Chiziane, Paulina - As andorinhas

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AS ANDORINHAS

AS ANDORINHAS

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Ficha Técnica - NÚMERO DE REGISTO: "As andorinhas"- 5756/RLINLD/2008 -PRODUÇÃO: MATIKO EDITORES -AUTORA: Paulina Chiziane -REVISÃO: Américo Pacule - LAYOUT & PAGINAÇÃO: Mauro Matsinhe -TIRAGE~:

1000 exemplares - IMPRESSÃO: CIEDIMA, LDA

À memória de RICARDO CHIZIANE Nosso herói, nosso patriarca, que nos embalou com hinos de liberdade; um dia reuniu-nos e disse: "Da pobreza das nossas vidas nascerá a grandeza das nossas almas."

"Thomba ngu wusiwana" A nobreza reside no coração dos pobres

Provérbio Chope

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Paulina Chiziane

III

AS ANDORINHAS

AS ANDORINHAS

Se queres conhecer a liberdade Segue o rasto das andorinhas (ditado chope)

Este livro nasceu em Luanda na casa de Helena Zefanias Lowe, Numa noite de conversas intermináveis. Helena: obrigado por todos os momentos!. ..

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IV

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Paulina Chiziane

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AS ANDORINHAS

- As grandes mentiras incubam grandes verdades. - E as andorinha~ General? - Se queres conhecer a liberdade, segue o rasto das andorinhas ... Paulina Chiziane

Prefácio

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A andorinha é uma ave ágil, com uma capacidade de voo invejável. Agitada e rápida, faz voos rasantes. O seu alto sentido de orientação permite voltar ao ponto de partida, após uma migração de largas centenas de quilómetros. As Andorinhas é a nova incursão literária de Paulina Chiziane, um composto de relatos em torno de três personalidades ágeis no seu tempo e saber. A primeira foi um gordo que chefiava um império, porém, atrapalhada por uma andorinha cuja caganita lha caiu no olho. A segunda, nobre, viveu numa extrema pobreza, mas conquistou a América, mesmo com os pés descalços. A sexualidade da terceira foi questionada por outras mulheres porque, entre tantas "anomalias", nada fazia para ter uma pele lisa, como o caju , para agradar aos homens. Foi pontapeada por se intrometer em coisas masculinas. Após longos voos, as três personalidades retornam às origens , tal como as andorinhas , mas, cada uma, desenhando os seus próprios contornos. Este livro narra, sucessivamente, a rivalidade entre dois povos amigos; a rota invejável de um unificador que não viveu para celebrar o seu sonho; e a glória de uma águia que foi ao encontro do seu sonho e elevou, como ninguém, a bandeira da sua nação. Pelo meio, estão algumas notas da resistência à dominação colonial, da luta pela independência de Moçambique e a procura da gestão da liberdade.

Paulina Chiziane

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AS ANDORINHAS

A escritora chope, filha de um alfaiate de esquina e de uma camponesa dona de casa, usa o seu poder de contadora de histórias para partilhar o percurso dessas três personalidades, desafiando o leitor com um debate sobre o passado e presente de Moçambique. Como referência, ressalta-se o diálogo que estabelece com Chitlango, filho de chefe, título da conhecida biografia de Eduardo Mondlane. As andorinhas é um livro que sai numa altura em que, acentuadamente, se fala das vantagens e desvantagens da globalização. Alguns se referem a isso como se de um barco abarrotado de referências do além se tratasse, que leiloa, sem quaisquer regras, soluções para uma infinita gama de problemas. Há, porém, quem diga que ao dito barco falta a consultora da lucidez, o que tem levado a que tais "soluções" sejam despejadas, sem ter em conta o conhecimento local. Chiziane brinda-nos com pitadas dessa lucidez, mostrando-nos que se trata de um assunto antigo: não terá sido por falta de lucidez que, noutros tempos, o imperador levou muitas luas para perceber que não existiam chicotes para castigar andorinhas? "Meu pobre imperador, a geração que vem buscará a nossa grandeza em monumentos de pedra, sem perceber que nós, antepassados, escrevemos a nossa história em monumentos de sangue.'.Os nossos descendentes rir-se-ão das nossas crenças, das nossas rezas; comerão peixe e todos os insectos marinhos, sem se importarem com a nossa realeza; tudo muda, ah, meu gordo imperador!" Definitivamente, Paulina Chiziane é mesmo uma contadora de estórias. E histórias. Depois de Balada de Amor ao Vento (1990), Ventos do Apocalipse (1995), O Sétimo Juramento (2000), Niketche - uma história de poligamia (2002) e O alegre Canto da Perdiz (2008), ei-la agora, aqui, com As Andorinhas, como se estivesse à volta da fogueira, onde se sente bem.

Maputo, 9 de Abril de 2008. Amâncio Miguel

VIII

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AS ANDORINHAS

(1) Depois do pasto de xíma branca, branquíssima, sílada·no alguidar, acompanhado de nhewe cozido, leite coalhado e carne grelhada, sente muito calor, o imperador! Não é da comida, não. O calor vem do sol e das banhas daquele corpo de elefante. O imperador é moderado e muito requintado no prato. Ao pequeno-almoço toma leite coalhado ou leite fresquinho que sai quentinho da vaca. Gosta de carne grelhada, mal passada, e xíma azeda. Toma o seu copo de aguardente, mas pouco. A natureza faz, por vezes, isto: tamanho grande, feito de pouca comida. É de boa raça, o imperador! Desloca o grande corpo para o repouso predilecto debaixo da sombra da grande mpháma . Deita-se de papo para o ar, ao lado da sua dama preferida. Pousa os olhos no horizonte criador. Descobre que são seus, os espaços terrestres e o infinito celeste; que são suas, as estrelas que à noite brilham; que são suas, as árvores que transportam a brisa do entardecer. Contempla a sua obra e suspira de orgulho: - Fui eu quem transformou tudo isto em vida. Coloquei luz nos olhos dessa gentalha. Quando aqui cheguei, a terra era selvagem e era macho. Domestiquei-a. Tornei-a fêmea, é toda minha, faço o que quero. Dá-me bons frutos, cereais, gado. Dá-me sol e chuva. Nesta terra efeminada, os homens me servem de joelhos, porque já não são homens. Sou o único macho na superfície da terra. Uma andorinha canta alegrias no espaço. De pança cheia, baila. Liberta os intestinos e a caganita balança na cloaca. Cede à gravidade e cai no olho do imperador. O corpo ·bojudo, movido pela fúria, ergue-se como uma mola. Dos olhos túrgidos, desprende-se o dragão que dorme por dentro. O imperador pode resistir a tudo, menos àquele ultraje: cocó de pássaro? Não, não pode suportar. Ele que venceu todas as batalhas, que transformou a vida, que vavou as orelhas dos cativos, que fecundou todas as mulheres da terra, que ngungunhou tudo à sua medida, não podia ser abusado por um simples pássaro. Desvairado, chama pelos seus guerreiros. Hoje ele é dragão, ele é leão. Ele ruge. - Nguyuza? Lumbulule? Marivate? Khumalo? Sithole? O grito que solta corta a respiração de quem o escuta. Os homens vêm correndo. Ajoelham-se diante do soberano, recitam em uníssono.

Paulina Chiziane

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Quem manda aqui? AS ANDORINHAS

- Às ordens, Alteza. - Quem manda debaixo do sol? - Deus- respondem de novo em uníssono. - Deus? - a raiva do imperador cresce. -Sim. - Quem é Deus aqui? O Nguyuza é o primeiro a falar. É o chefe. A ele cabe a primeira palavra e ao imperador, a última. -O nosso imperador é Deus. É o Mambo dos Mambos, o Nkulunkulu! Eles respondem a mesma ladainha de sempre, com tremor acrescido naquelas vozes de guerreiros. Pressentem que nada de bom virá daquele chamamento. - Ordenei o silêncio - barafusta o gordo imperador. - A aldeia inteira está em silêncio - responde Lumbulule - nem uma mulher a pilar. Nem uma criança a chorar. O silêncio é total. - E aquele pássaro? -Que pássaro? - Pergunta Khumalo. Pousados no tecto do céu, os olhos dos homens iniciam a busca. Descobrem. O calor da hora recolheu os pássaros ao aconchego dos seus ninhos. Na sombra da grande mpháma, elas balançam, elas bailam. Trazem nos bicos pios alegres que chovem aos ouvidos como a frescura da brisa. - São vozes das andorinhas, Majestade- responde Marivate. - Foram enviados pelos espíritos para cantar louvores à sua Majestade, embalar o seu repouso, Hosí! -Acrescenta Lumbulule. - São vozes divinas prenunciando a paz - diz o filosófico Sithole, sem convicção nenhuma - no magnífico canto afirmam que sua Majestade é o mais potente dos homens e que fecundará todas as mulheres no mundo. Dizem, igualmente, que as vacas ficarão prenhes e as galinhas terão mais ovos. Prenunciam que os celeiros abarrotarão de alimentos na próxima colheita. - Conheces a linguagem dos pássaros, Sithole? - Questiona o imperador. - Não conheço, mas entendo. - Não conheces e nem entendes, seu cabeça de galinha, cala-te! - Eles dizem que o nosso imperador é o eterno Deus, o rei sobre todos os reis - acrescenta Khumalo, atiçando ainda a fúria de Sua Majestade. - Estúpidos, silenciem todas as andorinhas - ordena - apanhemnas. Tragam-nas aqui ao castigo, para que todas as aves do mundo saibam quem manda aqui!

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Os homens esquecem as ladainhas habituais de "Sim Alteza", "Viva Alteza", por tudo e por nada. Ficam simplesmente mudos, navegando perdidos num mar de espanto. Treinados para a guerra, são cegos cumpridores das ordens, mas hoje questionam em silêncio: - Estará, o imperador, enlouquecido? -Terá bebido um copo a mais? -Terá fumado daquelas ervas que crescem livres nos campos? Na mente do imperador, a loucura e a lucidez bailam no mesmo compasso. Parece que a demência começa a marcar presença. Subtilmente. - Silenciar as andorinhas, Majestade? - pergunta Nguyuza. - Não ouviste? Perdeste os ouvidos? - Perdão, Majestade. A pergunta é meramente técnica. Só queria confirmar a ordem para melhor estruturar as regras, depurar o método, refinar a estratégia desta missão. - Nguyuza, quero silêncio, muito silêncio. Que a natureza à volta se cale na hora do meu repouso. - Sim, Alteza. O Poder é uma armadura invisível que eleva o espírito humano aos píncaros do absurdo. Pelo poder, os guerreiros sangram a terra e castram a virilidade dos homens. De tanto poder, o imperador sentese no pico das montanhas de Zulwine, esquecendo o pormenor mais importante: no topo da pirâmide, o seu corpo de elefante não terá equilíbrio. Cairá. - A ordem está dada - remata o imperador. - Estamos aqui para obedecê-lo, Alteza- completa Nguyuza- as suas ordens serão cumpridas a rigor. De resto, as andorinhas são aves inúteis que nem servem para comer. Não respeitam o nosso imperador nem o nosso império. Vamos castigá-las. - Quero uma solução rápida, de qualidade! - Sim, Alteza. Só preciso de algum tempo para organizar uma expedição forte e dar lição a esses insubmissos. - Assim é que se fala General, assim é que gosto - sorria o imperador acariciando o ventre reluzente de bons manjares. - A estratégia será infalível, Alteza - assegurou Nguyuza - A vitória será retumbante. Traremos esses passarinhos ao magno julgamento, juramos. Serão castigados e aprenderão, na dor,

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Quem manda aqui? AS ANDORINHAS

quem manda nos raios do sol e na direcção dos ventos. Todas as andorinhas do mundo saberão de uma só vez, quem ordena as tempestades e as trovoadas medonhas que ngungunham o mundo! - Concedo-vos apenas esta noite para se prepararem. -Sim, Alteza. - Agora desapareçam da minha frente. Todos baixam as cabeças e batem as palmas em sinal de total submissão. Eles sabem que cada palavra do imperador é um escarro sobre a vida. Ali mata-se. Ali morre-se. Para perder o sopro, basta apenas pisar o mais ínfimo risco. - É para já, Alteza! - responde Marivate. - Longa vida, Alteza! - diz Lumbulule com voz de mulher. Com a alma empanturrada de grandeza, o imperador regressa ao seu repouso e ronca, sereno. Era ele Mudungazi, o Ngungunhana! Que ngungunha homens e mulheres. Por isso, o mundo pertence-lhe!

( 2) Nguyuza sente calor e frio. O estômago comprime-se numa náusea profunda, e o vómito vem a caminho. Os intestinos também se rebé"Jam, e ele corre em direcção à moita. Defeca e vomita fel, muito fel. Já livre do desconforto, procura repouso na sombra predilecta. A purga traz-lhe clareza na mente. Pensa nas ordens acabadas de receber. As palavras do gordo imperador são o prenúncio da dança de sangue à volta do fogo. Com a história das andorinhas, o imperador busca pretexto para uma nova sangria, as suas ordens são mais mortíferas do que as balas dos portugueses. Seria mais fácil receber ordens para matar um homem. Mas um pássaro? Na capital do império, o luto ainda enjoa as pobres viúvas. Na semana finda, guerreiros valentes foram atirados à vala comum, como gatos mortos. Tudo porque o gordo imperador mandou silenciar uma manada de hipopótamos que se refrescava no lago, em pleno sol. Organizou uma expedição, e os homens fizeram-se ao desafio. Hipopótamos e humanos não lutam com as mesmas armas. Enquanto os guerreiros nadavam e tentavam desferir golpes com as frágeis lanças de ferro, os hipopótamos, numa só dentada, quebravam o guerreiro pela coluna e atiravam o corpo para dar

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de comer aos peixes! Cem guerreiros mortos é o balanço. Outros cinquenta e tal sofreram graves mutilações. Perderam os braços, perderam as pernas, perderam as cabeças. Agora é a guerra contra os pássaros. Quantos se irão perder desta vez? Na diarreia acabada de ter, a expressão de medo. Naquele vómito, o espelho do pânico. Nguyuza começa, então, a falar sozinho como um louco. Revoltado, faz um exame do seu percurso e conclui: "a vaidade deste gordo, eu é que a sustento. Consumi a minha vida, de batalha em batalha, de conquista em conquista, somando vitórias, só para sustentar a grandeza que o enlouquece". O pôr-do-sol vem e dialoga com a sua imagem que se reflecte nos últimos raios de sol. Espelha-se. Renega-se. Não, não é minha aquela imagem de sanguinário estampada no sol, que parte correndo atrás do imperador, na conquista do nada, não, não posso ser eu. De onde me veio esta cegueira, a ponto de me deixar montar como um cavalo louco correndo ao gosto do imperador, aperfeiçoando a arte de matar para sobreviver? Que poder é este que destrói, derruba, elimina? Eu quero mudar, ser outro. Gostaria tanto de nascer outra vez, para ser outro, e não este! Outras andorinhas dançam na copa da mafurreira. Nguyuza levanta os olhos e observa atentamente. Tenta identificar a que logrou a maior proeza da história. Sorri e monologa: "Cagar no olho do imperador? Bravo macho é essa andorinha! Ousou desafiar a virilidade do mais alto do império, o Ngungunhana, que ngungunha todos os homens e todas as mulheres do planeta. Ah!" O riso traz nova inspiração. Irá, sabiamente, preparar a melhor estratégia militar para abrilhantar a carreira dos bravos guerreiros, com uma caçada de pássaros, só para aplacar a ira do soberano. Irão todos armados de escudo e lança. Com que armas se iriam defender as pobres andorinhas? Uma brisa repentina arrebata-lhe para o outro lado da vida, num sono de magia, e os deuses se revelam. Num curto sonho, vê primaveras e flores . Vê muito espaço azul e muita nuvem branca. Descobre que está no céu . Os seus olhos machos procuram um encanto celeste, uma estrela, um anjo do sexo oposto ao seu , um pedaço de céu, para guardar na memória e recordar. Foi então que viu uma andorinha fêmea de penas sedosas, reflectindo cores de diamante. Atraído por tanta beleza, transformou-se em pássaro, voou em direcção a ela. Esta, mais veloz, eclipsou-se entre as nuvens.

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Ele foi voando , voando, procurando, desesperadamente, aquela imagem deslumbrante. Acabou entrando na fortaleza do reino das andorinhas. Ficou morto de espanto. A fortaleza não tinha paredes, nem tecto, nem armas. No meio dela, viu um palácio de pérola e cristal sem guardas nem generais , completamente adornado de estrelas, e protegido por correntes de ar puro. Na entrada do palácio estava um velhinho simpático, dormindo a sesta. - Bom velho, não viu a andorinha mais bela do mundo a passar por aqui? - Ah - respondeu o velho - ela espera-te no horizonte do sonho. - É tão bela! Eu amo-a tanto! Onde fica o horizonte do sonho? - Dentro de ti? - Como a encontrar? - Encontrá-la-ás. Mas é muito caprichosa e só abre o coração a seres livres. - Eu sou um homem livre. - Tu és um general!

(3 ) Depois do mágico sono, o doce despertar. Nguyuza corre para a casa da sacerdotisa para decifrar o enigma. Respira fundo e diz tudo num só fôlego . -Tive um sonho. Eu flutuava como pássaro no mais alto dos céus. -Sonho bonito- confirma a sacerdotisa- és um homem de sorte. -Sorte?

- Sim. Só as almas abençoadas vencem o peso, voam no alto e alcançam a sagrada dimensão! Nos olhos da sacerdotisa, um mar de ternura se reflecte. Nguyuza mergulha na imensidão desse mar e se perde. Sorve todas as ondas de frescura e se engasga. O coração navega em sentimentos novos. Suspira. Meu deus, como ela é bela, como é pura! - Decifra o meu sonho - implora o general. - É a chave do teu destino. -Destino? Que destino se pode esperar na loucura do imperador? - A lucidez e a loucura são filhas do mesmo parto. Quando se fundem no mesmo ponto o destino se revela.

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Nguyuza sorri. - Fala-me, então, das cores do destino. - No Zulwini , o reino das andorinhas aguarda a tua ct:tegada. - Eu? Lograrei conhecer esse lugar maravilhoso com estes olhos que a terra irá comer? - pergunta Nguyuza, inspirado. -Já lá estiveste. - Eu? - De lá todos partimos. - Marchei a vida inteira e nem cheguei perto desse lugar. - É o útero da vida sem o qual nenhum ser existiria. Regressar é a sorte de poucos. -Onde fica? - Zulwini é o princípio e o fim . É aqui ou qualquer lugar. -Chegarei? - Escolhe. Entre a lucidez e a loucura. A via longa ou a via curta. Qual dos caminhos prefere? - Ah, Sacerdotisa bela! Sou um simples guerreiro, não sei decifrar os enigmas do destino. Vem comigo, e ensina-me o caminho. - Oh, grande honra! - pergunta ela emocionada - como posso recusar o pedido do mais poderoso dos generais? Envolvem-se num abraço com sabor a mel. A sacerdotisa transforma-se na andorinha do sonho, e Nguyuza, num homem livre. De braços dados, voam no azul em direcção ao horizonte. No silêncio do general, a inspiração, a poesia: eu admiro-te sacerdotisa! Eu amo-te! Os teus olhos de mar incendeiam o meu corpo. O teu sorriso massaja-me o peito num fogo cálido, ah, Sacerdotisa! Ele e ela ardem de desejo, mas não se beijam. Ela é uma eleita pelos deuses, é celibatária, é virgem como todas as freiras. Freiras na versão bantu, evidentemente. Se Nguyuza ousar possui-la, mesmo por amor, sofrerá o supremo castigo: a impotência. E ela será repudiada pelos espíritos . Ficará cega, surda e coberta de pústulas. - Partiremos antes do raiar do sol, prepare-se, doce Sacerdotisa. Como uma criança no despontar da aurora, Nguyuza ganha leveza na alma. Caçar andorinhas? Um encanto. Que melhor diversão podia ter um velho general cansado de guerras? Na voz do general , o lamento do tempo perdido. Meu pobre imperador: a geração que vem buscará a nossa grandeza em monumentos de pedra, sem perceber que nós , antepassados, escrevemos a nossa

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história em monumentos de sangue. Os nossos descendentes rirse-ão das nossas crenças, das nossas rezas; comerão peixe e todos os insectos marinhos, sem se importarem com a nossa realeza feita de penas de pavão, tudo muda, ah, meu gordo imperador!

(4 ) O sol surge dourado do ventre mãe da nascente. Está tudo organizado. Zelosamente. As estratégias refinadas cuidadosamente. Os rapazes farão as fisgadas. As raparigas farão a colecta das andorinhas presas ou mortas. As mulheres irão tecer as redes e armadilhas, caso seja necessário. Os guerreiros farão a protecção contra as feras. Mobilizam-se famílias inteiras: pais, mães, filhos e, até, avós. Ninguém fica. O imperador manda soltar as fanfarras para celebrar a partida dos guerreiros. Enche os ouvidos dos homens com palavras de ordem, mesmo sabendo que não se tratava de missão nenhuma. Era simples teatro. Diversão. Gozando dos poderes que tem, pondo gente em movimento, por actividade nenhuma. Os guerreiros, apesar de contrariados, reconhecem no líder louco, inegá\léis talentos. Bom estratega. Cérebro astuto, que o conduziu de vitória em vitória à construção do Império de Gaza. Sabiam de que aquela farsa era para privá-los da gordura e preguiça. Era para mantê-los ocupados e não perderem habilidades de guerra; há muito que não havia combates. O imperador repara que Nguyuza mobilizou os melhores guerreiros, mas não se rala . Tratava-se de uma caçada de pássaros, no final da tarde estariam de regresso e o império não ficaria privado de segurança. -Nobres guerreiros do império; desejo-vos sorte no cumprimento da vossa missão- grita o imperador. -Sim, Alteza. As mentes dos guerreiros, ainda sonolentas, resmungam. De tanto poder, o imperador já não sabia o que fazia. Por isso, respondem aos gritos e, sem a menor excitação, dizendo apenas o que ele gostava de ouvir. De resto, não iam matar. Nem morrer. Iam dar um passeio pelos campos, regressar ao leito e dormir. - Quero ver todas as andorinhas de castigo e em silêncio- repete o imperador.

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- Sim, Alteza! - Na vossa missão, aproveitem a ocasião para ngungunhar os chopes, esses infelizes. - Porquê os chopes agora, Alteza - questiona Nguyuza - se eles andam bem quietinhos e já não provocam os habituais distúrbios? - Os chopes? Só eles podem enviar-me as andorinhas para provocar-me. Só eles. Estão interessados no meu desassossego. Os infelizes confiam nas suas flechas e nos seus arcos, porque não querem reconhecer que é a mim que o poder pertence. - Acha, então, que a andorinha que cagou no seu olho é mágica, Majestade? - Não acho, tenho a certeza. Os chopes, esses insubmissos, têm o dom do feitiço e só eles podem fazer-me essas afrontas! - Usando cocó de andorinha para derrubar um império? - Ah, vê-se mesmo que não conhecem os poderes maléficos desses infelizes! Parem de fazer perguntas e cumpram as minhas ordens! -Sim, Majestade! O sentimento do imperador é de temor e respeito pelos chopes, esses rebeldes machos de arco de flecha . Que o desafiam continuamente. É o único povo que não consegue ainda subverter. Por isso, os humilha sempre que pode. - Agora, repeti o grito de guerra para que os chopes escutem . Ordena o imperador. -Submetei-vos, chopes malditos -gritam os guerreiros- submeteivos ao nobre imperador e serão salvos. Ele venceu os infiéis. Invadiu a pátria dos Khambane e matou o poderoso Mbinguana. Invadiu a terra dos N'wanati e construiu a capital do grande império. Quem não crê nele, morrerá! -Dizei-me bravos guerreiros- incita o imperador- que tratamento se deve dar a esses chopes , a esses bastardos? - Transformá-los em fêmeas . Vavar-/hes as orelhas e enfiar-lhes brincos de mulher. - Para quê? - questiona divertido o gordo imperador- para quê? - Para que a grandeza do império se reconheça à distância. Para que os bastardos exibam, no corpo, a falta de virilidade. - E se encontrarem os nobres trabalhando nos campos? - Saudá-lo-emos de joelhos. Colocá-lo-emos o m 'boti , a coroa negra destinada aos iluminados do império.

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(5 ) É velha a marcha desta vida. Em cada geração apenas define uma nova meta e um novo mote. Os guerreiros renovam os passos da grande marcha, buscando a paz na lonjura dos caminhos. A estrada das andorinhas é no azul , no alto. A estrada humana é cinzenta, poeirenta, de barro negro. Com espinhos e pedregulhos . A multidão tenta alcançar os pássaros em voo e a marcha transforma-se em corrida. A cada passo, a paisagem vai mudando de forma, trazendo vislumbre nos olhos das mulheres, que suspiram: afinal é bom viajar fora do cercado da cozinha. Lavar os olhos com as formas da terra. Encher a mente de belas imagens. Conhecer caminhos, paisagens, lugares. Sentir o peito a dilatar de prazer perante a grandeza dos montes. Na mente dos guerreiros a mesma pergunta. Terá, Nguyuza, capacidade de agarrar andorinhas vivas? Como se castiga uma andorinha? Existem chicotes para andorinhas? Continuam a marchar, um sol sucedendo a outro, ininterruptamente, como as etapas de uma vida. As pessoas extasiam-se: é maravilhoso ver o mágico Rio Save, com olhos vivos. Mergulhar os pés nas águas mansas do rio belo, tortuoso, fertilizante. Atravessam-no e continuam a marcha. Dias depois, encontram o mítico Rio Mussapa, de águas límpidas. Banham os pés nas águas sagradas . Exorcizam dos maus espíritos nas águas bentas. Purificam os corpos com bênçãos dos mortos que residem nas ondas e continuaram a marcha. Numa certa noite, um leão ruge. Os braços fortes dos soldados empunham as armas, matam o leão e a sua leoa, e continuam a marcha. Chegaram ao Rio Púnguê, esse rio majestoso, rio macho, rio bravo, que não se deixa montar como uma fêmea qualquer. Lutam contra a bravura das águas e atravessam . Descobrem que as ondas bravas repousam sobre o leito feito de terra fêmea, negra, doce e fresca. Uma terra em cio, aguardando os braços amorosos de um povo macho, pronta para a fecundação perfeita. As mulheres, loucamente apaixonadas pelo lugar, sonham com hortas verdes e celeiros fartos. Mas, o general Nguyuza não permite sequer uma paragem, e elas encheram as bocas de murmúrios: - Quantos sóis terão passado, depois da partida? Quando deixamos a capital do império, a lua tinha a forma de uma banana.

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Cresceu, engravidou , pariu muito luar e já emagreceu. Voltou a ser a casquinha de banana, e Nguyuza ainda não nos deu um dia de descanso. As perguntas indisciplinadas das mulheres começam a chover como granizo. - Por que nos arrasta para tão longe , se em todos os bosques podemos caçar? Olha a quantidade de andorinhas naquela árvore. Podíamos parar aqui e fazer uma boa caçada, encher sacos e sacos, e regressar. - Perderíamos, nós, o nosso tempo, caçando estes- responde Nguyuza. - Por quê? - Estas são como nós, de escalão inferior. São andorinhas fêmeas, subalternas, obedecendo a um comando macho, de um rei ou imperador. Não posso arriscar a vida deste povo, regressando sem a missão cumprida. Os olhos delas fazem buscas na floresta. Descobrem . - Nguyuza, nosso General - murmuram as mulheres - podíamos parar um pouco, cortar os ramos das árvores mortas para o conforto da noite. As crianças tremem de frio . - Se virem uma árvore morta, de dia, desconfiem - responde o general com palavras sábias - estamos em terras desconhecidas, a natureza está repleta de segredos. Árvores mortas que florescem em noites de magia, rainhas da vida e da morte que dão poderes de ressurreição. Quem tem a sorte de comer dos seus frutos , vence a morte e a escuridão dos túmulos. - Só queremos o combustível dos seus ramos, as crianças morrem de frio nas noites, General. - Na árvore da eternidade, não se toca. Ela pune com a morte todos os que a ferem . -Onde iremos buscar a lenha para as noites de frio? - No céu. Ou no solo sagrado do reino das andorinhas. - Só os loucos seguem o rasto das andorinhas, meu General -diz uma das mulheres. - Louco? -pergunta-se. De repente, é assaltado por um temor incrível: ser chamado de louco por um homem é uma afronta que se paga com a morte. Por uma mulher é um mau sinal. De onde lhe vem esta ousadia? Não tardarão as crianças e os velhos a tratarem-no como um louco, sem o menor respeito. A anarquia em breve estará instalada no grupo.

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Quem manda aqui?

Inspirado pelo zelo no cumprimento da missão, lança ao ar todos os dados: se no meio da mata um rato surge, há um celeiro por perto. Se uma ave doméstica aparece, há uma aldeia por perto. Uma palavra injuriosa contra o líder é mensageira da conspiração que se avizinha. De certeza, a mulher apenas repetiu a palavra ouvida na voz de um homem nos suspiros do leito. Chamaram-me de louco, logo agora que o mundo das andorinhas está mais nítido, mais visível, mais próximo. Agora que se tem a pista, as mulheres lançam murmúrios com palavras mortas. Quem está a cultivar a horta dos murmúrios? Quem as aduba? Lamentos de mulher? Os homens lançam gemidos cancerígenos nos ouvidos delas. Quem terá sido? Algum guerreiro? O que virá depois deste insulto? Desordem. Anarquia. Fracasso. Decide, então, disciplinar o grupo. O General manda interromper a marcha e põe em prática as cogitações que lhe correm na mente. - Quem me quer chamar de louco que se acuse! A pergunta remete os guerreiros ao silêncio. Sabem o que significa desafiar um General em plena acção. - Quem ousa desafiar a minha autoridade? De novo, o silêncio. - Passei por provas muito duras para me tornar homem - recorda o General- venci muitas batalhas para merecer este posto. Querem , agora, fazer-me recuar, perante um bando de pássaros? Jurei fidelidade ao imperador. Cumprirei a missão com muita dignidade. Serei condecorado, acreditem . A história da minha vitória será contada e recontada. Serei consagrado herói depois desta missão. Não me respondem? Chegou a hora do desembainhar de espadas para recordar a todos que a lei existe. - Marivate, amarra o Lumbulule no tronco daquela árvore- ordena. A ordem é imediatamente cumprida, e os soldados tremem de medo. De onde vinha aquela aspereza? E por que a escolha do Lumbulule, como vítima? E, por que se elegeu o Marivate como carrasco? Não conseguem resposta. São os mistérios do acaso escolhendo, criteriosamente, as suas vítimas. Tanto um como outro eram muito disciplinados. Mas também são os mais preguiçosos que, com maior prazer, saboreiam o descanso. - Chicoteia-o, Marivate, mas não o mate.

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Lumbulule retorce-se no tronco, fazendo par às chicotadas e uivos, na dança e contradança. Um castigo sem história, sem suspiros nem lágrimas das mulheres. Elas estavam preocupadas com a própria fome, com o cansaço que fazia deles seres morto-vivos. Só Lumbulule chorava de dor e de raiva, por estar a ser castigado sem saber por quê. - Se alguém, entre vós, me chamou de louco, nos ouvidos de uma mulher, que se acuse! De novo, o silêncio. - Vocês são soldados, e a vossa missão é disciplinar o grupo, lembrem-se. Não quero mais ouvir a palavra, louco. De agora em diante, quero apenas ouvir o choro das crianças e as cantigas dos pássaros. Nada de lamentos, de quem quer que seja, ouviram? - Sim, meu General. Depois da sessão de castigo, a lavagem cerebral e a moralização do grupo. Nguyuza retoma a palavra em gritos de guerra. - Somos um exército forte ou fraco? - Somos fortes. Fortíssimos. Imbatíveis!- Respondem todos os guerreiros. -Sabem de onde vem esta força? -Sabemos. - Então, digam-me. Quero ouvir. - De Macupulane, o rei dos chopes. - O que aconteceu? - Matamo-lo. - E depois? - Bebemo-lo! - Sim , bebemos o rei dos chopes - remata Nguyuza - têm boa memória, vocês, mas quero que me digam tudo em pormenores. Para facilitar a tarefa, começo. Eu , Nguyuza, a mando do imperador, atraí o rei dos Chopes para uma cilada e matei-o. Pronto. Cada um que fale da sua parte nesse acto. Começa tu , Lumbulule. - Eu, Lumbulule, extirpei-o. Tirei-lhe o cérebro, o coração e as costelas. - Eu , Marivate, preparei a fogueira. - Eu , Khumalo, calcinei as partes do finado na grande fogueira. - Eu, Sithole, recolhi os pedaços calcinados e triturei-os num pilão de mulher. O general retoma a palavra num breve sumário. - Depois de tudo, eu Nguyuza, preparei a bebida. Misturei as

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AS ANDOR INHAS

Quem manda aqui?

cinzas das partes do finado , num barril de água que todos beberam . O grande imperador tomou o primeiro gole e embriagou-se . No delírio da celebração, todos gritamos: "bebemos o rei dos chopes! Não foi assim?" - Foi - respondem todos como crianças na sala de aula. - Assola-vos o medo do impossível? - Pergunta Nguyuza Temeis a viagem ao infinito? A ordem já foi dada, escolhei. Cumprir e viver ou recuar e morrer! - Cumpriremos as suas ordens, General! Os homens ficam estarrecidos. Levavam aquela missão de ânimo leve, mas eis que outro louco transforma-a num autêntico jogo de vida e de morte. - Quem me desobedecer será imediatamente imolado no fogo da desonra. Atirá-lo-ei ao abismo por cobardia. Não será bebido, porque não presta. Só se bebe o que é corajoso e bom , como o Macupulane, o rei dos chopes. O General é sempre assim. Depois de castigar alguém, renova os ânimos . Sente o prazer de disciplinar e submeter. Depois da frieza glacial, o degelo. Finalmente a bonomia. - Falemos, agora, como homens - convida o General - dizei-me com 9inceridade, bravos guerreiros: qual a causa desta insubordinação? Com palavras controladas, os guerreiros dão as respostas necessárias. - A fome , meu General - responde Khumalo - as crianças passaram dias e dias sem comer. A marcha é bárbara e as mulheres já emagreceram bastante. - As mulheres! Existem seres mais resistentes que elas? Elas conhecem o sacrifício supremo no parto da vida . Elas aguentam. E ainda bem que emagreceram - diz o General -a gordura atrasa a marcha. Não existe tirania nas atitudes do General. Ela conhece o sacrifício a consentir e os caminhos da soberania. Sabe tudo sobre os limites do corpo humano, mas a meta está na próxima etapa, não pode permitir a desordem e o desassossego neste instante. - No conforto e no repouso reside a morte da liberdade- explica o General - liberdade é buscar, caminhar e, por vezes, sofrer. - Estão todas cansadas, General. - Sim. Por causa das inúteis cargas que transportam. Atirem-nas todas às águas do Rio Púngue. - São mantimentos, General!

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- Só servem para engordar. - O que será das crianças, General? - Já viram as andorinhas? As fêmeas nunca transportam cargas à cabeça, mas comem . Nunca fizeram guerra, mas são soberanas. Os machos nunca voaram com lanças, nem arcos, nem flechas , mas vivem em liberdade. Sejamos como as andorinhas. Falemos a oração de todos os pássaros no despontar de cada sol, vamos, aprendam e recitem : "Deus, dai de comer aos pássaros, dai de comer a nós, também". Vamos, repitam. Os homens repetem: - Deus, dai de comer aos pássaros, dai de comer a nós , também . Arriscando-se a um novo castigo, Lumbulule questiona: - Estamos longe de casa, General. Deixamos muito para trás a terra dos chopes. Afinal , aonde vamos? - A um lugar sem nome , caçar a andorinha que cagou no olho do imperador. - Mas , General , não estará também a ficar louco como o nosso imperador? - Lumbulule, meu refilão , já ouviste falar do país das andorinhas? - Quer mesmo a minha opinião sincera, meu General? - Fiz-te uma pergunta. - O reino das andorinhas nunca se alcança- explica LumbululeElas vivem a primavera eterna, sem noite, sem sofrimento, sem calor nem frio. São livres. - Livres? O que é para ti a liberdade, Lumbulule? Fica em silêncio e voa num mundo sem guerras, nem castigos. Um mundo onde tudo é azul, frescura e arco-íris. - Não me respondes? - insiste o General. De novo, o silêncio. - Tens muita razão, Lumbulule. A liberdade não se expressa. Vive-se.

(6 ) - O General ainda não voltou? - Pergunta o imperador pela milésima vez. - Não - responde Xabalala, o conselheiro. - Porque demora tanto?

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- Porque as andorinhas refugiam-se por trás da abóbada, depois do Zulwine , nesse lugar onde ninguém já conseguiu chegar, com os pés vivos. - Pressinto traição. - Não, não creio. Doze luas completas durou a viagem de Mossurize a Manjacaze. Dez ciclos da lua demora o parto de uma criança. Quanto tempo leva a marcha até ao país das andorinhas? - E se o General não regressar? -Voltará. -Quando? -Em breve. O gordo imperador está a emagrecer. As guerras dos portugueses são poderosas e Nguyuza não volta. - Será que devo mandar outra expedição para resgatá-los? -Ficaria sem guarnição, Majestade. É perigoso- aconselha Xabalala.

(7) Os olhos dos viajantes espalham-se no céu onde as andorinhas bailam, cantam e brincam. Qual delas provocou esta tortura? Esta? Aquela? Nenhuma? O império de Gaza ficou lá atrás, com as suas andorinhas loucas, destemidas. As que bailam neste céu são elegantes, respeitosas, não cagam em qualquer lugar. A marcha prossegue com a maior disciplina do mundo, com as vozes dos guerreiros a gritar como pastores de gado: vai, segue, marcha. Chegaram às margens do Rio Nhathe, o Zambeze. Mergulharam naquelas águas e purificaram-se. E voltaram a caminhar. Chegaram ao Rio Chire e atravessaram. Chegaram a um lugar. Divino. A música do éden ouve-se das almas das andorinhas, aqui reside o princípio do mundo. O útero grávido dos montes dá à luz dois rios irmãos gémeos, Licungo e Malema, que seguem destinos opostos como o homem e a mulher, aqui nascem todos os pássaros. Nguyuza escuta a melodia verde e azul que vem da flauta dos canaviais e sorri: o alimento do meu povo brotará ao lado das rosas e antúrios que embelezam este solo. O meu túmulo estará nos contornos mais altos destes montes desenhados com exactidão e elegância, porque aqui nascem todos os sonhos.

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A Sacerdotisa olha para o General. Ele olha para ela. Sentem chegado o momento. Nguyuza ordena uma paragem. -Chegamos. -Aonde? - perguntam os soldados. - Ao reino das andorinhas. Todos levantam os olhos para o céu. - Chegamos? - Perguntam as mulheres e as crianças. -Chegamos, sim. O êxtase, finalmente! - Como é belo, o reino das andorinhas! - suspiram as crianças. Todos conheciam, afinal, este lugar que fazia parte de todos os sonhos, sem imaginar que ele existia, de facto. Não sabiam que a ele chegariam, nas asas das andorinhas. Os cajus maduros, as mangas, os ananases e mapfílwa, colam-se às bocas sedentas de beijos, e a fome daquele povo morre num instante. - Boa gente, - diz o General - estamos aqui para semear uma nova bandeira. Chegamos à terra prometida. O sonho maravilhoso transforma-se em realidade. O fim em princípio. Para trás ficou o triste cenário de um império em queda. Com as capulanas das mulheres, fizeram-se redes de pesca. Com as catanas dos homens desbravaram-se as matas e nasceram as hortas. Nos bicos das cegonhas vieram os grãos de milho, de laranja, limão. Da cloaca das andorinhas vieram as sementes de goiaba, de tomate, de papaia. Finalmente a fartura, o delírio. - Porque não nos disse a verdade General? - perguntam todos ao mesmo tempo. -Eu menti? -Não, mas ... -As grandes mentiras incubam grandes verdades-íemata Nguyuza. - E as andorinhas, General? - Se queres conhecer a liberdade, segue o rasto das andorinhas!

&&& A Sacerdotisa e o General sobem ao monte de mãos dadas. Chegam ao ponto alto do Namuli, bem perto do Zulu. No trono de pedra que a natureza criou. Nguyuza senta-se como um rei e contempla as estrelas a partir do alto. Cansado de contemplar os céus, desce aos rios para olhar os raios de sol a deixar-se reflectir no

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espelho da água. Recorda o seu percurso de homem: menino, ainda, foi recrutado para a guerra e sofreu as mais terríveis privações. Era proibido amar ou apaixonar-se. Com tanta mulher bela que morria de amores por ele, como guerreiro não podia tocar em nenhuma, sob pena de morte, porque, naquele exército de loucos, mulher era o galardão reservado aos guerreiros vitoriosos. Das tantas batalhas, coleccionou o seu harém. Dez esposas ao todo. Escolhidas pelo imperador para o vencedor. Recebidas sem amor nem paixão, como cabras mortas, espólio com sabor à guerra. Nos braços da Sacerdotisa, celebra a primeira paixão, o primeiro beijo e descobre que o verdadeiro amor é uma viagem curta para dentro do próprio íntimo.

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(8) Andorinhas! Quem nunca as viu? Cantam e dançam por cima de todas as coisas. Querem ouvi-las? Têm de levantar os olhos para o céu, o Zulwine, lavar os olhos no azul que desperta, na voz, , acordes de ternura. Elas inspiram-nos a descobrir a grandeza da alma na imensidão do mundo. Quem lhes conhece a idade? Quando nasceram? Elas dançam, em roda, as cantigas da eternidade. De onde vêm elas? Daqui. Dali. De todo o lado. De lugar nenhum. São o olho de Deus no controle do mundo. Primeiro foi o verbo. Segundo, a natureza, os rios, os ventos e as estrelas. Em seguida foram os animais. Mais tarde, o homem e, finalmente, a mulher. Ninguém se pode gabar de ter assistido ao parto de uma andorinha. Porque elas existiram sempre e testemunham a todos os nossos partos. Em cada nascimento, elas estão lá colorindo o céu , anunciando, ao mundo, o parto de uma nova estrela. Trazem no bico, a mensagem dos mortos na celebração da vida. Elas informam da partida do sol e da chegada das flores. Dão-nos notícias sobre o sol e a chuva, verdadeiros guardiões da vida. Se, na ordem da criação, as andorinhas são mais velhas que a humanidade, como pode um simples mortal, pretender silenciar o seu superior, na hierarquia da existência?

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Os olhos do imperador se perdem no milheiral verde, carregando às costas espigas fartas. Faz as contas à vida. O rebanho cresceu . O gado triplicou. As mulheres engravidaram e pariram muitos filhos homens, guerreiros do amanhã. Os inimigos foram dominados. O poder é absoluto. Um dia, chegou um homem forte e ajoelhou-se diante do imperador pedindo clemência. -Quem és? - Sou o Matibyana, o rei dos rongas . -O que queres aqui? - A protecção. O gordo imperador olha para os lados. Chama o principal conselheiro -O que achas, Xabalala? - Não o receba, Majestade. -Por quê? -Vai atrair o azar para a nossa terra. -Qual azar? -Os portugueses. - Esses? Que poder têm, eles, para me afrontar? -Tem armas de fogo, Alteza. Esse homem pede abrigo porque andou metido em querelas. Virão importunar-nos. - Estás cego, Xabalala. Não vejo homem nenhum. É apenas um ser vencido, de joelhos , com aquela submissão que dá prazer aos meus olhos. Mal me viu transformou-se em mulher. Não é rei nenhum. Um rei não se ajoelha e nem pede clemência. Como posso eu recusar uma fêmea pedindo abrigo? -Os portugueses vão reagir, Majestade. -Tenho um exército poderoso. - De momento está ausente. -Onde foi? - Ah, Majestade! Enviou-o numa missão punitiva para disciplinar as andorinhas. Já se esqueceu? -Ainda não regressaram? - Não. Por isso mesmo não se deve meter em querelas. - Ah, mas voltarão dentro em breve . Os portugueses não me assustam .

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- E se não voltarem? -Voltam sim, voltam. Eles são meus cães de guarda e obedecemme cegamente, sou o seu imperador. -Pressinto traição, Majestade! -Não me fale em traição, Xabalala. Jamais serei traído. Deixem o Matibyana refugiar-se aqui , para aumentar o meu poder sobre os rongas. Xabalala tenta persuadir, em vão. O gordo imperador é teimoso e só faz o que lhe apetece. Matibyana ficou e os portugueses zangaramse. Vieram armados, colocando todo o império sob ameaça.

&&& - Onde está o meu melhor general para me libertar dos invasores - gritava o imperador, atrapalhado - Xabalala? Tens notícias do Nguyuza? Porque é que não regressa? Onde estão os meus melhores homens? - As lanças dos guerreiros não alcançam os céus. Eles partiram para o princípio do mundo e só voltarão com a missão cumprida. -Vocês sabiam da traição e nada me disseram! Porque não me a.conselharam? -Acaso nos pediu um conselho? - O império está ameaçado - gemia o imperador entre lágrimas - Em breve será destruído, Alteza. - Xabalala, faz alguma coisa. Envia mensageiros e chama de volta o Nguyuza e os meus guerreiros! - As vozes humanas não atingem o horizonte!

&&& Coo/e/a. Sipaios negros sitiam o abrigo do imperador, obedecendo ao comando dos portugueses. Penetram na fortaleza do império sem a menor dificuldade, os bravos guerreiros ainda não regressaram da caçada às andorinhas. Amarram o gordo imperador pelos pulsos. Um nó. Outro . nó. Arrastam -no para fora e exibem a caçada, para que o povo veja a nova aurora com os olhos que a terra irá comer. Não há resistência. Nem sangue . Nem generais gritando ordens de guerra.

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- Só te enfeitiça quem contigo vive - recorda o imperador, desconfiando dos autores daquela trama. Xabalala, seu conselheiro, é um homem afável, de muitas palavras e muitos rostos. Dono do gado e das belas mulheres; é capaz de castrar o próprio sexo para aumentar o poder. O Mbinguana, esse chefezinho dos chopes, deve estar por detrás disto. Revolta-se. Arrepende-se. - Nguyuza, por que me traíste? Por uma caganita de andorinha enfraqueci a segurança do meu império e tu, Nguyuza, levaste os melhores guerreiros e suas famílias para nunca mais voltar! O povo inteiro confere e confirma os ditados e os provérbios antigos. -Tudo passa. - Só não cai o que o feitiço segura. - Não há mal que perdura. - De bom mel não se enche a colher. - A hora chega para todos, aqui se faz, aqui se paga. O imperador nascera num berço de ouro. Nunca tivera uma ferida no corpo. Vavava as orelhas dos outros. Humilhava os vassalos e os inimigos, mas, hoje, chegou a sua hora. Matava a ferros e com o mesmo ferro será morto. Sonhos, tempestades, remorsos, esperança, desespero, bailam na mente do imperador como uma revoada de pássaros. Nos olhos, o desalento ao reconhecer que estava perdido para sempre. Lamenta. - Os meus guerreiros deixaram-me à mercê dos invasores. A vingança dos mortos caiu sobre mim. Por quê? Por causa do cheiro de sangue impregnado no solo do império? Por causa dos cem guerreiros mortos no lago, quando tentavam silenciar os hipopótamos que tamborilavam no lago, para eu dormir a minha sesta de imperador? Pelos milhares de chopes, cujas orelhas, mandei vavarcom canivete a sangue frio, só para lhes enfiar brincos de mulher? Pelo derramamento de sangue nas guerras sem fim? Houve tirania nos meus actos? Não, não houve. Governar é matar antes de ser morto. Conquistar é roubar para não ser roubado. É mudar tudo antes de ser mudado. Cometi algum crime ao proteger o rei dos rongas? Não, não cometi crime contra português nenhum. Que espécie de imperador seria eu, se não protegesse os meus aliados, só por temer os estrangeiros? Agora que me têm cativo, que farão de mim? Deportar-me? Matar-me? Destituir-me? - Senta-te no chão, imperador bantu- berrou um soldado branco.

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- Humilha-te perante o poder do novo império! - ordena o sipaio negro com a prepotência de um assimilado. Nova andorinha lança uma caganita que cai no cocuruto do imperador. O gordo tenta limpar a cabeça, mas tem as mãos atadas. O riso dos invasores desperta no imp_ erador ondas de revolta: por causa de uma andorinha, perdi o meu exército, e, agora, o que é que esta nova andorinha quer de mim? Move os lábios e cospe no rosto de um soldado branco. Os sipaios se espantam. O preso que parecia vencido, agora se reveste de novos poderes. Cuspir sobre um branco? De onde lhe vem a ousadia? - Estás preso imperador bantu- grita um homem a cavalo! - Querem me ver a chorar? Enganam-se - explode o imperadorum rei não chora e nem verga. O rei não implora mesmo que o matem. Um rei nasce rei e morre rei. Nessas vossas democracias, elegerão apenas serviçais sem linhagem, porque os soberanos nascem soberanos. Sou imperador, apesar de preso. Serei imperador mesmo depois de morto. Serei sempre imperador na memória do meu povo. Nunca me ajoelharei perante nenhum poder deste mundo. Sentarme na areia diante dos subalternos? Nunca! Estrelas faíscam na mente. Espadas tilintam lhe aos ouvidos, e escuta vozes dos bravos guerreiros do tempo que ainda há de vir. Extasiado de futuro, faz profecias. - Vem a mim, amanhã distante, e abre os olhos destes sipaios que me atormentam. Vai, meu coração, vai. Leva-me a galope no jumento do tempo, para lá onde o corpo se transforma, quero voar como as andorinhas para mais depressa trazer de volta a primavera, porque o inverno acaba de entrar nesta terra. - Despede a tua terra, rei bantu. - Despedir? Sou imortal, não sairei daqui! A alma de um povo é leve, é livre, como as andorinhas, não se prende. - Sonhas ainda vencer as nossas espingardas com o teu exército de tangas e armas de pau? - Pergunta o soldado branco. - Eu sou o futuro e a certeza. Conheço os enigmas do além. Dentro de mim reside a chave dos mistérios do amanhã. O futuro é risonho e verdejante para lá do tempo. Esta terra, juro-vos, vestirá as cores de todas as primaveras. - Como é que sabes, rei bantu? - Sinto o aroma do canhu, as buganvílias, mapfílwas e cajus

maduros. Ouço o toque dos batuques de glória. A liberdade virá! - Insultas a dignidade do novo império. Vamos matar-te. - Matai-me à vontade, que o ventre desta terra está fecundo de futuro. O salvador desta terra será incubado no ventre virgem dos espíritos dos N'wanati, e eu hei-de voltar, com outra forma, num outro tempo, nas asas de uma andorinha! Se os sipaios tivessem olhando para aquele prisioneiro com mais atenção, teriam visto, nos olhos do imperador, o parto de uma certeza. Os chopes celebram o momento, porque as suas orelhas não mais serão vavadas . Mas lamentam a perda. Perde-se a ocasião de exercitar a arte do arco e da flecha e as boas emboscadas contra os guerreiros do império.

&&& O gordo imperador foi arrastado como um peixe morto. Foi metido num carro e, depois, num barco até ao degredo nas terras de Portugal. Ganhou um nome novo, foi baptizado e obrigaram-no a comer peixe fresco, arroz e bacalhau.

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Os dois sipaios saboreiam o repasto recebido pelo serviço prestado: postas de bacalhau e cinco litros de vinho inquinado. Demasiado pouco para quem ajudou a derrubar um império. Comentam. - Gostei de ver o malandro a ser conduzido para a prisão- diz um deles - levitei de felicidade quando recebi a missão. - Porquê? -pergunta o outro. - Prender o homem mais importante do império não acontece todos os dias. Foi o acto mais importante da minha vida. - Gostaria de congratular-te, amigo, mas lamento dizer-te que fomos amaldiçoados. - Porquê? Não gostaste? -Ouviste aquelas coisas que o imperador dizia sobre a liberdade? Viste a forma como nos olhou? Foi como se descarregasse sobre nós todas as maldições deste mundo. Os olhos das vítimas que torturamos transmitem mau-olhado, sabes disso. Até cuspiu na cara do branco! Consegues tu entender aquilo? - Eu? O que queres dizer com isso? Paulina Chiziane

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- O tipo dizia coisas do outro mundo. Estava humilhado e morto de medo, mas reanimou-se de forma milagrosa. Será que a caganita de pássaro injectou-lhe poderes mágicos pela cabeça? - Pode até ser. As andorinhas têm os seus mistérios. - O que nos vai acontecer então? Algum azar? Na mente dos dois, irrompe o tumulto das noites tenebrosas, e ambos caem no poço adormecido dos fantasmas, como espelhos quebrados. É mesmo isso. As ideias inquietantes conduzem-nos às trevas. -Vou partir- diz um deles -Para onde? - Para um lugar onde essa maldição não me alcance. O sipaio levanta-se cambaleante . Vai acelerando a marcha. Começa a correr como um louco e desaparece na mata. O outro termina de beber o seu copo para que o medo se afaste. Larga o copo e persegue o amigo. Encontra-o tarde demais: Era já um peixe flutuando no alto. Enforcou-se de medo! Os olhos abertos do morto pareciam transmitir imprecauções que faziam crepitar fogueiras mágicas adormecidas no monumento de cinzas. Não suportou aquele olhar e enlouqueceu para sempre. Perante o infortúnio dos dois sipaios, o povo inteiro aclamou a vingança dos espíritos!

&&& Várias imagens ficam gravadas na mente daquele povo. Um branco, de chapéu e calças de caqui e botas altas. Uma montada vigorosa, nobre, de pêlo reluzente. Sipaios pretos, cofiá vermelho, calções e botas altas, caminhando a pé. Tiros de mauser . Pânico. Fim.

&&& Muitos anos depois as mães ainda teriam o trabalho de satisfazer a curiosidade das crianças, que perguntavam sem parar. - Quem era o tal ser tão monumental, com quatro patas, duas cabeças, uma de animal e outra de gente com pele branca? -Era um homem-cavalo. Homem, sabem o que é. O cavalo é uma espécie de burro, mas é muito mais forte e só os chefes montam . - O homem tinha nome?

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-Sim. O homem da montada chamava-se Muzimo wa Buquene (Mouzinho de Albuquerque) . - E o cavalo? Tinha nome? -Hã? - As mães ficam embasbacadas. Encabuladas. - Quem derrubou o império foi o homem-cavalo. Porque se fala só da vitória do homem e não do cavalo? Será que o tal homem podia ganhar a vitória, sozinho, sem o cavalo? Quem foi vitorioso de facto: o homem ou o cavalo? As perguntas das crianças revolvem baús de amarguras no coração das mães. Elas não respondem, mas fazem o balanço da vida. Somos agora pássaros sem horizonte e sem azul por causa do homem-cavalo. Por isso, lançam suspiros das feridas abertas. - Ah , meninos, não incomodem os mais velhos com as vossas perguntas, vão, vão brincar longe, vão! As crianças, esses pequenos inocentes, são seres de questões profundas. Elas perguntam. Em cada questão revolvendo passados no reajuste das linhas do tempo. E o passado regressa ao presente. - Dizem que o imperador falou muitas coisas. O que dizia ele? -Cantou a liberdade . -A liberdade canta-se? A liberdade vive-se, dizia Nguyuza, o general desertor. Como explicar, então, às crianças o conceito de liberdade, quando por todo o lado há prisão, xibalo, deportação? Como explicar que liberdade é palavra, semente, diamante? Como ensinar que a liberdade é a fêmea que dará à luz uma nova estrela? -Canta, mãe, canta então essa liberdade. Canta um bocadinho, só! Elas então repetem a ideia. A essência. O resumo . -Ele disse: a liberdade virá. A liberdade é gema de pedra preciosa que resiste ao martelo dos tempos. - Onde está o imperador: morreu? Viajou? - Não morreu e nem vai morrer. Ele está sempre aqui na forma de uma andorinha. É ele que prediz o futuro e celebra os ritos de vida e de morte. Ele escolherá o homem bravo que lutará pela liberdade desta terra. ·

&&& Os chopes perceberam que o imperador, apesar da rivalidade , era um bom amigo. Compreenderam também que, depois de uma invasão, viria outra, com impostos pesados e a dor da escravatura. Paulina Chiziane

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Por isso, organizaram o msaho , timbila e recitaram poemas. Gomocumu, poeta-cantor, tornou-se célebre nesse tempo. Ele cantou assim: Vinde, vinde todos Vinde todos ouvir a cantiga Não quereis conhecer quem governou o império? Ngungunhou homens, ngungunhou mulheres Mas perdeu a liberdade Por tentar matar uma andorinha!

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(1) As histórias da avó começam da mesma maneira, que é sempre a melhor maneira de começar Karingana wa karingana! Era uma vez ... Um homem muito doente, depois de experimentar todas as formas de cura, sentiu-se desesperado. Então, pediu aos filhos para que procurassem o curandeiro de todos os milagres. O filho guerreiro, movido pela experiência dos grandes combates, partiu em busca do curandeiro. Venceu planícies, pântanos, montanhas e entrou na floresta. Chegado ao local indicado, pronunciou palavras mágicas. O curandeiro apareceu sob a forma de uma serpente medonha. O guerreiro, aterrorizado, esqueceu a missão e fugiu. Chegou a vez do segundo filho. Este tentou a sorte, e com o mesmo resultado. Pânico, medo e fuga. O terceiro também pediu para experimentar. O pai disse logo que não. Porque era pequenino, fraquinho, magrinho, inexperiente. Se até os mais velhos falharam, que faria uma criancinha indefesa? Depois de muitos choros e muitas súplicas, o pai deixou o menino experimentar a sorte. Partiu. Com muita dificuldade, chegou ao coração da floresta. Pronunciou encantamentos como o pai dissera. O monstro medonho fez a sua aparição. Contrariamente ao que se esperava, o menino não fugiu. Quem se espantou foi o monstro que pergunta: - Não tens medo de mim? -Tenho muito, muito medo. - Então, por que não foges? - Porque não posso voltar sem cumprir a missão. - E se eu te comer? - Mais importante que o meu medo é a saúde do meu pai. - Teimoso! Leva-me então nos teus ombros e mostra-me o caminho. A serpente enrolou-se no miúdo e ambos caminharam. Não vale a pena descrever o cansaço do rapaz, o espanto que despertou nas pessoas que o viram a caminho e que, apavorados, colocaram-se em lugares seguros para assistir ao insólito. Chegou à casa mais

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morto que vivo. A serpente, que afinal era um deus, largou o menino, enrolou o pai e devolveu-lhe a vida. E tudo acabou bem.

(2 ) Um menino dorme e sonha com aquela história. À volta da fogueira, a história é simples fantasia, mas no sonho parecia muito real. O herói da história era ele. Espanta-se. - Porque é que só nos contos à volta da fogueira os pequenos vencem? - Pergunta-se. Serei algum dia um vencedor? Vencedor de quê, sendo eu um pobre sem pai? No sonho transportei aquela serpente medonha, muito mais pesada do que as minhas forças. Se foi sonho, porque é que o corpo me dói como se tudo tivesse sido verdade? Seria eu, na vida real, capaz de semelhante sacrifício? Há muito que a avó interrompera o leve sono dos adultos. Perante o rebolar incessante do neto, ela pergunta: - Chitlango, o que foi? Tens pesadelos? - O sonho, avó. -Ah? Sorrindo, o menino conta as aventuras daquele sonho. Fala do pai doente. Dos dois irmãos que falharam a missão. Explica como foi difícil transportar a serpente nos seus ombros pequenos e percorrer caminhos, montes, florestas, com os pés descalços. Espanta-se. - Serei eu capaz de tamanha coragem, avó? - Já foste capaz! -Aonde? - No sonho, ora essa. Para ser herói na vida, é preciso ser herói no sonho. Há gozo nas palavras daquela avó que arremessa de novo a mente do menino ao reino da fantasia. O menino não entende aquela resposta. - Estou a falar da vida real, avó! - Não crês em ti? -Em mim? - O sonho é seara da vida. Um sopro de saudade prQvoca o silêncio dos túmulos e o menino morre de ansiedade. Questiona. - O meu pai estava doente no sonho. 34

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- Ele está num lugar sem sofrimento. -Ele está morto, não está? - Nada disso! Só está a viver do outro lado do mundo; por isso, visitou-te no teu sonho, filho meu. Esteve contigo esta noite. Ele ama-te. Não fiques triste, vamos, dorme, para que ele venha de novo ao teu encontro. -Avó, diz-me, como era o meu pai? -O teu pai? - Responde pela milionésima vez- Grande filho ele foi. Grande marido. Grande pai ele foi, meu menino. As perguntas do menino despertam dores adormecidas e as lágrimas correm nos olhos da anciã. Ela funga. Também sente saudade do filho perdido. O menino já não dorme, pensa. As palavras da avó fazem pensar. De repente, pensa nos lamentos do povo, por causa da chuva que não cai, por causa do sol que tudo queima. Pensa na pastagem, cada dia mais rala e nas vacas, cada dia mais magras. Pensa nos assimilados, cada dia mais arrogantes e nos sipaios, cada vez mais sanguinários. Pensa ainda no ser misterioso caminhando solto pelas ruas, metade homem, metade cavalo, o tal Muzimo wa Buquene que capturou o imperador de Gaza e faz desaparecer muitas pessoas no cruzamento dos caminhos. Pensa nos pastos. Nos pássaros. Nas estrelas que brilham lá fora. Adormece.

(3 ) Na sombra da micaia, o menino e seus amigos fazem planos do futuro. Bem pertinho deles, a manada, feliz, rumina as mais doces ervas dos pastos. Estão na pausa da pastorícia. - Eu quero ser polígamo. Casar duas mulheres de uma só vez - diz o .que parece ser mais velho. Primeiro vou trabalhar nas minas do Rand , ganhar dinheiro para o lobo/o , bem antes de ser apanhado pelos sipaios nas rusgas e ser levado para o xibalo. - Também, quando for grande, quero ser mineiro - diz outro com ar sonhador - quero comprar um relógio que toca, um rádio e uma bicicleta. - Eu quero guiar um camião e vender carvão. Quero ser casado com uma mulher gorda que cozinha bem - falava o gorducho com ares de comilão- a mim, os sipaios não apanham. Vou fintar-lhes.

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- Eu não quero ser nada - diz o malandrote - gostaria de ter nascido touro, para andar de curral em curral a cobrir as mais belas vacas sem pagar lobo/o . As fantasias dos meninos navegam em vôo rasante , as tesouras mágicas do xibalo decepam as asas dos sonhos que encalham como barcos velhos, num mar dos tormentos . Os colonos matam tudo o que lhes passa pela frente. Matam leões e elefantes, florestas, pessoas. -Hei, molengão - grita o futuro polígamo- tu, não dizes nada? Vais ficar a vida inteira nas saias da avó, reizinho da mamã? Já sei. Tens bom corpo para machileiro. Lenhador. Plantador. Chitlango responde com um olhar de desafio, não quer falar. Quer ouvir vozes que vêm de longe. Ouve os delírios da avó e o choro da mãe. Os lamentos do quotidiano na boca do povo. De repente se lembra desse ser misterioso; metade homem, metade cavalo; o tal Muzimo wa Buquene, (Mouzinho de Albuquerque) que capturou o imperador de Gaza. Estremece. Esse homem cavalo continua por aí à solta e abocanha os jovens para o xibalo no cruzamento dos caminhos. - Diz alguma coisa, Chivambo, reizinho da mamã! - SÇ>bre quê? Responde de mau humor, mas por de dentro sorri. Adoça a mente com belas imagens e fala de si para si. A avó me chama Chivambo o rei, sim. A mamã também. Dizem que fui rei , lá nesses tempos mortos. Um rei morto. Um rei nobre. A mamã acredita tanto nessa fantasia que passa a vida a chamar-me reizinho, por tudo e por nada. Sou rei, pois, porque não? Rei descalço em trono de palha, neste presépio que é a minha morada. Quando era pequeno, tudo fazia às birras e aos berros, só para me prestarem vassalagem. Bons momentos, aqueles! - Não tens sonhos, molengão? - pergunta o malandrote com ar de provocação - não tens sonhos? Chitlango olha para os amigos do alto do trono e sorri. As vacas ao lado ruminam lentamente, preludiando um futuro de guisados e matadouro, enquanto os meninos celebram o porvir de incertezas: partir para as minas e morrer no subterrâneo, ou regressar cheio de doenças. Ser deportado para o sofrimento, morte e esquecimento. As raparigas mais lindas da aldeia, recrutadas como criadas nas casas dos colonos e, finalmente, arruinadas pelo vinho e aguardente

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nos mercados de sexo. -Teimosos, o que querem saber? - Responde à pergunta com gozo no rosto - os sonhos de um rei são segredo do Estado! Entra na balada soturna e dança. Sou filho de uma pátria agreste onde se matam os homens para que as mulheres sofram de enxada na mão, alimentando, sozinhas, a nova geração de escravos. Sou desta pátria explorada, mas não serei machileiro, nem mineiro, nem polígamo. Muito menos um escravo. Porque um Chivambo não chora, dizia a mãe. Um Chitlango não se verga, mesmo que sofra, repetia a avó. De repente, cai na realidade. Serei mesmo rei? Sou Chitlango protector de quê, se nem sei ler? Protector de quem, se sou protegido por duas pobres mulheres, que se esfalfam de sol a sol para me garantir alimento? Recorda as palavras da avó nos lamentos de cada dia. "Os filhos deixam-nos, esquecem-nos - diz ela. Escrevem-nos uma vez, duas vezes, e mais nada! O meu filho mandou-me uma carta e um cobertor. Teve ao menos dó do meu reumatismo, mas a manta já apodreceu." Com novas palavras, a mãe canta o mesmo desespero. "Os homens, na África do Sul, comem, bebem, casam-se, enquanto nós, mulheres que os pusemos no mundo, vergamos debaixo da carga, somos desprezadas. Esta casa e esta cozinha já não se põem de pé. As térmitas, a podridão e o uso arruinaram-nas. Na próxima ventania vão desabar." Revolta-se. Esta terra amada se tornou viúva, se tornou solteira, não há homens bravos por aqui. Por causa do xibalo, das minas e das deportações. As mulheres é que têm que desbravar as matas, semear o milho e colocar os tectos das palhotas para o sustento dos filhos, os escravos de amanhã. Sou um pastorzinho de cabras, não sou rei nenhum. Sou Chitlango apenas no nome, Chivamboo-velho, apenas no sonho, não sou ninguém. Sente que será o próximo deportado, e treme de medo. Abandona os amigos, e busca segurança nos braços da avó. - Diz-me, avó, haverá um remédio para parar de crescer? - Remédio de quê? - Não quero crescer, avó. - Oh! Olha só! Munamasse wê? Vem ouvir o que me pede o teu filho! Oh, então, não queres crescer, malandro? - Quero ser sempre criança! - Posso saber por quê?

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- Para não ser mineiro. Para não ser deportado. Para não sair daqui. - Lindo menino! Fica, pois, sabendo que és o homem da casa. O único. Deves crescer muito depressa para ajudar a tua mãe e a tua avó. Tu és Chivambo, não te esqueças disso. -Sim, avó. - Promete-me, então, que vais crescer, e depressa. -Sim, mas não vou ser deportado, nem contratado. -Terás de lutar contra isso. - Sou bom no soco, avó. Lutarei mesmo. - Boa resposta! Assim é que os homens falam . Lutar? O menino começa a avaliar a força dos seus braços adolescentes. Lutar com os colegas das pastagens não é o mesmo que lutar com o criador de todas essas desgraças. Dá por si a questionar o mundo dos brancos. Não entende aquela gente que abandonava o conforto da grande metrópole para se fixar ali, naquela aldeia pobre e pacífica. Queria perceber por que é que, sendo eles estrangeiros, se julgavam donos de tudo. Por exemplo, diziam: aqui é Portugal-Moçambique. Que contradição! Como é que uma terra pode ser outra terra ao mesmo tempo? Achava engraçada aquela história de registar a terra, como se alguém pudesse pegála, do!}rá-la, embrulhá-la num lençol, carregá-la no navio ou no avião para ser registada numa repartição qualquer de Portugal. O registo das pessoas, sim, é fácil, porque elas têm pernas e andam. Mas, ... a terra? Por que é que eles trazem agonia, desespero, noites intermináveis de medo e raiva? Queria perceber a raiz desse poder que só maltratava os indefesos, mas não conseguia mudar o ciclo das estações. Com um prato de mandioca, a avó interrompe-lhe os pensamentos. - Vamos comer rapaz; come e cresce depressa, para seres o homem da casa - dizia a mãe com um grande sorriso. -Homem da casa?- questiona-se Chitlango. -Claro! - Para que serve o homem da casa? - perguntava na maior ingenuidade do mundo. - Come e cresce. Depois saberás. Enquanto mastiga, o pensamento voa de novo para o espaço. Como saberei ser o homem da casa, se o pai morreu pouco depois do meu nascimento e nem teve tempo de me ensinar o que é ser

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homem? Vou usar nova estratégia: aprender essa língua com que os invasores conspiram contra a nossa gente. Conhecer os sinais que escrevem nos livros deles para nos tirar a terra. Para ser o homem da casa, tenho de saber de tudo.

&&& Matriculou-se na escola para saber tudo e ser o homem da casa. Estudou na escola dos indígenas, onde professores negros, arrogantes, torturavam os alunos, obrigando-os a servi-los nas suas lides domésticas, como ir ao rio buscar água, deixando-os com pouco tempo para estudar. Nos livros daquela escola não encontrou sequer uma linha sobre o Chivambo- o rei que conduziu os homens à vitória, há cem anos. Mas havia rainhas brancas, cobertas de jóias e rendas como se os seus ombros fossem cabides. Nas cabeças, por que é que tinham coroas douradas e laços de seda? Não carregavam água nem lenha? Nas mãos, por que é que traziam os leques e não as enxadas? Se elas não trabalhavam, de onde lhes vinha o alimento? Nos livros de Geografia via tudo trocado. Por exemplo: aparece o Rio Limpopo, sem nenhuma referência aos N'wanati, espíritos e gentes desse rio. Do Zambeze, nada se diz sobre o Nhyathe, seu outro nome. O imperador de Gaza aparece muito gordo e muito feio , mas a avó diz que era bonito de cara, diz ainda que a vida era melhor com o imperador, e que piorou com o invasor. Tudo lhe desagradou. Desiludido, transferiu-se para o colégio da missão onde melhor se adaptou. Ali, as pessoas aprendiam Português, mas falavam a sua língua com toda a liberdade. E cantavam em coros lindíssimos. Na ânsia de melhor entender, tudo aprendeu. Infelizmente, antes de crescer para ser o homem da casa, a mãe perdeu a vida e a avó morreu pouco depois.

(4 ) Chitlango retornou à casa e chorou o infortúnio, o ventre do tempo deu à luz novas auroras. O passado acaba de parir o presente e o choro se torna melodioso como o canto. As palavras delirantes ganham a forma de profecias. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --

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- Como poderei ser o homem da casa, se me deixaram sozinho? Já não sou homem da casa, sou um homem vazio, tudo acabou . Não morreste, avó; tenho a tua voz bem guardada no fundo do meu ouvido; tu estás aqui, para ti morte não existe. Prometi uma manta nova e um reméd io para o teu reumatismo , eu vou crescer, vou ganhar dinheiro e cumprir a promessa. Nos olhos adolescentes, as marcas de água moldam imagens novas e ele balança na turbulência do fim e do princípio. - Rasgaste o ventre para me fazer homem, minha mãe. Não te perdi nem a ti, nem ao pai , cujo rosto não vi. No céu do entardecer, as andorinhas bailam enquanto no leito da eternidade semeia flores do campo. Reza. -Que não morra nunca o mugido das vacas que pastei. Que o sol nasça sempre ameno e renove o colorido das buganvílias com que farei coroas para a minha mãe e a minha avó, rainhas do meu trono Chivambo. Que a chuva caia e a vida se renove! Senta-se na entrada da casa. Gostaria de ficar ali até a noite cair, até a chuva chegar, até a vida acabar. Mas a vida é um peixe dissera uma vez a avó - carne e espinho no mesmo petisco. Viver é essa arte de separar o espinho e a carne para saborear o petisco. Então olha para o céu escuro onde pontos luminosos brilham. As estrelas piscando no céu iluminam o caminho dos justos. Toma uma decisão súbita. Arruma os pertences e parte . Antes, faz uma prece . - Que o Cruzeiro do Sul ilumine o meu caminho! Em cada passo, as palavras da avó caem-lhe na mente como chuva de granizo: "Tu não és igual aos outros rapazes, tu és o nosso grande Chivambo. Reinaste anos e anos sobre esta terra. Quando se é Chivambo, não se chora por tudo e por nada. Tu és o grande Chivambo, não te esqueças disso. És o senhor valente que conduziu os homens à batalha!" A brisa ganha a sonoridade da voz da mãe, afastando os fantasmas dos caminhos: "não tenhas medo, Chivambo. Lembra-te que Dzovo, Kambane , Chivambo-o-Velho velam por ti. És tu quem vai erguer de novo o nosso clã!" - Serei o homem da casa, mãe, eu sinto. - ele repete a si mesmo, enquanto lhe correm na mente as perguntas de sempre: - Como seria o meu pai se estivesse vivo? A voz da mãe, vencendo as fronteiras do tempo, preenche o vazio: "O teu pai era um homem benevolente, que se impunha pela

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sua inteligência, pela sua magna estatura e musculatura delicada. Só vestia peles de animais nobres caçados pelos próprios filhos, que lhe assentavam admiravelmente". Sente uma estranha vontade de derrubar as paredes do além e penetrar. Despertar todos os antepassados para lhe aliviar a angústia. Conhece-lhes os nomes que a mãe lhe ensinara a repetir, dia após dia. Mas ninguém conseguiu ainda a transposição da muralha tumular e realizar um passeio no reino das sombras. Compreende que só o tempo cura as feridas da alma, esse tempo que comanda as estações, amadurece a fruta e as mentes da gente.

(5 ) O menino dá passos largos e percorre o perímetro do mundo. Em cada passo, a renovação do sonho antigo: minha terra mãe, minha terra viúva e solteira; um dia voltarei para ser o homem da casa! Vive a emoção dos caminhos: este vale, este verde vivo, parece mesmo o das pastagens da minha infância. Esta pegada na areia faz lembrar o pé da minha mãe. Este azul, este brilho, fazem lembrar o lenço da minha mãe. Este sorriso, este rosto belo parecem mesmo da minha avó. E este homem? Tão alto, tão nobre, tão digno, é tal e qual o meu pai, cujo rosto nem ao menos vi. Caminha. Na Vila de Manjacaze vê homens condenados na construção do caminho-de-ferro. Vê o capataz branco, fuzil nas costas, chicote na mão. Vê o sipaio negro de bastão erguido, batendo e desfazendo as costas dos homens em papas de sangue. Ouve os gritos dos capatazes sobre os condenados: "Quer erguer os ombros? Chicote. Olhar para o lado? Chicote. Vai urinar? Chicote". A revolta de sangue se incuba. Ele caminha rápido para conhecer os mandantes da tragédia e obrigá-los a parar todas as maldades. - Quero alcançar o cerne da vida e ver onde tudo começa. Quero conhecer o ventre e o túmulo onde o sol nasce e morre. Quero caminhar para longe. Quero conhecer o falo mágico que engravida o útero das pedras e montanhas mortas, no maravilhoso parto dos rios. Quero conhecer as salinas onde se cristaliza o fel que derrama no coração dos homens. Eu vou sim . Vou descobrir o remédio para a doença de que padece a nossa terra.

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Dá muitos passos até lhe nascerem todos os dentes de siso. A barba nasce e cresce. Ele caminha até se tornar um homem feito, que não pode ser homem da casa, porque na casa que fora sua, o invasor montou o seu palco de tortura. Por isso atravessa fronteiras , mares e oceanos, até encontrar um abrigo seguro numa terra distante. Era já um homem forte e um bocadinho careca. Senta-se, repousa e faz o balanço da marcha. -Venho da nobreza, mas vivi em extrema pobreza. Os invasores transformaram a minha realeza Chivambo num trono de palha, mas duas mulheres bravas lutaram pela minha sobrevivência. Estou vivo e estou aqui. Foi a inteligência da minha avó que me fez sábio. Foi o amor da minha mãe que me fez nobre. Foi a imagem do meu pai que me fez mais homem. Fui às pastagens e tornei-me bom pastor. Veio a dor da morte da mãe e da avó. Lutei contra ela e venci. Parti à conquista dos saberes dos brancos, lá onde a memória das palavras é substituída por símbolos, letras, alfabeto. Escalei Manjacaze, Chicumbane, Mausse. Venci distâncias. Viajei para Lourenço Marques numa camioneta mais incômoda do que um chapa. Cheguei. Estudei tudo num zás e passei todas as classes. Na igreja tornei-me catequista. Na escola tornei-me professor. Em Portugal quiseram transformar-me em sipaio, arrumei as malas e parti. O regime sul-africano era mais feroz, queria sufocar a minha liberdade, fintei-o e fugi. Sou um pobre órfão de pai e mãe. Venho de longe! Conquistei esta América com os pés descalços!

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(6 ) Serei eu alguém? Fixei os pés com firmeza nesta terra conquistada. De pastor de gado, passei a pastor de almas, agora sou Doutor. Tenho bom emprego, gabinete confortável, um computador, ar condicionado e

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tudo. Até tenho secretária executiva, sou chefe! Que bela casa, que belo carro eu tenho, meu Deus! Que belo futuro me espera, eu que vim do nada. Aqui neste serviço tudo se faz em inglês. Verdade seja dita: o majestoso embandeiro nasce na pequenez de uma semente, depois cresce e se agiganta. Sim senhor, eu sou alguém . Mas,.. . serei mesmo alguém? Tenho diploma, mas não tenho chão. Tenho pão, mas sofro com a fome de um irmão. O meu pai , chefe de terra ocupada, não tinha diploma nem dinheiro no bolso , mas era nobre e era alguém . Porque tinha nome e tinha chão. A minha mãe e a minha avó eram duas viúvas com orgulho de existir, porque tinham sombra e tinham chão. Até as mulheres da aldeia que vivem em lares polígamos , com muita fome e muitos filhos por cuidar, são pobres , mas têm dignidade. As que frequentam o mercado de sexo, têm boa comida, boas roupas e dinheiro no bolso, mas não são ninguém. Nesta América de sonhos, não sou nada, sou apenas mais um. Na minha pátria ocupada eu sou alguém , porque sou o Chivambo, o Chitlango , o Dzovo, o Maundlane! Não, não sou nada, aqui não sou ninguém! Os bravos guerreiros da minha pátria lutam com paus e pedras e resistem tenazmente como bandos dispersos nas greves do cais. Até as mulheres já são levadas para o xibalo e pagam o imposto de palhota. Escravizar as mulheres? É o fim. Quando os homens são levados para o desterro, as mães ficam com os filhos e a vida se ajeita. Mãe é pedra sagrada sem a qual a vida não existe. Uma avó é a luz sem a qual nenhum sonho se revela. Fecha os olhos e dá um mergulho fundo nos mugidos das vacas lá do seu tempo de pastorícia. De lá lhe vem o cheiro do solo e o choro da terra. Vem-lhe também a dor da orfandade. Não, não sou ninguém! Sabes o que é ser alguém, meu neto, sabes? - perguntava a avó - não sabes? Ser alguém - dizia ela - é parar de chorar. É ver a tristeza a morrer e o sorriso a nascer. É ter a certeza de que um corpo morre para que outro cresça. É olhar para o horizonte sem medo de mergulhar em liberdade no vôo das águias. A memória se ilumina na parábola dos tempos. Cem ovelhas ao todo e uma perdida. O bom pastor larga todas e busca a que se perdeu . Na sua terra, essa parábola se inverte. Lá, de cem ovelhas, salvou-se apenas uma, a que está na segurança das Américas. Noventa e nove encontram-se no meio das matas em chamas.

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Como recuperá-las? A experiência de pastorícia ganha na infância reergue-se e reafirma-se. Um dia, ele salvou uma manada inteira de uma queimada. Lembra-se. Já fiz isso com os bois e deu certo. E com os meus irmãos? Poderei eu ajudar as ovelhas de todo o meu país a vencer círculo de fogo? Sente, por dentro, um tremor estranho. Era o ·despertar para o futuro dos séculos. Anuncia aos companheiros de trabalho a suprema decisão: -Vou partir. - Para onde assim tão de repente? - Para a minha terra. - Hã? Quando? -Agora! -Porquê? - Para ser o homem da terra. O homem da casa. - Pense bem, Doutor! Lá, nessas Áfricas, tudo é atrasado, tudo são trevas. Mosquito, malária, cólera. Aqui está bem. Muito bem. O mundo inteiro luta ter um emprego aqui nas Nações Unidas. Agora que o Doutor conseguiu tudo, quer voltar para trás? -Voltar atrás? O Dr. Chivambo responde ao nobre chamamento. Ergue-se. Coloça o chapéu na cabeça. No braço esquerdo pendura o casaco, e no direito a pasta. Em plenos pulmões ele grita: para trás? Não, não voltarei nunca mais! Vou , sim, para frente. Fixa os olhos no sol e lança-se no azul profundo, no vôo das águias!

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(7 ) Aterrou no coração da floresta densa. Cabriolando no colo da sua mãe África, mata de uma só vez toda a saudade. Come muitos cajus. Mangas. Cheira o perfume verde das mafurreiras. Vê o povo. O seu povo! Saboreia imagens antigas no acto do novo nascimento: como é bom voltar aos braços da terra mãe! Andou às escondidas pelas aldeias , até pelas igrejas, mostrando pela prática que uma galinha é uma galinha e uma águia é uma águia. Gritava a plenos pulmões que o ser humano não tem asas, mas voa, porque a mente é feita de liberdade. Mostrou ainda que ser negro não significa ser escravo. Os sipaios queriam caçálo. O regime colonial queria matá-lo, por ser o espelho onde a 44

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imagem de um povo se reflecte. Mas ele fintou a todos e chegou à Tanzânia, onde reuniu todos os lutadores dispersos, que, muito cépticos , perguntaram : - Quem és tu , que vens de longe e falas a língua dos brancos? -Sou o Chitlango, o Chivambo. - Pareces estrangeiro, não és dos nossos. Como foste parar nessas terras distantes? - Desafiei o mundo. Sozinho! No céu , o Cruzeiro do Sul me apontava o caminho. - O que trouxeste desses lugares? - A lição da vida. Aprendi que o coração humano é maior que o infinito. Que na humanidade não existem raças, apenas almas. Aprendi muita coisa, desde a hierarquia e a autodefesa nas pastagens , aos signos mágicos com que se abrem os livros dos mistérios, nas escolas do mundo. Andei de avião e desafiei os céus como os pássaros. -Dizes que és órfão. Como venceste, tu, as feras dos caminhos? E a solidão profunda? Como acabaste com o desânimo, com o medo, a fome, a incerteza, se estavas só no mundo? - As vozes dos meus antepassados falaram sempre ao meu ouvido . Nos momentos mais amargos do percurso , eu lia a Bíblia. As canções da igreja embalaram a minha alma. Lia, cantava, chorava ; a fome desaparecia, as feras fugiam para longe e eu marchava, sereno . - És demasiado nobre para ser guerrilheiro. És também estrangeiro. Dominas os instrumentos desses brancos e não os nossos, Chivambo. - A guitarra que tens nos ombros também é estrangeira, mas aí colocas o sopro da tua própria alma - argumenta Chivambo. Instrumentos dos outros? Ainda bem que os tenho. Haverá melhor arma que matar a cobra com o próprio veneno? Os guerreiros quedam-se em silêncio. É mesmo assim. O mundo se cala quando a verdade passa. -Tu, que nos falas em união, diz-nos: alguma vez estiveste numa guerra? Tens as mãos delicadas e unhas bem tratadas. Falas fino como os meninos mimados. - Eu - responde Chivambo divertido - pastei gado e o defendi. Nunca perdi cabra nem vaca, meu amigo. Era duro no soco, ninguém me desafiava, comigo tudo era bravo, fiquem a saber.

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- Estamos a falar de armas. De espingardas, de pistolas. - Foram fabricadas por mãos humanas. Dominam-se. Chivambo fala do milagre das formigas. Pequenas, juntas, invisíveis insignificantes, construindo dólmenes, pirâmides, morros de salalé. Fala das estrelas no alto, tecendo o manto celeste que ilumina o mundo. Fala das abelhas, das colmeias e da doçura do mel. Depois conta a sua parábola predilecta: a águia que fixa os olhos no sol, levanta as asas em vôos inimagináveis. Fala da sua experiência de homem. Convence. - Que ganhamos nós ouvindo -te , estrangeiro , com nome de africano? - Unamo-nos. Todas as armas num só feixe. Derrotemos a amargura do percurso, para acabar com o sofrimento do povo. Venceremos! - Unirmo-nos? - Os guerrilheiros reflectem uns nos outros, pequenas rivalidades - nós? Unidos a esses aí? Eles são fraquinhos e lutam como galinhas. Nós? Somos galos, somos falcões! - Deixem-se de querelas. Formemos, já, a corrente humana que levará a serpente sagrada até à cura da nossa terra - aconselha Chivambo- vamos, lutemos. -E as armas, de onde virão? Não temos como as comprar, somos camponeses, não temos dinheiro no bolso- argumentam. - Quem tem cabeça, tem dinheiro na mão - adverte Chivambo já viram a distância entre a cabeça e a mão? Nenhuma. A mão vai ao encontro da cabeça num zás, de lá tira o dinheiro que mete no bolso. Não custa nada, quem bem pensa, tem tudo! Os lutadores se encantam e deliram: os verdadeiros profetas não aparecem apenas nos livros da eternidade. Estão do nosso lado e connosco saboreiam o pão amargo do percurso. Nem os vemos porque temos os olhos vendados pelos brilhos nefastos deste mundo. - Sejamos os libertadores da nossa terra martirizada pelos colonos. Unamo-nos- repete Chivambo. - Não queremos a guerra, mas os sipaios provocam-nos. - Tudo se fere na hora da gestação. O sol na terra. Catana no tronco. Semente no solo. O filho no parto. - Nós queremos paz . . - Paz é milho - diz Chitlango - semeia-se. Sejamos nós os agricultores do novo milheiral. Abramos clareiras nas florestas da

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mente para que o sol penetre. Temos de remover as pedras do solo para deixar o novo milho nascer! Os guerreiros esquecem os medos, deixam as querelas e selam o pacto. Tomaram uma decisão que não tinha volta. - O que fazemos, agora? - Lutemos. - Até quando? - Até à vitória final. Os invasores tinham cães medonhos, cavalos sipaios. Espingardas e aviões que provocavam incêndios celestes. Eram poderosos! Para acalmar o medo e afastar os fantasmas da noite, Chivambo fazia o papel de avô. Embalava os guerrilheiros com histórias à volta da fogueira. Contava muitas vezes aquela história dos três irmãos e da cura do pai doente. Com novas roupagens, claro, quem conta um conto, acrescenta um ponto. Contava assim: "Era uma vez um pai doente, que tinha três filhos. Dois eram valentes, mas acobardaram-se diante do desafio. Era uma vez o filho menor, o mais franzino, que era corajoso, que era inteligente, que venceu o desafio". Uma vitória ganha-se com coragem- resumia. Eles ganhavam coragem. Cada dia mais unidos, transportaram nos ombros a serpente para a cura da terra. Andando uns atrás dos outros, como patinhos no lago. Serpenteavam pelas matas, pelos rios, pelos montes, carregadíssimos de objectos: sacudu, cantil de água e outro material bélico. Cantando canções guerreiras, para animar o percurso. De vez em quando, faziam uma paragem para admirar, saudar o líder: - Quem és tu, que vens de tão longe e nos falas com a linguagem das estrelas? Cada frase tua remete-nos à nossa própria imensidão e faz-nos descobrir a exacta dimensão da nossa grandeza. Tu és tão jovem, tão menino, mas tão sábio e ainda não tens nem um cabelo branco! · - Sou agora um guerrilheiro - respondia Chivambo. - Eras mesmo tu o redentor que esperávamos, senhor valente que nos conduzirá à batalha! És tu sim, quem vai erguer a bandeira da nossa terra, Chitlango! Perante o espanto, Chitlango explicava: - Herdei a perseverança da minha mãe, a sapiência da minha avó e a nobreza do meu pai. De todos os antepassados ganhei esta força, esta bravura.

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Maundlane - o criador

Os guerreiros, emocionados, aclamaram numa só voz: - Acende as nossas mentes com a vela da tua sapiência. Lava todas as nossas diferenças, para que não haja raças , nem tribo, nem região dentro desta marcha. Molda-nos num só barro, e coloca o sopro da tua bravura nos nossos passos de tímidos e de indecisos. Leva-nos ao alto do monte e ensina-nos a descobrir o infinito, no vôo das águias! Finalmente, Chivambo assume o trono de fogo no reino da guerra. E portou-se tal como o seu pai , segundo a descrição da sua mãe. Homem benevolente. Que se impõe pela sua inteligência, pela sua magna estatura e musculatura delicada. A única diferença é que enquanto o pai usava peles de animais nobres, Chitlango vestia a farda de guerrilheiro, um boné e botas militares, que lhe assentavam admiravelmente!

(8 ) O peso das marchas cai-lhe sobre os ombros, e Chivambo busca o repoupo no útero do mundo. Sentado na cadeira de baloiço, regressa, relaxadamente, ao ventre materno. "Era uma vez, um pai doente e três irmãos à procura do curandeiro no coração da floresta". Nesta história era ele o filho mais novo. Quebrou barreiras, derrubou fronteiras. Transformou a serpente mágica em dragão com o tamanho de uma nação, que lança majestosas fogueiras que matam a sede sanguinária dos invasores. O colonialismo reage. Ataca. Recua. A doença da terra está a curar, a liberdade virá, tem a certeza. Sente uma fadiga dilacerante, hoje só quer descansar. Baloiça. - Sinto vontade de dormir, hoje - fala em surdina e as ondas escutam . Em silêncio, as lembranças executam a dança dos pássaros. Ascendem. Descendem. Recuam. - Venho de longe. Conduzi os homens à batalha que vai erguer de novo o clã da nossa pátria! A guerra vibra e a terra dança, a vitória é certa. Posso morrer hoje, que a liberdade da minha terra me libertará.

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A avó explicara várias vezes: Meu Chivambo, sabes o que é a eternidade? Sabes como se faz? Do milho de ontem nasceu o milho de hoje. Deste nascerá o milho do amanhã. Da formiga de ontem veio a formiga de hoje, que irá gerar a formiga do futuro. A árvore de ontem trouxe a semente de hoje. Até o pó se transforma em pedra, monte, casa, ponte, e volta a ser pó e areia. Eternidade é passagem, caminho, testemunho. Tudo começa, cresce, termina e regressa com vida nova. O amanhã que caduca também se renova. Meu Chivambo, tu és a eternidade, cresce e te alonga. Nós os negros estamos na terra desde o princípio do mundo, e esses colonos têm que parar de nos massacrar. Chivambo celebra a primavera que germina no canto das armas. - Ah, liberdade amada! A ti devotei toda a minha senda. Por ti me esfalfo, por ti eu morro, eu amo-te! És vida, és princípio. Por amarte, fiz-me guerrilheiro. Por ti designei-me mensageiro do porvir, a ponto de desafiar os limites do meu próprio corpo. Em ti renascerei reverberante, como a semente de milho no beijo do orvalho. Por ti, liberdade, a luta continua! Um guerrilheiro interrompe o seu repouso só para entregar-lhe um livro. O livro era negro, com marcas de poeira. Ao abri-lo, Chivambo abriu a mágica página da vida nova. O livro era um relâmpago que o elevou para um lugar onde o sono nunca acaba. Dormir era tudo o que queria naquele amanhecer. Cumpriu-se a bênção e a maldição da sua sina: "Pelos livros vives, pelos livros morrerás"!

(9 ) Imagens renovadas fluem na mente que desperta. Chivambo está a flutuar na suprema dimensão. Vê coisas antigas e os amigos que há muito partiram para o outro mundo. - Boas vindas, Chivambo - diz a avó - feliz despertar para a nova vida. -Avó? Tu aqui? - Onde deveria eu estar? - Se já morreste, como conseguiste atravessar a fronteira? Os dentes da avó refulgem como bagas de milho, no amanhecer das estrelas. Ela move-se com a graciosidade das brisas, o corpo já esqueceu o reumatismo.

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- Tu é que vieste ao meu encontro, eu nunca saí daqui. Chivambo inspecciona tudo movido pela surpresa. Vê o presépio iluminado da sua infância. Na pradaria, as cabras saltam e os bois mugem suavemente. Busca, em redor, vestígios do fatídico momento: procura a arma, as botas e a farda militar. O título do livro que não chegou de ler. Ali não existe caos tudo é ordem: areis solta, vento e frescura . -Que lugar é este, avó? - Não reconheces? Renasceste do ventre de luz numa explosão perversa. -Como? - Chivambo, filho de Khambane, desperta! -diz a avó- quando tudo passa, aprendemos que a vida não tem forma concreta. Descobrimos que o fim é apenas uma paragem e uma mudança. Ontem lá e hoje cá. Aqui a morte não existe. Chivambo esfrega os olhos e escuta o silêncio dos próprios passos. Descobre que o seu olhar penetra em todos os segredos, tudo é transparente. -Avó, acha que morri? - Morte é sono, é mudança, sabes disso. -Mas, se estou aqui! ... -Vieste de lá para cá, então estás vivo. Tu falas e eu respondo, sem rituais nem missas, porque estou na tua presença. Quem está do outro lado do mundo diz que o além é aqui. Agora que estás aqui, o além é tudo o que ficou do lado de lá. Tudo é mudança, transferência, distância, a vida é eterna. - E aquela explosão, o que era? -Todo o parto é violento. A vida começa com lágrimas e termina com outras. O choro é a celebração do fim e do princípio. -Terei um funeral? - Claro que isso não pode faltar. Os vivos têm os seus rituais e os seus ritmos. Deixa-os viver os seus momentos de luto e abominar a morte. Venerar o invisível sobre o teu túmulo. Colocar uma pedra no marco da tua passagem . - Era uma bomba, não era? -As salvas de canhão anunciam a partida dos heróis, assim como o fumo e a neblina anunciam a chegada das estrelas nos palcos da humanidade. - Senti a suprema dor...

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- A porta dos tempos abre-se com vigor e o parto da alma faz-se com amor. A morte tranquila não tem história. - Conta-me, avó, como cheguei até aqui? -Vieste num violento tropel. Mil cavalos trouxeram-te da fronteira - esclarece a avó. Tiveste uma entrada triunfal, com muita dança e muita pompa. No m'saho das boas vindas, os grandes mestres tocaram a timbila. A dança do limbondo foi genial. A muganda foi fantástica. A ngalanga e o nhambarro foram as danças fortes e as anjas dançarinas se redemoinhavam como piões. Foi uma celebração perfeita. - Anjos que dançam? Onde estão que ainda não vi? - Consegues ver o teu próprio nariz? -Eu? - És um deles. -Eles quem? -Os anjos. - Não tenho asas. -Tens asas na mente, és uma águia- explica a avó -voaste e alcançaste dimensões inimagináveis. Descobriste os segredos da criação. És um anjo sim, sempre foste. Avó e neto conversam animadamente e passeiam de mãos dadas pelos carreiras. Nesse instante ele descobre: aqui começa o princípio. O sol é um girassol cujas pétalas se tangem, aqui nascem todas as auroras. Daqui partimos para a grande aventura, voamos e regressamos, a vida não tem morte. Aqui somos todos antigos, renascidos, reciclados, reencarnados. Temos todas as idades. -Quando será o meu juízo final? - O teu quê? - O julgamento das coisas que andei a fazer por aí. - Quem tem poderes para te julgar a ti, um ser completo, perfeito? - Perfeito? Eu? · -Tu sim, não sabias? Então, vais saber já. E agora, vais ficar em silêncio, muito silêncio, que hoje vou contar-te mais belas histórias do amanhecer. O dia é perfeito para revelações. As histórias que a avó vai contar tem a profunda dimensão do cosmos. Ela está inspirada, está satisfeita, até parece que esperou a vida inteira por aquele instante. -A tua perfeição está nos sons com que te invocamos em cada dia. Os teus nomes são o enigma da plenitude: Chitlango e Chivambo, Paulina Chiziane

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encarnando os espíritos machos. Dzovo e Mondlane são o ventre do universo, o útero do mundo, espíritos criadores, maternais, altruístas. Toda a história da terra, em ti se encerra. Por que é que Deus deu-te 1 esse corpo possante, porquê? E a força que reside nos teus braços? -Mas, avó ... - Silêncio, menino, silêncio, deixa-me falar. Aqui deste lado, o teu nome de Eduardo é de pouca monta, pertence a esse mundo que deixaste. Chivambo escuta as maravilhosas lendas da criação. - Chivambo é escopro e martelo. É lança, é funda, é punhal. É cruz e cadafalso. Sujeito e objecto de tortura. Eras tu o homem de que o gordo imperador falava, eras tu . Ele disse que nasceria, aqui , o Chivambo objecto de tortura que iria desafiar e eliminar o regime, golpe a golpe, com pancadas de chivambo- martelo. Com o chivambo-escopro derrubaste os calhaus que obstruíam a circulação dos rios e abriste os canais para a nova vida. Com o chivambo/ança-funda-punhal, armaste um exército poderoso que apagou num sopro, as mauseres, os canhões e todas as armas dos heróis do mar. Foste o chivambo-cadafalso, o estrado onde a pedra viva se martela na construção do edifício de uma nação. Est~ na plenitude, o Chivambo, e bebe luar em taças de cristal. Segura as estrelas nas pontas dos dedos. Aprende a brincar com pedaços da lua, a virá-la, revirá-la, a manejá-la e vai iluminando a terra, assim, às fases. A avó continua a falar das fórmulas mágicas do destino. - Chitlango é arma e escudo. Abrigo e defesa. Sombra. Fortaleza. Tu és a rocha firme onde o oceano lança a fúria das suas ondas e reencontra a calma. És o monte alto que quebra a força dos ventos para proteger as flores dos cajueiros. És a pedra funda que acolchoa o leito dos oceanos, para que os navios de paz naveguem em segurança. Haverá, neste mundo, protecção mais poderosa do que tu? Chivambo sente-se leve, sente que voa. Extasia-se. - De Dzovo e Maundlane, veio esse teu lado criador e maternal. Geraste milhões de filhos espirituais que transcendem a vastidão das fronteiras da nossa pátria. Retalhado por uma bomba, libertaste o rio do teu próprio sangue, só para transfundir vida nova na alma anémica do nosso povo. Ensinaste, pelo exemplo, que ser órfão não é ser mendigo. Mostraste ao mundo que duas mulheres, uma viúva 11

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e uma idosa, podem educar uma criança com valores altíssimos, mesmo vivendo na extrema pobreza. A avó desenha, com palavras vivas, a ponte da existência. - Maundlane, ou Mondlane, significa criador, protector, incubador. Significa também piedoso, caridoso. Este apelido foi-nos dado pelo povo na consagração dos nossos actos, há muitos e muitos anos. Chivambo-o-Velho, de quem herdaste o nome, era um homem de grandeza espiritual. Protegia os necessitados, os maltratados, os excluídos. Protegeu todos os que tinham fome e sede de justiça. Incubaste e pariste uma nação no teu ventre Maudlane. Ergueste os maltratados e excluídos na luta contra a injustiça. Avó e neto. Aqui todas as gerações se fundem e os mistérios se revelam . Água do rio recolhendo ao ninho, no delta da vida. Chivambo saboreia o gorjeio das águas na fonte da vida. - Dzovo é pele de animal -conclui a avó - serve ainda de manto, cobertor, tanga, roupa. Alcofa do recém-nascido. Incubadora dos prematuros, nos tempos idos. Todo aquele que tinha frio no corpo e na alma, recebia o dzovo das mãos de Chivambo-o-velho. É por isso que, depois de muitas gerações, o povo inteiro ainda nos saúda com um ritual de gratidão: "saúdo-te Dzovo, que incubou a alma do povo dzovo da vida, bom dia! Obrigado, Maundlane, Mondlane, de N'wanati, de Khambane, de Dzovo, de Mbinguana, que nunca abandona um só grão de milho na aridez do deserto! Longa vida, Mondlane, obrigado e bom dia!" E tu, Chivambo-menino, teceste o dzovo-manto e com ele cobriste a nudez da tua nação. Teceste o dzovo-bandeira com que afirmamos a nossa dignidade nos mastros do mundo e que irá cobrir todas as pessoas de toda a nação em todos os tempos! Chivambo se encanta. Afinal de contas, o destino e o divino mistério estavam ali à vista, empilhados em pequenas sílabas, com o paladar métrico dos fonemas. - Avó, sai de casa sem despedir. A minha esposa e meus filhos estão a chorar por mim a esta hora. - Tranquiliza-te, Chivambo, que a vida é assim. Choro e dor é a sina de todos os mortais. Habitua-te. - Habituar-me? - Os homens bravos morrem jovens. A esposa do bravo é sempre viúva. O filho do bravo, sempre órfão, conhece o pai apenas na memória. Sossega! Estava escrito nas páginas da vida

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do teu pai que tu, seu filho, viverias sem pai. E sem pai cresceriam os seus netos . - Estava? Porque não me deixaste ler essas páginas antes? - Para quê? A orfandade não começa contigo. Nem terminará contigo. Nas gerações futuras, milhares de crianças crescerão sem os pais, por causa de guerras e doenças malignas que ainda hão de vir. Serão alimentadas pelo amor imenso das suas mães e pela sabedoria das suas avós . Como tu , serão também sábias. Corajosas . Maravilhosas. Heróis e heroínas do seu tempo. - Quer então dizer que vou ficar aqui só a passear sem nada fazer? - Engano teu . Aqui tens novas tarefas, já és um espírito: vais proteger todos os teus das tempestades satânicas da terra com o dzovo sagrado. Afastar o fogo terrestre das epidemias e das guerras que ainda hão-de vir, com o chitlango celeste! - Não acha que parti cedo demais? Gostaria tanto de terminar tudo o que comecei. - Tudo? O que queres tu dizer com esse teu "tudo"? -A paz da terra, avó. A liberdade. - Deixaste a áNore em terra fértil , crescerá. Sossega. - Go~taria de fazer uma rega. -Ouve de uma vez, Chivambo: cumpriste já a tua parte, descansa que agora estás morto. - Estou mesmo morto, avó? - Morto? Alguém aqui falou de morte por aqui? Nunca disse tal coisa, nunca, porque tu, Chivambo nunca morrerás. Ele conforma-se. Dá um passeio no bosque e colhe uma flor com que enfeita os cabelos entrançados da mãe. Canta-lhe ao ouvido palavras de mel. - Foi a tua voz que me despertou minha doce mãe - confessa Chivambo - da criminalidade pagã do colonialismo cresceu a clarividência. A magia das tuas palavras transformou em riqueza, a pobreza das nossas vidas. Coroaste-me rei ainda no teu ventre, minha mãe! A mãe vive a felicidade sem fim. Delira. - Chitlango, nasceste mesmo de mim? Como puderam os deuses colocar tantas estrelas num só ventre? Todas as mulheres do mundo perguntam-me: como foi a gravidez desse astro? Era feita de espelhos? Era de ouro ou de prata? Não pressentiste, nesse tempo,

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o poder do filho que de ti nasceria? As canções de coragem com que te embalei eram apenas para te animar. A gravidez não teve nenhum sinal diferente. Nem mais enjôos, nem mais vómitos, e nasceste igualzinho a todas as crianças. Nem ao menos imaginava que serias a materialização da profecia do nosso imperador, o gordo! Chivambo dá um beijo no rosto da avó e confessa: - O que seria de mim sem a vossa existência? Venci todos os desafios, alicerçado no poder das vossas almas. São vossas, todas as vitórias deste mundo. É vossa, toda a grandeza que brilha nas cores do nosso dzovo, a nossa bandeira. Amaldiçoado seja quem louvar apenas os meus actos, sem invocar os vossos poderes criadores, que fizeram de mim o homem que fui.

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Cinquenta anos depois - Onde está o Chivambo? - pergunta um adolescente à sua avó. - Subiu - responde ela. - Para cima da áNore? - Não, para mais alto. - Para as nuvens? - Não, para muito mais alto. Para o Altíssimo. Por que queres saber? - Quero conhecer esse homem extraordinário. Nasci agora. Há poucos anos. Como poderei conhecê-lo, se está no alto? -Ele tem ouvidos sensíveis, chama-o. Está no céu, no aconchego do Cruzeiro do Sul. Também está na terra, está aqui. Ele morreu e renasceu em forma de semente . Semente que se fez áNore. É ele a mafurreira da vida que nos dá a seiva sem a qual não existiríamos. -Ainda bem. - Por quê? - Se tem a forma de luz e a forma de árvore, então tem a forma humana. Está mais próximo de mim do que nunca. Preciso de lhe falar. - Não entendi - pergunta a avó mais intrigada. - As almas dos vivos estão na terra e dos mortos no céu. Ele está em todas as dimensões. É omnipresente. Omnipotente. Dito isto, o adolescente afastou-se sereno. Pouco depois, voltou

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com o cesto cheio de mistérios de onde tirou uma garrafa do sagrado vinho de todos os cereais. A avó indagou: -O que vais fazer? -Um mphalho . Mukhuto. Cerimónia. Invocação. Ajoelhou-se na base da mafurreira, entornou um pouco de vinho, sorveu um gole, expeliu e depois falou na linguagem dos tempos: "Chivambo, acorda, escuta-me, vem. Vem ensinar-me a suportar o frio desta noite que se alonga. Vem a mim e acuda-me. O meu pai morreu numa guerra sem nome, porque as epidemias deste mundo são outra guerra. Fiquei só com a minha avó, e preciso de um amigo. Não queres ficar comigo? Venceste a solidão da orfandade, por isso diz-me: como se preenche o vazio de uma alma? Quem me irá dizer sim, não, talvez, agora, depois, nunca, sempre? Chivambo, vá, sai daí, vem! E fala de novo da liberdade para este povo que se desespera. Arranjei-te umas prendas: este pano branco é para ti, este amarelo para a tua mãe, este vermelho para a avó. O rapé não podia faltar, é para a vovó. Esta é a melhor galinha branca que já criei em toda a minha vida. É para ti. O vinho-de-cereais produzi-o eu com estas mãos, só para ti. Trouxe-te estas buganvílias. São roxas. Trouxe-te também flores de cajueiro, gostas? Diz-me uma coisa, Chivambo: pode um pobre órfão, sozinho, vencer os desafios do mundo? Com quantas forças se constrói uma vitória? Diz-me, ainda, o que devo fazer quando a fome aperta e os pesadelos me atacam? Onde devo buscar o farol aceso, quando na mente, as estrelas se apagam? Chivambo, filho de Khambane, quero expulsar esta dor, este nó na garganta, hoje eu quero cantar, ensina-me belas cantigas. Eu sei que ainda tenho muito que sofrer. Sei que muitas lágrimas irei derramar, até tornar-me adulto e reconstruir tudo o que perdi. Como tu, também quero vencer, ensina-me a vencer, meu amigo, meu Chitlango, meu Dzovo, meu criador!"

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(1) O Chivambo contava muitas histórias, mas esta era a sua preferida. Contava-a sempre que podia. Contou-a uma vez, durante a pregação, na Igreja Presbiteriana em Chamanculo, lá para os anos 60. Muitos colegas ouviram-no no colégio da missão. Outros ainda o ouviram de armas nos ombros, durante a luta libertação. Era uma vez ... Um homem que apanhou uma águia pequenina. Levou-a para casa e pô-la na capoeira. Educada como uma galinha, a águia até comia a comida dos patos. Comportava-se como uma verdadeira galinha. Um biólogo passou por ali e exclamou: - Uma águia na capoeira de galinhas? - Era uma águia, mas transformei-a em galinha, apesar de todo o seu tamanho- respondeu o dono da capoeira, muito vaidoso. - Não. - responde o biólogo - uma águia é uma águia. Nasceu para governar o mais alto dos céus. - Esta? Nunca mais voará! Discutiram. O dono da capoeira teimava e, por isso, fizeram a aposta. O biólogo, erguendo a pesada ave, disse: - Águia, águia, abre as tuas asas e voa. A ave olhou para todos os lados. Viu o farelo e as galinhas a debicar. Voltou para o chão, e continuou a sua vida de galinha. O dono afirmou contente: -Viu? O biólogo teimou. Fizeram a mesma experiência mais três vezes e nada! A águia era mesmo galinha. Na quinta tentativa, o biólogo obrigou a ave a confrontar o sol enquanto implorava: - Águia, águia, abre as tuas asas e voa! A ave real abriu as asas e lançou-se no vôo, subiu, subiu até desaparecer no horizonte. As águias, à semelhança das andorinhas, são filhas da liberdade.

(2 ) As mulheres sempre se orgulharam dos seus dotes: fazer bonito croché, bordar e fazer enxoval. Embelezar-se e esperar o momento

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da vitória que virá com príncipe encantado que as levará ao palácio de uma cozinha existente nas traseiras de uma casa, com muita pompa e circunstância. É a tradição. Porque ela é copo de água - diz-se - tem que se manter fresca para ser servida a esse príncipe que virá, um dia. Porque é galinha o ilustre visitante - diz-se ainda - ela tem de manter a musculatura suave e tenra de um franguinho, para o tal príncipe. Desde séculos, as mulheres cumpriram sem questionar estes princípios que funcionam como leis invioláveis, inalteráveis. Quando aquela menina nasceu, todos a aplaudiram. Criatura doce, igualzinha às outras. Cresceu obediente, inteligente, submissa como se querem as meninas bonitas. Até que um dia começou a andar ... Descobriram que ela tinha passos de gazela. Velozes. Chegava com rapidez a toda a parte. Era vento e brisa. Era muito ágil e muito firme. Sinais de uma guerreira. Olhava sempre para o horizonte. Tinha sonhos. Alguns anos depois, começou a frequentar a escola. Enquanto as colegas jogavam ao ringue, ela corria atrás de uma bola. - Maria rapaz - diziam as colegas. - Sou Maria e sou menina - respondia ela divertida. E continuava com as suas brincadeiras. Era bonito vê-la na frescura das ruas, pezinhos leves tangendo a bola, com a doçura de uma música suave. Sonhos reveladores afloram como pirilampos no espelho do tempo. Uma voz saia-lhe da planta dos pés, segredando: chegarás. Chegarei? Aonde, se nem sei aonde vou? Um rio verde perto de ti. Bem debaixo do milheiral. Busca-o. Então pegava na bola e atrás dela corria. - Maria rapaz! - Eu? Ah! As andorinhas inspiram-me - confessava - quando corro atrás de uma bola, sinto-me a voar na conquista do mundo. Qualquer dia me inscrevo num clube de futebol. -Futebol? Ah, essa não! - Que mal há nisso? - Vais ficar com os músculos rijos. Tens que te resguardar. Aguardar. Tens que ficar com a pele de tomate. Ou de caju. Posso ensinar-te ... Uma vozearia espessa se eleva sobre ela, como mosquitos zumbindo febres palúdicas. São as mulheres derramando discursos

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torpes com anuência dos homens. Devias fazer um curso de bordados, de croché e de boas maneiras. Vem que te ensino a servir um bom café, vamos lá menina, deixa essa coisa de corridas e bolas que a cozinha é o nosso canto. Teriam essas vozes, razão? Sim. Não. Talvez. O milho no pilão sofre um golpe e outro golpe. Fica limpo. Demolha-se. Depois sofre novos golpes. Peneira-se. No fim vem a farinha branca e a xima boa. É isso mesmo. A vozearia martela os sonhos, mas também forja. Uma vez alguém disse: - Menina, os teus pés têm uma missão importante, pelo povo não serás esquecida! Filiou-se num clube de futebol masculino. Experimentou a força do corpo no rectângulo do jogo e deu passos na descoberta da nova vida. No dia da competição, jogou ao lado dos homens perante o assombro do mundo. O país ficou paralisado de espanto enquanto os pés dela avançavam, defendiam, fintavam. Fez uma jogada magistral e marcou. - Golôôôô! -gritou o relator da televisão. - Viram quem marcou o golo? - Comentavam os populares Na marcação do golo, o embaraço da equipa. Como podiam os homens saborear a golada com abraços efusivos e saltos mortais, se ela era mulher? Como celebrar a vitória com a mesma loucura de sempre, se o corpo da mulher só pode ser tocado pelo seu homem? Os comentaristas da rádio relatam o facto com vozes sincopadas. Não sabem o que dizer ao certo, não foi ainda desenvolvido o vocabulário jornalístico para golos de mulher. Para remediar a situação, o locutor da rádio diz algumas palavras tontas. - O golo extraordinário foi marcado por uma mulher que nem parece mulher, aquilo parece golo de homem mesmo, é espantoso, as mulheres não percebem nada de futebol e nem sabem jogar! Foi extraordinário! Esta mulher vibrou, brilhou, mostrou o que valia, parecia até uma águia no meio de galinhas!. .. O desconforto tomou conta da equipe. Apesar da feliz vitória, aqueles jogadores tiveram que engolir palavras jocosas que os adversários lançavam sobre eles. Desconforto sentiram também os treinadores e os adeptos. Ser superado por uma mulher é uma grave afronta! Inadmissível! Simplesmente inaceitável! - Isto é nefasto para o estado psicológico da equipe - disseram muitos - uma mulher não pode jogar futebol no meio dos homens.

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- Os treinadores gastaram o melhor tempo e a melhor energia, a treinar uma equipa- comentavam outros - e eis que os jogadores se deixam rebaixar por uma mulher. Os homens é que devem superar as mulheres e não o contrário. Mas ela dá na bola com classe! Ela entende da coisa! Pena é ser mulher! Os homens ultrajados decidiram defender o seu santuário por decreto: ela não pode jogar - diziam - nos clubes dos rapazes, as meninas não entram. Exibiram-se regulamentos. Artigos. Documentos. As mulheres, em clubes de croché e tardes de chá, revolviam memórias antigas. Um caso como o desta menina? Nunca houve! Se não aconteceu antes, não pode acontecer agora. Onde já se viu uma coisa destas? Não, isto não pode voltar a acontecer. Havia muita razão nisso: Na vitória da mulher reside, por vezes, a desonra dos homens. As falas espessas correm como um rio de águas negras. Ela não mergulha. Esquiva. Enrola-se sobre o milheiral aguardando que a maré negra passe. Mas as ondas crescem e o caso reúne homens de peso, que apresentam argumentos de peso e tomaram decisões de muito peso. Ninguém se recordou de que tudo o que é de peso fica em baixo. Ela, pequena e leve, flutua, navega no alto. Lógico! A gravidade é que manda, evidentemente! No vôo sereno, a menina questiona a ordem das coisas. Porque é que as mulheres sempre esperam, se têm força para desafiar o destino? E se o príncipe esperado não chegar quem pagará a despesa da eterna frustração? Resistindo às falácias, abre os caminhos de glória. Depois das magnas reuniões foi-lhe comunicada solenemente a suprema decisão. -Vamos, deixa o futebol menina, vai para o atletismo, vai! Na saída do clube, alguém lhe segreda: - Menina, tu és um monumento. Tu és uma águia e o teu lugar é entre os deuses! Pertences ao céu e não à terra. Abre as tuas asas e voa! Ela partiu para a nova vida. Já não tem a equipa do clube para onde buscar reforço nos momentos de perigo. Persistiu. Os sonhos humanos só se quebram quando no espírito, a fragilidade existe. Começou a treinar, a reforçar os ossos, os músculos, os sonhos. Sozinha, olhou para todos os lados e estremeceu, invadida pelo medo das alturas. Concentrou todas as energias vitais. Colocou um olhar fixo no dourado solar. Suspendeu a respiração até atingir a

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AS ANDORINHAS

suavidade de uma pena. Abriu as asas. Venceu o peso e a gravidade. Levitou. Subiu, subiu até atingir um ponto alto, altíssimo. Alcançou o Olimpo! Ela era, afinal , uma águia de ouro. Águia era também o nome daquele clube dos seus tempos de futebol. Pois é! Foi mesmo isso que aconteceu. Afastaram a Águia d'Ouro e ficaram com os restantes membros da capoeira! Águia mulher, águia menina, ela detêm a ciência da água. Gota a gota. Passo a passo. Suavidade. yôo. Levitação. Conquista do mundo. A perseverança que lhe fez brava! Voou entre os deuses do Olimpo, mas regressou modesta ao seu ninho de pássaro, cativando, nesse gesto, o coração do seu povo. Tornou-se líder. Ensinou pela prática a lição da disciplina: concentração no fim e no princípio. Nenhuma dificuldade deste mundo a vence. A vitória prepara-se. Mulher de muitos actos e poucas palavras, aprendeu cedo a lição da vitória: "quem muito fala pouco acerta" Águia-real, percorreu caminhos de água, de fogo, de neve. Em cada passo içando a nossa bandeira. Transportou, no bico, medalhas douradas que iluminaram o nosso país sedento de alegrias. Por isso, em cada águia que cruza os céus, a imagem dela é que se projecta. Nesse instante as andorinhas bailam e a terra inteira levanta os olhos para o alto em êxtase e delírio: Maria de Lurdes, senhora da sorte e das boas marés, obrigado! O teu sobrenome Mutola, denomina os que "talam" os ungidos, consagrados, e purificados com o m'tona, a magna loção da mafurra! Das tuas asas de águia, teceste o dzovo celeste que nos elevou ao mais alto do Zulwine, onde a morte não existe. Ungiste o corpo e a alma do nosso povo com o m 'tona, essência divina dos Deuses do Olimpo. Águia menina, materializaste na íntegra as profecias do criador, o Chitlango, o Chivambo, o Dzovo, o Maundlane! Obrigado Mutola, de N'wanati, de Kambana, de Dzovo, de Maundlana, de Maxele, de Ngomati, de Nyathe, o grande Zambeze! Longa vida, Mutola, águia dos deuses! As mulheres sempre se orgulharam dos seus dotes: fazer bonito croché, bordar e fazer enxoval. Embelezar-se e esperar o momento da vitória que virá com príncipe encantado que as levará ao palácio

Paulina Chiziane

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MUTOLA, a ungida

de uma cozinha existente nas traseiras de uma casa, com muita pompa e circunstância. É a tradição. Porque ela é copo de água - diz-se - tem que se manter fresca para ser servida a esse príncipe que virá, um dia. Porque é galinha o ilustre visitante - diz-se ainda - ela tem de manter a musculatura suave e tenra de um franguinho, para o tal príncipe. Desde séculos , as mulheres cumpriram sem questionar estes princípios que funcionam como leis invioláveis, inalteráveis. Quando aquela menina nasceu, todos a aplaudiram. Criatura doce, igualzinha às outras. Cresceu obediente, inteligente, submissa como se querem as meninas bonitas. Até que um dia começou a andar ... Descobriram que ela tinha passos de gazela. Velozes. Chegava com rapidez a toda a parte. Era vento e brisa. Era muito ágil e muito firme. Sinais de uma guerreira. Olhava sempre para o horizonte. Tinha sonhos. Alguns anos depois, começou a frequentar a escola. Enquanto as colegas jogavam ao ringue, ela corria atrás de uma bola. - Maria rapaz- diziam as colegas. - Sou Maria e sou menina- respondia ela divertida. E continuava com as suas brincadeiras. Era bonito vê-la na frescura das'ruas, pezinhos leves tangendo a bola, com a doçura de uma música suave. Sonhos reveladores afloram como pirilampos no espelho do tempo. Uma voz saia-lhe da planta dos pés, segredando: chegarás. Chegarei? Aonde, se nem sei aonde vou? Um rio verde perto de ti. Bem debaixo do milheiral. Busca-o. Então pegava na bola e atrás dela corria. - Maria rapaz! - Eu? Ah! As andorinhas inspiram-me - confessava - quando corro atrás de uma bola, sinto-me a voar na conquista do mundo. Qualquer dia me inscrevo num clube de futebol. - Futebol? Ah, essa não! - Que mal há nisso? - Vais ficar com os músculos rijos. Tens que te resguardar. Aguardar. Tens que ficar com a pele de tomate. Ou de caju. Posso ensinar-te ... Uma vozearia espessa se eleva sobre ela, como mosquitos zumbindo febres palúdicas. São as mulheres derramando discursos

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AS AN DORIN HAS

torpes com anuência dos homens. Devias fazer um curso de bordados, de croché e de boas maneiras. Vem que te ensino a servir um bom café, vamos lá menina, deixa essa coisa de corridas e bolas que a cozinha é o nosso canto. Teriam essas vozes, razão? Sim. Não. Talvez. O milho no pilão sofre um golpe e outro golpe. Fica limpo. Demolha-se. Depois sofre novos golpes. Peneira-se. No fim vem a farinha branca e a xima boa. É isso mesmo. A vozearia martela os sonhos , mas também forja. Uma vez alguém disse: - Menina, os teus pés têm uma missão importante, pelo povo não serás esquecida! Filiou-se num clube de futebol masculino. Experimentou a força do corpo no rectângulo do jogo e deu passos na descoberta da nova vida. No dia da competição, jogou ao lado dos homens perante o assombro do mundo. O país ficou paralisado de espanto enquanto os pés dela avançavam, defendiam, fintavam. Fez uma jogada magistral e marcou. - Golôôôô! -gritou o relator da televisão. - Viram quem marcou o golo? - Comentavam os populares Na marcação do golo, o embaraço da equipa. Como podiam os homens saborear a golada com abraços efusivos e saltos mortais, se ela era mulher? Como celebrar a vitória com a mesma loucura de sempre, se o corpo da mulher só pode ser tocado pelo seu homem? Os comentaristas da rádio relatam o facto com vozes sincopadas. Não sabem o que dizer ao certo, não foi ainda desenvolvido o vocabulário jornalístico para golos de mulher. Para remediar a situação, o locutor da rádio diz algumas palavras tontas. - O golo extraordinário foi marcado por uma mulher que nem parece mulher, aquilo parece golo de homem mesmo, é espantoso, as mulheres não percebem nada de futebol e nem sabem jogar! Foi extraordinário! Esta mulher vibrou, brilhou, mostrou o que valia, parecia até uma águia no meio de galinhas!. .. O desconforto tomou conta da equipe. Apesar da feliz vitória, aqueles jogadores tiveram que engolir palavras jocosas que os adversários lançavam sobre eles. Desconforto sentiram também os treinadores e os adeptos. Ser superado por uma mulher é uma grave afronta! Inadmissível! Simplesmente inaceitável! - Isto é nefasto para o estado psicológico da equipe - disseram muitos - uma mulher não pode jogar futebol no meio dos homens.

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MUTOLA, a ungida

- Os treinadores gastaram o melhor tempo e a melhor energia, a treinar uma equipa- comentavam outros - e eis que os jogadores se deixam rebaixar por uma mulher. Os homens é que devem superar as mulheres e não o contrário. Mas ela dá na bola com classe! Ela entende da coisa! Pena é ser mulher! Os homens ultrajados decidiram defender o seu santuário por decreto: ela não pode jogar - diziam - nos clubes dos rapazes , as meninas não entram. Exibiram-se regulamentos. Artigos . Documentos . As mulheres, em clubes de croché e tardes de chá, revolviam memórias antigas. Um caso como o desta menina? Nunca houve! Se não aconteceu antes, não pode acontecer agora. Onde já se viu uma coisa destas? Não, isto não pode voltar a acontecer. Havia muita razão nisso: Na vitória da mulher reside, por vezes, a desonra dos homens. As falas espessas correm como um rio de águas negras. Ela não mergulha. Esquiva. Enrola-se sobre o milheiral aguardando que a maré negra passe. Mas as ondas crescem e o caso reúne homens de peso, que apresentam argumentos de peso e tomaram decisões de muito peso . Ninguém se recordou de que tudo o que é de peso fica em baixo. Ela, pequena e leve, flutua, navega no alto. Lógico! A gravidade é que manda, evidentemente! No vôo s~reno, a menina questiona a ordem das coisas. Porque é que as mulheres sempre esperam, se têm força para desafiar o destino? E se o príncipe esperado não chegar quem pagará a despesa da eterna frustração? Resistindo às falácias, abre os caminhos de glória. Depois das magnas reuniões foi -lhe comunicada solenemente a suprema decisão. -Vamos, deixa o futebol menina, vai para o atletismo, vai! Na saída do clube, alguém lhe segreda: - Menina, tu és um monumento. Tu és uma águia e o teu lugar é entre os deuses! Pertences ao céu e não à terra. Abre as tuas asas e voa! Ela partiu para a nova vida. Já não tem a equipa do clube para onde buscar reforço nos momentos de perigo. Persistiu. Os sonhos humanos só se quebram quando no espírito, a fragilidade existe. Começou a treinar, a reforçar os ossos, os músculos, os sonhos. Sozinha, olhou para todos os lados e estremeceu, invadida pelo medo das alturas. Concentrou todas as energias vitais. Colocou um olhar fixo no dourado solar. Suspendeu a respiração até atingir a suavidade de uma pena. Abriu as asas. Venceu o peso e a gravidade.

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Levitou. Subiu , subiu até atingir um ponto alto, altíssimo. Alcançou o Olimpo! Ela era, afinal , uma águia de ouro. Águia era também o nome daquele clube dos seus tempos de futebol. Pois é! Foi mesmo isso que aconteceu . Afastaram a Águia d'Ouro e ficaram com os restantes membros da capoeira! Águia mulher, águia menina, ela detêm a ciência da água. Gota a gota. Passo a passo. Suavidade. Vôo. Levitação. Conquista do mundo. A perseverança que lhe fez brava! Voou entre os deuses do Olimpo, mas regressou modesta ao seu ninho de pássaro, cativando, nesse gesto, o coração do seu povo. Tornou-se líder. Ensinou pela prática a lição da disciplina: concentração no fim e no princípio. Nenhuma dificuldade deste mundo a vence. A vitória prepara-se. Mulher de muitos actos e poucas palavras, aprendeu cedo a lição da vitória: "quem muito fala pouco acerta". Águia-real, percorreu caminhos de água, de fogo, de neve. Em cada passo içando a nossa bandeira. Transportou, no bico, medalhas douradas que iluminaram o nosso país sedento de alegrias. Por isso, em cada águia que cruza os céus, a imagem dela é que se projecta. Nesse instante as andorinhas bailam e a terra inteira levanta os olhos para o alto em êxtase e delírio: Maria de Lurdes, senhora da sorte e das boas marés, obrigado! O teu sobrenome Mutola, denomina os que "talam" os ungidos, consagrados, e purificados com o m'tona, a magna loção da mafurra! Das tuas asas de águia, teceste o dzovo celeste que nos elevou ao mais alto do Zulwine, onde a morte não existe. Ungiste o corpo e a alma do nosso povo com o m'tona, essência divina dos Deuses do Olimpo. Águia menina, materializaste na íntegra as profecias do criador, o Chitlango, o Chivambo, o Dzovo, o Maundlane! Obrigado Mutola, de N'wanati, de Kambana, de Dzovo, de Maundlana, de Maxele, de Ngomati, de Nyathe, o grande Zambeze! Longa vida, Mutola, águia dos deuses!

Pauli na Chiziane

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Glossário

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Canhu: aguardente fabricada à base de frutos da canhoeiro. Cofió: barrete vermelho, chapéu muçulmano. Hosi: rei, senhor todo poderoso, soberano. Lobolo : dote que se cobra ao marido para o casamento. M "boti: coroa. M'tona: óleo extraído da mafurra. Mapfílwas: fruto silvestre do mpfilwa Mpháma: certa figueira brava. Mphalho: cerimonia , evocação. Muganda: dança tradicional Msahos: celebração, convívio , evento cultural. Ngalanga: dança tradicional Ngungunha: domina Ngungunham: dominam . Ngungunhou: dominou tudo e a todos. Nhambarro: dança tradicional Nhewe: certa planta usada na alimentação e na confecção de rapé. Rand: designação popular da África do Sul. Silada: moída, pisada no almofariz. Timbilas: instrumento musical; dança tradicional em que há a intervenção exclusiva deste instrumento. Vavadas: furadas Vavar: furar as orelhas dos homens com canivete. Vavar-lhes: furar-lhes. Xima : um dos pratos mais populares em Moçambique. Zulwine: céus .

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Chiziane, Paulina - As andorinhas

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