DUBY, Georges. Guilherme Marechal

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GEORGES DUBY

GUilHERME MARECHAL ou o MELHOR CAVALEIRODO MUNDO TRADUÇÃO Renato Janine Ribeiro 3l!

Reimpressão

Copyright by Librairie Artheme Fayard, 1984 Traduzido do original em francês le Maréchal ou le meilleur chevalier du monde Tradutor do Poema Eugênio Gardinalli Filho Capa Marcela Sion Revisão Técnica Margareth Rago Stela Bresciane Copydesk Sonia Maria Amorim Revisão Flávia Ribeiro Franz Keppler Barbara E. Benevides Arnaldo Rocha Arruda

Guillaume

1." Edição:

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1

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Fevereiro de 1988

CIP-B~asil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

G974

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Georges Guilherme Marechal, ou, o melhor cavaleiro do mundo I Geo~gesDu~y_; tradução, Renato Janine Ribeiro. - Rio de J aneiro : Edlçoes Graal, 1987. Duby,

chev~[:rduJ:o m~:~e.GuiIhaume

le Maréchal

ou le meilIeur

1. Guilherme, o Marechal B' f 2 Militar. 1. Título. n. Título: O mclh%c~.:at:iro do

~:J~~ '.

CDD - 923.544

87-1040

Direitos adquiridos por EDIÇÕES GRAAL LTDA. Rua Hermenegildo de Barros, 31-A Glória, Rio de Janeiro, RJ CEP: 20.241 Te!.: 252-8582 1995 Impresso

no BrasillPrinted

in Brazil

CONDE Marechal não agüenta mais. Agora se sente esmagado pelo cargo. Faz três anos, quando o instavam para assumir a regência, que ele terminou aceitando ante tão forte insistência, tornando-se "guardião e senhor" do rei-menino e de todo o reino da Inglaterra, ele havia dito e repetido: "Estou velho demais, fraco e alquebrado". Tinha mais de oitenta anos, afirmava. Exagerava um pouco, pois não sabia exatamente qual era sua idade. Mas quem sabia, naquela época? Na vida, as datas mais importantes eram outras, não a de nascimento. Esta se esquecia. E eram tão poucos os muito velhos que os outros até os envelheciam - e eles próprios se envelheciam ainda mais. Aliás, nós tampouco sabemos com precisão quando nasceu Guilherme Marechal. Os historiadores fizeram contas, suposições; e propõem: por volta de 1145. Sem muita exatidão. O Marechal saiu de um meio muito inferior para que adiante fuçar nos arquivos. Ao passo que, no ano de que agora estou falando, 1219, a fortuna já o elevou tanto que podemos acom-

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panhar dia após dia, ou quase, seus últimos seus últimos gestos.

feitos '

Guardara o vigor quase até o fim. No dia 20 de maio de 1217, foi visto lutando em Lincoln como um .moço co~ os m?ços. Três meses depois, até precisaram retê-Io: pois ele não queria tomar parte com os marinheiros de Sandwich, na abordagem da frota francesa? Mas, na festa da Candelária de 1219 desabou de repente. Ele pressentia isso, e fazia algum tempo que, sem ,na?a dizer a ninguém, já se preparava para sua ultima aventura. Veio passar uma t~mporada. no cas~el? de Marlborough, onde é posSIVel que tivesse vivido seus primeiros anos. A 7 de março está em Westminster e dali, "cavalgando com sua dor", chega à Torre de Londres, como se quisesse o aconchego e a proteção das muralhas da velha fortificação dos reis. Vai deitar-se. A quaresma está apenas. começando. Pode-se sonhar com época mais apr?pnada para sofrer, aceitar a dor, suportá-Ia, a fim de ter a remissão dos pecados e purificar-se lenta, calmamente, antes da grande passagem? A condessa está a seu lado, como sempre. Quando a doença. piora, quando os médicos confessam que nada mais podem fazer, Guilherme manda chamar todos os que, quando ele saía, formavam sua escolta. Naturalmente. Assim tinha de ser. Pois quando, em sua vida, ele esteve sozinho? Quem aparece só, no começo do século XIII, a não ser os insensatos, os possessos, os marginais perseguidos? A ordem do mundo exige que cada qual esteja envolvido num tec~do de solidariedades, de amizades - num corpo. Guilherme então convoca todos os que formam o 8

corpo do qual ele é a cabeça. Um grupo de homens. Os seus homens: cavaleiros de sua casa; e, ainda, seu filho mais velho. Precisa desse séquito numeroso para o grande espetáculo que vai começar, o da morte principesca. Logo que todos se juntam para compor o cortejo, ele manda que o carreguem. Em sua casa, afirma, sofrerá mais à vontade. Melhor morrer em casa do que> em qualquer outro lugar. Levem-no a Caversham, à sua casa solarenga. Possui muitas destas, mas é esta que escolhe porque, do lado da região em que nasceu, é a mais próxima e acessível. Não dá mais para andar a cavalo: o rio Tâmisa é o melhor caminho. E assim, no dia 16 de março, o conde Guilherme é "ataviado" pelos seus numa barca, a sua mulher na seguinte, e começa a viagem a remo, sem afã, sem pressa. Desde que chegam, sua primeira preocupação é libertar-se do fardo que tanto lhe pesa. Pois o homem que se aproxima da morte deve desfazer-se pouco a pouco de tudo, começando por abandonar as honrarias do mundo. Primeiro ato, primeira cerimônia de renúncia. Ostentoso, como serão também os atos seguintes, pois naquele tempo todas as belas mortes são verdadeiras festas - elas exibem-se como num teatro, perante grande número de espectadores, de ouvintes atentos a cada atitude, a cada palavra, atentos a que o agonizante manifeste seu valor, a que fale e aja segundo a sua posição, a que legue um derradeiro exemplo de virtude aos que lhe vão sobreviver. Cada indivíduo, dessa maneira, ao deixar o mundo tem o dever de contribuir uma últi9

ma vez para fortalecer a moral que conserva íntegro o corpo social, fazendo sucederem-se as gerações na regularidade que agrada a Deus. E nós, que não sabemos mais o que é a morte suntuosa, que escondemos a morte, que a calamos e expelimos apressados, como algo que incomoda e perturba, nós, para quem a ~oa morte deve ser solitária, rápida, discreta: aproveitemos que a grandeza alcançada pelo Marechal o mostre a nossos olhos, brilhando com luz excepcional, e acompanhemos a cada passo, a cada pormenor, o ritual da morte à maneira antiga, que não era uma partida furtiva, esquiva, porém numa chegada lenta, regrada, governada - um prelúdio, passagem solene de uma condição para outra, superior, mudança de estado tão pública quanto as bodas, tão majestosa quanto a entrada dos reis em suas leais cidades. A morte que perdemos, e que talvez nos faça falta.

A função da qual o Marechal ainda se encontra investido é tão pesada que todos os que têm alguma importância no Estado têm de ver, com os próprios olhos, como ele a abdica, como ele a abandona. O rei, é claro, igualmente o legado papal - posto que Roma, nesse primeiro quartel do século XIII, considera que o reino da Inglaterra está sob sua proteção, sob seu controle -, o justiça-mor da Inglaterra e, ainda, todos os principais barões. Verdadeira multidão, que se reuniu para ver. Não caberia na casa solarenga de Caversham. Acampa na outra margem do rio, em Reading, no interior do grande mos10

teiro real e à sua volta. Guilherme, porém, não pode deixar o leito. Será preciso que os mais importantes senhores do reino atravessem o rio, venham à sua cabeceira. Dia 8 ou 9 de abril, então, entram em seu quarto, acompanhando um menino de doze anos, o reizinho Henrique. O Marechal começa sua arenga falando a esse menino: escusando-se de não pod.er guardá-lo por mais tempo, desenvolvendo u.m discurso moral, esse discurso que, segundo os ntos? os pais devem dirigir em seu leito de morte ao filho primogênito, seu herdeiro. Guilherme admoesta a criança, exorta-a a viver no respeito d.a moral, rezando a Deus, afirma, para que Hennque desapareça cedo se por alguma desgraça se tornar desleal como, infelizmente, alguns de seus avós. E toda a companhia repete amém. O Marechal então dispensa a todos. Ainda não está pronto. Precisa de um dia inteiro para escolher quem lhe sucederá na guarda do rei menor. Quer afastar o bispo de Winchester, voraz, que minutos atrás se agarrava ao adolescente, imaginando tê-lo em suas mãos, dado que, em 1216, o Marechal lhe confiou como que uma subtutela do menino, frágil demais na época para seguir o regente em suas cavalgadas sem fim, e por isso agora desejaria tê-lo só para si. Guilherme quer meditar, aconselhar-se, com seu filho, com sua gente, com os íntimos. Em família, no seu círculo mais fechado, decide: hoje há rivalidades demais no país. Se confiasse Henrique, terceiro de seu nome, a algum, os outros ficariam despeitados, e a guerra recomeçaria. Só ele, em meio a todos os barões, tinha autoridade indiscutível. Quem poderá substituí-Io? Deus, Deus tão-somente. Deus e o papa. A eles, então, ele cederá 11

el-rei - isto é, ao legado que representa a ambos na Inglaterra. Isso ele faz no dia seguinte, ainda deitado, mas apoiando-se de lado, erguendo-se assim o mais que pode, pedindo ao rei para se aproximar, segurando-lhe a mão, depois entregando-o em mãos do legado, mandando finalmente que seu filho atravesse o Tâmisa e vá a Reading, onde está reunida a corte inteira, para em seu nome, diante de todos, esquiv~ndo o bispo de Winchester que ainda insiste, que amda se agarra ao pescoço do menino corado, repetir o gesto que acaba de ser feito com as mãos - esse sinal tão simples, tão visível, esse rito de desinvestidura e de investidura pelo qual se consuma a transferência de posse. Está aliviado. Anoitecendo, volta a falar, diz as palavras que tem de dizer. Escutemos suas palavras, ou pelo menos essas cuja memória mais tarde se preservou, após sua morte, na casa de seus herdeiros, essas que eles julgaram dignas de sua glória: "J~ estou liberto. Mas convém que eu prossiga e c~lde de minh'alma, já que meu corpo está em pengo de morte, e que, diante de vós, terminei de me libertar de todas as coisas da terra para só meditar, agora, nas do Céu". É esse o percurso segundo as regras. Dos corpos temos de nos livrar como se fossem andrajos inúteis, e igualmente de tudo o que se prende à carne, à terra. O homem que está morrendo deve gastar suas últimas forças libertando-se desse lastro, para poder elevar-se mais depressa e mais alto. Pois a questão é essa mesma: decolar, 12

subir. Convém que, no momento do exitus, da saída, o agonizante se mostre nu, assim como saiu do ventre de sua mãe. Parte para um re-nascimento. Para uma vida nova, que vale mais que esta. E este segundo nascimento, a morte, vale mais que o primeiro. Era essa data, na vida de cada pessoa, a que se fixava melhor nas memórias, na época em que viveu e morreu Guilherme Marechal. Prossegue o despojamento. Agora que o Marechal abandonou o ofício público, aguarda-se que ele abra ainda mais a mão e largue o que ela ainda conserva, seus bens particulares, todas as suas terras. Os espectadores, os ouvintes aguardam a segunda cena do primeiro ato, a da distribuição, da divisão da herança. Que o morto transmita ao vivo, quer dizer, que ele prontamente transfira a posse dos bens àqueles vivos que têm direito ao que ele possuiu até o momento presente, aos bens que ele recebeu, também, de outra pessoa. Desta feita não há gestos. A assistência não segue com os olhos um objeto passando de uma mão a outra. Ela escuta. Essas palavras ela estoca na memória, para repeti-Ias mais tarde, se preciso for. Guilherme, em voz alta e clara, enuncia suas vontades. Na verdade ele tem pouquissima liberdade. Cada qual sabe com relativa precisão o que há de caber a Fulano ou Beltrano conforme o costume, essa lei não escrita, porém tão impositiva quanto os códigos mais rígidos. A regra, por sinal, é bastante simples: existe um único herdeiro "natural", o homem em quem o defunto há de sobreviver, que porta o mesmo nome que ele, Guilherme, Marechal, junior - seu primogênito. Por esse título, 13

por ser homem e porque nasceu primeiro, teria direito a tudo. Pois lhe compete ocupar ao lado da ãe o lugar que seu pai já vai abandonar, e protege-!a, contra os outros e contra si mesma, e ainda gerir os seus bens. Com efeito, à esposa, que também o ouve, Guilherme, o Velho, nada lega. Nem poderia legar. Pois tudo o que ele possuía, ou quase, e de que agora se despoja, pertence a essa mulher veio dos ancestrais da mulher, e ele só teve em nome dela, "por sua autoridade". E esses bens enormes o filho mais velho também os terá em mãos, até a morte dela, na mera qualidade de herdeiro legí timo, Mas Guilherme, o Moço, tem quatro irmãos e cinco irmãs. Não parece que os outros rapazes estivessem presentes. Sabemos, em todo o caso, que o mais velho, Ricardo, estava muito longe nessa ocasião, na França e no campo inimigo, na corte de Felipe Augusto. O auditório fica sabendo que esse segundo. filho recebe parte da sucessão, parte aliás substancial - o senhorio de Longueville, na Normandia, pelo qual Guilherme, o Pai, em tempos passados, prestou homenagem ao Capeta. É um favor, mas que é prudente conceder-lhe a fim de acalmá-Ia, contestá-Ia - para que não vá, como tantos filhos mais novos a quem o pai nada deixou, invejar o mais velho, intrigá-Ia, odiá-Ia. Gilberto, terceiro filho, já está instalado na Igreja, e bem instalado, tendo seu lugar, e lucrativo: ele não precisa de nada, e nada recebe. Gauthier, o quarto, ganha um solar, porém pequeno e que não lhe vem do patrimônio ancestral; um tal legado não amputa a base fundiária de poder e prestígio que cada geração, nessa

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época, está obrigada a transmitir intacta, ou mesmo aumentada, à geração que se segue: este solar, o Marechal acaba de adquiri-lo, por isso tem a liberdade de aliená-Ia como melhor lhe parecer. Falta Anseau, o filho mais moço, ainda bem novo. Para ele já não há terra. E Guilherme fala: "Ele me é caro. Mas que viva para ser cavaleiro, que ascenda conquistando honra; então encontrará alguém que lhe tenha amor, e que grande honra lhe preste, honra sem igual". Prestemos atenção: no seu caçula, no filho que é o mais próximo de sua carne, senão do coração, porque é provavelmente o único que ainda não deixou a mansão paterna para fazer o aprendizado no mundo, o agonizante vê um destino que poderá assemelhar-se ao seu, como ele partindo do nada e alçando-se heroicamente, apenas com as próprias forças, até alcançar a glória. Sua decisão expressa confiança e, quem sabe, ternura. Porém seu velho amigo João de Early intervém com uma advertência: "Não podeis tratá-lo assim; dailhe algo de vosso haver (isto é, de vosso dinheiro), pelo menos para que possa mandar ferrar seu cavalo. Agir de outro modo será agir mal". Guilherme concorda; mas não tira terra do herdeiro; em favor de Anseau institui, sobre a herança, uma renda anual de cento e quarenta libras. Uma pensão, que lhe será cortada se ele se portar mal. Mas a soma não é pequena: com ela dava para comprar, na época, três excelentes cavalos de guerra. E as filhas? Graças a Deus quatro já estão casadas, e muito bem casadas, com o que há de mais rico entre os barões da Inglaterra. Portanto já re15

ceberam o dote, que o pai lhes deu antes do casamento; nada mais têm a esperar dele. Porém a mais nova, Joana, continua solteira, e isso inquieta o moribundo: "Não a dei em vida. Ai! Isso consolaria a minha. alma". Era essa a preocupação dos pais: evitar deixar órfãs solteiras. "Desoladas", isto é, sós. Sem um homem que cuide de arranjar-lhes marido aceitando pagar o preço do matrimônio. Pois, na época, não se usa desposar uma mulher que nada possui, e na sociedade mais elevada é até costume os homens se unirem a mulher mais rica que eles. As donzelas sem arrimo, sem haver, dificilmente encontram pretendente e, se as bodas demoram demais , essas moças correm um grande risco, como Guilherme Marechal sabe muito bem, "de cair na vergonha". Fora do controle masculino, são poucas as que não perdem a vergonha. Guilherme pode contar com o filho mais velho, é claro, cujo dever é obter o mais rápido possível um marido para a irmã. Para facilitar-lhe a tarefa, para, além disso, atrair eventuais candidatos, o pai faz o que está a seu alcance e que todos julgam suficiente: institui, em nome de Joana, outra renda, mais baixa, de trinta libras' além disso tira do seu tesouro, do qual pode dispo; a seu bel-prazer, uma soma vultosa de dinheiro, duzentos marcos, para que ela tenha o seu enxoval.

Disposições testamentárias dessa ordem eram as vigentes, no começo do século XIII, no meio aristocrático da Inglaterra e da França do Norte. Dotes que excluíam as filhas da sucessão, o direito de pri: 16

mogenitura, porém atenuado por alguns dons menores em favor dos irmãos, para não acabar com a amizade fraterna: tais usos garantiam a estabilidade dos patrimônios, e por conseguinte a dos alicerces em que se fundava a superioridade da classe dominante, numa hierarquia das condições ter renas considerada em harmonia com as intenções divinas. Nessa época o costume sustenta a ordem do mundo. Ele é como que sagrado, indestrutível. Mas ainda assim convém que o chefe da casa, no momento de entregar a alma, enuncie claramente suas vontades, suas escolhas. Palavras, acima de tudo, e públicas. Já bastariam. Mas além disso se toma o cuidado de confiá-Ias ao texto escrito, para que tudo fique bem estabelecido. Não há tabelião aqui, na época. O ato é redigido na própria casa, por servidores que saibam escrever. Guilherme manda apor-lhe seu selo privado, e que também aponham os seus a esposa e o primogénito, que são, além dele, os únicos possuidores de todo o restante: o que ele legou ele lhes tirou. Mas isso ainda não é tudo. Manda que o pergaminho seja levado ao arcebispo de Canterbury, ao legado, aos bispos de Salisbury e Winchester, para que também o selem e fulminem, contra eventuais infratores, as excomunhões rituais. Munida dessas garantias, a peça é guardada num cofre. É pouco provável que seja preciso lê-Ia algum dia. Mas as palavras congeladas, que ela conserva feito relicário, pertencem agora ao tesouro da família. O homem que está morrendo, vagarosamente, já está liberto do que mais lhe pesava. Mas continua preso à terra pelo corpo. Segundo as regras, a preo17

cupação com o corpo intervém nesse momento do espetáculo, terceira fase do progressivo desnudamente. O Marechal volta-se para João de Early: "Ide buscar dois lençóis de seda, lá, com Estêvão, a quem os deixei em depósito". Quando os tem em mãos, fala a Henrique, filho de Geraldo. É o segundo em amizade dentre os seus companheiros mais fiéis, porém nem Henrique nem João de Early é parente ou igual de Guilherme; estão abaixo dele, que os domina, e por isso nada o impede de amá-los de todo o coração: sente-se que lhes tem maior afeto do que a seus filhos, mais confiança, também, de que eles constituem seu mundo mais Íntimo. "Parecem desbotados? Quero-os abertos." E então se desenrola o pano belo e de boa qualidade, exposto à admiração dos presentes, do filho e de todos os cavaleiros domésticos: "Senhores, olhai bem. Tenho estes panos já faz trinta anos; quando voltei do Ultramar trouxeos comigo, para o uso que agora terão. Haveis de cobrir com eles meu corpo, quando eu for enterrado. - Mas onde?" O herdeiro, que vai cuidar dos funerais, formula a pergunta premente e grave que está na mente de todos. Pois cabe ao agonizante designar o lugar de sua última morada, exprimir, nesse momento exato, o desejo que tem relativamente à carne que vai abandonar. "Bom filho, quando eu estava no Ultramar dei meu corpo ao T emplopara nele repousar após minha morte." E depois, voltando-se para João de Early: "Vós me cobrireis com os lençóis quando eu morrer. Com eles cobrireis o esquife. E, se fizer mau tempo, comprai um tecido cinzento, bom e grosso, qualquer tecido, colocai-o por cima para que a seda não se estrague, e depois que os 18

irmãos templários me enterrarem deixai-a a eles, para que dela façam o que melhor lhes parecer".

Enquanto somente se falava em herança, ainda não parecia dado o passo final: já não se tin~a ouvido, vinte anos antes, Guilherme Marechal ditando seu testamento? Porém agora ele falou em enterro, e mencionou o cortejo de seus funerais. Descobre-se que, desta vez, é para valer, que ele se apresta para a partida. Começa, pois, neste instante, a demonstração de luto. Primeiro as lágrimas. Todos os que moram na casa se põem a chorar, terna e dolorosamente. Todos os homens, o filho, os cavaleiros e valetes até os mais humildes dentre os servidores. Às lágrimas femininas ninguém dá grande importância. Mas o aumento das masculinas marca o término do primeiro atO. Guilherme, o Moço, sai então do quarto, chamando os cavaleiros que ain~a não estão presentes. Pois chegou a hora de orgamzar as vigílias. O morrente já escolheu sua sepultura, o lugar onde deseja que seu corpo jaza,. aguardando a ressurreição. Com essas palavras, confiou esse corpo aos que executarão suas vontades; el~ já não é inteiramente seu. Aliás, já nem está tão firmemente preso a sua alma. Por conseguinte, deve ser estritamente guardado por aqueles que cuidam dele. O envoltório corporal agora desliza rumo à morte - não se sabe que movimentos logo o agitarão, mod~fic.ando-lhe cor e odor. Ele inquieta. Não deve mais ficar sem vigilância, não se deve abandonar à sol~dão~ssa pessoa que tragicamente se desfaz. Junto ao corpo 19

deve haver uma guarda permanente. Três cavaleiros. Eles se revezarão dia e noite. Na companhia de João de Early e Tomás Basset, Guilherme, o Filho, o sucessor, cumprirá o turno mais perigoso: velará de noite, nessas horas turvas em que ronda o demônio.

Durante a peregrinação que o fez passar vários meses na Terra Santa (o "Ultramar"), em 1185, Guilherme Marechal pôde ver em ação, no auge de seu poder, esses monges guerreiros. Observou-os, expondo o corpo ao perigo na luta pelo Cristo, enquanto permaneciam estritamente submissos à disciplina monástica, que lhes impunha obedecerem sem

hesitação ou murmúrio, nada terem de próprio, não tocarem nas mulheres, renunciarem à jactância, ao jogo, a tudo o que é ornamento inútil. Admirou-os como alguém que conhecia o ofício: combatentes, alegres, mais capazes do que ninguém. Julgou que na pessoa deles se conjugam os méritos das duas categorias dominantes da sociedade humana, a ordem dos religiosos e a dos cavaleiros, e que por isso tais homens se postavam, com toda a evidência, na vanguarda dos que hão de ter o Paraíso. Decidiu, portanto, ainda na Terra Santa, fazer parte de sua companhia. Mas, hesitando em abandonar tão prontamente o mundo secular, limitou-se então, como disse ainda há pouco, a se "dar". Era esse um procedimento usual, naquela época. No final do século XII, muitos fidalgos (cujos avós, nos tempos idos, pediam no leito de morte a graça de vestir, para a passagem, a túnica de burel dos beneditinos) assim se filiavam à florescente congregação dos templários, vinculando-se desde já, porém aguardando para completar a sua integração uma hora mais avançada de sua vida, o momento preciso, ao aproximar-se a morte - quando, consumando in extremis o seu compromisso, se beneficiariam de todas as graças prometidas aos membros plenos da companhia. Para Guilherme chegou a hora, ele bem sabe: "Não tem disposição de esperar mais". Aimery de Sainte-Maure, nascido na Touraine, amigo dos reis Plantagenetas, mestre da comendadoria do Templo em Londres, foi prevenido. Sabe que o Marechal quer ser enterrado na casa que ele governa. Chega a tempo para proceder à recepção

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Neste instante também entram em cena as preocupações religiosas. O que aprendemos graças aos últimos momentos de Guilherme Marechal é muito precioso para nós, historiadores. Com efeito, a narrativa que estou explorando revela com muita crueza a maneira pela qual os homens dessa época e situação social viviam o cristianismo. E assim permite retificar dois depoimentos falaciosos, primeiro o da literatura hagiográfica, que faria tomarmos todos os cavaleiros por outros tantos santos Alexis ou Maurício, contritos numa devoção dócil, e também o da literatura de ficção romanesca, que se desenvolveu contestando a ideologia clerical e que, por isso mesmo, exagera o aspecto profano. A devoção autêntica que se descortina é confiança em Deus, serena, com um moderado recurso aos padres. E é no quadro institucional mais harmônico com o espírito da cavalaria, a Ordem dos Templários, que a preocupação religiosa se manifesta em primeiro lugar.

do agonizante. Ela terá lugar, solene, perante todos os seus, posto que deles se vai separar para ingressar em outra família. Também as mulheres, suas parentas, devem assistir à cerimônia. São chamadas a condessa e as filhas. O rito ainda é de passagem. Passagem da cavalaria simples à "nova" cavalaria, como dizia São Bernardo, à cavalaria renovada, a desses "homens novos" que decidiram tornar-se mais perfeitos. É bem possível que tal rito, no começo do século XIII, já pareça um pouco antiquado. As formas de devoção evoluem muito rapidamente, nessa época. O monaquismo está em decadência, e especialmente o monaquismo militar. São cada vez mais raros os moços que ainda querem se fazer ternplários, juntando-se a esses cavaleiros cujo fracasso é tão patente nas terras de além-mar, e de quem se comenta que não são tão puros, que não deveriam mexer tanto com o dinheiro, e a respeito dos quais já corre a suspeita de que se dediquem a curiosas práticas no segredo das comendadorias. Mas Guilherme é um sobrevivente. Não é comum viver tanto quanto ele em seu meio - entre cavaleiros que comem como lobos, bebem como condenados e que morrem de congestão, quando não é de um golpe brutal em pleno exercício de seu mister, o das armas. Até hoje, por exemplo, nenhum dos reis de França passou dos cinqüenta anos. Para atingir sem problemas essa idade é preciso ser bispo ou então monge de Cluny. Trinta anos são passados desde a doação que o Marechal fez de si mesmo. Será que ele assumiria hoje o mesmo compromisso, agora que já faz muito tempo não pertence à baixa cavalaria, porém à sociedade mais elevada, na qual todos sempre

querem seguir a moda, na devoção como no :-esto? Ele agora parece um raro testemunho de aritudes superadas pelo tempo. Tem perfeita consciência disso, e afirma: "Escutai-me; há muito tempo que me dei ao Templo; para e Ie agora me vou. " Peguem então no seu guarda-roupa o manto branco com a cruz vermelha: faz um ano que ele a mandou costurar, e Godofredo, o Ternplário, é o único a saber de sua existência. Está deitado. Impossível vesti-Ío com a capa. Ordena que estendam a sua frente esse emblema de sua nova condição. Mudar de ordem é mudar de hábito. É, acima de tudo, mudar a maneira de viver, contrair novas obrigações. Agora Guilherme é um templário '. ~ara sempre. Os templários são monges. Estão proibidos de se aproximar das mulheres. Portanto Guilherme não se aproximará mais da sua. Nesse instante, pois, separa-se daquela que nestes vinte anos fez, com ele, uma só carne: "Bela amiga, beijai-rne, nunca mais me beijareis". Ergue-se da cama o mais que pode, para que, num derradeiro beijo, suas bocas se unam. O choro aumenta. A condessa e as filhas, desfalecidas, são retiradas da câmara, enquanto Mestre Aimery toma a palavra e, diante de uma audiência exclusivamente masculina, pronuncia as palavras consagradas.

Agora tudo o que resta é deixar correr o tempo, é aguardar, seguir o andamento dessa agonia. que se arrasta. Ela já demora dois meses, e com e~a o grande espetáculo que estou descrevendo, cUJO 23

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ritmo se estira excepcionalmente. O público poderia cansar-se. Porém persevera. A câmara não se esvazia. Para ver como morre o Marechal, os espectadores se acotovelam ao lado do filho mais velho, quase sempre sentado, paciente, fiel, cumprindo perfeitamente o papel que é seu, à cabeceira do leito de morte. Uma tal afluência, uma tal assiduidade atestam o prestígio desse que lentamente vai partindo. Por isso toda a casa se rejubila, dedica-se a prolongar ao máximo essa maravilhosa longevidade: porque ela confere glória à família. Guilherme não sente mais fome. Precisa comer, para que a natureza continue a "fazer nele seu trabalho". O tem po todo estão- a incomodá-lo, a enfiar-lhe comida , esfarelando' pão sem ele perceber entre os cogumelos que ainda aceita comer. Todos se inquietam. Engano: a vida cola-se estreitamente a essa enorme carcaça. Chega até mesmo, em certas ocasiões, a animar-se de força juvenil. Um dia, o moribundo interpela João de Early: "Posso dizer-vos grande nova? - Podeis, senhor, desde que não vos canse falar. - Não sei de onde isso me vem, porém há mais de três anos que não sinto uma vontade de cantar tão grande como a que tenho faz três dias. Ora, pergunto se Deus veria isso com bons olhos? - Ide, senhor, cantai. A natureza se fortalecerá em vós. Será bom se isso vos der vontade de comer. - Calai-vos. Cantar não seria direito. As pessoas a minha volta pensariam que enlouqueci, acreditariam que perdi a cabeça".

defunto que canta, se não forem os salmos da penitência, em uníssono com os oficiantes: que escândalo. Então Henrique, seu outro amigo íntimo, aconselha-o: "Chamai vossas filhas, elas cantarão por vós. Vereis o bem que isso vos fará". Elas entram no quarto. Guilherme manda que a mais velha, Mafalda, a "bigota", casada com Bigot, futuro conde de Norfolk, comece o canto. Ela obedece; força-se a fazê-lo; mas é evidente seu contragosto. Depois é a vez da mais nova, a donzela, a ingênua, por isso mais chorosa que as irmãs. Sua garganta se fecha; ela se perde. Seu pai, que pensa tratar-se de timidez, repreende-a: "Não tenhas vergonha". E depois lhe mostra como deve fazer, como cantar as pa Iavras, (( uma a uma ". Essa noite foi a última em que viu as cinco filhas e, depois de mandá-Ias de volta à mãe, ele, que sempre foi tão senhor de si, parece que se sentiu extraordinariamente comovido. Represando a dor, passa rapidamente aos assuntos sérios, explica no pormenor ao filho que ordem devem seguir seus funerais: que Guilherme, o Moço, esteja o mais perto possível dele quando entrar, quando seu corpo entrar, melhor dizendo, em Londres. Quer também que se pense nos pobres. Serão multidão, já sabe, no cortejo fúnebre. É raro um serviço tão opulento. E decide que desses pobres pelo menos cem receberão comida, bebida e roupas após a festa.

Realmente, tem todo o cabimento cantar durante as bodas ou depois dos torneios. Mas um quase

O dia inteiro insistem com ele. Instam-no a se alimentar - sem descanso: precisa comer -, instam-no a cuidar da alma - sem descanso: precisa dar. Porque dar é lavar em águas abundantes o pe-

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cada. Já que a terra que ele detinha por autoridade da esposa agora saiu de suas mãos, está nas do herdeiro, para a salvação precisa despojar-se do que ainda lhe resta, isto é, de seu tesouro, desses valores móveis, tão preciosos, e que são SÓ dele, sobre os quais tem todos os direitos, que se sabe estarem empilhados em seu quarto, no reduto tão bem fechado onde estão guardados adornos, roupas, moedas, anéis. Chegou a hora de dispersar esse monte de riquezas, cujo peso poderia fazer a alma do dono pender para o lado da condenação. É o que os homens de Igreja não se cansam de lhe repetir. Pois eles estão presentes, em número cada vez maior, atraídos por isca tão formidável. Entre eles o abade de Nutley, um mosteiro da congregação de Arrouaise, retornando, ao que diz, da reunião do capítulo geral; lá se soube que o Marechal passava por maus momentos; os cônegos decidiram acolhê-lo como confrade, e repartir com ele as graças de que dispõem devido às preces e às boas obras praticadas por ordem tão caridosa; o abade vem justamente trazer essa boa nova; traz consigo as provas, as cartas seladas de que se muniu. Que o moribundo fique tranqüilo. E seja generoso. Ele será. Todos, a sua volta, o pressionarn.

em perigo, espalhando as dádivas entre os pobres de Cristo, a começar por aqueles que não apenas nada possuem, como ainda santificam sua pobreza pela abstinência e a prática do ascetismo, e cujas orações por isso mesmo são as mais eficazes, as mais capazes de aplacar a ira de Deus. Porém o agonizan.te também pode salvar a própria alma, e talvez seJa quem mais o possa - acertando o que deve, reparando os males que infligiu. Pois não basta confessar as faltas cometidas; exige-se, de quem vai morrer, que rememore os nomes de todos a quem lesou no curso de sua vida, para agora os ressarcir. Deve restituir tudo o que tomou, as presas que fez por cobiça, se ~uer escapar, na outra vida, dos tormentos. Isso os amigos de Guilherme lhe repetem sem descanso, a ponto de aborrecê-Ia. Irritado, ele chega a tratá-los com aspereza. Mas o momento é gravíssimo. Os riscos que ele corre são enormes. O que Guilherme arrisca é tudo. E no entanto não hesita em dizer, em voz alta, o que pensa, e que pode parecer descabido. Ele sabê muito bem qual será o alcance de seu discurso. Dele se espera, como de todos os moribundos, cujas palavras são ouvidas com atenção, que pregue uma última lição, expondo a boa moral.

O principal é que ele não esqueça nada. Esvazie todos os cofres. Os mais ardentes, mais empenhados em estimular sua largueza são, é claro, os amigos mais próximos, os que o amam de verdade, Henrique, filho de Geraldo e o letrado da casa, Felipe. Esses nada reclamam para si mesmos. Desinteressados, somente se preocupam em salvar uma alma

Essa moral não é a dos padres, que só a eles aproveita. Nem é a dos tartufos. É a moral da cavalaria. Ora, e é isso o que nos importa; dessa moral os historiadores sabem muito pouco. Prestemos atenção, pois, como prestou nessa hora, ao redor de seu leito, a assistência inteira, registrando com todo o cuidado, para a posteridade, para a linhagem, a sentença que ele teve a coragem de enunciar: "Os homens de Igre-

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ja caem em cima de nós; eles nos arrancam o que podem. Na minha vida venci pelo menos quinhentos cavaleiros, tornando-lhes portanto armas, cavalos e arreios. Se por causa disso o Reino dos Céus me for recusado, o que hei de fazer? Como pretendeis que eu devolva tudo? Nada posso fazer por Deus além de me entregar pessoalmente a Ele, arrependido de todas as más ações que cometi. Se os padres não querem que eu seja banido, rejeitado, excluído, devem deixar-me em paz. Ou o que dizem é falso, ou então nenhum homem há de encontrar a salvação" . E mais tarde, nos instantes finais, quando lhe vêm recordar que seu guarda-roupa continua repleto.: todas as vestes escarlates, as peles de esquilo que ali estão, mais as oitenta peles preciosas, todas bem conservadas e novas, que ele não levará consigo; que s~ ~presse a mandar vendê-Ias; com o dinheiro, judiciosamente repartido entre as comunidades religiosas, ele adquirirá orações, ou seja, os instrumentos de sua redenção. Agora ele se irrita de vez: "Calai a boca, importunos. Já estou cheio desses conselhos. Logo será Pentecostes, quando os cavaleiros de minha casa devem receber seus novos adornos. Eu sei disso, eu sei que nunca mais os poderei distribuir. E é agora que vós quereis me perturbar. Vinde, João de Early. Por essa fé que deveis a Deus e a mim, mando que façais em meu nome a divisão de todas as roupas. E, se não houver o bastante para todos, mandai comprar em Londres o que estiver faltando. Que nenhum dos meus tenha por que se queixar de mim". 28

Realmente, o primeiro cuidado do senhor é não transgredir os preceitos da moral doméstica, que o obriga a tratar o melhor possível seus familiares, nem os da moral social, que ordena aos cavaleiros, cuja ordem se situa no topo da hierarquia, que se ataviem com mais riqueza que todos os outros homens. O bom senhor pensa primeiro nos seus, nesses que ele reúne em sua casa e que tudo devem à sua largueza. O bom senhor, como o rei São Luís daqui a poucos anos, também conhece a importância dos adornos corporais, numa cultura baseada na ostentação e exibição, numa sociedade que julga o homem pelo que ele porta sobre o corpo. Sabe que é preciso andar bem vestido para ser amado, temido, servido. O Marechal é bom senhor. É esse aspecto de sua pessoa que ele quer deixar gravado na memória dos seus, coroando com generosidade e fausto as virtudes adequadas a sua posição. Por isso a noite se gastou na divisão de tudo o que era seda, Vair*, marta. Todos os cavaleiros tiveram sua parte das mais belas roupas que o corpo do senhor vestira. O pouco que restou, o de menos qualidade, ficou para os pobres. Em cada um dos que trajavam seus atavios podia-se sentir que o agonizante revivia. Assim foi que, no domingo anterior à Ascensão, Guilherme cerimonialmente se despojou de suas vestes. Nada mais tinha de seu, além do sudário. Estava pronto para partir. » Pele, metade branca e metade cinzenta, do esquilo conhecido como petit-gris; daí vem o nome do termo heráldico "veiro". (N. do T.)

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Já encarregara o filho de dizer adeus, em seu nome, a todos os que o serviram e que não se encontravam presentes, de agradecer-lhes tudo o que podiam ter feito ou dito. No dia seguinte, Guilherme, o Moço, implorou de joelhos ao pai, pelo amor de Cristo, que comesse ainda alguma coisa. "Temos certeza de que isso vos fará bem. - Pois bem, concordou, comerei quanto puder." Por bondade. Sentou-se, apoiado num cavaleiro. Quando a toalha foi posta, mandou achegar-se João de Early. "Enxergais o mesmo que eu? - Senhor, não sei o que estais vendo. - Pois juro que vejo dois homens brancos: um a minha direita, outro à esquerda; jamais vi homens tão belos. - Senhor, creio que Deus vos mandou emissários que hão de vos levar pelo bom caminho." Então o conde começou a repetir: "Abençoado seja Deus Nosso Senhor, que até hoje me conferiu tantas graças". João de Early jamais se perdoou não ter perguntado quem eram esses dois personagens, alvíssimos e deslumbrantes, puros como ninguém é na terra. Anjos? Santos? Ancestrais veneráveis retornando a este mundo? Não importa: sua presença indicava que se abriam as portas do Além; esses enviados vinham acolher o Marechal, escoltá-lo ; o sinal era claro: a passagem, iminente.

eu, João de Early. - És tu, João? - Eu mesmo, Senhor. - Não consigo dormir. - Mas como poderieis dormir, não comendo já faz uns bons quinze dias!" Guilherme Marechal se vira na cama, e estira os membros. As dores da morte começam a se manifestar. "joão, depressa, trata de abrir, de escancarar todas as portas e janelas. Manda chamar meu filho, a condessa, os cavaleiros. Estou morrendo, não posso mais esperar, quero me despedir deles." joão se precipita, abre tudo o que é porta e volta para amparar em seus braços o conde, que, deitado sobre seu peito, desfalece e cerra os olhos. Mas se recompõe: "joão, eu desmaiei? - Desmaiou, Senhor. Nunca te vi tão espantado. Por que não me molhaste o rosto com um pouco d'água de rosas, para eu poder falar a essa boa gente? Pois pouco tempo me resta para falar". Revigorado pela água de cheiro, pode enfim pronunciar, agora que todos estão presentes, suas últimas palavras. O que diz é, singelamente, sua morte: "Estou morrendo. Confio-vos todos a Deus. Não posso mais permanecer convcsco. Não posso me defender da morte". E entra, en tão, no silêncio.

Na terça-feira, 14 de maio de 1219, ao meiodia, o filho volta com os outros homens. Encontram o conde virado para a parede, repousando em paz. Pensam que dorme, e o moço Marechal manda que todos se calem e se retirem. Então ouvem o moribundo falar e perguntar: "Quem está aí? ,- Sou

João de Early se apaga, cedendo o lugar a quem de direito. O filho senta-se. Chorando baixinho, isto é, de coração, e não por exibição, acolhe nos braços o pai, que se entrega, se "aconchega" nele. Os religiosos, tendo recebido o que podiam, não tendo o agonizante mais nada para lhes dar, já se haviam retirado discretamente. Mas agora acorrem: o abade de Nutley, com todos os seus cônegos, o abade

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de Reading, com' seus monges, trazendo este último, da parte do legado, a absolvição pontificia que tem o valor de indulgência plenária. O Marechal precisaria mesmo dela? Desde o começo de sua doença, confessava-se a cada semana. Com toda a pompa, o que mal não faz, os dois abades o absolvem pela última vez. Os presentes acreditam vê-lo inclinar-se, erguer ainda a mão, persignar-se, adorar a cruz deposta a sua frente. Entrega a alma. Não há nenhuma indicação de que tenha recebido o viático.

O espetáculo ainda não terminou. A alma se foi, o corpo fica. Exposto aos olhares, no centro da cena, continua a representar seu papel. Na sua presença (enquanto ainda reside em seu domínio, em sua casa solarenga, antes de deixar o recinto para ganhar a última morada, o Templo, em Londres), o abade de Reading veio celebrar a missa na capela doméstica, pelo que é recompensado por uma renda de cem libras, concedida por Guilherme, o Filho, e sua mãe. O cortejo se forma e começa a avançar. Duas etapas estão previstas. A cada uma delas o corpo do Marechal passará a noite numa igreja, em lugar seguro. São a igreja abacial de Reading, primeiro, depois a de Staines. Nesta última juntam-se ao cortejo todos os condes da região, o conde de Surre:y, o conde de Essex, o conde de Oxford; de mais longe acorre o conde de Gloucester, Gilberto de Clare: é o marido da segunda filha de Guilherme. 32

Esses grandes personagens, cercados de seus séquitos respectivos, formam um préstito deslumbrante de honra. Deus mais uma vez manifestava ao Marechal, favorecendo assim o esplendor do cortejo fúnebre, a bondade que por ele tivera durante toda a vida. À entrada de Londres, o corpo foi recebido pelo arcebispo de Canterbury, primaz da Inglaterra. Foi soberba a vigília, na igreja do Templo toda iluminada, com os cânticos sacros ressoando. Tudo se fez tão bem, tão perfeitamente, com tanta beleza e glória, que os assistentes, de coração reanimado, até esqueciam a própria dor. Rendiam graças ao céu pela honra que havia por bem dar ao defunto. No dia seguinte o corpo baixou à terra, diante da grande cruz, ao lado do túmulo de Mestre Aimery, cuja carcaça carnal entregara a alma antes ainda dele, e o aguardava. Ao terminar a festa fúnebre, deitado no esquife defronte da sepultura aberta, o corpo do Marechal, embora mudo, continuava a falar. Dava uma lição a todos os assistentes, que se pretendia fossem inúmeros, e de fato eram. A seus olhos, o corpo oferecia a imagem do que eles mesmos um dia seriam. Inexoravelmente. "Espelho", assim o definiu o arcebispo na alocução que pronunciou, para edificação dos presentes. "Vejam, senhores, o que vale o mundo. Cada homem, quando chega a esse ponto, já não significa mais nada: não passa de um torrão de terra. Considerem, aqui, esse que se ergueu ao topo dos valores humanos. Chegaremos todos ao mesmo ponto. Eu e os senhores. Um dia, haveremos de morrer." 33

Assim passa tudo o que é carne. Neste mundo vaidade é vanidade.

toda

Não se enxerga mais o corpo. Já desapareceu dentro da terra, onde apodrecerá em paz, bem fechado. Contudo, invisível, ainda uma vez manifesta seu poder, e com muita pompa. Da maneira mais terrena possível, alimentando dando de comer, de beber, dando aos outros ocasião de se alegrarem. Conforme os usos, ele preside um banquete de encerramento, na posição do dono da casa, do senhor, que nunca inspira tanto amor como quando distribui pão e vinho. Ele dissera isso ao herdeiro: quer que cem pobres sejam acolhidos e comam até se fartarem. Comam e bebam com ele. Ou melhor, por ele. Pois é bem essa a função que cabe a tais ágapes póstumos: a alma do morto precisa que os vivos orem por ela e a comilança posterior ao enterro pode ser vista como o salário dessas orações, talvez até mesmo, mais profundamente, como o equivalente delas. Nesse dia há mais pobres do que é preciso. Há três meses que angariavam, impacientes, o final da agonia. Aqui estão todos, de mãos estendidas. Nem vale a pena contá-Ios. Formam multidão tão densa que sequer cabe em Londres, perto da sepultura. Será preciso usar os espaços abertos de Westminster para se proceder à distribuição de moedas e víveres que encerra a dramaturgia dos funerais. 34

Pois esses foram magníficos, à altura da honra do conde Marechal. Nem todos morriam tão bem assim. O próprio Guilherme pudera avaliar esse lado trinta anos antes, trinta anos quase exatos, quando morreu el-rei, seu senhor, avô do rei de hoje, o~tro Henrique, Henrique II da Inglaterra, Henrique Plantageneta, o Soberbo, novo rei Art,:r; ~ue tempos atrás havia roubado Leonor de Aquitârua ao Capeta e que, em seus dias, foi dos mais poderosos entre os poderosos. O Marechal não se esqueceu. Muitas vezes, repetiu aos seus o que guardava na memória. Com os próprios olhos, vira o soberano ser devorado pouco a pouco pelo mal que. com~çou pelo calcanhar, subiu ao longo das coxas, lllvadlU o corpo inteiro e o queimava todo, pela frente, por trás. Vira-o arrastar-se feito bicho, gemend.o de do~, e sabendo muito bem que Ricardo, seu filho mais velho, seu herdeiro, seu inimigo, irritado de vê-Ia demorar tanto a ceder-lhe o lugar, estava rindo em companhia dos cortesãos da França: "O velho representa uma comédia". Vira-o ficar todo vermelho, e depois todo preto. Não estava presente quan.do a morte feriu com as unhas o coração do rei, quando o sangue lhe escorreu do nariz para a boc~, mas contaram-lhe que o moribundo padeceu SOZInho. Seus amigos, de carne e de coração, fugiram depressa, para um lado ou outro, levando o que deviam guardar, abandonando o corpo à s~nh.a dos d?mésticos. Contava, ainda durante sua propna agonia, que os "arpões" haviam arpoado com toda a for~a; a Henriq ue nada restou, nada, a não ser seus calçoes e calças. Alguns homens de muita lealdade, e era o 35

caso do.Marech.al, acorreram, envergonhados do que presenc.lavam; Jogaram seus mantos sobre o cadáver. Este fOI e~terrado, e isso segundo as conveniências. ~as, no dia seguinte, batalhões de pobres esperavam a entr~da da ponte de Chinon, sabendo muito bem o, que Ia aco~t:cer: eles iam comer. Nada havia, po~em, no palácio real, sequer pão preto. O Marechal Indagou se havia dinheiro: nem uma moeda. E da po~te se ouvia a irritação crescendo, os gritos de escandalo,_ a amea~a de quebrar tudo. Os pobres tinham razao em UIvar. Que vergonha um rei morto não dar de comer. . A 14 de maio de 1219 Guilherme Marechal ahme~tou os pobres melhor do que um rei. E foi um .rel que se incumbiu de pronunciar seu último ~IOglO, o que muito enalteceu a parentela. Esse rei Justamente, que havia humilhado o orgulho dos Plantagenet~s, que também vencera o imperador em batalha, CInCO anos atrás, em Bouvines, e cujo poder agora se alastrava pelo mundo, dominando-o Com tal segurança que lhe deram, como aos imperadores roman~s dos tempos antigos, o cognome de Augusto: FelJpe~ segundo do nome, rei da França. Felipe Augusto tinha a Corte reunida na região do Gâtinais quando lhe .chegou a nova da morte de Guilherme , a quem muito apreciava. Em companhia de seus parentes e dos principais barões, acabava de jantar. Os senhores de posição inferior, que haviam servido à mesa, começavam a comer. Entre eles se encontrava Ricardo, ~ segundo filho do Marechal; entraria agora no período de luto fechado. O rei teve a gentileza de esperá-Ia terminar a refeição. E depois, pe36

rante a assembléia atenta, o rei voltou-se para Guilherme des Barres, seu amigo: "Ouviste o que me disseram? O que lhe disseram, Alteza? - Por minha fé, vieram-me dizer que o Marechal, que foi tão leal, está enterrado. - Que Marechal? - O da Inglaterra, Guilherme, valeroso que foi, e sábio. Em nosso tempo não houve em lugar algum melhor cavaleiro, e que melhor soubesse manejar as armas. - O que dizes? - Afirmo, e Deus me seja testemunha, que jamais conheci melhor cavaleiro que ele em toda a minha vida". Guilherme des Barres sabia do que estava falando: ninguém se igualava a ele em valor na corte da França, quer dizer, no mundo inteiro. Na sua idade madura, havia rivalizado em valentia com o conde Marechal; às portas de São João d'Acre batera-se com o próprio Ricardo Coração de Leão. Cabia-lhe conferir ao falecido um J?rimeiro prêmio, em competência militar e esportrva, O rei Felipe que, por seu ofício, presidia o conselho e sabia quanto valia a amizade varonil, cimento do Estado feudal, coroou-o por outro critério, o da lealdade: "O Marechal foi, no meu juízo, o homem mais leal e autêntico que já conheci, em qualquer lugar que fosse". Finalmente, João de Rouvray, um dos que mais perto estiveram do rei em Bouvines, e que com Guilherme des Barres e os amigos de juventude guardava o corpo real, comemorou a prudência: "Alteza, julgo que foi ele o mais sábio cavaleiro que se viu, por toda a parte, em nosso tempo". Escorada nas proezas, sustentada de um lado pela lealdade, de outro pela prudência, aqui temos a cavalaria, a mais exaltada ordem que Deus criou. Nesse tribunal de 37

val?r e valentia reunido em torno do rei Cape to, primerro lugar-tenente de Deus na terra, Guilherme Marechal, mais valeroso, mais leal e mais sábio assim foi proclamado o melhor cavaleiro do mundo.

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...._@_.... URANTE toda a representação sacra, que no cumprimento da vontade paterna ele ordenara tão bem, o jovem Marechal ocupou o primeiro lugar, após o do defunto. Desde que o pai se acamou, ele praticamente não se afastou dele, praticamente não dormiu. Agora, ele se via instalado no lugar vazio do pai, e repousava em seus ombros essa glória linhageira que o velho Guilherme rapidamente, graças às suas virtudes, alçara a um grau quase comparável ao do rei. Incumbia seu sucessor a aumentar essa honra ou pelo menos não deixar ofuscar-se seu brilho. Por isso seu dever primeiro consistia em arraigar a imagem do fundador na memória, tão profundamente que ela pudesse resistir ao desgaste do tempo, sem jamais se apagar por completo, apontando a cada geração de seus pósteros um exemplo de boa conduta. Essa memória, é óbvio, fora confiada a numerosas comunidades de padres ou monges, uma de cujas funções - certamente a principal aos olhos dos leigos - consistia em orar pelos mortos até o fim dos tempos. Talvez também fosse con-

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servada pelos ornamentos da sepultura. O sepulcro do Marechal no Templo de Londres desapareceu antes de ser descrito pelos amadores de antigüidades; é justo supor que estivesse revestido de sinais expressivos, de figuras comemorativas: adquiria-se o hábito, na época, de inscrevê-Ias nos túmulos dos ricoshomens. Mas era preciso mais que isso. Era preciso ultrapassar o espaço reservado à devoção religiosa. Um outro memorial devia ser construído, de ordem profana: capaz de fazer o renome do desaparecido irradiar-se no espaço social em que ele se ilustrara, e que jamais deixara, a não ser, dias antes de entregar a alma, quando se tornou monge ternplário; convinha fazer brilhar sua glória nas cortes principescas e nos acampamentos erguidos perto dos campos de torneio. Importava, por conseguinte, que o valor de Guilherme Marechal fosse celebrado nas formas específicas de uma cultura que fora a sua, que era a de todos os seus amigos, e que ele contribuíra para exaltar - a cultura da cavalaria. Quase todas essas formas eram então como que happenings: divertimento festivo, fugaz, frágil, tão volátil que nada delas chegou a nós, salvo a letra de algumas canções. O monumento que Guilherme, o Moço, resolveu erigir em memória de seu pai foi, precisamente, uma canção. A intenção era a de manter o defunto presente através de palavras. Mas não, como nas imagens associadas ao culto funerário, apresentando-o em retrato estático, descrevendo com exatidão e minúcia os traços peculiares de sua fisionomia, de sua silhueta, representando o herói através de sua pessoa 40

física. Esse aspecto do Marechal a canção evoca bem cursivamente, o "feitio" de seu corpo. E o que afirma dele é muito banal: belos os pés, belas as mãos; belo de corpo, bem ereto; estatura avantajada. Só que era moreno de cabelo e de rosto - o que não constituía elogio: os santos e os valorosos se reconheciam pelo louro, pela pele clara; nesse tempo se prendia ao escuro, tenaz, a idéia de pecado, de miséria - e que - qualidade benvinda, esta, num cavaleiro sua "abertura de pernas" era das mais amplas. Mas, em começos do século XIII, as artes plásticas, cada vez mais empenhadas na figuração da luz, não se interessavam ainda pela semelhança; a escultura e a pintura expunham, defronte a um cenário abstrato, personagens cujo caráter específico se exprimia, não em uma fisionomia, mas em emblemas simbólicos e atitudes; o que mostravam eram, principalmente, ações. O poema composto para a glória do Marechal também descreve ações. Seus "gestos", gestas. Canção de gesta: a expressão até conviria, porque o poema foi descrito, senão na forma - que é a dos romances -, pelo menos no espírito dessas epopéias riquíssimas, das longas séries de versos que contavam, por exemplo, as façanhas várias de outro Guilherme, o de Orange, do nariz curto. O Marechal reviveu na relação pormenorizada, exata, das peripécias de sua existência. Sua biografia foi escrita para ser ouvida, recitada em público por um leitor profissional. Em que circunstâncias? De que maneira? Não dispomos de nenhuma indicação a respeito. Sabemos, apenas, que foi oferecida à atenção da parentela mais 41

o

próxima. doador teve o cuidado de mandar inscrever, no final, que encomendara a obra pensando em seus irmãos e irmãs, para "alegrá-Ias" fazendo-os "ouvir" "os grandes feitos e honra de seu ancestral", acrescentando ainda que lhes devia esse dom enquanto filho mais velho e herdeiro, e que não tinha dúvidas quanto à gratidão deles. Era excepcional, nas linhagens de maior fortuna, exaltar dessa maneira a imagem do chefe morto da família? Não temos a menor idéia, assim como não sabemos se, por volta de 1220, já estava difundido o uso de instalar sobre o túmulo uma imagem dos senhores defuntos. Na catedral de Le Mans, havia já meio século que se podia contemplar, fixada no esmalte, uma efigie (não um retrato) de Godofredo Plantageneta. A essa imagem se associava, por sinal, uma biografia que também chegou a nós. Porém Godofredo Plantageneta era pai, avô e bisavô dos cinco reis da Inglaterra a quem Guilherme Marechal, no curso de sua vida, serviu. Não era essa descendência que justificava que ele assim sobrevivesse? Representações desse tipo não seriam um monopólio que os soberanos da época, por terem sido ungidos e consagrados, repartiam somente com os santos e os bispos? E, se um escritor foi incumbido de relatar os feitos de Guilherme Marechal, não seria porque ele esteve muito perto do poder real, porque, regente, chegou até mesmo a ocupar, por um certo tempo, o lugar do próprio monarca? Nesse caso a canção documentaria o orgulho devido a um êxito extraordinário, ou pior, a pretensão despudorada de um arrivista. Mas também podemos pensar que, nes42

se meio da alta nobreza a que chegara por sua intrepidez, o Marechal não constituiu exceção; que, em conformidade ao ritual do luto aristocrático, muitas outras vidas foram cantadas, em sua época, além da sua; mas que de tais evocações poéticas tudo se perdeu, porque era raríssimo que fossem confiadas à escrita e, ademais, nas residências das grandes famílias, o texto escrito facilmente se deteriorava. Ainda mais esse tipo de texto, destinado a um uso profano, particular, e que não se exprimia em latim. Pois a memória que se conservava dos reis da época, tanto de Felipe Augusto como de Godofredo Plantageneta, estava envolta nessa língua hierática, a das liturgias eclesiásticas e dos "autores" da literatura erudita. O latim impunha respeito; convinha aos elogios reais: os reis, por serem consagrados, eram meio eclesiásticos; eem latim Suetônio redigira a Vida dos Doze Césares, modelo de tudo. Mas o registro dos atos dos barões, confiado à escuta di! homens e mulheres que não sabiam ler ou escrever, provavelmente utilizava uma língua que eles pudessem entender, a que eles empregava senão no dia-adia, pelo menos nas cortes onde se reunia a cavalaria, onde se impunham as maneiras que distinguem do vulgo as pessoas bem nascidas. O autor da canção de Guilherme Marechal serve-se, em todo caso, de falar da boa sociedade da Inglaterra e de seus reis que eram angevinos. Trata-se do dialeto da França do Oeste. Assim, esse poema, que foi posto em rimas às margens do Tâmisa, constitui um dos primeiros monumentos da literatura francesa. E é a mais antiga biografia que se conserva nessa língua. Muito 43

vulnerável, essa obra deveria tan tas outras.

ter-se

perdido,

como

Com efeito a linhagem do Marechal não demorou a extinguir-se. Isso era muito freqüente na class: ~ominante, em. decorrência das práticas prudent issimas que, a fim de restringir as partilhas a c~da sucess~o e manter a unidade da fortuna, proibiam a maior parte dos rapazes de se casar, limitando assim os nascimentos legítimos mas também comprimindo, perigosamente, a ampliação da descendência. E ainda assim a posteridade de Guilherme parecia bem garantida: dos filhos que gerou em sua esposa, dez lhe sobreviveram, sendo cinco homens. Mas, um a um, todos morreram sem progenitu~a. Guilherme desapareceu doze anos apenas depOIS de seu pai, em 1231; Ricardo daí a três anos' Gilberto, que era clérigo, deixou e~tão o estado sa~ cerdotal, cingiu a espada, assumiu os tí tulos e morre~ de uma queda de cavalo em 1241, sem ter procriado um herdeiro legítimo. Só restava, então, Anseau, o caçula - o Marechal, ao morrer destinara-o à vida de aventura, julgando que não teria a menor chance de herdar o patrimônio; mas este veio ter a ele. A fortuna durou pouco: morreu em 1245. Nãc havia mais homem que portasse o nome do Marechal. Quem iria, então, preocupar-se em conservar-lhe a , . ~ O I memona. ra, pe o maior dos acasos, o texto dessa história chegou até nós. Num único manuscrito, é verdade, e que não é o original. A transcrição, medíocre (o copista compreendia mal uma língua que certamente era refinada demais para ele), parece de época. Talvez tenha sido encomendada por uma das 44

irmãs, ou por um sobrinho; por ocasião, como muito acontecia, de um matrimônio. A menos que um curioso de história tenha tido a vontade de conservar, para seu uso próprio, uma narrativa que lhe parecia ensinar muita coisa dos acontecimentos recentes, e que ele entendia digna, pelas qualidades de estilo, de figurar numa biblioteca de qualidade. O poema, se não desapareceu, talvez seja por sua beleza. As obras-primas resistem.

Cento e vinte e sete folhas de pergaminho não falta uma sequer; em cada uma delas, duas colunas de trinta e oito linhas; ao todo, dezenove mil, novecentos e quatorze versos: Guilherme, o Moço, não poupou cuidados. Sete anos se passaram na coleta de informações, na elaboração e adequada edição da obra. O resultado custou caro e quem o financiou quis que todos soubessem, que isso constasse do poema. O filho primogênito, "que arcou com todas as despesas", foi portanto o responsável pela realização da obra. Mas não foi ele quem a escreveu. Nem poderia fazê-lo, faltando-lhe lazer e, acima de tudo, competência. Para tanto contratou um artesão, cujo ofício consistia em compor canções, um homem desses que "de trovar entendem viver". Um trovador':'. Nós conhecemos o nome des-

°

" Ou, em francês, um trouvêre, isto é, trovador da França do Norte, que exerce sua arte baseado nos modelos dos autênticos e primeiros trovadores, em francês troubadours, os da Provença. (N. do T.) 45

se "que o livro fez e trovou" - João -, rém o sobrenome, não a identidade.

não po-

É magnífico escritor: palavras vivas, justas, apropriadas; faz límpida a narrativa, inspiradas as personagens, o diálogo envolvente; sabe mostrar; cumpriu com perfeição sua incumbência: tornar o Marechal presente, vivo. Além disso, revela-se historiador muito consciencioso. A própria obra se apresenta como uma "vida", mas igualmente como uma "história". Faz uns cem anos que, nos mosteiros e nas coIegiadas, os homens que se dedicam a relatar os fatos que chegaram a seu ouvido empenham-se em verificar as informações, em criticar os testemunhos com o mesmo escrúpulo dos historiadores de hoje em dia; essa preocupação nosso autor também manifesta. João trata de sempre indicar suas fontes. Em várias ocasiões, ouvimo-lo que confessa suas hesitações, que explicita as exigências de veracidade que deseja respeitar. Assim procede ao relatar como se passou a batalha de Lincoln, quando o Marechal triunfou como se rei fosse. O acontecimento é estratégico, fundamental: a carreira do herói e toda a ação que o poema foi desenvolvendo então chegam a seu ponto culminante. É preciso ver com muita clareza, não dizer nada de que não se tenha muita certeza. Nesse ponto, João, o Anônimo, faz sua profissão de fé: "Aqui, senhores, que me convém dizer? Os que me fornecem a informação não concordam entre si; não posso obedecer a todos: seria extraviar-me; seria perder a boa trilha, seria perder parte de vosso crédito. Na história, que é verdade, ninguém deve mentir conscientemente". O coman46

ditário esperava receber um relato sincero; por isso o executante se aplicou a uma minuciosa triagem do que era verdade, do que era falso, por entre os vestígios que restavam das ações do Marechal. Mas também importava que o relato fosse vasto, encorpado. E por isso o autor se empenhou num esforço meticuloso de coletar todos ?s vestrgios, ~e recuperar o mais ínfimo gesto. O cu~dado que dedicou a fazer exaustiva sua coleta explica que gastasse tantos anos antes de completar a obra que lhe fora encomendada. Sendo trovador, porém, não foi lllformar-se nos livros das bibliotecas eruditas. Sua independência fica bastante nítida quando confrontamos seus dizeres com os dos cronistas a quem teria sido tço fácil ele se referir, e que, por sinal, vão-se pilhando uns aos outros: não vemos, entre a relação que eles propõem dos acontecimentos e a dele, sequer a mínima convergência, que permitiria supor que João os tivesse lido. Ele abeberou-se em outras fontes, que sem ele ficariam inacessíveis para sempre, pois pertencem à vertente profana da cultura do século XIII. Quase tudo se evaporou dessa parte da criação cultural. A nós ela não chega. É por isso que sua canção me soa apaixonante. Obra de um homem que não pertencia à intelligentsia clerical, ou que, pelo menos, dela se afastara no curso de seu trabalho, o poema é um depoimento raríssimo sobre o que eram, entre os cavaleiros da época, o senso c o conhecimento da história. Dá forma a uma memória que não direi sequer cortês, pois nas grandes cortes principescas o peso da influência eclesiástica sobre as maneiras de pensar dos leigos era 4.7

sensivelmente maior do que na casa de Guilherme. O que a nós chegou é infinitamente precioso: a mem_ória da cavalaria em estado quase puro, da qual, nao fosse esse testemunho, quase nada saberíamos. A dar-lhe crédito, seria sua memória própria que. joão, o !rovador, investigou. Enquanto redigia a biografia, e de se supor que pertencesse à domesticidade mais próxima de Guilherme, o Moço. Mas, se pensarmos que não é mero artifício de estilo nem simples redundância, o fato de ele intervir pessoalmente, aqui e ali, no desvio de um verso afirmando (('~ ." «1 b o,,' LtO eu VI, em ro-rne daquilo , então deveremos supor que esse escritor bem podia ser um daqueles arautos d'armas que, no campo de torneio, punham ordem nos recontros, identificavam os protagornstas segundo seus sinais heráldicos e, cantando-Ihes_ as façanhas, faziam crescer a reputação dos c~mpeoes. E que, como outros especialistas na publicidade da cavalaria, ele fizera parte, pelo menos em uma que outra fase, dos próximos do Marechal, homem que pagava bem. Por outro lado, como os feitos que o autor diz haver presenciado remontam até cerca de 1180, o poema teria sido escrito por um homem já bastante idoso. O dialeto normando de que se vale confirma, aliás, esse fato: nele aparecem tantos arcaísmos que até poderíamos situar a composição da obra trinta anos antes, no final do século XII. Outro elemento confirmatório teríamos na insistência com que João chora os bons tempos passados, quando, segundo ele, tudo era mais belo; a menos que isso não passe de um lugar-comum da literatura de corte da época. 4R

Contudo, no essencial, "a informação", como diz ele, a matéria que amolda vem-lhe de outras pessoas. Quando, nos derradeiros versos, apresenta os créditos da obra e roga a Deus que dê "a alegria do paraíso" àqueles que contribuíram na sua execução, menciona três pessoas em especial: o produtor - Guilherme, "o bom filho"; o realizador - ele próprio; e ainda um terceiro homem, que, por amor, por "bom amor" ao seu senhor, forneceu a informação, consagrando a tal ofício "seu coração, mente e haver" - João. Da mesma forma que Paul Meyer, editor desse texto, considero que esse João não é nosso autor. É um João de identidade muito precisa. Faz apenas um momento que o deixamos, o mais íntimo de todos na agonia do Marechal, João de Early. O sobrenome que porta designa uma aldeia do condado de Berkshire, perto de Reading, perto também de Caversham. João vinha, pois, da mesma região onde nascera o Marechal. Ali possuía alguns domínios. Talvez fosse seu parente afastado. Entra no relato em 1188, quando da tomada de Montmirail, no Maine. Nessa ocasião era escudeiro do Marechal, assistindo-o. Cuidava de seu arreio, guardava o cavalo de batalha, carregava o escudo. Tais funções cabiam normalmente aos rapazes, aprendizes do serviço militar: Guilherme estivera na mesma posição uns vinte anos antes. Por volta de 1188 João de Early acabava de entrar para seu serviço. O Marechal acolhera-o ao retornar da Terra Santa; antes tivera por escudeiro Eustáquio de Bertrimont, Tal como Guilherme há mais tempo, tal como Eustáquio há menos, João não demorou a tornar-se cavaleiro, 49

porém não se separou de seu amo e mestre. Seguiu-o a cada passo, compartilhando de sua fortuna. Assim também se elevou, pouco a pouco, no nível que lhe competia: o rei João, em especial, cumulou-o de favores. Parece, contudo, que sempre se conservou "moço", no sentido que tinha esta palavra na língua dos cavaleiros: é muito provável que jamais se tenha casado. É certo, pelo menos, que morreu sem ter filhos - em 1231 seu irmão Henrique recebeu sua herança integral. Passou toda a vida ligado a Guilherme Marechal por esse sentimento que o poema chama de amor. Palavra fortíssima: é o ápice da amizade varonil. Ela justifica o papel que João de Early aqui assume. Ele é o informante por excelência, O poema se nutre basicamente dos elementos que sua memória conservou, durante os trinta e um anos em que serviu o falecido. Parece que o poeta, ao versejar, utilizou esse material já sob forma escrita, pois não diz, várias vezes, "o escrito afirma o que eu afirmo", "é isso o que o escrito me faz supor"? Se não leu os cronistas eclesiásticos, é certo porém que trabalhou com pergaminhos. Um deles é o registro já antigo, conservado nos arquivos da casa, que lhe serviu para indicar exatamente o que o Marechal ganhou numa série de torneios. Mas é também o caso desse outro escrito, ou melhor, desses escritos que ele menciona, e que divergem, como já mostrei, a propósito da batalha de Lincoln: a matéria na qual se baseou a História não foi, portanto, apenas uma memória transmitida por via oral. Ou, em todo caso, se 50

nos ativermos ao que o autor aponta, pelo menos parte das recordações de que ~le foi incumbid? de elaborar já havia passado antenormente da fala a escrita. Já estava fixada em notas. Será que João de Sarly começara a celebrar a glória de seu senhor e benfeitor a suas próprias custas (pois está dito que ele gastou o seu "haver" nisso), ditando a alguns letrados tudo o que lembrava? É possível. Pelo menos o que está fora de dúvida é que as informações mais seguras vêm de João de Early, o duplo do Marechal, que sobreviveu a ele e tem o que contar. E conta o que viu com os próprios olhos, mas também , e talvez acima de tudo, o que o Marechal, em , vida, contava e gostava de ouvir contar. A mernoria de João de Early na verdade coincide com a de Guilherme Marechal. João era o conservador oficial dessa memória; ele continua a portá-Ia, morto o Marechal, e a fazê-Ia reluzir, tal como em tempos havia portado e feito reluzir as armas de seu patrono. E entrega-a, reluzente, quando o mandam fazê-lo. Como fiel servidor, que devota sincero amor a seu amo. Pela voz de João, mais novo que ele uns vinte anos, fala o próprio Guilherme. Dele provém a informação, de sua própria memória. Pois, afinal, a canção não será o mesmo que suas memórias, não escritas pessoalmente, porém faladas, e depois reproduzidas fielmente? O mesmo que uma autobiografia? O equivalente dessas vidas de si mesmo .que, tomando Santo Agostinho por modelo, alguns intelectuais como Guiberto de Nogent e Abelardo ha'I o antes. ~N-ao viam começado a escrever, um secu 5l

possuímos as recordações pessoais de um cavaleiro contemporâneo de Leonor de Aquitânia e de Felipe Augusto? Aproveitemos uma SOrte tão favorável.

Essas recordações nos surpreendem por sua precisão. Precisão incri vel, como, cem anos mais tarde, vemos em pormenores das recordações de joinville, que escrutinou seu passado ainda mais idoso que João de Early, e com a mesma intenção: a de fazer tornar à vida seu falecido senhor, repetindo as palavras que São Luís pronunciara, relembrando as suas atitudes, a cor de suas vestes - também ele falando, ditando. Memória exata, infalível, prodigiosamente rica, a de todos os homens desse tempo que não sabiam ler nem escrever (Guilherme Marechal, como sabemos, era analfabeto; um dia seu amigo Balduíno de Béthune lhe fez entregar uma missiva; ele mandou que um clérigo a lesse, o qual se desicumbiu muito bem de sua tarefa, lendo-a "palavra a palavra", diz a canção, "sem nada saltar"), que deviam portanto confiar plenamente no que o seu cérebro arquivasse e que por isso se rodeavam de precauções para não deixar atrofiar-se essa faculdade natural, adestrando-a espontaneamente pela prática do canto (Guilherme gostava de cantar), pela declamação, a mímica, a ruminação do que ouviam.

O registro que temos, dessa memória fiel, é igualmente correto. Podemos verificá-Io. Paul Meyer, que organizou a admirável edição da História em três volumes, publicados pela Sociedade His-

tórica da França em 1891, 1894 e 1901, ~uniu o texto de um comentário pormenorizado, pr~clso, que nos permite checá-Ia item por ite~ .. Uns tnnta anos mais tarde, Sydney Painter, que VIrIa a co~tar entre os melhores medievalistas americanos e fOI um d.os primeiros a estudar seriamente a cult~ra da ca:valana, examinou os arquivos com cuidado ainda maior; seu livro William Marshall, Knight-errant, Baron an.d Regent o] England (Guilherme Marechal, Cavaleiro Andante, Barão e Regente de Inglaterra), que foi publicado em Baltimore no ano de 1933, fornece todos os complementos que se possam desejar. Eu me baseio nesses dois monumentos de erudição e sinto-me perfeitamente à vontade. Eles me convencem de que nada do que está relatado .no ~oema stá em franca contradição com o que fOI escrito na e , mesma época e que chegou a nos cron~cas ou cartas. As poucas deformações devem-se a dOISfatos. O primeiro é que esse documento literário. é um panegírico, como eram as Vidas de s:ntos e reis, ,u~a defesa de si mesmo, como sempre sao as memorias. Exagera os méritos, é óbvio, concentrando neles tod: a luz, mantendo criteriosamente na sombra o que e menos glorioso, apagando mesmo o que possa deslustrar a imagem. Era essa uma das funções dessa literatura de família: contribuir para a defesa d~s interesses da linhagem, inocentando os parentes cuja conduta se via censurada, heroicizando os co:ardes, cs matreiros, os perversos, contradizendo, mediante a exaltação de suas supostas virtudes, todos os rumores que podiam correr em detrimento de sua fama. A

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A apologia ia muito longe, às vezes. Parece ser este o caso, a~iá~. ~e surgia uma tal necessidade, após 1219, de msisnr tanto na lealdade de Guilherme (é verdade que "leal" rima com "Marechal"), não será por que era fundamental pôr fim às acusações de que ele fora felão, traidor? Temos provas de que sua reputação não era tão excelente quanto afirma o autor do poema, e muitos, na Inglaterra, o acusa~am de falta ao dever vassálico, e de perfídia. Considerernos o elogio, simplesmente, como um elogio; não nos deixemos enganar por ele. O outro defeito resulta das falhas da lembrança. Esquece-se mais facilmente aquilo que somente se sabe de ouvido. Assim, quando o olhar se aventura fora da época que João de Early viveu pessoalmente v,e~~s enfraquecer-se o rigor, que, nos períodos mai; próximos, conserva em exata continuidade linear a seqüência precisa dos feitos e gestos. E a memória se des~ia, se esfiapa, p~;de toda a coerência quando joão, o Trovador, ja não se atreve a dizer "eu vi" quando os acontecimentos que relata têm mais de quarenta anos. A visão turva-se, antes de 1188; e perde-se, antes de 118 O. Essa é uma censura menor, devo confessar, quanto ao objetivo que me proponho. Com efeito, menos me preocupam os fatos do que a maneira pela qual eles eram recordados e mencionados. Não estou escrevendo uma história do que aconteceu; ela já existe, por sinal muito bem escrita. O meu propósito é simplesmente o de esclarecer o que ainda se conhece pouco, recolhendo n~sse testemunho, cujo excepcional valor já aponter, o que ele nos conta da cultura dos cavaleiros. 54

Quero, apenas, tentar n .ens o viam.

ver o mundo

como esses ho-

F alei em homens. Pois esse mundo é masculino. Nele só contam os varões. Precisamos começar realçando este traço primeiro, e fundamental: são pouquíssimas as figuras femininas no poema, e fugidias as suas aparições. As únicas mulheres que se conservam, por um momento, em cena pertencem à parentela do herói, a sua parentela mais próxima: mãe, irmãs, esposa, filhas a família restrita, círculo no qual se impõe o tabu do incesto, não segundo as prescrições da Igreja, que ampliava em demasia a esfera da proibição, 'porém segundo a moral que então efetivamente se respeitava. Mas até essas parentas próximas só aparecem como sombras, que mal se vislumbram. Da mãe de Guilherme apenas nos chegam o nome, a casa (ilustre) de que descende e o fato de que ela se empenhou em mandar um de seus familiares procurar notícias de seu filho menor, quando preso. Já observamos o lugar que a esposa ocupa: marginal. Ela só aparece mesmo, com as filhas, durante a longa seqüência da agonia. Quando os homens se lembram de chamá-Ias, essas mulheres entram na câmara onde o Marechal agoniza; mas não permanecem, não tomam a palavra; ou, em todo caso, nada do que tenham dito pareceu digno de nos ser relatado: todos os diálogos são masculinos. Elas choram, desmaiam, desempenham o papel que em tais circunstâncias convém ao sexo feminino. Resta essa ponta de ternura que o moribundo sente pela 55

companheira de vinte anos ou pela mais desfavorecida de suas filhas. Ele também chora por elas. E são essas as únicas lágrimas que o vemos derramar. Mas em nenhum lugar está assinalado que se tenha preocupado com as mulheres antes da cena de adeus. Salvo a propósito dos esponsais, os seus próprios e os das quatro primeiras filhas. Casamentos, quer dizer, assuntos graves. Assuntos que os homens resolvem entre si. Aqui, ali, percebemos, penetrando no relato, outras mulheres. Contei, ao todo, sete emergências dessas, todas ou quase todas muito curtas. Na sua maior parte são suscitadas pelo próprio desenrolar da narr~tiva. Descrevendo a morte do herói, o autor precisava abrir lugar às filhas que visitam, decentemente, o seu pai agonizante, que assistem, decentemente, a? :e~ último suspiro. Igualmente convém, nas pe:lpeclas desse. jogo especificamente masculino que e o esporte militar, fazer intervirem ocasionalmente algun.s per~onagens femininos. Alguns aparecem de maneirn direta, pois sucede que certas mulheres t~me~ parte em tais ações. Mas pode-se dizer que sao, ainda, mulheres? Já sem nenhum traço feminino, elas combatem, na verdade, como homens. É o caso de Dona Nicole, que tinha, por direito de herança, o castelo de Lincoln; defendeu-o, com todas as forças, contra a gente do príncipe Luís da França. E também o caso de mulheres menos bem-nascidas, que metem diretamente a mão na massa: as burguesas de Drincourt (a atual Neufchâtel-enBray). Neste burgo os cavaleiros franceses e normandos se batiam, quando os últimos começaram a 56

vencer; então as mulheres juntaram-se aos maridos, que saíam de suas casas, e perseguiram os franceses em debandada, armadas com porretes, maças, machados. Antes disso, essas amazonas, junto com as damas da nobreza, se acotovelavam nas janelas e no alto das galerias. Desde o começo da partida elas já acompanhavam o desenrolar do combate, espectadoras apaixonadas. Precisamos dizer que esse combate, no poema, é descrito como se costuma descrever um torneio com arautos, menestréis que contam cada golpe de~ferido, e um público atento de torcedores. Com efeito, na incerteza geral que mencionei, já que esse acontecimento se passa na retaguarda da memória, supõe-se que o herói foi armado cavaleiro naquele dia. É por isso que tal escaramuça é tratada como uma dessas festas nas quais os cavaleiros recém-armados exibiam sua audácia, mostrando-se a suas admiradoras. Na verdade, porém, a história de Guilherme Marechal sugere que as mulheres, naquele tempo, não assistiam aos torneios com tanta freqüência quanto se supõe. Descrições de torneios são o que não falta ao relato que estou comentando. Ora, a presença feminina é mencionada, e ainda assim às margens da ação, somente em dois de tais recontros. Em Pleurs, na Champagne, fim da partida: uma mulher de elevada estirpe, ciosa de agir com elegância, veio oferecer ao duque de Borgonha, padrinho de uma das seleções em campo, uma solha mirabolante, com dois pés e meio de comprimento, ou talvez ainda maior. Esse objeto simbólico constituía o prêmio destinado ao melhor. (É notável, 57

não há dúvida, que coubesse a uma mulher conferi-lo, e esse dado vem confortar aqueles que acreditam na elevação da mulher no século XII, comprazendo-se em imaginar, num quadro trovadoresco, belas que coroam os mais valerosos.) Quem é príncipe, de coração nobre, não fica com tais presentes, distribui-os a outros fingindo que os considera mais valentes. Assim procedeu o duque de Borgonha. "Para redobrar a honra" da dama, que era cortês, culta e, diz a canção, valerosa ela mesma, a prenda passou de mão em mão por todos os maiores barões até chegar, como já imagina o leitor, nas mãos do Marechal. No torneio de joigny, ainda mais brilhante, as mulheres aparecem na abertura. O time do qual o Marechal é capitão já está em campo; espera, armado, o sinal de partida, animado, buliçoso, já na arena. Eis que deixa o castelo a condessa, "bem-feita de rosto e de corpo", escoltada de damas e donzelas "elegantes, corteses e de boa natureza". Os cavaleiros não se contêm mais, rompem as fileiras; entrechocam-se, entusiasmados com o prêmio, revigorados, esporeados por visão assim encantadora: "A audácia dobra em seu coração". Poder feminino, dessa feita incontestável. Mas examinemos mais de perto que papel é atribuído às mulheres. Elas aparecem para excitar os guerreiros à maior valentia. Eles se batem melhor quando é ante os seus olhos; a guerra, ou o simulacro de guerra, toma então as feições de uma competição entre varões, de uma dessas exibições eróticas que, dizem-nos os etnólogos, entram em Jogo na dimensão mais elementar dos mecanismos da vida. 58

Em Joigny, porém, as mulheres desempenham outra função: distrair os homens, ajudá-Ios a passar o tempo quando esse tempo lhes pesa, pois o ~cavaleiro, de armadura, não sabe o que fazer se nao tem de lutar. Com efeito, logo a seguir - como sempre, são apenas os homens que falam: "Vamos dançar, para enganar o tédio da demora". O?servemos. a cena com atenção, pois é rara a oportunIdade de V1Slumbrar como se dançava na época. Homens e mulheres dão-se a mão para alguma coisa que recorda uma ciranda. Não há músicos, basta o canto para movimentar a dança. "Quem fará a cortesia de cantar?" Evidentemente é o Marechal. Ele entoa um canto com sua voz, sem acompanhamento, e todos se juntam a ele. Cortesia. Era de se esperar, numa obra rimada à maneira dos romances, na mesma época em que Guilherme de Lorris compunha o Romace da Rosa, e que se dedica a descrever os prazeres que um homem de boa cepa encontra na vida. Ora, faço questão de observar como é discreta a presença da cortesia. A par de descrições tão minuciosas, tão prazerosas, dos jogos militares, só deparamos com uma única alusão a esses intermédios, durante os quais, para brincar, os cavaleiros por alguns instantes se misturavam com mulheres de sua posição. E, mesmo aqui, não é nelas que se concentra a atenção. Podemos ter certeza de que, exibindo os seus talentos de cantor, Guilherme procurava agradar à condessa e a suas companheiras - e não afirmar, por uma proeza de outra espécie, a sua .preeminência sobre os companheiros de liça, continuando junto às damas um concurso de excelência varonil 59

que a maior parte do tempo se realizava apenas entre os homens? Seja como for, ao longo desses quase vinte mil versos só nos aparecem três mulheres que, sem serem suas parentas próximas, estiveram em relação direta com o Marechal. Vejamos quem são elas. A primeira a surgir no relato é uma dama, esposa de um senhor, que sentiu pena de Guilherme quando este ainda era muito moço: gravemente ferido, o bando de aquitanos que o aprisionara fugia, arrastando-o de lugar em lugar, para que os seus não o conseguissem libertar. Numa dessas etapas furtivas, uma mulher de qualidade, "franca e de boa raça", olhou-o de longe, uma noite. Amor? Desejo, quem sabe? Seria essa mulher uma daquelas esposas insatisfeitas que Deus, para tentar os futuros santos, mandava (assim contavam os hagiógrafos) perseguir na calada da noite os adolescentes que repousavam em seu canto? Em todo caso, aqui é a estima que o trovador valoriza, a estima só. A dama pergunta. Contam-lhe que prova de coragem o donzel acaba de dar: expôs o seu corpo aos piores perigos para vingar a morte do tio assassinado. Ela manda alguém perguntar-lhe: de que precisa ele? De estopa, para estancar a ferida: ela lhe envia um tecido, às escondidas, num pão do qual retirou o miolo, sorrateira como sabem ser as mulheres de muita ternura. Mas nada nos diz que ela se tenha aproximado do menino: não foram mãos de mulher que curaram Guilherme, porém as suas próprias, que assim se transmudaram em mãos de cirurgião. 60

A segunda história é de .a~or, poré~ de ~m amor do qual o herói não é SUjeito nem objeto. ',-:avalgava solitário, na companhia de seu escudeiro Eustáquio, rumo a Montmirail, onde o espe:avam dois de seus companheiros de aventura, Baldu~~o de Béthune e Hue de Hamelincourt. Enquanto viajava, teve vontade de dormir; deita-se ao lado. da estr~da, que talvez datasse dos ro~a?os, manda tirar a redea e os arreios aos cavalos, deixá-los pastar soltos. Adormece. Um ruído o desperta. Uma voz de mulher, bem perto; ela diz - é a única mulher '~,m toda a canção de quem ouvimos as palavras Ah, ~eu Deus, como estou cansada". Não está só. Abrindo os olhos Guilherme percebe um casal que passa, montad~ em dois palafréns bem alimentados, "~urtivos no seu grande furto?" , e portando fa.r~os ~lcamente ataviados. O homem é belo, de condição livre, a mulher bela, dama certamente, ou donzela. Ambos muito elegantes, adornados com capas _de bo~ tecido flamengo. "Eustáquio, o que ouço? Poe a ~nda em meu cavalo, quero saber de onde eles vem, para onde vão." (Com efeito, é de. bom tom abo,:dar as pessoas que cruzamos no caminho, quando sac gente de qualidade.) Na press~, o Marechal esquece a espada. Alcançando o cavaleiro, toma-o pela manga do manto, pergunta-lhe: "Quem sois? - Um homem. - Bem vejo que não sois bicho". O outro se livra com um safanão, e prepara-se para tirar a '; No original, emblant grande emblure, O verbo embler, do francês medieval, hoje desaparecido, junta a idéia de voar e a de roubar (como o atual valer) . Tentamos manter esse duplo sentido na tradução. (N. da T.) 61

arma da bainha: "Quereis briga, ides tê-Ia" (o diálogo é de João, o Trovador, que estou seguindo literalmente). "Eustáquio, minha espada!" O desconhecido deixa cair o manto, guarda a arma, tenta escapulir. Mas é alcançado sem demora. Resiste, cailhe o chapéu, enxerga-se sua tonsura: é um monge, o mais belo monge do mundo. Envergonhadíssimo, angustiado, rende-se: "Estamos à vossa mercê. Sou monge, como podeis ver. Ela é minha amiga (note-se que termo usa: não diz esposa). Raptei-a de sua terra. Estamos seguindo para o estrangeiro". Chorando, a moça confessa ser flamenga, irmã de Dom Raul de Lens. "Não há sentido em vagardes assim, sem sentido", censura-lhe Guilherme (é insensato uma moça de boa cepa percorrer as estradas como uma puta; os únicos errantes toleráveis são os cavaleiros andantes. "Ide desistir dessa loucura. Eu vos reconciliarei com vosso irmão: é conhecido meu." Mas ela replica: "Nunca tornarão a me ver numa terra onde sou conhecida". O Marechal não insiste, inquieta-se: têm alguma coisa? Denários, ou qualquer outra moeda? O monge mostra um cinto repleto de moedinhas; ali tem pelo menos quarenta e oito libras (gaba-se); esse dinheiro ele porá a juros, numa boa cidade de comércio; viverão de rendas. "Usura? Pelo bom Deus, não posso admiti-lo. Eustáquio, confisca as moedas." Isso feito, o casal consegue escapar. "J'a que se recusam a emen d ar-se, já que sua maldade os arrebata", Guilherme mandaos ao diabo. Eustáquio recebeu ordens de não dizer nada quando o Marechal voltasse junto dos amigos. Estes perdiam a paciência, esfomeados. Para revigorá-los, Guilherme lançou o saco de dinheiro sobre

a mesa do albergue. Contaram as moedas; o monge não havia mentido: mais de dez mil denários, soma bastante para comprar muitas coisas belas. Depois de comerem e beberem, Guilherme disse de onde vinha fortuna tão inesperada. Hue protestou: então, eles ficaram com as montarias e bagagens: "Vou pegar meu cavalo, vou alcançá-Ios". Guilherme acalmou-o. Era sua vontade que a história acabasse ali. A anedota é uma das que maior prazer dava contar ao pé do Marechal, em sua velhice. A lição que ela dá é de muito interesse para o historiador dos costumes. Revela-lhe o que fica oculto em quase todas as fontes que ele consegue interrogar, excetuando as romanescas (que temos toda a razão em considerar com relativo ceticismo) : as moças, nas famílias de maior prestígio, nem sempre eram dóceis; acontecia que vivessem um amor livre, que casais se formassem sem o assentimento da parentela. As órfãs, negociadas entre o irmão e os possíveis noivos, por vezes tratavam de casar-se sozinhas. Com uma freqüência talvez menos excepcional do que nos pareceria à primeira vista, sucedia que o rapto, a fuga, os noivados clandestinos - numa palavra: o amor _ viessem perturbar as tramóias dos chefes de família. E não era impossível, depois disso, ajeitar as coisas por intermédio de amigos, acalmar os rancores, reconciliar as donzelas com os homens de cujo controle elas haviam fugido, devolvê-Ias, é verdade que com menos viço, ao circuito regular das trocas matrimoniais. Sob a condição, é claro, de que elas se dispusessem a tanto. Essa história nos mostra q~e algumas, ou por vergonha, ou por paixão, não acei63

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tavam retomar ao aprisco; que havia mulheres decidid,as a decidirem elas mesmas o seu destino, pouco lhes Importando o preço a pagar por isso, A moral do cavaleiro - isso, em compensação, conhecemos bem - mandava-o lançar-se, de rédeas soltas, ao socorro das mulheres bem-nascidas quando as VIsse em perigo. Com efeito, assim que ouve a queixa feminina, a qual lhe soa como um pedido de socorro, Guilherme salta a cavalo. Mas a moral do cavaleiro também lhe vedava usar de força contra as mulheres. Tratando-se de amor, ele deve respeitar-lhes a vontade. Aliás, também a Igreja assim determina. O elo conjugal abençoado por Deus não se estabelece, segundo as reiteradas proclamações da Igreja, pela adesão do coração, pelo consentimento recíproco? O Marechal, cavaleiro perfeito, domina então os seus ímpetos: deixa a "amiga" com o amigo. Por dentro, porém, ele ferve: é que esse amigo é um monge, Derrisão. Os monges não lhe interessam muito nessa fase florescente de sua vida. Contudo, o que o revolta é que moças de boa família lhes entreguem o corpo. Um clérigo, quando muito, ainda se podia aceitar. A cavalaria quer o monopólio de todas as mulheres de sua condição social; zelosa, ciumenta, proíbe aos varões de outras categorias que se aproximem delas. Tal como no passado, o conde Guilherme de Poitiers, trovador, o Marechal considera que as damas e donzelas que não recusem todo o amor a não ser o dos cavaleiros merecem ser queimadas, ou vivas, ou no inferno. Porém, segunda o preceito da paz de Deus, não se sente no direito de erguer a mão contra a mulher culpada. Nem 64

contra seu amante: não é missão dos cavaleiros forçar o respeito dos votos monásticos. Mas aproveita a oportunidade de castigá-Ios ind,iret~mente,: há, o dinheiro. Certamente eles têm dinheiro. Dinheiro que lhes queima as mãos, que por sinal ele se recusa a tocar, com as mãos próprias, encarregando o escudeiro de tomá-Ia. Dinheiro que serve ao prazer da cavalaria, que o cavaleiro gasta ledo e feliz, que sentiria vergonha em economizar. Pouco importa como foi adquirido. O repugnante é que esse tonsurado, que deita moças nobres na sua cama, pretende utilizá-Io tal como um burguês, pondo-o a juros. Um homem de qualidade não "ganha" dessa maneira. Também ganha dinheiro, porém graças à valentia, presas que conquista expondo o corpo ao perigo, não se aproveitando dos embaraços dos outros para emprestar-Ihes - emprestar especialmente a cavaleiros, como ele sabe muito bem, cavaleiros imprevidentes, que pagam juros de agiota. Por isso Guilherme rapa o tesouro sem nenhum peso na consciência. Só pega o dinheiro, desviando-o de um uso ignóbil em favor de outro, o único que não é fétido, infame: dilapidá-Io em festa. Apreender os outros bens seria ato de banditismo. Mas esse confisco lhe parece honroso, assim como a todos os que, para sua maior glória, divulgaram a lembrança de suas boas ações. Quanto à mulher, tampouco tocou nela. Tratou essa sem-vergonha em estrita obediência às leis da cavalaria. Finalmente - e chegamos à última silhueta feminina que aparece no relato, mas impalpável, quase invisível: não recebe nome; não se descortina seu 65

· rosto; comparece apenas no discurso dos homens, no debate masculino que a rorna por objeto -, urn amor atribuído ao Marechal, um amor culpado. Em 1182 quando tem pelo menos trinta e cinco anos -, ainda não se casou: é, como se dizia, "donzel", mas já glorioso, célebre invejado, pois. Por seus companheiros mais próxi~os, os guerreiros que, como ele, pertencem à enorme casa militar formada para Henrique, o Moço, herdeiro do rei da Inglaterra, que seu pai, Henrique Plantageneta, já mandou consagrar e coroar, associando-o a seu poder. São cinco os que invejam a Guilherme. De três, o poeta cala o nome: sua linhagem ainda não se extinguiu quando ele escreve o poema. Menciona, somente, Adão de Iqueboeuf e Tomás de Coulonces, Os cinco querem causar a perdição de seu companheiro, só porque seu senhor comum o ama em demasia. É isso o que eles lhe invejam, o grande a~or que o favorece. Assim tudo, nessa história, grra em torno do amor, porém não nos enganemos: em torno do amor dos homens entre si. Isso já não nos espanta; começamos a descobrir que o amor cortês, o que cantaram os trovadores da Prcvençn, e depois os da França do Norte, o amor que o cavaleiro devota à dama de sua eleição, talvez apenas ~ascarasse o essencial, melhor dizendo, talvez projetasse na área do jogo a imagem invertida do essencial: que são as trocas amorosas entre guerreiros. A Ia corn apenas gostava

história é bastante comprida. Vou examiná. todos os detalhes que o poema fornece. Não porque o Marechal costumava contá-Ia ou de ouvi-Ia, mas acima de tudo devido à luz

muito forte que lança sobre a realidade das relações entre masculino e feminino no final do século XII, nessas grandes cortes cujos príncipes divertiam seus amigos reunidos, fazendo ler romances b~etões .. ~s in ve josos, os "lisonjeiros" (o anônimo Joao utiliza as mesmas palavras dos romancistas) montam ~~tão uma intriga. Que vai prosperar entre os familiares do jovem senhor, que na competição por seus favores não hesitam em se espionarem uns aos outros. E terminará transformando o amor do senhor em "grande ódio, e cruel", contra o caval~iro cuja perdição eles conspiram. Contudo, precavidas, nao querendo ser também eles odiados, limitar-se-âo a despertar suspeitas. Adãoe Tomás são norrnandos. Começam abordando outro normando, Raul de H~mars, apostando no orgulho étnico, corda das mais sensíveis: "Seremos reduzidos ao papel de bastardos, se continuarmos deixando esse inglês nos suplantar em tudo". Só se fala dele, na Normandia, na França. E por quê? Porque tem na palma da mão o arauto d'armas, Henrique Le Norrois, que, a cada tcrneio que se abre, lança o grito de guerra de Guilherme: "Deus ajude o Marechal!" Os melhores então acorrem, somando-se a seu grupo. E lhe basta estender a mão para vencer cavaleiros e tomar cavalos. Daí vem sua posição na cavalaria, o renome que nos ofusca e o dinheiro que lhe serve para conquistar tantos amigos. Porém, não é isso o que nos irrita. Não acreditamos no que ouvimos: com a esposa de D. Henrique, nosso amo e senhor, Guilherme "faz isso". Isso, o quê? Faz amor? Não, essa palavra não aparece. Ao longo de toda a canção o termo amor só aparece para designar o sentimento que os ho-

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me-?s têm unspelos outros. O que se diz aqui é coisa muito mais simples: o Marechal deita-se com a rainha. . A r~inha, esposa do jovem rei Henrique, é Margar~da, fIlha do rei Luís VII da França, irmã de Fellpe Augusto. Em 1168, para consolidár a paz recentemente firmada entre a casa Capeta e a dos Plantage~etas, ela foi entregue por seu pai ao filho de Hennque II da Inglaterra. O menino tinha cinco anos, ela três. Agora ela tem, vinte e cinco , dez anos a menos que o Marechal. E isso tudo o que sabemos.a seu respeito. E sabemos graças a outras fontes, pOIS o poema, como já disse, sequer pronuncia o s~u nom~. Ela aparece na biografia como uma espécie de signo abstrato, um atributo que valoriza realça o brilho do herói. E como realça! Pois quem' sen~o T ristão, pode sonhar com dama de melho; posição> Tristão, porém, era sobrinho do rei Marcos. G~ilherme está longe de poder aspirar a parentesco ~ao elevado. Não passa de um rapaz vivendo uma vida de aventuras, nisso igual a seus acusadores. A presunção de adultério é latente nas casas ?ob_res.. Todos os cavaleiros moços (Guilherme não e tao Jovem assim, mas é "moço" no sentido da época: solteiro) assediam a esposa do senhor. É o Jogo, cortês. Apimenta a competição permanente que tem na Corte seu lugar de escol. Rivalizam todos. Quem conquistará amor da dama, para assim ter o do senhor? Mas há um risco, o de acabar envolvido nesse jogo, de. ultrapassar os limites da convenção. Nesse caso o Jogo se torna perigoso. Uma mulher quase não tem defesas nessas grandes residências sem

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paredes divisórias, escuras desde o cair da noite, repletas de homens. Aliás, a própria mulher, frustrada o mais das vezes, pode ter vontade de se divertir. A promiscuidade favorece ligações que não são sempre, necessariamente, de mera exibição. Em tempos idos, na casa do rei da França, o avô e a mãe do jovem Henrique, Guilherme Plantageneta e Leonor de Aquitânia, então rainha, talvez tenham unido seus corpos; disso, pelo menos, gabava-se Godofredo Plantageneta. Em todo caso, cada qual pensa que tais fornicações, quer violentas quer consentidas, podem vir a acontecer; o chefe da casa as receia, temendo dar o nome a filhos gerados por outra semente e que assim usurparão os bens ancestrais; a sua volta todos ficam à espreita, empenhados em manter bem aceso o ciúme do senhor para se tornarem seus favoritos, para prejudicarem os companheiros. "Se el-rei, nosso senhor, dizem Adão e Tomás, conhecesse a 'raiva' do Marechal, bem nos vingaríamos dele." Instam Raul a revelar-lhe a "vergonha", as "coisas feias" que "desonram e enganam" o rei. Vergonha que recai sobre os seus, que por isso também se sentem aviltados. Prudente, Raul se esquiva. Tal como os intrigantes, não quer incorrer na ira do senhor, nem na do homem que vai ser denunciado. Não importa, o boato já corre. Chega aos ouvidos de Guilherme Marechal através de Pedro de Préaux. A vergonha seria sua - pensa ele - caso se defendesse da mentira. Seguro de sua inocência, aguarda que a verdade se imponha. Ninguém ainda se' atreve a falar ao marido. Então um dos cinco imagina empregar, para 69

esse mister, um homem dos mais fáceis de manipular da casa. E ~os seus mais próximos, primo-irmão por parte de par e de mãe; é um "valete", um mocinho, adoles~ente que o rei ama (agora se fala em amor). Embn~gam-no até ele perder a razão, até cair na armadilha esse Raul, tão bem conhecido corno "o L.ogrado". Raul leva a informação ao rei, que inicialmente se recusa a acreditar. Então saem da sombra os cinco conspiradores, dando o testemunho coletivo que o costume exige para sustentar a acusação ~ontra a esposa e assim dar início à causa. Eles confirmam: estão a par do fato "por virem e ouvirem". Perturbado, quer dizer, convencido, Henrique, o Moço, age como é seu dever. No que diz respeito a Margarida, nenhuma palavra na canção menciona sua sorte. É como se ela não existisse, é como se os homens não lhe dessem a menor importância, sequer seu marido, preocupando-se apenas com as flutuações do amor e do ódio den,tr~ d~ fechado universo masculino. A rainha tera sido mterrogada, terá sido submetida à prova do ferro em brasa, que na época ainda se usava em tais circunstâncias? Sabemos apenas que Henriq~e passados alguns meses, mandou-a de volta, como se fosse um objeto que perdera os atrativos, a seu irmão, rei Felipe da França, que por sinal logo voltou a encontrar-lhe urna serventia, casando-a com o rei Bela da ~~ng:ia. Mas nenhuma crônica afirma que esse repúdio tivesse outros motivos além das idas e vindas de urna diplomacia que, naquele tempo, tinha nos casamentos e separações seus meios mais habituais. Quanto ao Marechal, o seu senhor voltou-lhe

as costas e parou de lhe falar. Privou-o de seu amor. Foi seu único castigo, mas o pior, que durament,e o atormentou. Traído ou fingindo-se traído, Guilherme retirou-se da c~rte. Espontaneamente, conta a história. Logo, porém, lhe ~etornaram. ~s esperan~as. He~r~que, o Moço, preCIsava dele: Ja se anunCIava o ,UltImo rorrieio do outono de 1182, antes que a epoca do Natal interrompesse a temporada esportiva. A seleção inglesa de nada valeria se ? Marechal, nã,o figurasse nela, como antes, na qualIdade de prmcipal desportista. Vergonha e rancor se apagavam ante o desejo de conquistar mais uma copa nesses campeonatos militares. Medimos aqui quanto podia valer o ciúme, quanto valiam também as mulheres, face aos prazeres que os cavaleiros esperavam alcançar na vida. Assim se viu chegar Guilherme, todo armado, no instante exato em que os cavaleiros, com as cores dos Plantagenetas, iam entrar em campo. Sem dizer palavra o Marechal juntou-se a eles, fazendo durante toda a jornada os prodígios de excelência que dele eram esperados. Somente desta feita, conteve-se de vencer da maneira que convém aos fidalgos, isto é, capturando cavalos, cavaleiros e arreios. Em duas ocasiões se lançou ao socorro daquele que continuava a ser seu senhor, libertando-o da pressão adversária quando estava a ponto de s~r capturado. Às suas proezas o partido de Hennque, o Moço, deveu a vitória. Dos dois lados todos concordaram em reconhecer Guilherme como o melhor da jornada. Quando, após o recontro, os maiores barões se reuniram como de costume, o conde de 71

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Flandres censurou, brincando, o jovem rei: "Belo primo, quem tem um cavaleiro como o Marechal não o deixa afastar-se". Conversa de bêbado? O beato de adultério já teriaextrapolado os limites da casa real? O interpelado não responde palavra; não pode explicar suas razões; todos o vêem enrubescer, e Guilherme também enrubesce, de vergonha e cólera. Entre os dois homens, silêncio. A devoção, o serviço perfeitamente cumprido não bastam para fazer renascer o amor. O rancor é mais forte, abafa o reconhecimento. Por isso Guilherme volta à estrada, sozinho. Nenhum de seus amigos ousa fazerlhe companhia, ante o ressentimento do chefe. Mas os invejosos querem ainda mais. Viram I) senhor de cara fechada para o glorioso, mas percebem que não pode dispensar sua colaboração. Por isso precisam desferir seus golpes mais de cima. Vão a Ruão, informar o pai, Henrique, o Velho. Esse estremece diante de "vergonha" tão grande. E é tudo. No íntimo, está muito satisfeito: o bando de bagunceiros que o filho protege faz que gaste muito dinheiro; se o Marechal vai embora, melhor: um a menos, logo o mais pródigo. Porém, quando chega aos ouvidos de Guilherme que o rei Henrique II de Inglaterra, que ele sabe estar informado do caso , terá no próximo Natal corte plenária em Caen, corre até o monarca. Agora está decidido a pôr fim ao silêncio, a justificar-se em público, e perante o melhor auditório possível, a flor da cavalaria reunida para a festa de inverno. É o lugar e hora de romper o abcesso, de resolver o diferendo segundo o direito, e de se oferecer, como um novo Tristão, para a batalha - de se dispor ao ordálio, ao julgamento e 72

de Deus. Deus, pelo resultado de um duelo judiciário, distinguirá o inocente do culpado. Guilherme aceita até mesmo que haja três combates sucessivos. Diz-se disposto a enfrentar um após o outro os três mais valorosos capitães que se possa encontrar. Se não conseguir vencer a todos, admite que o marido desconfiado o mande matar, o faça enforcar. É isso o que ele propõe, em plena assembléia, ao homem que se sente lesado. Ou então que lhe cortem um dedo, qualquer um, da mão direita. Aceita combater o campeão adversário com esse bandicap, Novo rei Marcos, Henrique, o Moço, recusa: "Não cuido de vossa batalha". A uma cena tão dramática só falta um personagem: Isolda. Estará presente? O que nos surpreende é que assuntos desse tipo sejam tratados assim, como um grande espetáculo. Tudo o que resta a Guilherme é ir embora. O que faz, solenemente. Diante dos dois reis, o velho, o moço: "Posto que não ergue a cabeça nenhum dos que me infamaram, e que isso é tolerado, contra a lei do país, posto que vossa corte está inteiramente voltada contra mim, apesar de eu haver oferecido mais satisfações do que satisfaria a razão, bem vejo que é forçoso eu ir viver em outra parte. Alegra-me, pelo menos, que uma tal assembléia tenha visto, com os próprios olhos, como me foi negado o que era meu direito". Devidamente munido de salvo-conduto, deixou então o domínio Plantageneta. Seguro de estar agindo corretamente. Algumas semanas depois, de fato o rei moço já lhe pedia que retornasse. Entretanto ele se tinha livrado da esposa. Nada o impedia de amar o Marechal, o qual, de resto, continuava a ser-lhe indis-

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pensável. Tornou a amá-lo, Com uma complacência que nos espanta. Porém não cabia justamente aos reis, na medida em que encarnavam a primeira das três funções, a da sabedoria, mostrar (como escreve Georges Dumézil, em La courtisane et les seigneurs colorés, p. 192, baseando-se nos trabalhos de Joel Grisward) "uma serena tolerância face à fraqueza feminina"? Segundo o panegírico do defunto, o rumor era calunioso. O Marechal foi acusado injustamente, como a santa Susana pelos velhos, enganado tal como os Reis Magos foram por Herodes, condenado sem provas como Daniel na cova dos leões. Quer dizer que era inocente? O segredo e a dissimulação pertencem, por definição, à. cortesia. Em todo caso podemos supor que não foi pequeno seu orgulho, e que tinha prazer em se gabar de ter sido, uma vez em sua vida, amante de uma rainha. Assim não imitou com os gestos adequados, no mais brilhante dos cenários e no mais belo dos papéis, as aventuras daquele que foi o mais fascinante dentre os heróis romanescos? Quem sabe se no resto da vida, uma vez passado o perigo, ele se defendeu da suspeita com tanto ardor quanto deram a entender os que mais tarde celebraram suas virtudes? Não lhe agradaria deixar pairar a dúvida? Ao que tudo indica sem insistir muito na pessoa da amante, cujo principal atrativo a seus olhos, como também no romance, consistia em ser esposa de um rei. Esses contos que tanto prazer davam aos cavaleiros, sem jamais os enfarar, neles alimentavam sonhos fadados a grande repercussão: em que medida 74

esta ressonância da fantasia determinou (se é que o fez) a recordação dos fatos vividos que ficou fixada na História de Guilherme Marechal? Pois me surpreende ver como é curta a distância que separa das ficções corteses a realidade que o poema pretende descrever fielmente .- e para medi-Ia esse texto nos fornece uma ocasião ímpar. Uma tal constatação nos convidaria a não mais considerar tão falaciosa a imagem que a literatura romanesca apresenta dos comportamentos masculinos e femininos. De qualquer forma, penso que o Marechal, na atitude que a biografia lhe atribui, a de sentir-se honrado pela condição social da mulher que teria conquistado, é a melhor testemunha que temos para o que foi, na sua verdade social, o amor conhecido como cortês. N egócio de homens, no qual compareceu a vergonha e a honra, o amor - deveria forçar-me a falar em amizade? - varonil. Repito: apenas dos homens se afirma que amam, num relato do qual as mulheres estão ausentes quase por completo. Gênero literário muito preciso, a apologia fúnebre talvez estivesse sujeita a este tipo de discreta prescrição. Seja como for, nesse texto que podemos considerar como suas memórias, o Marechal nada revela de arroubos que, em nossa Íingug gern, chamaríamos de amorosos. Um tal silêncio já basta para dizer muita coisa acerca da condição feminina, ou melhor, da consideração que os homens da época tinham pelas mulheres.

Elas são, quando delas se fala, quantidade desprezível. Porém há também muitos homens que não 75

valem mais do que elas, aos olhos do Marechal e de seus amigos. Nenhuma alusão encontramos às massas dos que tinham a função de lavrar a terra. Uma única, aliás, - o comentário de que os camponeses sofriam com as guerras. Atenção, porém. Não vamos pensar que os cavaleiros tivessem pena deles; deploravam, apenas, os efeitos de sua miséria: quando os pobres, saqueados, esfolados pelos combatentes, nada mais têm de seu, só lhes restando abandonar os campos e fugir, os próprios senhores se empobrecem. É destes últimos que devemos nos condoer. - T ampouco aparecem burgueses, ou raramente, pois se trata de gente desprezível: que vai juntando dinheiro às custas dos cavaleiros, por eles espoliados. Mas o que é surpreendente é que os próprios homens de preces mal apareçam. Vemos passar somente alguns bispos, não dos mais santos, não dos mais cultos, simplesmente os que, com um elmo cobrindo a cabeça, vão ao campo de batalha com seus irmãos cavaleiros: o bispo de Dreux, o bispo de Winchester. Ao que tudo indica, no seu período vigoroso e folgazão o Marechal não costuma conviver com clérigos ou monges. O monumento erigido a sua glória fala pouco em suas devoções. Tão pouco quanto em seus amores. O que não nos permite, porém, supor que no correr da vida tenha freqüentado pouco as mulheres. Pois sabemos que era devoto a seu modo, um modo livre, desconfiadíssimo dos especialistas da oração, um modo que podemos considerar bastante comum no meio militar. Foi rodeado de guerreiros que Guilherme viveu e agiu. Eles ocupam toda a sua memória. Alguns deles não eram nobres: os "ribaldos" que se batiam em troca de di76

nheiro, a pé, como convém aos inferiores, seres repugnantes, mas de inegável eficiência. Vislumbramos alguns deles nos bastidores dos combates. O palco, porém, está inteiramente ocupado por cavalos e cavaleiros, e todos estes, salvo alguns "sargentos", são de boa raça. Aos olhos do homem cujas façanhas ouvimos narrar só importa uma parte da espécie masculina, a que é formada pelos combatentes dignos de tal nome, designados por Deus para tal ofício; a espada que receberam ao serem, solenemente, armados atesta qual é sua vocação: são eles os cavaleiros. E o elogio do Marechal é, acima de tudo, o elogio deles. A louvação se amplifica por um momento, no ponto culminante da narrativa, ao contar como a fortuna mudou de campo durante os combates de Lincoln, quando o céu deu a vitória a Guilherme e seus companheiros. Acreditamos então ouvir as palavras que garantiam a coragem desses homens e sua altivez na própria adversidade, exaltando os valores principais de um estado que eles tinham certeza ser o maior de todos. Profissão de uma fé imune a quaisquer dúvidas, profissão de desprezo não menos convicto por tudo o que é inferior a esse estado, por toda ação que não é militar.

o afã das armas que será? Empregam-se elas como a pá, a joeira, O machado? Não, bem mais grave é seu fardo. Então, da cavalaria que digo? Que é cometimento tão rijo e arrojado, de arte tão árdua, que o mau de tentá-ia se guarda. 77

Quem erguer-se ao alto pretende dessa honra, primeiro lhe im pende, pois, empreender-lhe o aprendizado.

A cultura dos tempos feudais nada nos deixou que mostre, mais claramente do que estes versos, o que a classe dominante pensava de si mesma, ou como agia a fortuna para alçar um homem, e alçá-Io tão alto.

] á está na hora de situar, em poucas palavras, o cenário no qual se movimentam esses cavaleiros. O teatro é evidentemente o da guerra, do interminável conflito entre Cape tos e Plantagenetas. Em 1066, a vitória de Hastings entregara a Inglaterra a Guilherme, duque dos normandos, e aos cavaleiros que o seguiam. A ilha assim caiu sob o domínio de uma aristocracia cuja cultura e maneiras de expressão eram inteiramente continentais, e que do outro lado da Mancha conservava, além das sepulturas de seus antepassados, boa parte de seus interesses, domínios e poderes. A Normandia pertencia ao reino de França. Continuou a pertencer-lhe, e seu duque continuou vinculado aos soberanos francos, sucessores de Carlos, o Calvo, e de Hugo Capeto, pelos ritos da homenagem - vassalo deles, obrigado pelo menos a nada fazer que pudesse prejudicá-los. Porém, sendo agora rei também ele, por direito de conquista, seu poder efetivo logo superou o do outro rei, seu senhor, que passou a ter como principal preocupação a de reduzir a desigualdade entre ambos. 78

Ora longe de se atenuar, o desequilíbrio agravou-se bruscamente em meados do século XII, durante a infância de Guilherme Marechal. O principado normando viera ter ao marido da neta do Conquistador, outro grande vassalo do Capeto, ~odofredo Plantageneta, conde de Anjou. Seu filho Henrique pretendia o trono da Inglaterra, alegando o sangue da mãe. E subiu a esse trono em 1155, logo depois de tomar a esposa do rei Luís VII de França, Leonor, tornando-se, em nome dela, conde de Poit~u e duque de Aquitânia. Seu poder assim se estendia por uma boa metade do reino de França; se pretendia estender-se até os Pireneus e a cidade de Tolosa, revelava-se inconteste, pelo menos, ao norte do rio Loire: e se exercia com todo o vigor a poucas léguas de Paris. Uma tal pressão sobre o domínio real era insuportável. Assim, temperadas pelo freio, p~r sinal bastante eficaz, que constituíam a ideologia da realeza e o elo feudal, entrecortadas por tréguas prolongadas dado que era impossíve~ fazer a gue~~a por mais do que alguns meses seguidos, as hostilidades não haveriam de cessar até a morte do Marechal: entre Luís VII e depois Felipe Augusto, por um lado, e por outro Henrique II e depois seus filhos e sucesscres Ricardo Coração de Leão e João sem Terra. No correr dos três quartos de século cobertos pelo relato que ora utilizo, uma fissura foi aumentando, insensivelmente, no seio da aristocracia anglo-normanda: uma parte dela foi gradualmente se conscientiz.ando de ter vínculos mais sólidos com a Inglaterra. E ainda assim, mesmo depois de conqu~stados por Felipe Augusto o ducado da 'Normandia, 79

o Maine e o Anjou, os cavaleiros do rei da Inglaterra não deixaram de sentir-se em casa do outro lado do mar, e de sentir uma estreita solidariedade cultural com os cavaleiros do rei de França, compartilhando seu desdém e desconfiança por tudo o que portava armas adiante do Loire ou na Aquitânia. Nenhuma batalha de verdade ocorreu antes de Bouvines (1214) e Lincoln (I 217) , porém uma série de e~caramuças, escandida de quando em vez por a!gu,ns Impulsos agressivos mais intensos, que consnturarn o elemento picante na existência da cavalaria. Dessa existência a vida de Guilherme Marechal nos conta tudo - pela construção de suas frases, a e~colha das palavras, o jogo da memória e do esqueCImento, em suma, pelo que confessa e pelo que o~ulta. ?em contar que se trata, já, de uma biografia. Assim, graças a Paul Meyer e Sydney Painter, que a submeteram a uma crítica erudita, posso me dar ao direito de repartir com seus primeiros ouvint~s, de quase oitocentos anos atrás, o prazer tão VIVO que proporciona um texto tão belo.

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regras desse gênero literário muito preciso que eram as Vidas dos santos mandavam começar a narrativa pela parentela, por esse tronco do qual o herói era apontado como o mais admirável rebento. Evocar a ascendência parecia indispensável, "pois da boa árvore nasce o bom fruto", como repete nossa canção: não recebemos todos nós ao nascer, trazido pelo sangue dos ancestrais, o germe das virtudes que nos incumbe fazer florescer? Aquela época considerava a santidade como atávica. E também a valentia. Por isso a Vida de Guilherme Marechal começa pela linhagem, porém não vai muito longe por essa via: detém-se no pai e no tio -materno, Pois esse herói era um homem novo. Punha sua glória em nada dever a ninguém, a não ser a si próprio. Podemos supor que, em vida, tenha falado bem pouco de seus antepassados, bastante obscuros. Seu filho e amigos, morto o Marechal, não tinham portanto como venerar-lhe a memória. Além disso, no conjunto das honras e bens que sustentavam, em 1219, 81

a grandeza do Marechal moribundo, a parte que lhe vinha dos avós devia ser bem pequena. Por conseguinte não era necessário fazer uma genealogia muito remota. Assim, é graças a outra fonte, o diploma régio que, bem tarde em sua vida, conferiu a Guilherme o cargo de marechal, que conhecemos o nome do avô paterno - Gilberto. Porém apenas o nome: não sabemos qual sua origem. Esse nome sugere, contudo, que fosse filho ou sobrinho de algum dos aventureir?s que seguiram Guilherme, o Conquistador, ou s: Juntaram a ele d~pois de ocupada a Inglaterra, atra~dos pelas perspectivas que a conquista oferecia. Possivelmente um filho caçula, certamente nascido no contin~nte. Observemos que essa origem já estava esquecida no começo do século XIII ou que, pelo menos, os descendentes já não se importavam muito com ela. Guilherme Marechal é classificado entre os ingleses; sente-se inglês; vê os normandos como estrangeiros, os franceses ainda mais. O que não o impede de admirar os cavaleiros de França e de lhes atribuir as primeiras posições na cavalaria «por sua valentia e apreço e pela honra de seu pais", Um século antes da morte de seu neto esse Gilberto exerceu junto ao rei de Inglaterra, Henrique I, as funções de marechal da corte, o que lhe valeu seu apelido, que terminou sendo nome de família. Naquele tempo, os marechais eram domésticos' alimentados e vestidos como os demais membros da casa real; esperavam além disso gratificações, cujo .montante variava conforme a largueza do senhor e o lugar por eles ocupado na hierarquia dos servidores. 82

Os marechais, aliás, não se situavam nos graus mais elevados dessa escala. Estavam subordinados a um dos principais oficiais, o condestável, ~n~arrega?o dos estábulos senhoriais e de tudo o que dIzIa respelto aos cavalos. Contudo, dado que desde o ano Mil o pape~ da cavalaria não parava de aumentar no tocante a ação militar, sua função f?ra tamb~m aumentando em prestígio e valor político. E eVld:ntemente subia de importância e de nível de rendImento segundo o poder do senhor servido. Na «família" do rei de Inglaterra o marechal da corte, no t~mpo de Gilberto controlava o serviço militar devido pelos feudatá:ios da coroa e o gasto de dinheiro na guerra' também lhe incumbia manter a ordem no círculo q~e rodeava o soberano. O costume, ~á então fixado por um regimento escrito, .estabele~Ia seus ganhos: catorze denários , meio sesterro de vinho e. uma vela por dia, se comesse as refeições na c.asa, ~unt~ com os outros' vinte e quatro denários (ISto e, dOISsoldos) , um' naco de pão, um sesteiro de vinho e vinte e quatro pedaços de vela caso se alimentasse po~ conta própria. Em certas solenidades, quando o rei armava um conde ou barão, ele também tinha direito a um palafrém selado por novo cavaleiro. T ais ofícios domésticos logo se tornaram hereditários. À morte de Gilberto, por volta de 1130, seu filho mais velho, João, pai de Guilherme, recebeu o título e as prerrogativas a ele anexas; conservou-os ainda depois de 1239, quando se afastou definitivamente da corte e da pessoa do rei. Pois esse ia gradualmente perdendo o poder que lhe re~tava. E~têvão de Blois sucedera em 1135 a seu tIO Henri83

que I, que não tinha mais filhos legítimos. Foi-lhe difícil instalar-se no trono; para fazer-se aceito, precisou multiplicar as concessões à aristocracia. Pois contra ele se erguiam todos os que, no intuito de justificar sua reticência e exigir maiores concessões, proclamavam Matilde, filha do falecido rei, herdeira mais direta do que Estêvão. Seu número foi crescendo pouco a pouco, ao passo que se esvaziava o tesouro. A confusão tomou conta do reino assim dividido. Em cada província os velhos ódios se revigoravam, as cobiças, a vontade de crescer às Custas dos vizinhos. Tomava-se um partido ou outro, o do rei coroado, o da mulher que lhe disputava a sucessão. Isso também sucedeu em torno do castelo de Marlborough, condado de Wiltshire, nas terras de João Marechal, onde este fora viver achando que a ocasião era propícia para fazer seu jogo pesssoal. Esse jogo, no qual (como diz o poema) "um perde e outro ganha", era a guerra. Entendamos: a rapina, o saque, a ganância. João se defrontava, do Outro lado da planície, com Patrícia, governador do castelo de Salisbury, chefe de outro bando. Nesse ponto alcançamos os confins da memória de família. Em brumas tão remotas mal se distingue a silhueta de João. Tudo o que se recordava era que ele distribuía com largueza e, não sendo conde nem barão dos mais ricos, ainda assim conseguira manter a sua volta grande número de cavaleiros. Trezentos, diz o texto, o que obviamente é exagero. Pelo menos dois acontecimentos, porém, conservam-se nitidamente registrados na memória. Dois fatos importantes por suas conseqüências: estão ambos na origem da fortuna

que haveria de favorecer a Guilherme. como a causa de todos os seus futuros

Considero-os sucessos.

Por mero acaso João fez ainda cedo, no melhor momento, a opção correta. Aderiu ao, Ia.do de Matilde. Esta passava perto de seus domínios qu~n~o ele a serviu, numa escaramuça, expondo a propna vida. Cobriu-lhe a retirada quando o pequeno bando que a servia recuava ante as forças, bastante superiores, do rei Estêvão. Aqui ve~os un: desses por.menores precisos - ínfimos, porem catlVant:s, e ainda mais aos olhos dos entusiastas da cavalana - que freqüentemente resistem ao esquecimen~o qua.ndo esse desfia a trama da memória. Era pr:cIso f~gIr, e depressa; Matilde cavalgava como en~ao faziam as mulheres sentada sobre sua montana co~o uma amazona; , atrasava a cornpan h'Ia. "Sen hor:, J~ro p~r Jesus Cristo (ter-lhe-ia dito João). que nao. e POSSIvel esporear o cavalo dessa maneira; deveis passar uma de vossas pernas sobre a sela." Lutou com dedicação, resistiu ao inimigo, tentou, no convento feminino de Wherwell, retardar o avanço dos perseguidores. Estes incendiaram a torre em que ele se instalara; o chumbo do teto derreteu-se e esco:reu sobre seu rosto; os homens do rei pensaram que tmh: morrido. Graças a Deus sobreviveu: regressou a pe até Marlborough, porém só lhe restava um o~ho. A memória dos príncipes é curta. Porém MatII~e se recordou da façanha, da dedicação de seu servidor, e seu filho Henrique Plantageneta não o esq~ec~eu ao tornar-se rei de Inglaterra à morte de Estevao, em 1154. João assim conquistara o a~or e boa vo?tade do senhor que mais favores podia lhe conferir.

84 85

Ele ia subindo na escala social graças a sua valentia - mas acelerou o processo e subiu mais alto casando-se com uma moça de elevada linhagem. Desde o começo desta história já nos deparamos com os efeitos determinantes que as estratégias matrimoniais produziam, nessa época e nesse meio, sobre todos os ritmos de ascensão social. Como sempre acontecia com o primogênito, João Marechal foi casado cedo. Sua mulher, de quem nada sabemos, pois para Guilherme e seu biógrafo ela não apresentava nenhuma utilidade, deu-lhe dois filhos. Porém, agora ele se via na oportunidade de contrair uma aliança muito mais vantajosa. Ia-se evidenciando que Matilde estava para vencer. Patrício, o rival de João, já tratava de se acertar com os prováveis vencedores. Levava vantagem na guerrinha local. Era de sangue bem superior ao de João, o que nem mesmo no círculo de Guilherme, cinqüenta anos passados, ninguém se atreveria a contestar; tinha mais poder do que ele. Negociava sua adesão a Matilde. Os Plantagenetas, para terem seu apoio, fizeram-no conde de Salisbury. Em contrapartida conseguiram que ele cedesse a irmã a seu fiel servidor João. Os casamentos serviam para isso - reconciliar inimigos, consolidar a paz. Sem hesitação - na época eram corriqueiras essas substituições de uma esposa por outra - João repudiou a esposa, ficou livre, tornou a casar-se. Agia, segundo o panegírico, pelo que chamaríamos de civismo e para satisfazer seu senhor. Para pôr fim à discórdia que reinava entre ele e Patrício. E não por apetite. Temos o direito de não seguir cegamente, nesse ponto, o que nos diz o trovador João. 86

A segunda esposa, donzela Sibila, valia mesmo muito mais que a primeira.

Foi mãe de Guilherme, segundo dos quatro filhos varões que João Marechal engendrou "nela", mais duas filhas. Guilherme seria portanto o quarto, na ordem de sucessão ao pai. Precediam-no os filhos do primeiro leito, Gilberto e Gauthier (sabemos que pelo menos este último exerceu o cargo de marechal, depois do pai) , e João, primogênito do s~gundo ~asamento, que tinha o mesmo nome do pai e tambeI? lhe sucedeu. Nessa abundante progenitura masculina Guilherme se localizava, pois, entre os extranumerários assim como Anseau, o filho seguinte, e o caçula, Henrique. O mais novo foi posto I?a I~re;a; depois de longa espera, o sucesso de seu 1fl:~ao no mundo o fez ascender no clero: morreu bispo de Exeter. Que importância se dava, na casa, a esse.s meninos que tiveram a má sorte de nascer ma~~ novos? Uma anedota - é ela que introduz o herói em cena quando devia ter uns cinco ou seis anos, e era esta uma das recordações mais antigas que ele contava - lança uma certa luz sobre a condição da criança na sociedade de cavalaria. Os ~o~u~entos que possuímos falam tão pouco da condição mfa?til deixam-nos tão mal informados, que mUltas histo~iadores, entre os quais eu, nos inclinamos a pensar que os filhos de cavaleiros, exceto (s: tanto) o filho primogênito, mal importavam a~ pal enquanto não tivessem a idade de combater Junto dele ou contra ele. Examinemos então essa anedota. 87

Foi no tempo em que João Marechal lutava contra o rei Estêvão. Este cercava o burgo de Newbury. Impaciente, enfurecido, jurando vingar-se desses vilões que lhe faziam a afronta de resistir por tanto tempo: pois o chefe da guarnição se recusava a entregar o castelo, e a soldadesca de pé se atrevia a repelir os ataques dos cavaleiros do rei. Estêvão teimava no cerco. Mas terminou negociando. A luta feudal era entrecortada de mil tréguas; mal a ação perdia seu ímpeto, o tédio desagregava as tropas, geralmente de pequeno porte; se um assédio demorava, elas não demoravam a se dissolver; bastava um pouco mais de tempo para que os cavaleiros fossem sumindo, um a um. Os chefes viam-se então obrigados a tratar, a firmar uma trégua para que cada lado pudesse recompor as forças, antes de voltar ao jogo, para uma nova partida, igualmente curta. Assim se concedeu trégua de um dia aos defensores de Newbury, e depois uma trégua mais longa ao cavaleiro que os apoiava, João Marechal, que prometia servir de intermediário para conseguir de Matilde a rendição da praça. Estêvão exigiu garantias, porém; ~xigiu que um dos filhos de João lhe fosse confiado Como refém. Guilherme, o quarto filho, foi o escolhido. Refém de pouco valor, é verdade. Não impediu que João reforçasse o castelo durante a trégua. O rei percebeu que tinha sido enganado. O menino, diz a canção, viu-se então "na aventura". Diríamos hoje: em perigo. Vieram então os "lisonjeiros" que sempre são maus conselheiros, patifes. Instaram o rei a enforcar Guilherme ou, pelo menos, a ameaçar fazê-Io. Alertado disso, o pai fez saber que 88

pouco lhe importava a criança: ele ainda tinha "a bigorna e o martelo para forjar outro, mais belo". O que pensar de tal bravata? Que os pais eram tão prolíficos, e a mortalidade infantil tão grande, que mal se importavam com seus rebentos, ainda que do sexo masculino? Ou, antes, que uma resposta dessas pertence ao libreto clássico da grande ópera que então se representava, com belos gritos, com belos gestos, no teatro da guerra feudal, e na qual tão importante quanto trocar golpes era intimidar, atemorizar, convencer o adversário por meio de palavras e mímicas? De minha parte estou persuadido de que nenhum dos lados acreditou que se iria até o fim, que se chegaria à execução capital. Isso bem se vê depois da réplica, quando o espetáculo continua, numa sucessão de suspenses. É verdade que na Inglaterra, país mais rude que o continente, havia mais crueldade. Mas, dentre os que ouviam no começo do século XIII a história de Guilherme Marechal, quem poderia acreditar, a não ser mediante um esforço extraordinário de recuo até uma época quase centenária e já legendária, que se pensasse seriamente em sacrificar um refém, ainda por cima filho de fidalgo, e de fidalgo perigoso? O interesse dessa encenação, que talvez só tenha existido na mitologia da família - e cuja recordação, em todo caso, deve ter sido muito embelezada -, reside a meu ver nos sentimentos atribuídos a um dos dois protagonistas: o rei Estêvão. O poeta o mostra enternecido com a criancinha. Provavelmente as ações desse soberano, a memória que se tinha dele, o lugar que na galeria dos 89

retratos reais cabia ao antecessor de Henrique II já induziam a emprestar-lhe os traços de um homem fraco, atributos femininos, uma ternura meio idiota. Mas, afinal? O biógrafo de Guilherme diz que ele se derreteu, o coração inundado de "doçura", pegando o menino entre as mãos, repelindo os conselhos dos "lisonjeiros". Isso porque o garoto pedia para brincar com o punhal de um cavaleiro que o escoltava até a forca, porque pensava que era um balanço a catapulta onde fingiam que o iam colocar para projetá-Ia feito bola de aço por sobre as muralhas, po!-'que perguntava o tempo todo de que estavam bnncando, enquanto sitiantes e sitiados se engenhavam em tornar ainda mais terríveis os preparatrvos de sua pretensa execução. Guilherme Marechal, chamando em seu socorro sua memória mais remota, dizia ainda que, como o sítio prosseguisse e ele continuasse refém, o rei gostava de tê-Ia em Sua tenda, rolando os dois juntos no chão recamado de flores, divertindo-se em brincadeiras de destreza, em partidas de um tipo de pôquer, que jogavam Com folhas de grama, e que a criança ganhava, está óbvio. Cenas dessa ordem convêm perfeitamente à gesta do conde Marechal: pois convinha introduzi-Ia em cena já nos braços de um rei, situação premonitória de sua futura ascensão até o poder soberano. Será que pareceram inverossímeis aos que as ouviram contar? Relações de tanta ternura soariam estranhas? Deveríamos excluir, do rol das atitudes naturais desses guerreiros, o amor pelas criancinhas? Um sinal da condição infantil, pelo menos, é certo, e dele dependeu todo o destino de Guilherme: 90

os filhos de cavaleiros, nessa época, deixavam cedo a casa paterna; iam fazer em outros lugares o aprendizado da vida, e no caso dos filhos mais novos, a despedida era definitiva, salvo algum acaso feliz. Completados os oito ou dez anos, assim eram apartados de sua mãe, das irmãs, das mulheres de seu sangue, em meio às quais haviam vivido até então e a quem se sentiam apegados. Notemos, aliás, que as primeiras perguntas do pequeno Guilherme, refém, ao servidor de sua casa que veio em sigilo informar-se de como estava (espiando-o por entre os panos da tenda real) foram sobre como passavam sua mãe, suas irmãs, uma ruptura, portanto. E dupla: com a casa natal, com o universo feminino quarto das crianças pequenas. E passagem muito brusca para um outro mundo, o das cavalgadas, das estrebarias, armazéns de armas, caçadas, emboscadas, enfrentamentos viris. Os meninos cresciam nesse meio, integrados no bando de cavaleiros, misturados os adolescentes, na promiscuidade militar, com homens já maduros. Passavam assim a pertencer, em posição subalterna, confundidos inicialmente com os serventes, à armada sustentada por um novo patrono, o qual se incumbia de educá-Ias, de diverti-Ias, tornando-se assim seu novo pai, enquanto a figura do pai, do pai verdadeiro, do pai "natural", rapidamente se apagava em sua memória, se, não tendo eles a primogenitura, não tinham esperanças de suceder a ele um dia.

?O

Observemos que Guilherme Marechal bem parece ter expelido completamente o pai da lembrança. Ele mar reu em 1165. Sabemos da data graças a 91

Outros testemunhos, pois o poema não faz a menor alusão a esse falecimento. É verdade que Guilherme estava longe: vivia então na Normandia. Mas era um adulto, com uns vinte anos de idade. Nessa espécie de memórias que nos legou, não mostra o menor interesse em dizer que se sentiu comovido com a morte de um homem a quem certamente não via desde muitos anos, nem que tenha sentido a vontade ~e revê-Ío no leito de morte ou de acompanháIa ate a sepultura. Podemos até nos perguntar se não terá esquecido o próprio lugar em que repousava o despojo do pai e se terá rezado alguma vez por ele. O único luto que jamais exibiu a darmos crédito às memórias, foi pela morte do irmão mais velho. Quando recebeu a nova, manifestou com tal veemência a dor adequada que os presentes pensaram que «s~u .coração ia explodir". Cuidou pessoalmente da distinção das exéquias. Mandou seus próprios cav~leiros a Marlborough buscar o corpo, acompanha-lo em grande pompa por três dias inteiros, junto com a viúva, até Cirencester, onde se juntou a eles. Nessa abadia de cônegos regulares ordenou que o ofício se fizesse com todas as honras' , e quase desmaiou, do único tipo de desmaio que não compromete um cavaleiro. Na verdade, ele tinha muita pressa em partir: Ricardo Coração de Leão - o ano é 1193 - estava retornando do cativeiro. Essa notícia lhe chegou ao mesmo tempo que a da morte do irmão, e, diz o poema, já lhe serviu para pôr bálsamo em sua alma. Não devia demorar-se e partiu a galope para encontrar o rei, deixando o cortejo fúnebre prosseguir sem sua companhia até Bra92

denstokes, onde, narra ••ancestrais".

a história,

repousavam

seus

Seu pai? Não. Os ancestrais maternos: o priorado, sabemos graças aos arquivos, havia-se beneficiado dos favores de Patrícia de Salisbury, e foi desse lado, do lado da linhagem de maior honra e à qual ele sabia dever mais coisas, que João Marechal II escolhera ser enterrado. Uma aparente indiferença à morte do pai, demonstração de dor e sentimento de família à morte do irmão mais velho: há explicação para essas duas atitudes. Em 1165 Guilherme não herdava nada assim como em 1219 seus filhos mais novos tampouco herdavam, e nada permite supor que tenham assistido aos seus funerais. Mas em 1193 ele herdava: João Marechal não tinha filho varão. Uma prova a mais, e formal, desse traço característico da época: o que há de ritual nas manifestações de afeto entre parentes os sinais externos de apego que são os únicos a podermos examinar, posto que não temos como sondar os corações ou avaliar a sinceridade dos sentimentos, dependiam diretamente da localização dos interessados na cadeia sucessória. É a transmissão dos bens que alimenta, nessa sociedade, os únicos elos afetivos que as pessoas são obrigadas a exprimir em público. Na minha linhagem eu expresso abertamente o amor que tenho por aquele que ainda detém os direitos que serão meus quando caírem de suas mãos moribundas, tal como o vassalo ama abertamente o senhor de quem recebeu benefícios. O pai de Guilherme foi pranteado, suas exéquias organizadas, sua memória exaltada por Gauthier, o filho (dentre os dois pri-

n

93

meiros) que lhe sobreviveu, que provavelmente voltara a viver a seu pé, uma vez completado seu período de aprendizado, que lhe sucedeu no cargo de marechal, e que não tardou a morrer. Se Guilherme não chorou o pai, não foi porque sentisse raiva de ter sido expulso da casa, sem nada ou quase nada. Agiu da mesma forma com seu filho mais novo, a quem amava muito, como ele próprio diz. Não chorou o pai porque não lhe devia nada, fora o fato de tê-Ia gerado, sem muito trabalho - nem, talvez, muito prazer -, e de tê-Ia colocado numa casa adequada para se iniciar nas armas e ficar em condição de se fazer por si.

Voltando a paz, com a morte de Estêvão e a coroação de Henrique lI, o jovem Guilherme se despede da mãe, de suas irmãs (que choram) e parte com um equipamento dos mais simples, acompanhado apenas de outro "mocinho" e de um serviçal. Atravessa o mar. Seu pai decidiu mandar o quarto filho para a N ormandia, junto de Guilherme de T ancarville, camarista do rei de Inglaterra. Esse homem, seu primo-irmão, governa um castelo forte, no qual reúne noventa e quatro cavaleiros sob seu estandarte, e é muito boa a posição que ocupa na casa real: dos parentes próximos de João é um dos mais poderosos. Por isso está obrigado a "amar" mais do que ninguém sua linhagem, a "exaltá-Ia" tanto quanto possa, a "honrá-Ia". Todos os seus primos confiam plenamente nele. Contam com ele. Por isso vê chegarem a seu castelo verdadeiros enxames de 94

mocinhos. Estes que chegam são os que a família decidiu não mandar para a Igreja. Assim que parece correto arrancá-Ios das saias da mãe e das criadas, os pais se preocupam em confiá-Ias a Tancarville, para "N--ao sao que os trate como se fossem seus netos. seus descendentes, porém neles corre o mesmo sangue que é seu. Devido às leis de un:a gen~tica usualmente aceita na nobreza, são pOIS destinados, se ele se der ao trabalho de cultivar suas capacidades, a se tornarem tão ricos, tão generosos, tão corajosos quanto ele mesmo. Ele acolhe sem problemas essa meninada. As despensas da casa estão sempre cheias. Como poderia usar melhor as reservas de alimento, todo esse trigo que seus foreiros lhe trazem à casa, do que criando esses meninos? Ele os educa. Sabe que assumindo essa função ele substitui seus pais e, portanto, multiplica sua progênie muito mais do que ele próprio poderia gerar em suas sucessivas esp?sas. T em sob a férula um tropel de futuros guerreiros. Pertencerão a ele por todo o sempre, presos nos laços de uma amizade respeitosa que costuma aparecer, aos olhos de quem é seu objeto, como a mais segura riqueza que possa haver no mundo. O senhor de T ancarville se regozija de ver esses adolescentes se (e

rivalizando para agradá-lo. Mal entrou nessa competição pelo amor desse que o alimenta, e Guilherme já se sente invejado. Os ciumentos repetem ao patrono: por que se incomodar com esse imprestável "estraga-carne": o tempo que não passa comendo passa dormindo. O chefe não lhes dá ouvidos. Guilherme continua a comer bem; são seus "os mais belos nacos que chegam ao senhor". 95

o

senhor o ama. Ele prospera. Logo será escudeiro, seguindo em suas expedições os guerreiros, servindoos. Passa oito anos nesse estado preparatório. Finalmente Guilherme de Tancarville decide - o seu protegido já passou dos vinte anos - cingir-lhe solenemente a espada. Que é uma ferramenta, porém, mais do que isso, um emblema do direito e dever de combater. Seu ingresso na cavalaria certamente ocorreu durante a primavera de 1167. A canção não diz em que data. Não descreve o cerimonial. Isso é meio estranho, porque na época era costume dar enorme importância a essa jornada em que a infância termina e o homem feito é admitido na sociedade dos adultos. Neste dia começa a verdadeira vida, e cada cavaleiro o recorda como o mais belo de sua existência. Na biografia do herdeiro dos condes de Guines, que foi inserida numa crônica genealógica uns trinta anos antes de se escrever a história de Guilherme Marechal, a data em que ele foi armado cavaleiro é o único elemento cronológico preciso. Ora, sabemos que o conde Marechal sentia essa mesma reverência pelo seu adubamento. Mais devoto do que dá a entender seu biógrafo, sentia que tal liturgia lhe infundira, para o resto de sua vida, algo da graça divina. Em 1189, teria dito, a amigos que temiam por sua vida, ou pelo menos por sua fortuna, num momento crítico que atravessava: "Deus, a quem por isso rendo graças, fez-me enormes mercês em minha vida desde que sou cavaleiro; minha coragem se apóia na certeza de que continuará a fazer-me o bem". Na sua mente a cavalaria, enquanto fonte de graças, era exatamente o que os teólogos da época definiam como um sacramento. Então? Por 96

que tanta discrição quanto à p~ópr~a sole.nidade? No meu entender a melhor explicação seria a seguinte: não se gastou dinheiro com esse caçula. Ele foi armado cavaleiro em uma fornada geral, como era hábito nas melhores casas, sem ter nenhum relevo; misturado com os outros, numa cerimônia de rotina. Contudo o autor do poema, aproveitando as incertezas de urna memória que vacilava no tocante a tempos assim afastados, quis m~?nificar. esse ponto crucial da biografia de um herói que figurava na sua obra como o modelo da cavalaria. O canClOfilsta João transformou o rito cost~~eiro que se, seg~ia à entrega dos jaezes - uma especie de [antaziya arabe que se chamava quintana, e,xerc,ício e~üestre no correr do qual os novos cavaleiros investiam com a la~ça contra manequins para demonstrarem sua perrcia - em um autêntico combate. Nessa parte de seu relato ele integra lembranças descosidas, que na verdade se referem a um combate do qual o Marechal realmente participou, só que cinco anos mais tarde em Neufchâtel-en-Bray. Desta feita ele lutou do lado normando, para defender o conde d'Eu contra a agressão dos flamengos, dos homens de Ponthieu e de Bolonha. Nesse quadro, no centro de um recontro agitado, violento, sanguinolento mesm~, como eram os choques armados durante as expedições de saque, mas que ele apresenta tão espetacular quanto um torneio - e espontaneamente a palavra "torneio" aparece no texto -, ele situa a ~rova exigida de quem acaba de ser admitido no. seio da cavalaria e que deve mostrar-se digno de tal ingresso 97

perante numeroso público (o qual reúne representantes dos dois sexos e dos diversos níveis da sociedade que realmente importam - cavaleiros, damas, donzelas, burgueses, burguesas). "Fez suas provas", diz o poema. E tanta virtude demonstrou que os espectadores "não podiam acreditar que ainda estava aprendendo o manejo das armas". Ninguém, afirma o texto, esperava que ele se revelasse de tal modo: ao começar a exibição foi postar-se ao lado do camarista, mas este mandou o principiante afastar-se: "Guilherme, fica atrás, não sejas tão afoito. Deixa passarem os cavaleiros". Ora, cavaleiro ele já pensava ser. E provou que já era. Arriscando a própria vida, enfrentando não espantalhos, porém os mais perigosos dentre os combatentes, esses cavalarianos que eram chamados de sargentos para distingui-Ias dos de melhor raça e que por isso mesmo não hesitavam em usar de toda a .força. Eles se juntaram contra Guilherme. Tomaram da arma ignóbil, um desses ganchos de ferro utilizados, na Flandres, para derrubar as casas dos burgueses que desrespeitavam seu compromisso de paz. Pegaram-no pelo ombro, tentando derrubá-Ia do cavalo -, Resistiu. Treze malhas da cota que usava se arrebentaram, mas não caiu do cavalo. Cavalo que acabava de receber junto com a espada, que valia muito dinheiro, que ele não hesitou em arriscar junto com sua vida e que, menos protegido do que o cavaleiro (que tinha armadura) , foi ferido de morte. Isso nada tem a ver com os jogos da quintana. De noite, como era costume depois de serem armados novos cavaleiros, o camarista reuniu sua 98

corte. Deu uma festa. Comida e bebida à vontade, e da melhor -- "boas carnes compradas com bom dinheiro", daquelas que os mercadores vendem,e que são superiores ao que se pode tirar dos saleiros e tonéis da casa. Oitenta cavaleiros devorando o que encontram. Dar de comer aos seus, com abundância: eis o dever do bom senhor. Os familiares esperam também que ele Ihes proporcione diversão. Uma vez saciados conversam. Rememoram os melhores lances da jornada: "Ricas palavras e belos dizeres". Piadas. Guilherme de Mandeville, barão, também quer fazer rir: "Marechal, peço-vos um presente, um sinal de amor. - Qual? - Uma retranca ou um velho cavalo de tiro". Ingênuo, o novo cavaleiro protesta: não possui mais nada de seu; "não se bateu pelo ganho, mas para libertar a cidade". Perdeu tudo o que tinha. Os outros caem na gargalhada. Ele entende a lição. Tem coragem para dar e vender. E aprende que a coragem serve, antes de mais nada, para se enriquecer. Ora, de momento, passada a festa, depois de galopar, esgrimar, beber, comer, falar, melhor do que jamais se fez nas mais suntuosas cerimônias de investidura de Pentecostes, ele se vê mais pobre do que nunca em sua vida. É a estiagem, o pon to mais baixo de sua existência. Com efeito, mal o bando retornou a T ancarville, seu chefe, o camarista, anuncia aos novos cavaleiros que de agora em diante só devem cont,ar com as próprias forças. Completada sua aprendIzagem, ele não mais se responsabiliza por alimentá-Ios. Partam então, diz o texto, que vão "rodar pela terra", Rodar, palavra rica de sentido. Andar sem descanso, 99

em puro movimento movimento sem reta, sem meta. Pois não há meta final. Procurar, aqui, ali. Demandar. Os velhos verbos "querer" e "conquerer": "conquistar apreço", sozinho. E sozinho pela primeira vez. Pois na ruptura anterior, quando Guilherme, de coração partido, teve de deixar a mãe e as irmãs, apenas mudou de pensão: expulso, segundo os usos, da casa paterna, seguiu, equipado - pouco equipado, é verdade, mas pelo menos suas mãos não estavam vazias -, para uma outra casa na qual os costumes garantiam que seria acolhido. Essa primeira partida não era aventura. Nem liberade: sob o poder de um novo genitor, ia prosseguir sua infância. Mas hoje terminou a meninice. Com a espada na cinta Guilherme se tornou homem em meio aOs homens: Agora só pertence a Deus. Junto com o boldrié militar, recebeu um poder que é, acima de tudo, poder sobre si mesmo. Os ritos de investidura consagram essa cerimônia na qual um homem toma posse de si mesmo. Assim entendemos seu sentido, compreendemos que fosse tão importante ser armado cavaleiro na sociedade em que penetramos graças ao poema, que tal evento fosse considerado o principal de toda a vida masculina. Antes de receberem as armas , nesse dia notável, os rapazes se despiam e lavavam o corpo. Tal como se lavava o corpo dos recém-nascidos e o dos defuntos. Pois essa entrada, essa passagem, era análoga às outras passagens, nascimento, morte. Era como se eles viessem ao mundo pela segunda vez, a única, na verdade, que importava realmente. Até então o que tinham vivido era ainda a gestação, devidamente protegidos. Alguém alimen100

tava-os, criava-os, tutelava-os. Com a e~rância começava a liberdade, porém também o perigo. O M~rechal, conta João, autor da história, então sentiu "enorme terror". Pois Guilherme não era primogênito. Qua~do foi armado cavaleiro seu irmão mais velh~, ~erdelro, futuro chefe da linhagem, os costumes exigiram ~ue também fosse mandado a rodar pelo .mundo, porem de maneira gloriosa. Seu per~urso sena d:e~mero alar: de. Destinava-se a fazer bnlhar na regrao, durant~ alguns meses, ou mesmo anos, a honra da cas~. Expunha-se o rapaz aos perigos, é verdade, porem ele recebia tudo de que precisava para enfrentar a prova com fausto, para se valorizar, conjugando p:o.eza com largueza. Era preciso que ele fosse. magmflc~. Por isso partiu escoltado de companheiros e ser:-içais, as bestas ricamente ajaezadas, levando consigo grande quantidade de moedas de p~ata. Sendo caçuI porém Guilherme entrava na Vida sem nada posa,' De tudo o que havia rece bid d e seu patrono, _

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ICARDO, filho de Gilberto de Clare, o pai de Isabela, casara-se segundo a lei em 1171; morreu cinco anos depois. Nesse tempo em que o costume mandava esperar o décimo-segundo ano antes de mandar as meninas para a cama do marido, Isabela tinha a idade exigida. Porém certamente não passava de dezessete - era uns trinta anos mais moça que o marido. O qual já vivia o declínio, portanto. Eram então muito grandes as possibilidades de que essa mulher não demorasse a enviuvar, cobiçadissima, de novo em mãos do casamenteiro legal, ou seja, o rei, a quem serviria uma segunda vez de riquissimo salário para valorosos serviços. Quem poderia prever, no dia em que se casaram, a espantosa Íongevidade de Guilherme? E que ela viveria ainda trinta anos a sua sombra? Que ele usaria por tanto tempo seu corpo, lavrando-a com tanto afinco que ela lhe daria pelo menos dez filhos? Que ele exploraria tantos anos a fio os direitos cuja gestão o matrimônio lhe confiava? Tais direitos eram enormes. Ape-

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nas uma herdeira, rica do que ela.

em toda a Inglaterra,

era mais

Os Clare eram senhores, desde 1096, do castelo de Striguil, sobre o rio Severn, defronte de Bristol· nas proximidades, também era deles a fortaleza de Goodrich; o chefe de sua casa era conde de Pembroke. Pertencia ao pequeno grupo de barões que cobriam as fronteiras do País de Gales, incumbidos de conter os ataques que sempre viam desse lado e, para desempenhar tarefa tão difícil, dotados de poderes excepcionalmente amplos. O rei de Inglaterra, que por toda a parte era muito cioso de seus direitos e regalias, cedia estas últimas aos barões das fronteiras. O conde de Pembroke, como os demais "palatinos", possuía nessas marcas um poder comparável ao dos grandes vassalos do rei de França. Do lado de se~ pai, Isabel~ pretendia, ainda, a sucessão de u~a Importante linhagem normanda, que se extingU1~a em 1164: seu trisavô, no final do século XI, havia desposado uma Giffard; ela não pôde receber toda a herança, tendo de dividi-Ia com um primo, o conde de Hertford, mas de qualquer forma teve o castelo de Orbec, perto de Lisieux, e metade de LonguevilIe: duas casas solarengas e o serviço de quarenta e três cavaleiros. Um belo senhorio: como vemos pela taxa de sucessão, dois mil marcos de prata, que o rei exigiu de Guilherme antes de autorizá-Io a receber o feudo e conservá-Io em nome de sua esposa. Finalmente, pelo lado de sua mãe, Isabela possuía um quarto da Irlanda, ou coisa parecida. Em 1170 Henrique Plantageneta havia iniciado a conquista da ilha, partindo justamente de 174

Pembroke. Mandara dizer a Roma que o país mergulhava numa desordem intolerável e que a Igreja muito sofria com isso. O papa enviou-lhe um anel de ouro, investindo-o e incumbindo-o de fazer guerra na Irlanda, guerra esta quase santa. E árdua, mas felizmente o rei podia contar com as pendências ásperas e intermináveis que dividiam os clãs locais e seus chefetes, que se diziam reis. Um deles, Dermot, rei de Leinster, para vencer seus rivais, aliou-se ao invasor e deu sua filha a um dos chefes ingleses, Ricardo de Clare, alcunhado "Arco Vigoroso". Ricardo pacificou o reino pela força bruta, derrotou os perturbadores da ordem, rapidamente dominou a ilha; mas Henrique não lhe cedeu o território inteiro, conservando os portos, Dublin, Waxford, Waterford. Porém Ricardo recebeu, como feudo, todo o interior, em torno do castelo-forte de Kilkeny. O país era rebelde; os nativos mostravam-se recalcitrantes, quase tão perigosos quanto os galeses; para dominá-Ias era preciso um punho forte, era preciso portanto que o novo rei de Irlanda (em 1177, Henrique II elevou seu filho João sem Terra a essa dignidade) concedesse ao senhor de Lienster prerrogativas tão vastas quanto as que o conde de Pernbroke possuía na Inglaterra. Nas terras da Irlanda se encontrava, sem sombra de dúvida, a parte mais rica dos domínios que Guilherme Marechal adquiria por seu casamento. Sua mulher era neta de rei; e disso se gabava. A Canção de Dermot, que narra a conquista de Leinster e celebra seu pai e avô, deve ter sido encomendada por ela, tal como, posteriormente, com o mesmo espírito de marcar o orgulho de família, seu filho pagou a história de 175

seu marido. Acrescentemos que Leinster proporcionava rendas vultosas - dezessete mil libras por ano em meados do século XIII, ao morrer o último filho de lsabela: quinhentas vezes mais que Cartrnel: digamos, para dar uma idéia, o valor de mais ou menos quatrocentos cavalos de guerra da melhor qualidade. Para dizer a verdade, embora aceitasse dar a Guilherme Isabela com seu "feudo", Ricardo Coração de Leão conservou em mãos boa parte da herança. Vê-se como o poder que o soberano tinha de dar em casamento as filhas e viúvas dos grandes vassalos podia ser bastante lucrativo. Mantendo por um tempo tão prolongado essas mulheres sob sua tutela, o rei não se limitava a receber, descontada apenas a parte do guardião a quem ele as confiava, os frutos gerados pelo seu patrimônio: depois disso, quando terminava por cedê-Ias a um ou outro dentre seus amigos, tratava de barganhar, fazia-os esperar o maior tempo possível, demorava especialmente a transferir-lhe os principais direitos senhoriais, os que limitavam sua soberania. Para o recém-casado, que até então não era ninguém, o presente se revestia de um tal valor que ele consentia, sem reclamar demais, na perda de alguns desses direitos; sem dizer nada por enquanto, agradecendo paciente, mas esperando com o correr do tempo - e o apoio de companheiros que viriam atestar qual era o costume e jurar que desde tempos imemoriais seus predecessores tinham feito isso e aquilo - acabar recebendo o que restava do bolo. Guerrinha travada em surdina, entre os novos ricos por casamento c 176

e realeza, que trabalhava obstinadamente para recuperar parte das regalias que as necessidades da defesa haviam forçado a ceder, em tempos passados, aos barões das fronteiras. Assim, Guilherme esperou mais de dez anos, antes de receber a espada a que faziam jus os condes de Pembroke; quanto a Leinster, jamais conseguiu receber todos os direitos de alto poder. Porém, em 1189, as bodas foram motivo de júbilo para ele. Nós o vemos logo manifestar seu reconhecimento à Providência por um favor tão maravilhoso, por tanta riqueza de uma só vez: na única terra propriamente sua, Cartmel, funda uma comunidade de religiosos que, dia apÓs dia, por todo o sempre, elevarão ao Céu, em seu nome, cânticos de ação de graças; no mesmo priorado instala cônegos regulares, os quais vai buscar - dado importante - em Bradenstokes, no santuário da linhagem de sua mãe, onde seu irmão mais velhoescolherá (dentro em breve) ser enterrado. Mal entra em posse de uma esposa e já se empenha - modestamente ainda, pois sua fortuna é tão brusca que isso o intimida - em preparar o lugar santo onde se enraizará sua futura linhagem, para tanto sacrificando o pequeno bem que havia conquistado com suas próprias forças. Isso não o perturba. Em nome de sua mulher, tem agora mil vezes mais do que possuía. Dessa mulher, ele cuida como se fosse o mais precioso dos tesouros. Vemos que ela o segue por toda a parte. O rei, seu senhor, manda-o atravessar o canal, acompanhando-o à N ormandia - ela vai 177

junto. Todo o poder que ele pretende deter nessa província, em Longueville e em outros lugares, emana da pessoa, da "cabeça" de Isabela; é indispensável que todos então a vejam a seu lado, que cada qual reconheça, com os próprios olhos, que ela pertence a ele, que reparte seu leito, que juntos são uma única carne; e que por isso é forçoso prestarem homenagem a seu marido, formarem sua corte, evitarem qualquer atentado a sua honra. Uma necessidade análoga obriga-o a embarcá-Ia em sua nau quando segue para a Irlanda, pela primeira vez, em 1207. E quando, quase imediatamente, é chamado de volta por João sem Terra, que nessa época o detesta e de quem Guilherme receia as ciladas - os homens do conselho do Marechal mostram-se desconfiados, convencidos de que o rei o convoca "por engenho, mais para fazer-lhe mal do que bem", e o proclamam, alto e bom som, perante a condessa desesperada -, ele a deixa em Kilkeny, porém muito bem guardada. Veio à Irlanda com dez cavaleiros de confiança, retorna com apenas um para escoltá-lo em sua viagem, e incumbe João de Early, Estêvão de Evreux, seu primo, e os outros sete de conservarem a ordem durante sua ausência, de conter os vassalos locais, esses celerados que a conquista colonial precipitou no país e cuja turbulência ele bem conhece. Reuniu-os todos antes de partir, na sala do castelo: "Senhores, vede a condessa que aqui eu trouxe pela mão, a vossa frente (mostra, firmemente preso a seu punho, esse corpo no qual corre o sangue detentor da autoridade que pesa sobre o senhorio). É a vossa senhora natural (por nascença: é filha do conde anterior, neta do antigo 178

rei), que vos investiu com vossos feudos ao conquistar a terra (direito de conquista, que se tornou senhorial graças à distribuição e concessão dos poderes feudais). Ela ficará convosco, grávida (no seu ventre repousa talvez o futuro senhor, mais seguro do que Guilherme, porque não dominará ~penas p~r matrimônio, feito príncipe conserte, porem por filiação e herança direta) ; até que Deus me traga de volta, peço a todos vós que a guardeis bem e naturalmente, pois ela é vossa senhora ... " Realmente: tudo o que ele ora possui é dela, e sente-se como o angustia a perspectiva de perdê-Ia de vista, ain~a ql.~e por um curto instante. Será que ela lhe escapara, ?e:xando-o novamente sem nada nas mãos? Necessário cercá-Ia de perto, tomar todas as precauções para que ninguém a tire de seu po?er. E também irnpedi-Ia, ela que é tão moça, de ir se desavergonhar as escondidas ou ainda fornicar tão às escâncaras que ele precise separar-se dela. Pois não se repudia a opulência.

Opulência? Cuidado: é isso mesmo? Porque não devemos raciocinar como um banqueiro dos tempos modernos. Em fins do século XII, o dinheiro conta, e como conta, já mostrei. Todavia, a riqueza, ou o fato de que os domínios forneçam uma quantia d'.!terminada de libras, soldos ou denários, tem menos importância, infinitamente menos, do que o poder. Antes de envolver Isabela em seus braços, o Marechal não era desprovido de poder. 'Tinha-o, e quanto, já por sua reputação, seu renome de perito militar: 179

tinha a certeza de que, em caso de infortúnio, as portas se abririam por toda a parte, na Inglaterra ou no continente, para acolher o herói famoso dos mais belos torneios de antanho e que sempre encontraria emprego em alguma família das mais importantes. Além disso, podia contar, a qualquer momento, com o amor particular de alguns homens, amigos de absoluta confiança, fiéis companheiros de suas aventuras, entre os quais sobressaía o nome de Balduíno de Béthune; e, finalmente, já havia algum tempo que possuía seu próprio "pelotão", um pequeno grupo de familiares, rapazes a ele devotados de corpo e alma, entre os quais se destacava seu escudeiro João de Early. Quando sobe ao trono Ricardo Coração de Leão, intui-se que o Marechal é intocável: todos os que são leais ao rei defunto protestam que lhe darão força, que, se for o caso, se entregarão como reféns em seu lugar e, até no interior do outro partido, alguns, que o temem pelos apoios que possui e ainda por sua habilidade, faIam em seu favor ao novo rei; há tudo o que ele sabe das brigas internas da família real, o mal que conhece e bem pode vir a revelar em voz alta; entram em jogo também, quem sabe, velhas recordações que se conservam na linhagem Plantageneta, sobre esse que vinte anos atrás vingou no Poitou a glória de Leonor. Em todo caso o que vemos é Ricardo forçado a conter o rancor, a reprimir os ímpetos de matá-lo, de lavar no sangue a afronta recentíssima, forçadc a manter as promessas do pai e, a despeito de tudo, dar-lhe esposa, fazendo assim, de Guilherme, através

de dom tão soberbo, o que até então ele sÓ fora por bem pouco tempo, e por delegação alheia, enquanto servia a Henrique, o rei moço: chefe de "mesnada", chefe de casa, chefe, em suma. Com esse gesto Ricardo o enriquece, é claro, mas o importante é que também o transforma; faz Guilherme Marechal mudar de escalão, na hierarquia das condições sociais; eleva-o à posição daqueles cujo poder é ativo e estável. Pois, nessa época, o único poder autêntico é o dos homens casados. O homem vale mil vezes mais que a mulher, mas não vale quase nada se não possuir ele próprio uma mulher, legítima, na sua cama, no centro de sua casa. O hábito, que ainda perdura, de negar o matrimônio à maior parte dos moços nobres visa acima de tudo a impedir as divisões de herança - mas possui também uma vantagem suplementar, a de reservar somente a alguns dentre os guerreiros os atributos da verdadeira autoridade, fazendo de todos os outros seus subordinados. Pois o que os "donzéis" tinham a mais que os bastardos? Direitos sobre a herança ancestral. Porém tais direitos não passavam de virtuais; quase nenhum deles, no correr da vida, chegava a exercê-Ias diretamente; apenas pediam, então, que fossem mantidos em um estado digno de sua condição pelo homem casado que dirigia sua linhagem e que podia ser seu pai, o irmão mais velho ou ainda, quando já envelheciam, o primeiro de seus sobrinhos. Já pela sua própria condição um donzel sempre era "pobre", significando a pobreza naquela época, nunca esqueçamos, não a penúria mas a impotência. Durante a adolescência, o filho de cavaleiro via a sua 18\

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frente a vida escandida em três seqüências, em função de duas cerimônias principais, duas datas, duas grandes festasjá que a comunidade celebrava ambas as passagens com jogos, risos e uma festiva dilapidação de riquezas. Se passasse dos vinte a~os, se tivesse a sorte de não ser liquidado antes d~sso por :u.m dos acidentes tão freqüentes no aprendizado militar, então tinha a certeza de que viveria a primeira dessas datas, que, para todos os moços bem-nascidos que a família escolhera não enfiar na Igreja, marcava o término das "infâncias" e a ent~ada no grupo dos guerreiros: era o dia em que se v~am armados cavaleiros. Recebiam a espada, insígma do poder de combater, de usar legitimamente da força, o que os alçava acima dos imaturos e de todos os vilões. Já o segundo desses dias era apenas um sonho e o mais das vezes quimérico. Nessa data, a de suas núpcias, o guerreiro transpunha a fronteira decisiva. Penetrava no círculo, estreit issimo, dos que realmente dominavam. Foi isso o que sucedeu ao Marechal, em 1189. Arrisquemos um termo: ele mudou de classe. Esperava isso havia um quarto de século.

.. Dentre seus mais altos méritos, o texto que utilizo tem o de lançar viva luz sobre o jogo dos poderes nesse estágio superior da sociedade que chamamos de feudal. No final do século XII, sabe-se que os homens dados à reflexão pensavam essa sociedade tal como pensavam o conjunto do universo visível e invisível. Isto é: cimentada pelo que 'JS 182

clérigos chamavam de caritas, e a língua das cortes de "amizade", sustentada pela "fé", outra palavrachave a evocar uma combinação de confiança e fidelidade. Nessa relação afetiva, geradora de deveres e direitos, assentava a coesão de um edifício hierarquizado, construido de finíssimas folhas superpostas; tudo estava em ordem e tudo se conformava às intenções de Deus, quando os homens (ninguém prestava muita atenção às mulheres, as quais constituíam uma outra espécie, subordinada por definição) , estabelecidos em tal ou qual nível, viviam juntos na concórdia, serviam fiel e lealmente os que estavam logo acima deles e recebiam serviço adequado por parte dos seus inferiores imediatos. A ordem assim se mostrava fundada numa combinação de desigualdade, serviço e lealdade. Se ela situava em um bloco acima de todos os outros leigos essa parte da sociedade formada pelos fidalgos, por outro lado distinguia na classe dominante múltiplas estratificações, simultaneamente determinadas pelas relações de domesticidade, que garantiam a autoridade do chefe de família sobre toda a gente de sua casa, pelas relações de parentesco, que subordinavam os caçulas aos mais velhos e a geração dos moços a dos anciãos, pelas relações de vassalagem, que alçavam o senhor sobre quem lhe prestasse homenagem, pelas relações políticas, finalmente, pregadas sobre a hierarquia das homenagens, formando uma pirâmide cuja base eram os meros cavaleiros; o ápice, o rei; e os barões, o ní vel mediano. Esses diferentes sistemas de dependência interferiam muitas vezes uns nos outros, suas disposições chegavam a se contradizer, mas sempre a amizade que obrigava (com rigor maior ou menor, 183

dependendo da proximidade dos homens e da qualidade de sua relação) ao serviço mútuo, ao auxílio, ao conselho, se traduzia em dois eixos perpendiculares: num plano horizontal, ela mantinha a paz entre os pares; num vertical, ela forçava à reverência face aos superiores, à benevolência pelos inferiores. Essa complexa quadrícula tem na história do Marechal, ou mais precisamente na última época de sua vida, uma das melhores ilustrações que conheço. Seu casamento, retirando-o do grau rebaixado e subalterno ao qual o prendia o celibato, modificou fundamentalmente a posição por ele ocupada no tabuleiro das amizades e serviços. Ele já tinha sua "gente", sua criadagem, porém pequena, apenas alguns servidores, como tinham todos os homens de guerra bem-sucedidos. Mas agora o vemos patrono e, quando, cinco anos mais tarde, seu irmão mais velho, João, morre sem deixar filhos, essa função de patrono alcança ainda maior envergadura, não tanto por ele herdar as terras da linhagem - que mal somam uns dez solares -, porém porque assume a chefia dessa mesma linhagem. Cabe-lhe doravante alimentar os parentes moços, educá-los, recompensálos, dar-Ihes casa: tal como ele mesmo se ligara a Guilherme e Patrício. É com esses donzéis que ele se Salisbury, agora esses meninos o seguem como a própria sombra - sirva João de exemplo, o filho de seu irmão Anseau, que o ama tanto quanto ele amou Guilherme e Patrícia. É com esses donzéis que ele se mostra mais atencioso, mais generoso também, e deles recebe, em troca, a mais fervorosa devoção, com a qual pode contar. Eles constituem o núcleo IH4

mais resistente de sua casa. De um momento para o outro esta tomou corpo e se organizou: quando embarca para a Normandia, a 12 de maio de 1194, é acompanhado pelos chefes de serviço domésticos, um camarista, um capelão assistido de três amanuenses, e são necessários dois navios para conter todos os cavaleiros de seu séquito. Pois são numerosos os vassalos que agora se reúnem a sua volta. A partir de 1189 Guilherme viveu uma experiência nova: ao visitar os domínios de sua esposa, um após outro, viu guerreiros aproximarem-se em fila, ajoelharem-se de mãos postas a sua frente - à frente dele, o único sentado em toda a sala -, dele, que pegava essas mãos entre as suas, erguia esse que por tais gestos se tornava seu homem, beijava-o na boca, ouvia-o jurar-lhe fidelidade. A contar de agora espera que todos os que se prestaram a tais ritos lhe prestem serviços: que lhe sejam fiéis, que formem sua corte, que o ajudem a distribuir justiça, acorram quando ele desfraldar a bandeira de senhor, em Longueville, ou em Striguil, ou ainda em Kilkeny. Essas amizades nem sempre têm a mesma têmpera das outras. Mas pelo menos, nascendo elas em feixe em torno de cada uma das fortalezas que ele domina em nome da esposa, fazem dele o par dos "altos e poderosos homens" que outrora, quando retornava estafado, estropeado, glorioso, soberbo do campo dos grandes torneios, lhe prometiam mundos e fundos para tê-Io em sua casa. E ele, que não ousava aceitar que o conde de Ponthieu o tratasse como igual, sabe que hoje está instalado, legitimamente, no mesmo nível de poder. l85

Desde que fez da donzela Isabela sua esposa, ele subiu um ponto na escala das dignidades: de simples cavaleiro alçou-se ao grau superior, entrou no baronato real. O baronato inglês é aberto e relativamente fluido: renova-se mais rápido que no continente devido, exatamente, ao uso que o rei faz das herdeiras. Por isso o que importa a Guilherme não é tanto fazer-se aceitar pelos barões como seu par - afinal, muitos são homens tão novos quanto ele -, é aumentar suas amizades nesse meio, é conquistar apoios, é, acima de tudo, proteger-se. Pois, nesse meio restrito, as ciumeiras, a rivalidade em torno das vantagens do poder são ardentes, tão brutais e mais perigosas do que, no plano inferior, a disputa entre os "moços" pelas larguezas do patrão. Para esse fim, ele utiliza os filhos que sua mulher vai, regularmente, pondo no mundo. Casa-os. Sua política é a mesma de todos os chefes de linhagem. Eles cuidam de que os rapazes da casa se conservem simples cavaleiros e geralmente só procuram esposa para um dos filhos, o primogênito, que lhes sucederá. Preocupação que o Marechal tem com seu primeiro filho, ainda bem novo. Em 1203 - Guilherme, o Moço, ainda não completou doze anos -, ele trata com Balduíno de Béthune, o velho companheiro cuja amizade e cumplicidade nas aventuras jamais lhe faltaram. Balduíno também se casara graças a Ricardo Coração de Leão, poucos anos após o Marechal. Esperava ter a herdeira de Châteauroux, que o rei Henrique lhe prometera. Ora, Ricardo já dera essa moça a André de Chauvigny, um de seus fiéis. Tornando-se rei, procurou meios de compensar Balduíno e de conseguir a devoção pessoal desse solteirão 186

já perto da velhice, cujo valor ele bem conhecia e que podia ser-lhe bastante útil: a mulher que deu a Balduíno fez dele conde de Aumale. Mostrou-se porém menos fértil do que a herdeira de Striguil e só lhe deu uma filha. Mas esta, já que seu pai "não tinha filhos fora a donzela", constituía um belo partido. Os dois companheiros se amavam muito - conversaram - e concordaram quanto ao casamento. Balduíno daria, como presente de casamento aos jovens, todas as terras que possuía na Inglaterra e em outros países, desde que o rei (o casamenteiro inevitável em caso de morte do vassalo e que mantinha a maior vigilância sobre o mercado matrimonial como um todo) o autorizasse. Todos os amigos de Guilherme e Balduíno aprovavam a união. Bonsentendedores de cavalos, eles apreciavam o pedigree: o jovem garanhão e a poldra, concordavam eles, eram ambos nascidos "de pai audaz e mãe valente"; podia ter-se a certeza de que deles sairiam bons frutos. O Marechal e seu amigo davam muita importância a essa aliança. Combinaram que se por desgraça a menina (que tinha menos de sete anos) morresse, o jovem Guilherme desposaria uma irmã mais nova, que Deus talvez capacitasse Balduíno a gerar, pois sua mulher era jovem; e, caso a morte ferisse primeiro Guilherme, o Moço, seu irmão caçula Ricardo, teria a noiva, obviamente com o "matrimônio", isto é, o dote. Combinações bastante precoces, como então se costumava fazer. As bodas de fato só ocorreram onze anos mais tarde. Para dizer a verdade, entre o conde de Pembroke e o conde de Aumale o pacto não criou uma 187

amizade - foi decorrência desta. Para fazer novos amigos no seu novo nível, o Marechal serviu-se de suas filhas. Era essa a utilidade delas, na política das famílias. Elas eram casadas em outras casas para consolidar a paz, para que dessem à luz a sobrinhos que amariam o irmão da mãe mais do que o próprio pai e que mais tarde, possivelmente, hesitariam em infligir danos demasiado graves a seus primos. Por isso Guilherme se empenhou em encontrar noivos para suas meninas. Uma única, conforme já vimos, ainda lhe restava quando morreu. As três mais velhas, conta o poema, haviam sido "bem empregadas". Foram entregues a três filhos de conde. Guilherme deu Mafalda, a primeira, «ao melhor e mais belo homem que conhecia", Hugo Bigot, futuro conde de Norfolk; a terceira, Sibila, ao futuro conde de Derby ; a segunda, Isabela, a Gilberto de Clare. Este tinha a vantagem de ser conde de Hertford por via paterna, conde de Goucester por via materna, e ainda primo de sua futura esposa; uma tal aliança - que, notemos de passagem, não dava a menor importância às ameaças que, da boca para fora, a Igreja lançava contra os incestuosos - deveria favorecer a reunião de heranças desmembradas. A quarta não teve tanta sorte; quando um homem tem muitas filhas não há como exigir demais para as últimas: apenas um bom amigo do Marechal, o senhor de Briouze, então no infortúnio, aceitou casar Eva com um de seus netos. Já contando em seus flancos com as indispensáveis relações que se haviam reforçado durante sua longa vida de andanças, porém invejado e mesmo 188

odiado por alguns chefes de clãs, o que Guilherme conseguiu, cedendo suas filhas (porém a que preço? Quanto ele tirou do patrimônio para dar-Ihes em dote?), foi garantir pelo menos uma série de conivências neutras em quatro casas tão poderosas quanto a sua. Isto quanto à amizade no plano horizontal. Já no eixo vertical, ele dominava completamente a esposa, que fizera sua sem ter ela nenhum parente próximo apto a defendê-Ia, e os filhos. Também era muito grande o controle que exercia sobre os moços e os não tão moços, que alimentava em sua casa. Contava, porém sem uma convicção absoluta, com o serviço de bom número de cavaleiros dotados de feudos próprios. Contudo, neste eixo, ele próprio se encontrava em posição mediana. Devido às terras das quais tomara posse em função do casamento, que não eram alódios porém feudos, ele precisou prestar homenagem após as bodas, precisou ajoelharse. Diante de vários senhores. Porém destes o principal era o rei. Até que ponto, de que maneira ele se sentia sujeito a eles? E, nesse nível, o que significava a lealdade? A este respeito a canção nos ensina muitas coisas. É quanto a isso que agora passo a interrogá-Ia, deixando de lado os acontecimentos que ela nos conta, matéria considerável e que, após o ano de 1189, forma quase todo o resto da obra - pois, tornandose barão, o conde Marechal se encontrava metido bem no meio da alta polí tica. Mas, por isso mesmo, o que o biógrafo relata deste assunto, e que freqüentemente se afasta das narrativas mais comuns, já foi tratado desde muito tempo nas boas histórias escritas 189

à moda antiga, principalmente nas que lidam com os fatos, tanto nas da Inglaterra como nas da França, dado que então o destino dos Plantagenetas e o dos Capetos se prendia de tão perto. Remeto então a essas histórias e, antes de mais nada, à que Lavisse coordenou no começo do século XX. O que faço, agora, é destacar os sinais que permitem vislumbrar melhor como se situava o poder do rei no interior do sistema feudal.

Face aos dois primeiros reis a quem serviu, Henrique, o Velho, e Henrique, o Moço, a História mostra Guilherme numa atitude de veneração fiel. Ele foi de suas "famílias", de suas casas; foram para ele como pais, mais ainda porque era este o vínculo mais forte -, como tios maternos. Que esses quase-tios fossem também reis apenas serviu para aumentar o orgulho do moço que, de qualquer forma, teria servido a eles como um sobrinho. A afeição que o Marechal tinha naturalmente por esses dois soberanos, as obrigações que sentia em relação a eles, procediam, nesse período de sua vida, da mais estreita, da mais íntima das relações de dependência: a doméstica; confrontada com esta, a relação do súdito com o rei parecia formal, fria, sem vigor, quase sem efeito. Casando-se, ele não será mais familiar de ninguém, não fará parte dos validos de Ricardo Coração de Leão ou de João sem Terra. A estes o que ele deve é uma obrigação de direito público. Cumpre-a, porém sem entusiasmo. Ricardo, a História elogia, porém em versos rápidos: herói de cavalaria, sua va190

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lentia e ímpeto fizeram os normandos e ingleses, até então sempre vencidos, pôr em debandada a cavalaria de França. Quanto a João sem Terra, a História cala suas virtudes, por sinal duvidosas, e a todo instante dá a entender que Guilherme bem pouco o amava; mas não diz nada mais: não fala palavra de Artur de Bretanha, que todos acreditavam ter sido morto pelas próprias mãos do tio, o rei. A lealdade impunha uma tal discrição. Notemos, porém, que a impunha não ao súdito, porém ao bom vassalo, que na cerimônia de homenagem havia jurado que nunca atentaria contra a honra de seu senhor. Pois a narrativa que utilizo mostra muito claramente que o Marechal tratava o Plantageneta tal como tratava os barões seus pares,em igualdade de posições, como um poder rival e não dominante, salvo no que decorria da ligação de vassalagem. O biógrafo de Guilherme, que enxerga o mundo de maneira tão profana, não faz a menor alusão ao poder suplementar, sobrenatural, eventualmente miraculoso, que a pessoa real recebia graças às lirurgias da sagração, impregnando-se, destacando-se da malha de relações feudais, erguendo-se a uma posição intermediária entre os homens e Deus. Nenhuma aura se vê em torno desses reis; nada os distingue, na vida cotidiana, de seus súditos mais poderosos. Guilherme, "que teve o coração íntegro e puro", serviu-os de boa-fé. "Como senhores e reis", afirma expressamente o texto. De fato, se bem os serviu é porque lhes havia prestado homenagem. Mas também homenageara outros homens e quando suas obrigações para com esses outros senhores entravam em 191

contradição com as de súdito, ele não hesitava: modelo de lealdade, o Marechal recusava servir ao rei para cumprir em primeiro lugar o serviço do senhor de quem era homem, e portanto amigo. De todas as morais cujas regras ele respeitou, a mais exigente ,_ após a doméstica - foi a da relação de vassalagern. Tão privada quanto aquela, passava sempre à frente da moral pública. O rei podia muito bem apresentar-se com a coroa sobre a fronte, nas grandes festas de Páscoa e Natal, como representante de Deus na terra, incumbido de manter a sociedade dos homens na mesma ordem que também rege as estrelas: no final de tudo, ele era o último a ser servido. Poucos meses após sua ascensão ao trono, Ri-cardo partiu para as cruzadas, levando consigo boa parte de seus barões. Guilherme nãoo acompanhou: "Já dera o passo, no rumo da Terra Santa, que é preciso para pleitear a misericórdia divina". Fi~l súdito, fiel vassalo, vassalo do rei. Mas, quanto aos bens que Isabela tinha em herança na ilha vizinha, vassalo igualmente do rei da Irlanda. Este era João, irmão de Ricardo. Durante algum tempo João relutara a receber homenagem do Marechal: enquanto a órfã estivera sob a guarda real, ele assumira o controle de suas terras irlandesas, usando-as como se fossem de seu patrimônio próprio, cedendo-a a seus amigos como feudos. O rei precisou irritar-se, dizer, "pelas pernas de Deus", qual era sua vontade, e João acabou obedecendo ao irmão mais velho. Mas, agora que Ricardo estava na Síria, João se movimentava, juntando na Inglaterra tudo o que conseguia agregar, contando justamente com seus "amigos", 192

seus vassalos, portanto também com Guilherme, utilizando essa homenagem que inicialmente não quisera receber, controlando-o graças a seus feudos da Irlanda, exigindo dele o serviço. Guilherme terá servido a esse senhor tão presente, capaz de castigar seus feudatários desobedientes, mais do que ao outro, que nunca se via e que talvez jamais voltasse a seus domínios? Essa acusação lhe foi feita. A História alega que o rei afastado não quis dar crédito aos maledicentes, quando regressou, retrucando-lhes que "o Marechal nunca foi mau nem falso". Talvez. Se Guilherme se considerava tão isento de culpas, teria faltado à praxe de acompanhar o despojo do irmão mais velho até a sepultura, para galopar tão às pressas ao encontro de Ricardo em 1194, assim que soube que o soberano estava de volta, empenhado em castigar os traidores? Protestou fidelidade ao rei, parece que se fez ouvir, porém sem romper com João, que Ricardo deserdava por ter-se aliado a Felipe Augusto. Quando Ricardo intimou os vassalos de seu irmão a romperem com ele, a receberem diretamente do rei seus feudos, muitos assentiram. Mas não Guilherme, que afirmou que não faria isso. Resistiu em nome da dupla lealdade. E sem temor, dizia, porque em boa-fé servira, em nome dos feudos que tinha de cada um deles, seus dois senhores num mesmo plano, não aceitando absolutamente que um tivesse qualquer vantagem somente por ser rei. O rei cedeu - naquele momento precisava de todos os seus homens, para auxílio, para conselho. E teria condições, em nome de uma concepção da soberania completamente oposta às maneiras de pensar de seus cavaleiros, de exigir que estes faltassem a amizades 193

nascidas dos compromissos firmados por ocasião da homenagem, corroendo assim o sistema de valores de vassalagem? Nesse sistema, numa tal rede de amizades se fundava todo o seu próprio poder. Guilherme, sendo seu vassalo e amigo, serviu a Ricardo o melhor que pôde nas guerras contra os franceses, arriscando a vida feito um moço, chegando mesmo a se aventurar, qüinquagenário que era e já lhe rangendo as juntas do corpo, a escalar com armaduras e tudo os fossos do castelo de Milly, então sitiado. Mas serviu dentro dos estritos limites das obrigações feudais, sabendo-se sujeito a outras de igual natureza. Nada fez que pudesse prejudicar a João. E foi a este que se dirigiu, como a seu senhor natural, ao saber, em 10 de abril de 1199, véspera de Ramos, que o rei tinha morrido de seus ferimentos. Neste dia ele está na torre de Ruão. É noitinha. Já vai se deitar. Já lhe estão tirando as calças. Veste-as de novo, depressa; atravessa rapidamente o Sena, vai até Notre-Dame-du-Pré, onde dorme o arcebispo de Canterbury. Lágrimas, raiva: "Proeza morreu. Quem poderá defender nosso reino, morto Ricardo? Os franceses hão de lançar-se contra nós, querendo ter tudo, querendo tudo tomar. Apressemo-nos na escolha de quem devemos fazer nosso rei". O arcebispo inclina-se em favor de Artur, filho de Godofredo de Bretanha, irmão mais novo do rei defunto. "Seria mal, responde Guilherme. Artur está sob mau conselho (na verdade, estava sob a guarda de Felipe Augusto), é desconfiado, orgulhoso; se o elevarmos acima de nós, ele nos causará males e problemas; não ama a gente do país. Mas pensai no 194

conde João. Minha consclencia e saber o apontam como o mais próximo herdeiro da terra de seu pai e de seu irmão. Está mais perto do pai do que estaria o neto." João foi feito rei, apreciou o serviço assim prestado, deu a Guilherme o que Ricardo Coração de Leão, para mantê-Io sempre em expectativa, sempre demorara a lhe entregar: tudo a que tinha direito por herança e por matrimônio, a dignidade de marechal e, mais importante ainda, a espada de conde de Pembroke. Tudo transcorreu pois no melhor dos mundos possíveis, até o momento em que Guilherme tornou a se sentir preso entre dois senhores cujos interesses se contrariavam. Pois ele prestou homenagem a um outro rei, o de França. Obrigado, por deveres de- família. João sem Terra, vencido por Felipe Augusto, abandonava a Normandia. Guilherme poderia aceitar a perda de Longueville e das outras terras normandas? Era seu dever conservá-Ias para sua mulher, filhos e linhagem. Em maio de 1204 o rei o incumbiu, com Roberto de Estouteville, conde de Leicester mas também conde de Passy-sur-Eure, de uma embaixada junto ao rei Capeto, que eles encontraram na abadia de Le Bec. Falaram de paz com o rei Felipe, falaram igualmente das terras que tinham ambos na Normandia e terminaram chegando a um acordo. Guilherme e Roberto pagaram imediatamente quinhentos marcos de prata, cada um, ao rei de França: viriam ajoelhar-se a seus pés e rec-eber dele seus feudos se, dentro de um ano e um dia, João não conseguisse reconquistar a província. AsSIm, quando onze meses mais tarde João sem Terra 195

tornou a enviar Guilherme ao outro lado da Mancha para essas conversações de paz constantemente retomadas, ele lhe deu autorização, segundo a História, de prestar homenagem a Felipe a fim de perder os feudos, não querendo (disse-lhe) que Guilherme não tivesse com que servi-lo, "sabendo muito bem que quanto mais tivesse, melhor o serviria". O relato acrescenta, porém, que mais tarde João alegou não lhe ter dado tal permissão e perseguiu Guilherme desde que este voltou. O rei preparava-se então para atravessar o mar e intimou o conde a acompanhá-lo, isso solenemente, à frente de toda a hoste reunida, exigindo dele contra o rei de França o auxílio que, segundo o costume feudal, todo vassalo deve ao senhor que parte a fim de recuperar sua herança legítima: "Ah, real senhor, pela graça de Deus seria muito mal eu fazer-lhe guerra sendo homem dele. - Ouvide, senhores, ouvide: ele não poderá negar o que disse. Seu feito, como vedes, mostra-se em toda a feiúra. Pelos dentes de Deus, quero que meus barões o julguem". Guilherme não foge ao juízo, levanta-se, ergue o dedo à altura da testa: "Senhores, olha-me bem, pois pela fidelidade que vos devo hoje serei exemplo e espelho de vós mesmos. Prestai muita atenção ao que diz o rei: o que pensa fazer de mim ele fará a cada um de vós e coisa ainda pior se tiver forças para tanto". Os barões olham-se uns aos outros; retiram-se, afastando-se tanto do rei quanto de Guilherme. Ambos, cara a cara, somente estão rodeados de seus familiares. Do lado de Guilherme, João de Early e Henrique filho de Gerout, os dois amigos íntimos que sc196

rão os mais próximos seus ao longo de toda a agonia; do lado do rei seus "solteiros", os rapazes que ele alimenta, que rivalizam em devoção para conquistar seu amor e os presentes que ele distribui, as ricas herdeiras. Os vínculos que constituem a obrigação de aconselhar não resistiram - nem os vínculos de direito público, que prendem os barões a seu rei, nem os de ordem privada e, ainda assim tão sólidos, que fazem os vassalos responder a seu senhor quando este os convoca para discutir uma acusação de felonia. Somente resistem os elos domésticos, mais estreitos, mais fortes até do que a ligação do filho ao pai. Os donzéis defendem a posição desse que os alimenta - aconselham-no a confiscar os feudos do Marechal, não entendendo, afirma seu porta-voz, "por que razão um homem conservaria sua terra se falta com seu senhor em caso de necessidade". Dentre os barões, apenas Balduíno de Béthune apóia o Marechal. Mas ainda aqui o que entra em jogo é a amizade mais sólida que existe, a dos companheiros de luta, e talvez mais do que isso, se lendo entrelinhas suspeitarmos que entre eles houvesse, em silêncio, o amor que nasce entre os homens nos esquadrões de cavaleiros. "Calai-vos, não vos compete, nem a mim, julgar em tribunal um cavaleiro da qualidade do Marechal." O rei não insiste, diz: "Vamos à mesa", depois da refeição, medita sua vingança, procura alguém que possa desafiar o Marechal, forçando-o a combater em campo cerrado para sustentar a justiça de sua causa, vencendo-o mesmo, quem sabe. Mas não encontra ninguém que a tanto se atreva: fraqueza do poder feudal; fraqueza, ou 197

mesmo nulidade, do poder real. Impotência. Somente resta ao soberano mascarar a irritação, fingir-se contente. Tudo o que consegue, com base no costume feudal - e é o único recurso que lhe sobra -, é uma garantia, é exigir que lhe seja confiado como refém o filho mais velho do homem de quem desconfia, que em verdade não o traiu, porém que ele trata agora como inimigo, posto que, dividindo sua fidelidade em obediência à moral das linhagens, tornou-se (sem deixar de ser seu amigo) também amigo de seu inimigo. Para isso servem os filhos, já sabemos desde a infância do Marechal. E, até o fim, não será sua autoridade soberana, não será a ameaça de confiscar o feudo de Guilherme mediante sentença de felonia proferida em corte feudal, serão os filhos de seu vassalo, que conserva cativos à guisa de fiadores da conduta paterna, em seus castelos, ao alcance de sua mão (dessa mão que, dizia-se, tinha estrangulado Artur de Bretanha), e serão outros homens ainda, os mais íntimos, os mais amados de Guilherme, que valerão a João sem Terra, rei de Inglaterra, de meios para impedir seu súdito, seu homem, de prejudicá-Ia. Pois agora, entre o rei e seu alto barão, sob a capa da amizade se ocultam o rancor e a desconfiança. Por isso Guilherme sente que é bom se afastar. Quando João retorna à Inglaterra no ano seguinte, por volta da festa de São Miguel, o Marechal pedelhe licença para ir visitar suas terras da Irlanda: onde nunca esteve antes. Encontra um retiro nesse país distante, nessa colônia selvagem, ainda rebelde, e mostra vontade de apoiar-se no que tem de mais 198

rude de mais sólido. O rei consente, porém depois se a~redita "engenhado", enganado, muda de opinião, afirma que nada prometeu, nada permitiu, manda um mensageiro a Striguil: o Marechal está a ponto de embarcar. O rei quer seu segundo filho como refém suplementar: "Lavai as mãos, ide comer, diz Guilherme, a quem lhe traz a ordem régia, quero aconselhar-me com minha gente e meus barões" (pois a questão em pauta, o destino dos herdeiros de seu senhor, afeta a esses últimos tanto ou quase tanto quanto aos parentes). A maior parte opina que ele desobedeça. Guilherme aceita, porém, por lealdade: "Se ele quiser, eu lhe enviarei todos os filhos que tenho", mas irei, "por bem ou por mal, para a Irlanda". Parte em viagem e, quase imediatamente, estoura a crise, a propósito justamente de um parente por aliança do Marechal, que dele é também vassalo em algumas terras - Guilherme, senhor de Briouze, na Normandia, igualmente barão nas fronteiras galesas. O rei João, em apuros - o papa lançou o interdito sobre a Inglaterra -, exige reféns de tudo o que é nobre. Briouze, não querendo confiar seus filhos à sanha de quem matou Artur, fugiu com a família; o Marechal acolhe-o, por respeito aos deveres de parentesco, de fidelidade, e hospeda-o em Kilkeny. Intimado a entregá-lo aos enviados do rei, Guilherme manda levá-lo a lugar seguro. Perseguido o desobediente Briouze, João sem Terra vem acampar em casa de Guilherme, e depois o "acusa" perante os barões da Irlanda reunidos em Dublin. "É verdade (defende-se Guilherme), hospedei meu se199

nhor quando, com muita dor e sofrimento, ele veio t~r a meu castelo. Não deveis levar a mal o que fiz. Não acredi,tava cometer nenhum erro, porque el~ era meu arrugo e senhor. Não sabia que estivésseis de mal com ele. Tudo parecia correr muito bem entre vós e ele, quando eu deixei a Inglaterra." Afirma estar pronto para o duelo judiciário. Porém, ainda desta vez: não encontra nenhum campeão disposto a rnedir-se com ele. De novo constatamos a Impotência ?o soberano, do senhor feudal, reduzido, uma ve~ mais, a reclamar reféns. "Já tendes em mãos meus fIl~os e .todos os meus castelos da Inglaterra. Se quereis mais castelos e fortalezas, eu vos darei, bem como os filhos de meus vassalos." João delib 'I' ,I era conJL1~eusdf arru lares, "em sua câmara", a sós; e exig~,. oao e Ear1y e quatro outros cavaleiros, os mais fiéis dentre os "moços" do Marechal. Este t}n~a o direito de dispor, a seu bel-prazer, de seus proprios filhos. Porém não desses homens' é verdade que ele~ lhe pertencem, mas não por co:Opie to. Eles preCIsam dar seu assentimento e e' f - o que az .Ioão de Early, em nome dos demais: "Sou ho~em do rei, e vosso. Se el-rei nosso senhor o autonzar, estou disposto a entregar-me como refém" Por boa amizade como sempre' "N . ' . ao h"a amIgo ver- . dade!;o q~e falte com seu senhor havendo necessidade . Joao sem !erra deseja mais do que isso: quer ter como garantia toda a companhia que escolta o M,a~echal, mas não como refém, e sim com uma especie de compromisso ou seja - esses cavaleiros não entregarão seu corpo ao rei, mas prometerão, simplesmente, abandonar seu patrono caso este algum 200

dia venha a faltar-lhe ou a combatê-lo. Eles aceitam esse dever, que é mais uma marca de amizade; pois, se algum se recusasse, seria sinal de que o Marechal o prejudicou, de que lhe causou (no seu entender) "tanto mal que ele se sente no direito dnão o socorrer em juízo e de não fazer a canção em seu favor", O rei divide os cinco reféns pelos seus castelos da Inglaterra, onde ficaram presos durante um ano, sendo que um morreu nesse cativeiro involuntário. Mas, quando chegou o momento em que precisou de todas as forças disponíveis para retomar a guerra contra os galeses, libertou os sobreviventes. Isto era hábito seu, afirma, severo, o poema: "Mantinha à distância os homens de bem, exceto nos casos de grande necessidade", A grandíssima necessidade data de 1213, para sermos exatos, Felipe Augusto então se aprestava a invadir a Inglaterra, para tirá-Ia com o aval do papa do rei João excomungado. Guilherme volta da Irlanda, sempre leal; "sequer considerou a crueldade do rei". Porém conseguiu que seus dois filhos fossem soltos, e confiados a João de Early, quer dizer, a seu du plo. Agora já está bem velho, velho demais para poder ser de alguma utilidade em Bouvines ou em La Roche-aux-Moines, os dois campos de batalha em que se vai travar o combate decisivo entre os reis inimigos, Restam seus filhos, seus substitutos naturais. O mais velho sumiu. Na falta de algo melhor, João sem Terra pega o segundo, leva-o à França para guerrear, contra a vontade do pai que, sentindo o rumo que as coisas tomam, preferiria tê-lo por perto, e pretende que ele é "novo demais para ser 201

levado a lugar tão longínquo". É verdade: o caçula cai doente, quase morre, sobrevive praticamente por acaso. Do mais velho, porém, o pai sabe como se servir. Para fazer melhor seu jogo, em vários tabuleiros a um mesmo tempo, em meio a suas múltiplas fidelidades. Depois dos reveses reais, em 121 5, o baronato está em rebelião. O autor da canção prefere traspassar", como diz, saltar esse tempo de discórdias e confusões, afirmando que, "de todo o mal, nada foi feito pelo Marechal". Pelo Marechal em pessoa, é possível que não. Nada podemos afirmar com certeza. Mas é sabido, em todo caso, que seu herdeiro e sucessor, Guilherme, o Moço, logo tomou o partido dos rebeldes, junto com um Outro Guilherme "que ele amava como irmão", Guilherme Espada Longa, conde de Salisbury, irmão bastardo do rei João. E no ano seguinte, quando o príncipe Luís, filho de Felipe Augusto, desembarcou na Inglaterra, o velho Marechal não se comprOmeteu. Bastava-lhe que seu filho mais velho estivesse entre os primeiros a prestar homenagem ao invasor - pelos seus feudos da Normandia, por sinal.

de Dammartin, os vencidos de Bo~vines. Ao contrário: ele aceitou dar todos os refens, to~~s as g~rantias que o senhor de seus feudos lhe eXIglU;. aceitou comparecer ao tribunal desse senhor e ser J~lga. . o foi do por seus pares: e se jamais 01, e por que ~ tinha o direito em seu favor e nenhum camp~a~ ous~u f t r o risco de contestar-lhe esse direitovtâo en ren a 1 . di ., . M evidente pelas liturgias do due o JU IClano:. o arechal se refugiava por trás. da lei ~ão-e~cnta que . o b ngava o homem bem-nascido a nao trair nenhu. d ma das amizades que nele se entrel~çav~n: -~ am a que por conta disso ficasse reduzido a inaçao, de braços cruzados, enquan.to seus dive~sos sen?ores se confrontavam -, ou tivesse de deixar agirem os outros, um familiar como João de Ead~r, ou, mel~or ainda, seus filhos, que quando não se~vIam de refens bem podiam, como "amigos" do par, encarar .com altivez o senhor dele. Não cedendo nada; tergrversando: tendo sempre a seu pé sua frutuosa esposa: Guilh~rme sempre esteve convencido de ser leal. mo agora se sentisse rico, ao término de uma lo~gu~ssima espera, e nada quisesse arriscar, por pru.~encla, do que tanto tardara a ter; ou talvez por ja estar muito entrado em anos, mais que sessenta, pa~a poder meter-se em aventuras, conseguiu então ,::VItar, sem prejuízo de sua franqueza, a "grande vergonha". A de um Roberto, conde de Alençon, por exemplo, que "quando o rei (João) lhe de~ bens e beijou na boca, no mesmo dia ele o traiu. Na mesma jornada mudou de lado, bandeou-se para o rei de França a quem prestou homenagem e com quem firmou aliança, e fez os franceses entrarem

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Jogo duplo? Parece certo. Mas não é menos certo que Guilherme jamais traiu a fé que tinha jurado a João sem Terra. Nunca desafiou o rei. Nunca esteve entre os vassalos infiéis que o texto chama de "empris", ou seja, esses vassalos "empreendedores", que conspiravam contra seu senhor, rompendo com este de maneira deliberada, aberta, como Guilherme de Briouze, ou ainda como fizeram contra Felipe Augusto, o conde de Flandres e Reinaldo

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····" r. em sua cidade. Vergonha livre vontade".

alguém

se aviltar

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por sua berto de adornos reais ajustados a seu tamanho, o menino "cavaleiro se tornou, pequeno e belo". Levaram-no primeiro à catedral de Gloucester, onde foi ungido dos santos óleos e coroado, depois a sua câmara, e, uma vez aliviado das roupas da sagração, tão pesadas em seu corpo, foram todos para o salão e comeram.

. Em 1216, no mês de outubro, abandonado pela maior parte de seus barões e cavaleiros, que tinham passado para o lado do príncipe Luís, João sem Terra morria quase sozinho em Gloucester. Falando c?mo deve falar todo moribundo, arrependido, pedindo como de praxe o perdão daqueles a quem lesou. O último que mencionou foi o Marechal _ dis~e que ele o serviu lealmente e rogou aos poucos amigos que lhe restavam que confiassem o herdeiro da coroa à guarda dele, o único capaz de defender sua sucessão. Esse menino - que tinha doze anos _ então se encontrava guardado no castelo de Devizes , com o tesouro. Maio pai entregou a alma, seus raros seguidores foram buscá-Ia. Guilherme estava na espreitae também tomou o rumo de Gloucester, encontrando-os na planície de Malmesbury: o pequeno Henrique vinha nos braços de um sargento real, seu «B mestre , quase sua ama. em ensinado", o herdeiro representou à perfeição o papel que lhe cabia: prenunciou claramente a fórmula estudada, disse que se confiava a Deus e ao Marechal para que este, no lugar de Deus, a serviço de Deus, o guardasse. O menino chorava, os que o rodeavam também choravam, e o próprio Guilherme, de pena, ternamente. P?r jovem que fosse, o novo rei da Inglaterra precisava ter uma espada. Ou seja: precisava ser armado cavaleiro. O que o Marechal fez prontamente: não era a primeira vez que armava um rei. Reco-

Tomar conta do órfão, ter sua tutela, ou seja, a do reino assumir a regência: o Marechal é velho, vascila. Essa noite, ele retirou-se para seus aposentos, no castelo de Gloucester, com os três homens que são seus íntimos: João, seu sobrinho, sir Raul Musard, governador do castelo, e, finalmente, João de Early. O primeiro aconselha-o a aceitar; o que começamos devemos terminar: "Fazei-o ; Deus vos ajudará, e grande será a vossa honra". O segundo aconselha-o a aceitar: "Podereis fazer ricos-homens todos os vossos, a vosso critério, e outros, e mesmo nós que aqui estamos". João de Early, porém, só sabe dizer que: "Acredito que vosso corpo esteja debilitado pela fadiga e a velhice. E o rei mal tem dinheiro. Receio o labor, o duro enfado". Porém no dia seguinte e, talvez justamente porque o legado papal soube falar em expiação, em redenção, afirmando que Deus lhe perdoaria os pecados caso ele aceitasse sofrer já tão perto da morteuma tal penitência, o Marechal assume o poder que lhe oferecem, E USa esse poder. Consegue dinheiro, o "haver" cuja falta, no fim da vida de João sem Terra, fora causa de todos se afastarem do rei. Divide as jóias que estavam guardadas nos cofres de Devizes: trinta e três safiras, quinze diamantes - que valem quinhentas e qua-

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renta livras - a determinado capitão de mercenários, seis rubis e sete safiras para pagar as guarnições de Devizes e Windsor e, para a de Dover, que resiste aos franceses, sessenta e três esmeraldas de segunda escolha, trinta e três safiras, dezenove rubis, nove granadas. E, faltando-lhe as pedras para todos os gastos a enfrentar, manda vender os tecidos de seda, pois precisa pagar as pensões conhecidas como "feudos de bolsa", satisfazer todos os que servem a troco delas. Essas medidas dão estabilidade ao novo governo. O mesmo empenho ele põe em promover a ascensão dos seus: a seu filho primogênito - que se juntou ao pai, largando o príncipe Luís, posto que a amizade por parentesco sempre há de prevalecer sobre a amizade de vassalagem - Guilherme confia as casas da moeda de Londres, de Winchester, de Durharn, de Canterbury, de Y ork - todas, em suma -, e ainda por cima a guarda (quer dizer: a exploração) dos feudos confiscados aos rebeldes; enriquece seu sobrinho João; faz rico João de Early. Resta, ainda, a honra. Ele a colhe às braçadas. Pois nunca, em toda a sua vida, pareceu tão apropriado seu grito de guerra, a divisa "Deus ajude o Marechal". O Céu está a seu lado, que sempre socorre Os protetores dos órfãos. E no verão de 1217, em Lincoln, o Céu mostra com toda a clareza onde depõe seu favor, ao dar-lhe vitória em batalha.

peões em um duelo judiciário. O Senhor Deus revela esse dia Seus desígnios, apontando o vencedor, indicando de que lado está o direito legítimo. Para o Marechal, Lincoln é a Bouvines" de que sua idade avançada não permitiu que participasse. O lugar que ocupa é o de um dos reis. Por isso sua função primeira, como oficiante principal, consiste em falar, em inflar a coragem mediante sucessivas arengas, apontando no adversário a encarnação do mal, o desrespeito, o sacrilégio, repetindo o que sempre se proclama, idade após idade, às tropas amedrontadas um momento antes do confronto decisivo: "Para defendermos nosso valor, por nós, em prol dos que nos amam, para a proteção de nossas mulheres e filhos, de nossas terras igualmente, para conquistarmos a honra mais elevada, pela paz da Igreja também, pela remissão de nossos pecados, sustentamos o peso das armas ... A resistência do país sois vós ... Olhai-os bem: eles estão em vossas mãos. Nós nos venceremos, se audácia e coragem não vos faltarem. Se morrermos, Deus nos receberá em Seu paraíso. Se os vencermos, teremos adquirido honra imorredoura para nós e nossa linhagem. Eles são excomungados; por isso, dentre eles os que morrerem irão para o inferno". Apesar de entrevado, ele faz questão de tomar parte na luta; prende o elmo, esporeia o cavalo como fazia outrora, "tão ligeiro quanto um esmerilhão".

Batalha: uma dessas raríssimas provas nas quais duas partes, depois de intermináveis debates, decidem submeter sua pendência a Deus, ao Seu juizo, lançando todas as forças em campo, tal como cam-

,;. A batalha de Bouvines, a 27 de julho de 1214, marcou a derrota de João sem Terra frente a Felipe Augusto, rei de França; Georges Duby estudou-a em seu livro Le dimanche de Bouvines, Paris, Gallimard, 1973. (N. do T.)

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W'. Ataca na primeira fila. E tão bem que agarra pelas rédeas o cavalo do chefe inimigo, do homem que no campo adversário também ocupa o lugar de rei, ou melhor, de pretendente a rei, do príncipe Luís que ora está sitiando Dover. É um barão, um de seus pares, o conde de Le Perche. Guilherme vai capturá-lo, Será ele sua última presa, a mais gloriosa. Mas infelizmente - acasos da guerra -, deslizando pelas paredes do capacete, um chuço vem furar o olho do conde, que cai e morre. Única morte, dentre os cavaleiros, nessa jornada tão dificultosa, a não ser a do desastrado que o feriu e mais uma terceira. O rei sofreu xeque-mate, a partida está ganha e a batalha terminou em sucesso, bem maior que de Bouvines, onde o líder do exército vencido conseguiu fugir. Como em todas as batalhas, o resultado desta basta para mudar tudo. O menino-rei não tem mais nada a temer, os franceses têm de deixar a ilha. Porém a honra determina que o Marechal os considere da melhor maneira possí vel. São seus amigos de longa data - trata-os como fazia, anos atrás, nas neites que se seguiam aos torneios, com os cavaleiros seus cativos. Largueza rima com proeza. Faz questão de escoltar pessoalmente, até a costa, Luís de França, que abandona o país. Belo gesto. Muitos o acharam, até, belo demais. Sentiram-se chocados. O interesse de Estado não exigia relegar as atitudes cavalheirescas entre as velharias imprestáveis? Vinte anos depois, Henrique lU haveria de afirmar perante Gauthier, terceiro filho do Marechal e seu sucessor após a morte dos irmãos mais velhos, que seu pai o traíra: pois deveria ter conservado na prisão mais estrita o príncipe Luís e seus barões. Muitos 208

pensaram dessa maneira; alguns já pensavam assim desde 1205, quando Guilherme pusera as mãos entre as de Felipe Augusto para não perder Longueville - acusavam-no de amar demais os franceses para poder ser leal a João sem Terra. Mateus Paris, cronista, exprime a opinião corrente quando nos mostra o rei de França sendo informado da derrota de Lincoln: ele interroga os mensageiros, inquieto: é verdade que o rei João morreu? Foi coroado seu filho? E o Marechal: continua vivo? Continua? "Então, não tenho o que recear por meu filho". E, se Guilherme, o Moço, se empenhou tanto para que o panegírico de seu pai fosse rimado da maneira mais esplêndida, certamente foi para tentar mostrá-lo sem culpa, para lavá-Io das suspeitas de deslealdade.

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A posição de regente embriagou Marechal? A alegria de substituir, de modo tão imprevisto, na condição de soberano da Inglaterra esse homem incerto, João sem Terra, a quem ele servira a contragosto, em pequenas doses, pois em silêncio o detestava? Nada disso. Com toda a honestidade, Guilherme manteve-se fiel a sua moral. Esta era a da cavalaria. N a segunda noite em Gloucester, quando acabava de aceitar a regência, sozinho em seu quarto com os mesmos três amigos, sentiu o coração que "germinava". Enquanto chorava se viu (disse) perdido, como em alto-mar, "não encontrando mais fundo nem margem". Para tirá-lo de tal angústia João de Early insistiu com ele que, no pior dos casos, sua missão seria grande honra, grande alegria, grande elevação d'alma: ainda que todos os barões ingleses mudassem de campo, abusassem da "iniciativa", se 209

rendessem a Luís de França - e fosse necessário fugir para a Irlanda com Henrique menino. E, de golpe, Guilherme recuperou a energia: "Sabeis o que farei? Eu o carregarei no meu pescoço. De ilha em ilha ... " Esse papel derradeiro lhe agradava, o de terminar os dias feito São Cristóvão. Do mais fundo de sua memória lhe voltava uma lembrança da mais tenra infância, do tempo em que brincava, mais novinho ainda do que o pequeno Henrique, nos braços de quem então era rei de Inglaterra. E agora ele tinha o atual rei de Inglaterra em seus braços, quer dizer, o poder no nível mais elevado que possa existir neste mundo sublunar. Apoteose. Durante dois anos ele pôde fazer o que quis. Mas agindo como nunca deixou de agir, segundo as regras da honra da cavalaria. Como um simples cavaleiro. Nunca ele foi mais do que isso. Caçula sem bens. Rico-homem e barão, porém apenas na medida em que era tutor de sua mulher e de seus filhos. Investido com o poder real, porém somente por guardar o rei ainda muito moço. Sem jamais ter imaginado que pudesse alcançar um tal poder. Sem ter sido formado para exercê-lo, sem possuir título para tanto, nem do sangue de sua família, nem da liturgia dos padres. Tendo por única qualidade - e os que celebraram suas virtudes, falando em seu nome, retomando suas próprias palavras, exprimindo o que ele firmemente acreditava, só quiseram dizer isso a de ser considerado o melhor cavaleiro do mundo. Foi essa excelência, ela somente, que o capacitou a elevar-se tão alto. Graças a seu corpo enorme, infatigável, forte, hábil nos exercícios de cavalaria, gra210

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ças a esse cérebro aparentemente pequeno demais para entravar, com raciocínios supérfluos, o desenvolvimento natural de seu vigor físico: poucos pensamentos e curtos, um apego obstinado, na sua força limitada, à ética muito rude dos guerreiros, cujos valores se resumiam em três palavras: proeza, largueza, lealdade. Graças a sua longevidade, acima de tudo - maravilhosa. Não será este o ponto essencial? Na pessoa de Guilherme Marechal, nessa estrutura indestrutível, sobrevivia o século XII de suas façanhas, de quando ele tinha trinta anos, o tempo da exuberância e do tumulto, de Lancelote e Gavaíno, dos cavaleiros da T ávola Redonda. Belos tempos, já passados. Ele podia caminhar em paz para a morte, orgulhando-se de ter sido o instrumento do derradeiro, tão fugidio, tão anacrônico triunfo da honra sobre o dinheiro, da lealdade contra o Estado - orgulhando-se de ter levado a cavalaria à plenitude. Mas a cavalaria estava acabada desde pelo menos duas décadas, e o próprio Guilherme já não passava de uma forma residual, de relíquia. Ela e ele, em 1219, praticamente só serviam para opor, às asperezas do real, a tela enganosa e tranqüilizante dessas vanidades com que cada homem, naquele momento e na alta sociedade, alimentava em seu coração uma nostalgia lancinante.

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DUBY, Georges. Guilherme Marechal

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