confuso, emocionalmente dependente, facilmente dado a vícios, como as drogas e o álcool. As condições para se fazer um planeta dependem sempre do domínio de significações daquele planeta. “Eu tenho uma cliente com Saturno de 105 que vive reclamando do chefe, do trabalho, da inveja dos colegas, não consegue as promoções que ela acha que merece, essas coisas. Enquanto ela não entender que precisa fazer aquele Saturno e se dedicar ao trabalho com o esforço que ele exige, vai continuar reclamando à toa. Vai ficar para trás mesmo. Mas, é difícil fazer as pessoas entenderem Eu não gosto de ser grosseira, criticar as pessoas, não acho que isso ajude muito. Mas, dá vontade de dizer: olha, eu posso imaginar que você não cumpre os prazos, dá sempre uma desculpa para explicar porque não deu conta do que te pediram, falta muito ou chega atrasada, e depois vem reclamar da falta de reconhecimento. Porque Saturno ali, na 10, exige muito, dá uma carga pesada de obrigações. Se a pessoa se recusa a fazer esse Saturno, então não vai sair dali do chão. Esquece esse negócio de subir a montanha. Vai ficar no chão mesmo”. (Marília) Se Saturno implica responsabilidade, disciplina e esforço, deixar de fazer Saturno, isto é, esperar que as coisas venham sem esforço ou deixar tudo para a última hora, aciona o lado vicioso de Saturno, sua espécie de mão esquerda. E o nativo vê-se diante dos impeditivos tipicamente saturninos: atrasos, demoras, carência de recursos, falta de reconhecimento. Logo, os modos pelos quais um planeta se manifesta podem ser modulados por causas internas, dentre as quais a conscientização é a mais relevante, pois libera o nativo para contribuir voluntariamente para um delineamento específico do determinismo presente na astrologia. A orientação astrológica se pauta na sistematização das múltiplas variedades pelas quais um planeta pode se manifestar, com vistas ao exercício de uma vontade aliada ao entendimento. Um dos efeitos da consulta astrológica é, portanto, fazer do mapa natal não só um modelo da pessoa, mas, também, um modelo para a pessoa, no sentido de Geertz (1989:107). Na qualidade de modelo da pessoa, o mapa funciona como uma topografia da 5

A Casa 10 está associada à profissão do nativo.

159 interioridade, que circunscreve as múltiplas facetas do nativo, integrando-as em um todo consistente. Quando, porém, o mapa de nascimento é encarado como um modelo para a pessoa, salienta-se as atitudes que tirariam melhor proveito de uma sobredeterminação multifacetada. Ao descrever as características dos signos, a astróloga Márcia Mattos6, uma palestrante assídua nos eventos públicos, que costuma lotar o auditório para suas palestras, associa o trânsito do Sol por um signo como uma oportunidade para toda as pessoas exibirem as atitudes valorizadas deste signo que o Sol atravessa. Segundo ela, os taurinos se dedicam a realizações concretas, sólidas e acabam alcançando tudo que pretendem através de uma invejável e determinada paciência. Portanto, quando o Sol atravessa o signo de Touro (no período entre 21 de abril e 21 de maio), ela sugere que todos, taurinos ou não, aproveitem a faceta taurina do poder solar e recomenda: não abandone nenhum projeto, tenha paciência, seja prático. Já no período entre 21 de maio e 21 de junho, quando o Sol atravessa o signo de Gêmeos, todos devem trocar idéias com os outros, fazer contatos, interessar-se por mil coisas, e assim por diante, na esteira das qualidades geminianas. Essa espécie de catálogo das atitudes astrologicamente corretas oferece um esquema de perfectibilidade da conduta humana pela via da integração das múltiplas qualidades encarnadas pelos planetas na sua errância pelo Zodíaco. Cabe aqui uma observação. Embora a metáfora e a metonímia constituam os tropos fundamentais da retórica astrológica, a ironia, como tropo que implica o oposto do que parece dizer, desempenha também um papel relevante. No aspecto que estamos discutindo, a ironia reside em que, ao remeter à totalidade, a retórica astrológica se contradiz e afirma, simultaneamente, que o mapa de nascimento é apenas uma parte de um todo recortado. E a perfectibilidade, caso a caso, passa a depender da detecção das qualidades específicas que o mapa oferece, de modo que, eventualmente, o modelo da pessoa e o modelo para a pessoa coincidam. Em vista disso, a leitura astrológica se pauta no campo das experiências de vida, que tende a demarcar comportamentos coadunados com facetas pessoais. O comportamento adequado é avaliado à luz das predisposições individuais que se encontram sedimentadas e tornam a pessoa mais propensa a certo tipo de conduta e não a outra. Em termos de regras 6

Em apostila disponibilizada no site www.marciamattos.com.br.

160 prescritivas da ação, a fidelidade a si constitui a norma primordial de conduta. Modulada por uma ideologia individualista, que enfatiza a singularidade e, como corolário, a autenticidade, a orientação astrológica propõe ao cliente balizar seu modo de ser e de agir conforme a sua natureza específica. “Na nossa sociedade machista, fica difícil para um homem com uma Vênus forte mostrar uma grande sensibilidade para os relacionamentos. Geralmente, ele prefere fingir que tem um Marte forte e isso quase nunca dá certo. Tem muito pisciano também que se força a ser virginiano. E ficam travados. Mas, quando você entende e está disposto a assumir o seu mapa, parece que a vida deslancha. A astrologia ajuda você a entrar em contato com você mesmo”.(Eliane) José Reginaldo Gonçalves (2001:15/16) chama atenção para a categoria da ‘autenticidade’ no pensamento moderno. Em contextos onde predominam as concepções individualistas de self, a noção de autenticidade diz respeito a como o self ‘realmente é’, independentemente dos papéis sociais desempenhados ou da maneira como nos apresentamos aos outros. Se o protótipo do homem moderno é o indivíduo capaz de emancipar-se de constrições externas e assumir um controle autoral na construção de si, a autenticidade passa a constituir a forma de expressão deste self definido como uma unidade livre e autônoma em relação ao todo social7. Contudo, essa espécie de legitimação do eu não é o único fator que responde por uma leitura do mapa natal que o cliente considere bem sucedida. Embora o reconhecimento de si possa contribuir para dissolver um mal estar, muitas vezes silenciado, tributário de injunções morais sobre como a pessoa deveria ser, este não me parece o único viés que costura o alívio experimentado. Na maioria dos depoimentos colhidos, o primeiro recurso a uma consulta astrológica me foi associado a uma situação de crise pessoal. De modo geral, a pessoa dava sinais de ter experimentado alívio ao tomar conhecimento de que, por pior que tenha sido a experiência vivida, ela estava, de certa forma, incluída em sua vida. A concepção astrológica materializa o mundo da experiência, encarnando-o em acontecimentos factuais e objetivos (a perda do pai na infância, um divórcio, uma cardiopatia precoce, a dificuldade

7

Para uma discussão mais pormenorizada da noção individualista de self, ver Dumont (2000); Lipovetsky (1989); Renault (1998); Taylor (1997).

161 para engravidar, etc), em personagens bem desenhados (os pais, os irmãos, o cônjuge, os amigos e aliados, os inimigos) e em áreas de atividades discriminadas e diversificadas (a vida familiar, a vida profissional, as viagens e o lazer). Parte do alívio parece decorrer de uma afirmação do mundo, erigindo uma concretude que suaviza o esforço daqueles que são levados a assumir a responsabilidade por suas trajetórias de vida. A consulta astrológica oferece meios e procedimentos pelos quais o desenrolar da vida pode ser pensado, construindo um modelo inteligível, em seus próprios termos, das trajetórias de vida.

3.3 Uma retórica da crise

Nos tratados astrológicos clássicos, a vida e a morte ocupavam o primeiro plano das interpretações astrológicas. O recém-nascido vingará? Essa era a primeira questão a ser observada e, caso houvesse promessa de vida, seguia-se imediatamente a verificação da sua duração, por meio de cálculos elaborados e regras minuciosas. Hoje em dia, a morte não mais se impõe como um tema a ser investigado8, mas parece ter sido ressignificada como crise. Esta é concebida, pelos próprios astrólogos, como pontos de ruptura e descontinuidades na vida do nativo, quando aquilo que se tornou obsoleto precisa ‘morrer’ para ceder lugar ao novo (um novo emprego, um novo casamento, ou novos comportamentos)9.

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No grupo de estudos sobre os autores da Antiguidade, na escola Espaço do Céu, o tema da duração da vida foi investigado durante quase seis meses, por sugestão da coordenadora do grupo. Muito se discutiu, na ocasião, sobre a conveniência de se aprofundar esse tema e muitas das minhas colegas relutaram em enveredar por essa questão. Os comentários mais comuns eram “Ah, não sei não, acho isso esquisito, esse negócio de ficar vendo quando a pessoa vai morrer”; “Sei lá, já imaginou se eu vejo isso no mapa de alguém? Não vou nem ter coragem de olhar”. Finalmente, o grupo se deixou convencer, principalmente pela relevância que os tratados antigos concediam às técnicas elaboradas nesse sentido. Cerca de um mês depois, as relutâncias desapareceram e o assunto foi acompanhado com atenção. O tema foi abandonado em junho de 2005, quando o segundo grupo que funcionava naquela escola decidiu juntar-se ao nosso e, como o assunto era complexo e as novas integrantes precisariam de tempo considerável para chegarem ao ponto onde o nosso grupo estava, foi decidido, em comum acordo, abordar um novo tema. O grupo optou pelo estudo da Lua no nascimento, no terceiro dia e no quadragésimo dia após o nascimento, posições lunares extremamente relevantes segundo os tratados clássicos. 9 A Casa 8, tradicionalmente associada à morte, costuma ser descrita, nos manuais contemporâneos, como a casa das crises e dos renascimentos.

162 Durante o evento Astrologia é para todos’, realizado no Hotel Florida em março de 2004, uma das apresentações enfocou exatamente as experiências de vida que se configuram como descontinuidades. Na parceria entre a Astrologia e a Psicologia, a Psicologia foi representada por um psicanalista que admitiu observar, ele mesmo, os mapas de seus clientes, e não ofereceu grandes obstáculos à colaboração entre astrólogos e terapeutas. Este psicanalista já conhecia bem o astrólogo que participou do debate, engenheiro de formação, e que foi seu professor de astrologia. A disposição do psicanalista em admitir que a contribuição da astrologia para o seu campo de atuação profissional era bem aceita, e até valiosa, culminou na descrição de seus próprios méritos como astrólogo. Apresentou-se como um especialista em trânsitos diários “até porque, quando a gente tem um paciente que vai ao consultório quatro a cinco vezes por semana, a gente consegue muito bem acompanhar detalhadamente cada trânsito por que ele passa”. A bem dizer, essa foi a única parceria, naquele evento, em que não ficou muito claro quem era o astrólogo e quem era de outra área. O único ponto de confronto apontado entre os dois saberes – a psicanálise e a astrologia - foi ilustrado por um episódio que rendeu ao psicanalista um grande dilema, segundo seu próprio depoimento. Uma paciente lhe confessou que estava decidida a engravidar. Examinando o mapa desta paciente, ele percebeu uma série de indícios que desaconselhavam uma gravidez naquele momento, ou, em suas palavras, “nunca vi tanta coisa ruim assim em cima da casa 5”10. Dividido entre contar a ela o que previa e deixar as coisas se encaminharem como ela planejava, ele acabou se curvando ao peso da evidência astrológica e recomendou à paciente que procurasse um astrólogo profissional, pois os indícios não eram favoráveis. Resultado: perdeu a paciente, não sem antes ouvi-la dizer “eu escolhi você como meu analista porque vi você fazer uma conferência uma vez e achei você brilhante. Agora estou vendo que me enganei e acho você uma mula”. Um ano depois, ela voltou e lhe perguntou: “você sabe porque eu voltei?” Ao que ele respondeu: “quem sabe é porque você quer voltar a se consultar comigo, pois, afinal de contas, o trabalho que estávamos desenvolvendo ia bem”. Ela discordou: “Não. Vim lhe 10

A Casa 5 é tida como o setor do mapa natal que está relacionado à gravidez e aos filhos.

163 perguntar se posso ter filhos agora. Eu engravidei no ano passado e perdi o bebê. O médico demorou a perceber que ele tinha morrido e, por conta dessa demora, tive uma infecção no útero muito séria. Quero que você me diga se agora eu posso ter filhos”. Pelo visto, a paciente não voltara em busca do terapeuta, mas sim do astrólogo que acertara a previsão. Esse relato não destoa dos depoimentos que colhi no grupo pesquisado. São diversos os testemunhos de que o primeiro recurso a uma consulta astrológica ocorreu por ocasião de uma situação de crise. Diante de um insucesso, a pessoa consegue eximir-se da culpa e, tal como a paciente do psicanalista, remete o acontecimento concreto a um outro plano de potência. É importante observar que esse plano de potência não é acessado via prece (Mauss, 2001). A sociabilidade presumida entre o homem e o céu não passa pela interlocução nem pela interpelação, mas sim pela tradução. Recorrer a um astrólogo como tradutor e intérprete desse outro plano de potência justifica-se como evocação. Pede-se um sinal (quero saber se agora posso ter filhos) para encontrar um ponto de apoio seguro e escapar à tensão da desorientação, da incerteza e/ou da auto-culpabilização. Grande parte da eficácia da leitura astrológica reside na explicitação e nomeação daquilo que permanecia anômalo na experiência pessoal, por resultar da incongruência entre os modos promulgados de estar-no-mundo (levando em conta os requisitos de qualidade de vida que os discursos sociais apregoam) e o próprio mundo. Todo o empenho que a pessoa dedica para racionalizar suas opções e escolhas, para desenvolver e perseguir um projeto de vida que atenda às demandas do ‘bem-viver’ eleito como modelo, pode, eventualmente, se chocar com a incoerência e a aleatoriedade de uma situação vivida. Nas sociedades urbanas modernas, as passagens da vida não são acompanhadas de ritos formalizados11, como ocorre nas sociedades tradicionais, e costumam ser entendidas como crises pessoais. Perder um emprego, casar, enfrentar uma doença ou um divórcio, mudar de residência – são situações capazes de gerar inquietação e dissonância a ponto de romperem a maneira rotinizada com que as tensões são administradas. Em vista disso, é possível incluir o sistema astrológico entre outros sistemas simbólicos disponibilizados pela sociedade aos que atravessam períodos críticos de vida.

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Quanto aos ritos de passagem, ver Gluckman (1962) e DaMatta (2000).

164 Segundo Duarte, sistemas tão diversos quanto a medicina, a psicanálise e a umbanda oferecem uma explicação, apoiada em uma visão de mundo, que permite “tornar pensável uma experiência antes anárquica e sem nome, ao mesmo tempo em que reintegra essa vivência anômala dentro de um sistema conhecido de crenças e valores” (Duarte, 1985:182). Esta eficácia simbólica, descrita por Lévi-Strauss (1975:198-213), depende de uma linguagem capaz de exprimir estados e condições até então inexprimíveis, donde intoleráveis. No entanto, Lévi-Strauss chama atenção para as diferentes maneiras pelas quais sistemas simbólicos diversos exercem sua eficácia. Enquanto que a medicina oferece relações de causa e efeito, tanto a cura xamanística quanto as terapias psicológicas oferecem relações de simbolizante a simbolizado, ou de significante a significado. Embora, de certo modo, isso torne essas últimas equivalentes, cabe ressaltar que o procedimento que elas adotam é inverso. A cura xamanística reconstitui um mito social, que não corresponde ao estado pessoal do paciente, enquanto que a terapia psicanalítica reconstitui um mito individual, com elementos do passado pessoal. A consulta astrológica também parece capaz de emprestar sentido às experiências de vida dentro, porém, de um arcabouço simbólico que transforma essas experiências de vida em descrições de caráter e circunstância. A premissa de que um mapa de nascimento é singular, irrepetível, implica que o fio condutor da lógica astrológica deve recorrer às disposições pessoais relativamente estáveis que possam caracterizar um modo particular de estar-no-mundo. Tal como na receita de Aristóteles para a tragédia, a astrologia focaliza o desenvolvimento de um caráter, em um ambiente determinado, cuja esfera de ação é limitada pelas circunstâncias. A inseparabilidade da pessoa, do ambiente e da ação está profundamente arraigada na natureza do pensamento astrológico. O particular, o contingente, o efêmero, que é o vivido por excelência e que, a rigor, não é objeto de ciência, encontra guarida em um campo de saber que o reenvia simultaneamente para a concretude dos acontecimentos e para um domínio abstrato de significações que empresta sentido à experiência.

165 Embora o discurso astrológico encarne as condições usuais da existência, ele também garante uma forma de fuga do normal para o excepcional via uma concepção quase abusiva da história que privilegia o particular, reconhece especificidades e confere primazia a uma verdade existencial. Ao oferecer uma linguagem para exprimir a crise, a consulta astrológica se aproxima da consulta ao oráculo Zande, o qual, juntamente com as noções de magia e bruxaria, oferece uma linguagem para exprimir o infortúnio. Segundo Evans-Pritchard (2005:137), os Azande não correm qualquer risco importante sem pedir a opinião do oráculo de veneno. Em todas as ocasiões tidas como perigosas ou socialmente importantes, a atividade é precedida por uma consulta ao oráculo de veneno. Para os negócios do dia-adia e para os assuntos corriqueiros, o oráculo de atrito ou o oráculo de térmitas podem ser consultados12. Algumas das atitudes dos Azande com relação aos oráculos também se aplicam aos adeptos da astrologia com quem convivi. Dentre elas, podemos citar: a) Cada situação de consulta ao oráculo de veneno envolve diversos componentes (um operador experiente, um veneno que não tenha perdido sua força, restrições alimentares ou sexuais, e assim por diante), que, quando não observados, podem invalidar o processo. Logo, os Azande podem se mostrar céticos quanto ao prognóstico de um oráculo particular, mas não quanto aos oráculos em geral. Diversos depoimentos colhidos no grupo pesquisado apontam que, em casos de erros de julgamento por parte de um astrólogo, é o astrólogo que fica desacreditado, e não a astrologia. O cliente mantém uma busca persistente até encontrar um astrólogo que “acerte”. No seu estudo sobre o espiritismo,

12

Os Azande recorrem a três tipos de oráculos: o oráculo de atrito, o de térmitas e o de veneno (EvansPritchard, 2005). O oráculo de atrito é composto por uma mesa entalhada na madeira com duas partes: a fêmea, isto é, a superfície da mesa, e o macho, uma parte que se encaixa na superfície como uma tampa. O operador do oráculo empurra a tampa para frente e para trás enquanto interroga o oráculo. Se a tampa desliza suavemente, a resposta é sim, mas, se emperrar, a resposta é não. Para o oráculo das térmitas, o consulente enfia dois galhos de árvores diferentes em um monte de térmitas e faz sua pergunta. No dia seguinte, ele retorna ao local para receber sua resposta: um sim, caso o galho desta árvore tenha sido comido, ou um não, caso tenha sido comido o galho da outra árvore. O oráculo de veneno é consultado como uma instância superior. Um veneno extraído de uma trepadeira na floresta é colocado no bico de uma ave doméstica. Geralmente, as aves sofrem pequenos espasmos. Em muitas ocasiões, o veneno é fatal, mas, com igual freqüência, a ave se recupera. A partir da morte ou da sobrevivência das aves, os Azande obtêm as respostas para suas interrogações. Em todas as consultas oraculares, as perguntas são formuladas de modo tal que a resposta se resuma a um sim ou a um não.

166 Cavalcanti (1983) também detectou uma desconfiança quanto à fidedignidade de alguns médiuns, mas não quanto à mediunidade em geral. b) O oráculo Zande é protegido por sua posição na ordem dos eventos. Um Zande primeiro lança uma magia contra um bruxo. Em seguida, alguém morre. Aí então, o oráculo é consultado para confirmar se esta é a vítima da magia. Ouvi vários relatos, em conversas informais, que mencionavam o exame do mapa depois dos eventos. “As coisas estavam difíceis. Primeiro, ela perdeu dois contratos, que não foram renovados, com firmas que ela já atendia há mais de quatro anos. Depois, houve um assalto no prédio. Da sala dela, só conseguiram levar dois computadores, acho que porque o resto do equipamento é muito pesado. Na mesma semana, um vizinho amassou a porta do carro dela, na garagem, numa manobra mal feita. Aí eu fui ver o mapa, para ver o que podia estar acontecendo”. (Sônia) “Despedi a babá na terça-feira. Na quinta, a minha filha apareceu com uma virose, febre alta, vomitava, não parava nada no estômago. Aí, eu fiquei preocupada e fui olhar o mapa dela. Afinal de contas, o meu problema com a babá era uma coisa, mas claro que afetava ela de qualquer maneira. Essa babá tinha cuidado dela durante 10 meses”. (Andréa) Passei por uma experiência exatamente nesses moldes. No final do ano de 2003, eu pedi que uma astróloga me concedesse uma entrevista e ela alegou que estava bastante sobrecarregada, com a agende cheia. Estávamos em dezembro e ela procurava atender todos os seus clientes que haviam marcado consulta antes das festas de fim de ano. Prometeu-me a entrevista para o dia 22 de dezembro, quando tivesse encerrado esses compromissos. No dia 22, lá estava eu, em seu consultório, gravador sobre a mesa. Conversamos durante cerca de duas horas e meia, numa entrevista bastante proveitosa. Dois dias depois, véspera do Natal, ela me telefonou. Contou-me que estava se preparando para encerrar as atividades e tirar uma férias curtas, até a primeira semana de janeiro, e, por isso, havia tido tempo de examinar seu próprio mapa. Só aí percebeu que, no dia da nossa entrevista, a Lua se encontrava junto a seu Netuno natal. Segundo ela, da última vez em que isso aconteceu, ela enfrentou alguns problemas nos meios de comunicação. Mostrou-se preocupada e queria saber o que eu pretendia fazer com aquela entrevista. Tentei tranqüilizá-la, dizendo que, conforme eu já lhe havia explicado, o meu interesse naqueles

167 dados estava subordinado ao meu trabalho de pesquisa e que ela não seria identificada. Mesmo assim, notei em sua voz um certo desconforto. Não sei se ela experimentou algum aborrecimento durante aquele período de Lua/Netuno, porque só nos encontramos novamente depois do carnaval de 2004 e este assunto nunca voltou a ser mencionado.

c) os Azande não costumam fazer ao oráculo perguntas cujas respostas possam ser testadas pela experiência. “Não estão tentando simplesmente descobrir as condições objetivas num determinado momento no futuro, nem os resultados objetivos de determinada ação, mas a inclinação dos poderes místicos de que dependem tais condições e resultados” (Evans-Pritchard, 2005:172). Do mesmo modo, conforme já discutimos nesse capítulo, o valor da consulta astrológica, segundo meus informantes, está em revelar o jogo de forças planetárias de modo que, conhecendo suas disposições, o cliente possa planejar uma ação racional e prudente. Ao contrário do que acreditava o debatedor-biólogo, no evento Patrocinado pelo Planetário da Gávea, a abordagem experimental não parece encontrar lugar no contexto dos dilemas e questionamentos que afligem os consulentes. Analisando o conjunto de fatores desse gênero, que protegem e mantêm a confiança depositada

pelos

Azande

no

complexo

oráculo/magia/bruxaria,

Evans-Pritchard

(2005:170/171) defende o argumento de que esses três componentes formam um sistema coerente de noções místicas, no qual cada uma explica e sustenta as demais. Qualquer erro percebido sempre pode ser explicado pela interferência de uma força mística. O prognóstico falho de um oráculo, por exemplo, remete à interferência da magia ou da bruxaria. Conseqüentemente, a falha de uma noção mística demonstra, concomitantemente, a exatidão de outra noção mística. No caso dos freqüentadores dos circuitos neo-esotéricos, Magnani (2000:37-43) identifica bases doutrinárias comuns que também formariam um sistema coerente de noções interligadas: a) a idéia de imanência, de origem oriental; b) a sacralização da natureza, oriunda de cosmologias indígenas e sistemas xamânicos; c) a sacralização do mundo interior que investe as formas de auto-aprimoramento, baseada primordialmente no individualismo moderno; d) a preferência pelo conhecimento direto e intuitivo, buscando respaldo em determinadas linhas da ciência contemporânea. Segundo Magnani, a combinação dessa multiplicidade de fontes e doutrinas constrói uma espécie de gramática,

168 apoiada no modelo de um triângulo. Nos vértices desse triângulo, alojam-se os três pilares dos princípios abraçados pelos freqüentadores desses circuitos: o Indivíduo, a Totalidade e a Comunidade. O próprio Magnani (1999:126) comenta que Vilhena conclui pela existência de dois pólos – indivíduo e totalidade – sem, contudo, referir-se ao terceiro pólo, o da comunidade. Na minha convivência com os adeptos da astrologia, cheguei a perceber, tal como Vilhena, a noção de uma influência recíproca entre indivíduo e todo, sintetizada na idéia de que tudo está interrelacionado, havendo harmonia e ressonância entre o todo e cada particular. A concepção do mundo como uma grande cadeia do ser13 se mostra revitalizada no grupo pesquisado. Contudo, pude entrever três noções fundamentais, partilhadas pelo grupo que acompanhei, que se mostram particularmente decorrentes da própria modelização que o sistema astrológico efetua. •

A singularidade não é um modo raro ou extraordinário de ser. Ao contrário, é a manifestação apropriada de um mundo imensamente diversificado, no qual cada entidade detém um lugar e um papel ímpares.



O objeto próprio do saber astrológico não é o homem, nem a vida humana, mas sim a relação entre o céu e a terra, relação essa que se inscreve, e pode ser detectada, no homem e na vida humana. O substrato dessa relação é o sentido, pois que exprime, em virtude da relação céu/terra que o sustenta, uma necessidade que não é nem a necessidade da lógica racional, nem tampouco a necessidade entendida como causa eficiente. Tudo que acontece, portanto, poderia acontecer de modo diferente, mas jamais de modo divergente da necessidade/sentido evidenciada.



Tudo está em perpétuo movimento, isto é, em constante mudança. Tomandose o Sol como modelo do inteligível, as coisas surgem, culminam, declinam e desaparecem. Trata-se de um ciclo bastante semelhante ao ciclo da vegetação – que nasce, floresce, dá frutos e fenece – associado, conforme já comentado, ao ciclo anual do Sol. O declínio inelutável reafirma o caráter orgânico do mundo e constrói uma metáfora ‘boa para pensar’.

13

Ver Lovejoy (1964) para uma discussão detalhada dessa idéia.

169 “A grande vantagem da astrologia é poder dizer que aquilo que a pessoa está passando vai acabar. Por pior que seja, vai terminar. Um dia, Plutão vai deixar de fazer oposição ao seu Marte, ou ao seu Sol ou a sei lá que planeta. E a astrologia pode dizer quando. Isso é muito importante. Foi a Márcia Mattos que me ensinou isso. E ela tem razão. Essa é uma grande vantagem da astrologia”. (uma das astrólogas do meu grupo de supervisão)

Vale observar que, nesse modelo do curso natural das coisas, os acontecimentos funestos e as forças destruidoras detêm um lugar e um papel de valor equivalente ao lugar e ao papel das forças construtoras e dos acontecimentos favoráveis. Não é de se estranhar, então, que, dentre as categorias astrológicas discutidas no capítulo 2, a polaridade benéfico/maléfico seja aquela que atravessa todos os níveis do sistema astrológico.

3.4 A consulta astrológica como um ato de fala

A partir das considerações sobre a consulta astrológica aqui apresentadas, acreditamos que o critério de correspondência aos fatos, demandado pelo segundo debatedor no evento realizado no Planetário da Gávea, não se ajusta às condições que cercam a produção de sentido em uma leitura do mapa de nascimento. Parece-me mais fecundo entender a consulta astrológica como um ato de fala, cujas condições de felicidade são específicas. Os atos de fala são aqueles que Austin (1962) chama de performativos, pelos quais o dizer implica realizar a ação dita. Através da análise dos performativos, Austin amplia a noção geral de linguagem, reconhecendo diferentes níveis enunciativos: a) nível locucional, no qual se atribuem aos enunciados um certo sentido e um certo poder de referência; b) nível ilocucional, no qual estão incluídos os atos que se realizam especifica e imediatamente pelo enunciar, como, por exemplo, felicitar, prometer, jurar, condenar; c) nível perlocucional, no qual a enunciação pode produzir um efeito que depende de fatores outros que não os eminentemente lingüísticos, efeito este cujo testemunho somente o interlocutor pode dar (por exemplo, ameaçar, amedrontar, alegrar, convencer, etc).

170 Na perspectiva dos atos de fala, as condições que garantem o dizer não se subordinam aos critérios de verdade ou falsidade com relação ao conteúdo dos enunciados, mas sim às circunstâncias da situação enunciativa no qual o dizer ocorre. Em vista disso, Austin afirma que os atos de fala podem ser ‘felizes’, quando se conformam aos requisitos da situação, ou ‘infelizes’, quando frustrados. No caso da consulta astrológica, este ato de fala é geralmente iniciado dando-se alguma indicação de que vai ser descrita uma realidade através do filtro de uma perspectiva singular; em segundo lugar, que essa descrição escapa a uma completa determinação, porque opera com níveis múltiplos de significados; e, finalmente, que ela é verídica. O privilégio concedido ao ponto de vista do nativo subordina ‘o que’ é descrito a um ‘para quem’. Por mais que o perspectivismo astrológico possa ser aproximado de uma concepção subjetiva de verdade, do tipo ‘assim é, porque assim lhe parece’, há uma sutil inversão nessa fórmula. O postulado da autenticidade e da legitimidade do ponto de vista do nativo implica que ‘assim lhe parece, porque assim é’. A segunda condição de felicidade da leitura de um mapa – o fato de que ela não deflagra significados, mas sim tendências de significado – convoca o engajamento do cliente. É o teor de indeterminação na forma como o símbolo astrológico pode se materializar em uma vivência específica que convida o cliente a participar do desvelamento e da compreensão de seu próprio mapa. Juntos, o perspectivismo e os níveis múltiplos de significado conseguem subjuntivizar a realidade, isto é, operar com possibilidades ao invés de certezas. Contudo, a condição de veracidade do discurso astrológico confere à negociação de sentidos, na interlocução entre astrólogo e cliente, uma inflexão peculiar. É isso que examinaremos no capítulo seguinte.

Capítulo 4 – O Sistema Astrológico Como Modelo Narrativo

A compreensão da cultura e, por extensão, do homem através da metáfora do texto é tributária de uma concepção da linguagem que a torna particularmente pertinente às ciências humanas. Na medida que a linguagem constitui uma faceta especializada de um amplo comportamento simbólico pelo qual o mundo é apreendido e interpretado, as formas discursivas atuam como um filtro de inteligibilidade para os aspectos da realidade que se apresentam ao homem mediados simbolicamente. A ênfase na produção de significado por meio da ação da linguagem constrói uma concepção de self como expressão da capacidade humana para a narração. Para um self contador de histórias (Benjamin, 1996; Bruner, 1987; Ricoeur, 1991; Somers, 1994; Wiley, 1996; Harré, 1999), a noção de si se converte nas maneiras mais ou menos estáveis de contar sobre si, a si mesmo e aos outros. Velho (1999) salienta que, para as camadas médias urbanas, intelectualizadas e psicologizadas, toda a experiência pessoal, isto é, a biografia, constitui um tema fundamental, desenvolvido por meio de uma linguagem e um vocabulário próprios. Através da história de vida, constrói-se um projeto individual, numa tentativa consciente de dar sentido ou coerência às experiências fragmentadoras. Se as narrativas modelam a subjetividade a partir de representações plausíveis do mundo (Geertz, 1989; Barthes, 1971; White, 1980), as histórias que as pessoas contam sobre o mundo, sobre o que lhes acontece e sobre si mesmas adquirem poder explicativo justamente porque propiciam o reencaminhamento ao familiar. Sob essa perspectiva, o tipo de regularidade e generalização que a narrativa promove ostenta um estatuto semelhante ao de uma lei científica - os truísmos do senso comum explicam porque as pessoas agem do jeito que agem e porque as coisas acontecem tal como acontecem, compondo a plausibilidade e a inteligibilidade da vida cotidiana. As pessoas tentam dar sentido e tornar inteligível o que lhes acontece integrando e reunindo esses acontecimentos em uma narrativa; apóiam suas explicações e pautam suas expectativas em diretrizes derivadas de um repertório diversificado, porém finito, de narrativas disponíveis, que refletem os possíveis cursos de vida em uma dada cultura.

172 Bruner (1997) argumenta que, eventualmente, os processos cognitivos e lingüísticos que orientam as narrativas acabam por estruturar a experiência perceptiva, organizar a memória e efetuar um recorte seletivo dos próprios eventos de uma vida. Isso implica que não apenas nos tornamos as narrativas que contamos sobre nós mesmos, mas também nos tornamos variações das formas canônicas que compõem uma tipologia de protagonistas. Segundo Hayden White (1980), o modelo de conexão oferecido pela narrativa permite que se configure a experiência humana em uma forma acessível às estruturas de significado que ultrapassam a especificidade de uma cultura e se tornam traduzíveis e interpretáveis segundo os padrões de uma outra cultura. É bem mais difícil compreender os padrões de pensamento típicos de uma cultura diferente da nossa do que compreender uma estória narrada naquela cultura. Referindo-se à narrativa como “a panglobal fact of culture”, ele faz eco ao comentário de Barthes de que a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades - “internacional, transhistórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida” (Barthes, 1971:20). Lévi-Strauss, Kenneth Burke, Claude Bremond e Vladimir Propp estão entre aqueles que admitem uma estrutura narrativa profunda e sugerem que uma história é bem aceita quando constitui uma boa atualização de formas estruturais canônicas. Para Lévi-Strauss, a história narrada é a substância da narrativa mítica1. “A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada”. (LéviStrauss, 1975:242) A noção de mitismo, proposta por Lévi-Strauss (1971), sugere que, a princípio, toda história é potencialmente um mito, mas só se atualiza como tal quando aceita pela comunidade, que a assimila e repete, moldando-a na memória compartilhada. Isso aponta

1

Um mito se configura ao longo de um eixo de sucessividades, que conduz o agenciamento sistemático dos fatos como história. Comporta igualmente um eixo de simultaneidades, relativo às relações co-existentes, mesmo quando se manifestam a intervalos distantes. Na terminologia de Lévi-Strauss, essa bidimensionalidade do mito se compõe de: (a) seqüências, isto é, acontecimentos dispostos em ordem cronológica, que constituem o conteúdo manifesto do mito; e (b) esquemas, isto é, planos de profundidade, que constituem o conteúdo latente. Em sua analogia entre a matriz mitológica e a composição musical, LéviStrauss compara a seqüência com a linha melódica e o esquema com o contraponto (1993:168). As seqüências são necessárias para que o mito seja narrado, os esquemas são necessários para que ele seja compreendido.

173 um controle social severo na seleção dos fundamentos comuns mediante os quais a tradição se mantém. Admitir o mitismo como um dos mecanismos da memorabilidade equivale a recusar o mito como gênero determinado de narrativa e ampliá-lo a ponto de abranger uma diversidade de produções – provérbios, adágios, ditados, fábulas, genealogias, cosmogonias, epopéias, cantos – que têm em comum a permanência da menção. Interessado em desvendar a estrutura profunda da narrativa mítica, Lévi-Strauss (1971:560) depura os relatos das peculiaridades de cada contexto enunciativo em busca do que ele considera “as partes cristalinas”, isto é, os níveis estruturados. O jogo das contingências, que respondem pela variabilidade dos relatos, de versão em versão, através de inúmeras repetições, vai decantar essas partes cristalinas, que permanecem estáveis e sustentam a memória compartilhada. Propp (1984) apresenta um modelo fechado no qual o desenvolvimento de qualquer narrativa parte de um dano ou carência e culmina em um desfecho (um casamento, uma recompensa ou reparação, a ascensão ao trono), passando por uma série de funções intermediárias, que podem figurar no todo ou em parte, mas sempre em uma sucessão prédeterminada. O único elemento de presença obrigatória é o dano ou a carência. Bremond (1971), por sua vez, propõe um modelo aberto, no qual cada ação pode ser bem sucedida ou fracassar e as direções tomadas pelos personagens devem-se à conseqüencialidade destas ações. A sucessão proppiana de funções é substituída por uma sucessão de alternativas, nos moldes de um percurso em um labirinto. Já para Kenneth Burke (1989), a estrutura narrativa é composta de (1) um agente, que realiza (2) uma ação, em (3) um ambiente, por meio de (4) algum instrumento, com (5) um propósito em vista. O enredo é posto em movimento por um problema, que geralmente decorre de uma inadequação entre alguns desses cinco constituintes: ou o propósito não pode ser atingido com os meios de que o agente dispõe, ou a ação é incompatível com as circunstâncias, ou as características do agente são ineficazes para a situação, e assim por diante. O motor do desenvolvimento da história varia segundo os autores. Para Propp, tratase do dano, apresentado na situação inicial; para Bremond, é a conseqüêncialidade das ações; para Burke, trata-se do problema.

174 Os estágios ‘situação inicial – crise - transformação – situação final’, implicados na configuração narrativa, repousam sobre a ruptura de um estado inicial de equilíbrio precário, por um acontecimento que desencadeia uma sucessão de eventos. De modo geral, os acontecimentos capazes de gerar uma ruptura na ordem das coisas deflagram um estado de crise que perdura até a restauração do equilíbrio ou a instauração de um novo estado de coisas. Esta descrição se assemelha ao conceito de drama social proposto por Turner (1968) para descrever como uma sociedade lida com possíveis mudanças de estado resultantes do conflito estrutural. “ a four phased unit of social process that begins with a breach between persons and probably leads to a breaking off of relations up to the limit that the group can permit. Various adjustments or redressive mechanisms are then deployed to heal the breach and these lead either to a re-establishment of relations or the social recognition of an irreparable breach between the contesting parties. Among the ‘redressive mechanisms’, which constitute the third phase, are divinatory and ritual procedures.” (1968:89)

Turner (1980) não subscreve a aproximação que Hayden White percebe entre a estrutura narrativa e a estrutura do drama social, no sentido de que ambas apresentam a transformação de um estágio inicial em um estágio final. Embora insistindo que os dramas sociais se tratam muito mais de unidades de um processo social, ele admite que possam ser entendidos como “dramas of living, as Kenneth Burke calls them”. Na medida que “são as narrativas de vida que trazem mais fortemente a dimensão de desvendamento ou de revelação da pessoa, dando um sentido a sua experiência” (Maluf, 1999:76), o senso de continuidade do que concebemos como eu exige uma certa coerência nas histórias sobre nossas experiências episódicas, que são entretecidas em uma trama única para compor a unidade narrativa de uma vida. Os esforços de unificação e totalização do eu no qual as camadas médias urbanas se engajam (Velho, 1985,1994) demandam um fio condutor que não só costura as diversas

175 facetas de um indivíduo múltiplo, mas também integra as descontinuidades implicadas nas passagens da vida, gerando um senso de permanência e de continuidade do eu. A rede de narrativas é produto de práticas sociais, tornando a criação contínua de significado – logo, de realidade – um fenômeno intersubjetivo. Os modelos de narrativas compreendem um estoque de personagens e circunstâncias, um acervo de constituintes formais com os quais os membros de uma cultura podem construir suas histórias. As estruturas genéricas de enredo encontradas em uma cultura envolvem as concepções comumente aceitas sobre as causas e as conseqüências de certos comportamentos, sobre as motivações e intenções que costumam direcionar as ações. Na medida que as histórias que as pessoas contam sobre si mesmas são expressões de sistemas simbólicos, é de se supor que também o sistema astrológico possa modelar, à sua semelhança, os modos de se contar uma história de vida. Vamos nos valer de uma consulta astrológica2, como referência, para o delineamento deste modelo narrativo. Melissa é carioca, psicanalista lacaniana e tem 56 anos de idade. Quando o marido se aposentou, o casal foi morar fora do Rio de Janeiro, recebendo os filhos e netos nos fins de semana. Ao ficar viúva, há cinco anos atrás, Melissa decidiu reassumir suas atividades profissionais. Voltou a morar no Rio e retomou o consultório. Há cerca de dois anos atrás, começou a namorar um rapaz bem mais novo. Muito pouca gente tomou conhecimento dessa relação amorosa. Ela só contou para duas amigas bem chegadas e as filhas descobriram por acaso, graças a uma conversa telefônica entreouvida. O seu filho mais velho ‘nem desconfiava’, segundo ela. As coisas estavam nesse pé quando, em meados de 2003, ela entrou em depressão. Certa noite, Melissa excedeu-se nos comprimidos para dormir, uma atitude diagnosticada e tratada como tentativa de suicídio. O namorado ‘pediu um tempo’. Em novembro de 2003, ela consultou uma vidente na Tijuca, recomendada por amigas. Foi-lhe dito que o namoro tinha chegado ao fim, que o tal rapaz se fora de vez. Uma semana depois dessa consulta, ele

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Esta cliente me permitiu ouvir a gravação de sua consulta, mas não me deu autorização para transcrevê-la. Essa situação se repetiu em todas as poucas ocasiões em que a fita gravada me foi oferecida. O receio explicitamente manifesto era o de uma possível identificação do cliente, mesmo tendo sido assegurado que os nomes por ventura mencionados seriam alterados, assim como os detalhes identificadores.

176 telefonou, os dois se encontraram, reataram o namoro e estão hoje morando juntos. “Nunca mais volto nessa mulher”, garante ela. Em março de 2004, ela procurou uma astróloga. Ficou sabendo que, na época da sua tentativa de suicídio, o planeta Plutão passava exatamente por sobre seu Ascendente, um ponto astrológico que diz respeito à saúde, à vitalidade e ao corpo físico. Além de localizar o fato celeste que significava a tentativa de suicídio, a astróloga lhe deu uma tranqüilidade. Plutão não vai voltar a cruzar esse ponto. Já se afastou dele o suficiente para não anunciar uma recaída. Quanto ao namoro, isso era outra história. Quem estava transitando sobre o setor ligado às relações amorosas era Urano, um planeta que tem a reputação de oferecer o inusitado e o fora do comum, de conduzir a rupturas súbitas. A tônica do aconselhamento era ficar pronta para o que der e vier, aproveitar enquanto dura. Melissa deixou a consulta astrológica tendo confirmado que a experiência que tinha atravessado no ano anterior era legítima, no sentido de que tinha mesmo a ver com ela, estava até mesmo prevista em sua vida. A astróloga também havia feito referência a outros anos em que ocorreram eventos significativos. “O que aconteceu no ano tal?”, perguntava ela. E Melissa respondia, “foi quando minha filha nasceu”, ou então “foi uma época difícil, quando meu marido ficou dez meses desempregado”, ou ainda “foi quando largamos tudo aqui e fomos morar em Araras”. Uma das datas mencionadas, ela não conseguiu identificar. “Não, não me lembro de nada”. Pouco depois, já no meio da conversa sobre outro assunto, ela exclamou: “Claro! Esse ano que você falou foi quando eu me casei no civil, depois de termos morado juntos durante anos. Ah, também foi quando eu terminei o mestrado. E fui à Europa pela primeira vez. Foi muito legal!”. Procurar deslindar porque fora tão demorado lembrar o que acontecera naquele ano ‘legal’ não é tão relevante aqui. As questões que ora se apresentam são outras. Embora eventos de conhecimento público, como um casamento, o nascimento de um filho, uma mudança de residência, não possam ser negados, a composição de uma história de vida não é algo que se submeta incondicionalmente aos fatos. Existe, nesse contar, uma tensa dinâmica entre a objetivação do eu, que favorece o ‘falar sobre’, e a subjetivação, implicada nas alegações de motivos, nas justificativas e nos comentários que permeiam a narrativa.

177 Essa complexidade peculiar resiste às verificações (‘papai ficou doente no ano em que minha filha nasceu, ou talvez tenha sido no ano seguinte’), às racionalizações (‘mas eu tinha que salvar meu casamento, então, larguei tudo e fui morar em Araras’) e às conjecturas (‘se eu não tivesse tido que ajudar tanto quando ele decidiu abrir um negócio, hoje eu já teria meu próprio consultório e não precisaria pagar aluguel’). A veracidade de uma história de vida não pode ser inferida da facticidade das partes que a compõem. É preciso julgá-la como um todo, pois o seu valor, que não é necessariamente o valor de verdade da lógica, repousa na coesão e coerência construídas sem cessar ao longo das inúmeras versões apresentadas. É nesse sentido que as histórias de vida se aproximam das ficções literárias. Esse teor de indeterminação torna uma história de vida suscetível a influências interpessoais e culturais, razão pela qual as intervenções catequéticas ou terapêuticas podem alterar as narrativas de vida ao modificar o sentido atribuído às experiências (Maluf, 1999; Amaral, 2000) e, eventualmente, modificar a seleção das experiências significativas. Taylor (1997) argumenta que o senso de self depende de um esquema avaliativo moldado por hiperbens (um conjunto de princípios e valores fundamentais). Uma história de vida é montada sob princípio semelhante: as experiências que a compõem dependem de um recorte seletivo, norteado por um esquema avaliativo, que determina o que é ordinário ou o que é anômalo e excepcional. Em uma consulta astrológica, a intervenção do astrólogo oferece um novo modelo avaliativo, que seleciona e qualifica determinadas instâncias na trajetória de vida, segundo critérios especificamente astrológicos. A abordagem que um astrólogo adota ao enfocar uma história de vida é peculiar em pelo menos dois aspectos: a) Quanto ao código cronológico; b) Quanto às categorias semânticas.

O Código Cronológico

Lévi-Strauss (1989:288-290) salienta que é possível deixar-se iludir pelo caráter contínuo do fluxo linear do tempo e não perceber que o código cronológico constrói um conjunto descontínuo de classes de datas que mantêm entre si relações complexas de

178 correlação e oposição. Nesse sentido, o conhecimento histórico é classificatório e se dispõe em níveis hierárquicos, nos quais a riqueza de detalhes e a capacidade explicativa são inversamente proporcionais. Nas extremidades desse eixo, atinge-se ora um domínio infrahistórico – que remete à personalidade individual – ora um domínio supra-histórico, que remete à organização geral dos seres vivos ou, em última instância, à cosmologia. O modelo astrológico, sem dúvida, está calcado em uma visão cíclica da história, que rivaliza com a sucessão linear de eventos, típica do senso histórico comum, mas constrói uma rede intrincada de recortes nos ciclos. A astrologia dispõe de um código cronológico que sustenta as marcações para a datação de eventos e que opera com diversas camadas de tempo. As espessuras temporais desse código se distribuem por duas vertentes. Na primeira, o código cronológico encapsula determinadas espessuras temporais, em nível semântico, tanto nos planetas quanto nos ângulos do mapa. O termo ‘cronocratores’ é aplicado aos planetas na sua capacidade semântica de marcar o tempo (Vore, 1968; Gettings, 1990). Para tanto, a vida humana é dividida em determinados períodos, conhecidos como as ‘idades planetárias’, cada um deles governado por um dos planetas tradicionais.

Planeta

N0 de anos atribuídos ao planeta

Idades

Lua

4 anos

De 0 a 4

Mercúrio

10 anos

De 4 a 14

Vênus

8 anos

De 14 a 22

Sol

19 anos

De 22 a 41

Marte

15 anos

De 41 a 56

Júpiter

12 anos

De 56 a 68

Saturno

30 anos

De 68 a 98

A partir das condições de um planeta no mapa natal, é possível avaliar as circunstâncias de vida do nativo durante o período governado por aquele planeta. Logo,

179 uma Lua afligida3 indica circunstâncias adversas ou problemas de saúde durante a primeira infância; um Mercúrio afligido denota uma escolaridade dificultada ou interrompida, e assim por diante, até Saturno que, se afligido, pode indicar uma velhice desafortunada (Vore, 1968:279). Os ângulos do mapa também estão semanticamente vinculados aos quatro grandes períodos na vida humana - infância, juventude, maturidade e velhice - assemelhando a vida humana à ‘vida’ do Sol durante um dia: surge, culmina, declina e desaparece. Um aspecto interessante a ser observado, nessa marcação de tempo, é que o mapa é considerado capaz de descrever a vida inteira do nativo, qualquer que seja a sua duração. Por mais curta que esta vida seja, presume-se que o mapa inteiro se cumpre, mesmo que os acontecimentos significados pelos planetas se atropelem. Portanto, os ângulos significam, mais propriamente, o início, o meio e o fim da vida, pois os termos ‘infância, juventude, maturidade e velhice’ se referem a uma expectativa média de vida.

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O termo ‘afligido’ se refere às condições capazes de prejudicar a atuação de um planeta. Entre elas, podemos citar, estar em um signo que não lhe ‘pertence’, estar em aspecto com um planeta com o qual não tenha afinidades, estar junto a uma estrela fixa que provoca malefícios, e assim por diante.

180 Na segunda vertente do código cronológico, as espessuras temporais estão vinculadas à movimentação dos planetas e dependem do tempo que um planeta leva para cobrir determinada distância zodiacal ou para completar o seu ciclo ao longo do Zodíaco. São três as principais facetas desse movimento cíclico contínuo que são levadas em conta:

1. as revoluções Uma revolução significa um volta completa no zodíaco, retornando a uma posição inicial. As revoluções mais importantes são a do Sol e a da Lua. O Sol leva cerca de um ano para retornar à longitude zodiacal onde se encontrava no momento do nascimento e esse retorno é tido como o ‘verdadeiro’ aniversário do nativo. Uma das técnicas preditivas mais usuais é a chamada Revolução Solar. Levanta-se um mapa para a hora exata em que, em um ano determinado, o Sol se encontra no mesmo grau, minuto e segundo do momento do nascimento, e esse mapa irá descrever os eventos e disposições do nativo naquele ano específico. “Você quer ver como a astrologia não é uma terapia? A gente só vê o cliente uma vez por ano, na época do aniversário. Faz a Revolução Solar e pronto. Até o próximo ano. Tem gente ansiosa que quer apressar as coisas. Há uns dois anos atrás, um cliente meu, que faz aniversário em abril, me ligou no final do ano, na semana entre o Natal e o Ano Novo, me pedindo para fazer a revolução dele. Tive que recusar. A que eu tinha feito ainda estava valendo. Acho que ele estava para resolver alguma coisa e ficou com vergonha de me perguntar. Veio com essa história de fazer a revolução mais cedo. Mas, o que eu tinha para dizer a ele sobre aquele ano, eu já tinha dito. Expliquei para ele, de novo, eu sempre explico aos meus clientes, que esse negócio de Ano Novo é para todo mundo, é oficial. Só que o ano dele é diferente, é de aniversário em aniversário. Esse é que é o ano dele”. (Glória) O mapa da Revolução Lunar é calculado de forma semelhante para a hora exata em que a Lua retorna à mesma posição do momento do nascimento. Porém, este mapa tem validade de apenas um mês, tempo que a Lua leva para cumprir seu ciclo.

181 A primazia que a astrologia concede aos começos, raiz da validade contínua do mapa natal4, se multiplica na Revolução Solar, na Revolução Lunar. O momento inicial do ano ou do mês é capaz de descrever as condições daquele ano ou daquele mês graças a uma concepção do começo como um evento totalizante em que as circunstâncias nas quais ele ocorre acabam deixando traços em sua constituição. O momento da origem do nativo, isto é, seu nascimento, é o momento mais prenhe de significações, pois é o tempo, por excelência, da maior potencialidade. Muito embora o nascimento de qualquer pessoa, historicamente datado, não tenha a conotação de um evento mítico, fundante, que remeta a um tempo primordial, trata-se, de certa maneira, de um tempo sagrado, na medida que se cristaliza no mapa de nascimento, sendo mantido, portanto, apartado do fluxo contínuo do tempo. O tempo cíclico é um tempo regenerador porque é reversível. Toda a força do ser que o estado do céu significa no momento do nascimento irá se replicar nos demais começos – o começo de mais um ano de vida, o começo de mais um mês. Isso porque, nesses outros começos, a conexão com o começo natal fica assegurada pelo retorno do Sol, ou da Lua, à mesma posição do nascimento. Daí porque a leitura ritual de uma Revolução Solar não deve ser feita fora do tempo. Mesmo que se possa calcular uma série de revoluções solares a qualquer momento (um cálculo realizado em minutos por um computador), a leitura em si costuma ser reservada para a época do aniversário do nativo.

2. as progressões As progressões se apóiam na idéia de que um dia equivale a um ano. Isso implica que o estado do céu no segundo dia de vida se refere às condições do segundo ano, e assim por diante. As progressões levam em conta movimentos ‘reais’ dos planetas no céu, mas que não coincidem com a época considerada. O estado do céu no décimo dia de vida é um estado celeste real, mas será aproveitado para descrever o décimo ano de vida, quando o céu já não se encontra mais naquele estado.

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Se alguma circunstância posterior superasse o mapa natal, este se veria eventualmente invalidado, o que contradiz a própria astrologia. Este argumento é explicitamente defendido por Morin de Villefranche(1994), astrólogo francês do século XVII, e sustentado por diversos autores contemporâneos.

182 Lyra (2003) chama atenção para o fato de que os dias mais significativos da vida de uma criança, na qualidade de ícones das contingências que irão afetá-la, são os primeiros 90 dias, se considerarmos uma expectativa de vida de 90 anos. Nesses primeiros três meses, qualquer acontecimento marcante, seja no ambiente imediato (tal como uma mudança de residência, uma morte na família, uma comemoração), seja no corpo físico da criança (tal como uma febre, um mal estar ou, pelo contrário, um dia ameno de contentamento), esses acontecimentos irão refletir o estado geral de anos que estão por vir. As progressões se sustentam na força icônica do modelo reduzido. A mais importante implicação das progressões é a repercussão exponencial dos pequenos intervalos. A movimentação dos planetas, de um dia para outro, irá ecoar, com força semelhante, em um tempo bem mais distante, em equivalência escalar. A técnica da retificação do mapa, isto é, a tentativa de ‘corrigir’ a hora do nascimento quando ela não é conhecida com exatidão, recorre primordialmente às progressões. Se o Ascendente denota o corpo físico, é bem possível que um ‘aspecto’ entre o Ascendente e Marte (um planeta que, entre outras coisas, denota cortes e queimaduras) assinale, vamos nos permitir especular, uma cirurgia ou um acidente. Se esse aspecto acontece três dias depois do nascimento (logo, deveria repercutir aos três anos de idade), mas o nativo relata que sofreu uma operação de garganta aos cinco anos e meio de idade, o astrólogo já conta com um forte indício de que o Ascendente está ligeiramente fora da marcação correta e vai ‘corrigindo’ o mapa, em função de episódios já ocorridos. A equivalência 1 dia = 1 ano também é válida no sentido converso, isto é, para os dias anteriores ao nascimento. O estado do céu no décimo dia antes do nascimento, um estado do céu que sequer se verificou durante a vida do nativo, é capaz de descrever o décimo ano de vida tanto quanto o estado do céu no décimo dia depois do nascimento (Lyra, 2003)5. Isso significa que, enquanto as revoluções se sustentam no caráter regenerador do tempo cíclico, as progressões des-vetorializam o fluxo temporal, toldando a distinção entre o anterior e o posterior.

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Lyra também apresenta evidências de que as revoluções solares conversas, isto é, antes do nascimento, são eficazes para fins de previsão.

183 O fato de que, para fins do acompanhamento astrológico de uma história de vida, o movimento dos planetas a partir do instante do nascimento se mostra tão eficaz quanto o movimento converso o qual, efetivamente, ocorreu antes mesmo de a pessoa nascer, aponta um aspecto interessante. No grupo de supervisão que freqüentei, estávamos comentando a respeito de uma ocasião em que seis planetas se encontraram no signo de Capricórnio e uma das astrólogas procurava se lembrar de algum evento marcante ocorrido no mundo em função dessa concentração de planetas no mesmo signo. “Será que foi a guerra do Golfo? Agora não me lembro direito...”. Mas, uma delas respondeu: “Nem sempre o importante é o que aconteceu. O que a gente precisa saber é quem nasceu naquela época, com esse stellium6 no Ascendente ou no Meio do Céu. É bem provável que essa pessoa tenha vindo para agir no mundo de forma marcante”. Seguiu-se um murmúrio de concordância geral. Sob essa perspectiva, o mapa natal também pode ser entendido como a culminação de uma série de eventos celestes, anteriores ao nascimento, que acabam por convergir para a fixação de um caráter e de uma história. Portanto, o mapa significa, simultaneamente, o início e o fim de uma história de vida. Se há um sentido na história, para a astrologia esse sentido é recursivo, desembocando no início. A história de vida coincide com o nativo, ao invés de explicá-lo.

3. os trânsitos Um trânsito se refere à posição atualizada de um planeta no céu. Trata-se de um estado do céu ‘real’ que é levado em conta exatamente na época em que ocorre. Para que um trânsito exerça efeito, é necessário que a posição do planeta no céu se conecte à posição de um planeta no mapa natal. Ele pode estar passando por sobre a posição deste planeta no mapa natal ou estar lhe lançando um ‘olhar’, a partir de um eficaz ângulo de visão7. É curioso observar, então, que a língua astrológica não faz nítida distinção entre a presença e a ausência dos objetos empíricos – os planetas - dos quais ela lança mão para significar. No congelamento do estado celeste no momento do nascimento, o grau zodiacal 6

Um stellium implica a presença de vários planetas no mesmo signo ou na mesma casa. Volto a lembrar que os ângulos de visão mais eficazes estão associados aos ângulos de 600, 900, 1200 e 1800 em relação ao planeta natal. 7

184 ocupado por um planeta fica como que impregnado daquela presença de modo que, posteriormente, sempre que algum outro planeta, levado pela movimentação planetária incessante, cruzar aquele grau (corporalmente ou por olhar), será como se entrasse em contato com o planeta que o ocupava, mesmo que este não mais ali se encontre. A validade dos trânsitos, por conseguinte, supõe que os graus zodiacais guardam na memória a presença dos planetas no momento do nascimento. Enfim, com base nesse código cronológico, a astrologia desenvolveu uma rica e complexa teoria dos climatérios8 segundo a qual os períodos críticos da vida humana são marcados pela movimentação dos planetas. O entrecruzamento de várias séries de movimento planetário, notadamente a periodicidade lunar, a progressão do Sol, a revolução de Saturno9 e a revolução de Júpiter10, assinala a convergência de várias marcações que apontam os climatérios na vida humana em geral. Para toda e qualquer pessoa, as idades de 7, 28, 45, 60 anos (para nos atermos aos períodos mais citados na literatura astrológica) são supostamente marcantes11. Além dessas instâncias generalizadas, a vida de uma pessoa atravessa períodos críticos peculiares, em função do posicionamento específico dos planetas no seu mapa de nascimento. A marcação desses períodos vai depender do tempo necessário para que a movimentação dos planetas cubra determinadas distâncias. No caso de Melissa, por exemplo, o Sol avançou em seu movimento ao longo do Zodíaco, alcançando o grau ocupado por Vênus 44 dias depois de seu nascimento. Logo, esse evento celeste iria ressoar por volta dos seus 44 anos de idade. Para outras pessoas, esse mesmo evento ocorre em épocas diferentes, dependendo da distância zodiacal entre Sol e Vênus em seus mapas. 8

Os climatérios referem-se a períodos da vida geralmente associados a grandes mudanças no organismo, tais como a puberdade e a menopausa. Hoje em dia, o termo ‘climatério’ é usado quase que exclusivamente em relação à menopausa, isto é, ao término do período reprodutivo da mulher, e ao conjunto de fenômenos que acompanham o declínio normal das funções sexuais no homem. A astrologia, entretanto, mantém a noção tradicional de períodos críticos tanto na vida humana em geral quanto na vida de um indivíduo em particular. 9

Saturno dá uma volta completa no zodíaco em cerca de 28 anos, praticamente equivalente ao movimento da Lua progredida, marcando, tal como esta, períodos críticos a cada 7 anos. 10 11

Júpiter dá uma volta completa no zodíaco a cada 12 anos.

A idade de 28 anos está ligada ao retorno de Saturno e ao retorno da Lua progredida. A idade de 45 anos está ligada tanto à serie dos 9 da Lua progredida (45=9x5) quanto à semi-quadratura (distância de 450 em longitude zodiacal) do Sol progredido. A idade de 60 anos está ligada ao sextil (distância de 600 em longitude zodiacal) do Sol progredido e ao retorno de Júpiter (60=5x12).

185 Dado esse quadro cronológico, o modelo astrológico faz mais do que explorar uma outra ordem que não a de sucessão. Ele constrói uma noção de identidade numa tensa relação entre a sincronia e a diacronia. No seu aspecto sincrônico, o mapeamento do céu em função do local do nascimento remete a um senso de localização espacial. A singularidade pressupõe o senso de experienciar o mundo a partir de uma perspectiva ímpar, literalmente um ponto de vista. O congelamento do céu no instante de nascimento estabiliza esse ponto de vista que funciona como marco de referência para um eu propenso a se reconhecer em todas as suas transformações. No seu aspecto diacrônico, o congelamento do céu se constitui na definição do ponto de partida para uma trajetória particular que irá construir uma história de vida. Converte-se assim em um cronograma decisivo para o reconhecimento das contingências como as articulações de um fenótipo, gerando um senso de experimentar a vida como uma trajetória única na qual as descontinuidades e as transformações sucessivas estão inscritas na estrutura. A totalização de uma história de vida, do nascimento à morte, desdobra uma configuração inicial, em um processo de desvelamento mediante o qual as condições da história de vida ganham sentido e, simultaneamente, confirmam a estrutura natal. Isso significa que o estado do céu, congelado, assume o caráter de prova documental. Naturalmente, há um paradoxo aqui. Para um historiador, um acontecimento que já deixou de ser constitui vestígio de um passado que ele busca reconstituir e reinterpretar. Para um astrólogo, este estado do céu, que já não é mais, é resgatado em sua unidade tanto com o já vivido quanto com o ainda por viver. As experiências de vida tornam-se sinédoques abstratas de sobredeterminações multifacetadas, que se materializam ora de um jeito, ora de outro, mas sempre como modos-de-dizer o céu do nascimento. A eficácia da concepção do mapa de nascimento como um ponto de partida baseiase na idéia de que o mapa oferece uma percepção simultânea do passado, do presente e do futuro daquele nativo em particular. Entendido como um panorama do substrato que funda o fenomênico, o mapa de nascimento permite que se acolha a variabilidade e a mudança, como extensões lógicas das tendências entrevistas no mapa, até porque, embora ele traga um estado do céu congelado, ele não detém o movimento do cosmos. O movimento incessante da esfera celeste, longe de ser estancado, torna-se potente produtor de sentido,

186 quando, a intervalos episódicos, se conecta às posições ocupadas pelos planetas no mapa natal. Um sistema cíclico lida com uma série de fenômenos recorrentes. Isso, porém, implica o periódico, não o invariável. Mudanças e alterações estão contidas e previstas nos ciclos que se repetem, quanto mais não seja pela justaposição das diferentes fases dos diversos ciclos que se entrecruzam. A força de circunstâncias posteriores não rompe a constituição original, que funciona como um protótipo – uma série de informações de caráter generalizante, praticamente analíticas. Porque elas se validam no tempo, são chamadas de ‘promessas de mapa’. Porque já estão contidas no mapa, em embrião, desde o nascimento, é razoável supor que elas se manifestam no tempo sem que o tempo as modifique, pois obedecem a leis intrínsecas. A relação entre a sincronia e a diacronia no modelo astrológico é, portanto, complexa e muitas vezes contraditória e paradoxal. Por um lado, a fixidez do mapa natal inclui o devir como uma forma sem conteúdo, subsumida na estrutura sob o princípio dos climatérios, nos moldes da concepção lévi-straussiana da história mítica. “A história se introduz subrepticiamente na estrutura sob a forma modesta e quase negativa: ela não explica o presente, mas efetua uma triagem entre os elementos do presente, outorgando a apenas alguns dentre eles o privilégio de ter um passado.” (LéviStrauss, 1989:257) A intervenção de um astrólogo na história de vida do cliente opera segundo princípios semelhantes. Cabe a ele atualizar as posições planetárias na época da consulta (seja essa atualização pautada em revoluções, progressões ou trânsitos) e fazer uma triagem, selecionando aquelas que ‘têm um passado’, isto é, que estão conectadas às posições ocupadas por planetas no mapa de nascimento. “É impossível interpretar uma Revolução Solar sem levar em conta o mapa natal. Quando o cliente vem pela primeira vez e pede uma Revolução, eu sempre aviso que, na primeira consulta, a gente tem que discutir o mapa natal. Mesmo que ele já tenha feito o mapa com outro astrólogo, eu tenho que examinar o mapa com ele, antes de tentar interpretar como vai ser aquele ano. Não adianta nada um aspecto relevante no céu se ele

187 não bate com o mapa natal. Pode ser o que for, bom ou ruim, não vai acontecer. Tem que estar ligado ao mapa”. (Renata) Nesse sentido, a astrologia coloca a diacronia a serviço da sincronia. Porém, por operar com uma estrutura constituída por um corte transversal de ininterruptos ciclos planetários, trata-se de uma sincronia historicizada, que precisa remeter aos ciclos completos para detectar as qualidades daquelas fases específicas12. Ao explorar uma outra ordem que não a de sucessão, o pensamento astrológico propõe instâncias da história que dissolvem a reificação da cadeia de eventos como fator explicativo do presente. Uma visão linear da história se apóia pesadamente em uma filiação de eventos, engendrados uns nos outros. As condições de vida durante uma determinada época tendem a decorrer de escolhas e decisões anteriores e prenunciam um cenário plausível para o período que se segue. Embora o discurso astrológico seja quase sempre debatido em termos de fatalidade e livre-arbítrio, sob uma argumentação que condena a idéia de que os astros determinam o comportamento e as circunstâncias de vida, a ideologia moderna da responsabilidade pessoal pela trajetória de vida encontra, na adesão à astrologia, uma inflexão particular. Para o indivíduo contemporâneo, que se percebe, ao mesmo tempo, como produto e produtor de sua historicidade, o modelo astrológico lhe propõe meios de escapar de condicionamentos contingenciais. A discrepância entre o rigor retrospectivo (era para acontecer isso mesmo) e o caráter fluido das previsões - que mantém a incerteza na direção dos eventos, a ambigüidade das situações e a ambivalência de significados e valores - justifica-se exatamente pelas oportunidades episódicas, a intervalos irregulares (marcados pelos climatérios), de que a pessoa dispõe para evadir-se desse tipo de condicionamento. Há constrições sim, mas elas são semânticas. Estão subordinadas ao domínio dos significadores envolvidos. Quando Saturno está envolvido, por exemplo, é possível que o 12

As relações entre dois planetas quaisquer são consideradas à luz de ciclos completos e, nesse sentido, o ciclo de da relação Sol/Lua é paradigmático: a luz da Lua desaparece junto ao Sol (Lua nova), cresce paulatinamente à medida que se afasta dele (Lua crescente), alcança o máximo de brilho na fase cheia e volta a diminuir (lua minguante) até desaparecer novamente na fase nova. Da mesma forma, qualquer oposição entre dois planetas implica que metade do ciclo se cumpriu: eles se encontraram, o mais rápido ultrapassou o mais lento, encontra-se agora em seu afastamento máximo e, daqui para diante, irá encurtando a distância que os separa até encontrar-se novamente com o mesmo planeta. A idéia de que a distância entre os planetas equivale a fases específicas de ciclos completos encapsula a diacronia na sincronia.

188 nativo emagreça, sinta-se cansado e sobrecarregado, ou enfrente obstáculos aos seus planos, pois esses são todos estados pertencentes ao domínio de Saturno. Se o nativo reporta uma promoção no trabalho nesse período, é de se supor que - para nos mantermos fiéis ao quadro desenhado por Saturno – essa promoção tenha decorrido de muito esforço e proficiência e seja acompanhada por pesados encargos. Não é essa a situação que se delineia quando, pelo contrário, Júpiter está envolvido. O grande benéfico costuma conferir boa sorte, expansão (o que não deixa de incluir aumento de peso), um estado de bem estar e uma benevolência por parte dos superiores. Este balizamento constitui a segunda peculiaridade do tratamento que a astrologia dá a uma história de vida.

As Classes Semânticas

Para além da datação dos períodos críticos na vida, cabe também ao astrólogo procurar compreender o valor e significado dos acontecimentos. Para tanto, é preciso encontrar, na especificidade do acontecimento, uma espécie de generalidade que remeta ao domínio paradigmático dos planetas envolvidos. Verifica-se assim uma tensão entre a singularidade e a exemplaridade. O acontecimento específico, precisamente delimitado, não pode ser previsto, mas o acontecimento como exemplar de uma classe sim. Eis porque, via de regra, o astrólogo precisa perguntar: ‘o que aconteceu no mês tal no ano tal?’ Porém, a despeito do fato preciso, ele se mostra sempre capaz de remeter ‘o que quer que tenha acontecido’ a um domínio de significações. Segundo a astróloga que atendeu Melissa, quando um Plutão se desloca por trânsito e se sobrepõe ao Ascendente, não é possível que o corpo físico não seja afetado de forma pronunciada. A tentativa de suicídio é absolutamente pertinente nesse contexto. Uma cirurgia plástica, no entanto, satisfaria igualmente a significação atribuída ao encontro de Plutão e Ascendente. Da mesma forma, quando o Sol se desloca, por progressão, até vencer a distância que o separa de Vênus, é de se esperar um período ‘legal’, para usar o adjetivo que Melissa empregou. Esse encontro planetário “favorece a área social e afetiva, podendo ser

189 encontrado em situações prazerosas de relacionamento afetivo como noivado, casamento ou nascimento” (Beranger, 2001:91). No decorrer da consulta astrológica, a confirmação desses aspectos substantivos sustenta as pretensões de validade do discurso astrológico, não só gerando – para ambos, astrólogo e cliente - o senso de um mundo compartilhado, como também confirmando a realidade assim construída. A história de uma pessoa é basicamente resultado de uma construção, na medida que ela é sempre contada por alguém. E esse alguém seleciona e organiza os fatos que compõem e garantem a compreensão daquele encadeamento. A memória é um componente essencial dessa construção. Meyerson (1956) enfatiza que a narratividade constitui uma forma de existência da memória, pois narrar não é apenas um modo de registro e recordação, mas também um modo de configuração da própria experiência temporal. Ao contrário da repetição condicionada que caracteriza o hábito, a memória torna indissolúveis a singularidade do evento e a ordem que o acolhe, se caracterizando assim pela unicidade da consciência. A memória se distribui entre diversos ‘lugares’, que se distinguem pelo modo como são organizados e pela maneira como estimulam a evocação (Halbwachs, 1994; Yates, 1984). Entre esses lugares, encontram-se: a) lugares funcionais, como os arquivos, a pasta de documentos, a agenda; b) rituais, como os aniversários, as comemorações, as festas; c) imagens, como o álbum de retratos, filmes e vídeos, souvenirs em geral; d) o corpo, lugar de marcas e cicatrizes, e lugar de sedimentação de destrezas e habilidades apoiadas na memória de ações; Os princípios da memória artificial, criados por Simonides no Século V a.C., lançaram as bases para as teorias da memória que se desenvolveram no campo da retórica e da ética. Os tratados da memória clássica e renascentista enfatizavam a importância de se eleger imagens excepcionais, fora do comum, e alocá-las em lugares igualmente impressionantes, como palácios ou teatros memoráveis, explorando assim uma imagística vívida para facilitar a associação de idéias (Yates, 1984). Não é de se estranhar então que o Zodíaco – que, desde a Antiguidade, nutre a arte da memória - se preste tão bem a formatar ‘lugares de memória’. Sua galeria de figuras, que

190 inclui cabra com rabo de peixe, centauro, touro que emerge da água, peixes amarrados por um cordão, mulher alada, entre outros, mantém vivo um material de evocação que tem um longo registro de aproveitamento. No quadro traçado por Yates, a arte da memória emerge como uma doutrina bastante apoiada na astrologia. Os ‘lugares’ astrológicos da memória são, naturalmente, os signos, as casas e os planetas, que esgotam o real montando classes finitas nas quais é sempre possível encontrar um lugar para qualquer evento ou entidade do mundo empírico. Contudo, as implicações das constrições semânticas previstas no modelo astrológico são no mínimo curiosas. Se a memória é seletiva e maleável, se é vulnerável a manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece a interesses, o astrólogo se mostra capaz de coibir as distorções da memória por uma espécie de norma de veracidade. Não venha me descrever uma infância amena se estou vendo no seu mapa uma Lua problemática. Não venha me dizer que a época de uma conjunção Sol/Vênus, uma época que tem tudo para ser radiosa, passou em brancas nuvens, porque isso não seria crível. Ouvi diversos relatos de acontecimentos ocorridos na infância, que o cliente desconhecia, e que lhe foram revelados pela leitura do mapa natal. “Quando eu vi aquele Netuno ali, tão afligido, fiquei muito desconfiada. Mas, ela não se lembrava de nada. Ela era muito pequena quando o Ascendente completou o aspecto com aquele Netuno e ficou de perguntar à mãe dela o que tinha acontecido. Dias depois ela me telefonou. A mãe tinha apanhado a babá em flagrante, entorpecendo-a com o gás do fogão para que ela dormisse e não desse trabalho. A babá foi despedida na mesma hora, mas o caso não foi registrado na polícia. A mãe ficou com medo”. (Célia) “Tinha que ser uma coisa meio violenta. Plutão e Marte juntos nunca é mole. Eu não sabia o que era, mas sabia que envolvia um irmão, ou talvez um tio. Casa 3, você sabe o que é. É coisa de gente próxima. (A cliente) foi perguntar e acabou sabendo que um vizinho tinha tentado abusar dela. A mãe pegou na hora, ele levando-a pela escada do play. Foi um Deus nos acuda, o pai queria matar o cara. Mas eles nunca tinham contado para ela. Agora veja você, vizinho, é Casa 3. Então, estava certo. Mas isso nunca tinha me passado pela cabeça”. (Renata)

191 Ouvi também histórias sobre fatos confessados pelo cliente à custa de muita insistência, insistência sustentada na credibilidade conferida pelo astrólogo às posições planetárias. “O regente da 7 não podia estar mais ferrado. Na 12, em queda, cheio de quadraturas, e (a cliente) ali me contado uma história linda sobre o marido dela, como ele era ótimo, como eles se davam bem, como tinham se conhecido. E eu dava umas dicas ‘você não quer me contar o que está acontecendo?’. E ela, nada. Tudo era uma maravilha. De repente, ela falou: ‘Eu não tenho nenhum problema com o meu marido, só a impotência dele. Total’. Olha só!. E eu já estava ficando doida, achando que estava lendo tudo errado.” (Mariana) A leitura de um mapa natal é, pelo menos parcialmente, um contar do outro sobre o eu e, como tal, intervém na composição de sua história de vida. Porém, na qualidade de interlocutor com acesso privilegiado a uma postulada exposição do eu sem subterfúgios, o astrólogo demanda uma confiabilidade que ultrapassa em muito o exercício rotineiro de negociações de sentido. O dizer astrológico ocorre numa relação interpessoal na qual um dos interlocutores é portador simbólico de um dizer forte, como que meta-lingüístico. No prefácio de Implicit Meanings, Mary Douglas (1999) apresenta uma concepção de verdade baseada em relações sociais. Nesse caso, a verdade não é entendida como produto da correspondência entre o discurso e o mundo, mas sim como uma qualidade da relação entre o sujeito da enunciação, considerado portador da verdade, e o mundo. As teorias sobre uma verdade empírica, baseada em uma correspondência aos fatos (o tipo de verdade que o experimento científico se propõe a alcançar), ou sobre uma verdade formal, baseada na configuração interna do universo do discurso (como as verdades lógicas e matemáticas), não se confundem com os critérios de veracidade empregados pelas pessoas em situações concretas de interlocução. Pela sugestão de Mary Douglas, é possível atribuir o critério de verdade ao discurso astrológico não pela via dos enunciados, mas sim pela via da enunciação. Segundo Benveniste (1989:82), a enunciação é “o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado”. Enquanto o enunciado diz respeito ao conteúdo propriamente dito do ato de linguagem, a enunciação dá-lhe uma feição particular, de acordo com as circunstâncias. A noção de enunciação abarca não só a seqüência de enunciados, mas

192 também a relação recíproca entre emissor e receptor, além do contexto no qual a interlocução ocorre. Na qualidade de mecanismo básico de interação social, a enunciação enfatiza que a significação é fruto de um ato de dupla face, sendo determinada tanto por quem emite o enunciado quanto pelo destinatário. A posição de Benveniste (1989:81-90) de que a enunciação é a instância do eu-aqui-agora, além de ser o mecanismo que opera a passagem da língua ao discurso, levou-o a demonstrar que as categorias da enunciação são da ordem do acontecimento, lugar privilegiado da instabilidade lingüística e da negociação de sentidos. Holbraad (2003) não discute a noção de verdade nas práticas divinatórias pela via da enunciação, mas sim por meio de uma lógica não-representativa, ou seja, uma lógica que não se pauta na representação. Com base na etnografia dos oráculos de Ifá em Havana, Holbraad (2003:59) descreve que a interpretação oracular envolve um diálogo entre o babalawo e o consulente no qual certos mitos gerais são gradativamente transformados, até se aplicarem à situação imediata do consulente. É essa capacidade dos elementos de significação se transformarem, ou se moverem, que sugere a Holbraad denominar a lógica não representativa que ele propõe de ‘uma lógica movente’. Também na consulta astrológica, o discurso do astrólogo costuma recorrer a mitos, provérbios, fábulas e parábolas, na busca de um ajuste fino entre as circunstâncias peculiares do nativo e o fluxo narrativo de uma tradição alegórica. Não é por acaso que, na escola para formação de astrólogos que freqüentei, o estudo da mitologia grega seja tão demandado. No meu grupo de supervisão, a ênfase recaía no conhecimento da literatura, principalmente a poesia. Pascal Boyer (1986) também apresenta uma abordagem não-representativa da verdade que possa ser harmonizada com a prática oracular. Trata-se, mais propriamente, de uma abordagem metarepresentativa, no sentido de que enfoca como as pessoas representam as representações. Tratando a divinação como o domínio por excelência em que são empregados predicados de verdade, Boyer levanta dois aspectos a serem considerados. Em primeiro lugar, se os clientes de um adivinho se esforçam tanto para justificar eventuais erros de predição, não se pode descartar a evidência de que eles consideram o discurso do adivinho “comme l’expression potentielle de verités, et non comme um commentaire intéressant sur la situation considerée” (1986:320).

193 Também no contexto da consulta astrológica, a intervenção do astrólogo é avaliada e comentada, pelo cliente, nesses termos: ‘ele acertou’ ou ‘ele não acertou’. Esse viés preferencial pela verdade não se limita à leitura do mapa, mas alarga-se para incluir o próprio conhecimento de mundo que os adeptos da astrologia promulgam. No grupo pesquisado, as pessoas costumam declarar que os cientistas se enganam, pois não conhecem a ‘verdadeira’ relação entre os fenômenos, que as colunas de horóscopos são enganosas, pois não correspondem à ‘verdadeira’ astrologia, que os clientes erram e sofrem, quando se alienam de sua ‘verdadeira’ natureza. O segundo aspecto observado por Boyer diz respeito ao juízo de correspondência aos fatos. A sugestão de que é preciso esperar pela eventual confirmação ou refutação da previsão, antes de se emitir um juízo sobre sua validade, pode dar a entender que o cliente toma o discurso do adivinho como verdadeiro apenas até prova em contrário. Porém, para Boyer, a questão crucial é porque o cliente aceita as palavras do adivinho como verdadeiras antes mesmo de defendê-las ou protegê-las de eventuais refutações. A resposta a essa questão, na opinião de Holbraad (2003:55), é que a prática divinatória inverte a premissa de que a atribuição de verdade vem após o veredito oracular. O que torna a verdade oracular tão especial é que o consulente se esforça para entender o que o oráculo lhe diz porque o que ele diz é verdadeiro, ao contrário da prática comum de, antes, tentar-se entender o que o interlocutor diz para, depois, julgar se o que ele diz é verdade. Boyer examina mais detidamente os sistemas divinatórios mundang e sisala de Gana, que empregam uma dupla consulta aos ancestrais. Depois que um primeiro adivinho descreve a situação e emite seu prognóstico, um segundo adivinho é procurado, a fim de julgar a veracidade do primeiro. Essa espécie de ‘meta-adivinhação’ recorre a um procedimento circular. Para validar uma técnica divinatória, emprega-se também uma técnica divinatória. Boyer argumenta que essa circularidade poderia facilmente ser considerada irracional, caso não fosse estabelecida uma distinção implícita, porém crucial, entre as duas consultas. Segundo ele, a primeira consulta se baseia em uma relação de representação e a segunda consulta se baseia em uma relação causal. Na descrição da situação, monta-se um quadro no qual os ancestrais são representados e, pelas características a eles atribuídas, o adivinho vislumbra o prognóstico. Na meta-adivinhação,

194 os ancestrais são a causa do discurso: o quadro sobre a validade da primeira consulta é montado pelos próprios ancestrais. Poderíamos sem dificuldades traçar um paralelo entre essa circularidade e a consulta astrológica. Na leitura do mapa natal, os planetas são representados. O intérprete do mapa atribui aos planetas certas características que lhe permitem descrever uma situação e aventurar-se em um prognóstico. Na ontologia do mapa, porém, os planetas são a causa do discurso astrológico. O mapa de nascimento é um diagrama de um estado celeste que os planetas provocam. Há, então, dois níveis lógicos: 1) a leitura pode ser falha; 2) o discurso planetário é sempre verdadeiro. A distinção entre esses dois níveis lógicos implica diferentes atitudes com relação à leitura do mapa. O resultado é que uma suspeita quanto à legitimidade do intérprete não contagia a confiança depositada na astrologia. No caso específico do grupo pesquisado, um virtuosismo extremado resguarda as correções dos vereditos. Na eventualidade de erros ou enganos, são produzidas elaborações secundárias em busca da falha, geralmente com a introdução de variáveis extras. “Fiquei muito surpresa com o que aconteceu. O problema é que isso não aparecia nem na Revolução Solar, nem na progressão direta. Mas, depois, eu fui verificar e aparecia claramente na progressão conversa. Estão vendo? Se a gente não verifica, com cuidado, pode deixar escapar e aí vai errar”. (uma das professoras do Espaço do Céu, em recomendação à turma) “A mãe dela foi internada logo depois do aniversário dela. No mesmo mês. Foi assim, na lata. Quando eu fiz a Revolução Solar, eu tinha lido aquele Marte dela como um problema no trabalho. Me lembro que Urano pegava ele em cheio. Mas, depois, eu vi. Claro! Esse Marte rege a mãe dela no mapa natal”. (Sônia) Na medida que o sistema astrológico opera com múltiplos eixos conexos, há então uma multiplicidade de planos que produzem verdades. É a essa multiplicidade de planos que meus informantes parecem se referir quando alegam que a leitura de um mapa é ‘simbólica’ e, portanto, não pode se ater a uma determinação rigorosa.

195 Em uma pormenorizada discussão não sobre a verdade oracular, mas sim sobre a verdade dos conceitos ameríndios, Viveiros de Castro (2002) apresenta uma concepção de simbólico que equaciona o verdadeiro ao relevante. “O simbólico não é o semiverdadeiro, mas o pré-verdadeiro, isto é, o importante ou relevante: ele diz respeito não ao que ‘é o caso’, mas ao que importa no que é o caso, ao que interessa para a vida no que é o caso”. (2002:137) Tomando o pensamento ameríndio como atividade de simbolização ou prática de sentido, Viveiros de Castro recusa o jogo que permite enviezar a extensão dos conceitos ameríndios, seja pela via da explicação, seja pela via da interpretação. Argumenta que a especificidade a ser investigada pelo antropólogo tem a ver com a intensão desses conceitos. “O enunciado sobre a humanidade dos pecaris, se certamente revela – ao antropólogo – algo sobre o espírito humano, faz mais que isso – para os índios: ele afirma algo sobre o conceito de humano. Ele afirma, inter alia, que a noção de ‘espírito humano’ e o conceito indígena da socialidade, incluem, em sua extensão, os pecaris – e isso modifica radicalmente a intensão desses conceitos relativamente aos nossos”. (2002:134) De certa maneira, Viveiros de Castro institui um modelo composto de ‘mundos possíveis’13, efetivos domínios com linguagens e valores próprios, onde a extensionalidade de uma proposição, ou, mais propriamente, de um conceito, está conectada aos estados passíveis de serem descritos nos respectivos mundos. No ‘mundo possível’ das práticas divinatórias, o adivinho “não pode mentir porque, rigorosamente falando, ele não fala” (Holbraad, 2003:48). Na consulta astrológica, a história negociada entre astrólogo e cliente pressupõe a figura implícita de um narrador onisciente, representada pelo próprio mapa, pois admite-se que aquela ‘escritura’ não omite, não exagera e não mente. A considerarmos a consulta como um ato de fala, conforme propusemos no capítulo anterior, as condições de felicidade desse ato incluem a sinceridade do intérprete, que ‘fala por’ um estado celeste que, a bem dizer, precisa ser decifrado. É preciso levar em conta que

13

“A anedota dos corpos diferentes convida a um esforço de determinação do mundo possível expresso no juízo da mulher piro. Um mundo possível no qual os corpos humanos sejam diferentes em Lima e em Santa Clara – no qual seja necessário que os corpos dos brancos e dos índios sejam diferentes”. (Viveiros de Castro, 2002:139/140)

196 uma consulta astrológica não se debruça sobre o relato que a própria pessoa faz sobre sua vida. O objeto de descrição é o mapa natal e, a princípio, o cliente está ali para ouvir. Podemos, então, retomar a contraposição percebida por Lévi-Strauss (1975:211) entre a eficácia simbólica do xamanismo e a da psicanálise em termos da polaridade ouvir/dizer. Enquanto que, na clínica psicológica, a escuta cabe ao terapeuta e o dizer ao paciente, na consulta astrológica, mais próxima do xamanismo, o cliente escuta o dizer do astrólogo. No canto daquele que lê o mapa astrológico, a inteligibilidade do vivido repousa sobre a premissa de uma relação céu/terra eficaz, preservada nos lugares da memória que a astrologia oferece. Graças ao peculiar código cronológico de que dispõe e às contrições semânticas que norteiam seu dizer, o astrólogo torna-se guardião da memória em virtude do estímulo diferenciado que faz sobre a evocação. É também criador e nomeador da memória, em virtude da maneira como classifica e qualifica aquilo que deve ser memorável.

Conclusão

O Núcleo de Estudos de Fenômenos Paranormais da UNB programou o seu 10 Encontro Nacional de Astrologia para os dias 12 e 13 de agosto de 2005. Astrólogos de todo o Brasil foram convidados a apresentar seus trabalhos de pesquisa. A diretora do Espaço do Céu e dois Celestinos (é assim que os membros da Academia Celeste se autointitulam) já contaram aos amigos que seus trabalhos foram selecionados. O Sinarj programou o 70 Simpósio Nacional de Astrologia para os dias 19, 20 e 21 de agosto de 2005, no Hotel Florida, no Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro. O boletim de convocação inclui a notícia de que, finalmente, as escolas de astrologia brasileiras chegaram a um consenso sobre o currículo mínimo para a formação de astrólogo, que será apresentado ao público nessa ocasião. A Academia Celeste, por sua vez, planeja, para setembro de 2005, o seu 10 Seminário, em data e local ainda por serem determinados, mas que já conta com quatro trabalhos inscritos. O Sinarj ofereceu sua sala em um edifício no centro da cidade, que comporta um público de cerca de 25 pessoas, e me parece que os Celestinos estão inclinados a aceitar o convite. Pelo visto, os encontros voltados para a discussão da astrologia continuarão se sucedendo e se multiplicando. As pessoas com quem convivi muito conversam sobre a regulamentação da profissão de astrólogo e sobre a expectativa de se obter, da sociedade mais ampla, o respeito que a astrologia merece, na qualidade de ciência. Mas, que ciência é essa? Meus astrólogos argumentam, às vezes com ironia, não raro com irritação e muitas vezes de forma jocosa, que a astrologia não se distingue tanto assim da economia, que oferece análises retrospectivas muito mais acuradas do que prognósticos confiáveis; nem do direito, que se apóia em um corpo de casos típicos, precedentes exemplares e provisões de desvios; tampouco da medicina, que baseia seus diagnósticos em sinais, chamados de sintomas. Evidentemente, ela não se confunde com a astronomia1, que também se debruça

1

“Eu ia te dizer que a astronomia é a arqui-inimiga da astrologia, mas isso não é bem verdade. As duas até já foram uma coisa só, no passado. O problema não é a astronomia. São os astrônomos. Eles é que fazem a briga toda. Têm pavor que as pessoas confundam as duas, acham que astrólogo é maluco e não se conformam que a gente fique dizendo coisas sobre o céu”. (Cristina)

198 sobre o céu estrelado, pois o objeto do pensamento astrológico não é o céu empírico, mas sim o homem e o mundo, pensados por meio do céu estrelado. Quando, há anos atrás, sentei-me ao lado de minha amiga Cláudia para ouvir a gravação de sua consulta com uma astróloga, lembro-me que não fiquei a imaginar uma causa eficiente, irradiações enviadas pelos astros que plasmariam a vida e as motivações dominantes de minha amiga. E as minhas. E as de todos nós. Mas fiquei a conjecturar sobre a eficácia simbólica de um conjunto de formas gráficas, espaçados numa escala de graus, minutos e segundos, que geraram um contar no qual minha amiga se reconheceu. Quando a fita parou de rodar, ela desligou o gravador, apoiou as mãos sobre a mesa e exclamou: “Não é impressionante?!” Hoje, encerrando esse período de pesquisa, eu me encontro semi-alfabetizada, se tanto, no astrologuês, uma linguagem mágica, onde nomes totêmicos, como ‘Vênus trígono Netuno’, podem ser predicados de leões escalpelados ou carneiros que voam. Uma concepção mágica da linguagem encontra pouco respaldo entre aqueles que, juntamente com Saussure, tratam a linguagem como um sistema de signos convencionais, arbitrários e imotivados. Porém, para o narrador de Benjamin (1996:108-113), o teor mágico da linguagem se alimenta da faculdade mimética com que o homem produz semelhanças, fazendo, de cada palavra oral, uma onomatopéia e, de cada palavra escrita, um arquivo de semelhanças e de correspondências extra-sensíveis. Uma tal linguagem poderia compelir o homem a ceder a uma “ilusão retórica”, na expressão de Bourdieu (2004:76), para tratar a vida como uma história. Se a tentativa de totalização de si e de suas experiências de vida ilude o homem, somos levados a concordar que, na qualidade de sujeito interativo, o homem estrutura o contexto gradativamente, pois, em momento algum, lhe é permitido escapar da situação em que se encontra para enxergála como um todo. Porém, na qualidade de sujeito cognitivo, o homem promove alguns mecanismos pelos quais ele se concede uma percepção ampla, abrangente e panorâmica. A linguagem é, certamente, o principal desses mecanismos, oferecendo uma multiplicidade de planos enunciativos por meio dos quais o homem garante o seu dizer a partir de uma posição decalcada do contexto. Esse descolamento do plano sensível lhe possibilita, inclusive, apresentar estados de coisas extremos (sempre, nunca, todos, nenhum), estados intermediários (cada um, qualquer um) e estados suspensos (era uma vez,

199 em algum lugar) que não poderiam jamais ser apontados. Na linguagem e pela linguagem, o homem totaliza, destotaliza e retotaliza, a si e ao mundo, construindo o real pelo poder genésico do dito. Se o mapa astrológico é um dos modos pelos quais o homem diz de si e do mundo, a linguagem astrológica deve contar com um conjunto de procedimentos mediante os quais entidades, atividades, ou fenômenos diversos podem ser agrupados em uma mesma classe. Tentamos esclarecer como essas classes se organizam, quais as principais categorias acionadas pelo sistema astrológico, quais os temas, ou focos de significado, que balizam os domínios dos significadores. Acreditamos que era necessário, primeiro, elucidar esse repertório de constituintes formais, antes que o contexto dialógico de uma consulta astrológica pudesse ser abordado. Na leitura ritual de um mapa de nascimento, o intérprete do mapa provoca a emergência de uma outra história, para além da história que o cliente conhece a respeito de si mesmo. Essa segunda história representa um dizer forte, disposto a penetrar a trama dos eventos para acessar uma matriz pessoal, redimensionando as relações que o próprio cliente estabelece entre as suas experiências de vida. Por fim e ao cabo, o cliente vê respondidas as mesmas perguntas que um Zande se coloca. Por que eu? Por que agora? Por que assim? Mais do que uma caracterologia de personagens e motivações, o sistema astrológico produz meios para qualificar o tempo e o espaço. Supõe assim tempos oportunos e perspectivas privilegiadas para cada nativo em particular, fazendo da singularidade o modo usual de ser. A questão da veracidade dos vereditos astrológicos acabou se estendendo por três capítulos, muito em consonância com as repetidas instâncias ao longo de toda essa pesquisa em que as pessoas, ao tomarem conhecimento do meu tema, me perguntavam: “Mas, você acredita em astrologia?” Devo confessar que aprendi a me identificar como uma ariana, de Ascendente Touro e Lua em Leão, tornando-me reconhecível nos termos das pessoas com quem convivi. Dizer de mim por meio do céu estrelado era uma maneira de respeitar os esquemas de compreensão dos relacionamentos pessoais que o meu grupo adotava. Mas, se essa linguagem é iludida ou ilusória, quem saberá?

200 Afinal de contas, o patrono da astrologia é o camaleônico Mercúrio, igualmente patrono da inventividade, do logro, da artimanha, da apropriação do alheio, da engenhosidade, da destreza e, claro, da decifração de enigmas.

Anexo 1 As 48 constelações conhecidas na Antiguidade (Robson, 1988:23/24)

Constelações Boreais Nome em Latim

Nome em Português

Estrela Alfa1

Andromeda

Andrômeda

Alpheratz

Aquila

Águia

Altair

Auriga

Cocheiro

Capella

Bootes

Boieiro

Arcturus

Cassiopeia

Cassiopéia

Schedar

Cepheus

Cefeu

Alderamin

Corona Borealis

Coroa Boreal

Alphecca

Delphinus

Golfinho

Sualocin

Draco

Dragão

Thuban

Equleus

Pequeno Cavalo

Kitalpha

Cygnus

Cisne

Deneb

Hercules

Hércules

Rasalgethi

Lyra

Lira

Vega

Ophiucus

Serpentário

Rasalhague

Pegasus

Pégaso Cavalo Alado

Markab

Perseus

Perseus

Algol

Sagitta

Flecha

Serpens

Serpente

Unuck al Hai

Triangulum

Triângulo

Ras al Mothallah

Ursa Major

Ursa Maior

Dubhe

Ursa Minor

Ursa Menor

Polaris

1

Os astrônomos convencionaram adotar o alfabeto grego para designar as estrelas principais de cada constelação. A estrela mais brilhante é chamada de estrela alfa (α), a segunda em intensidade é chamada de estrela beta (β),e assim por diante.

202 Constelações Austrais Nome em Latim

Nome em Português

Ara Carina2 Canis Major Canis Minor Centaurus Cetus Corona Australis Corvus Crater Eridanus Hydra Lepus Lupus Orionis Piscis Australis

Altar Carena do Navio Cão Maior Cão Menor Centauro Baleia Coroa Austral Corvo Taça Rio Erídano Hidra Serpente do Mar Lebre Lobo Órion Peixe Austral

Estrela Alfa

Canopus Sirius Prócion Rigil Kentaurus Menkar Alchiba Alkes Achernar Alphard Arneb Men Betelgeuse Fomalhaut

Constelações Zodiacais Nome Latim

Nome Português

Estrela Alfa

Aries

Carneiro

Hamal

Taurus

Touro

Aldebaran

Gemini

Gêmeos

Castor

Cancer

Caranguejo

Acubens

Leo

Leão

Regulus

Virgo

Virgem

Spica

Libra

Balança

Zubenelgenubi, Zubeneneschamali

Scorpius

Escorpião

Antares

Sagittarius

Sagitário

Rukbat

Capricornus

Capricórnio

Algedi

Aquarius

Aquário

Sadalmelik

Pisces

Peixes

Alrischa

2

Carina fazia parte da constelação Argo, o navio dos Argonautas, mas essa constelação foi subdividida mais tarde em Carina (Carena do Navio), Puppis (a Popa do navio) e Vela (a Vela do navio).

Anexo 2 O código dos aspectos A astrologia de base helenística, que o grupo com o qual convivi se dedicou a estudar, parece estar calcada em uma concepção da visibilidade como a marca do ser e do inteligível. A premissa de que o estado do céu que importa é o estado do céu tal como é percebido pelo nativo vale também para os próprios planetas. As influências recíprocas somente ocorrem entre aqueles planetas que podem se perceber, ou seja, se ver e/ou se tocar. Os planetas podem se tocar quando estão próximos o bastante, geralmente a não mais de 100 de distância zodiacal. O Sol é o astro de maior envergadura, conseguindo tocar outro planeta a até 170 de distância. Os planetas podem se ver quando estão posicionados de tal modo que a distância entre eles corresponde a determinados arcos de um círculo. Na terminologia técnica, dois planetas assim posicionados estão ‘em aspecto’. O código visual está amalgamado a um código geométrico que valora os ângulos de visão em função de sua correspondência a lados de polígonos regulares inscritos.

Ângulo de visão 600 900 1200

Polígono inscrito hexágono quadrado triângulo

Aspecto sextil quadratura trígono

Um planeta está ‘em sextil’ com outro planeta que esteja a 600 de distância, seja na ordem de sucessão dos signos, seja na ordem inversa. Isso significa que esse posicionamento é válido para a direita e para a esquerda. Apresentamos a seguir cada um desses aspectos. As linhas cheias indicam o aspecto para a direita e para a esquerda. As linhas tracejadas completam a figura do polígono regular inscrito, para melhor visualização do código geométrico.

204

O sextil = arco de 600

A quadratura = arco de 900

205

O trígono = arco de 1200

A ‘oposição’ não se trata propriamente de um aspecto, pois não equivale a um polígono inscrito, mas sim ao diâmetro. Tem a conotação de visão direta, face a face, e é considerado tão forte quanto a conjunção corporal.

A oposição = 1800

206 Os arcos que não se enquadram nesse código geométrico marcam os pontos cegos do campo de visão. Os arcos de 300 são oblíquos demais e os de 1500 não correspondem a lados de polígonos regulares inscritos. Os planetas que estão assim distanciados não se vêem.

Pontos cegos = arcos de 300 e 1500

Aparentado a uma mística pitagórica, o trígono é considerado o mais favorável ângulo de visão porque decorre de uma divisão dos 3600 do círculo por 3, número benéfico. O sextil, decorrente de uma divisão por 6 (3x2) é favorável por causa do 3, embora menos do que o trígono, por causa do 2. A quadratura é ‘difícil’, porque decorre de uma divisão de 3600 por 4 (2x2), não contando com o benefício do 3. Essa mística reforça o número ímpar como masculino ou positivo, e o número par como feminino ou negativo. Os aspectos são valorados como favoráveis ou desfavoráveis. Isso significa que um planeta pode enviar a um outro um bom ou um mau olhar. Um mau olhado de um planeta maléfico (Marte ou Saturno) tem uma conotação bastante desfavorável. Um mau olhado de um planeta benéfico (Júpiter e Vênus) não chega a ser danoso, dada a natureza do planeta. O mais provável é que reduza as ajudas que este planeta poderia oferecer. Para a interpretação do mapa, é relevante determinar a natureza, favorável ou desfavorável, do planeta que está lançando um olhar e do olhar que ele está lançando.

Anexo 3 Os Signos do Zodíaco1 Áries - A O carneiro ariano é identificado como aquele que facilitou a fuga dos irmãos Frixo e Hele, ameaçados de morte pela madrasta. Esse carneiro voador, de velo de ouro, carregou os dois irmãos em seu dorso por sobre o mar Egeu. No meio do caminho, Hele escorregou e caiu no mar. Chegando sozinho à Cólquida, Frixo sacrificou o animal e pendurou seu velo na árvore de um bosque dedicado a Marte, onde ficou guardado por um dragão até ser conquistado pelo herói Jasão. Outras versões fazem dele o carneiro disputado por Atreu e Tieste ou o que conduz o cortejo de Baco ao oásis de Amon. O glifo2 do signo – A – simboliza os cornos do carneiro.

1

Os mitos associados às constelações zodiacais foram comentados pelo historiador Bouché-Leclerq que publicou, em 1899, um extenso trabalho sobre a astrologia grega, ainda hoje uma das principais obras de referências sobre o tema. Mais recentemente, foram comentados por Theony Condos (1997), cuja tese de doutoramento em Cultura Clássica, na Universidade da Califórnia do Sul, incluiu a tradução dos textos Catasterismi de Pseudo-Eratóstenes (século I) e Poeticon Astronomicon de Higinus (século I a.C.), duas fontes clássicas dos mitos associados às constelações. Esse material bibliográfico me foi fornecido por membros da Academia Celeste. As figuras aqui exibidas reproduzem as do Atlas Celeste Flamsteed-Fortin, a versão francesa de 1776 do Atlas de Flamsteed, originalmente publicado em 1729. Estão disponibilizadas no site www.web.genie.it por Giangi Caglieri. 2 Glifo é o nome dado à notação codificada de signos e planetas.

208 Na figura desenhada no céu, o carneiro está deitado, com o corpo voltado para o Leste e a cabeça virada para o Oeste, em direção à constelação de Touro. As pontas dos cornos são assim a parte da figura que primeiro o Sol encontra em seu trajeto pelo zodíaco, condizendo com o caráter belicoso atribuído ao signo.

Touro - B O touro é tido como o animal no qual Júpiter se metamorfoseou a fim de seduzir a jovem Europa. Extremamente alvo, com os cornos em forma de crescente lunar, ele arrebatou a moça que brincava à beira d’água e cruzou o mar, carregando-a em seu dorso, até chegar à ilha de Creta. Outras tradições atribuem esta figura ao touro que seduziu Pasífae, rainha de Creta, ou à vaca Io, perseguida por Juno até refugiar-se no Egito, ou ainda ao boi Apis (BouchéLeclerq, 1963:133) O glifo do signo – B

- representa a cabeça e os cornos do touro.

209 Na figura desenhada no céu, o touro só exibe a cabeça e a parte anterior do tronco3. Como a parte genital não se mostra, há também toda uma controvérsia quanto ao sexo deste animal. O signo de Touro está associado a uma forte natureza feminina4. A presença das Plêiades e das Hyades5 reforçam a feminilidade, ligada igualmente aos chifres em forma de crescente lunar.

Gêmeos - C Os gêmeos são filhos de Leda, nascidos de um ovo depois que Júpiter a seduziu sob a forma de um cisne, na noite em que ela se casou com Tíndaro, rei de Esparta. Cada um deles tinha um pai. Castor, mortal, era filho do rei e Pólux, imortal, era filho do deus. Quando Castor morreu, Pólux não aceitou separar-se do irmão. Comovido pelo amor fraterno de Pólux, Júpiter permitiu que ambos convivessem com os outros deuses no Olimpo, mas alternadamente. Quando um se encontra no Hades, o reino dos mortos, o outro está no Olimpo, e vice-versa. Outras versões se referem ao par de jovens como Apolo e Hércules, ou Apolo e Baco, ou Hércules e Teseu, ou os Cabires da Salmotrácia. O par é sempre fraterno ou amigo. O glifo do signo –

C - exibe duas colunas paralelas, representando a duplicidade,

ligadas nas extremidades.

3

Esse detalhe o inclui entre os signos ‘mutilados’, juntamente como Câncer (pois o caranguejo é cego) e Escorpião (que perdeu as pinças) 4 Na divisão dos signos em masculinos e femininos, Touro é um signo feminino. E é também ‘governado’ pelos dois únicos planetas femininos, a Lua e Vênus. 5 As Plêiades são um grupo composto de sete estrelas bem próximas umas das outras, localizadas no ombro do Touro. Miticamente, são as sete filhas de Atlas e Pleione. Segundo uma variante, elas cometeram suicídio pela dor que sentiam ao ver o pai condenado a carregar o mundo nos ombros, punição que ele recebeu por ter lutado a favor dos Titãs. Outra variante as faz serem perseguidas pelo gigante Órion e transformadas em pombas pelos deuses. Foram elevadas ao céu e colocadas bem próximo à constelação de Órion. BouchéLeclercq (1963:134) lembra que, quando o equinócio acontecia em Touro, a ascensão das Plêiades marcava o início do ano. As Hyades, outra nebulosa de Touro, são freqüentemente mencionadas pela reputação de trazer chuva. Filhas de Atlas e Aethra, eram irmãs das Plêiades pelo lado paterno. As lágrimas que derramaram pela morte do único irmão comoveram os deuses. Foram elevadas ao céu em reconhecimento pela tristeza condoída que demonstraram.

210

Na figura traçada no céu, os dois irmãos estão abraçados, um olhando para o outro, com os pés ligeiramente arqueados à frente do corpo6. Castor está a leste, próximo ao signo de Touro, e Pólux está a oeste, próximo ao signo de Câncer.

6

Esse detalhe o inclui entre os signos de postura ‘não natural’, pois o Sol, ao atravessar esse signo, encontra primeiro os pés dos gêmeos. Três signos se mostram ao contrário dos outros nove: Touro, Gêmeos e Câncer. As figuras do Touro e do Caranguejo se apresentam de costas para o início dos signos, o que implica que o Sol, em seu trajeto pelo Zodíaco, atinge primeiro as partes posteriores desses animais. Os gêmeos não estão de costas, mas levantam os pés à frente do corpo, apresentando-os em primeiro lugar. Manilius (2, 10) sugere que o esforço empreendido pelo Sol contra essas figuras que se apresentam de forma não natural é o que explica a lentidão com que ele atravessa esses signos, no período que prepara o verão. Note-se a circularidade entre as figuras traçadas no céu e as condições empíricas, que ora são entendidas como justificativa, ora como efeito dos catasterismos.

211 Câncer - D Câncer é representado pelo caranguejo que mordeu os pés de Hércules quando este herói lutava contra a Hidra de Lerna. Tendo ferido o herói a comando da deusa Hera, foi elevado ao céu em recompensa por sua obediência. O glifo do signo – D – representa as garras do caranguejo.

O caranguejo se apresenta voltado para o oeste. Logo, o que se vê primeiro é a parte posterior de sua carapaça7. Seus olhos estão velados e a pretensa cegueira é reforçada pelo brilho tênue de uma nebulosa situada entre as antenas do caranguejo, associada a problemas de vista8. Uma controvérsia está ligada à espécie específica deste animal. Para Manilius e Ptolomeu, trata-se de um crustáceo marinho, mas há quem o considere de água doce. Esta discussão envolve o signo de Peixes, pois, quem credita a água marinha a Câncer reserva a água doce aos Peixes e vice-versa. 7 8

Daí sua inclusão entre os signos de postura ‘não-natural’. Daí sua inclusão entre os signos ‘mutilados’.

212 Leão - E O leão é identificado como o Leão de Neméia, morto por Hércules. Devido à pele invulnerável, nenhuma arma poderia feri-lo. Hércules o tonteou com a clava e sufocou-o. Tirou-lhe a pele com as próprias garras do animal e passou a usá-la sobre o corpo, como escudo. Tanto Ps-Eratóstenes quanto Higinus citam uma outra tradição que não identifica a figura com um leão particular, mas com o leão em geral, na qualidade de rei dos animais. Daí porque o signo de Leão é bem marcado nos mapas de reis e nobres (Bouché-Leclerq, 1963:139). O glifo do signo – E – representa a cauda do leão.

A figura traçada no céu mostra o leão de pé, com o corpo voltado para o leste, pronto para avançar.

213 Virgem - F A jovem é tida como a deusa Astréia, filha de Zeus e Têmis, que se exilou da Terra por desgosto com a injustiça aqui reinante. Ps-Eratóstenes e Higinus sugerem sete alternativas para identificar a jovem: Diké (uma das Horas), Deméter (pela espiga que carrega nas mãos), Isis (na tradição egípcia), Atargatis, Fortuna, Justiça, Erígnona9. O glifo do signo – F – resume a jovem segurando um ramo de trigo.

A figura traçada nos céus mostra uma mulher alada10, deitada sobre a eclíptica, de cabeça para o leste e os pés para o oeste, tendo na mão esquerda uma espiga.

9

Icário foi assassinado por camponeses embriagados pelo vinho, que suspeitaram ter sido envenenados por aquela bebida. Erígona encontrou o corpo do pai por causa dos uivos de seu cão e, desesperada, enforcou-se numa árvore. Os deuses elevaram os três ao céu. Segundo essa versão, Icário tornou-se a constelação do Boieiro, Erígona é a constelação de Virgem e o cão, a constelação de Cão Menor. 10 Embora o plantel de animais do Zodíaco não contenha aves, dois signos são considerados ‘alados’: Virgem, em virtude da figura alada, e Sagitário, pelo manto esvoaçante que o cavaleiro veste.

214 Libra - G O signo de Libra foi o último a ser incluído no Zodíaco e ocupou o lugar das pinças do Escorpião. Ptolomeu refere-se a esse grupo de estrelas tanto como os pratos da balança quanto como as pinças. O glifo G representa a forma estilizada de uma balança.

Para Bouché-Leclerq, a idéia da balança foi sugerida pela versão que associa a Virgem à Justiça. A figura traçada no céu remete à balança que a Virgem carrega nas mãos e essa associação permite que a balança seja considerada uma figura ‘humana’, embora seja um objeto.

215 Escorpião - H O escorpião é aquele que picou Órion, o guerreiro que se vangloriava de ser invencível. As duas constelações, Escorpião e Órion, diametralmente opostas, encenam o combate no céu. Dizem que Órion foge para o oeste sempre que o Escorpião ascende no leste. O glifo H representa a cauda do escorpião, em riste, pronta para um ataque.

A figura traçada no céu mostra o escorpião sem as pinças, já transformadas nos pratos da balança.

216 Sagitário - I Para a maioria dos autores, a figura retrata o centauro Quíron, tutor de grande número de heróis gregos, que foi ferido acidentalmente por Hércules, com uma das flechas do herói embebidas no sangue da Hidra de Lerna. Versado em música e medicina, Quíron tinha a reputação de ser sábio e justo e foi tutor de inúmeros heróis da mitologia grega. No entanto, tanto Higinus quanto Ps-Eratóstenes alegam que a figura não poderia ser a de um centauro, pois os centauros não usavam arco e flecha. Esses autores preferem associar a figura a Croto, irmão de leite das Musas. Exímio arqueiro e caçador, Croto ritmava o canto das Musas com as mãos e consta que foi ele o inventor do aplauso. A pedido das Musas, Júpiter elevou-o aos céus. Higinus diz que Júpiter desejou assinalar todas as virtudes de Croto em uma única figura celeste e, por isso, dotou-o de pernas eqüinas e colocou-lhe a flecha nas mãos, para ressaltar sua ligeireza e habilidade. O glifo I representa a flecha do arqueiro.

O arqueiro empunha um arco armado com uma flecha, pronta para ser disparada, e veste-se com uma espécie de manto esvoaçante, detalhe que o inclui entre os signos ‘alados’.

217 Capricórnio - J Sendo perseguido pelo monstro Tifão, o deus Pã atravessou o rio Nilo transformando a parte inferior de seu corpo em peixe e a parte superior em cabra. Vencida a guerra contra os gigantes, Júpiter colocou-o no céu. Consta que Pã e Júpiter eram irmãos de leite, tendo sido ambos amamentados pela cabra Amaltéia. Segundo a versão de Ps-Eratóstenes e Higinus, trata-se de Egipã11, que foi criado junto de Júpiter e o ajudou a lutar contra os titãs. Inventou a trombeta, feita de uma concha marinha. Ps-Eratóstenes afirma que a trombeta era chamada ‘panicus’ pelo som que emitia. Higinus justifica o rabo de peixe da figura pelo fato de a trombeta ser de origem marinha e acrescenta que Egipã atacava os inimigos atirando conchas ao invés de pedras. O glifo J representa os chifres da cabra e o rabo do peixe.

A figura desenhada no céu mostra a cabra voltada para o Leste. Manilius (4, XIX) afirma que, na primeira metade da vida, o capricorniano escala montanhas escarpadas, num esforço caprino, e, na segunda metade, desliza célere pelas águas, graças ao rabo de peixe.

11

Egipã é tido como filho de Pã e da ninfa Ega. Não se sabe com certeza se ele é um personagem distinto ou um duplo de Pã em forma híbrida. A história sobre o som que causa pânico também é atribuída a Pã.

218 Aquário - K O aguadeiro é Ganimedes, o mais belo dos mortais, raptado pela águia12 de Júpiter e levado para o Olimpo, onde passou a servir néctar aos deuses. Em outras versões, o aguadeiro é Deucalião, porque o dilúvio ocorreu durante seu reinado. Ou Cécrops13, que reinou antes que o homem conhecesse o vinho, quando os sacrifícios aos deuses eram oferecidos com água. Ou ainda Aristeu14, que obteve dos deuses as chuvas que pedia. O glifo K representa duas correntes d’água.

A figura mostra um jovem que derrama água de uma urna em direção à constelação de Peixes. Para Manilius, a urna do aguadeiro verte água marinha.

12

A águia que levou o jovem ao Olimpo foi também elevada aos céus em forma de constelação de Áquila. Primeiro rei da Ática, diz-se que nasceu do próprio solo. Da cintura para cima era humano, da cintura para baixo era uma serpente, indicando que era filho da Terra. 14 Aristeu era filho de Apolo e da ninfa Cirene. Durante uma peste nos dias mais quentes do ano, os habitantes das Ilhas Cíclades pediram que Aristeu os ajudasse. Este ergueu um altar no alto das montanhas e oferecia sacrifícios diários a Zeus e à estrela Sirius. Zeus enviou ventos frescos e chuva cálida que expulsaram os maus ares. Depois disso, todos os anos, a estação quente nas Cíclades recebe uma brisa úmida que purifica o ar. Um dia, Aristeu desapareceu do Monte Hemos, onde residia, e contam que os deuses o colocaram entre as estrelas, na constelação de Aquário. 13

219 Peixes - L Vênus e seu filho Cupido estavam sendo perseguidos pelo monstro Tifão quando se atiraram no rio Eufrates. Foram salvos por dois peixes que os levaram até a outra margem. Como recompensa, os peixes foram elevados ao céu sob a forma de constelação. Segundo outra variante, as duas divindades se metamorfosearam, elas mesmas, em peixes, a fim de escaparem. Higinus comenta que os sírios, que vivem perto dessa região, não pescam por medo de apanhar os deuses em suas redes. Uma variante do mito de Vênus a faz nascer de um ovo retirado do rio Eufrates por dois peixes. A tradição egípcia substitui Vênus por Ísis e o Eufrates pelo Rio Nilo. O glifo do signo – L – representa dois peixes nadando em direções contrárias.

O peixe ao norte do equador se volta para o pólo e o peixe ao sul avança para o Oeste. Ambos estão atados por um fio retorcido, que os impede de se afastarem. Hoje em dia, devido à precessão dos equinócios, o peixe do sul também se encontra ao norte do equador, como o outro. Para Manilius (II, 11), os peixes são marinhos. Ptolomeu (II) concede a água do mar a Câncer e reserva a água doce aos Peixes.

Anexo 4 As Dignidades Planetárias

Em virtude das afinidades entre planetas e signos, os planetas dispõem de cinco tipos de dignidades: domicílio, exaltação, triplicidade, termo e face1. O recurso a imagens é bastante eficaz para descrever a hierarquia das dignidades. Ibn-Ezra, astrólogo do século XII, e William Lilly, astrólogo do século XV, descrevem o estado de um planeta em cada uma dessas condições como o de um homem em diferentes situações.

a) Domicilio O signo que mais afinidade parece ter com um planeta é considerado o seu domicílio. Lilly compara um planeta em domicílio a um homem em condição afortunada, precisando de muito pouco. A inclusão dos três planetas trans-saturninos modificou a distribuição dos domicílios celestes. Cada um deles passou a governar um signo anteriormente atribuído a um planeta tradicional. Apresentamos abaixo os planetas em seus signos de domicílio, com os novos ‘governantes’ entre parênteses, junto aos governantes tradicionais.

1

Um dos livros publicados pela diretora da escola Espaço do Céu – Revelações: explorando recursos da carta natal (2003) – aborda as dignidades planetárias.

221 Os três novos planetas, porém, só dispõem dessa dignidade. Alguns autores sugerem signos onde eles estariam exaltados, mas a divergência de opinião é grande. b) Exaltação Depois de sua própria casa, o melhor lugar para um planeta é o signo de sua ‘exaltação’. Ali, o planeta se encontra em situação comparável a um hóspede de honra, na casa de um amigo - não goza da mesma liberdade de ação de um homem em sua própria casa, mas está em posição confortável e digna. O signo de exaltação de um planeta é chamado, por alguns autores, de ‘a casa secreta’ deste planeta.

c) Triplicidade

Quando um planeta não está em sua casa, nem é hóspede de honra na casa de um amigo, o melhor lugar passa a ser um dos três signos da triplicidade que ele ‘governa’. Para tanto, é preciso verificar se o nascimento ocorreu durante o dia ou durante a noite. Isso porque cada triplicidade tem um regente diurno e um regente noturno.

222 Triplicidades Fogo Terra Ar Água

Regente Diurno Sol Vênus Saturno Vênus

Regente Noturno Júpiter Lua Mercúrio Marte

Lilly compara um planeta em sua triplicidade a um homem gozando de fortuna e posição social modestas, porém confortáveis. Ibn-Ezra (Consideração 81) compara um planeta em triplicidade a um homem na casa de parentes – não está tão à vontade quanto em sua própria casa, nem usufrui do prestígio de um hóspede de honra, mas está em ambiente familiar e conhecido.

d) Termos Todos os signos são divididos em cinco partes desiguais, cada uma das quais ‘pertence’ a um dos cinco planetas tradicionais. Esse pequenos lotes são conhecidos como os ‘termos’ de um planeta. Ptolomeu apresenta três tabelas de termos. A primeira, ele atribui aos egípcios; a segunda, aos caldeus; e a terceira, ele não especifica a origem. Depois de comparar esses três modelos com aqueles apresentados por outros autores da Antiguidade, o meu grupo de estudos optou pela tabela egípcia, que apresento abaixo: Áries Touro Gêmeos Câncer Leão Virgem Libra Escorpião Sagitário Capricórnio Aquário Peixes

V6 T8 S6 U7 V6 S7 W6 U7 V 12 S7 S7 T 12

T 12 S 14 V 12 T 13 T 11 T 17 S 14 T 11 T 17 V 14 T 13 V 16

S 20 V 22 T 17 S 19 W 18 V 21 V 21 S 19 S 21 T 22 V 20 S 19

U 25 W 27 U 24 V 26 S 24 U 28 T 28 V 24 W 26 W 26 U 25 U 28

W 30 U 30 W 30 W 30 U 30 W 30 U 30 W 30 U 30 U 30 W 30 W 30

Pela tabela, Júpiter está em seus próprios termos quando, por exemplo, se encontra nos seis primeiros graus de Áries. Os graus seguintes desse signo, até o décimo-segundo, são termos de Vênus, e assim por diante.

223 Um planeta em seus próprios termos é reconhecido como um homem em situação temporária de força. Ezra (Consideração 80) o compara a um homem em seu próprio posto. Os termos também servem para descrever as características físicas. Se o Ascendente está nos termos de um planeta, este planeta pode descrever a aparência física e o temperamento deste nativo. Esse era o uso principal que Lilly fazia dos termos.

e) Faces Cada signo é também dividido em três partes iguais, de dez graus cada, conhecidas como ‘faces’. O Sol e a Lua não possuem ‘termos’, mas possuem ‘faces’.

Faces Signos

0 a 100

100 a 200

200 a 300

Áries

Marte

Sol

Vênus

Touro

Mercúrio

Lua

Saturno

Gêmeos

Júpiter

Marte

Sol

Câncer

Vênus

Mercúrio

Lua

Leão

Saturno

Júpiter

Marte

Virgem

Sol

Vênus

Mercúrio

Libra

Lua

Saturno

Júpiter

Escorpião

Marte

Sol

Vênus

Sagitário

Mercúrio

Lua

Saturno

Capricórnio

Júpiter

Marte

Sol

Aquário

Vênus

Mercúrio

Lua

Peixes

Saturno

Júpiter

Marte

224 Lidas horizontalmente, as faces são atribuídas aos planetas seguindo a ordem caldaica, começando e terminando a seqüência pelo planeta Marte. Lidas verticalmente, elas marcam a seqüência dos dias da semana, cada um deles atribuído a um planeta. Domingo



Sol

Segunda-feira



Lua

Terça-feira



Marte

Quarta-feira



Mercúrio

Quinta-feira



Júpiter

Sexta-feira



Vênus

Sábado



Saturno

Ezra (Consideração 82) descrevia o planeta em sua face como um homem com suas vestimentas e seus adereços. Lilly dizia que um planeta sem outra dignidade a não ser a face era como um homem mantendo seu crédito e sua reputação com grande dificuldade, prestes a perdê-los, alguém que ainda goza de respeito, mas está lutando para mantê-lo.

As debilidades planetárias Um planeta localizado no signo oposto ao de seu domicílio é considerado em ‘exílio’ como, por exemplo, Vênus em Áries ou Júpiter em Gêmeos. Um planeta localizado no signo oposto ao de sua exaltação é considerado em ‘queda’ – como Marte em Câncer ou Lua em Escorpião. Um planeta que não possua qualquer dignidade (não está em domicílio, nem em exaltação, nem em triplicidade, tampouco em um de seus termos ou uma de suas faces) é considerado um planeta ‘peregrino’. É como um homem em ambiente estranho, fora de seu país (Ibn-Ezra, Consideração 87).

Anexo 5 As Casas Astrológicas

Ao contrário dos signos do Zodíaco, que são de valor equivalente e nenhum deles é considerado mais ou menos poderoso ou influente do que os demais, as casas são avaliadas como fortes/fracas ou favoráveis/desfavoráveis e, conseqüentemente, hierarquizadas. Essa avaliação das casas aciona, simultaneamente, vários eixos: a) o eixo ímpar/par, no qual o pólo positivo é o primeiro termo; b) o eixo visível/invisível, no qual o pólo positivo incide sobre as casas acima do horizonte, que são iluminadas, e o pólo negativo, sobre as casas abaixo do horizonte ou sob a terra; c) o eixo ascensão/declínio, no qual o pólo positivo é a direção ascensional do movimento e o negativo é o declinante; d) o código visual - uma vez determinado o Ascendente como o ponto da luz nascente (a aurora), o ângulo de visão que cada casa tem desse ponto remete ao esquema dos aspectos. As Casas 5 e 9 aspectam o Ascendente por trígono e as Casas 3 e 11 o aspectam por sextil, o que lhes confere um caráter favorável. Já as Casas 2, 8, 6 e 12 se localizam nos pontos cegos do Ascendente, configurando regiões da Roda das Casas bastante desfavoráveis. e) a posição em relação aos ângulos do mapa. As quatro casas angulares (1, 4, 7, 10) constituem as regiões de maior poder de atuação. Os planetas ali localizados têm uma influência preponderante em comparação aos planetas localizados em outras regiões. As casas sucedentes (2, 5, 8, 11) são aquelas que já se aproximam das posições de poder das casas angulares. Um planeta ali localizado será levado, pelo movimento diurno, até um ângulo. As casas cadentes (3, 6, 9, 12) , por sua vez, são as que ‘caíram’ dos ângulos. Um planeta ali localizado foi levado, pelo movimento diurno, para além dos ângulos, ou seja, de uma posição de poder caiu para uma posição de enfraquecimento. Embora contíguo a uma casa angular, ele já a ultrapassou e encontra-se na posição mais distante da próxima casa angular que o movimento diurno o levaria a ocupar – daí seu enfraquecimento. f) os júbilos dos planetas – já comentamos que os planetas também funcionam como operadores de classificação, quando algumas das características dos signos são explicadas

226 pelo fato de que ‘pertencem’ a este ou aquele planeta. Da mesma forma, parte das características das casas se deve ao fato de serem consideradas os ‘júbilos’ deste ou daquele planeta. As casas associadas aos planetas benéficos são mais favoráveis do que as casas associadas aos planetas maléficos. Quando examinamos os temas associados às casas, percebemos que eles não deixam de estar conectados a todos esses eixos. Por isso, vale a pena examinarmos esses temas seguindo a ordem hierárquica das casas: casa 1;casa 10; casa 11; casa 5; casa 7; casa 4; casa 9; casa 3; casa 2; casa 8; casa 6; casa 12

As casas 1-10

Na hierarquia das casas, a casa 1, a partir do Ascendente, é a mais importante. Localizada no nascente, refere-se a tudo que ‘nasce’ naquele exato momento e, portanto, denota o nativo. Já que o Sol (ou qualquer outro astro) torna-se visível quando ascende no horizonte, este é o setor que confere visibilidade e, portanto, atesta o surgimento, ou nascimento, de uma entidade no mundo. Daí a expressão ‘nascer sob o signo de ’ se referir ao signo que ascende no horizonte no momento do nascimento. A relevância do signo Ascendente, que particulariza o estado do céu para uma determinada entidade, costuma se confundir com a do signo em que o Sol se encontra, que marca o dia, mas não a hora do nascimento. Benveniste (1995:205) salienta que, nas línguas indo-européias, o verbo ser não se reduz à função da cópula, mas possui realidade e autonomia. Em seu aspecto puramente verbal, ele é representado por –es e seu sentido é ‘ter existência’, ‘ser em realidade’, entendido como aquilo que é autêntico e verdadeiro. Uma das funções de –es foi a de dar consistência a ‘ser’ como ‘estar em’, isto é, ser localizado. É nesse sentido que o Ascendente indica o ser, ao atribuir-lhe um locus. Poderíamos então entender o Ascendente como um ‘Eis X’.

227 A descrição física de uma pessoa remete à primeira casa. Conhecendo-se o signo e os planetas localizados na casa 1, pode-se ter uma idéia da aparência física do nativo, pois a marca do Ascendente se inscreve no corpo1. Em seguida, vem a casa 10, onde o Sol culmina ao meio-dia. Localizada no zênite, a casa 10 está conectada à autoridade e ao poder legitimados pelas conquistas pessoais e, por extensão, à profissão do nativo. Em termos de direção do espaço, o Meio do Céu denota o Sul. Conforme já comentado, o Sul está associado ao poder e ao sucesso porque, olhandose diretamente para o leste, o Sul fica à direita do observador, e o Norte à esquerda, reafirmando a predominância da direita sobre a esquerda.

As casas 11 e 5 A casa 11 é bastante favorável, pois se encontra na parte iluminada e elevada do céu, além de olhar o Ascendente por sextil. Um planeta ali localizado será levado, pelo movimento diurno, até a casa 10, a das realizações e honras. Em vista dessa expectativa, a casa 11 denota esperanças e desejos, projetos e planos. Considerada o júbilo de Júpiter, o Grande Benéfico, está relacionada a amigos, benfeitores, protetores, todos os que dão apoio e suporte à pessoa. A casa 5 olha o Ascendente por trígono, o mais favorável dos aspectos.É, porém, menos favorável do que a Casa 11 porque se encontra sob a terra. Considerada o júbilo de Vênus, o Pequeno Benéfico, está associada à fertilidade, às alegrias e aos amores (que caem sob a patronagem de Vênus) e denota gravidez, filhos, lazer e criatividade.

As casas 7 e 4

A casa 7 tem força porque é angular. Mas não chega a ser tão favorável quanto as casas 11 e 5, embora estas sejam sucedentes, pois se localiza no poente. Está associada a

1

Segundo Márcia Mattos, uma astróloga cujas palestras costumam lotar o auditório nos eventos públicos, o ariano tem as sobrancelhas juntas, como um chifre, imitando o desenho do glifo ariano (A). Os geminianos têm pernas e braços longos, mãos expressivas e rosto jovial - parecem mais jovens do realmente são. Um canceriano é reconhecido pelo formato de rosto mais cheio, com maxilares e bochechas arredondadas. Os leoninos têm porte ereto, andam de cabeça erguida e seus gestos e movimentos são lentos como os dos felinos.

228 perda de vitalidade, em virtude da oposição direta ao Ascendente, símbolo de vida e saúde, e por se localizar onde ocorre o ocaso do Sol. Essa oposição é responsável pela conexão com inimigos (os que se opõem à pessoa). Por outro lado, a oposição tem também uma conotação de interação direta, face a face, o que leva a associá-la a relações de aliança (o cônjuge e os sócios em negócios e empreendimentos). A casa 7, portanto, trata especificamente das relações de parceria que formam díades complementares, seja por aliança (daí o cônjuge ou o sócio), seja por antagonismo (daí o inimigo). A casa 4, localizada no nadir, está relacionada a tudo que se encontra sob a terra, desde minas e tesouros enterrados até túmulos. Denota as raízes familiares, os ancestrais, o patrimônio familiar e os bens imobiliários. Como o nadir é considerado a culminação inferior de um planeta, antes de começar sua ascensão, tem conotação de sucesso, tal como o zênite, mas sucesso após a morte, por ser o ângulo sob a terra. Daí a conexão com o túmulo (o sepultamento como homenagem fúnebre) e com a reputação póstuma.

As casas 9-3 A casa 9 é a mais favorável das casas cadentes porque se encontra na parte mais elevada do céu, quando a luz do dia ainda é forte. Considerada o júbilo do Sol, está associada à religião e, por extensão, à filosofia e aos estudos avançados que ficavam sob o domínio dos sacerdotes. A casa 3 não é tão favorável quanto a casa 9 porque se encontra sob a terra, mas é nela que um planeta, tendo passado pelo nadir, volta a ascender em direção ao nascente. Considerada o júbilo da Lua, o astro mais próximo da Terra, esta casa está conectada aos irmãos e parentes próximos, à vizinhança e às viagens curtas. À casa 9, por complementaridade de eixo, ficam reservadas as viagens longas e o contato com o estrangeiro. O eixo 3-9 opera então com a polaridade perto/longe.

As casas 2 - 8 A casa 2 está relacionada aos ganhos e às posses materiais e a casa 8 está associada às perdas e à morte. Embora a casa 8 esteja localizada acima do horizonte, ela é mais desfavorável do que a casa 2 porque um planeta ali localizado está declinando. O movimento diurno o levará para o poente e, daí, para o hemisfério inferior, sob a terra. Um

229 planeta localizado na casa 2, ao contrário, está se elevando e será levado, pelo movimento diurno, ao nascente. Firmicus (Livro 2, XVII) chamava o eixo das casas 2-8 de Portal do Inferno. A casa 8 indicava a porta de entrada, quando a pessoa se descartava dos bens materiais. A casa 2 indicava a porta de saída, quando a pessoa incorporava a riqueza do mundo subterrâneo para o renascimento. Nenhuma dessas casas vê o Ascendente, pois se localizam nos seus pontos cegos. Os manuais astrológicos enfatizam a conotação financeira ligada a essas casas, na polaridade lucros/perdas, mas vale observar que ambas incluem como tema o inanimado: os bens materiais e a morte.

As Casas 6-12 A casa 6 também é percebida como uma região bastante desfavorável, pois corresponde à chegada da noite e não vê o Ascendente. Considerada o ‘júbilo’ de Marte, o Pequeno Maléfico, a casa 6 denota atividades árduas, que demandam esforço2, que não aparecem, mas que são desempenhadas por obrigação e necessidade. Logo, a casa 6 inclui os empregados, os subordinados e os animais que trabalham para o homem. Nos tratados antigos, a conotação servil associada a essa casa incluía os escravos. Uma das astrólogas que fazia parte do grupo de supervisão tinha muitos planetas na casa 6, inclusive o Sol, e, quando contava alguma coisa que lhe tinha acontecido durante a semana, costumava pontuar seus comentários, brincando “Escrava, sou escrava, é servidão mesmo, escravidão brava!” A casa 12 é a mais desfavorável de todas. Ptolomeu (III,10) sugere que essa área é desfavorável não só porque a luminosidade das estrelas nesse espaço fica toldada pela proximidade dos vapores exalados pela Terra, mas também em virtude do ângulo extremamente agudo em relação ao horizonte. Quando o Sol nasce, os astros que ascendem junto com ele não ficam visíveis, ofuscados pelo brilho solar. Eis porque essa área é associada à invisibilidade, isto é, às coisas secretas e aos inimigos ocultos.

2

Marte é o planeta associado a grande dispêndio de energia.

230 Na vertente mais psicológica das interpretações astrológicas, a invisibilidade associada a esta casa costuma ser traduzida como o inconsciente. Um dos clientes entrevistados, cujo mapa natal tem quatro planetas na casa 12, me contou que procurou um astrólogo recomendado por um amigo, mas que nunca mais voltou a consultá-lo, porque, assim que começou a consulta, esse astrólogo apontou para a casa 12 e comentou: ”Olha aí, uma vida inconsciente”. O cliente ficou aborrecido e, pelo visto, todo o restante da consulta se perdeu diante desse comentário: “O que será que ele quis dizer com isso? Que eu ando pela vida sem me dar conta das coisas? Nunca mais voltei lá. Fui procurar outro astrólogo e já faço mapa com esse outro há cinco anos”. Por extensão, a invisibilidade associada a essa casa inclui as situações que tiram a pessoa de cena: as hospitalizações, as prisões, os exílios, os confinamentos. Considerada o júbilo de Saturno, o Grande Maléfico, denota os inimigos secretos, isto é, todos aqueles que agem contra pessoa ‘pelas costas’, pois a casa 12 está atrás da Casa 1, nas suas costas. Os inimigos denotados pela casa 7 são considerados ‘inimigos declarados’, pois a casa 7 está diante da Casa 1, logo, esses inimigos são vistos de frente.

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