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O Amor é seu Destino Mary Burton
by Mary Taylor Burton Título original: Rafferty's Bride
A vingança era sua missão. O amor era seu dever. América do Norte, 1866. Nenhuma mulher conseguira despertar um desejo tão intenso em Travis Rafferty quanto a enfermeira da guerra civil, Meredith Carter. Ainda assim, quando ele tentou escapar do campo de prisioneiros, ela o traiu. Agora, anos depois, o desejo de vingança o levava de volta ao Oeste. E desta vez, Meredith não escaparia... Meredith precisava convencer Travis de sua inocência. Mas como poderia fazê-lo se reagia de forma tão intensa à sua proximidade? Cuidar de seus ferimentos e ficar com ele era a única maneira de demonstrar seu sentimento e provar que jamais seria capaz de traí-lo, pois, se fizesse isso, estaria traindo seu próprio coração.
PRÓLOGO Prisão Libby, Richmond, Virgínia, fevereiro de 1864 Quando menino, Travis Rafferty não fora o melhor ladrão das ruas de Richmond, mas, por algum tempo, conseguira viver como tal. Até o dia em que o xerife o apanhara e o levara direto ao posto do Exército da cidade, dizendo-lhe que a vida na caserna era o que mais precisava para aprender uma lição. Aprenderia a viver como homem, a ter um sentimento de honra dentro de si, e ganharia treino em paciência, querendo ou não. E, para sua própria surpresa, Travis assimilou a estrutura e a disciplina das armas, tendo, pela primeira vez desde que nascera, o conforto de uma cama quente e refeições regulares. Sua mente, faminta de conhecimentos como seu corpo magro de alimentos, aprendera depressa tudo o que lhe era oferecido como lição. E acabou por descobrir talentos até ali ocultos em sua personalidade, além de ter acesso às letras, que até os treze anos desconhecia por completo. O Exército acabou sendo sua família, e moldou o homem no qual viria a se transformar. Aos trinta e dois anos, já era capitão, muito respeitado por seus subordinados e gozava de uma reputação invejável em Washington. Sim, o Exército fizera maravilhas por Travis. Mas não o ensinara a suportar a situação de ser prisioneiro de guerra. Agora, tamborilava os dedos contra a madeira do piso, esperando que mais algumas longas horas se passassem. Nove ao todo. O sol começava a se pôr, e seus raios ama-relo-alaranjados filtravam-se através das barras de ferro, projetando-se para dentro da cela, onde se encontravam mais ou menos cinquenta soldados da União, em farrapos e famintos. Alguns dos colegas de armas de Travis encontravam-se sentados junto ao barril de água, outros escondiam-se pelos cantos obscuros da cela, mas todos tinham a atenção voltada para um único pensamento: dentro de nove horas estariam livres. Desde que fora feito prisioneiro dos rebeldes, três semanas antes, Travis vinha planejando aquela fuga. Ele e seus homens cavaram um túnel, que agora seguia da cozinha até um armazém próximo. E, naquela noite, assim que o sol se pusesse por completo, fugiriam. Tudo seguia como planejado. Ou quase tudo. O doce gosto da liberdade pareceu desaparecer de sua boca quando baixou os olhos
para o soldado moribundo logo a seu lado. Inclinou-se e pegou com cuidado a ponta da atadura que cobria o profundo ferimento do tenente Michael Ward. O rapaz moveu-se e gemeu. A ferida era resultado de uma briga entre o tenente e um outro prisioneiro, alguns dias antes, no pátio da prisão. Os guardas dispararam contra os dois. Ward recebeu a bala no ombro, e o outro, morreu. O dr. Ezra Johnson, simpatizante da União, havia retirado o projétil e prometera voltar com medicamentos para impedir que a ferida infeccionasse. Mas o idoso médico, que devia ter retornado na véspera, não o fizera. Rafferty praguejou, por entre os dentes. Tinha pouco em comum com o tenente, mas ele era um companheiro de armas. E Rafferty faria qualquer coisa para salvar um dos seus. Ward entreabriu os olhos, nos quais o sofrimento era visível, eles eram de um azul suave, claro. — E então? — perguntou, referindo-se à ferida. — Parece melhor — Travis mentiu. — Não sinto melhora alguma — rebateu o oficial, quase sem forças. E Travis forçou um sorriso para dizer: — O médico retornará em breve com os remédios. — Sabe que quero fugir com vocês esta noite, não sabe? Era óbvio que o tenente estava fraco demais para poder rastejar pelo túnel estreito. E a viagem para o Norte, se conseguisse fazê-la, iria matá-lo. Ao que parecia, os medicamentos eram sua única chance, no momento. — Concentre-se apenas em melhorar — Travis acon-selhou-o, vendo a expressão preocupação do rapaz. — Não sinto que estou melhorando. — Havia uma ponta de desespero na voz de Ward. — Dói muito quando tento me mexer, e vocês estarão longe daqui em breve. Não quero morrer sozinho neste lugar. — Aguente. O dr. Johnson voltará. Você estará bem daqui a alguns dias. Travis recostou-se na parede, circunspecto, passando 0 mão pelas cicatrizes em seus punhos. Eram as marcas que trazia dos primeiros dias como prisioneiro. Ouviu Ward tossir logo em seguida. - Fale comigo, capitão. Mantenha-me distraído desta dor. — Sobre o que gostaria de falar? O tenente umedeceu os lábios. — O senhor tem família?
— O Exército é minha família. Não é casado? Travis respirou fundo, sentindo a velha pressão no peito. — Tive uma noiva, mas fiquei muito tempo afastado dela, e acho que acabou por se cansar. Casou-se com outro. — Sinto muito. — Não sinta. — Travis fora tolo o suficiente para achar que uma garota de sociedade como Isabelle pudesse ser forte o suficiente para suportar o sacrifício e a solidão da vida de uma esposa de soldado. — Eu tenho uma esposa, capitão. Preciso voltar para ela. Seu nome é Roberta, e essa mulher é tudo para mim. — Não se preocupe. Em breve estará em seus braços. Ward cerrou as pálpebras, em grande sofrimento, e murmurou: — Não quero morrer aqui. Travis respirou fundo. Vira tantos homens morrerem naqueles últimos três anos! — Não se esqueça de que me prometeu um jantar com carne assada quando retornarmos a Washington — relembrou ao tenente, que sorriu muito de leve. — É verdade... Uma certa alteração do lado de fora da porta fez com que Travis voltasse o rosto para lá, vendo que os soldados se aglomeravam junto dela. — Afastem-se! — gritou um dos guardas. — Para trás, ou não abrirei! Os prisioneiros obedeceram, mas hesitando, apertan-do-se uns contra os outros. Travis se endireitou e levantou-se. Suas juntas doeram em protesto por ter ficado abaixado por tanto tempo, mas mantinha-se ereto, os pés um pouco afastados, firme. — Tomara que seja o médico — disse para si mesmo. A porta se abriu segundos depois e, em vez, do médico, uma moça adentrou a cela, trazendo uma sacola de couro consigo. Trazia também um lampião. Vinha coberta por uma capa longa, que, no entanto, revelava sua estatura miúda. Sua entrada provocou um silêncio quase total entre os homens. Nenhum deles via uma mulher fazia meses. E a presença dela trazia como que uma sensacção de brisa suave numa tarde quente, abafada. Os olhos da garota passaram pelos prisioneiros ali acu-mulados, e pareceu ficar tensa, preocupada. Travis che-gou a crer que ela recuaria e sairia dali correndo.
O carcereiro, apelidado de Aranha pelos prisioneiros por causa de seus braços longos e grandes olhos negros, pareceu apreciar a hesitação da garota. — Será bem feito se eles acabarem com você — afirmou, com raiva. — Não é melhor do que um traidor, sabia? A jovem ergueu o queixo e respondeu, altiva: — Eu aviso quando quiser sair. Aranha cuspiu no chão e se afastou, batendo a porta o trancando-a em seguida. Depois falou ainda, para a garota: — Traidora! Ela permanecia recostada na madeira, atenta aos soldados, que formavam um semicírculo a seu redor. Um deles estendeu a mão e tocou-lhe a manga do vestido. A moça se afastou um pouco, mas acabou recostando-se em outro prisioneiro, que acariciou-lhe o rosto. — Não faça isso! — ela protestou, sem gritar, mas muito amedrontada. Travis deu alguns passos por entre os homens e ordenou: — Afastem-se. Deixem-na respirar. Alguns dos prisioneiros o encararam, outros reclamaram, mas todos obedeceram. Satisfeito por não ter mais um problema nas mãos, Travis se dirigiu à garota: — Quem é você? A estranha o encarou. Pareceu-lhe corajosa e forte. — Meu nome é Meredith Carter. Sou sobrinha do dr. Johnson. Travis não gostou da informação. — Não me diga que ele a enviou em seu lugar... — Tio Ezra está muito doente. Por isso não pôde vir. Travis enfiou a mão direita pelos cabelos, que haviam crescido mais do que gostaria naquelas semanas de aprisionamento. — Preciso de um médico, e não de uma debutante. Atingida em seu orgulho, Meredith respondeu, tentando manter-se calma: — Bem, terá de se contentar com uma... debutante que já extraiu várias balas, costurou muitas feridas e cuidou de centenas de outras. — Seu sotaque sulista não disfarçava a ira. — Mas, se preferir que eu me retire, eu o farei. Um sargento de nome Murphy, encorpado e de faces arredondadas, deu um passo à frente, apresentando-se: — Meu nome é Murphy, moça. Sargento Franklin Murphy. Ela assentiu, calada. Murphy, ansioso por ficar próximo, acrescentou: — Não deixe que o capitão Rafferty a intimide. Sabe, ele é um
oficial de primeira. Servimos juntos perto de Ashland há poucas semanas. Perdemos alguns homens, mas conseguimos acabar com muitos rebeldes também, antes que eles nos apanhassem. As mãos de Meredith começaram a tremer. — Meu marido é major do Exército Confederado. E, pelo que sei, ele e seus homens estavam em Ashland... O sorriso que havia no rosto de Murphy desapareceu. — Bem, eu... — Não sabia o que dizer. Travis baixou os olhos e viu a aliança de ouro no dedo anular da mão esquerda dela, que ainda segurava o lampião. E a ideia de saber que Meredith era casada deixou-o um tanto irritado. — E casada com um rebelde? Seu tio apóia a União. — E que... não concordamos em algumas coisas. Os soldados se aproximaram um pouco mais, ouvindo cada palavra que era dita. Alguns murmuraram frases de desagrado, mas a maioria estava satisfeita por estar junto de uma mulher. — Por que veio? — Travis indagou, muito sério, quase aborrecido. — Porque meu tio me pediu muito. Recusou-se a se acalmar e descansar a não ser que eu prometesse que traria os remédios. — Não fosse por isso, você não teria vindo. — Não. A União destruiu quase tudo o que eu tinha. — E como vou saber que não está aqui para nos espionar? — Não vim para isso! Estou aqui apenas para trazer medicamentos, como prometi a meu tio. E, assim que cuidar do ferido, irei embora e não voltarei mais. Travis não gostava nada daquilo. Meredith Carter era a última coisa que esperava ver naquele dia. — Não acredito em você, garota. — Muito bem, então, adeus. — Ela deu meia-volta e ergueu a mão direita, na intenção de bater para chamar o guarda. Nos segundos que se passaram para esse movimento, Travis considerou suas possibilidades. Podia aceitar os medicamentos que ela trouxera e mandá-la embora. Não queria que a esposa de um rebelde ficasse ali, durante o período que restava antes da fuga. Mas nada sabia sobre medicina e, além do mais, havia algo naquela mulher que parecia insistir para que confiasse nela. — O ferido está ali. — Travis apontou, fazendo-a vi-rar-se. E, sem esperar que Meredith reagisse mais, tomou a lanterna de sua mão e guiou-a até Ward. E pôde sentir o perfume suave que emanava dela e que chegou a suas narinas sem que conseguisse evitar ser atraído por ele.
Ao se aproximarem do catre apodrecido em que Ward se encontrava, o olhar de Meredith se suavizou. Não havia mais raiva neles. Sem dizer nada, ajoelhou-se junto do ferido, não se importando que a sujeira do solo pudesse estragar sua bela saia preta. Levou a mão delicada à testa de Ward. — Ele está ardendo em febre! Travis acocorou-se junto dela e ergueu o lampião para que a luz atingisse Ward e a fizesse, assim, vê-lo melhor. — Seu tio afirmou que, sem os medicamentos, a febre o consumiria. Meredith abriu a camisa de Ward, manchada de sangue. O odor forte e característico encheu o ambiente e a fez afastar-se um pouco e levar as costas da mão direita ao nariz. O tenente a fitou. — Você é um anjo? — Não, não sou — Meredith respondeu. — Mas parece... Se tivesse asas, poderia me levar para longe daqui. Ela olhou para Travis, explicando: — Meu tio estava certo quanto à febre. Um dos medicamentos que eu trouxe ajudará muito, mas, nestas condições, não sei se será suficiente para salvar-lhe a vida. — Observou a seu redor, avistando as pilhas de feno. — Faça o que puder por ele — Travis pediu-lhe. Meredith assentiu e retirou um saquinho de sua mala, além de apetrechos médicos e uma garrafa de água. Misturou alguns dos pós de uma pequena vasilha e acrescentou água até achar que a consistência estava ideal. — Antes de eu colocar esta pasta no ferimento, precisamos limpá-lo. O senhor e seus homens terão de segurar o rapaz. Murphy aproximou-se, solícito. — Eu ajudo — ofereceu-se. — Muito bem. Murphy, segure as pernas dele — Travis ordenou. — Eu seguro os braços. E, passando o lampião para outro soldado, segurou firme. Os outros rapazes se aproximaram para ver enquanto o tenente era preso pelas mãos fortes de Travis e Murphy. Meredith colocou um pouco de álcool num pedaço de pano limpo e passou a desinfetar a ferida. Ward arregalou os olhos e gritou. — Nossa, ele está agonizando! — Murphy se alarmou. Alguns dos soldados murmuraram sua anuência, apro-
ximando-se ainda mais. Travis olhou-os, percebendo sua intenção, e avisou: — Isto precisa ser feito. Afastem-se. A moça precisa de espaço para trabalhar! Meredith prosseguia, removendo qualquer sinal de sujeira e tecido necrosado. Ward continuava gritando, e as mãos dela tremiam, mas seguiu avante, sabendo que estava agindo certo. Quando terminou, a cela estava em total quietude, a não ser pelos gemidos do tenente. Michael movia a cabeça de um lado para o outro e, embebido em suor, murmurava: — Não quero morrer aqui... Emocionado, Travis colocou a mão sobre a testa do rapaz. — O pior já passou, sra. Carter? — Sim, capitão. Ela mostrava leves olheiras e estava magra, mas era muito bonita, o que não escapou a Travis. E passou a divagar por alguns momentos, imaginando que, se tivessem se encontrado sob outras circunstâncias, em outra época, antes que Meredith tivesse se casado... Afastou tal ideia de imediato, considerando-a ridícula, sem propósito. Viu que Meredith mergulhava os dedos na pasta que fizera e a espalhava com suavidade pelo ferimento. O odor horrível do remédio o fez comentar: — Isso cheira mal... — Não sei como consegue notar aqui. —Havia desafio na entonação dela e em seus olhos verdes. Travis a encarou, mas nada disse. Gostava de ver como Meredith lhe dizia o que pensava, sem receio de atingi-lo. Assim que terminou de espalhar a pasta, ela limpou os dedos num tecido e fez uma excelente atadura. — Parece que a subestimei. — Travis teve de reconhecer o bom trabalho. Os olhos verdes dela se ergueram mais uma vez para o capitão, e ele sentiu, de repente, que sua pulsação se acelerava. Estavam tão próximos que podia experimentar o calor do corpo dela. — Eu sei. — E Meredith passou a guardar suas coisas na sacola de couro. Quando terminou, Travis levantou-se e estendeu-lhe a mão para ajudá-la. — Tivemos um mau começo. Ela ignorou a tentativa de trégua e levantou-se sozinha. Como
nada dissesse, ele quis saber, olhando para Ward: — Ele vai sobreviver? — Se for tratado com regularidade... — E quando seu tio poderá vir vê-lo? — Tio Ezra está muito doente. Duvido que consiga voltar aqui. — E... você? — Travis detestava ter de pedir favores. — Acho que não devo retornar. Meu marido não gostaria nada disso. — Retirou algumas bandagens da sacola e ofereceu-as a Travis. — Poderá usar isto por alguns dias. Ele sabia que não estaria ali para trocar as ataduras. — Esqueça, por um momento, que sou um ianque que está lhe pedindo um favor, moça. Este homem precisa de seu auxílio. Meredith ia recusar de novo, mas fitou mais uma vez o ferido, e a tristeza que se estampou em seus olhos mostrou a Travis que era do tipo que não conseguia recusar ajuda aos necessitados. — Dependerá dos carcereiros e de sua disposição em abrir a cela, capitão. Muitas vezes, eles não deixam nem meu tio entrar na prisão. — Mas irá tentar? Alguns dos prisioneiros começaram a se inquietar. — Sai da frente! — gritou um deles. — Nem consegui ver a mulher ainda! — Afaste-se! — disse outro. — Também não consegui ver o anjo, e não vou ceder-lhe meu lugar! Os mais distantes começaram a se empurrar, ansiosos por enxergá-la. Pretendiam até lutar para ter um lugar mais perto de Meredith. Suas vozes começaram a soar mais altas, ameaçadoras. E Travis percebeu que poderia, sim, ter mais um problema em suas mãos ali. — Não se aproximem. — E o capitão levantou-se, na intenção de impedi-los. Meredith tornou a fitar o ferido, cheia de compaixão. — Tenente? — chamou-o, tornando a se ajoelhar. — Irá se sentir melhor em breve. Tenho de ir, mas o capitão prometeu cuidar de você. Ward arqueou as sobrancelhas. — Rafferty? Ela cobriu-o melhor com o cobertor fino e sujo. — Isso mesmo. O capitão trocará as ataduras amanhã, e eu virei vê-lo assim que puder. Travis, que estava em pé tentando afastar os homens, voltouse de repente, ouvindo a conversa, mas já era tarde. Ward, na
semiconsciência de sua febre, falava demais: — Travis não poderá trocar as ataduras. Ele vai embora com os outros esta noite. Com a respiração presa, Travis tentou retornar para junto do ferido, mas estava impedido entre os homens que ainda se amontoavam para ver a sra. Carter. — Ninguém irá a lugar algum. — Meredith sorria de leve para Ward. — Eles vão me deixar, moça. Vão pelo túnel. Meredith não se voltou para ver Travis, mas sua espinha endireitou-se mais do que o natural. — Túnel... Oh, meu Deus!... Travis estava próximo o suficiente para ver que Meredith empalidecia. Ela ficou de pé. Os soldados mais próximos tinham ouvido também, e todos estavam tensos, sabendo que ela, uma sulista, sabia de tudo agora. Sua admiração por Me-redith se transformou em desconfiança. Procurando manter a calma, ela se afastou devagar, por entre os rapazes, em direção à saída. Nem mesmo se lembrou de pegar a sacola de couro. Travis foi tomado por uma terrível sensação de medo. A sra. Carter podia ter ajudado Ward, mas, apesar disso, era esposa de um rebelde. Uma só palavra sua para os guardas e semanas de escavações, de esperança, de sonhos estariam destruídas. O capitão tomou a sacola que ela deixara e seguiu-a, abrindo caminho até a porta, interceptando-a ali. — Esqueceu isto, senhora. . — Obrigada. — Meredith estava ansiosa para sair. Mas Travis colocou-se a sua frente, murmurando: — Precisamos conversar. Ela conseguiu sorrir de leve. — Se é sobre o tenente, fique tranquilo. Virei vê-lo amanhã, talvez. Mas o capitão tomou-lhe o braço, muito sério. — Não se faça de tola, moça. Já sabe sobre o túnel. — Solte-me, sim? Alguns dos homens a ouviram e aproximaram-se alguns passos. Meredith os olhou e estremeceu, mas sua voz ainda era firme: — Alguém poderia pedir ao capitão para me soltar? Travis olhou para seus comandados e ordenou: — Fiquem onde estão.
Eles obedeceram, como sempre. Meredith fitou Raffer-ty, agora assustada, e garantiu: — Vim aqui para cuidar de um homem ferido, não para descobrir segredos. Travis não sabia se podia acreditar naquilo. E, assim, usou a única arma de que dispunha no momento para intimidá-la: sua própria estatura. Inclinou-se sobre ela e falou, bem baixo: — Pois acabou tropeçando em um bem grande. Lágrimas começaram a se formar nos olhos de Meredith Carter. — Juro que não contarei, capitão. Os dedos dele a estavam machucando. — Como acha que posso acreditar no que diz? — Não sei... Mas juro que não direi nada! Travis tomou-lhe um dos cachos dos cabelos entre os dedos e acariciou-os, deixando-a ainda mais apavorada. — Creio que vou lhe dar um voto de confiança. No entanto, não me desaponte, porque, se o fizer, irei encontrá-la. Não importa o quanto demore. Eu a encontrarei. Entendeu? Meredith assentiu. Queria apenas sair dali o quanto antes. Travis a estudou por longos e tensos segundos. Os soldados reclamavam, conforme a notícia se espalhava. O capitão a deixaria sair porque ela prometera nada dizer... Rápido, Travis a fez virar-se para a porta e bateu com força na madeira, chamando o carcereiro. — A sra. Carter já vai sair! Murphy aproximou-se. Olhou para Meredith com tristeza e sentimento. — Os homens estão inquietos, capitão. E melhor ela ir logo. — Eu sei. — Rafferty engoliu em seco. Aranha veio pelo corredor como se não tivesse um pingo de pressa. O ruído de seus passos e das chaves em seu cinturão enervavam Travis ainda mais. E apertou ainda mais os dedos que seguravam o braço da sra. Carter, como num aviso, enquanto o guarda destrancava a fechadura. Meredith prendeu a respiração, ouvindo-o, muito próximo: — Sou o melhor rastreador no Exército da União. Achar pessoas é minha especialidade. Lembre-se disso, anjo. Segundos depois da meia-noite, o alarme soou, avisando a cidade inteira sobre a fuga de prisioneiros. O vento, junto com os latidos furiosos dos cães do presídio, mistu-rava-se aos sons do frenesi dos guardas na busca. Houve disparos, gritos, gemidos, em especial dos prisioneiros detidos em sua escapada. Travis, um dos primeiros homens a emergir do túnel, ainda
enlameado devido ao caminho subterrâneo pelo qual ganhara a liberdade, viu os guardas procurando pelo campo. A fuga fora descoberta! Uma bala passou, zunindo, próxima a seu rosto, for-çando-o a uma atitude desesperada: lançou-se às águas do rio James, frias e revoltas. Pedia a Deus que os cães não o farejassem, que a água ajudasse a despistá-los. Podia caminhar em certos trechos bem rasos, mas as pedras do fundo e o barro dificultavam seu acesso, a água gelada fazia sua carne e seus músculos doerem. Quando conseguiu sair, pouco mais adiante, seu corpo todo tremia. Não conseguia sequer controlar o tremor de seus dentes, que rangiam sem parar. Não conseguia saber ao certo quanto demorara para cruzar o rio. Mal conseguia raciocinar. Mas sabia que precisava continuar avante, seguindo, sem parar, sem olhar para trás. Seus joelhos doíam, suas pernas quase não o obedeciam, mas foi capaz de chegar até a margem alta. Dei-xou-se cair ali, perdendo a sensação das pernas. Era como se elas não existissem mais, como seja não fizessem parte de sua anatomia. Não conseguia mais andar, nem se mover, e baixou a cabeça, numa terrível sensação de derrota. Tinha de descansar. O frio pedia que se aconchegasse em algum lugar. Estava tão exausto! Como, por que tudo saíra tão errado? O que acontecera, afinal? E então lembrou-se do anjo... Meredith jurara guardar segredo... E ele acreditara... Com os dedos crispados na lama embaixo dele, Travis respirou fundo, sentindo os pulmões arderem. Num esforço sobre-humano conseguiu pôr-se de joelhos. Havia uma raiva tamanha, uma fúria tão gigantesca em seu coração que o empurrava para a frente. Levantou-se, por fim, jurando para si mesmo que seguiria avante sem parar, sem desistir, que conseguiria fugir, e que, se Meredith Carter havia contado aos carcereiros sobre a fuga, não descansaria até que a encontrasse novamente. Mesmo que isso levasse anos! Do outro lado da cidade, o alarme também despertara Meredith. Seu coração batia tão depressa, tão assustado, que parecia querer sair pela boca. Jogou longe o cobertor que a cobria e levantou-se da cadeira de balanço, diante da lareira, onde acabara adormecendo, pouco antes. Com a camisola solta sobre as formas aquecidas, correu pelo chão frio de madeira até uma das janelas de seu quarto. Afastou as pesadas cortinas de veludo e olhou para a noite, procurando ver os
contornos da prisão, junto ao rio. Não havia quase nada, a ver a não ser manchas na escuridão. Viam-se muitas estrelas no céu, porém, que pareciam confundir-se com as luzes tremulantes que percebia a distância. Eram tochas. Tochas que os guardas seguravam, ao vasculhar a área em busca dos prisioneiros que tinham escapado. Meredith recostou a testa na vidraça e suspirou. Sen-tiu-se, de repente, nauseada. A fuga fracassara. Ajeitou os cabelos soltos. Mantivera sua promessa a Rafferty. Nada dissera a ninguém. No entanto, bem no fundo, sabia que o capitão devia culpá-la. E Travis Rafferty dissera que encontrar pessoas era o que fazia de melhor. Um dia, sabia, ele viria em seu encalço...
CAPÍTULO I Trail's End, Texas, abril de 1866 Pelo amor de Deus, Meredith! Quando o dr. Johnson tirou meu outro dente, não doeu tanto assim! — queixou-se o xerife Fox Harper, a mão sobre o lado esquerdo do rosto inchado, e depois cuspiu na bacia logo ao lado. — Você pode ser pequenina, mas é forte como um touro, sabia? Meredith deixou o boticão sobre a mesa aparadora e seguiu para a pia. Lavou as mãos com cuidado e comentou, muito calma: — Se tivesse me chamado antes, teria poupado a si mesmo uma grande parte de seu sofrimento. A esposa do xerife, uma mulher robusta, com cabelos branquíssimos, entregou ao marido um pano enrolado numa pedra de gelo que a geada da manhã deixara acumulada no peitoril da janela. — Eu tenho dito a Fox que devia chamá-la há dias, mas esse cabeça-dura simplesmente não me ouve. Dizia estar preocupado por você não ser uma médica de verdade. Harper olhou para a mulher com desagrado por ela ser tão franca e tentou sorrir para Meredith, apesar da dor que ainda sentia. — Olhe, a senhorita é uma enfermeira muito boa — afirmou, tentando ser amável —, mas não se pode alterar a realidade, não é mesmo? Não é uma médica de fato... Não como seu tio era.
Meredith colocou o pó de algumas ervas numa vasilha com água e misturou-o a ela com uma colher. Entendia a preocupação do xerife. Seu tio fora um excelente médico, e toda a população da cidade sentia sua falta. — Tem razão, xerife. A sra Harper, por sua vez, deu de ombros antes de observar: - Pois eu não me importo com o tipo de aprendizado que teve. A meu ver, você é muito melhor do que muitos dos chamados médicos de verdade que andam por aí. Aliás, tive o desprazer de conhecer alguns deles. Espero que o novo doutor que está para chegar não seja um bêbado... Ignorando as palavras da esposa e pressionando o gelo contra a face, Fox Harper retirou os óculos do bolso do colete e estudou com atenção Meredith. — Posso saber o que está preparando aí? — Um remédio que vai ajudá-lo com a dor e o inchaço — explicou, paciente. — Ah, não gosto de tomar remédios — o xerife protestou, com veemência. — Homens! — desdenhou a esposa. — Por que será que todos eles ficam como crianças quando estão doentes? Meredith achou graça e, trazendo o remédio que preparara para o xerife, sugeriu: — Beba, sim? Fox ergueu o medicamento até o nariz e fez uma careta. Seus dedos magros seguravam a vasilha, trêmulos. Ninguém diria que aquele homem que parecia tão frágil agora fosse um dos mais temidos homens da lei no Texas. — O cheiro é horrível! Meredith sorriu mais uma vez e avisou: — O gosto é ainda pior. — Desculpe-me, querida, mas não vou tomar uma coisa que tem o cheiro de meias sujas. As pupilas da sra. Harper brilharam com a fúria de alguém que está preparado para entrar numa batalha e vencê-la. — Fox Harper, não se envergonha?! Pense em todos os renegados e assaltantes de bancos que já colocou atrás das grades. O que eles diriam se vissem o poderoso xerife Harper lamentando-se por ter de tomar um remédio?! O xerife cruzou os braços sobre o peito. — Não tomarei isso — teimou. — Iria lhe fazer muito bem. — Meredith continuava plácida.
— Mas não estou me sentindo tão mal assim — Harper tentou argumentar. A sra. Harper colocou as mãos na cintura, encarando-o, aborrecida. — Se não beber tudo o que está nessa vasilha, vai dormir na varanda dos fundos esta noite! Porque não pretendo perder meu sono precioso com você gemendo e me acordando a todo momento para se lamentar! Por fim, vencido, Fox aquiesceu. — Como se eu fosse do tipo que se queixa... Sua mulher riu, debochada, e nem precisou tecer nenhum comentário a respeito. Com uma careta, o xerife ergueu a vasilha diante de si e tomou seu conteúdo de um só gole. O gosto o fez retorcer o rosto ainda mais e chegou a sentir náuseas, mas Meredith entregou-lhe um copo d'água logo em seguida, o qual ele engoliu sem pestanejar. — Acho que acaba de me envenenar... — queixou-se, rouco. Rindo, ela vasculhou em sua maleta e de lá retirou um pequeno saco marrom. — Vai viver até os cem anos. — Entregou o saquinho à sra. Harper, explicando: — Misture uma colherada disto num copo d'água e dê a ele pela manhã, assim que acordar. — Olhe, estou avisando, não vou beber esse negócio de novo! — Fox Harper protestou, ainda sentindo o gosto terrível na boca. — Beberá, sim — afirmou sua esposa, tranquila. Meredith sabia que o xerife não era páreo para a firme sra. Harper. — O medicamento o deixará sonolento, mas acredito que uma boa noite de sono seja o ideal para o xerife agora. Mande me avisar se houver algum problema, está bem? A sra. Harper pegou quatro moedas de seu bolso e co-locou-as na mão de Meredith. — Qualquer sinal de problemas e mandarei alguém avisá-la sem demora, querida. — Está bem. — Meredith guardou o dinheiro e arrumou suas coisas. Todos os pacientes pagavam-lhe assim, mas ela estava começando a se preocupar com a chegada do novo médico. O dinheiro que acabara de receber iria para a caixa de madeira que mantinha na gaveta da penteadeira. Agora, suas economias chegavam a vinte dólares e oitenta e dois centavos, lembrou, o que era muito pouco. A esposa do xerife foi buscar a capa e entregou-a a Meredith,
avisando: — Sabe que a estamos esperando para o piquenique, no domingo. Não o próximo, mas o seguinte. O sr. Walker também estará presente. Meredith captava muito bem das intenções por trás das palavras. Pensou em arranjar uma desculpa para não ir. O sr. Walker era o proprietário do armazém de secos e molhados e um dos muitos homens que a sra. Harper insistia em apresentar-lhe como possível candidato a um segundo casamento, já que Meredith ficara viúva. — O bebê dos Miller deve nascer a qualquer momento — lembrou. — Acho que, talvez, eu não possa ir ao piquenique. — Ora, essa criança ainda demorará mais de um mês para vir ao mundo! — protestou a esposa do xerife. — E você irá adorar o piquenique, garanto! Haverá tanta comida gostosa lá! Ah, será que mencionei o fato de que o sr. Walker também enviuvou? Aliás, vocês dois têm muitas coisas em comum. Meredith pensou em outra desculpa. — Eu... tenho tanta roupa para lavar! E não faço uma boa faxina em minha casa há mais de um mês. — E pretendo fazer isso num domingo?! Além do mais, sua roupa pode esperar para ser lavada. O xerife fitou o teto e avisou: — Cuidado, pois ela é capaz de casá-la antes do fim do mês. Meredith tentou sorrir. — Não se preocupe, xerife. Já sei das intenções da sra. Harper. A bondosa senhora olhou-a, muito séria. — Olhe, Meredith, para ser franca, não a entendo. Você é jovem, muito bonita, esperta. Há mais de dez homens nesta cidade que a desposariam sem vacilar um só segundo se apenas lhes fizesse um aceno. Mas insiste em ignorar a todos... — Bem, eu não os ignoro. Não de todo. — Meredith mantiverase um tanto reclusa depois da morte do tio, mas a esposa do xerife fazia parecer que se transformara numa ermitã. — Ignora, sim! E não tente negar. O pobre George Walker já fez tudo o que era possível para ganhar sua atenção. Só falta andar por aí com uma placa na mão dizendo que quer desposá-la. E George já teria se desencorajado há meses se eu não lhe tivesse dado alguma esperança. Meredith massageou os músculos tensos dos ombros. — Sra. Harper, não quero me casar de novo. A expressão da sra. Harper suavizou-se.
— Minha querida, sei o quanto as coisas foram difíceis para você na Virgínia. Deve ter sido um golpe terrível perder seu marido na guerra, e seu tio me falou sobre a reação das pessoas em relação a você. Não foi tão ruim assim. — Ela tentava manter o tom casual. Meredith jamais pretendera voltar à prisão Libby, mas não conseguia afastar da memória a imagem de todos aqueles encarcerados famintos. Na manhã que se seguiu à fuga, Meredith voltou. Raf-ferty e outros tinham conseguido escapar, mas ainda havia muitos homens ali. E ela passou a fazer visitas regulares a todos. E, quando seus vizinhos e a família de seu marido começaram a ficar aborrecidos com suas idas à cadeia, passaram, aos poucos, a evitá-la. Sua sogra nem mesmo lhe dirigiu a palavra nos funerais de James. — Não está enganando ninguém, meu anjinho. Aqui em Trail´s End, todos costumam se ajudar, e nós queremos vê-la feliz. E, além do mais, não pretendemos perdê-la. — Eu sei... — Meredith, já está na hora de se abrir para as pessoas outra vez, deixar que cuidem de você, que se preocupem. Abra seu coração, querida. — A idosa senhora passou um dos braços por seus ombros. — A guerra já acabou. Sei o quanto cuidou de seu tio quando ele mais precisou, mas agora Ezra já se foi, assim como seu marido. Precisa continuar vivendo! Além do mais, esse novo médico chegará em breve e vai ficar no hotel por uma semana ou duas, mas ocupará a casa em que você está no fim do mês. E claro que é muito bem-vinda se quiser vir morar aqui conosco até encontrar outro lugar. — É muita gentileza, obrigada. Meredith tentava ignorar a dor que sentia no peito sempre que pensava em ter de se mudar. A residência na qual morara com seu tio era-lhe muito cara, porque era o lugar em que vivera mais tempo. Contudo, a propriedade era patrimônio do município, reservada ao médico oficial da comunidade local. Depois da morte de Ezra, o povo permitira-lhe ficar ali por algum tempo, mas, agora que o novo médico estava a caminho, teria de encontrar outra moradia. — Posso alugar um quarto na pensão — disse, mais para si mesma do que para ser ouvida. — E é isso o que quer para seu futuro? Viver sozinha num quarto de pensão? — Será um arranjo temporário...
— Coisas temporárias, na maior parte das vezes, acabam por tornar-se permanentes, sabia? E não quero vê-la sozinha, filha. Passando seus dias apenas cuidando dos outros e suas noites num quarto alugado. Precisa olhar para a frente, Meredith! Precisa de uma família! — E que... é difícil vislumbrar o porvir quando o passado insiste em não se deixar esquecer... Meredith pensara que, mudando-se para o Texas, a guerra ficaria para trás e poderia esquecer os rostos dos homens que tinham morrido. Mas tudo ainda a assombrava como ecos de uma época que não se apagaria jamais. — Às vezes, minha menina, é necessário fazer algo que seja bom para você mesma, mesmo que não tenha vontade de fazê-lo. E, quanto mais para a frente seguir, mais fácil será para você. O xerife tocou o maxilar dolorido, opinando: — E melhor entregar-se agora, Meredith. Acredite, está lutando numa batalha perdida quando tem minha Edith como conselheira. Não desperdice energia, faça logo o que ela quer. Meredith o fitou, sorrindo. O xerife estava certo. Também a sra. Harper tinha razão. A guerra já terminara fazia mais de um ano e James morrera havia dois. De alguma forma, teria de seguir vivendo. — Comparecerei ao piquenique — aceitou, por fim. — Estou ansiosa quanto à chegada do novo médico e sei que ele também estará lá. Quanto ao sr. Walker... bem, não vou prometer nada. Feliz por ter conseguido o que queria, a sra. Harper respirou, aliviada. — Bem, longe de mim obrigar alguém a fazer algo que não se sinta bem fazendo. Tudo o quero é que mantenha sua mente aberta, nada mais. No entanto, ouvi dizer que o sr. Walker comprou uma charrete com apenas dois as-sentos. E disseram-me que é uma coisa linda, com adornos no teto e tudo o mais. Quando o clima esquentar um pouco, daqui a algumas semanas, será perfeita para passeios pelo campo, não acha? Meredith riu e perguntou, sabendo que as intenções da bondosa Edith eram as melhores possíveis: — A senhora não desiste nunca? — Não, meu amor. Não, quando sei que estou fazendo algo pelo bem de alguém. Ao deixar a casa dos Harper, Meredith aspirou com prazer a brisa da tarde. A varanda dos fundos do imóvel, por onde preferiu sair, estava voltada para o sul, e a paisagem que se abria além dela
era maravilhosa, com campos que agora se cobriam pela luz alaranjada do pôr-do-sol. Blue, o cavalo de Meredith, se mantinha amarrado num arbusto pouco distante e, ao vê-la aproximando-se, ergueu a cabeça e balançou-a, numa espécie de saudação que a alegrou muito. A sra. Harper, que a acompanhava, sentiu um calafrio com a brisa e puxou o xale mais para os ombros. — Por que não fica aqui esta noite, querida? Pode deixar seu cavalo no estábulo, dormir tranquila e tomar um bom desjejum pela manhã. Talvez, depois, pudéssemos dar uma olhada nos tecidos novos que chegaram ao armazém esta semana. — É só uma cavalgada de meia hora. Já estarei em casa quando escurecer. Além do mais, tenho animais que precisam ser alimentados. A sra. Harper arqueou as sobrancelhas. — Não me diga que recolheu outro bicho da rua... — Na verdade, sim. Uma gata e alguns gatinhos. Edith meneou a cabeça. — Meredith, você adora uma causa perdida, não? Era estranho, mas ela nunca pensara assim. No entanto, reconhecia que parecia atrair uma grande quantidade de animais doentes, feridos e sem teto. — Talvez... — Diga, por que não me deixa chamar o sr. Walker? — a sra. Harper ofereceu. — Ele ficaria satisfeito em acompanhá-la até seu lar. — Não é necessário, obrigada. — Meredith ajeitou a maleta na sela e tomou as rédeas de Blue, montando em seguida. — Já cavalguei durante a noite mais vezes do que a senhora possa imaginar. A esposa do xerife estudou-a por algum tempo, com uma expressão de preocupação. — Alguém devia cuidar de você, minha menina. Uma mulher jovem não deveria ter tantas responsabilidades sobre os ombros... E você já fez tanto pelo povo de Trail´s End! E um verdadeiro anjo, Meredith. Um anjo... A lembrança de Travis Rafferty surgiu, de repente. Meredith ainda se recordava de sua voz dizendo-lhe aquela palavra: anjo. E sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Ficou ansiosa por chegar a sua casa. — Não, não sou um anjo, sra. Harper — rebateu, com
suavidade. — E, sim, meu bem. E não se esqueça de domingo. À uma hora, certo? — Está certo. Cuide bem do xerife. Meredith partiu, sentindo a brisa intensificar-se contra suas faces, conforme cavalgava. Iria chover à noite. Chuva forte. Muito ao longe, ouviu os latidos de um cachorro. Fizera esse caminho, entre Trail´s End e sua casa, inúmeras vezes, muitas das quais em situações climáticas bem piores, e nunca houvera problema algum. Ainda assim, nessa ocasião, sentia-se um tanto tensa. Tentou afastar tal sensação. Afinal, a lembrança de Travis Rafferty era suficiente para deixar qualquer um nervoso, analisou. Durante meses após a fuga, Meredith acordara no meio da noite com o coração disparado, esperando encontrar o capitão parado ao lado de sua cama, olhando-a, assom-brando-a. Mesmo depois de ter se mudado para o Texas com o tio, e de ter ficado a milhares de quilômetros distante de seu passado, os pesadelos continuavam a despertá-la, a amedrontá-la. Instigou Blue a acelerar a marcha, mesmo percebendo que o animal preferia seguir mais devagar. O sol sumia no horizonte, e o vento agora era forte, soprando com ferocidade sobre a grama dos campos e fazendo os galhos das árvores se inclinarem a sua força. Na distância, Brook Pond apareceu, e o lago refletiu a lua, que surgia. Quando a escuridão noturna já invadira tudo, Meredith ouviu o piar sinistro de uma coruja e tornou a se arrepiar. E uma sensação horrível de estar sendo observada a invadiu, eriçando os cabelos de sua nuca. Olhou com atenção para a estrada, tentando localizar quem ali pudesse estar. Alguns segundos de ansiedade extrema se passaram, e nada aconteceu, deixando-a mais à vontade. Começava a imaginar que estava sendo tola, infantil até. — Pare de ver problemas onde eles não existem — ordenou a si mesma. Respirou fundo, raciocinando na intenção de afastar seus temores por serem infundados. Sempre fazia isso quando ficava tensa. — Travis Rafferty não está por aí espreitando você nas sombras — dizia, para ouvir a própria voz e convencer-se melhor. — Ele não apareceu em dois anos, deve ter esquecido tudo. Não deve se lembrar mais de você, Mere-dith. Portanto, deixe de ser tola. As afirmações podiam ser corajosas, firmes, mas não pôde
negar a doce onda de tranquilidade que lhe passou pelo corpo quando, meia hora mais tarde, chegou à modesta casa de madeira em que vivia. Agora o vento ficara muito mais forte e fazia as duas cadeiras de balanço da varanda moverem-se sozinhas. Meredith apeou e levou o cavalo para dentro do estábulo. Ao entrar, um cachorro sem raça definida aproxi-mou-se, abanando a cauda. Parecia feliz, como se não a visse fazia séculos, e, ao chegar junto dela, ergueu-se nas patas traseiras e apoiou-se em Meredith, latindo, alegre. — O que está fazendo aqui, Shorty? — ela estranhou. — Será que eu o tranquei no estábulo de novo? Pobrezinho... Meredith o acariciava. — E, preciso prestar mais atenção às coisas. Só não esqueço a cabeça porque está grudada em meu pescoço! Desculpe-me, queridinho. Bem, espero que você tenha deixado a mamãe gata e os três mosqueteirinhos em paz. Eles não entendem que você só quer brincar, viu? Shorty latiu ainda mais, como se pudesse conversar com ela. — Ah, já sei! Está com fome, não é? Vou lhe dar algo para comer em alguns minutos, está bem? Deixe-me cuidar de Blue primeiro. O cheiro do feno recebeu-a quando acendeu o único lampião que ficava pendurado à porta. Ergueu-o na mão direita e levou Blue até a baia. Shorty a seguia de perto. Pouco adiante, uma gata cinzenta aproximou-se, miando. Junto dela estavam três gatinhos de, mais ou menos, dois meses de idade. Dois malhados e um branco. A gata esfregou-se nas pernas de Meredith enquanto ela pendurava o lampião num prego e soltava a mala médica da sela. — Já sei, garota. Você está com fome também... Com carinho, Meredith retirou a sela de Blue e deu-lhe feno e água, afagando-o antes de pegar a maleta e deixar o lugar. A gata permaneceu ali, com sua cria, mas Shorty seguiu Meredith, parecendo um tanto aflito agora. Ele latia mais, seguia-a de perto, entrava por suas pernas, atra-palhando-lhe os passos. — Calma, calma, já lhe darei de comer... Está ansioso demais, não acha? Ao chegar à varanda e seguir para a porta, o cachorro lançouse a sua frente, interpondo-se entre ela e a porta. O sol já se pusera por completo, e o lampião que Meredith trouxera consigo dava pouca iluminação ao cômodo principal da
casa, em geral claro. Era estranho, mas, naquela noite, havia um silêncio, uma calma estranhos, que Meredith percebeu, mas que não compreendeu muito bem. Ali, apenas Shorty parecia agitado, diferente. Hesitou, sentindo que algo estava, sem dúvida, diferente em sua casa. Fechou a porta atrás de si, um tanto tensa de repente. Às vezes, alguns pacientes esperavam por ela na varanda, mas não havia nenhum deles ali. entretanto, era como se pudesse sentir a presença de alguém que não via. — Há alguém aí? — Ergueu mais o lampião. Não houve resposta alguma. Meredith chegou depressa a um outro lampião, que ficava numa mesa próxima, e, acendendo-o, pendurou-o junto à soleira, num prego. Passou os olhos pela sala, pelo tapete, pela cesta de costura, a poltrona e a pequena mesa aparadora com alguns livros. Depois desviou-os para a entrada de seu quarto, que estava fechada, pelo fogão, bem mais distante, na parede dos fundos da parte do cômodo que servia de cozinha, e certificou-se de que tudo se encontrava no lugar. Mas, mais uma vez, os cabelos de sua nuca se eriçaram... Irritada com a sensação, cruzou o cômodo até a cozinha e deixou sobre a mesa a maleta e o lampião que trouxera do estábulo. Voltou-se para o fogão e colocou algumas achas de lenha nele, acendendo-o. Quando o fogo clareou um pouco o ambiente e começou a aquecê-lo, tornando-o reconfortante, as chamas passaram a criar espectros divertidos nas paredes. Shorty latiu mais uma vez, depois começou a rosnar baixinho, e ela se voltou, atenta. Foi então que viu o homem aparecer das sombras de um dos cantos. Sem pensar, apanhou uma das facas que deixava fincadas num aparador sobre a bancada da pia. Encarou o intruso com coragem, apertando o cabo da arma com seus dedos frágeis. Mas sentia-se uma presa diante de um predador. Alto, com ombros muito largos, ele usava uma espécie de capa que lhe chegava até os joelhos. E um chapéu escuro cobria-lhe metade do rosto com sua aba larga. Assustada e quase paralisada de medo, Meredith apenas esperava. Por qualquer coisa. O intruso deu dois passos lentos adiante, colocando-se no espectro de luz que o lampião projetava, e indagou, rouco: — Sentiu minha falta, anjo? E, num tremor incontrolável, Meredith reconheceu a voz e a figura de Travis Rafferty.
CAPÍTULO II O coração de Meredith parecia querer explodir em seu peito. Seus olhos estavam fixos no homem que assombrara seu sono durante dois anos. A barba e a sujeira da prisão já não estavam mais presentes nele, sua pele, agora bronzeada, acentuava os olhos muito azuis, profundos, agudos como uma lâmina afiada. E os cabelos muito negros, contrastando com eles, chegavam apenas a seu colarinho. Travis vestia calça escura e camisa branca, e suas botas estavam enlameadas. Era muito alto, e as formas atléticas possuíam músculos que Meredith adivinhava serem poderosos. — Capitão Rafferty... — conseguiu murmurar, mas a voz estava presa na garganta. Os dentes dele, muito brancos, apareceram num breve sorriso. — Lembra-se de mim... Não tinha certeza de que isso aconteceria. — É... eu me lembro. Travis tirou o chapéu e deixou-o pendurado nas costas da cadeira mais próxima, como se estivesse se sentindo muito à vontade ali. Meredith baixou devagar a mão que segurava a faca. — O que o senhor quer? — Você. Ela sentiu o sangue parar de fluir em suas veias. — Mas... por quê? — Sabe muito bem por quê. Um arrepio percorreu a espinha de Meredith. Travis a culpava pela fuga frustrada. — Eu nada disse aos guardas sobre o plano de vocês. O capitão deu um passo à frente, ficando mais próximo. — Mas eles vieram atrás de nós assim que entramos no túnel. Não fizemos um só ruído, mas os guardas sabiam que estávamos fugindo. — Não fui eu quem contou. — Quem poderia ser, então? — Não faço a mínima ideia. — Claro que não... Meredith sentia o temor crescer dentro de si. — Pelo que sei, o senhor é um homem honrado — disse, tentando ganhar sua simpatia.
Travis, porém, continuava encarando-a, impenetrável. Na verdade, Meredith não sabia que tipo de homem Raf-ferty era. — Será que sou, de fato, honrado? — Sim. Poderia ter me ferido naquela ocasião, mas não o fez. Deixou-me ir. — Não costumo cometer o mesmo erro duas vezes. Meredith engoliu em seco. Não parecia haver um meio de argumentar com o capitão. Precisava escapar, tentar chegar à cidade. O xerife iria protegê-la. Não estava tão longe assim da porta... Voltou-se depressa e correu para lá, mas seus dedos mal tocaram o metal da maçaneta, pois Rafferty a alcançou e agarroulhe a cintura, fazendo-a dar meia-volta e lançando-a contra uma parede. Num movimento rápido, preciso, retirou a faca que ela ainda segurava e espetou-a com violência na parede logo acima da cabeça de Meredith. Numa fração de segundo, ela imaginou que a lâmina, agora tão encravada na madeira, nunca mais poderia ser arrancada dali. Havia lágrimas em seus olhos ao sentir a força do corpo dele espremendo-a contra a madeira da parede. — Venho de muito longe atrás de você, Meredith — [Travis murmurou. — Não está pensando em sair, está? — O senhor... o senhor invadiu minha casa — conseguiu sussurrar. Sem o menor sinal de estar arrependido ou de ter a intenção de pedir-lhe desculpas, o capitão ergueu seus braços acima de sua cabeça. Uma de suas coxas fazia pressão entre as dela, e foi em voz bem baixa que respondeu: — A porta não estava trancada. — Saia daqui, sim? — ela pediu, sem encará-lo. — Não. Meredith tentou mover-se sob o vigor das mãos dele, mas nada conseguiu. — Volte para onde veio, capitão. Não sou quem procura. Ele demorou a responder: — E, sim. — Não fui eu quem traiu aqueles prisioneiros! A simples menção àquela noite parecia mexer com os nervos dele. — Então, diga isso ao juiz. Mais uma vez, Meredith lutou por soltar-se, em vão.
— E a verdade. Aquelas palavras pareciam deixá-lo ainda mais fora de si. Afastou-a da parede com um puxão e passou a empurrá-la para o quarto. Meredith continuava lutando, mas suas forças nada eram comparadas às dele. Travis levou-a até o quarto e, bloqueando a saída, acendeu o lampião pendurado logo ao lado. A fraca luminosidade mostrou a cama ainda desfeita. Meredith engoliu em seco, não querendo acreditar, ele ia violentá-la! Dando passos tensos para trás, ela recuou até o canto a parede mais distante do leito. Tentava não olhar para , não pensar no que estava prestes a acontecer. — Por favor, não faça isso... Um brilho de surpresa pareceu surgir no semblante dele. Travis franziu as sobrancelhas, depois riu, com certo desdém. — Fique tranquila, sua honra está a salvo, sra. Carter. Você é a última mulher que eu poderia querer neste mundo. Ainda muito tensa, Meredith olhou ao redor, sem saber o que fazer. Disse, mais uma vez: — Vá embora. Saia de minha casa, de minha vida! O capitão tornou a agarrá-la, e agora puxou-a em di-reção à cômoda. — Tem dez minutos para arrumar sua mala. Um temor ainda mais intenso a invadiu. — Para onde quer me levar? — perguntou, aflita. — Para Washington. — Por quê?! — Vai enfrentar um julgamento, sra. Carter. — Mas sob quais acusações? Travis abriu a gaveta de cima da cômoda e pegou algumas roupas de uma só vez, lançando-as aos braços de Meredith. — Espionagem — respondeu, seco. Abraçada às peças, ela o encarou, os olhos muito abertos. — Nunca fui uma espia. — Não? Então por que ia com frequência ao presídio? Meredith empalideceu. — Como soube disso? — Eu soube. Não importa como. — O capitão se inclinava um pouco para a frente, sua estatura impressíonan-do-a. — Por que ia com frequência à prisão, sra. Carter? — Para ajudar.
Rafferty arqueou as sobrancelhas. — Mesmo? Não me pareceu tão interessada nisso naquela noite da fuga... — Eu não sabia quais eram, de fato, as condições em que os prisioneiros viviam. E vi que eram péssimas. Não pude mais ignorar o fato e dar as costas àqueles pobres homens. — Sei, sei... Aposto que seu marido Confederado aprovava sua espionagem. — James detestava minhas visitas ao presídio. Rafferty a estudou por um longo momento, como se quisesse captar algo além do que ouvia. — É muito convincente — comentou, por fim. — Estou sendo sincera. Eu estava na prisão no dia da fuga, sim, mas foi apenas uma coincidência infeliz. — Eu chamaria de planejamento errado de sua parte. — Como pode me julgar assim? Nada sabe a meu respeito! — Sei muito mais do que imagina, sra. Carter. — Retirou um pequeno livro de capa de couro do bolso do paletó escuro e folheouo, resumindo suas anotações: — Nasceu na Virgínia, mas seu pai serviu no Exército, e teve de mudar-se muitas vezes durante a infância. Quando estava com doze anos, seus pais morreram de febre tifóide. Então, seguiu para Richmond, para viver com seu tio. Ele nasceu em Nova York, mas sua falecida esposa era da Virgínia também, por isso Ezra Johnson se estabeleceu em Richmond. Você se casou com James Carter em fevereiro de 1864 e, sete meses depois, ele foi morto próximo a Petersburg. Conforme o capitão lia, Meredith tornava-se mais e mais irritada com aquele resumo frio de sua vida. Mas Rafferty continuou, calmo: — Ah, não mencionei o fato de que, antes de sua apressada partida de Richmond, em setembro de 1864, você e seu tio fizeram duas viagens a Washington nesse mesmo verão. — Viajamos para o Norte para comprar medicamentos. — Ou para negociar informações, talvez. — Capitão Rafferty, éramos pessoas interessadas em salvar vidas, não em espionar. — Salvar vidas... — zombou. Tornou a guardar o livrinho, indagando: — E esse o nome que dá ao que fazia, então... — Sim. Mesmo rindo, ele estava muitíssimo tenso. As lembranças do passado deixavam-no ainda mais bravo. — Levei duas semanas para retornar às linhas da União —
revelou, agora sério. — Quase morri devido ao frio, mas consegui chegar. E o que me fazia seguir em frente era o pensamento de encontrá-la. Fiquei acordado durante muitas noites depois daquela em que fugi. Os disparos e os gritos dos prisioneiros permaneciam em meus ouvidos e não me deixavam em paz. Lembrava-me de você sempre, cada vez com uma certeza maior de que a levaria diante da justiça. Muitas vezes não quis acreditar que tivesse quebrado sua promessa ou que eu tivesse sido tão tolo a ponto de acreditar nela. Meredith cerrou os lábios. O que Travis dizia a emocionava, mas não queria demonstrar seus sentimentos. Como fizera a muitas outras pessoas, a guerra havia marcado para sempre a alma daquele homem. — Não fui eu quem contou aos guardas. — Tenho evidências. — E Travis parecia quase triste agora. Confusa, Meredith meneou cabeça, sem entender. — Como pode haver evidências, se não fiz nada?! — Lembra-se do tenente Ward? — Sim. Foi por causa dele que estive na prisão naquela noite. Cuidei de seu ferimento. Foi ele quem mencionou a fuga para mim, porque estava febril. Rafferty assentiu, grave. — Tem boa memória. — E acrescentou, em seguida: — Ward ainda não consegue mover direito aquele braço, mas foi promovido a capitão. Ele também se lembra de você. Na realidade, disse-me coisas muito interessantes sobre sua pessoa. Meredith inclinou a cabeça, estranhando aquilo. — O que quer dizer com isso? — Também Michael fez suas investigações sobre aquela noite. Como eu, queria saber quem estava apor trás de tudo, quem frustrou a fuga. Sua família tem influência e não demorou muito para que descobrisse que foi você quem nos delatou. — É mentira! — Ele me mostrou o testemunho do carcereiro que admitiu ter sido você quem lhe falou sobre a fuga de prisioneiros. Meredith negou, alegando: — Os carcereiros, e quase toda a população de Rich-mond, não gostavam de mim porque eu ajudava os prisioneiros! Não pode acreditar no que esse carcereiro ou qualquer outro habitante de Richmond possa dizer sobre mim! — Ward me pediu para deixar tudo para trás, falou que era melhor enterrar o passado, porque de nada adiantaria trazê-lo de
volta agora, mas não consegui. Muitos homens, bons homens, morreram naquela noite. Ela deixou suas roupas caírem ao chão. — Não fui eu! — Isso, o juiz em Washington é quem vai decidir. — Travis retirou um pedaço de papel do bolso da camisa. — Tenho aqui um mandado para sua prisão. Meredith deu um passo atrás, assustada. — Não quero saber de seus papéis! Não vou a parte alguma com você! - Não estou pedindo que me acompanhe. — Jogou o documento sobre a cama. — Tem cinco minutos para fazer a mala e vir comigo. Meredith engoliu em seco. Parecia estar sem alternativa, mas ainda tentou: — Há pessoas nesta cidade que gostam de mim. Não vão deixar que me leve para Washington. — Imagino que tentassem ajudá-la, mas... não vamos passar pela cidade. Alarmada, Meredith tentou outro caminho: — E os suprimentos? A próxima cidade fica a mais de cinquenta quilômetros daqui. — Antes de vir para cá comprei tudo de que precisaremos para a viagem. — Não o vi na cidade — ela desafiou-o. — Porque estava no armazém. — Não acredito no que diz. Um sorriso quase cruel passou pelos lábios dele. — George Walker pareceu gostar muito de você. Meredith sentiu o ar lhe faltar. O que Travis Rafferty não sabia a seu respeito? Como um animal enjaulado, deu passos vagos pelo quarto. Raciocinou por instantes e ameaçou: — O sr. Walker irá atrás de mim. Ele quer se casar comigo. — Que venha. Nada tenho a esconder. Bem, mas agora você só tem quatro minutos para arrumar a mala. — O que... o que posso lhe dizer para convencê-lo de que estou sendo franca?! — Nada. Tensa, Meredith olhou ao redor, pensando mais uma vez em fugir. Não podia voltar a Washington. Sozinha e sem recursos, não conseguiria lutar contra as evidências forjadas que se apresentavam contra ela. Teria de encontrar um meio de escapar a Travis Rafferty. Ainda
pensando, foi até o pé de sua cama, onde havia um baú, e, de lá, retirou uma mala de lona. Colo-cou-a sobre o colchão e pegou as roupas que deixara cair, deixando-as ao lado da mala. Ponderava. Poderia correr assim que saíssem, mas não haveria como chegar até seu cavalo. Teria de correr para a mata. Tentava acalmar a mente enquanto suas mãos trêmulas dobravam as peças de vestuário. Se pudesse chegar ao riacho... A tensão no quarto era enorme. Enfiou uma blusa e uma saia na mala, imaginando que caminho faria até a cidade, caso seu plano de fuga desse certo. Continuou cuidando da bagagem e sentiu, entre uma delas, o contorno de seu diário. Escrevera nele todos os dias da guerra. De certa forma, as palavras que colocava ali faziam-na esquecer um pouco os horrores que presenciara. Mas, desde que se mudara para o Texas com seu tio, nunca mais abrira o pequeno livro. Pensou em deixá-lo de lado, mas, de repente, teve a ideia de que ele poderia ser a prova de que precisava. Voltou-se e mostrou-o a Rafferty. — Por que não lê isto? Ele pegou o livro e folheou-o sem demonstrar muito interesse. — Um diário? — Sim. Escrevi em detalhes tudo o que fiz quase todos os dias. Não há menção alguma sobre espionagem aí. Travis lhe devolveu o volume. — E por que haveria? É esperta, Meredith. Jamais seria tola o suficiente para escrever algo que a incriminasse. A calma que ele demonstrava, muito mais do que qualquer ameaça, irritou-a. — Não quer encontrar nada que possa limpar meu nome, não é?! — Não é assim. Meredith lançou o diário sobre a cama. — Quer me ver castigada, isso sim! Você é tão cruel quanto um caçador qualquer de recompensas! O capitão a encarou por segundos, depois rebateu, ainda tranquilo: — Estou agindo dentro da lei, com garantias e evidências. — Pois não se engane comigo! Sei muito bem o quanto é fácil conseguir qualquer tipo de evidência contra um sulista! Há ainda muita emoção, muito ódio no ar. Um ressentimento enorme contra o Sul em Washington! Rafferty sorriu de leve. — Para falar a verdade, não foi nada fácil conseguir essas provas. Ninguém se importava com você ou com sua espionagem
até que forcei o assunto. Muita gente me aconselhou a deixar todo para trás, me afastar do caso, mas fui eu que recusei. E insisti em procurá-la. — Se... se ninguém mais está interessado no que aconteceu, isso não lhe sugere algo? — Sim. Que todos querem continuar com suas vidas e esquecer que essa guerra existiu. Mas sei que ela existiu. Posso não conseguir resolver milhares de outras injustiças cometidas no período, mas posso resolver esta, e é o que vou fazer. De repente, relinchos de cavalos chamaram a atenção de ambos. Alguém estava chegando, e isso encheu o coração de Meredith de alegria. Rafferty olhou para a porta da frente, tenso. — Deve ser um paciente — Meredith sugeriu, tentando distraílo. E, rápida, fez menção de seguir até a entrada. Rafferty, porém, segurou-a logo. — Por que a pressa, sra. Carter? — Pode ser algo grave, alguém precisando de mim. — Muito bem, veremos isso juntos. Meredith assentiu e, quando Rafferty a soltou, seguiu devagar até a porta da frente. Controlava-se para não sair correndo. E já estava abrindo a porta quando a mão forte de Rafferty pressionou-a de novo, fechada. — Espere. Podem ir embora. Ela se esforçava por não gritar. Sabia, porém, que podia contar com a honra daquele capitão. — Se essa gente veio aqui à noite é porque alguém deve estar precisando de cuidados médicos com urgência! O dilema inesperado parecia deixá-lo pouco à vontade. — Você não é a única que pode ajudar. — Se sabe tanto sobre mim, deve saber também que sou a única pessoa em quilômetros com alguma habilidade médica. Há muitas mulheres grávidas na cidade, com bebês que podem chegar a qualquer momento. Rafferty cerrou os dentes e empurrou-a até a janela. Afastou a cortina e indagou: — Reconhece-os? Não, ela não reconhecia ninguém, mas mentiu: — Sim, sim. Os dois recém-chegados traziam tochas. Usavam roupas de vaqueiros e pareciam ter cavalgado muito. Um deles usava roupas sujas, com franjas na camisa, calça do Exército da União e chapéu
de aba larga. Seu cavalo era tão magro que lhe apareciam as costelas. O outro era mais baixo que o primeiro, um tanto gordo, e tinha também as roupas bem sujas. Seu chapéu estava enterrado sobre a testa, tornando impossível distinguir suas feições. Meredith sentiu o peito se apertar na angústia da situação que vivia. — Conhece esse tipo de gente? — Rafferty estranhou. — Bem, eu... acho que sim. — Recebe estranhos à noite com frequência? — Não é tão incomum assim... — mentiu. Rafferty fez um pequeno ruído, como se desaprovasse o fato, e orientou: — Descubra de quem se trata antes de atender à porta. — Nunca tive problemas antes. — Mesmo assim. —Acompanhou-a até lá, retirou a arma do coldre e alertou: — Fiz algumas perguntas por aí e logo descobri onde você mora. Outras pessoas poderiam fazer o mesmo. Meredith percebeu sua preocupação e indagou: — Por quê, de hora para outra, está com tantos cuidados comigo? — Porque a quero sã e salva quando enfrentar o júri. Respirando fundo, um tanto zangada com a resposta, ainda vacilou antes de abrir. — Ajude quem quer que seja o mais rápido que puder — Rafferty a avisou. — Vamos partir assim que terminar. O capitão colocou a mão esquerda sobre o ombro de Meredith enquanto ela destrancava a porta, e murmurou a seu ouvido: — Confiei em você uma vez e me arrependi. Não me faça de idiota outra vez. Qualquer um que tentar ajudá-la a escapar será processado por obstrução à justiça. Ele a seguira até ali e Meredith não tinha dúvidas de que cumpriria o que dizia. Rafferty não era um homem de fazer ameaças infundadas. Mesmo querendo muito escapar, não arriscaria mandar um amigo ou conhecido para a cadeia. O capitão se afastou um pouco para trás e ergueu um pouco mais a arma, preparando-a para disparar, se necessário. Meredith suspirou e saiu para a varanda. — Em que posso ajudá-los, cavalheiros? O primeiro sujeito fez seu animal aproximar-se mais e indagou: — Você é Meredith Carter? — Sim. A luz da lua deixava bem visíveis as armas que o estranho
carregava no cinturão. E Rafferty agiu depressa. Saiu de repente para a varanda, empurrou Meredith para um lado, fazendo-a cair. E, no segundo que se seguiu, a noite irrompeu num tiroteio furioso.
CAPÍTULO III No chão, Meredith mantinha a cabeça coberta com as mãos. Havia projéteis voando por cima dela e entrando pela casa, atingindo parte da parede, da porta, espalhando lascas de madeira por toda parte. Com esforço e medo, arrastou-se até a pesada cadeira de balanço que ficava ao lado da porta e, de lá, gritou: — Rafferty! Foi você quem trouxe essa gente até minha casa? Ele atirava e parou de repente para recarregar a arma, apressado. — É claro que não! — gritou também, pois o barulho dos disparos era intenso. O capitão voltou a atirar e, ao longe, Meredith ouviu um grito de dor de um dos forasteiros. Ergueu os olhos, com cuidado, para ver que o estranho caía de seu cavalo, para permanecer inerte no pó do chão. — Larry! — gritou o comparsa. — Droga! Não acredito que se tenha deixado matar! — E voltou-se para continuar atirando contra a casa. Quando suas balas terminaram e teve de recarregar o revólver, Rafferty tirou vantagem do momento e, levan-tando-se rápido, disparou uma vez mais, atingindo-o também. Com uma expressão de surpresa e dor, o sujeito caiu, morto. Um silêncio profundo se seguiu então. Rafferty, prudente, aguardou na posição em que estava, o olhar atento aos homens caídos, à espera de qualquer sinal de vida. Mas nada houve. Só então Rafferty seguiu até o meio do pátio e, ainda empunhando sua arma, deu um cutucão no camarada que se encontrava mais próximo. Mas os olhos dele estavam fixos, sem brilho. Indo em direção ao outro, o capitão vi-rou-o para cima, para ver a grande mancha de sangue que se formara em sua camisa cinza. Também morrera. Meredith ergueu-se devagar, ainda amedrontada, e apoiou-se em um balaústre. Ao luar, conseguia ver o rosto de Larry. Era estranho, mas sua expressão, na morte, era serena. Engoliu em seco. A visão da morte sempre a deixava nervosa.
Afastou uma mecha que lhe caía sobre o rosto e indagou: — Estão mortos? — Sem sombra de dúvida — Rafferty respondeu, com certo humor negro. Então, pegou as armas deles e lançou-as para a varanda. Seus gestos eram bruscos, quase violentos, e Meredith imaginou que estava tão alterado que poderia matar aqueles sujeitos uma vez mais, se fosse necessário. — Quem eram eles? — ela quis saber, ainda confusa com o que acontecera. — Não sei. Com movimentos lentos, Travis guardou o revólver e pegou uma das tochas que ainda ardiam. Ajoelhou-se ao lado do sujeito que estava mais perto e vasculhou seus bolsos. Encontrou um pedaço de papel dobrado, que abriu e leu com atenção. — Mas eles sabiam quem você é. Meredith desceu os dois degraus e aproximou-se, tomando cautela para não chegar perto demais de Rafferty. Ele podia tê-la salvado, mas ainda representava um perigo. — Muitas pessoas neste vale me conhecem. Não há um médico por aqui, como eu já disse, e muitos vêm me procurar quando estão doentes ou feridos. Rafferty ergueu o papel para ela e perguntou: — E quantas pessoas por aqui recebem telegramas de Washington com o endereço de sua casa? Ela mordeu o lábio inferior. — Por que alguém de Washington iria mandar esses homens até aqui? — indagou, como para si mesma. E, como se estivesse explicando algo a uma criança, Rafferty falou: — Vieram com o único propósito de matá-la. Um calafrio passou pela espinha de Meredith. Olhou-o e murmurou, assustada: — Você salvou minha vida... — É, parece que sim. O tom arrogante dele a irritou. Detestava" dever algo a alguém como Travis Rafferty. Mesmo assim, agradeceu: — Obrigada. No olhar dele agora, a violência do tiroteio desaparecera e estava de volta a frieza que a fazia temê-lo. — Considere que estamos quites — respondeu apenas. Era óbvio que se referia àquela noite, na prisão Libby,
quando ela socorrera o tenente Ward. Meredith ajudara o oficial e sentira que Rafferty também não gostava de dever favores. — Por que alguém iria querer me matar? Rafferty enfiou a folha dobrada em seu próprio bolso e meneou a cabeça. — Não sei, mas vou querer descobrir quando chegarmos a Washington. Mais uma vez, Meredith se apavorou. Não queria, não podia seguir com ele. — Precisamos chamar o xerife. — O xerife vai descobrir o que aconteceu aqui por si mesmo. — Mas ele irá querer saber o que houve, e esses homens precisam ser enterrados. — Nada disso é meu problema agora. — Com a tocha ainda na mão, chegou mais perto. — Estamos de partida. Meredith deixou que seu olhar vagasse até a mata do outro lado da propriedade e, depois dela, o caminho que levava ao riacho. Queria agarrar-se a qualquer coisa que retardasse sua partida. — Ainda não terminei de arrumar a mala. — Não há mais tempo. Temos de partir já. — Há coisas de que vou precisar... Rafferty, como se pudesse ler a intenção dela de escapar, deu dois passos largos em sua direção e segurou-a por um braço. — Não me provoque, anjo. — E forçou-a a retornar à varanda. Meredith baixou o olhar para a mão que a segurava e viu que havia sangue nela, bem como no lado esquerdo de Rafferty. — Você foi atingido! O capitão nem mesmo olhou para seu ferimento. — Isso não muda nada — murmurou ele por entre os dentes. Sempre empurrando-a, levou-a para os fundos. Mesmo ferido ainda mantinha-se muito forte. Atrás da residência estava um cavalo alto, branco, selado e preso a uma árvore. — Hora de partirmos, anjo. Em pânico, Meredith tentou forçá-lo a soltá-la, parando de andar. Procurava afastar a mão dele de seu braço, mas os dedos ficaram cada vez mais firmes e a feriram, fazen-do-a gritar. — Pode berrar o quanto quiser, moça. Não há ninguém além de nós por aqui. A não ser que aqueles dois tenham companheiros escondidos por perto. Se assim for, logo saberemos. Meredith tropeçou. — Eles estavam sozinhos. Você está apenas tentando me assustar.
Rafferty largou a tocha e apagou-a com a sola do sapato. — Estou apenas tentando mantê-la viva. — Tomando as rédeas, ordenou: — Agora, monte. — Não podemos seguir assim! Você poderá sangrar até morrer no caminho! Não conseguirá chegar a Washington nessas condições! Ao luar, Meredith podia ver que havia gotas de suor no rosto dele. — Não se preocupe, vou conseguir, sim. Agora, monte! Com o coração aos pulos, Meredith segurou a sela, mas ainda insistiu: — Rafferty, por favor, ouça: detestei a União e o que ela fez a minha vida, mas nunca traí você, nem aqueles prisioneiros. Eu juro! — A corte é que decidirá isso. A voz dele estava mais baixa, sua respiração, mais difícil. Já não conseguia esconder o fato de que sentia muita dor. Poucas pessoas conseguiam perder sangue e continuar movimentando-se sem maiores problemas. — Você poderá desmaiar em breve. Rafferty se inclinou mais para perto. Seu peito tocou o ombro dela. — Estou emocionado com sua preocupação. — Rafferty, você é um homem robusto. Poderia aguentar por horas, talvez dias, mas, por fim, iria sucumbir à perda de sangue. E, fora dos limites deste condado, estarei perdida. Se você desmaiar, não conseguirei achar o caminho para nos trazer de volta para cá. — Não vou desmaiar. — Olhe, vamos, pelo menos, pernoitar aqui. Posso cuidar de você. Os dentes dele apareceram de novo, em mais um sorriso sarcástico. — Você é a última pessoa que eu gostaria que cuidasse de mim. — Sabe que posso ajudá-lo. — A quê? A chegar mais depressa ao túmulo? — E se houver outros homens esperando para nos emboscar? Você não está em condições de lutar. Nossa melhor opção é seguir para a cidade. — Na verdade, essa era a melhor opção apenas para ela mesma. — Boa tentativa, mas em vão, anjo. Agora, monte nesse cavalo antes que eu a amarre e a coloque aí em cima eu mesmo. Meredith sabia que aquele era seu único, determinante momento de escapar. Então, num movimento inesperado, lançou seu corpo contra o ferimento de Rafferty, sua mão atingiu a ferida
em cheio. Ele vacilou, dobrou-se para a frente, cheio de dor, e caiu sobre si mesmo. O cavalo, assustado, moveu-se de um lado para o outro. — Droga! — Rafferty murmurou, numa expressão de sofrimento. Meredith iniciou uma corrida desenfreada até a floresta. Mas os reflexos de Rafferty eram rápidos. Estendeu-se no solo e ainda conseguiu segurar a ponta da saia dela. O som de tecido sendo rasgado misturou-se ao grito de Meredith: — Solte-me! — Vim de muito longe para perdê-la agora. — Puxou-a com força, agarrando seu tornozelo e tirando-lhe o equilíbrio, fazendo-a cair sobre as mãos e os joelhos. Ela ainda se debateu, tentando se erguer, mas os dedos de Rafferty possuíam uma força incrível, que a detinha. — Você é um louco! Com dificuldade, e sem soltá-la, o capitão se levantou e, um tanto cambaleante, pisou sobre a saia, impedindo que Meredith se erguesse também. — Não. Louco, não. Apenas determinado. Rafferty ficou por alguns instantes imóvel, tentando ganhar energia, lutando contra a dor. O sangue em sua camisa e em parte de seu rosto fazia-o parecer mais um monstro que um homem. Por fim, recuperando o fôlego, levantou Meredith e empurrou-a mais uma vez até a montaria. Instigou-a a montar, ouvindo ainda: — Por favor, não está sendo sensato... Posso ajudá-lo. — Como fez há dois anos, não é? Com um movimento de cabeça, ele mostrou-lhe a sela. Seus lábios não tinham cor. Meredith ouviu ruído de metal e, baixando a vista, notou que ele tirava algemas da sacola presa à sela. Se deixasse que o capitão a algemasse, ela sabia, não conseguiria mais escapar de modo algum. — Se você morrer no caminho, não só estarei perdida como ligada a seu cadáver. Rafferty se inclinou para a frente, para prendê-la junto ao cavalo. — Tocante. Agora, dê-me a mão. — Por favor, não faça isso! — pediu, ainda. — Dê-me sua mão, droga! E, antes que Meredith pudesse reagir, o capitão tomou-lhe o pulso e passou uma das argolas das algemas por ele.
Ela engoliu um soluço. Se ele fechasse a outra argola em seu próprio punho, Meredith não teria escapatória. Sem pensar, ergueu o pé direito e chutou-o com força na canela. O golpe o fez recuar um passo, dando oportunidade para que ela se afastasse, desesperada. Começou a correr, a algema pendurada, arrancada das mãos dele. Na fuga, ao olhar para trás para ver a reação de Rafferty, Meredith tropeçou num monte de grama, mas continuou correndo, a respiração cada vez mais difícil devido ao medo e à corrida. Pretendia alcançar a mata antes que Rafferty tivesse chance de ver por onde seguia. Iria pelo riacho, pelo bosque, através das rochas que formavam uma espécie de labirinto mais adiante. Na escuridão, havia centenas de lugares onde poderia se esconder. Sentia-se como que presa num pesadelo enquanto seguia, com galhos arranhando o tecido de sua roupa. Logo estaria a salvo, repetia para si mesma. Levou as mãos ao lado do corpo, onde a dor provocada pelo esforço começava a incomodá-la. Podia agora ouvir os passos apressados de Rafferty logo atrás. Olhou para ver onde ele se encontrava. Viu-o avançar cada vez com maior velocidade. Ofegava, ela percebia, mas prosseguia, incansável. Conseguiria agarrá-la se não corresse ainda mais. Com forças renovadas, Meredith acelerou os passos, sem se voltar mais. E o capitão continuava, desesperando-a. Estava mais próximo. Faltava pouco agora para chegar à floresta, onde estaria em segurança. Muito pouco. Mas Rafferty a cada instante se achava mais próximo. Meredith sentia as forças desaparecerem, mas queria continuar. Precisava chegar à mata! Sentiu, de repente, os dedos dele esbarrando em seu ombro. — Oh! — Pare, droga! — Solte-me, Rafferty! Vá embora! Os dedos dele envolveram-lhe os cabelos soltos e Meredith sentiu um puxão violento. Aquilo a fez estacar. Rafferty a trouxe para junto de si. Os dois respiravam profundamente. Os botões do paletó que ele usava bateram contra as costas de Meredith e sua respiração apressada atingiu-lhe os ouvidos. Ela podia sentir o cheiro que vinha dele, uma mistura de couro, suor, sangue. — Já chega, moça. Coloque a outra algema. Os joelhos dela tremiam. Durante uma fração de segundo ficou estática, confusa, imaginando que aquilo não podia estar
acontecendo. Sua hesitação irritou-o ainda mais: — Ande logo com isso! Tremendo, Meredith tateava em busca da algema. — Por favor, ouça, capitão, não tive nada a ver com... — Cale a boca! O corpo todo de Meredith tremia agora. Sentia-se junto de um animal terrível, imprevisível. Notou seu ombro direito molhado e levou os dedos até ele, percebendo que tateava sangue. Sangue de Rafferty. — Se tiver minhas mãos presas, não poderei ajudá-lo. — Não comece de novo. Já falei que não quero que cuide de mim, muito menos que enfie uma faca em minhas costas! Meredith o fitou. Rafferty estava pálido como uma folha de papel. Nem de longe tão firme quanto antes. — Você está morrendo! Os olhos dele se estreitaram um pouco, quando tentou endireitar-se. — Vamos, feche a algema. Meredith sabia que, se ganhasse ainda um pouco de tempo, ele desmaiaria. Pegou a algema que pendurada e disse: — Você não vai conseguir cavalgar. Ainda mais inclinado, capitão teimou: — Vou, sim. Meredith olhou para a algema que pendia da ponta da corrente, uma arma perfeita. — Mal consegue ficar em pé... — Ela vacilava, olhando para a algema. — Se me atingir com essa algema, a devastação de Atlanta pelos ianques parecerá quase nada perto do que lurei a você. — E, sem esperar por mais nada, Rafferty tomou o meta e, segurando o punho de Meredith, fechou a argola em torno dele. Agora estava perdida, ela concluiu, com um aperto na garganta. Calado, Rafferty segurou a corrente que pendia das duas argolas e caminhou de volta à casa. Ele continuava caminhando, qualquer outro homem em seu lugar já teria desmaiado, mas o capitão persistia, movido pela determinação. Já estavam próximos de seu cavalo quando Rafferty cambaleou. Deu mais alguns passos, porém, e segurou as rédeas do animal, mas encostou a testa no pescoço dele, como para ganhar equilíbrio e recobrar-se. O animal in-quietou-se, devido ao cheiro de sangue.
— Rafferty, deixe-me fazer algo por você. — Não me toque! — E, como para provar que ainda mantinha o controle da situação, afastou-se um pouco do cavalo e sacou do revólver, ordenando: — Monte! Sabendo ser inútil continuar a resistir, Meredith colocou o pé no estribo e percebeu que ele guardava a arma. Foi então que viu-o cair de joelhos. Ela esperou, apenas observando-o. Rafferty deitou-se de costas, tentou sentar-se ainda uma vez, mas, não suportando mais, desfaleceu. Meredith se afastou do cavalo e do corpo caído. Sentia o peso da corrente. Precisava da chave para abrir as algemas. Deveria estar num dos bolsos dele. Meredith esperou durante tensos segundos. Olhou-o com mais atenção. Rafferty parecia não estar respirando. Enchendo-se de coragem, tornou a se aproximar e tocou-lhe o pescoço. Sentiu sua pulsação, embora estivesse fraca. Ele estava vivo. Com cuidado e evitando encará-lo, vasculhou nos bolsos internos do paletó dele, até encontrar a chave. — Oh, graças a Deus! — Sem demora, conseguiu li-vrar-se das algemas, sempre agradecendo ao Pai. Estava tão aliviada por ver-se livre que seus olhos en-cheramse de lágrimas de alegria. Esfregou os punhos doloridos, marcados, e respirou fundo, tentando se acalmar. Olhou para o peito de Rafferty, que subia e descia devagar, na respiração fraca, e ergueu de leve a camisa, inspecionando a ferida. O sangramento era intenso. — Eu devia deixá-lo sangrar até morrer, seu teimoso malvado! Afinal por que eu deveria ajudar alguém que quer me colocar na cadeia? No momento em que pronunciou aquelas palavras, que ele não podia ouvir, percebeu que não poderia ficar ali, sem agir. Tocou-lhe a testa, verificando sua temperatura. Rafferty estava frio. Muito frio. Havia duas opções diante de Meredith: a primeira seria pegar o cavalo, seguir até a cidade e buscar o xerife, o que levaria quase uma hora, com Rafferty se esvaindo em sangue. Lógico que sua morte seria a solução para todos os problemas que tinha diante de si. Ninguém mais viria procurá-la com aquela missão terrível de fazer justiça. Estaria livre para viver sua vida sem o espectro da guerra pairando sobre sua cabeça. A segunda era ficar e cuidar de Rafferty, tentando sal-var-lhe a vida. Se, por milagre, conseguisse, ele a levaria de volta a
Washington e a colocaria diante de um tribunal. Sua teimosia não seria afetada por nenhum gesto de humanidade. O dilema parecia ser bem simples de ser resolvido. Meredith se pôs de pé e começou a se afastar, mas parou e voltou-se. Ele estava morrendo e não havia mais ninguém ali capaz de salvá-lo, a não ser ela. Aborrecida consigo mesma, retornou e ajoelhou-se junto dele. — Devia deixá-lo aqui! — E verificou o ferimento uma vez mais. Rafferty abriu os olhos e fixou-a. Parecia consciente. — Esta é sua chance de terminar com tudo, moça. Ignorando-o, Meredith passou os braços pelas axilas dele e tentou erguê-lo, o que logo mostrou-se impossível. Com um esforço sobre-humano, tornou a tentar empregando toda a habilidade que poderia ter para se esforçar na dura tarefa de movêlo. — Vai ter de me ajudar. — Por quê? — Tente sentar-se. Fraco demais para protestar, Rafferty permitiu que Meredith o auxiliasse a se inclinar e depois sentar-se. Mas soltou um gemido. Tentava manter a mente controlada, firme, mas o sofrimento era demasiado, e sua cabeça pendeu sobre o ombro de Meredith. Ela esperou até perceber que ele recobrava a energia. Só então o enlaçou para ajudá-lo a levantar-se. — Vai me matar agora, anjo? — Ele parecia não estar mais tão lúcido. — Para quê? Para ter seu fantasma teimoso perseguin-do-me por toda a eternidade? Acho melhor não. Vamos, tente caminhar devagar. Era difícil dizer qual dos dois estava mais cansado. Meredith, pelo esforço de erguê-lo; Travis, pela exaustão e dor provocadas pelo ferimento. Era duro caminhar com o peso dele solto sobre seus ombros, mas Meredith ajudou-o a voltar para sua casa. — Não me faça nenhum favor, anjo — ele pediu, sem reconhecer que ela já o fazia. — E melhor ficar calado e poupar-se. — Para quê? Você mesma disse que estou morrendo... — Ele não parecia temeroso, mas aborrecido. — Terá de continuar caminhando, porque é muito pesado para mim. — Não sei por que está fazendo isso.
— Não? Porque pretendo salvar sua estúpida vida, ora essa!
CAPÍTULO IV Foi com sacrifício que subiram os degraus da varanda. Já junto à soleira, Travis mal conseguia erguer os pés do chão e tropeçou, desequilibrando a ambos. Meredith conseguiu impedir que caíssem apoiando o pé na parede. Depois, com um movimento firme, empurrou a porta, abrindo-a. Já lá dentro, ele parou de andar e cambaleou, reclamando: — Tudo gira... — A perda de sangue é o que o deixa tonto. — Não estou tonto. — O que está passando não vai parar só porque assim o quer, capitão. — Sei... E você parece estar adorando tudo isso. — Ah, sim! Cada momento. Mal puderam chegar à cama. Rafferty jogou-se sobre ela, respirando com dificuldade, exausto. Afundou a cabeça no travesseiro, sentindo muita dor, e procurando naquele breve conforto um alívio maior para seu sofrimento. Estavam ambos sujos de sangue. Meredith tocou-lhe a testa mais uma vez. O capitão estava gelado, e seus dedos começavam a tremer. — Aguente firme, Rafferty. Mas um calafrio percorreu o corpo dele, que se queixou: — Droga, estou com tanto frio! Meredith acendeu todos os lampiões que encontrou na casa e alimentou o fogo. Pôs uma chaleira com água para ferver e pegou uma faca menor do que a que usara para se defender de Rafferty, ajeitando-a sobre um dos queimadores. Quando tanto a água quanto a lâmina ficaram quentes, preparou suas ervas, linha e agulha, e levou tudo para o quarto, para cima de uma mesinha próxima ao leito. Rafferty desmaiara de novo. Estava muitíssimo pálido e tinha olheiras profundas. Preocupada, Meredith tocou-lhe o peito, para ter certeza de que ainda vivia, e ele entreabriu os olhos, tentando sentar-se.
— Onde estou? Ela o empurrou de leve de volta ao colchão, notando que, mesmo em seu estado frágil, mantinha a força. — Calma, capitão. Está seguro aqui. — Meu flanco está queimando... Meredith sabia que o toque de uma mão quente ajudava a acalmar um paciente. Por isso levou a palma à testa dele, murmurando: — Vou cuidar de seu ombro e ele vai melhorar. Mas Rafferty se agitou. — Não. Você, não! Nunca! Sem discutir, Meredith segurou-lhe o rosto entre as mãos e o fez encará-la. — Rafferty, quanto mais se mexer, mais sangrará. Precisa confiar em mim. Algo que não soube como definir apareceu nos olhos dele. -— Cometi esse erro uma vez — ouviu-o sussurrar. — Não tem alternativa, agora. — Tenho, sim! Vou embora daqui! — E tentou, mais uma vez, erguer-se. Os homens costumavam ser seus piores pacientes. A água fervia, e Meredith tentou outra tática: — Muito bem, então pode ir. Dirigiu-se à cozinha e retirou a chaleira do fogo, retornando em seguida ao quarto. Rafferty ainda tentava sentar-se. Meredith cruzou os braços e ficou observando. Se ele conseguisse se levantar, seria um milagre. Com extrema dificuldade, o capitão apoiou-se nos cotovelos, depois vacilou e caiu sobre a cama. Com um gesto fraco, esmurrou os lençóis com a mão direita. Satisfeita por ver que ele não iria a lugar algum, ela começou a tirar-lhe as botas. — Se quisesse vê-lo morto, capitão, teria disparado contra você lá fora. Pense nisso. Por que me daria ao trabalho de arrastá-lo para dentro de minha casa e só matá-lo aqui? Para ter de arrastar seu cadáver para fora depois? Já precisarei cavar duas sepulturas para os homens que matou. Não gostaria de ter o trabalho de cavar mais uma para você. O capitão pareceu relaxar, como se entendesse a lógica do que escutava. — Isso não muda nada, moça. Ainda pretendo levá-la para Washington.
— Oh, obrigada por ser tão grato por minha bondade... — ironizou e estendeu os braços para tirar-lhe o cinturão, mas Rafferty apertou-o, firme. — Minhas armas, não! — Não se preocupe. Vou deixar seu cinturão pendurado na cabeceira. Poderá alcançá-lo quando quiser. Ele assentiu, exaurido demais para continuar falando. Assim, aquietou-se. Depois de fazer o que prometera, deixando as armas ao alcance dele, Meredith abriu a maleta que fora de seu tio e retirou dela a tesoura, com a qual começou a cortar 0 tecido ensopado da camisa de Rafferty. Os músculos do tórax dele se retesaram de imediato. Só naquele momento ela notou que eram dois ferimen-tos, no braço e no flanco. Meredith deixou as tiras de tecido numa vasilha que colocara ao lado do leito e olhou, à luz dos lampiões, para o peito largo, no qual a respiração mostrava-se entrecortada, difícil. Havia uma antiga cicatriz cruzando o lado esquerdo, marca de uma baioneta, decerto, e no braço marcas miúdas de queimadura, provocadas por pólvora. Muita dor, Meredith avaliou. E passou dar toda sua atenção à lesão a bala, que sangrava demais. O projétil no flanco parecia ter vazado para fora, mas a hemorragia era intensa e a ferida teria de ser cauterizada. O do ombro pegara de raspão, portanto, não demandaria muitos cuidados. Engoliu em seco diante do que precisaria fazer. Ajudara seu tio a tratar inúmeros ferimentos como aquele durante a guerra, mas seu estômago nunca fora forte o suficiente, como o do querido dr. Johnson. Rafferty umedeceu os lábios. — O que vai fazer? — Preciso parar o sangramento. — Ótimo. Poderemos partir logo depois, então. Ela quase riu. A mente dele estava tão confusa que não fazia ideia da gravidade da situação. Como precaução, amarrou-o à armação de metal da cama. Verificou mais de uma vez os nós que dera e depois seguiu até o fogão para examinar a lâmina. Estava avermelhada. Pronta para ser usada. Meredith usou um trapo para enrolar ao cabo e evitar se queimar. Voltou ao quarto e avisou, um tanto receosa: — Capitão, terei de cauterizar a ferida agora. Ele a fitou, mas sem expressão alguma, mostrando que não entendia bem o que Meredith lhe dizia.
Deixando de lado qualquer pudor, Meredith sentou-se sobre o capitão, sabendo que, assim, evitaria ainda qualquer movimento de sua parte. Já tratara de pacientes delirantes ou aflitos demais e que precisavam ser seguros de qualquer maneira. Apertou os joelhos em torno de seus quadris, sabendo que, em segundos, Rafferty estaria pulando como um potro bravo. — Sinto muito. — E, sem demora, colocou a lâmina em brasa contra a carne dele. Os olhos de Rafferty se arregalaram, e ele arqueou o corpo para cima, a cabeça enterrada no travesseiro. As veias em seu pescoço saltaram, e suas mãos, atadas, cerraram os punhos. Entretanto, nem um som escapou de sua garganta. Meredith tentou equilibrar-se. O cheiro de queimado causavalhe náuseas. Contou até cinco, com calma, como aprendera a fazer com seu tio, e depois afastou a lâmina. O corpo enorme de Rafferty, agora banhado em suor, imobilizou-se por completo. Ele tornara a desmaiar, para sua própria sorte. Meredith saiu de cima dele com cuidado e observou-o por instantes. Sentia as pernas tremerem, vacilantes, e a náusea persistia, debilitando-a. Deixou a faca sobre a mesa-de-cabeceira e inspecionou o machucado. O sangramento parara, mas a pele estava feridíssima. Não precisaria repetir a cauterização, o que era uma bênção. Levou ainda meia hora para limpar e costurar a lesão. Ao terminar, estudou com atenção os pontos caprichados que dera ao longo da marca deixada pela lâmina incandescente. Mais uma cicatriz marcaria a pele do capitão Travis Rafferty, mas ele sobreviveria e não teria nenhuma sequela. Exausta, Meredith sentou-se à beira da cama e, pegando um pote que trouxera, abriu-o e passou uma boa camada de pomada medicinal sobre a ferida. A pele estava fria agora, mas ela sabia que a febre ainda viria. A luta para salvar Rafferty seria longa. Mesmo desmaiado, ele mantinha uma expressão dura. Meredith tocou-lhe a face e comentou, mesmo sabendo que ele não a ouvia: — Parece que estamos aqui, presos um ao outro, por alguns dias, capitão. Travis poderia recuperar-se da febre. Nesse caso, que aconteceria? Ele ainda corria o risco de morrer... E, se morresse, ela poderia viver com isso na consciência? Quando deu-se por satisfeita, sabendo que fizera todo o possível pelo capitão, o sol começou a aparecer no horizonte, para
um novo dia. Meredith queria apenas dormir um pouco, mas sabia que não podia deixar os corpos daqueles dois homens lá fora, expostos daquela maneira. Teria de enfrentar a dura tarefa de enterrá-los. Saiu de casa e logo viu o cavalo branco de Rafferty, que pastava junto a um touceira, pouco além do pátio. E, ao percebê-la, ergueu a cabeça. — Cuido de você depois — prometeu, passando pelo animal. Ao ouvir-lhe a voz, Shorty apareceu, preguiçoso, vindo do estábulo, e logo abanou a cauda, saudando-a. Meredith foi até lá, acariciou-lhe a cabeça, cuidou de Blue e depois, com ajuda dele, arrastou os corpos dos dois estranhos até o campo, que se abria próximo ao riacho, onde o solo era mais macio. Cavou uma vala suficiente para os dois cadáveres e enterrou-os da melhor maneira que pôde, chegando mesmo a fazer uma oração quando terminou, por suas almas. Quando retornou, com o cavalo e o cachorro, para o pátio, já era quase meio-dia, e o garanhão de Rafferty parecia estar a sua espera, tenso, impaciente. Meredith soltou Blue no estábulo e passou a dar mais atenção ao outro animal. — Ora, você é bonito! — Acariciou o pescoço do cavalo. Puxouo pelas rédeas, não sem certa resistência por parte dele, até o estábulo, onde tirou-lhe a sela e os arreios e deu-lhe água fresca e feno, além de algumas maçãs, como fizera com Blue. Para Shorty, ofereceu um bom pedaço de carne-seca. — Foi um dia e tanto, não, companheiro? — comentou, afagando as orelhas do cão. — Fazia tempo que não tínhamos tanta gente por aqui, não acha? O cachorro latiu, como se pudesse entendê-la, e correu, feliz, com seu pedaço de carne, para uma sombra embaixo de uma árvore. Meredith sorriu e, de repente, sentiu os cabelos de sua nuca se arrepiarem quando ouviu ruído de folhas sendo pisadas logo atrás de si. Virou-se, cuidadosa, e passou o olhar por toda sua volta, não querendo receber mais nenhuma visita inesperada. Afinal, Rafferty em nada poderia ajudá-la. Correu para dentro da residência e pegou um velho rifle que fora de seu tio. Havia muito a arma não era usada e temeu que estivesse suja ou impossibilitada de atirar. Mas teria de usá-la assim mesmo. Retornou à varanda, olhando para todos os lados, tentando ver se havia alguém por ali. Nada. Entretanto, continuava ouvindo os
ruídos, e seu coração se acelerava. Logo, de trás de alguns arbustos junto ao celeiro, apareceu o cavalo magro que pertencera a um dos homens mortos por Rafferty. O pobre animal estava num estado lamentável. Aliviada, Meredith deixou o rifle encostado à parede da varanda e seguiu em direção ao animal, falando com ele: — E então, amigão? Parece que precisa de um bom banho e de uma escovação bem demorada... O que me diz, hein? Ela notou a cicatriz feita por um chicote no flanco do animal e suspirou, apiedada. Pouco mais abaixo havia um ferimento, na certa provocado da mesma maneira. Teria de tratá-lo, ou poderia infeccionar. Demoraria para aquele pobre cavalo voltar a ficar em forma. Tomou-o pelas rédeas e levou-o consigo para o estábulo. Lá, retirou-lhe os arreios e murmurou para si mesma, enquanto observava a pobre criatura: — Bem, não preciso de outro cavalo. Acho que a sra. Harper tinha razão. Tenho, mesmo, uma queda por causas perdidas... Cuidou dele da melhor forma que podia, sabendo que, mesmo cansada, essa era a melhor forma para deixar de lado suas preocupações. Junto aos animais, sentia-se muito bem. Notava, porém, que o cavalo de Rafferty era mais difícil de ser cuidado, porque era desconfiado demais. — Como o dono. — Meneou a cabeça. E ofereceu uma maçã ao cavalo, que demorou a aceitá-la. — Menino, não vou envenená-lo, E só uma fruta. Quando você e seu dono aprenderão que não represento ameaça para ninguém? Com cautela, Meredith ergueu a mão na intenção de acariciar a cabeça do animal, que se mostrou esquivo a princípio, mas que depois aceitou-lhe o carinho com submissão. Depois de agradar o cavalo de Rafferty, Meredith vol-tou-se para o que fora do homem que tentara matá-la. Mesmo ainda jovem, o animal estava manco. Não serviria para trabalho algum de fazenda. Admirava-se por ele ter sido capaz de carregar uma pessoa. Deu-lhe uma maçã, ficando ainda mais triste por ver seu estado precário. — Acho que terei de arranjar um nome para você, garoto. O que acha de Sam? Como se entendesse, o cavalo assentiu, mastigando a fruta, saboreando-a como se nunca tivesse comido algo tão bom. — Quando for à cidade, verei se o ferreiro pode dar um jeito nesses seus cascos rachados e fazer-lhe ferraduras novas, está
bem? Dei uns pontos na mão dele, quando se machucou há dois meses, e o ferreiro me garantiu que estava me devendo um favor... Pronta para sair dali, Meredith passou pela armação de madeira onde deixara a sela de Rafferty e do homem morto e comparou-as. Deslizou os dedos pelos alforjes pendurados em ambas, sabendo que teria de abrir pelo menos a do estranho, para tentar saber o propósito de sua chegada ali. Todavia, curiosa, voltou-se primeiro para a sela e os alforjes de Rafferty. — Bem, não tirarei nada, só darei uma olhada — disse a si mesma, a título de desculpa. E, olhando para o cavalo branco, acrescentou: — Não dirá nada a ele, não é? Eu também não. Então, apanhou um saco de fumo, um pedaço grande de carneseca enrolada em lona, um lápis, um caderno, munição e uma faca enfiada numa bainha ornada de prata. Maravilhou-se diante do fino trabalho no metal. Rafferty não lhe parecia ser do tipo que apreciava algo tão refinado, mas, como não sabia quase nada sobre ele, não chegou a se admirar demais. Retirou a lâmina, percebendo que era bem afiada. Um belo objeto, concluiu, mas perigoso. Guardou a arma e depois enfiou-a, com a bainha, no bolso de seu avental. Sugou a gota de sangue que aparecia no minúsculo corte que a faca lhe causara e resolveu verificar o caderno. Era um diário. Abriu-o, sem intenção de ler, apenas de folhear, e notou a bela caligrafia. Um pedaço de papel caiu de entre as folhas. Abaixou-se para recolhê-lo. Era uma lista de nomes masculinos: Ballinti-ne, John, 15 de fevereiro de 1863, Nova York, primeiro regimento, idade: 24 anos. E cada nome vinha acompanhado do mesmo tipo de informações: posto, data, regimento, idade... Por que Rafferty traria tal lista consigo? Seriam homens que tinham servido com ele? Amigos seus? Foi quando entendeu. Aqueles eram os soldados que Unham sido mortos naquela tentativa de fuga. A lista era n maneira que ele tinha de jamais se esquecer deles. Dobrou a folha e recolocou-a dentro do caderno. Não queria ver mais nada. Travis sentia como se seu sangue estivesse fervendo. Sua boca se achava totalmente seca, e sua língua, inchada. Não sabia onde se encontrava. Não tinha mais noção de tempo. Nem poderia dizer se vivia ou morrera e fora para o inferno, ou para o paraíso, talvez... Quase riu. Quatro longos e duros anos de guerra tinham sido o verdadeiro inferno e teria sorte se estivesse no verdadeiro, agora.
— Água — murmurou, quase sem sentir. Podia ser que tivesse mesmo morrido. E, se tivesse ido para o inferno, as chances de conseguir água não existiriam. Surpreendeuse quando dedos suaves ergueram sua cabeça e uma caneca de metal foi recostada em sua boca para que bebesse. Sedento, ergueu ainda mais o rosto, em busca do precioso líquido, que parecia trazêlo de volta à existência. — Devagar — disse uma voz de mulher, doce como a de um anjo. Um anjo... Sua cabeça foi recostada com suavidade no travesseiro, e os dedos suaves afastaram os cabelos de sobre sua testa. Teria aberto os olhos se suas pálpebras não estivessem tão pesadas. Até seus braços pareciam pesar toneladas. — Estou morto? Uma risada doce soou no silêncio. — Não. Apenas muito doente. — Mas vou morrer? Meredith hesitou diante daquela pergunta. — Não sei — disse, franca. A honestidade o incomodou, mas agradou-o também. Sentia-se tão cansado! Exausto da batalha, da solidão. Um anjo... Lembrou-se, então, de onde estava. Não podia parar de lutar. Teria de levá-la a Washington e acabar com aquele pesadelo. Mas, incapaz de continuar raciocinando, deixou-se levar e tornou a adormecer. CAPITULO V Ao anoitecer, a febre de Rafferty subira muito. Meredith estava cochilando numa cadeira de balanço que colocara ao lado da cama e acordou, sobressaltada quando o ouviu gritar, delirante: — Sargento, coloque os homens atrás da colina! Vamos perder todos se não tivermos cobertura! Ela se levantou, depressa, tocando-lhe a testa. Rafferty ardia, e sua pele estava molhada de suor. — Calma, capitão, está tudo bem — tentou tranquilizá-lo. — Vou pegar um pouco d'água. Com o rosto congestionado, ele movia a cabeça de um lado para o outro, insistindo:
— Aqui não é seguro! Coloque-os atrás da colina, depressa! — Capitão, está tudo bem! Despejou água num copo e ergueu-lhe a cabeça, tentando fazêlo beber alguns goles. Mas era difícil segurá-lo. Rafferty se achava por demais agitado em seu delírio. Abriu os olhos, e suas íris muito azuis e brilhantes fixa-ram-se nas de Meredith. — Afaste isso de mim. — Precisa beber, capitão... — Mova-se, agora! , Diante da firmeza da ordem, dada sem consciência, mas ainda assim muito forte, Meredith afastou-se e depositou o copo na mesade-cabeceira. Não havia como discutir com ele naquele momento. A febre o dominava, e era melhor mantê-lo calmo. — Os homens estão a salvo, capitão — informou, como se fosse um soldado. — Estão atrás da colina. Os músculos tensos do corpo dele relaxaram, e Rafferty engoliu em seco, tornando a deitar-se. — Graças a Deus! — sussurrou. Meredith encheu uma vasilha de porcelana com água e deixou-a ao lado da cama. Colocou um trapo limpo dentro dela, retirando-o em seguida, para torcê-lo e passá-lo por sobre a pele de Rafferty. E repetiu tal procedimento durante o início da noite. Depois, parou por algum tempo, sentando-se e permitin-do-se um sono rápido, inquieto, preocupado. Despertou e recomeçou a refrescá-lo, sabendo que isso seria bom para ele. Rafferty ainda chamou por seus soldados algumas vezes, deu ordens a um suposto sargento, sempre preocupado com a segurança de seu regimento. Não havia muito o que Meredith pudesse fazer, a não ser ficar ali, sentada, e observá-lo, esperando que sua constituição fosse robusta o suficiente para combater a infecção. James, seu falecido marido, como muitos homens fortes dos quais cuidara, sobrevivera ao ferimento inicial, mas acabara sucumbindo à febre que se seguira. Inclinou-se sobre Rafferty quando ele se acalmou e afastou uma mecha úmida de sua testa. — Não morra, capitão. Vamos combater essa febre juntos, está bem? Mesmo febril, Travis pareceu entender. Voltou o rosto para ela, de forma que sua pele roçou-lhe os dedos, e resmungou algo ininteligível. Meredith sorriu de leve.
— E, acho que conseguiremos — animou-se. Quando o capitão adormeceu profundamente, ela respirou fundo e tornou a recostarse no espaldar. No silêncio noturno, permaneceu ao lado do leito, olhando-o, atenta. Até o momento, estivera ocupada demais em tentar sal-var-lhe a vida para poder notar seus traços. E naquele instante, mal podia deixar de olhá-lo. Seu rosto estava mais cheio do que quando o vira naquela prisão imunda, dois anos antes. Mas os ângulos marcantes continuavam os mesmos. Seu nariz, bem desenhado, tinha um leve ângulo, como se, alguma vez, tivesse sido quebrado. E havia uma pequena cicatriz em sua pálpebra esquerda. Os cabelos eram negros como carvão, e os lábios, cheios, e agora que não estava carrancudo, pareciam macios. Meredith ouvira os guardas da prisão falarem sobre o capitão Travis Rafferty. Muitos de seus captores o temiam e procuravam sempre ter guardas extras quando as rações eram repartidas entre os prisioneiros. A comparação foi inevitável para Meredith: Rafferty era tão diferente de seu falecido marido! James sempre fora refinado, um político por vocação, e seguira para a guerra com relutância. Seu rosto tinha uma expressão mais suave e seus olhos eram verdes, o sorriso, fácil, aberto. Tinha um encanto pessoal que atraía as pessoas a sua volta. Era um poeta! Rafferty era um guerreiro. Inclinou-se e tomou-lhe a mão, voltando-a para cima. Era rude, áspera. As de James eram suaves, macias. — Anjo... — o capitão sussurrou, como se tivesse sentido que os pensamentos dela lhe pertenciam naquele momento. Meredith soltou-o, tensa. Sentia-se como que surpreendida em alguma atitude errada. Era errado, e sabia muito bem, comparar seu falecido marido àquele homem. James fora carinhoso, cuidara dela, entendera seus sentimentos e jurara amá-la para sempre. Rafferty a odiava. E se determinara a destruí-la. E logo seria forçada a abandoná-lo... Travis sonhava com Meredith, como acontecera em muitas noites nos últimos dois anos. Cada detalhe daquele rosto lindo estava impresso em sua memória e voltava, real, nítido, como se ela estivesse a seu lado. Os olhos verdes, os cabelos macios, longos, de um tom avermelhado intenso, que o encantava, e a pele rosada e fresca como pétalas de uma flor. Todo seu corpo estava tenso. Em seus sonhos, Meredith vinha até ele usando uma camisola transparente que sugeria o contorno de seus seios e quadris. A cabeleira solta parecia flutuar ao vento.
Sonhava com ela assim quase todas as noites. E ela se aproximava, erguia os braços para passá-los por seu pescoço, encostando-se nele, provocando-o, seu perfume a envolvêlo, tão feminino. Beijava-o, então, com arrebatadora paixão, pondoo louco. E Travis se deixava levar, beijando-a toda, afoito, alucinado, murmurando seu nome, para que Meredith, envolta num delírio ardente, quase gritasse o seu. E ele a possuía, delirante, faminto, e juntos entregavam-se ao sabor maravilhoso de um desejo que Travis jamais conhecera, e de uma intensidade inigualável. Rafferty sempre amaldiçoava a si mesmo por ter tais sonhos, por sua fraqueza, mas, quando dormia e aquilo se repetia, nunca a afastava. Meredith era como uma feiticeira que o encantava. Uma sereia, talvez, que, poderia levá-lo à destruição... E ele não se importava. Rafferty acordou, sobressaltado, pouco antes de amanhecer. Não precisou erguer a cabeça para saber que já estava lúcido. A febre cedera. E, de imediato, tomou consciência de duas coisas: Meredith estava por perto e suas mãos estavam amarradas. Tentou soltar-se, mas sentiu uma dor profunda no ferimento, e aquietou-se. Sentia-se cansado demais para continuar se esforçando. A febre podia ter passado, mas parecia ter levado todas as suas forças. — Meredith! Passos rápidos e suaves aproximaram-se, e logo ela entrava no quarto. Apoiou-se aos pés da cama, enxugando as mãos num pano de pratos. — Vejo que acordou... Seus cabelos, mal presos num coque, definiam ainda mais os contornos de suas feições delicadas. Tinha tomado um longo banho e usava um vestido azul que lhe caía muito bem. Rafferty sentiu-se inquieto ao olhá-la. Flexionou os dedos, lembrando-se de seus sonhos e sabendo que a realidade era... devia ser muito diferente deles. Quanto antes a levasse para Washington e para fora de sua vida, melhor. — Solte-me — ordenou. Meredith vacilou, notando o esforço que ele ainda tentava imprimir às cordas, e imaginou se elas suportariam por muito mais. — Está de péssimo humor, hein? — Estou muito bem! — Ah, não está, não...
Rafferty respirou fundo, tentando relaxar. Contou até dez e indagou: — Por que me amarrou assim? — Quando estava febril, começou a delirar, capitão. Não queria que abrisse os pontos que lhe dei. — Muito bem, estou acordado e consciente agora. Por favor, tire estas malditas cordas de mim! Meredith mordeu o lábio inferior, indecisa, e aproxi-mou-se do leito. Desfez os nós e afastou-se depressa, para longe do alcance dele. Rafferty esfregou os punhos arranhados. Ótimo. Agora podia sair dali. — Temos de pegar uma diligência em Austin, na quarta-feira — avisou-a. Um sorriso muito suave apareceu nos lábios de Meredith. — Hoje é quinta. Você dormiu por quatro dias. Ele arregalou os olhos. — Quatro dias?! — E passou a analisar a situação. Tinham perdido a diligência para Austin. Teria de telegrafar para Washington para avisar sobre o que estava acontecendo. — Tem sorte por estar vivo, capitão. Lembra-se de que foi atingido por uma bala, não? Na verdade, Travis tinha a impressão de que um búfalo se deitara sobre ele, em especial sobre seu peito. As lembranças do tiroteio começaram a voltar, devagar. — Aqueles forasteiros... — Você os matou e eu os enterrei. — Pode haver outros... — Ele pensava rápido. — Até agora, ninguém apareceu. Rafferty queria se sentar. Com ou sem dor, tinham de sair dali. — Onde está meu cinturão? Meredith fez um breve gesto em direção à cabeceira. — Pendurado logo atrás de você. Ele ergueu os olhos, viu o cinturão, mas sentiu que não tinha energia sequer para erguer o braço e pegá-lo. — Está com fome? — Meredith perguntou. Travis tinha o estômago grudado nas costas, mas preferiu mentir: — Não. Quero apenas minhas armas. — Vou fazer-lhe um prato de sopa. — Já falei que não estou com fome.
— E eu não acreditei. Meredith voltou à cozinha. Pela porta aberta, Rafferty viu-a mergulhar uma concha num caldeirão pendurado sobre as chamas do fogão. — Deve estar faminto — ouviu-a comentar. O cheiro da comida enchia-lhe a boca d'água, mas ele teimava ainda: — Estou bem. Meredith tornou ao quarto trazendo uma bandeja com o prato, colher e uma caneca. — Um pouco de comida vai deixá-lo mais animado. Meu tio sempre ficava um pouco azedo quando sentia fome, e acho que com você ocorre o mesmo. — Sentou-se junto ao leito e encheu a colher com o caldo. — Não está pensando em me alimentar... — Rafferty observou, como se estivesse incrédulo. — Bem, você precisa comer. — Prefiro morrer de fome a ser tratado como um inválido! — Estou apenas tentando ajudá-lo. — Não quero sua ajuda. — Rafferty sentia-se tão impotente quanto na prisão Libby. Meredith depositou a bandeja com tanta força sobre a mesa-decabeceira que quase derrubou a sopa. — Muito bem, capitão! Coma sozinho! Pode andar pela casa, pegar suas armas e sair por aí caçando bandidos, se quiser! — E o que vou fazer! — Rafferty levou a mão até a ponta das cobertas e percebeu, atônito, que estava nu. Mesmo perturbado, teimou: — E se acha que minha nudez me deterá, está muito enganada! — Vá em frente! Não verei nada que já não tenha visto antes. Travis se sentou e ergueu as cobertas, mas parou de imediato. Seu estômago apertou-se, e tudo pareceu girar violentamente em torno dele. Cerrou as pálpebras e engoliu, tentando controlar-se, mas a náusea persistia. — O que houve? O quarto está rodando? — Meredith zombou, com doçura. O capitão teve de se deitar de novo, o corpo pesado. — O que fez comigo?! — perguntou, com voz fraca. — Foi aquela bala que lhe fez isso, não eu. Rafferty respirou fundo e, numa nova tentativa, ameaçou sentar-se outra vez. E chegou a ficar sentado por alguns segundos, até começar a cair sobre si mesmo. Meredith socorreu-o, evitando que caísse do leito. Incapaz de se sustentar sozinho, ele se deixou recostar nela.
— Detesto isto... Com suavidade, Meredith o auxiliou a se deitar. — Vou pegar mais alguns travesseiros. — Ela já não mostrava a irritação de antes, e apressou-se em fazer o que dizia. — Só conseguirá sentar-se reclinado, hoje. E, sempre com muito cuidado e dedicação, pegou dois travesseiros e ajeitou-se sob a cabeça dele, de modo que o deixasse inclinado e confortável. — Até quando vou ficar deste jeito? — ele quis saber, abandonando a atitude desafiadora e teimosa. — Uma semana, talvez duas. — Só pode estar brincando... — Lamento, mas não estou. Seu corpo sofreu um trauma e tanto. A febre que suportou teria matado muitos homens mais fracos, e tem sorte por ter sobrevivido. — Sou eu que faço minha própria sorte. Ela lhe entregou um guardanapo. — Não, desta vez. — E, sorrindo, retomou a bandeja e colocoua sobre suas pernas. — Pode alimentar-se sozinho, se preferir, mas creio que não conseguirá sustentar a bandeja para que não se incline. E, assim, acabará derrubando sopa nessas cobertas limpinhas e cheirosas que coloquei na cama ontem à noite. Um tanto alheio, Travis passou a mão sobre as cobertas, como atestando o que ela acabara de dizer. E era verdade, a maciez e a suavidade do perfume que vinha daquelas roupas de cama eram reconfortantes. — Detesto mesmo tudo isto. — Devo afirmar que também não estou me divertindo muito, mas... você tem duas opções, Rafferty: ou não come e fica fraco, ou come e se fortalece. Após o período que passara atrás das grades, Rafferty jurara que jamais voltaria a estar à mercê de alguém. Mas estava. E odiava tal situação. — Está bem, eu comerei — capitulou. Procurando esconder o sorriso de satisfação, Meredith mergulhou a colher no prato e removeu o excesso de sopa, levando-a diante dos lábios de Rafferty. Ele ainda hesitava. — Não tentará me envenenar? — A ideia é tentadora, mas não farei isso. O capitão a encarou e então aceitou a primeira colherada. O gosto era maravilhoso. — É... Não está mal...
— Obrigada. Rafferty aceitou mais uma colherada e assim foi, até terminar aquele prato. Meredith trouxe-lhe mais um pouco e ele comeu, calado. — Tem bom apetite! — ela observou, afofando os travesseiros para que Travis se acomodasse melhor. — É o que dizem. — Se tiver com fome de novo, é só me avisar. — Obrigado. — Seria bom se dormisse um pouco, agora. Rafferty sentia que seu corpo pedia descanso, mas não sua mente. — Não faz ideia de quem pudessem ser aqueles homens que nos atacaram, Meredith? — Não. Fiquei pensando muito nestes últimos dias, tentando me lembrar de qualquer coisa que pudesse identificá-los, mas... nada. O capitão a observava, tentando perceber algum sinal de fingimento. — Mas eles sabiam muito sobre você. — Nunca os vi antes. Por que iriam querer me matar? — Talvez eu não seja o único inimigo que traz do passado... Meredith suspirou, como se já tivesse considerado tal possibilidade. — Conheço pessoas em Richmond que se ressentiam por meu tio ter ajudado os prisioneiros. James também nunca entendeu por que ele e eu agíamos assim. Rafferty desviou o olhar, surpreso consigo mesmo pela sensação de desprezo e ressentimento que o invadia ao pensar no falecido marido de Meredith. — E, imagino que tenha sido um espinho no sapato dele... Ela parecia imersa em conjecturas. E, em vez de continuar o assunto, mudou-o: — Tenho pensado muito em nossa situação nos últimos dias. — Nossa situação? — ele estranhou. — E. Imagino que eu poderia jurar minha inocência até o fim dos tempos e você não acreditaria. Precisa de fatos. Em silêncio, Travis a estudava. Não entendia aonde Meredith queria chegar. — Você é bom em descobrir fatos. — E. Muito bom. Prossiga. — E exatamente o homem de que preciso, capitão. Rafferty
sentiu-se tenso de imediato. — O que quer dizer com isso? — Quero contratá-lo. — O quê?! — Contratá-lo. — Mas... para quê? — Para provar minha inocência.
CAPÍTULO VI - Provar sua inocência?! — Ele riu. — Sim. — Ela parecia tão altiva e sóbria quanto uma professora primária. — Quero que encontre quem foi o verdadeiro traidor. — Mas... que tipo de brincadeira é essa?! — Não estou brincando, Rafferty. Quero contratá-lo para que encontre o homem que realmente traiu seus soldados. E tenho dinheiro para pagar por seu serviço. Meredith tinha fibra, Rafferty teve de reconhecer. Como se, um dia, pudesse aceitar um centavo dela... — Já encontrei o que estava procurando, moça. — Está enganado a meu respeito, capitão Rafferty. Jamais falei uma palavra aos guardas sobre aquela fuga. — Era casada com um rebelde e deixou bem claro, quando visitou a prisão, que não estava satisfeita por ter ido lá. — Isso mesmo. E, se sou culpada de alguma coisa, é de ignorar o sofrimento daqueles homens durante tanto tempo. Devia ter estado lá para ajudá-los desde o princípio, como meu tio fazia. Mas a raiva que nutria manti-nha-me distante. No entanto, não sou culpada de tê-los traído. Alguém deve estar mentindo para você. Querem que acredite que fui eu a traidora. A suavidade que havia nos olhos dela atingiu-o. Quase chegava a acreditar no que dizia. Mas preferiu insistir: — Você é uma traidora. — Não, não sou! — Ela se levantou, na intenção de deixar o quarto e, ao chegar à soleira, voltou-se. — Eu o entendo mais do que imagina. Rafferty a encarou, sem compreendê-la, e replicou: — Nada sabe sobre mim, sra. Carter. — A guerra causou inúmeras injustiças, e a maioria delas jamais será reparada.
— Não quero reparar tudo, apenas este caso. — Porém, mandar-me para a prisão não reparará nada. Sou inocente. — É o que insiste em dizer, mas não me deu nenhuma informação sequer que prove o que afirma. — E por isso que preciso de você. Necessito que me ajude a encontrar o verdadeiro traidor. — Olhe, moça, já sou velho e esperto o suficiente para começar uma busca desse tipo. Meredith respirou fundo e pensou por instantes, depois argumentou: — Durante quatro dias você esteve aqui, eu poderia tê-lo matado quando quisesse. Ou ter deixado que ficasse lá fora sangrando até morrer. — E por que não o fez? Ela passou as mãos pelos cabelos. De repente, pareceu a Rafferty muito frágil e cansada. — Você é um homem de honra. Está tentando consertar um erro. — Isso mesmo. Meredith deu alguns passos até mais perto da cama. — Não estou lhe pedindo que seja meu amigo, nem que goste de mim. Mas, por nós dois, precisamos descobrir quem é o verdadeiro traidor. Se não quiser fazê-lo por mim, faça-o por seus homens. Porque os mortos não terão paz alguma se eu for para a prisão. — Não se atreva a falar de meus homens! Não sabe nada sobre eles! — Sim, eu sei. Eram pais de família, irmãos, filhos, maridos. Eram como meu James. E não mereciam morrer tão jovens. Foram enganados. Os olhos azuis de Rafferty brilharam. Mas ela não recuava, enfrentava a fúria que via neles. — Não quero deixá-lo zangado — disse, suave. — E, mas tem um dom especial para isso, sabia? Meredith baixou a cabeça. Não parecia haver argumentação possível com ele, naquele instante. Talvez fosse melhor desistir. Ou então deixá-lo acalmar-se e ponderar a respeito da proposta que lhe fizera. Poderia tentar outra vez, mais tarde... Com um leve sorriso, murmurou apenas: — Tenho coisas a fazer. — Não me olhe desse jeito — ouviu-o protestar, aborrecido.
— De que jeito, capitão? — Como se fosse a dona da casa olhando para o po-brecoitado que acabou de contratar para o trabalho do rancho. — Mas eu não... — Está achando que vou me acalmar e que poderá tentar me convencer mais tarde. Meredith quase deu risada, surpresa com tamanha perspicácia. Porém, notava que já não havia raiva no rosto dele, o que a deixava mais livre para ter esperanças: — Então... vai me ajudar? Em vez de responder diretamente, ele indagou: — Já ouviu falar da história sobre o escorpião e a tartaruga? — Não. — Pois bem. O escorpião e a tartaruga estavam à margem de um rio. Ambos precisavam chegar ao outro lado. O escorpião necessitava da ajuda da tartaruga porque sabia que, se tentasse atravessar, morreria afogado. Portanto, convenceu a tartaruga a levá-lo em suas costas. Jurou que não a picaria. E a tartaruga concordou. No meio do rio, ele a picou e, conforme o veneno começava a se espalhar por seu corpo, a tartaruga, sabendo que iria morrer, perguntou ao escorpião por que fizera algo tão tolo. Ambos sabiam que, quando a tartaruga morresse, ele se afogaria. E o escorpião apenas deu de ombros e disse que não podia ir contra sua natureza. Meredith olhava-o e assentiu muito de leve, compreendendo a mensagem. — No caso, qual de nós dois seria o escorpião, capitão Rafferty? Ele a fitou de soslaio. — Confia mesmo em mim, anjo? Porque eu poderia voltar-me contra você, como o escorpião fez. — Não tenho escolha. — Bem, suponho que, no momento, nenhum de nós tenha. — Quer dizer que vai me ajudar? Rafferty encarou-a ainda por alguns instantes, pensativo. Depois murmurou: — Não. Quando acordou, na manhã seguinte, Rafferty notou que o sol já ia alto no céu, e o interior da casa estava claro, alegre. Pela porta entreaberta, viu delicadas flores azuis num vaso sobre a mesa da cozinha e um tapete vermelho colocado para arejar na janela da sala Até aquele instante, sempre que estivera acordado, tudo lhe parecera mergulhado em sombras e penumbra, mas agora, à luz do
dia, a residência adquiria um outro aspecto. Espantava-se com as cores que via, com a alegria que parecia haver ali dentro. Não se sentia tão exausto nesse dia. Parecia estar se recuperando muito bem. Ainda deitado, estendeu o braço sadio. Seus músculos protestaram apenas um pouco, depois a tensão neles se foi. O ferimento estava melhor, sem o calor do dia anterior, e não doía tanto. Nem precisava olhá-lo, por baixo das ataduras, para saber que cicatrizava rápido. Sorriu de leve, satisfeito. Meredith se enganara quando dissera que levaria duas semanas para estar recuperado. Do modo como se sentia agora, garantia que, no dia seguinte, já poderia cavalgar. Passou a língua pelos lábios e a mão pelo queixo, notando a barba já crescida. Assim que tomasse um bom banho, estaria novinho em folha, imaginou, animado. E, sem vacilar, sentou-se e jogou as pernas para fora do leito. Mas arrependeu-se de imediato. A dor na lesão foi aguda e suas pernas pareceram-lhe fracas demais. Não se sentia nada bem e teve de segurar-se na cabeceira para combater uma tontura repentina. Sim, senhor, estava frágil como um filhote de passarinho. Sempre mantivera o controle total sobre seu corpo. Mesmo na prisão, quando a falta de comida o abatera, forçara-se a continuar ativo. E nunca poderia imaginar que chegaria a sentir-se tão impotente quanto agora. Amaldiçoando a bala que o atingira, Meredith, os pássaros que cantavam alto lá fora e sua própria debilidade, manteve-se firme, tentando ainda enfrentar a sensação ruim que o abalava. Jamais fracassara antes, jamais vacilara, e não seria agora que o faria. O que mais precisava no momento era que o chão parasse de girar... Baixou a cabeça e ouviu os passos suaves, sabendo de pronto que Meredith se aproximava. No entanto, não conseguiu sequer juntar energia suficiente para chamá-la. Achava-se ocupado demais em tentar controlar a sensação de vertigem que o atingia. — Não devia estar sentado — ouviu por cima do zumbido que tinha nos ouvidos. — Gosto de me sentar — respondeu, mal-educado. Temendo que a vertigem piorasse se erguesse a cabeça, continuou com os olhos baixos. E viu a barra das saias dela aproximando-se ainda mais. Meredith colocou uma bandeja sobre a mesa-de-cabe-ceira e encostou a mão fria sobre a testa de Rafferty.
— Como está o ferimento? Por fim, a tontura começou a diminuir, e ele pôde responder com clareza: — Ótimo. Nunca estive melhor. — Rafferty não tinha a menor intenção de demonstrar sua fraqueza. — Mesmo? Eu poderia jurar que está se sentindo como se um cavalo bravo o tivesse atropelado. "Acertou na mosca, mocinha." — Não, sinto-me bem — insistia em mentir. E, para provar o que dizia, levantou o rosto para encará-la. E teve a sensação de que a parte de trás de sua cabeça tinha caído, além de metade de seu flanco. Quando o capitão conseguiu controlar a dor e a sensação terrível que o atingia, conseguiu prestar atenção a Meredith. Notava-a alegre, jovial. Adorável. Usava os cabelos presos na base da nuca por uma fita amarela. E o amarelo presente também em seu vestido parecia dar-lhe mais cor às faces e ressaltar o rosado de seus lábios. Rafferty sempre guardara na memória uma imagem de Meredith quase perfeita: uma estrutura corporal miúda, delicada, com mãos pequenas. O tipo de mulher para quem um homem poderia ficar olhando para sempre sem se cansar. De repente, seu corpo respondeu a seus pensamentos, e teve de verificar se sua reação não aparecia por baixo das cobertas. — Parece pálido, capitão. — Preciso de um pouco de sol. — Acha, então, que consegue se levantar? A descrença dela o desafiou, e Travis teve de dizer a coisa mais estúpida que poderia no momento: — Mas é claro! — Sei... Irritado por perceber que ela se divertia com aquilo tudo, Rafferty cerrou os dentes. Desde que se recusara a ajudá-la, ela mal dissera dez palavras a ele, e já tinham se passado mais de doze horas. — Minhas roupas — pediu, seco. — Estão ali. Limpas e remendadas. — Meredith apontou para uma cadeira no canto. Travis as olhou, sabendo que seria impossível vestir a calça. Mas como poderia retroceder agora?, avaliava. Não de novo, muito menos diante dela. — Se puder se retirar para que eu as vista...
— Espere um pouco. — Meredith saiu depressa, voltando logo em seguida com um roupão, que lhe estendeu, dizendo: — Vista isto. Rafferty reconhecia sua situação. Não conseguia vestir a calça. Desabaria se tentasse. Desse modo, assentiu, permitindo que Meredith passasse o roupão sobre suas costas e o ajudasse a vestilo. Não fosse ela tão gentil, tinha certeza de que teria desmaiado devido à dor que sentia no ferimento. Mas Meredith era paciente, não o apressava. Travis estava com o corpo todo suado quando, por fim, trespassou as partes da frente e deixou que ela desse o nó nas pontas do cinto. Depois, cerrou mais o cenho e murmurou: — Não mudei de ideia. Não a ajudarei. Meredith ajeitou as golas do roupão e respondeu, meiga: — Ainda não desisti de tentar convencê-lo. — Olhe, Meredith, quando digo "não" é não! Ela sorriu. — Está bem. Rafferty não sabia o que fazer. E sentia-se debilitado demais para pensar em qualquer coisa. — Quero ir lá para fora. — Não está em condições. — Preciso de ar fresco. Para provar a si mesmo, e sobretudo a ela, o que afirmava, começou a se levantar. Mas o esforço provocava-lhe mais dores. Se Meredith não estivesse ali, olhando-o, teria caído sobre o colchão de novo e desistido por completo. Mas ela o observava, duvidava, esperava que ele caísse... Assim, cerrou os dentes e tentou ignorar o quanto sofria. Por um momento, achou que iria desmaiar e cambaleou. Meredith estava a seu lado de imediato, amparan-do-o, abraçandoo, tentando equilibrá-lo.. Num reflexo, Rafferty apoiou-se em seus ombros, mesmo sabendo que ela era frágil, e surpreendeu-se com o vigor que encontrou naquele corpinho tão miúdo. A proximidade de seus corpos trouxe-lhe o perfume que emanava dela, uma mistura de rosas e de algo feminino que não definia. Rafferty poderia sentir as curvas dos seios contra seu peito e gostou da sensação. Era como se seus corpos se encaixassem, tivessem sido feitos um para o outro. Irritado, endireitou-se o quanto pôde, para acabar com aquilo.
— Consegue andar, capitão? — Sim. — Ele agia por pura teimosia e não tinha certeza se conseguiria colocar pé ante pé. A porta estava próxima e, no entanto, pareceu-lhe que seria uma jornada e tanto até lá. Com extrema dificuldade, Travis deu o primeiro passo, depois o segundo, sempre apoiado e ajudado por Meredith. Ao chegarem à soleira, ela admirou-se: — Você conseguiu mais do que eu poderia esperar por hoje. Acho melhor voltar para a cama. Rafferty a encarou, de súbito admirado de quão agradável era ver-lhe o verde dos olhos. Eram mais do que verdes. Brilhavam como duas lindas esmeraldas. Teve de desviar-se para não entregar o que pensava e insistiu: — Quero ir para fora. Meredith respirou fundo. — E teimoso, capitão Rafferty... — É, já me disseram isso. Foi um trajeto lento, penoso, mas chegaram à varanda. O dia estava muito claro e a luz feria os olhos de Rafferty. Cerrou-os um pouco, depois ergueu a cabeça, apreciando o brilho do sol. Uma brisa muito suave tocou-lhe a pele, fazendo-o sentir-se muito melhor, mais no controle de suas atitudes. — Venha, eu o ajudo a sentar-se na cadeira de balanço. — Não, Meredith. Prefiro ficar em pé. —Como queira... E, sem aviso, ela se afastou, deixando-o sem seu calor e seu apoio. Rafferty vacilou, espantado diante do quanto dependia dela. Suspirou e tentou manter-se ereto, firme, mas seus músculos não o obedeciam. Compreendeu, então, com horror, que iria, de fato, cair. Meredith colocou uma cadeira logo atrás dele quando suas pernas começaram a se dobrar. E, ao se sentar de repente, ele gemeu, a dor queimando dentro dele. — Droga! Preciso de meu cinturão — disse, apenas para disfarçar. — Por nada — ela respondeu, para um agradecimento que não houve. — Minhas armas! Murmurando algo que o capitão não entendeu, Meredith entrou na casa e retornou logo em seguida, com o cinturão e os revólveres. Entregou-os a ele, que os colocou sobre o colo. — Obrigado. Meredith ergueu a mão para pegar um chapéu de palha pendurado ao lado da porta e ouviu-o abrir o tambor da arma e
reclamar, ato contínuo: — Estão descarregadas! — Não gosto de armas carregadas em meu lar. — Me-redith tomou uma cesta de vime que se encontrava a um canto. Rafferty tentava controlar a irritação que começava a sentir outra vez: — Dois homens tentaram matá-la há menos de uma semana e não mantém nenhuma arma carregada em casa?! — Tenho medo delas. Travis esperou alguns segundos, para que ela explicasse esse temor, mas, como Meredith se mantive calada, começou a enfiar balas no tambor, carrancudo. - É melhor ter medo do que ser morta, moça. De onde estava, e com a pistola nas mãos, ele se sentia preparado para qualquer eventualidade. Tinha uma boa visão da propriedade e, se fossem atacados, sabia que poderia proteger Meredith. Ela deu de ombros e desceu os dois degraus, dirigin-do-se ao pequeno jardim que mantinha do lado direito. Como muitas outras coisas, Rafferty também não vira as flores e ervas que ela lá plantava quando chegara, quatro ou cinco noites atrás. Ali havia também verduras e legumes, tomates e plantas medicinais que Meredith cultivava com cuidado e organização, em canteiros separados. Meredith ajoelhou-se ao lado da terra cultivada e retirou do bolso do avental um par de luvas de tecido grosso, que calçou devagar. Sem olhar para Rafferty, passou a arrancar ervas daninhas e cuidar de suas plantas. As terras do rancho eram férteis, com o riacho passando a pouca distância. Shorty, percebendo a presença da dona no jardim, veio deitar-se perto dela, à sombra de um arbusto. E o cavalo de Rafferty, no cercado, bem alimentado e escovado, pastava, tranquilo. Olhando para tudo aquilo com certa admiração, Rafferty relaxou os nervos e trespassou melhor os dois lados do robe. Gostava de receber a luz do sol e, ali, sentiu algo estranho, mas que o agradava. Estava satisfeito. Feliz, até. Meredith ficara desconfortável com aquele olhar sobre si. Rafferty conseguia deixá-la tensa quando se sentava e a fitava assim. Ali, muito ereto na cadeira, parecia vigiar tudo, altivo, embora ainda em recuperação. Cuidar do jardim era, para ela, um grande prazer. Um momento
de contato direto com a terra, que parecia dar-lhe energias novas. Nunca tivera um jardim até mudar-se para o Texas, e adorava-o. Chegara ali com o tio no começo da primavera anterior, e logo plantara algumas mudas. Nesse ano, acrescentara mudas novas, expandindo um pouco a área cultivada. No ano seguinte poderia aumen-tá-la ainda mais, animou-se, mas logo seus pensamentos foram turvados pela realidade que vivia. Não haveria um ano seguinte para ela ali. O médico chegaria a qualquer momento e teria de se mudar para a cidade. A sra. Harper lhe oferecera um quarto em sua residência, e chegara a ouvir dizer que o conselho da cidade pretendia lhe oferecer uma vaga de professora na escola local, no outono. Além disso, o sr. Walker queria desposá-la. Teve vontade de rir. Como podia pensar que tudo isso fosse acontecer quando o mais provável era seguir para a prisão? Um aperto conhecido cingiu-lhe o peito. Dedicou-se ain-da mais à extração do mato, tentando esquecer. Podia ver Rafferty por baixo da aba do chapéu de palha. Sabia tão rouco dele, de suas motivações para estar ali... Podia per-guntar-lhe algo, avaliou. E, antes mesmo de conseguir controlar-se, já estava indagando: — Onde cresceu, Rafferty? Mesmo com a distância que os separava, percebeu que ele cerrava um pouco os olhos antes de responder: — Richmond. Meredith nem tentou esconder sua surpresa. — Em Richmond? — E. Por quê? — Bem, estamos aqui, juntos... Achei razoável querer saber mais sobre você. — Esta não é uma visita social, Meredith. Não há motivo algum para nos conhecermos melhor. Assim que nosso negócio estiver terminado, vou aceitar um novo posto no Exército e nunca mais tornaremos a nos ver. Meredith ignorou a irritação dele e continuou com as questões: — Faz tempo que está no Exército? Sabe, achei que, depois da guerra, pudesse ter pedido reserva. — Eu tinha muito tempo de licença para aproveitar, e o fiz. — Sei. E aí decidiu me encontrar. . — Isso mesmo. Havia determinação até no modo como ele falava. Era um homem que conseguia o que queria, não havia dúvidas quanto a
isso. — Bem, eu nasci em Alexandria. É uma bela cidade. Já esteve lá? Rafferty a olhou por segundos, como se estivesse aborrecido, mas depois aceitou o fato de que estavam, sim, tendo uma conversa: — Sim, conheço o lugar. — Há uma taverna muito interessante junto ao rio. O nome é Brookmont. — Também a conheço. — Fazem um filé de peixe grelhado que é de dar água na boca. Mas sabe qual é meu prato favorito? — Suponho que vá me dizer de qualquer maneira... — Patas de siri. Eu as adoro! — Meredith parou de trabalhar, deixando-se levar por recordações. — Mesmo? Eu também gostava muito, antes de saber como os pobres animais morrem torturados para que tenhamos alguns minutos de prazer. — Como assim? — E impossível tirar a carapaça enquanto eles estão vivos. Assim, são jogados na água fervente e cozinham até morrer. — Que crueldade! Deus do céu, como pode ser? Nunca mais comerei isso! Pobrezinhos... Sim, a compaixão era um sentimento que Meredith Carter possuía. — Sinto saudade da Virgínia... — Então, por que mudou-se para tão longe, Meredith? — Quando James morreu, não havia mais motivos para eu permanecer lá. Meu tio estava doente e precisava viver num local de clima mais seco. E Trail´s End ofereceu um bônus a ele, além da casa se se decidisse a vir residir aqui. — A família de seu marido não quis que ficasse por lá? — Se eu estivesse grávida de James, decerto minha sogra teria me convidado a ficar com ela, mas, como não havia criança alguma... Além disso, recusei-me a ir aos funerais de James, e ela ficou furiosa. Veio me procurar depois, para conversarmos, mas não foi uma conserva muito agradável. Rafferty olhou-a com intensidade, imaginando a cena. — Por que não foi ao enterro? — quis saber. — Porque foi triste demais. — De repente, muitas recordações doloridas a atingiram. Rafferty percebeu que Meredith estremecia.
— Está tremendo. — É... devo estar com frio. — Com esse sol? — Ele a estudou por longos e tensos momentos. — É que todas as vezes em que falo sobre James, sobre a Virgínia, ou sobre a guerra, aquela tristeza toda parece voltar. Sei que é tolice, mas tenho vontade de chorar... Rafferty nada disse, voltando o fitar o horizonte. E permaneceu assim por tanto tempo que Meredith imaginou que nada mais diria. Até que sua voz a surpreendeu: — Para mim, são os cheiros que trazem recordações. — Tocou a atadura sobre seu ferimento, como se sentisse dor. — Cheiro de pólvora. De sangue. E como se eu estivesse de novo nos campos de batalha. As poucas pessoas na cidade que tinham estado na guerra nunca falavam a respeito. Agora, ouvindo Rafferty comentar sobre aquela época terrível, Meredith sentia seu coração se encher de muitas emoções diferentes. — O odor de álcool leva-me de volta aos hospitais — murmurou. Rafferty apertou a arma entre os dedos. — Tem pesadelos? Meredith levantou-se e voltou para a varanda. Parou no degrau de baixo e retirou as luvas. — Quase todas as noites, capitão. Muitas vezes, quando acordo, assustada, meu coração está batendo com tanta força que fico até tonta. Ele assentiu, acrescentando: — E banhada em suor. — Sim. E com o estômago revirando. Os dois entendiam muito bem o que era aquilo. A guerra deixara marcas muito semelhantes em ambos. — Que belo par nós somos, não, Rafferty? — Meredith observou, com certa ironia. Ele a encarou, como se a estivesse vendo pela primeira vez, assentiu muito de leve e murmurou: — E. Um belo par.
CAPÍTULO VII A conversa com Rafferty a animara. Sen-tia-se melhor do que estivera em muitos meses, como se um peso tivesse sido tirado de suas costas. No entanto, Rafferty parecia pior. O tom pálido em seu rosto mostrava que se esforçara demais por um dia. — Acho melhor você voltar para a cama, capitão. Travis chegou a entreabrir a boca para verbalizar um protesto, mas pensou melhor e levantou-se devagar. Levou consigo o cinturão, enquanto Meredith passava o braço por sua cintura, para ampará-lo no caminho de retorno ao quarto. Rafferty aceitou a ajuda em silêncio. Quando se sentou no leito, respirava com dificuldade. — Fiquei mais cansado do que achei que ficaria. Meredith ajeitou os travesseiros, avisando: — Ainda preciso trocar a atadura. Depois poderá dormir quanto quiser. — Não, não, já dormi demais. "Teimoso como sempre..." — Sempre é bom descansar e dormir bastante quando se está convalescendo, capitão. Rafferty deitou-se, parecendo confortável. — Se mais homens aparecerem, quero estar pronto. — Não se preocupe. Estarei acordada e, se alguém vier, eu o acordarei. Por uma fração de segundo, Travis se deixou ficar, sossegado, os olhos fechados, mas depois abriu-os para rebater: — Não gosto nada disto. — É, eu sei. — Meredith cobriu-o e depois ajudou-o a tirar o roupão. Olhou para a atadura e notou que havia sangue nela. — Está sangrando. Rafferty lançou uma olhada ao ferimento. — Mas que droga! — Devia ter permanecido na cama. Colocarei um pouco de água para ferver, para fazer um chá, e trarei minha maleta. Em poucos minutos ela retornava, preparando a nova atadura, agulha e linha para costurar, se fosse necessário. Rafferty a estudava, calado. Meredith sentia o peso daquele olhar e tentava manter-se atenta ao que fazia para não se deixar levar pela sensação que ele lhe provocava. Retirou a atadura, notando que a lesão no flanco estava começando a cicatrizar. — Foi apenas uma ponta que sangrou. Só trocarei as ataduras e
passarei um pouco de pomada. — Parece desapontada porque não vai ter de usar a agulha e a linha em mim outra vez... O toque de humor dele a fez sorrir. — É, de fato é uma pena. — Misturou algumas ervas na pomada que iria usar, dizendo: — Isto vai aliviar a dor e ajudar na cicatrização. Rafferty franziu o nariz. — É a mesma coisa que usou em Ward naquela noite. — É, sim. Meredith se lembrava do cheiro horrível daquela prisão, dos rostos dos homens, do rapaz que estava tão ferido. Seria melhor não falar a respeito, para não afrouxar de novo o fino laço que começava a se formar entre ela e Rafferty. Mesmo assim, indagou: — O que aconteceu a ele? — Foi trocado por um prisioneiro sulista. Passou o resto da guerra recuperando-se do ferimento. — E o braço? — Não ficou perfeito, mas intacto, pelo menos. — E quanto a Murphy? Rafferty esquivou-se da dor que sentia ao receber o medicamento e, surpreso por ela ter se lembrado do nome de seu companheiro, quis saber: — Então lembra-se do sargento? — Sim. Lembro-me bem, era um homem alto, corpulento, de cabelos vermelhos, rosto agradável. — Sim. Ele conseguiu fugir também. — Que bom! Pareceu-me ser uma boa criatura. — Ficou muito impressionado com você. Meredith achou graça. — Minha aparência era horrível naquela noite. Tinha dividido meu tempo entre o hospital e a cabeceira de meu tio doente nem sei por quantas horas. E meus cabelos estavam colados na minha cabeça por causa da neve. — Nenhum dos rapazes olhava para seus cabelos, Meredith — ele falou. De fato, ela recordava o olhar interessado, até faminto, de muitos dos soldados da cela. — Murphy ficou preocupado, temendo que você não chegasse em segurança a sua casa naquela escuridão. Meredith tivera tanto medo de Rafferty, na ocasião, que correra sem parar até estar segura dentro de seu lar. — Não precisava. Eu cheguei bem.
Ele a estudava, deixando-a à vontade para trabalhar em seu corpo, e seus pensamentos tentavam adivinhar os dela. — Seu tio estava doente naquela noite. — E, ele quase morreu. — Só o vi uma vez, mas gostei do doutor. — Tio Ezra era uma boa alma. Poderia virar-se um pouco mais para que eu esfregue a pomada mais para baixo? Travis a obedeceu, mas sem deixar de fitá-la. Notava que os olhos dela iam da ferida a seus músculos, estendidos, firmes. Meredith sentou-se na beirada do colchão para passar a atadura em torno de sua cintura. Rafferty mantinha-se deitado, e cerrou os olhos quando ela o tocou. Em seu rosto havia uma mistura de sofrimento e prazer. Ela gostava de tocá-lo. Sentia uma energia vibrante dentro dele que parecia ser dividida com seus dedos. E demorou mais do que deveria passando as faixas, argumentando consigo mesma que estava apenas garantindo que a atadura ficasse muito bem colocada. Ao terminar, rasgou uma faixa de tecido macio. — Terá de se sentar um pouco mais. Vou colocar seu braço esquerdo numa tipóia. Assim, tanto o ferimento do ombro quanto o do flanco devem sarar mais rápido, por não haver movimento desse lado. Rafferty parecia abatido. — Você está exausto! Segure a ponta da tipóia para não ficar frouxa, sim? Os dedos dele tocaram os dela e, por um instante, se-guraramnos de leve. Os dois sentiram um sobressalto, e Meredith parou com o que fazia. Olhou para a mão dele, muito maior do que a sua, sentindo o toque leve, embora não houvesse como negar a força que aquela mão ocultava. Seu coração passou a bater descompassado, e ousou erguer os olhos para o rosto de Rafferty, vendo que o azul intenso daquelas íris estava fixo nela. Não havia mais aborrecimento, raiva ou irritação nele, mas sim algo diferente, forte, um tanto assustador, mas atraente. Meredith experimentou um calor intenso, e afastou a mão. Voltou a atenção à faixa de tecido e amarrou-a com firmeza. — Acho que não vai ser preciso trocar outra vez até amanhã. Gomo Travis nada dissesse, Meredith se virou para sair. Sentia que precisava respirar ar fresco. Mas, dar-lhe as costas, seu pulso foi seguro. E, com o polegar, Rafferty acariciou-lhe a palma, enviando vibrações agudas por toda sua coluna. Ele a puxou muito
de leve e Meredith se deixou aproximar. De repente, ela se deu conta de todos os anos em que vivera sozinha, da pouquíssima experiência que tinha em relação aos homens e da vontade que brotava em suas entranhas, que fora certa vez despertada por James, mas nunca satisfeita. — Não gosto disto tanto quanto você — Meredith ou-viu-o sussurrar. Ergueu os olhos para ver os dele e sentiu-se arrepiar. — Do quê? — Desta atração. Não queria que acontecesse, mas nós dois sabemos que ela existe. — Não... não há nada entre nós. Cuidei de você, salvei sua vida, nada mais. — Sei muito bem a diferença entre gratidão e atração, Meredith. E o que estamos sentindo é desejo. Ela engoliu em seco diante da autoridade que ele tinha ao falar sobre um tema tão delicado. E estava absolutamente certo. — Esta é uma complicação de que nenhum de nós pre-cisa, capitão. - Eu sei. — Ele deslizou os dedos pelo contorno de seu rosto, deixando-a trêmula. — Talvez precisemos ape-nas experimentar um pouco... Envolta pelo enlevo que havia na entonação de Raffer-ty, Meredith se permitiu chegar mais perto ainda. - Acho que não vamos gostar — conseguiu dizer. - E muito provável. — Mas Travis não aprecia acre-ditar no que dizia. Meredith queria aquele beijo, sim, não ia negar, mas fora beijada antes e sabia o que esperar. Assim que o beijo terminasse, estariam satisfeitos e nada mais aconteceria. Pelo menos, foi o que imaginou. O beijo começou devagar, vacilante. Rafferty tocou-lhe os lábios com calma, mas logo entreabriu os seus e con-vidou-a a fazer o mesmo com a ponta da língua. Então, Meredith derreteu-se junto dele. E o carinho se transformou, para ambos, num delírio de paixão. Encantada, mas arrastada por uma sensação forte demais, Meredith voltou à realidade primeiro, afastando-se depressa. O toque de Rafferty era envolvente, mas perigoso, avaliou. Levantouse, tentando manter uma distância segura, e enfiou as mãos tensas nos bolsos do avental, indo de costas até a saída, evitando a cama como se ela fosse um ninho de serpentes.
Rafferty a olhava, as pupilas dilatadas carregadas de volúpia. Meredith tocou os próprios lábios, chocada diante de seu comportamento. — Não... não foi o que eu esperava. — Não, não foi. — Travis passou a mão pelos cabelos. — Foi muito melhor. — Não diga isso! — Foi como eu falei antes: não gosto disto tanto quanto você. Meredith quase riu diante do absurdo de tudo aquilo. — Alguns homens da cidade já tentaram me cortejar e eu os dispensei. Todos eles. O sr. Walker está tentando há semanas falarme em casamento! Travis franziu a testa, sem entender. — Sorte sua — murmurou apenas. — Sorte? O primeiro homem que deixo me tocar em anos quer me levar para a prisão! E nem mesmo sei ao certo se gosta de mim! Rafferty baixou os olhos, acomodou-se melhor, e nada mais disse. Ao anoitecer, Rafferty estava sentado na cama, junto à janela. O beijo que dera em Meredith deixara-o por demais inquieto. Observava o pôr-do-sol, apreciando a riqueza de cores que se estendia pelo firmamento até o horizonte. Havia algo de puro e forte naquela terra que o atraía. Ali não parecia haver cicatrizes, tristeza, mas tão-só recomeços. Era como argila fresca, esperando para ser modelada em algo novo, belo. O Exército deixara de ser seu maior interesse fazia alguns anos, e já teria seguido para a reserva, não fosse pela guerra. Ficara e combatera com valentia, mas agora que tudo terminara não via mais nada que ainda o ligasse ao cotidiano militar. Poderia pedir para ir para a reserva no ano seguinte, e estava pensando seriamente em fazê-lo. Quem sabe mudasse para o Oeste, comprasse um rancho, passando a ter sua própria terra... Construiria algo, em vez de destruir, como fizera até ali, enquanto militar. Sentia-se animado com tal ideia. Talvez uma mudança radical de estilo e de lugar, com desafios diferentes, o ajudassem a descobrir o fogo que, uma vez, sentira dentro de si. Deixou de olhar para fora e espreguiçou-se, exercitando os músculos parados havia tanto tempo. Passava pouco das seis, mas sentia-se cansado ainda. Podia querer demais se recuperar logo, mas devia ter perdido muito sangue, pois ainda estava fraco. Não gostava nem de pensar, mas reconhecia que não
conseguiria cavalgar tão cedo. Meredith estivera certa desde o princípio quanto a sua recuperação lenta. Lembrar-se dela provocou-lhe uma reação imediata. Dissera que não gostava dela, mas estava enganado. Gostava, sim, e muito. A cada dia, cada hora mais. O ressentimento, o ódio que nutria ao chegar ali estavam se dissipando depressa. As atitudes dela o desarmavam. Podia tê-lo deixado morrer, mas não o fizera. Podia tê-lo tratado mal, sem cuidado, deixando-o mais fraco ainda, podia ter deixado que a febre fizesse todo o serviço e estaria livre dele para sempre, mas nada disso... O que estaria querendo? Rafferty sabia que ficaria louco se tentasse entendê-la. Compreendia agora que não deveria tê-la beijado. Violara sua regra número um: nunca chegar perto em demasia. Ligações pessoais criavam complicações desnecessárias. Compreendia isso e, mesmo assim, beijara-a. Sentira uma necessidade premente de fazê-lo. Precisava dela, de seu toque, de seu perfume. Levantou-se e deu alguns passos pelo quarto, seguindo até a porta e fechando-a. Tirou o roupão, deixando-o sobre a cama. Já estava na hora de vestir-se direito. Mas sen-tiu-se fraco outra vez e sentou-se no colchão, deitando-se devagar. Relaxou os nervos, cerrou os olhos, aproveitando o conforto daquele leito, que aprendera a apreciar. O ar ameno parecia acariciar sua pele e causava-lhe uma sensação muito boa. Os pensamentos continuaram e não se desviaram de Meredith. Podia explicar muito bem o que sentia por ela. Era um homem sadio, que não se deitava com uma mulher fazia meses, e Meredith era muito bonita. Respirou fundo. Tinha de controlar suas emoções, ou colocaria tudo a perder. Ouviu os passos dela, na sala. Meredith estava sempre por perto, lidando na casa, e isso era reconfortante para ele, por incrível que parecesse. Havia sinais de sua presença por toda parte, quando o cachorro latia, quando ela ria ou conversava com ele, como se Shorty fosse uma criança; quando a gata miava e ronronava porque ela a estava acariciando, e o aroma da comida que preparava e que enchia o ar, apetitoso... Rafferty não a via havia algumas horas e dava-se conta de que sentia saudade. Meredith ficara fora do quarto durante toda a tarde, mas isso não diminuíra a certeza que tinha de que ela estava por ali. Não podia se esquecer da maciez dos lábios dela, de sua
surpresa quando se deixara envolver pela paixão e entreabrira a boca para a dele. Tais conjecturas enche-ram-no de desejo mais uma vez, e seu corpo reagiu de imediato. — Droga... — murmurou, aborrecido com sua fraqueza. Por que Meredith. não podia ser mais parecida com Isabelle, sua ex-noiva?, indagou-se. Tudo seria tão mais fácil! As duas tinham berço, cresceram com todas as vantagens que o dinheiro podia dar. Eram lindas e possuíam presença, elegância. Mas Isabelle jamais teria se dedicado a um tio doente, nem se mudado para o Texas com ele por causa de sua saúde. Jamais colocaria suas pequenas e delicadas mãos na terra, nem teria alimentado os animais do campo. Meredith possuía uma força que Isabelle não conhecia. Meredith era uma sobrevivente, e ele a admirava por isso. E, como se a admiração e o desejo que sentia por ela não fossem suficientes, uma sensação absurda de posse o atingia também. Meredith mencionara um tal de Wal-ker e outros pretendentes, e isso o desagradara demais. Não gostava da ideia de vê-la partilhando a existência com outro homem. De repente, batidas rápidas na porta o trouxeram de volta ao momento presente. — Trouxe seu jantar! — Meredith avisou e entrou logo em seguida, empurrando a porta com o corpo, pois suas mãos traziam a bandeja. E, antes que Rafferty pudesse se cobrir, pois seus movimentos ainda eram lentos, ela chegou ao meio do aposento. Seus olhos viram-no de imediato, e ela empalideceu, dando-lhe as costas. — Oh, sinto muito! Estou tão acostumada a encontrá-lo dormindo... Colocarei sua refeição na mesa da cozinha, então. Com os dentes cerrados, Rafferty cobriu-se. Era tolice deixar que Meredith entrasse em seu coração daquela forma. Já baixara á guarda para uma mulher antes, e cometera um erro. Não queria repeti-lo. Sabia que Meredith Carter não era mulher para ele, tinha um dever a cumprir, uma obrigação para com seus companheiros de luta. Sua lealdade era devida a eles, não a Meredith. Mesmo assim, uma pergunta teimava em aparecer em sua mente sem cessar: o que faria quando Meredith não estivesse mais presente em sua vida?
CAPÍTULO VIII Na sexta-feira ainda muito cedo, Meredith percebeu que não conseguiria escapar de Rafferty. Na noite anterior, ao ouvi-lo andar de um lado para o outro na sala, do lado de fora de seu quarto, percebera o quanto ele já estava forte novamente. Em poucos dias estaria capaz de cavalgar, e isso significava que partiriam para Washington. Com muito cuidado, tirou a mala de lona de debaixo da cama e abriu-a. Mal falara com Rafferty naqueles últimos dias e procurara, na verdade, evitá-lo o mais possível. Trocara suas ataduras com regularidade e cozinhara para mantê-lo numa recuperação constante, mas, fora isso, não estava por perto. Não tinham mais falado em provar sua inocência, e aquele beijo não mais se repetira. Naquela noite, depois que o capitão fosse se deitar, pretendia selar seu cavalo e fugir em direção a Austin. Lá, tomaria a diligência que seguia para o Colorado. E Rafferty demoraria pelo menos uma semana para estar em condições de segui-la. Não era muito, mas o suficiente para se embrenhar numa terra inóspita, desconhecida. Seguiu até sua cômoda, tirou blusas e outras peças e colocouas na bagagem. Ao abrir a gaveta de cima para apanhar algumas fitas de cabelo, seus dedos roçaram a moldura de um porta-retrato. Tomou-o, olhando a fotografia tirada dela e de James no dia de seu casamento. Usava um vestido branco de saia larga e um véu suave que caía até o chão. Trazia ao pescoço o camafeu que fora de sua mãe e tinha nos lábios um sorriso radiante, cheio de esperança. James vestia seu belo uniforme cinza, com botas altas, muito bem engraxadas, e o longo sabre ao lado direito da cintura. Meredith acariciou a foto com ternura. — Meu Deus, parece que foi há séculos... — sussurrou. Ergueu os olhos e viu-se no espelho de sobre o móvel. Sua cabeleira estava solta, um pouco úmida devido ao banho que tomara havia pouco. Notava-se um tanto corada, e não existiam mais olheiras dando-lhe um aspecto abatido ao rosto. Mas não se via um sorriso em seus semblante. Sentia como se jamais pudesse tornar a sorrir com vontade. Quanto a rir, cheia de alegria, nem conseguia se lembrar de quando fora a última vez que o fizera. Quando muito jovem, na época em que James a cortejava, havia sempre risadas, felicidade, uma excitação e inocência que a
deixavam alerta, ansiosa. Usava chapéus floridos, vestidos com minúsculas flores coloridas, e frequentava festas maravilhosas, onde encontrava gente alegre, moças iguais a ela, amigas. A vida, então, parecera-lhe cheia de promessas encantadoras. Baixou os olhos agora sobre o velho avental desbotado que amarrara sobre a roupa simples. Em algum lugar do passado, perdera a alegria de viver. Mais uma vez mirou-se no espelho e franziu a testa diante do que via. Fez uma careta, imitando um sorriso exagerado. — Pare de sentir pena de si mesma! A existência podia não ter sido o que esperava, mas isso não significava que iria desistir. Assim que Rafferty estivesse fora de seu caminho, tudo seria melhor, haveria mais chances de conseguir ser feliz. Encontraria um novo lugar para morar, casar-se-ia, teria filhos... Sim, assim que ele desaparecesse para sem-pre, tudo estaria bem. Mas... se tudo ficaria perfeito, indagou-se, por que sentia aquela absurda vontade de chorar? — Oh, meu Deus, o que há de errado comigo? E, engolindo sua melancolia, tornou a guardar a fotografia na gaveta, pegou mais algumas peças de roupas íntimas e enfiou-as na mala, tornando a fechá-la. Decidida, colocou-a debaixo da cama e saiu para a sala, dirigindo-se à porta principal. Pretendia ver o túmulo de seu tio uma última vez, e não queria ter Rafferty em seus calcanhares. A rotina diária que tinha com ele se transformara em algo bem previsível. O capitão iria se levantar assim que percebesse que ela saíra, daria alguns passos até a varanda, com o rifle nas mãos. E Meredith, como sempre, não saberia se ele a estava vigiando ou apenas cuidando para que tudo estivesse bem. Com cuidado, girou a maçaneta e saiu, sem fazer muito barulho. Se tivesse sorte, ele não a ouviria. Viam-se nuvens pesadas no céu que amanhecia. Logo viria uma chuva forte. Meredith detestava viajar na chuva, mas a água serviria para destruir seus rastros quando partisse, naquela noite. Já cruzava o pátio, seguindo para a pequena elevação onde ficava a sepultura do dr. Johnson, quando ouviu a porta da frente ser aberta e fechada. Irritada, nem precisou olhar para trás para saber que Rafferty retomara seu porto de observação na varanda, rifle nas mãos, olhar vasculhando tudo ao redor. Podia imaginar os olhos azuis dele fitando-a, seguin-do-a, sem
perder um detalhe sequer. E sentiu os cabelos da nuca se eriçarem. — Não precisa se preocupar — aconselhou a si mesma. — Ele nem faz ideia de que você pretende partir. Chegou à sepultura sob o velho carvalho, onde havia apenas uma pedra grande para marcar o lugar. Não ia até ali havia umas três semanas e, devido à chuva que caíra nesse meio tempo, gravetos e folhas se juntaram sobre o túmulo. Ajoelhou-se diante da pedra onde se lia apenas: dr. Johnson. — Desculpe-me se não tenho vindo muito, titio, mas tenho um capitão ianque dormindo sob meu teto. O silêncio era comum ali, mas Meredith se sentiu inquieta. Naquele lugar, sentia-se próxima do tio, mesmo que por apenas alguns momentos. — O nome dele é Rafferty. Conheceu-o na prisão Libby. Mas é uma longa história, e não vou aborrecê-lo com os detalhes. Mas saiba que partirei. Pretendo voltar um dia, mas vai demorar. Seu peito se apertou, e duas lágrimas rolaram por seu rosto suave. — Talvez eu já devesse estar acostumada a me mudar sem trégua, não é? — Afastou um ramo maior, que havia caído junto à cabeceira da campa e ouviu o som terrível de um guizo. Pálida e quase em pânico, voltou os olhos para ver a cascavel a pouca distância, pronta para dar o bote. A cobra fora perturbada e se pusera em alerta. Meredith tentou afastar a mão, mas o animal sibilou ainda mais. — Bom Deus... A cascavel ergueu ainda mais a cabeça, pronta para o ataque. Seu guizo chacoalhava com força. Meredith podia ouvir o coração descompassado. — Não se mexa — disse a voz baixa de Rafferty. Surpresa, mas consciente de que devia obedecê-lo, Meredith manteve-se na mesma posição, tensa, assustada. Jamais imaginara que poderia ficar tão feliz por ouvi-lo chegar. — O que devo fazer? — Fique absolutamente quieta. — Ele armou a pistola. Meredith não ousava sequer procurar vê-lo, temendo desmoronar num choro convulso. Tentava recordar uma oração que o tio lhe ensinara quando ainda era pequena, mas, antes de começar a fazê-la, Rafferty disparou. Com um sobressalto, Meredith viu a cobra voar para trás e sentiu que Rafferty se aproximava. Apesar do ferimento que cicatrizava, ele andava quase sem dificuldade agora. Verificou a
cascavel e, quando teve certeza de que morrera, inclinou-se e pegou o animal pelo guizo. — Devia ter quase um metro e meio. Meredith sentou-se sobre os calcanhares, relaxando e respirando fundo. E mal pôde acreditar quando ele perguntou: — Come cobra? — Não, claro que não! — É... Também nunca apreciei muito a carne. Mas acho que algum animal irá gostar. Meredith se ergueu com certa dificuldade. Tremia e, apesar do ar fresco da manhã, sentia as costas suadas. Notou que Rafferty devia ter se levantado e vestido muito depressa, porque o botão de cima de sua calça permanecia aberto. A bandagem branca acentuava a cor de sua pele morena e o negro dos pêlos em seu peito. Seus cabelos estavam revoltos, e a barba apontava em seu rosto. — Obrigada. — Meredith, de repente, experimentou forte atração por ele. Rafferty passou a mão direita pela cabeleira, numa tentativa inútil de colocá-la no lugar. — Nunca lhe disseram para ter cuidado quando coloca as mãos no mato? — perguntou, entre sério e divertido. Meredith lembrou-se de seu tio dizendo-lhe a mesma coisa dezenas de vezes. Mas, como a pergunta vinha de Rafferty, irritouse com ela. — Nem sequer me ocorreu. Ele lançou um olhar grave à sepultura, e sua expressão suavizou-se um pouco. — Num lugar como este, em especial fora de casa, se não pensar, pode morrer, moça. — Bem, tenho conseguido sobreviver muito bem sem você. O capitão a encarou, surpreso com a animosidade que sentia em sua entonação. — E, tem feito um bom trabalho sozinha, sem dúvida. Seus olhos voltaram-se para o horizonte, que esquadrinhou, sempre alerta a qualquer perigo. Depois voltou-se e tocou-lhe o cotovelo, instigando-a a segui-lo de volta. — Venha comigo. — Parece que está sempre à procura de perigo... — ela comentou, caminhando devagar. — No que se refere a você, sim. — Já salvou minha vida duas vezes. Mas nunca tive problema
algum, até você aparecer. Acho que é você quem atrai os problemas, sabia? — Eu? — Não acho que seja sua intenção, mas... algumas pessoas têm esse dom. — E. Deve entender do assunto. Chegaram à varanda, e Rafferty abriu a porta, dando-lhe passagem e entrando em seguida. Parecia mais relaxado dentro da residência. — Faça-me um favor, sim, Meredith? Fique aqui dentro até, pelo menos, que eu coloque minhas roupas. Assim, da próxima vez em que eu tiver de salvar sua linda pele, estarei vestido de maneira adequada. — Fala como se eu fosse uma criança. Rafferty tocou-lhe os ombros de leve. — Prometa apenas, sim? — Bem, não tenho intenção de ir a lugar algum capitão. — Otimo. Levando a pistola consigo, Travis voltou a seu quarto, deixando-a pensativa. Meredith seguiu para a cozinha, colocando o bule com água para ferver. Notava que suas mãos ainda tremiam e que o som do guizo da cascavel parecia ainda estar em seus ouvidos, pondo-a arrepiada. Sem aviso, seus joelhos pareceram ficar fracos demais para suportar o peso de seu corpo, e teve de sentar-se para controlar melhor os nervos em frangalhos. Respirou fundo e tentou não se importar mais com o que acontecera. Faltara pouco para ser picada pelo réptil. Rafferty tinha razão, reconhecia. Não pensara em nada quando estava lá, ajoelhada junto à sepultura. Na realidade, seus pensamentos permaneciam voltados apenas para a fuga que pretendia empreender, e não nos perigos que tinha próximos a si. Precisava ser mais cuidadosa. Ouviu som de, vidro se quebrando e, logo em seguida, um irritado Rafferty reclamando: — Mas que droga! Correu para o quarto que ele ocupava, mas parou assim que tocou na maçaneta. Lembrava-se de tê-lo surpreendido nu. Assim, indagou apenas: . — Você está bem? — Estou — foi a resposta, numa espécie de grunhido. — Posso entrar? — E claro que sim.
Encontrou-o sentado na cama. Estivera tentando vestir a camisa e, nesse processo, batera no copo d'água que ficava na mesa-de-cabeceira, espatifando-o no chão. E olhava para a camisa, agora, com tanta raiva, que parecia que a peça o havia, de alguma forma, ofendido de morte. — Não consigo passar isto sobre minha cabeça, Meredith. Que droga! Pareço um inválido! — Acabou de subir a colina e salvar minha vida! Como pode julgar-se um inválido?! Mas, zangado, ele largou a camisa sobre a cama, dizendo, por entre os dentes: — Não consigo flexionar o tronco direito. Meus pontos estão doendo, latejando! Meredith aproximou-se e tomou a camisa nas mãos. — Eles estão sarando. E por isso que repuxam e latejam. Creio até que amanhã deverão cair. Quer ajuda? — Ergueu a peça, indicando o que pretendia fazer. Rafferty assentiu, mesmo contrariado, e aceitou. Mas, quando ela levou as mãos aos botões, ele as afastou, dizendo: — Posso fazer isso. — Eu sei. Pôde subir a colina e matar aquela cobra também. Eu estou admirada. Você é cheio de surpresas, sabia? — E não se esqueça disso. Rafferty parecia estar de volta a seu velho eu. E, pela primeira vez, Meredith começou a temer que tivesse esperado demais para tentar escapar. Poderia não ser tão fácil agora. — Está se recuperando mais rápido do que eu imaginava. Ele enfiou a camisa na calça e depois calçou as botas, não sem certa dificuldade. — E isso a desaponta? — quis saber, sem olhá-la. — E claro que não... Rafferty ergueu o rosto, estudou-a por instantes e murmurou: — Está um tanto pálida. — É por causa do susto com a cobra. — Deu alguns passos atrás, retornando à sala. — Vou preparar o café. O cheiro do café fresco não demorou a tomar a casa toda. Meredith alimentou o fogão com mais lenha e, após colocar uma chapa de ferro sobre o queimador, cortou fatias de presunto e bacon e depositou-as sobre ela. E, esperando a refeição ficar pronta, não pôde deixar de lamentar por sua partida próxima. Não queria deixar sua casa, seus animais, seus amigos. Ouviu Rafferty entrar, mas não se virou para vê-lo.
Meredith, calada, pegou uma xícara e serviu-o. Ele bebeu o líquido quente e comentou: — Está bom. Ela tornou a cuidar do presunto e do bacon. Enquanto fritavam, quebrou alguns ovos numa vasilha e começou a batê-los. — No campo de batalha, o café que bebíamos tinha gosto de barro — ele afirmou. — Era espesso, escuro demais, acho que uma mistura de cevada ou chicória, e não café de verdade. E, se não estivesse quase fervendo, duvido que os soldados conseguissem engoli-lo. Meredith deu-se conta, de repente, da loucura do que estava vivendo: preparava o desjejum para o homem que iria levá-la para a prisão! Voltou-se para ele, a colher de pau numa das mãos. — Por que está me contando isso, capitão? A barba por fazer conferia a ele o aspecto de um renegado. Rafferty ergueu os ombros. — Só estou arranjando assunto. — Sim, mas... por quê? Vai tirar-me de sua vida! Le-var-me para Washington! Quer que eu passe os próximos quinze anos presa! Ele baixou a xícara até a mesa e encarou-a, em silêncio. Falou, então, baixo e calmo: — Tenho pensado muito nisso nos últimos dias. — E? Rafferty pigarreou. Parecia ter dificuldade no que ia dizer: — Eu... acho que estou em dívida com você por ter salvado minha vida. Meredith não conseguiu esconder sua irritação. — Não me deve nada! Sou eu quem lhe deve! Salvou minha vida duas vezes! — Olhe, não sou muito bom em mudar minhas decisões, quando me decido não costumo retroceder, mas... andei ponderando enquanto convalescia. Você teve muitas oportunidades de fugir e me abandonar, e não o fez. O mínimo que posso fazer é... considerar a possibilidade de haver outros suspeitos da traição na prisão Libby. Uma sensação de alívio enorme tomou conta do corpo de Meredith. Era uma vitória! Pequena, mas, ainda assim, uma vitória! — Está falando sério? — Sim. Teremos de ficar aqui, juntos, por mais algum tempo. Podemos conversar sobre aquele último dia na prisão.
Radiante, Meredith aproximou-se a abraçou-o. — Obrigada! Obrigada! Sentindo dor no ferimento pela atitude brusca daquele abraço, Rafferty afastou-se um pouco. — Não me aperte tanto! — Sinto muito! Eu o machuquei? Ele tocava a atadura de leve. — Não muito. Em qualquer outra ocasião, eu não teria me importado... Enrubescendo pelo que percebia naquelas palavras, Meredith notava o tom sedutor que ele usava pela primeira vez. E ficou ali, parada, tão próxima a Travis, incapaz de se afastar, sentindo a força daquele olhar azul. — Não vai se arrepender por ter me ajudado, capitão. — Não estou prometendo nada. — Tudo bem. Basta manter a mente aberta e querer me ajudar. Meredith sentia a pele arrepiar-se. Uma vontade inexplicável de beijá-lo se apoderou de todo seu ser. E sentiu-se uma enorme tola por isso. — Sente-se, capitão. Estou terminando de preparar seu desjejum. Rafferty aguardou ainda alguns instantes, e em seguida se sentou. Viu-a retirar o presunto e os ovos da chapa e colocar tudo numa travessa, que ajeitou sobre a mesa, com talheres e guardanapos. — Por onde quer começar sua investigação? — Meredith se acomodou diante dele. — Pelo guarda da prisão em Richmond. — Rafferty tomou mais um gole de café. — O testemunho dele foi o mais enfático. — Tão traiçoeiro... Lembro-me bem dele. Como conseguirá que o sujeito fale? — Posso ser bem persuasivo. Meredith deu risada. — Aposto que sim... E um longo silêncio se seguiu, enquanto faziam sua refeição. Pela primeira vez em semanas, Meredith tinha a impressão de que um grande peso fora retirado de suas costas. Talvez tudo acabasse dando certo, afinal. — Levantou-se bem cedo, esta manhã, Meredith. Antes do amanhecer. Alerta pelo que pretendia fazer, Meredith não ergueu os olhos para responder: — Tinha muitos afazeres. Com os animais... — ...e com a arrumação das roupas também? Ela teve de
encará-lo diante daquilo. — Como? — Ouvi gavetas sendo abertas e fechadas. — Ah, eu... estava tirando alguns vestidos do armário para arejar. O sol é forte nesta época do ano. Rafferty mastigava, calado, pensativo. — É... Faz um calor danado por aqui. — Assim que terminou de comer, deixou o guardanapo sobre o tampo e fitou-a, sério. — Tenho algumas perguntas para lhe fazer sobre aquela noite na prisão Libby. — Vou lhe dizer tudo o que souber. — Ótimo. Começaremos assim que desfizer aquela mala que enfiou embaixo de sua cama.
CAPÍTULO IX Mala? — Meredith tossiu, quase engasgando-se com o café. Tentava manter uma expressão que não mostrasse a culpa que sentia. — Do que está falando? Rafferty sentiu vontade de rir diante da expressão que ela tentava controlar. Havia espanto, ultraje, susto naquele rosto tão lindo. Tomou mais um gole, calmo como nunca, e explicou: — A mala de lona. Aquela que ficou tão cheia de roupas que mal conseguiu fechar. — Ah... essa... — Meredith levantou-se e pôs-se a recolher os pratos. Franziu a testa, como se pensasse muito a respeito. — Está só repleta de lençóis velhos. — Desista, Meredith. Estava pensando em fugir esta noite. Ela depositou os pratos com cuidado na pia. — Não sei do que está falando. O capitão se reclinou na cadeira, sentindo-se confortável. Percebia que Meredith mentia muito mal. — Tinha sua fuga toda planejada para hoje. — Se pretendesse deixá-lo, já o teria feito — argumentou, mas sem encará-lo. — Além do mais, vai chover... — Não quis me abandonar até ter certeza de que eu conseguiria cuidar de mim mesmo. E como agora já posso fazê-lo... Na verdade, a lealdade dela o agradava por demais. Uma semana atrás, estava certo de que Meredith era uma traidora. Agora, entretanto, suas certezas desapareciam no ar.
— Você disse que irá me ajudar, Rafferty. Por que eu o deixaria? — Acabei de concordar em ajudá-la. Quando acordou, esta manhã, sabia que estaríamos partindo para Washington em um ou dois dias. Meredith raciocinava, tentando encontrar uma desculpa qualquer. Como não encontrou nada para dizer, confessou: — E, eu ia fugir, sim. Mas tem de admitir: não tem sido muito razoável comigo. Tal lógica deixou-o vulnerável. — Tenho sido muito razoável, ora bolas! Afirmei que vou ajudála, não é? Meredith lançou-lhe um olhar rápido, por sobre o ombro, enquanto lavava os pratos. — Agora, sim. Mas até este momento foi teimoso, determinado, e nada parecia poder demovê-lo de seu intento. Rafferty tomou mais um gole de café para esconder o sorriso. Quantas vezes um oficial superior lhe dissera a mesma coisa? — Tenho me mantido determinado para não desviar meu rumo, apenas isso. — Você é cabeça-dura — resmungou. Para sua própria surpresa, Rafferty estava se divertindo com a situação. Nunca falara com Isabelle assim e, decerto, nunca conversara com seus soldados com tanta abertura, tamanha familiaridade. Qualquer homem poderia acostumar-se a ter Meredith por perto, gostar muito de sua presença. Ela era muito agradável! Mas sabia que qualquer tipo de relacionamento entre ambos seria impossível. Entendia e aceitava tal realidade. Mesmo assim, seu corpo ainda reagia a ela. Ainda queria-a muito. Sentia que seus devaneios iam e vinham, sem nexo. Por que a sensação de querê-la, de desejá-la quando a conversa nada tinha a ver com isso? Meredith secou as mãos e colocou uma chaleira com água sobre o fogo. — Ser teimoso não deixa de ser uma qualidade, capitão. Precisarei de tenacidade para me ver livre da confusão em que estou metida. — Então, está falando com o homem certo. Ela teve de sorrir. — Bem, agora que está a meu lado, não tenho mais tanto medo de retornar a Washington. "A meu lado..." Meredith disse as palavras com tanta casualidade que ficariam marcadas na mente de Rafferty. Estava
satisfeito e irritado ao mesmo tempo por saber que ela confiava tão sem reservas em sua honradez. Viu-a colocar duas xícaras sobre a mesa e folhas de chá em cada uma delas. — É difícil acreditar que já se passaram dois anos desde que estive pela última vez em Washington — Meredith comentou. — Achei que jamais voltaria lá. A cidade mudou muito? — Não. — O que estava em cartaz no teatro antes de você partir? James e eu adorávamos assistir a peças lá. — Não... costumo prestar muita atenção a isso. Ela suspirou. — Quando nos mudamos para o Texas, eu sentia falta das pessoas, da atividade da cidade grande. E engraçado... Agora adoro a quietude, os espaços abertos daqui. — É, Washington é um lugar fervilhante de gente... — Duvido que eu a reconhecesse, agora. Acho que nem mesmo saberia como me comportar por lá... — Meredith estudou por instantes suas mãos, avaliando-lhes o estado. Parecia haver preocupação em seus belos olhos verdes. Deixara salões maravilhosos e agora vivia numa cabana no meio do nada. Mas dera-se bem nessa nova vida. — Você é uma sobrevivente, Meredith Carter. Vai se adaptar. — Será que isso é um elogio de sua parte? — indagou, num sorriso que Rafferty adorou. — Apenas uma observação. Meredith despejou a água fervente sobre as folhas de chá e seguiu para a sala. De um armário perto da lareira tirou uma caixa de madeira, que abriu. Havia peças de xadrez lá dentro. — Sabe jogar? Rafferty pegou as xícaras e seguiu-a. — Já faz anos que não jogo. E você? E boa no xadrez? As pupilas dela brilhavam conforme ajeitava um tabuleiro sobre a mesa, diante da cadeira que Rafferty ocupara. — Sou ótima! — Será que é tão boa quanto eu? Um sorriso muitíssimo sedutor apareceu nos lábios dela. Sentou-se diante do tabuleiro e encarou Rafferty, explicando: — Meu tio me ensinou a jogar e depois se arrependeu disso. Eu vivia lhe pedindo para jogarmos... Os grossos pingos de chuva que o céu ameaçara até aquele momento começaram a cair sobre o telhado, provocando um ruído forte, mas aconchegante. Lá fora, o dia estava cinzento e frio, mas a
casa, quente, reconfortante. Rafferty deixou as canecas sobre o tampo e se pôs a ajeitar suas pedras. A última, a rainha, segurou enquanto falava: — Não vai me pedir para jogarmos de novo depois que perder de mim. Ela ajeitou-se no assento. — Tão confiante... Tem certeza de que não quer as peças brancas e o primeiro movimento? — Tenho. Irá precisar de certa vantagem... — Olhe, pode estar enganado... Travis deu risada, divertindo-se pela primeira vez em muito tempo. Meredith baixou os olhos para a partida, agora muito séria. Moveu seu peão central duas casas para á frente. — Já está com medo? — brincou. — Ah, sim, apavorado! — Ele moveu seu peão central duas casas também. Seria fácil saborear o momento e partilhar da doce companhia de Meredith. No entanto, não poderia se esquecer do que o trouxera ao Texas. Os mortos clamavam por justiça e, até que tivessem paz, ele não a teria. Assim, tornou ao tema: — Fale-me sobre aquela noite. Meredith olhava para o tabuleiro, uma torre segura entre dois dedos. — Depois que saí da cela? — Sim. Ela preferiu deixar a torre em seu lugar de origem e recostar-se no espaldar. Respirou fundo, tentando relaxar a leve pressão que sentia nos ombros, e explicou: — Como já disse antes, fui para casa. Fazia muito frio e era bem tarde, e eu não iria mais fazer visita alguma a nenhum doente. — Não devia ter ido até a prisão sozinha. Foi uma atitude impensada. — Acho que sim. — Não entendo como seu marido permitiu que saísse. O ciúme que nascia em seu peito surpreendeu-o. Nos anos todos em que estivera ao lado de Isabelle jamais sentira algo parecido. — James não estava em Richmond, Rafferty. Tinha partido com seus soldados dias antes. — Entendo. O que houve então? — Bem, cheguei a minha casa, verifiquei o estado de meu tio,
mas não consegui dormir. Assim, peguei um livro e me sentei diante da lareira de meu quarto. Mas adormeci ali mesmo e acordei com o alarme da prisão soando. Travis assentiu. Pegou um de seus peões, lembrando-se de que ouvira o mesmo som do alarme em seus sonhos, todas as noites, nos últimos dois anos, num pesadelo que se repetia, incessante, em sua mente conturbada. — Foi logo depois da meia-noite. — Meia-noite e quarenta e dois, para ser mais precisa — Meredith recordava. — É como se eu ainda pudesse ouvir o alarme, os homens gritando, os cães latindo... Foi horrível. — A lua estava cheia. — E o céu, estrelado, límpido. E, na manhã seguinte, retornei ao presídio. Travis ergueu os olhos muitíssimo azuis para ela. — Por quê? O guarda que ele interrogara dissera que ela não voltara... — Para ver o tenente Ward, mas ele não se encontrava mais lá. Os guardas o tinham libertado. Rafferty franziu o cenho. Uma sensação estranha aper-tou-lhe as entranhas. — Tem certeza de que Ward não estava mais no presídio? — Sim, sem sombra de dúvida. Levei medicamentos para ele, mas não os usei. O capitão pensava. — Ward falou que permaneceu na Libby por mais uma semana, Meredith. Só foi trocado por outro prisioneiro no dia primeiro de março. Os guardas lhe disseram onde ele se encontrava? Talvez o tivessem transferido para outra cela. — Não, eles o haviam soltado. Rafferty meneou a cabeça. Não estava gostando do que ouvia. — E por que teriam feito isso? — perguntou de si para consigo. — Talvez por terem se compadecido de seu estado. Um sorriso largo surgiu no rosto de Rafferty. — Compaixão seria o último sentimento envolvido nos acontecimentos daquela ocasião, Meredith. Os guardas o odiavam. — Por quê? — Nunca soube ao certo. Sempre me preocupei muito mais com a escavação do túnel do que com os problemas que Ward vivia tendo com os carcereiros. E estranho, nada do que você está me dizendo bate com o que Ward falou. — Não estou mentindo. — Eu não disse que está.
— Mas Ward é agora capitão do Exército dos Estados Unidos. — Meredith suspirou. — Não tem motivos para mentir, e eu tenho. Não é assim? — De fato. Meredith se calou por longos momentos. Depois enca-rou-o e questionou, em voz baixa: — Acha que, um dia, conseguirá acreditar em mim? Rafferty levantou-se. — Quero acreditar. Uma necessidade urgente, imperiosa de tocá-la o invadiu. Meredith parecia-lhe tão vulnerável, tão temerosa! Deu a volta à mesa e tocou-lhe os braços, fazendo-a er-guer-se também. Para seu espanto, ela não se afastou. E uma quietude pesada, tensa, os envolveu. Apenas a força dos pingos da chuva no telhado provocava algum ruído ali dentro. E parecia que todo o resto do mundo estava separado deles, lá fora. Quando Meredith o fitou, Rafferty se esqueceu de qualquer motivo que pudesse ter para não beijá-la. Sentia o calor que vinha de seu corpo, e o seu reagia, querendo-a mais do que nunca. As mãos miúdas de Meredith tocaram-lhe o peito, onde seu coração batia descompassado. E muitas sensações o invadiram, como se, até aquele momento, estivessem todas adormecidas em algum lugar que desconhecia dentro de si mesmo. — Não servimos um para o outro — Meredith murmurou, mesmo sem querer acreditar no que dizia. Rafferty tocou-lhe a face com suavidade e sentiu seu sangue ferver. — Eu sei. Ela cerrou as pálpebras, entregando-se à delícia daquele toque. — Faz tanto tempo que um homem não me acaricia... Senti falta de ser tocada assim. Ela falava de James, é claro. E Rafferty, mesmo sabendo que era tolice ressentir-se por causa de um homem morto, sentiu um ciúme enorme invadi-lo. Recusava-se a ser um substituto. — Abra os olhos, Meredith. Ela o obedeceu, e havia desejo brilhando em suas íris. — Quero você, Meredith. Mas não vou mentir. O que está acontecendo entre nós é apenas desejo, necessidade. — Se continuasse repetindo isso, talvez ele mesmo viesse a crer. — Eu sei. — Não sou um cavalheiro, cheio de charme e manei-rismos. — Também sei disso. Sei muito bem quem você é. — Mesmo?
— Sim. — Nesse caso, diga meu nome. Ele precisava ouvir. Tinha de ter uma prova de que Meredith sabia quem estava prestes a amá-la como um louco. — Travis. — Podemos parar agora mesmo, se quiser, ouviu? Basta dizer, e paramos já. — Era um aviso. Algo como "corra enquanto pode". Meredith apenas o olhou. Não se afastou, mas apertou os dedos que lhe seguravam a lapela da camisa. Mostra-va-se emocionada. Travis tentara ser nobre, e não o faria uma segunda vez. Desejava-a demais. E, percebendo que era correspondido, acaricioulhe a boca com dedos rudes, mas carinhosos. Jamais sonhara poder tê-la de verdade entre seus braços, e queria apreciar cada fração de segundo. Baixou as mãos e tocou-lhe os seios por sobre o tecido do vestido, fazendo-a prender a respiração. — Você é tão adorável! — Jamais me senti assim — Meredith confessou, cerrando os olhos para entregar-se melhor à doçura daquele instante. E manteve-os assim enquanto o capitão baixava ainda mais as mãos para acariciar-lhe a cintura e a curva suave dos quadris. E estremeceu por completo quando Rafferty baixou a cabeça e sugou-lhe de leve o pescoço, num beijo carregado de paixão. Ele se conhecia muito bem. Sabia que não era do tipo que se apaixona, que quer uma casa, uma esposa, filhos. Era, e sempre fora, um solitário. Não precisava de ninguém em sua volta. — Não lhe prometerei nada, Meredith. — Não quero promessa alguma. Os dedos dele, mais fortes agora, dominavam-na, fazendo-a gemer baixinho. E sua reação lançava chamas de uma volúpia quase insuportável pela corrente sanguínea de Rafferty. Batidas fortes, agitadas, na porta da frente, desperta-ram-nos do enlevo. Rafferty afastou-se dela de imediato, atento. — Quem poderá ser? — Ela o encarou. Sem vacilar, Travis apanhou a arma, que pusera ao lado da cadeira de balanço. Num instante, deixava de ser o amante para incorporar o guerreiro. — Não sei, mas atirarei primeiro e perguntarei depois. Para Meredith, era um grande esforço concentrar-se. Seu corpo ainda estava trêmulo devido à paixão suscitada e não satisfeita. — Pode ser algum paciente, capitão.
Mas Rafferty colocou-se à frente dela, indagando, de maneira irônica. — Como da última vez? A recordação daquela noite tão perigosa foi suficiente para despertar Meredith por completo do torpor da luxúria. — Acha que pode ser mais algum problema? — Começava a se afligir. — Sempre acho que é problema antes de me certificar do contrário. Rafferty foi até a janela, e Meredith o seguiu de perto. Quando afastou a cortina, o capitão notou que a chuva pesada dificultava-lhe a visão. Avistou um homem vestido de preto, ensopado, e de seu chapéu escorria um fio de água para diante de seu rosto. Ele se aproximou e bateu na porta mais uma vez. Suas batidas eram aflitas. — Meredith Carter! Está em casa?! O estranho se movia, para manter-se aquecido, e Meredith tentava reconhecer-lhe a voz. — Sabe quem é? — Não... — Muito bem, então fique aqui. — Ele já se movia em direção à entrada. — O que fará? Rafferty tocou a maçaneta e preparou a arma. Abriu devagar, e um vento frio entrou, junto à umidade. — O que quer aqui? — perguntou, com tanta hostilidade, que o camarada, lá fora, deu um passo atrás. Assustado com a estranha presença, o sujeito levou a mão ao cinturão, em busca de uma arma, rebatendo: — E você? Quem é? O que faz aqui?! Rafferty disparou contra a arma do outro, que voou de sua mão. — Sou eu quem faz as perguntas por aqui, homem. Quem é você?! O rapaz o olhava, apavorado, boquiaberto. Meredith, que se aproximara por trás de Rafferty, reconheceu-o, então, e passou para adiante. — Céus, este é Nathan Miller! Sua mulher está esperando um bebê! Nathan a fitou, sem entender o que se passava. — A senhora está bem, sra. Carter?
— Sim, estou, Nathan. — E... quem é esse sujeito, se é que posso perguntar? — O nariz de Nathan estava vermelho de frio. — É o capitão Travis Rafferty. — Ela fez um gesto para que ele baixasse a arma, o que Rafferty fez bem devagar, ainda desconfiado. — E o que está fazendo aqui? — Nathan continuou, estranhando o fato. — E meu paciente. — É? Pois me parece muito bem de saúde. Não devia estar com um homem estranho em sua casa, sra. Carter. Meredith sorriu. — Não tive muita escolha, Nathan. O capitão foi alvejado, na semana passada. Jenny está sentindo as dores? Nathan assentiu depressa, como se acabasse de se lembrar do motivo que o levara ali. — É. Jenny não saiu da cama hoje. — A bolsa d'água já se rompeu? — Meredith já rememorava tudo o que teria de levar para fazer o parto. Nathan deu de ombros. — Creio que sim... Mas não posso afirmar. Ele era um bom homem, mas Meredith imaginava que seria de pouca valia no trabalho de parto da esposa. — Vou pegar minha maleta. — E passou por Rafferty, apressada. Ele a seguiu até a cozinha. — Não a deixarei sair daqui. Meredith examinava o que havia dentro da maleta que tirara de cima do armário. — Não tenho tempo para discutir isso, capitão. — Pois arranje. — Rafferty, não tenho escolha! Jenny já perdeu duas crianças no parto, e sei que está apavorada com a possibilidade de perder esta também. Tenho de ir até ela! Travis a observou por mais alguns segundos, avaliando a situação, raciocinando rápido. E, aproximando-se da chapeleira que ficava ao lado da entrada, disse, decidido: — Muito bem. Sendo assim, irei com você. — A última coisa de que vou precisar é de outro homem para atrapalhar enquanto ajudo uma criança a vir ao mundo! —Nem perceberá que estarei lá. Vou ficar o mais quieto possível.
— Não há sentido em ir também! Muitos bebês demoram a nascer, e tenho certeza de que não terá paciência de esperar. Mas Travis estava inflexível. Pegou a capa e o chapéu, dizendo apenas: — Anjo, aonde você for eu também irei.
CAPÍTULO X A chuva os atrasou e a jornada até o rancho dos Miller demorou mais do que poderiam esperar. Quando chegaram à cabana de madeira fincada no meio da pequena clareira, a quilômetros de distância de qualquer outro rancho, estavam os três encharcados. Rafferty sentia o flanco em recuperação doer, mas cavalgar fizera-lhe bem. Seus músculos, mantidos sempre firmes e rígidos, tinham estado muito tempo parados, relaxados, e, com a cavalgada dessa noite, foram forçados a recuperar a antiga forma, o que o fazia sentir-se bem como antes. Sabia que, dentro de um ou dois dias, poderia partir para Washington com Meredith. Tal ideia não o agradava, porém. Uma semana atrás, tinha uma visão bem clara de seus objetivos: prender Meredith Carter, levá-la a julgamento e depois continuar sua vida. No entanto, agora, nada mais estava assim tão claro e determinado. Ainda não acreditava no envolvimento de ambos. Quem queria enganar?, indagava a si mesmo. A paixão violenta que sentia fizerao ter vontade de possuí-la ali mesmo, na sala, diante da lareira! Não dera a menor importância às consequências que poderiam advir de tal ato. Não ponderara sequer sobre honra e respeito. Sentira apenas desejo. Forte. Alucinante. Algo que mal conseguira conter. O pior, entretanto, era que começava a notar certas coisas sobre Meredith, coisas simples, que, à primeira vista, não tinham a menor importância, como aquelas leves sardas no nariz, ou a ligeira ruga de preocupação que aparecia quando ela estava tensa. E os pulsos finos, delicados, as mãos miúdas, o brilho, em seus magníficos olhos verdes quando aquele cachorro sem-vergonha latia pedindo comida... Não, não era bom notar esses detalhes, deixar-se emocionar por eles. Travis sabia muito bem disso. Porém, a grande questão era que estava se apaixonando por Meredith Carter. E rápido. E não sabia como deter tal sentimento. Depois de atar os cavalos debaixo de um grupo de árvores,
seguiu Meredith para dentro da cabana iluminada por vários lampiões. Era uma casa pequena, com apenas um cômodo dividido em vários ambientes. Mas as cortinas muito femininas nas janelas e a mobília feita à mão conferiam-lhe um aspecto muito agradável, aconchegante. E a lareira acesa a um canto proporcionava um claro bem-vindo naquela noite tão úmida. A parte direita da cabana estava dividida por uma colcha grossa, que encobria o que deveria ser o quarto. Rafferty ouviu os gemidos e imaginou que o leito devia estar logo ali atrás. Nathan aproximou-se do fogo e alimentou-o com mais gravetos, avisando: — Trouxe a sra. Carter, querida. Tudo ficará bem agora! — Oh, graças a Deus! — murmurou Jenny, que estava na cama. Sua voz soava cansada, dolorida. Meredith retirou a capa que trazia sobre os ombros e e entregou-a a Rafferty, passando as mãos pelo rosto e cabelos molhados. — Não sei quanto ainda irá demorar. O capitão assentiu e observou a casa, procurando uma saída pelos fundos. Mas, ao que parecia, não havia saída alguma. — Demore quanto quiser. Meredith percebeu o olhar dele e arqueou as sobrancelhas. — Pode ficar junto a mim, se preferir, mas sei que os homens não são de grande valia em partos... — comentou, com certa ironia. E estava certa. Rafferty não queria tomar parte naquilo. Já se alegrava por poder bloquear a única entrada e saída daquele lugar. Retirou a capa e o paletó, avisando apenas: — Esperarei aqui. Pendurou as roupas num cabideiro atrás da porta e foi para junto de Nathan, diante da lareira. Ergueu as mãos para o fogo, sem saber ao certo o que dizer àquele homem. Assim, preferiu manter-se calado. Nathan enfiou as mãos magras nos bolsos, depois re-tirou-as e colocou-as nos quadris. Parecia não saber o que fazer com elas. Deu alguns passos de lá para cá, sentou-se, levantou-se, andou de novo. Por fim, respirando fundo, olhou para Rafferty e disse: — Eu daria qualquer coisa para ter algo para fazer, agora. Mas, com essa maldita chuva, posso tão-só ficar aqui, mofando! Rafferty o encarou, concordando, mas manteve-se quieto. Procurou uma cadeira e sentou-se, deixando que mais alguns minutos de tenso silêncio caíssem entre ambos.
Podia ouvir a entonação suave de Meredith, que falava com a parturiente. Jenny. Ele se lembrava do nome. Meredith se expressava com tranquilidade, com suavidade. Lembrava-se também de que ela usara esse mesmo tom para falar-lhe quando delirava em febre e Meredith vigiara seus movimentos. Houvera momentos em que a dor fora tanta que apenas o som delicioso da voz dela conseguira acalmá-lo, como um doce bálsamo. Jenny gemeu alto, depois gritou. E Nathan ergueu a cabeça de repente, pálido. — Droga... — sussurrou, impotente. Rafferty sentiu compaixão pelo rapaz. — Sua esposa tem sorte por estar com a sra. Carter a seu lado — tentou confortá-lo. Nathan o fitou, parecendo agradecido por aquele início de conversa. — Sei que ela fará tudo o que puder por Jenny. O problema é que minha esposa já perdeu outros dois bebês... E está tão preocupada com esse! Rafferty gostaria de poder dizer-lhe que tudo ficaria bem, mas não sabia nada a respeito dessas coisas. Seus colegas de farda, quando estavam para ser pais, costumavam também estar muito longe de casa para trocar opiniões com ele sobre o assunto. Quase sempre recebiam uma carta, semanas depois do nascimento, avisando sobre o fato. Às vezes, a notícia era agradável, documentando o nascimento de um garoto forte, saudável, ou de uma menininha linda. Em outras, a carta falava de um parto difícil, de uma criança que não nasceu robusta o suficiente e morreu semanas ou dias depois. — Meredith cuidará dela — repetiu. Nathan engoliu em seco. Esperou alguns momentos em silêncio para depois murmurar: — Sei que ela fará o melhor que puder. Afinal, já fez o parto de tantas mulheres! — E recomeçou a caminhar. — Conhece a sra. Carter há muito tempo? Percebendo que Nathan precisava falar para poder dis-trair-se da tensão, Rafferty respondeu: — Há uns dois anos. — É bastante! — É... Nathan cruzou os braços, estudou-o por segundos, depois comentou: — Então... foi ferido.
— Isso mesmo. — E sabe quem atirou contra você? — Não. Mais uma vez, a quietude incômoda se abateu entre ambos, até que Nathan arriscou: — Você é algum tipo de fora-da-lei? — Não. Sou capitão do Exército. — Do Exército da União? Rafferty encarou-o por segundos, muito sério. A seu ver, agora havia apenas um Exército no país. Mesmo assim, disse: — Sim. Da União. — Isso é bem melhor do que ser fora-da-lei, acredito. Posso saber por que está por estas paragens? — Tenho assuntos a tratar com a sra. Carter. Nathan passou os polegares pelas alças do suspensório. — Sabe, não sei se gosto do que está me dizendo. Não consigo imaginar que tipo de... assuntos um ianque poderia ter com ela. A repentina hostilidade, mesmo compreensível para Rafferty, deixou-o mais alerta. Não gostava do rumo que aquilo estava tomando. Percebeu que Nathan entreabria os lábios mais uma vez, na certa com outra pergunta a fazer, mas Jenny tornou a gritar, e ele desviou a atenção e o olhar para a colcha que fazia as vezes de parede para o quarto improvisado. E, fosse o que fosse que estava na mente do rapaz, desapareceu por completo diante do desespero de sua mulher. Sentou-se na cadeira de balanço junto ao fogo, perturbadíssimo. Segundos depois, Meredith apareceu no vão que a colcha formava, limpando as mãos num pedaço de pano. Seus cabelos e o vestido ainda estavam bem molhados e ela parecia sentir frio, mas não percebia ou não se importava com isso. Seu rosto estava pálido de preocupação. — Nathan? Precisarei de ajuda aqui. O rapaz sentiu as pernas tremerem. — Para quê? — murmurou, a testa começando a ba-nhar-se de suor. — E necessário que ajude Jenny a ficar numa posição mais erguida. Nathan engoliu em seco. — Não sei o que... o que posso fazer... Não entendo... nada sobre... partos. Isso é... assunto de mulher. Meredith tomou-o pela mão. — E seu filho quem está nascendo, então é seu assunto
também. Nathan voltou a cabeça em direção a Rafferty, os olhos contendo uma súplica muda. Então, sugeriu, esperançoso: — Talvez o ianque possa ajudar, também. Aposto que tem estômago para isso. Rafferty sentiu uma perto nas entranhas. Mesmo assim, ofereceu-se: — Se precisarem de mim... Um alívio imediato tomou a expressão de Nathan. — Graças a Deus! Meredith fez que não, aborrecida. — Jenny precisa de você, Nathan, não de um estranho! — repreendeu-o e puxou o rancheiro para trás da colcha. Aliviado, Rafferty respirou fundo e recostou-se na cadeira. Sempre fora capaz de deixar os sentimentos de lado, de fazer o que fosse necessário, mesmo que se tratasse de algo desagradável, mas a presente situação deixara-o nervoso demais. E estava começando a relaxar os nervos quando ouviu o baque surdo e voltou-se para o local onde deveria estar a cama. — Nathan! — Meredith chamou-o, preocupada. Rafferty, já com a arma na mão direita, levantou-se e correu para lá. Não sabia ao certo o que iria encontrar. E, ao afastar a colcha, viu algo com que teria sérios problemas em lidar. Nathan estava no chão, desmaiado. A batida em sua testa começava a aparecer. No centro da cama de casal, Jenny mantinhase com as pernas dobradas, parecendo experimentar uma dor intensa. Usava apenas uma camisola larga, que estava dobrada até a cintura, mostrando seu corpo inchado pela gravidez. Numa atitude imediata de pudor, Rafferty baixou os olhos e desculpou-se: — Sinto muito... Meredith, aflita, mas diligente, pediu-lhe: — Por favor, leve Nathan para junto da lareira. Depois, volte aqui. Travis não discutiu, agindo rápido. Arregaçou as mangas e retorno para junto dela assim que acomodou Nathan na cadeira de balanço. — Meu marido está bem? — Jenny quis saber. — Ele vai viver. — Meredith fez com que a moça se voltasse de costas. Depois dirigiu-se a Rafferty, dizendo: — Jenny estava tendo uma contração quando Nathan desmaiou, mas minha preocupação, no momento, é com o estado
dela e do bebê. Depois cuido dele. Pela primeira vez, Rafferty olhou de fato para Jenny. Era ruiva, tinha a pele branquíssima, quase transparente, e seu rosto, agora, não estava contraído de dor. Sua respiração era rápida, tensa, e ela rangia os dentes, percebendo que mais uma pontada estava a caminho. — Nathan nunca teve estômago para cuidar de doentes — disse, mesmo assim, tentando sorrir ao desculpar-se pelo marido. Meredith sorriu também. — Ouvi dizer que Nathan também desmaiou quando o ferreiro esmagou o próprio dedo com uma martelada. Mesmo concentrada nas dores, e de olhos fechados, Jenny deu risada. — Pobre Steve... Estava sofrendo demais, mas era Nathan quem gemia. Meredith parou de sorrir quando seu olhar encontrou o de Rafferty. — Vá para trás dela, Travis. A contração está chegando. Quando a dor chegar, coloque-a sentada. Preciso fazer um exame de toque para ter certeza de que a criança está na posição correta para nascer. Rafferty colocou-se atrás de Jenny e passou seus braços sob os dela. — Desculpe-me pelo mau jeito, senhora. Sei que é uma situação íntima, particular... Jenny cerrou os dentes, vítima da ferroada angustiante. — Oh, poderia ser o próprio demônio agora, senhor, desde que me ajudasse! Rafferty já vira muita agonia em campos de batalha. Naqueles momentos, toda a dignidade e toda a honra eram esquecidas devido ao padecimento físico. Meredith, preocupada, tentava averiguar o que se passava com Jenny. O capitão se manteve firme, segurando a parturiente, esquecendo-se por instantes da estranheza do que fazia para concentrar-se apenas no milagre que se achava prestes a acontecer ali. Vira tantos homens morrerem, mas nunca vira uma nova vida surgir no mundo. Mais uma vez, Meredith levantou a cabeça para ele. E, pela primeira vez, o capitão viu o medo estampado em suas íris muito verdes.
— Jenny, tentarei virar o bebê. A contração se foi, e Jenny relaxou os nervos nos braços de Rafferty. — Vou perder mais esta criança, Meredith? — Não — garantiu, convicta. — Mas o parto está um pouco complicado. Da próxima vez em que tiver a dor, não faça força. — Nem acho que posso. Estou tão cansada! E dói tanto... Rafferty escorregou as mãos até as de Jenny e instigou-a: — Pode, sim, sra. Miller. Tem apenas de ser determinada e pensar em seu filho. — O capitão nunca aceita um "não" como resposta. — Meredith esboçou um meio-sorriso, animando Jenny. Mas ela nem teve tempo de responder, pois nova con-tração a tomou. — Preciso fazer força... — Gemeu. — Espere — Rafferty ordenou-lhe. — Quanto mais conseguir aguentar, mais depressa seu bebê chegará. — Não posso... — Pode, sim! Enquanto ele falava com Jenny, Meredith escorregou as mãos para dentro do ventre dela e virou a criança. Jenny gritou, mas Meredith manteve-se firme, determinada. — Pronto! — anunciou, feliz. Passou as costas da mão pela testa, afastando alguns fios de cabelo e manchando sua própria pele com o sangue da parturiente. — Quando sentir a dor de novo, agora, sim, faça muita força. Jenny segurava os dedos de Rafferty com tanta firmeza que eles chegavam a doer. Ele sentia o flanco queimando, mas mantinha a garota sentada. Mais uma contração, mais um berro de Jenny, e o aviso de Meredith soou, forte: — Vamos, agora faça força! A parturiente, juntando suas últimas reservas de energia, obedeceu. As veias em seu pescoço se dilataram, aparecendo através da pele muito branca. Rafferty perguntava-se quanto mais ela poderia suportar quando, por fim, viu o arredondado da cabeça do bebé. Vinha envolta em sangue, mas os cabelinhos escuros eram bem visíveis. E, quando o rostinho vermelho emergiu, Meredith limpou-lhe a boca com o pano que mantivera pendurado sobre o ombro. — Só um pouquinho mais e seu bebé estará em seus braços, Jenny!
Era um milagre. Rafferty deixou de fitar o bebê que chegava para ver o rosto de sua mãe. — Vamos lá, Jenny! — animou-a. — Está quase terminando! Amanhã, a estas horas, estará com seu filhinho nos braços! Tudo isso já terá passado! Jenny assentiu e fez força mais uma vez. Os ombros da criança escorregaram para fora, seguidos rápido pelo restante do corpo. Rafferty olhava, encantado, enquanto Meredith virava o recémnascido nos braços, massageando-lhe as costinhas com cuidado e vigor ao mesmo tempo. — Ande, amiguinho! — ela sussurrava. — Vamos, respire! A criança não se movia, sua pele acinzentada era um contraste com a de Meredith. Rafferty baixou Jenny de volta aos travesseiros, percebendo que os olhos dela estavam aflitos, tentando ver o bebê. Meredith continuava a massageá-lo. Mas não havia rea-ção alguma. — Ele está morto? — Jenny alarmou-se. — Meu Deus! Não pode ser! De novo, não! — Calma, Jenny — Rafferty consolou-a. Mas notou que as mãos de Meredith, resolutas até então, começavam a tremer. Foi até junto dela. — O que está havendo? — Ele precisa respirar... — E continuava apertando as costas da criança, tentando ajudá-la a mover os pulmões. Rafferty olhou para o bebé. Seu coração bateu mais depressa, na ansiedade por ver aquele corpinho ganhar vida, reagir. No entanto, nada acontecia. Começando a se desesperar, tomou o bebé das mãos de Meredith, virou-a de cabeça para baixo e deu-lhe um tapa vigoroso no traseiro. O bebê pareceu engasgar e depois soltou um longo e sofrido gritinho, que logo se transformou num choro convulsivo. Jenny sorriu, murmurando: — Graças a Deus! Graças ao bom Deus! Meredith chorava. Rafferty engoliu em seco, sentindo a emoção apertar-lhe a garganta. Voltou o bebê para cima, maravilhando-se ao vê-lo ali, tão pequeno e indefeso na palma de suas mãos. Tão frágil e tão perfeito... — É menino ou menina? — Jenny quis saber. Tanto Rafferty quanto Meredith riram, conscientes de que isso ficara para segundo plano com a preocupação pela sobrevivência do pequenino. Verificaram, juntos, e também juntos, responderam:
— Menino! — Ah, lento e teimoso como o pai, sem dúvida! — Jenny comentou, alegre. Meredith cortou o cordão umbilical, concentrando-se agora no pós-parto. Rafferty embrulhou o pequeno num cobertor e segurou-o até que seu choro se acalmasse. E, até devolvê-lo aos braços de Meredith, ficou observando, encantado, o tamanho dos dedinhos daquelas mãos tão miúdas. — Posso... posso entrar? — Era Nathan, que retornava, o rosto ainda tenso, a testa vermelha. — Está atrasado — Jenny queixou-se, recebendo o filho no colo. — É, acho que perdi a melhor parte... — Nathan não sabia se esfregava a testa ou curvava-se para olhar a criança. E, agora que o drama do momento passara, Rafferty começou a sentir-se um intruso outra vez. Afastou-se da cama, mas Nathan chamou-o: — Espere! Você também faz parte disto! — Não. Este momento é de vocês. — Não fosse por você, meu menino poderia não estar vivo agora — Jenny interferiu com lágrimas nos olhos. — A meu ver, passou a fazer parte da família, capitão. Rafferty vacilou. Sempre fora um intruso. Nunca fizera, de fato, parte de lar algum. E surpreendeu-se por se sentir tão feliz com o que lhe ia no peito, naquele momento. — Quer segurá-lo, Meredith? — Jenny ofereceu. Ela, que lavava as mãos, secou-as depressa e pegou a criança, carinhosa. Seria uma mãe maravilhosa algum dia, Rafferty imaginou, notando a suavidade dos traços dela, agora que olhava para o bebê. — Você leva tanto jeito com crianças... — Jenny comentou. — Não acha que já está na hora de pensar em ter os seus? Meredith apenas sorriu, acariciando a cabecinha do re-cémnascido. Jenny, livre das dores, continuava falando: — E o senhor, capitão? É pai? — Não. — Pois deveria. É jovem e forte... Travis tentou sorrir, mas não conseguiu. Certa vez, um lar, uma esposa e filhos tinham sido parte de um sonho bom. — Duvido que filhos estejam em meu destino, sra. Mil-ler. Duvido... — E uma pena. — Nathan acariciava Jenny. — Mas, quanto à sra. Carter, tenho certeza de que ela e o sr. Walker poderiam ter
muitos e belos filhos! Rafferty sentiu o ciúme passar em suas veias como se fosse algo físico, material. A ideia de ver Meredith tendo filhos com outro homem o enfurecia. E, como se percebesse que seu humor mudava, Nathan. acrescentou, depressa: — Capitão, sabemos que o senhor é ianque e tudo o mais, mas... nós lhe somos gratos. E... bem, não sabemos seu primeiro nome... — Travis. Nathan e Jenny entreolharam-se significativamente. — Importa-se se dermos seu nome a nosso garoto? — O rancheiro o encarava, com um sorriso. Rafferty arregalou os olhos, emocionado. — Acho que... que Meredith deveria dar o nome ao menino, já que foi ela quem o trouxe ao mundo — observou, sem graça. — Para mim está ótimo, desde que não queira chamá-lo de Ezra, em homenagem a nosso querido dr. Johnson. Esse nome me parece tão pesado... Meredith sorriu. — Nem meu tio gostava do próprio nome, Jenny. Acho que Travis seria adequadíssimo para ele. Travis... É, gostei do nome! — Para mim, também soa ótimo! — Nathan aprovou. O pequeno bocejou, como mostrando que nomes eram um assunto que não lhe interessava nem um pouco. — Então, será Travis! — Jenny definiu. — Muito bem, então, Travis — Meredith falava com o bebê. — Acho que é melhor voltar para o colo da mamãe, porque logo sentirá fome. — E entregou-o a Jenny. — Não temos nem como agradecer o suficiente a vocês dois por salvarem nosso Travis. — Nathan também estava emocionado. — Não... suportaríamos perder outro filho... — Não precisam agradecer. Foi um grande prazer. — Meredith ajeitava suas coisas na maleta médica. Rafferty afastou-se, abrindo a porta da cabana e saindo para a varanda. A chuva parara, e havia um cheiro de frescor no ar. O sol começava a manchar as nuvens do horizonte de vermelho, e uma brisa muito suave soprava por entre as folhas das árvores. Aspirou fundo e recostou-se a um dos pilares, sentin-do-se muito bem. Olhou para as próprias mãos, calejadas por muitos anos de trabalho duro. Eram mãos que tinham matado, mas agora também haviam ajudado alguém a nascer.
Alguns segundos se passaram e uma sensação estranha, de perda e de vazio, o tomou. Dez anos atrás, havia muitos planos em sua mente. Planejara estar reformado do Exército e começando a fazer fortuna de alguma forma. Chegara a sonhar com uma esposa, uma casa, filhos. No entanto, aos trinta e quatro anos de idade, lá estava ele, sozinho, sem ter realizado seus sonhos. Tudo o que tinha de seu era a vingança contra uma traidora e a obsessão que sentia em relação a ela. Se ao menos, Meredith não tivesse ido à prisão Libby naquela noite, havia dois anos... Se a fuga tivesse sido bem-sucedida... Se pudesse esquecer dos horrores daquela guerra! Queria que tal sensação passasse. Queria que tudo voltasse a ser como antes: com lógica, clareza, frieza. Assim, poderia seguir adiante e esquecer que um dia sonhara com Meredith e com coisas que seriam impossíveis. Ouviu passos atrás de si, mas não se voltou, sabendo tratar-se dela. Conhecia também o som dos passos de Meredith, seu perfume... Ela se aproximou e fitou o céu da manhã que nascia. A expressão de preocupação dela se fora, mas ainda estava pálida. Rafferty sentiu uma vontade intensa de enlaçá-la e puxá-la para si, mas se conteve. Não se moveu. — Fez um belo serviço lá dentro. — Obrigada. Mas não teria conseguido, não fosse por você. Tem jeito com crianças, capitão. Não sei como ainda não é pai. Ele pensou por instantes, antes de comentar: — Certa vez... houve uma mulher em minha vida. Ela queria muito ter filhos. Meredith o encarou, surpresa. — Foi casado?! — Noivo. — E... o que aconteceu? Durante certo tempo, fora difícil, penoso, para Rafferty recordar. Mas agora, não mais. — O nome dela era Isabelle. Queria se casar, ter muitos filhos. Mas eu preferi esperar até que a guerra terminasse. — Por quê? — Não gostava da ideia de deixar uma viúva ou um órfão para trás. — E ela não concordava? — Não. Queria ser mãe logo. E acabou se casando com outro.
Um oficial também. Ouvi dizer que já têm duas crianças e que vivem em Maryland. — Sinto muito... Rafferty ficou surpreso pela mistura de sentimentos que percebia nos olhos dela. — Por que não disse a Nathan que vamos partir, Me-redith? Talvez ele a ajudasse, se lhe pedisse... — Nathan não precisa se preocupar comigo. Agora tem um filhinho para criar. Além do mais... você garantiu que iria me ajudar. Ele tornou a encará-la. — Confia em mim, não é? — Confio. Rafferty assentiu. — Cuidado para não se decepcionar. Não faça de mim um herói, porque... se as evidências apontarem para você, cuidarei para que vá para a cadeia.
CAPÍTULO XI As palavras de Rafferty podiam ter soado duras, mas já não vinham carregadas do ódio do passado. Agora, sua voz tinha um tom preocupado, angustiado até, de quem não gostaria de encontrar alguma prova contra Meredith. — Não encontrará evidências que provem minha culpa, capitão, porque nada fiz de errado. — Assim espero, para o bem de nós dois. A honestidade dele provocou uma sensação de medo em Meredith. Não temia as acusações que poderiam lhe imputar, mas o que sentia em relação a Travis. Entendia que as emoções que pulsavam no peito de Rafferty estavam bem distantes da raiva anterior e, quanto mais constatava quem, de fato, ele era, mais seus sentimentos se aprofundavam. Talvez se não tivesse visto um lado diferente dele nesse dia. Se não houvessem partilhado a maravilha do nascimento daquela criança, se não tivessem se sentido tão unidos naquilo, quem sabe pudesse não ter seu coração assim tão aberto para ele. No entanto, era assim que se sentia: com o coração escancarado diante de Travis Rafferty. Podia, estava certa disso, apaixonar-se perdidamente pelo capitão, e tal ideia a apavorava. Queria muito que Travis a abraçasse, dissesse que tudo se arranjaria, que tudo daria certo. Mas é claro não lhe pediria para
fazê-lo, e sabia que Rafferty também não tomaria a iniciativa. Assim, cavalgaram de volta a sua casa em total silêncio. Ao chegarem, levaram os animais até o estábulo, onde Rafferty retirou-lhes os arreios enquanto Meredith colocava feno fresco e água nos cochos. Em seguida, como sempre fazia, ela pegou uma maçã e ofereceu-a ao cavalo que fora do forasteiro que viera atacála noites atrás. — Aqui está, Sam — falou com o animal. — Sentiu saudade? Rafferty fechou a porta das baias e voltou-se para observá-la. — Esse cavalo não conseguirá fazer a viagem, Meredith. Uma sensação de perda passou pelo coração dela. Aqueles animais tinham sido sua família nos últimos meses, mas, bem no fundo, sabia que Rafferty estava com a razão. Teria de deixá-los, e isso parecia-lhe quase impossível de suportar. — Eu sei... — murmurou. — Vou encontrar um lar para ele. — Talvez fosse melhor encontrar também um para Blue. — Por quê? Blue pode aguentar viajar, é um cavalo forte! E não quero deixá-lo para trás! Rafferty baixou os olhos. Havia tristeza neles e não queria que Meredith os visse assim. — Seu cavalo pode ser muito bom para pequenos passeios até a cidade, mas não suportaria uma jornada de tantos quilômetros. Ela engoliu em seco. Foi até a baia de Blue e, acariciando a cabeça do animal, murmurou: — Não posso deixá-lo... — Terá de fazê-lo. Meredith passou os dedos pelo focinho macio do garanhão e passou a falar-lhe, carinhosa: — Não ligue para o que ele diz, querido. Está apenas com aquele seu humor azedo de sempre. Não o deixarei. Rafferty respirou fundo e afastou-se alguns passos, olhando para seu próprio animal. — Meredith, não estou dizendo isso para parecer cruel, entenda. Não gosto, nunca gostei de ser o vilão da história. A viagem será longa e extenuante para seu cavalo, é só. E ele poderá morrer de exaustão. O coração de Meredith recusava-se a aceitar aquilo, embora sua mente entendesse muito bem. — Blue é um cavalo tão bom... — Deve haver alguém que possa cuidar dele. Ela ponderou por instantes, como se avaliasse a situação. Depois, acariciando mais uma vez o animal, comentou:
— Blue já não é tão veloz quanto costumava ser, mas é um doce de cavalo. Seria ótimo para uma criança. — Nesse caso, faremos questão de deixar esse aspecto bem claro quando o oferecermos. A situação parecia muitíssimo injusta, e Meredith recusava-se a aceitá-la sem lugar. — E... quanto aos gatos e a Shorty? Rafferty olhou para o cachorro, a alguns passos de distância, observando-os, atento, a cauda abanando, alegre. Não pôde evitar um sorriso ao vê-lo. — Às vezes, acho que esse cão pode entender o que dizemos. Ela riu de leve. — E, mas é um tanto lento para entender as coisas. Como se percebesse que era o alvo da conversa, Shorty ergueu a cabeça e latiu. — Só você seria capaz de recolher animais assim... — Rafferty observou, com simpatia. — Como fez comigo... — Bem, eu... não fui atrás deles. Na realidade, acho que foram eles que acabaram me encontrando e me ado-tando. — Sei. E não consegue dizer "não" a ninguém, não é? — Ele se aproximou, afastando alguns fios de cabelo que invadiam o rosto de Meredith. Ela não se afastou. Aquele toque, tão suave, parecia-lhe um carinho maravilhoso. — Não fiquei com todos os animais que apareceram em minha casa, Travis. Tive outros, mas alguns, assim que ficam fortes o suficiente, vão embora, ou então acabo encontrando alguém que queira adotá-los. — Sério? E quantos, mais ou menos, já socorreu? — Não sei. Não consigo me lembrar ao certo. Foram muitos. — E aposto que, enquanto estavam aqui, você lhes deu um nome também. — Sem dúvida. Como poderia chamá-los, cuidar deles, falar com eles, se não tivessem um nome? Meredith sentia vontade de recostar-se nele, de sentir o calor de seu corpo, a proteção que parecia emanar de seus braços. — Se lhes deu nomes, deve saber quantos foram. — Está bem. Foram vinte e três. Quinze cachorros, sete gatos e um quati. — Por que sente esse impulso de salvar a todos, Meredith? — Os profundos olhos azuis de Rafferty estudavam cada detalhe dos traços dela. — Inclusive a mim.
— Bem, você precisava de cuidados... Se Rafferty se inclinasse, seus lábios se tocariam, e uma mistura deliciosa de emoções amoleciam pernas e braços de Meredith, deixando-a solta, entregue. Os dedos dele agora acariciavam-lhe a face, e sentia que poderia entregar-se ali mesmo, bastava Travis querer. De repente, como se também ele estivesse experimentando aquelas sensações tão fortes e exigentes, Rafferty tomou-a nos braços e beijou-a com paixão. Meredith não pensou duas vezes para abraçá-lo, aceitando o beijo com fervor. Apesar de tudo o que ainda tinha pela frente, tudo o que teria de enfrentar com Travis, sentia-se mais viva do que nunca, e não queria deixar que aquele momento passasse sem aproveitá-lo ao máximo. Pela primeira vez em anos não se sentia mais sozinha, e deixava-se levar, aconchegada no peito dele, experimentando e provocando um desejo cada vez maior. Não queria mais raciocinar, apenas sentir. Enfiou os dedos pelos cabelos de Rafferty, mostrando que a volúpia dele era sua também, que o queria, que o aceitava. Meredith desejou ter a experiência sexual que se costumava creditar às viúvas. Mas não a tinha. — Travis, preciso dizer-lhe algo — sussurrou entre os beijos ardentes dele. Viu-o afastar-se alguns centímetros e olhá-la, à espera, chamas de um desejo imperioso ardendo em suas íris azuis. — E que... James e eu... Bem, nós nunca... fizemos isso. Rafferty arregalou os olhos. — O que está dizendo?! Meredith sentia a garganta seca, mas tinha de fazer aquela revelação: — Nunca... fizemos amor. Nós nos casamos e, pouco depois James teve de partir para a guerra. Quando tornei a vê-lo, estava morto. Rafferty engoliu com dificuldade. — Então, você... é virgem? Meredith sentiu um rubor intenso tomar-lhe as faces. — Sou. Ele se afastou de imediato. — Isso muda tudo. Havia um brilho de lágrimas nos olhos dela. Tocou-lhe as mãos, pedindo: — Por favor, não aja assim. Esperei tanto que meu marido
voltasse e... Não quero ter de esperar mais. Quero viver este momento. — Não... Não é certo. Movida apenas por um instinto que desconhecia, Meredith escorregou as mãos até a fivela do cinto de Raffer-ty. A necessidade de ser tocada, de entregar-se, era poderosa demais. Entretanto, Rafferty segurou-lhe os dedos trêmulos e levou-os aos lábios, beijando-os de leve e sussurrando: — Eu deveria me afastar, mas quero você demais. — Que bom! E, logo em seguida, estavam mais uma vez perdidos em beijos alucinantes, que os tiravam da realidade e os levavam a um mundo só deles, de silêncio e delícias. — Tem certeza de que não vai se arrepender? — Rafferty indagou ainda, movido por um sentimento de honra que era mais intenso em seu peito do que a própria vontade que o consumia. — Tenho. Caíram sobre uma pilha de feno macio, abraçados, apaixonados. Rafferty livrou-se do paletó e da camisa, e a bandagem que ainda estava presa em seu ferimento contrastava com a cor bronzeada de sua pele. Meredith sentiu o feno picar suas costas, e ele percebeu seu incômodo. — Merece algo melhor do que isto, Meredith. Uma cama de verdade. — Não diga nada agora, Travis. Apenas beije-me outra vez. Ele assim o fez, deixando que a loucura o dominasse por completo. — Meu Deus! Venho desejando isto desde que a vi pela primeira vez, naquela prisão. — Lambeu-lhe o pescoço com os lábios. E, vendo que ela respirava com dificuldade diante do desejo que a dominava, baixou os olhos para ver seu peito subir e descer, apressado, os seios tocando-lhe o tórax, excitando-o ainda mais. Nunca quisera uma mulher tanto assim. Jamais sentira o peito invadido por uma sensação tão poderosa quanto a que experimentava naquele momento. Sabia que Meredith o queria também, e isso o instigava ainda mais. Não se arrependia de ser o primeiro homem na vida dela e, pela resposta que percebia no corpo de Meredith, ela também não. Juntos, viviam um momento de êxtase tão intenso que nada poderia ser comparado àqueles instantes. Estavam ali, deitados sobre o feno, as respirações voltando
devagar ao normal, satisfeitos, o desejo aplacado, a paixão alimentada. Seus corações pareciam bater num compasso único, e saboreavam a doce quietude que os envolvia. Rafferty ainda estava deitado sobre Meredith e aper-tou-a contra si. Ela reagia, apertando-o com carinho. Sabia que, no dia seguinte, teriam de partir e que tudo mudaria. No entanto, uma ideia lhe ocorreu, e, antes mesmo que pudesse analisá-la para ter certeza de que valeria a pena revelá-la, viu-se falando: — Gostaria de poder fugir com você. Pela primeira vez na vida, queria poder esquecer tudo: minhas obrigações, meus pacientes, e nem pensar nas consequências. Rafferty a estreitou ainda mais contra si e murmurou, mesmo a contragosto: — Mas as ações sempre têm consequências, Meredith... CAPÍTULO XII Eles se amaram ainda uma vez mais. Agora, com uma paixão mais controlada, mais lenta, que os fez aproveitar cada momento juntos, cada carícia, com mais prazer, mais felicidade. E depois adormeceram abraçados, tranquilos, sobre o feno. Ao despertarem, porém, a realidade tomou-os de assalto, em toda sua crueza. Chegara o momento de partir. Vestiram-se e levantaram-se calados, indo, em seguida, para a casa. O sol estava alto, forte, e iluminou a sala assim que Rafferty abriu a porta. Por segundos, a cena não teve um registro muito claro na mente de Meredith. No entanto, para Travis, a compreensão foi imediata, e ele murmurou, perplexo: — Droga! — E, com olhos de soldado, perscrutou cada canto, enquanto Meredith, horrorizada, dava-se conta das cadeiras reviradas, as louças e os potes de mantimentos quebrados, cobertas reviradas, arrancadas das camas, e móveis vasculhados. A impressão que se tinha era a de que um furacão passara por ali. Meredith levou as mãos à boca, incapaz de articular uma só sílaba. A violação que sentia em sua vida deixava-a em choque. Seu estômago revirava. Alguém estivera ali e destruíra seus pertences. Os segundos se passaram, arrastados, até que teve condições de murmurar: — Meu Deus! Isto nunca me aconteceu antes! Quem poderia ter entrado e feito tamanho estrago?!
Travis deu alguns passos para dentro e endireitou uma cadeira. — Estão procurando por alguma coisa. — Mas... o quê? — Ela não entendia. Travis sacou sua arma e prosseguiu na investigação da cabana, no outro cômodo. — Não sei. Meredith tocou uma cortina rasgada. — E, enquanto não tivermos certeza absoluta de que foram embora, fique atenta. Meredith sentia a pele arrepiar-se vendo-o afastar-se. Da sala, podia ver que seu colchão fora revirado, rasgado bem no centro, e que as cobertas foram empilhadas a um dos cantos do quarto. Travis vasculhou embaixo da cama e depois seguiu para a cozinha. Só depois de certificar-se de que estavam sozinhos, desengatilhou o revólver. — Seja quem for que esteve aqui, já se foi. Meredith entrou em seu dormitório. Suas roupas haviam sido arrancadas dos armários e estavam jogadas em outro canto. Sobre elas, a fotografia de seu casamento, com a moldura e o vidro quebrados. A imagem mostrada estava riscada, e Meredith pegou o portaretratos com tristeza. — Quem poderia ter feito tal coisa? — repetiu, sem se conformar com o ocorrido. Rafferty aproximou-se por trás e observou a foto que ela segurava. — Não sei. — Tirou-lhe a moldura com delicadeza das mãos e estudou-a, comentando: — Você parece diferente aqui. Mais jovem, mais feliz... Ela olhou para o sorriso estampado em seu rosto. — Todas as noivas são assim, não? — James não passava de um menino... — Tinha vinte e um anos. — Parecia nem ter barba ainda. Meredith achou graça. — Ele se sentia tão adulto, tão esperto, e estava tão orgulhoso de si mesmo nesse dia! Mas não passávamos de duas crianças cheias de ilusões. Quando vejo esse retrato, tenho a impressão de que estávamos brincando de nos vestir com as roupas de nossos pais. Eu e meu vestido de contos de fadas, e ele em seu garboso uniforme cinza. — Ao que parece, o casamento foi um evento e tanto. — E, foi. A mãe de James convidou a cidade inteira. Na
véspera da cerimonia, ele recebeu a ordem de partir para a frente de batalha. Sabia que partiria com seus homens assim que nosso casamento terminasse, mas não me falou nada. Queria que aquele dia fosse perfeito. Um estranho sentimento de culpa a tomou quando fitou mais uma vez o semblante alegre de James na fotografia. Percebia que, se o conhecesse agora, não teriam se casado. O amor que sentira se fora e nada mais restava dele. Tanta coisa mudara em sua vida! Tanto se perdera! Fosse quem fosse que tivesse violado sua residência, tinha também quebrado a armação da foto e Meredith sentiu um desejo intenso de endireitá-la. Lidou com dificuldade na prata retorcida, mas nada conseguiu. Travis, mais uma vez, tomou a armação de suas mãos e tentou fazê-lo também. — Podemos pedir ao ferreiro que dê um jeito nisto, Meredith. — Bem, na verdade... não importa tanto assim. É parte de um passado que não voltará. — Nada disso. Vamos consertá-la. Certas coisas não devem ser esquecidas. — E, deixando a fotografia de lado, tomou-a pelos ombros, dizendo-lhe, muito sério: — Seja quem for que entrou aqui, voltará. Precisamos ir até a cidade. Meredith encarou-o, sem entender. — Imaginei que não passaríamos por lá. — Acredito que seja mais seguro para você na cidade, agora. Assim que descobrirmos quem está por trás disto, então poderemos seguir viagem. Faça uma mala com tudo de que vai precisar. Ela encontrou a mala de lona num dos cantos e começou a tediosa tarefa de procurar entre as roupas reviradas tudo de que mais necessitaria. — Quase tudo está rasgado, destruído. Não deixaram quase nada inteiro. — Leve o que puder. Compraremos o que precisar. — Talvez isso tenha sido uma coincidência, não sei... Um assaltante sem ligação com minha vida. — Não, não foi. — Travis olhava pela janela aberta, para o campo que se abria na distância. Não havia sinal de vivalma por ali. — Seja quem for, sei que voltará. Ela jogou escova, pente e espelho de mão dentro da mala. — Como pode saber, Travis? O capitão fez um breve movimento de cabeça em dire-ção à foto.
— Teriam levado a armação se fosse apenas um assalto. É de prata. E sua caixa de dinheiro nem foi mexida. Quem esteve aqui procurava por algo específico. — Mas não tenho nada de real valor. — Então, talvez quisessem apenas encontrar você. Meredith sentiu um frio percorrer-lhe a espinha. — Continuo sem entender. — Eu também, mas agora não é hora de ficarmos levantando conjecturas. Devemos partir o quanto antes. Mais dez minutos, e Meredith empunhava a mala pronta. Rafferty selou seu cavalo e depois Blue. Pegou a bagagem que Meredith lhe oferecia e amarrou-a à sela, muito sério. Ela o observava, percebia sua preocupação. Porém, aquela expressão dura no rosto de Travis não mais a assustava. Já começara a conhecer o jeito dele. Rafferty estava zangado, sim, mas não com ela. Ficara preocupado e tentava achar num modo de resolver a questão que surgira diante de si. E Meredith sentiu seu coração se apertar ao estudá-lo. Havia tanto a amar naquele homem! Tanto! — Meredith? — O quê? — Meredith pareceu despertar de um devaneio. — Os cobertores de sela. Pegue-os, sim? — Ah, claro! E vou buscar os outros animais também. Ele se voltou, atônito. — Vai o quê?! — Buscar os outros animais. Sam, os gatos, Shorty. Eles têm de vir conosco! Não é seguro deixá-los aqui. Quem destruiu minha casa pode voltar e fazer-lhes mal. — Não. Nem pensar! — Como assim?! Se eles não forem, também não irei! Travis passou a mão pelos cabelos, diante daquela teimosia. — Olhe, se não estivesse com tanta pressa, eu até discutiria com você! — Mas não vai fazê-lo, não é? — Ela sorria. Travis torceu os lábios e aceitou: — Arrume-os para a viagem, então. Sorrindo, Meredith se afastou e, minutos depois, en-tregou-lhe um gatinho com patas pretas e cara branca. — Irei buscar os outros. Não sei onde se meteram. Ele assentiu. — Mas faça-o logo! Pouco depois, seguiam para a cidade. Travis lançou um olhar ainda aborrecido a Meredith quando entraram nos limites do
vilarejo. Ela trazia uma corda pela mão, na ponta da qual vinha o cavalo magro do forasteiro morto. E o animal parecia feliz em seguila! Nas costas do cavalo fora posta uma cesta e, dentro dela, a mãe gata e seus gatinhos. Shorty vinha sozinho, mais atrás, seguindo fielmente o grupo. Rafferty suspirou. Quando se transformara de respeitado oficial da União em líder de uma procissão bizarra como aquela? Quando perdera o controle absoluto de seu destino? Pior do que isso: por que não se importava em tê-lo perdido?! Quando estava com Meredith, tudo lhe parecia tão certo! E sabia que era mais do que atração física, desejo, paixão. Não era tolo, não se enganaria. O que sentia era algo muito próximo ao amor. Amor... Que Deus o ajudasse, mas estava apaixonado por Meredith Carter! Não podia estar. Não devia. Mas estava. Vivera momentos maravilhosos e ardentes com ela e queria repeti-los. Não foram sido suficientes. Nunca seriam. Algo dentro dele se apertava e assustava-o. Já amara antes. Já se apaixonara por Isabelle, e fora um sentimento forte, desesperado, que, no entanto, acabara tão rápido e com a mesma facilidade com que viera. O que sentia por Meredith, porém, sabia ser diferente. Era mais intenso, mais profundo. E o problema era que ainda não conseguira descobrir o que acontecera de fato na prisão Libby. Apaixonara-se pela mulher que viera prender! Respirou fundo, aborrecido consigo mesmo. Sabia agora, sem dúvida alguma, que, fosse o que fosse que houvera naquela terrível noite, Meredith não agira de forma traidora, nem por ódio, nem por fidelidade à causa confederada. O que devia ter acontecido era que dissera algo, sem querer, a uma pessoa que não deveria saber da fuga, e tudo acabara sendo descoberto. Não, ela não agira de propósito. Estivera cansada, sozinha e com medo naquela noite fatal. Não queria que Meredith continuasse sozinha, lutando para sobreviver numa terra nova e inóspita como o Texas. Se pudesse, faria algo para que a vida dela mudasse para melhor. Devia isso a Meredith, pois ela salvara sua vida. E admitia que se preocupava com seu bem-estar. Seria isso tudo, essa mistura de sentimento e preocupação com seu futuro, o que se poderia chamar de amor? A viagem até Trail's End não levara mais de meia hora. A
cidadezinha rancheira tinha apenas uma rua principal e, ao longo dela, uma sequência de construções antigas. O saloon e a mercearia eram os prédios maiores, e ambos apresentavam grandes janelas dianteiras. Rafferty preferiu entrar na cidade pelo lado leste porque, na semana anterior, quando passara por ali, notara que as pessoas tendiam a se reunir mais do lado oeste. Pretendia chegar sem ser notado e conseguir falar com o xerife antes de deparar com pessoas que pudessem começar a enxurrada de perguntas que, sabia, seriam dirigidas tanto a ele quanto a Meredith. No entanto, ao adentrarem a rua principal, o movimento nela pareceu estar além do normal. Havia centenas de transeuntes, carroças e cavalos por toda parte, num burburinho que não existia na semana anterior. — Mas que droga! — Travis imprecou, irritado. — Deve ser por causa do novo médico. Ele deve chegar hoje, e acredito que os cidadãos estejam aqui para conhecê-lo. Travis assentiu de leve, pensativo. — Claro... Acho que perdi um pouco a noção do tempo desde que deixei Washington. — Pode ser que, com essa movimentação toda, nem notem nossa presença. O capitão olhou para os animais e franziu o cenho, rebatendo: — Com a procissão que trouxemos conosco? Duvido. — Sra. Carter! — chamou um rapazola de uns doze anos, que saía pela porta dos fundos da igreja. — Que ótimo! — Travis ficou mais irritado ainda. — Sra. Carter! — A calça marrom do menino estava manchadas de graxa nos joelhos, e sua camisa branca, suja de pontos de barro. — A sra. Harper vai gostar de vê-la! Parece que ela estava insistindo para que o xerife fosse até sua casa hoje, caso a senhora não aparecesse por aqui. O sorriso que Meredith abriu para o garoto foi verdadeiro, carinhoso, enquanto fazia seu cavalo parar diante da parte de trás da igreja. — E muita gentileza dela se preocupar comigo. Mas, como pode ver, Danny, estou bem. O menino ficou sério quando viu Travis. — Quem é ele? — E o capitão Travis Rafferty. Capitão, este é Danny White. Danny enfiou as mãos nos bolsos, comentando: — Ele me parece mau.
Travis ergueu um pouco a parte da frente do chapéu e corrigiu, calmo: — Eu sou mau. — Danny, não acredite numa palavra do que ele diz. O capitão não é mau. Fique sabendo que salvou minha vida. — Meredith apeou e ofereceu a ponta das rédeas ao garoto, pedindo: — Por favor, poderia levar Sam até a estrebaria e pedir a Rob que cuide bem dele? Logo irei até lá para falar com ele sobre os cuidados e a alimentação do cavalo. O menino aceitou as rédeas, mas, com a espontaneidade própria das crianças, observou: — Mas é apenas um cavalo velho... — É um ótimo animal, Danny. Precisa apenas ser bem cuidado Ah, diga a Rob que lhe dê aveia, sim? E seja cuidadoso com essa cesta na sela, por causa dos gatinhos que há dentro dela. — Gatinhos? — O rosto de Danny pareceu brilhar de alegria. Ergueu-se na ponta dos pés para espiar para dentro da cesta, onde os filhotes se moviam e miavam. — Posso ficar com um? Meredith achou graça. — É melhor falar com sua mãe primeiro. — Eles já têm nomes? Ela se aproximou, acariciou a cabecinha do branco e preto, que era o mais esperto dos três, e disse: — Este é Sparky, porque está sempre se metendo em confusão. Aquele mais quietinho é Spot, e o que está tentando mastigar a cauda é Spooky. As pupilas do garoto brilhavam. — Talvez minha mãe deixe que eu fique com os três! — Seria ótimo. — Entretanto, Meredith não acreditar muito na possibilidade. — Mas, no caso de ela não os querer, diga a todos que tanto os gatinhos quanto a mãe e meus outros animais precisam de um lar. — Por quê? — Danny estranhou, um tanto desconfiado. — Não os quer mais? Meredith sentiu as mãos tremerem e apertou-as na borda da cesta. — Não, eu os quero a todos, mas acho que terei de ficar fora por algum tempo... — Para onde vai? — Para o leste. — Mas onde, no leste?
— Washington. — Nossa, isso é longe! — Danny admirou-se. — Por que vai para lá?! Travis impacientou-se: — Menino, faça como a sra. Carter pediu, está bem? Agora, apresse-se! A voz grossa e firme do capitão não dava margem a contestações. E Danny seguiu de pronto para a estrebaria, levando Sam consigo e chamando o cachorro: — Venha, Shorty. Aposto que minha mãe tem um pedaço de osso para você. Depois de ver o cão seguir o menino, Travis voltou o fitar o rosto entristecido de Meredith. Não gostava de vê-la assim. — Todos encontrarão um lar — tentou consolá-la. — Eu sei... — Mas evitava encará-lo. Tornou a montar, o olhar ainda seguindo Danny e os animais pela rua. Travis aproximou seu animal do dela, para observar: — Poderá ter outros, um dia. — Sim. — Meredith fazia uma enorme força para não chorar. Rafferty engoliu em seco. Poderia continuar dizendo-lhe palavras agradáveis, carinhosas, mas, no momento, elas de nada adiantariam. Meredith estava perdendo o que amava, e isso doía-lhe muito, ele compreendia. Já passara por isso muitas vezes. Nada adiantava quando a dor era profunda demais. — Há um pequeno restaurante por perto. Eu o vi quando passei por aqui antes. — É o café de Jackson — Meredith esclareceu. — Isso mesmo. É um bom lugar? Ela deu de ombros. — A carne de lá é boa. — Excelente! Preciso comer. — Sabia que Meredith também deveria estar faminta. Ela passou a mão pelo rosto, enxugando duas lágrimas que escorriam, e só então encarou Travis. — Não íamos falar com o xerife primeiro? Mas ao vê-la assim tão deprimida, tudo o que Rafferty queria fazer era sentar-se a uma mesa com ela e conversar um pouco, acalmá-la, consolá-la. Já tinham passado por muitas coisas juntos. Tinham, até, se amado. Mas nunca fizera nada amável para com Meredith e ela bem que o merecia. Contudo, ela estava certa. Era melhor falarem com o xerife antes mesmo de comerem. Afinal, a segurança de Meredith vinha
em primeiro lugar. Tocou-lhe a mão e apertou-a de leve, murmurando: — Assim que falarmos com o xerife iremos comer algo, está bem? Ela apenas assentiu, num longo suspiro. Ao seguirem pela rua poeirenta, rumo à delegacia, Travis reparou que a maioria das pessoas parava o que fazia ou falava para observá-los. E todos sorriam para Meredith. Muitas das mulheres acenaram e chamaram-na pelo nome. Ela conhecia todas as crianças, que vinham até seu cavalo, sorridentes, dizendo-lhe frases amáveis. Entretanto, assim que deixavam de olhá-la para observar Travis, seus sorrisos desapareciam, e suas expressões mudavam, tornando-se carrancudas, desconfiadas. Assim, sem que nenhuma palavra lhe fosse dirigida, o capitão percebeu que não era bemvindo a Trail's End. Uma sensação estranha, quase de vergonha, o tomou. Estava separando Meredith de seus amigos, do único lar que ela conhecera. Contudo, precisava manter-se firme e prosseguir com seu objetivo. Afinal, tinha de vingar a morte de seus homens naquela terrível noite de fuga frustrada. E, quando descobrisse quem estava atrás de Meredith, partiria com ela para o leste. Lá, descobririam quem era o verdadeiro culpado, e poderia voltar a ser o mesmo Travis Rafferty de sempre. Lançou um olhar rápido para Meredith e achou-a mais encantadora do que nunca. Lembrava-se dos beijos dela, de sua boca suave, macia, de seu corpo pequeno, tão delicado e lindo... Não, não podia mais tentar se enganar assim. Jamais voltaria a ser o mesmo Travis Rafferty de antes.
CAPÍTULO XIII O escritório do xerife ficava na extremidade norte de Trail´s End. A luz do sol, forte nessa hora do dia, batia sobre as paredes de um tom acinzentado do edifício e era refletida no cocho d'água que ficava logo em frente e que servia para matar a sede de qualquer animal que passasse por ali ou fosse amarrado em frente à delegacia. No momento em que Meredith e Travis se aproximaram, viram um cavalo baio na trave diante da porta da cadeia, e o animal
inquietou-se ao sentir que teria companhia. Travis apeou e, depois de ajudar Meredith a fazer o mesmo, amarrou os animais na mesma trave e seguiu com ela até a pequena varanda. Ela seguiu, serena, subiu os dois degraus de madeira, mas parou no tablado, erguendo os olhos muito verdes para Rafferty. Foi direta: — Acha que o que está acontecendo por aqui tem algo a ver com o passado? O capitão a encarou. — Deve ter. Aqueles homens que conseguiram me ferir estavam interessados apenas em você. Em matá-la, para ser franco. A cor desapareceu do rosto dela diante daquilo. — Mas... por quê?! Afinal, depois de tanto tempo! Travis tomou-lhe uma das mãos. — Não sei. As peças desse quebra-cabeça ainda não se encaixaram para mim. Mas, com o tempo, tudo virá à tona. Confia em mim, Meredith? Ela assentiu, sem hesitar. — Sem sombra de dúvida. — Ótimo. Mais dois passos e entraram na delegacia. Meredith já passara diante dela muitas vezes, mas jamais estivera em seu interior. O xerife sempre lhe dissera que aquele era um lugar para malfeitores e bandidos, não para senhoras de bem. Não havia ninguém no escritório, muito menos nas duas celas logo ao lado. O luminosidade solar penetrava no ambiente pela janela da frente, pequena e suja, e também pelas barras de ferro das celas. A única mobília visível eram os dois catres duros em cada cubículo, uma escrivaninha gasta no escritório, uma cadeira próxima à porta e um suporte para armas, que continha três rifles colocados lado a lado. O ambiente era nada mais do que um reflexo do estilo simples e estranho do xerife Harper. Chão varrido, lençóis nos catres e cheiro de cera com a qual a escrivaninha velha fora encerada eram os reflexos dos cuidados da sra. Harper. — Olá! — Travis chamou, tendo o cuidado de manter Meredith atrás de si, num gesto de proteção impulsivo. — O xerife costuma tomar o desjejum em casa. Deve já ter saído. — E deixa a cadeia assim, aberta?! — Travis estranhou. — Trail's End é um lugar pacífico. Não temos problemas por aqui, a não ser um ou dois vaqueiros bêbados, quando há alguma
passagem de gado. A explicação não pareceu convencê-lo, muito menos satisfazer o senso de responsabilidade que era forte dentro de seu peito. Era um homem que sempre vivia alerta, atento a tudo e a todos. Tornou a chamar: — Alguém por aqui? — Calma! — disse alguém do lado de fora. Meredith reconheceu logo o sotaque forte do xerife. — Ele está chegando, Travis. — Já não era sem tempo. — Travis voltou-se para a entrada, carrancudo. O xerife, usando sua costumeira calça de brim, camisa branca, onde brilhava a estrela que era o símbolo de sua profissão, e botas de canos altos, apareceu no umbral, olhando com seriedade para o estranho que invadira eu recinto. Era um homem troncudo, de ombros largos, embora não muito alto, e seus óculos eram de aros muito finos e lentes não muito espessas. Trazia uma bandeja de comida, coberta por um pano de padrão xadrez vermelho e branco. Deixou-a sobre a mesa e colocou a mão direita sobre o coldre, numa atitude de ameaça. — Em que posso ajudá-lo? — indagou, os olhos mais azuis do que nunca, as rugas da testa mais pronunciadas. — Xerife Harper? — Minha mulher comentou sobre um estranho que passou pela cidade na semana passada e, pela descrição que me deu, imagino que estivesse falando de você. Travis assentiu, acrescentando: — E, sou eu mesmo. Meredith, que estivera quase toda encoberta pela presença alta e forte de Travis, apareceu a seu lado, sorrindo. — Xerife Harper... Os olhos dele a seguiram e, de imediato, um sorriso se abriu em seu rosto. — Ora, já não era sem tempo! Edith estava começado a se preocupar com você, Meredith, por ter demorado tanto a voltar para cá. Já queria que eu enviasse uma patrulha até sua casa para sabermos o que estava acontecendo! Meredith aproximou-se, aceitando o abraço do xerife e explicando: - Estive ocupada com clientes. E a boca, como está? Ele moveu os lábios, explicando:
— Bem melhor agora que aquele maldito dente já não está mais aqui. Tenho tomado aquele medicamento horrível que me receitou. Tem um gosto danado, mas parece que funciona, porque não tive quase dor nenhuma e o inchaço sumiu logo no segundo dia depois da extração. — Fico feliz com isso. Depois dos cumprimentos, o xerife tornou a ficar sério e quis saber, apontando Travis com um breve gesto de cabeça. — Quem é ele? — Xerife, quero lhe apresentar o capitão Travis Raf-ferty. A expressão do idoso xerife não mostrava prazer algum em conhecê-lo. — E posso saber o que traz um oficial ianque a nossa cidade? Travis não se intimidou com a recepção fria e desagradável do xerife. — Vim até Trail´s End para prender Meredith Carter. A mão direita do xerife apertou a coronha do revólver ainda no coldre. — Não levará Meredith a lugar algum. — Acho que podemos discutir sobre isso mais tarde, xerife. No momento, temos um assunto mais importante a resolver. — Nenhum assunto é mais importante, rapaz! Ainda mais quando me vem com essa história de querer prender nossa Meredith! Ela interveio, percebendo que a tensão crescia entre ambos: — Xerife, Travis salvou minha vida. Foi alvejado em minha casa, na semana passada enquanto enfrentava dois homens que queriam me matar. O xerife ficou atônito. — Como é?! E quem eram esses homens? — Ela não os conhecia — Travis respondeu por Meredith. — E eu esperava que o senhor pudesse nos esclarecer algo. Imagino que esses forasteiros tenham passado por aqui, na semana passada. O xerife raciocinou por instantes, depois disse: — O único estranho que passou por aqui na semana passada foi o senhor, capitão. — Talvez depois — Travis insistiu. — Alguém entrou na residência de Meredith e a revirou por completo ontem à noite. Ainda mais aturdido, Harper franziu o cenho e calou-se por instantes, para depois afirmar: — Ninguém desconhecido passou por Trail´s End. E Meredith nunca teve problemas com ninguém antes. Por que isso estaria
acontecendo agora? Que tipo de problemas têm seguido o senhor pelo Oeste, capitão? Antes que Travis pudesse responder, a sra. Harper entrou, afobada, ainda usado seu avental de cozinha, coberto de farinha. — Meredith Carter! Posso saber por que está dando seus animais?! Acabei de passar por Danny White na mercearia, e ele estava pedindo pelo amor de Deus à mãe que o deixasse ficar com seus gatinhos! Meredith sorriu, para tentar acalmar a intempestiva senhora. — Sra. Harper, estou deixando a cidade. Os olhos de Edith se arregalaram. — O que está me dizendo?! Não pode partir! — E, vol-tando-se para Travis, acusou, direta: — Então, é você! A surpresa dele era evidente. — Como disse, senhora? — Você é o tal sujeito que andava por aí na semana passada. — Fitou de soslaio o marido. — Eu lhe falei sobre ele, Fox, mas nem me deu atenção! O xerife pareceu embaraçado com a reprimenda. — Sou todo ouvidos agora, Edith... A sra. Harper ergueu mais o queixo, altiva, satisfeita por poder dar mais pormenores do que já dissera antes: — Ele foi muito esperto, não há dúvidas, mas não há como negar que estava preparando alguma! O xerife ergueu as sobrancelhas. — Quando o ianque chegou, Edith? — Na quinta-feira retrasada — Travis respondeu por ela. A esposa do xerife pareceu pensar por segundos, depois concordou: — Isso mesmo! Eu estava levando nossas roupas para Martha, porque era dia de lavá-las. Exato: era quinta-feira. Foi quando Meredith arrancou seu dente, Fox! — Bem, eu fiquei um tanto abatido alguns dias depois da extração — desculpou-se o xerife. — Fiquei deitado parte do tempo... Afinal, aquele medicamento que me receitou, Meredith, deixou-me tão sonolento! E, voltando-se para a esposa, quis saber: — Edith, lembra-se de ter visto alguém mais que não conhecesse, nesse meio tempo? — Bem... alguns homens... Dois. Não se demoraram na cidade, porém, apenas o suficiente para refrescar os animais e comprar
alguns suprimentos. — E reparou para que lado seguiram quando saíram daqui? — Travis interferiu. — Para oeste. Sim, eles seguiram para lá, tenho certeza absoluta. Travis assentiu, explicando: — Para a casa de Meredith. — Um deles tinha uma cicatriz horrível! — lembrou-se a mulher do xerife. Meredith aproximou-se mais de Travis para dizer: — Um dos homens que atirou no capitão tinha uma cicatriz muito feia. Eu a vi bem porque fui eu mesma que o enterrei. Alarmado diante das revelações que ouvia, Harper apertou ainda mais os dedos na coronha do revolver. — Sempre achei que você não deveria ficar lá naquela casa tão distante sozinha, minha filha. — A senhora percebeu mais alguma coisa, sra. Harper? Qualquer detalhe que possa nos ajudar... Edith ergueu o indicador direito para Travis, com ares reveladores. — Há algo, sim, capitão! Esse forasteiro da cicatriz andou rodeando o posto telegráfico. Talvez tenha enviado uma mensagem. Recordo ter pensado em voltar e perguntar ao telégrafo se o estranho havia enviado algum recado para fora daqui, mas estava tão ocupada cuidando de Fox que acabei deixando para depois e esquecendo. — Vou verificar. O xerife, porém, impediu Rafferty, dizendo: — Calma! Não tão depressa, moço. Quero detalhes. Todos os que puder me dar. Travis vacilou, tenso. Meredith suspeitava que ele fosse um homem que costumava trabalhar sozinho, que nunca partilhara suas descobertas com ninguém. No entanto, acabou por revelar ao xerife e sua mulher toda a história de seu envolvimento com Meredith, desde a visita dela, naquela terrível noite, à prisão Libby, depois a fuga fracassada e seus motivos para ter voltado para prendê-la. E, conforme falava, a expressão do casal tornava-se mais e mais séria e preocupada. — Não gosto nada disso! — exclamou Edith, numa mistura de frustração e raiva. — Nem um pouco! E, por alguns segundos, pairou na delegacia um clima pesado de desconfiança e rancor, até que Edith determinou:
— Meredith, você não irá a parte alguma em companhia desse estranho. Não permitirei! Mesmo enfrentando a ira do casal, Travis decidiu contemporizar, em especial devido à idade avançada daquela senhora. E não insistiu. — Talvez fosse melhor, de fato, eu seguir com o capitão para Washington e esclarecer tudo, para que o passado fique enterrado de uma vez, e para sempre — Meredith afirmou, deixando os Harper boquiabertos. — Querida, não pode fazer isso! Não vê que não haverá um julgamento justo para você?! Meredith, por sua vez, tomou as mãos enrugadas de Edith entre as suas e murmurou, com um breve sorriso nos lábios: — Sei que sou inocente de todas as acusações. Não estou preocupada com o julgamento. — Minha cara, muita gente inocente acaba na cadeia por crimes que jamais sonhariam cometer. Ainda mais quando estão lidando com um maço de cartas marcadas! Travis interferiu, a voz pesada, embora baixa: — Se, de fato, chegarmos a ter um julgamento, garanto que Meredith terá um muitíssimo justo! O xerife o estudou durante longos segundos. — Acho que o senhor acredita mesmo no que diz, capitão. Mas compreenda que, assim que chegar a Washington, os fatos começarão a sair de seu controle. Não há como prever o que poderá advir, e nós estaremos muito distantes de nossa querida Meredith para poder ajudá-la de alguma forma. — Mas ela tem de ir, xerife. — Sinto muito, moço, mas ela não vai a parte alguma. — Xerife — Meredith interferiu mais uma vez, tentando suavizar a tensão reinante —, acho que já é hora de eu voltar e visitar o túmulo de meu marido pela última vez e tentar esquecer tudo o que eu e ele poderíamos ter vivido juntos. — Seu James se foi, minha querida. — A sra. Harper tinha lágrimas nos olhos. — E ver seu túmulo não adiantará em nada, nem para você, nem para ele. — Mas talvez ajude um pouco a mãe de James, sra. Harper. Nós duas precisamos nos falar, nos perdoar e deixar o passado para trás. Além do mais, eu mesma preciso me perdoar por ter sobrevivido quando tantos que amava não conseguiram. — Você é tão dura consigo mesma, minha criança! Não fez nada de errado, filha!
— Sim, mas não posso tentar construir uma vida nova até ter enterrado meu passado com todos os fantasmas. E, pela primeira vez em anos, quero esquecer. Quero me casar de novo, ter filhos... A sra. Harper meneou a cabeça, entristecida. — Não precisa voltar para lá, minha filha. George Wal-ker quer se casar com você, e ele poderá lhe dar tudo o que almeja. Travis endireitou-se, atingido por aquela afirmação, mas nada disse. — Tenho de arranjar a situação e confio em Travis para me ajudar. — O que está me dizendo? Que confia nesse homem?! — Sim, é isso mesmo. — E já o está chamando pelo nome?! — A esposa do xerife fitou o marido, indignada. — Ouviu-a chamá-lo de "Travis"?! — Ouvi, sim, Edith. E ela o está chamando assim desde que chegou. Confusa, Meredith olhou para Rafferty. Ele se mantinha firme. — E Meredith confia nele! Conhece-o há menos de uma semana e já confia nele! Vou dizer uma coisa, querida: assim que pus meus olhos nesse homem, percebi que teríamos problemas! Meredith levou a mão direita à testa. Começava a sentir uma dor de cabeça que, sabia, não passaria logo. — Por que importa tanto assim a maneira como chamo o capitão Rafferty, sra. Harper? Edith olhava Travis, como se avaliasse cada detalhe de sua aparência e personalidade ao mesmo tempo. — Minha querida, uma mulher não chama um homem por seu primeiro nome a não ser que haja alguma coisa entre os dois — sentenciou, definitiva. Meredith encarou Travis de imediato. Sentia uma culpa enorme dentro de si, e tinha certeza de que seu rosto devia estar muito mais corado agora, acusando-a. Travis nada lhe prometera, e ela sabia que o que acontecera entre ambos não significava nada mais além do que fora: paixão, mesmo se já o amasse. Assim que tudo aquilo terminasse, o capitão continuaria seu caminho, sem ela, sem nunca mais pensar em revêla. — Não há nada entre mim e o capitão Rafferty — afirmou, num murmúrio. — Quantos dias vocês dois ficaram sozinhos em sua casa? — o xerife quis saber, agora tomando para si o interesse no caso. Meredith não gostou do tom que ele usou.
— Dez. Mas o que isso tem a ver com o que estamos discutindo aqui? — Oh, meu Deus! — A sra. Harper tapou a boca. — E aposto que você o viu em sua... intimidade. Quero dizer... do jeito como veio ao mundo. Tomada de surpresa, como se estivesse sendo levada por um redemoinho, Meredith se defendeu: — Ele era meu paciente! E estava inconsciente! O xerife pigarreou, disfarçando o próprio embaraço. — Bem, o capitão me parece estar muito bem agora, e acredito que esteja assim já há alguns dias... Com os dentes cerrados, irritadíssima, Meredith vol-tou-se para Travis, pedindo: — Poderia me ajudar, por favor? Algo mudara nele, como se acabasse de ter tomado uma decisão. — O que quer que eu diga? Percebendo que todos os olhos naquele escritório esta-vam voltados para ela, Meredith tentou relaxar os nervos tensos. — Diga-lhes que nada de significativo aconteceu entre nós. Ele, porém, passou a mão pelo queixo, pensando, e depois arqueou as sobrancelhas. — Acho que hão posso dizer isso. — Pode, sim! — Capitão, eu e Edith somos as pessoas mais chegadas a Meredith nesta cidade — o xerife explicou, com ares paternais. — Somos praticamente sua família. E a família serve para apoiar e defender seus membros! Meredith virou-se para ele, as pupilas faiscando. — Não preciso de defesa alguma, sr. Harper! Mas o xerife a ignorou, dirigindo-se a sua mulher: — E melhor você ir buscar o pastor, querida. A sra. Harper, muito séria, assentiu, com gravidade. — Voltarei com ele em poucos minutos! — prometeu. — Esses dois estarão casados antes mesmo do almoço! — Não! — Meredith gritou. — Sra. Harper, não saia daqui! Edith vacilou, sem saber ao certo como agir diante de tal situação. Travis passou a mão sobre os ombros de Meredith, enviando, através de seus dedos, um fluxo de energia para todo seu corpo. — Alguém precisa cuidar de você — afirmava, calmo. Aquele toque parecia ser íntimo demais, e ela deu um
passo à frente, para livrar-se dele. — É essa sua ideia de ajuda? — ironizou. — Disse que queria que eu dissesse alguma coisa... — Mas está me fazendo parecer uma tola fraca que precisa de todo o mundo para continuar vivendo! — Eu não disse que era tola, e muito menos fraca. Na realidade, admiro muito sua energia. A ternura que se notava nele a fazia vacilar. Até o presente momento, mantivera o amor por Rafferty, que ainda era uma novidade em seu coração, trancado dentro dele a sete chaves. E pretendia continuar assim, pelo menos enquanto Travis mostrasse naquela atitude firme de sempre. Preferia que ele tivesse reagido à situação em que o sr. e a sra. Harper os colocaram com sua irritação costumeira a vê-lo assim, tão terno, tão tranquilo. Sentia vontade de gritar, de livrar-se de tudo aquilo, mas procurou manter a fleuma. — Quero que diga ao xerife e sua senhora que nada aconteceu entre nós, Travis, para que possamos pegar os mantimentos de que vamos precisar na viagem e seguir para Washington o quanto antes. Não quero mais ouvir nem uma palavra sobre casamento! Travis sabia que estava diante de um dilema. Os Harper não eram páreo para ele. Poderia escapar da situação criada ali, mas... não queria escapar. Queria Meredith. E a ideia de vê-la retornando a Trail´s End e casando-se com o tal Walker não lhe agradava nem um pouco. O xerife ergueu as sobrancelhas, diante do empasse. — Capitão Rafferty, diga-nos o que aconteceu em casa de Meredith, nesses dez dias e nove noites em que esteve lá, sozinho com ela. Travis compreendia muito bem aonde ele queria chegar, e não fez rodeios: — Vou me casar com ela. — Graças a Deus! — exultou a sra. Harper. Meredith sentia-se ultrajada por estarem decidindo tudo por ela. — Pois bem, eu não me casarei com ele! — declarou, enfática. — Meredith querida, temos de fazer a coisa certa. — Muito bem, está decidido, então! — o xerife tornou a interferir. — Vocês vão se casar! — E eu irei buscar o pastor agora mesmo! — A sra. Harper lançou-se em direção à porta antes que Meredith pudesse detê-la. — Não vou desposar este homem, xerife Harper! — É tarde demais para se negar a fazê-lo, minha criança. É
necessário consertar o que está errado, e é isso que vamos fazer. — Mas nada está errado! O capitão Rafferty irá apenas me ajudar a limpar meu nome, nada mais! Evitando tocá-la, pois percebia que Meredith estava por demais alterada, Travis observou: — Quer queira, quer não, tudo mudou entre nós desde o dia em que cheguei a sua residência. — Não vejo nada mudado! Para ser sincera, acho, mesmo, que você nem gosta de mim! Que história é essa agora de querer reparar um erro que nunca houve?! — Meredith, eu gosto de você. . Talvez ele pudesse dizer mais, já que o que sentia era por demais profundo. Queria-a para a vida toda, e isso estava claro em seu íntimo agora, mas não sabia como dizer-lhe o que sentia, ainda mais diante dos olhos perspicazes do xerife Harper. Tomou as mãos dela nas suas e pediu, apenas: — Case-se comigo, sim? — Mas... por quê?! — Ela parecia mais assustada agora do que indignada com o rumo da situação. — Não sei ao certo. Nosso casamento pode não fazer muito sentido no momento, mas tenho certeza de que, se estivermos casados, poderei protegê-la melhor quando formos para Washington. — Recusava-se a admitir com todas as letras que estava apaixonado. Essa era sua razão real, a maior que poderia ter. — Irá se casar comigo para me proteger... — Meredith perguntou, com voz embargada: — Pretende casar-se comigo apenas para isso? — Em parte... — Meu Deus, isso é uma loucura... — Concordo. — Muito bem, então, estamos decididos? — o xerife Harper se intrometeu apenas para que não se esquecessem de que se achava presente. — Agirá da forma mais correta com Meredith? — Sim, é o que pretendo fazer. E espero que ela aceite. — Meredith? — O xerife a olhava com intensidade, à espera de uma resposta. Por fim, ela baixou a cabeça, assentiu de leve e sussurrou: — Está bem. Eu aceito.
CAPÍTULO XIV
Quinze minutos depois, o pastor chegava à delegacia, um tanto apressado, decerto movido pela urgência que a sra. Harper lhe impusera. O reverendo Poindexter era ainda jovem, não devia ter mais de trinta anos. Estava usando um avental branco, coberto de farinha de trigo, por cima da roupa negra, cujas mangas foram erguidas à altura dos cotovelos. Trazia os cabelos revoltos, como se tivesse vindo correndo, tirado do meio do piquenique, na certa, instigado a seguir a sra. Harper de imediato. — Fox, o que aconteceu? — indagou, assim que entrou. — Edith disse que se tratava de uma emergência! O xerife se ergueu da cadeira atrás de sua escrivaninha. — Bem, não se trata exatamente de uma emergência, mas precisamos de uma cerimônia de casamento imediata. O pastor pareceu pensar. — Uma cerimônia de casamento... E não poderia esperar? Eu estava preparando bolinhos de aveia no piquenique. O xerife olhou para Travis e Meredith, que aguardavam, a um canto. — Não, não pode esperar e não levará mais do que alguns minutos. O reverendo olhou para Meredith, depois para Travis, e de novo para Meredith. — Sra. Carter, como tem passado? — Estou bem, pastor — mentiu. — E... quem vai se casar? — Eu mesma. — Bem, de fato, imaginei que isso fosse acontecer mais cedo ou mais tarde, mas George Walker não me avisou de nada. Aliás, onde está ele? — A sra. Carter vai se casar comigo — Travis esclarecendo. O espanto ficou evidente no rosto do pastor. — Mas... quem é o senhor? — Meu nome é Travis Rafferty. A sra. Harper entrou, então, cansada, ofegante, e, retirando um lencinho do bolso do avental, passou-o pela testa, para depois abanar-se com ele. — E então, já os casou? — perguntou, diligente. — Não, Edith. Ainda estamos na parte das apresentações. Confuso, o pastor fitava a todos, um de cada vez, pedindo: — Será que alguém aqui poderia me explicar o que está
havendo? — É uma longa história, reverendo — disse Edith. — Podemos contar-lhe mais tarde, durante o piquenique. Mas quero que esses dois se casem logo, antes que qualquer um deles acabe desistindo. — Bem, eu gosto de fazer algumas visitas ao casal, antes das núpcias... — No entanto, não há tempo para isso, neste caso. Ainda hesitando, o pastor ergueu as sobrancelhas e, por fim, concordou: — Se estão todos de acordo... — Eu estou decidido — Travis anunciou, alto e bom som. Meredith o encarou, muito séria. Na verdade, estava assustada, com uma vontade louca de sair correndo dali e nunca mais voltar. Todavia, falou, com voz fraca: — Eu também. — Devo dizer que essa sua decisão é bastante repen-tina... — O pastor esboçou um meio-sorriso. — Acho que jamais esperaria... — Sei disso — ela interrompeu. — E... George está sabendo? — Não. Terei de conversar com ele depois. O reverendo a encarou ainda por alguns instantes, depois, retirando o avental, deixou-o sobre a escrivaninha e apanhou uma pequena Bíblia do bolso, aquiescendo: — Está certo, então. Travis aproximou-se mais de Meredith e tomou-lhe a mão. Seus dedos estavam frios, mas firmes. — Caros irmãos... — começou o pastor, mas Meredith o interrompeu: — Espere! — Soltou-se de Travis, retirando do dedo sua aliança de casamento com James, dizendo a seguir: — Pode prosseguir. O coração de Travis, que parara de bater por um momento de agonia, recomeçou seu ritmo normal. Não foi uma cerimônia padrão, muito menos refinada. Na realidade, todo o aparato de um matrimónio nada significava para Travis, mas sabia que as mulheres costumavam gostar desse tipo de coisas e queria que Meredith se sentisse feliz. Afinal, ela merecia o melhor. Mas, no semblante dela, o que via era uma máscara de reserva, enquanto dizia seus votos. Daria tudo para saber o que passava em seu interior, naquele momento. As palavras de praxe foram proferidas de forma breve e
precisa. E, ao fim da cerimónia, o pastor permitiu: — Agora, pode beijar a noiva. O xerife sentiu os músculos das costas e das mãos relaxarem, soltou a coronha do revólver, e viu que Edith chorava de emoção. Travis queria beijar Meredith, sair correndo com ela para um quarto de hotel, deixar o mundo para fora e amá-la até cair exausto. Contudo, diante daquelas pessoas, preferiu apenas apertar-lhe a mão. Meredith ergueu os olhos para ele e conseguiu sorrir de leve. — Quando chegarmos a Washington, vou comprar-lhe uma aliança — ele prometeu. — A que tenho servirá. — Ela a retirou do bolso e a mostrou. — Não. Quero dar-lhe outra. Meredith nada disse, mas o brilho em seus olhos foi muito eloquente para ele. O pastor voltou a pegar o avental e vestiu-o, dizendo, apressado: — Eu os vejo no piquenique, está bem? Deixei o óleo esquentando para fritar os bolinhos, e já deve estar mais do que no ponto. — Seguiu até a saída e, parecendo lem-brar-se de algo, voltou-se e, sorrindo, desejou: — Espero que sejam muito felizes. Depois, saiu correndo. — Este é um belo dia para um casamento! — exclamou a sra. Harper, secando as lágrimas. — O piquenique de boas-vindas ao novo médico está animado, e é uma excelente ocasião para apresentarmos o capitão a todos. — E... Parece perfeito. — Meredith sorria. Travis percebia que ela estava aliviada. Poderia ter recusado o convite para irem até a festa, mas sabia que isso faria mal a Meredith. Portanto, aceitou em silêncio. Afinal, sua esposa precisava de um tempo para adaptar-se a sua nova condição, à mudança que aquela união significaria para eles. Além do mais, no dia seguinte estariam partindo de Trail's End e não havia previsão para seu retorno. Percebendo que Travis não se opunha a ir ao piquenique, o xerife tomou a dianteira, indicando a porta: — Então, vamos todos! Ao passarem pelas lojas, todas com uma tabuleta onde se lia "Fechado" pregada da entrada porta, a sra. Harper conversava animada com Meredith sobre os inumeros ca-samentos a que estivera presente no ano anterior. Quan-do a senhora deu-lhe uma trégua, Travis aproximou-se tomou a mão de sua mulher, que teve um sobressalto.
— Você está bem, Meredith? Ficou tão calada durante a cerimônia, e depois dela... — Estou bem, sim, Travis, não se preocupe. — Tudo vai ficar bem, eu prometo. O sr. e a sra. Harper estavam alheiros às emoções que enchiam os corações de Travis e Meredith e, animada, Edith prosseguia falando: — A não ser pelas comemorações de Quatro de Julho e do Natal, Trail´s End nunca se reúne como hoje. Mas termos um médico novo aqui é um motivo mais do que suficiente para comemorarmos. É verdade que ele ainda não apareceu, mas nem é necessário nos preocuparmos com isso. O homem virá, sem dúvida. E este é um dia glorioso para nossa cidade! — É, tudo dará certo — Meredith concordou. — Minha querida, você é um amor! Está tentando me animar quando acaba de se casar com um quase estranho. Os olhos de Meredith foram direto para os de Travis, para saber se ele se ofendia com tais palavras. Mas o capitão se mantinha impassível. Assim, os quatro encaminharam-se, pela calçada, até o local onde o piquenique estava sendo realizado. Os cidadãos todos se reuniam em uma das extremidades da rua principal. Havia uma mesa enorme, muito longa, feita de tábuas e cavaletes, sobre a qual foram colocadas inúmeras travessas com iguarias: tortas, bolos, pães, carnes. Mais à esquerda, três homens com seus violinos e entoavam canções tradicionais. Muitas crianças corriam para lá e para cá, alegres, despreocupadas. Moças conversavam e lançavam olhares interessados aos rapazes, que também não as ignoravam. As senhoras conversavam sem parar, e a maioria dos homens se mantinha próxima à parede de um prédio, na qual fora colocado um alvo para dardos. Meredith, levada por Travis, entrava em meio à multidão e hesitou um pouco ao ver a placa pintada à mão onde se lia: "Bemvindo, doutor". — Não imaginei que ele viria tão cedo — ele comentou, notando seu olhar. — Seja como for, não fará muita diferença agora. — Meredith pensava nos bons tempos em que fora a pessoa com mais conhecimentos de medicina do local. — Quando deveria deixar sua casa? — No fim do mês.
— Deste mês?! Então... teria menos de duas semanas para organizar suas coisas e sair de lá. — Rafferty não podia acreditar que o conselho da cidade tivesse decidido por expulsá-la de sua própria moradia só porque um médico novo chegaria e teria de ocupar o imóvel. — E para onde deveria ir? — Talvez para a casa dos Harper, por algum tempo. Eles me ofereceram um quarto lá. Travis cerrou os lábios, pensativo. Meredith merecia muito mais do que um quarto alugado de favor. A música parecia agradá-la, fazia com que movesse o corpo muito de leve. — Nunca vi uma animação tão grande por aqui. Mas Travis não se deixava enganar pelo tom casual que ela tentava imprimir. A vida de Meredith sofrera uma reviravolta e ela tentava se adaptar à nova situação, mas sentia medo. — O novo médico não pode ser tão bom quanto você — Rafferty afirmou, para animá-la. Meredith deu de ombros, mas eles estavam visivelmente tensos. — Bem, o homem teve estudo. Eu, não — observou, com certa reserva. — E todos aqui precisam de um médico de verdade. Ele apertou-lhe a mão. — Mas você sabe cuidar de um doente como ninguém mais que conheci. — Travis sorriu. E, de fato, ela era uma excelente profissional da medicina, o que só vinha reforçar a ideia que Rafferty já tinha de que Meredith jamais teria ferido aqueles homens, na prisão Libby, de propósito. Fosse o que fosse que Meredith fizera naquela noite, não fora intencional. Uma senhora de idade aproximou-se dela. Vinha curvada sob o peso dos anos, mas sorria, e seus olhos tinham um brilho de alegria impressionante. — Meredith Carter! Quero conversar com você! O sorriso que Meredith lhe dedicou era cheio de ternura. — Sra. Tupper... Que bom vê-la tão bem-disposta! — Ora, estou sempre na mesma... Mas Edith Harper disse-me que você se casou com um ianque! Eu falei a ela que devia estar ficando louca, mas Edith insistiu! — De fato, sra. Tupper, eu me casei. A senhora não se intimidava com a presença de Travis, muito embora a figura dele fosse impressionante diante de sua fragilidade.
Ela o encarou, muito séria, dizendo: 48 — Ouvi falar de você. Edith me contou que salvou a vida de Meredith. Travis arqueou as sobrancelhas. Pelo visto, as novidades por ali se espalhavam coma força do vento. — Ela também salvou a minha, senhora! — É, também ouvi falar disso. — A sra. Tupper apontou um dedo indicador para ele. — Olhe, rapaz, é bom ser gentil com nossa Meredith, ou vai se ver comigo! — Pode ficar tranquila. Serei bom para ela. — Ainda bem. Um homem alto, de porte atlético, aproximou-se por entre a multidão. Vinha calado, circunspecto e parecia muito determinado. Usava roupas boas, e sua aparência em geral mostrava que era de fino trato. Um dono de comércio, com certeza, Travis imaginou, observando-o. Não tinham ainda sido apresentados, mas sabia de antemão tratar-se de George Walker. — Meredith? — Walker tomou-a pela mão. — Como está, George? — Pelo que ouvi dizer, devo dar-lhe os parabéns... — Se George estava zangado ou desapontado, não deixava transparecer. — Casou-se, não é? — Sim... — Ela hesitava, como se as palavras estivessem presas em sua garganta. — Quero que conheça meu marido, o capitão Travis Rafferty. Walker estendeu a mão e Travis aceitou-a, num aperto vigoroso. O olhar do comerciante era mais firme do que Travis esperava, e sua postura, direta. — É um homem de sorte, Rafferty. — Eu sei. — Cuide bem dela. — Vou cuidar. — Travis gostaria de saber de quantas outras pessoas teria de ouvir a mesma observação. George o encarou ainda por alguns instantes, depois, pigarreando, pediu: — Importa-se se eu dançar com sua esposa? Prometo trazê-la para você. Mesmo querendo dizer a Walker para dar o fora dali o quanto antes, Travis comportou-se como um cavalheiro. — Fique à vontade. Meredith e George se afastaram, de mãos dadas, até o tablado onde os homens tocavam seus violinos e junta-ram-se aos outros
casais que rodopiavam. George disse algo a Meredith, e ela riu. Travis, por sua vez, cerrou os dentes. Tentou não ficar olhando para eles e afastou-se até a mesa onde havia sucos e ponches. Uma senhora serviu-o do ponche de frutas, e ele agradeceu e deu alguns passos. As vozes dos presentes, falando todos ao mesmo tempo, criava um burburinho a seu redor. As mulheres o olha-vam, mas não tinham a ousadia de lhe dirigir a palavra, e ele preferiu que fosse assim, não tentando conversar com nenhuma delas. Não gostava nem de ponche, nem de multidões. Olhou para onde os casais dançavam e seus olhos cer-raram-se um pouco ao ver que um rancheiro aproxima-va-se de George e Meredith, dando um ligeiro tapa no ombro do comerciante. Mesmo parecendo contrariado, Walker se afastou e permitiu que o outro a tomasse nos braços e começasse a dançar com ela. De onde estava, Travis podia ver tudo muito bem. Notou mais três sujeitos terem a mesma atitude, interferindo na dança de Meredith e seu par para poderem ter o prazer de estar com ela nos braços. Notava que sua esposa era uma mulher cheia de vivacidade, amada por todos ali, e mal podia acreditar que conseguira torná-la sua. Seu futuro seria ao lado dela, e isso enchia-o de uma satisfação exultante. Enfiou a mão no bolso interno do paletó e retirou o pequeno diário que mantivera durante anos, mesmo sem escrever nele com regularidade. De dentro das folhas, retirou a lista de nomes que fizera com cuidado, nas duras semanas após sua fuga da prisão Libby. Leu-a com atenção. Seus olhos passaram por todos os nomes dos soldados que morreram naquela ocasião. Havia uma tristeza profunda em seu coração ao lembrar-se daquilo. No entanto, agora, a raiva de antes já não existia. Meredith tinha razão: seus homens tinham sido como James, jovens, valorosos, mas cujo destino fora duro, fatal. Já era hora de deixar de recordar-se deles com aquele espírito de vingança inflamado e abandonar o remorso que carregara desde então. Fitou as brasas acesas onde se fazia o churrasco e, indo até lá, fez uma bolinha com o papel que tinha nas mãos e lançou-a às chamas. Em poucos segundos, nada mais restava. Recolocou o diário no bolso e tornou a olhar para a pista de dança, em busca de Meredith. Era hora de reclamar sua esposa, Caminhando resoluto, entrou por entre as pessoas e bateu de
leve no ombro do cavalheiro que a conduzia no número. O homem voltou-se, com jeito de quem estava disposto a brigar, mas, dandolhe um longo e sério olhar, se foi. Travis nada disse, conforme dançava com Meredith. No entanto, sentia-se muitíssimo bem, com ela aconchegada a si, seguindo-o nos passos da dança, como se tivessem sido feitos um para o outro, num entendimento natural de movimentos e agilidade. Ela olhou para cima, sorrindo. — Você não foi muito gentil com Lennie. Já mais tranquilo, pois tudo parecia voltar à mais plena felicidade quando Meredith estava em seus braços, apenas indagou: — Quem? — Lennie, meu parceiro na dança. — E? É porque não gostei do que ele estava pensando enquanto dançava com você. — E como sabe o que Lennie pensava? — Sou homem. Todos nós pensamos da mesma forma no que se refere a uma bela mulher como você. Ela riu. — Lennie é apenas um amigo. Jamais me veria dessa forma. — Só se estivesse morto. Continuaram dançando, e Travis apertou-a com mais firmeza contra si. Notou que os que dançavam ao redor olhavam-no, como se o julgassem um intruso, mas um intruso de muita sorte. — Então, quantos mais estavam na fila? — Para quê? — Para conseguir você. — Ora, Travis, fala como se eu fosse um prêmio em algum tipo de concurso... — E é. Meredith olhou-o por instantes. Em seguida, murmurou: — Fizemos a coisa certa, não? — Sim, fizemos. Quando a música terminou, ele não a soltou. Pela primeira vez em anos, as perguntas sem resposta que o tinham atormentado já não existiam mais. O mistério quanto à fuga fracassada em Libby talvez jamais fosse solucionado. E estava pronto a aceitar o fato. Mas o momento de paz que vivia se foi tão fácil como veio. Um tropel de cavalos se fez ouvir vindo da parte leste. Todos ali presentes voltaram-se para ver de que se tratava, ansiosos, sorrindo ainda, esperando ver a carruagem que trazia o novo médico. Mas o que viram foram dez cavaleiros, todos vestidos com
uniformes da União, entrando de supetão em seu mundo. Pareciam estar todos muito cansados da cavalgada, como se estivessem nela havia dias. A única exceção era o jovem oficial que liderava o grupo e que vinha à frente. Mostrava-se ereto e firme em sua sela, e seu uniforme era impecável. O sol brilhava em suas botas pretas, muito bem engraxadas e seus cabelos claros apareciam por baixo do chapéu elegante. Travis mal podia acreditar. O capitão Ward aproximou-se, desmontou, ajeitou a jaqueta, embora ela estivesse exatamente como devia estar, e passou os olhos pelas pessoas que o encaravam, caladas, à espera. Quase que de imediato, viu Travis e Meredith e foi em direção a eles que seguiu.
CAPÍTULO XV Meredith mal podia acreditar que aquele alto e elegante oficial fosse o mesmo doente às portas da morte de quem cuidara na prisão Libby. Naquela época, ele mal tinha forças para abrir os olhos. Mas Michael Ward restabelecera-se e estava agora muitíssimo bem e sadio. Andava com elegância e graça e era a imagem viva da força e do destemor dos oficiais da União. Um verdadeiro herói de guerra. Meredith notou que as garotas cochichavam ao vê-lo passar, animadas com sua presença. E, surpresa, notou que Travis não cumprimentou o jovem oficial. Mantinha uma postura firme, quase carrancuda. No entanto, se Ward percebeu a tensão que parecia atingir Travis, não demonstrou. Sorriu largo, mostrando os dentes perfeitos, muito brancos, e, tirando a luva, estendeu a mão direita a Travis. — Capitão Rafferty! O senhor é, de fato, um homem bastante difícil de se encontrar! Travis aceitou a mão que lhe era oferecida, mas man-teve-se sério, com certo ar de desconfiança nos olhos muito azuis. — Estou surpreso em vê-lo aqui, Ward — disse apenas. E, em vez de continuar a conversa com Travis, Ward voltou-se ver Meredith, indagando: — Esta é Meredith Carter?
— Sim. — A voz de Rafferty não foi mais do que um grunhido. Ward tomou os dedos de Meredith e sorriu, dizendo: — Eu estava um tanto... indisposto quando nos conhecemos. Algo no tom de voz dele, ou talvez em suas palavras de sotaque correto, bem-educado, puseram-na em alerta. Meredith se aproximou mais de Travis, sem desviar o olhar do oficial. — É... O senhor estava muito mal. — De fato. — No aperto de mãos que trocava com ela, Ward movia de leve três de seus dedos, mas o anular e o mínimo estavam rígidos como pedra. — Pena que jamais tenha recuperado por completo o movimento de minha mão direita, como deve estar sentindo. E meu braço ainda dói muito quando a temperatura esfria, mas mesmo assim sou-lhe muito grato. Muitos homens em meu estado poderiam ter perdido o braço, ou até morrido. — Fico contente que esteja bem. Os olhos de Ward estudavam-lhe o rosto, captando todos os detalhes de sua expressão. — Naquela ocasião, a senhora foi quase que uma sombra para mim. Não tinha ideia de que era tão bonita. Adorável, mesmo. Agora vejo por que os homens a chamavam de "anjo". A música parara e havia um silêncio perturbador entre toda aquela gente. Todos observavam a cena, curiosos, sem saber o que pensar da situação. — Ward, o que veio fazer aqui? — Vim para ajudá-lo, capitão Rafferty. — Michael parou por instante de fitar Meredith para fixar-se em Travis. Ainda mais tenso, Rafferty rebateu: — Não pedi sua ajuda. Nem a de ninguém mais. Ward tornou a sorrir. — Imaginei que fosse precisar de auxílio para encontrar a sra. Carter.
— Como pode ver, eu a encontrei. — Sim. Fez um excelente trabalho. Meredith sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. De repente, o tom suave de Ward mostrava ser apenas uma fachada para suas reais intenções, e ela as temia demais. Viu-o calçar de novo a luva na mão meio imobilizada e comentar, um tanto sarcástico: — A senhora tornou-se uma celebridade no Leste. Muitos jornais contaram sua história. — Como descobriram? — Travis interveio mais uma vez. — Não sei ao certo. Ao que parece, há sempre alguém disposto a falar qualquer coisa para que seu nome apareça publicado também... É por isso que decidi vir com meus homens para escoltálos de volta a Washington. É uma jornada um tanto perigosa, como há de convir, já que existe sempre a possibilidade de um encontro inesperado com índios e renegados. Meredith engoliu em seco. Estava a cada segundo mais tensa diante da maneira como Ward parecia colocar a situação. E Travis o sentia também, pois percebia que seu marido estava mais e mais irritado. — Não preciso de sua ajuda — insistiu. — Meredith é minha responsabilidade. O semblante de Ward continuava afável quando respondeu: — Já não é mais. O xerife aproximou-se, por entre seus concidadãos, e indagou, cheio de autoridade: — O que está acontecendo aqui? Ward voltou-se para ele, sempre gentil, e quis saber: — O senhor é... — Xerife Fox Harper. Ward assentiu: — Muito bem, xerife Harper, é excelente o senhor poder estar presente a esta conversa. Gosto de saber que a autoridade local se mantém bem informada sobre o que se passa. — Retirou uma folha de papel do bolso e desdobrou-a com calma. — Antes de o capitão Travis Rafferty deixar Washington, ele veio até mim para falar de um incidente que ocorreu ainda durante a guerra. O senhor está inteirado do assunto? — Sim, sim, o capitão Rafferty pôs a par. — Muito bem. Deve perceber, xerife, como homem da lei que é, que o tipo de reclamação que me foi feita pelo capitão não pode ser ignorada. Muitos soldados morreram na tentativa de fuga a que me
refiro. Meredith ficava a cada segundo mais assustada e indignada com aquilo. — Nada tive a ver com essa fuga — disse, preci-pitando-se. Ward tornou a sorrir, mas, desta vez, seu sorriso nada tinha de amigável. — Sra. Carter, conduzi minhas próprias investigações a respeito depois que o capitão Rafferty me procurou — afirmou, frio. Travis sentiu-se ainda mais pressionado. — Ward, acredito que aquele guarda tenha tido motivos para mentir — tentou interceder em favor de Meredith. — Há mais evidências, Rafferty. E Meredith sentiu como se sua vida estivesse sendo mergulhada na lama. — Não podem ter mais provas, capitão Ward! Não fiz nada de errado! As pupilas de Travis brilhavam diante da novidade. — As evidências devem ser substanciais, para terem-no trazido até aqui. — Na verdade, Rafferty, suas investigações abriram um ninho de vespas em toda a história. Muitas famílias, dentre as quais algumas proeminentes, dos homens que morreram naquela noite fatídica ouviram falar do que você estava fazendo, de sua vontade de fazer justiça em relação aos parentes falecidos. E essas famílias estão pressionando as autoridades em Washington para que o traidor, isto é, a sra. Meredith Carter, seja levada a julgamento pelo que fez. O xerife, sem se alterar, cuspiu no chão e encarou o oficial. — Não me parece que esse julgamento tenha algo a ver com o que chama de justiça, capitão — desafiou-o. Mas Travis ergueu a mão, para silenciá-lo e evitar que se colocasse numa posição delicada demais diante da autoridade do Exército na questão. — Prossiga, Ward. Diga o que tem a dizer. O jovem capitão encarou Meredith para anunciar: — Sra. Carter, a senhora deve se considerar detida pela autoridade legal do Exército dos Estados Unidos. Meredith engoliu mais uma vez em seco, olhando para a fileira de soldados que, ainda montados, a ameaçavam com sua presença. Devia haver pelo menos doze deles ali, todos armados e olhando-a como se já tivesse sido julgada e condenada. Travis mantinha-se tranquilo. Impossível saber o que pensava.
— Meredith já concordou em voltar a Washington sob minha custódia, Michael. Ward fez um gesto aos soldados. — Otimo. Assim, não teremos problemas, porque todos queremos a mesma coisa, certo? Estou aqui apenas para tornar sua viagem até lá menos perigosa. Iremos todos acompanhar a sra. Carter até Washington. O rosto de Travis, duro, mantinha-se impenetrável. E, ao olhálo, Meredith pareceu ver o soldado resoluto, pronto para a batalha diante do inimigo. — Quando pretende partir, Michael? O coração de Meredith batia descompassado. Não entendia o que estava acontecendo, por que seu marido agia daquele modo. O que ele estava dizendo?! Confiava nele, e não em Ward, para ser levada até a capital. — Agora estaria bem para mim. — Oh, não pode levá-la hoje! — A sra. Harper apareceu por entre as pessoas mais próximas, aflita. — Nossa cidade está comemorando a chegada do novo médico! Ward virou-se para ela, as sobrancelhas erguidas de leve. — Senhora, isso não é de meu interesse. — Mas a sra. Carter é um membro respeitável desta comunidade — Travis tentou argumentar. — O povo daqui quer que ela conheça o novo médico. — Muito bem, e onde está esse novo médico? — Ward tentava não parecer tão intransigente. — Ainda não chegou — respondeu a esposa do xerife. — E quando estará aqui? — Ward já se impacientava, mas, como era de seu feitio, tentava manter o controle e a paciência. — Não sabemos, capitão. Talvez chegue dentro de meia hora, uma hora, talvez um pouco mais... — Algumas horas a mais não farão grande diferença. — Travis sentia que poderia convencer o outro. Ward passou os olhos pelos rostos preocupados, tensos, zangados, das pessoas ali reunidas. Sabia que causaria uma grande confusão se teimasse em partir de imediato. Meredith percebia sua hesitação e imaginava que ele não era do tipo que fazia inimigos sem necessidade. Com certeza, cederia agora, mas estariam todos rumo a Washington assim que o dia seguinte raiasse. — Muito bem — Ward aceitou, por fim. — Meus homens estão cavalgando há muito tempo sem descanso, e algumas horas de
repouso lhes fariam bem. — Sem dúvida. — Travis suspirou, aliviado. — Há um estábulo com água fresca do outro lado da cidade, onde os animais poderão se recompor. — Obrigado. Vendo que a tensão cedia, Travis voltou-se para o xerife, sugerindo: — Por que não pede aos músicos que recomecem a tocar? Harper assentiu, ainda contrariado com o que acabara de acontecer. — Está bem, mas acho que ninguém está mais com vontade de dançar por aqui. Enquanto Ward e seus soldados seguiam para o estábulo, a música reiniciou. Os presentes, ainda atônitos com a chegada abrupta do Exército, começaram a se agrupar para comentar o incidente. Ninguém mais dançava. Meredith olhou para Travis, na intenção de dizer-lhe algo, mas ele a tomou por um braço, levando-a consigo para longe da multidão. Quando chegaram à varanda do comércio mais próximo, soltou-a e viu-a, aflita, indagar: — Travis, o que está acontecendo?! Por que Ward viria de tão longe com seus soldados para me buscar?! Não faz sentido... Ele ainda observava os soldados, que se afastavam pela rua. — Não sei, Meredith. Mas não estou gostando nada disso. — Por que não falou a eles que nos casamos? Travis a encarou, tocou-lhe os ombros e explicou: — Porque eu queria ter opções. — Opções? Que opções?! — De fuga. Naquele instante, o casal Harper se aproximou, também atónito com a situação. E puderam ouvir Meredith dizer: — Não tenho medo de voltar a Washington, Travis, se você seguir comigo. Ele engoliu em seco. — A chegada de Ward muda tudo, Meredith. Não sei que tipo de evidências ele tem contra você agora, mas elas podem ser substanciais. — Mas... não são verdadeiras. Tudo vai acabar sendo esclarecido. Travis meneou a cabeça. — Não sei. A situação pode ser outra, agora. Mais pe-rigosa do que podemos imaginar.
Uma pressão muito forte contraía-lhe o estômago. — Podemos enfrentar tudo juntos, não podemos? — Fitava-o, súplice. Rafferty afastou uma mecha de cabelos de sua testa, com carinho, sugerindo: — Acho melhor pegarmos nossos cavalos e sairmos daqui o quanto antes. — Mas isso seria fugir do Exército! Como ficaria sua carreira?! — Sempre há outros empregos. O importante agora é que você esteja em segurança. Podemos desaparecer. O país é grande... Talvez sigamos para o Colorado. Meredith meneou a cabeça, confusa. — Não... Não quero fugir. — Você não tem escolha, Meredith. — Algo na entonação dele a assustava ainda mais. — Travis, eu sou inocente! Acredita nisso, não? Disse, antes de nos casarmos, que confiava em mim, que acreditava em minhas palavras! — E creio que estará sempre a meu lado quando eu precisar. E que será uma mãe maravilhosa para nossos filhos. Acredito na possibilidade de construirmos um lar feliz. — Mas... não crê que mantive sua fuga da prisão em segredo. Travis sofria com tudo aquilo. — Você é uma mulher maravilhosa, Meredith, e não quero que nada de mal lhe aconteça. — Não disse ainda que acredita que eu seja inocente. — Afastou-se das mãos dele, o coração dolorido. — Meredith, a guerra foi uma época difícil para todos nós, causou comoções, emoções difíceis de se lidar. — E acha mesmo que eu posso tê-lo traído naquela ocasião. — Olhe, não é tão simples assim... — Sim, é simples! Ou você acredita em minha inocência ou não! Mais uma vez ele buscou tocá-la, agora segurando-lhe as mãos. — Seja lá o que for que tenha feito, sei que não o fez com a intenção de prejudicar alguém. Ela se soltou, sentindo-se tonta. Tivera frágeis esperanças no futuro, mas elas se dissipavam naquele minuto. — Acha que falei a alguém sobre a fuga. — Meredith... — É isso, não é? — exigiu saber. — Meredith. Precisamos conversar...
— Deus, fui tão tola! — Ela estava à beira das lágrimas. — Tão tola! Se continuasse a encará-lo, desataria em pranto. Não suportaria. Assim, em pânico, saiu correndo pela rua, sem saber ao certo para onde seguir. A única coisa de que tinha certeza era de que precisava ficar longe de Travis. A expressão no rosto dela era claríssima. Naquele instante, Travis soube que Meredith era inocente. Estivera enganado sobre ela o tempo todo. Fora um cego, um idiota, tentando perdoá-la por um erro que jamais cometera. Se a situação não fosse tão terrível, teria dado boas gargalhadas diante da grande ironia que havia em tudo aquilo. Saiu correndo atrás dela. Se os soldados a vissem daquele jeito, poderiam imaginar que tentava escapar. Mas, antes que pudesse alcançá-la, Meredith deu de encontro com um soldado, que pareceu aparecer do nada, mas que Ward devia, decerto, ter deixado de sobreaviso, para o caso de uma possível tentativa de fuga. Por intermináveis segundos, Meredith encarou o soldado, talvez sem entender de pronto o que acontecia. — Não pode deixar a cidade, moça — disse ele, com gravidade. — Mas preciso escapar — Meredith murmurou, fraca, abatida. Só então a expressão do soldado endureceu. — Deve ficar onde os soldados possam vê-la. O capitão Ward a quer de volta a Washington de qualquer maneira. Travis aproximou-se e tomou-a pelo braço. Meredith tentou se soltar, mas em vão. — Pode deixar, eu cuido dela, sargento — ele avisou, querendo passara autoridade de seu posto ao oficial. — Solte-me! — Meredith se debatia. — Não quero vê-lo nunca mais! — Acalme-se. Temos que conversar. — Solte-me! — Ela se debatia ainda mais. — Senhora, não pode deixar a cidade — o sargento repetiu, firme. Ward notou, de onde se encontrava, que alguma coisa estava errada. Puxou as rédeas de seu cavalo, no meio da rua, antes de chegar ao estábulo público e fez o animal retornar, olhando fixo para Meredith. Travis sentiu que os cabelos em sua nuca se arrepiavam e pressentiu o perigo. Viu Ward deixar seus homens para aproximarse, calmo, mas determinado.
— Posso saber o que está se passando aqui? — indagou, já próximo. — Nada. A sra. Carter e eu precisamos ter uma conversa, nada mais — Travis explicou. Meredith secou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto e ergueu a cabeça, altiva. — Não temos mais nada a conversar, capitão Rafferty! — exclamou, furiosa. Ward se dirigiu ao sargento. — Ela estava tentando deixar a cidade? O soldado pareceu desconfortável ao admitir: — Não me pareceu, senhor. Apenas está descontrolada. Os olhos azuis de Ward endureceram-se. — Bem, ela tem, sem dúvida, motivos suficientes para tentar escapar. O xerife, que chegava só agora, um tanto cansado pela corrida, interferiu: — A sra. Carter não ia a parte alguma. — Acho que está enganado, xerife — Ward rebateu. Travis sentia-se a cada instante mais irritado, mais desconfiado. Por que Ward se importava tanto assim, se, dois meses atrás, recebera-o com desagrado, dizendo-lhe que não queria ser perturbado com uma história tão antiga quanto a fuga frustrada de Libby?, indagava-se, sem entender. — Ela está apenas cansada e assustada, nada mais — defendeu o xerife, olhando para Meredith com carinho e compaixão. — Não, não estou assustada! Na verdade, sinto-me muito bem e raciocino com muita clareza! — E, voltan-do-se de frente para Ward, finalizou: — Quero provar a todos minha inocência! Travis sentiu as entranhas se apertarem. Meredith lhe parecia tão orgulhosa e, ao mesmo tempo, tão derrotada! — Querida, já falamos sobre isso — murmurou o xerife, querendo que ela se acalmasse e, sobretudo, se calasse, para não piorar ainda mais as coisas. Seus olhos estavam em Travis, como a passar-lhe uma mensagem muda. — Acho que já está na hora de colocarmos um ponto final nessa história! — ela teimava. Travis percebia que, mesmo tentando parecer forte, Meredith estava exausta, abatida. Sabia que desistiria com o tempo, e precisava ajudá-la. Era sua obrigação protegê-la naquela confusão. Algumas pessoas que estavam por perlo comaçaram a mostrar insatisfação, aborrecimento. Outras vinham paro mais perto, um
tanto ameaçadoras, como a dizer que Me-redith não iria a parte alguma. Travis estudou o povo daquela cidade. Aquela gente podia ser o que mais precisava no momento. — Ward, acho melhor você aguardar até amanhã, quando não tiver uma audiência tão grande ao redor — aconselhou-o. Michael sabia que ele tinha razão. — Muito bem, Rafferty. Partiremos pela manhã, bem cedo. Mas ela vai passar a noite na cadeia. O xerife, aliviado, tomou-a pelo braço. — Vou vigiá-la de perto — ofereceu, sabendo que essa era a melhor solução no momento. Ward assentiu. — Mandarei que um de meus homens monte guarda do lado de fora da delegacia. Em silêncio, Travis seguiu Meredith e Harper, que fingia uma carranca, até a cadeia. Partiu-lhe o coração vê-la ser colocada numa cela e dirigir-se, cabisbaixa, ao catre que ficava junto à parede dos fundos. E, quando a porta de ferro foi trancada, Meredith teve um sobressalto. Calado, Travis pensava. Tentava lembrar-se da noite da fuga. Alguma coisa não se encaixava naquela história toda, mas não conseguia descobrir o que poderia ser. Em sua mente, uma só ideia surgia, imperiosa: precisava tirar Meredith dali, e o faria. Daria um jeito. — Travis — ouviu-a chamá-lo, baixinho. - Sim? — Quando tudo isso terminar, nunca mais quero tornar a vê-lo.
CAPÍTULO XVI Muitas horas depois do entardecer, Mere-dith continuava sentada beira do catre, com as costas voltadas para a parede da cela e as pernas dobradas sob a saia vasta. A temperatura baixara muito, e ela se sentia como que anestesiada, como se seu corpo não lhe pertencesse. Numa atitude de desamparo, dobrou ainda mais a coluna e escondeu o rosto nos joelhos. Havia mais de seis horas não via Travis. Sua mente sentia-se aliviada por não ter de encará-lo, mas seu coração estava pesado, despedaçado. Ele não acreditava em sua
inocência... As palavras que tinham trocado passavam por seus pensamentos numa repetição sem fim que a atormentava, deixando-a fraca e sem vontade de continuar lutando para provar que não causara a morte daqueles pobres homens na prisão Libby. Já não se importava mais com o que pudesse lhe acontecer. O xerife mantinha-se sentado em sua cadeira, atrás da escrivaninha, e limpava seu revólver com paciência infinita. Muitas vezes tentara iniciar uma conversa com Me-redith, mas ela lhe respondera com monossílabos, sem ter energia suficiente para dizer mais. Ao que parecia, queria apenas ficar quieta, enrodilhada em si mesma, e esquecer que o mundo lá fora existia. Jamais se sentira tão só, tão exausta. — Meredith? — O xerife ficou preocupado com aquele silêncio tão longo. — Quer que eu vá buscar um outro cobertor para você? Ela meneou a cabeça e nem sequer o olhou. — Não, obrigada, sr. Harper. — E... que tal comer alguma coisa? Imagino que não tenha colocado nada no estômago desde esta manhã. O bondoso xerife tentava animá-la, o que a enternecia. — Não estou com fome, mas obrigada por oferecer. De repente, a porta da cadeia se abriu, provocando um sobressalto em Meredith e fazendo seu pulso acelerar. Travis surgiu, e parecia pronto para partir. Usava chapéu, luvas de couro, e as armas estavam no cinturão. Sem dúvida, iria cavalgar. Apesar da mágoa e da indignação que ainda a torturavam, Meredith sentia o coração derreter-se por ele. Amava-o, não havia dúvidas. Era uma lástima, uma grande pena que não pudesse tê-lo feito acreditar nela. Levantou-se do catre e foi até as barras de ferro, segu-rando-as com mãos geladas. Mas Travis não a olhava. Seus olhos estavam fixos no xerife. — Posso ter alguns minutos a sós com ela? Meredith apertou mais as barras. — Por favor, não me deixe a sós com ele, sr. Harper. Mas o xerife levantou-se, ajeitando o cinturão. Lançou um olhar grave a Meredith, depois tornou a encarar Raf-ferty, para comentar: — Jamais a vi assim tão abatida. — Pode deixar. Vou cuidar de tudo — Rafferty prometeu. — Espero que sim. — O xerife passou a mão no chapéu que deixara pendurado logo ao lado, num cabideiro e co-locou-o na
cabeça. — Nem sei como o guarda aí fora o deixou entrar... — Ele está cochilando. Com um sorriso irônico, Harper observou:
— Mas que belo soldado... Dormindo quando deveria estar de olhos bem abertos. — A sra. Harper foi muito gentil oferecendo uma xícara de café ao pobre homem. Sem se esquecer, é claro, de colocar um pouco do medicamento contra dor que Mere-dith receitou ao senhor para alívio do dente extraído. O xerife tornou a sorrir, desta vez, mais animado. — Mas que matreira... O sujeito vai dormir durante horas! — Xerife, por favor, não saia! — Meredith pediu, vendo que ele se dirigia à porta. — Preciso esticar as pernas, minha querida. — E depois, fitando Travis com olhar muito significativo, acrescentou: — Cuide bem dela. — Vou cuidar. Meredith implorava: — Xerife, não faça isso comigo! Mas ele apenas tocou a aba do chapéu, numa breve saudação. — Acho que é o melhor que posso fazer por você, Meredith. Vocês dois precisam, sim, conversar. Ansiosa, mas ainda muito ferida, e sentindo-se mais frustrada do que nunca, ela soltou as barras, impotente. Amava Travis, e temia não ser forte o suficiente para resistir ao que ia ouvir. — Não tenho nada a dizer a ele — teimou. O xerife girou a maçaneta e falou ainda, antes de sair: — Tenho certeza de que pensará em alguma coisa. Assim que ele se foi, Meredith ameaçou: — Fique longe de mim! Travis pegou o molho de chaves de cima da escrivaninha. Sua expressão era dura, determinada. — Ouvi os soldados conversando, Meredith. Virão buscá-la assim que o sol nascer para levá-la de volta a Washington. Mas não permitirei que isso aconteça. — Eu já lhe avisei que não vou fugir desta situação! Ele cruzou o escritório em poucas passadas. — Podemos seguir para o oeste. Há muitos lugares por lá onde poderemos nos esconder. Se a intenção dele era confortá-la, Travis conseguiu exatamente o contrário. Meredith não poderia sentir-se pior. Afinal, ele mesmo dissera que os culpados costumam querer fugir. — Não fugirei daqui! Com um olhar firme que prendeu os olhos dela, Travis abriu a porta da cela, explicando:
— Sei muito bem quando uma batalha pode ser ganha e quando não pode. E a que está prestes a travar em Washington está perdida antes mesmo de ser iniciada. — Mas sou inocente! — Sei que é. Aquela frase, dita com tanta casualidade, era as mais suaves que Meredith poderia ter ouvido naquele momento. E sentiu que suas defesas baixavam por instantes. — Não, você não sabe... Havia tristeza e arrependimento no rosto dele, agora. — Cometi um grande erro, Meredith, quando não acreditei em você. Ela bem que queria crer, mas a confiança era algo difícil de se ganhar. — E o que o fez mudar de ideia quanto a mim? — indagou, com uma ponta de ironia. — Encontrou as provas de que precisava? Rafferty abriu a porta, mas não se aproximou, como se soubesse que, ao fazê-lo, provocaria uma reação brusca. — Tenho sido um imbecil, Meredith. Sei agora que é mulher de uma só palavra, honesta, sincera. Tenho visto suas qualidades já há algum tempo, mas estava cego demais para reconhecê-las. Meredith teve de se controlar para ignorar a imensa felicidade que a invadia e que a fazia querer lançar-se nos braços de Travis. — Duvido de tudo isso. Travis vacilava, não entrava na cela. — Naquela noite, quando salvou minha vida, eu soube, bem no fundo, que era inocente. Mas fui orgulhoso demais para assumir de imediato. Mesmo sem querer, ela sentia que seu coração começava a acreditar e, em consequência, a se entregar. — Como vou saber que acredita, de fato, em mim? — Tenha fé. Apenas tenha fé. Meredith sentiu a garganta se apertar. Travis prosseguia: — Precisamos aprender a confiar um no outro, Meredith. — Eu... quero muito isso. Rafferty estendeu-lhe a mão, convidando, num murmúrio: — Nosso relacionamento precisa apenas de confiança. Eu confio em você. Sem reservas. Confia em mim? Ele lhe pedia que acreditasse em suas palavras, embora não houvesse evidência alguma de que estava sendo sincero. Do mesmo modo como queria que seu marido cresse no que dissera, ainda que sem provas reais de que estava sendo franca. E, de um modo
estranho, inexplicável, Meredith acreditava em Travis. Todas as barreiras que erguera entre ambos caíram por terra. Jogou-se nos braços dele, chorando. Travis abraçou-a com força, os olhos cerrados para sentir ainda mais aquele momento. — Acho que posso enfrentar qualquer coisa agora — ouviu-a sussurrar. E, afastando-se um pouco, para poder ver-lhe o rosto, ele murmurou: — Não precisará enfrentar nada. Vamos partir esta noite. — Podemos provar minha inocência juntos. — Meredith, como eu já disse antes, teremos de fazer uma retirada estratégica. — Mas você estaria desistindo de tudo se fugíssemos juntos. — Não. Estaria ganhando tudo o que quero. Você é tudo que tenho no mundo, e não estou disposto a perdê-la. Uma melancolia profunda turvou a efêmera alegria que inundara o íntimo de Meredith. — Se você fugir comigo, sua carreira, seu futuro estarão arruinados. — E de que adiantaria meu futuro ou minha carreira se você estivesse presa numa fortaleza da União pelo resto de seus dias? Ela sentiu o coração bater mais depressa. A ideia de começar uma vida nova com Travis era tentadora. Poderiam começar uma vida tranquila e feliz longe dali, onde era fácil desaparecer das vistas de qualquer um nas pradarias e montanhas. Era um sonho maravilhoso, sedutor... Mas seria algo errado, muito errado. — Não. Não irei com você. Travis a encarou, como se ela acabasse de ter enlouquecido. — O que está dizendo?! — Não escaparei desta situação, Travis. Nós dois sabemos muito bem que uma fuga só iria atormentar-nos pelo resto de nossas vidas. — Poderemos dar um jeito, Meredith. Viver com essa culpa não seria tão ruim assim. — Poderíamos? Travis, a honra é e sempre foi tudo para você. Rafferty a tomou pelos ombros, começando a se desesperar. — Você é tudo para mim! — Precisamos definir uma coisa de uma vez por todas: deve haver um modo de descobrirmos por que Ward está aqui para me buscar. Ele deve estar interessado em algo, e temos de saber do que se trata! Ele a soltou de leve.
— Pode acreditar, já pensei demais nisso e ainda não cheguei a conclusão alguma. Falei com o telégrafo sobre a mensagem que aquele homem que apareceu em sua casa recebeu. Ele me disse que a mensagem foi enviada de St. Louis. E isso não me leva a parte alguma.. Mesmo desapontada, Meredith recusava-se a desistir. — Deve haver algo a mais que possamos fazer! — Não, não há mais nada. — De repente, Rafferty a puxou e apertou-a de encontro ao peito, como se temesse que Meredith desaparecesse no ar. — Precisamos acreditar que tudo vai dar certo. Rafferty olhou-a, tenso. Seu desejo e sua honra travavam uma batalha intensa em seu íntimo. Afastou-se de Meredith e seguiu até a janela do escritório, por onde espiou para a noite lá fora. O céu muito negro mostrava milhares de estrelas. Ficou calado por longos momentos, apenas deixando as ideias vagar. — Virão buscá-la em breve. Meredith aproximou-se por trás e abraçou-o pela cintura. — Não tenho medo, desde que você esteja a meu lado — afirmou, convicta. Travis negou de leve com a cabeça e, voltando-se, tomou o rosto de Meredith entre as mãos grandes. — Não quero perdê-la. Passei minha vida toda sozinho... e não quero voltar ao isolamento que sempre conheci. — Isso não acontecerá. — Meredith, estarei com você a cada passo que der. — Eu sei. Mais tarde, depois de um breve sono, Meredith acordou e encontrou-se em total escuridão. Não sabia que horas eram, mas percebeu que a lua ainda estava bem alta no céu. Sentiu a presença de Travis a seu lado, já que seus corpos estavam muito juntos na cama estreita. Ele res-pirava com tranquilidade, o que lhe dava uma sensação de conforto extrema. Naquela noite, ambos ultrapassaram uma tênue linha em suas vidas. Rafferty não falara em amor, mas havia confiança entre ambos. E poderiam construir seu futuro baseado nisso e, se ele nunca viesse a amá-la, Meredith sabia que tinha em seu coração amor suficiente para ambos. Ward não conseguia dormir, com tanto em risco. Usava apenas a camiseta, a calça do uniforme e os suspensórios caídos sobre ela. Cruzou o espaço pequeno de sua barraca e tirou o pedaço macio de tecido do alforje. Em seguida sentou-se na cama de campanha e
começou a dar brilho na fivela já reluzente de seu cinturão. As aparências eram tão importantes!, avaliava. Afi-nal, Roberta, sua querida Robbie, sempre lhe dizia isso. Todavia, muitos homens no campo de batalha se esque-ciam de tal detalhe. Deixavam que a poeira grudasse em suas botas, seus uniformes ficavam suados, malcheirosos, machados... Mas ele, não. Nunca. Seu pai o criara para ser o soldado perfeito, e jurara, muito tempo atrás, que jamais o decepcionaria. Parou com o polimento por segundos e cerrou as pál-pebras. Sua carreira, na verdade sua vida inteira, estava à beira de um precipício devido a um pequeno, quase in-significante erro. Não quisera falar aos guardas sobre a fuga naquela noite, mas não tivera alternativa. Sentia tantas dores e sabia que, se ficasse naquele buraco fedorento por mais uma semana, não suportaria e acabaria morrendo. Rafferty dera-lhe esperanças naquelas duras e agonizantes horas depois de ser alvejado. Conseguira chamar o médico e fazer com que ele extraísse a bala, depois conseguira o medicamento que acabara com a dor insuportável que o dilacerava. Mas, no fim, Rafferty o abandonara. Deixara-o lá, para morrer, e cuidara de sua própria vida. Com força, Ward esfregou ainda mais o tecido contra o metal, fazendo-o brilhar e quase provocando um corte no polegar. — Não foi minha culpa. Rafferty não me deu outra opção. Lembrava-se ainda muito bem de como os homens se esgueiravam pelo buraco aberto, buscando a liberdade. A lanterna que levavam foi ficando cada vez mais distante, a luz que produzia desaparecendo devagar, dando-lhe uma sensação horrível de pânico que acabou por dominá-lo por inteiro. Pensou que fosse morrer de desespero. E então, a decisão lhe ocorreu, num último ato de aflição: chamou o guarda e trocou as informações preciosas que tinha por sua liberdade. Parou mais uma vez de esfregar a fivela e respirou fundo, como se quisesse apagar da memória as imagens do passado. Jamais pensara que as coisas pudessem tomar o rumo que tomaram. Jamais quisera provocar a morte de todos aqueles homens. Por um momento, o presente desapareceu e o passado voltou em toda sua força dramática. E tudo o que pôde ouvir foram os disparos, intensos, muitos, e os gritos daqueles que estavam sendo pegos de surpresa e dizimados sem piedade. Depois, foram os latidos ferozes dos cães de busca, e mais berros, de dor, angustiados.
Suas mãos começaram a tremer e todo seu corpo ba-nhou-se em suor. Ergueu a fivela até a testa e inclinou-se para a frente, movendo-se devagar, como se ninasse uma criança. Quando voltou a Washington, depois dos tempos passados na prisão Libby, culpou Meredith pela fuga frustrada. Ela, afinal, era esposa de um rebelde, e todos estavam mais do que dispostos a acreditar que seria capaz de trair aqueles homens que eram, na realidade, inimigos da causa que seu marido abraçara. Ward foi homenageado como herói de guerra por ter sobrevivido à Libby e ao massacre. E, pela primeira vez em toda sua carreira, seu pai lhe dissera que tinha orgulho de vê-lo oficial do Exército dos Estados Unidos, porque Michael fazia valer o garbo e a honra daquele uniforme. Belas palavras, que tinham provocado uma emoção genuína e intensa no coração de Ward. E, por algum tempo, tudo em sua vida tornou-se perfeito. Até que Rafferty reapareceu e começou a mexer naquele vespeiro com tantas perguntas sobre aquela noite, querendo, a todo custo, fazer justiça, porque seu sentimento de dignidade era maior do que tudo o mais. Determina-ra-se a perseguir e capturar a sra. Carter, para levá-la à capital federal e fazê-la enfrentar uma corte, acusando-a de alta traição. Ward sentiu os músculos dos ombros tensos e estendeu-os. Moveu como pôde os dedos da mão direita, na qual a ponta dos dedos eram insensíveis. A inflamação nos nervos mortos pareceu estar pior nessa noite. O desconforto e a inconveniência daquela velha marca de guerra seriam sempre seus companheiros, para que nunca se esquecesse do conflito. Teria de viver com eles para sempre. No entanto, Meredith Carter era também uma lembrança, mas com ela não conseguiria viver. Meredith o fazia ter sempre em mente a traição que cometera naquele momento de desatino. A simples existência dela era uma ameaça para ele e sua carreira. Sua posição social em Washington, bem como a de sua esposa, estariam ameaçadas se Meredith falasse a verdade e conseguisse prová-la. E Ward não teria mais um bom futuro... Quanto antes Meredith Carter morresse, melhor. Alguém pigarreou do lado de fora da barraca, chaman-do-lhe a atenção. — Eu disse que não queria ser incomodado — Ward protestou de pronto. Mas Rafferty não esperou nem um segundo para afastar a porta de lona e entrar, anunciando, sem preâmbulos:
— Quero propor-lhe um acordo. Meredith acordou pela segunda vez. Mas agora seu corpo já não sentia o torpor de depois do amor que fizera com Rafferty, horas antes, no catre diminuto. Viu que os primeiros raios da manhã já surgiam, entrando por entre as barras de ferro da janela. Sentou-se, sentindo-se imensamente feliz, apesar de tudo. Olhou ao redor, notando a ausência de Travis e estranhou-a. O cheiro dele ainda impregnava seu corpo, mas sua pele estava fria. Queria tê-lo de novo, tocá-lo, sentir as batidas de seu coração contra seu peito. Levantou-se e foi até as barras, notando que a porta estava trancada. Percebeu, então que não se encontrava só. Um breve movimento denunciou a presença de alguém à escrivaninha do xerife. Uma sensação estranha a tomou, mistura de medo e desconfiança. — Xerife Harper? Mas não houve uma resposta imediata. Então, da semiescuridão que ainda reinava na sala, apareceu a figura alta e muito elegante do capitão Ward. — Bom dia, anjo — cumprimentou-a, sem sorrir. CAPÍTULO XVII Meredith sentiu um terror paralisante su-bir-lhe pela espinha. — O que está fazendo aqui? Um sorriso lento, maldoso, apareceu nos lábios de Ward. — Está na hora de irmos, Meredith. — Agora?! Tão cedo?! — ela estranhou, passando os olhos amedrontados ao redor. Estavam a sós ali, não havia outros solados. — Onde estão o xerife e o capitão Rafferty? — O xerife e o guarda que coloquei de vigia lá fora estão descansando. Eu lhes disse que deveriam comer alguma coisa, porque eu mesmo cuidaria de você. — E o capitão Rafferty?! — Ele não vira tão cedo. Dei-lhe um serviço para fazer. Meredith sentiu o pânico fechar sua garganta. — De que se trata? — Eu o mandei de volta a sua casa. Ordenei que levasse alguns de meus homens e queimasse tudo. — Ele não faria tal coisa! — Ah, faria, sim! Rafferty é do tipo que tem a lealdade acima
de tudo. — Travis não guarda nenhuma lealdade para com o senhor! Tranquilo, Ward aproximou-se das barras de ferro, trazendo o molho de chaves na mão esquerda. Colocou a chave na fechadura e abriu a porta devagar, parecendo sa-borear cada movimento. — Imaginei que fosse gostar de dar um passeio antes de irmos embora... Meredith afastou-se até os fundos da cela, onde suas costas encontraram a parede fria. — Prefiro esperar aqui até que o xerife e o capitão Rafferty retornem. Com frieza, Michael entrou na cela, repetindo, agora numa ordem: — Você vai dar um passeio. — O capitão não me deixaria aqui, sozinha... — E por que não? Rafferty tem suas prioridades. Confusa, ela o encarou por segundos, antes de perguntar: — Do que está falando? — O capitão Rafferty foi me procurar esta noite. Con-tou-me tudo. Falou sobre os homens que foram até seu rancho e que atiraram nele. De seu desvelo, cuidando para que ele sobrevivesse. — Ward cerrou mais os olhos para acrescentar: — Disse-me, até, o que fizeram aqui, esta noite. Uma leve tontura atingiu Meredith. — Não... A frieza de Ward parecia trespassá-la. — Para lhe ser franco, eu e ele demos boas risadas quando Travis me contou. Sabe, sobre como você se entregou a ele... Havia lágrimas nos olhos dela. Travis não poderia ter comentado com Ward sobre algo que era tão íntimo. — Não creio no que está dizendo. O sorriso dele foi maior, mais perverso. — Diga-me, Meredith, Travis a fez gritar seu nome no auge do prazer? Ela deu um passo para o lado, tentando evitar sua proximidade e murmurou, enojada: — Você é um homem imundo! Ward aproximou-se ainda mais. — Não. Sou apenas um camarada que, como todos os outros que estavam na prisão Libby, naquela noite, sonhou com você durante meses e meses depois de sua visita. É uma beleza, sabia, Meredith? E tudo isso é um grande desperdício... Um arrepio terrível passou pela coluna de Meredith.
— Não sei do que está falando. Ele retirou as luvas que trazia penduradas ao cinturão e, com deliberada calma, calçou-as diante dos olhos aflitos de Meredith. — Não torne isto ainda pior, moça. Se cooperar, pro-meto-lhe que será tudo muito rápido. Sem saber ao certo a que Michael se referia, ela olhou mais uma vez ao redor, tentando encontrar uma saída. Não havia nenhuma. Onde estaria Travis?! — O que vai ser rápido, capitão? — Sua morte, é claro. As peças do quebra-cabeça pareciam começar a se encaixar agora, para Meredith. Fora Ward quem traíra seus próprios companheiros naquela noite! Ele estendeu a mão, num movimento rápido e agarrou-lhe o pulso, num aperto duro, inexorável. E a puxou com tamanha violência para fora da cela que a fez tropeçar e cair de joelhos. — Por que está fazendo isso?! Eu salvei sua vida! Ele a ergueu, bruto. — E serei sempre grato por isso, pode ter certeza. Olhe, Meredith, não gosto disto tanto quanto você, mas não posso arriscar que vá para Washington e conte toda a verdade. Esses seus olhos de corça inocente poderiam seduzir qualquer júri. — Não direi nada a ninguém se me deixar em paz. Mas Michael continuava puxando-a para a saída. — Venha. Irá fazer o que faz de melhor. Contará toda a verdade. E eu sei muito bem que não traiu aqueles prisioneiros. Mas é muito importante para mim que todos continuem pensando que foi você. Ela tentou se soltar, debatendo-se, mas a mão de Ward segurava-a como uma torquês. — Por que os traiu? — indagou, no auge do desespero. Ward parou de andar e voltou-se. O assunto parecia tocá-lo de alguma forma. Encarou-a e, sussurrando, revelou: — Meu pai e meu avô fizeram carreiras brilhantes no Exército. Foram heróis e me prepararam para ser um também, para acreditar em honra, dever e glória. Mas jamais poderia supor que ficasse naquela prisão imunda por tanto tempo! Jamais supus que aquele lugar fétido fosse tão terrível, que eu fosse passar tanto frio, tanta fome, tanta dor! É fácil falar de honra e glória quando se está num lugar aconchegante, com o estômago cheio. E depois, quando recebi aquele tiro, tudo piorou ainda mais. A dor que eu sentia era
insuportável. Já não me importava mais com o que era honradez, glória, dever ou qualquer outra coisa. Queria apenas que tudo aquilo acabasse, que eu pudesse voltar para casa. — Por isso você já não estava lá no dia seguinte, quando voltei à prisão... — Meredith lembrou-se. — Eles o tinham soltado em troca das informações que deu. — Foi só uma negociação e, a princípio, eu queria que não fosse além disso. Ninguém deveria ter morrido. — Mas dezessete homens sucumbiram. E foi você quem os matou. Matou seus próprios companheiros! Um brilho de ódio apareceu nos olhos dele. — Não, eu não matei ninguém! Foram os malditos rebeldes que os mataram! Eles não deveriam ser alvejados! Não foi esse o acordo que fiz com os guardas! Eles deviam apenas ser recapturados e levados de volta à cela. Não devia haver morte alguma! — E então resolveu me culpar... — Foi a melhor solução que eu poderia ter encontrado. Ninguém se importaria com você. E eu acreditei que tudo acabaria por ali, sem maiores consequências. Mas Raffer-ty teve de aparecer e estragar tudo. Ele tinha de saber o que aconteceu, droga! — E quanto ao guarda de Richmond? Ward respirou fundo. — Dei-lhe algum dinheiro. O sujeito teria acusado a própria mãe por uns trocados. Meredith engoliu em seco, tirando conclusões, compreendendo toda a história. — O que pretende fazer comigo agora? — Como eu disse, vamos sair para um breve passeio. Você vai correr, tentar escapar e eu serei forçado a atirar. Ela arregalou os olhos. — Não fugirei, capitão. — Claro que sim. — Não, não vou fugir! Ward parecia até entediado. — Os Harper são gente boa, Meredith. E eu detestaria que um acidente os matasse... — Não! — Meredith entendeu a ameaça velada e sentiu que seus olhos se enchiam de lágrimas. — Por favor, não os machuque. Você não precisa fazer nada disso. Não revelarei uma só palavra sobre o que aconteceu na prisão Libby. Jamais tornarei a falar na guerra! Ward sorriu. — Não posso arriscar tanto assim, anjo. Sabe muito bem que tudo isso é culpa de Rafferty e seu obstinado senso de justiça, não?
Se ele tivesse deixado de lado... Mas, não. Tinha de bancar o herói, reparar um erro antigo, que, afinal, nada mais significava para ninguém. — Travis queria apenas que a justiça fosse feita, que seus homens fossem vingados. — E quanto a mim? Se soubessem o que fiz, eu estaria perdido, arruinado! Meu pai ficaria furioso, decepcionado. E minha esposa, Roberta... bem, Robbie tinha grandes planos para mim. Os homens que tinham chegado até sua casa para ma tá-la, a casa que ele queria ver destruída... tudo começava a fazer sentido para Meredith. — Foi você quem mandou aqueles bandidos para me matar e depois entrou em minha casa, revirando tudo. — Quando meus... contratados não me deram uma resposta sobre o serviço que deveriam fazer, percebi que ti-nham falhado. Então, fui até sua casa, sim, pronto para matá-la lá mesmo. E devo confessar que fiquei decepcionado por não encontrá-la. Afinal, isso tudo tem sido uma grande e entediante confusão. Entretanto, como meu pai tem planos para que eu me torne general... — Capitão, por favor... Ward sacou a arma e fez-lhe um sinal para que andasse. — Ainda é muito cedo e, se nos apressarmos, poderemos sair sem sermos vistos. Assim, ninguém se machuca. Exceto você, é lógico. — Capitão, não precisa fazer isso... — Já lhe avisei para não tornar as coisas mais difíceis. Tenho lembranças ruins para a vida inteira, e não quero mais nenhuma em minha consciência. Agora, ande, abra a porta! Sem opção, Meredith obedeceu. Seguiu para a parte de trás da cadeia, como Ward lhe indicava. Lá, viu o guarda e o xerife Harper. Ambos haviam sido nocauteados. Experimentou uma sensação horrível de pânico ao ver o sangue que escorria da cabeça do xerife. — Preciso fazer algo por ele... — Tentou aproximar-se, mas a mão forte de Ward a segurou desviando-a de di-reção. — Ele vai ficar bem. Ficará apenas ter um hematoma na cabeça, mas nada sério demais. E, como os atingi por trás, jamais saberão o que houve. Mais tarde, isso também será imputado a você. Meredith continuou caminhando, tropeçou e caiu. — Levante-se! — Ward ordenou, irritado. — Não! Terá de me matar aqui mesmo, porque não vou correr!
Ele se inclinou sobre ela, dizendo, entre os dentes: — Que tal se eu lhe der um tiro no cotovelo? Isso poderia motivá-la um pouco, o que acha? Ela cerrou os dedos na poeira do chão. —- Não fugirei! Um disparo soou, atingindo Ward na mão e fazendo-o gritar. Sua arma voou longe. Rafferty e mais dois oficiais da União apareceram vindos das sombras entre os arbustos. — Afaste-se dela, Ward! — Como ousa?! — Michael berrava. — E vocês, seus idiotas! Ele me alvejou! Não viram?! Façam alguma coisa! Os soldados não se moveram. Em seus rostos, uma expressão fria endurecia seus traços. Com uma rapidez incrível para quem tinha uma mão tão ferida, Ward agarrou Meredith e a fez erguer-se. Com a mão boa, retirou uma pequena pistola do cinturão. — Eu lhes dei uma ordem, para irem até a casa dela e queimarem-na! Travis mantinha-se tranquilo, a voz sem demonstrar um pingo de emoção: — Sei muito bem a quem devo minha lealdade. Ward puxou Meredith contra o peito. — E é a ela que se refere? — zombou. — Ela não é nada além de uma espiã suja! Enviou seus homens para a morte! — Não, Ward. Meredith não fez nada disso. Foi você quem os traiu. Eu e seus homens aqui ouvimos tudo o que disse a Meredith ainda dentro da cadeia. Não precisa mais mentir. Ward enrijeceu o corpo diante do que ouviu. — Devia tê-la matado há anos... Mas ela se mudou para o Texas, e eu quis ser justo, sem ver mais derramamento de sangue. Travis franziu as sobrancelhas. — Solte-a. Ward forçou o cano da arma contra a pele de Meredith, fazendo-a gemer. — Não. Ela vem comigo. Agora, soltem suas armas. Esta minha pequena pistola pode não fazer um grande furo, mas garanto que causará um bom estrago na cabeça dela. Travis e os soldados vacilavam. Meredith tentava afastar a cabeça da arma, mas Ward a forçava ainda mais. — Vamos, façam como mandei! Devagar, tomando todo o cuidado possível, Rafferty deixou a arma no chão, seguido pelos oficiais.
— Tenha calma, Ward. — Quer que eu tenha calma?! Como acha que posso me acalmar agora?! Graças a você, não só terei que matá-la, mas também a você e a dois solados valiosos da União! E essa situação está ficando ainda pior do que imaginei! — Sabe muito bem que não precisa ser assim. — Não? E que sugestão tem para me oferecer? Não posso retornar a Washington com este tipo de incidente em minha folha de serviço! Preciso deixar tudo limpo! Chute sua arma para cá, capitão. Mesmo contrariado, Rafferty o obedeceu. E a arma escorregou pelo chão até junto dos pés de Ward. — Quero que se abaixe bem devagar e pegue a arma, entendeu, Meredith? Ela mantinha o olhar fixo em Travis. Não sabia o que ele queria que fizesse, ainda mais porque ele não a fitava, mantendo-se atento a Ward. Com um puxão violento nos cabelos dela, que a fez gemer de dor, Ward insistiu: — Entendeu?! — Sim... Michael usava o corpo dela como escudo, e ambos abai-xaramse devagar para que Meredith pegasse o revólver. Ward mantinha a pressão que segurava os cabelos de Meredith, forçando-lhe a cabeça para trás. Incapaz de in-clinar-se para a frente, ela tateou no chão até encontrar a arma, pegando-a com certa dificuldade. Sabia que, uma vez que Ward tivesse aquele revólver em mãos, iria se voltar contra Travis e os dois oficiais. E sentia, dentro de si, que faria qualquer coisa para evitar que Ward atirasse contra Travis. Qualquer coisa... Pela primeira vez desde que ele e os soldados surpreenderam Ward em sua saída da cadeia, os olhares de Travis e Meredith se cruzaram numa comunicação muda. E a voz de Ward pareceu quebrar o entendimento que começava a haver entre ambos: — Não tente nada, sra. Carter, ou perde a cabeça. Literalmente. Naquele momento, o xerife começou a despertar, gemendo e movendo-se de leve. A distração que isso forneceu, embora muito breve, foi suficiente. Ward virou-se para o xerife, mas, antes que pudesse atirar, Travis enfiou a mão pelo colarinho e, de uma espécie de bolso que havia ali, apanhou a faca de cabo de madrepérola que sempre mantinha escondida. Com um movimento rápido e preciso, arremessou-a contra o peito de Ward, que, com os olhos
arregalados, encarava-o, parecendo não poder acreditar no que estava acontecendo. Em seguida, caiu de joelhos, levando Meredith consigo para o solo. Soltou-a e caiu para trás, morto. Seus olhos muito azuis, permaneceram abertos e pareciam estar re-fletindo o tom muito claro do céu daquela manhã. Travis avançou em direção a Meredith e tomou-a nos braços. — Deus, pensei que a tinha perdido! — sussurrou contra sua cabeleira. — Nunca imaginei que tudo se tornasse tão perigoso! Ela mantinha os dedos crispados no tecido de sua camisa. — Tive tanto medo... — queixou-se. — Eu estive sempre por perto. Meredith fitou o corpo inerte de Ward. — Ouviu o que ele disse? Sobre ter traído seus homens? — Sim, ouvi. E os oficiais também. Poderão ser suas testemunhas. O xerife, despertando, gemeu mais alto. E os dois soldados ajudaram-no, bem como a seu colega, a levantar-se. — Ora, não achei que esse sujeito fosse me atingir com tanta força! — reclamou o xerife, passando a mão pela cabeça ferida. Meredith aproximou-se e verificou o corte, avisando: — Vai precisar de um ou dois pontos, sr. Harper. — Bem, se minha cabeça não fosse tão dura, acho que teria sido bem pior. — Mas o que o senhor estava fazendo aqui fora? — Meredith quis saber. O xerife sorriu, fazendo um sinal com a cabeça em di-reção ao jovem tenente que tinha ficado de vigia do lado de fora da cadeia. — Eu o acordei há quase uma hora, logo depois que Travis saiu. O pobre-coitado parecia muito preocupado por achar que tinha adormecido em serviço. Mas eu o acalmei e me ofereci para ficar a seu lado e mante-lo desperto. Imaginei que, assim que Travis preparasse a armadilha para Ward, ele logo apareceria na cadeia. Porém, não achei que ele me atingiria com tanta violência. Os soldados já levavam o cadáver de Ward, e Travis comentou: — O pesadelo terminou. — E deu um beijo demorado na testa de Meredith. — Já chega de nos preocuparmos com o passado. Acha que ficará bem um minuto? Preciso ainda tratar de alguns detalhes. Ela assentiu, vendo-o afastar-se. Enfiou a mão no bolso do vestido, retirando dali um lenço, que pressionou contra o ferimento do xerife, enquanto Travis conversava com os outros soldados. Ao que parecia, ele assumira o comando, por ter a patente mais
alta. E os soldados pareciam aliviados e contentes em seguir suas ordens. Depois, quando tudo já parecia acertado, ele voltou, tornando a abraçá-la. — O que acontecerá agora? — Ainda teremos de ir a Washington, onde haverá um interrogatório, mas, com o testemunho dos oficiais aqui presentes será apenas uma mera formalidade. — Que bom! Estou tão feliz! Travis afastou-se um pouco para encará-la, dizendo: — Há algo que eu deveria ter lhe dito ontem à noite. Eu te amo, Meredith. Na realidade, te amo desde aquela noite, quando apareceu na cela da prisão Libby. Quis tanto tê-la assim, em meus braços, naquela ocasião... Mas logo notei sua aliança e soube que pertencia a outro homem. Lágrimas suaves desceram pelo rosto de Meredith. — Travis, sei que tenho passado por uma série de emoções nestas últimas duas semanas... E, com você, aconteceu o mesmo. Nossas vidas sofreram grandes alterações, e... Ele a fez calar-se, tocando-lhe os lábios com carinho. — Podemos viver onde você quiser, querida. Há um posto de comando esperando por mim, visto que ainda tenho um ano de serviço a prestar, mas, se desejar, poderemos voltar a morar em Trail's End, um dia. — Não me importo com o lugar onde iremos viver, desde que estejamos sempre juntos. Rafferty engoliu sem eco. — Então... vai ficar comigo. Um sorriso meigo, tímido, surgiu na boca perfeita de Meredith. — Eu te amo demais para não fazê-lo, querido. Travis respirou fundo, radiante, e prometeu: — Meu anjo, você terá uma vida maravilhosa! EPÍLOGO Meredith deliciava-se sob o sol ardente do Colorado, uma das mãos protegendo a vista, que se perdia no vasto campo verdejante. A outra segurava flores. Nesses últimos tempos, com o ventre proeminente devido à gravidez avançada, andar era muito mais difícil do que antes, por isso procurava não se afastar demais das outras esposas de oficiais, que haviam preparado um piquenique de boas-vindas para os
soldados que voltavam para casa. Travis e os outros homens, que tinham estado em patrulha durante a última semana, chegariam em breve, e ela queria recebêlo da melhor forma possível. Ergueu o ramalhete até o nariz, aspirando-lhe o discreto perfume. Seu olhar seguia até a distância, onde as curvas das montanhas pareciam formar um paredão cinzento mesclado de azul. E, bem acima, o céu muito claro pareceu-lhe radiante. Travis estava próximo, tinha certeza, e essa certeza dava-lhe uma enorme paz interior. Na semana anterior, ela e Travis haviam comemorado seu primeiro aniversário de casamento. Fora no mesmo dia em que ele tivera de partir para cumprir a última missão de sua carreira militar. Depois de vinte anos de serviço, o agora major Rafferty decidira ir para a reserva. E, assim que o bebê nascesse, voltariam para Trail´s End, para começar uma vida nova. Sentiu a criança mexer em seu ventre e tocou-o de leve, sorridente. Os movimentos tinham aumentado muito, tanto em quantidade quanto em intensidade, durante toda a manhã e boa parte da noite. Era óbvio que o pequeno ser se preparava para vir ao mundo. Meredith trocou a posição dos pés, sentindo-se um tanto desconfortável. Tentava buscar consolo na ideia de que essa era a última vez que teria de se preocupar com os possíveis perigos de uma patrulha. De repente, uma dor diferente a atingiu, e teve de respirar fundo durante alguns segundos até que ela acalmasse. — Espere mais um pouquinho, meu querido — disse a seu filho. — Aguarde até que o papai esteja aqui. Então, na distância, avistou a nuvem de poeira que indicava a aproximação dos cavalos. Os homens estavam chegando! Mulheres e crianças reuniram-se, ansiosos. Os pequenos corriam, rindo, felizes, saudosos, sem perceber que suas mães tinham caído num profundo silêncio conforme I a cavalaria se aproximava mais e mais. Como Meredith, todas aquelas mulheres tinham rezado muito pelo retorno seguro de seus homens. Viu Travis de imediato. Apertava o ventre com uma das mãos e acenava com a outra, sacudindo as flores no ar. Rafferty respondeulhe também acenando. Vinha ere-to e firme sobre a sela. Seu chapéu cobria-lhe boa parte do rosto em sombras, mas ela sabia, adivinhava, que ele sorria.
Sua jaqueta azul cobria-se de poeira, os botões dourados não brilhavam, mas ele parecia bem, como todos os outros. Meredith suspirou, aliviada. Quando o grupo se aproximou, Travis desmontou rápido e separou-se de seus soldados para ir ao encontro de Meredith. Sua expressão era de pura alegria. Ela sentia o coração transbordar de amor. Admirava-o, achavao o mais lindo dentre todos aqueles rapazes. — Seja bem-vindo ao lar, major Rafferty — murmurou, quase chorando de felicidade. Travis a abraçou e beijou, saudoso. E, por adoráveis segundos, enquanto esteve nos braços dele, degustando o sabor de sua boca, Meredith sentiu que a Terra até poderia parar de girar. — E bom estar em casa, sra. Rafferty — ouviu-o sussurrar, logo depois. O bebê moveu-se mais uma vez, inquieto, e Travis notou, já que seu corpo estava junto ao de Meredith. Tocou-lhe o ventre, com carinho e cuidado, uma expressão preocupada turvando-lhe o brilho do olhar muito azul. — Como você está, querida? Mas, antes que Meredith pudesse responder, uma segunda contração a atingiu, fazendo-a vacilar. Mais pálida, não pôde falar durante alguns segundos. E, quando a dor se foi, sorriu. — Nós dois estamos bem. Travis, no entanto, mostrava-se sério. Passou o braço pelos ombros dela, para que voltassem a sua pequena casa na vila militar em que moravam. — Desde quando está tendo contrações? — Já faz algum tempo, mas, durante a noite, não eram exatamente contrações, apenas um leve incômodo. — Devia estar de cama. — Mas estou bem... — Não, não está. Vai ter um bebê, e não demorará muito. Travis deu algumas ordens aos soldados mais próximos e, em poucos alguns minutos, o médico do forte chegava a sua casa. Também três esposas de oficiais tinham vindo, para auxiliar Meredith. Ela enfrentava as contrações com bravura, mas ficavam cada vez mais fortes e intermitentes. Travis, a seu lado, segurava-lhe a mão, tenso, pálido. Arriscando um olhar para ele, Meredith brincou: — Não vai desmaiar, não é? — Apesar de seu esforço para ser
firme, sua voz mostrava que sofria. Rafferty apertou sua mão ainda mais. Estava, de fato, muito pálido. — Não, querida. Mas agora sou mais solidário com Na-than Miller do que jamais imaginei que pudesse ser. Espero ser firme o suficiente para aguentar até o fim sem dar vexame. E, menos de uma hora depois, James Ezra Rafferty nasceu, pesando quatro quilos e meio e gritando como Travis jamais ouvira um bebê gritar. Meredith recuperou-se do parto com facilidade, e Travis, valente e firme, não perdeu os sentidos... FIM