Isadora para a KALANGO EDITORA REVISÃO FINAL (P PAULO ANDRE)

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Isadora, sua camisola La Perla e a BR Catarina Guedes

Como toda mulher que se aproxima dos quarenta, fui ficando cheia de manias. A mais antipática delas é o pavor que tenho de escrever com alguém respirando no meu ombro. Então, a menos que você seja o diretor de redação, mantenha distância do meu pescoço. Também foi se apoderando de mim uma certa obsessão em escrever listas e mais listas das providências que preciso tomar diariamente, só para ficar deprimida no dia seguinte ao constatar que, das doze obrigações, eu só havia cumprido duas, no máximo. Há quatro meses, preciso levar o step à borracharia. Impossível, ainda que a borracharia fique a pouco mais de uma quadra da minha garagem. Minha carteira de motorista expirou há um ano, embora haja quem garanta que ela não deveria sequer ter sido expedida. No quesito automóvel são muitas as frustrações, como as batidas e arranhões que se alastram inexplicavelmente por toda a chaparia, e a estressante tarefa de dirigir, seja lá em que horário for. Mas, não me queixo de todo dos momentos de

tráfego, pois exatamente em um deles surgiu a virada que eu tanto esperava em minha vida pós-balzaquiana. Meu Beetle, que mais parecia uma hemácia por causa de duas acentuadas batidas laterais, alternava entre a primeira e a segunda marcha, rumo ao Diário da Cidade, em um daqueles dias de chuva em que a cidade simplesmente trava, e eu também. Sempre o pânico de um capô aberto, água até o joelho e o olhar de misericórdia e pouca iniciativa dos passantes no conforto dos seus carros que nunca falham, e dos seres não raramente bem intencionados, que se espremem sob as coberturas precárias dos pontos de ônibus. Faltavam ainda cinco quilômetros mais ou menos e eu tinha pouco mais de dez minutos para vencer o dilúvio, o rush, o caos e entregar os press-kits sobre o congresso de cirurgia plástica, que estava consumindo alguns dos melhores dias da minha vida naquela semana. Caixinhas e mais caixinhas de brindes temáticos e textos para divulgação na mídia, que não faziam qualquer sentido em estar impressos, uma vez que já haviam sido enviados por e-mail e postados em versões curtas, engraçadinhas, curiosas e sedutoras em todas as redes sociais. Por brinde temático para um congresso de cirurgia plástica, leia-se uma fita métrica cor de rosa, com dizeres motivacionais ou pequenas advertências entre as marcações das medidas: 0,90m a) quadril: linda! b) cintura: podemos melhorar. Eu sei, é ultrajante. Mas, o que esperar de um dos nichos mais rentáveis da medicina, em um dos mundos mais cruéis para as mulheres, sobretudo as da minha idade? Assessoria de imprensa era tudo que eu havia jurado jamais fazer, salvo em caso de extrema necessidade. Não que tecnicamente minha aspirada lipoaspiração fosse de "extrema necessidade". Não que de fato eu precisasse. Pelo menos, de roupa, não se via a urgência, mas, segundo uma tendência que minha melhor amiga dermatologista, Rachel, me explicou, é sempre conveniente antecipar a recauchutagem em dois tempos, para que o “antes e depois” da operação não fique tão denunciador. Assim, exorcizar a pança dois pouquinhos antes de a gravidade levá-la a cobrir aquela outra parte é o ideal para evitar o ar de artificial e os comentários cruéis, disfarçados de elogios. Tipo assim (ok, eu falo isso de vez em quando): você planeja uma lipo para daqui a quatro anos? Intensifique suas aplicações e caia na cânula em dois. Acredite, você sempre precisa mais do que pensa. Cheguei à guarita do jornal dois minutos antes do esperado. Um segurança me pediu a identidade. - Ai, moço, ficou na outra bolsa – disse isso depois de virar tudo da minha itbag Ives Saint Laureant no banco do carona. - Serve carteira de motorista. - Nada de documento aqui, moço. Já é sorte ter algum dinheiro. - Então a senhora não pode entrar. Olhei firme para ele. Nem quero pensar na cara que fiz naquele momento. Só sei que suava horrores e num átimo jurei que nunca mais compraria um carro sem câmbio automático. "Meu senhor, o senhor não tem noção do trânsito que eu peguei para chegar até aqui, da chatice que foi entrevistar aquele doutorzinho pedante, do que eu tive que

adular a editora de saúde para publicar este release, muito menos do que eu vou deixar de ganhar se o senhor não levantar agora esta cancela", argumentei, se é que esta é a melhor expressão. -Sinto muito, senhora, mas neste jornal não entra ninguém sem ser identificado. - Isadora, jornalista, 38 anos, recém-separada, coração partido, zero filhos e com um press-kit que precisa ser entregue. Dá para abrir a porcaria da cancela? Vi que daquele jeito não ia surtir efeito. Mais calma, diplomática e, com uma nota de cem na mão, fiz com que o sujeito se sensibilizasse com minha situação. Entrei, afinal, no prédio. Uma construção moderna de concreto e aço escovado, pé direito alto e não sei quantos corredores. Para piorar, a redação ficava no último andar daquele mausoléu e, no elevador, uma simpática inscrição dizia: Desculpe o transtorno. Estamos colaborando para a preservação do planeta. Elevador exclusivo para idosos e pessoas com necessidades especiais. Paciência. Lembrei de uma matéria que li na revista Corpo Perfeito que falava sobre maneiras corriqueiras de queimar calorias. Dez lances de escada na subida com 18 degraus cada e 50 calorias a menos. Tentei ser positiva, afinal, Pollyana poderia me servir. Ofegante: - Por favor, Paula Oliveira? - A editoria de Saúde fica no segundo pavilhão, perto da fábrica. - Como?

- A senhora desce por onde subiu, atravessa o estacionamento. Do outro lado, vai ver a cantina e a outra escada. A editoria de Saúde fica logo no primeiro andar, ao lado do fumódromo, disse um simpático e rosado contínuo. Tinha ombros largos, boca carnuda, olhos verdes e, no máximo, dezessete. Afastei um pensamento comprometedor e saí correndo dali. Menos trinta calorias na descida, quarenta passos em ritmo acelerado e alta frequência cardíaca no estacionamento, outros trinta e seis degraus de subida, uma nuvem de fumaça na cara e eu encontro algum fôlego para falar: - Paula Oliveira, por favor. - A Paula não veio hoje, e nem virá nos próximos trinta dias. Saiu de férias falou uma dessas criaturas de redação que, embora não seja a norma culta, nem tampouco o hábito local, não dispensa um artigo definido antes do nome próprio. - Como, férias? O fechamento do caderno não é hoje? - É, mas o subeditor se encarregou disso e ele já foi embora. Férias. A simples menção desta palavra detonou em mim um sentimento impublicável. Saí do prédio transtornada e decidida a reaver meus cem reais com o porteiro. Ia fazer questão de gastar cada centavo daquele suado suborno em um café maravilhoso. Trufas, muito chantilly, amaretto, sequilhos, mais trufas, mais chantilly, cointreau, torradas, cem gramas de chocolate com menta para viagem, frangelico, dez reais para o garçom - quinze, se ele tiver menos de vinte - e mais dois para o guardador, qualquer que seja a idade. Mas nem sombra. O troglodita não estava mais lá. - Cheguei pra render ele - disse o novo ocupante da guarita. Entrei no carro, fechei a porta com tudo, e nem percebi que a ponta do meu cardigan de cashmere ficou para fora, junto com o cinto de segurança. Um Stella McCartney que fez soluçar o meu American Express que, até que eu o pudesse pagar, enfrentou duas desvalorizações cambiais. Forcei a porta e lá estava ela, a ponta do casaco, colada ao cinto de segurança com uma enorme mancha preta em linha reta diagonal, maculando aquele tecido 100% natural, extraído do pescoço de bucólicas cabras do Oriente Médio. Perdido para sempre. Dei a partida e saí tresloucada daquele lugar sem saber para onde ia. Vinha sendo mais ou menos assim desde que Theo sumiu. Parece que nada mais tinha sequência. O simples sair para comprar pão, passar no chaveiro e pegar as cartas no escaninho tinham a ansiedade de uma jornada sem fim. Não que eu seja dependente, frágil, carente, mas, por mais engajada que tivesse sido a minha mãe, psicanalisada desde o jardim de infância, ela não me ensinou o básico. E olha que não estou falando apenas de substituir a resistência do chuveiro ou, glória das feministas, trocar um pneu

na beira da estrada. Por tudo isso eu pago, sem dó nem piedade, ou imploro ao porteiro, que é meu amigo. Agora, almoçar sozinha, dormir desacompanhada no inverno em cama de casal, esvaziar gavetas do ex, jogar fora o resto de loção after shave, definitivamente, são coisas que exigem estrutura, uma cabeça estável, coisa que minha mãe nunca teve e jamais poderia me deixar de herança. A decisão de Theo me deixou desnorteada. Perplexa, para definir melhor. Mas, não quero falar disso agora. Já estava rodando há quase meia hora quando percebi que não sabia para onde queria ir. Não era exatamente pelo bolo que levei da editora do jornaleco de quinta que eu estava daquele jeito. O que me afligia era uma sucessão de pequenos fracassos. A saída da Corpo Perfeito, as vagas nos jornais locais que sempre estavam "diferentes do perfil" do meu currículo, um projeto para a televisão roubado descaradamente e, a pior delas, a frustração sentimental. Theo, sempre ele. Depois de soltar um urro que fez o vizinho do Renault ao lado voltar a cabeça para mim como quem diz "quem é esta louca?", afrouxei o cinto de segurança, desentesei os músculos e procurei no porta-luvas uma trilha sonora para aquele momento. Descobri que aquela pessoa, cujo nome eu não escreverei mais nos próximos dez, pensando bem, oito parágrafos, enfim, aquela pessoa vil havia levado todos os CDs. Lá no fundo, somente Djavan lançava um meio sorriso. Mas, não. Eu ainda não havia chegado tão ao fundo. Mais serena, percebi a placa indicando a via que leva à rodovia federal. Três quartos de gasolina no tanque, minha rescisão com a Corpo Perfeito, mais o seguro desemprego, uma ligação para o gerente do banco, minha mãe no Tibet e ninguém mais a quem dar satisfação. Tinha apenas a roupa do corpo, o carro, o celular e o inseparável MacBook Air, que ele me deu no último aniversário. Experimentei, depois de muitos anos, a sensação da liberdade legítima. Iria pegar qualquer caminho, dormir onde e com quem eu quisesse, comer nos botecos da estrada e voltar para casa, um dia, quem sabe, com uma história na mala. Sem hesitar muito, segui, só para ver no que dava.

Capítulo  2   Acho que só os fotógrafos e documentaristas conseguem ver tanta beleza na pobreza. A saída da cidade era uma vergonha. Casas apinhadas, paredes sem reboco, esgotos correndo a céu aberto e poucos indícios de qualquer administração pública. Podem me julgar, me chamar de alienada, garota downtown, mas a verdade mesmo é que passava bem pouco por lugares assim. Como nasci numa cidade de praia, e desde sempre tive dificuldades em me orientar, fiz da orla meu único caminho. Era como o dever de casa de "ligar os pontos" ou ajudar o coelhinho a encontrar a cenoura. Não havia outra opção. O caminho era uma linha sinuosa beirando a areia que, invariavelmente, terminava na minha calçada. Foi só depois de alguma prática e quilometragem que descobri que podia, com alguma segurança, me arriscar pelas avenidas de vale, uns poucos atalhos sinistros e,

muito eventualmente, pelas ruas confusas do centro da cidade, especialmente as da Cidade Antiga. Mas, nunca ousei transpor os limites do perímetro urbano sozinha ao volante. Salvo uma única vez quando, por engano, errei a entrada e fui parar na rodovia federal. Nenhum dos meus companheiros jamais me incentivou, principalmente o último que, convenhamos, nem dirigia muito bem. Do jornal à BR, levei aproximadamente uma hora. Não sabia bem onde estava e muito menos para onde ir, mas, enquanto dirigia, senti que lentamente meu estado de espírito voltava ao normal. Normal é um conceito bem relativo. O meu normal certamente enche os olhos da indústria farmacêutica, mas ela não fatura comigo, porque não arrisco mais que um frasco de fitoterápico floral conservado no conhaque, direto na boca, sem contagotas. Ainda penava no trânsito e ouvia os barulhos da cidade, quando uma vaca cruzou a estrada. Meia hora, e alguns pensamentos raivosos antes, e eu não teria reflexo suficiente para frear, quase em cima daquela imensidão branco-acinzentada. Era uma Nelore, sem dúvida. Aprendi isso com Laetitia. Éramos quatro amigas sobreviventes dos tempos de escola. Todas com idades variando entre os 37 e os 40. Duas casadas, eu, sei lá o quê, e Let, economista e psicóloga, que deixou o consultório para estudar filosofia em Paris. Let, Laetitia Moura, na certidão, era uma grande figura. Estudamos juntas desde o ginásio. Sempre gostou de namoros longos e, que me lembre, organizamos para ela três chás-de-cozinha. Nunca esquecíamos nada: a inútil panela de fondue, o saca-rolhas, dúzias de panos de prato, galheteiro, tábua para frios e outras coisas mais úteis como panelas de pressão, ferro de passar e o tão temido fogão. Mas, bastava a menor ameaça da rotina do pós-casamento, a possibilidade de filhos, as contas a pagar, para ela passar adiante não apenas os presentes, como também o noivo. Só não foi assim com Otávio, fazendeiro rico e cobiçado, mas de alma simples e boa, pelo menos era no que críamos a princípio. Viu seus negócios no ramo de couro prosperar sem a ajuda do pai. Supria de couro os melhores mercados do mundo, sem pensar sequer em sair da fazenda. Let acompanhou a ascensão do noivo sem muita preocupação. Não tinha uma ponta de ciúme quando o via cercado de mulheres nos leilões de gado para os quais ele invariavelmente a levava a tiracolo. Ela nem ligava. De jeans, botas e óculos Gucci, assistia entediada às marteladas e as poses do rapaz ao lado das matrizes mais caras do país e, neste ritmo, empurrou o noivado por mais quatro anos. Já ia mesmo acabar o relacionamento, tanto pela falta de entusiasmo quanto pelo pavor de uma vida bucólica, quando ouviu da sua própria boca que existia, entre eles, outra mulher e, entre esta mulher e seu noivo, uma criança a caminho. Laetitia tomou aí o primeiro ansiolítico de sua vida. * A vaquinha cruzou a pista totalmente alheia a mim e aos meus problemas. Plácida e bucolicamente, ela e o dia iam passando, e eu me lembrava que não havia feito sequer uma reserva em algum hotel para pernoitar. Bem, eu nem era tão ingênua para esperar algum conforto, como cosméticos europeus, algodão egípcio e uma jacuzzi, mas ao menos um lençol limpinho teria sido bom encontrar. Parei num posto de gasolina,

um dos únicos que eu vi daquele lado da pista e, enquanto devorava um saco de batatas fritas, minha única refeição desde o café da manhã, dirigi-me ao atendente de uma espelunca que ostentava indebitamente a placa de "loja de conveniências". - Boa tarde. Onde fica o hotel mais próximo? - Logo aqui em cima, moça. A senhora só precisa subir a escada por esse bequinho ao lado - disse o homem, apontando para um arremedo de alvenaria que levava a uma sobreloja igualmente miserável. Olhei para cima com uma sensação misturada de ultraje e comiseração. - É o único que a cidade possui? – perguntei. - É. E é o melhor, também - respondeu ele com um sorriso bobo. Conferi em torno, como se fosse preciso fazê-lo mais de uma vez para não correr o risco de ser injusta com os convivas daquela pocilga. Não sabia a quantos quilômetros estava da cidade mais próxima e já começava a escurecer. Como se tratava do meu debut na autoestrada, achei melhor não abusar da sorte. Já havia rodado mais do que eu poderia imaginar em um único dia e, até então, tudo havia corrido bem. Iria dormir, desprovida de qualquer orgulho, e da minha camisola La Perla, e o dia seguinte seria um dia melhor. “Penso nisso amanhã”, disse em voz alta e tom solene, comemorando enfim a chance de poder usar a frase de Scarlet O'Hara que eu tanto ensaiei para uma ocasião especial. Não quero aqui discorrer sobre os horrores daquela noite. Somente para descrever os lençóis, que pareciam resgatados do lixo de algum lupanar, seriam necessárias muitas linhas. O box era um capítulo à parte. Cada azulejo branco tinha uma moldura de limo, e a água, quando batia neles, custava a escorrer de tão sebosos que estavam. Deixei o chuveiro aberto e não tive coragem de entrar. Ou tomava banho com o único sapato que tinha, ou descia na espelunca do térreo para ver se encontrava umas Havaianas, legítimas ou não, para comprar. Amarelei, confesso. Nada de banho para mim. A salvação foi uma cartela para lá de usada de comprimido natural para dormir. Restavam apenas dois de um total de seis, e decidi que aquele seria o momento exato para dispor de um deles. Era como ganhar uma vida no videogame. Fiquei com tanto nojo dos lençóis e do travesseiro - fino e molenga como uma bolacha velha - que procurei não me mexer, para diminuir o contato da pele com aqueles tecidos cheios de DNA alheio. Acabei dormindo de roupa e maquiagem, com aquela sensação de culpa de quem chega da festa e nem escova os dentes antes de cair na cama. Não lembro de ter sonhado nesse dia, nem de acordar à noite por qualquer motivo. Minha consciência só voltou a se manifestar quando ouvi a voz esganiçada de uma mulher que, creio, varria a calçada, enquanto dava a edição da manhã da vida de todo mundo do povoado.

*

O dia amanheceu com um cheiro de cuscuz e ovo frito. Acertei as contas com a senhora na portaria e fingi que não vi os casais esquisitos que saíam lá de dentro. A mulher, que também não parecia nada normal - ou, ao contrário, era tão normal e ambientada que parecia ter sido feita da mesma argamassa daquelas paredes - perguntou se eu por acaso não tomaria o café da manhã. Agradeci educadamente, mas ainda não havia fome suficiente para isso. Na saída da pensão, lembrei que havia levado comigo um instrumento muito útil e que mudou muito desde que foi inventado, há cento e alguns anos, mas, em sua natureza, continuava o mesmo. Ele era lindo em seu design minimalista. Tela de cristal líquido sensível ao toque, teclado QUERTY virtual, câmera fotográfica. Passava e-mails, trocava cartões de visita, e ostentava um monte de aplicativos que eu jamais aprenderia a usar, antes de ele se tornar obsoleto. Mas, naquele fim de mundo, não funcionava. De que adiantava tanta tecnologia, se sequer poderia ligar pra Beatriz e dar sinal de vida naquela hora? Ok. Os governos também pensam nisso. Na outra margem da estrada, estava um telefone público azul cobalto, completamente rabiscado com números telefônicos, recadinhos de amor, desenhos bem primários de pênis e palavras de baixo calão. Era suficientemente amiga de Bia para ligar para ela a cobrar. Esperei quase sem fôlego a musiquinha que, para Bia, significava um incremento considerável nos pulsos de sua conta telefônica e, para mim, talvez a única salvação. - Como assim, na estrada? - perguntou ela incrédula. Menos crédula ainda ficou quando narrei minha noite de horrores no reduto das pulgas, que quando contei das minhas desventuras profissionais e amorosas, não necessariamente nesta ordem - E agora? - Não sei, Bia. Me deu uma coisa e eu fui dirigindo, dirigindo. Acho que estou em busca do meu self. - Na estrada, amiga, e ainda por cima dirigindo? Poderia ter ido pelo menos para Buenos Aires por um programa de milhagem. Enchia a cara, afundava no doce de leite da Patagônia e voltava boa. Com dezesseis shoppings aqui na capital da província e você me diz que quer encontrar seu verdadeiro eu em algum rincão distante da polis? Não posso crer. Não ia adiantar muito explicar para Bia os objetivos nobres da minha viagem. Pedi a ela que molhasse minhas plantas e separasse a correspondência. Até o dia seguinte, eu já teria definido a próxima parada. Desliguei o telefone, já prestes a vomitar com o cheiro do aparelho, e voltei para o carro. Coloquei a chave na ignição e nada. Simplesmente, nada aconteceu. Foi então que descobri que, por um daqueles descuidos que só eu poderia cometer, e sempre nas piores horas, esqueci o rádio ligado e fui dormir. - PUTA QUE PARIU!!!!!

Fosse alguns quilômetros atrás, eu teria ligado para a seguradora, ou para a Bia, ou para Let, que é sócia do Touring, ou... sim, sim, sim. Eu teria ligado para Theo. Mas, eu estava na estrada e, pela primeira vez na vida, daria cabo dos problemas de ordem prática por mim mesmo. Soltei a chave, deixei os ombros caírem para trás e fechei os olhos. Quando abri, que cena. Olhos enormes, bocas moles e uma profusão de dentes, numa cartela de cores que vai do bege ao preto me encaravam. Era ver um quadro de Goya em movimento. Nem bem havia saído da cidade e já era objeto de estudo de pelo menos uns seis caminhoneiros. - Fica tranquila, dona. Nada que uma chupeta não resolva. Foi só quando eu cruzei as pernas, na iminência de um estupro que nunca se cogitou, que vi, no meio daquele estranho grupo, um rosto que destoava de quase tudo o que havia visto até então. Tinha não sei o quê de índio, não sei o quê de negro e resquícios inequívocos das unificações Alemã e Italiana. Vestindo cargo cáqui e regata branca, parecia ter saltado de um catálogo de moda masculina e, evidentemente, era mais urbano que qualquer um dos que me cercavam naquela hora. - Transferência de energia - ele traduziu em português honesto. E, na mesma hora, já estavam abrindo o capô e ligando, com um cabo grosso, meu besourinho amarelo a um caminhão enorme. Uma barulheira, muitos impropérios, e bem pouca consideração pelo fato de eu ser uma dama. Quando deram o sinal, eu dei a partida, e o carrinho pegou por cinco segundos para apagar de novo em seguida. Nova barulheira, velhos impropérios, e eu segurei o choro e o ímpeto de sair correndo. - Calma, é só um fusível – diagnosticou o bonitinho do posto – Não sei por quê, mas acho que você não deve ter nenhum fusível sobressalente por aí. - Fusível? É claro que eu não tinha fusível algum. Ele, ao contrário, abriu uma maletinha de plástico cheia de pecinhas coloridas fofas. Pegou uma qualquer e substituiu pelo gêmeo queimado. Ao mais simples toque da chave, e para a minha grande vergonha, o carro voltou a funcionar. Agradeci à turma propondo uma rodada de cerveja na minha conta, proposta que foi imediatamente negada. Quem eu pensava que era para bancar o álcool de caras sérios e de família? Mas o meu herói aceitou um café. Sim, daqueles já com açúcar, que escorrem da torneira de um cilindro prateado e que, na hora certa, supera o melhor blend jamais preparado por Ernesto Illy. - Então, você não sabe para onde vai. Achei que ele simplificou muito a coisa, mas não o culpo. Ele havia gastado uns bons três ou quatro minutos perguntando coisas que para mim eram só detalhes, mas para ele pareciam ter alguma importância, como destino final, estradas alternativas, mapas, GPS, noções de poente e nascente e, já desesperado, orientação zenital, o que

quer que, diabos, isso quisesse dizer, principalmente para alguém que há trinta e oito anos conseguia se perder no mesmo caminho. -Não exatamente – respondi - Digamos que isso faz parte de um projeto de pesquisa. Foi tudo o que me ocorreu na hora, mas a desculpa esfarrapada detonou um argumento de bolso. - Sou jornalista e estou trabalhando num projeto pessoal. Uma tese-reportagem sobre desprendimento, autopreservação, reparação e sobrevivência. E meu objeto de estudo são mulheres complexas e urbanas em situações estanque - eu disse com um ar de autoridade que acabou convencendo a mim mesma. Então, era isso. Já tinha um motivo. Sabia, enfim, que não era só uma maluca ao volante, mas uma cientista. Uma socióloga, quem sabe. Que luxo. De repente me senti útil e indispensável ao mundo. Acho que ele ficou em dúvida. Ligava para 190 ou, simplesmente, girava nos calcanhares e dava o fora dali. Eu estava desejando profundamente que ele me tomasse pelos ombros e me tascasse um beijo de tirar o fôlego, que ia me deixar muito mais feliz do que o bendito fusível, mas num desse azares quânticos, um raio de sol incidiu sobre qualquer coisa na sua mão esquerda, que desviou sua trajetória brilhante para o meu olho. Casadíssimo. Corri eu mesma. Afinal, a estrada era a minha redenção e não o chicote para o autoflagelo. Aprendi com Marco, sim, esse era o seu nome, a trocar os fusíveis. Comprei alguns por segurança e tomei o meu caminho. Como se eu tivesse algum. Já que agora a minha viagem tinha uma explicação, eu precisava fazer algumas escolhas. Resolvi seguir em frente e, no próximo posto, compraria o Guia 4 Rodas. Decididamente, isso não tornaria a minha viagem mais pobre, como a princípio eu acreditava. Ah sim, ainda que eu não soubesse onde, teria de comprar algumas roupas também, porque eu só tinha a do corpo. Ó céus, por que raios eu sempre ligo para Bia quando estou encrencada? Por uma simples razão. Ela tem um pouco mais de juízo, um pouco mais de dinheiro, um pouco mais de tempo livre e muito mais estilo que todas as outras amigas para encontrar uma solução inédita para os meus problemas de sempre. Pensei nisso quando ouvi um beep e vi a placa dizendo que aquela área possuía cobertura da minha operadora de celular. Apertei o iconezinho verde. Seu número era o último discado do meu aparelho que, nas últimas 24 horas, andou bem ocioso. - Oi, amiga, sou eu, de novo – falei, com aquela voz que denunciava que fiz alguma coisa errada. A bagunça do meu closet, o caos na minha mesa de trabalho, a forma louca como eu salvava meus arquivos no computador e a maneira negligente como eu administrava minha conta bancária em nada depunham em favor daquela amizade que já durava vinte e cinco anos. Começamos essa cumplicidade esquisita e improvável ainda no Fundamental e prosseguimos na faculdade, onde tivemos o mérito de fazer descolados, céticos, niilistas e cínicos concordarem uma vez na vida: não tínhamos nada a ver. Mas, a despeito da conclusão óbvia, nossa amizade era cada vez mais forte.

Pior que a nossa discordância nos quesitos beleza masculina, cinema, organização e música e, até mesmo pior que o nosso senso de humor, diametralmente oposto, tem sido passar quase três décadas ouvindo as mais ridículas explicações, tipo Coleção Primeiros Passos, para as razões dessa amizade. Da psicanálise à biologia, já tentaram de tudo. Fomos tubarão e rêmora, jacaré e pássaro-palito e muitos outros. Mas, caramba, se era para ilustrar alguma simbiose, que fosse então entre Dolce e Gabanna, ou coisa que o valha, porque nós duas levamos moda a sério, e mesmo que nem sempre as experimentações vanguardistas de Bia batessem com meu Jackie O. revisitado, respeitávamos imensamente o gosto uma da outra. Era por isso que somente ela e Let entenderiam a importância de garantir que aquela viagem, sem programação alguma, fosse feita com algum estilo e só Bia tinha as chaves para isso: a da minha casa, e a do meu closet. - Não, não e não! - Mas, Bia, por favor! Bia bateu o pé e jurou que nem a pau chegava perto do meu guarda-roupa. Ela tinha uma coisa estranha com esse negócio de arrumação. Desde pequena organizava as roupas, os papéis de carta, namorados e as ideias por cor, textura, preço, tamanho, importância e, cúmulo dos cúmulos, ordem alfabética. - Fico empolada só de pensar em ver seu twin set vintage da Dior abraçado com aquela legging horrorosa que você usava para correr, mas agora usa para a faxina. É promíscuo demais, amiga. - Bia, enquanto eles estão lá, abraçados, minha opção mais plausível, se eu quiser um mínimo de higiene, será parar na próxima cidade, com sorte num dia de feira, e comprar um vestidinho de malha com lantejoulas vindo de algum outlet do centro do país. Imagina encontrar o homem da minha vida vestida assim. Minha amiga no fundo não acreditava que eu fosse capaz de usar uma roupa daquelas, nem por força da necessidade, e menos ainda cria na possibilidade de eu encontrar qualquer coisa parecida com o homem da minha vida. Não ali, na estrada. Até porque, tenho quase certeza, ela pensava que eu já havia encontrado o homem da minha vida, e para ela isso só acontece uma vez.

Capítulo  3   Era bem bonito. Traços finos, cabelo sempre arrumado, corpo minuciosamente trabalhado para parecer que fora naturalmente esculpido, como aliás tudo o mais na sua vida casualmente falsa.

Suas roupas só pareciam desencanadas. Mesmo as camisetas furadas que ele usava para correr seus quinze quilômetros dia sim, dia não, não eram assim tão casuais. Da mesma forma, apesar do seu gosto requintado, gabava-se de satisfazer com um sanduíche de feira, mas não explicava bem se era do mercado de San Jose, em Barcelona, ou da feirinha despretensiosa de Santo Amaro da Purificação. Passamos três anos juntos e foram os mais difíceis da minha existência, mas não nego que teve seus encantos. Do seu jeito, Theo me censurava nas mínimas coisas. Tínhamos closets separados. Ele ocupava o do quarto que seria reservado para um futuro bebê - pensava eu - ou para um futuro cinema particular e sede da confraria gastronômica - pensava ele. Isso reduzia muito os possíveis atritos por causa da minha bagunça. Ele detestava meu pouco caso declarado ao seu gosto por vinhos bons e caros, ou ao seu paladar aguçado para sabores exóticos. E, pior ainda, às suas habilidades recentes e forçadas para o golfe. - Odeio essa coisa de ficar cheirando rolha. Acho patético. Só isso – eu expliquei algumas vezes. Essa frase, que tomei emprestada de uma apresentadora de TV pelo simples fato que eu mesma poderia tê-la inventado, era quase um insulto religioso para ele, que era performático em tudo o que fazia. E eu odiava ainda mais os seus amigos almofadinhas que também cheiravam rolha, cozinhavam com estilo, mas nunca lavavam os pratos. Theo só perdoava minha rusticidade gustativa porque admirava meu gosto pela literatura e por cinema, e, assim como na minha amizade com Bia, bem que tentaram explicar as razões daquela união tão pouco usual, mas creio que não valha a pena dizer aqui as comparações. O fato é que apesar de eu curtir pouco dividir minha parca bancada de banheiro com os cosméticos importados de Theo, e suportar sua mania de tirar os sapatos antes de entrar em casa, impondo isso da diarista ao chefe, eu gostava do cara. Tínhamos uma fina sintonia de pensamento, apesar da divergência de opiniões. Eu era capaz de antever um telefonema seu, ou pensar a mesma coisa que ele quando estávamos junto de certas pessoas que considerávamos chatas ou ridículas, ou adivinhar um certo mau humor ou insegurança em dois segundos de silêncio durante uma conversa, ou mesmo chorar numa galeria de arte, diante de um quadro que por pouco não passaria despercebido. Éramos cúmplices em quase tudo. Ele adorava minha paixão por sapatos e, ao contrário de muitos homens que não entendem por que uma mulher precisa de mais três pares, sempre me surpreendia com um novo e, pelo menos no estilo, nunca errava. O mesmo não se podia dizer da fôrma. Tenho o pé mais complicado do mundo. Por isso, boa parte dos sapatos que Theo me dava ficava restrita à estante da sapateira, quase como se fossem imagens sacras. - Não tem problema, dizia ele. São verdadeiras esculturas. Faz bem para o coração ter peças tão bonitas assim. Além do mais, você não teria tempo de vida suficiente para usar todos os sapatos que já tem e servem. O incrível é que eu concordava plenamente. Theo era um esteta e quase nunca era funcional. E nesse último ponto, a gente discutia. - Não entendo porque guardanapos de pano e qual o problema da xícara ser diferente do pires.

- Porque é simplesmente repulsivo, Isa. Refeições têm de ser fruídas em cada detalhe. É preciso tempo para apreciar um bom prato e você nunca senta, come qualquer coisa gelada e, pior de tudo, come na panela. Ia ser complicado explicar para Theo que eu tinha prazos, que eu odiava chegar atrasada, e que comida para mim era uma combinação de carboidratos e proteínas que às vezes era maravilhosa e às vezes nem tanto, independentemente de serem grafadas em francês ou qualquer outra língua. Foram muitas discussões. Resolvi que nos dias de reunião da confraria lá em casa eu simplesmente não estaria ou, só de pirraça, pediria comida por telefone.

    Capítulo  4  

Levei cerca de quinze minutos para fazer Bia entender que, ou era ela a me ajudar naquele momento, ou eu poderia morrer na estrada que ninguém sentiria falta.

- Vou ver o que consigo – Para onde devo mandar o kit de salvamento, quando ele estiver pronto? Foi só então que eu vi que, daquele jeito, breve eu só conseguiria ser alcançada por um helicóptero da ONU, que despejaria as caixas, roupas e vidrinhos sobre a minha cabeça. Já era mesmo hora de comer. Eu havia rodado quilômetros por uma estrada que sequer imaginava qual fosse. Estava passando por uma cidadezinha muito pobre. Senti o carrinho trepidando numa sequência torturante de quebra-molas toscos. Nunca soube passar com classe por um quebra-molas. Saí da via principal e fui correr o vilarejo para ver o que eu encontrava. - Restaurante, restaurante mesmo, não tem não, dona. Mas tem o pouso de dona Cira que é muito decente, disse um homem em cima de uma bicicleta Barra Forte. Para justificar a certeza preconceituosa de Theo sobre meu apetite rudimentar, segui a instrução do homem e cheguei ao Pouso de Dona Cira. Era realmente muito simples. Todo decorado com móveis brilhantes e avermelhados, samambaias e avencas verdadeiras e de plástico. Em cada canto que se olhava, havia um gato dormindo ou destruindo alguma coisa com as unhas. E ainda um casalzinho de persas ilustrando o calendário na parede. Ou melhor, a folhinha, que era de três anos antes. Mas, pelo visto, naquele lugar as pessoas não se preocupavam muito com dias e horas.

Dona Cira era muito simpática e bem bonitinha. Explicou que o almoço sairia logo. Foi aí que eu percebi que havia uma única mesa na casa, forrada com uma toalha de plástico floral, e que eu almoçaria coletivamente com completos estranhos. É tudo limpinho, viu, filha? – disse minha anfitriã. E era mesmo. Tudo lustrava naquela casa e, apesar dos gatos, o cheiro de sabão em barra e desinfetante de pinho estava por toda a parte. E um outro cheiro, bem mais interessante, vinha da cozinha. Comecei a me sentir meio tonta. Foi a primeira vez que tive fome desde que saí da capital e também a primeira vez em muitos anos que me lembrei o que era casa. A minha antiga às vezes parecia mais um showroom. O cheiro da cozinha de dona Cira era de comida de verdade, temperada com alho, cebola, sal, pimenta do reino e, para o desespero de Theo, caso ele estivesse ali, com um toque de caldo de galinha em cubos, coentro, açafrão da terra e extrato de tomate. No início, fiquei meio desconcertada por dividir a mesa com quatro homens desconhecidos, mas depois, utilizando a minha velha tática da sublimação, potencializada por uma fome de leão, ignorei solenemente meus companheiros e fui ao que interessava. Tive um encontro divino com o feijão, o arroz escorrido, o bife de panela e a salada de alface com tomate e cebola. Ó meu Deus. Já havia misturado um macarrão vermelho e seco ao molho daquela carne, sem me preocupar com a vizinhança do feijão. Mas, Theo não estava lá, e ninguém mais conhecido também. Assim, eu comi com vontade e sem censura e arrematei tudo aquilo com meu casal preferido em matéria de doces: Romeu e Julieta. Depois, tomei café fresco e já adoçado, servido numa daquelas xícaras de vidro marrom que Theo abominava. - Comida de pobre, minha filha. Não repare. - A melhor que já comi, dona Cira – disse eu sem um pingo de falsidade. Recuperei-me do lauto almoço em um quarto com carpete, mas com lençóis limpos e cheirosos, até dormir de vez, entorpecida pelo mormaço daquele lugar escaldante. Quando acordei, a princípio atordoada pela falta de hábito de dormir à tarde, dei uma trégua ao carro, que ficou parado na frente da pousada, e saí andando pelo vilarejo. Seria bom caminhar um pouco, depois de dirigir tanto para os meus padrões. Já começava a lembrar que tinha um ciático temperamental. Então, aproveitei e alonguei. Procurei em volta uma banca de jornal, mas é claro que não havia uma. Me disseram que só na rodoviária.

Capítulo  5  

Foi lá na rodoviária que ela chegou, dois dias após o telefonema. A caixa mais chique que a Expresso Santo Antônio já entregou desde a sua fundação, nos anos 50. Uma grande caixa, toda forrada em couro vegetal marrom escuro, com as arestas pespontadas de branco e reforço de latão nas quinas. Bia se deu ao trabalho de enrolar ela toda em plástico bolha, mas não resistiu à tentação de estourar as bexiguinhas, com certeza do mesmo jeito compulsivo e alucinado com que esfacelava o pedaço de jérsei de uma camisola velha de sua mãe desde os cinco anos de idade. Tudo naquela caixa tinha como que a assinatura da minha amiga. Já de cara, o cheiro de aromatizador de uma loja chiquérrima que tinha acabado de abrir no shopping ao lado da casa dela, mas que ela preferia comprar pelo e-Bay, só para matar a vizinhança e os porteiros de curiosidade. Depois do impacto do cheiro, vi um bilhete em papel pautado, tirado de caderno, com a franjinha da espiral cortada a tesoura. Tão bem dobrado que parecia um origami. Reconheci logo sua letra redonda e os asteriscos de esferográfica com os quais ela costumava marcar cada item na sua agenda. Na minha caixa, elas indicavam o seguinte: Kit de salvamento para amiga maluca perdida na estrada do raio que o parta sem nenhum glamour

* 01 caixa de cotonetes. * 01 sabonete limpeza profunda hidratante hipoalergênico e não comedogênico para a zona T (noite). * 01 Sabonete para limpeza profunda, hidratante anti-age com filtro solar 60 plus hipoalergênico e não comedogênico para todo o rosto (dia). * 03 caixas de lencinhos Shiseido (para tirar o brilho do nariz e da testa). * Trio sobrevivência: gloss, blush e rímel (todos M.A.C). * Base em spray da Dior. * 01 Cortador de unhas. * 01 pinça de sobrancelha. * 01 twin set de cashmere cor de pérola. * 03 polos (pink, amarelo pintinho e branca). * 03 cintos: fino, médio e grosso. * 05 caixas de chá branco. * 03 pacotes de linhaça. * 01 par de pantufas * 01 travesseiro de macela.

* 01 vidro de azeite trufado. * 05 sacos para roupa suja. * 01 camisola La Perla – se vai dormir na beira da estrada, que seja com um mínimo de classe.

P.S: Não jogue a lista fora, assim você checa se lembrou de trazer tudo, na sua volta. P.S. 2: Você volta, não volta? P.S. 3: Seu apartamento estava um caos. Sorte sua que eu existo. Mas, suas plantas não estão mais entre nós. Sorry! Beijos, Bia

E era só com esses itens básicos que Beatriz esperava que eu sobrevivesse ao sertão. Nenhuma calcinha, zero camiseta, calça jeans, para quê? Claro que eu dei o azeite trufado para dona Cira, porque eu não tinha nenhuma expectativa de debruçá-lo sobre uma salada crocante de folhas verdes e vieiras, mas ela certamente iria preparar o picadinho de abóbora com charque mais exótico da sua vida. Fechei a conta em dona Cira prometendo voltar e parti. Na despedida, ela me deu uma caixinha de plástico com um pedaço de bolo branco com recheio de goiabada e outro de cuscuz de milho com manteiga e requeijão, para eu merendar no caminho. Nem pensei em recusar e não demorei muito a devorar tudo, depois de uma passada no primeiro posto de gasolina que encontrei, onde, claro, tomei o tradicional café adoçado no copo canelado. Na saída do posto, tratei de descobrir onde se poderia comprar roupas naquele lugar. Só na feira, disseram. A informação confirmou minha desconfiança. E fui procurar a feira.

*

Feiras no interior são como grandes lojas de departamento. Se encontra de tudo, de roupas a eletrônicos. Só não tem provador. No mais, são climatizadas pelo sol causticante, aromatizadas com um cheiro difuso de frutas, couro cru, carnes e temperos, e sonorizadas por uma infinidade de pregoeiros, artistas de rua, trios nordestinos e arautos do fim do mundo. Na sessão de roupas, a disputa é acirrada. - A calçola baixou, a calçola baixou, a calçola baixou! É só dez real, madame. Duas é quinze!

Eu não estava ainda preparada para comprar lingerie em feira, mas me aventurei pelos montes de tecidos coloridos, emarados sobre lonas no chão. Era uma guerra, como em dia de liquidação em qualquer loja de shopping. Mulheres de todas as idades, ávidas por um bom desconto e dispostas a mostrar o seu lado mais selvagem na conquista de uma peça. E quem quiser que pense que na feira só tem vestido de chita, rendas e fuxicos. O que mais se vê são as correntes da Chanel, as listras da Adidas, o monograma da Louis Vuitton, tudo vindo do outro lado do globo. Eram toneladas de malhas, constelações de strass e anos-luz de zíperes, mais decorativos que funcionais. Havia ainda as coleções copiadas do figurino das novelas da Rede Globo: a saia da mocinha, o conjuntinho de brinco e colar da vilã. Eu precisava basicamente de camisetas brancas, uma ou duas calças de brim e um vestido. E tudo isso deveria ser muito bem lavado e passado, se eu ainda preservasse alguma certeza sobre o que era ou não higiene. O problema era o basicamente. Nada era básico, e achar uma peça lisa foi realmente complicado. Garimpei por quase uma hora até que... -

Ai que linda! Adorei essa calça!

-

Pode experimentar, freguesa. Aqui a senhora só paga se levar – disse o vendedor, com ar de deboche.

-

Tem 38?

-

Tem, mas acho que não dá na senhora, não. A madame é mais fortona. Melhor a 42.

Era uma questão de honra. Encontrei a tal calça e perguntei onde é que poderia prová-la. -

Ou leva pra casa, ou prova aqui, freguesa.

-

É que eu não moro aqui. Só estou de passagem.

-

Então leva a 42 que da certo.

-

Eu vou levar a 38, porque eu sempre vesti 38 – eu disse, já ensaiando baixar as calças que vestia para colocar a nova peça.

Vamos fazer a cerquinha pra moça aqui, gente. Uma garota conclamou e, com as amigas, tratou de levantar a maior quantidade possível de panos para evitar o espetáculo que eu planejava e ela anteviu. Não tinha a menor necessidade. Eu poderia ter desistido da peça, mas já havia sido humilhada demais nos últimos meses para sucumbir ao primeiro conselho não solicitado. Só que não havia naquela feira um item fundamental. A cama. Aquela companheira indispensável na vida de qualquer mulher persistente ante uma calça um número menor. Assim, de pé, pulando e agachando diante da torcida feminina que me protegia dos olhares curiosos, consegui romper a resistência do brim e entrar naquela calça. Palmas. O vendedor também aplaudiu. -

Ficou um pitéu, tia!

-

Tia é a sua mãe!

Ele riu, apertou minha mão, e disse que tinha um presente pra mim. -

Vai levar uma calçola por conta da casa. É só escolher! - E me mostrou um varal de calcinhas de nylon bem ordinárias: vermelhas, tigradas, brilhosas, cavadas.

Peguei uma preta qualquer, para não fazer desfeita, e me livrei dela tão logo tive oportunidade. Eu tinha uma camisola La Perla na mala. Vulgarizar as roupas é fácil. A lingerie, nem tanto. * Segui minha viagem, que não tinha sequer destino certo, e muito menos compromisso com o relógio. Era um daqueles dias lindos, sem uma única nuvem no céu. Lindo, para mim, porque em todos os lugares onde eu parava, só se falava da falta de chuva. Lindo, para aquelas pessoas, era a iminência de uma boa chuva para molhar as lavouras e os pastos. E me dei conta de que eu já pensava – mesmo que vagamente em lavouras e pastos, o que me tornava uma absoluta estranha para mim mesma. Sob o céu azul, a estrada avermelhada e boa. Um ou outro caminhão e pouquíssimos carros de passeio. “Oh! Can’t you seeeee, You belong to meeeee...”, “Gooood bye, Ruby Tuesday, who could hang a name on you?”, “dont go changing to try and please me”, “We meet every day at the same cafe...”, “I Love you when we’re cruising together”... Já tinha ouvido e cantado absolutamente todas as músicas do meu IPod que, num golpe de sorte, encontrei sob o banco do carona e que me salvou de capitular ao CD de Djavan. Não eram nada mais que as minhas cem músicas preferidas, o máximo que cabia na menor tecnologia disponível no mundo de cores e formas bonitas que a Apple oferecia. Um IPod de um mísero giga. - É menos que meu pen drive – me disse uma vez Marcos, chefe de reportagem da Corpo Perfeito. - É quase metade do HD da cabeça dela quando ela está ovulando – retrucou Flávio, da Informática, que não raramente me socorria nas horas de desespero quando, depois de trabalhar uma tarde de domingo inteira em um texto, evidentemente sem salvar o arquivo, eu dava um comando errado e sumia com o documento. Meu playlist era uma mistura do melhor das festas de casamento, que eu batizei de “Para depois do sim”. Quase todas as festas mais descoladas invariavelmente tinham o mesmo repertório, desde a chuva de papel laminado, que anda bem em voga, até a hora que a madrinha faz ou ensaia um strip-tease, a noiva beija o garçom, que na verdade era o gogo boy da despedida de solteira, e o noivo passa uma cantada na penetra de tomara-que-caia e aplique no cabelo. Havia ainda umas cinco trilhas dos cinco filmes da minha vida, Mama Cass cantando “Dream a little dream for me”, e Sinatra em “Fly me to the moon”. E, claro, umas músicas muito, muito tristes do Renato Russo, em Stone Wall Celebration, para eu chorar e sentir pena de mim. Mais standard impossível, mas esta sou eu, cantando alto e dramaticamente, ante o rio preto de asfalto escaldante no para-brisa.

  Capítulo  6  

-Acho que ela não vai longe. Está querendo, como sempre, chamar atenção! - Você não sabe de nada. Isa não precisa disso. Já faz uma semana que ela partiu. - Deve estar num Hollyday Inn da vida, tomando calmante e assistindo à série das mulheres neuróticas. - Sex and the City é tão anos 90... Ela trocou por Desperate Housewives, depois dos 35. - Não dou mais três dias para ela voltar. Essa era a conversa no fumódromo da Corpo Perfeito, conforme acredito que tenha acontecido, porque eu não estava lá para ouvir, mas conheço muito bem o veneno da turma quando se encontrava naquela antessala do inferno. Isso, antes do prefeito acabar com esses espaços de fumaça e maledicência naquele e em todos os prédios da capital, medida que não deveria causar impacto algum numa revista que faz apologia à saúde e aos pulmões turbinados. Minha reputação não andava lá essas coisas naquele reduto. Nem que fosse para calar a boca daquela monete chata da coluna Trendy Lycra, eu precisava me manter na estrada. Àquela altura, a notícia já havia se espalhado pelas redações da minha polis e das polis mais próximas. Já rolava até bolsa de apostas e, pelo que me falavam uns poucos informantes, a minha bolsa operava em limite de baixa. O futuro máximo do meu mercado futuro era de cinco dias, o que eu já achava um desaforo naquela época. Então, era questão de honra, pensei. Foi daí que abri meu notebook pela primeira vez desde que peguei a estrada, em uma lanchonete que não merece grandes descrições. Sempre fui um tanto avessa às rede sociais, simplesmente porque eu nunca vi alguém ficar feio numa foto do Instagram ou Facebook. Além do mais, nunca encontrei uma má pessoa assumida. Todo mundo tem uma frase linda para o campo “quem sou eu”, que geralmente começa com “eu sou uma pessoa”, por mais redundante que isto soe. Se você está lendo esta história no final do século XXI, valem algumas explicações: o passarinho azul era o hype das comunicações, algo como um e-pombocorreio 2.0. E hype era a gíria mais hype desde meados dos 90s, até a primeira década de 2000. Já a palavra tosco, a depender do contexto, era ofensa ou elogio. Por exemplo: filme trash de terror com Zé do Caixão: tosco e cool ao mesmo tempo. Os exemplos contrários são os literais mesmo. E foi graças ao Twitter que todo mundo se sentiu meio amigo da Demi Moore, íntimo de Barack Obama e amante de Ashton Kutcher. E se você não sabia quem eram essas pessoas e muito menos o passarinho azul – o que era bem improvável - você dava um Google, e, tchan-nan! Todas as respostas estavam lá. Que mundo fácil.

Enfim, “what’s happening?”, me perguntou o passarinho logo que eu digitei IsanaBR no login. Olá, pessoas! Contra as minhas próprias crenças, estou no campo e não desintegrei. Tenho recebido notícias de que os colegas, followers ou não, da #corpoperfeito fazem votos para que eu volte. Saudades? Quero acreditar que sim. Mas, lamento decepcioná-los. Tenho uma missão a cumprir e pelo visto ela demora.

Sim, existe vida nos arredores da cidade! E nos arredores dos arredores também.... Ainda não achei nada parecido com um cosmopolitan. Mas, alegrem-se! Não aderi à cuba libre, nem tomei Tubaína. @flavioTI, hoje é meu quinto dia na BR. Posso sobreviver sem help desk!. Você já deve estar em crise de abstinência. @Laetitia, não, não vi o seu ex. A estrada é longa e o caminho é deserto, amiga! RT @Bia @IsanaBR, aconteça o que acontecer amiga, namorado de fivelão e chapéu #Pralana, não! Tchau, queridos. Vou pegar a estrada. Mando notícias na próxima parada. Tenho modem 3G, mas isso não quer dizer que ele funcione sempre.

Capítulo  7     Desliguei o computador, paguei a conta na lanchonete – pão com requeijão e Fanta Uva - completei o tanque e segui. Se eu estava fazendo a coisa certa, a próxima cidade era um grande entroncamento. Todos os caminhos no estado levavam a ela e dela se vai ao mundo. É claro que eu já havia passado por lá várias vezes e lembro especialmente de uma delas, há muito tempo, com Theo. Foi no meu dia de ceder. Na semana anterior havia sido a vez dele, que teve de encarar uma torturante sessão de cinema iraniano, seguido de palestra com o maior expert em cinema iraniano de todos os tempos, sucedida por jantar iraniano, com meus ex-colegas de faculdade, mais o ex-orientador de mestrado que eu costumava beijar ainda na graduação. Ter feito parte dessa maratona cult já dava a ele três encarnações de crédito comigo. Theo odiava meus ex-colegas e suas barbas messiânicas, suas camisetas de séries geeks de tevê e indisfarçado ar de superioridade, a discutir a estética pósmoderna. Na tortura iraniana, consegui de sua parte que resistisse até o final, mas não

sem uma cara de profundo e arrogante tédio, o que eu sabia que já era grande coisa. Estava achando estranha aquela resignação, mas preferi não antecipar o problema e simplesmente desfrutar de sua benevolência. E como dizem que aqui se faz, aqui se paga, não tardou a chegar o meu dia de retribuir o favor. Em um domingo de sol, eu deveria estar linda, bem humorada e menos ácida do que o que sou normalmente, para o aniversário de três anos do filho da colega hierarquicamente igual a ele na companhia, e cuja ascensão dependia diretamente da estagnação de Theo e vice-versa. Isto posto, fica claro que era muito menos por simpatia por crianças - atributo inexistente no rapaz – do que para sondar o adversário e demarcar território, que ele ia àquele programa furado. Os dois disputavam, sem vantagens aparentes, o mesmo cargo lá dentro e toda a fauna do escritório, inclusive o galo do poleiro, o CEO, estaria presente. O erro daquele evento infantil já começava no tema: “fazendinha”. Nada contra as propriedades rurais miniaturizadas e estilizadas, com seus cavalinhos e porquinhos de plástico e garçons vestidos de vaqueiros. Só que elas eram quase uma instituição que figurava na fotografia de todos os primeiros anos de vida de todos os meninos do Brasil que pudessem ter um bolo de aniversário aos doze meses. A partir daí, com a intensificação do processo cognitivo, os garotos descobriam, no segundo ano, o dinossauro Barney – evidente escolha da mãe – e, depois, o Homem Aranha e o Super Homem, seguidos pelo paladino do momento, que geralmente tinha olhos redondos e expressivos, apesar de ser japonês. Pois bem, não bastasse ter subvertido a ordem na escolha do tema para a idade, a mãe achou muito vulgar comemorar a data num bufê com serviço de manobrista e doces com fondant. Escolheu como cenário a fazenda da família no interior, onde o pimpolho, vestido de caubói, chicoteava todos os visitantes já na chegada. Como era domingo, e como era no campo e o céu estava azul, escolhi um modelo fluido 95% algodão e 5% elastano (a fórmula da felicidade, na minha opinião) daquela cor de nada com rosa, que andou bem em alta por um tempo, deixando as mulheres absolutamente sem graça, mas bem elegantes. Nos pés, um peep toe de salto quase tão rasteiro quanto meu interesse em participar daquela singela celebração. Mas eram tão lindos, e foram tão caros aqueles sapatos, que eu considerei uma grande honra em favor dos pais direcioná-los para aquele fim. Mas, o drama começou muito antes de chegarmos à porteira da fazenda, pois uma simples viagem, para alguém que sofre de Transtorno Obsessivo Compulsivo, como o meu ex, equivale a uma expedição ao Polo Sul, para Amyr Klink. - Mapas? - OK. Gasolina? - OK. - Ruffles? - Confere! - Trilha sonora Ida?

- OK, é a minha. - Trilha sonora Volta? - Ok. Minha também. (Tínhamos decidido no par ou ímpar) Coloquei uns óculos que tomavam um terço do meu rosto e entrei no carro. Como eu já disse, Theo não era nenhum primor em direção, mas não passava o volante por nada, pelo menos, não para mim. Ele se gabava do GPS de fábrica do seu novo carro, mas, sabe-se lá se por culpa do aparelho ou dele mesmo, nos perdemos várias vezes depois de passar pela cidade-entroncamento. Foi só quando eu dei a ele a opção de me deixar perguntar na rua - ofensa gravíssima na opinião dele - ou destravar a porta para eu me jogar do carro em movimento, que conseguimos uma orientação precisa de um senhorzinho que passou numa carroça. - É só seguir o asfalto! Como eu não pensei nisso? A tal colega de Theo, Amanda, era filha de um deputado federal de três legislaturas, descendente de uma longa linhagem de políticos mais ou menos relevantes no interior do meu estado. E, como manda a tradição política naquelas bases, entre um favor daqui e uma cortesia dali, o conceito de bem comum vai para o espaço. No caso do pai de Amanda, as suas muitas fazendas eram o centro de toda e qualquer obra pública de infraestrutura logística na região. Assim, saindo da BR, era só descobrir a primeira estradinha asfaltada e seguir. E se o meio de transporte fosse avião ou helicóptero, as coordenadas do aeródromo municipal, graças a um bem articulado lobby público-privado, coincidiriam com propriedade dele, invariavelmente. Líquido e certo, chegamos à cancela. Mas, já na chegada, azar dos azares, tive de me despedir dos meus lindos sapatinhos, que ficaram para trás enquanto eu comprovava a terceira lei de Newton numa poça de lama. - Cacete! Recebi de volta pelo nome feio um olhar de severa reprovação do meu companheiro. - Não acredito! É a primeira vez que eu coloco este sapato – disse eu, quase chorando. Eu te odeio, Theo. - Você não olha por onde anda. Veja, não tem ninguém de pé sujo por aqui, só você. Custava colocar uma bota? - Custava me deixar fora disso? – falei, esquecendo completamente a imersão no Irã que ele enfrentou sem reclamar. Como não poderia ser pior, enfiei um único pé na lama, o que dava ao meu aspecto geral alguma coisa de muito ridículo. Nem havíamos cumprimentado a dona da casa e eu já tinha a minha segurança abalada justamente na sua bela base. Amanda, a tal colega de Theo, me esquadrinhou de alto a baixo com um misto de riso e solidariedade forçada. Olhei para os pés daquela mulher vinte centímetros mais alta do que eu, com porte de palmeira e cabelos sedosos a la Cindy Crawford, e não vi

neles (os pés) um único indício de sujeira, como a me lembrar que apenas com os mortais, levemente gorduchos e baixinhos, essas coisas acontecem. - Desculpe-me pelos sapatos, não estão nas condições normais de ambiência. - Ora, não tem problema! - disse Amanda - Isso me acontecia com frequência na infância, nas primeiras aulas de equitação na Argentina dadas por meu avô, que foi um campeão mundial nas pistas. Logo depois, tive de aprender a evitar esses incidentes. Vovô me dizia: princesa, a boa aparência dos paramentos faz uma boa dama. Lama nos pés é para os tratadores. Odiei Amanda mais uma vez. Theo, antevendo o desenrolar daquela contenda, me conduziu até a mesa do pessoal do trabalho. Eis que eu descubro que ele foi o único ali a ter a infeliz ideia de levar o seu par, que ficou totalmente desemparelhado, durante toda a festa. Era um espetáculo penoso ver o esforço daqueles homens e mulheres de escritório, desambientados no campo, tentando parecer sinceros, parceiros, simpáticos uns com os outros e, sobretudo, com o chefe. Cada um se incumbiu pelo menos uma vez de encher o copo de uísque do galo velho que, em caso de uma gentileza a mais, viraria um peru de natal. Absolutamente ninguém notava a minha presença e só uma única vez me dirigiram a palavra quando, num arroubo de animação durante uma explanação minuciosa empolgada sobre o mercado de manganês, o trainee virou um copo inteiro de Coca-Cola no meu vestido nude de crepe de seda. Nem mesmo eu sei de onde me veio o espírito sereno que não me fez voar no pescoço do iniciante almofadinha, que teve o mau gosto de ir para a festinha da chefe de terno, gravata e topetinho. E de tomar CocaCola. E como se nada tivesse acontecido, depois de um “putz”, em lugar de um “perdão”, como se o incidente tivesse ofuscado o brilho de sua exposição e, consequentemente, comprometido seu futuro em curto prazo na companhia, ele voltou exatamente ao mesmo ponto em que parou quando me encharcou com sua bebida ultra calórica. Nem precisava da capa da invisibilidade do Harry Potter para passar incólume pela pequena multidão de tias, palhaços, puxa-sacos e alcançar o banheiro. Simplesmente, ninguém me notava. Já estava quase chegando lá: à direita do pula-pula, conforme indicava a seta, quando um grupo de uns cinco meninos correndo alucinadamente atrás de um leitão rosado, também enlameado, passou por mim. Incrédula. Ainda se brincava disso? Por pouco as pequenas bestas-feras não trombaram comigo e comemorei, por um segundo, um lampejo de rara boa sorte naquele dia infernal. Cedo demais... não vi o resto de brigadeiro no chão e meus sapatinhos, em sua irrefreável atração por coisas moles, marrons e grudentas, me puseram no chão de novo, em cima do meu próprio traseiro. Toda humilhação tem de ter uma causa. A minha só podia ser uma expiação da minha declarada ojeriza a crianças. Nada mais poderia ficar pior. Tive a infelicidade de dar de cara com um espelho de corpo inteiro e eis o que vi: sobre o meu vestido outrora fluido, muitos fluidos deixaram suas marcas.

Na frente, um mapa do Chile de Coca-Cola, atrás, o Canadá de lama. Pelo menos, com a queda no brigadeiro, meus sapatinhos se irmanaram na sujeira, ficando os dois marrons. Eu parecia um personagem de Charles Dickens chegando desolado a Londres, após três dias de jornada a pé, mendigando pela estrada. Respirei fundo, peguei o celular na bolsa e liguei para Theo. - Venha me tirar daqui agora!... Como?... Você está louco?... E em mim, você não pensa também?... Estou no banheiro e estou ficando nervosa, entendeu, Theo? Só tem uma coisa: se eu aparecer na mesa agora, neste estado, nem precisarei dizer nada para colocar fim nos seus planos de promoção. Ou melhor, ninguém vai te considerar digno nem de limpar a privada da empresa, com uma mulher dessas do seu lado. Você escolhe, Theo! Funcionou. Não há como sair à francesa quando se está coberta de lama e com um pintinho amarelo na mão. A insistência de Amanda para eu levar o bicho de “lembrança” só podia fazer parte de uma conspiração para me humilhar, não apenas pelo meu estado lastimável, mas, principalmente, pela ausência de filhos no nosso lar, o que ela considerava um fracasso. Larguei o pintinho na estrada. As chances de ele sobreviver na minha casa eram ainda menores. Theo também foi preterido na escolha do chefe para o novo cargo.

  Capítulo  8   Tanto tempo depois e eu estava de novo passando por aquela metrópole sertaneja, perto da fazenda de Amanda. Mas as coisas eram bem diferentes agora. Em primeiro lugar, cheguei ali novamente por minha própria vontade, guiando o meu carro, sem ninguém no banco do carona. Posso dizer que estava até bem serena, e resolvi dar uma volta antes de decidir se ficava um dia ou dois, ou se seguia rumo ao não sei onde. Era uma cidade de passagem e, como todas elas, um tanto quanto inóspita. A BR cortava o centro, com seus trevos, entroncamentos, borracharias, funilarias, e dezenas de semáforos sem sincronização alguma, deixando a cidade ainda mais feia, mas garantindo meios de mover a economia local, que aparentemente não tinha outra vocação, além de ser passagem para qualquer lugar. Rodei bem uma meia hora até compreender de leve a lógica urbana. A BR foi o embrião. Veio primeiro o posto de gasolina, depois as oficinas, o bar, a farmácia e o brega. Daí alguém fundou uma congregação neopentecostal, e o Rotary Club. Perto da BR, a cidade era ainda mais feia, mas, melhorava bastante nos bairros mais afastados, cheio de casas, prédios residenciais e pracinhas com jardins de flamboyants, bougainvilles e fícus, estes últimos podados de maneira indigna, em formato de coração, cestinha, dados e Mickey. Parei num restaurante chamado Barba de Bode. Eu já não dava mais a mínima para nomes ou coisas desse tipo. E claro que não esqueci de um ranking das carnes

vermelhas menos calóricas que eu preparei certa feita para a Corpo Perfeito, que dizia que a carne de cabrito era uma das mais magras e saudáveis que existiam. Então, que viesse o bode. E o bode veio. E também a farofa, escaldado com jiló, salada vinagrete e manteiga de garrafa. Achei que era hora de tomar minha primeira cerveja da viagem e fiz isso com vontade. A garçonete me olhou com ar de pena e profundo espanto, e, antes que eu pedisse, trouxe a conta, como quem quer fazer sua parte para evitar o pior. Fosse em qualquer outro lugar do mundo, eu teria retrucado, ignorado solenemente e demorado ainda mais para sair. Mas, naquela terra estranha, achei que era melhor capitular. De repente, senti uma sensação esquisita. Era uma espécie de tremor no meu braço direito. Algo como um espasmo ritmado que vinha em ondas alternadas, mais ou menos intensas e intermitentes. Não me lembro desse tipo de sintoma. Infarto, talvez. Foi só quando ouvi a musiquinha de abertura da Nokia que me dei conta de que não é preciso muito tempo de afastamento das comodidades dos gadgets para nos desacostumar deles. Era Let chamando pelo celular. - Fala, gata! Era assim que o Grupo das Quatro se cumprimentava ao telefone. Laetitia só queria desabafar. Nunca lidou bem com qualquer ideia de rejeição, e bem poucas vezes passou por isso em sua existência de musa. Por isso, o “caso O.” não havia sido completamente arquivado, o que piorou consideravelmente desde que ele lhe pediu que o adicionasse no Facebook. Eu entendo quando uma amiga precisa conversar, e se algo me sobra neste momento, é tempo, diante da total falta de compromisso. Conversamos longamente. Por precaução, parei o fusquete num acostamento e conectei o carregador de bateria no acendedor de cigarros. Ela achou o máximo minha decisão “je ne sais quoi beatnik”, ponderou e ficou de me encontrar em algum canto. Enquanto conversávamos, anoitecia na pequena cidade. Um ruído ensurdecedor - que só depois eu fui saber que eram cigarras começou e perdurou irritantemente naquele fim de tarde. Era melhor arranjar um lugar para dormir. Esse é o lado bom das cidades mais estruturadas. Eu podia escolher o meu pouso entre várias opções de nomes pomposos: Hotel Imperial, Pousada Recanto das Pedras, Plaza Mandacaru, Coração do Agreste Bed and Breakfast, Motel Vela Branca e Solar Anjo Azul. Escolhi o último pelo nome. Comecei a achar que as coisas estavam ficando muito fáceis, ou eu estava me acostumando à vida na estrada. Friozinho gostoso, resolvi dar uma volta antes de me recolher de uma vez e me aninhar na cama de solteiro com cobre-leito 100% poliéster e lençóis manchados com água sanitária. O lobby do hotel estava animado. Uma interessante aglomeração masculina. Nada que valesse a pena, mas a testosterona, ainda que pouco destilada, recarrega as minhas forças e me enche de confiança. Estranhamente, ali naquele hotel, ao contrário do que me acontecia em bares, jantares e convenções importantes, na badalada vida mundana em que eu desfilava prodigamente minha coleção de trejeitos intrigantes e

frases inteligentes, fiquei tímida e passei dura sem encarar ninguém ou expressar qualquer sentimento. Na frente do hotel havia um velho trailer de cachorro-quente. Fosse no meu habitat, jamais me ocorreria fazer o que fiz, mas ninguém me conhecia e eu já começava a sentir fome. Então sentei e pedi um “combo” – que não se chamava assim, evidentemente – X-Egg + 500 ml de suco de laranja. Não tardou muito à mulher do dono puxar conversa. “Essa Darlene é uma periguete. Tenho um ódio danado dessa mulher desde aquela novela das seis que ela chifrava o marido e maltratava o filho dele”. Eu não acompanhava uma novela há muito tempo. Meus prazeres de ficção eram sempre livros, cinema e séries americanas. Mas as últimas paradas em postos de gasolina, restaurantes e hotéis de beira de estrada eram suficientes para me deixar a par de todas as tramas, das seis, das sete, das nove e das onze horas. Concordei plenamente, e repeti por indução as caras de alegria, escândalo e desaprovação que ela ia fazendo enquanto dava as sinopses de cada folhetim da Globo, com ainda mais detalhes do que o próprio autor seria capaz de descrever. Já ia pagando a conta e quase respirei aliviada, quando veio a pergunta. - Está aqui com seu marido, moça? - Não. Sozinha. -A trabalho? - Não... - Família no interior? - Não - retruquei quase impaciente e, confesso, um pouco desconcertada. Por exclusão, considerado que “moças” não viajam sozinhas a passeio, a próxima pergunta, se fosse feita, não seria bem recebida, e, por isso mesmo, ela não a fez, e tratou de pegar o prato sujo, o porta-guardanapo e os frascos de maionese e ketchup da minha mesa. Mas, retornou com cara de quem decifrou a esfinge. - Se a senhora está de coração partido, tem uma pessoa aqui que não erra uma. E, tirando um panfletinho da registradora, me entregou.

IRACEMA – ALMA MÍSTICA, CORAÇÃO DOURADO. SÓ MESA BRANCA: MAU OLHADO, INVEJA, CARREIRA. AMADO ROUBADO EM TRÊS DIAS OU SEU DINHEIRO DE VOLTA! (ATENDIMENTO TODAS AS QUARTAS, NO POSTO SHELL DO ENTRONCAMENTO. TRABALHOS E MANDINGAS. SIGILO ABSOLUTO/ VISA/MASTERCARD).

Capítulo  9   - Não, não, não, amiga. Eu sou cética. Já disse isso mil vezes, caramba! - Há mais coisa entre o céu e a terra, Isadora... você é inteligente, moderna. - Deixe Shakespeare no canto dele, Magnólia. Não me lembro de uma só de suas peças que terminasse bem. Nólia era atriz de teatro. Linda e descolada. Não fosse meio paranoica e cheia de fobias, se poderia dizer que era um espírito livre. Se ela conseguia pensar como homem, transar como homem e, por isso mesmo, esnobar qualquer homem, por outro lado, tinha do sexo feminino a poesia e os medos. Embora, nunca de perder alguém, nunca da rejeição. Eram os medos mais absurdos. O primeiro, de morrer nova, sem jamais estrelar em um grande palco. Até aí, tudo bem. Mas, ela tinha medo de fantasma, de anão e de barata. Perdia totalmente o controle diante dos dois últimos e dormia pouco, aflita com a possibilidade de esbarrar com a primeira fobia, entre o quarto e a cozinha, se fosse preciso beber um copo de água na madrugada. Só por via das dúvidas, dormia sempre com uma garrafa e um copo ao lado da cama que, obviamente, não tinha vão embaixo, e caixas e mais caixas de comprimidos naturais para chamar o sono. Por tudo isso, era um poço de superstição a minha amiga. E tinha um staff de curandeiros, rezadores, médiuns diversos, padres e pastores, sempre a postos para qualquer eventualidade. Para estes, de doação em doação, para obras de caridade, ou como “apoio simbólico”, ela destinava a maior parte dos seus incertos rendimentos. Nólia consultava todos eles toda vez que começava ou terminava uma nova etapa em sua vida. O pior é que, à minha revelia, fazia o mesmo a cada fim ou novo começo na minha vida. - Veja bem, amiga. Só coisa boa, energia do bem. - Tô fora, Magnólia, no way! - Você não pode se fechar às mensagens que o universo manda para você, querida. Tudo fica mais simples quando se abre os canais da percepção. Da última vez que eu abri os canais da percepção, fiquei com o tio de um amigo meu, 30 anos mais velho. Eu tinha catorze, e estava descobrindo os Mutantes, meio fora de época, posando de musa no atelier de pintura da casa dele. Filhos da contracultura, até virarem absolutamente reacionários, tocam cítara, e leem romances juvenis do tempo dos pais, como O Lobo da Estepe, O Apanhador no Campo de Centeio e, claro, On the Road. Curtem ainda Secos & Molhados e rock progressivo. Depois, entram em um programa de trainee de uma multinacional de sabão em pó, ou se especializam em direito internacional e/ou ambiental, e vão trabalhar na ONU. E, sim, claro, consomem alimentos orgânicos e fazem doações regulares ao Greenpeace e ao PETA. Com o melhor de dois mundos operando em sua mente, o masculino e o feminino, não é preciso dizer que Nólia sabe ser bem convincente quando quer. E minha resistência capitulou, mais para me ver livre daquele discurso piegas de “tudo é energia”, do que por qualquer vestígio de credulidade.

Espero que no dia do juízo final, quando todos os autores que constituíram este ser humano complicado se alinharem para desferir a minha sentença, conte em meu favor, em relação à minha fraqueza ante a persuasão “nova era” de Magnólia, o pé na bunda que eu levei de Theo. - É aqui. Você vai adorar Eike. Ele é um ser humano de luz. Um remanescente de eras galácticas muito remotas, amiga. Está aqui em missão pacifista entre nós, seres menos evoluídos, para tornar este mundo melhor. Definitivamente, não entendo como posso ser amiga de Nólia. Mas, quando a porta se abriu, e Eike apareceu vestido em bata e calça de algodão cru, sem qualquer evidência de uma cueca, fui obrigada a concordar que o mundo ficava muito melhor com ele. Eu esperava um daqueles seres macrobióticos de bochechas flácidas e pele esverdeada, e dou de cara com um rapagão – minha avó adorava essa palavra – de um metro e noventa, pele bronzeada, músculos definidos pela yoga e um par de brilhantes ou, melhor dizendo, flamejantes, olhos verdes. Troquei um preconceito por outro. O que aquele espécime bem nutrido e bem acabado, recém chegado aos 30 anos, e dono de maxilar forte e cabelos brilhantes teria a acrescentar às lastimáveis conclusões às quais eu mesma chegara sobre as minhas desventuras amorosas? Nada, além de reforçar a minha desconfiança de que talvez tivesse sido melhor ter nascido uma década depois. Eike. Sim, esse era o seu nome, nos convidou a entrar. Seu apartamento era pequeno e charmoso, e, apesar de duvidosas referências à religiosidade indiana, era muito bem decorado. - Namastê! Isso eu sabia o que era e, para ser simpática, retribuí o cumprimento. Eike nos conduziu ao seu pequeno gabinete onde, numa mesa de antiquário, bem talhada em mogno maciço, pousava um pano de seda colorido, e, sobre ele, um Macintosh de última geração. Uma enorme e bonita estante de caixotes reciclados guardava uma vasta coleção de livros de alquimia, runas, tarô e esoterismo em geral. - Então, Isadora. Há muito que eu esperava você. Olhei com cara de profunda ofensa para Magnólia, que percorreu erraticamente os volumes da estante com os olhos e a mão direita, evitando me encarar. Obviamente, já havia mandado vasculhar todas as coordenadas georreferenciadas do meu mapa astral em 3D. - Não posso imaginar por que – disse eu com certa arrogância, para me arrepender logo em seguida. – Não sou exatamente o padrão de clientes que você costuma encontrar, por isso, acho um pouco improvável que este encontro fosse esperado. Eike aumentou o som ambiente, e só então eu me dei conta de que ele ouvia a sexta sinfonia de Beethoven, a Pastoral. Era domingo, e era exatamente esta a sinfonia que eu costumava ouvir quando criança, na companhia dos meus livros. Não me lembro de já haver comentado isso com Magnólia. Era parte de um passado que me tornava

uma estranha junto a qualquer um dos meus contemporâneos dos anos 80, adeptos de gel com glitter e roupas néon. Se era verdade que existia um destino traçado, aquela trilha sonora estava dando uma pista de que a parada em Eike não havia sido casual, ou será que meus canais da percepção estavam se abrindo? - Deixe-me ver sua mão - disse ele, um pouco imperativo demais para os meus padrões de tolerância. - O que, exatamente, você vai fazer com ela? - perguntei, com uma dose de ironia, e uma maior ainda de malícia. - Só quero te conhecer melhor. Há quase quarenta anos, “conhecer melhor” na minha gramática pessoal significa cinema, jantar, álcool e cama, qualquer que fosse a ordem dos fatores. Jamais uma manicure ou qualquer coisa do gênero arriscou me analisar numa segurada de mão. Nesse caso, uma esfregada incrementada por óleos de especiarias do oriente. Senti o toque quente e acolhedor de suas mãos enormes, besuntadas em fragrância de sândalo. - Grandes coisas estão programadas para você, Isadora. - Sério? E o que faz você ter tanta certeza? - As linhas da sua mão esquerda. São belas e bem definidas - disse ele, decalcando com o indicador o M da minha mão, àquela altura, trêmula e suada. – Em compensação, sua destra é ambígua e inconstante, o que faz de você uma figura bem interessante. - E o que isto quer dizer? - Que você muda a rota com frequência. Veja. Estas são a linha da cabeça, da vida e do coração... Acho que vale pouco a pena continuar aqui divagando sobre programação e arbítrio em 38 anos de altos e baixos do meu folhetim particular. O certo é que, por curiosidade ou convicção, frequentei a “tenda” de Eike por mais uns dois meses, nos quais as consultas se tornaram cada vez mais profundas e intrigantes. Magnólia, obviamente, só testemunhou a primeira. - Você e sua libido desvirtuam tudo, Isadora – disse uma Magnólia decepcionada. - Amiga, há mais coisa entre a terra e os astros do que sonha vossa vã filosofia... E essa foi a última vez que Nólia tentou me converter, e eu segui, daquele dia em diante, com o meu ceticismo inabalado.

 Capítulo  10   Adaptar a estrada à minha antiga rotina. Era basicamente isso que eu precisava fazer. Se não era comum dirigir 100 quilômetros por dia, não era por isso que eu deixaria de fazer minhas atividades mais corriqueiras. E foi justamente aí que eu calcei o tênis e fui correr. Já sabia exatamente onde iria fazer isso: na praça do trailer e na avenida, completando um circuito de cinco quilômetros. Nada mal para uma semana daquelas. Eu deveria sair do hotel ao meio-dia, o que me deixava tempo também para checar e-mails e finalmente começar minha narrativa. Fazia mais de três dias que não abria minha caixa de e-mails, e 175 novas mensagens queriam dizer exatamente que o mundo estava me esquecendo. Eu costumava receber mais que isso em um único dia na Corpo Perfeito. Um terço das mensagens eram press releases que pouco me interessavam. Outro tanto era lixo eletrônico, e, num dia de sorte, eu recebia em torno de 20 correspondências relevantes, incluídos os alertas de menção ao meu nome ou convites no Facebook. Hoje não foi muito diferente. Entre propostas de “fique rico trabalhando em casa”, importação direta da China e artifícios para fazer o meu inexistente pênis crescer quatro centímetros, encontrei uma mensagem inusitada, marcada com estrela, como prioridade. From: aTheo@... Subject: ???? Olá, Isadora, tudo bem? Vi seus posts no Face, e comecei a imaginar se não descobriram sua senha ou invadiram seu computador. Onde, raios, você está, com uma vaca ao fundo? Sei que nossa separação foi sofrida. Acredite, também estou sofrendo, mas, qualquer que seja o mal que causei a você, sua reação parece superdimensionada. Aliás, como sempre. Não quero discutir suas decisões. Apenas me preocupo com sua segurança e desejo sempre vê-la bem. Não era mais fácil voltar para a terapia? Você não é mais criança. Em algum momento precisará trabalhar. Dinheiro não brota do chão, você deve saber disso. Liguei diversas vezes para casa. Digo, para a sua casa, sem sucesso. Aguardei o fim de semana, e nada. Percebi que você, em mais uma das suas reações exageradas, trocou a fechadura. Você me conhece bem, Isa, e uma ligação para o chaveiro, seguida de uma entrada forçada no apartamento, que legalmente ainda é meu também, não seria elegante e daria início a uma sucessão de eventos desagradáveis. Quero apenas a minha raquete de tênis. Reparei que ela não veio na mudança. Posso simplesmente comprar outra, ou outras, mas aquela tem grande significado para mim. Aguardo sua orientação. Love. Theo.

Capítulo  11  

“Aquela tem grande significado para mim”. Theo é do tipo que ama as coisas e utiliza as pessoas, como diz um velho provérbio. A raquete era tão especial quanto uma caçarola francesa, um taco de golfe ou um barbeador elétrico, simplesmente pelo fato de que ele pagou por todas essas coisas. Por associação, todo esforço em conquista diária, todo avanço rumo à admiração do próximo, ou qualquer ganho em intimidade ficam em segundo plano, pois não envolveram diretamente cifras para a sua obtenção. Logo, não são fáceis de mensurar. Estranho fazer esta observação sobre alguém que, como já disse, era capaz de chorar diante de uma obra de arte. Enfim, em última instância, quadros e esculturas são coisas. Caso encerrado. A raquete de Theo, se não tivesse sido esquecida, deveria compor a cena que por mais que eu tente, não consigo esquecer. Era uma quinta-feira qualquer. A revista já estava nas bancas e eu enfrentava reuniões de pauta intermináveis para tratar das mesmas capas de sempre: a nova dieta chapa-barriga, o óleo milagroso do momento, e o alimento vilão da vez que virou a panaceia do mundo e vice-versa. Saí com as meninas da redação para tomar um cosmo, enquanto o trânsito caótico de minha capital praieira estava simplesmente travado. Não sei se por efeito do cointreau, ou da vodca, ou, muito provavelmente, do suco de cranberry que deixava tudo mais rosa, voltei para casa apaixonada, disposta mesmo a pegar uma comédia romântica europeia com aquela moça francesa do olhão, harmonizar uma pipoca de micro-ondas sabor bacon com uma garrafa de vinho e assistir agarradinha com Theo, que muito provavelmente ia me demover da história da pipoca, preparando um prato rápido, leve e chiquérrimo de qualquer coisa com shitake. Júlio abriu a porta tão logo eu tentei com a chave. Em cinco anos, nunca reparei na sua beleza, na arquitetura arrojada de sua figura, no seu perfume que me fez desejar misturar figo com chocolate, na sua barba por fazer. Não reparei em sua camiseta branca, no jeans, no relógio Patek Philippe igualzinho ao de Theo, nem que o cabelo dos dois tinha o mesmo corte e, horror dos horrores, jamais percebi que eles usavam o mesmo anel de prata na mão esquerda. Júlio avisou para Theo que o aguardava na garagem, e Theo passou por mim com uma mochila nas costas. Estava muito à vontade, mas, bem bonito e elegante como sempre. Tomou minha mão direita com a dele. Encostou sua testa na minha. - Não tenho uma explicação, nem uma desculpa, e também não consegui pensar em alguma maneira não dolorosa de te dizer o óbvio, Isa. Você vai encontrar uma carta na bancada do banheiro. Depois de uns dias, sei que a gente vai conseguir conversar, mas não hoje. Ele saiu e, na sequência, dois dos auxiliares de serviços gerais do prédio, com grandes volumes de caixas: o case do saxofone, o conjunto de tacos, panelas wok de todos os tamanhos, as caçarolas Le Creuset. Theo estava deixando a casa, com um sem fim dos seus objetos amados. Não consegui dizer uma só palavra antes que o elevador fechasse inexoravelmente a porta. Corri para o quarto, abri seu armário. Estava vazio.

Capítulo  12  

From: isadorasangiovani@... Subject: Re: ???? Theo, lindinho, bom dia, tudo bem? É isso mesmo que você viu. Estou feliz e na estrada e não aguarde que eu lhe abra a porta por tão cedo, pois não tenho data para voltar. Sugiro que consulte as Páginas Amarelas e contrate um chaveiro. Eu não ligo. Pegue sua raquete, e o que mais você quiser. Deixe apenas a minha dignidade e minhas roupas. Não se preocupe quanto ao meu sustento. Por enquanto, vou usando aquele nosso fundo de investimento dos últimos dez anos. Desconfio que dinheiro dá em árvore, planta e capim. Só preciso descobrir como. A vaca dá foto é real. Talvez você não saiba, mas elas não vêm pontilhadas e numeradas, como na foto do açougue. Oh! Sorry, boutique de carnes, como você há de preferir. Love Isa

Ódio. Ódio mortal. Por alguma maldição atávica, por alguma conjunção astral, ou por burrice mesmo, escolho sempre os homens errados para amar. Egoístas, ou excessivamente desprendidos, workaholics ou preguiçosos, além de chatos e espertinhos em geral. Um desfile de tipos estranhos e defeituosos desde a primeira vez em que o meu coração descobriu outras funções além da fisiológica. Theo era o mais normal dentre todos eles. Bonito, bem-sucedido, sensível, divertido, um tanto quanto materialista, mas era um cara legal. Não exatamente caí de amores, e sequer pensaria em morrer por ele, mas construímos uma boa parceria, e apaixonar-me por sua bela figura não era nada difícil. Entretanto, havia alguma coisa fugidia que, até a fatídica quinta-feira em que meu mundo se destroçou, passava incólume à minha observação. Flagrei-me muitas vezes tentando descobrir o que era, mas acabava sempre creditando o mistério na conta do seu charme cosmopolita. Erro grave de avaliação para o meu radar tão propagandeado de detector infalível de bibas.

Mas, se o meu falhou, muito provavelmente o dos meus amigos também pifou, inclusive, o daqueles que jamais poderiam errar neste julgamento. A minha seleta, elaborada e vasta lista de amigos homossexuais. Irrita-me profundamente essa coisa gay de rotular todo mundo de gay. E os meus amigos não poupavam ninguém. Mas, nunca qualquer um deles me alertou: olha, seu marido é mona. Fico pensando se por piedade ou por terem sido tão enganados quanto eu.

- Gata, sempre achei um desperdício Theo não ser do babado. Saradão daquele jeito, todo fino, boy magya... bofe escândalo. Mas, como estava com você, deixei a intuição de lado. - Não acredito nisso. Você duvida até do papa! Não ia sossegar até dar um jeito de insinuar que ele... ah! Droga! Que eu dividia a cama com um cara que gosta de caras. Essa conversa eu tive um dia após a lavagem estomacal que Let me levou para fazer, e que, por um trizinho de nada, salvou minha vida após um vidro inteiro de Lexotan com sorvete de creme e chantilly. Estava horrorosa e fui cortar o cabelo com Jader, 100% homo. Era o mais ferino e o menos próximo no meu ranking de amigos, o que não o excluía da função de confidente, uma vez que eu tenho grande dificuldade em manter a minha língua dentro da boca, quando o assunto diz respeito a mim. Isso o eximia em grande parte da obrigação de ter qualquer cuidado para não ferir meus sentimentos. No fundo, ele desconfiava, mas também não acreditava na possibilidade. - Mulher, você é linda, segura, independente, gostosa, e tem uma coisa, minha filha, que eu matava e morria para ter igual. Aliás, estou esperando o resultado da cirurgia da colega para me decidir. - E daí? Eu não entendo... - Daí que se a biba estava contigo, só posso crer que ela não tinha saído do armário, até então! Mas, tinha. Só depois eu descobri. As pistas simplesmente se jogavam em meu colo. Recibos de hotel, viagens a trabalho que jamais foram feitas, enquanto eu passava a temporada de sua ausência espantando os fantasmas da casa de Mag. E depois, para minha grande dor, a confirmação dos vizinhos, dos porteiros, das babás do prédio. Sangrei por dias a fio. De todas as humilhações que já passei, essa foi sem dúvida a maior de todas. Vamos rememorar:

-

Traída?

-

Desde o primeiro namorado.

-

Roubada?

-

Aquele corretor gatinho que eu conheci no vernissage do meu amigo.

-

Explorada?

-

Centenas de vezes, pelos mais diversos tipos de homens.

Por que, então, com tanta referência em minha própria vida, eu me deixei mais uma vez enganar, e por que esta parece ter sido a pior de todas elas? Talvez pelo fato de que Theo era a projeção de tudo o que eu sempre sonhei. Um homem lindo, culto, educado, bem posicionado, sensível, bem vestido e sempre disposto a discutir a relação. - Filha, se esse homem existir, eu provavelmente não vou gostar dele – sentenciou Jader.

- Ora, por que, se ele é do seu time? - Por isso mesmo! Ele é gay, e nada pode ser mais frustrante para mim do que uma biba. Gosto do tipo macho, discreto e aberto às possibilidades. Descobri que eu não entendo os homens, qualquer que seja a orientação sexual deles. E, no caso dos gays, entendo menos ainda. A porção mulher bagunça tudo.

Capítulo  13   - Rápido, amiga, vamos chegar atrasadas! (Grunhido de pouco caso). - Anda. Sei que esse pijama Jogê é bem gostosinho, mas se eu fosse um homem, não te comia nem em véspera de fim de mundo. Era meu pijama quadriculado. Com ele eu curava TPM e dores de cotovelo. Tinha a textura, o corte e a maciez necessários, e era ainda mais aconchegante por ser incrementado com pompons de lã verde e azul. Perfeito para me fazer sentir invisível para a humanidade. Completavam o quadro o par de meias de corrida brancas, os chinelos e o cabelo desgrenhado e sujo.

Já havia tomado, no mínimo, uns 10 comprimidos de Passiflorini, e tudo o que eu queria ver era a Sarah Jessica Parker filosofando profundamente sobre os homens e os relacionamentos. Em seis temporadas, ela jamais teve um namorado gay. Se Sex and The City era uma metáfora do meu universo, e Carry, um arquétipo de todas as mulheres que eu conheço, então é inconcebível que ela não soubesse discernir sobre héteros e gays. Fracassada. Era assim que eu me sentia e não percebia, em curto prazo, qualquer possibilidade de reverter o meu declínio vergonhoso. Em pouco tempo, todo mundo sabia. No trabalho, inclusive. Isso despertou os mais diversos olhares e expressões de solidariedade, revolta, piedade e não muito dissimulada satisfação. Eu já disse que sou bonita? Acho que não disse ainda. Na verdade, nem sempre me acho, mas há algum consenso sobre isso. A informação é relevante em um ambiente predominantemente feminino e/ou gay, como as redações ligadas a moda e saúde. E tanto um público quanto o outro são implacáveis com rivais bem graduadas no quesito beleza. Tivesse eu me especializado em economia ou política, não teria caído nessa. Na pior das hipóteses, teria encontrado rapidinho um ombro amigo e hétero para descansar a minha cabeça chifruda. Já que comecei, vou elaborar a descrição. Talvez me faltassem uns dez centímetros na vertical, o que de certo modo acentuava uma indesejada – pelo menos para mim - maior extensão na horizontal, logo abaixo da equatoriana linha do umbigo,

mas eu compensava essa pequena sacanagem genética com traços harmônicos, olhos expressivos, boa tonicidade muscular, além de volumosas e saudáveis madeixas avermelhadas. Para completar, sabia tirar partido de uma infinitamente matizada paleta de sombras Urban Decay e blush peach da M.A.C, e jogava a favor dos meus atributos com um considerável e descolado guarda-roupa.

Naquele fim de tarde, Bettina tocou demoradamente a campainha, para a minha total irritação. Pelo olho mágico, deu para ver que ela estava completamente montada. Desde que descobriu as aulas de pilates, a legging e o salto alto eram seus amigos inseparáveis, e, cá para nós, ela estava mesmo podendo. Ao ver meu “look depressão”, toda a sua ânsia para uma night out simplesmente virou pó.

Desde que ela se mudou para fazer doutorado em Nova York, nossos encontros eram cada vez mais raros, mas, sempre divertidos e glamourosos. Naquele dia, eu e meu pijama quebramos totalmente a expectativa.

- Só quero morrer para o mundo, amiga, mais nada.

- Ei, garota, chegamos até aqui por mero desleixo da fatalidade. A gente fez muita doideira, arriscou a pele diversas vezes. Já te vi beijar ex-presidiários, doidões, intelectuais e toda sorte de aventureiro, pedalar na contramão, dirigir bêbada. Não vai ser um mauricinho fresco que vai te apagar do mapa, chérie.

Ela sabia exatamente porque eu estava daquele jeito. Se a maturidade nos premia com sabedoria para superar as crises, só a juventude dá resiliência. Até os ossos colam mais facilmente quando a gente é jovem e, naquele momento, eu me sentia moída. Todas as dores de amor, todas as desilusões profissionais têm no fundo um mesmo motivo: vergonha. E não existe outra forma de superar a vergonha, senão sobrepor a ela um orgulho ainda maior. Não é por outra razão que as pessoas se superam, fazem coisas extraordinárias. Dão a volta ao mundo, ganham prêmios, emagrecem, entram para a Cruz Vermelha. A vergonha pode ser bem construtiva. Que outro jeito há de sair na rua, senão com um alto propósito? Eu sabia que precisava fazer algo, mas não estava a fim de ganhar um Pulitzer. Ok. Seria um troféu perfeito, mas inatingível. Para ser merecedora de qualquer prêmio, eu teria de deixar de escrever sobre batom, fazer alguma coisa realmente importante e influir positivamente na vida das pessoas. Fico cansada só de pensar nisso. - Só um café. - Café, cinema, cerveja e um monte de chatos intelectualoides, pernósticos e babacas em geral. Ou ainda um enxame de mulher maledicente e todas as explicações que eu vou precisar dar. Não, pelo amor de Deus, vamos ficar aqui, só hoje.

Cabelo imundo, olhos inchados, nenhuma maquiagem e muita bebida. Em pouco tempo a gente estava rindo, completamente bêbadas. Bettina tirou do meu alcance todos os discos de Chico Buarque. - Não entendo isso. Milhares de faixas no IPod, mas, é sempre Chico, quando o cotovelo dói. Coisa mais clichê, Isadora. Você chorou com Olhos nos Olhos e Trocando em Miúdos aos quinze. - E minha tia chorou, minha madrinha chorou, minha mãe ainda chora e minha avó não chorou porque não chorava mesmo com nada. Que mulher no Brasil, com mais de 30, não chorou? Posso ouvir ópera, se você preferir. Procure Aída, na letra A... Secamos duas garrafas de Mumm e meu humor decididamente começou a melhorar. Não sei se a ideia foi minha ou de Tina. Só lembro que, de uma hora para outra, eu estava completamente arrumada. Fiz meu olhão preto esfumado, que, com a pele ainda mais esquálida por dias de melancolia, criou um contraste bem interessante, ao que Tina acrescentou iluminador e um fixador de maquiagem, acho que com uma secreta intenção de fazer a maquiagem durar indefinidamente. Já estava na porta e ela me colocou para entrar, novamente. - Cadê o saltão? Nem argumentei. Já estava a meio caminho andado de sair da fossa, e oito centímetros acima colaborariam muito para elevar minha autoestima. Mas, sou uma moça clássica, e fiquei no scarpin. Chegamos na Yenis, a nova boate da cidade. Uma fila enorme na porta e dois leões de chácara exigindo carteiras de identidade. - Se não pedirem a minha, eu me mato! – Bettina avisou. Ela não se trocava pela maioria das garotas daquela fila, boa parte delas com metade da sua idade, mas a iminência de mostrar, ou não, a carteira de identidade tirou um pouco da sua segurança. - Lembra, amiga, quando a gente foi assistir Dirty Dancing. O filme era para catorze e nós só tínhamos treze. Na mesma época, botava maquiagem, salto alto e dava o braço para algum amigo de minha prima mais velha antes de entrar numa boate. Depois beijava o carinha mesmo, para não perder a viagem. - Nossa! Não sei se tenho menos medo de mostrar o RG hoje do que tinha naquela época. - Se não pedirem, o que fatalmente acho que vai acontecer, é porque você está indubitavelmente velha. Claro que não pediram, mas isso só foi um problema até a segunda flute de prosecco. Quando a situação exigia uma rápida e moderada embriaguez, nós preferíamos o prosecco ao cosmopolitan. Era mais rápido e não tinha erro na preparação. Vinha logo a garrafa e nós mesmas servíamos. Ainda que, para variar, nem sempre a temperatura estivesse adequada. Se tem uma coisa que falha na minha cidade é o serviço nos bares e restaurantes. Por isso, sempre é um risco recomendar um prato, ou sugerir uma casa. A chance de uma boa experiência se repetir é de uma em um milhão. - Isso aqui parece uma convenção de adolescentes! - gritei, tentando inutilmente superar em volume a música ambiente.

-Então, se mistura, amiga! Daqui a pouco ninguém nem nota a diferença – disse Bettina, reconhecendo que dessa vez forçou um pouco a barra. Mas, perto da meianoite, Kate Perry, Lady Gaga e Shakira deram lugar a uma longa sequência de música dos anos 80: de Depeche Mode a Pet Shop Boys, e de Trem da Alegria a Gipsy Kings. Depois veio um tour pela carreira de Madonna com o hit de cada ano nas décadas de 80 e 90 e até 2010. Foi aí que o disfarce adolescente caiu de vez, e se os porteiros tivessem visto nossa performance na pista naquela hora, teriam pedido nossas carteiras de identidade, só para ter certeza de que estávamos no lugar errado. - Loca, loca, loca! Adoro Shakira! – Bettina havia entrado completamente no clima. Tem coisas que a gente nem sonha que é possível existir, até se deparar com elas. Foi assim que eu vi uma improvável chapinha de cabelo no banheiro da boate. Já vi absorvente, Listerine, fio dental e até agulha e linha, mas chapinha, convenhamos, era brega demais. Mas, eu não estava ali para ser cool. Liguei o ferro e mandei brasa. Saí lisa e ruiva do banheiro e acho que notaram a diferença logo na saída. Um carinha lindo, vinte e cinco no máximo, deu uma sacada nada discreta. Retribuí com um sorriso e um estreitíssmo pedido de licença, já que ele e seu corpinho sarado de pós-adolescente estavam obstruindo a passagem. Voltei para pista e nem sinal de Bettina. E eu simplesmente abstraí toda a minha existência recente, sincronizando minha respiração e os movimentos no groove fantástico do DJ. O suor era uma benção quando encontrava o golpe frio do ar condicionado. Cheiro de gente, luzes piscantes, corpos se encostando. O carinha parou na minha frente e dançamos sinuosamente e na mesma pegada uma ou duas músicas. Havia me esquecido a delícia que é simplesmente beijar, sem qualquer compromisso. Engoli a criança sem sequer tocá-la com as mãos. Nome, para quê? Quando nos descolamos, uma curiosidade ardente me impeliu a perguntar a sua idade.

- Vinte e dois, hoje.

Beijei-o longamente mais uma vez, como congratulação pelo seu aniversário, mas era eu que, decididamente, tomava consciência da passagem do tempo naquela data. Beijar uma criança só reforçava a minha condição. Beijei mais uma vez, só por via das dúvidas, afinal, nada melhor para suplantar uma humilhação amorosa como a que eu havia sofrido que os sinais inequívocos de desejo de um jovem garanhão de vinte e dois anos, já sexualmente orientado. Ponto para mim. Amarei aquela chapinha para sempre.

Capítulo  14  

Rendi-me, afinal, ao Guia 4 Rodas. Por bem ou por mal, eu teria de aprender a ler um mapa. Lembrei de uma passagem de On The Road, em que perguntam ao Sal para onde ele ia, ou se ele estava somente “indo”. Deixei minha cidade naquela manhã apenas para ir para algum lugar que eu nem imaginava qual seria, desde que fosse longe de qualquer lembrança dos meus problemas. Mas ainda estava muito perto de casa. Vários dias haviam se passado, e eu praticamente ainda não havia saído do lugar. De forma alguma, o que eu queria provar era uma eficiência da relação distância sobre o tempo. Eu escolhi a estrada sem qualquer compromisso. E dormir nas cidades em que passava era só uma questão de querer conhecer melhor os lugares e as pessoas. As lembranças me ocupavam boa parte de cada trajeto, mas quanto mais eu me afastava, elas também ficavam mais distantes. Havia coisas práticas a resolver, e colocar água, óleo e combustível no carrinho era tão importante - agora eu sabia - quanto me alimentar e escovar os dentes. Parei num posto BR enorme, alguns quilômetros após a saída da cidadeentroncamento. Deixei a chave com o frentista, e ele que se virasse suprindo as necessidades do meu fusquinha invocado, ainda que isso resultasse em algum risco para mim. Tudo o que eu queria era um café e um banheiro, não necessariamente nesta ordem. Vou pular a descrição do banheiro, uma vez que na estrada eles variam de ruins a péssimos, e isso é o que basta saber. Subindo uma escada, chego à loja de conveniências. Ainda me é difícil acreditar que cheguei a um desses lugares por minha própria conta e risco. Goiabada cascão, requeijão, biscoito de povilho e aquele café de beira de estrada inspirador. Na mesa ao lado, um sujeito louro de meia idade e traços finos se destacava na paisagem. Seu nome era Henrique. Era veterinário e trabalhava para o governo em um projeto de envolvendo cabras e ovelhas, como ele mesmo me explicou. “Garantindo água, introduzindo genética de alto padrão, tecnologia de manejo e assistência técnica, essas comunidades melhoram a qualidade dos seus plantéis. Acrescentamos, então, uma capacitação para a gestão, e elas alcançam a sustentabilidade em seus negócios. Já está dando certo em um projeto-piloto no Vale do São Francisco, você precisa ver.” Não entendi uma só palavra do que ele estava falando, mas ele disse com tanta animação que eu fiquei realmente curiosa. Não havia nada que me impedisse de ir até lá. - É muito simples. Você continua na BR. Uns 70 quilômetros depois, vira à direita e está na 116. Daí, pega a 242, e depois vai direto pela BR407 que chega a Juazeiro. Uns trezentos e poucos quilômetros. - Alguma coisa prática que eu possa fazer por lá? - Esse pessoal está evoluindo. Já pensam até em exportar para a Europa. Precisam de alguma apresentação. Folder, site, sei lá. Era a primeira vez que eu pensava de fato em trabalhar neste período sabático, e isso me surgiu como um vislumbre de felicidade futura. Não apenas porque, como bem me lembrou Theo, o dinheiro ia acabar, mas porque eu realmente sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu precisaria de uma justificativa plausível para me isolar de tudo e de todos. Despedi-me de Henrique como se já o conhecesse há muito tempo. Fiquei tentando encaixá-lo nos meus cenários habituais, ambientá-lo entre as pessoas do meu

convívio, e, decididamente, ele se adequava perfeitamente. Trocamos telefones, na certeza de que seríamos amigos. O carro já estava pronto, tinindo. Aproveitei para fazer o rodízio dos pneus, porque o gerente do posto assim achou que deveria ser, e, depois de deixar uma boa grana lá, parti.

Capítulo  15  

Rodei uns 40 quilômetros até uma cidadezinha bem pequena na 116. Nunca imaginei que poderia haver tanta criança em uma estrada como aquela, o que tornava absolutamente justificáveis os 20 quebra-molas chacoalhantes no amortecedor do carrinho. Como já disse, quebra-molas eram um mistério para mim. Quando eu levava alguém no banco do carona, quem quer que fosse, bastava um quebra-mola para o sujeito assumir um ar de catedrático. Eu nunca acertava. Se parava e passava a primeira, davam um meio sorriso; se passava alheia à lombada, recebia uma bronca. Agora, ou eu aprendia ou assumia que jamais agradaria a todos. Levei cinco minutos para atravessar aquele campo minado, e um pouco menos de tempo para cruzar a cidade inteira, que nada mais era que um distrito do município que eu havia acabado de deixar para trás. Se tem uma coisa que uma barbeira orgulhosa odeia é ouvir conselhos sobre direção. Eu só não sabia que, justamente naquele dia, receberia uma aula e sorveria cada ensinamento como um Luke Sky Walker a Obi Wan Kenobi. Seu nome era Piotr. Por um azar absurdo, havia ficado para trás no rally que estava correndo. Azar porque saiu da competição, mas foi de uma sorte sem fim, considerado que a barra de direção partiu a 120 quilômetros por hora e, naquele momento, ele estava desfrutando de uma comida bem razoável numa espelunca da estrada, onde eu por acaso parei, cruzando assim os nossos destinos. Seu rosto era a visão da desolação e sua a postura corporal, inclinada sobre o prato Duralex, me levou a deduzir que aquela derrota o baqueara em cheio. Filho de alemães, mudou-se do sul do Brasil para o oeste da Bahia ainda jovem. Os pais vieram abrir o cerrado, segundo ele me falou, e acabaram se estabelecendo por lá, pelos anos de 1980. Piotr era autodidata em quase tudo o que envolvesse arquitetura, engenharia civil, mecânica e agronomia. Fez fortuna no oeste e se dava ao luxo de alguns hobbies bem caros e outros mais modestos, como pescaria, caçadas na selva africana e aviação. Seu jipe para este rally havia sido preparado na Itália e, com o acidente, seguiu numa carreta para São Bernardo do Campo, em São Paulo, para o conserto. Ele partiria para sua cidade de um aeródromo 200 quilômetros adiante, mas esse resgate, como ele dizia, só aconteceria no dia seguinte, pois a aeronave estava em manutenção. Pelos seus planos, fretaria um carro naquela tarde mesmo e dormiria na cidadezinha onde ficava o campo de pouso. Nem acreditei no que eu disse a seguir. - Você pode ir comigo! Pelo que falou, seu destino fica na 116. É meu caminho mesmo. Faço questão de te deixar lá.

Essa minha mania de acreditar no ser humano ainda vai me deixar mal. Mas alguma coisa me dizia que o cara era gente boa, o que ficou comprovado logo, logo. Eu nem lembrava que ele era piloto, nem que era homem, e não me inibi ao assumir o volante, que vinha sendo a minha companhia mais frequente nos últimos dias. Se ele tivesse feito uma cara feia, ou tentado dar uma dica que eu não pedi, muito provavelmente me armaria na defesa, como fiz a vida inteira. Ele soube esperar até que numa manobra mal feita, em um cruzamento, eu mesma revelasse que odiava dirigir. Foi então que ele ressaltou que aquela era a sua grande paixão, sua válvula de escape e por aí vai, e eu fiz com ele o que sempre fazia com o meu irmão: parei no acostamento, armei uma cara de pidona e estiquei o braço direito mostrando para ele o chaveiro pendente. Nem precisei dizer nada e ele gentilmente aceitou a minha oferta, assumindo o controle da máquina. O motor 1.4 e a arquitetura compacta do cockpit certamente eram uma tortura para ele, mas Piotr era muito gentil para reclamar. Eu, por minha vez, não parei de tagarelar um segundo e dei um fora atrás do outro. Primeiro, critiquei sem nenhuma piedade o gosto musical do rapaz, que curtia abertamente umas músicas sertanejas, dessas que misturam falsete com teclados e guitarra elétrica e combinam palavras como balada, cachaça, galera e mina, com gritinhos motivacionais de “tira o pé do chão” ou “joga as mãos para cima”. Piotr poderia conhecer qualquer lugar do mundo ou comprar qualquer coisa que lhe agradasse, mas era essencialmente um cara simples e muito ligado à família. Tocava os negócios com os irmãos e já preparava o filho para sucedê-lo. Descobriu nos esportes radicais e no gosto por motores uma forma de relaxar do sobe e desce do preço das commodities. - Não acredito que Chicago, Londres e Nova York possam ter alguma coisa a ver com esse fim de mundo onde vocês vivem – disse eu, exibindo mais uma vez a minha grande falta de tato. - Tem tudo a ver! Um soluço nessas bolsas, e a gente pode perder milhões aqui ou ganhar muito dinheiro, minha amiga. É um mundo bem diferente do que você está acostumada na capital, mas eu garanto que não é exatamente um fim de mundo. Nossa atividade envolve satélites, softwares de última geração e máquinas modernas e avançadas, bem mais confortáveis de dirigir que essa sua joaninha amarela – replicou o meu carona, devolvendo com um pouco mais de sutileza a minha cutilada. Piotr dirigia de um jeito diferente. Quase nunca usava o freio e as passagens de marcha eram tão suaves que nem se percebia. “Você tem de sentir o carro. Dar a ele o que ele está pedindo”, ele dizia, realmente empolgado. Ensinou-me, enfim, para que servia o conta-giros e a trocar de marcha no tempo. Explicou – embora inutilmente – a lógica das relações entre as marchas, a avaliar o consumo de combustível e até mesmo a dirigir mais economicamente. Vencemos o caminho rapidamente, até porque eu estava acostumada a me colocar atrás de um caminhão e a ficar lá no meu cantinho até chegar aonde eu queria, sem jamais me arriscar a ultrapassá-lo. Ao contrário dele, evidentemente. - Você deveria ir para o oeste, Isadora. Garanto que vai ficar surpresa. Ainda não tem shopping, mas tem quase tudo o que você imaginar. - Tem aeroporto? - não resisti a tirar um sarro.

- Voos diários para São Paulo, Brasília e Salvador. Fica bom para você? - Melhorou muito! - respondi. Na verdade, minhas prioridades estavam mudando significativamente após tantos dias de estrada. Primeiro, porque eu estava sobrevivendo perfeitamente bem, consumindo apenas gasolina. Um dia cheguei a receber uma ligação da operadora do meu cartão de crédito, que tinha quase certeza de que ele havia sido clonado. Depois de revelar uma infinidade de dados pessoais, de aguentar o dialeto call center da atendente, expliquei a ela que os gastos regulares em postos de gasolina de diversas cidades do interior, em curtos intervalos de tempo, eram apenas parte dos meus novos hábitos de consumo. Demos entrada no primeiro hotel que encontramos, e foi meio estranho explicar que estávamos juntos, mas não éramos um casal. Um embaraçozinho de nada, e eu me dava conta mais uma vez de que a vida longe de uma capital começava a operar algumas mudanças em mim. Em outros tempos, em outros hotéis, a opinião de um gerente, camareira ou mensageiro simplesmente não me interessaria. Mas, na estrada, onde raramente preencho fichas ou revelo quem sou, comecei a me preocupar em dar satisfação da minha anônima vida. Por alguma razão, entre passar de desconhecida excêntrica a forasteira difamada, segundo me alertaram, era questão de poucos dias, e eu dava alguma importância a isto. Nos deram quartos no mesmo andar, e Piotr e eu combinamos de procurar um lugar para jantar logo mais. Foi uma noite agradável. Ele me mostrava o quanto o campo fazia parte da minha vida, embora eu nunca tivesse notado, e ao mesmo tempo tentava em vão me ensinar coisas úteis sobre direção e investimentos. - Ah, na comida eu sei que tem. - Nessa cerveja também. E no vinho. - Ok, e no sapato. No guardanapo. No papel da conta. - E nas roupas! Se bem que vocês mulheres adoram um poliéster. Roupa de petróleo que demora mil anos para se decompor. - Oh, oh! Vou perdoar porque ainda não fomos apropriadamente apresentados. Eu sou Isadora San Giovanni Somente Fibras Naturais, exceto nas roupas de ginástica, e na lingerie em geral, embora um dia eu hei de substituir de uma vez por todas o jérsei pela seda. Somente a certeza de estar conversando com um especialista, produtor rural e industrial têxtil, me dava a confiança de falar de coisas tão femininas com um homem, sem acionar qualquer gatilho do meu trauma pós-Theo. - Uma moça para casar, se eu não fosse avesso ao casamento atualmente, e você não parecesse tão doidinha. Já viu uma plantação de algodão? – ele desconversou, após fornecer mais informação que o necessário. - Nunca. Para dizer a verdade, jamais parei para pensar sobre de onde veio aquele meu mil fios egípcio escândalo que tem me feito uma falta danada.

- Você nunca mais vai falar de algodão egípcio depois que conhecer o meu algodão, garota. Pode apostar. - Ah, fala sério... - Sério! Em julho eu vou te buscar onde quer que você esteja para acompanhar a colheita. Quero ver você em cima de uma colheitadeira gigante John Deere, cercada de branco até onde a vista alcança. Você não vai querer outra coisa da vida, aposto. - Mmmm... entendo, desconfio, mas começo a entender. - Se você mudar de opinião, te levo para conhecer todo o processo na minha fiação, depois, na tecelagem. E, se me provar que merece, me acompanha em um jantar só com os melhores produtores do mundo, traders e merchants de todo o planeta em Liverpool. Ai meu Deus, eu estava na BR ouvindo expressões como traders e merchants! Só por um minuto julguei que o boi que pastava calmamente ali por perto era o touro de Wall Street. Nem assimilei a coisa do jantar, que aliás, devia ser balela mesmo. - Por que Liverpool? O que é que algodão tem a ver com Liverpool, se o uniforme de bandinha marcial dos Beatles em Sgt. Pepper’s era de cetim? Piotr deu um suspiro de tédio. - Porque Liverpool, Dona Urbana, já foi o maior centro de comercialização de algodão do planeta inteiro, se bem que Campina Grande, aqui pertinho, na Paraíba, não fez feio no início do século passado. - Epa! Vamos parar, porque você já está arrasando com todas as minhas referências culturais. Amigo, Campina Grande é terra do forró e do cordel. Pulamos da geografia da polo Lacoste (aprendi que para fazer uma polo Lacoste são necessários 20 quilômetros de fio) para a Bolsa de Mercadorias & Futuros. Fingi interesse e fiz cara de conteúdo, mas não registrei nadinha. Nos recolhemos cedo, pois ele partiria tão logo o sol nascesse. Não queria mais perder tempo. “É época de plantio. A gente não tem tempo nem para comer”, justificou. Pulei da cama com o despertador programado para as 4h50, algo que eu não imaginava fazer tão cedo. Me arrumei como deu e fui encontrar meu novo melhor amigo da BR na recepção. Ele tinha um brilho totalmente diferente nos olhos. Em lugar da expressão frustrada do instante que o conheci, tinha um olhar confiante e ansioso. Entramos no Fusca e rumamos para o aeródromo. E, quando chegamos lá, a aeronave de Piotr já havia pousado. Um marimbondo de lata, com espaço para o piloto, copiloto e mais duas pessoas, no qual eu jurei que jamais colocaria os pés. - Te encontro no oeste, menina! - Pode apostar que vou, sim. Não sei quando, mas ainda nesta viagem. Vou passar antes pelo Vale do São Francisco, assim que eu descobrir onde ele fica.

- Vá sim. Vai ser bom para você ter uma ideia do que te aguarda no cerrado. Na verdade, é completamente diferente, mas dá uma mostra da tecnologia que você vai ver. E se precisar de uma carona, ou de um socorro a qualquer tempo, é só me passar as coordenadas. - E entrar nessa coisa? Vou andando! - Vou te ensinar a pilotar. Anota aí. Depois você não vai querer saber de outra coisa. Antes de subir, Piotr me entregou uma envelope pardo e me pediu que só abrisse após ele partir. Fiquei pensando no quão metida eu ficaria se um dia, um dia qualquer, ainda que por míseros segundos, alguém me deixasse no controle de qualquer coisa que voe. Piotr assumiu o lugar do piloto. Colocou o headset e eu fiquei parada, encostada no carro esperando a aeronave decolar. Era um cara impressionante, sem dúvida. E eu tinha certeza de que suas promessas não eram vazias. Iria encontrá-lo mais cedo ou mais tarde. Já estava me roendo de curiosidade para saber o que havia dentro do pacote. Só pude rir, quando descobri. Um IPhone de última geração, acompanhado de um bilhete escrito em papel de bloco de propaganda de herbicida. “É o velho telefone, com algumas funções a mais do que as que o seu já tem. Com ele eu controlo a agenda, checo o mercado, vendo a safra e acompanho as notícias que saem na mídia sobre a minha empresa e, claro, as colocações nos rallies. Você vai dar tarefas bem mais interessantes de mulher da capital ao aparelho, tenho certeza. Como eu tenho mais de um comigo agora, deixo este contigo por causa do GPS. Sei que você vai resistir um pouco a usar o aplicativo, mas vou ficar mais tranquilo sabendo que você agora conta com um. Dedique uns minutinhos para descobrir como ele funciona. Meu endereço já está registrado, para o dia em que você decidir me visitar. Se você não aprender, ou se as coisas ficarem feias para o seu lado, meu telefone está na agenda. É só ligar. Se cuide e, a princípio, até julho! Seu amigo Piotr.” O celular, para além da tecnologia de comunicação e localização, foi uma aliança. O portal para um reencontro prometido, para não nos deixar perder de vista. A linha direta para ouvir um bom conselho na hora exata. A chave que eu recebi de um guia especial e a quem recorri muitas vezes na jornada. Não havia qualquer outro contato na agenda. Era uma coisa só nossa.

Capítulo  16  

Nem acreditava no quanto havia avançado. Claro que essa não era uma preocupação para quem não tinha destino traçado. Estava me sentindo leve e feliz. Dois novos amigos bem interessantes em pouco mais de dois dias. Eu precisava dormir, e essa é sempre a parte mais complicada da jornada. Cheguei a uma pequena cidade com nome de pedra bonita, Itaberaba, em TupiGuarani. Segundo o frentista do posto me explicou, com mais uns 420 quilômetros, eu

chegaria a Juazeiro. Estava bem ansiosa por isso. Decidi pernoitar em um hotelzinho no centro da cidade. Já estava enjoada de tanto asfalto e também era hora de saber notícias do marco zero. Não estava com vontade alguma de acessar e-mail, mas decidi ligar para as meninas, Bia, Let e Nólia, pois falar com Bettina exigiria ou uma entrada no Skype, que demandava boa conexão, ou uma carérrima e nem sempre possível ligação internacional do meu celular. - Ah, gata, você sabe o que eu penso dessa sua viagem, mas já que está aí, passa em Lençóis – disse Bia. Era uma mudança completa de rota, mas resolvi dar ouvidos já que, para qualquer pessoa que não conhecesse Bia tão bem quanto eu, sua sugestão seria no mínimo inusitada. Ela não fala muito sobre o tema, mas sob a pelica italiana de urbanoide que usa 24 horas por dia, há um passado bicho-grilo que ela prefere esquecer e que, muito além de cachoeiras, trilhas, e do charme da Chapada Diamantina, esconde barracas, incenso, banheiro de camping e macarrão instantâneo. Bia me falou que ouviu de Rebeca, nossa ex-colega de faculdade, que soube de alguém que é amigo de minha ex-editora na Corpo Perfeito, que a minha insistência em sobreviver há tantos dias na estrada estava dando o que falar. Disseram que eu estava fazendo um documentário para a BBC, que havia conhecido um cara, que estava de carona para a Argentina na boleia de um caminhão. Na verdade, gostei de todas as possibilidades, mas, a realidade era bem menos glam. Agora eu passava por uma cidadezinha cujos maiores atrativos eram justamente tudo o que não era a cidade em si. Eram as pedras imensas, as montanhas escarpadas e todo o relevo de tirar o fôlego que começava a sobressair e indicava que talvez fosse interessante mesmo eu dar uma passadinha por Lençóis. Já fazia muito tempo que eu não aparecia por lá.

Capítulo  17  

Dejà vu! De repente, me vi saltando do ônibus caindo aos pedaços - não eu, ele na velha rodoviária, 20 anos antes, depois de uma viagem insana com várias paradas técnicas. Chegamos com dezessete horas de atraso, o que já era muito bom, visto que nenhuma previsão científica ou mística sinalizava a possibilidade de chegada. Mas chegamos, e aquela foi uma viagem memorável; um marco na pós-adolescência. Todas as opções abertas, ninguém em especial a quem dar satisfação e um juízo ainda em formação e já meio precário.

Havíamos acabado de entrar na faculdade e em pouco tempo estaríamos no mercado de trabalho. Ainda que não planejássemos, ou melhor, nem sonhássemos com qualquer hipótese de casamento, o destino, só de pirraça, levou alguns dos mais loucos

de nós ao altar poucos anos depois. Então, era uma viagem especial. Não era uma viagem de boas-vindas à idade adulta, mas de despedida de uma longa e turbulenta adolescência. Nessa viagem, tenho certeza, Bettina pulou a primeira grande fogueira da sua vida, com uma pequena ajuda minha. A gente compartilhava tudo: roupas, brincos, pulseiras, botas juninas, e misturava todas essas coisas, às vezes, sem nenhum critério. Mas a probabilidade de nos interessarmos pelo mesmo cara era remota, para a nossa grande sorte. Eu tinha um amigo que era um gato, segundo o senso comum, mas não dizia absolutamente nada para o meu sistema hormonal. Era um bebezão feito a pincel, que foi involuindo de um cara legal para um perfeito babaca. Todas as evidências disso estavam ali, escancaradas. Dentre elas, o fato de que o fulano tinha uma queda por mulher vagabunda, e Bettina, definitivamente, não era um alvo para ele, principalmente, em meados de 1990. Ela ficou evasiva naquele dia. Tinha arquitetado em sua cabeça diabólica todas as artimanhas para dar um perdido em mim e no grupo e encontrar com o sujeito - que estava acampado por perto. Tudo armado: 22h15 no quintal de nossa casa alugada. O problema é que a garota era virgem. Virgem da Silva, e precisava resolver isso rápido, porque sabia que chegar com esse status à faculdade dá muito trabalho. Com tanto apelo, com tantas oportunidades, com tantas tentações pelo caminho de casa para a escola, ela chegou ilesa à vida adulta, não por falta de más influências minhas, principalmente. Acho que por falta de coragem mesmo. E, naquela noite de São João, ela decidiu que daria pro garoto, verdadeira encarnação do Príncipe Encantado, atrás de uma moita qualquer. Fingiu uma dor de cabeça, um resfriado e dores no corpo e resolveu se recolher mais cedo. Mas foi generosa. Disse que eu merecia me divertir e que fosse para a praça gastar todo o meu gingado com a turma, ao som de forró, xote e xaxado. Filha da mãe.

Mas não era para ser, e não foi. Alguém teve a ideia infeliz de armar uma quadrilha, e eu tive a ideia menos feliz ainda de entrar na dança. Fiz isso em cima de um salto de 10 centímetros e com o cérebro ainda mais alto de tanto licor e quentão. E o contexto de uma cidade tombada pelo Patrimônio Histórico, toda pavimentada de paralelepípedos desgastados pelo tempo, também não ajudava em nada. Não sei se foi no anarriê, ou se no “olha a cobra”, que a terra fez uma grande onda sob meus pés e, quando eu dei por mim, já estava sendo carregada para o posto médico, com o tornozelo inchado como um melão. “Vai ter de engessar”, alguém gritava, entre fogos de artifício, música alta e uma névoa gelada. Foi nessa hora que mandaram chamar Bettina em casa, para me acompanhar, junto com mais umas vinte pessoas, até o posto de saúde. A bichinha já tinha partido do nível Médio, para o Avançado atrás da moita, quando ouviu a turba barulhenta. Não foi daquela vez. O garoto decidiu que não ia ficar no zero a zero, e tratou de reocupar a moita com uma piranhuda amiga de alguém do nosso grupo, que achou que eu já estava muito bem acompanhada e sua presença era dispensável no posto de saúde.

No dia seguinte, ela recebeu na mesma moeda o castigo. Levantou toda vermelha e se coçava feito uma louca. Os dedos pareciam salsichas e a cara estava toda deformada. Foi a sua vez de ir para o posto de saúde. Diagnóstico: sarna. Bettina, mais uma vez, escapou ilesa.

Capítulo  18  

Se dessa vez Bettina não estava, e se, tantos anos depois, as antigas roupas e assessórios não convinham, pelo menos o “espírito” daquela viagem a Lençóis eu poderia conservar sem culpa. Em primeiro lugar, resolvi que ia fugir dos hotéis e pousadas mais graduados do meu guia de viagem e me instalei num albergue no centro da cidade. Já que para todo mundo no meu círculo urbano de amigos eu era uma fracassada sentimental em fuga, melhor era manter as más aparências e me atolar logo de uma vez por todas na imagem de fugitiva expiadora, para evitar qualquer impressão de auto-piedade compensatória que um hotel ou pousada de mais de duas estrelas pudesse causar.

Óbvio que eu procurei um quarto com banheiro porque, depois dos trinta anos, baixar o nível de exigência ao rés do chão envolve muito risco e sacrifícios aos vários rituais de higiene e beleza que a gente adquire ao longo do tempo. Meu albergue tinha acesso à internet e café da manhã, o que já me pareceu um luxo. Mas, luxo mesmo era respirar o ar daquela cidade. Já estava ficando sentimental com o céu estrelado, com a nostalgia dos antigos casarões, que ainda guardam segredos de um tempo de diamantes, abundância e charme. Entrei numa pizzaria no meio da praça. O dono era uma graça. Apostaria um dedo da mão como não tinha mais que 25 anos. Cabelo cacheadinho, muitas tatuagens e um sotaque italiano bem provocante. Sentou na minha mesa, apoiou o queixo na mão direita e olhou nas profundezas abissais dos meus olhos castanhos. Fez isso silenciosamente por alguns segundos.

Aí começou:

- Mozzarella é a base de tudo. Não tem gosto de nada, mas tem textura. Coloco aliche pela sua personalidade forte. Que não parece salgada, mas agridoce... É tudo isso. Pimenta biquinho. Não, decididamente, alho. Ok, não exclui a pimenta biquinho. Mas, por trás dessa carinha levemente triste e distante, tem uma alma leve e romântica. Alecrim. Odeio alecrim. Combina com você, mas eu odeio. Não vou colocar. Então, fiquemos no básico. Manjericão. Como é seu nome? Lindo! Isadora. É isso: Isa Adora. Um pinot noir para comemorar minha nova receita. Obrigado pela inspiração. De hoje em diante, Isa Adora é o novo sabor do cardápio. Só falta provar. O que acha?

O garoto sabia seduzir, mas errou. De todas as armas possíveis, a gastronomia era a única que não poderia ser usada. Da última vez, deu tudo errado. De qualquer maneira, já leram minha personalidade em muitas sessões de divã, já leram minhas mãos, como mencionei anteriormente, já leram meu futuro na borra do café, porque estava na moda, depois de uma novela. Faltava o mapa astral culinário. Theo nem tentou. Eu não ia fazer uma desfeita com um mocinho descolado tentando impressionar e, claro, optei pela minha pizza customizada. O vinho estava delicioso, e continuou assim na segunda garrafa.

Luca – esse era o seu nome – deixou o avental de lado e sentou-se comigo. “Minha convidada”, ele disse, e eu protestei. A partir daí, um pequeno e divertido entrevero levou por volta de dois minutos, chamando a atenção da mesa ao lado.

- Minha paixão é cinema, meu negócio é pizza. Lençóis foi uma parada estratégica só para fazer caixa, até que eu possa voltar pra São Paulo e me jogar de vez na sétima arte.

Veredito: menino, ma non troppo. Meu dedo mindinho não foi embora por pouco. Foi uma conversa muito legal, e eu fechei, assim, o primeiro subemprego da minha vida. Era época de festa junina e o movimento na cidade estava nas alturas. Luca me propôs um cargo de hostess do dia de Santo Antônio até o de São Pedro.

Por hostess, entenda-se sorrir, anotar pedidos, servir as mesas e lavar os pratos. De todos os trabalhos da pizzaria, eu estava liberada de fazer as pizzas e fechar o caixa, por motivos óbvios: incapacidade dupla de fazer contas e produzir qualquer coisa palatável. Com o salário que receberia, mais as gorjetas, por uns 1500 quilômetros eu não precisaria tocar num único centavo das minhas reservas pecuniárias, que já haviam baixado consideravelmente.

Depois daquela noite, curti o dolce far niente em Lençóis por uns dois dias, nos quais refiz algumas trilhas e coloquei em dia os e-mails e as redes sociais. Luca foi um amigo frequente nos horários em que estava fora do restaurante e me fez rever meus preconceitos contra a geração Y, pelo menos, em um primeiro momento.

Minhas poucas experiências com os nascidos depois de 1984 sempre envolveram os pais deles ou mililitros e mais mililitros de álcool. Daí que, contra todas as más expectativas que eu acalentava, encontrei um parceiro legal. E não posso deixar de comentar que ele beijava muito bem.

- O que é que nós somos agora? – a pergunta óbvia que eu fiz alguns milhares de vezes na minha vida e que na estrada, longe do meu passado e de todas as minhas referências, eu insistia em repetir. Necessidade boba essa das mulheres de compartimentar, definir, rotular tudo: de tupperware a beijo na boca.

- Amigos - ele respondeu.

- Amigos não beijam assim – repliquei.

Mas, era exatamente o que éramos: amigos que se beijavam muito em estradinhas de terra batida, ao pôr do sol, em grutas escuras, sob as estrelas... só beijávamos, nada mais. Mas, a proximidade do Dia de Santo Antônio, que, por uma razão que ignoro, também é o Dia dos Namorados e, no caso específico daquele ano, o meu primeiro dia de subemprego, estava me deixando ansiosa.

Mesmo quando estava comprometida, eu odiava o dia dos namorados. As filas de espera, os shoppings lotados, as propagandas melosas e, mais recentemente, os posts nauseantes no Facebook. Sem falar nos presentes, tantas vezes frustrantes, que costumava receber, até começar a namorar Theo, que – Ah, os homens de bom gosto! – sabia muito bem o caminho, físico ou virtual, da Tiffany & Co.

Naquele ano, em vez de caixas de presente, me deparei com caixas de pizza, anéis de lula, blanquet de peru e, em vez de pétalas de rosas, rodelas e mais rodelas de salame, pimentões verdes, amarelos e vermelhos. Foi muito divertido. Luca tinha uma namorada em cada canto do mundo e várias delas vieram para Lençóis naquela época, de modo que exclusividade era artigo inacessível. De tempos em tempos, entre fechar a conta da mesa oito e atender o casalzinho que acabara de chegar, abrir a garrafa de vinhos da mesa sete e dar uma espiada no forno, eu era surpreendida com um beijo roubado, um beliscão na bunda e peraltices do gênero, sem deixar turvar a certeza cristalina de que ele estaria fazendo o mesmo com outras três mulheres, naquele mesmo lugar, quase ao mesmo tempo. A noite acabou e eu me esgotei junto com ela. Luca traçou uma agenda com todas as namoradas para o dia seguinte, quase impossível de administrar, e nós fechamos a pizzaria.

- Vamos ao Ribeirão? - Não, por favor, são cinco da manhã... estou destruída. - Mas, se você não for, nunca verá o presente que eu trouxe para você. - Tentativa de golpe fraquíssima. Não tem presente nenhum.

- Ah, não me nivele por baixo. Juro que tenho um presente e que você vai adorar.

Quatro quilômetros, num início de manhã gelado, pela estrada deserta do Ribeirão do Meio. Luca me abraçou pela cintura e seguimos assim até ouvir o barulho da cachoeira. O lugar estava deserto. Sentei numa pedra e ele deitou com a cabeça em meu colo.

- Não quer ver o seu presente? - Para! Não tem presente nenhum. - Já disse que tem, não me subestime – e tirou da mochila uma caixinha de madeira, toda trabalhada em marchetaria, com uns quinze centímetros de comprimento, no máximo, e o meu nome entalhado numa das faces laterais. Era um trabalho bem delicado, longe de parecer qualquer artefato para turistas.

-Nossa, é linda demais!

- Eu mesmo fiz para você. Quando eu não tinha a pizzaria, precisava sobreviver aqui. Para alguma coisa, o ofício que aprendi com o nonno teria de servir. Você não vai abrir? Por essa eu não esperava. Dentro da caixinha, outra obra de arte minuciosamente elaborada: um clássico, robusto e longilíneo cigarro de maconha. Se bem me lembrava, a última vez em que havia experimentado um troço daqueles foi antes do Plano Real. Acende, puxa, prende, passa... Eu não devia tentar essas coisas. Eu já deveria saber que iria dar errado. Sempre deu. E foi assim que, naquele dia, quando caí em mim, já estava sucumbindo à proposta totalmente anacrônica dele, de tomarmos banho pelados na cachoeira. E mais: de descer o tobogã de pedra sem nenhuma proteção para as partes. Foi uma péssima ideia. As escoriações deixaram marcas indeléveis na minha pele e na minha reputação. Eis por quê. Justamente naquele momento, um grupo neopentecostal resolveu se reunir no Ribeirão do Meio para orar, jejuar e batizar alguns fiéis. Os que estavam sendo batizados vestiam túnicas brancas de algodão e o pastor entrava no rio, de terno e tudo, empurrando a cabeça deles dentro da água. Do lado de fora, os outros entoavam músicas, e haja coreografias e clamores em voz alta, em uma catarse coletiva. Enquanto isso, eu e Luca, biblicamente vestidos como Adão e Eva, estávamos totalmente enregelados pelo frio cortante da água, sem nenhuma chance de sair dali, porque nossas roupas ficaram na mesma pedra na qual estava o grupo fervoroso, e não havia nenhum indício de que a cerimônia terminaria cedo, a julgar pelos isopores com

refrigerantes, sucos e sanduiches alojados bem ao lado deles. Luca empurrou minha cabeça na água, rindo para se acabar do nosso infortúnio, mas meu bom humor já havia ido com a correnteza há tempos. O melhor a fazer era atravessar o rio mergulhando até a margem oposta, entrar numa fenda de pedras logo adiante e pegar o caminho de volta, que àquela hora já deveria estar bem movimentado. Mas a estratégia nem deixou o plano das ideias. Em uma das vezes que Luca tentou me fazer submergir, um garoto gritou. “Olha lá! Aquele pastor ali batiza pelado!” Foi um rebuliço. As senhoras mais velhas tampavam os olhos das moças. Os rapazes se enfezaram e se prepararam para o ataque. Aos gritos de “malignos, ímpios e mundanos”, a gente recuperou nossas roupas e foi embora sem voltar os olhos para a plateia revoltada.

A história vazou na cidade e fomos chamados a depor na delegacia, pois o grupo de fiéis fez questão de testemunhar contra nós. Nos comprometemos a cumprir uma pena social, que incluía a doação de 10 cestas básicas cada um, e, assim, boa parte do dinheiro que eu teria ganhado até o fim da temporada de festas juninas acabou revertida para os mais necessitados. Eu fiquei escrava por dívidas da pizzaria, tendo de engolir o ódio do pós-adolescente babaca que, no máximo, compartilhava vídeos caseiros no YouTube e já se achava cineasta. Daquele dia em diante, me auto apliquei uma pena de manter distância de dez quilômetros de qualquer homem interessante com menos de quarenta anos.

Capítulo  19  

Ok, minha passagem por Lençóis teve lá seus momentos da baixa, mas, eu optei por dar um crédito àquelas paragens e decidi que ficaria ainda mais um dia. Dessa vez, sem avental. Nem fui acertar as contas na pizzaria, mas troquei de hotel, me dando ao luxo de ficar no melhor de todos, em um ponto privilegiado da cidade. Se meu crédito ia de mal a pior na Chapada, na capital a coisa era diferente. E eu descobri isso quando abri o e-mail e, no meio de todo o lixo eletrônico, pelo menos uma mensagem me chamou a atenção.

Prezada Isadora,

Soube através de amigos comuns que você partiu em uma viagem de autoconhecimento. E já conhecendo a qualidade do seu texto e a perspicácia oculta em cada uma de suas linhas, mesmo nas matérias mais simples, não é preciso ser gênio para saber que algo de muito bom pode brotar daí. Então, espero estar me antecipando à concorrência ao convidá-la para uma reunião para tratarmos dos direitos de publicação do seu livro. Diga-me apenas onde, nessas estradas, e vou eu mesmo encontrá-la.

Atenciosamente,

Ted Lessa – Editor Sênior. Self Editora

Self editora era sinônimo de literatura barata, editoração pobre, papel ordinário e lucros astronômicos. Era a preferida entre quarentonas frustradas e donas de casa sem esperança. Era também o caminho mais fácil para o sucesso, mas seria dar muita ousadia para Theo, que ficaria, direta ou indiretamente imortalizado, ainda que numa edição de quinta categoria. Sem falar que seria também o atestado de óbito da minha dignidade, já que o livro viria a ser o resultado inequívoco da minha fuga alucinada. De toda forma, clichê ou não, escrever um livro era justamente o que eu pensaria em fazer, assim que eu começasse a pensar em fazer alguma coisa. Já escrevia meu diário, de forma meio negligente, desde que tinha onze anos.

O panorama não era dos mais animadores, mas, eu não perderia nada em conhecer a proposta. Pensei em vários possíveis títulos, mas todos descambavam na autoajuda, que é, convenhamos, uma opção bem rentável, embora a minha elevada autocrítica me impedisse, pelo menos a princípio, de pensar naquela saída. Já me vi dando autógrafos na sexta edição de “Pulando uma fogueira – De como sobrevivi”, ou então sentada entre psicólogos, advogados e “personagens” em um programa vespertino de tevê aberta, cuja pauta naquele dia seria “Descobri que ele é gay. E agora?”

Adiei a resposta ao e-mail do editor, na esperança de receber uma proposta melhor, ou de ser abduzida por um extraterrestre, e passei para as outras mensagens. Estamos evoluindo. Um dos e-mails da sequência era de um escritório de advocacia, representando Theo e me convocando para uma audiência para tratar do divórcio. Pelo visto, fechou um “pacote combo” com o advogado e, assim que se livrasse de mim, já cuidaria da manutenção do seu status de casado nas redes sociais, tratando de oficializar seu casamento com o novo parceiro.

O mais humilhante disso tudo é que eu vou ter de ir lá em pessoa, de pasta, coque, tailleur e, de preferência, com uns cinco quilos a menos. Tinha de estar matadora, um arraso, só para mostrar para os engomadinhos advogados dele o que seu cliente estava desperdiçando. Esse foi o meu segundo ímpeto. O primeiro foi pensar em escrever uma procuração nomeando Bia a minha “bastante procuradora” para essa missão. Mas, depois pensei comigo mesma que procuração por e-mail não deve ter validade legal. Resumindo, o filho da mãe quase acaba com minha vida e ainda quer acabar com minha viagem. Não respondi à mensagem. Decidi aguardar que ele ficasse

muito bravo, afinal de contas, eu tinha o recurso mais do que justo de dizer que estava “fora de área”, e ele que me encontrasse, se quisesse.

Parei no posto de gasolina e comi um pacote de amendoim japonês e outro de goiabinha. Somadas, 1,3 milhão de calorias. E a meta de emagrecer cinco quilos parecia ainda mais distante depois desse abuso. Xinguei, praguejei e depois chorei, tudo discretamente, enquanto devorava minha comida gorda, olhando a lojinha de artesanato e presentes do posto de gasolina. Parei ali porque, antes de abrir o e-mail, minha ideia era conhecer duas grutas da região, e eu resolvi que não ia, mais uma vez, mudar meus planos por causa de Theo, ainda que dessa vez ele não estivesse diretamente contribuindo para isso.

O carro trepidava irritantemente e, como eu já estava no posto, resolvi parar para dar uma geral. Diga-se de passagem que aquele posto era o máximo em assistência técnica automotiva que eu pude ver por ali. Era uma coisa meio vintage, com bombas de gasolina analógicas vermelhas que me lembraram a infância.

O frentista nem se abalou com meu approach. Só pediu que eu subisse numa rampa que ficava em cima de um buraco para ele checar se o barulho vinha de baixo. Meu Deus do céu! Só de me imaginar tentando alinhar os pneus do carro àqueles dois trilhos de concreto, eu já fiquei desesperada. Tratei de não dar bandeira e encarei o desafio que para eles era a coisa mais normal do mundo. Mas eles não me conheciam. Uma vez consegui encaixar a roda do meu primeiro carrinho bem no vão do trilho de trem entre Cachoeira e São Félix.

“É só uma porca folgada no amortecedor, moça”, disse o expert, para meu alívio. Me cobrou só “um guaraná”, e eu segui adiante. A gruta ficava numa propriedade particular e eles cobravam entrada. Havia uma série de possibilidades ali; tirolesa, mergulho, escalada, e eu, que tenho horror a altura, águas profundas e/ou escuras e lugares fechados, comecei logo a me odiar e a não ver qualquer nexo em conhecer aquele lugar.

Mas, se eu ia escrever um livro de autoajuda, era bom começar a pensar mais sobre o conceito de superação. Paguei pelo tíquete para entrar na gruta para descobrir de cara que: 1- havia um rio dentro dela. 2- a areia do fundo do rio não era areia, mas minúsculos moluscos protegidos por lei, e eu não poderia pisar neles. 3- não havia qualquer iluminação, além de uma lanterninha a pilha que eu levaria. 4- eu teria de mergulhar de óculos, snorkel e pé-de-pato.

Eu não estava mais com a menor vontade de conhecer a gruta. Para dizer a verdade, estava apavorada com a perspectiva de entrar em um túmulo de água,

assoalhado por vermes cascudos. Mas amarelar no ato não ia ser muito bonito. Além do mais, o item 4 do meu desespero ia render boas imagens para o meu perfil na rede e, mais cedo ou mais tarde, chegaria ao conhecimento de Theo. Perguntei se dava para tomar uma cerveja antes e, apesar da cara de reprovação do monitor, foi exatamente isso que eu fiz. Na volta, descobri que eu não iria entrar sozinha na gruta, eu e o instrutor, como havia pensado. Éramos um grupo de cinco pessoas, e, exclusivista que sou, não gostei nem um pouco da ideia.

Não sei como é possível, mas a água na gruta era morna e, de alguma forma, parecia não molhar o corpo. Foi a impressão que me deu. O teto era extremamente baixo e, alguns metros adiante, não se via o menor traço de luz. Eu estava ainda do lado de fora, pensando sobre isso, quando acordei do meu transe reflexivo com um grito do instrutor. “Tira o pé do chão! É para ir nadando. Não pode pisar!”.

Ok, a única coisa impossível para mim era olhar a boca negra da caverna à minha frente e me imaginar, por livre e espontânea vontade, entrando ali. E, de repente, os gritos do instrutor foram virando um barulho abafado na minha mente, e, sem qualquer cerimônia, fui andando, checando a profundidade da água naquele trecho, que já estava na altura da cintura. Mas não consegui deixar passar sem notar a mão do moço apertando com vontade o meu braço e me colocando na horizontal, na tentativa de reduzir o impacto arqueológico da minha total falta de jeito.

As coisas não pareciam exatamente péssimas, até ele ordenar que eu colocasse o rosto na água para testar o snorkel. A partir daí, foi que percebi o contrassenso que é respirar embaixo da água. Não fui projetada para isso. Comecei a surtar. Eu sabia que estava de colete, que ainda conseguia colocar o pé no chão e que a qualquer momento poderia sair dali, pois o passeio em si nem tinha começado.

Passeio pelo inferno, com todos os meus demônios particulares me atazanando: claustrofobia, medo de água profunda, medo do escuro, medo de bichos gosmentos, medo de avalanche e medo de morrer. Deve ter sido feia a cena, porque em pouco tempo já havia um cordão humano à minha volta. Bradei. Disse que queria sair, e o instrutor, cujo nome nem ao menos me interessei em saber, falou que eu deixasse de frescura, porque nunca ninguém havia morrido ali. Mas eu fiquei morrendo de vergonha ao perceber que dois dos integrantes do meu grupo tinham entre oito e dez anos, que um terceiro era o pai deles e o quarto era, ninguém mais ninguém menos, que meu amigo Marco do Fusível que continha - com muito esforço - a risada, enquanto me via em uma situação vulnerável pela segunda vez em nossos dois únicos e casuais encontros. Foi nessa hora que eu me deparei com o pior dos medos, não mencionado ainda, que era o medo da humilhação pública. Este era meu grande segredo, pelo menos, era o que eu achava. Sempre camuflado por uma personalidade falastrona, por um nariz meio autoritário, pela pisada firme e aparentemente segura. Mas o rebolado ia embora sempre que o gatilho certo era acionado, e não raras vezes eu acordava em pânico no meio da

noite, no auge de um vexame em sonho. O sonho vulgar, que quase todo mundo tem, que foi trabalhar de pijama, pelado ou coisa similar.

- Calma, respire. Vem cá.

Na ânsia de morte que ainda não tinha passado, fiquei pensando se havia uma alguma possibilidade real de morte. Um estado de catalepsia que me tirasse dali e quando eu acordasse, na UTI, somente Bia, Let e Bettina estivessem ao meu lado.

- Isso... coloca o braço aqui no meu pescoço. Assim... vai soltando o ar e contando bem devagar até seis.

Que raio de método esquisito era aquele? Só vi que eu já estava sendo rebocada pelo moço, que mandou que o grupo seguisse com o passeio, e nós iríamos logo após. Duas crianças e um pai compassivo, e o pedido foi atendido sem embargo. Tecnicamente, se Marco me salvara duas vezes, já podia considerá-lo amigo, não é? Acho que sim. Um amigo bem bonito. Excelente envergadura. Gostei do perfume também, que, apesar do cheiro de rio, persistia em seu pescoço. Sim, eu estava perto do pescoço dele. Afinal, que outro jeito há de salvar alguém em meio líquido, senão pendurando a vítima no pescoço? O mundo estava meio turvo, e meu coração, disparado. Mas eu podia jurar que não vi a aliança dele daquela vez. O que podia ser justificado pelo fato de ele estar entrando numa caverna, e querer resguardar o símbolo do seu amor eterno do estômago de um peixe sem olhos. Não sei, não convenceu. Separado, ele não deveria estar, pois ninguém pode estar casado num dia, quando você o encontra pela primeira vez, e, um mês depois, não estar mais. Sim, a rigor, pode sim. Na verdade, o ato de tirar a aliança acontece num instante específico da linha do tempo, ainda que depois ela possa voltar ao dedo e sair de novo, até chegar ao fundo de um lago ou à casa de penhores. Todas essas teses e antíteses se chocaram em três segundos.

- Sabe nadar de costas? - A-ham! - Então, você vai deitar e nadar só olhado para o teto.

Fiquei pensando sobre o porquê de fazer um mergulho numa gruta, se teria de manter a cabeça fora da água. Mas quando vi o requinte daquele teto de caverna, que me lembrou muitíssimo a arquitetura de Gaudí, achei que a grande tolice era olhar para o fundo negro do rio, onde não se via absolutamente nada além - eu suponho, pois não abri o olho quando tive oportunidade – do facho lânguido de uma lanterna de pilha.

Fui sentindo o coração acalmar e um relaxamento muito grande no corpo. Me dei conta outra vez da aguinha tépida e, de repente, me vi segurando não mais o pescoço, mas a mão de Marco. Ele, a essa altura, também nadava de costas, e a posição nos dava uma grande vantagem em relação aos demais, que era a possibilidade de conversar. Coisa, aliás, que vinha me fazendo muita falta.

- Doutora, salvar você deve ser o meu carma. - Por que você diz isso? Talvez seja exatamente o contrário - retruquei com muita cara de pau, e perguntei o que ele fazia ali.

Marco é agrônomo. Me explicou que estava aproveitando o fim de semana prolongado, na volta da fazenda, e passou em Lençóis.

Uma vontade absurda de perguntar se ele continuava casado me acometeu, mas uma parte do meu cérebro não atingida pelo tilt espeleológico me impediu essa indiscrição. Marco ficaria ainda duas noites na cidade e, outra vez, me bombardeou com perguntas: o quê, onde, quando, como, por quê... O estranho foi responder para ele que eu ainda não sabia exatamente quando partiria, para onde, para fazer o quê, com quem e, principalmente, eu não sabia muito bem o porquê da minha viagem, do meu isolamento voluntário e nem mesmo o porquê dos meus medos e da minha recorrente necessidade de ser salva.

Os vinte minutos restantes do passeio fluíram quase rápido demais. Mas, quando a luz do mundo exterior me ofuscou, trouxe à tona uma imensa vergonha, que eu tratei de camuflar em uma conversa exageradamente gesticulada e cheia de expressões faciais do mais profundo interesse. Sempre funcionava. Não era exatamente como fingir ler um livro ou falar ao celular, mas era até melhor, já que os outros expedientes eram falsos, e aquela conversa com meu herói estava me interessando deveras. Marco me acompanhou de carro até a cidade e combinamos de nos encontrar mais tarde, depois que eu livrasse meu cabelo daquele cheiro enjoativo e revisitasse meu estojo de maquiagem, que andava bem esquecido.

- Sobrancelhas? - Hmm... mais ou menos. - Hidratante? - Ok.

- Base? - Não. Definitivamente, não! - Rímel? - Em qualquer circunstância ( e, hoje, mais que nunca sei, sempre à prova d’àgua!) - Blush? - Peach. - Gloss? - Ok. - Perfume? - Chanel. - Mini, midi ou maxi? - NDA. Calça e chamise. - Cor da pele ou preta, algodão ou renda? - Ai ai ai...

É preciso dizer aqui que a falta de oxigenação no cérebro ocasionou um leve retardo em minha pessoa, e ele ainda persistia, mesmo após o banho. O que eu queria, afinal, com o agrônomo e o que eu poderia esperar em troca? Dediquei quatro minutos a estes questionamentos e fui cheia de curiosidade encontrá-lo no restaurante contemporâneo da praça. Essa coisa de boa gastronomia e paisagem estonteante estava me acostumando mal à Chapada Diamantina. Sinal de que era a hora de passar a primeira e deixar o lugar. Cheguei um pouco antes do horário marcado, mas, embora o protocolo das musas estabeleça um elegante “leve atraso” nos encontros, alguma cortesia para com o meu herói seria bastante recomendável num dia como aquele. Caraca! Quem mandou ele chegar assim, perfeito? Eu sei que não deveria jamais, dada a minha recente decepção, olhar para um homem que tendesse ao navy, mas aquela camiseta de algodão branca com manga 7/8 e gola canoa não evidenciava nada. Marco era pura testosterona, certificada pelos mais rigorosos testes de macheza da Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz, com testemunho firmado por uns seis ou sete brutos. No entanto, ele era educado e tudo soava natural nas suas maneiras. Para mim, bastava o fato de que ele sabia o que era um fusível e qual a utilidade desta pecinha num automóvel.

Pensei em quanto tempo fiquei diante do espelho para me montar para este encontro e, embora o resultado tenha ficado satisfatório, não consegui sequer conferir o efeito que causou em meu amigo, porque, pela segunda vez em menos de 24 horas, eu quase perdi os sentidos, desta vez em terra firme. Marco pediu um relato detalhado da minha vida, desde que nos encontramos num dos primeiros postos de gasolina em que parei na minha viagem. Acho que ele digeriu um pouco a ideia da minha aventura neste tempo, porque seu olhar não denunciava mais surpresa, medo ou crítica, só uma inquestionável curiosidade, que alimentava a minha verborragia. Uma, duas, três garrafas de vinho, e eu já estava contando para ele a minha desventura, o que hoje eu penso ter sido um erro grave. Não contava um único ponto a favor no meu baixo escore. Mas ele ia escutando com um jeito sincero, sem exagero, ironia ou afetação, e eu me senti mais à vontade do que deveria. Não resisti à tentação e perguntei pela aliança.

- Dentro de uma caixa, na gaveta do banheiro, até que o tempo decida se ela volta para o dedo ou segue para outro destino.

Era mais do mesmo. Um casamento empedernido. A meia idade se aproximando, nenhum filho, e uma sensação de que talvez o melhor ainda esteja por vir, mas, sem o que ele chamou de “recuo tático”, jamais saberia. Havia uma sinceridade acintosa nesta explicação, o que quase me fez me solidarizar com a mulher dele.

O fetiche que eu vinha constatando numa considerável amostra de homens de quarenta anos: as mulheres de vinte e dois. Para mim é quase pedofilia, uma vez que vinte e dois são os novos quinze. Que graça tem numa mulher de vinte e dois? (Perguntou, desdenhosa, a quase quarentona Isadora). Essa conversa tirou qualquer possibilidade de sedução. Simplesmente perdi a graça. Primeiro, porque, seja voltando para a mulher, seja se aventurando em faixas etárias menos avançadas, qualquer das opções me deixa insegura. E, se tem uma coisa que me é comum, é converter possíveis amantes em melhores amigos, “amigos irmãos”.

Marco aparentemente entrou no rol dos meus amigos. No dia seguinte, subimos o morro do Pai Inácio. E, se me permitem, não vou dizer como me saí nessa aventura. Basta contar que por poucos metros não alcancei o platô lá no alto. Também ganhei um joelho e uma mão esfolados. E isso é tudo.

  Capítulo  20   É sempre mais difícil ficar que partir. No meu flerte com Marco, decidi partir e assim me ocupar da estrada e esquecer todo o sofrimento que, do contrário, eu trataria de esboçar, desenhar e pintar em tons pastel, como era meu costume, ou em cores berrantes. Esse era o bom da estrada. Seus problemas eram todos reais. E até Juazeiro da Bahia minha possibilidade de problemas era da ordem de 500 quilômetros. Muito provavelmente, todos muito mais dignos do mecânico que do psicólogo.

Acatei a dica do veterinário do posto de gasolina, porque não tinha outra melhor, e peguei o caminho para Juazeiro. O que eu sabia de Juazeiro era muito pouco e, basicamente, equivocado. Só que fica no sertão, e lá quase nunca chove, e o povo sofre com a falta d`água, e a pele das pessoas é vincada pelo sol, do mesmo jeito que a terra é trincada e só dá cactos e árvores espinhentas.

O caminho para Juazeiro era o trecho mais longo e o primeiro que incluiu algum planejamento nesta minha viagem. Por planejamento, entenda-se meia hora de reflexão e alguma pesquisa no Google. A 40 quilômetros de Itaberaba, alcancei uma cidade bem simpática, onde parei para almoçar. Cheguei ali por uma estrada vicinal, pois a BR - por azar ou sorte do lugar – não passava por ela. Parei num restaurante com vista para uma serra magnífica. A indicação eu peguei no posto de gasolina. Assim, coloquei meus pezinhos no chão de terra batida do restaurante e, entre galinhas d’angola, pavões e calopsitas, devorei uma picanha inesquecível, servida com farofa de tripa.

Sim. Foi por engano. No cardápio ela estava como “Especial do Marotão” e nada mais. Mas, depois de servir de tatame para uma contenda entre o peristaltismo do meu esôfago, em seu esforço de fazer fluir aquele bolo sufocante no sentido natural, goela abaixo, e a ânsia inútil da minha consciência enojada, tentando a todo custo colocá-lo boca afora, resolvi relaxar, deglutir e, porque não dizer, fruir aquela refeição exótica. Se eu estava na estrada e se, na oportunidade, farofa de tripa fosse o que “tem pra hoje”, melhor seria encarar de uma vez. E estava uma delícia. Não ficou melhor porque eu achei por bem perguntar “tripa de quê?” para o garçom. Ideia mais infeliz. Ele respondeu na bucha: “de porco”. Creio que se ele tivesse dito “de suíno”, o trauma seria menor, ainda que fosse a mesma coisa. Conta paga, selfie para o Facebook com a serra da cidade ao fundo, parti sonolenta depois desse almoço nada frugal.

- Bora, Dona Maria! - Piiiiiii... - Sai da pista, mulher! Eram meus fãs da estrada - como sempre, apressados - enquanto eu fazia o melhor que podia, a 60 quilômetros por hora, naquele calorão que distorce quase tudo

que se move no asfalto, que, por sinal, era bem sofrível. Andei mais uns 260 quilômetros na 407. Se eu estava lendo direito o mapa, chegaria a Juazeiro no dia seguinte ou nos próximos dez, pois já era noite e decidi parar na primeira cidade a que chegasse para procurar um lugar para dormir.

Quando eu digo “lugar”, é porque àquela altura eu tinha deixado definitivamente para trás o conceito de hotel. Uma pousada de família e lençóis limpinhos já seriam mais que suficientes para o meu nível de exigência daquele momento. Cheguei à noitinha a uma cidade que me pareceu bem conveniente para pernoitar, principalmente porque estava enfeitada de bandeirolas e havia uma animação geral: gente na rua, música e cheiro de churrasco. Não precisei baixar o vidro do carro muitas vezes para descobrir que só havia uma pousada mesmo e, nela, ficar sabendo que não havia mais nem sombra de vaga.

- Não tem, dona. Estou dizendo... – repetiu pela décima sétima vez a moça da recepção. - Eu fico em qualquer quarto, não sou exigente – insisti em vão. - É que hoje tem argolinha, amanhã tem vaquejada e o pessoal chega das outras cidades e fica por aqui. Se a senhora quiser, posso botar uma rede na varanda. A senhora só vai pagar mesmo se tomar o café da manhã, quinze reais. - Fechado. Mas preciso de um banho.

Essa era a questão: não havia banheiro disponível àquela hora, ou então foi sacanagem dela mesmo. Só sei que em questão de minutos me vi tomando banho no quintal, tirando água de um tanque de amianto com uma caçarola amassada, entre lençóis pendurados nos varais, que deixavam meu desconforto um pouco mais reservado. Também havia uma plateia bem interativa de galinhas chocas, perus e um cachorro, me fazendo uma companhia que não pedi. Essa tortura levou sete longos minutos, e eu já estava tentando me enfiar, ainda molhada, numa legging jeans. Péssima ideia, mas, entre fazer a calça avançar pelos meus quadris ainda úmidos e tentar uma outra, a primeira opção parecia, em tese, mais rápida. Saí de qualquer jeito, cabelo molhado e sem batom, pela cidade animada. Andei a esmo pela praça até chegar à estrutura montada especialmente para a competição. Era um corredor comprido de barretes de madeira com um pórtico, no qual, da ponta de uma fita, pendia um aro maior que um anel e menor que uma pulseira, que os rapazes a cavalo tentavam atravessar com uma vara, já razoavelmente alcoolizados. Era até bem divertido, e, em pouco tempo, eu entrei totalmente no clima. Primeiro, me chamaram para participar de um bolão, o que me custou dez reais e não me rendeu nem um centavo. Depois o grupo me levou para um outro aglomerado, onde estavam jogando palitinho, ou porrinha, como o jogo é conhecido em todo o Brasil, exceto na Bahia. Quatro jogadores, três palitos cada e, com um pouco de aritmética básica, lógica rudimentar e uma pitada de sorte, eu teria alguma chance. Se

perdesse, teria de virar um copo borbulhante de Sprite com cachaça 51, batizado de porradinha, por causa da técnica da mistura, que envolvia uma batida do copo no joelho do preparador. Muitas, muitas porradinhas mais tarde – porque eu não sou boa de conta – e minhas chances de sair sóbria dali ficavam cada vez mais remotas.

- Vinte e sete! – eu gritava empolgada. - Como, criatura? No início do jogo, só havia doze palitos! - Detalhe, detalhe...

E, assim, quando num golpe de lucidez me vi em cima de um cavalo, com uma vara na mão, me dei conta de que tinha bebido demais. Ao meu redor, um ruído distorcido: vai, vai, vai! Eu estava mais acima do chão do que deveria, montada num ser vivo com vontade própria e sem cinto de segurança. Travei. O cavalo pareceu solidário e só mexia mesmo o rabo, até que um imbecil qualquer, no meio da multidão, resolveu açoitar o animal, que saiu desembestado corredor afora. Gritei feito uma louca, empunhando a vara que, contra todas as leis da física e até da metafísica, trespassou a argolinha, me colocando no oitavo lugar do ranking da competição e me premiando com um gordo e infeliz carneiro. Eu estava tão bêbada que quase vomitei, enquanto a multidão me jogava para cima como o vocalista de uma banda de rock’n’roll. Um dos garotos, um pouco menos bêbado que eu, me tirou à força do meio da confusão, me enlaçando pela cintura, como se faz com as pessoas que perdem parcialmente o controle das pernas e do centro de gravidade, depois de muitas doses. - Nunca te vi por aqui. Você está na casa de quem? - De ninguém. A moça da pousada me conseguiu uma rede na varanda. - Eu te levo até lá. - E o meu carneiro? Eu ganhei um carneiro, quero meu carneiro. - Ele vai ser seu, vivo ou morto. Deixe que eu resolvo isso amanhã, a não ser que você queira levar ele na coleira para a pousada. - Melhor não. Eles vão me cobrar mais quinze reais por outra rede – falei rindo.

O nome dele era Vinícius, e devia ter mais ou menos a minha idade. Era um moreno bonito, de dentes perfeitos e uma pegada forte. Quer dizer, pelo menos não me deixou cair em momento nenhum, apesar dos meus muitos tropeços da praça até a pousada. Vinícius era dono da farmácia e até ofereceu o banco do estabelecimento para que eu passasse a noite. Fico imaginando a catástrofe que não seria esse livre acesso a substâncias potencialmente perigosas e irresistíveis para dormir, dor de cabeça, ressaca, gripe, dor de barriga e para bater onda mesmo, pois, àquela altura, até um comprimido de Melhoral me deixaria ainda mais louca.

Dispensei soluçando a oferta e tratei de estender, com a ajuda de Vinícius, a rede que a recepcionista deixou atrás da samambaia da varanda. Nem percebi a hora que ele saiu nem que peguei no sono e, quando acordei, tostada pelo sol das seis e meia da manhã, que naquela cidade parecia o do meio-dia, descobri que não lembrava de muita coisa da noite anterior.

Check list básico.

- Bolsa? - No lugar do travesseiro. - Carteira? - Milagrosamente na bolsa. - Evidência de sexo consensual ou forçado? - Nenhuma, por sorte. - Hematomas e escoriações em geral? - Alguns. - Ressaca? - Moral e física.

A dor de cabeça era tanta, mas tanta, que me obrigou a procurar uma farmácia. Por azar de uma mulher que gostaria de ficar invisível, a cidade só tinha uma, e era justamente a do amigo, que estava atrás do caixa, como se tivesse dormido como um justo durante a noite inteira. Meu senso de autopreservação, detectado por ressonância magnética na zona reptiliana do cérebro, deu um comando de fuga tresloucada, aproveitando que o rapaz olhava para baixo, provavelmente cuidado da contabilidade. Mas o álcool também prejudicou meus reflexos, ou os do garoto eram mais acurados, porque, ao meu primeiro movimento, ele me olhou surpreso.

- Olha só quem sobreviveu! Bom dia, Isadora. - Oi, Vinícius. Obrigada por tudo, e desculpa também. - Não tem de quê. Deixe-me adivinhar. Engov, Neosaldina e Sonrisal? - Juntos e misturados, on the rocks, please. - Bato com Sprite e 51?

Foi aí que eu descobri que nunca mais tomarei uma porradinha em toda a minha vida. Meu estômago reagiu imediatamente e todos os meus pelos se eriçaram. Era trauma. Acho que Vinícius reparou e pediu desculpas, quando viu que eu amarelei, e logo ofereceu um Plasil.

- Você comeu alguma coisa? - Não consegui. Mas tomei o chá de boldo que Jucilene, a moça da pousada, me deu. Agora já tenho até um quarto. Depois do remédio, pretendo esquecer que eu existo até amanhã e pegar de novo a estrada. - Almoça comigo?

Que bonitinho. Pelo visto os rituais de corte não mudam muito quando a gente se afasta da capital. Pela lógica, o próximo passo seria um cineminha, mas não havia cinema na cidade. Já estava declinando do convite, quando espichei o olho no que ele estava fazendo. Não era, afinal, o livro-caixa. O rapaz estava lendo As cidade invisíveis, de Italo Calvino. Aí, complicou. Eu tinha a obrigação de ficar um pouco mais. O que realmente fiz, depois de dormir oito horas seguidas em plena luz do dia.

Vinícius morava em um pequeno apartamento em cima da farmácia. Bem se via de cara que jamais um arquiteto passou perto daquela construção. Banheiro se abrindo para sala e dois longos corredores em um vão de pouco menos de cinquenta metros quadrados. Ainda assim, ele conseguiu deixar o espaço bem interessante com a decoração e, principalmente, com os milhares de livros, CDs, vinis, DVDs e um acesso rápido à internet. Uma máquina de espresso completava as minhas necessidades básicas e foi só com muito sacrifício que contive a vontade de me mudar para lá por alguns dias. Na parede da sala, muitos cartazes originais dos meus filmes preferidos, clássicos e contemporâneos, das minhas bandas favoritas e também uma bandeira do Reino Unido, que estava ali só por adequação estética e em homenagem ao rock inglês. Passamos uma tarde maravilhosa e uma noite e um início de manhã também. Vinícius era culto, porque era bem nascido, curioso e inteligente. Formou-se em veterinária em Cruz das Almas, onde se misturou entre os demais para não gerar muita especulação. Por causa do mestrado, morou entre as ovelhas da Nova Zelândia e agora passava uns dias com a família, ajudando o pai nos negócios. A atividade principal da família era a criação de gado, mas a farmácia passou de geração em geração, desde o bisavô, fundador da cidadezinha. Seus dias por lá seriam breves, e eu tive a sorte de alcançá-lo antes que ele partisse mais uma vez.

- E esse apartamento?

- Não é bem um apartamento. É minha Bat Caverna. Meu refúgio desde os dezesseis anos. Claro que tem melhorado com o tempo. Incremento esse espaço a cada viagem. Aqui eu estudo, escrevo e penso. E se eu preciso tomar uma decisão importante, se possível, venho para cá. Às vezes não dá. Mas é sempre aqui que eu gostaria de estar nesses momentos.

Na Bat Caverna de Vinícius eu passei quase uma semana, assistindo clássicos em Super 8, fazendo pão de queijo, discutindo literatura, recitando Fernando Pessoa, lendo Poe, até que chegássemos, os dois, à conclusão de que era preciso partir. Sem qualquer tipo de cobrança ou ressentimento. Ele voltaria para defender a tese na Nova Zelândia e também para encontrar uma noiva que deixou por lá. Eu, por outro lado, não estava pronta ainda para nenhum compromisso mais sério, o que tornou a nossa separação consensual, leve, mansa e pacífica.

Antes de pegar a estrada, porém, fui até a fazenda da família, onde ele me ensinou a arte da ordenha. Foi um vexame que nem merece ser narrado. Passamos no curralzinho que agora abrigava um novo morador, o meu carneiro, obtido com brilho no jogo de argolinha. Batizamos o bicho de Tarantino, porque compartilhávamos da mesma afinidade pelo diretor.

- Jure que não vai matar o bichinho. - Juro. Vou mandar fotos constantemente. Me prometa também que nunca mais vai competir nem no palitinho, nem na argolinha. - Trato feito.

Tarantino era um ovino deslanado, bem rústico mesmo, de uma raça chamada Santa Inês, muito encontrada no sertão. E, entre nós, virou uma espécie de laço, que perdurou até outro dia. Vinícius me ajudou ainda na revisão dos detalhes do carro para a viagem. Passamos a noite inteira acordados, nos despedindo daqueles dias maravilhosos e inesperados. No dia seguinte, parti.

Capítulo  21  

Tratei de me convencer de que eu estava chegando a Juazeiro com zero de expectativa. Portanto, as lágrimas que eu copiosamente chorei na chegada, à mera visão do Rio São Francisco, não se adequavam ao meu propósito e tiveram de ser enxugadas, sem apelação. Eu tinha um telefone de uma cooperativa de produtores de frutas e decidi que ligaria, depois que já estivesse me sentindo em casa. E, ó meu Deus, era quase isso. A primeira cidade com shopping decente na minha viagem e com a vantagem de estar a apenas uma ponte de distância de outra cidade ainda maior, e com todas as comodidades que povoavam meus sonhos nos últimos quilômetros.

Meu cartão de crédito estranhou a intensa atividade a partir dessa primeira descoberta. Já não era sem tempo. Mesmo não tendo mais a voracidade por compras de outros tempos, fiz aquisições bem interessantes e derrubei de cara uns dois ou três preconceitos de urbanoide. Comer sushi no sertão, com um pequeno toque de neurose, foi um portal místico para voltar à minha vida convencional. Tomar espumante completou a mágica.

Juazeiro tinha seu charme, mas a brisa cosmopolita que soprava vinha mesmo era da outra margem do rio. Petrolina, com sua orla cheia de arranha-céus contrastando com antigas mansões, sua igreja neogótica de gosto duvidoso e um comércio bem estruturado. Principalmente perto do que eu vinha vendo até então.

Estacionei o carro na rua e andei a pé, ida e volta, por toda a extensão da orla da cidade. Estava bem ansiosa por descobrir o que Juazeiro e Petrolina reservavam para mim. Fiz uma pose para o Facebook no Vaporzinho, o Vapor Saldanha Marinho, primeira embarcação alimentada por lenha a navegar o São Francisco.

Há pelo menos duas versões sobre sua origem. Uma diz que foi construído nos Estados Unidos, onde navegou por muito tempo no rio Mississipi. De lá, na segunda metade do século XIX, foi conduzido ao Brasil. Percorreu o Rio Amazonas, depois foi desmontado e, entre carros de bois e trens, chegou por volta de 1852 a Minas Gerais. A outra versão atribui o projeto do Vaporzinho ao engenheiro Henrique Dumont, pai de Santos-Dumont. Ele e muitos outros navios gaiola tiveram seu período áureo no transporte de cargas e pessoas desde o tempo do Império e ainda por muitas décadas até serem sucateados ou queimados. O Vaporzinho trabalhou até por volta de 1970, depois fez freela de pizzaria, bar, restaurante, até virar um monumento querido, mas meio decadente, em terra firme.

Bem que eu queria respirar um pouco daquela atmosfera histórica, mas o mais profundo que poderia chegar era o roteiro turístico do Vapor do Vinho, que de vapor não tem mais nada. Um gaiola a diesel que sai todo sábado do porto Chico Periquito, em Juazeiro e, após duas horas de navegação, chega à eclusa do lago do Sobradinho, onde o navio sobe quase quarenta metros em um verdadeiro elevador líquido, até chegar a um dos maiores lagos artificiais do mundo.

Eu queria ainda mais era visitar as vinícolas e provar dos vinhos jovens do sertão da Bahia. Para fazer meu “Sideways” particular, montei o look com umas pecinhas navy garimpadas na Renner e na Hering de Juazeiro, embora no fundo, bem fundo do meu coração, eu quisesse vestir um longo vestido com anáguas, laços e chapéu, bem ao estilo Louisiana século XVIII.

Caí um pouco no óbvio, mas foi o melhor que consegui naquele momento. Sabia que havia maravilhas artesanais em renda, couro, fuxico e outras artes, o que eu deixaria para comprovar depois. Só pude complementar meu look camiseta listrada azul e branca e jeans claríssimo com meu clássico Ray Ban Havana, e arrematei a produção com a única peça realmente digna que eu trouxe na viagem, uma linda pashmina puríssima, cor de teia de aranha.

Cheguei na hora e no local combinados para a partida e foi só então que eu descobri que nem Mississipi, nem blues. A função do Gaiola poderia até ter mudado, mas a essência era basicamente a mesma: uma embarcação popular, com pouco ou nenhum conforto, além de diversas redes penduradas. Disseram que teria som ao vivo, o que já me fez desconfiar, e a certeza da roubada só se deu quando avistei o tecladinho de churrascaria cinicamente instalado no convés. Seria um luxo, se fosse sanfona, triângulo e zabumba, mas isso era o lado vintage do forró, em desuso desde que eletrificaram o trio nordestino em algum lugar rico do interior de São Paulo e deram um microfone para um mauricinho de gel e camisa Armani Exchange cantar.

Eu parecia um pequeno farol listrado no meio do grupo. Sim, era um grupo, e bastante heterogêneo. Havia os extremos e os neutros. De neopentecostais a travestis e, entre eles, uma massa amorfa de donas de casa, comerciantes, advogados e contadores. A viagem sinalizava que ou seria muito divertida ou traumatizante. Como eu estava totalmente aberta ao que ocorresse, decidi que iria me divertir como nunca e assim foi.

Sentei sozinha em uma mesa e experimentei a primeira taça de espumante. Já deixei bem claro que não entendo de vinhos, portanto não vou tentar enganar ninguém descrevendo suas nuances e outras informações, que eu de coração não detenho. Só sei que era bom e que eu alternava sem escalas entre o brut e o moscatel, e, quando vi, já estava dançando forró. Ou melhor, atentando contra a integridade de um senhorzinho de quepe, que graças a Deus não era o comandante. Foi aí que aconteceu a coisa mais estranha. A música mudou, e eu reconheci, em meio aos arranjos forró-techno-brega, os acordes familiares de I will survive. E a letra era mais ou menos assim:

Achei que ia morrer, mas não aconteceu.

Passei a minha vida inteira achando que você era meu. Que tola que eu fui. Tão cega que nem sei. Como não percebi que você era gay? Pegou a minha legging e o meu batom Disse que perna depilada é que era de bom tom Achei tudo estranho Mas nem desconfiei Até a aquele dia em que eu te flagrei Agora tô curada e você tá feliz Botou silicone e operou o nariz. Até mudou o nome, Cansou de Joaquim Agora se chama Kelly e virou drag queen. Vai, Kelly, vai! Vai, que ele vai! Hey-hey!

E isso da boca da drag mais tosca que eu já vi na minha vida. Mas ela notou minha pashmina e, como se para confirmar a enorme atração que eu exerço sobre as “garotas” de peito e pinto, a moça mandou um psiu.

- Quem, eu?

- É! Você mesma, bonita! Chega aqui.

Olhei para os lados procurando o bote salva-vidas, mas não teve jeito. Waleska Veruska me puxou para o palco. Queria que eu a acompanhasse na performance, mas, para entrar no clima mesmo, precisei de outra taça do moscatel. E como a música era familiar, e a letra era a minha biografia não autorizada, não me custou nadinha aprender a cantar na mesma hora. Waleska laçou o tio do quepe com minha echarpe e ele também

entrou na dança. Aliás, o barco inteiro. E as duas horas passaram voando, ao contrário da minha tontura.

As “meninas” explicaram que aquela era uma brincadeira do comandante, que resolveu que nos próximos meses as viagens seriam temáticas. A minha, nem precisa dizer, que homenageou o cinema: A gaiola das loucas. Antes de irmos para a vinícola, passamos por uma fazenda de produção de manga e uva. O Vale do São Francisco é o maior produtor mundial dessas frutas. Dito assim, agora, até que para mim era fácil imaginar aquela Califórnia no sertão nordestino, que seria impossível anos atrás. O Vale era uma benção do São Francisco, mas um milagre da irrigação.

Fomos conhecer a packing house da fazenda, onde as mangas eram selecionadas e classificadas de acordo com o teor de açúcar e o tamanho exigido por cada mercado comprador ao redor do mundo. Antes de entrarmos no balcão, nos desinsetizaram, passamos por uma cortina de ar, e ainda tive de me vestir com uma capa especial e touca de cabelo. Jamais imaginei que houvesse tanto protocolo para uma coisa dessas.

- É uma exigência de alguns países para evitar, por exemplo, que uma doença ou uma praga daqui pegue carona com a carga - explicou o gerente da packing house. Disse ainda que países como o Japão, onde não existe a mosca-da-fruta, que é a responsável pelo bichinho asqueroso da goiaba, exige um tempo de quarentena, além de uma desinfecção especial das frutas.

- A manga é mergulhada numa solução de água e cal aquecida até alcançar uma certa temperatura no caroço, que garante que nenhum ovo ou larva sobrevivam.

Ó céus, até deixar a capital, eu achava que meus problemas eram complicados. Depois dessa fazenda, passamos numa outra, onde fica a vinícola na qual são feitos os espumantes mais famosos do Brasil. Mas eu já havia tomado a minha cota máxima de álcool e me restringi a aprender como se abre uma garrafa de vinho com um sabre e prometi a mim mesma que jamais tentaria fazer aquilo em casa. O dono da vinícola em pessoa me deu um cartão, que eu guardei, com alguma esperança de que fosse útil em minha temporada sertaneja.

Meu hotel era bem razoável, e aproveitei a internet gratuita para checar meus emails e dar uma olhada nas redes sociais. Uma delas agora fazia perguntas muito estranhas. “Como está se sentindo, Isadora?” ou “Como está sendo o seu dia, Isadora?” É o tipo de abordagem atenciosa. Conheço algumas mulheres que casariam com um

cara se ele tivesse a capacidade de demonstrar tamanho interesse pela subjetividade delas.

Fiz um álbum Vale do São Francisco no Facebook, sem o menor cuidado em escolher muito que fotos postar e muito menos de usar qualquer tipo de filtro, desses que deixam as pessoas mais bonitas em tons de sépia. A repercussão foi rápida. O Vapor do Vinho, programa bacana só para iniciados, tem muito potencial.

Nos e-mails, uma segunda notificação sobre o divórcio. Desta vez, assinada por um juiz. Cheguei à conclusão de que, pela primeira vez na vida, eu precisaria pagar para alguém me defender. Minhas amigas viviam fazendo isso de graça, mas nenhuma era advogada. O juiz me dava um prazo de 30 dias para que eu me manifestasse. Que audácia de Théo! O primeiro processo da minha vida era um pedido de divórcio. Escapei ilesa por mais de uma década de redação. Enfim, como tudo o que faço, esse problema só seria pensado no dia seguinte, porque quem também se manifestou por email, pela segunda vez, foi Ted Lessa, o editor.

Isadora, minha cara.

Já se passou um tempo desde o meu primeiro contato. Creio que você teve chance para pensar no assunto e espero que também tenha decidido por me encontrar. Diga-me, por favor, onde acho você. Minha última oferta. Att. TL

Engraçado que nenhum desses e-mails me dava alternativa. Mas, pelo menos, o de Ted Lessa me enchia de boas expectativas. Não fazia a menor ideia do senso de urgência do sujeito, até ele propor o encontro para dali a dois dias. São Paulo/Recife/Petrolina. “Tenho uma reunião importante marcada para amanhã”, justificou. Combinei com ele de encontrá-lo em Petrolina, no Maria do Peixe, onde, conta a lenda, se serve o melhor surubim do mundo. Eu, que abandonei a agenda meses atrás, corri contra o tempo para organizar algumas coisas para o meu primeiro almoço de negócios em muito tempo.

Não importa onde você esteja, em ocasiões como essa a primeira pergunta é sempre “com que roupa eu vou?” Então concluí que eu era uma viajante sem qualquer

estilo, e gostaria de transparecer algum para alguém que, segundo me disse, gostava do meu estilo. De escrever, pelo menos.

Dirigir de vestido ou saia na autoestrada não é nada funcional. Mas calça, quando se atravessa o sertão, é quase uma penitência. Confesso que andei usando bermuda muito mais do que recomendavam a elegância e a idade. Optei por um jeans de corte reto, camiseta de malha branca folgadinha com manga ¾ e um paletó de linho azul claro. Além disso, bracelete de prata e brincos de brilhante que já haviam colado à orelha, de tanto tempo que não os trocava. Eis a escolha que fiz.

Que delícia o prazer de me vestir como num dia de trabalho qualquer. No prédio da editora da minha ex-revista empregadora, havia várias outras redações de publicações completamente diversas. E os estilos das pessoas que trabalhavam ali se adequavam ao perfil de cada publicação, o que dava à lanchonete do prédio a impressão de uma babel colorida. Repórteres e editores das semanais hard news, invariavelmente de terno, e isso valia para meninos e meninas, ou de tailleur, para as garotas ainda mais conservadoras. Na revista adolescente, reinavam as sobreposições coloridas, shorts curtíssimos sobre meias-calças furadas, brincos de plástico fluorescentes e coisas do gênero. Na revista esotérica, o tie dye era uma obsessão.

Nas revistas de moda mais graduadas, para um público trinta e mais, eu não conseguiria definir um estilo, já que seguiam a tendência da estação, o que muitas vezes extrapolava qualquer bom senso. E, céus! Na minha revista, a Corpo Perfeito, pelo menos as malhas de ginástica não entravam em cena. Em contrapartida, toda e qualquer roupa deveria mostrar que se você escreve sobre boa forma, necessariamente deveria estar assim.

Não creio que eu ainda caiba em qualquer das minhas antigas roupas de trabalho. Mas, em Juazeiro/Petrolina, encontrei o que precisava sem grandes problemas. Meu provável futuro editor era um sujeito baixinho e troncudo. Apesar de se vestir de um jeito um tanto ultrapassado, leia-se calça de pregas, camisa arregaçada, valise e – tive de me conter para não rir – porta-óculos preso ao cinto, tinha uma expressão bem jovial.

Sentamos numa mesa com vista para o São Francisco, e falamos um bom tempo sobre amenidades. De alguma forma, essa era a primeira pessoa que me dava algum crédito em muito tempo. Eu nem tinha ideia de como funcionava o mercado editorial, direitos autorais, royalties e nada do gênero. Mas, com uma ajudinha do meu novo contratante, fui me familiarizando no decorrer da conversa.

Já contava muitos pontos o fato de eu estar sendo procurada, e com tanto empenho, pelo próprio editor, enquanto a maioria dos candidatos a escritores publicados tinham de aguardar um mínimo de seis meses por uma resposta, após mandar o original. Ele fez muita questão de deixar isso claro para mim, o que me apavorava muito mais do que deixava lisonjeada. Lessa me explicou a razão da deferência.

- O pornô light é a nova autoajuda, Isadora! Queremos explorar este nicho, mas com um toque de requinte e ironia, e como você está solteira na estrada, à mercê de tantas, digamos... possibilidades nesta viagem libertária, achamos que é pule de 10. Decidimos apostar, claro, se essa também for a sua vontade.

Lessa não me faria essa mesma proposta se soubesse que as possibilidades que a estrada me traziam de fato eram de uma boa hérnia de disco. Mas também não declinei. Antes de mais nada, deixei claro que, se era para escrever um livro autobiográfico, muito provavelmente ele seria de uma imensa monotonia sexual, bem maior do que eu esperava que fosse. Não iria me tornar uma ninfomaníaca só para apimentar a rotina de peruas desiludidas.

O interesse dele por mim era, pelo visto, bem maior que o meu próprio. Ele me deu um ano de carência para que eu entregasse o livro, além de um bônus considerável em dinheiro para ajudar a me sustentar enquanto isso. E tudo o que eu precisaria dar em troca, em um primeiro momento, era uma sinopse bem argumentada em trinta dias. Selamos o contrato com uma dose de aguardente orgânica da região, por sugestão do garçom, quando eu pedi uma tequila.

Capítulo  22  

-

Juro, Bia! Vou morar em sua estante.

Eu tentava acalmar minha amiga ao telefone, pois a viagem já demorava bem mais do que ela cria ser possível. Beatriz não estava lá muito animada com a novidade, e cheguei mesmo a pensar que uma pontinha de ciúme estava aparecendo. Mas eu estava enganada. Na verdade, havia saído para jantar com Theo na noite anterior, e a coisa não foi boa.

- Casadinhos, amiga. Mãozinhas dadas o jantar inteiro.

- Perguntou por mim alguma vez? - Só como ele poderia fazer para que uma carta física, registrada, chegasse em suas mãos. - E você? - Ah, eu disse que não tenho a menor ideia, e não menti. No seu caso, só e-mail, detetive particular ou Facebook. - E o que ele contou? - Alugaram um flat, mudaram e fizeram um open house. - Ao qual, obviamente, você não foi...

Beatriz silenciou constrangida e eu passei para outros temas, com um nó na garganta. Amigos são o espólio mais disputado nas separações. Eu não tinha dúvida de que Bia, decididamente, estava selada para sempre com um post it escrito ISADORA, e seria capaz de rosnar contra qualquer um que ousasse mencionar levá-la para o seu time. Ela tentou me convencer de que, na verdade, foi sondar o território e no fundo eu sabia que não passava disso, mas não pude conter o meu despeito.

De novo, o que ela me contou foi que Theo parecia mais feliz do que jamais esteve. Mais leve, solto e até mais bonito. Era difícil encarar o fato de que ele era mais feliz sem mim, mas consolava um pouco saber que, pelo menos, era mais feliz agora do que com qualquer outra antes de mim.

- E, afinal, se está tudo tão bem agora, por que ele quer meu endereço fixo? Discutir a relação tantos quilômetros depois não faz o menor sentido - eu questionei, buscando de alguma forma me sentir ainda importante para aquele homem com quem eu convivi por tantos anos, e que agora me parecia uma enorme interrogação.

- Na verdade, Isa, ele entrou com uma liminar para acelerar o processo de divórcio. Vocês construíram um patrimônio interessante, e ele quer usufruir do que é dele. - Nunca, nunca mesmo. Nem que eu dirija até a Antártida! - Não entendo você, Isadora. Você fugiu da cena, sumiu na estrada sem dizer para onde iria... já era tempo de superar essa. A melhor maneira de aceitar os fatos é assinando logo o divórcio e virando a página. - Não, assim, tão fácil, amiga. - Tenho de desligar. Um beijo. Pense bem, e me ligue de sua próxima parada.

Apesar da vontade de esganá-la com as duas mãos, entendi a intenção de Beatriz. Ela é avessa aos adágios, aos minutos de sabedoria e outras pérolas, mas, volta e meia, diz que para tomar vinho num copo de água, primeiro se tem de jogar a água fora. Por hoje, e pelo próximo século, só água destilada e vinho envelhecido por longos anos em barril de carvalho.

A boa notícia é que, com o contrato selado com a Self Editora, eu não precisaria mais trabalhar, a menos que fosse como laboratório.

Capítulo  23  

Entre Petrolina e Juazeiro há bem mais que uma infinidade de litros de água. Há pelo menos um motivo para tirar o fôlego de alguém, mesmo que pouco dotado de sensibilidade. Há uma imensa ponte de concreto, metáfora protendida de um acordo falido. A mesma ponte que une, evidencia as diferenças. Cidades irmãs e rivais. Cada um dos povos zelando por sua imagem, disputando quem é o mais moderno, o mais tradicional, o mais bonito.

Quando cheguei lá, a ponte estava em obras. Duplicada na metade que cabia a Petrolina e inacabada no que tangia a Juazeiro. Pode ser piegas, mas não tive como não pensar no meu casamento com Theo. Nada mais que uma ponte que já não dava conta das suas funções. Os esforços em melhoria não foram equilibrados nem suficientes para manter o fluxo dos passantes e dos residentes, mas ela continuava lá, em sua monumentalidade, como uma instituição sólida, mas decadente.

Foi na ponte Presidente Dutra que vi Maurício, registrando ao pôr do sol a volta dos pescadores. Já devia estar há muito tempo nessa tarefa, pois tinha o nariz mais vermelho do que o que seria recomendável a um catarinense já chegado aos 30. Seu aspecto era de quem precisava de um banho e um misto-quente, mas havia algum charme naquela coisa meio desgrenhada. Percebi que sua passagem me desconcertou, o que era prova suficiente de que eu me interessei pelo rapaz, que perguntou se poderia fazer uma foto minha. Assim, sem mais? Me lembrou os pintores e caricaturistas de plantão nos monumentos históricos mundo afora, que sempre me deixavam algumas moedas mais pobre a cada elogio, mas ele só queria mesmo testar uma lente nova, naquela luz dourada.

Checou o fotômetro, ajustou o foco em modo manual e disparou uma rajada de fotos, sonorizadas pelo enervante abrir e fechar do diafragma da máquina. E eu, que só precisava naquele momento do tal elogio, me senti completamente violada por um desconhecido. Ele encostou a câmera bem perto do meu rosto e sorriu meio Kurt Cobain, em uma mistura de criança indefesa e placa de Proibido ultrapassar. Estava trabalhando para uma agência de notícias internacional numa matéria “meio barra pesada”, segundo me falou. Não era de muitas palavras e, apesar do riso e do olhar expressivo, era econômico em gestos. Levava duas máquinas. Numa delas, fotografava ainda com filme. - A digital pode ser rápida, pagar minhas contas e ainda fazer um bom trabalho. A analógica não me dá essa chance. Tem sempre a espera. Se eu acertar, ela retribui, me entregando duas boas histórias, o fato que gerou a foto e a própria revelação. Tem a química, o quarto escuro, o varal e o cheiro do revelador. São dimensões ocultas que só a tradição dá. Falou isso sem parar de trabalhar. Se eu tivesse sumido dali naquele instante, talvez nem se desse conta.

Meu alarme anterior ao alarme de cilada soou um tic-tac familiar. Já vi muitos caras performáticos, cheios de frases. A que havia acabado de ouvir certamente seria só mais uma e, ainda assim, desconsiderei o alerta e fiquei por perto, acompanhando a uma distância segura o movimento do fotógrafo, registrando solenemente uma série de rostos anônimos, que muito provavelmente jamais saberiam se ficaram bem ou não na foto. Maurício me deu um cartão e eu anotei meu número de celular em um papel qualquer, que entreguei a ele. Diante de nenhuma previsão de um convite, resolvi eu mesma chamar o garoto para um café.

- Sabe o que é, eu marquei uma entrevista com o delegado para o início da noite. Uma parada meio confidencial, saca? Não é um ambiente muito recomendável para uma mulher, muito menos como você - ele desconversou, para emendar em seguida que pararia na cidade por dez dias.

- Se você não tiver ainda um compromisso melhor, e o convite estiver de pé, a gente podia se ver um dia desses.

Fiquei muito mais interessada no trecho da frase em que ele disse “muito menos como você” do que pela contrapartida dele para um novo encontro. Como assim, como eu? Bonita como eu; velha como eu; fina como eu; careta como eu? Não devia ser nada de mais, mas pelo menos agora eu tinha uma charada para decifrar, que não fosse o longo, e às vezes entediante, “eu, por mim mesma”, que a estrada me proporcionava.

Separei mentalmente o look para aquele dia que nem havia sido marcado. Nem tão básica, de jeans e camiseta, nem tão séria, de vestido chamise. Agora, eu havia reconstituído um razoável guarda-roupa, e podia até me dar o luxo de escolher, ao contrário de quando pequei a BR.

Confesso que fiquei meio decepcionada de ter de adiar uma provavelmente agradável hora de conversa, pontuada por frases charmosas e vazias, que ia me deixar morrendo de saudade de minhas amigas da polis e de nossas aparições nos vernissages mais badalados. Eu já estava há tempo demais em estradas monótonas e cidades prosaicas para deixar passar uma chance de um bom papo com alguém que viesse do mesmo planeta que eu. O planeta Paranoia, onde todas as redações da galáxia estavam localizadas.

Capítulo  24  

Deixei o garoto cuidar da pauta dele e fui procurar uma para chamar de minha. Rodei a esmo toda a cidade, como de resto tinha feito todos os dias, desde que caí na estrada. Visitei a igreja, almocei na orla e planejei uma ida a Petrolina no dia seguinte. O calor da tarde me deixou entorpecida e, num lapso em meu sistema de alerta, devo ter dormido sentada em um banco de cimento em frente ao São Francisco, porque acordei sobressaltada, quando alguém pôs a mão em meu ombro. Olhei em contra-plongée aquela face conhecida, meio deformada pelo ponto de vista em que o observava agora. De baixo para cima, a visão de Theo naquele cenário tão pouco provável parecia mais uma revelação. Um arcanjo vingador, de espada em punho. Precisei esfregar os olhos, ajustar o foco para concluir que não estava vendo coisas. Ele viajou 700 quilômetros para me encontrar, sem qualquer aviso, quebrando totalmente seus padrões de comportamento, que passam longe do imprevisível e consideram sempre de péssimo tom tudo que é surpresa, ainda que seja boa.

- O que você está fazendo aqui, Isadora? - Eu que pergunto, o que você faz aqui, Theo?

Naquela hora, percebi que havíamos chegado ao ponto que eu mais temia. O momento das explicações. Eu percorri quilômetros para não ter de enfrentar isso, e ele, embora tivesse saído meio estabanado naquela quinta-feira fatídica, se sentia devedor de uma última DR.

- Isa, você não é mais criança. Precisa enfrentar as coisas, conversar. Eu sei que magoei você, mas eu não podia mais viver daquele jeito, sufocado, fingindo. Pode parecer clichê, mas o problema foi comigo. Me vi apaixonado inesperadamente por alguém, tentei evitar, mas não deu. - Alguém é muito inespecífico, Theo. Você se apaixonou e se envolveu com um homem, e por acaso ele é o seu melhor amigo. - Que diferença isso ia fazer para você? Eu te conheço o suficiente, Isadora, para imaginar o inferno que seria minha vida, se por acaso eu tivesse trocado você por outra mulher. Alguém a quem você pudesse se comparar em todos os atributos - Isso era verdade. Já havia considerado essa hipótese antes. - Mas eu amava você, Theo, de verdade. Acho que merecia um pouco mais de consideração. - Isadora, eu saí de casa pouco tempo depois de as coisas terem acontecido, acredite. - Invertesse a ordem. Saísse de casa antes, e do armário depois!

Theo riu. Eu também não resisti.

- Isa, imagina a cena. Eu te dizendo que achava que estava tendo sentimentos em ralação a Júlio. Depois, pegava as malas, saía de casa e fazia uma ligação para o próprio, comunicando minha descoberta e minhas intenções. Isso não existe em plano nenhum fora da literatura ou do cinema - ele disse isso com as mãos espalmadas em cada uma das minhas bochechas.

Eu sabia que ele tinha razão. Surpreendentemente, demos um longo abraço, doído e sincero. De alguma maneira, me senti melhor. Passamos a tarde rindo, tomamos cerveja na beira do rio. À noite, fomos ao Maria do Peixe, e Theo ficou encantado. Jamais concebia qualquer requinte ou charme fora de uma grande cidade. Ele estava hospedado em outro hotel, mas passou a noite comigo, conversando. Dormimos abraçados e bêbados, e só isso. No dia seguinte, tomamos café da manhã juntos e passeamos de mãos dadas pela cidade.

- Volte comigo para a capital, Isa. Meu voo sai às quatro da tarde. A gente providencia uma transportadora para levar seu carro.

Pensei um minuto. Me vi apertando os cintos no avião e disputando com ele a revista de bordo, como fizemos tantas vezes. Revi o caminho de casa, a portaria do prédio. Senti o cheiro de fechado do meu apartamento poente, agora tão distante. Refiz o caminho de volta, tendo à minha frente o asfalto numa perspectiva de letra V

invertida, com as faixas brancas centrais passando rapidamente em minha direção, como em um filme de David Lynch. Eu gostava daquilo.

Ao contrário de Theo, era a surpresa que me atraía. O inesperado. Os tipos que encontrava e que por um ou dois dias fariam parte da minha vida para depois, em sua maioria, passar, como as placas da lateral da rodovia, para sempre. As paixões ardentes, de uma semana de eternidade, quando muito. Ainda não era a hora de deixar a estrada, eu sabia disso. Abracei longamente o meu amigo amado.

- Vamos lá, passe para cá - eu disse. - Passar o quê, Isadora? - O documento. Eu assino.

Ele ensaiou dizer que não havia sido por isso que foi até Juazeiro para me encontrar, mas, antes de qualquer palavra ou gesto, lembrou de respeitar, se não a minha inteligência, pelo menos o meu feeling aguçado.

Ele me deu o papel. Eu fiz charme com a caneta. Fazia que assinava e parava. E, no fim das contas, assinei. Theo guardou aquela lauda com solenidade, num envelope de papel cartão grafite. Estava meio constrangido, me abraçou forte e chorou.

- Obrigado, Isa. Eu amo você. Sempre amei e agora amo ainda mais.

Não contive as lágrimas.

- Vá embora logo, antes que eu desista - brinquei.

Eu senti o peso daquele dia quente. As chuvas não tardariam, era o que vinha ouvindo falar a cada parada. Atravessamos no meu carro a ponte até Petrolina, e parei no aeroporto. Não entrei com ele. Decidimos que seria melhor assim. Quanto a mim, eu ainda tinha muito chão pela frente.

CATARINA GUEDES é jornalista, nascida em Salvador (BA), em 1974. Depois de passar por diversas mídias impressas e eletrônicas, como repórter ou editora, dedicou-se à assessoria de Comunicação com ênfase na agricultura e nos assuntos ligados ao campo. Isadora, sua Camisola La Perla e a BR é o seu primeiro trabalho literário voltado para o público jovem e adulto. Para crianças, é criadora do personagem Alaor, o Agricultor e diversas publicações independentes.
Isadora para a KALANGO EDITORA REVISÃO FINAL (P PAULO ANDRE)

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