As Férias

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As Férias Condessa de Ségur. Infanto-Juvenil. COmPANHIA Editora do MInho, 1970. Literatura Francesa.

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Tradução Portuguesa Casa Do Livro-editora Avenida Poeta Mistral, 6 - B - LISBOA

A CHEGADA No castelo de Fleurville andava tudo numa dobadoira. Camila e Madalena de Fleurville e as suas amigas Margarida de Rosbour e Sofia Fichini iam de um lado para o outro, subiam as escadas, desciam-nas outra vez, corriam pelos corredóres, saltavam, riam, gritavam, e até se empurravam. As duas mães, a Sr. a de Fleurville e a Sr.a de Rosbourg, sentadas numa sala que dava para o caminho, iam comentando, com benévolos sorrisos, toda aquela agitação, que não tentavam acalmar. De minuto a minuto, uma das raparigas passava a cabeça pela porta e perguntava: - Então, já se avistam? - Ainda não, queridinha - respondia uma das mães. - Tanto melhor, pois ainda não temos tudo em ordem. E desaparecia, como uma seta, para dizer às outras: - Ainda não chegaram, meninas; temos tempo. Camila - Ainda bem! Sofia, vai buscar flores ao jardim. Sofia - Quais? Madalena - Dálias e resedas: são as que se dispõem mais fàcilmente nas jarras e as que têm um perfume mais suave.

Margarida - E que faço eu, Camila? Camila - Vai com Madalena buscar musgo para ocultar os pés das flores. Eu vou lavar as jarras na cozinha e deitar- lhes água. Sofia foi, a correr, ao jardim, e trouxe um grande cesto cheio de belas dálias e de perfumadas resedas. Margarida e Madalena vieram com o musgo. Camila trouxe quatro jarras bem lavadas, cheias de água. As quatro raparigas tanto trabalharam que, um quarto de hora depois, estavam as jarras cheias de flores dispostas com bom gosto; as dálias alternavam com ramos de resedas. Duas jarras destinaram-nas ao quarto preparado para receber seus primos Leão e João de Rugés, outras duas foram levadas para o quarto do primo mais novo, Tiago de Traypi. Camila, olhando para todos os lados - Parece-me que está tudo pronto; creio que não nos escapou nada. Madalena - Tiago vai ficar encantado com o seu quarto. Que bonito que está! Sofia - Foi boa ideia a colecção de estampas: é um bom entretimento. Margarida - Vou ver se eles vêm! Camila - Nós também vamos. Margarida partiu, correndo, e, antes que as suas amiguinhas a alcançassem, voltou, ofegante, a gritar: - Aí vêm! Aí vêm! Os carros já passaram as cancelas e estão a entrar no bosque! Camila, Madalena e Sofia precipitaram-se para a porta, onde encontraram as mães; bem lhes agradava correr ao encontro dos primos, mas elas não o permitiram. Momentos depois, as carruagens paravam em frente da porta, por entre gritos de alegria das crianças. O Sr. Rugés, sua esposa e dois filhos, Leão e João, desceram da primeira; o Sr. e a Sr. a Traypi e o seu filhinho Tiago apearam- se da segunda. Durante alguns momentos, o tumulto, o barulho e as aclamações foram de ensurdecer. Leão era um belo tipo de rapaz loiro, um pouco trocista, com ar irascível, indolente, pouco enérgico, mas bondoso no fundo. Tinha treze anos. João tinha doze. Possuía olhos negros e cheios de ardor e doçura. Era corajoso e decidido, e, ao mesmo tempo, bondoso, complacente e dedicado. Tiago era uma encantadora criança de sete anos, com os cabelos castanhos, aos caracóis, olhos atrevidos, faces rosadas e excelente coração; tinha um temperamento irrequieto, mas sem amuos nem rancores.

Camila - Como estás crescido, Leão! Leão - E tu que bonita, Camila! Madalena - O João é que já parece um homem! joão - Também tu já estás uma mulher! Margarida - Meu querido Tiago, estou tão contente por voltar a ver-te! Havemos de brincar muito! Tiago - Oh, sim! Vamos divertir-nos a valer, como há dois anos! Margarida-Ainda te lembras das borboletas que apanhávamos? Tiago - E as que nos fugiam? Margarida - E aquele pobre sapo que pusemos em cima de um formigueiro? Tiago - Ainda não te esqueceste daquele passarinho que fui buscar ao ninho para te dar? Lembras-te? Morreu por o ter apertado de mais nas mãos. - Oh, como havemos de brincar! - exclamaram ao mesmo tempo, beijando-se pela vigésima vez. Sofia mantinha-se à distância; não a haviam esquecido, é certo, no primeiro momento de alegria; ela, porém, é que se sentia estranha naquela família, e, lembrando-se de que fora recebida em Fleurville por generosidade, receava ser indiscreta. João, que foi o primeiro a aperceber- se do isolamento da pobre Sofia, aproximou-se dela e pegou-lhe nas mãos, dizendo-lhe, afectuosamente: - Minha querida Sofia, não esqueci nunca a tua afabilidade para comigo na última vez que estiveste em Fleurville, era eu então um rapazito; agora, como estou mais crescido, cabe-me a mim ser-te prestável. Sofia - Obrigada pela tùa generosidade, meu bom João! Obrigada por não te esqueceres da pobre órfã, pela tua amizade por ela! Camila - Sofia, querida Sofia, somos tuas irmãs, bem sabes que a nossa mãe te considera sua filha; porque é então que te afliges e nos desgostas?

Sofia - Perdão, boa mãe e as

Camila, não tenho razão para me afligir, é verdade! Encontrei aqui a

irmãs que me faltavam. - E irmãos! - exclamaram, em coro, Leão, João e Tiago. - Obrigada, queridos irmãos - disse Sofia, sorrindo. - Tenho uma família de que me orgulho. - E não te sentes feliz connosco? - perguntou Margarida, baixinho, beijando-a carinhosamente. - Querida Margarida - respondeu Sofia, dando-lhe, também, um beijo. - Meus filhos, meus

filhos! Desçam depressa,

venham merendar - disse a Sr.a de Fleurville, que ficara em baixo com as irmãs e os cunhados. Não foi preciso repetir tão agradável convite. Os pequenos desceram,

a correr, e reuniram- se na

sala de jantar, em volta da mesa coberta de frutas e doces. Enquanto comiam, iam fazendo projectos para o dia seguinte. Leão imaginava uma pescaria; João pensava em leituras em voz alta; Tiago atrapalhava tudo: queria passar o dia inteiro com Margarida para apanhar e coleccionar borboletas, ir aos ninhos, jogar o carolo, ver e copiar estampas. Queria que Margarida o acompanhasse em todos os brinquedos, de manhã, de tarde e à noite. Ela, porém, desejava a manhã livre para os seus trabalhos de costura. -Tiago - Não pode ser! De manhã é quando se apanham mais borboletas. Margarida - Bem, então deixa-me livre, para os meus trabalhos, da uma hora às três.

Tiago - Ainda menos: é, a ocasião própria para coleccionar as borboletas, estender-lhe as asas e pregá-las em cortiça. Margarida - Quê? Pregá-las? Pobres bichinhos! Eu era lá capaz dessa crueldade! Tiago - Elas não sentem o menor sofrimento; aperto-as antes de as atravessar com os alfinétes; morrem logo. Margarida - Garantes-me que morrem logo e que não sofrem? Tiago - Se deixam de fazer o mínimo movimento. Margarida - Mas, Tiago, que necessidade tens de mim, afinal, para coleccionar as borboletas? Tiago - Oh, minha Margaridinha, tu és tão boa e eu gosto tanto de ti! Contigo estou sempre distraído; e aborreço-me tanto sòzinho! Leão - E porque queres tu a Margarida só para ti? Nós também a queremos para nós; quando formos à pesca, ela há-de ir connosco. Tiago - Vocês já são cinco! Deixa-me a minha querida Margarida para me ajudar a coleccionar as borboletas. Margarida - Ouve, Tiago. Ajudo-te durante uma hora e depois vamos com o Leão à pesca. Tiago resmungou. Leão e João riram-se dele. Camila e Madalena beijaram-no e fizeram-lhe compreender que não devia ser egoísta e que devia, como bom companheiro, sacrificar, algumas vezes, os seus gostos aos dos outros. Ele confessou o seu erro, e prometeu fazer tudo o que a sua amiguinha Margarida quisesse. Terminaram a merenda; as crianças pediram licença para ir passear e partiram, correndo, a ver quem chegava mais depressa ao jardim de Camila e Madalena. Encontraram-no cheio de flores, muito bem tratado e cultivado. João - Falta-lhes uma barraca para guardar as coisas, e outra para abrigar da chuva, do sol e do vento. Camila - Sim, falta, mas nós nunca conseguimos construir nenhuma; não temos força para tanto. Leão - Pois então, eu e João vamos fazer uma durante o tempo em que estivermos aqui. Tiago - E eu também vou construir outra para a Margarida e para mim. Leão, rindo - Ah ah ah Que arquitecto ele nos saiu! Sabes, sequer, como hás-de começar? Tiago - Sei, sim, sei. E hei-de fazer a barraca.

Madalena - Nós ajudamos-te e tenho a certeza de que o Leão e o João também há-de ajudarte. Tiago - Aceito o teu auxílio de muito boa vontade, Madalena, assim como o de Camila e Sofia; mas o de Leão não o quero: ele está sempre a fazer troça de mim. joão, rindo - E o meu auxílio, Jaime, dar-me-á Vossa Alteza a honra de o aceitar? Tiago, zangado - Não, cavalheiro, também dispenso a sua ajuda: quero mostrar-lhe que a minha Alteza pode passar sem ela. Sofia - Mas como hás-de tu fazer, meu Tiago, para construir até ao cimo uma casa ampla e alta bastante para nos abrigar a todos? Tiago - Hás-de ver! Deixa-me cá! Tenho uma ideia. E murmurou algumas palavras ao ouvido de Margarida, que se pôs a rir e lhe respondeu, também em voz baixa: - Excelente ideia, não lhes digas nada até acabares a obra! As crianças continuaram a passear; os primos foram levados ao pomar, onde passaram em revista todos os frutos, mas sem lhes tocar; depois foram visitar os estábulos, o galinheiro, a leitaria. Andavam contentíssimos: riam, corriam, trepavam às árvores, saltavam fossos e colhiam flores, de que faziam ramos destinados às suas primas e amigas. Tiago dera os seus a Margarida. Os de João eram para Madalena e Sofia; Leão entregava os dele a Camila. Só regressaram à hora dojantar. O passeio abrira-lhes o apetite; comeram muito bem e no meio de franca alegria. Nenhuma daquelas crianças tinha medo dos pais, que mais se faziam amar do que temer e que, com seus filhos, riam e conversavam alegremente. Depois de jantar deram todos um passeio pelo campo, donde trouxeram uma porção de miosótis; o resto da noite passaram-no a fazer coroas de flores para as meninas; Leão, João e Tiago davam o seu concurso, cortando-Lhes os pés mais compridos, preparando o fio, escolhendo as flores mais bonitas. Chegou, finalmente, a hora de deitar dos mais novos: Sofia, Margarida e Tiago, depois a dos mais velhos e mais tarde a hora do repouso dos pais. No dia seguinte deviam começar a construção das barracas, a caça das borboletas, a pesca, os grandes passeios no campo, a leitura e o estudo tinham um programa que lhes dava, pelo menos, para vinte e quatro horas. Os pequenos estavam em férias. E que férias! Os pais tinham prometido que, durante seis semanas faria cada um o que lhe apetecesse desde pela manhã atéà noite, com a condição de reservar duas horas para estudo. No dia seguinte ao da chegada dos primos acordaram todos muito cedo. Margarida soergueu-se na cama e chamou Sofia,

que dormia profundamente; esta despertou, sobressaltada, e esfregou os olhos. - Quê? Que é? São horas de partir? Espera, já vou. E, dito isto, caiu de novo a dormir, no travesseiro. Preparava-se Margarida para chamar outra vez quando a criada, que dormia perto, interveio: - Ora faça o favor de se calar, menina Margarida; deixe-nos dormir; ainda não são cinco horas; creio que não vai levantar-se tão cedo! Margarida - Meu Deus! Que noite tão comprida! Estou farta de dormir! E, pensando nos projectados casinhotos, e antegozando os prazeres do dia, adormeceu também. Camila e Madalena, há muito acordadas, esperavam, com impaciência, que o relógio desse as sete, hora a que se levantariam sem incomodar Elisa, a criada. Essa, como não tinha barracas a construir, dormia tranquilamente. Leão e João tinham acordado e haviam-se levantado às seis; quando as primas começaram a vestir-se, acabavam eles, já prontos, de rezar a oração matinal. Tiago tivera, antes de se deitar, uma conversa em voz baixa com o pai e com Margarida; todos, um tanto intrigados, viram os três em animada palestra; de vez em quando Tiago saltava, batia as mãos e beijava o pai e Margarida, mas nenhum revelou o motivo por que tinham falado com tanta animação e alegria. No dia seguinte, quando Leão e João foram ao quarto do primo para o acordarem, encontraram-no vazio. João - Como! Já cá não está? A que horas então se levantou ele? - Está a ver-se: num primeiro dia dc férias quem não gosta de corridas e passeios matinais? Anda no jardim, decerto: lá o encontraremos. Enquanto não vêm as primas e as amigas, vamos nós até casa do caseiro; almoçaremos leite quente e pão de centeio. João aprovou o projecto com entusiasmo; chegaram no momento em que acabavam de mugir as vacas. A tia Diart, mulher do caseiro, recebeu-os muito bem. Depois das primeiras frases de boas-vindas, Leão pediu leite e pão de centeio. A tia Diart apressou-se a servi-los. - Anda, gorducha - gritou ela para uma criada, que transportava dois canados de leite-, traz leite fresco para estes meninos. Anda depressa! Que pata-choca! Os meninos desculpem, ela é

pouco desembaraçada. Pousa aí os baldes, não tens habilidade para nada. Vai buscar um pão à masseira. Aí têm, ao dispor dos meninos, tudo o que desejarem. Leão e João agradeceram e começaram a tomar, com satisfação, aquele belo leite e a comer o saboroso pão caseiro, que saíra havia pouco do forno e estava ainda quente. - Basta, João - disse o companheiro. - Se comermos de mais, já não faremos nada. Não te esqueças de que temos de começar as barracas. É preciso acabarmos as nossas antes de aquele maroto do Tiago começar a dele. joão - Nisso não acredito eu. Tiago é forte, inteligente e decidido; consegue sempre o que quer... Leão - Ora, deixa-te disso: não vais acreditar que seja capaz de fazer uma casa sòzinho, ajudado, apenas, por Sofia e Margarida... João - As vezes. Sei lá! Leão - Não vês que é impossível? Não fará nada de jeito. João - É o que havemos de ver. Leão - Acreditas em tudo! Ah ah ah! Um garoto de sete anos arquitecto! Nessa não acredito eu! joão - Bem! O mais seguro é não rires por enquanto. Demais, são horas de irmos buscar as primas; vão dar as sete. Correram a casa, foram bater à porta do quarto das raparigas, que os esperavam muito animadas. Depois dos alegres bons-dias, desceram para correr ao jardim e começarem a barraca. Ao aproximarem-se, ficaram surpreendidos de ouvir marteladas: dir-se-ia que alguém pregava tábuas. Camila - Quem estará no jardim a martelar? Madalena - Naturalmente é no bosque. Camila - Não, não; as pancadas vêm do jardim. Leão - Ah! aqui vem Margarida, que nos explicará tudo. No mesmo instante, Margarida gritou muito alto: - Leão, João, bons dias; Sofia e Tiago estão junto de mim. - Oh, não grites tanto - disse, a sorrir. - Não somos tão surdos como isso! Margarida aproximou-se deles, a correr, e beijou-os; depois seguiram todos a caminho do jardim, passando pelo bosque. Grande surpresa tiveram ao verem Tiago, que

era para eles um miúdo, com um grande martelo a pregar tábuas às estacas que formavam os quatro cantos da barraca. Sofia auxiliava-o, segurando nas tábuas. Tinham escolhido muito bem o lugar da casa junto de um grupo de nogueiras que a abrigavam do sol. Mas o que, sobretudo, surpreendeu os recém-chegados foi a presteza de Tiago e também aenergia e habilidade com que colocara as estacas.

Até já se

desenhavam a porta e uma janela. Os quatro tinham parado; surpreendidos; e tão grande espanto se lhes pimtava nas faces, que Tiago, Margarida e Sofia não puderam impedir-se de sorrir e de rir, finalmente, às gargalhadas.

Tiago deitou

mesmo o martelo ao chão para rir mais à vontade. Leão caminhou para ele. Leão, muito zangado - Porque te estás a rir e de quem te ris? Tiago - Estou-me a rir de vocês todos e do vosso ar de espanto. João - Mas, meu Tiago, como pudeste tu fazer isto? Como pudeste transportar as quatro estacas e estas tábuas tão pesadas? Tiago, com ar garoto - Foi a Margarida e a Sofia que me ajudaram. Leão e João abanaram a cabeça com ar incrédulo; andaram à volta da casa, olharam para todos os lados com aspecto desconfiado, enquanto Camila e Madalena

se espantavam da habilidade de Tiago e admiravam a rapidez com que trabalhara. Camila - A que horas te levantaste, Tiago? Tiago - As cinco, e às seis já aqui estava com as estacas, as tábuas e as ferramentas. Tomem lá, peguem vocês agora na ferramenta; chegou a vossa vez. Leão - Não. Tiago, continua; gostaríamos de te ver trabalhar, recebendo, assim, uma lição da tua grande habilidade. Tiago lançou a Margarida e a Sofia um olhar de inteligência, e respondeu, a rir: - Nós estamos já a trabalhar há muito e sentimo-nos cansados. Vamos, agora, à caça das borboletas. Leão, irónico - Para descansar, não é? Margarida - Isso mesmo, para descansar os braços e o espírito. Dito isto, partiram, às gargalhadas e aos saltos. Leão viu-os afastarem-se e disse: - Não têm nada o aspecto de quem está fatigado. Nesse mesmo instante, Camila e Madalena aproximaram-se, inquietas, de Leão e de João. Madalena - Ouvi estalar ramos na mata. Camila - Eu também; vocês ouvem, agora? Parece ser alguém que foge para não ser visto. Enquanto Leão recuava, afastando-se, prudentemente, da mata e do bosque, João agarrou no martelo, pondo-se diante das primas para as defender. Escutaram alguns instantes e nada mais ouviram, Leão disse com ar aborrecido: - Vocês ouviram mal, não foi nada. Pousa o martelo, João; deixa esses ares de ferrabrás; desta vez falta-te o adversário. Madalena - Obrigada, João; se houvesse perigo, ter-nos-ias defendido. Camila - E tu porque troças da coragem de João? Podia haver verdadeiro perigo, pois tenho a certeza de que ouvi caminhar com precaução na mata, como se alguém se quisesse esconder. Leão, com ar zombeteiro - Prefiro a prudência da serpente à coragem do leão. joão - Não há dúvida de que é menos perigoso.

Camila pressentiu uma disputa e mudou de conversa, falando da projectada barraca. Pediu que escolhessem lugar para ela; depois de muita hesitação resolveram construí-la em frente da de Tiago. Foram, em seguida, buscar toros de madeira e tábuas para a construção. Escolheram o que precisavam num telheiro onde havia paus de todas as formas e feitios. Carregaram tábuas e estacas num carrito, que Leão e joão puxavam e Camila e Madalena empurravam. Partiram em grande correria. Passaram, com ar triunfal, por diante de Tiago, Margarida e Sofia, que caçavam borboletas no prado e que, ao vê-los, foram postar-se, em linha, na orla do bosque, empunhando as redes como quem apresenta armas e rindo com ar malicioso. João, Camila e Madalena corresponderam, rindo com alegria; Leão zangou-se e quis parar; mas João puxava sempre e Camila e Madalena empurravam o carro, de modo que teve de seguir com eles. Pouco depois ouviu-se a sineta tocar para o almoço; as crianças deixaram o trabalho e subiram a lavar as mãos, ajeitar o cabelo e escovar-se. À mesa, o Sr. Traypi informou-se da marcha dos trabalhos. - Então como vão essas obras? Os mais velhos têm o seu trabalho muito adiantado? Quanto ao meu Tiago, coitado, calculo que ainda estará a meter a primeira estaca. Eh! Leão? Leão, com ar de enfado - Não, tio; ainda não vamos muito adiantados; estamos a começar a enterrar as quatro estacas dos cantos. O Sr. Traypi - E o Tiago, em que altura vai? Leão, com o mesmo ar - Não sei como arranjou, mas a verdade é que o trabalho dele não está mais atrasado que o nosso. Margarida - Confessa que vai mais adiantado que vocês, que são maiores e mais fortes, pois já está a pregar as tábuas das paredes. O Sr. Traypi - Ah Ah! Nesse caso, ele não é tão mau artista como ontem dizias, Leão. Leão não deu resposta e corou. Pôs-se toda a gente a rir; Tiago, que estava ao lado do pai, pegou-lhe na mão e beijou-a sem ninguém ver. Mudaram de assunto; excelentes pastéis de creme de chocolate entusiasmaram toda a gente. Depois de almoçar, os pequenos quiseram levar os pais ao jardim para lhes mostrarem as barracas começadas, mas eles declararam, unânimes, que só lhes interessava vê-las quando estivessem prontas. Deram, então, uma volta pelo bosque, durante a qual Leão combinou com os outros irem pescar. - João e eu - disse ele - vamos preparar as linhas e os anzóis; entretanto, vocês, minhas queridas primas, vão pedir ao jardineiro algumas minhocas e mandem-nas meter em qualquer vasilha. Camila e Madalena correram ao jardim, onde se juntaram com Leão e João; em poucos minutos o jardineiro encheu-lhes uma vasilha de vermes muito bons para a pesca, e lá foram

para o lado onde já se encontravam Tiago, Margarida e Sofia, que tinham preparado um balde para meter os peixes e trazido migalhas de pão para os atrair. Foi boa a pesca; vinte e um peixes passaram do lago para o balde, breve prisão de onde só saíram para morrer a ferro e fogo na cozinha. Já ia a pesca muito adiantada e ninguém notara o desaparecimento de Tiago. Foi Madalena quem primeiro deu por isso. - Naturalmente-disse ela-, foi para casa coleccionar borboletas. - As borboletas que não apanhou - cochichou Margarida, a rir, ao ouvido de Sofia: Sofia respondeu-lhe com um sinal de inteligência e um sorriso. - Que bicho vos mordeu? - disse Leão, com ar desconfiado. - Não sei o que elas estão para ali a cochichar, mas vejo-as ambas, e Tiago também, desde esta manhã, com ar misterioso e irónico que não anuncia nada de bom. Margarida, a rir - Para vocês ou para nós? Leão - Para todos; porque, se vocês nos fizerem partidas, pagar-vos-emos na mesma moeda. João - Pela minha parte, não tenho receio. Podem fazer o que quiserem que eu não me vingo. Margarida - Como tu és bom, João - disse Margarida, aproximando-se dele e apertando-lhe as mãos. -Nada receies, não éramos capazes de fazer alguma coisa que te ofendesse. Sofia - Supomos

que não nos levarão a mal

brincadeiras inocentes. joão, a rir - Ah! Já temos alguma coisa em curso? Suspeitava-o.

Advirto-vos de que farei tudo

por a fazer abortar. Margarida - Não o conseguirás, por mais que queiras! joão - É o que havemos de ver. Leão -Já estamos aqui há perto de duas horas. Pescámos mais de vinte peixes. Não achas que, por

hoje, chega? Camila - Tens razão; voltemos às nossas barracas, que, a falar verdade, estão bastante atrasadas; temos de apanhar Tiago;

apesar de mais pequeno,

trabalhoú muito mais. joão - Ora isso é que eu não posso perceber. Tu, Sofia, que trabalhas com ele, explica-me como conseguiram vocês ambos fazer o trabalho de dois homens, enquanto nós não fizemos mais que enterrar as estacas. Sofia, atrapalhada -Mas...

não sei... não sei...

Margarida, com vivacidade - Ora, explica-se muito bem: nós somos construtores competentes, activos, não perdemos um instante. Madalena - Quanto a nós, que fazemos? Nada, perdemos tempo. Tenho a certeza de que Tiago deitou de novo mãos à obra, enquanto nós estamos para aqui a perguntar uns aos outros como é que a sua casa se adianta e a nossa está parada. - Vamos ver,

vamos ver - gritaram todos,

excepto Margarida e Sofia. - Primeiro temos de guardar as linhas de pescar e os anzóis - disse Sofia, detendo-os. - E levar os peixes à cozinha - acrescentou Margarida. Leão, com ar de zombaria e imitando a voz de Margarida - E também cozinhá-los, não é? para dar tempo a Tiago. joão, a rir - Esperem aí, vou ver o que é feito dele. E ia partir, a correr, quando Sofia e Margarida o agarraram. João, a rir, debatia-se; Camila e Madalena acorreram para o ajudar. Margarida atirou-se ao chão e agarrou-o por uma perna.

-Não o deixes, não o deixes; segura-lhe na outra perna - gritou ela a Sofia. Mas Camila e Madalena precipitaram-se sobre Sofia, que ria a bom rir. João, a debater-se, caiu na relva, e o seu trambolhão aumentou a alegria geral; Margarida ficara estendida, com o nariz nos tacões dele. O ar grave de Leão, contemplando a cena, mais excitava ainda o riso. Ficara de pé, junto do balde dos peixes, e perguntava, de vez em quando, em tom irritado: - Então quando acabam com isso? Quanto mais Leão se formalizava, mais os outros riam. Quando se cansaram de tanto rir, seguiram, enfim, Leão, mas ainda comentando o seu aspecto grave com gargalhadas e gracejos. Assim se aproximaram do bosquezito onde eram construídas as barracas e ouviram, nitidamente, marteladas tão fortes e repetidas, que não era possível atribuí-las a Tiago. - Desta vez - disse João, escapando-se e entrando na mata - saberei o que isto é. Sofia e Margarida deitaram a correr pelo caminho do bosque, gritando Tiago! Tiago! cuidado. Leão correu também e foi o primeiro a chegar; não estava ninguém, mas no chão viam-se, abandonados, dois grandes martelos, pregos, cavilhas, pranchas, etc. - Ninguém - disse Leão. - É duro de roer, temos de os apanhar. João João! E meteu-se pela mata dentro. -Instantes depois ouviram-se gritos vindos do bosque. - Cá está! Cá está! Apanhámo-lo. - Não, fugiu-nos. - Agarra, agarra! pela direita! pela esquerda! Sofia, Margarida, Camila e Madalena escutavam, ansiosamente, rindo. Viram sair João, com os cabelos e o fato em desalinho. No mesmo instante, Leão saiu em igual estado, perguntando vivamente a João: - Viste-o? Para onde se meteu? Porque é que o deixaste fugir? - Ouvi-o correr no bosque - respondeu João -, mas, da mesma maneira que tu, não pude agarrá-lo nem vê-lo. Entretanto, Tiago, vermelho, esfalfado, apareceu também e perguntou-lhes, com ar irónico, que era aquilo; porque tinham eles gritado assim e a quem tinham perseguido? Leão, irritado - Finge-te inocente, meu finório. Sabes melhor do que nós de quem se trata. joão - Eu estive quase a apanhá-lo. E apanhava-o, se não fosse Tiago interpor-se.

Leão - E davas-lhe uma ensinadela, claro. joão - Tê- lo-ia reconhecido e havia de o trazer comigo para nos ajudar na nossa barraca. Anda, Tiago, dize-nos quem te ajudou a construir a tua, tão bem e tão depressa. Nós guardaremos segredo. Tiago - Guardar segredo para quê? João - Para não te acusarem de deslealdade. Tiago - Ah ah! Vocês então supõem que alguém me ajudou, que esse alguém se zangaria se eu lhe revelasse o nome, e tu queres, João, que eu seja cobarde e ingrato até ao ponto de o dizer? Leão - Ora não querem ver este fala-barato de sete anos! Vais ver como te obrigamos. João - Não, Tiago tem razão; seria coagi-lo a ser desleal, ou, pelo menos, indiscreto. Leão - Muito custa ser escarnecido por um garotelho! Sofia - Não te esqueças, Leão, de que o desafiaste, que fizèste troça dele e que ele tinha o direito de te provar. Leão - Provar-me o quê? Sofia - Provar-te. que. que. Margarida, com vivacidade - Que é mais esperto do que tu e que tinha o direito de te pregar uma partida inocente sem tu teres o direito de te zangar. Leão, sentido - Eu não me zango, meninas; e afianço-lhes que respeitarei a finura e a esperteza do vosso protegido. Margarida Um protegido que será, dentro de pouco tempo, protector. Tiago, a Margarida - E que não se esconderá por detrás de ti quando algum perigo te ameace. Leão, encolerizado - De que queres falar e de quem, garoto? Tiago, vivamente - De um poltrão e de um egoísta. Camila, receando que a disputa tivesse piores consequências, agarrou na mão de Leão e disselhe, com afecto: - Leão, estamos a perder tempo; e tu, que és o mais sensato e o mais imteligente de todos nós, distribui a cada um o trabalho a fazer, para se concluir a nossa barraca, ainda tão atrasada. - Também eu me ponho às tuas ordens - exclamou Tiago, já arrependido. Leão, que a lisonja de Camila desarmara, sentiu-se de todo tranquilizado pelas palavras de Tiago, e, esquecendo as ásperas coisas que este acabava de dizer, correu a dar a cada um a sua tarefa, e todos se puseram a trabalhar activamente.

Durante duas horas trabalharam com um interesse digno de melhor sorte; as pranchas não se seguravam, os pregos torciam-se. Com paciência e coragem recomeçaram o que lhes saía mal, mas pouco adiantavam. Tiago parecia querer fazer com que esquecessem as suas palavras de há pouco, mostrando zelo superior à idade. Deu excelentes conselhos, que os outros, com êxito, acolheram e seguiram. Enfim, fatigados e a transpirar, deixaram a obra para continuar no dia seguinte, depois de Leão e os companheiros terem deitado um olhar de inveja à casa de Tiago, quase pronta: Este, que desde a questão parecia contrafeito, separou-se dos primos e foi ter com o pai, que o acolheu, rindo. O Sr. Traypi - Então, Tiagozito, quase me apanharam! Se não fosses tu, João tinha-me visto. Não importa, o caso é que adiantámos hoje muito; já pedi ao Martinho que concluísse a barraca enquanto jantamos, e amanhã ficarão todos muito admirados ao verem-na pronta. - Não, pai, não - disse Tiago, deitando-lhe os braços à volta do pescoço -Deixe ficar a minha casa como está e mande acabar a dos primos. - Como é isso? - replicou o pai, surpreendido. - Tu que tão vivamente te empenhavas em acabar a tua barraca antes de o Leão fazer a sua! Tiago - Sim, meu querido pai. E porque fui mau para ele, e custa-me causar-lhe pena, tendo sido tão bom para mim. Leão podia ter-me batido depois do que lhe disse há pouco, e não o fez. E contou ao pai a cena do jardim. O Sr. Traipy - E como é que o acusaste de egoísta e cobarde? Não sabes que são palavras muito duras? Que fez ele para lhas dizeres? Tiago - O pai não se lembra quando, de manhã, fomos, pela primeira vez, surpreendidos e nos escondemos? Camila e Madalena ouviram-nos mexer e julgaram que eram lobos ou ladrões. João pôs-se diante delas para as proteger, e Leão, ao contrário, por detrás; eu bem vi através da folhagem o seu ar aterrado e pensei que, se fizéssemos qualquer novo ruído, ele fugiria, em vez de ajudar João a defender-se. Era a isso que eu me referia quando disse aquelas palavras tão más. O Sr. Traypi, abraçando-o, a sorrir - És um excelente rapazinho; meu Tiago; para outra vez não tornes a fazer o que hoje fizeste; eu vou, pela minha parte, mandar acabar a casa dos teus primos. Tiago beijou o pai e foi, muito contente, juntar-se aos companheiros, que brincavam na relva do parque. No dia seguinte, quando os pequenos, acompanhados de Sofia e Margarida, foram ao jardim, para continuarem as barracas, ficaram surpreendidíssimos ao vê-las ambas prontas, e mesmo com portas e janelas! Estavam pasmados! Sofia, Tiago e Margarida olharam-nos, rindo. - Como é isto? - disse Leão, finalmente. - Porque milagre se concluiu assim, de repente, a nossa casa?

-Porque já era tempo de acabar com uma brincadeira que poderia dar maus resultados - disse o Sr. Traypi, saimdo de entre as árvores. -Tiago contou-me o que houve entre vós, e pediu-me que os ajudasse a vocês como até então o ajudara a ele. E confesso também que receei outra batida como a que me fizeram ontem. Passei todas as aflições de um verdadeiro criminoso e estive, por duas vezes, a dois passos dos meus perseguidores. Tu, João, se não fosse o Tiago, tinhas-me apanhado; e tu, Leão, passaste rente a mim sem me ver. João - Que nos diz? Foi então o tio que tanto nos fez correr? Pode orgulhar-se de ter umas boas pernas! O Sr. Traypi, a rir - Ah! que na minha mocidade era considerado o mais resistente corredor do colégio. E ainda conservo alguma coisa disso, segundo se vê. As crianças agradeceram ao tio o ter-lhes mandado acabar as barracas. Leão beijou Tiago, que lhe pediu perdão em voz baixa. - Cala-te - disse aquele, corando levemente. Não se fala mais nisso. É que Leão sentia quanto tinha havido de verdadeiro na observação de Tiago. Prometeu a si mesmo fazer todo o possível por não a tornar a merecer. Era preciso, agora, mobilar as casas; cada um dos pequenos pediu e obteve uma porção de preciosidades, como tamboretes, cadeiras velhas, mesas fora de uso, restos de cortinados, porcelanas e cristais partidos. Levaram tudo que puderam apanhar. - Venham cá ver - gritava Leão - o nosso bonito tapete. - E nós, em vez de tapete, temos um oleado - respondia Sofia. - Venham sentar-se neste banco: é tão cómodo como as poltronas da sala de visitas-dizia João. - O que ainda não viram foi este armário cheio de chávenas, copos e pratos - replicou Margarida. - E as nossas provisões? Compota, açúcar, biscoitos, cerejas, e chocolate-acrescentou Camila. - Nós é que tivemos juízo - dizia Tiago -, pois, enquanto vocês se preocuparam com lambarices, fortificámos o estômago com coisas mais substanciais: pão, queijo, presunto, manteiga, ovos e vinho. -Tanto melhor-replicou Madalena. -Quando vos convidarmos para almoçar ou merendar, vocês trazem o salgado e nós damos o doce. Dia a dia se acrescentava alguma coisa ao bom aspecto e conforto das barracas de que o Sr. Rugés e o Sr. Traypi se tinham encarregado. No fim das férias, as casas transformadas apresentavam-se com atraente aspecto; as fendas das tábuas haviam sido cobertas de musgo, as janelas guarnecidas de cortinados; o chão coberto de areia fina. Pouco a pouco, tinham levado para lá cadernos e livros, e ali mesmo estudavam. O comportamento dos pequenos era então exemplar. Quando chegasse o momento da despedida, as barracas seriam um dos motivos de pesar. Mas as férias deviam durar perto de dois meses, e ainda os nossos pequenos heróis estão no terceiro dia de férias e têm muitos outros para brincar.

VISITA AO MOINHO - Proponho um grande passeio ao moinho, pelo caminho do bosque - disse o Sr. Rugés. Vamos ver o novo maquinismo instalado por minha irmã, e, enquanto nós estivermos a examinar as máquinas, os meninos brincam na relva, onde lhes será servida uma boa merenda campestre: pão de centeio, leite, queijo, manteiga e bolachas caseiras. Quem gostar de mim que me siga! Todos, imediatamente, o cercaram. - Parece que todos me estimam-continuou o Sr. Rugés, a rir. - Vamos embora! - Olá, olá, mais devagar, meninos! Nós não podemos ir com essa pressa! Os pequenos, que tinham partido a galope, voltaram e rodearam os pais. Foi encantador o passeio; a frescura do bosque temperava o ardor do Sol; de vez em quando as crianças sentavam-se, palestravam, colhiam flores, apanhavam amoras. - Cá estamos junto do célebre carvalho, onde perdi, um dia, a minha boneca-disse Margarida. Não esquecerei nunca a pena que senti quando, ao deitar-me, dei pela falta dela e me lembrei de que ficara no bosque, exposta à chuva. (1) (1) Veja As Meninas Exemplares, da autora. - De que boneca falas? - perguntou João. Não conheço esse caso. - Aconteceu há muito - disse Margarida. -Foi a Joaninha que me levou a boneca. João - Qual Joaninha? A filha da moleira? Margarida - Essa mesma. E a mãe muito lhe bateu Íamos longe e ainda ouvíamos chorar a rapariga. Tiago - Conta-nos isso, Margarida. Como os nossos pais se sentaram também, temos tempo de ouvir a tua história. Margarida sentou-se na relva, à sombra do mesmo carvalho, junto do qual a boneca ficara esquecida; contou-lhes a história e como a boneca fora encontrada em casa de Joaninha, que a levara. - Essa Joaninha é muito má, nesse caso - disse Tiago. - E modificou-se, desde então? Sofia - Modificar-se? Essa agora! É a pior aluna da escola. Margarida - A mamã diz que é uma ladra. Camila - Margarida, Margarida! Não deves repetir isso. Estás a desacreditar uma pobre rapariga, talvez arrependida das suas faltas passadas.

Margarida - Não está arrependida, asseguro-te. Camila - Mas como podes ter a certeza disso? Margarida - Pelo seu ar atrevido. Passa sempre por nós com o nariz arrebitado; nem na igreja se porta decentemente; enfim, acho-lhe um aspecto falso e mau. Madalena - É assim, é; e eu já falei nisso à mãe. Leão - E que disse a tia Léonard à Joaninha? Madalena - Suponho que nada, visto que não se modificou. Sofia - E esqueceu-te contar qual foi a resposta da mãe: Olhe, que é que a menina tem com isso? A gente não se mete na sua vida; não se meta a menina na nossa. João - Essa é boa! Então ela respondeu-te assim? Se eu lá estivesse, comigo se havia de haver, e a Joaninha também. Madalena, sorrindo - Foi uma sorte não estares. A tia Léonard começava logo a discutir contigo e ter-te-ia dirigido algum pesado insulto. joão - Insulto! Isso sim! Dava=lhe tantos socos e pontapés. Não sou para brincadeiras 1 Em poucos minmutos, desfazia-a. Leão, encolhendo os ombros- Mas que gabarola! Ela é que te dava uma coça! João - Uma coça a mim! Quererás tu experimentar? E, dito isto, levantou-se, tirou o casaco e preparou-se para a luta. Tiago ofereceu-se para combater a seu lado. Todos os pequenos se puseram a rir. João, sentindo o ridículo do que dissera e fizera, tornou a vestir o casaco e riu de si próprio com os outros. Leão pôs-se a implicar com Tiago, que correspondeu da mesma forma; e, como Margarida se colocasse ao lado deste, Leão começou a enfurecer-se. Os outros meninos olhavam-se de soslaio e procuravam apaziguar mais esta disputa, mas não o conseguiam. Leão levanta-se e quer bater em Tiago, que, mais ágil, lhe escapa sempre e lhe faz negaças. Limpa a fronte, transpirando por todos os poros, e não domina o furor. - Anda ajudar-me - diz ele a João. - Estás para aí indiferente a ver- me correr, sem vires em meu auxílio. joão - Em teu auxílio, para quê? Leão - Para agarrar este garotelho, com a breca! joão, friamente - E depois?

Leão - Depois... para me ajudares a dar-lhe uma lição. joão - Que lição? Leão - De respeito e delicadeza para comigo, que tenho quase o dobro da sua idade. joão - De respeito! Ah! Sempre me saíste uma pessoa muito respeitável! Margarida - Submeter-nos a ti, é o que tu querias. Não nos faltava mais nada. João - Em qualquer caso, e ainda mesmo quando Tiago se tivesse ofendido, não me punha a teu lado contra ele, porque é mais pequeno e tem, como tu mesmo disseste, metade da tua idade. Leão-Tornas-te aborrecido com esses nobres sentimentos e essa estúpida generosidade. joão - Chamas a isto generosidade! Achas justo que dois rapazes de tréze e doze anos se juntem contra um pequeno de sete, que nenhum mal lhes fez? Leão - Então isto de estar a arreliar-me há um quarto de hora não é nada? João - Ora! Também tu lhe fizeste o mesmo. Descarta-te sòzinho. Tanto pior para ti, se ele te leva a palma. Tiago ouvira tudo sem proferir uma palavra. No seu rosto inteligente e expressivo traduzia-se o que lhe ia no íntimo: reconhecimento e afecto para com um, pesar de ter ofendido o outro. Aproximou-se pouco a pouco, e depois correu para Leão, dizendo: - Perdoa-me por ter-te feito zangar; reconheço que fiz mal; e levei Margarida a proceder mal; ela arrependeu-se já também; não é assim, Margarida? Margarida - Sim, Tiago, claro que estou arrependida; e Leão de boa vontade nos há-de perdoar, pensando que, como somos os mais novos, nos sen timos mais fracos, e que, à falta de força, temos de recorrer às palavras. Leão nada disse, mas estendeu a mão a Margarida e depois a Tiago. Os pais, sentados mais longe a conversar, levantaram-se para continuar o passeio. Os pequenos seguiram-nos; Tiago aproximou-se de João e disse-lhe com ternura: - João, sou muito teu amigo. Margarida - Eu também, e agradeço-te o teres defendido de Leão o meu querido Tiago. E, falando-lhe baixinho ao ouvido, acrescentou: - Não gosto do Leão. João sorriu, beijou-a e respondeu-lhe:

- É engano teu; afianço-te que ele, no fundo, é bondoso. Margarida - Mas procede sempre como se o não fosse. joão - É bom, mas ao mesmo tempo é arrebatado: não devemos fazê-lo zangar. Margarida - Como? Se se zanga por tudo e por nada. João- Ora confessa: tu e Tiago tendes prazer em o excitar. Tiago e Margarida olharam um para o outro, sorriram, e confessaram que Leão os irritava com o seu ar escarninho, e que sentiam prazer em contrariá-lo: - Então, vejam se são capazes de não o irritar e nunca mais terão motivos de queixa. Enquanto conversavam, foram-se aproximando do moinho; os pequenos viram, com surpresa, que uma grande multidão o rodeava; toda aquela gente parecia muito agitada; alguns andavam de um lado para o outro, formavam grupos aqui e além e voltavam a juntar-se uns com os outros. Era bom de ver que, no moinho, alguma coisa de anormal corria. - Aconteceria alguma desgraça? - perguntou a Sr. de Rosbourg. -Aproximemo-nos; dentro em pouco saberemos do que se trata - respondeu a Sr.a de Fleurville. As crianças olhavam com curiosidade e inquietação. Quando chegaram mais perto, começaram a ouvir gritos, mas não de dor; eram vozes de cólera. imprecações, insultos. Em breve se distinguiram uniformes de polícias; uma mulher, um homem e uma rapariguita debatiam-se, seguros por dois deles. A rapariga e a mãe soltavam altos gritos e queixumes, o homem praguejava. Os polícias faziam todos os esforços para não os deixar fugir. Os pequenos reconheceram, finalmente, o tio Léonard, Joaninha e a mãe. - Tenha paciência, mulher, porte-se com termos, não nos obrigue a algemá-la - dizia um polícia. Cumprimos as ordens que nos dão. A Tia Léonard - Não vou! Não vou! Polícias malditos, carrascos dos pobres! Não sou tão estúpida! Se me levais para a prisão, fico lá a apodrecer até ao juízo final. O Polícia - Vamos, tia Léonard, seja razoável; está a dar um mau exemplo a sua filha. A Tia Léonard - Quero lá saber da minha filha! Foi essa palerma que nos fez apanhar. Levem-na a

assim

ela, que não me importo com isso. - Largas-me ou não, madraço? - gritava o tio Léonard a outro polícia, que o segurava pela gola do casaco. - Espera lá, animal, que te estendo já com uma rasteira! Os polícias nada respondiam a estas injúrias, e a outras que não dizemos. E, vendo como eram inuteis os seus esforços para levar os seus prisioneiros, fizeram sinal a um terceiro polícia. Este tirou do bolso umas correias. Apesar dos agudos gritos de Joaninha e da mãe, e dos insultos do pai, os polícias ataram-nos de pés e mãos, sentando-os, assim algemados, num banco, enquanto um deles ia buscar uma carroça para os conduzir à prisão. A Sr.a de Fleurville e as outras senhoras tinham ficado, com os pequenos, um pouco afastadas da cena; os Srs. Rugés e Traypi aproximaram-se para se informarem das causas da prisão. Seguiram-nos os filhos do primeiro. -Por que motivo prendem a família Léonard? - perguntou o Sr. Rugés. - Por motivo de roubo, senhor-respondeu, delicadamente, um dos polícias, levando a mão ao chapéu. - Há muito tempo que existem queixas contra eles; mas, como são muito hábeis, não apareciam provas. Num dos últimos dias, porém, a rapariga descuidou-se, e esse descuido descobriu tudo. O Sr. Rugés - Pode contar-me o caso com pormenores?

O Policia - Segundo parece, os Léonard roubaram uma peça de pano que estava a branquear ao sol. Esconderam-na dentro da masseira, debaixo da farinha; mas, de noite, a rapariga pôs-se a pensar no caso e disse lá consigo: Já que o meu pai e a minha mãe roubaram a peça de pano da tia Marún, bem posso eu roubar-lhes a eles um pedaço para o vender e comprar pastéis e rebuçados. Dito e feito: levanta-se a moça e vai cortar um grande pedaço de pano. Como era véspera de mercado resolveu vendê-lo logo no dia seguinte. Sem nada dizer aos pais, lá vai ela. Vê a filha dos Chartier, chama-a e oferece-lhe o tecido. - Quanto é? - pergunta a outra. - São bem uns seis metros; dá-lhe duas camisas à vontade. - E quanto queres? - Ah! levo-lhe barato; dê-me cinco francos e é negócio arrumado. - Seja, compro-te o pano. Ficaram as duas muito contentes: a Léonard com os cinco francos e a Chartier com a vantajosa compra. Mas, quando esta chega a casa com o pano e o vai mostrar à mãe, fica muito admirada de ver o quarto encher-se de farinha, ficando as duas brancas como moleiras. - Isto que é? - disseram. E foram sacudir o pano para a porta da casa. Entretanto passa por ali a tia Martin.

- Onde vai tão apressada? - pergunta-lhe a tia Chartier. - Vou queixar-me à polícia: roubaram-me uma peça de pano. - Pois eu acabo de comprar seis metros de pano muito barato. - Olha! - disse a tia Martin. - Mas é muito parecido com o meu! E que é que lhe estão a fazer? - A sacudi-lo. Estava coberto de farinha. - Essa agora, pano coberto de farinha! Mas quem o vendeu? - Foi a filha dos Léonard. - A filha dos Léonard? Como é que ela arranjou tecido tão fino? Ora mostrem-mo cá: parece-se a valer com o meu! A tia Martin pega no pano, examina-o, olha-o numa das pontas e reconhece o sinal que lhe pusera. Ficaram as três muito impressionadas: a tia Martin, contente por estar na pista que procurava; a tia Chartier, aborrecida por ter dado cinco francos por uns metros de tecido roubado. Vieram então as três procurar- me e contar-me o que se passara. - A tia Chartier comprou o pano todo? - pergunto à tia Martin. - Muito longe disso! - respondeu ela. - Eram perto de cinquenta metros. - Então precisamos de apanhar os quarenta e quatro que faltam, tia Martin. Deixe isso comigo. Vamos estar alerta no mercado; se a tia ou o tio Léonard lá forem com a peça para a vender, prendo-os; senão irei amanhã, com os meus camaradas, passar uma busca ao moinho. - Mas se eles vendem o pano a um vizinho? perguntou a tia Martin. - Qual história! Toda a gente sabe que roubaram o pano, vendê-lo a um vizinho seria imprudência. Pus-me em campo com os camaradas, mas nada encontrámos, nem no mercado, nem na cidade. Em face disso, viemos esta manhã passar aqui uma busca, com a ordem de prisão no bolso. Já tínhamos virado tudo do avesso. Os Léonard cobriram-nos de insultos. Por fim, ocorre-me a ideia de abrir a masseira; estava cheia de farinha; remexo com a bainha do sabre. Os Léonard gritam que lhes dou cabo da farinha; mas eu não desisto e eis senão quando apanho um bocado de pano; começo a puxar e o pano a sair; era toda a peça da tia Martim. Os Léonard querem fugir mas os camaradas estavam de guarda às portas e janelas. Pren demo-los. Prendo também a rapariga, que grita a sua inocência. Conto a história do pano coberto de farinha.

A rapariga põe-se a chorar; a mãe atira-se a ela e o pai também. Se nós não lhe tirássemos a rapariga das mãos, faziam-na em bocados. Tudo isso durou algum tempo e começou ajuntarse gente; mais do que é para desejar, porque custa muito ver uma rapariga tão nova nesta situação, e encontrar pais que contribuíram com o seu mau exemplo para a desgraça de uma filha: - Você é um homem honrado e digno - disse o Sr. Rugés, estendendo- lhe a mão. - O sentimento de humanidade que manifesta para com esta gente que o cobriu de insultos é nobre e generoso. O polícia pegou na mão do Sr. Rugés e apertou-a comovidamente. - A nossa função é, por vezes, penosa, e pouca gente a vê com bons olhos; muito raramente encontramos quem a compreenda como V. Ex.a. Leão e João tinham, atentamente, escutado a narrativa. As senhoras e os pequenos haviam-se também aproximado para ouvir os Léonard. Entretanto recomeçaram os insultos e gritos, e as senhoras pensaram que, na impossibilidade de fazerem então alguma coisa a favor dos desgraçados moleiros, era mais sensato afastarem-se, evitando, assim, que as crianças se impressionassem com aquele triste espectáculo. A Joaninha foi separada dos pais, porque estes, apesar de algemados, queriam ainda maltratá-la. As Sr.as de Fleurville e de Rosbourg e os companheiros de passeio dirigiram-se para um ponto da floresta afastado do moinho, donde se não via nem ouvia o que ali se passava. As crianças caminhavam tristes e silenciosas. O Sr. Rugés mandou fazer alto e dispor no chão as provisões que traziam. As crianças não se fizeram rogadas; comeram com muito apetite daquela merenda rústica: queijo, requeijão, manteiga, bolachas e morangos silvestres. Conversaram, enquanto comiam, sobre a Joaninha e os pais. Leão - Como é que Joaninha chegou a ponto de roubar e vender o pano com tal audácia? A Sr. a de Fleurville - O pai e a mãe deram-lhe exemplos de roubos e mentira. A mim também muitas vezes roubaram, fazendo-se ajudar por ela. A pequena acabou por querer tirar, desses roubos, proveito próprio. Camila - Mas como podia ela ir à igreja e ao catecismo? Como é que não receava que Deus a castigasse pela sua maldade? A Sr.a de Fleurville - Portava-se na igreja muito mal bocejava, espreguiçava-se, deitava-se nos bancos; Isto prova que a sua intenção, ao ir à igreja, não era rezar. Madalena - Mas ela deve ter aprendido no catecismo que se não deve roubar. A Sr.a de Fleurville - Aprender, aprendia ela, mas sem prestar atenção ao que aprendia. João - Ah meu Deus! É justamente o que se passa connosco: se fizéssemos tudo o que o catecismo ensina nunca cometeríamos nenhuma má acção. Leão - Ora, João, fala por ti e deixa os outros! Eu, pela minha parte, faço tudo quanto o catecismo manda.

Tiago - Com essa não me iludes tu! Leão - Estás a meter-te onde não és chamado, falando do que não entendes. Tiago - Inspiras-te, para essa resposta, no catecismo? E será ele que te aconselha a bateres-me quando estás zangado, a dizeres tolices e, ainda, a fazeres toda a espécie de maldades? Leão - Que grande tolo! Se não fosses um miúdo, obrigava-te a mudar de tom. Tiago - Se eu não fosse um miúdo e, principalmente, se não fosse o meu pai e o meu tio... O Sr. Traypi, severamente - Cala-te, Tiago; estás sempre a provocar o Leão, que não brilha pela serenidade. Bem o sabes. Tiago - Sei muito bem, meu pai! e sei também que faço mal, mas é tão tentador arreliá-lo. O Sr. Traypi - Como? Que prazer podes encontrar em dizer coisas desagradáveis ao teu primo, mais velho do que tu? Tiago - Mas é justamente por ser mais velho; e como o pai estava perto para me defender. O Sr. Traypi, severamente - Procedes mal, Tiago! Não está bem; não tornes a fazer o que fizeste. O Sr. Rùgés - Também tu, Leão, mereces reprimenda, e mais severa que Tiago, visto seres o mais crescido de ambos. Leão - Suponho que, desta vez, não fiz nada de mal. O Sr. Rugés - Foste orgulhoso, impertinente, aborrecido; não tornes a fazer outra! Fica sabendo que, se eu entrar nas tuas discussões, não será para me pôr a teu lado. - Para esquecer tudo - disse a Sr. a de Fleurville levantando-se-, proponho que vamos jogar as escondidas todos nós, grandes e miúdos, novos e velhos. - Bravo, bravo! Há-de ser divertido - exclamaram as crianças, em coro. - Vamos ver quem é que fica. - Devem ficar dois - disse a Sr.a de Rosbourg- seria muito dificil um só agarrar alguém. - Então fico eu e a minha irmã - disse o Sr. Traypi-, depois, o Sr. Rugés e a Sr.a de Rosbourg; irão, sucessivamente, ficando os que se deixarem agarrar. Uma. duas. três! Começou o jogo! A malha é na árvore junto da qual nos encontramos. Todos dispersaram para se esconder nas moitas ou por detrás das árvores. - É proibido subir às árvores! - gritou Sr.a Traypi. - Hu hu! - gritavam de todos os lados.

a

- Pronto - disse o Sr. Traypi. - Vá por este lado, minha irmã; e eu procurarei pelo lado oposto. Lá foram devagarinho, cada qual pelo seu lado, caminhando na ponta dos pés, olhando por detrás das árvores, examinando as moitas. - Atenção! - gritou a Sr.a de Fleurville. - Oiço o estalar de ramos do vosso lado. - Apanhei um - exclamou o Sr. Traypi, metendo-se pelo mato dentro. Mas falara antes do tempo: Camila e João partiram como setas, chegando à malha antes que os agarrassem. Entretanto a Sr.a de Fleurville, descobrindo Leão e Madalena, pôs-se a correr

atrás deles;

.

o Sr. Traypi foi ajudá-la; enquanto os perseguiam, viram Margarida e Tiago que corriam para a malha. Julgando estes mais fáceis de apanhar, a Sr.a de Fleurville deixou os outros e pôs-se a perseguilos; mas, jovens como eram, e correndo muito mesmo a

mais, chegaram à malha no momento em que os ia

alcançar. Esfalfada, a Sr.a de Fleurville deitou-se a rir na relva, e ali ficou alguns instantes para tomar fôlego. Foi depois auxiliar o irmão, que se esforçava por apanhar Leão, Madalena e outros; quanto a Sofia, ainda não a tinham encontrado. À custa de habilidade e de perseverança,

o

Sr. Traypi acabou por os apanhar a todos,

apesar

das artimanhas de que usavam, no meio de grande gritaria e fazendo todos os esforços para lhe escapar.

- Sofia, Sofia! - gritavam-, diz

hu! para

sabermos de que lado estás. Ninguém respondia. A inquietação começou a apoderar-se da Sr. de Fleurville. - É estranho que não responda, se está realmente escondida - disse ela- oxalá lhe não tenha acontecido alguma desgraça. - Se calhar foi para longe de mais - disse o Sr. Rugés. - Queira Deus que não se perca, como há três anos! - replicou a Sr.a de Rosbourg. - Ah pobre Sofia - exclamaram Camila e Madalena. - Vamos procurá-la. - Vamos, vamos todos, mas que cada um dos pequenos vá acompanhado por um de nós - disse o Sr. Traypi. Dividiram-se em grupos e puseram-se todos à procura de Sofia, chamando em altas vozes. Ressoavam os gritos na floresta, mas nenhuma resposta se ouvia. A imquietação aumentava de momento a momento; as crianças procuravam com um interesse em que se traduzia afeição e receio. João e a Sr. de Rosbour julgaram, finalmente, ouvir uma voz abafada chamar por socorro. Pararam e puseram-se à escuta... Não se tinham enganado. Era Sofia quem chamava. - Soeorro! Socorro! Salvai-me, meus amigos! - Sofia, Sofia, onde estás? - gritou João, atónito. - Perto de ti, na árvore - respondeu Sofia. - Mas onde, onde? Meu Deus! Não vejo. E João, aflito, desolado, procurava, olhava para todos os

lados, para as árvores, para o mato, mas não via Sofia. Toda a gente viera para junto deles. Todos se empenhavam naquela busca ansiosa. - Sofia, querida Sofia - gritou Camila. - Onde estás? Em que árvore? Não há maneira de te vermos. Sofia, com voz abafada - Caí no tronco oco; morro se não me tiram daqui. - Que se há-de fazer? - exelamaram. - E se se fosse buscar uma corda?.. João reflectiu um momento, despiu o casaco e começou a subir pelo tronco acima. - Que vais fazer? - gritou Leão. - Cais lá dentro como lhe aconteceu a ela! -Imprudente-exclamou o Sr. Rugés. -Desce! Mas João trepava com agilidade tal, que prontamente chegou ao cimo do tronco apodrecido. Tiago seguira-o, e chegou junto dele antes que os pais tivessem tempo de lho impedir. Levava o casaco de João e tirou o seu. João, ao ver Sofia no fundo do tronco, exclamara: - Uma corda! uma corda! Tragam depressa uma corda! Logo Leão, Camila e Madalena começaram a correr em direcção ao moinho. Mas Tiago, seguindo a sua ideia, passou os dois casacos a João, que atou, ràpidamente, uma das mangas do seu a uma do de Tiago, improvisando assim, uma corda de salvação que meteu pelo buraco abaixo, dizendo: -Agarra-te bem, Sofia! Segura-te bem com

ambas as mãos. Tenta ajudar-te com os pés, na subida; nós puxamos. Auxiliado por Tiago, João puxou com toda a força. O Sr. Rugés tinha subido para junto deles e ajudou-os também a tirar a infeliz Sofia, cuja cabeça, pálida e alterada, apareceu no cimo do tronco. No mesmo instante começaram os casacos a rasgar-se. Sofia soltou agudo grito; João agarrou-lhe uma das mãos; o Sr. Rugés a outra, e retiraram-na assim daquela árvore, que estivera quase a servir-lhe de sepultura. Tiago desceu ràpidamente; o Sr. Rugés, mais devagar, segurando Sofia, meio desmaiada; e depois

;

João. A Sr.a de Fleurville e todas as outras senhoras rodearam a pobre menina. Margarida abraçou-a, a chorar, ao que Sofia respondeu, beijando-a com ternura. Logo que pôde falar, agradeceu a João e a Tiago, muito afectuosamente, o terem-na salvo. Quando Camila, Madalena e Leão chegaram arrastando uma corda de vinte metros de comprido, Sofia estava refeita do transe por que passara; levantou-se para caminhar ao encontro dos seus amigos; sorriu ao ver aquela corda tão grande. - Obrigada, queridos amigos - disse ela. - Julgavam-me, com certeza, no fundo de algum poço para trazerem uma corda tão comprida... Camila - Não sabíamos ao certo onde estavas e agarrámos na maior que nos apareceu à mão. Madalena - Sim, porque o Leão disse: De uma grande de mais não virá mal; sendo muito pequena pode ocasionar a morte de Sofia. Margarida - Pobre Sofia! Esta floresta é-nos fatal. A Sr.a de Fleurville - Aqui a temos já livre do terror por que passou; que ela nos explique agora como se deu o acidente. O Sr. Rugés - É verdade, tinha-se combinado não trepar às árvores.

Sofia, embaraçada - Eu queria... esconder-me melhor que os outros. Pus-me detrás deste carvalho, e pensava que, encobrindo-me com o tronco, não dariam comigo. A Sr.a Traypi - Ah, essa agora! Eu agarrei Madalena e Leão que estavam escondidos atrás de uma grossa árvore. Sofia -Justamente porque de longe os vi serem agarrados, procurei mais seguro esconderijo. Os ramos da árvore eram baixos, o que me permitiu subir de ramo em ramo. Margarida - Quer dizer que não respeitaste o combinado. Tiago - E que Deus te castigou. Sofia- É verdade, sim! Deus castigou-me. De ramo em ramo, cheguei a um ponto em que o tronco da árvore se separava em vários ramos muito grossos; havia uma reentrância coberta de folhas secas; nunca me passou pela cabeça o que ia acontecer. Subi e no momento em que pousava os pés no que eu supunha o ponto mais sólido da árvore, senti abaterem-se a casca e as folhas secas; e, antes de poder agarrar-me aos ramos, senti-me cair até ao fundo. Gritei, mas a voz era abafada pelo terror e também pela profundeza da concavidade onde caíra. joão - Pobre Sofia! Que angústia deves ter sentido! Sofia - Estava meio morta de medo. Cheguei a pensar que nunca mais davam comigo, porque compreendi que a minha voz não se ouvia do fundo do tronco. Voltou-me um pouco a coragem quando senti chamar de todos os lados; redobrei os esforços para gritar; ouvia-vos passar perto da árvore, e, com desânimo, reconheci que até vós não chegavam os meus gritos. Enfim, o nosso querido e corajoso João ouviu-me, e salvou-me com o auxílio do meu Tiago. joão - Foi ele quem teve a ideia de atar um ao outro os dois casacos. - um leãozinho - disse Madalena, beijando-o. Leão, com ar de zombaria - Chama-lhe antes esquilo, visto que sobe com agilidade às árvores. Margarida, com vivacidade - Cada um tem a sua agilidade; uns sobem às árvores como esquilos, correndo o perigo de se matarem; outros correm, como coelhos, cheios de medo! A Sr.a de Rosbourg - Margarida! Margarida! juízo! Margarida - Mas, minha mãe! Leão quer diminuir o mérito de Tiago; contudo, ele próprio achara perigoso ir em socorro da pobre Sofia. Leão - Alguém tinha de ir buscar a corda. Margarida - Olha que a tua corda serviu para uma grande coisa, não há dúvida!

A Sr.a de Fleurville - Vamos, meninos, nada de questões; tu, Leão, não te deixes cegar pela inveja, nem tu, Margarida, pela cólera, e agradeçamos a Deus ter tirado a pobre Sofia do perigo em que estava. Regressemos a casa; é tarde, e precisamos todos de repouso. Levantaram-se e dirigiram-se para casa, comentando, animadamente, os acontecimentos daquela manhã.

BIRIBI A Sr.a de Fleurville tinha um cão de guarda que as meninas haviam criado. chamava-se Biribi nome dado por Margarida e Tiago. Tinha dois anos; era corpulento e forte, da raça dos cães dos Pirinéus, que se medem com os ursos; fora sempre muito dócil para com a gente da casa e para com os pequenos, que brincavam muitas vezes com ele, o atrelavam a um carrito, e o atormentavam com as repetidas festas que lhe faziam; nunca, porém, viera de Biribi mordedura ou arranhadela. Um dia, o Sr, Traypi disse aos pequenos que ia lavar o seu cão de caça, Milorde, em águas de aloés. -Querem vir comigo? Ajudar-me-ão a lavarMilorde e a limpá-lo. - Sim, vamos - responderam, em coro, as crianças. Abandonaram Biribi, que estavam a atrelar a um carrinho de boneca, e correram, com o Sr. Traypi, à lavandaria, para verem lavar o cão. Milorde não estava lá com ar muito satisfeito. Quando o Sr. Traypi entrou, o pobre cachorro quis correr para ele, mas o cocheiro e um criado seguraram-no cada um por uma orelha, impedindo-o, assim, de se escapar. - Vamos, Milorde - disse o Sr. Traypi. - Salta: para dentro da selha. E ajudou o cão, segurando-o pela pele do pescoço. Milorde, dentro da selha, fez tais coisas, que começou a borrifar toda a gente. Madalena e Margarida, que estavam mais perto, foram as mais atingidas; uma gargalhada geral acolheu esta proeza do cachorro; o pai de Tiago também ficou muito molhado. - Paciência - disse ele -, mudaremos de roupa; agora aproveitemos o estar já molhados para lavarmos o Sr. Milorde o melhor possível. Todos os pequenos, com efeito, tomaram parte

na obra, contribuindo para o suplício do cão;

um

mergulhava-lhe o focinho, outro a cauda, outro ainda atirava-lhe água às orelhas. O pobre Milorde suportava aquilo tudo com ar tristonho; de tempos a tempos lambia a mesma mão que o cobria de água, como se pedisse compaixão. - Pobre cão - disse

Tiago. - Papá, deixa-o

sair, peço-lhe; faz-me pena. O Sr. Traypi - Não,

ele ainda não está tão

lavado como é preciso; deita-lhe mais água em vez de o lamentares. Margarida - Mas por

que motivo lhe dá este

banho, se ele anda limpo?.. O Sr. Traypi - É para lhe matar as pulgas; anda coberto delas. Leão - Mas então a água mata as pulgas? O Sr. Traypi - Mata-as quando tem em dissolução pó de aloés. Leão - Não sabia. joão - E empréga-se muito pó? O Sr. Traypi -Não, cinquenta gramas por litro de água. Tiago - Pois eu, quando for crescido, hei-de lavar os cavalos nesta água. Toda a gente se pôs a rir. O Sr. Traypi, a rir - Os cavalos não têm pulgas, meu lorpinha. Tiago, um tanto atrapalhado - Se não têm pulgas, têm moscas que os picam, e suponho que o aloés, assim como mata pulgas, também pode matar moscas.

O Sr. Traypi, sempre a rir - Isso não te posso dizer; nunca fiz a experiência. Estás a ver que não é muito fácil conseguir uma selha onde caiba um cavalo; e, mesmo quando a conseguíssemos, as moscas fugiriam e não se deixariam afogar! Leão - De mais a mais, como é que se havia de conseguir que o cavalo entrasse na selha? João - Eu é que não intentava consegui-lo. Entretanto, Milorde acabara o banho. Começaram a limpá-lo. Depois, deixaram-no ficar a secar-se ao sol; e em seguida, despejada a água da selha, toda a gente dispersou. Não se pensou mais em Milorde; os pequenos quiseram continuar a brincadeira com Biribi, mas este aproveitara a interrupção para desaparecer. No dia seguinte, o guarda veio dizer à Sr. de Fleurville que Biribi não fora ainda encontrado. Tiago - Pobre Biribi! Onde estará ele? A Sra de Fleurville - Foi, talvez, visitar alguns dos seus amigos, pelos arredores. Vai tu procurálo, Nicásio. Nicásio - Sim, minha senhora! Já de manhã o procurei e perguntei por ele, mas ninguém o viu. João - Se a tia dá licença, depois do almoço vamos procurá-lo pelas aldeias mais próximas, numa das quais é de esperar que se encontre. Sr. de Fleurville - Claro que dou licença! Nicásio irá convosco; mas não basta que eu ache bem: deveis pedir autorização a vossos pais para que eles se não inquietem com a vossa ausência. Sofia - É preciso levar qualquer coisa para a merenda. Camila - Não pedimos de comer à Sra Marel ou ao senhor Abade. Madalena - Em qualquer parte nos hão-de dar, pelo menos, pão e sidra. Tiago - Há-de ser um excelente passeio. Leão - Devemos partir logo depois do almoço, para haver tempo. joão - Não sem antes pedirmos licença aos nossos pais. Todos os pequenos, excepto Camila, Madalena e Sofia, que tinham já autorização, foram ter com os pais e pediram-lhes licença para dar aquele grande passeio. - Papá-disse Tiago, ao ouvido do Sr. Traypi-, venha connosco: o passeio torna-se, dessa maneira,

mais agradável. - Para ti, sim, mas não para os outros - respondeu o pai de Tiago, abraçando-o -, pois a minha presença constrangê-los-ia. Tiago - Oh! Como pode isso ser, se é tão bom? O Sr. Traypi - Tem paciência, meu filho; preciso de ir a três léguas daqui acompanhar o teu tio Rugés, numa visita. Tiago nada respondeu e foi-se embora a suspirar. Gostava muito do pai, que era bondoso e lhe falava claro, embora não o amimasse. Quando Tiago era pequenito e fazia perrices, o pai punha-o num canto e deixava-o gritar, depois de lhe dar duas ou três surras; e, quando era imcorrecto com um colega ou com um criado, obrigava-o a pedir desculpa. Se se deixava seduzir pelas gulodices um dia, privava-o delas no dia seguinte. Se desobedecia, mandava-o para o quarto, e nem o pai nem a mãe o beijavam até que pedisse desculpa. Deste modo, Tiago tornara-se uma criança encantadora, sempre alegre, porque nunca lhe ralhavam nem o castigavam; sempre afável, porque o tinham habituado a pensar mais nos outros do que em si. Gostava muito do pai e estimava a sua companhia, mas o Sr. Traypi tinha ocupações que lhe não permitiam fazer a vontade ao filho, e este; habituado a obedecer, obedecia sempre sem aborrecimento ou tristeza. Juntou-se o pequeno aos companheiros e esperaram todos; impacientemente, o momento da partida. Antes de iniciarem a excursão pediram ainda notícias do pobre Biribi; ninguém voltara a vê-lo. Partiram, acompanhados pelo guarda Nicásio, para Val, aldeola que ficava a um quarto de

légua do castelo. Entraram em casa dos Relmot: mas só lá encontraram o irmão, meio idiota, que respondia sim e não a todas as perguntas. Leão - Relmot, viste o nosso cão, o Biribi? Relmot - Sim. Leão - Quando o viste? Relmot - Não. Leão - Para onde o viste ir? Relmot não respondeu e pôs-se a rir com ar estúpido. Leão - Quando foi que o viste? Nada. kelmot pôs-se a brincar com os dedos. Leão - Anda, responde! Sabes onde está? Relmot - Não. Camila - Deixa o pobre rapaz, Leão! Vamos a casa dos Bernard. joão - Os Bernard! Não gosto dessa gente. Leão - Porquê? João - Não me parece honesta. Camila - Estás a dizer uma coisa sem fundamento. João - Vi-os há dois anos, e também aqui há poucos dias, cortar as pontas dos pinheiros. Madalena - Isso não me parece assim um crime. Nicásio - Crime, não diremos, claro mas não é coisa para agradecer. Em primeiro lugar, porque o pinheiro lhes não pertence, e, demais, sabem muito bem que cortar a ponta do pinheiro é inutilizar a árvore, que depois só serve para o lume. joão - E também Nicásio os apanhou a cortar árvores ainda tenras para fazer forcados e estacas: Nicásio - Que vendiam no mercado da cidade. Estou informado disso. Margarida - Seja como for, perguntemos por Biribi. Tiagoo - claro! Não viemos nós por causa dele? Os pequenos entraram em casa de Bernard, que estava a jantar com a mulher e os filhos.

- Bons dias, Bernard - disse Leão, delicadamentc- - Vimos perguntar-lhe se sabe alguma coisa do Biribi, que desapareceu esta manhã. Bernard, com ar hostil - Como hei-de eu saber? Importo-me tanto com o vosso cão como com o vosso guarda! - Olha, Bernard, não sejas malcriado com os meninos e as meninas. Falam-te com delicadeza, não falam? Responde tu do mesmo modo. Bernard - Acaba lá com o sermão! Não gosto de conselhos; faço o que entendo e ninguém tem nada com isso. Nicásio - Calas-te ou não? Insolente! Sem o respeito que devo aqui aos meus patrões, já te tinha feito engolir tudo o que disseste. Bernard levanta-se e avança de punho fechado ar de zombaria.

para Nicásio, que o olha, imóvel, com

Nicásio - Toca-me num só cabelo e verás! Bernard recua, proferindo ameaças; os pequenos, receando uma cena, fogem precipitadamente, excepto João, que se coloca perto de Nicásio, brandindo um pau, e Tiago que, do outro lado, estende os punhos como para arremeter. Leão - João! João! Anda daí. Não hás-de agora pegar à pancada com esse tipo. joão - Não vou deixar o Nicásio sem auxílio. Nicásio - Muito obrigado, meus meninos mas tanto a coragem dos pequenos como a minha força contra este cavalheiro, cuja cobardia é ainda maior do que a maldade, não têm emprego. Ele já avaliou um dia o peso dos meus punhos. Bom, boas tardes -concluiu Nicásio com ar zombeteiro, cumprimentando Bernard e a família. - Comam bem, não se incomodem connosco. E saiu com João e Tiago. Nicásio - O que fizeram é, na verdade, próprio de rapazes corajosos; porque, afinal, não podiam adivinhar que Bernard é um poltrão. joão - Tiago é que foi corajoso; quanto a mim, já sou bastante crescido para me defender. Nicásio - Pois sim, mas outros nas mesmas condições fugiam, como fez o menino Leão, sem ofensa.

Mas caluda! Já chegamos ao pé deles. Margarida - Então, resolveu-se tudo bem? O meu Tiagozinho não ficou ferido? Leão - Ferido? Essa é boa! Então tu julgaste que iam pegar à pancada, a sério? Margarida - E tu porque é que fugiste? Leão - Eu? Eu não fugi, retirei-me para proteger as meninas. Margarida - Bela protecção a tua! Corrias vinte passos à nossa frente! Leão - Era para vos indicar o caminho. Margarida, a rir-É muito mais simples confessar que tiveste medo e fugiste. Leão, indignado - Se fosses um rapaz e do meu tamanho, verias o resultado das tuas piadinhas. Margarida, a rir - Isso! Via mas era as tuas costas e os tacões dos teus sapatos, porque és prudente; foges da guerra e amas a paz. João e Tiago riam durante aquela discussão; Camila e Madalena mostravam-se imquietas; Sofia aplaudia com os olhos e com um sorriso; Nicásio parecia encantado. Leão, vermelho de cólera, com olhares de raiva, teria enchido Margarida de socos, se pudesse. Camila desviou aquela perigosa conversa, propondo que continuassem a pesquisa. - Estamos a perder tempo - disse - e ainda falta ir a tantos lugares e a tantas casas! Continuaram a caminhada. Leão seguia um pouco contrafeito, mas acabou por se pôr mais à vontade e rir como os outros. Em parte alguma Biribi tinha

sido visto; várius campónios disseram que o cão fora, talvez, morto por Bernard, que se queixava de ele lhe ir aos coelhos e ameaçava estrangulá-lo da primeira vez que o apanhasse. Os pequenos só pelas seis horas regressaram, fatigados mas contentes com o excelente passeio; tinham merendado em casa do senhor Abade, que lhes dera pão com manteiga, cerejas e licor. - Bom; meninos que notícias trazem? - perguntaram os pais, que os esperavam na sala de estar. - Nenhumas, minha mãe - respondeu Camila à Sr. de Fleurville. - Disseram-nos que Bernard tinha provàvelmente matado o cão, mas não é certo. A Sr.a de Fleurville - Porque se lhe há-de atribuir tanta maldade? Leão - Porque disse a várias pessoas que havia de o fazer. A Sra de Fleurville - Se ele quisesse matar o cão, não o dizia. Tiago - No entanto, tia, Nicásio admite essa possibilidade, porque Biribi lhe andava a fazer namoro aos coelhos e Bernard receava que ele lhos comesse. A Sr.a de Fleurville - Se assim for, queixo-me ao juiz de paz; esse Bernard anda sempre a fazer-me partidas. Mas nem por isso Biribi aparecia mais depressa; procuraram-no ainda no dia seguinte; depois, deixaram de pensar nele. No terceiro dia, após o desaparecimento do cão, os pequenos, ao saírem de manhã cedo para

irem tomar o pequeno almoço a casa do feitor, avistaram, por entre as árvores, um grupo de pessoas reunidas em volta da lavandaria. - Vamos ver o que é aquilo - disse Tiago. - Sim, corramos - responderam os outros: Aproximaram-se. Os do grupo afastaram-se para os deixarem passar, e as crianças viram o pobre Biribi, magro, firmando-se a custo nas patas dianteiras, a comer, àvidamente, uma terrina de sopa. - Biribi! Biribi! - exclamaram as crianças. - Quem é que o encontrou? Onde estava ele? -Na lavandaria-respondeu Martinho. -Pobre bicho, ficou ali fechado três dias! Madalena - Mas como o fecharam? Martinho - Foi quando estivemos a lavar o outro cão; Biribi entrou na lavandaria sem darmos por isso, e, ao sair, fechámos a porta, deixando-o lá ficar. Camila - E quem teve a ideia de ir à lavandaria? Martinho - Foram as criadas que, hoje, ao entrar, encontraram o pobre cão caído junto da porta; nãó se podia mexer. As mulheres chamaram-me; eu que, felizmente, estava perto, vim logo e percebi imediatamente que o pobre Biribi não tinha raiva, mas sim fome e sede. Mandei buscar uma terrina de sopa entretanto, dei-lhe de beber. - Como está magro - disse Sofia. - E como parece ter enfraquecido - replicou Tiago. Martinho - A sopa põe-no fino, vão ver. Dorme uma boa soneca e depois nem parece o mesmo. Assim foi; logo que Biribi comeu a sopa, levantou-se, foi para a sua barraca, caminhando com dificuldade, enroscou-se e adormeceu. Ao acordar comeu outra terrina de sopa e logo pareceu restaurar as forças e ficar alegre. Os pequenos foram contar aos pais a aventura de Biribi e falaram dela durante parte do dia. Foi a partir de então que a Sr.ag de Fleurville ordenou que, quando fechassem a lavandaria, olhassem sempre, com cuidado, antes de o fazer. Biribi, esse, nem se atrevia agora a aproximar-se da porta. Uma noite, apesar das precauções, ficou lá fechado um gato. Quando abriram a porta na manhã seguinte, o gato saiu lá de dentro com tal precipitação, que o Martinho, por momentos, julgou que que fosse o Demónio em pessoa; o bichano era preto, e Martinho nada mais vira que dois olhos fosforescentes. Ao voltar-se reconheceu o gato do caseiro e riu, com as crianças, do seu engano.

ENCONTRO INESPERADO

-Gosto muito da floresta onde se encontra o moinho - disse um dia Leão às meninas. - Pois eu não - respondeu Sofia... joão - Mas porquê? Se é tão bonita... Sofia - Acontecem ali sempre desgraças. Não gosto nada de lá ir. Leão - Não vejo que desgraça lá tenha acontecido! É um bom sítio para brincar. Sofia - Sim, tu brincas; mas olha que eu não achei nada bom ter caído dentro da árvore oca. Leão - A culpa foi tua! Sofia - Não digo que não; apesar disso não gostei da brincadeira. Leão - Mas então sentias-te assim aflita naquele tronco? Sofia, impacientt - Que pergunta! Já te disse que me sentia asfixiada! Não vês que eu estava no fundo do tronco, com o corpo entalado? Leão - Ora! Se fosse eu, tinha-me livrado sem dificuldade. Sofia - Ai, sim? Gostava de te ver. Leão - Podes crer que não precisava do auxílio de ninguEm. joão, com ironia - Isso é prosápia, meu velho. Tiago - Pode experimentar-se, nada mais fácil. Vamos à floresta, o Leão sobe para o tronco, deixa-se cair, e, como não precisa do nosso auxilio, trata de se pôr cá fora sòzinho. Queres? Leão, embaraÇado - Fá-lo-ia sem dúvida alguma... se. Tiago, rindo -Se... quê? Leão - Se não fosse o atemorizar as meninas, que poderiam supor. recear. Tiago - Recear quê? Desde que és tão corajoso. Leão - E porque não vais tu, que me aconselhas a proeza? TIago - Eu não vou, porque vejo perigo nisso, e não por medo. Leão, irónico - Medo, tu que fazes sempre de corajoso? Tu que sempre te atiras para o meio de perigos imexistentes, procurando obter a reputação de um Gérard-Caçador-de-Leões? Tu tères medo, tu, Tiago o temerário, o guerreiro? joão - A mim não me admira; precisamente porque ele possui a verdadeira coragem, que o leva a socorrer os outros nos perigos e não a mostrar bravata.

LEão - Hei-de provar-vos que sou mais corajoso que Tiago. Vamos à floresta, deixar-me-ei cair no tronco oco. Só quero pedir licença ao pai. joão - Ah! Ah! Essa é boa! É uma maneira de te saíres bem deste embaraço, porque sabes que o pai não dá autorização. Leão - Dá, se pensar, como eu, que não há perigo algum. Vão ver. Leão, seguido dos outros, foi ao quarto do pai, que encontrou a falar com o Sr. Traypi. Estavam a rir quando perguntaram a Leão o que queria: - Pai, venho pedir-lhe licença para ir à floresta do moinho com as minhas primas. O Sr. Rugés - Para quê? Leão - Para me meter no tronco oco daquela árvore onde Sofia pretende ter estado outro dia quase a morrer abafada. O Sr. Rugés, a sorrir - Não receias entrar no tronco e não poderes voltar a sair? Leão - Não, pai. no entanto, se o pai não dá licença. O Sr. Rugés - Dou, dou, podes ir; só te recomendo prudência. Leão, inquieto - Se o pai receia o mínimo acidente; desisto dos meus propósitos; não quero dar-lhe um desgosto. Direi às primas, ao João e àquele trocista do Tiago que o pai não acha a aventura sensata. O Sr. Rugés - Não, não, faz a experiência, acho bem. Eu próprio os acompanharei para assistir ao teu corajoso acto... acto de coragem inútil, é certo, mas que, enfim, fará calar as línguas viperinas que te acusam de falar de audácia. LEão, abatzdo - Pai, agradeço-lhe... claro que vou. eu não tenho. medo. tenho desejo de lhes mostrar. que. não há. perigo nenhum. Mas talvez a mãe não fique... contente... quando souber. O Sr. Rugés, impaciente-Ora adeus! meu rapaz! para quê licença da tua mãe desde que eu te autorizo? Vamos, vamos embora. E tu, Traypi, vens connosco? O irmão, sorrindo, acedeu a acompanhá-los. - Meu tio - disse Camila ao Sr. Rugés -, não acha imprudente levar isto por diante? O Sr. Rugés - Querida sobrinha! o teu tio e eu ouvimos toda a vossa conversa; para castigar Leão pelas suas bravatas de cobardia é que eu o incito a este acto de coragem; mas nem ele o levará por diante, nem eu o permitiria. Será bastante castigo o medo que sentirá durante a caminhada. Aí vem ele, foi buscar o chapéu: repara na sua palidez. Os pequenos, perante a atitude do Sr. Rogés, nanifestaram grande inquietação.

Camila - Oh meu tio, faz-me tanta pena; pobre rapaz! Como treme a descer as escadas: Deixeme tranquilizá-lo com duas palavras. O SR Rugés -Não, Camila, quero dar-lhe esta lição, pois precisa muito dela. Só te permito que tranquilizes os outros vossos companheiros: Dize-Lhes que Leão não corre perigo algum. Tinham começado a caminhar muito tristemente, apreensivos pelo perigo que ia correr Leão, e espantados de que o Sr. Rugés tomasse parte naquilo. Camila andou a falar com um e com outro; à medida que lhes falava, desvanecia-se a tristeza das crianças; cochichavam e riam. olhavam Leão com ar malicioso. Este, que não suspeitava do que havia, julgando caminhar para a morte, ia-se deixando ficar para trás; seguia tristemente, de cabeça baixa e rosto pálido; respondia por monossílabos aos irónicos cumprimentos com que o saudavam pela sua coragem. Quando de longe avistou o velho carvalho que, segundo julgava, ia servir-lhe de túmulo, o terror aumentou, e, não sendo já capaz de simular uma coragem que não possuía, escapou-se, fugindo por um caminho lateral, enquanto os outros continuavam a marcha. O Sr. Rugés vira o estratagema de Leão e fê-lo notar em voz baixa ao Sr. Traypi. E que se há-de fazer agora? Não sei como havemos de sair desta dificuldade. O Sr. Traipy - Finge procurá-lo; quando o encontrares, censura-lhe a sua cobardia; e, quando o convenceres a subir à árvore, eu intervenho. Chenaram ao pé da árvore e os pequenos começaram a notar o desaparecimento de Leão, quando se ouviu um grito de terror. Os Srs. Rugés e Traypi iam correr na direcção do grito, quando viram Leão sair da mata a chamar por socorro e seguido de um homem pobremente vestido, com um pau na mão. O homem, ao vê-los, dirigiu- se para eles e cumprimentou-os, tirando o seu velho chapéu. - Que foi? - disse o Sr. Rugés. - Quem é o senhor? Que aconteceu a meu filho? O Homem - Não posso explicar-Lhe por que motivo o menino ficou tão assustado. O que sei é que eu ia para a aldeia de Fleurville; como estava cansado, adormeci à sombra de uma árvore; ao acordar, vi, perto de mim, este menino aninhado por detrás de uma moita; não me via nem tão-pouco viu aproximar-se dele uma grande víbora que estava quase a tocar-Lhe num pé. Não tinha tempo de o avisar: ao mais pequeno movimento, a víbora tê-lo-ia picado; não disse palavra: dei um salto, levantei o menino nos braços e pu-lo no atalho; ele soltou um grito como se tivesse sido agarrado pelo Diabo, e correu como se o próprio Diabo o perseguisse. O Sr. Rugés logo percebeu que o filho, -já muito abatido pela comoção, nem pudera resistir ao terror que lhe causara o brusco contacto de um desconhecido que tomara por ladrão. Enquanto o pai e o tio o envergonhavam pela sua conduta, as crianças examinavam o desconhecido.

Desde que ele aparecera, Sofia olhava-o com surpresa mesclada de comoção; tentava recordar-se. parecia-Lhe ter já visto algures aquele rosto queimado do Sol, aquela face simpática e bondosa; parecia-lhe não ser a primeira vez que ouvia aquela voz. O homem, por seu turno, depois de ter olhado sucessivamente todas as crianças, detivera o olhar em Sofia; o espanto pintou-se no seu rosto e deu lugar à comoção. - Menina - disse ele, com voz trémula -, desculpe; a menina não se chama Sofia de Réan? - Sim - respondeu Sofia -, é esse o meu nome; sou Sofia. Creio que também o reconheço acrescentou ela, passando a mão pela fronte... Mas há tanto. tempo. O senhor não é o Normando - perguntou ela, com vivacidade. - Sim, lembro- me... do Normando. - O Homem - Sou eu, sou eu, menina. E como é que a menina escapou do naufrágio? Julguei que tivesse morrido com o seu pai! SofiA, comovida-O meu pai salvou-me, já nem sei como foi. Também desconheço o destino de meu primo Paulo, que ficara junto do capitão. O Homem - Oh menina Réan, como me sinto contente por voltar a vê-la! Quem havia de dizer que a querida Sofiazinha, que eu julgava no fundo do mar, estava cheia de vida e saúde na minha querida Normandia! Os pequenos ficaram admirados por verem que Sofia e o homem já se conheciam. Nenhum deles sabia a história do naufrágio. Também não compreendiam por que motivo o homem lhe chamava menina Réan. Só lhe conheciam o nome de Fichini. Leão, muito envergonhado com o que se dera, ficou satisfeitíssimo ao ver a atenção geral concentrar- se em Sofia e no desconhecido. Sofia contínuou a interrogar aquele que ela chamava Normando. Sofia - Então não me diz o que aconteceu a Paulo? Morreu no naufrágio? O Hómem - Não, menina. Quando o comandante viu que os escaleres se tinham afastado, que muita gente desaparecera nas águas, e que já não havia ninguém a bordo, ralhou-me por não me ter salvo com os outros. Eu respondi-lhe que não abandonaria o meu comandante nem o meu navio. Apertou-me a mão e olhou com ar carinhoso o vosso primo, que chorava baixinho, agarrado a ele. Trataremos agora de nós, meu Normando - disse-me: Temos de sair daqui; o barco não se aguenta uma hora. Resolvemos o que havia a fazer e, dentro de dez minutos, tínhamos uma jangada. pusemos nela o que se pôde apanhar de provisões: biscoitos, água potável; o comandante levou a bússola e atou um machado à cinta. Lançámos a jangada à água. O comandante saltou com Paulo nos braços; eu cortei a corda que nos ligava ao navio prestes a soçobrar. Não me tinham esquecido os remos, e por isso logo tratei de afastar a

jangada. O comandante limpou uma lágrima que lhe brilhava nos olhos desde que saíra do navio. Olhou em volta: cá em baixo nada se via, chegava-nos apenas o rugido do mar; no alto brilhavam as estrelas; ele examinou-as e mostrou-se satisfeito. Não estamos longe de terra disse. - Rema bem, meu normando, mas não de maneira que te fatigues. Q, Quando te cansares, tomo eu o teu lugar. Sofia - Mas que fazia e dizia entretanto o meu querido Paulo? O HomEM - para lhe dizer a verdade, não sei lá muito bem. Suponho que não deixou de chorar. O comandante fazia-lhe festas, procurava tranquilizá-lo, dizia-lhe que nunca o abandonaria, que dormisse: Eu remava sempre, revezando-me com o comandante, e tão bem remámos, que ao despontar do dia, o ouvi gritar Terra! Pus-me em pé de um pulo e vi que nos aproximávamos do que me pareceu ser uma ilha. Acostámos e achámo-nos, depois de desembarcar, num belo país verdejante e coberto de flores. Foi assim que Deus nos salvou. SOfia - Mas então Paulo não morreu? Onde está? Que é feito dele? O HoMEM - Não lho posso dizer, minha rica menina. Os selvagens apanharam-nos. Mais tarde separaram-nos, levando o comandante e o Paulinho para. um lado e a mim para outro. Quando consegui escapar, procurei o meu bom comandante, mas sem resultado. Não sei o que aqueles diabos de peles-vermelhas fizeram dele. Eu, depois de lhes fugir, vivi quatro anos na floresta, e fui finalmente recolhido por um navio inglês. Mas os malditos andaram comigo aos tombos seis meses antes de me desembarcarem no Havre; donde voltei à minha terra sem demora para procurar a mulher e a filha que cá deixei. - Pobre Paulo - disse Sofia, limpando os olhos. Os Srs. Rugés e Traypi tinham prestado grande atenção à curta narrativa do Normando. Enquanto lhe pediam pormenores sobre as suas aventuras, as crianças cercaram Sofia. Margarida - Então já estiveste num naufrágio? Madalena - A tua mãe e o teu pai afogaram-se? E como é que tu te salvaste? Tiago - Quem é esse Paulo de quem falaram? Camila - É extraordinário nunca nos teres dito nada! Leão - Porque é que este homem te chama menina Réan? joão - Não supunha que tivesses sido tão desgraÇada, minha pobre Sofia! Falavam

todos ao mesmo tempo; Sofia tinha

dificuldade em responder-lhes. Sofia - Sim, sofri muito. Nunca falei nisto, porque meu pai e a minha madrasta me tinham proibido de lembrar o passado. Acabei por não pensar nele e esqueci-o.

Quando tudo aquilo aconteceu, ainda não

tinha quatro anos. LeÃo - Hás-de contar-nos tudo, sim, Sofia?

Deve

ser muito interessante. joão - Não

deves contar, não contes, minha

pobre Sofia; evocar esses tristes momentos seria doloroso para ti. - Olha, João; já lá vai tanto tempo, que posso falar nisso sem tristeza. Ir-vos-ei contando tudo de que me lembrar. joão - Porque é que o Normando te chama menina Réan? Sofia - Esse era o meu nome de baptismo: Margarida - E porque mudaste depois de nome? Camila - Espera!

Eu recordo-me de que, quando

éramos pequenitas e íamos a tua casa, os teus pais se chamavam os Srs.

Réan; recordo ainda vagamente

os teus tios d'Aubert e um pequenino, como nós, Oaulo d'Auben, teu primo. - Sofia - Isso mesmo e, depois de estar sem vos ver três anos, voltei com a minha madrasta, a Sra Fichini, e encontrei Margarida, que não conhecia e que habitava convosco. Tiago - Mas porque - usas tu agora o nome de Fichini? Sofia - Não sei bem. suponho que o pai foi à América ver um amigo de infância, o Sr. Fichini, que lhe deixou uma fortuna com a condição de ele usar o seu nome. Tiago - Fichini é um nome feio; acho Réan mais bonito. Sofia - Mas que será feito do meu pobre Paulo? Pelo que diz o Normando, é possível que viva ainda.

Leão -Não é possível cinco anos depois. joão - Como? Então o Normando não voltou? Leão - O Normando não é nenhuma criança. joão - Mas Paulo estava junto do comandante. LEão - É provável que os selvagens o comessem. Sofia soltou um grito de horror. - Cala-te, Leão - disse João, zangado. - Pareces procurar motivos para afligires ainda mais a pobre Sofia: Leão, melindrado - Então agora também não se pode falar? joão - Para só se dizerem coisas desagradáveis é melhor estar calado. Sofia chorava; Tiago abraçava-a, deitando a Leão olhares furiosos. Camila, Madalena, Margarida e João consolavam e tranquilizavam Sofia o melhor que podiam, olhando para Leão com ar de censura. Acabaram por fazê-la acreditar que o primo vivia e voltaría breve. Leão arrependera-se já do que dissera, mas não queria dá-lo a perceber. - Meninos - disse o Sr. Rugés, aproximando-ee, muito comovido-, voltemos para casa. Não falem à Sr.a de Rosbourg no encontro que tivemos. Eu prepará-la-ei para receber a visita deste homem. Camila - Porquê, meu tio? Este senhor conhece-a? O Sr. Traypi - Este senhor é Lecomte, tripulante da Sybilla, que o Sr. de Rosbourg comandava. - O meu pobre pai - exclamou Margarida. Deixem-me falar-Lhe, deixem-me pedir-lhe notícias do meu pai. Normando aproximou-se, a um sinal do Sr. Traypi. - Aqui está - disse este - a filhinha do seu comandante. - A filha do meu comandante, do meu querido, do meu venerado comandante - exclamou o Normando. E, agarrando Margarida nos braços, deu-lhe três ou quatro sonoros e afectuosos beijos. - Desculpe, menina - disse ele, pondo-a no chão. -A gente faz isto sem pensar; não mo leve a mal. Meu pobre comandante, Quanto daria ele para estar no

meu lugar! - Então o senhor era assim amigo de meu pai? - perguntou Margarida, limpando as lágrimas. como? - Se era amigo? Amigo! Ah! menina, eu era capaz de dar o meu sangue, a minha vida por ele. E pensar que Deus o tinha salvo e que se não fossem aqueles malditos selvagens.. -O Sr. Rugés disse há momentos que o seu nome era Lecomt - continuou Margarida-e o senhor mesmo disse que andava à procura da sua mulher e da sua filha. A sua filha não se chama Lúcia? Lecomte - Sim, menina chama-se Lúcia e deve ter agora os seus catorze ou quinze anos. A menina naturalmente não a conhece nem à mãe. Madalena - Conhecemo-las muito bem. Moram aqui, na aldeia. Vivem na casa branca. Ao ouvir esta informação inesperada, o Normando ficou louco de alegria. Pôs-se a correr, chamando a mulher e a filha; depois, lembrando-se de que não conhecia o caminho da aldeia, voltou, ajoelhou-se no chão, fez o sinal-da-cruz, precipitou-se para Margarida, que beijou mais uma vez, apertou, as mãos de Sofia até a magoar e suplicou, finalmente, que o levassem a casa da mulher e da filha. - Meu bom Lecomte, calma - disse-lhe o Sr. Rugés. - Se chega junto de sua esposa e da pequena sem estarem preparadas, pode matá-las. Lembre-se de que se trata duma ausência de cinco anos, de que o consideram morto e de que é preciso habituá-las, com cuidado, à ideia da sua volta. Lecomte - Tem razão, senhor, tem muita razão! Já não sei o que digo, nem o que faço! Que felicidade! Que felicidade a minha! Como Deus é misericordioso e como recompensou a minha confiança! Peço-Lhe, há cinco anos, todas as manhãs e todas as noites, que me permita tornar a ver minha mulher e minha filha. E eis que, num dia apenas, não só me é dado voltar a vê-las, como encontro a filha do meu querido comandante e esta feliz menina Réan. Então, vamos?

Compreendem, não é verdade? Quando se esteve cinco anos a pedir a Deus que nos desse a alegria de tornar a ver os que amamos, não pode a gente estar calma ao sabê-los tão perto de nós. Seria capaz de andar seis léguas por hora para os ver mais depressa. - Vamos - responderam os Srs. Rugés e Traypi e todos os pequenos. Caminharam os mais novinhos tão depressa quanto podiam. Normando, ao ver Margarida ficar para trás, pegou nela ao colo e levou-a assim até à entrada da aldeia. Camila e Madalena contaram aos primos, pelo caminho, como é que nesta enorme floresta do moinho haviam encontrado uma rapariguinha em extrema aflição, contando que tinha a mãe doente e a morrer de fome; fora a Sr.a de Rosbourg que as socorrera e Lhes dera para habitação a casa branca da aldeia, ao saber que o marido desta mulher, chamado Lecomte, era tripulante do navio do Sr. de Rosbourg. Lúcia, excelente menina, trabalhava para ajudar. a mãe, tão enfraquecida pelos desgostos, que não podia realizar qualquer trabalho seguido: fiava e ficava em casa, enquanto Lúcia trabalhava a dias. Quando chegaram à entrada da aldeia, a cem passos da casa branca, os Srs. Rugés e Traypi obrigaram Leccomte a esperar ali, com os pequenos, ao passo que eles iam preparar a Sr.a Lecomte para receber o marido. Lecomte esperava, ansioso, a volta daqueles senhores e mal respondia às perguntas dos pequenos, quando uma rapariguinha de catorze ou quimze anos chgeou junto deles; vinha a pequena por um caminho diferente do que eles tinham seguido. - Lúcia! - exclamou Margarida. - Lúcia? Que Lúcia? - perguntou em voz baixa e trémula o pobre Lecomte, que julgava reconhecer a filha e cujo rosto empalidecera de modo impressionante. - Bons dias, minhas meninas e meus meninos - disse Lúcia, cumprimentando-os, com olhar surpreendidu. - Mas, meu Deus, que têm? Aconteceu alguma desgraça? Vejo-lhes um ar que mete medo! Camiila foi a primeira a recobrar a serenidade: - Não, Lúcia, não aconteceu nada, sossega! - Mas porque estão sem dizer nada, com ar tão esquisitu? (olhando Lecomte. ) Ah! um desconhecido. Talvez ele queira um copo de sidra e um pedaço de pão. Será por isso que os meninos estão assim preocupados? - Lúcia - exelamou Lecomte com voz estrangulada.Lllt C 1. Lúcia estremeceu; olhou, surpreendida; corou e empalideceu. - Não - disse ela -, É impossível... Parece que o reconheço. Mas não, não... Como havia de ser? E se fosse? - Teu pai - exclamou ele, correndo para ela e tomandu-a nos braços.

- Meu pai! meu pai! - repetiu Lúcia, agarrando-se-lhe ao pescoço. - O meu pai, que alegria! que felicidade! Meu pai, meu querido pai! Lúcia derramava lágrimas de felicidade; Lecomte chorava, cobrindo a filha de beijos. As crianças contemplavam a cena, enternecidas: Lecomte não se fatigava de olhar e beijar a filha, que seis anos de ausência lhe tinham tornado mais querida ainda. Crescera e estava mais bonita, mas ele achava que o rosto dela não mudara. - Ter-te-ia reconhecido entre mil - disse. - E a mim, como pudeste tu reconhecer-me? Lúcia - Meu bom pai, olhe que não mudou muito E depois eu pensei tanto e tantas vezes em si Sempre como se tivesse partido na véspera! De repente, lembrando-se da mãe: - Ah pobre mãezinha. Ora aqui está como a esqueço, na alegria de o tornar a ver! Vou a correr comunicar-lhe. E Lúcia ia deitar a correr para a casinha branca, quando o pai, agarrando-a, pronunciou: - Matá-la-ias ao dizer-lhe, sem mais preâmbulos, que voltei. Já lá estão dois senhores a prepará-la; vai ter com eles e ajuda-os a preparar a tua mãezinha. Vai. Lúcia prometeu ao pai dizer as coisas com jeito; e, correndo muito depressa para casa, entrou tão ofegante, com aspecto de tão radiosa alegria, que a mãe a encarou, surpreendida. - Mãe, querida mãe - exclamou Lúcia, abraçando-a. - Como me sinto contente, feliz! - Contente? Feliz? Mas que aconteceu? -E olhou inquieta para Lúcia, que não reteve as lágrimas, e, depois, para os Srs. Rugés e Traypi. - Feliz e estás a chorar? E estes senhores que me falavam há instantes de felicidade merecida. de um regresso. AhA começo a compreender! HÁ notícias. notícias de teu pai. Lúcia não respondia; abraçava a mãe, rindo e chorando ao mesmo tempo. A Sr. Lecomte - Mas responde, responde, anda. Senhores, por piedade, expliquem-me. Lúcia, fala. O teu pai? - Está junto de ti, minha mulher, minha Francisca - exclamou Lecomte, que seguira Lúcia. Tinha-se aproximado da porta que ficara aberta, ouvira tudo, e, não se podendo conter mais, correra para a mulher, quando a supôs bem preparada para o ver. Tomou-a nos braços, soltando um grito ao vê-la pálida e inanimada. - Matei-a, matei-a! - gritava. - Sou um estúpido! Bem podia ter esperado mais uns instantes. Mas custa muito! Saber que temos um ser querido a dois passos e, depois de seis anos de ausência, não o podermos abraçar, é superior às nossas forças! Minha Francisca, minha querida mulher, volta a ti; olha para mim; fala. Sou eu, o teu homem.

Lúcia dava vinagre a cheirar à mãe; o Sr. Rugés mandou-a estender no chão, e deitou-lhe algumas gotas de água no rosto. Lecomte, de joelhos, perto dela, segurava-lhe a cabeça nas mãos; Lúcia, ajoelhada, do outro lado, esfregava as fontes da mãe e molhava-Lhe os lábios com vinagre. Instantes depois, Francisca abriu os olhos, fitou Lúcia, sorriu-lhe e, sentindo que a amparavam do lado oposto, voltou a cabeça, olhou para o marido e, fazendo esforços por se erguer, deitou-se-Lhe ao pescoço e começou a soluçar. - Já chora! passou o perigo - disse o Sr. Rugés. -Nada mais temos a fazer aqui. Não perturbemos esta felicidade: ser- lhes-ia incómoda a presença de estranhos. E, sem se despedirem, saíram da casa branca, fechando a porta atrás de si e levando os pequenos que se tinham reunido no patamar para assistir à cena. Pouco falaram; sentiam-se todos comovidos com o espectáculo de felicidade que lhes fora dado contemplar. Todos aqueles acontecimentos inesperados tinham impressionado as crianças profundamente. O encontro com Lecomte quase fizera esquecer a prosápia e o medo de Leão. Sofia procurava evocar as suas antigas e já desvanecidas recordações para as contar aos amigos. O naufrágio, a morte da mãe, do tio, da tia e do primo, a quem ela amava como se Fosse um irmão, os perigos que correra, o segundo casamento do pai, seguido de perto pela morte deste último protector da sua infância abandonada, os maus tratos da madrasta - todos esses acontecimentos se lhe representavam tão vivamente na memória, que ela não podia agora compreender como lhe fora possível esquecê-los e não sentir, como agora, necessidade de aliviar o coração, contando-os aos outros. Perto do castelo, os Srs. Rugés e Traypi recomendaram às crianças que não falassem à Sr.a de Rosbourg no regresso de Lecomte, antes que eles mesmos o fizessem.

- É muito possível - disse o Sr. Traypi - que o Sr. de Rosbourg e Paulo tenham conseguido escapar, como aconteceu a Lecomte. Pelo que este me contou, os selvagens que os aprisionaram não são ferozes. Se se apoderam dos europeus não é para lhes fazerem mal, mas ùnicamente para obterem, em convívio com eles, conhecimentos que podem ser-Lhes úteis. As crianças prometeram nada dizer que pudesse entristecer ou perturbar a Sr.a de Rosbourg, e assim entraram no castelo: Leão muito satisfeito por ter escapado às censuras do pai, os outros muito preocupados com tudo o que poderia ocasionar o regresso de Lecomte.

VI O NAUfRÁGIO DE SOFIA Quando os meninos se encontraram sós, pediram a Sofia a narrativa do naufrágio. - Vamos para a nossa barraca - disse Tiago. - Estaremos lá muito à vontade, sem que a Sra de Rosbourg nos possa ouvir. Os pequenus acharam a ideia excelente e correram para o jardinzinho. Tiago, que correra mais do que os outros, esperava-os à porta da sua casinha; todos se sentaram o melhor que puderam, uns em cadeiras e tamboretes, outros na mesa e até no chão. Para Sofia tinha sido reservado o melhor lugar, numa velha poltrona. Ela começou a sua história no meio de grande silêncio. - Eu era muito pequenita, tinha menos de quatro anos, e tudo me esquecera; mas, tentando recordar-me, lembrei-me de muitas coisas, e, entre outras, da visita de despedida que vos fiz com o meu primo Paulo, minha mãe e a tia d'Aubert. Camila - Teu pai tinha partido antes, se bem me recordo. SoFIA - Esperava-nos em Paris. Eu sentia-me contente por partir. A mãe anunciara-nos uma viagem por mar. Era a primeira vez que via o mar na minha vida. Também gostava muito de Paulo e não queria separar- me dele. Não me recordo do que fizemos em Paris; creio que

poucos dias nos demorámos por lá. Depois fizemos uma viagem de comboio. Pernoitámos numa hospedaria, em Ruão, e chegámos, no dia seguinte, a uma grande cidade onde notei haver muitos macacos e papagaios. Pedi à mãe que me comprasse um, mas ela não me fez a vontade. Já não me recordo do que aconteceu no barco; só me lembro do capitão, excelente homem, que era, segundo parece, o teu pai, Margarida; muito bondoso foi para mim e para Paulo; dizia que gostava imenso de nós, que devíamos ficar com ele, pois nos serviria de pai. Havia também aquele marinheiro que reconheci e que se chamava Normando. A viagem durou nuito tempo. Quando chovia, tornava-se aborrecidíssima, porque éramos obrigados a ficar nos camarotes estreitos e abafados; mas quando estava bom tempo íamos passear para a ponte. MargarIda - Que ponte? Então nesse navio havia uma ponte? Sofia - Claro que não se trata de uma ponte como as que se fazem para atravessar os rios. É a parte mais alta do navio que se chama a ponte, onde vai o capitão e o homem do leme. Margarida - E não se corre perigo de cair ao mar? SOfia - Não, há uma espécie de varandim à volta. Toda a gente andava desassossegada; nem o capitão nem o Normando prestavam atenção a mim e ao Paulo. de repente ouvi enorme estrondo, e houve, ao mesmo tempo, tão violento abalo no navio, que caímos todos de costas. Comecei a ouvir gritos; passava gente a correr, outros deitavam-se de joelhos. O meu pai e o meu tio correram para a ponte, a mãe e a minha tia seguiram-nos. Com medo de ficarmos sós, eu e o meu primo subimos também. Paulo, logo que viu o capitão, agarrou-se-Lhe ao casaco: lembro-me de que este, muito agitado, dava ordens rápidas. Ouvi então: -

Escaleres ao mar! O capitão olhou-nos, agarrou-me,

beijou-me e disse: Vai, pequenita, vai com a tua mãe! Depois beijou Paulo, para se despedir assim, mas o meu primo não o largava: Quero ficar consigo- gritava. -Deixe-me ficar consigo. Não sei como foi. Lembro-me de que o meu pai me tomou nos braços e gritou: Alto! alto! já a encontrei! já a encontrei! E corria pelo convés fora. Quis saltar comigo para um escaler onde estavam minha mãe e meus tios, mas não chegou a tempo; o escaler afastava-se. Eu gritava: Mãezinha, mãezinha, não vás sem nós Meu pai olhava sem proferir palavra. Ficara tão pálido, que metia medo; e nunca mais a palidez desse instante o abandonou. Oiço ainda os gritos da minha mãe e da tia d'Aubert quando o barquito se afastou Sofia! Paulo! meu filho! meu marido! Mas não os ouvi por muito tempo: veio sobre eles uma vaga altíssima. Ouvi um grito horrível e nada mais se distinguiu. Minha mãe desaparecera e todos os seus companheiros com ela. Durante a noite passada avivaramse todos os pormenores da cena, alguns dos quais esquecera. joão - Pobre Sofia! Como pudeste salvar-te? Sofia- Já me lembro bem do que se passou nesse momento. O meu pai esteve a falar em voz baixa com o capitão, e este disse-Lhe: Juro-lho Beijaram ambos Paulo, e depois o Normando ajudou meu pai a descer comigo para dentro de uma enorme caixa que estava na água, junto ao navio. Eu chamava Paulo e chorava: vi-o lá em

cima a chorar também, nos braços do capitão, que o beijava. Depois as vagas afastaram-nos. Adormeci e não me lembro do que aconteceu. Mleu pai dava-me água de um barril e biscoitos; eu sentia um sono invencível. Quando, por momentos, acordava, via meu pai junto de mim a chorar, ou triste e pálido, sem proferir palavra. Um dia, não sei como, encontrei-me noutro navio. Meu pai adoecera; eu aborrecia- me, sentindo-me triste por não ver a minha mãe nem o meu querido Paulo; em outra altura, meu pai disse-me que o meu primo, o capitão e o Normando tinham morrido afogados no navio, que esbarrara contra algum rochedo. Mas pelo que ouvimos ao Normando. espero que o Paulo e o bondoso capitão se tenham salvo como nós nos salvámos. Sofia chorava ao terininar a história do naufrágio; os seus amigos choravam também. LeÃo - Mas isso tudo não explica por que motivo usas o nome de Fichini em vez de Réan. Sofia - Esqueci muitas coisas, porque o meu pai me proibiu que Lhe falasse no naufrágio e na morte da minha mãe; assim como não me permitia qualquer pergunta sobre o casamento com minha madrasta. Mas, ao tentar recordar-me, eis como reconstituí esse momento da minha vida: Quando chegámos à América, para onde nos dirigíamos, estivemos em casa de um amigo de meu pai, o Sr. Fichini, que morrera; e ouvi então falar de um testamento pelo qual aquele senhor deixava a meu pai e a minha tia toda a sua fortuna, com a condição de que usassem o seu nome e dessem a sua protecção a uma órfã que o Sr. Fichini recolhera. Meu pai continuava tão triste, que se preocupava pouco comigo. A órfã, que se chamava Fédora, tratara de meu pai e manifestava por mim grande estima. Algum tempo depois, meu pai casou com ela, e logo ela mudou completamente. Zangava-se com meu pai, que a olhava com ar triste e a deixava. Comigo, também, mudara por completo. ralhava-me e batia-me. Um dia, fugi para junto de meu pai com os braços, o pescoço e as costas vermelhos das vergastadas que me dera. Nunca esquecerei a cara de meu pai, quando lhe disse que minha madrasta me batera. Vi-o saltar da cadeira, pegar num chicote, ir ter com ela, agarrá-la por um braço, deitá-la ao chão, e dar-lhe tantas chicotadas, que ela mais uivava do que gritava. Em vão a minha madrasta tentava escapar-se; ele segurava-a de tal maneira com uma das mãos, enquanto com a outra lhe batia, que ela não o conseguiu. Quando a deixou levantar-se, tinha um aspecto de tanta maldade, que me encheu de medo: - Todas as pancadas que me deu, hei-de eu dá-las na sua filha. - De cada vez que se atreva a tocar-lhe para a maltratar - respondeu meu pai -, chicoteá-la-ei como hoj e, senhora. Saiu, levando-me consigo. No seu quarto, pegou em mim ao colo, cobriu-me de beijos, chorou muito e repetiu-me umas poucas de vezes: Perdoa, filha, minha pobre Sofia, o ter-te dado uma mulher destas por mãe! Oh! Perdoa-me! eu julgava-a bondosa e carinhosa; supunha que te tornaria feliz, que te amaria como te amava a tua pobre mãezinha. Ela dizia-me isso mesmo. E porque acreditei eu? Foi porque me sentia muito doente e não queria deixar-te neste mundo sem teres ninguém. E de novo me beijava e chorava. Eu chorava também; ele limpou-me as lágrimas, beijando-me, e prometeu levar-me para casa de uma das suas amigas, senhora muito bondosa, onde viveria feliz.

Mas - acrescentou Sofia, corando - nessa mesma noite teve um vómito de sangue, segundo depois me contaram os criados, e morreu no dia seguinte, apertando-me nos braços e pedindo-me perdão. Desde então - continuou Sofia, depois de alguns minutos de interrupção e de lágrimas - não podeis calcular a minha desgraça. A madrasta cumpriu a promessa, batendo-me com tanta crueldade, que todos os dias me apareciam no corpo mais pisaduras. CamIla, beijando-a - Sim, minha Sofia, por duas vezes verificámos a maldade da tua madrasta, o que foi um dos motivos da nossa amizade por ti. João - Que mulher! Se a visse, batia-lhe! O teu pai fèz muito bem em castigá-la; não merecia outra coisa. SofiA - Bem paguei esse castigo que meu pai lhe deu! Margarida - E que fazias tu? Como passavas o tempo? - SoFIa - Nada me distraía. estava quase sempre a chorar. Ao princípio conversava com os criados, que se compadeciam de mim; falava-lhes da minha pobre mãe e do meu pai. Mas ela soube disso, chamou-os e avisou-os de que o primeiro que me falasse ou me desse gulodices, como às vezes faziam, seria imediatamente despedido; mostrou-me depois umas cordas ainda mais grossas do que aquelas com que até então me batera, e disse-me que sempre que fizesse referência a meu pai, a minha mãe, ou ao meu passado, me chicotearia até me pôr o corpo em chaga; e para me fazer uma demonstração - disse ela- chicoteou-me de tal modo, que eu enrouqueci à força de gritar. Anda, menina - exclamou ela, quando se fartou -, agora vai-te queixar ao teu pai ! A indignação das crianças atingiu o máximo; uns choravam, outros rodeavam Sofia, abraçavam-na, prometiam-lhe amá-la sempre, para a compensar de quanto sofrera na infância. Sofia agradecia-lhes, correspondendo aos carinhos dos seus amigos. - Admira-me uma coisa - disse ela a Camila e Madalena - que vocês nunca me tenham falado dos meus pais ou de Paulo. Camila - Víamos-te pouquíssimas vezes. Depois da tua partida, quase te esquecemos. Lembro-me de que a minha mãe, uma vez, nos disse: Vão voltar a ver dentro de poucos dias a amiguinha Sofia; o seu nome é agora Fichini em vez de Réan; nunca lhe falem nem no pai nem na mãe, porque morreram, assim como o primo, a tia e o tio. Tem agora uma madrasta com quem vive; será essa senhora que vo-la trará por estes dias. Eis porque nunca te falámos do teu passado, e confesso que, depois de a nossa mãe nos ter dito aquilo, deixei mesmo de pensar nele. Madalena - E tu, porque não nos contaste isso tudo há mais tempo, vivendo nós juntas há três anos? SOfiA - Quase me tinha esquecido. Ao ver o Normando e ao ouvir o pouco que me disse, comecei a recurdar tudo o que vos contei. Mesmo agora, ao falar-vos do naufrágio e do

segundo casamento de meu pai, me ocorreram muitos pormenores; é como se estivesse a ver o bondoso capitão a abraçar Páulo, que chorava e lhe estendia as mãos, e o rosto pálido e desolado do meu pobre pai. Julgo ouvir os gritos de minha mãe e de minha tia quando o escaler se afastou e, em seguida, desapareceu nas águas. Outras cenas. de que me lembrei, depois de ver o Normando, foram a da morte de meu pai. singular como se pode ter esquecido durante tantos anos aquilo que, em certo momento nos acontece recordar com tal fidelidade. Fora longa a narrativa de Sofia; admiravam-se no castelo da ausência das crianças. O Sr. Rugés aproveitara o tempo preparando a Sr.a de Rosbourg para; o encontro de Lecomte, e hàbilmente a levara a encarar uma possibilidade de regresso do marido. Após duas horas de lágrimas e nervosismo, expectativa e esperança, ela pediu que o Sr. Rugés lhe trouxesse no dia seguinte o Normando, que receberia na sua saleta particular; queria falar-lhe sem testemunhas. - Sabes? Sabes que o teu querido paizinho pode ainda voltar? Vem comigo, minha filha; vem à igreja rezar a Deus pelo teu pai e pedir- lhe que no-lo restitua. SoFIa - Dá-me licença que a acompanhe, minha senhora? Rezarei também por aquele bom comandante. tão meu amigo, e pelo infeliz Paulo. Por única resposta, a Sr.a de Rosbourg beijou-a com ternura. As crianças pediram todas que Lhes fosse permitido juntar as suas orações às da Sr. de Rosbourg. A Sr.a de Fleurville, que acompanhava a sua amiga, consentiu, e partiram todos para a igreja a pedir a Deus- a volta dos pobres náufragos. Ao regressarem, traziam a íntima e segura convicção de terem sido ouvidas as suas orações, tão fervorosas haviam sido, tão confiantes na bondade divina. Quando chegaram, encontraram o Sr. Traypi a fazer a mala. - Parto para Paris - disse. - Resolvi ir ao Ministério da Marinha: talvez lá consiga saber alguma coisa. Falarei do regresso de Lecomte e do cativeiro do Sr. Rosbourg e do de Paulo. Quem sabe! Talvez traga boas notícias. - Excelente amigo, como lhe ficarei grata disse a Sra de Rosbourg, de lágrimas nos olhos. - Em amigos como vós, vejo sinais da protecção de Deus. Oxalá Ele me proteja até ao fim, restituindo-me o meu querido marido! No dia seguinte, de manhã, batiam de leve à porta da Sr.a de Rosbourg. - Entre - disse ela, com voz comovida. Abriu-se a porta; Lecomte entrou; mal se atrevia a levantar os olhos para a Sr. de Rosbourg que, pálida e trémula, caminhou para ele. Quis falarlhe, imterrogá-lo; tomou as rugosas e grossas mãos de Lecomte e apertou-as nas suas. Lecomte - Minha senhora, minha querida senhora, eu devia ajoelhar-me a seus pés para Lhe agradecer tudo quanto fez por minha mulher e por minha filha! Enquanto falava, amparou-a respeitosamente e ajudou-a a sentar-se numa poltrona. A Sr.a Rosbourg soluçava.

- Desculpe. esta fraqueza. - disse ela com a voz entrecortada de soluços. - Ao ver o amigo e companheiro dedicado do meu marido, perdi a coragem. Mas... hei-de ser capaz de me dominar... tenha paciência... mais alguns minutos... e poderei interrogá-lo para ver se me será possível alimentar alguma esperrança. Lecomte - Não se incomode, minha querida senhora! Vê-la chorar far-me- á bem. E deixe-me dizer-Lhe que me agrada ver as suas lágrimas, assim passados tantos anos, pelo meu bom comandante. Vejo quanto é digna dele. Excelente, nobre homem! Também ele chorava ao falar da senhora e da menina. Fazia-o às escondidas, mas quantas vezes o surpreendi limpando os olhos! Não, não lhe era fácil esconder-se de mim. Estimava-o tanto, que nunca o perdia de vista. Quando aqueles malditos selvagens me meteram num barco, separando-me dele, apesar de preso de pés e mãos, insultei-os o mais que pude. Pobre comandante! Não ter eu podido nesse momento cortar braços, pernas e cabeças para o libertar! Estas palavras deram tempo à Sr.a de Rosbourg para se refazer da primeira comoção. Depois de agradecer a Lecomte a amizade a seu marido, interrogou-o sobre os pormenores do naufrágio, desembarque, captura pelos selvagens e separação - pois o Sr. de Rosbourg e Paulo ficaram com uma tribo de selvagens, enquanto Lecomte era levado por outra. Depois de ter conversado duas horas com o Normando, radicou-se na sua alma a esperança da existência e do regresso do marido. - Obrigada, bom Lecomte - disse ela à despedida. - Nunca poderei encontrar palavras que traduzam o meu reconhecimento pela dedicação que testemunhou a meu marido: Sinto-me duplamente satisfeita por ter sido prestável à sua digna mulher e a sua boa filha. Lecomte - Desculpe, minha senhora, interrompê-la - exclamou, com vivacidade. -Prestável! Chama a isso ser prestável? A senhora foi uma providência para elas. Salvou-as da morte, livrou-as da miséria; socorreu-as, sustentou-as, mandou ensinar um ofício à minha Lúcia! foi a salvação delas e a minha. Oh, querida senhora, tenho o dever de a adorar como uma providência, de lhe agradecer de joelhos: E, dizendo isto, ajoelhou-se aos pés da Sr.a de Rosbourg e beijou-lhe a barra do vestido. Ela, comovida, agarrou-Lhe as mãos, que apertou. Ao levantar-se, Lecomte atreveu-se a beijá-las. Espantado com a sua própria ousadia, ergueu os olhos para a Sr. de Rosbourg, que sorriu e lhe fez um amistoso sinal de despedida. Saiu, comovido e contente.

VII NOVA SURPRESA O Sr. Traypi partira havia dois dias; esperavam, com impaciência, o seu regresso, ou, pelo menos, uma carta dele. Durante esses dois dias, a Sr.a de Rosbourg e Margarida, acompanhadas das crianças, foram de manhã e de tarde passar algumas horas à casa branca. A Sr.a de Rosbourg mandara fazer um fato a Lecomte e dera a Francisca dinheiro para a roupa branca, calçado e tudo o que fosse necessário. Agradava- lhe ver as faces radiosas de

Francisca, Lúcia e Lecomte, após o reencontro; esperava para si, da bondade de Deus, felicidade semelhante. Interrogava constantemente Lecomte sobre o marido, o naufrágio e as possibilidades de salvação: e de regresso. Ele, contente por falar do seu capitão, contava, sem fadiga, e nem à própria mulher permitia que o interrompesse. Lúcia, entretanto, brincava com as crianças; ensinava-lhes a fazer cestos com vimes, colares e pulseiras com cascas de avelãs ou bolotas furadas. Os pequenos ajudavam Lúcia a cavar e regar o jardim e a colher morangos, groselhas e framboesas. Margarida escapulia-se muitas vezes para dizer uma palavra amiga a Lecomte e ouvir o que ele contava de seu pai, do qual se não recordava, mas de quem gostava, por tanto ter ouvido falar dele à mãe. Lecomte beijava as mãozinhas de Margarida, os seus lindos caracóis negros ou as suas faces rosadas e gorduchas. - O meu pobre comandante - dizia ele, suspirando -, como se devia sentir contente ao vê-la! Na tarde do terceiro dia, depois de terem passado duas horas em casa de Lecomte e Francisca, regressava a Sr.a de Rosbourg com as crianças. Ao aproximar-se da escadaria, julgou reconhecer o Sr. Traypi. Ansiosa por saber se lhe trazia notícias do marido, apressou o passo e, ao subir ràpidamente os degraus da escada, deparou-se-lhe O Sr. de Rosbourg em pessoa. Ambos soltaram um grito de alegria; ela caiu nos braços do marido soluçando e dando graças a Deus. Não podia acreditar em tamanha felicidade. Ora beijava o marido, ora olhava para se certificar de que era bem ele; o coração trasbordava-lhe de alegria. Depois dos primeiros instantes de profunda comoção, o Sr. de Rosbourg, sem se desprender da esposa, olhou as crianças reunidas em volta e tentou reconhecer a sua Margarida; o olhar deteve-se em Sofia. - Sofia - exclamou. - Não me engano, não! Sofia de Réan. Pobre menina! Como se encontra ela aqui? Mas - acrescentou ele -, Margarida! minh1 Margarida! Não é aquela moreninha, que está a olhar para mim com uns olhos tão ternos? Margarida, como única resposta, lançou-se nos braços do pai, que a beijou de tal maneira, que as faces da pequena ficaram afogueadas. Depois de ter, centos de vezes, recomeçado a beijar a mulher e a filha, dirigiu-se a Sofia, e, pegando nela, beijou-a também. - Pobre pequenita - disse. - Que horríveis recordações me faz evocar! Onde se encontra o pai? E porque está ela convosco? - Meu bom comandante - respondeu Sofia -, explicar-lhe-ei depois tudo. O meu pobre pai morreu já há muito tempo - acrescentou, baixando a voz e limpando uma lágrima-; mas Paulo, o meu querido Paulo, onde está? Vive ainda? O Sr. de Rosbourg-Paulo tornou-se um rapaz desenvolto e bonito; ficou lá em cima a abrir as malas. Sofia - Oh! quero vê-lo, quero vê- lo. Em que quarto está, para o ir buscar? O Sr. de Rosbourg - No quarto contíguo ao de minha mulher; foi o que me destinaram e para onde Paulo mandou levar a bagagem.

Sofia correu ao quarto indicado; owiram-se gritos de alegria, saltos, risos, e, dentro em pouco, viu-se aparecer Sofia arrastando Paulo, bastante confuso por se encontrar na presença de tantas caras desconhecidas. - Anda cá, meu rapaz - gritou-Lhe o Sr. de Rosbourg -, vê bem que não são selvagens, não se corre perigo E que se corresse Tu não és homem para recuar! Por isso, anda, abraça os teus amigos. Minha mulher, primeiro, depois a minha Margaridmha, e também. Mas eu próprio não reconheço os outros. Entretanto, como nos encontramos em terra amiga, começaremos por os abraçar: dir-nos-ão como se chamam depois. Foi uma confusão de abraços e risos. O belo e amável rosto do Sr. de Rosbourg conquistava todas as crianças; o ar decidido, a alta estatura, o aspecto vigoroso e o rosto inteligente e bondoso de Paulo atraíram a confiante simpatia de todos. O Sr. de Rosbourg retirou-se, a rir, com a esposa; Sofia, apresentou Paulo aos seus amigos. -Apresento-te, em primeiro lugar, Margarida, filha do nosso bondoso capitão; é a mais nova de todos nós e é com ela que mais tenho brincado e questionado; havemos de te contar tudo isso. Estas são as minhas queridas amigas Camila e Madalena. São tão boas, que lhes chamam as meninas exemplares. Agora o nosso Tiago Traypi, atrevido, mas bondoso. Este é João Rugés, que tem doze anos como tu e como tu é corajoso e bom. Finalmente, Leão Rugés, o mais velho de todos nós, pois tem treze anos. Paulo em pouco tempo se sentiu à vontade com os novos amigos. Sofia interrogava-o sem descanso sobre o que lhe acontecera; ele prometeu que mais tarde contaria tudo. Falou do Sr. de Rosbourg com ternura e gratidão, que comoveram Margarida até às lágrimas. Margarida - Como é amigo de meu pai E como hei-de ser sua amiga! Paulo - Para o mostrar, tem de me tratar por Paulo e deitar o senhor>, fora. Margarida - É isso mesmo que eu quero quando nos conhecermos bem, amanhã por exemplo, havemos de nos tratar por tu. Paulo - E porque não havemos de começar agora mesmo? Eu já te conheço muito pelas conversas do teu pai, que me falava constantemente de ti. Margarida - Sofia não. nunca me falou de ti. Paulo -Já me tinhas esquecido, Sofia? SoFIa, tristemente - Nunca te esqueci. dormias no meu coração e não me atrevia a acordar-te. Julgava que me tinhas morrido, e, como sofri muito, tornei-me egoísta. só em mim pensava desabituei-me de pensar no passado e nos que me haviam amado. joão - Não acredite, Paulo. Sofia é muito bondosa e calunia-se a si própria. Pobre Sofia, ela contar-lhe-á o que durante três anos sofreu. Tiago caminhou para Paulo, e pondo-se na ponta dos pés, para o beijar, disse-lhe: - Leio-te nos olhos que hás-de ser para mim um amigo; hás-de sê-lo também para a Margaridinha, sim? Protegê-la-emos ambos, quando precisar de auxílio.

Paulo beijou Tiago, sorrindo, e prometeu-lhe ser amigo de um e de outro. Leão nada dizia; parecia sentido por Sofia o ter aprescntado sem qualquer referência amável. Deixou-se, contudo, abraçar por Paulo. Camila e Madalena sorriam e esperavam que o tempo lhes permitisse travar mais íntimo conhecimrnto. Em breve ouviram tocar para o jantar; todos se prepararam e se dirigiram à sala. A Sr.a de Rosbourg- entrou com aspecto radioso, pelo braço do marido, que trazia Margarida pela mão. A alegria, a satisfação transpareciam em todos. Sofia e Paulo tinham mil coisas a perguntar um ao outro. Sofia tanto e tanto falou, que, no fim do dia, lhe contara todos os acontecimentos importantes da sua vida, sucedidos depois de se separarem. As crianças obtiveram de Paulo a promessa de lhes contar o que lhe acontecera desde o naufrágio. O Sr. de Rosbourg fez a mesma promessa às senhoras e aos cavalheiros: - SoFIa - Mas dize-me, Paulo como vieste ter a Fleurville, e com quem? Paulo - Com o Sr. Traypi, que o comandante encontrou no Ministério, quando ali chegava a dar conhecimento do seu regresso e a explicar a sua denorada ausência. Estávamos em Paris havia meia hora: o comandante, impaciente por ver a esposa e a filha, de cujo paradeiro não fazia a menor ideia, e eu iuito sossegado, por estar longe de esperar ver-te com vida. Supunha que tivesses morrido com teu pai, naquela caixa onde te haviam metido, com aquela tempestade horrível de vagas altíssimas. SoFIa - Também supus o mesmo de ti. Foi pelo Normando que soube que estavas vivo e entre os selvagens. Paulo - O Normando? Viste o Normando? Onde? Quando? Onde se encontra? Quero abraçar ese homem corajoso, bom e fiel! Sentimos grande apreensão pelo seu destino, chegando a supor que os selvagens o tivessem matado. SoFIa - Chegou há três dias aqui, depois de ter fugido de entre os selvagens e andado quatro anos à vossa procura! Encontrámo-lo, por acaso, na floresta! Paulo - Excelente homem! Ainda bem que vou tornar a vê-lo! Margarida - Vamos vê-lo amanhã e avisá-lo da chegada do pai; ficará tão satisfeito como nós próprios, porque Lhe dedica uma amizade tão grande como a da mãe e á minha. Tiago - E hás-de contar-nos, depois, as tuas aventuras, Paulo! Viveste cinco anos com os selvagens? Paulo - Sabê-lo-ás amanhã, e muitas coisas mais. Hoje é tarde já para te contar tudo. - Meus meninos - disse a Sr.a de Fleurville - é tarde; o vosso novo primo Paulo deve estar cansado.

O Sr. de Rosbourg, interrompendo - - Paulo cansado! Depois do que passou comigo! Levámos dias a trabalhar, a caminhar, em longas vigílias! Tornou-se robusto como um autêntico marinheiro. - Os nossos não tiveram, como ele, a vantagem de educação tão áspera, querido comandante. respondeu a Sr. de Fleurville com um sorriso. - Todos eles, de tal modo compartilharam da alegria de Margarida, que necessitam, como ela, de uma noite bem dormida, para se refazerem. O Sr. de Rosbourg limitou-se a responder com um gesto de cortesia, e, atraindo a si Margarida e Sofia, beijou-as com afecto. - Oh! paizinho - disse Margarida, apertando-lhe os braços à volta do pescoço -, como me custa deitar, separando-me de si! - Eu vou prolongar a tua alegria, acompanhando-te ao quarto, minha filha - respondeu o Sr. de Rosbourg. E, pegando nela ao colo, levou-a assim, com grande satisfação de Margarida, que dizia, beijando- o: - Oh, Como é bom ter pai! A mãezinha tinha razão! O Sr de Rosbourg - Em que tinha a tua mãe razão? Que te dizia ela? - Dizia que o pai era o melhor, o mais bondoso dos homens! que, se não fosse eu, morreria de pena! que não poderia sentir-se feliz sem o pai, e muitas outras coisas. E chorava tanto e de tal maneira, que eu, algumas vezes, punha-me também a chorar; ela então limpava os olhos, sorria e beijava-me. Enquanto falava, Margarida despira-se. Margarida - Agora, paizinho, vou rezar; quer rezar comigo? O Sr. de Rosbourg- Quero, minha querida filha. Rezemos juntos, agradeçamos a Deus. E, passando-lhe o braço à volta do pescoço, ajoelhou e rezou com ela o Padre-Nosso, a AveMaria e o Credo. Terminadas as orações, Margarida acrescentou: - Meu Deus! não Vos peço a volta do meu querido pai, visto que já mo tornastes a dar; agradeço-Vos a grande alegria nos proporcionastes: Fazei meu DeuJ, que, para Vos mostrar a minha gratiddão, eu seja sempre boa, dando assim alegria ao meu querido pai e à minha mãezinha, que tanto chorou. Ao acabar, agarrou-se ao pescoço do pai que, vencido pela comoção, a apertou nos braços, e, entre soluços, a beijou. - Meu querido paizinho, que tem? Porque chora? - Minha filha, minha querida Margarida, de que choraria eu senão de felicidade? a alegria, o reconhecimento para com Deus, que me trouxe para junto de vós, a gozar uma ventura

demasiadamente grande para este mundo. Meu Deus, como se pode ser tãofeliz depois de tantos anos de desolação! E, deitando Margarida, pôs-se de joelhos juntodela e rezou, com a cabeça apoiada na mão da filha; quando se ergueu, com a face banhada de lágrimas, ela adormecera. Limpou a mão húmida de Margarida, beijou-lhe a linda fronte branca e pura, abençoou-a e saiu, voltando-se ainda para olhar aquela encantadora criança que dornia tão calma e graciosamente.

O MAR E OS SELVAGENS No dia seguinte, reuniram-se mais cedo do que era costume. As crianças fizeram as honras ao primeiro almoço, principalmente Paulo, que se maravilhava com o leite magnífico e a excelente manteiga da Normandia; encontrava em tudo pretexto de recordações da infância e olhava com alegria e reconhecimento para o seu comandante, que lhe servia agora de pai. O Sr. de Rosbourg, não menos contente, correspondia aos seus olhares, com afectuoso sorriso. Notando certa inquietação nos olhos de Páulo, disse-lhe: -Não receies que nos separemos. Somos companheiros velhos e ficaremos sempre amigos. És como meu filho, bem o sabes; não prometi ao teu pobre tio Réan servir-te de pai? Em vez de um filho, tenho dois; é uma bênção do Céu, quando eles são como tu ou Margarida. Saíram da mesa: Paulo e Margarida cobriram de beijos as mãos do comandante. Ele beijou também um e outro; fez um aceno amigo a Sofia e ofereceu o braço à Sr.a de Fleurville para a conduzir à sala de estar. Passaram o dia conversando; mostraram a Paulo toda a casa, o pomar, a herdade, os estábulos, o parque, a aldeia, o jardim e as barracas. Depois foram fazer uma visita a Lecomte, que quase ficou paralisádo de espanto ao ver o seu capitão. O Sr. de Rosbourg manifestou-lhe a sua amizade e prometeu-lhe voltar a vê-lo e arranjar as coisas de maneira que o tivésse sempre perto de si. Após o jantar, as crianças pediram a Paulo que Lhes contasse as suas aventuras. Todos se reuniram em volta dele. Começou assim: -Sofia contou-vos o nosso naufrágio: mas ela ignora ainda como aconteceu ficarmos ambos no navio; o Sr. de Rosbourg explicou-o mais tarde. Quando o pai, a mãe e os meus tios subiram para a ponte, deixando-nos em baixo, nos camarotes, os escaleres já tinham sido lançados ao mar; o comandante, ao ver o navio prestes a afundar-se, mandou meter no primeiro escaler a gente que pudesse caber e ordenou à tripulação que obrigasse os restantes passageiros, com vontade ou sem ela, a entrarem no segundo. Foi assim que os marinheiros agarraram em minha mãe e minha tia à força. Meu pai e meu tio quiseram- nos ir buscar, mas convenceramse de que tínhamos já sido embarcados. Isso afigurava-se verosímil na confusão e no horror do naufrágio. Entraram no escaler onde encontraram a minha mãe e a tia, chamando-nos em altos gritos. Meu pai quis subir a bordo, mas não lho permitiram: porém, meu tio gritou: Esperem por mim; já volto, e conseguiu subir. A mim não me viu, eu escondera-me por detrás do comandante: viu Sofia e agarrou-a nos braços e correu para o escaler mas tinha já sido cortada a corda que o segurava ao navio, e os remadores, sem atenderem às súplicas e gritos

da minha pobre tia, afastaram-no. O escaler, porém, com carga demasiada, foi quase logo tragado por alterosa vaga, antes que meu tio o perdesse de vista. Então quis, pelo menos, salvar-nos, a mim e a Sofia; pediu ao comandante que me deixásse partir consigo, mas este fez-lhe notar a imprudência de nos arriscarmos numa prancha ou num pedaço de mastro partido. O Normando propôs então lançar ao mar uma grande caixa, onde meu tio poderia aguentar-se com Sofia. E Paulo? - disse meu tio. - Não partirei sem ele. Compreendendo enfim, que, se me levasse consigo, já a caixa não poderia suportar o peso, consentiu em confiar-me ao comandante, que Lhe jurou fazer todos os esforços para me salvar, olhar por mim e estimar-me como filho. Meu tio partiu com Sofia; eu chorava, supondo que ao improvisado : escaler aconteceria o mesmo que aos verdadeiros: O bom Normando e o Sr. de Rosbourg fizeram sem perda de tempo uma jangada, para a qual o primeiro trouxe um pequeno barril de água e provisões; pôs um machado no seú cinto e outro no do comandante, tomou os remos e a bússola; e eu achei-me, de repente, na jangada com os meus companheiros. O Sr. de Rosbourg olhava o seu navio com ar tão triste como o que tinha meu tio ao olhar-me quando se separou de mim; e assim que o navio acabou de se despedaçar e os destroços foram arrastados pelas vagas, vi, pela primeira vez, lágrimas nos olhos do meu querido comandante: Desviou o olhar, passou as costas da mão pelos olhos e retomou coragem. Já se não avistava a caixa em que ia meu tio; as vagas altíssimas encobriram-na. Enquanto o Normando remava, o Sr. de Rosbourg sentou-me nos joelhos e disse-me: Dorme, meu rapaz, dorme nos joelhos do teu pai; estarás assim ao abrigo das vagas; deita a cabeça no meu peito. Eu receava fatigá-lo; ele agarrou-me a cabeça e encostou-ma, à força, ao seu ombro. Não queria adormecer, mas fui vencido pelo sono e, minutos depois, dormia profundamente. Acordei ao nascer do dia este bom Sr. de Rosbourg não se mexera para não me acordar, e, para eu não ter frio, cobrira-me até com o seu casaco. Ao pegar-llhe nas mãos, senti-as geladas. Pedi-Lhe que tornasse a vestir o casaco, garantindo-Lhe que estava calor. - De facto - disse ele - eis o Sol; começa a aquecer. A Lua era menos agradável, não, Normando? Aquela lua do diabo aquece mal a gente. E, pondo-me de pé na jangada, pegou no casaco e, não sem alguma hesitação, cobriu com ele os ombros regelados. O Sr. de Rosbourg, a rir- Exageras, meu rapaz; fazes-me melhor do que sou; foi uma noite fria aquela mas não tanto como dizes. Paulo - Conto sem exageros o que se passou, meu pai! Quanto a julgá- lo melhor do que é, seria muito difícil, para não dizer impossível. Como todos aplaudissem com as mãos e com a voz, o Sr. de Rosbourg levantou-se, rindo e cumprimentou para todos os lados; beijou a esposa, Margarida e Sofia; apertou as mãos de Paulo e disse: -Dou a palavra ao orador; as interrupções estão, segundo parece, proibidas. Paulo continuou, sorrindo:

-O que neste momento me faz sorrir, pareceu-me então desolador. Via-me órfão, separado para sempre dos que me tinham amado e eu amara; não esperava voltar a ver nem Sofia, nem o meu tio, e encontrava-me em frágil jangada, confiado à bondade do meu querido comandante, que podia, a cada momento, ser arrastado comigo para o fundo do mar. O Sr. de Rosbourg - A situação não era, com efeito, muito divertida. Paulo - O vento impelia-nos para terra mas custou-nos a atracar, porque havia rochedos contra osquais vinham quebrar-se as ondas, e foi precisa toda a habilidade do Sr. de Rosbourg e do Normando para que a nossa mesquinha jangada não fosse feita em bocados. Encontrámos, finalmente, uma pequena enseada; o Normando redobrou de esforços com os seus remos, e achámo-nos na praia. O comandante pegou em mim nos braços e foi pôr-me longe do alcance dasvagas. O Normando transportou para terra o barril da água e as poucas provisões que pudera tirar donavio. Ajoelhou com o comandante para agradecer a Deus o ter-nos salvo. Eu rezei pelos meus pobres pais, ( por ti, Sofia, e por meu tio, e não pude reter as lágrimas ao pensar nas últimas horas que passáramos no Sybilla e naqueles que nunca mais, nunca mais veria. O comandante apertou-me de encontro ao coração e disse Paulo, tu és para mim um filho, Eu, para ti, um pai, o único que neste mundo te resta; juro que o serei enquanto viver. Cùmpriu a palavra; foi para mim, e não me canso de dizê-lo, um verdadeiro pai. Vê-lo-eis pela continuação da minha narrativa. O Sr. de Rosbourg - Paulo, meu amigo, contas mal; por que razão te pões a falar de mim, quando éramos três sem abrigo, quase sem ter que comer, eagora que os teus amigos esperam saber como Deus misericordioso nos libertou daquela situação difícil? Paulo - Não, meu pai, estou a contar fielmente, pois é o meu coração que fala, e seria um ingrato se não aludisse a tudo quanto lhe devo. -Pai-disse Margarida, abraçando-o-, interrompeu a narração de Paulo, tem de ser multado. - justo-disse o Sr. de Rosbourg, beijando-a; que devo fazer por penitência? - Deve deixar Paulo falar de si como ele entender, sem interrupção. O Sr. de Rosbourg, a rir - Demónio, a penitência é pesada! Mas como és tu que ma impões, submeto-me. Fala, meu rapaz, fala; mas, olha, poupa-me. Paulo - Não, meu pai, direi a verdade, toda a verdade; e muitas outras coisas direi, quando o senhor não estiver presente. O Sr. de Rosbourg - Bem, estou a ver que isto promete. Queres que eu te deixe à vontade, não é? Margarida - Oh não, meu pai! não saia daqui! fica meu prisioneiro, e à guarda de nós todos. E instalou-se nos joelhos do pai, que a olhou com ternura e a abraçou.

Paulo - Depois de comermos o pobre almoço de biscoito e água, fomos os três à procura de um abrigo para guardar as nossas provisões. Viam- se, ao longe, árvores que pareciam formar um bosque. O sol começava a aquecer, e o comandante receava que a água do barril se esvaziasse antes de descobrirmos uma nascente; com o auxílio do Normando, pôs o barril à sombra de um rochedo um pouco escavado na base. Propôs-me ficar ali de guarda enquanto ele e o Nornando iriam até áo bosque ver se encontravam ali um rgato e frutos; mas eu pedi-lhe que me não deixasse sòzinho e ele acedeu. O caminho era difícil. O normando seguia à frente e, com o machado, cortava ramos e plantas cheias de espinhos, que impediam a marcha. Começava eu a arrepender-me de ter vindo com eles, quando o comandante, ao reparar nos meus braços já em sangue, me pôs às costas, apesar da minha resistência. O Normando quis pegar em mim, mas o comandante disse-lhe: Cabe-te tarefa mais áspera do que a mim, pois tens de ir à frente a abrir-me caminho à custa da tua pele, meu bom Normando. Nem este rapaz pesa assim tanto! E depois poderá dizer-se que um filho pesa aos ombros do pai? O Normando nada objectou e prosseguiu a marcha. Mais ainda me arrependi de não ter ficado junto do rochedo quando vi meu pobre pai a transpirar, abundantemente, e a fra quejar, contra vontade, sob o meu peso. Pedi-lhe que me deixasse caminhar pelo meu pé. não deixou tentei descer-lhe dos ombros; prendeu-me com mão de ferro e disse: Não insistas senão tenho de te levar à força. Avançámos lentamente; demorámos mais de uma hora a chegar à floresta que avistáramos. O piso ali era suave, e sem asperezas. O comandante pôs-me no chão. sentámo-nos à sombra daquelas grandes árvores, que eram coqueiros e tamareiras. O Normando trouxe-nos algumas nozes de coco e também tâmaras caídas das palmeiras. O comandante abriu uma noz com o machado; deu-me a beber água ou, melhor, o leite que continha. era fresco e delicioso. depois deu-me a polpa de noz a comer; achei-a excelente e lamentei que a minha pobre Sofia não pudesse estar ali comigo para a apreciar também. Sofia tomava sempre parte em todos os meus prazeres, em todos os meus projectos, e até em todas as minhas loucuras, e eu executava as suas ideias, nem sempre lá muito felizes. E agora imaginava-a eu naquela maldita caixa - que saltava sobre vagas enormes, e julgava-a tragada pelas ondas, assim como a meu pobre tio. (Sofia estende-lhe a mão, ele aperta-a e continua.) Disse então a meu pai: Beba, está cheio de calor e tem sede. - Não te preocupes comigo, meu filho; sou um homem, um marinheiro habituado a suportar a fome, a sede, o calor e o frio. Agrada-me ver-te comer e beber. Oh! meu pai, não posso comer nem beber se não quiser compartilhar comigo. E o bom Normando onde está? -Fòi buscar outras nozes, se acaso as puder encontrar. Recusei-me a tocar no que sobrava, e pedi tão insistentemente ao comandante que as compartilhassc comigo, que acabou por consentir. Vi, com satisfação; os seus lábios ressequidos molharem-se no leite fresco das nozes de coco. Pouco tempo depois, o Normando voltou, trazendo ainda algumas nozes e tâmaras frescas. Deliciámo-nos os três com elas. Sentia-me entorpecido pelo calor. Via os olhos do comandante fecharem-se, mau grado seu. O Normando parecia também fatigado e Pediu licença para dormir. Dorme, meu amigo - respondeu meu pai -, nós dormiremos também um bom sono: a noite foi dura e o calor é, de dia, asfixiante: Vamos, meu Normando, estende-te junto de nós e, dormindo, tentemos esquecer. O Normando assim fez; estendeu-se ele à minha esquerda e o comandante à direita. Passados dois minutos, caía eu em sono profundo.

Devo ter dormido durante muito tempo, porque; ao acordar, senti a frescura própria do entardecer: Abri os olhos e vi-me só. Tive medo e soltei um grito. Meu pai logo acorreu e perguntou-me o que tinha. Nada - respondi-lhe-; não o vi, ao acordar, e pensei que me tivesse abandonado. Não esquecerei jamais o aspecto triste e doloroso de meu bom pai, ao ouvir aquelas palavras. Paulo, meu filho - disse com voz comovida-, como pudeste ter semelhante pensamento? Então não vês que sou teu pai? Quando viste tu um pai abandonar o filho? Paulo, nunca percas a confiança em mim. -Perdão, perdão, meu pai, meu único amigo - respondi, lançando-me nos seus braços. Foi ainda tonto de sono que falei.. Sim, sei. Sinto como sois bom para mim, melhor, muito melhor que meu próprio pai, o qual não me tinha verdadeiro amor e nunca se preocupava comigo. - Silêncio, Paulo - continuou o comandante. - Respeita os mortos. Se não tiveres algum bem a dizer a seu respeito, fala apenas deles a Deus, rezando pela sua alma! Sentia fome, e pedi de comer. - Estávamos à espera de que acordasses, para jantar. A mesa está posta aqui ao lado! Vem ver a nossa sala de jantar. Acompanhei-o. levou-me a uma moita onde abrira, com o auxílio do Normando, uma espécie de galeria; ao fundo havia como que uma vasta sala, aberta também no mato. Tinham estendido no chão enormes fòlhas de tamareira e coqueiro; numa dessas folhas, de tamanho bastante grande para nos servir de mesa, estavam várias nozes de coco abertas e alguns tubérculos que o Normando cozera em água do mar, para os salgar; servira-lhe de caçarola uma enorme concha.

Com a concha e a água do mar trouxera o barril de água potável e as provisões retiradas do navio. Meu pai, por seu turno, trabalhara para a nossa instalação, em vez de descansar. Sentei-me no chão, entre eles, e comemos todos com um apetite que lisonja o cozinheiro. Quando estávamos a acabar de jantar, ouviu-se um ruído estranho. Meu pai levantou-se de um salto; o Normando fez-lhe sinal de que se não mexesse. Escutaram com ansiedade, o que me causou medo. Cheguei-me para o comandante, que se baixou, murmurando: Não te mexas, nem fales! são selvagens que desembarcaram. Esta palavra selvagens fez-me gelar o sangue nas veias; via-me já devorado com o meu pobre pai e o bom Normando. O comandante, ao sentir- me tremer, procurou tranquilizar-me sorrindo e dizendo em voz baixa: Não tenhas medo! nem todos os selvagens são ferozes. No entanto, como os não conhecemos, deixemo-nos estar quietos. O Normando vai tentar reconhecê-los e ver a que tribo pertencem: só então saberemos se convém evitá-los ou mostrar-nosn. Vi o Normando de rastos, deslizar por entre o mato, usando as maiores precauções para não fazer ruídõ nem ser notado. Assim, deslizando, alcançou a orla do bosque; mas, antes de sair da mata, cortou ramos e silvas e espetou-os no chão, à entrada da galeria, para a ocultar. Nós deixamos a cabana e refugiámo- nos num maciço de pequenos coqueiros; à medida que caminhávamos, meu pai endireitava os ramos e ervas calcadas para não deixar rastro da nossa passagem. Pouco tempo depois da partida do Normando, ouvimos os selvagens correr de vários lados, e chamarem-se uns aos outros, segundo parecia. O barulho aproximava-se; eu, trémulo, deixara-me ficar junto de meu pai, que me apertava contra o coração e me recomen dava silêncio. Um grito geral dos selvagens mostrou-nos que tinha sido descoberta a galeria; logo os sentimos precipitarem-se na improvisada sala. Pareceu-me notar no rosto do comandante viva inquietação; o Normando não voltava; tê-lo-iam os selvagens descoberto e feito prisioneiro? Esperamos vê-los aparecer, de minuto a minuto. Ouvimos estalar um ramo tão perto de nós, que meu pai, afastando-se devagarinho, empunhou o machado... Ficámos alguns instantes imóveis, mal ousando respirar. O barulho cessou, as vozes afastaram-se; julgávamo-nos salvos, quando me senti, de repente, preso por uma perna; não gritei, mas agarrei-me a meu pài, que me olhou com surpresa; ele não via a mão que me prendia e eu sentia-me puxado para trás. Outra mão veio agarrar-me outra perna, e, eu teria caído de nariz no chão, se não me tivesse segurádo fortemente às pernas de meu pai. Paulo, que tens? - murmurou ele, com terror. Estão-me a puxar! Olhe Meu pai, salve-me! - respondi- lhe. Olhou, viu as duas mãos, agarrouas e, com força irresistível, púxou violentamente o homem. Apareceu assim um selvagem ainda novo, que fez gestos súplices e se pôs de joelhos. Era de aspecto inofensivo e tímido.

Meu pai fez-Lhe sinal para que olhasse, ergueu o machado, e, de um golpe, abateu uma árvore da grossura de um braço. O selvagem olhou a árvore, o machado e o meu pai, com surpresa e espanto; deu um salto, soltou um grito, beijou a mão, tocou no pé de meu pai, e, precipitandose na direcção da nossa cabana, pelo caminho que seguíramos para nos esconder, chamou, em grandes gritos, os companheiros. Descobriram-nos, já não convém que nos ocultemos. Devemos agora mostrar-nos atrevidamente e impressioná-los com a nossa atitude. Que falta me faz o meu pobre Normando! Onde se meteria ele?
As Férias

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