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O blefe – As infinitas maneiras de enganar a si mesmo Luna Editora Rogério Puerta – Brasília, DF, março de 2020 Fotografia e arte de capa: Priscila Bellotti (@priscilabellotti) 1. Chega o momento da guinada na vida de João Pedro Datsi 2. Quando e como João Pedro Datsi passa a compreender o Estado. 3. Quando e como João Pedro Datsi passa a compreender o homem.
4. João Pedro Datsi suspeita entender a evolução da vida no planeta. 5. Um prognóstico pessimista. “Não dará certo...” 6. Quando e como João Pedro Datsi permanecerá no poder. 7. Caem as trevas... 8. Um raro alinhamento de astros no firmamento, condição imperdível... 9. O tabuleiro de jogo montado à mesa. 10. Nunca termina.
Fausto dialogando com o demônio Mefistófeles, negociando sua alma por luxúria: (…) "Dos entes como tu saber-se o nome (Blasfemo, Tentador, Pai da Mentira) é para logo conhecer-lhe as manhas. Quem és pois?"
(...) Fausto - Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
Ilustração: Fausto -Franz Xaver Simm (1853 – 1918).
1. Chega o momento da guinada na vida de João Pedro Datsi
Nunca soube com total certeza a origem de meu nome, mas não é este o real motivo, caro tio. Sei que o meu sobrenome se diluiu em sua linhagem familiar, pouco importa agora. Nunca pesquisei a fundo porque as informações me pareceram contraditórias, então melhor seria não perder tanto tempo e tanta energia. Quando busquei algo, há algum tempo, me pareceu como procurar justificativa para uma expressão popular, daquelas que ninguém sabe ao certo ou ninguém tem como comprovar, então fica a dúvida: pode ser que o doce pé de moleque seja referência aos pés encaroçados de moleques de rua descalços ou ao grito que as doceiras de tabuleiro davam para que os pequenos ladrõezinhos pedissem e não furtassem. Pouco importa agora, a origem de nosso nome familiar, parte menos importante a sua, respeitosamente, mais importa o Datsi, a minha, considerando que sou dos últimos a carregar tal nome e tal linhagem.
É chegado o momento, meu caro tio finado, adiei ao máximo a decisão, por algum motivo pouco explicável sempre achei que minha guinada de vida se daria aos trinta e três anos de idade. Sem ser supersticioso, sempre achei que esta idade, ou próximo a esta, deveria guardar algo de especial no trajeto de vida das pessoas. Tolice. Mesmo se guardar algum conteúdo cabalístico, ou enigma a ser decifrado, ou a idade da morte de Cristo, se assim fosse a idade mais significativa para qualquer ser humano seriam os oitenta e oito anos, este número seguido assim, repleto de significados, ao menos para quem acredite. Dois infinitos de pé, somente aí já há grande contradição. Não sei bem se matematicamente ou na física do cosmos possam coexistir dois infinitos lado a lado, parece contraditório, dois intermináveis, então desde onde começaria o segundo interminável? Tolice. Ao menos para mim, que não devo pagar minhas contas a partir de elucubrações matemáticas e astronômicas. Não foi aos trinta e três e está sendo agora, quase aos quarenta, a guinada de vida, ao que tudo indica. Posso estar enganado, mas sinto algo diferente no ar, algo inédito, que ainda não sei bem explicar, acho que exatamente por isto venho a lhe encontrar, venho a lhe pedir conselhos sábios, pois sempre guardei na lembrança as poucas porém riquíssimas conversas que tivemos. Eu ainda muito novo, pouca coisa compreendia da vida, e só agora depois de uns vinte anos consigo juntar as peças e entender quase tudo daquilo que o senhor queria dizer. Não deve ter sido nada fácil, nada fácil pra ninguém, talvez hoje seja tudo menos complicado, ou não, cada época tem o seu momento. Hoje os adolescentes suporão absolutamente impossível
ser educado sem as tecnologias digitais. Em sua época, tudo era na base da enciclopédia Britannica importada, sequer traduzida ao português. Muito folhear de página errada que não levava a nada, muito tempo perdido, o carregar contínuo de pesados volumes em grosso papel. Fatos históricos que bem sei, pois o senhor me contou, me enriqueceu de preciosa informação. Tenho boas lembranças de nossas poucas, breves, porém inesquecíveis deliciosas conversas. Agora percebo você um sábio. Contava sair às ruas em seu primeiro emprego, sem carteira assinada nem nada, na época ninguém se importava, sem receber direito pelas vendas, carregando em carrinho de rodas improvisado e pesado vários volumes de Seleções da Reader´s Digest, aos quatorze anos de idade, tentando vender um primeiro exemplar e conseguir o compromisso para a compra de todos outros subsequentes, coleção completa, que trazia desde entretenimento, notícias do mundo, e verbetes traduzidos da Britannica, desde o A ao Z. Lembro bem o jeito como contava, sem julgamentos, dando a mim a possibilidade de múltiplas interpretações, dando de bandeja a liberdade de pensamento. Contava que os possíveis compradores o questionavam, para lhe testar, para saber se realmente poderiam ter alguma confiança de que o amontoado de livretos teria algum conteúdo digno e algum valor. Então lhe contestavam, avaliando, afinal como seria possível um garoto ainda de bermudas e boné típico de colégio interno afirmar a qualidade intelectual e a acurácia científica de um agrupamento de livretos? Mas tinha nome e fama predecessora, a enciclopédia Britannica, quase todos a achavam confiável, como foi o leite condensado Moça da Nestlé em sua época, todos confiavam. Já
havia no mercado a farinha láctea, mas o leite em pó ainda não era acessível, tal qual o senhor me contou, então a forma mais prática e viável de se transportar leite era em latas de leite condensado, muito presentes em campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. Depois as abriam, misturavam com água, batiam bem e estava pronto pra tomar. Um rico alimento, assim todos achavam, mesmo após enlatado e adicionado de uma imensidão de açúcar branco refinado. Não deve ter sido nada fácil, para ninguém que viesse de fora, migrante, buscar melhor vida e oportunidades em país tropical com reputação selvagem e de clima abafado opressor. Alguns tiveram certo tempo para escolher de forma mais adequada e refletida, estes procuraram as regiões de clima menos antagônico aos seus climas de origem, outros tantos não, os mais aventureiros e adaptáveis, talvez. Gente que saiu da Europa e foi se meter no meio da Amazônia, em Belém do Pará principalmente, uma leva grande de imigrantes que por lá ficou após se maravilhar com a fartura de peixes de rio e frutos coloridos das matas em uma época quando, dizia-se, ainda se encontrava banha e carne farta de peixe-boi. Tanta banha que se davam ao luxo de incinerar lamparina de rua com óleo de peixe-boi, que se faziam correias de motor de equipamento mecânico com seu couro resistente. Mas o senhor preferiu vir mais ao sul, um clima pouco mais afim, muita gente que veio da mesma região de origem, então se formou por aqui uma comunidade de migrantes, e na época era mais comum um ajudar o outro, havia maior camaradagem. Anarquista ma non tróppo, alguns diziam, o senhor nunca me falou diretamente isto, mas depois soube pelos relatos deliciosos de Zélia
Gattai, a esposa de Jorge Amado cuja família deve ter passado das dela, boas e ruins, mais das boas, por aquilo que contou, em sua chegada ao dito Novo Mundo. Tal qual o senhor, ateu, mas não muito, um ateu graças a Deus. Muito aprendi, agora percebo, aprender no sentido nato, de apreender algo, guardar para si, levar consigo para o resto da vida. Aprendi mais contigo, caro tio, do que com meu próprio pai, com quem infelizmente tive pouco contato, você bem sabe por quais razões e fatalidades. Sinto que preciso coletar tudo, todo pedaço de informação útil, o que me valha, cada experiência, de tudo isto precisarei como nunca antes, pois parece chegado o momento. Não foi perto dos trinta e três, mas agora na faixa de quarenta anos de vida. Na sua época quarenta anos deveria ser quase velhice, ou próximo disto, muita gente que não durava até os cinquenta ou sessenta, gente que morria de gripe espanhola, caxumba ou que nem se formava direito e sadio após contrair poliomielite na infância. Dizem que a Humanidade muito avançou e está em contínuo avanço. Tenho lá as minhas dúvidas. Certamente pode se dizer que muitas doenças foram domadas, mas também novas aparecem, vírus até então desconhecidos, superbactérias que são geradas a partir de tanto uso de antibióticos, bactérias resistentes que antes morriam com pouca dosagem de veneno. O câncer que nunca foi domado, um ou outro mais bem tratado e diagnosticado, mas tantos outros cânceres que, ao que dizem, têm em muito aumentado a incidência com o estilo de vida contemporâneo, a alimentação industrializada e a poluição ambiental das grandes cidades. Cada época deve conter o seu pecado e a sua bênção, acredite-se ou não em pecados e em bênçãos dos céus e do inferno. O senhor fumava,
bem lembro, eu achava bonito que só, a forma elegante e despojada, sua habilidade de manuseio, conseguia ficar com o cigarro na boca sem apoiá-lo com as mãos, então a peça intrigante branca e comprida se movia quando falava devagar. O senhor sempre falou devagar, nunca foi afobado, sempre soube os melhores momentos, e quando se manifestava, era de forma quase conclusiva, todos ao redor prestavam atenção e em geral se calavam pensativos. Achava bonito ver o senhor fumar, muita gente fumava, era bonito, os astros e estrelas de Hollywood fumavam, não à toa virou nome de marca de cigarro, que nem sei se existe mais. Na época mais gente deveria morrer de enfisema pulmonar e de câncer de boca e garganta, ainda hoje morre, os cowboys de Marlboro. Coisa que nunca vi no senhor nem em ninguém na família foi inclinação político-partidária. Bem pouco se falava nos almoços de família aos domingos, sobre as tendências políticas de cada um, seus posicionamentos, quem apoiar ou quem defenestrar, quem seriam os vilões e os bandidos, nem Getúlio Vargas pareceu instigar paixões opostas em nossa família. Mas bem sei que ninguém era inepto e entorpecido, bem sei que todos sabiam o que se passava no mundo, quais os perigos, as correntes de pensamento que levariam a nada, que muito complicariam a vida do pessoal de bairro, especialmente os imigrantes que labutavam nas periferias. Uma época quando italianos, alemães, japoneses e seus descendentes sofreram em particular, a Europa palco de guerra. Nem todos, os anarchici ma non tróppo desde sempre se mostraram contrários, do contra, ao que acontecia em sua terra natal, então para os moradores locais de cá amenizavam alguma coisa, davam
aos brasileiros a impressão de que nem tudo era o que se escutava nos rádios e se lia nos jornais. Ninguém de nossa família foi político de carreira, bem sei, concluí há pouco. Tinha suspeitas, mas não, não há nada, com todos com quem conversei nada consegui, nenhuma informação conclusiva, então definitivamente nossa família não ocupou cargos públicos políticos. O mais próximo que se chegou foi uma prima sua, muito distante, prima de segundo grau, então, para mim, nem sei o que ela seria. O senhor que foi meu tio indireto, casado com a irmã de minha mãe. Não foi como o tio Paco, que era irmão de minha mãe, como diziam, tinha o mesmo sangue. Acho péssima esta estória de ter o mesmo sangue, a mesma linhagem direta familiar, dá uma ideia de eugenia. Todos querem ter o melhor e mais puro sangue, os melhores genes, “sangue de meu sangue”, ser parecido com os parentes, vê-los refletidos, um garoto que, de mesma linhagem guarde traços e relembre continuamente seu pai ou avô, uma menina que seja a cara de sua avó. Algo estranho. Esta simpatia com as semelhanças físicas até entendo, mas de resto, ter o sangue do mesmo sangue, pouca coisa deve haver de tão importante. Se houver, há para os dois lados, bem e mal. A outra prima que o senhor contava ter se casado com primo e parido garoto deficiente. Diziam que era mais comum antigamente, mesmo todos sabendo, a ciência explicando desde quase sempre, um mínimo de teoria genética, desde mil e novecentos ao menos, quando um sujeito perspicaz estabeleceu as bases teóricas da genética moderna ao cruzar simples plantas de ervilhas. Não houve político de carreira na família. Sua prima distante de segundo grau, parece, foi assessora de um parlamentar, um
deputado qualquer, o senhor deve até ter me contado o nome, deve ter me contado quando conversávamos, o senhor ainda vivo reclinado à poltrona fumando seus cigarros os quais nenhum adolescente gostava do cheiro, mas eu adorava. Se pouco me contou de sua prima distante que mais próximo chegou da política partidária, vou assumir que maior importância não houve. Sabes bem por que toco no assunto, de tudo deve saber, desde onde o senhor agora estiver. A guinada de vida que mencionei tem a ver com política, mas não qualquer política, não o que se comentava nos bairros de periferia onde os imigrantes chegaram para se alojar e trabalhar e ganhar a vida digna e honesta com afinco e dedicação, com a força e a coragem trazida de terras distantes. A política que todos tocavam sem se dar conta, querendo ou não, gostassem ou não, pois tudo o que se discutia quanto aos rumos da comunidade de imigrantes no Brasil e no mundo era política pura. Alguns poucos assim não percebiam, mas a maioria sim, notavam que debater é fazer política, no dia a dia, o pensar aquilo que esteja bom e ruim no ambiente de trabalho, no preço e carestia das compras a granel feitas nas maravilhosas mercearias e quitandas familiares de bairro de sua época, os botecos espetaculares dos portugueses que tinham de tudo, desde mortadelas frescas penduradas por barbantes que todos batiam a cabeça ao passar até elixir paregórico e emulsão Scott. Bem por isto toco no assunto. Nunca pensei em entrar para a política, ela sempre me foi meio indiferente, a política partidária atual ao menos. Na verdade o mais provável é que realmente nunca chegue a entrar de fato, mas me apareceu uma oportunidade a qual achei razoavelmente interessante. Não em termos financeiros, muito
longe disto, não se trata de proposta para ganhar dinheiro, para ficar rico desviando os fartos recursos públicos que devam ser administrados com parcimônia e responsabilidade e, ao que parece, tanta dificuldade existe para que o sejam. Muita coisa não é o que parece ser à primeira vista, depois lhe conto os detalhes todos, não queria fazer agora, não queria estragar nossa conversa cheia de lembranças deliciosas, as imagens que ainda guardo de criança, as vendinhas do português velhote da esquina de casa, bairro tranquilo, o português com seu sotaque carregado, que me vendia uns suspiros cores-de-rosa e azuis que eu tanto amava quando garoto. Ele dizia que os azuis eram para os guris e os cores-de-rosa para as meninas, mas eu comprava dos dois, tinham o mesmo exato gosto, nada mudava, só a cor, que era de alguma química pura e maluca, mas mesmo assim eu os achava diferentes, comer de um e de outro. Uns suspiros quadrados, do tamanho da palma da mão de um adulto, o que para uma criança era coisa grande, de se fartar até ficar sem fome para o almoço e com isto fazer desfeita à mãe zelosa. Eram quadrados, grandes e compostos de vários cones lado a lado de creme duro de açúcar repuxado. Sempre que via aquelas espécies de cones me lembrava de coxinhas de massa assada, pois tinham, mais ou menos, a aparência de minicoxinhas, das que se vendiam também sempre junto de quibes e empadinhas. Dizem que a coxinha de massa é uma invenção brasileira, já o quibe e a empadinha não. O suspiro doce de açúcar refinado e muita química colorante deve ser invenção de Deus, quando criança achava isto, porque uma vez perguntei ao português velhote da vendinha da esquina e ele me falou com seu sotaque muito carregado que se chamava suspiro porque era o suspiro de Deus.
Eu nunca entendia o que significava a palavra suspiro. Somente muito tempo depois fui perceber que seria talvez por nunca eu entender ao certo a palavra Deus. Falar sobre política partidária ultimamente é entediante e desgastante, muita gente assim pensa e também sou desses. Não a política que debate os rumos da comunidade de imigrantes do bairro de periferia, não esta, a política de boa vizinhança que se deve observar entre funcionários de uma empresa familiar, mas a política partidária, pois ao visto não há forma atual, nem fórmula mágica, para tentar se mudar os rumos mais abrangentes de uma Nação sem a política partidária. Dizem que não. Ao menos eu nunca encontrei esta fórmula mágica, posso estar enganado, por um bom tempo quis mesmo estar muito e profundamente enganado, acreditando meio ingênuo que a ação direta coletiva poderia gerir uma sociedade organizada, talvez possa, nalgum dia futuro quando as pessoas forem menos egoístas. Será que existe, meu caro tio finado, algum lugar onde as pessoas sejam menos egoístas? Ocorre que estou quase convencido. Quase, mas não ainda totalmente, talvez por isto tenho lhe encontrado com mais frequência ultimamente. É bem provável que por isto. Digo quase convencido pois posso estar em erro. Todos podem estar em equívoco em vários momentos de suas vidas. Tenho estudado mais ultimamente, lido o que seja de interesse, os clássicos, as resenhas, buscado vídeos de entrevistas e depoimentos de especialistas. Sempre achei que o autodidatismo se constitui em ferramenta poderosa que, no entanto, muitas vezes é vista com preconceito, e sempre me opus a este preconceito. Há um certo estigma justificável. Muitos versados no assunto assim descrevem, é
compreensível, mas também vendo e ouvindo sobre as experiências variadas mais práticas e criativas, as fabulosas maneiras com as quais as pessoas comuns se adaptam e improvisam, não posso deixar de sentir certo ânimo e esperança neste projeto que agora se avizinha. Uma das inspirações, e provavelmente a mais intensa, mais sólida, foi o seu próprio histórico de vida, caro tio. É ótimo isto, não é? No fundo não é bem isto o que todos nós desejamos, ser a inspiração e o exemplo para alguém, para as gerações futuras? É ótimo isto, com alegria venho lhe confessar, embora o senhor sempre soubesse, nunca foi novidade. Que bom! Deve ser uma boa sensação de contentamento e realização, o fato de ser inspiração e motivo de ânimo para as pessoas próximas e de nossa convivência, as pessoas ao redor, ainda que não as conheçamos, ainda que tais inspirações e sopros vitais sejam aspergidos sem precisa direção e sentido, sejam apenas lançados ao vento, meio a esmo, para serem captados ou não por antenas e mentes mais aptas e sensíveis. Um bom artista pode inspirar uma verdadeira multidão de admiradores, ou não, não necessariamente admiradores, pode inspirar detratores também, gente que sinta asco e repulsão e inspirada por tais passionais sentimentos decida tomar uma atitude oposta, assim imagino. Gente que inspirada e indignada por barbaridades de um tirano decida agir em completa oposição. A resistência, sublime expressão de caráter, corajosa, porém extremamente perigosa e pouco recomendável quando o argumento impensado e mais animalesco seja a tão única sobrevivência e a autopreservação. O lançar-se de forma suicida, para o tudo ou nada, para preservar a própria pele, mas contraditoriamente a colocando em maior iminente risco.
O senhor me inspirou, meu caro finado tio, sua história de vida, sua labuta, enorme esforço e capacidade de resiliência, de adaptação. Dizem que bem poucos abandonam a própria zona de conforto. Certamente quem se vê obrigado a partir de terra natal e abrir mão da convivência com o círculo de relacionamentos o faz por razões elevadas. Assim imagino, pois nunca me vi em tal crucial momento de decisão. Não tão crucial, de vida ou morte, como o senhor deve ter passado em sua época de jovem adulto, mas imagino como seja, eu que neste momento passo por situação de guinada, a virada mais importante de minha vida, ao que parece, ao menos até o momento é o que parece. Sim, é um tempo de guinada, de inflexão, tomarei uma grande decisão de vida muito em breve, que afetará de forma significativa todo um rumo de acontecimentos, assim me parece. Há formas de entender o autodidatismo, várias dentre elas. O seu autodidatismo veio provavelmente da falta de recursos disponíveis, deve ter ocorrido com muita gente de sua época, a capacidade de adaptação, ou se adapta ou não sobrevive, algo assim. Contou-me que nunca cursou universidade, que bem poucos em sua época o faziam, quem assim agia era sempre considerado um doutor. Médico, advogado ou engenheiro. Era como se somente estas três carreiras fossem possíveis, fruto de estudo acadêmico, formal, a necessidade de aprender e ser testado em ciências as quais já havia tempos se mostravam antiquadas. A obrigatoriedade acadêmica quanto ao aprendizado de latim. O que dizer dos padres católicos então, tão comuns nos países europeus de origem latina? Sim, estes também, corrijo-me, caro tio, para não ser injusto: se
estudava formalmente para ser médico, advogado, engenheiro ou padre, também para o sacerdócio. Contou-me que nunca se aprofundou em matérias acadêmicas clássicas, que somente em tenra idade frequentou salas de aula, aprendeu formalmente apenas o básico, o bê-á-bá e as quatro operações matemáticas, e mesmo assim sempre aplicou com eficiência a prova dos nove, a conta dos noves fora, coisa que nunca fiz com eficiência, talvez por preguiça, talvez por eu ser alfabetizado em época de calculadoras mais disponíveis, em época dos primeiros computadores domésticos. Sim, há preconceito, acho que sempre haverá, e é até justificável. Lembro-me quando moleque, quando minha mãe, que não é a sua irmã, que em tese não é nada, não há nome para isto, assim me disse, a irmã de quem foi sua esposa não teria nomenclatura formal dentre o oficialismo tolo das famílias conservadoras tradicionalistas. Assim me disse, mas deve haver algum nome, se não houver vão inventar algo para denominar esta relação familiar indireta. É o mesmo que achar que o dia de hoje não seja dia de alguma coisa, uma data comemorativa, dia do ferreiro, para tudo há um dia, se não houve ainda, inventarão. Quando eu era guri minha mãe me matriculou em escola de música, desejava filho músico e médico, duas coisas que sempre tive aversão, em parte, por vezes os pais parecem descobrir exatamente as nossas fraquezas, acham que podem brincar de ser Deus e tentar corrigir tais fraquezas à força, à base de aperto de torquês, e muitas vezes assim ocorre, ocorre o que resulte em exato oposto. Digo aversão à música em parte, pois aprecio a boa música, julgo saber reconhecê-la em suas sutilezas e muito peculiares
variações, mas de fato não me dou para tocar instrumento musical qualquer. É fato, não levo jeito, talvez uma falta de coordenação motora específica, falta de talento nato mesmo, ou falta de paciência. Deve ser isto, a falta de paciência, ter de repetir inúmeras vezes um mesmo movimento, a repetição, rotina mecânica, tenho aversão a isto, por isto durei duas semanas em um primeiro emprego de menor aprendiz. Minha mãe quase teve um chilique quando eu, arrogante que só, e sem saber muito o que fazia, entrei de supetão na sala do chefe da fábrica contratante e, aos quinze anos, após nem dez dias de primeiro emprego como menor aprendiz, declarei formal e sumamente ao dono da fábrica que não ficaria ali se fosse para embalar lanternas de automóveis em caixas de papelão às centenas, um movimento mecânico repetitivo, seis horas por dia. Minha mãe quase teve um chilique na época, de fato teve um chilique, comparável somente à sincope que também teve quando lhe contei que não havia progredido nada após três meses de aulas monótonas, entediantes, e extremamente formais de aprendizado de flauta doce. Um tormento. Para mim era como ser obrigado a aprender latim, que até é belo e emotivo, mas ninguém sai pelas ruas trocando ideias e filosofando em latim. Então o preconceito vem em parte de pouca coisa útil que me lembro vinda do professor impecavelmente trajado, professor engomado, de flauta doce e de outros instrumentos de sopro do conservatório musical por minha mãe escolhido para a matrícula. Estranho nome este, conservatório musical, onde em tese se conserva a tradição e os bons costumes. Faz sentido, lá se admirava Mozart, Bach, se dizia que além dos clássicos pouca coisa haveria de música, e lá estavam engajados o proprietário do
estabelecimento e seus súditos professores para conservar tal fiel tradição. Então o que guardo nas lembranças, e isto ao menos foi bom, foi o que o professor de camisa engomada de punhos de linhobranco impecáveis me dizia: Se se acostumar com a postura errada, adquire o vício, fica mais difícil corrigir no futuro. Aprenda e não esqueça a forma correta de empunhar a flauta doce. Mas o autodidatismo não significa necessariamente jogar fora um mínimo de técnica e de correção, mesmo ao preferir o improviso, afinal criativo improviso. Não necessariamente, e impossível deixar de admirar o histórico de gente que parece ter feito tudo errado, sem técnica, sem formalidade, sem teoria apurada alguma, seja teoria musical ou outra qualquer, e mesmo assim ter obtido sucesso na vida, gente gênia que foi péssima aluna, seja por indisciplina, seja por não aceitar tamanha boçalidade de pedantes professores de sua época. A labuta dos imigrantes que construíram nosso país é admirável. Imagino poder falar a exata mesma frase se morador fosse de outro país qualquer ao redor do mundo. Meu país, nosso país, minha nação, nossa nação, sempre esta referência ao pronome possessivo, uma posse, a minha posse, o meu país. As dificuldades de quem imigra talvez não se resumam a todo um processo de adaptação e aclimatação, a barreira de língua, a barreira cultural. O senhor bem me disse que muitos que ficaram na Europa não viam com bons olhos e mesmo chegavam a planejar retaliações aos que de lá saíam. Fico a pensar se o “ame-o ou deixe-o” foi coisa só daqui, inventada aqui, se dentre as devastações de duas grandes guerras não houve um lema embutido e talvez nunca admitido, o jamais deixe-o. Será possível amar uma
terra arrasada? A terra continuaria a mesma, é verdade, o mesmo solo fértil como poucos no mundo, os mesmos riachos ainda que contaminados, as mesmas árvores ainda que de uso madeireiro dificultado pela quantidade de chumbo de balas que estragavam as serras das carpintarias. Estórias contadas, que a floresta negra na Alemanha teria tanto chumbo já incrustado e incorporado pelos anéis de crescimento dos troncos de suas belas árvores centenárias, que interferiria no magnetismo de bússolas de direção. As paisagens não mudariam, difícil mudar, os Alpes Suíços, mesmo em terra arrasada, haveriam de brotar novas gramas e produzir novas neves frescas nos pontos mais elevados bem acima do nível do mar. Sobre retaliação nunca me contou, afinal quando sua família de lá migrou foi de uma vez, com os poucos pertences, quase somente a roupa do corpo, e sem condições de planejar retorno breve. Para outro canto do mundo distante um oceano inteiro, e um oceano dos grandes, cruzar a espetacular marca geográfica da Dorsal Atlântica bem no meio do oceano, uma dorsal mais do que simbólica, pela qual muitos povos primitivos mais ousados e hábeis devem ter cruzado várias centenas de anos antes de navegadores financiados por coroas e por interesses comerciais em acirrada disputa. Posso estar enganado, mas sempre tendo a imaginar os vikings navegando por paixão, os gregos também um pouco, mas os centro-europeus navegando por ganância. Não posso ser injusto, lança-se ao mar quem queira, que se lancem, quem sou eu para discordar? Fernando Pessoa referendou: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Belo isto, mas nem tudo pode ser tão belo, a vida não é tão perfeita, o ser humano falível. Lançaram-se os
centro-europeus ao mar, conscientes da grandeza da alma, e então se iniciou o genocídio. Injusto de minha parte. A História foi contada pelos ganhadores, quem saberá a história mais correta, a maior verdade dentre várias versões e interpretações de verdades? É verdadeiro, quase de tudo deve valer a pena, mas haverá alma que seja pequena? Tio querido, o senhor do lado daí poderia me assoprar dicas, vindas da alma, deve senti-la neste seu exato momento muito especial, sentir a própria profundidade da alma. Difícil imaginar tão colossal sensação, o perceber a inimaginável magnitude de uma alma integral, a própria alma. Para quem em almas acredite. Os poetas serão sempre incompreendidos, ou ao menos parcialmente compreendidos. Como ficaria a tradução para as centenas de outras línguas além do português? Valer a pena. Pena não rimaria com pequena, aí então se desmancharia em cinzas toda a beleza de tão conciso verso. Os poemas originais em grego, em russo, em latim, suas traduções, dilapidações, esmerilhações, quase destruições. Seriam então todos os poetas egoístas, pois somente pensaram em seus próprios povos para receberem importantes mensagens subliminares codificadas e simbolismos do além? Veja, caro tio, me perco aqui em divagações, tolices até, a mente em viagem distante, e sei que não devo perder o foco, o foco de minha objetividade e pragmatismo, a guinada de vida, o ponto de inflexão, tão marcante e significativo que haverá de ser ele sobre o rumo de toda a minha existência, a minha passagem rápida por este planeta Terra. O senhor já deve suspeitar, ou sempre soube, vocês deste lado daí de tudo sabem, será realmente verdade esta afirmação?
Não precisa me contar, talvez soubesse desde as nossas primeiras e poucas conversas que muito me marcaram enquanto eu era um guri. Poucas e boas, era como se minha mãe tivesse certo receio de me deixar contigo, a sós. Lembro de ela me fitando com um olhar preocupado, e depois o fitando com um olhar severo, eu ainda adolescente, mas me marcou muito isto. Não tinha grande percepção e traquejo dentre as nuances e expressões faciais, as linguagens corporais, mas mesmo assim sempre percebi que minha mãe denotava certa preocupação, denotava um “olhe lá o que vai botar na cabeça deste menino”. Eu deveria ser ainda novo e destreinado para notar estas sutilezas de olhar e comportamento, então imagino que minha mãe tenha me dito algo mais ou menos neste sentido, então incorporei em pensamento, assumi isto, mesmo sem lembrar-me de algum dia quando ela teria realmente falado com estas mesmas palavras ou com este sentido. O senhor deve suspeitar, vou tentar entrar para a política partidária. Afirmar isto, imagino, deva ser como uma bomba atômica para familiares ou pessoas próximas que não venham de um histórico de políticos tradicionais, os clãs familiares que gerenciam há décadas os rumos e as mentes de toda uma população de determinada região. Entrar para a política partidária, esta simples frase de poucas palavras deve possuir um efeito gigantesco, imagino que possa ser interpretada como um vou me mudar ao Alaska, vou me demitir de funcionalismo público estável e investir dinheiro em uma barraca de cachorros-quentes, vou me candidatar à viagem só de ida ao planeta Marte, vou ser pai em breve de sêxtuplos. Para uma gama grande de pessoas entrar para a política pode e deve soar como
algo descabido e tresloucado. Exceto para os clãs familiares da política tradicional. Há tantos. Fico imaginando, só dá pra imaginar, óbvio, supor, um bocado de suposição, às vezes um bocado de suposição é bom para ativar a imaginação, às vezes a gente pensa demais, presume situações inexistentes ou muito improváveis. Não acho nada improvável um clã familiar de políticos tradicionais que se veja preso irremediavelmente à necessária perpetuação de crias e descendências sucessivas que assumam cargos eletivos partidários de destaque. O poder é viciante, inebriante, não é demais se supor isto, não se trata de pensamento contemporâneo, nada de novo, havia milênios notaram, todos os filósofos e todos os historiadores notaram, desde sempre. O poder, ter o poder causa dependência, vicia, óbvio. Sentir prazer vicia, causa dependência, todos ao redor do mundo e ao longo das distantes eras cronológicas almejam e almejaram o poder. Exagero, caro tio? Não creio que exagere. Passando um pouco para outras referências logo vemos, fica até fácil de visualizar, pode-se pensar em um poder monárquico de um reinado, o poder da fama de um astro de futebol internacional, de um astro do cinema, um economista guru de nações e influenciador de líderes globais, este poder nas mãos. Mas a lógica parece bem mais simplista, bem mais palpável e rotineira, diária e cotidiana. O poder é o ser capaz, ser capaz de. Assim é o poder, por isto é inebriante e viciante, traz dependência psíquica, orgânica, dependência física provavelmente. O ser capaz. Quem em sã consciência não almeja ser capaz de um bocado de coisas? Ser capaz de dominar o medo e a dor é um poder enorme. Poder dominar. Poder andar nas ruas, de segunda a domingo, em
praças e em repartições públicas, em plataformas de embarque de transporte coletivo, andar de cabeça erguida e com o moral elevado, com a consciência tranquila, ciente e sabedor do poder muito íntimo conquistado a duras penas. Ter o poder de encarar a morte com naturalidade e serenidade. Um gigantesco poder, quem o detiver provavelmente estará bem próximo do que se convencionou chamar felicidade. Nada mais belo, suave, quase não pertencente a este mundo poluído: o poder encarar a morte com serenidade, com um ligeiro sorriso suave no rosto até, com uma calma clara e indizível. Em geral não é recomendável falar em morte, muita gente tem este receio, um temor mesmo, para muitos trata-se de um tabu. Parece ser algo que atrai energia negativa, pessimista, falar em morte e em doenças. Não gosto, ninguém gosta, mas é algo muito forte que sempre habita minha mente, sempre quis ser capaz de encarar o declínio físico com uma calma indizível, deve ser bom isto, ter este imenso poder, sim um poder, o poder enfrentar os sofrimentos com sabedoria e resignação. Devo-lhe respeito, respeito e humildade, caro finado tio. Toda vez quando lhe encontro é o mesmo, devo-lhe antes prestar as homenagens, prestar o reconhecimento, pois tudo isto me vem à cabeça, esta ideia, e não é uma ideia mórbida chula, barata, vinda de quem quer parecer desapegado da matéria e quer parecer possuir um olhar superior e científico sobre tal assunto tão e sempre controverso, o ocaso do corpo, seu declínio, a morte, a morte também de uma personalidade, se é que assim podemos dizer. Não posso dizer isto do senhor, caro tio, de sua personalidade, a prova viva e material, palpável, é isto, é o que ocorre neste exato momento. Sinto a sua matéria, o seu corpo físico mesmo, a sua
proximidade, energia e calor, mesmo sabedor e ciente de que não há volta possível, sabedor de que jamais poderemos novamente sentar tranquilos em uma tarde quieta e boa de domingo para papear, como fazíamos, na sala de casa, eu com minha visão de mundo de criança, e o senhor todo honrado e contente por ter sobrinho tão ativo e promissor, tão alvissareiro, como gostava de dizer. Sempre me dizia nomes que eu não tinha a mínima ideia do que se tratavam. Alvissareiro. Nunca soube de onde o senhor tirou esta palavra, depois pesquisei, ser coisa comum da época, todos chamavam, era um dos bordões de locutores de rádio tanto escutados e admirados em tempos de pouca ou inexistente televisão. O rádio, as ondas mágicas do rádio, enorme poder, atiçavam a criatividade, faziam as pessoas imaginar coisas incríveis, cenas e enredos, contextos, até mesmo a invasão do planeta por marcianos, logo antes da Segunda Guerra, narrada por Orson Welles, um gênio precoce. Ainda hoje ouço rádio, boto cabo de fone de ouvido pifado em orifício de telefone celular e escolho viva-voz. Ouço como se fossem os radinhos de pilha que se ouviam antigamente. Espero que nunca acabem com o rádio, também que nunca acabem com os elepês em vinil. Os disquetes de computador sumiram, dizem que em breve sumirão também os cedês, mas o rádio não pode, seria uma injustiça. Outros dizem que não, que sempre haverá algo para se ouvir dentro dos carros presos em engarrafamentos de trânsito intermináveis e nunca em vias de diminuição. Não me sai da cabeça, duas coisas ultimamente, também duas coisas eram constantemente marteladas na mente, entra ano, sai ano, sempre estiveram a martelar. Havia tempos eram a
paternidade e a ousadia em implantar a meta de entrar para a política partidária. Por tempos a possível paternidade me tomou a mente, um tempo enorme de presença, revirando, em redemoinhos, altos e baixos, sempre lá a cutucar, fuçar, querer se enterrar, tal qual animal fugidio que quer se abrigar no subterrâneo escondido, aconchegado e confiante, certo de ficar oculto e não encontrável, sempre lá presente, capaz de vir à tona logo que provocado, a partir de um mínimo e sutil sinal favorável. Ser pai, gerar uma descendência, não foi o seu caso, meu caro tio, seus filhos não foram nenhum deles diretamente responsáveis por meu aparecimento ao mundo, meu nascimento, foram sim boas companhias, meus primos quase irmãos que não eram tão íntimos assim. Também nós não ficamos isentos de picuinhas e intrigas típicas de qualquer família mediana, mas tenho boas recordações. Na sua geração foi ainda mais forte, ainda maior na anterior, nossos avós, o meu avô ao menos, de parte de pai, que fez treze filhos, dois que não passaram à vida adulta. Nunca pensei em fazer treze filhos, um ao menos pensei, durante muito tempo, um pensamento recorrente, ser pai ao menos, que fosse uma única vez, esta experiência, que muitos dizem trazer o efeito intempestivo de uma bomba nuclear, que chacoalha e altera as pessoas. Deve ser, mas muita gente também não dá a mínima, não assume as verdadeiras responsabilidades de ser pai ou mãe. Foi uma determinada época, durou um bom tempo, há uns dois ou três anos, depois passou, nem me lembro ao certo como foi arrefecendo, como foi aos poucos se diluindo tal pensamento, tal ideia recalcitrante. Dizem que a melhor forma de esquecer um relacionamento íntimo é empreendendo outro novo logo em
seguida. Assim é. Uma ideia que é logo substituída por outra. A paternidade deu lugar ao desejo de ingressar na política partidária, outra meta a ser analisada em profundidade, outra meta a ocupar tempo e espaço, parâmetros físicos portanto, um volume considerável de energia, ocupar tempo e espaço. Já a inadiável necessidade comportamental ao encarar com naturalidade e serenidade o declínio do corpo físico jamais arrefeceu, esta necessidade sempre esteve presente, desde quando me conheço por gente. Um assunto que quase todos preferem evitar e adiar, mas que a mim sempre foi recorrente. Adio, mas não evito. Adio quando necessário, quando o momento não é favorável, mais para não desagradar os outros, as pessoas próximas, mais por isto do que por outro motivo, pois para mim sempre deve ser favorável, não é assunto tão delicado e certamente não é assunto tabu, nem desagradável. Imagino como uma grandiosíssima libertação, quase a conquista última de todo e qualquer ser humano, o mais próximo do que possa ser catalogado como a famigerada felicidade, a dita realização plena pessoal. Ser capaz de encarar de cabeça erguida o ocaso, o definhar da carne, e então a morte taxativa e inquestionável. No fundo parece ser isto, a justificativa, talvez daí tudo se origine, esta busca pessoal quase insana pela tranquilidade, por finalmente conquistar uma consciência tranquila frente a passagem direta pelo mundo dos vivos. Tenho em mente. Se empreender este projeto de tentar de forma heterodoxa e inédita o ingresso na política partidária, se bem-sucedido, creio eu, cumprirei meu sentido de vida, a minha completa existência.
Um método muito mais do que heterodoxo, inusual, talvez inédito, tal será meu método particular, o qual empenharei, uma forma única de agir frente aos trâmites burocráticos, imensamente burocráticos. Seria otimismo exacerbado contar com o certeiro sucesso, com uma jornada bem empreendida, a concretização de algo revolucionário a ponto de justificar e valer de fato a minha passagem rápida e insignificante por este mundo imenso. Suponho que devam morrer felizes todos aqueles que realizem os sonhos programados em vida. Quase um sonho, um forte desejo, daí talvez advenha toda a tranquilidade, a excepcional serenidade, retrucar ao final dos tempos perante o Criador, no juízo final de infinitas almas: “sim, tive uma boa vida, fiz aquilo que queria”. O sucesso comprovável de minha empreitada pode não acontecer, o mais provável é que não venha mesmo a ocorrer, será uma enorme aposta, porém sem o aporte de dinheiro, então não me consumirá muito, não desgastará em mim imensos aportes de energia, um gasto considerável que me traga arrependimentos posteriores. Haverei de me dedicar com afinco, como sempre, sempre fui acostumado a trabalhar com afinco e dedicação, no mínimo dez horas por dia, fui acostumado a adiar as férias de direito sempre quando necessário, dar expediente aos domingos e aos feriados esporadicamente, então todo meu tempo e energia não serão considerados tanto como desperdiçados. Em minhas pesquisas verifiquei atônito que a sociedade é composta por mentirosos, dentre várias qualidades e defeitos, falhas de caráter e também virtudes, comportamentos natos ou adquiridos, carga genética ou puro simples instinto mal explicado de sobrevivência. Trata-se de uma constatação inegável, desde
sempre, os antropólogos atestam e confirmam: o homem, ou a mulher que seja, mentem. Sempre mentiram, quase compulsivamente, alguns certamente compulsivamente, uma única vez por dia talvez possa ser considerada como compulsão. Quem tiver de lidar com outras pessoas pouco dispostas à compreensão e contextualização muito provavelmente é forçado a mentir ao menos uma vez ao dia. Em suma, meu projeto de vida, tenho o desejo de testar o tempo de sobrevivência de um político eleito em pleito democrático que minta o menos possível. Tanto menos possível, algo que pouco quer dizer, mesmo assim esta é a ideia toda do negócio. Meu projeto. Pelo que pesquisei, mentir garante a sobrevivência humana racional, e aos já muito bem vivos pode garantir uma melhoria na qualidade de sua existência física e emocional. É aterrador dar-se conta disto, ler e estudar, mesmo que sem tanta profundidade, tal assunto intrigante e de tantas consequências em nossa sociedade. Praticamente todos mentem compulsivamente em situações extremadas, faltam com a verdade, procuram enganar, procuram ludibriar, blefar, propagar informações confusas e conflitantes para angariar vantagens diretas e muito particulares. Quem em sã consciência em uma fila de distribuição de pães a refugiados, morto de fome, seria capaz de dizer que ainda não recebeu a sua ração mesmo tendo feito? O que seria da criação e ensino aos filhos se disséssemos todas as verdades grotescas de nossa sociedade injusta e desigual? O dizer não tenho trocado ao pedinte de rua para não expor a carteira farta de cédulas variadas. Alguns dizem que há mentiras que não valem, que não contam, que mentira pouca é meia
verdade. Ou inverdade, outro substantivo feminino de dissimulação, um eufemismo, mentira passa a ser faltar com a verdade. O blefe do jogador de pôquer não conta, ao menos não deve contar em alguma planilha imaginária anotada por algum sábio de plantão estudioso do assunto. Então por esta lógica há mentiras que não possam ser consideradas como tal. Qual o critério de análise? Em meio a toda universal diversidade, a desejável e maravilhosa biodiversidade humana, tantas crenças religiosas, tantas origens geográficas, etnias, afinidades, atrações sexuais, atrações intelectuais. Tanta maravilhosa biodiversidade. O blefe do pôquer não contaria pois não prejudicaria ninguém. Ninguém em tese vai deixar de alimentar os filhos em casa caso perca uma partida crucial de pôquer em um cassino chique da moda. Então o blefe da jogatina não prejudicaria ninguém. Ou sim. Não vou me estender, tio querido. Não sou dado a intelectual, gente que pensa demais muitas vezes age de menos, gente que se embrenha em dilemas existenciais e dúvidas insolúveis frequentemente arrisca o pescoço, se arrisca a perde a sobriedade e a lucidez, o bem mais precioso. Ao que dizem. Ao que nos chega ao conhecimento. Assim parece ser. Alivia um pouco saber que aparentemente há atenuantes. Saber que, ao que tudo indica, também outros animais dotados de uma mínima fagulha de raciocínio são capazes de mentir, e isto mesmo não se aplicando a situações extremadas de sobrevivência. Cachorros em experimentos cognitivos que por iniciativa própria tentam ludibriar seus donos para obter determinadas recompensas em biscoitos caninos. Não se aplica aí a capacidade de oratória, tais quais os humanos, talvez um constrangimento surgisse ao ouvir o
som das próprias mentiras saindo da boca, mas não seria demais supor que se um cão pode ludibriar, por posturas e coletas e entregas de objetos, poderia também mentir caso tivesse a capacidade de articulação de palavras. Pobres cães, tão próximos às residências humanas que acabam por copiá-los. Mas para um homem qualquer, para um político de carreira em meu foco específico, mentir pode ir muito além do que o simples pronunciar de palavras de efeito imediato. É possível mentir por gestos, por simples comportamentos ou posturas, atitudes, pela simples presença gestual, a linguagem corporal. Muito pode-se supor a partir de uma mera linguagem corporal. A não ação pode ser uma mentira, o não agir, a omissão, o deixar de comparecer a um evento compromissado, e desta maneira expressar que houve esquecimento ou incapacidade de presença mesmo em caso contrário. Haverá esperança, meu caro tio amado finado? Serei eu a fazer alguma mínima fagulha de diferença perante a sociedade? Enorme pretensão, arrogância mesmo. Não mudarei nada neste mundo, não posso, não sou capaz, as grandes mudanças vêm em ondas, com fatos predecessores, gradualmente. A História registra, não há casos em que uma única pessoa chega e faz a diferença. Se há, poucos são, as idolatrias religiosas ao menos, elas sim, algum iluminado por Deus baixa à Terra e revoluciona tudo abruptamente. Mas, ao meu ver não há provas suficientes, fatos que ocorreram havia milhares de anos, muita tradição oral que passou através das gerações e provavelmente foi distorcida e sobrevalorizada. Que seja, sou insignificante, desprezível até, nem mesmo no bairro onde moro sou tão conhecido, sequer admirado, passo quase incógnito
pelas ruas, sempre foi assim, só mais um a caminhar que vem e vai, do trabalho para casa e de casa para o trabalho, segunda a sábado. Sou um cidadão insignificante que não mudará o mundo. Deve ser por sempre ter em mente que vou morrer cedo, ainda relativamente jovem. Antes dos cinquenta é ainda jovem, não é, meu caro tio? O senhor que partiu já beirando os setenta, e talvez vivesse mais se fosse nos dias de hoje, pelo que minha mãe contou sobre seu ligeiro enfraquecimento. Quantas pessoas terão a serenidade ao encarar a própria morte? Deve haver um preparo, um processo prévio, algo pensado com calma e antecipado. Com certeza varia muito entre as pessoas, há os mais materialistas, apegados aos prazeres da carne, tais quais os religiosos adoram classificar, os prazeres da carne. Há os mais resignados, ou os muito, excessivamente resignados, ao ponto de submissão, os que tudo aceitam de bom grado, cabisbaixos, sem demonstrar verdadeira motivação e autossuficiência. Cada qual, cada qual. Para mim está claro: morro tranquilo se ao menos iniciar este meu desejo íntimo, ao menos sentir as energias do universo da política partidária contemporânea em nosso conturbado país. Fácil falar agora, quantas vezes falamos em vida coisas que mudam com o tempo? Que rápido mudam. Bem sabes, tio querido, daí de seu lado aclarado, com certeza percebes bem o contexto, com maior profundidade, pois sei que estás enxergando tudo do alto de uma colina, vendo o que há além, os arredores todos, todo o cenário, vendo os vales baixos por onde nos perdemos, os vales labirínticos, os meandros por onde os meros mortais se prendem, becos sem saída, por onde, dentre a rotina agitada do dia a dia, muitas vezes nos batemos e damos cabeçadas de forma ignorante.
Então estou agindo na ignorância, muito provavelmente, arrogante, julgando ser capaz de prever um estado de espírito futuro ao qual nunca experimentei sequer sabor. Nunca fui parar em hospital por motivo mais sério, nunca tive de abrir envelopes com resultados de exames que trouxessem maior preocupação e aflição. Para mim ainda não chegou o momento que, dizem, chega para todos. O momento inesquecível, que faz parte da estória de todos os homens e mulheres, muitos falam deste momento, contam estórias, quase todos falam, e estes dizem que somente quando chega é que percebemos o teor, o gosto, às vezes amargo, um fel, às vezes ligeiramente ácido, pouco mais suave, mas um gosto possível de diferenciar somente a quem o sente às profundezas da alma. Ao que dizem. O momento inesquecível dentre a linha vital das pessoas quando, de forma um tanto repentina, recebemos um parecer médico discorrendo sobre alguma anomalia de funcionamento orgânico decorrente do relativo avançar em idade, alguma anomalia que será relatada com bastante prosa e normalidade pelos médicos. O momento inesquecível quando, pela primeira vez em vida, depois de longo hiato sem maiores preocupações ou transtornos, se torna inevitável que escutemos de algum médico de plantão o certeiro parecer “é de se esperar a partir de sua idade”. Farei ainda em vida, tio finado querido, preciso fazê-lo, ao menos iniciar a empreitada, um projeto de vida, enquanto ainda ativo e respirando. Posso morrer amanhã em um acidente imbecil de trânsito, todos podemos, não digo o incidente doentio fatídico e contundente, não esta possibilidade, mas o degenerar orgânico mais do que natural das carnes, coisa de mais uns dez, vinte anos.
Então por esta lógica, tirante as fatalidades agudas, posso até me achar envolto em certa tranquilidade ao ter suficiente tempo disponível para a conclusão de meus projetos em vida. Óbvio que influenciou o ocorrido há alguns meses. Um peso a mais na balança de pratos metálicos que reforçou a exposição gritante de um aspecto claramente favorável a um dos lados em disputa. O prato metálico da balança com suas argolas e correntes finas abaixou ainda mais, quase tocando a superfície plana da mesa de madeira, o limite de carga. De fato o recém-ocorrido pesou, não havia maneira de não fazê-lo. Convocação para tribunal do júri, expressa, formal, sujeita às leis e processos por omissão, uma intimação, uma experiência inesquecível. Fiz por onde. Sem dúvida fiz por onde. Candidatei-me a mesário voluntário nas últimas eleições: dois dias de folga que justifiquei na empresa e algum dinheiro para custear o almoço e o deslocamento. Chamaram-me e participei já como primeiro mesário, acima de mim o presidente da seção eleitoral, um sujeito que trabalhara previamente em pleito anterior. Eleição em dois turnos, dois domingos de trabalho cívico e patriótico em outubro, convocado, além de um dia prévio que transcorreu em treinamento: manipulação da urna eletrônica, situações hipotéticas de complicações e coisas do tipo. Foi uma experiência, voluntária, portanto claramente no sentido de dar subsídios ao meu plano futuro de ingressar como concorrente a cargo eletivo partidário. Acho que por isto, logo depois, me convocaram para integrante de tribunal do júri. Ao conversar com o pessoal do fórum local toquei no assunto. Desconversaram, disseram que não foi por isto, que é
preciso ter jurados dentre os cidadãos, qualquer cidadão em tese, então sempre convocam gente da sociedade aleatoriamente: homens, mulheres, jovens em idade compatível e poucos idosos. Não acreditei, continuei achando que me convocaram porque havia me inscrito como mesário voluntário de eleições nacionais. Que seja. Ocorre que para recusar a convocatória como jurado de crime toda uma justificativa expressa e formal é necessária, papelada e atestado, e não a tinha naquele momento. Então fui. Disseram ser experiência marcante, então fui, esperançoso de que toda a vivência em vias de realização pudesse me auxiliar em alguma compressão mais aprofundada acerca do funcionamento das instituições constituídas e a sociedade delas dependente e interativa. Em teoria uma interdependência. Há leis, regulamentos e punições aplicáveis e coercitivas quer queiramos ou não. Dentre as experiências marcantes que me relataram antes de adentrar ao tribunal, a grande maioria foi negativa. Algo a se preocupar, ficar com pé atrás. Colegas próximos disseram ser péssima experiência, a depender do tipo de caso a ser julgado, em sua grande maioria homicídios. Pensei a respeito. Melhor se fosse caso de tribunal onde há réu confesso, melhor ser um veredito final dividido, para que, secreto, sempre deixe no ar a possibilidade de que o próprio voto do jurado foi para algum dos lados: culpado ou inocente. Se todos jurados votam culpado, ninguém dentre o júri poderá alegar que inocentou o sujeito. A bala de chumbo que dizem ausente em uma das espingardas de um pelotão de fuzilamento. Melhor ser réu confesso e caso pouco complicado, um sujeito que logo dá dez facadas no peito de alguém em plena luz do dia, perante duas dezenas de testemunhas oculares atônitas. Aí então
não há pressão vinda de parentes do meliante em julgamento que dê jeito. E pressões há. Assim me contaram. Somente depois soube que o veredito final é comunicado ao plenário havendo um mínimo de votos em mesma conclusão, os demais votos ficariam fechados, sem resultado conhecido, preservando uma presunção de unanimidade dentre os jurados, o que certamente traria o perigo de uma alegação de todos os jurados em atitude condenatória. Enfim, meu estimado tio falecido, não quero tomar mais de seu valoroso tempo, de sua energia. Sou eu quem vem lhe procurar, bem sei, tomei esta liberdade, o senhor sempre permitiu liberdades e ousadias infantojuvenis. Ocorre que me acostumei. Bem sabes por que lhe procuro. Há sim algumas lacunas, carências se assim as quiser chamar, por muito tempo acostumei-me a tê-lo como confidente, um papel pouco usual, talvez não adequado, a enorme diferença de idade, melhor seria ter confidentes de mesma geração, é o que dizem. Dizem ser mais saudável possuir inter-relações entre amigos, colegas, de mesma geração, as épocas quando é possível compartilhar mais experiências e vivências em comum. Ao que dizem, que nunca é dos mais saudáveis o hábito de ter parentes próximos como confidentes, em especial pais e mães, que estes não podem ser colocados em um mesmo cesto onde se colocam os amigos de mesma idade. Talvez aí a minha carência afetiva infantojuvenil. Mas melhorei muito, hoje sou mais aberto às amizades, me relaciono bem com as pessoas, mesmo as de pouca afinidade. Não à toa me interessei pelo ingresso na política partidária, me interessei em aprofundar dentre o imenso campo das diversidades de opiniões, ideologias e comportamentos. Sinto enorme curiosidade e atiçamento intelectual por isto.
Virei lhe procurar mais vezes, se me permite, óbvio que em sonhos, nesta semi-inconsciência maravilhosa que tão bem aprendi com o tempo a minimamente manipular. Nunca é de total domínio, um sonho comandável, algo ou alguém não permite e jamais permitirá este total domínio e manipulação, mas bem sei como usar tal dom, então o uso, para uma boa finalidade. Os fins justificam os meios, perigosa máxima, sempre a achei sórdida, mas muito realista, parece que jamais deixará de ser aplicada aos montes e amplamente pelos homens. O problema começa quando os fins propostos não se mostram dos mais dignos. Uma perigosa máxima.
2. Quando e como João Pedro Datsi passa a compreender o Estado.
João Pedro Datsi compreendeu o Estado brasileiro. Assim julgou, dentro da capacidade que as próprias experiências de vida permitiriam. Seu país natal ao menos. Não se aventuraria em pretensões globalizadas de maior amplitude, um estudo mais aprofundado, gigantesco esforço intelectual, dotação de antropólogos e sociólogos imbuídos de considerável personalidade e visão. Brasis dentro do Brasil, megadiverso, de tamanho continental, estupenda faixa litorânea desde mares gelados influenciados por correntes antárticas até as fozes de caudalosos rios que trazem sedimentos andarilhos por ambientes tão distintos quanto a Cordilheira dos Andes e a floresta Amazônica. Megadiverso culturalmente, um caldeirão de derretimento onde se
fundem continuamente a liga incandescente, impressionante amálgama jamais tóxica, de variadas etnias e percepções de vida. Local de convergência aos povos ora aventureiros, ora desesperançosos de seus próprios chãos nativos, que tiveram a ousadia e a extrema coragem de atravessar fronteiras geopolíticas impostas por governantes de momento, e de se sujeitar ao escárnio declarado dos que, autointitulados patrióticos, diziam jamais abandonar a Pátria materna. Tarefa hercúlea se aproximar da compreensão do Estado brasileiro. Pouco não era, uma considerável estante de livros pesados ao menos, ao menos cem clássicos de etnografia para uma razoável descrição, todo o histórico dos pensadores antigos e os contemporâneos, o âmago dos proclamados fundadores da Nação. Julgava compreender, ainda que suspeitasse não em completude, mas a sua compreensão, o que poderia chamar de entendimento particular. A maneira de funcionamento das engrenagens e rolamentos da pesada máquina estatal a sempre exigir lubrificação e trato. Dois fatos, para João Pedro Datsi, foram conclusivos e de grande importância dentre a soma de conhecimentos e experiências que veio a lhe trazer a admitida clareza de vislumbre, o vislumbre do cenário ao qual em breve pretenderia ingressar togado de representante eleito em cargo político partidário. Eleições nacionais e tribunal de júri. Experiências de vida, impossível descartá-las. A primeira delas de forma voluntária, a segunda por intimação formal a ele dirigida via correspondência. No fundo praticamente a mesma coisa, ao que acreditou, sempre acreditou que uma coisa puxou a outra, primeiro a inscrição ao
cargo de mesário voluntário em pleito eleitoral nacional. Ninguém o faria demover da suspeita de que a intimação ao comparecimento como integrante de tribunal do júri teria sido emitida em decorrência do vasculhar em banco de dados onde constasse o nome e as características de cidadãos idôneos propensos ao voluntariado cívico. João Pedro Datsi era uma pessoa deveras observadora. Desde sempre, desde sempre reparou em detalhes o jeito pelo qual seu tio se portava, a maneira como era capaz de enxergar o contexto das coisas, tudo em maior profundidade, também seu tio um grande observador. Uma influência marcante, personalidade moldada em parte por suas hábeis mãos tal qual um artesão ao dar forma e volume à argila fresca de possibilidades infinitas. Buscou a oportunidade, voluntariado, observaria os eleitores compulsórios nas filas de votação, tanto quanto os eleitores entusiasmados. Obrigação cívica, pouco opcional, o voto. Meios de subterfúgio havia, gente que pagava taxa irrisória e se via livre ao menos de alguns dos pleitos eleitorais obrigatórios. Nada haveria de mais rico do que observar as pessoas em filas de espera, sempre assim achou. Não estava errado, sempre se configurou um significativo local para a observação e averiguação de comportamentos humanos: as constantemente presentes dentre a sociedade, as filas de espera. Oficializado como mesário observou os eleitores, caberia observá-los, flagrante e premente a necessidade, a demanda nítida e gritante de atenção. Dentre a equipe de quatro pessoas presentes à seção eleitoral de colégio ginasial em periferia: presidente, primeiro, segundo mesário e secretário. Houve revezamentos,
períodos de ausência para cumprimento de horário de almoço, idas aos banheiros ou simples esticares de pernas. Revezamentos de funções dentre a equipe composta a gerenciar a seção eleitoral, ora fazendo jus à denominação expressa da função: mesário; em tese aquele que está presente defronte à mesa, nesta posição, a mesa. Não a cabine de votação, situada ao canto da sala de aula de escola pública de periferia, a famigerada cabine de votação composta por mesa individual simples de aluno e sobre ela a urna eletrônica ligada à fonte de energia cercada pelo clássico biombo de papelão branco exibindo enorme brasão republicano da justiça eleitoral. Função de voluntário ora não como mesário, mas secretariando, anotando faltantes em ata, abastecendo papelada, anotando em relatório os dados dos eleitores analfabetos facultativos que imprimiam como comprovação a digital de um dedão da própria mão em um azul borrado após pressionado em almofada úmida de carimbo. Função ora orientando e tentando organizar a fila de eleitores à espera de seu momento aguardado de votação. Quanta coisa se aprende ao ouvir e observar uma fila de espera aleatória dentre a sociedade do país em que se vive. Muita coisa, uma enormidade. Não foi a primeira nem seria a última vez em que João Pedro Datsi exerceu sua apurada e treinada capacidade de observação. Locais muito específicos e pontuais de incontável riqueza, verdadeiros veios de ouro puro a ser garimpado, nada menos do que o prazer enorme atingido ao achar objeto de interesse de forma brusca, um objeto de valor que pode se fazer exposto ou não, a depender da situação, a depender do momento e do lugar. Em uma grande maioria de ocasiões, sim, se fazia presente e gritante, tal
veio exposto de puro ouro a ser garimpado, riqueza inestimável da biodiversidade brasileira miscigenada e moldada por experiências inúmeras de erros e acertos. Não seria a primeira nem a última vez, um exercício constante que há muito tempo passou a ser involuntário, um comportamento adquirido que ia se mostrando inato, instintivo, tal qual o cristão fervoroso que, sem saber ao certo o porquê, faz em gesto o sinal da cruz tocando peito e testa e finaliza o gestual beijando os dedos da mão, o toque da mão aos lábios que encerra o ritual que passa a ser involuntário toda e qualquer vez quando tal cristão fervoroso percorra as proximidades de uma igreja de sua professada religião de escolha ou imposição. Exercício involuntário o hábito adquirido de observar em profundidade as pessoas ao redor. Melhor ambiente e oportunidade não haveria, as riquíssimas filas de espera aleatórias e o interior dos transportes públicos coletivos de massa. Riquíssimos veios de ouro puro clamando pelo garimpo e purificação, ambientes biodiversos representativos, significativos e confiáveis dentre um enorme universo amostral, o muito desejado universo amostral que tanto deveria ser buscado e de exploração quase obrigatória a todo e qualquer cidadão que enseje em algum dia vir a ser eleito em cargo político partidário imbuído de representação democrática popular. Cada fila de espera guardava sua peculiaridade, e tantas e tantas havia, dentre um Estado burocrático pesado, dentre uma Nação que contava em algumas megalópoles mais de dezena de milhões de habitantes, ou próximo disto, em algumas cidades, outras onde não se contava tantos, mas até maiores densidades populacionais convergentes a determinado ponto urbano de
finalidade comercial ou institucional. Filas de espera generalistas, as imbatíveis filas serpenteantes de interior de casas lotéricas, as inúmeras casas lotéricas espalhadas Brasil afora, buscadas pela população em geral para os mais diversos fins: pagamentos de taxas e tributos, códigos de barras, apostas pagas em dinheiro vivo trocado e amassado a concorrerem a prêmios milionários sonhados e improváveis; algumas e não raras vezes casas lotéricas mescladas com agências bancárias, o que se convencionou chamar de bancos de conveniência. Em uma eleição partidária em nível nacional seria de se esperar que tudo aquilo que brotasse de rico e criativo dentre os comentários de integrantes de uma fila de espera viesse em relação ao tema atual premente e de momento, não menos do que o disputado pleito eleitoral atual, as características de seus candidatos aos cargos em embate, suas empolgantes promessas de campanha e propagandas, as rivalidades dos partidos políticos em disputa aberta, hostilidades, algum pouco espaço para amabilidades ou compreensões mais serenas que enxergavam o maior contexto político regional. Fila dentro de outra fila, subfilas, subdivisões, um afunilamento humano que cedo não mais suportaria a carga, então se subdividiria. Dentro da fila a outra fila de eleitores ditos preferenciais, que tinham direito às prioridades de acesso, um benefício justo, não pode ser tratado como igual quem seja jovem e são quando comparado a quem seja idoso, portador de deficiência, e ainda mais esteja porventura carregando criança de colo. Óbvio ninguém pedir atestado de gravidez a uma mulher sem barriga saliente, não caberia pedir atestados por escrito em tais
momentos, assim disse a mulher, afirmou, e estaria dito, os demais eleitores a esperar em fila ao lado que compreendessem, que entendessem a delicadeza humanitária da situação. Após esta mulher, um eleitor chega e se diz portador de prótese na perna, diz não poder ficar muito tempo em pé sob risco de fadiga, passa então também à fila prioritária, lá bem menos gente em posição anterior, recebe o dito eleitor especial olhares desaprovadores vindos de integrantes da fila convencional ao lado. Logo se estabelece uma ligeira porém explícita rivalidade, sentimento que exacerba a já existente rivalidade político-partidária, ou não, sentimento tão somente decorrente desta mesma histórica rivalidade políticopartidária. Era permitido portar camiseta de campanha, adesivo, broche, boné, o que fosse. A manifestação verbal ou coletiva, esta sim, era terminantemente proibida na seção eleitoral sob o risco de aplicação da lei vigente, sob o risco de comunicação e atuação da força policial constituída responsável por cada conjunto de seções eleitorais. O sujeito com aparência saudável e sequer mancando qualquer das pernas portava camiseta de candidato do pleito. Passou à fila preferencial, clamando seu direito à prioridade, afinal não poderia ficar por longos períodos em pé, assim identificou e se autoclassificou. Dar a cara a tapa, virar vidro de vidraça, o que fosse, quem explicita seu pensamento em camiseta contundente grafada por letras garrafais se submete a todos os louros de saudação e também a todos os tomates podres de reprovação. Poucas vezes tal atitude passa incólume ou despercebida em pleno período de concorridas eleições nacionais. Quase de tudo, exceto a indesejável e mesmo inesperada mera indiferença.
Passar um tanto quanto sorrateiro ao lado, à fila preferencial, economizando ao menos trinta minutos de entediante espera, sem demonstrar clara justificativa para tal. Certamente não foi fato bem digerido pelos demais eleitores em longa e inquieta fila convencional. Pesou e se somou à estratégia alegável cidadã o porte contundente, chamativo e muito explícito, de camiseta identificando candidato do pleito, a cor principalmente, a cor de seu partido, rápido identificável, cor padrão e ademais a imagem, o pacote completo montado para ser aberto por possíveis discordantes. Estava semeada a discórdia. João Pedro notou ainda maiores profundidades, o mais provável fora percebido pelos discordantes presentes na fila convencional, ao que indicava já fora notado, o sujeito com camiseta de cor pungente e explícita, imagem de candidato explícita, ao que dizia com metais titânicos incrustados no fêmur, claramente exalava uma boa quantidade de álcool. Etanol, álcool etílico, o mesmo a queimar nos motores de combustão, álcool presente em cerveja rala não era, dia na cidade quente e abafado, mas etanol de cachaça mesmo, aguardente, pinga, caninha, a despeito das errôneas classificações que os especialistas da bebida abjetam, classificando-a em subcategorias muito específicas, destilado nobre tradicional que se tornou patente reconhecida internacional. Tudo e de tudo João Pedro observava. Inconsciente anotava tais ocorrências em seu bloco de notas mental, o arquivo cerebral fantástico inigualável que quase a totalidade das pessoas guarda intacto e ativo, imensa máquina capacitora localizada em cota mais elevada do corpo humano. Guardava em arquivo orgânico as suas reminiscências, experiências de vida, seriam elas valorizadas e
indubitavelmente bem utilizadas, no presente e principalmente em futuro próximo. Ser mesário voluntário de pleito eleitoral foi rica experiência de vida, em muito o auxiliou a elaborar as próximas e vindouras teorias muito particulares a respeito do comportamento da população brasileira frente aos cenários político-partidários, tanto regionais quanto o cenário nacional, tanto o litígio corriqueiro entre vizinhos de bairro quanto o entendimento deturpado de setores e de classes sociais diversas frente às correntes ideológicas atuantes na contemporaneidade do país. Rica experiência. Ao que julgou foi esta a premissa para o recebimento de intimação referente a participação em tribunal do júri. Intimação expressa via correio que chegou alguns poucos meses depois de concluído o pleito eleitoral. Achou isto, supôs, haveria de ser por este motivo. Uma vez mesário, integrante de júri também poderia ser, ambos cargos voluntários, exercícios de cidadania, ao que rezavam atestados de idoneidade de um sujeito dentre a sociedade civil atuante em dada época de dada região. Apresentou-se ao tribunal do júri, no fórum local de sua cidade em dia e horário marcado, sem falta, sem atraso, lá esteve, portando documento de identificação com foto, portando a carta original entregue com a intimação formal. Ao primeiro dia de apresentação todas as baterias estariam apontadas e muito bem focadas, bem calibradas, todos os sensores prontos, os sensos e sentidos bem apurados, câmera e microfones, tudo a ser captado, um manancial gigantesco de sensações. A tudo observaria em mínimos detalhes, minúcias, um exercício mental que de forma alguma o fatigava ou sobrecarregava, antes um exercício instintivo e
prazeroso, de sobrevivência, tanto quanto o hábito de esfregar calçados, sujos ou não, em capachos muito explícitos de ambientes muito asseados. Um hábito. Observava em minúcias de tudo, por hábito adquirido ao longo do tempo. Em relampejos fugidios vislumbrava um futuro nem tão distante, em tal época um processo de amadurecimento que se fazia enrustido. Desejável amadurecimento gradual, uma maturação, lenta e contínua, maturação a absorver as moléculas dispersas trazidas pelas brisas, pelo ar circundante, o seu rico ambiente de experimentação. Não se deu por impulso hormonal adolescente o desejo de ingressar a política partidária, antes fosse, antes tivesse João Pedro a impetuosidade de, ao assistir a documentário edificante na televisão, decidir determinado mudar o mundo. Jamais mudaria, nem queria, uma pessoa não muda o mundo, sempre nisto acreditou, com muita sorte e ocasião talvez contribuísse minimamente dentre um processo de transformação mais abrangente e amplo em curso. Com muita aleatória fortuna de destino, ocasião, momento e tempo, tão somente, um processo de inúmeros fatores em curso, nisto acreditava. Exercendo função cívica voluntária como segundo mesário foi quando mais fortemente se inspirou, pôde vislumbrar claros relampejos de um futuro nem tão distante, desejado, buscado, demandante de foco e de empenho, demandante de esforço e de dedicação próprios. Bem mais além haveria, de nada seria suficiente o esforço e a dedicação se não alcançasse a contagem mínima de votos registrados em urna eletrônica. Observava e quase idolatrava a famigerada urna eletrônica a qual conviveu por nove horas contínuas em dois dias de domingo do mês de outubro.
Parecia um santuário de rezas, um pequeno altar circundado por biombo simplório e austero de papelão branco com enorme brasão da República, um local de ritos, para onde convergia a sua energia e atenção, tal qual um sacrário de formal e religiosa venerada adoração. Bela a foto que aparecia na tela do mostrador da urna eletrônica, em preto e branco verdade admitir, muito melhor ficaria caso colorida, mas mesmo assim uma bela fotografia de candidatos e de candidatas, as imagens que apareciam para a escolha democrática daqueles apertadores de botões que se dirigissem resolutos ao canto da sala de aula de escola de periferia, ao canto de sala onde se locava o sacro altar de adoração de todo candidato a cargo político eletivo que se preze. O canto, ponto geográfico definitivo e inequívoco onde a urna eletrônica era a mestra soberana e a rainha da situação, a entidade maior do momento e do lugar, tempo e espaço. Eleições secretas, voto sigiloso, mas sempre soube não ser cem por cento sigiloso. Imaginou-se caso candidato pedindo votos aos eleitores de seu bairro, os mesmos que votariam em uma urna eletrônica, a sua quase particular, muito secreta e garantida sigilosa e impessoal, a sua própria escolha refletida dentre dezenas de opções disponíveis. Em relampejos fugidios imaginou-se, vindo do nada tais flashes, tomou-lhe a mente tais lampejos, sua foto exposta na tela demonstrativa da urna eletrônica, em preto e branco mas com razoável nitidez e definição, todas fotos de gente sorridente, nem uma única foto de candidato de semblante sisudo havia, nem uma única dentre tantas dezenas, um sorriso atrás de outro, em sequência, todos posavam impecáveis mostrando dentes cândidos.
Caso pedisse votos em bairro saberia por fiscais e posteriores despachos públicos quem votou em quem em determina seção, portanto, por relação direta, saberia também a quantificação em muito determinada e específica urna eletrônica. Bem ali, inegavelmente, inequívoco registro de escolha pessoal. A contagem final saía da máquina em pequeno rolo impresso de papel, todos os votos computados na urna, sua quantidade e categorização, tantos votos para tal candidato e tantos outros votos para tal outro candidato. Tudo anotado em papel impresso em rolo que era cuspido pela urna eletrônica, oficializado, uma vez lá computado seria a prova material e oficial referente à transmissão digital por satélite às centrais eletrônicas de agrupamento e organização de todos os votos nacionais. Um processo que demoraria apenas o tempo de uma ligação telefônica, o tempo de uma transmissão de dados, sua conversão em impulsos eletromagnéticos codificados que eram emitidos e captados por antenas espalhadas pelas cidades do país inteiro. Se voto algum haveria para determinado candidato, supondo situação ainda mais enfática de uma seção eleitoral com pouco movimento, apenas com o mínimo de eleitores registrados exigidos por lei, simples e fácil seria saber se determinado eleitor realmente cumpriu uma promessa prévia escusa e não abertamente admitida ao votar em determinado candidato. Ao menos um voto computado haveria de aparecer registrado em papel de rolo cuspido pela urna eletrônica após oficialmente encerrado o pleito. Pequenina amostragem, ínfima, mas não poderia jamais descartá-la, seria ela representativa de seu universo amostral, então valeria. De sua seção eleitoral seria genuinamente representativa, a
totalidade amostral, desde o início pela manhã até o encerramento dos trabalhos ao final da tarde. Da região onde residiam os eleitores também amostragem representativa, pouco menos, mas de fato longe de um dado descartável. Em uma abrangência maior, municipal, estadual, e principalmente nacional, haveria muita variação, aí então não poderia ser algo confiável e representativo. Mesmo assim experimentou, provou o sabor de sua cota medida e disponível em sua colher de experimentação. Valeria a vivência após oficializado primeiro-mesário de pleito eleitoral democrático. Brasileiro não sabe votar, escutava-se. Assim muitos falavam, exceção feita e anotada, salientada, ao discurso de políticos de carreira defronte da imprensa, ao menos oficialmente. Em conversas extraoficiais o discurso poderia ser outro, diferente, mas sabiamente os políticos de carreira evitavam os discursos extraoficiais, sabiamente, isto desde a elevação exponencial de recursos múltiplos de gravação escamoteada de áudios e vídeos dos mais diversos. Toda e qualquer cautela passou a ser adotada e observada por aquele que não deseja e que tema ser flagrado em nítido erro. Brasileiro não sabe votar, afinal com este argumento não admitido explicitamente muita gente decidiu lançar-se às suas candidaturas esdrúxulas. Uma lógica relativamente simples e direta: o povo não sabe votar e eu não sei ao certo quais as funções de meu cargo se eleito for. Algo assim. Não chegaria ao ponto de admitir que brasileiro não sabe votar, longe disto, mas certamente João Pedro notou, ao menos em seu limitado universo amostral, o seu bairro que comportava eleitores lá residentes, certamente notou que muita gente não sabia votar, não tinha a mínima noção do que estava fazendo no
momento, um domingo pela manhã em escola estadual de bairro, não tinha sequer razoável ou mínima noção de suas obrigações, seus deveres e direitos enquanto cidadãos. Não poderia haver preconceito, conceitos preestabelecidos. Quantidade nada desprezível de eleitores alfabetizados e dotados de formação universitária não sabia votar. Não ser capaz de escolher candidato, ou sequer escolher opção de votação, seja ela a nulidade, seja a carta branca, ou até mesmo o não comparecimento voluntário ao pleito eleitoral no dia marcado para a votação, ato falho sujeito à punição. Não ser capaz de optar por alternativa coerente dentre as dispostas e apresentadas, seguramente configuraria a incapacidade de compreender o conceito mínimo de uma eleição políticopartidária democrática. Regras, regulamentos, vêm e vão, uma legislação que é moldada pela experimentação, erros e acertos. Mais erros, estes pressionadores de transformações, o que deu errado e necessita correção, alguma pressão popular, comitês regionais de partidos políticos que sempre se colocam em posição de porta-vozes da população em geral. Não comparecer a pleito eleitoral de forma injustificada por lei gerava multa. Uma cobrança irrisória, ridícula, que era desprezível e desproporcional ao esforço decorrente para sua quitação monetária. Bastaria justificar ausência no pleito, tentar justificar com argumento dúbio ou subjetivo, ou não justificar nada e simplesmente quitar a multa de valor monetário mais do que simbólico. Em tese alguém poderia argumentar que, pesados e avaliados os subterfúgios possíveis, o comparecimento às eleições, na prática, não era acontecimento rigorosamente obrigatório.
Voto facultativo no país não havia até o momento. Facultativo somente a uma estreita faixa de possíveis eleitores menores de idade, bem como de eleitores idosos e analfabetos. Tantos e tantos analfabetos, um contingente muito maior do que o oficialmente apresentado em estatísticas. Em tese analfabeto é o portador de documento de identificação com dizeres impressos de forma inequívoca e letras garrafais: não alfabetizado. Muita gente fugia do título tal qual o diabo foge da cruz. Uma mácula, pecha maldita, ter de melar dedão da mão em almofada de carimbo e apertar em papel, melhor treinar como se desenha de forma tosca e infantilizada o próprio nome. Um pouquinho de desenho pueril, fazêlo umas dez vezes seguidas em papel qualquer, simples repetição, um pouco mais vezes se nome extenso, e estaria bom, passaria, seria passável, ao menos desenharia o próprio nome, seria possível dar um jeito para passar esquivando-se do título infame e maculado pela sociedade de um sujeito não alfabetizado. Ao menos seria desobrigado ao ritual constrangedor, marcar-se em pele com a tinta azulada de almofada de carimbo que o taxaria tal qual qualidade de carne de rebanho bovino abatido e pendurado em frigorífico gelado, tal qual o carimbo azulado que pode ser encontrado batido em bandas inteiras de bois abatidos e limpos, exangues, dependurados em finais de uma linha de produção em matadouros exportadores, os carimbos sanitários do serviço nacional de inspeção dos produtos de origem animal destinados ao insaciável consumo humano. Portador de mancha azulada de carimbo ao dedão da mão, para muitos uma vergonha a ser escondida e a ser disfarçada. Vergonha não haveria de ser, nem honradez, mas bem poderia ser um tipo qualquer de honra levar a mancha azulada ao dedão da
mão a atestar clara idoneidade moral em um país de tantos e tantos togados e graduados, doutores e pós-doutores, estes sim maculados por sujidades bem menos visíveis, porém mais repreensíveis, ocultas, o carcomido, sujidades de uma ruína moral decorrente de suas condutas éticas elitistas questionáveis. Analfabeto não tem a obrigação de votar, mas vota, a grande maioria vota. Semianalfabeto vota, e então o contingente se multiplica forte, parcela considerável da população brasileira capaz de ler, mas não de compreender, então que, na prática, de fato não lê. Reconhecer os dez números possíveis não significa saber valores matemáticos, ao menos isto, estaria de bom tamanho anotar os números dos candidatos às eleições, uma simples sequência numérica que poderia ser copiada a custo e carregada no bolso, consultada à cabina de votação, tais quais as apostas esperançosas que eram feitas e pagas em casas lotéricas, a fézinha mensal concorrente ao almejado sorteio milionário transformador de vidas e de almas. Não há de saber votar quem pergunta aos integrantes a serviço voluntário na mesa de votação em quem deva ou em quem não deva votar. Estes os eleitores mais ousados, os que chegam à seção logo perguntando, afirmando pilheriar do processo como um todo, um processo inteiro a ser tratado de forma jocosa e despreocupada. Mas há também os menos ousados, os eleitores que verdadeiramente se confundem, tentam fazer certo, a coisa certa, erram, tentam novamente, mais uma vez, se enervam, ruborizam, mais uma tentativa, e acabam por questionar aflitos as pessoas circundantes e à vista, as mais próximas. Por fim se dirigem aos outros no recinto, pelas proximidades e aos lados,
incomodados, avisados previamente de que o tempo disponível para o ato de votar pode expirar em alguns minutos e está exibido na urna eletrônica em pleno e marcado certeiro andamento. Gente que trata todo o processo com desfaçatez, com escárnio, e gente que simplesmente não tem realmente a mínima noção em quem votar ou deixar de votar em crucial derradeiro momento de decisão, defronte à cabina de votação e urna eleitoral eletrônica. Um pouco a mais daquilo que agrupado consista o suporte da citação de que o brasileiro de fato não sabe votar. Frase popular dita e constantemente repetida em épocas de eleições nacionais. Frase popular conhecida que inspira um deprimente estado de ânimo castrador de qualquer esforço cidadão positivo otimista. E não se tratava do não saber votar por não se recordar número de identificação, nome ou partido político de determinado candidato ou candidata, não isto, o que pôde se presenciar foi o não saber votar puro e simples, o desinteresse, clara desmotivação, descrença. Afinal não saber votar é bem mais do que a má ou impensada escolha errada por determinado candidato. Não saber votar, segundo dizem, é também a incapacidade de percepção de uma situação em que, eventualmente, a melhor opção viável seria eleger o menor dentre dois males nitidamente ruins. Não saber votar seria escolher candidato acreditando em promessas de campanha impossíveis de cumprir. Promessas muito revolucionárias e transformadoras, choques de gestão improváveis e de execução demasiado onerosa, pouco praticável. Bem pouco realizável uma intenção divulgada em campanha eleitoral que
dependa de uma confluência enorme de fatores positivos contributivos muito bem alinhados e dispostos em sequência lógica. Haveria mesmo a obrigação de votar, mesmo em desacordo com a própria consciência, em seu desfavor? Participar de uma fraude, um engodo, todo um contexto ridiculamente orquestrado para aparentar vernizes e galvanizações de acabamento. Mais um fardo a ser carregado nos ombros pelo cidadão eleitor ao se ver obrigado a interessar-se por um método que sucessivamente tem falhado ou, no mínimo, apresentado resultados pífios que não compensem o esforço, que sequer compensem o dispêndio de tempo e energia que poderia ser mais bem aplicado em tarefas construtivas outras. Deixar de executar tarefa importante para assistir a debate entre candidatos eletivos em rede nacional de televisão. Mais uma, de tantas outras vezes, em que o cidadão era chamado à obrigação cívica, o voto, mais uma vez em que o cidadão era intimado a dar a sua contribuição e parcela devida, o seu quinhão, intimado a seguir o rito de dever cidadão, mais uma, de tantas outras vezes, era instado a dar a sua quota-parte e parcela de contribuição. Deve ser sopesado que não somente o país tropical sulamericano cortado simultaneamente pela linha do Equador e pelo Trópico de Capricórnio é o objeto nítido de galhofas rocambolescas quando o assunto é o universo da política partidária. Não o único, seria demais se esperar que não houvesse inspiração a ser exportada aos demais povos e culturas, mundo afora, exportações de ambos os lados. O comportamento marcante de representantes políticos quase sempre foi, inúmeras vezes, muito mais bizarro e
controverso do que seria de se esperar de um legítimo ocupante de cadeira de tão fundamental e influente importância. Ocorrências bizarras diversas eram verificáveis aos quatro cantos do mundo, mesmo em localidades historicamente experimentadas ao longo dos séculos, nações que guardavam um longo cabedal de erros e de acertos, de correções de rumos, situações extremas conflituosas, guerras avassaladoras que deixaram nada menos do que o cenário tétrico repulsivo de terra arrasada e de vidas ceifadas, golpeadas de morte. Necessário sopesar que tal país sul-americano não seria, nem de longe, detentor de mínima exclusividade no quesito candidaturas bizarras, mas a situação em curso parecia fortemente favorecer a replicação de um modelo o qual, ao bem da sanidade mental e da sobriedade de uma pessoa, muitas vezes se expõe como a alternativa mais coerente e sensata realmente o não prosseguir em tentativas vãs de um quase impossível processo de compreensão e entendimento. Difícil entender certas coisas, candidaturas de concorrentes esdrúxulos, pouco menos difícil se avaliados os benefícios que um político de carreira angaria caso eleito uma única vez que seja. Mais penoso, portanto difícil, é o assumir que todo e qualquer político de carreira eleito democraticamente é um reflexo do próprio eleitor, seu reflexo em espelho, o defeito de caráter que é prontamente notado nas outras pessoas, mas nunca na própria e íntima personalidade envergonhada. O seu próprio reflexo em espelho embaçado por escárnio, galhofa, e pela ausência de verdadeira consciência proativa cidadã.
Seria de se esperar que, de fato, fosse razoável a afirmação de que parte considerável dos brasileiros não sabe votar. Não seria sem motivos, afinal, talvez injusto colocar em seus ombros verdeamarelos mais uma de tantas pechas e tantos desqualificadores. Os candidatos que se apresentavam sucessivamente em cada novo pleito eleitoral haveriam de assumir a sua parcela de responsabilidade. Eles que cessassem o ciclo vicioso constituído há tempos que poderia ser bem resumido em um hábito adquirido e reproduzido geração após geração. O sugar privilégios e remeter à população a maior parcela das falhas e insucessos, sempre aos outros as responsabilidades por fracassos em necessárias e demandadas mudanças de rumo e transformações que contribuiriam para melhorias puras e simples relacionadas à qualidade de vida e ao bem-estar de todos ao redor. Fazer-se ocupante do lugar de candidato a concorrer democraticamente, fazer-se em imaginação presente à tela de demonstração de fotos preto e brancas, imagens, números e partido político identificável em urna eletrônica. Imaginar-se, naquele momento, concorrente em futura próxima eleição quatro anos à frente, tudo isto valeu a pena e lhe deu experiência e vivência, veio a aumentar ainda mais o desejo de brevemente candidatar-se de fato e de direito. Trabalharia desde então, com mais afinco e foco, para tentar pavimentar de forma sólida e segura um futuro caminho a ser trilhado e arduamente percorrido. Mesário voluntário em eleições, atividade diretamente relacionada à meta planejada em curso, mas foi alguns meses depois quando, acreditando ser intimado oficialmente justamente devido à apresentação como mesário voluntário, teve conhecimento
da convocação para composição de grupo integrante de tribunal do júri da comarca judiciária de sua região de residência fixa. Idoneidade moral acima de tudo, assim propagandearam, seria pois um honraria tal reconhecimento, valorizada e carimbada expressamente, passível de consideração em critérios outros, o desempate em concorrência a concurso público, o direito à cela especial caso detido momentâneo ao sistema penitenciário. Um privilégio e honraria seria a convocação a integrante civil de tribunal do júri, assim disseram. Apreensivo e às escuras, João Pedro para lá se dirigiu, o fórum de justiça de comarca local, não distante de sua residência, dia e horário combinados, convocação para duas semanas de serviço, a primeira quinzena de trabalhos concentrados do mês. Processos atrasados como seria de se esperar, muita gente inocente sem julgamento, aguardando absolvição, ausência de provas de condenação, mesmo assim detidas preventivamente, há anos, alguns em regime semiaberto, alguns outros respondendo em liberdade, com a constante preocupação em mente: ser ou não ser considerado culpado e vir a cumprir penalidade por isto. Uma preocupação que se arrastava por anos e anos a fio, em todos os fóruns de comarcas do país, preocupação e apreensão também das vítimas e parentes delas, sem ao certo saber a quem seria, ou não seria, verdadeiramente imputado determinado crime ou contravenção. Horário bem incomum de apresentação, logo antes do horário de almoço. Respeitou fielmente dia e horário, chegou com mais de trinta minutos de antecedência, limpo e apto, disposto, apreensivo a princípio, o primeiro dia, meio às escuras, afinal tal quais todos os
outros presentes, nenhum deles carregando semelhante experiência de convocatória anterior. Horário bem incomum, somente ao final do período matutino, convocatória por duas semanas inteiras. Soube ser tal horário de apresentação do corpo de jurados decorrente da logística de deslocamento de presos, a grande maioria dos julgados em regime fechado, em prisão preventiva, que por determinação e praxe demandava dois agentes penitenciários acompanhantes para cada detento em saída temporária, fosse tratamento médico, questão jurídica ou burocracia adicional qualquer. Primeiro dia de apresentação na sala do tribunal do júri no fórum judiciário local. Ligeira apreensão, visível em todos os presentes, um auditório confortável, recurso público bem usado, ao que aparentava ser, boa climatização, cadeiras confortáveis, adequada iluminação e perfeito sistema de som. Não pôde deixar de notar logo à primeira impressão, antes de tudo, muito antes de reparar a boa iluminação ambiente e sentir a maciez da cadeira disposta em fileiras no auditório, ninguém poderia deixar de reparar. Imenso acima da mesa principal no palco do auditório, logo acima da posição central onde se situava o juiz de direito, muito explícito e nítido, um Jesus Cristo devidamente crucificado, sua cruz portanto bem maior do que o próprio mártir, imensa, deveria ter quase um metro desde a base ao topo. Uma bela obra de arte, mesmo à distância seria possível julgar, mesmo a quem se situasse em posições intermediárias do auditório, uns quinze metros de separação, inegavelmente uma bela obra de arte, mas não uma peça exclusiva, totalmente artesanal e única, impossível sê-la. O enorme crucifixo devidamente habitado era dos comuns em muitas repartições públicas, notava-se, a pequena placa
ornamental superior afixada, indicando o acrônimo INRI, o mesmo jeito de Cristo, mesma posição na cruz, cabeça levemente tombada ao seu lado direito, mesma tez, sua pele, compleição, constituição física, o mesmo lenço à virilha e o mesmo cabelo e barba escuras. Desde sempre João Pedro suspeitou que os cristos loiros de olhos azuis eram assim representados em quadros enquanto vivos, uma vez torturados e mortos eram representados pouco mais morenos e dotados de barba e cabelos negros. Sempre suspeitou que alguém, nalgum dia, deve ter posto o Cristo na cruz loiro, aí então achou que não ficaria muito bom um loiro dependurado, que contrastava com o sombrio da situação, desviava atenção, então trocou o boneco por outro melhor e mais apropriado, de barba e cabelos pretos. Seria sim um belo artesanato, mas certamente não de fabricação exclusiva e de peça única, moldada à mão. Vaticano, cúria local, padre aposentado, voluntários em prelazias, freiras reclusas, alguém haveria de produzir em série numa linha de produção quase industrial semelhantes peças de artesanato, sempre achou. Em rápido cálculo mental supôs, somente em fóruns judiciais, um a cada dez ou vinte municípios mais ou menos, cálculo rápido sem base confiável, estados brasileiros que contavam seiscentos municípios, no país dezenas de estados, centenas de demais repartições públicas onde a mesmíssima cruz se fazia nitidamente e invariavelmente exposta. Algum fornecedor estaria faturando a movimentar a economia. Se ao menos a enorme cruz não viesse a espatifar ao chão, algum dia fraquejar a bucha de parafuso incrustado à parede, o enorme crucifixo e seu peso em queda livre, completamente a espatifar, então ao menos a bela peça não exclusiva de artesanato haveria de durar por uns trinta anos ou
mais, isto caso não houvesse mudança estratégica de localização física do fórum de comarca local. Haveria de ser resina plástica, produção em série, todos cristos muito idênticos, mesma cor, mesmo lustro, os detalhes da coroa de galhos com espinhos tal qual faixa colocada à testa, cada mínimo detalhe, os enormes pregos rústicos de ferro perfurando mãos e pés que se apresentavam devidamente amarrados à cruz de madeira, uma acurácia científica, cordas para efetivamente sustentar o peso dos corpos dos infelizes crucificados, o prego rústico de ferro a perfurar-lhes as carnes seria tão somente uma dose de sadismo adicional. Mesmo a quem se situasse a quinze metros de distância seria perfeitamente possível divisar os filetes de sangue vermelho a escorrer pelas faces do Cristo, lá principalmente, mas o artesão em linha de produção em série não falhou e botou um pouco de sangue a escorrer também das mãos, e, principalmente, respeitando a acurácia bíblica, uma quantidade maior de sangue a escorrer do ferimento de lança fatal ao peito. Um alienígena qualquer que viesse a conhecer o planeta Terra em uma turnê pela galáxia haveria de se espantar. Talvez se espantasse um pouco menos com a imagem retratada tal qual posada para fotografia, em proximidade, os retratos de Jesus Cristo loiro de olhos azuis e tez clara em plena região não compatível e em sua origem membro de etnia geneticamente muito diferente aos nórdicos. Após as sucessivas gerações de habitantes todos os terráqueos contemporâneos se acostumaram, a grande maioria presente ao auditório diria nem haver notado o enorme crucifixo parafusado à parede do recinto em fórum, sequer notá-lo, havia tempos virara peça de decoração e composição do rito formal,
quase uma expressa obrigação. Talvez o alienígena em turnê pela Via Láctea se espantasse menos com o erro crasso da retratação nórdica de um provável semita, mais impactante seria a insistência humana em perpetuar o sofrimento e a agonia do mártir dos cristãos, a insistência em eternizar a imagem do instrumento de tortura utilizado para seu flagelo, expor seus detalhes, o sangue que tal instrumento de tortura era capaz de verter arrancado dos infelizes que fossem pregados em suas madeiras cruzadas. Os contemporâneos se acostumaram, inúmeros e variados crucifixos espalhados por todos os lugares, alguns não exibindo um torturado em agonia ou recém-morto, apenas as madeiras cruzadas, alguns o representando em menos detalhes, entalhes simplórios de madeira pura, outros tantos sustentando bonecos de resina em perfeita proporção e acurácia histórica, o infeliz crucificado mais famoso de todos os tempos. Para todas as sucessivas gerações posteriores seria perpetuado o momento crucial, os últimos instantes de vida daquele que parte dos homens considera o filho de Deus em carne e osso, ele mesmo, nada menos, o filho humano legítimo de um deus onisciente e onipresente, entidade cósmica imaterial e incompreensível, o criador de tudo e de todos, arquiteto do universo e de todas as dimensões físicas nele contidas. País predominantemente cristão, gradativamente menos e menos católico apostólico, mas ainda cristão, evangélicos pentecostais em clara e impressionante ascensão. Jesus Cristo seria, portanto, figura facilmente identificável. Caso apresentados a alguém retratos aleatórios, seria ele muito provavelmente o mais reconhecido e identificável dentre milhões de outras personalidades conhecidas, o mais identificável certamente, o que não deixava de
ser um fato um tanto bizarro, identificá-lo por uma aparência que jamais demonstrou. Nem todo deísta é cristão, compreensível que a maioria o seja, mas seria coerente se esperar que em um país democrático e justo, que reconheça sua população, o conjunto de seus cidadãos, que reconheça sua geografia e história, não houvesse pois uma única representação carismática em detrimento de outras. Justeza seria budistas, hindus, judeus, muçulmanos, umbandistas, rastafáris, cada qual pleitear sua representação própria de figura divina, ou, no caso dos politeístas, de todo o panteão composto por dezenas, centenas ou milhares de deuses que mereçam dignamente ostentar a elevada condecoração. Alguém viria a alegar razões muito pragmáticas e logísticas para não instalar tais e tantos adereços às paredes das repartições públicas de acesso livre oficiais. O auditório de fórum de comarca local comportava adequados confortos e segurança: iluminação, climatização, sonorização, detector de metais e scanner de volumes de mão à entrada, até mesmo sprinklers contra incêndio no forro do teto adicionais aos extintores bem sinalizados, distribuídos e brilhosos aos cantos. Dinheiro recolhido de pesados impostos haveria de ser bem utilizado, impensável uma sessão de júri popular em que os presentes incomodados pela temperatura ou abafamento do local não pudessem dirigir devida concentração aos casos descritos em relatórios e argumentações de advogados e promotores aos quais tivessem acesso. Para os representantes das leis, obrigatório era a adequada vestimenta. Toga e beca confeccionados em tecido leve, um tipo de cetim negro brilhante, às vezes fosco, sempre negro,
pompons que João Pedro supôs um tanto ridículos, penduricalhos a enlaçar o pescoço, mais pareciam enfeites cafonas de pesadas cortinas antiquadas. Ainda os invariáveis terno e gravata dos magistrados e advogados, muito pano a ser vestido, mesmo se dia quente, muita indumentária, um ritual e liturgia coroado por fartas e excessivas distribuições de vossas excelências, ilustríssimos, e os pronomes de tratamento ainda mais ousados: vossas excelentíssimas. Bem próxima à enorme cruz de centro de parede acima da cadeira central do juiz de direito havia a bandeira nacional, também esta invariável, sempre presente. Houve tempo quando uma foto colorida e muito bem produzida do presidente da república se fazia também presente próxima à bandeira nacional, emoldurada e parafusada à parede logo acima desta. Não mais. Crucifixo com mártir ensanguentado ao centro, bandeira nacional em mastro de lança ao lado direito do juiz de direito, lado esquerdo da plateia em auditório, respeito e consideração ou não a alguma liturgia adicional que pregava posição à esquerda ou à direita. Talvez. Perfeita combinação: Deus, pátria e família, nesta ordem, a se supor que seria formalmente negado a qualquer dos integrantes da mesa, juízes e promotores, secretárias, advogados, cidadãos jurados, plateia, a todos os presentes negado o direito possível de uma criação e amadurecimento em ausência de família biológica ou de adoção. Ao primeiro dia de apresentação, dia e horário descritos em intimação oficial impressa e entregue em mãos pelo carteiro, ao primeiro dia de presença João Pedro foi logo tentado a pedir dispensa. Inspirou-se naquilo que presenciou: uns trinta por cento
dentre as pessoas convocadas logo se dirigiram à frente do auditório quando instadas a solicitar eventual dispensa. Mãe com criança pequena de colo, trabalhadores braçais alegando trabalho informal como autônomos incapazes de abrir mão da paga diária que compraria o arroz e feijão do dia para suas famílias. Vários casos, questões atuais comprometedoras de saúde, estados febris, o que a justiça redigida permitiria como alegação de justificativa de dispensa foi tentado pelo grupo afoito de vinte pessoas ou mais ao auditório. Após um primeiro afunilamento sobraram cerca de trinta pessoas. O mínimo para que o juiz ou juíza de direito incumbido dos trabalhos do dia iniciasse a sessão seriam quinze integrantes. Destes, somente sete seriam sorteados para integrar o corpo de jurados, sempre este número ímpar, para que não houvesse possibilidade de votações empatadas. De parte da defesa dos acusados, os advogados contratados ou os nomeados representando a defensoria pública, cada qual teria direito de recusa de até três sorteados ou sorteadas, possibilidade esta realçada no discurso de abertura do juiz de direito da sessão como uma reconhecida estratégia de defesa dos advogados ou da acusação do Ministério Público, estratégia em função de foro íntimo não constituindo demérito aos jurados recusados. Uma estratégia de julgamento certamente, se comprovou. Logo à primeira sessão, crime de feminicídio, a defensoria pública de defesa do réu dispensou três mulheres sorteadas a compor o júri, ao passo que a acusação do Ministério Público dispensou três homens sorteados. Pelo visto a estratégia da acusação claramente entendia como mais
sensíveis as mulheres para julgarem e condenarem um crime passional cometido por marido intolerante contra sua própria mulher. As chamadas de comparecimento em turmas. Havia tempos João Pedro não pronunciava em alto e bom som a palavra presente. Lembrou-se. O servidor público auxiliar da sessão leu e salientou normas e procedimentos ao primeiro dos dias de trabalhos no fórum. Que os presentes ao auditório levantassem a mão bem ao alto e pronunciassem em claro e bom som a manifesta presença, sob risco de terem falta anotada. Assim foi. Mais um dos símbolos míticos que brusco se fez presente, apareceu do nada, como magnífica mágica, símbolo mítico projetado em quadro branco à parede, logo ao lado do enorme crucifixo. Semiótica implacável. Fez-se presente quase do nada, do etéreo, vindo tal qual magnífica mágica, tal qual proveniente de poderio diáfano ambientado em outra dimensão física. Implacável, fez-se brusco, projetado por dispositivo audiovisual afixado ao forro do teto do auditório, projetado em imagem luminosa ao lado do enorme crucifixo central da parede, pouco mais distante a formal e respeitosa bandeira nacional recolhida em mastro de lança, de pé. Bem ao lado destes dois ícones fez-se presente brusca a imagem projetada do logotipo da Microsoft. Ícone adicional a ser incensado, eterno louvor e idolatria. A lista de integrantes convocados ao tribunal do júri, lista em reconhecíveis quadriculados, o programa Excel projetado para acompanhamento da chamada oral aos presentes no auditório, tarefa a ser executada pelo servidor público do fórum de comarca, procedimento obrigatório durante a abertura das sessões de trabalhos diários.
Pronunciar a palavra presente em alto e bom som. Lembrouse. Havia tempos não a pronunciava, bastante tempo. Em memórias voltaria anos ao período de estudos acadêmicos, boas e más recordações. Confirmou presença. Duas semanas de convocação, de segunda a sexta-feira, dia e horário combinado, lá compareceu religiosamente sem atrasos, sempre calculando quinze minutos de antecedência, calculando tempo de condução, possíveis atrasos, eventual trânsito excepcional a enfrentar nas vias de acesso e proximidades. Sempre um hábito respeitar a pontualidade, um hábito responsável portanto, haveria em tese de ser ele um bom e digno representante político-partidário caso eleito. Ao menos quinze presentes para viabilizar o início da sessão de júri do dia. Chamada realizada, tabela Excel devidamente digitada e à mostra de todos no auditório, projetada em tela ao lado da cruz santa e da bandeira verde, azul e amarela, símbolo nacional definido por lei federal. Penetrou o espaço disponível da parede, a convite, o logotipo da implacável Microsoft, maior empresa privada do planeta Terra, maior faturamento global, ou bem próxima disto, contínua aprisionadora e perseguidora de seus usuários que porventura cometessem pequenos ligeiros deslizes e ousassem compatibilizar programas ou recursos que não fossem os formais e burocraticamente aceitáveis, os programas prescritos segundo as políticas e gerenciamentos de uso legislados pela empresa multinacional. Cada presente teve nome devidamente impresso e colocado dentro de esfera plástica no interior de um compacto e intrigante globo giratório, dos usados em sorteios de bingos e loterias. De um mínimo de quinze integrantes presentes, se considerando a
possibilidade de três recusas estratégicas dos advogados de defesa e de mais três recusas estratégicas do representante acusatório do Ministério Público, haveria assim necessariamente de se compor o corpo mínimo obrigatório de jurados em número ímpar de sete. Cada qual a ocupar a sua mesa no tribunal em acordo com a sequência de sorteio e aceitação: primeiro jurado, primeira mesa à frente; até o sétimo jurado posicionado na mesa mais ao fundo do palco do auditório, o palco do julgamento propriamente dito. Uma sequência posicional que seria assim respeitada ao momento final de retiro para a sala secreta de apreciação e votação dos quesitos relacionados à sentença, eventuais atenuantes, e eventuais qualificadores a agravar ainda mais a pena dos acusados em condenação. Alegável estratégia dos advogados responsáveis pelos casos, seus critérios, subjetivos ou não, optar por dispensar mulher em caso de feminicídio, estratégia da defesa, ou optar por escolhê-las, estratégia da acusação, mas bastaria que um dos dois lados recusasse o sorteado ou sorteada para que este estivesse impedido de prosseguir e se dirigir à sua posição na mesa de composição do corpo de jurados do dia. Dispensar brancos caucasianos em casos de acusados negros, estratégia de defesa, recurso bem comum a ser aplicado, quase a totalidade dos acusados a vir ao júri popular era negra ou parda. De todos os casos levados a júri nas sessões de convocatória, as duas semanas consecutivas, segunda a sextafeira, um único julgamento por dia, nenhum único dos réus acusados poderia declarar-se sinceramente como branco. Incômoda estatística. Quem tivesse olhos de ver notaria claramente, um
cenário que estava bem à vista e escancarado para a apreciação e qualificação de todos os presentes, mais explícito impossível. Impossível ocorrer mera e aleatória simples coincidência. As coincidências muito explicáveis e avaliáveis, os diversos e recorrentes repetitivos estudos de caso. Impossível negar fato escancarado à vista de todos, bastaria ter olhos de ver, uma constatação muito simples e direta, pragmática, apareciam ao banco dos réus os negros e pardos, apareciam à cadeira central de juiz de direito os brancos caucasianos. Rcz, uma combinação muito improvável de consoantes, praticamente incompatível às línguas nativas dos ameríndios e mesmo dos latinos chegados desde o velho continente, gerações após o início das ancoragens das primeiras caravelas ultramarinhas. Opositores defenestradores e outras pessoas contrárias quaisquer às políticas públicas de compensação e isonomia racial, todos cidadãos a se manifestar. Todo e qualquer segmento da sociedade civil organizada a se manifestar, parcelas favoráveis e contrárias, sempre um assunto contemporâneo polêmico e fomentador de debates acalorados. Também os próprios representantes de minorias a alardear que não concordam com compensações, que a verdadeira isonomia seria nada menos do que o simples e prático tratamento igualitário, a se desconsiderar todo um contexto histórico. Sempre uma questão polêmica a suscitar e a fomentar debates apaixonados. João Pedro precisaria, mais do que nunca, afinar e ajustar a sua quase feminina sensibilidade, ajustar a sintonia fina, notar as sempre presentes sutilezas escondidas, cada mínima minúcia muito sutil porém muito reveladora. Uma bastante improvável combinação
de consoantes rcz, sobrenome da juíza de direito do tribunal de júri, sobrenome digitado em relatórios impressos de processos disponíveis aos jurados, a este sobrenome se somava o primeiro nome de batismo, nome brasileiro, mas somente brasileiro pois ao nome original europeu se ousou acrescentar uma única vogal ao final, portanto nome original estrangeiro muito comum que passou por processo de nacionalização tropical. Combinação de consoantes muito improvável em línguas de origem latina, e não seria apenas o jota que se pronuncia i, que tem o som de i, o Sonja muito estranho aos brasileiros que é pronunciado Sônia, ainda mais estranho o Tanja pronunciado Tânia, assim pronunciado mesmo em sua língua nativa, o jota com som de i, não este, que afinal é consoante, mas se traveste de vogal, possui a sonoridade de uma pura vogal i. Não este jota. Também não o v do português arcaico, a depender da colocação na frase lido como se u fosse, o v de jvstiça e de forvm que ainda se via grafado em prédios históricos antigos. Seria a metáfora da sopa de letrinhas de consoantes, rcz juntos e em sequência, uma combinação de letras muito improvável aos ouvintes latinos, assim como outras combinações quaisquer de consoantes, mesmo aquelas que tivessem sons parecidos às vogais, mesmo estas. Impossível não notar, a quem tivesse ouvidos de ouvir, a quem tivesse olhos de ver, João Pedro notou, sempre notaria coisas do tipo, não somente, notaria tudo a partir de sua sensibilidade quase feminina. Precisaria e deveria notar, aguçar e afinar a sintonia fina de sua percepção sensível e atenta, sobretudo naquele momento específico, às vésperas de executar a guinada marcante de sua vida adulta, seu plano muito particular e programado, calculado, o
planejamento para arriscar uma concorrência a cargo eletivo político-partidário. O desejo de, uma vez por todas, tentar fazer alguma diferença em sua sociedade de convívio, demonstrar a quem quisesse avaliar e presenciar que seria sim possível no Brasil exercer a política partidária contemporânea de forma diferenciada, honesta, produtiva e transparente. Incomensurável tarefa, assumido otimismo, enorme e talvez utópica ambição. Seria ato sensato de humildade e bom senso perceber-se um tanto arrogante enquanto desejoso a fazer e gerar alguma diferença dentre a sociedade de convívio diário. Seria realmente capaz? Perguntou-se. Sempre se perguntaria, um bom exercício, questionar-se, sempre o necessário e corretivo automonitoramento. Havia tempos não respondia presente em chamada oral, havia tempos não tomava como refeição qualquer tipo de sopa de letrinhas. Haveria disponíveis em supermercados as deliciosas sopas de letrinhas de sua infância? Um mecanismo contínuo de autoquestionamentos. Rcz compondo sobrenome, não notaria quem não o quisesse, portanto apenas mais uma de tantas descendentes de imigrantes, representante de multidões, contingentes diversos de variadas origens que formaram a amálgama de ourivesaria muito rica e rara da população latino-americana, não só a brasileira, os vizinhos argentinos que compõem proporcionalmente a maior comunidade de imigrantes italianos do mundo, maior do que a existente no Brasil. Os brasileiros que, precipitados e ufanistas, adoram divulgar e alardear dados estatísticos de topo de ranking mundial. Latinos seriam desabituados às pronúncias de sequências consonantais tanto quanto os anglo-saxões à pronúncia da
combinação sequencial entre ão e til. O ão anasalado da palavra nação a eles tão incomum, talvez menos incomum aos vizinhos franceses, contínuos frequentadores e praticantes de falas anasaladas, o nariz agindo em conjunto aos lábios, tanto quanto aos britânicos e espanhóis a carne da língua agiria em conjunto aos lábios e dentes, porém em situações bem distintas de determinadas palavras e dicções. Haveria de ser fato significativo, não apenas mera casualidade, bem mais do que isto. Na prática preto e pardo ocupava banco dos réus e branco caucasiano ocupava cargo de juiz ou promotor. Alguns advogados que poderiam compor a categoria de pretos e pardos, alguns, mas raramente ocupavam as posições mais centrais e hierarquicamente superiores dentre a mesa de componentes togados formais e institucionais do tribunal de júri. A dita alta magistratura, os poucos escolhidos, os submetidos a um processo social rigoroso de sequencial afunilamento e refino, a nata separada dentre a assim assumida alta magistratura que por vezes não se comportava tal qual leite de origem que seria, porém mais como o óleo que jamais se mistura à água. O leite branco e puro, sua nata refinada, película superficial dele separada a calor, outro simbolismo, semiótica implacável sempre a atuar e não percebida. Impossível não notar o leite branco puro da tez de juízes e promotores, raro o café em proporções miscíveis a ele. Graus distintos, desde quase o café escuro puro até o café com leite em escalas diversas de pigmentação, mas sempre e constante o café com leite, mais ou menos escuro, mais escuro dentre os representantes que se apresentariam em sessões sucessivas de tribunais do júri, processados a ocupar tímidos e
cabisbaixos o banco dos réus em constrangedores julgamentos públicos. Leite branco puro, pureza, nutritivo alimento rico e divino, as pedras que jorravam leite e mel aos escolhidos em peregrinação pelos desertos do Oriente Médio, as terras prometidas abençoadas por Jeová descritas no Antigo Testamento. O mesmo leite puro e raro da tez dos cristos em retratações tais quais posadas imóveis para fotografias, um Cristo leitoso loiro de olhos azuis. Este enquanto retratado tal qual fotografado por um profissional imaginário, que jamais existiria no planeta em sua época, mas ao menos não o Cristo de cabelos e barbas pretas que aparecia pregado torturado e flagelado na enorme cruz aparafusada na parede do auditório do fórum de comarca, logo acima da cadeira central do palco de magistrados, logo acima da posição hierárquica superior, a leitosa e solícita juíza de direito empossada. Muito injusto reputar à juíza ou aos seus ancestrais qualquer parcela de responsabilidade pela desigualdade social de etnias e origens que se verificava no país desde várias gerações, longe disto, João Pedro jamais o faria, mas ao mesmo tempo era implacável em seu pragmatismo e avaliação desapaixonada, implacável quando o momento seria o de pesar teoria e prática, exemplificar, avaliar tais fatos que, de tão nítidos, brilhavam a ofuscar as faces das pessoas. Bastaria ter olhos de ver e ouvidos de escutar. Com o passar do tempo muitos não mais dariam tanta importância, haveria fato novo a puxar para si a demanda por atenção, mas ao que tudo indicava, por algum tempo ainda seria citado como referência o famigerado sete a um da Copa. Um sete a
um mais para o oito a zero, mas ficou entregue como sete a um. Chegou a tomar a proporção do nine eleven para os estrangeiros, outra combinação sórdida de números muito referenciais e facilmente identificáveis, que pouco aderiu à memória do brasileiro acostumado com o padrão de data local, não o nove do mês nono, setembro, antes do dia onze, mas sim o formato nacional do onze de setembro. Os norte-americanos jamais relacionariam o significado de sete a um, jamais, tão preocupados que são com a própria geopolítica interna, a ponto de confundir nomes de capitais importantes dos países do mundo e o espanhol falado em países sul-americanos como a língua oficial brasileira. Mais do que uma piada de mau gosto, parecia ser fato corrente real, os estadunidenses historicamente dedicaram desproporcional atenção e estudo às geopolíticas próprias muito internas e muito nacionalistas. Característica positiva ou negativa, desejável ou não, reprovável ou louvável, o fato é que conquistaram o mundo. Tanto quanto a Alemanha, do sete a um, conquistou a Europa. E conquistou muito bem conquistada, seria quase a Europa inteira mesma, algo que jamais admitiriam os franceses e os ingleses, algo que causaria compreensíveis revoltas e críticas indignadas, principalmente destes, os ingleses e os franceses. Para muitos avalistas e especialistas experientes em geopolítica a Alemanha de fato conquistou a Europa, economicamente. Um pouco menos, mas bastava ler a história mais recente do continente, uma Nação que, por duas vezes consecutivas recentes, foi esmagada e pagou o caro preço pela sanha belicosa, que por duas vezes recentes flertou com pretensões imperialistas e foi obrigada a abaixar e a curvar a cabeça submissa e vencida. Reconstruiu-se
rápido, não exatamente de um zero equivalente à terra arrasada, pois sempre possuiu a essência, o capital intelectual muito necessário e de valor incomensurável, indispensável a todo e qualquer sofrido reerguimento e refazimento de Nação. Disciplina, cultura e pragmatismo. Não haverá nação no mundo inteiro que se despedace e se desfacele uma vez possuidora de semelhantes alicerces solidamente fixados em pura rocha granítica. Fracasso militar, sucesso econômico. Hoje a potência europeia em Primeiro Mundo de economia mais pujante e influente, capaz de alterar o fiel da balança comercial e pesar os pratos metálicos de todo e qualquer medidor aferido e preciso de cargas determinantes ao equilíbrio político-financeiro global. Uma potência. Por mais um de século, contemporânea, filtrados os reconhecidos erros e acertos, um exemplo a ser seguido. Diz-se que mais se aprende a partir de fracassos, não de vitórias. O país tropical com ares ufanistas e megalomaníacos tomou de sete a um, na verdade um oito a zero disfarçado de sete a um, resultado final dado de bandeja para não vir a ser o mais provável e fácil oito a zero taxativo e sepulcral. A descendência de países europeus de etnias germânicas e povos afins haveria de carregar os genes da determinação e da disciplina duramente adquiridos ao longo de penosas experiências geracionais de seus habitantes. O fenótipo e genótipo, ambiente e carga genética fortes a atuar, solos férteis, terra negra rica em matéria orgânica acumulada, suficientes recursos hídricos, costa litorânea que trazia correntes marinhas fertilizadas pelo plâncton das águas mais frias e oxigenadas dos mares ao Norte.
Uma guinada. Sim, o país tropical demandava uma guinada, mudança de rumos, inflexão. Brusca não seria, os choques de gestão se mostraram desastrosos, choques de gestão política que em nada resultaram em termos históricos. Experiências havia, difícil e desgastante o assimilar pelo trato social que se vê bruscamente afetado por um choque de gestão política qualquer. Décadas de hábitos adquiridos, muito privilégio concedido injustamente que tende a acumular camada adiposa de segurança, uma segura gordura e poupança para o futuro, garantia, patrimônios que são consolidados em tempos de vacas gordas para quando se fizer a estiagem e o tempo das inevitáveis vacas magras. Mas sim, a nação como um todo, povo e país, precisavam de uma guinada histórica. O momento e a vez de João Pedro Datsi, a guinada de vida de João Pedro Datsi. Demais, excesso, a seguir esta lógica seria, também ele, um megalomaníaco ufanista de si mesmo e de suas capacidades, de suas próprias limitações e recursos insignificantes frente a todo um contexto muitíssimo mais amplo e complexo. Choques de gestão em geral não funcionaram da melhor forma possível, da forma a se esperar por qualquer avalista coerente a compreender a História em sua amplitude. Poderiam ter funcionado, talvez, em outras circunstâncias e outro momento, tão somente havendo como suporte um cabedal preestabelecido de fatores e características que viesse a sustentar tal brusca mudança taxativa de rumos e de humores. E, dentre este cabedal, sem qualquer sombra de dúvida, deveria necessariamente estar contido o indispensável, o significativo, o precioso e imaterial soberano capital humano. As gentes, povo, massa, contingente majoritário dos campos e das cidades, os verdadeiros consumidores
de gêneros básicos à sobrevivência, os que comiam a combinação arroz e feijão no Brasil, farinha de mandioca em sua porção Norte e Nordeste, os que consumiam batatas na Europa, fubás e outros preparados diversos de milho nos Andes, lá grãos multicoloridos, o milho-branco na África, o arroz branco no Sudeste da Ásia. Não houve revolução de rumos que não apresentou reflexos bem espelhados e muito nítidos e reconhecíveis às massas populacionais de qualquer determinada nação. A pauta e o discurso que lhes coube, argumento compreensível por tais contingentes majoritários, argumento facilmente digerível e assimilável. Caberia uma tentativa, a mudança gradual de costumes, deixar de ser o país do jeitinho brasileiro, da famigerada cultura da lei de Gérson, levar vantagem em tudo. Pobre Gérson, levou infâmia, se em sua época de futebolista ganhasse os salários dos astros atuais do esporte, não haveria de se aventurar a ganhar poucos trocados fazendo propaganda enganosa de um veneno que destruía pulmões, que consumia dinheiro, e ainda que lhe trouxe a desonrosa mácula da associação com a máxima de que os fins justificam os meios. Levar vantagem, sempre, e ainda por cima no comercial de tevê. Acabava a sua remunerada intervenção questionando o povo quanto a coerência e justeza de seu pragmático argumento. Estou certo, não estou? Desnecessário o questionamento, seu argumento estaria mais do que aceito e consolidado para o momento e para a situação atravessados pela nação. Haveria de estar mais do que certo, óbvio, não necessitaria nem sequer perguntar ao final de seu argumento televisivo, óbvio estar mais do que certo todo aquele que desejasse levar uma vantagem em tudo, afinal seria este o recurso mais básico e
instintivo de sobrevivência humana, legítima defesa, não careceria sequer perguntar ao povo, pergunta previamente respondida, uma redundância. Haveria de estar certo. Caberia a tentativa. João Pedro viu-se imbuído da hercúlea tarefa, causa perdida, assim diria refletindo em silêncio e em serenidade. Que fosse. De causas perdidas sucessivas acumuladas ocorrem duras e penosas transformações. A insistência, perseverança, não no erro em si, não no fracasso, mas a insistência na causa que ora se faz perdida, ou por outro lado, ora possa vir a se fazer uma causa ganha. Havendo meta nobre e consciente a ser alcançada, assim a havendo, que então venham as perdas, que venham as duras quedas. De tanto cair o corpo humano treina o cérebro a gerir a noção de equilíbrio e a capacidade motora de andadura, então o deslocamento possível sobre duas rodas, sobre uma única roda, sobre uma fina corda estirada em fenda de penhasco abissal. Quase o infinito do céu como longínquo limite. Sozinho nada mudaria, mas sentiu-se um componente essencial de transformação. Se condições preestabelecidas houvesse, talvez fosse bem-sucedido, talvez enfim algo de valor pudesse alcançar. Tantas e tantas máximas filosóficas e existenciais: as praias do mundo não se fariam sem a multidão sucessiva de grãos individuais de areia; tantas outras; a gota de água que, insistente e contínua, acaba por perfurar sólida rocha granítica. Talvez fosse bem-sucedido, ao menos o mais essencial possuía, a energia e a disposição para levar a cabo seu até então secreto empreendimento ousado. Caberia a tentativa. Toda e qualquer sociedade haveria de se sujeitar à evolução, ao progresso moral, ao aperfeiçoamento
desejável e construtivo. Imensa experiência vivenciada a participação enquanto mesário voluntário de eleições nacionais em pleito democrático e plural, imensa experiência a participação enquanto integrante de tribunal de júri a avaliar crime violento cometido com dolo à vítima indefesa. Vivências que tornaram perceptíveis ainda novos fatores, novas tonalidades e novas nuances de um mesmo cenário que sempre se mostrou semiaberto, que sempre esteve exposto parcialmente, e que somente em situações muito peculiares se faz possível desnudar em suas minúcias e implicações de correlações. A inventividade e multidiversidade de personalidades muito humanas e distintas. O advogado de defesa de um homicida confesso, bem remunerado para o exercício de sua função, simples e rápido foi o procedimento de convencimento, bastou boa retórica, a lábia dos que sabem fazer dinheiro em situações sensíveis quando o pagante não dispõe de suficiente tempo para avaliar em detalhes a proposta ofertada. A tentação em buscar uma mínima e improvável chance de absolvição ou atenuante de pena que pouco dinheiro do mundo seria capaz de pagar. Advogado de defesa contratado, bem remunerado, defensor público não era, em sua longa explanação a justificar o contrato firmado entre partes, deixou escapar que o homicida confesso era uma criatura descapitalizada, que vendera carro usado para custear seus honorários advocatícios, uma pessoa humilde de classe social inferior e renegada. Verdade reconhecida, sujeito desfavorecido de fato, não teve oportunidade em mãos para o estudo das letras ou sequer das contas, foi iludido a vender carro usado, seu único bem comprado após vinte anos de labuta braçal árdua e desgastante que lhe arrebentou o costado e
gerou tumor maligno na pele ressequida de tanta insolação ultravioleta. Verdade reconhecível, sujeito pobre de fato, foi presa fácil e indefesa, tantos e tantos advogados inescrupulosos, a mesma proporção de outros profissionais inescrupulosos, dos mais variados, um título de OAB alardeado como troféu e garantia impoluta de idoneidade moral, garantia de intelecto refinado e superioridade de caráter e conduta. Depois se soube, mesmo defensores públicos podem ter honorários ressarcidos, ademais custas de processo que não são poucas, alguém invariavelmente há de pagar cada hora contada despendida de serviço efetivo. Terrível afunilamento em concorrência justa a obtenção de título agraciado pela OAB, para bem poucos e seletos profissionais capacitados. Valeria mesmo alardear a carteirinha de identificação honrosa, invariavelmente contendo foto posada com terno e gravata formais, o mais formal possível e imaginável. Outros tantos advogados que retém documentos de cidadãos idosos Brasil afora a buscar um extenuante e longo processo de futura aposentadoria. Trabalhadores rurais analfabetos de pai e mãe, literalmente, que sequer assinam nome, seguindo a tradição mesma do pai e da mãe de criação, de praticamente toda a família diretamente relacionada. A mesma criação e crescimento, família numerosa, a lida com a terra, com o campo, terra e animais, bode e gado, mãos ásperas e calosas. Anos sessenta e setenta de século há pouco passado, épocas quando afirmar-se trabalhar sem exercer a força dos braços causava estranheza, seria uma profissão improvável, haveria pois de ser um doutor, pois tão somente, somente os doutores da medicina trabalhariam poupando as mãos de calosidades e
ressequidões, somente estes profissionais dignos muito valorosos e admiráveis. A partir de tal honraria seleta, carteirinha da OAB, portas e mais portas se abririam, possibilidades quase infinitas de se ganhar dinheiro, rápido e fácil, caudaloso, bastava formalizar contratos que eram possíveis e disponíveis aos montes. Um sistema judiciário lento e muitas vezes ineficiente, de excessiva burocracia e travamentos inúmeros, permissões aos recursos protelatórios múltiplos, o ato de postergar, contumaz procrastinação. O advogado de defesa do homicida confesso cobrou a paga de um carro usado em bom estado, único bem do acusado, a única coisa que ele, além de barraco medíocre de alvenaria rústica em área de invasão, conseguiu acumular em vinte anos de trabalho árduo e desgastante que lhe comprometeu a saúde do costado e das peles tumorosas em metástase. Imensa experiência de vivência em tratativas sociais a participação como integrante de tribunal de júri popular em comarca movimentada. Caso perdido. O infeliz réu poderia ter recorrido à defensoria pública, advogados bem melhores e mais sensatos do que o advogado diretamente remunerado por uma paga de venda de carro usado. O Estado via-se obrigado a prestar assistência advocatícia, todos teriam tal direito, um cidadão a ser julgado com a formal presença de advogado. Adorava-se propagandear a formalidade da lei constituída: “A Constituição da República – sempre com respeitosas letras maiúsculas – assegura em seu artigo 5º, LXXIV e artigo 134º, que todo cidadão que não tenha recursos suficientes para contratar um advogado sem prejuízo do seu sustento próprio e da sua família tem direito a um Defensor Público – mais
maiúsculas – natural para patrocinar seus interesses”. Advogados e juristas em geral adoravam, neste aspecto um hábito bastante salutar, adoravam as escritas, o rigor do português, concordâncias nominais, verbais, palavras pouco usuais e expressões em latim extinto, estas sim um imenso gozo adicional. Adoravam a confrontação e a defesa verbal de parágrafos grafados quase pétreos que uma vez colocados em papel viravam lei expressa, o suprassumo da lei constituída e da ordem pública.
3. Quando e como João Pedro Datsi passa a compreender o homem. João Pedro Datsi, ao exercer cargo eletivo político-partidário, queria dar a sua ínfima parcela de contribuição à sociedade, mas jamais reter para si a imensa responsabilidade de consertar o mundo. Conhecia o suficiente de história nacional político-partidária, de geopolítica mundial, o suficiente, não era pesquisador especializado, longe disto, seu ganha-pão outro. Nunca angariou tostão com política, sequer qualquer benefício, não estava eleito e definido pelo povo, o voto democrático popular, nem mesmo havia formalizado ainda candidatura oficial em legenda partidária, tudo eram planos, ainda planos, o seu desejo íntimo em dar uma ínfima contribuição, em alertar a sociedade o quanto pudesse, e expor que de fato alternativas e caminhos outros seriam possíveis. Coisas que mudam, evoluem, se aperfeiçoam, e outras coisas tantas que parecem nunca mudar, que se mostram sólidas tal qual rocha quartzosa. O tradicionalismo, a conservação dos hábitos e de
costumes, portanto um pétreo conservadorismo, conceito alardeado tão mal aplicado e tão confundido. Manter as tradições, as tradições familiares, manter as sagradas cláusulas pétreas intocáveis e inquestionáveis, jamais questioná-las, a transmutação de tradições em verdadeiros tabus a temer sequer a ligeira menção. Por tradição histórica dentre as famílias conservadoras de etnias patriarcais, a mulher da casa está recrutada para a criação da filharada e para a perfeita organização do lar, não deve trabalhar fora. Houve tempo recente em que não devia votar. Jamais votariam elas em um João Pedro Datsi que nascesse em início do século passado. Coisas que nunca mudam, parecem nunca mudar, positivas ou negativas, às vezes ambas as características positivas e negativas juntas e misturadas. Expressões em todas as línguas do mundo que não mudam, resistência cultural haveria de ser, louvável aspecto mantido pela sociedade: resistir aos estrangeirismos. Expressões que traziam diversas estórias e a história a reboque, que certamente haveriam de despertar em mentes mais curiosas uma fagulha ansiosa de interesse. O direito ao voto que as sufragistas brasileiras pleitearam em inícios do século passado estava na memória do tio falecido de João Pedro, disto ele muito seria capaz de contar em lembranças remotas, lembranças de seus dias de pequeno entregador de jornais na vizinhança a usar bermuda com suspensórios, meias brancas compridas e o inseparável boné clássico circular à la sobrinho do pato Donald que tanto influenciou a sua geração inteira. Coisas que nunca mudam, ou que levam gerações inteiras para mudar, então na mente particular das pessoas, em seus tempos de vida, na prática serão vistas como coisas de fato a nunca mudar.
O tio falecido sábio, pragmático e sagaz, não saberia o que significaria a expressão rebobinar a fita, voltar a fita, também não conheceria o significado de cair a ficha. Expressões que a atual geração e a vindoura também desconheceria, o sobrinho de João Pedro alfabetizado com recursos de informática desconheceria, haveria visto em vídeo no YouTube, mais por pura curiosidade, mas pouco relacionava uma expressão sem sentido, que jamais usaria, às fitas magnéticas K7 ou as fitas VHS, ainda bem menos relacionaria aos telefones públicos onde se depositavam fichas de metal como créditos de ligações em minutos, boa parte destes telefones públicos em conchas enormes, coberturas de fibra de vidro com o formato de enormes orelhas humanas, uma criativa inventividade da brasilidade tropical da época. Uma única geração e as expressões populares poderiam mudar, ou não, as gírias certamente, estas muitíssimo mais dinâmicas e efêmeras, coisas que pegam, caem em gosto popular, e tantas outras que pegam, mas só momentaneamente, aderem sazonais, em determinadas épocas ou em determinados eventos específicos. Soar o gongo ainda era de conhecimento popular, também madeira ou prata de lei. Poderia se alegar que eventualmente algum evento esportivo pelos rincões do Brasil ainda guardasse como tradição e caráter conservador o pesado gongo lustrado metálico e o martelo específico utilizado para os toques de início e de fim de competição, o soar o gongo, o objeto de metal em detrimento de uma buzina eletrônica ou de câmara de gás comprimido, mas certamente não haveria no país qualquer lei atualizada oficial que determinasse que tal madeira de espécie de árvore nativa ou tal qualidade de prata lavrada em mina fosse
valorada e precificada à parte, em especial, por decreto monárquico ou presidencial. Compreender o homem e a sua sociedade. Quem no mundo, com convicção, seria capaz de afirmar isto em integridade? Que não fosse pois a compreensão total, que meia compreensão apenas bastasse, algo assim, nesta medida, ao menos achar que compreende o mínimo necessário, o suficiente para empreender a tentativa de uma contribuição, a sua tentativa muito particular em mostrar um caminho alternativo à política viciada tradicional, o seu método planejado em cronograma, sua meta de vida em breve futuro. Sobretudo, e mais do que tudo, o acreditar que, afinal, haveria a esperança de dias melhores aos homens e mulheres comuns inseridos e organizados em sociedade. A sociedade civil organizada. Compreender o homem e as suas inter-relações complexas, tarefa hercúlea e talvez infinita, a busca por conhecimento e por uma necessária e permanente atualização. Evolucionistas e exobiólogos renomados, a nata científica de pesquisadores livresdocentes mundial, os mais especializados em cada uma de suas áreas de estudo e análise. Todos aqueles que bem conseguem separar ciência de religião sem maiores problemas, e que tendem a afirmar que a vida racional no planeta Terra foi acidental, uma probabilidade ínfima que resultou em acerto casual, a chance parca de duas facetas seis em dois dados jogados aleatoriamente e exibidos repetidamente em três lances de arremessos seguidos. Uma chance, nada mais, um acidente evolutivo. Compreender o homem, portanto a Humanidade, o comportamento de homens e de mulheres, aquilo que pudesse
vislumbrar em compreensão, nada menos do que uma gigantesca e arrogante pretensão. Necessário seria o ler e o estudar, não apenas o passar de olhos ligeiros e desatentos, não só, ao menos o conhecer de extensos salões de bibliotecas inteiras forradas de prateleiras e estantes com livros grossos espalhadas mundo afora, em cada diferente cultura, em cada diversa etnia e condição geográfica. Ler e assimilar, não apenas o ato de ler pela simples ação mecânica em si. Muita coisa. Não seria possível a João Pedro afirmar que compreendia em sua completude a Humanidade, longe disto, seria o mesmo do que afirmar, em seu muitíssimo menor microcosmo, a sua singular vida cotidiana, que bem sabia sobre a maneira de agir possível em cada diferente situação que lhe aparecesse à frente cotidianamente. Raramente saberia, poucos saberiam, praticamente ninguém sabe antes que este fato fortuito, algo inédito e não experimentado, realmente ocorra. Uma reação de resposta frente ao evento surpreendente jamais antes experimentado que chega a causar estranheza até mesmo ao próprio protagonista. Tantos e tantos nuncas e jamais, o que se pensa em vida, coisas que antes eram tidas como de impossível realização, e que mesmo assim se vêm a realizar. Situações pouco previsíveis que aparecem à frente, eventos traumáticos, reviravoltas, revoluções, os muito marcantes pontos de inflexão que surgem repentinos em linhas vitais cronológicas de toda e qualquer pessoa minimamente consciente e ativa. Nunca e jamais: duas palavras temerárias a dizer. Haveria, afinal, esperanças coerentes e realistas em dias melhores vindouros? Poucos seriam capazes de negar as esperanças esvoaçantes. Ao que se considera, sem as esperanças
não se pode começar bem um dia rotineiro qualquer. Esperar que tudo não piore e que fique em um mesmo patamar ruim não deixa de ser um pensamento positivo e talvez otimista. A depender do referencial. Tantos e tantos nuncas que são pensados e planejados, e posteriormente negados de forma afrontosa, arrogante, pois em teoria há grande imperfeição ao prever situações extremas até então não vivenciadas em adequada intensidade. Imperfeito ou não, parcial ou não, diria supor compreender minimamente o âmago, a base, daquilo que chamaria de comportamento social de sua Nação de nascimento. Supunha, portanto, estar gabaritado e sabatinado a exercer cargo eletivo político-partidário em mandato democrático para quatro anos de uma plataforma de ações renovadoras, muitas delas inéditas, e outras tantas as quais seguramente, verificaria em breve, se mostrariam também na prática inaplicáveis e refratárias. O âmago do comportamento social de sua Nação de nascença guardaria bases comuns. Tais bases se assemelhariam em proporções distintas às bases genéticas muito comuns e verificáveis em espécies biológicas semelhantes. Citosina, guanina, adenina e timina. Tijolos estruturais comuns encontráveis em expressões de vida biológica. DNA, origem comum, o branco dos olhos compartilhado por todo e qualquer ser humano do planeta, porém muito mais do que isto, não apenas a aparência externa, mas sim o âmago, o cerne, argamassa primordial estrutural escondida e muito bem guardada em profundezas quase infinitas de tamanho e dimensão. O desconhecimento de outras culturas e geografias seria um parcial impedimento, traria verificáveis deficiências de compreensão.
Bem-aventurados são os gestores de escolas de formação de adolescentes que pensam e fomentam o necessário intercâmbio e os períodos de vivência de campo como um estágio obrigatório e rico de produtivos aprendizados e experiências. Um pensamento a vir à cabeça, outro. Algo a se fazer, a se implementar. Haveria de copiar o que viesse de nações mais experientes e desenvolvidas social e culturalmente. Sim, haveria de copiá-las. Apresentaria em breve futuro, à apreciação e votação por seus pares legisladores de câmaras estaduais e municipais, uma proposta orçamentária obrigando, ou incentivando a partir de isenções fiscais, todas as escolas secundaristas a matricular apropriadamente os seus alunos e alunas em intercâmbios de vivências internacionais de campo. Bem poderia ser uma das primeiras medidas legislativas a tentar implementar se, e caso, de fato eleito fosse. Caso e tão somente viesse a sê-lo. Encontrou-se com estudantes adultos jovens, aqueles que se classificariam como estudantes secundaristas em vias de ingresso em curso superior no Brasil, encontrou-os em época passada de proletário bancário, sua experiência profissional com carteira assinada por quase dois anos, escriturário de agência, trabalho interno administrativo, burocrático ao extremo. Passar a jornada diária inteira de trabalho a carimbar e a separar pequenos papéis comprovantes de movimentações financeiras de caixa de agência bancária, papéis e mais papéis, tudo aquilo que um robô bem programado faria melhor e mais eficiente do que um humano mal remunerado que enxergaria uma perspectiva de vida profissional futura se desmoronar em frustrações mediante tamanha monotonia e repetição.
Mas não foi em labuta diária repetitiva de interior de agência bancária quando, por eventualidade, encontrou outros jovens adultos, como ele, vindos de outros países e outras culturas bastante diversas. Os prós e contras de se trabalhar em instituição bancária privada nacional de grandes dimensões. Ao menos algum gestor mais visionário alertou seu comitê deliberativo de executivos investidores e de acionistas majoritários sobre a repetitividade e monotonia das vagas de trabalho oferecidas pela instituição bancária privada. Alertou-os, que tal mecanicidade quase robótica poderia vir a comprometer a permanência mínima desejável de trabalhadores contínuos em seus cargos funcionais primordiais. Algum sábio deve ter, em algum momento, alertado sobre tal cenário possível. Então entre os poucos prós do trabalho não seria de citação a parca remuneração, sem dúvida não, mas seria de citação a colônia de férias de funcionários do banco, local de interior rural bucólico e farto em atrações, verde natureza, uma fazenda à duas horas de carro da cidade grande, destinada exclusivamente a receber em bandos agrupados as frações programadas de funcionários do banco e os seus familiares diretos. Somente os familiares diretos, bem entendido, somente os filhos, cônjuge, ou os pais, óbvio que ao preço de uma taxa descontada em holerite de demonstrativo salarial mensal com os devidos impostos e tributos recolhidos antecipadamente em folha de pagamento. Pois lá os conheceu. Gente nova, como ele, gente vinda do Canadá e Austrália principalmente, alguns também dos EUA. Haveria de se perguntar por que canadenses e australianos, também neozelandeses, seriam tão voltados a rodar e a desbravar o
mundo. Bem-aventurados, seriam as novas gerações a fazer o planeta melhor, um lugar mais habitável e suportável ao menos. Isolamento geográfico, convivência com o infinito alvo de geleiras eternas, algo de significativo haveria a incutir naquelas personalidades um espírito inquieto e cosmopolita de permanente curiosidade e interesse. Conquistariam o mundo futuro tais jovens adultos não nacionalistas progressistas promissores. Na colônia de férias do banco onde trabalhava os conheceu, alguns, superficialmente, o quanto pôde pelo inglês limitado que possuía naquela época de também jovem adulto, recém-saído da adolescência, em época de ainda pouca efetividade e utilização das redes sociais digitais espalhadas pelas atmosferas mundo afora. Não viajou ao exterior, mas o exterior viajou a ele. Uma boa e produtiva experiência, bom convívio, a partir de então notou a extrema importância e influência que o perceber-se cidadão do mundo gera em cada único ser humano obrigatoriamente convivendo em sociedade. Cada único cidadão do mundo. Um âmago em comum: citosina, guanina, adenina e timina. Tijolos estruturais basilares encontráveis em expressões diversas de vida biológica. Origem comum, o branco dos olhos compartilhado por todo e qualquer ser humano do planeta Terra. Haveria de ser, João Pedro Datsi haveria de perceber e compreender, finalmente, após quase três décadas de vida, haveria de finalmente compreender e sentir que algo há de comum e sempre verificável dentre os comportamentos humanos diversificados. Arrogante e pretensioso achar-se detentor da compreensão abrangente, entendedor do todo da situação, mas nunca o fez, não se intitulou desta forma, não queria semelhante título, naquela época sequer
cogitava vir a algum dia futuro chegar próximo de disputar um cargo eletivo político-partidário. A cultura, vivência e histórico de vida, a crença religiosa, espiritual, materialista, o agnosticismo, a orientação sexual e opção comportamental poderia mudar, e de fato mudavam drasticamente entre diferentes geografias e contextos, mas haveria sim um âmago em comum, um tijolo estrutural, muito sutil às vezes, que com boa e desembaçada lupa de filatelista todos e todas poderiam enxergar. Perceber e afinar os sentidos agudos, uma sintonia fina, afiná-los todos a partir de uma mesma vibração no ar de tênue diapasão e sob um mesmo metrônomo acústico, um metrônomo de tiques que bem poderia ser o tão simples e presente marcar dos segundos inexoráveis de um sistema mecânico de deslocamento dos ponteiros em engrenagem de um relógio de parede. Afinando os sentidos agudos seria possível perceber nuances comuns, mesmo dentre duas culturas geograficamente e etnicamente tão distintas. Assim lhe parecia. O jovem canadense que veio em viagem de intercâmbio internacional assim lhe pareceu. Nítido se mostrou que ele possuiria também algumas raízes em comum, uma filigrana de essência aromático-oleosa que seria compartilhada globalmente e mutuamente. O mundo e a sociedade nele contido, um mundo multifacetado. O canadense nativo em intercâmbio internacional em colônia de férias de funcionários de banco privado em região de interior bucólico e aprazível. Ele não deixaria de se encantar. Os seus encantos, sua crença, também os seus muito particulares encantamentos, isto conhecia em profundidade. Uma sociedade multifacetada. Vindos de mesmo país de extremidade quase ártica
da América do Norte, duas realidades bem distintas. Nada melhor do que conviver, ainda que brevemente, com outros povos e outras sociedades, outros contextos de origem e de formação de caráter pessoal. Nada pior do que ver-se eventualmente limitado por barreira linguística qualquer. Tão bom seria se todos os povos do mundo dominassem e conseguissem se expressar adequadamente sob uma língua comum universal, e sob esta língua única internacional fosse possível comunicar todas as sutilezas e todas as poesias tão essenciais em momentos críticos particulares de balanceamentos razão-emoção. Uma linguagem universal viável e praticável, efetivamente verificável, de rápido aprendizado, o esperanto que nunca chegou de fato a se consolidar. Vindos de um mesmo país na América do Norte, uma viajante temporária de região de predominância francófona e um descendente direto de esquimós inuítes da vizinha Groenlândia, cada qual nascido em províncias separadas por distâncias continentais, em meio às extensas e férteis pradarias sazonalmente cobertas por gelo, províncias que adotam como língua oficial o inglês, o francês e ainda variações de dialetos nativos. Um legítimo descendente direto de esquimó inuíte de etnia de prática xamã em viagem de intercâmbio estudantil pelas paragens de área rural sulamericana. Impossível maior peculiaridade, um jovem que aparecia quase vindo do nada para afrontar e romper em colisão direta vários padrões e pré-conceitos locais. Também o viajante canadense, também ele guardaria escondidas semelhanças com seus pares nativos de culturas milenares de outros cantos do globo. Escondidas, pois bem guardadas e mantidas, escondidas apenas
por não visíveis em um primeiro momento desatencioso e destreinado. Notava-se. Para João Pedro Datsi em tenra idade, relembrando agora suas memórias íntimas, nada se mostrava complicado, bastaria ter olhos de ver e ouvidos de enxergar. Notase, por vezes, o desconforto e o desajustamento do descendente de etnia minoritária pouco habituado ao ambiente urbano, o estranhamento pessoal em um novo ambiente e uma nova cultura, em nova geografia e outros costumes, tanto quanto deveria o descendente de esquimós sentir-se em cidade grande agitada canadense, seu país de nascença, com fronteiras limítrofes geopolíticas delimitadas por povos imigrados muito posteriores, os seus diretos ancestrais inuítes originais praticantes de fantásticos rituais xamânicos. Estranhamento devido a um desajustamento social decorrente de parcial isolamento cultural, sua escola acadêmica oficial de formação situada em província distante e pouco relacionada aos centros urbanos mais movimentados canadenses, sua prática e conservação cultural, seus costumes e ritos, que adicionalmente não dispensariam a opção voluntária por complemento em formação acadêmica convencional e oficial. O intercâmbio internacional de conclusão de curso exigido aos estudantes candidatos pleiteantes à graduação em seu país gelado dotado de ensino de qualidade reconhecida e admirada. Peculiaridades comuns. Nada tão difícil o imaginar-se na pele do nativo canadense, ele e outros tantos nativos habitantes de geografias e contextos sociais parcialmente isolados do urbanismo intenso, todos eles haveriam de sentir o mesmo, a mesma essência, portanto um mesmo e singular sentimento íntimo. A felicidade ou
infelicidade tão universais e únicas, seja a emoção interior e muito particular, a mesma felicidade ou infelicidade, sentidas ambas a fundo, por uma princesa dinamarquesa em visita a Groenlândia ou por habitante nativo primitivo de etnia Kayapó em matas fechadas de selva tropical úmida brasileira. Peculiaridades guardadas em comum, mesmo sob contextos tão diferenciados. Realidades geográficas e étnicas aparentemente tão distantes. Homens e mulheres pareciam guardar uma mesma base de caráter e comportamento único, a mesma argamassa estrutural, tais quais bases genéticas invariáveis, o branco dos olhos, a possibilidade de sentirem a fundo a felicidade ou a infelicidade. Tão nítidos sentimentos, tão únicos, sejam vivenciados por analfabeto ou letrado, príncipe ou indígena, frugal ou sofisticado. João Pedro depois soube, saberia e compreenderia ao ajuntar os fragmentos de experiências, ao avançar em idade e em vivências cotidianas. Ajuntar informações e relatos, depoimentos, tudo o que pudesse vir a lhe auxiliar no futuro, um futuro que em épocas de proletário bancário a conhecer estudantes de outros países não era ainda visualizado em possível carreira políticopartidária. Viria a saber no futuro, ao ajuntar os fragmentos de experiências de vida, nalgum dia viria a compreender, os clarões de lucidez e compreensão que por vezes acometem as pessoas de forma esparsa, tais quais estalos secos de sobriedade e entendimento, relampejos que encaixam e alinham quase com perfeição algumas retas de pensamento às outras que estejam paralelas ou ladeadas.
Observador sempre muito atento, sempre muito intrigado em sutilezas humanas, viria a conquistar razoável entendimento, o contexto de seu país nato de origem que poderia ser extrapolado com algum acerto também aos demais e aparentemente diferenciados outros países e contextos regionais. Gostava de conversar com as pessoas, em especial com viajantes estrangeiros, uma habilidade, tanto quanto a relativa barreira linguística permitisse, um prazer social que em muito ajudaria qualquer postulante a cargo eletivo democrático. Haveria de notar, haveria de tentar ao máximo colocar-se na pele dos outros, sempre, em primeiro lugar, pensar o que faria se estivesse em mesma posição e contexto, mesmo lugar, pensar a forma de agir se lhe ocorresse o mesmo pela frente, a mesma situação. A sociedade guardava suas semelhanças, várias, nem tão exaustivo percebê-las, bastava ter olhos de ver e ouvidos de escutar, bastava possuir as ferramentas treinadas e disponíveis, a lupa de filatelista a lançar mão em situações as quais fosse necessária. Então compreendeu. Compreendeu que a rotina declarada pelo parceiro de trabalho proletário bancário, que tinha irmão envolvido com a criminalidade de periferia de cidade grande, guardaria semelhanças à rotina descrita por um determinado viajante francês. Um visitante temporário em intercâmbio internacional, excitado e aproveitando colônia de férias de funcionários bancários locais, que relatou em sofrível portunhol as periferias de Paris mostrando àquelas épocas casos de recrutamentos transcontinentais a grupos extremistas islâmicos. O mundo globalizado. Generalizando, muito difícil seria a um haitiano que coma restos e sobras catadas em lixo, a este sujeito imaginar
dificuldades de sobrevivência em Paris ou mesmo em uma Europa qualquer. Felicidade e infelicidade únicas e invariáveis, para um haitiano faminto ou a um cidadão francês de origem argelina desiludido e frustrado por uma perseguição injusta à sua crença e sua postura moral. A compreensão de um sujeito ordinário e comum, o irmão do parceiro de trabalho proletário bancário brasileiro, um periférico imerso e comprometido com a criminalidade de seu bairro, com seus fiéis amigos de infância e de criação. A final compreensão de que tal realidade guardaria nítidas semelhanças às de outros contextos e geografias, também de outras etnias e tradições culturais. Frustração e desesperança, carência de oportunidades, portas fechadas, preconceitos sobre preconceitos, diários, contínuos, que moldem em têmpera o caráter e a personalidade, desenvolver-se assim por anos a fio, infância e adolescência, início de vida adulta. Em belo dia ensolarado alguém chega a descortinar novos cenários bem menos sombrios, alguém inesperado chega a apresentar todo um enredo diferenciado, um novo alento de vida, um respiro, oxigênio a inundar os pulmões, um cenário bem mais otimista e esperançoso de futuro próspero. A estampa valorosa ao ser alguém valorizado, respeitado, ter honra e nome reconhecido, finalmente ser alguém na vida, alguém digno de nota, ser algo importante a valer a pena, valer a passagem rápida e até então insignificante pelo planeta e pelo mundo conhecido. Semelhanças nítidas e claras, ao menos para quem tivesse olhos e ouvidos treinados e sensíveis. O candidato esporádico à recruta fundamentalista islâmico a se deslocar às cruentas e sanguinárias ações na Síria e proximidades, por outro lado o jovem
negro de periferia capixaba deslumbrado e animado com o poderio e com a ostentação possíveis caso abraçasse e jurasse lealdade à facção dominante do crime em seu bairro de moradia. Poder e respeito, honra, lealdade, finalmente ser alguém reconhecido como algo palpável e útil, algo de valor, não mais como um simples mero bicho qualquer, quase um esquecido em sarjeta ao canto, desprezível, relegado a alguém que nunca fará diferença alguma, nada, só mais um número estatístico. Alguém que nunca será nada na vida, que apenas tentará trabalhos temporários braçais extenuantes e mal remunerados, uma espécie de nova escravidão moderna reservada aos pouco alfabetizados ou pouco pacientes às monótonas e desmotivantes aulinhas chatas em escolas públicas precárias repletas de desmotivantes parcos equipamentos e repletas de desmotivados professores mal capacitados. João Pedro Datsi gradualmente passava a compreender em parte o comportamento humano em seu contexto, tanto quanto possível, parte dele ao menos, sua amostragem particular de análise, o que haveria vivenciado e experimentado, o que haveria lido, visto e também escutado. Nada a incensar ou a idolatrar, nada a sobrevalorizar em santuário ritualístico de incensos refinados de resinas e em simbolismos otimistas. O que há de bom tende a não ser notado, tende a passar despercebido. Noticiário de televisão retrata novidade ruim e impactante, os choques diários que alavancam a sociedade e a fazem ciente de sua materialidade e imperfeição. Nela inserida, um comportamento egoísta em sua essência. O gene egoísta, ansioso por replicação, por garantir a sua carga preciosa de descendências, se necessário e quase
obrigatoriamente em detrimento de outros genes também egoístas e de outras formas de vida, quais elas sejam, seja um competidor, um cidadão ou um animal, vegetal, ou mesmo a não vida aparente de um recurso mineral. Tudo o quanto representar ameaça à sua tão própria e tão particular, tão única e egoísta sobrevivência, a permanência no planeta de seus genes, portanto a manutenção de sua estimada descendência geracional. Comportamentos humanos falhos e egocêntricos de cidadãos falhos e egocêntricos. Como seria de se esperar, nada de novo no front, a falibilidade e as imperfeições bem humanas que tão somente os incensários de idolatria procuram veementemente negar e sempre recusar. A falibilidade clara de caráter humano, imperfeição, seja vinda de pessoas simplórias ou vinda das oficialmente cultas, das primitivas ou das refinadas. A felicidade ou infelicidade tão únicas e tão imutáveis entre etnias várias, entre diferentes classes econômicas e diferentes contextos geopolíticos e religiosos. Tarefa hercúlea a compreensão, ainda que parcial, o entendimento mínimo do comportamento humano. Arrogante pretensão aos incautos aventureiros por tais paragens intrincadas. O egoísmo. Uma habitante moradora há anos de praia semideserta em litoral paradisíaco do Nordeste brasileiro, que seguramente passaria por maus bocados ao ter quase negado o seu banho diário em cachoeira de fresca água doce pura trazida de uma Mata Atlântica acima da costa litorânea. Quase negado, um transtorno, passaria por maus bocados, uma quebra abrupta de rotina, não mais poder banhar-se com tranquilidade tal qual fazia havia tantos meses em sequência diária sem interrupção. Por eventualidade um
grupo de turistas esporádicos aparece às claras e de areias finas praias do litoral paradisíaco semideserto, chega, procura e acha a bucólica cachoeira de pura água doce fresca e refrescante, também os turistas exógenos desejam a sua fração, o seu aproveitamento de recurso natural público e de amplo acesso não privativo. Um recurso natural em tese para benefício de todos os cidadãos, também para os animais das matas, para a vida das imediações que sedenta o procure e o encontre. Vícios egoístas adquiridos. A moradora contumaz de praia bucólica de litoral nordestino semideserto haveria adquirido rotina, o seu costume e rotina por banhar-se nua e da forma tal qual mais gostaria, do seu jeito e maneira, lá residia e lá teria o direito de seu banho diário para retirada do sal, suor e sujidades acumulado de labuta diária ao auxiliar o companheiro pescador de profissão. Precisaria esfregar bem a pele com sua bucha natural plantada no quintal da palhoça e com o sabão caseiro dito ecológico feito sem produtos químicos agressivos ao meio ambiente. Precisaria de privacidade para esfregar bem as partes íntimas e com isto retirar toda a sujidade, deixar o corpo íntegro livre do odor enjoativo e rotineiro de peixe fresco, de mariscos, caranguejos e ostras. Teria o seu direito imaterial quase negado ao ter de constatar o inesperado grupo intrometido de turistas incidentais a pisar sobre as suas amadas areias límpidas, finas e brancas, as mesmas areias brancas eleitas para sua vida afastada e retirada da sociedade já contava ao menos dez anos. Ela e o companheiro pescador que a acompanhou vindo de cidade grande, tão somente, ela que sempre antes do companheiro se dirigia em privacidade e silenciosa contemplação à cachoeira de água fresca trazida da Mata Atlântica, logo acima da
costa litorânea paradisíaca, para lá diariamente se deslocava, e então a banhar-se tal qual bem quisesse e desejasse. Vícios egoísticos. Vários, adquiridos com o tempo, por experimentação, por tentativa e erro, vários comportamentos repetitivos que, justamente por criarem uma sensação momentânea de prazer, quase sempre serão constantemente procurados e reprisados. Cada pessoa seria capaz de buscar os seus próprios exemplos particulares. Todos seriam capazes, exemplos havia em profusão. Deixar de cumprir rigoroso horário de trabalho em repartição pública, largar mão de hábitos egoísticos e, com isto, se autoavaliar tal qual um prejudicado e injuriado por tal ato, tal mudança brusca e indesejada de comportamento. Exemplos rotineiros. Uma funcionária de longa data em repartição pública ineficiente e burocrática de um histórico ineficiente e burocrático. Por falta de cobrança patronal mais criteriosa, e também por ter um chefe imediato de repartição pública acostumado, ele próprio, às suas particulares escapulidas do expediente de trabalho, decorre daí um vício que é solenemente adquirido. Prazeroso vício, portanto a sua repetição e continuidade buscada e infalível. Acostumar-se a não cumprir rígido horário de trabalho, chegar diariamente com hora de atraso, um expediente que deveria se iniciar às oito da manhã, mas se iniciava nove horas, a todo e qualquer dia, segunda a sextafeira. Adquire-se hábito e costume, todos esperariam, se moldariam, os cidadãos a serem atendidos pelos funcionários públicos saberiam, afinal sempre poderia ser alegado de forma genérica que, no Brasil, evento para começar nove horas deve ser marcado às oito.
Dormiria até mais tarde em casa a funcionária de longa data em repartição pública ineficiente e burocrática. Por que não? Haveria de. Não seria apropriadamente cobrada, nenhum rigor, se o chefe a cobrasse também ele não se sentiria à vontade para suas próprias escapadelas e descumprimentos de horários, sempre o roteiro escrito ao dar os necessários exemplos edificantes de líder. Poderia ele sempre alegar que, em cargo e função de chefia e coordenação, haveria participado de reunião inesperada importante, encontro, entrevista, o que fosse que ocorresse na noite anterior. Mas, alegar isto de segunda a sexta-feira, sempre entre oito e nove da manhã, levantaria claras e desconfortáveis suspeitas em seus subordinados. E como gestor havia lido em algum lugar, alguma cartilha ou manual, que o melhor líder entre subalternos é aquele que sempre dá exemplos. Então esforçou-se para que suas escapadelas levantassem menos e menores suspeições. Quando se quer, dá-se um jeito. Seguramente sim. A servidora pública habituada sofreria reais e sérios transtornos caso tivesse de levantar-se da cama uma hora mais cedo toda manhã. Ela bem sabia que justamente a última hora de sono é a mais bem dormida, a mais profunda e relaxante. A bem de sua saúde física e mental jamais poderia abrir mão desta hora final sagrada diária para o refazimento e completude de seu corpo e mente. Abrir mão desta hora diária de refazimento e completude física e espiritual seria claramente danoso e desaconselhável. Não poderia. Sequer o seu médico particular a aconselharia, diria ele certamente que, em virtude de situações e sintomas clínicos avaliados e em virtude de resultados conclusivos de exames, triglicerídeos, desbalanço hormonal decorrente de menopausa,
sudorese, o quadro clínico integral, nada no mundo haveria de ser mais importante do que uma boa noite de sono relaxante para o refazimento físico e mental. Correto estaria. Assim recomendou à sua paciente servidora pública de longa data, desconhecendo em detalhes como e quando a sua paciente servidora pública haveria de obter a extensão de hora salvadora e mais do que sagrada para sua psique e espírito. Um comportamento adquirido por experiência, não foi algo de dia para outro, foi bem antes um fruto de observação, tentativa e erro, bem mais erros do que acertos, assim aconteceria em uma repartição pública estatal ineficiente, perdulária, pesada e burocrática. Todos saberiam, se não soubessem deveriam, mas sempre há as inúmeras alegações possíveis e imagináveis, várias delas, sempre se pode alegar que há decisão judicial. O poder judiciário é sempre generoso aos sindicatos de classes governamentais, sempre se poderia alegar que a hora a mais, ou a escapadela do serviço em toda e qualquer sexta-feira à tarde, logo após o almoço, desde que fique bem justificada, seria não apenas uma vulgar escapadela, não, mas na verdade uma decisão judicial favorável no sentido de propiciar aos servidores públicos devidamente sindicalizados um benefício mais do que justo. Um benefício assegurado por lei, decorrente de necessidades mais do que especiais e excepcionais: recomendação médica, dificuldade de transporte e deslocamento na região, filho ou parente demandando atenção, a inauguração de apresentação teatral em escola da filha nova e estudiosa que jamais perdoaria, sob hipótese alguma, jamais perdoaria mãe ausente em tão crucial e tenso momento da vida infantil e da jornada pessoal de aprendizados qualificativos.
Exemplos havia aos montes. João Pedro, se desejasse mesmo ingressar em breve futuro em carreira impoluta políticopartidária, teria de evitar qualquer fácil hipocrisia à vista. Também ele. Bem sabia. Sabia como as coisas eram, como a vida seguia seu rumo, também ele bem sabia. Lembrou-se. Enquanto jovem proletário bancário, tempos bons cheios de energia e disposição, um jovem adulto ingressando a vida adulta, muita energia disponível, apetite voraz, afinco e dedicação ao trabalho também vorazes. Tão saudável apetite que, por vezes, comia demais, exagerava algo na porção do almoço fornecido pela instituição bancária no subsolo da agência de atendimento em que trabalhava. Permitia-se aos exageros de metabolismo acelerado ainda em fase biológica de desenvolvimento e maturação, a conclusão desta fase de vida, o ingresso em início de vida adulta quando, a partir de então, tudo o que se iniciaria seria a estabilização e posteriormente a ainda incompreendida e distante decrepitude. Vícios adquiridos, vários. Enquanto solteiro permitia-se deixar roupa íntima arremessada sobre mesa do café da manhã na cozinha, ou toalha úmida largada aos cantos, ao que dizem os dois certeiros terrores incômodos para as representantes do gênero feminino que porventura façam companhia a homens menos zelosos e prudentes, talvez menos asseados. Minutos após o almoço pesado consumido por opção e livre vontade, deglutido em belo início de tarde, notou que haveria local retirado sossegado disponível para a cômoda e perfeita digestão reparadora. Descobriu ao notar as sutilezas de rotina de sua jornada de trabalho, coisas que só os proletários mais versados notam, lembrou-se, detalhes e sutilezas, haveria de lembrar-se, antes de
bancário com carteira assinada, ainda um garoto menor aprendiz em chão de fábrica de montadora de lavadoras de roupa para exportação. Lembrou-se de um parceiro de turno de trabalho de quase mesma idade, que de forma clandestina exercia dois expedientes, rapaz novo esforçado, trabalhava à noite e ao dia em fábrica montadora de máquinas de lavar roupa. Com o tempo aprendeu ele que seria possível enforcar uma ou duas horas em alguns períodos do dia e, com isto, somar as duas horas que conseguiria dormir por madrugada fazendo jornada dupla em dois empregos distintos para ajudar a mãe enferma. Na época o parceiro de turno de trabalho em chão de fábrica de quase mesma idade, em labuta, esforçado e trabalhador que só, mas que inadvertidamente se arriscava e comprometia sua saúde ao dormir muito pouco a cada noite. Logo descobriu canto afastado do chão de fábrica montadora de lavadoras de roupa, logo descobriu porção e segmento do enorme galpão que era reservada ao estoque de grandes embalagens de papelão utilizadas amarradas com fitas duras de plástico rígido em fase de acondicionamento final do produto de exportação. Lá descobriu que seria possível se instalar a um canto retirado, atrás de pilhas grandes de estoques, adentrar as enormes caixas de papelão prontas para acondicionar o produto final, descobriu que ainda por cima conseguiria fechar as caixas de papelão por dentro com fita adesiva instalada em um aplicador apropriado de empunhadura, a engenhosidade de selar por dentro a enorme caixa de papelão e se enfiar previamente em seu interior, com isto tentar se esconder e ignorar uma ou duas horas de trabalho, momentos de lapso temporal os quais ele simplesmente desaparecia de vista, de todos,
desaparecia dos olhares do superior hierárquico pouco atento, e com isto somava uma ou duas horas às duas parcas horas que tinha disponíveis em cada madrugada diária, dentre os dois expedientes de trabalho em duas empresas distintas. Tudo enquanto menor aprendiz, uma completa ilegalidade, tanto ao empregador, quanto a ele, que bem sabia ser vetada jornada dupla em tenra idade e fase de experiência profissional. Por óbvio não estudava, só fazia trabalhar, com afinco, para ajudar o preocupante tratamento de mãe enferma. Vícios egoísticos adquiridos com o tempo, a partir da permissividade da experimentação. Comportamentos humanos, muito humanos. Excelente e desejável a um pretendente a cargo político-partidário representante da sociedade em pleito legal e democrático o conhecimento mínimo de variados e multifacetados comportamentos humanos. Haveria de ser um agente político dos bons, de humanista formação e ampla vivência. Poucos se diriam livres de vícios egoísticos adquiridos, poucos seriam capazes de atirar a primeira pedra, ao que reza a Bíblia antiquíssima, isentos de pecado, impolutos. Ao que dizem os filósofos, todos aqueles que afirmam jamais mentir já estão mentindo em princípio. João Pedro Datsi não deixou, ele próprio, de também abocanhar o seu quinhão, a sua parcela de culpa e pecado. Abocanhar e deglutir. Permitia-se em época de jovem adulto alguns exageros na boa refeição oferecida a preço módico pela instituição bancária que o empregava, ao menos isto, pagavam mal ao final do mês, mas davam boa comida. A perfeita prescrição para manter os funcionários um pouco calados, calados tanto quanto o possível e
tanto quanto o sindicato de classe o permitisse aos banqueiros patrões. À semelhança do parceiro de trabalho pregresso em chão de fábrica enquanto menor aprendiz, à semelhança do que se lembrou de época nem tão recente, também ele encontrou a sua porção retirada para sossego e devido descanso. Uma vez bancário, logo descobriu que havia arquivo morto em fundos de pavimento bem pouco frequentado por funcionários da agência, observou e descobriu que lá poderia despender sua hora de almoço, quase a hora inteira, após gastar nem quinze minutos na deglutição voraz do almoço fornecido a preço módico descontado em folha de pagamento mensal. Acomodava-se pois em caixas de papelão desmontadas jogadas de canto, pilhas e dúzias delas, e por lá poderia gozar a quase hora inteira de horário de almoço, a sua hora sagrada de jus e de direito. Não haveria de prestar maiores explicações, estaria em seu direito, em parte, pois bem sabia que o acesso ao pavimento superior pouco frequentado por funcionários da agência bancária era desaconselhável e quase proibido por expresso regulamento interno. Questões de segurança, alegavam os diretores, embora nunca se soubesse ao certo a que isto se referia. Adquiriu o vício e certa vez sentiu que se abrisse mão dos quarenta e cinco minutos de devido descanso e processo de digestão a parte da tarde pós-almoço não renderia conforme o esperado. O primeiro dia a forçosamente ter de abrir mão do hábito adquirido foi traumático, inesperado, vindo do nada aparece colega de trabalho inoportuno e falante em excesso, também ele teria descoberto o retiro oculto e valoroso, provavelmente o descobriu
após notar João Pedro meio sorrateiro tentando disfarçar seu trajeto ligeiro de caminhamento diário pós-almoço. O sujeito invasor falante em excesso descobridor do segredo e do retiro sossegado oculto ocupado previamente simplesmente chegou vindo do nada, e pleiteou, também ele, o seu lugar justo de desejo e de direito. Um rapaz sorridente, sempre falante e animado, falava pausadamente com amplo sorriso, belos dentes bem brancos, rapaz novo, daqueles que imediatamente passam a impressão de frescor e vigor, frescor principalmente, o corpo e mente ainda em fase de crescimento, em expansivo volume orgânico, ambos o fariam ainda por mais um ou dois anos, a recém-atingida maioridade legal, ao que se dizia, ao que o Estado nacional assim reconhecia. Aos vinte e um anos responderia independentemente pelos próprios atos, caso não emancipado legalmente. Um sorriso amplo e convidativo, sem dúvida, e acompanhado de sua fala mansa, contínua e ininterrupta, lábios amplos e abertos a expor dentes bem brancos e bem alinhados, aparência jovem de frescor entrando com coragem em vida profissional promissora. Salientava o papel assumido de invasor vindo do nada a contínua e ininterrupta fala, a incapacidade de descansar por dez segundos que fossem a língua treinada de fala mansa, até convidativa, porém deslocada de tempo e principalmente de lugar. Era tão autoconfiante o rapaz novo fresco de profissão e desbravador de vida madura adulta que, por muito pouco, não chegou a contagiar positivamente João Pedro. Por muito pouco, mas não o fez, o faria em diverso tempo e situação, mas não lá, dentre caixas de papelão desmontadas, em seção afastada e retirada, uma porção de pavimento de edifício raramente
frequentada
por
qualquer
funcionário,
um
depósito
quieto,
sossegado, muito quieto e muito atrativo à tranquilidade pós-almoço, muito atrativo ao devido processo fisiológico involuntário de digestão dos alimentos recém-ingeridos voraz e velozmente. Sujeito promissor, logo se percebia, falava muito e de forma contínua e ininterrupta, mas pausadamente, sem atropelos, articulava bem as palavras, demonstrava as escolher com antecipação, demonstrava conhecer e ter treinadas as corretas articulações de dicção labial. Não se confundia nem chegava a repetir as mais difíceis, nem a gaguejar, parecia ter treinadas as pronúncias de palavras menos usuais, não se confundia, como se as tivesse dito centenas de vezes em vida, frisadas e com lenta perfeição e articulação. Bem pronunciava rubrica como paroxítona, com o bri tônico, parecia fazê-lo com certa constância, um substantivo inusual, porém menos incomum dentro do universo de serviços burocráticos bancários, muito mais comum do que a média encontrada em outras repartições, a bem da verdade, coisas da burocracia que gerava montanhas de papel com assinaturas, muita celulose branqueada com muita química tóxica despendida. Depois se soube, tudo se encaixou, o rapaz novo a esbanjar frescor e otimismo pela Humanidade do planeta relatou, havia começado carreira ainda como menor aprendiz em estação de rádio local, das grandes e reconhecidas, um desejo de infância, seguir os passos do pai falecido amado que lhe constrangeu a fazer prometer ingressar em carreira profissional de radialista, a sua própria carreira de longos quarenta anos que tanto idolatrou e que havia propiciado criar e educar os três filhos e quatro filhas. Fez o rapaz novo seu filho querido prometer ao lado de leito de morte, já terminal,
desenganado por médicos, vindo a falecer três dias depois da constrangedora promessa e juramento. O que faria, como se livraria da situação? Uma encruzilhada, xeque-mate, um jogo de bilhar em sinuca de bico, praticamente insolúvel. Ou mentiria ao amado pai ou se forçaria a obedecê-lo e a cumprir seu último e derradeiro desejo em vida. Uma sinuca de bico, das complicadas, de impossível solução. Por um instante passou pela mente mudar tudo, todo o plano de vida futura, vida profissional promissora, capacitado em contabilidade, algo que cursava em paralelo, jamais abandonando o cargo de menor aprendiz e, posteriormente, de estagiário em estação de rádio de projeção nacional. O pai amado moribundo em leito derradeiro lhe incutiu somente duas opções possíveis: continuar carreira de radialista, a contragosto, seguindo desejo apaixonado do genitor, ou então mentir desonesta e descaradamente. Não haveria argumentação, não em dada hora crucial e delicada, o pai amado jamais entenderia, não seria capaz de compreender, não com a mente e corpo inundados por quimioterapia e doses de morfina intravenosa. “Aquele que diz jamais mentir acaba de fazê-lo”. Alguém havia dito, havia lido em revista qualquer, um psicólogo contemporâneo ou filósofo grego antigo de época remota antes de Cristo. Justificada a dicção praticamente perfeita e a habilidade em pronunciar palavras menos corriqueiras. Experiência em estação de rádio de projeção nacional, não como apresentador ou locutor oficial, não enquanto principiante, mas teve de se capacitar, se aperfeiçoar, recebeu o honroso cargo de terceiro locutor, o que na prática significava que somente por grande eventualidade e
infelicidade de acontecimentos viria a entrar em programação oficial veiculada ao ar, ao vivo. Mas já era algo, haveria a remota chance e por isto deveria estar preparado e sempre a postos, estava na época novo na pretensa carreira, menor aprendiz e possível estagiário em sequência, ainda pouca experiência. Demonstrava talento, dedicação, e inegavelmente também a indicação paternal vinda de profissional experiente e reconhecido no ambiente radialístico em geral. Haveria chance, o honroso cargo de terceiro locutor, algo tal qual o terceiro goleiro de time de futebol escalado para uma competição, que somente viria a atuar em campo caso o goleiro reserva, quase nunca chamado, também este por improvável eventualidade fosse uma carta fora do baralho. Valeu-lhe a pena a experiência de passagem por quase um ano e meio em estação de rádio de projeção local e nacional. Teve de se capacitar, afinar, e já possuía nato algum dom, inegável, desde cedo seu pai lhe incutira o zelo e aprumo pela fala correta e desimpedida, por valorizar a articulação de um instrumento musical natural que mesmo malconcebido pode muito bem ser moldável, adaptável, ser afinado, modulado, melhorar entonação e timbre emitidos. Com esforço, com treino, e com um pouco apenas de carga genética favorável, em muito se pode modular a própria voz para os mais diversos fins e aplicações desejadas. Assim seu pai radialista de quarenta anos de carreira havia lhe dito certo dia. Chegou
novo
de
casa,
quase
vindo
do
nada,
se
apresentando antes, mas de forma inesperada, rapaz novo em cargo da instituição bancária, nem dois meses após contratado, poucos o conheciam, mas não demoraria a ser figura popular e benquista. Falador e articulado que era, bem apessoado, sorriso
fácil e amplo, belos dentes alinhados, fala contínua e ininterrupta, porém mansa e pausada, de voz agradável e interessante. Seguira os passos de João Pedro que, apressado e meio sorrateiro, executou o percurso oculto diário tão logo se retirou do refeitório localizado no próprio edifício onde trabalhava. Cedo ou tarde alguém haveria de notar, disto sempre suspeitou, almoçava rápido e os outros colegas permaneciam ainda por alguns momentos à mesa do refeitório, ao menos enquanto não houvesse maior lotação, os outros lá permaneciam jogando conversa fora, os homens palitando os dentes, para a agonia e aflição das moças mais recatadas. Em geral todos permaneciam ao menos por mais alguns minutos após a refeição, apenas um ou outra também se retirava apressado, alegando ter serviço a terminar, alegando poder compensar depois o esforço adicional pedindo ao chefe de seção a saída ao final do expediente, vinte minutos mais cedo. E cedo ou tarde alguém haveria de notar, a sua escapatória, a saída abrupta e diária, sempre tão logo engolisse a última garfada do almoço, então seguiria o seu percurso oculto que faria com que sumisse de vista. Não era mais visto nem ao setor de trabalho, nem ao saguão principal do edifício, nem na rua em frente, onde alguns funcionários em revezamento de turnos sempre se encontravam para fumar, tomar ar fresco, ou simplesmente observar o movimento das pessoas na rua, recém-almoçados e sombreados pelo frescor das árvores da praça defronte ao edifício-sede de banco privado. Vícios egoísticos adquiridos, que em geral são de difícil diluição e de difícil posterior remoção, que em geral se consolidam e forte se solidificam. O digerir nutricional sossegado e em silêncio de almoço recém-devorado, quieto e retirado a um canto onde poucos
funcionários sequer sabiam existir, dentre caixas de papelão largadas desmontadas acima do fino carpete cinza embutido que cobria todo o pavimento. Ficar quieto e com a cabeça em silêncio por trinta minutos, quarenta e cinco minutos quando muito. Valeria. Um ritual diário, ritual que foi bruscamente interrompido, de um dia para outro, abruptamente e tragicamente, um impacto, pois inesperado, traumático, embora previsse cedo ou tarde que alguém haveria e teria de descobrir o seu sagrado subterfúgio oculto. Descobrir seria uma coisa, bem diferente do achegar-se em seguida e tentar fazer companhia, bem diferente do pedir também um lugar legítimo de direito, afinal como qualquer outro funcionário do banco poderia fazer. O descobrimento por outros do subterfúgio oculto não levaria muito tempo, mas uma vez revelado, ter obrigatoriamente de compartilhar seu volume e seu espaço seria algo bem diferente. Até poderia compartilhar se o parceiro inesperado também prezasse pelo silêncio, também ele tentasse fazer a sua digestão particular dentre outras pilhas afastadas de caixas de papelão dentre prateleiras ocultadoras, ou nalgum outro canto do pavimento, na mesma seção, algum canto pouco mais afastado talvez, para que um dos corpos estirados ao chão não escutasse os arrotos do outro, o sugar os dentes, vez por outra a incontida flatulência tosca. Mas o pretenso radialista bem falante e bem apessoado de fato era falante e não parava de falar, mesmo de forma aparentemente agradável, com boa dicção, timbre, falava rubrica correto, como paroxítona, arriscaria até mesmo falar avaro correto, também como paroxítona, arriscaria achar lugar em conversa para encaixar o tal adjetivo improvável e em flagrante desuso. Um
incômodo inesperado, o rapaz novo no serviço tinha horário de expediente trocado, outro setor, outro tipo de serviço, cumpria expediente desde seis da manhã até meio-dia, após o almoço se dirigia a curso preparatório pré-vestibular, não teria onde ficar na lacuna de tempo, então nada mais justo e de direito aguardar um pouco no próprio edifício de trabalho, evitando com isto o horário de pico de meio-dia, o maior tráfego de veículos nas ruas e avenidas, quando os ônibus estariam bem mais lotados, uma correria. Passado o horário mais agitado da cidade, quarenta minutos ou uma hora no máximo, tudo voltava ao aparente normal até o próximo horário de pico às seis da tarde. Uma única hora que fazia enorme diferença, todos notavam, a cidade notava, atrasar ou adiantar em uma hora, fugir do horário do meio-dia ou de seis da tarde, tal era a dinâmica de um município grande em região de muitos edifícios de instituições diversas, públicas e privadas, com milhares de funcionários a continuamente se revezarem, alguns deles em turnos de funções ininterruptas, vinte e quatro horas, turnos que eram cumpridos por revezamentos de ocupantes, três horários de turnos em vinte e quatro horas, alternáveis. A economia de cidade grande que nunca poderia demonstrar fraqueza e suspensão, a necessária pujança do capitalismo em sua versão mais explícita e autoconfiante, principalmente dentre os bancos financeiros, instituições de crédito, que jamais poderiam demonstrar fraqueza e desligar as luzes de funcionamento por poucas horas diárias que fossem. Achou por bem passar a hora ainda ao ambiente de trabalho, porém fora de seu expediente diário tão logo cumprido, o que não deixaria de representar uma hora do dia perdida, uma hora do dia
que, para os mais rigorosos, a vida produtiva deixaria de existir e de contar em rendimentos. Havia gente que assim pensava, os formados em economia teórica talvez, todos conheciam casos, o fazer contínuo de cálculos, uma hora além da conta dormida por noite, sete por semana, trinta e duas em um mês, trezentos e oitenta em ano, cento e sessenta dias, quase meio ano que sumiria da história de vida de uma pessoa em dez anos. Tudo muito matemático e frio, calculista, um cigarro a menos por dia, tanto de dinheiro economizado, tanto de tempo de vida antes do falecimento por doença decorrente de toxina cumulativa. Bancários e banqueiros adoravam contas matemáticas frias e calculistas. Passar uma hora do dia sobre caixas de papelão desmontadas espalhadas em carpete fino cinza de depósito em pavimento superior, jogando conversa fora, ou por outro lado, preso engarrafado e dentro de transporte público, inalando monóxido de carbono vindo das janelas de ônibus não climatizado, quente e abafado, mais provável de pé, ainda por cima segurando-se em haste de metal muito usada e pouco higienizada. Melhor seria jogar conversa fora, algo que para um pretenso radialista jamais seria tempo perdido, não contaria para o quase meio ano apagado de sua história de vida pessoal, não contaria tal qual perda, mesmo ao assumir tal rotina por dez anos ininterruptos, jamais, ao menos para um pretenso radialista que ainda sonhava em planos futuros ter a sua voz imediatamente reconhecida e admirada, voz de barítono, bem modulada, boa dicção e articulação do belo e correto português. Sempre em treinamento e exercício físico e mental, após articular língua e lábios em três tigres de treze tiras lustrosas listradas pronunciados com rapidez centenas de vezes, seja em
conversa fiada ou não. Seu cérebro haveria de guardar a memória e a coordenação motora buco-maxilar para futuras necessidades narrativas. Jamais um tempo perdido. Vícios egoísticos. A presença do bom rapaz cheio de frescor pela vida trouxe um imediato prejuízo a João Pedro. Dano e prejuízo, não haveria como negá-los, seria realmente o jovem bom rapaz fresco o culpado por tudo, o diretamente culpado, ele o carregador de certeiro dano e prejuízo a outrem. Por projetar usufruir quarenta e cinco minutos de sossego e de silêncio, João Pedro tinha boas esperanças de amenizar sua dor de cabeça incomum, ainda mais naquele exato dia específico, o exato dia de primeiro encontrão inesperado com o intrometido invasor colega de profissão que simplesmente foi requerer, também ele, o seu quinhão justo e de direito em repartição privada de trânsito livre e democrático a qualquer funcionário devidamente e oficialmente lá lotado. Um exercício democrático, emblemático para vivências e exemplificações futuras, principalmente a quem quisesse ingressar em futura carreira político-partidária. Para tais observadores, tudo na vida seria um reflexo de democracia ou, por outro lado, de taxativo autoritarismo, sempre, ou uma coisa ou outra, sempre este exercício mental contínuo e apurado de avaliação. Não seria daquela vez o amenizar de dor de cabeça, muita coincidência, em profundidade nada na vida parece ser ao acaso ou coincidência, muito azar para ser verdade, justo naquele início de tarde pós-almoço, justo ao primeiro dia de encontrão inesperado, o sujeito bom rapaz que invadiu a seção retirada utilizada como depósito em pavimento de acesso raro que poucos conheciam, que muita gente evitava por se dizer alérgica à poeira, ou por se dizer
impressionada com os boatos ridículos de que o local era amaldiçoado e assombrado, boatos que relatavam funcionário antigo ter se matado por lá após frustração em reunião profissional tensa e demorada. Um local raramente transitado, que de dia para o outro ganhou novo e fresco frequentador bem falante muito interessado. Portanto claro e certeiro dano e prejuízo, em um início de tarde muito específico e muito coincidente com outras intenções alheias. Não poderia repousar a contento, em silêncio, e com isto conseguir o tão almejado refazimento de sua cefaleia, algo que pretendia remediar desde a metade daquela manhã de trabalho, logo quando percebeu que a incômoda dor aguda ao meio dos olhos não passaria tão facilmente. Uma dependência muito artificial, criada por egoísmo, puro egoísmo, o pensar tão somente em si, em primeiro lugar, em sua muito particular situação de retiro e isolamento, somente a tão sua necessidade de refazimento, sob um belo silêncio tranquilizador pós-almoço. Um isolamento físico para a tentativa de cura de cefaleia, ignorando solenemente que faria tal tentativa em local público, portanto não de sua propriedade e posse, não seria lá a sua casa de direito, tão única e tão sua a posse, onde em tese faria tudo aquilo o quanto bem entendesse. Não era a sua casa, longe disto. Inesperado aparece o rapaz falante cheio de vigor e de boas intenções de vida profissional, bem apessoado, poderia até mesmo ser considerado simpático, mas isto somente aos elementos mais próximos dele que não reparassem tanto na peculiar característica de, apesar da boa dicção e devida pausa, ter o hábito inadiável de emendar frase após outra. Na prática, apesar de fazê-lo sem
atropelos, não parava de falar. Em suma tudo o quanto João Pedro evitaria para a cura de sua dor de cabeça recalcitrante que, planejou, não resistiria a trinta minutos de desligamento quase total do planeta Terra após o almoço daquele fatídico começo de semana em dia nublado de segunda-feira. Esperar e ansiar por uma situação muito específica e decorrente de uma combinação de vários fatores externos, a maioria deles não controláveis. Não seria jamais capaz de controlar o acesso livre a quem viesse a aparecer de supetão na seção, de forma muito rara, viesse a aparecer ao pavimento utilizado como arquivo morto do edifício, ainda mais em horário de almoço o qual, para a grande maioria dos turnos usuais da instituição bancária, não haveria atividade normal de trabalho, sequer movimentação ou entrega e coleta de materiais em outras seções ou repartições, quais fossem, o depósito arquivo morto ou outro lugar qualquer. Habituar-se portanto ao vício egoístico, disto depender para a consecução de devida rotina adquirida, programada, fazer deste vício o motriz de caminhamento de uma semana inteira, então semana após semana, meses, por vezes até mesmo anos. Habituar-se a tal cotidiana rotina e, pior, criar uma extrema dependência quanto a isto, a ponto de estranhar e mesmo sofrer real dano ou prejuízo caso haja a brusca ruptura de tal cotidiana rotina adquirida e viciada, estragada. A dor de cabeça daquela segunda-feira não seria aliviada afinal, conforme planejara, não haveria a oportunidade esperada e programada para curá-la em trinta minutos sossegados e silenciosos de pós-almoço estirado e esparramado tranquilo dentre caixas de papelão sobre carpete de pavimento quieto pouco conhecido e raramente frequentado. Não
naquele início de tarde, uma suspensão de planos mentais e de prévia programação aos quais bem poucas pessoas conseguiriam bem lidar. Uma suspensão brusca a qual, após adquirido o vício egoístico, trará a tendência a culpar e a difamar tudo o quanto, material ou imaterial, venha a interferir na não execução daquilo prévia e avidamente antecipado e desejado. Comportamentos
humanos
egoísticos
adquiridos
e
alimentados até a parcial dependência física e emocional. Parcial e, em extremismos, quase a psicopatia de dependência total, emocional, emocional e então também a dependência certamente física, o corpo afetado e esmagado frente ao poder incomensurável da mente voando livre. Sem sequer imaginar, João Pedro talvez tivesse a intuição, em treinamento precoce para o que viria adiante em sua vida, sua formação na época de jovem adulto egresso da adolescência, adulto recém-formado. Talvez tivesse a intuição se já, na época, conhecesse melhor o caráter humano biodiverso, se já houvesse experimentado e viajado o mundo, experimentado gostos e cheiros, lugares diferentes, também a própria cultura local, o seu País e Nação, seu povo e gentes. Talvez tivesse na época a intuição, quem sabe possuiria um escâner térmico de última geração ultra-avançado capaz de detectar dentre o edifício alto de instituição bancária privada onde se esconderia semelhante comportamento humano. E não seria improvável, muito menos do que poderia imaginar, trezentos funcionários por turno, se houvesse um por cento de incidência haveria três funcionários com similar dependência emocional e física, um similar comportamento egoístico adquirido viciante. Não seria improvável, mas dificilmente imaginaria. Que bom seria ter em mãos um escâner térmico ultra-
avançado que detectasse demais comportamentos egoísticos esparsos. Dificilmente imaginaria que em mesmo edifício, a mesma instituição bancária privada, uns cinco ou seis pavimentos acima, seções as quais pouco ou nunca frequentava, e em turno oposto ao seu, turno noturno dentre as vinte e quatro horas de revezamentos, haveria funcionária com dez anos de casa que fortemente adquirira também ela um vício e dependência, funcionária outra que criou uma rotina muito particular e comportamento adquirido ao longo do tempo e do repetitivo cotidiano. A funcionária colega de profissão que sequer conhecia superficialmente e somente cruzava caminhos em corredores obrigatórios, adquirira por costume próprio iniciar a segunda parte de seu turno de trabalho noturno com um hábito seu salutar e benfazejo, muito peculiar, que lhe fazia muito bem e lhe permitia encarar a última etapa de trabalho repetitivo sentada e sedentária em cadeira com maior vigor e disposição. Sim, um hábito benfazejo, não fosse o efeito viciante e a quase incompatibilidade de executá-lo perante testemunhas oculares. Ligeiramente bizarro para a maioria das pessoas, para as mais conservadoras provavelmente, as que não tinham qualquer noção de cultura tântrica, védica, de yoga e demais expressões espirituais afins. De forma alguma seria ato incomum ou muito menos bizarro, de forma alguma, mas, de fato, isto também talvez pouco dissesse enquanto classificação. Também não seria considerado ato próximo do bizarro, para quem acostumado estivesse à cultura e religião hinduísta, o exercício espiritual ao esticar fortemente a língua para fora da boca e repuxar a expressão facial até o ponto de seu relaxamento devido ao uso de
feixes musculares da mandíbula, têmporas, região orbital ocular e demais pontos faciais que acumulariam tensões ao longo do dia. Exercício espiritual, um enfoque bem mais profundo e etéreo, nervos que seriam ativados e requeridos a partir do toque da língua na superfície da região nasal, e com isto sensibilizariam energias anímicas de planos muito distantes e superiores. Nada convencional aos ocidentais, ao menos a estes. A funcionária colega de profissão em turno oposto alguns pavimentos acima guardava a si os próprios segredos dificilmente confessáveis. Em mesma posição geográfica, grande proximidade, algumas poucas centenas de metros quadrados de área dentre um movimentado e concorrido quarteirão urbano de edifícios comerciais, a coincidência estatística provável de dois cidadãos portadores inequívocos de vícios egoísticos adquiridos a partir de repetida vivência e experimentação. A colega pouco conhecida e afastada dava expediente em setor de informática onde se instalou uma das ramificações de feixes de cabos e sinais de fibra ótica ao restante do edifício, portanto em seção de pavimento que comportava salas menores climatizadas e mais controladas, destinadas exclusivamente à distribuição e organização dos cabeamentos que interligavam todos os computadores do edifício, interligação sofisticada e de última geração em uma rede integrada à central única, o cérebro digital da instituição, que jamais poderia ficar sem provimento de energia elétrica, e que em eventualidade, seria abastecido por ligação externa a um enorme gerador a diesel nos subsolos próximos às garagens para veículos do edifício.
Raras e bem esparsas eram as salas fechadas e de poucas dimensões dentre o prédio de instituição bancária privada, lá também adotado o modelo contemporâneo de espaços abertos compartilhados, divisórias em drywall de meias-paredes, sempre a expor os funcionários que com isto tinham pouca privacidade, ativos e sempre a suspeitar serem observados e analisados por seus superiores, sempre a competirem por um constante desempenho e agilidade em suas atividades rotineiras diárias. Mas para comportar os equipamentos de distribuição dos cabeamentos óticos de informática ao longo do edifício, duas ou três saletas de menores dimensões eram usuais e bem eficientes para um controle mais estreito de suas operacionalidades. Com a sucessão de dias e expedientes de trabalho seria possível perceber as nuances a princípio não facilmente detectáveis. Várias nuances, dentre elas um ponto-cego de canto de sala onde nenhuma das câmeras de segurança para monitoramento alcançava, algo que tão somente quem teria acesso às telas de visualização seria capaz de perceber, e a funcionária de seção de informática, embora não responsável pela segurança, teria como claros atributos o checar o funcionamento do aplicativo de armazenamento e tratamento das imagens digitais filmadas pelas câmeras de segurança aparafusadas às diversas paredes das seções, portanto de sua oficial competência vez ou outra checar o armazenamento e fazer as cópias periódicas de arquivos digitais em discos rígidos de backup obrigatórios segundo os protocolos de qualquer grande e prezada corporação bancária nacional. Uma confluência de saletas que não eram tão usuais dentre o conjunto de seções de trabalhos burocráticos do edifício, bem
poucos pontos localizados haveria com semelhantes configurações, mesmo dentre os pavimentos superiores mais reservados às chefias e supervisões regionais, mesmo lá poucas saletas havia, uma ou outra, destinadas às reuniões muito privativas de assuntos tabus sigilosos, confidencialidades de economia de mercado, tratativas com investidores, saletas e cômodos mais amplos e sofisticados utilizados algumas poucas vezes por semana ou algo mais. A receptiva
aos
agentes
públicos
em
cargos
de
ditames
macroeconômicos, uma ou outra reunião de emergência quando as camadas estratosféricas da hierarquia bancária haveriam de se reunir formalmente e decidir de forma fria e calculista o destino de vida de quase todos os meros mortais. Algo assim, as decisões deliberativas, desde sempre os financistas globais influíram sobre o destino de vida dos meros mortais, sempre foram preferidos quando se tratasse de isenções fiscais, de polpudos incentivos governamentais, perdão de dívidas imensas, o perdão ajoelhado e submisso do Estado ao poderio inquestionável do sistema financeiro mundial. Em meios físicos de silício, polietileno e metais, as saletas de pequenas dimensões para fins de tecnologia da informação eram até mais usuais, e foi justamente em uma delas que a funcionária de longo tempo de casa colega apenas de vista de profissão de João Pedro veio a desenvolver gradualmente um hábito um tanto inusitado que, a despeito de estranhamentos que pudesse proporcionar, lhe resultava em prazer imediato e também em médio prazo. O seu recurso muito exclusivo e particular, a sua forma e método a recorrer para que pudesse suportar o peso e a tensão que vinham se acumulando ultimamente em sua rotina. Insatisfação ou
frustração profissional talvez, frustração sentimental e emocional certamente, o seu filho de dez anos que lhe trazia preocupações e tomava tempo e energia imensa, um tempo o qual, enquanto não funcionária pública, pouco conseguia administrar dentre os necessários expedientes de trabalho e labuta para a sobrevivência econômica familiar. Haveria de ser funcionária pública concursada ainda algum dia, pensou, todos relatavam casos e acontecimentos, funcionários públicos que arrumavam desculpas para diariamente tratar assuntos particulares e com isto se retirar ou se ausentar do trabalho por horas e dias. O evento de estreia grandiosa em peça de teatro na escola de filha adolescente, o filho de dezesseis anos que cortou levemente o dedo ao fazer a primeira tentativa de independência e ensaio de vida a pré-ingressar em faculdade, um superficial ferimento no dedo indicador ao cortar o primeiro bife da vida não preparado pela mãe, ferimento que rápido coagulou, mas que relatado ao telefone celular portado por funcionária pública concursada seria certamente, e muito justificadamente, um absoluto motivo e razão urgente para uma escapadela do serviço ao lar localizado relativamente próximo. Não era concursada pública estavelmente pétrea e pouco produtiva, longe disto, a funcionária de longa data de banco privado exercia com competência e eficiência todas as suas funções requeridas, não deixava tarefa dada acumular, sempre procurava pesquisar e estudar a avalanche contínua de inovação tecnológica que em camadas sobrepostas frequentes a todo o momento chegava. Programas novos de computação e principalmente meios físicos, novos materiais em experimentação, cabeamentos óticos de última geração, centrais eletrônicas minúsculas de difusão de ondas
eletromagnéticas que prometiam em breve futuro eliminar todo e qualquer cabo ou fiação plugada. Não era funcionária pública estatutária letárgica, mas também ela veio a desenvolver os seus próprios e muito peculiares vícios egoísticos. Como álibi sempre poderia alegar a satisfatória produtividade apresentada, as metas impostas todas sem atrasos e em dia, tudo cumprido ou a cumprir dentro do que haviam programado e esperado os seus gerentes e supervisores diretos. Por uma lógica bastante simplista, nada mais justo do que continuar a cumprir com reconhecimento e esmero as suas competências, o seu serviço diário e a sua meta mensal comprometida que não, ou muito pouco atrasava. A sua labuta diária, a despeito do desgaste e preocupação recorrentes que o filho entrando em fase de adolescência recentemente lhe proporcionava. Em um mecanismo certeiro de compensação os fiéis da balança imaginária haveriam de se autoajustar, um peso excessivo por um dos lados de prato metálico, que viria a ser compensado por um contrapeso proporcional em prato metálico oposto sustentado por finas correntes bem polidas e esticadas. O álibi claro e lógico, simplista, sim, seria sempre a alegação de satisfatória produtividade em suas tarefas cotidianas, as obrigações profissionais a ela previamente atribuídas. Então haveria de manter o status e compensar, na medida do possível, lançando mão de qualquer recurso à disposição moralmente e minimamente aceitável. Moralmente aceitável: um conceito bem relativo, relativo às culturas diversas, crenças religiosas, tradições arraigadas, contextos geopolíticos. Considerando o esticar e repuxar de língua dilatada para fora da boca até o toque à região nasal uma excentricidade, ou
não, o que haveria de ser uma mera e simpática posição ereta em ponta-cabeça apoiada pelo crânio sobre uma almofadinha ao chão duro? Pensou. Dava certo e funcionava em suas aulas de yoga, haveria de funcionar a qualquer momento, tanto quanto a qualquer momento funcionava e dava bons frutos imediatos a técnica aprendida de respiração diafragmática, que tanto a aliviava em momentos de sobrecarga e maior tensão e estresse dentre o expediente agitado e atribulado de labuta profissional. Apenas alguns poucos minutos de posição invertida, a coluna vertebral retesada, bem alinhada, ela de ponta-cabeça e na vertical, com as extremidades dos pés apoiadas altas ao canto da parede e sustentada por uma pequena almofadinha macia, não qualquer almofada, melhores resultados as de flores e outras partes vegetais aromáticas terapêuticas, por óbvio, haveria de ser. Adorava as almofadas singelas recheadas de terapêutico aroma floral, flores secas de macela nativa original e autêntica, as melhores e mais eficientes dentre as flores, mas o resultado final, noventa por cento do efeito salutar, era de fato decorrente da posição ousada em si, que bem poucos conseguiriam realizar, e que ela própria muito lutou contra até conseguir vencer a resistência de um corpo empedrado e enferrujado que nunca antes havia se submetido a tal carga de esforço físico inusitado. Ficar estirada vertical e explícita a uma quina de canto de saleta em posição ponta-cabeça apoiada pelo crânio e pelos músculos do pescoço, vertical, sobre almofadinha de flores secas aromáticas e terapêuticas de macela, conforme rezava sua experiência nesta e em outras técnicas de sábia yoga, seria apenas o início do milenar e saudável exercício espiritual oriental. Mais
haveria. Após bem estabilizar e firmar em posição perpendicular ao solo a coluna vertebral, completava a técnica um coordenado movimento de pernas que passava lentamente de posição esticada em noventa graus ao solo até gradualmente a posição paralela a este, quase formando um aspecto de tesoura que abriria lentamente suas lâminas até que estas, as pernas, ficassem em ângulo de abertura próximo aos cento e oitenta graus. Bizarro somente aos não iniciados, aos que jamais presenciaram qualquer das técnicas comprovadas e benfazejas de medicina espiritual milenar oriental. Nada bizarro ou extravagante a quem viesse a ter contato prévio com os esticares de línguas enormes e dilatadas para fora da cavidade bucal em busca determinada ao próprio orifício nasal da face. Posicionar-se em silêncio, quase meditação, de ponta-cabeça apoiada em almofada ao chão, estirar e movimentar as pernas em posição a qual algumas pessoas mais pudicas classificariam certamente como semipornográfica. Todo este procedimento e ritual disciplinado, ao entender da funcionária dedicada e de longa data de serviço, demandaria muito tempo, trabalho e muito gasto de saliva na tentativa de mínima e incompleta explicação aos questionadores leigos ou invariavelmente às pessoas muito simplórias limitadas espiritualmente. Não seria impossível, mas quase, quase impossível, impraticável ou pouco provável, tentar exercer o seu ritual íntimo particular e de meditação mental silenciosa e concentrada junto à presença de interlocutores ou testemunha qualquer, ao menos, e certamente, não em condições de pleno e oficial expediente bancário de trabalho obrigatório remunerado.
Necessitava retiro e solidão. Encontrava-as, por mais improvável que parecesse à primeira vista em meio a tão agitado edifício de instituição bancária que funcionava em turnos contínuos de vinte e quatro horas. Encontrava uma fração de tempo disponível para a prática de seu ritual íntimo dentre o expediente de trabalho agitado, devido ao seu horário pouco convencional de serviço, e ajudada por uma arquitetura de configuração rara ao longo de todo o edifício, as pequenas saletas ao final de pavimento, pouco frequentadas, onde eram reservados e mantidos os equipamentos de transmissão de dados via fibras ópticas, cabeamentos, e antenas e receptores digitais que eram considerados o cérebro eletrônico pensante de toda a instituição bancária. O passar do tempo, dias sucessivos de rotina de trabalho repetitivo, o observar os turnos de outros funcionários que se revezavam, as dinâmicas de visitas de técnicos de outros departamentos e de outras empresas contratadas, mas principalmente as próprias dinâmicas de horários e solicitações dentro do edifício afim, tudo isto muito bem anotado e calculado, levou a praticante devota de yoga a perceber e firmar a convicção de que poderia usufruir de alguma vantagem para o benefício da continuidade de seus préstimos eficientes junto às tarefas diárias da profissão. Houve momentos quando considerou-se estressada, sobrecarregada, tensa, não tanto pela carga de trabalho repetitivo em si, mas pela soma, a somatória de carga de trabalho e de preocupações com o filho entrando na adolescência que demonstrava comportamento antissocial, arredio, desde os precoces dez anos de idade, uma idade ainda precoce para tais
exposições públicas e escandalosas de semelhante comportamento mais comumente esperado alguns anos adiante em meio à verdadeira adolescência. Tomou hábito. Por cronometrados trinta minutos dentre o expediente de trabalho faria a sua ginástica física e espiritual, forçaria a coluna vertebral em posição de ajuste de cargas e tensões, a endireitaria em postura mais adequada e ativaria pontos de energia transcendentais reconhecidos há milênios espalhados por todo seu corpo. A sua fé. Fé decorrente de estudo e experimentação, de vivência, de convivência com outras pessoas de mesma fé. O poder da fé, enorme potencial, transformador, revolucionário certamente, enorme energia, e como toda energia também susceptível ao uso para boas ou más finalidades. Sim, moralmente poderia ser questionável o fato de tomar trinta minutos para seu uso muito particular e, em tese, um uso não profissional. Em tese apenas, pois se pesasse bem os prós e os contras, bem se sabia que as pausas ligeiras durante o expediente de trabalho são muitas vezes recomendáveis e bem aceitas por funcionários e por contratantes, são modernamente vistas como atitudes benfazejas, progressistas, em um contexto de empresas que buscam, ou assim ao menos propagandeiam, o bem-estar do funcionário e do colaborador acima de tudo, e o consequente aumento de produtividade a partir deste alcance em satisfação profissional e bem-estar. Muita coisa haveria a ponderar, se realmente os trinta minutos de exercício muito íntimo, secreto e inusitado, seriam mesmo um tempo furtado ao expediente normal de trabalho. Muita coisa a ponderar. Funcionários tabagistas tinham oficial permissão
vinda de suas chefias para se ausentarem periodicamente para a prática insalubre de seus vícios destruidores de pulmões. Um ou outro ainda se posicionava estrategicamente em algumas das varandas externas dispostas em determinados pavimentos do edifício, ainda, pois certeiras seriam inúmeras reclamações de outros funcionários que se dirigiam às mesmas varandas externas de pavimento de edifício justamente para o oposto da prática: respirar ar fresco e se expor ao sol de início de manhã ou final de tarde por alguns poucos minutos. Sempre o muito difícil conviver dentre semelhantes portadores de inúmeras diferenças de caráter e comportamento. Não traria peso na consciência sacrificar trinta minutos dentre o expediente de trabalho, não seria um sacrifício, muito pelo contrário, não para a funcionária dedicada de longa data de empresa, mas haveria de fazê-lo de forma secreta, para seu enorme bem-estar, e com a mais pura e funda convicção de que sua prática muito íntima e inusitada lhe traria ótimos e produtivos benefícios ao longo de toda a jornada de trabalho, convicção de que assim aliviaria as suas penosas dores crônicas na coluna vertebral, lordose e escoliose juntas e misturadas, uma coluna defeituosa de nascença, maltratada por anos de postura errada viciada, a maior parte de sua vida enquanto desconhecedora da ciência quase mágica da yoga. Coluna defeituosa, fruto de postura ereta do Homo sapiens, resquício de seus tempos recentes enquanto primata a caminhar desajeitado e ineficiente apoiado sobre quatro membros. Após
prolongada
e
detalhada
observação
anotou
mentalmente os horários mais convenientes, escolheria alguma opção dentre os curtos períodos disponíveis, as trocas de turnos de
trabalho de outros profissionais colegas de serviço que haveriam de transitar dentre as saletas de armazenamento de unidades físicas computacionais, um horário de expediente de bem menor movimento dente o edifício bancário todo, horário oposto aos atendimentos em agência bancária localizada em andar térreo. A extensa noite adentro, madrugada adentro, alguns setores e seções que jamais paravam, jamais desligavam suas luzes, luzes acesas e consumindo energia vinte e quatro horas, funcionários terceirizados de manutenção a constantemente escalar degraus de escadas portáteis e retráteis substituindo compridos tubos esbranquiçados, lâmpadas fluorescentes de quase um metro de comprimento que ainda eram utilizadas e que, por diretriz interna da empresa, aos poucos seriam gradualmente substituídas por lâmpadas mais modernas, mais econômicas, e propagandísticas politicamente corretas, as lâmpadas de LED. Não foi decisão abrupta, impensada, bem sabia que o local e horário deveriam ser muito bem elegidos, bem sabia que seu particular exercício físico e espiritual em estranha posição pontacabeça haveria de ser realizado conforme o roteiro e ritual estrito, e isto demandaria tranquilidade ambiente e relativo silêncio, demandaria concentração, seria impraticável em meio à qualquer balbúrdia ou ruído, em meio à presença de outras pessoas que não estivessem em mesma vibração, conforme ela bem costumava e adorava dizer, pessoas que não estivessem em mesma sintonia e irradiando uma mesma energia positiva e construtiva. Adorava relatar e passar horas defendendo a sua tese particular sobre as energias e vibrações interiores, as boas e más auras exaladas ao redor das pessoas, seus campos magnéticos de influência corporal
e espiritual, o lugar e posicionamento muito específico e muito determinado que, em tese, cada cidadão de bem deve ocupar em pretensa sadia e organizada sociedade multidiversa. Algo assim. Após criteriosa observação elencou o momento mais apropriado, havia meses notava que a mudança dentre determinados turnos de trabalho de colegas de setor não se alterava, havia meses notava que um período crucial era disponível enquanto ela estivesse praticamente só no setor, somente ela em companhia de cabos de fibra óptica e computadores sempre refrigerados pelo zumbido baixo e inadiável de dúzias de ventoinhas. Alguma lacuna de tempo, período crucial, anotou e travou em quarenta minutos dentre seu horário noturno de expediente, desde as vinte e duas horas até vinte e duas e quarenta, quando em ponto costumava chegar para o início de expediente mais dois funcionários que acompanhariam as máquinas em saletas quase isoladas e ficariam de plantão até o raiar do sol, por volta de seis, seis e meia da manhã. Anotou os melhores horários e oportunidades, os elencou, criteriosa e demoradamente, não poderia errar, não poderia haver escolha equivocada, bem sabia que seu exercício peculiar físico e espiritual demandava serenidade e relaxamento, demandava profunda concentração mental, e, tal qual adorava dizer, a mais completa ausência de influências vindas de energias negativas desbalanceadas emitidas por pessoas em indesejadas frequências de vibração anímica de aura acinzentada. Algo assim. Belo dia, bela noite, finalmente o primeiro teste, confiante, haveria de dar certo. Foi decisão muito bem pensada e refletida, haveria de ser boa solução, benfazeja, o seu crescimento espiritual,
um dia seu chefe imediato haveria de compreender a situação. Tudo seria, afinal, planejado e executado para o seu bom e melhor desempenho, para um maior rendimento e maior produtividade ao trabalho dedicado. Consciência absolutamente tranquila, bem estruturado um argumento álibi, bem estruturada e planejada uma justificativa e uma satisfatória explicação caso necessária. Não queria dá-las, achava que não precisaria, manteria a sua prática íntima em segredo absoluto o tanto quanto possível, mesmo sem imaginar ou esperar uma certeza de cem por cento, mesmo prevendo que sempre haveria a possibilidade de alguém vir a descobrir tal íntima e muito dileta confidencialidade. Valeria a pena, valeria tudo, consciência tranquila, mente e corpo são, acima de tudo, isto desejava, corpo são em mente sã, um dia todos haveriam de compreender, a humanidade errante e de má postura viciada física e espiritual, de más vibrações e sintonias. Haveriam de compreender. Belo dia, bela noite, pôs-se em posição, ao canto de duas paredes em saleta, estratégica, relaxada, não poderia haver ansiedade em primeira tentativa, a almofadinha pouco volume ocupava, a deixava embrulhada em gaveta particular, sua mesa de trabalho, pouco volume ocupava, pequena, apenas a cobria com outro pano ornamentado para disfarçar um pouco, e com isto inundava a gaveta do trabalho por deliciosa fragrância de flores de macela frescas, parte de seu ritual, também a sua mesa de trabalho haveria de ser energizada por bons fluidos. Grata felicidade a primeira noite de ousadia, a segunda, também a terceira e as subsequentes noites de turnos de serviço ao banco. Estava contente, feliz até, tudo dava certo, parecia dar certo, conforme o
planejado, sua coluna vertebral revigorada após o exercício, sentiase capaz de suportar mais horas e horas sentada sedentária atrás de mesa de trabalho, à frente de inúmeros monitores de informática. Tudo conforme o planejado. Estava contente, satisfeita por sua certeira e refletida escolha de vida profissional. Paixão sempre ascendente pela yoga, bem-aventurados desenvolveram havia milênios.
aqueles
que
a
Uma pequena revolução, esperada e prognosticada, previu que a prática diária milenar a aliviaria, justamente em momentos do dia quando algum feixe muscular inadequadamente retesado pela fadiga posicional mais a afligiria. Belo o dia e bela a noite em que iniciou nova rotina após tomar devida coragem, após devido planejamento e análise, após imaginar e projetar cenas mentais, imaginar-se filmada pelas câmeras de segurança do setor de informática aos pontos de cobertura dos equipamentos de monitoração, quase todos os corredores e interiores de saletas, à exceção de um ou dois pontos-cegos que somente ela e bem poucos outros funcionários de confiança teriam acesso, descobertos por acaso, de tanto verificar as cópias de segurança das gravações digitais que eram armazenadas por sessenta dias e então apagadas em definitivo. A empresa contratada para o monitoramento de segurança por meio de filmagens não os revelaria, os críticos pontos-cegos, somente seriam descobertos após criteriosa análise e comparação dentre o mosaico inteiro de imagens fragmentadas todas ladeadas e sequenciais que, em telas de monitores, exibiriam o alcance exato de cada posicionamento estratégico de câmera. A praticante apaixonada de yoga saberia.
Aproveitou-se, para próprio benefício, mas com a consciência tranquila, segura de fazer boa ação, sua atitude unilateral para melhorar o desempenho profissional e estender seu período útil de vida enquanto contratada. Estender ainda por bons anos sua carreira em mesma instituição e mesmo contrato de trabalho, quem sabe até a aposentadoria, quem sabe, se o banco não viesse a entrar na recente onda de concordatas e falências, aquisições, fusões ou dissoluções. O próprio sistema bancário em autofagia, se engolindo. Impossível deixar de imaginar em fantasias mentais as metáforas
claras
de
cardumes
predadores
vorazes
de
megatubarões capitalistas. Belo o dia e bela a noite quando tudo começou. Passou a trabalhar com bem mais ânimo, mais vigor, claramente percebeu um aumento na própria produtividade, seu chefe imediato haveria de reconhecer, haveria de notar sua melhor disposição e ainda maior agilidade e rapidez ao cumprir as tarefas as quais sempre se mostrou satisfatoriamente ágil e sucinta. Um achado, esperado, prognosticado, não um achado qualquer, a prática já era usual em seu lar, mas o achado de poder exercê-la também dentre o expediente de trabalho, dentro da profissão, um achado, exercê-la quase livremente. Quase. Tudo corria bem, conforme o planejado, haveria álibi, carta de valor oculta na manga caso porventura descoberta e questionada, e sua autoconfiança aumentava a cada nova semana de exercício secreto e muito íntimo de sua prática ritual milenar. Tudo corria bem. Alguns funcionários tinham por hábito exercitar punhos e dedos para a prevenção de lesões por esforço repetitivo, ela teria seu hábito particular de ficar em posição ponta-cabeça vertical apoiada pelo
crânio sobre almofadinha de macelas frescas em profunda meditação silenciosa. Belo o dia e bela a noite quando tudo se iniciou, uma pequena revolução. Não esperava que em outro belo início de noite aparecesse Marta. Marta era famigerada dentre os funcionários do banco. Marta era sempre assunto de conversas de corredor, Marta era a Marta do Banco Metropolitano da capital. Que ninguém ousasse contestá-la ou meter-se em seu caminho. Muita coincidência talvez, talvez não. Haveria de ser extrema coincidência de fatores incompatíveis, as leis da natureza e do destino agindo soltas e aleatórias. Havia tempos a praticante de yoga não mais acreditava em coincidências. Quem acredita em aura, acredita em karma, portanto mais coerente deixar de acreditar em coincidências do destino a cruzar caminhos dentre diferentes personalidades aleatórias. Marta chegou, disse pedir transferência temporária, o chefe aceitou, a ela submisso, não a contestaria, não a funcionária mais longeva da instituição, a única a conhecer e ser secretária íntima do primeiro presidente nacional da empresa há tempos falecido. Pediu transferência temporária, alegou cursar em período imediato ao antigo turno de expediente um curso de espanhol que estava adorando, alardeou que estava adorando falar espanhol com sotaque madrileno, a língua dentre os dentes, que tudo seria um charme só, uma beleza, e que ela ficava ainda mais bonita e com aparência jovem ao pronunciar trechos de canções do Julio Iglesias com sotaque e dicção beirando a perfeição. Com a mudança, parte do expediente diário entraria em intersecção com parte do expediente diário da apaixonada praticante de yoga, também ela de alguma data de casa, mas que
jamais tentasse sequer se comparar ao desempenho ou às façanhas profissionais históricas de Marta, a qual chegou, chegando, espalhafatosa, como era de seu costume e prática consolidada dentre a instituição que há décadas a contratou. O reconfortante hábito não deixaria de ser uma prática egoísta, que demandava pensar em si em primeiro lugar, e quase tão somente em si. Ótimo durante um bom tempo, enquanto durou, haveria de durar ainda mais, não seria uma Marta qualquer a chegar e cruzar o seu caminho, sem aviso prévio. Marta que ficasse em seus setores preferidos de expedientes próximos aos supervisores, os poderosos chefões, por onde sempre gostou de transitar e de se exibir, por onde sempre gostou de se vangloriar ter sido íntima do presidente mais importante de todo o histórico de instituição bancária de renome nacional e internacional. Ótimo durante um bom tempo, enquanto durou, bons vários minutos de meditação em ponta-cabeça faziam verdadeiros milagres, um alívio imediato das tensões e músculos retesados, das dores nas costas, uma correção posicional, de coluna, espinha vertebral, a base de sustentação de todo e qualquer ser humano no planeta Terra. Mente sã em corpo são. Não haveria de ser cem por cento sã uma mente que, envergonhada, também não poderia em paralelo negar sentir algum desprezo e certeira desconfiança a outras pessoas. Envergonhada ao admitir boa dose de egoísmo, ao desconfiar e ao questionar as boas intenções da histórica funcionária espalhafatosa, excessivamente maquiada, inegavelmente intrometida, cujos assuntos diários e diálogos eram predominantemente estéticos e superficiais, e que decidiu-se por mudar temporariamente de setor
de trabalho à guisa de voluntarioso espairecimento. Afora a admiração por Julio Iglesias. De dia para outro retornaram fortes as dores de cabeça, a enxaqueca que nunca abandonou a praticante apaixonada de yoga, incômodo antigo e corriqueiro que nem a técnica milenar haveria de sanar, aliviar certamente, mas desde que praticada com frequência e disciplina. E foi justamente a interrupção brusca da prática o que trouxe, de dia para outro, o retorno de sua companheira de longa data, a mais do que presente e conhecida temida enxaqueca. Não haveria qualquer possibilidade de colocar-se em posição inusitada em canto de saleta sob os olhares de outras pessoas, ainda mais se tratando da famigerada Marta, jamais. Necessitava serenidade e meditação, e também necessitava de um mínimo de compreensão e tolerância, coisas que encontrava em seu grupo particular de amigas, todas praticantes de técnicas espirituais milenares, e que jamais encontraria em meio a um ambiente de trabalho burocrático onde dezenas de pessoas haveriam de transitar diariamente, cada qual com a sua peculiaridade e crença, seus gostos e afinidades, gostos e afinidades bastante íntimos e quase consolidados. Os vícios egoísticos. João Pedro que não mais poderia fazer sua digestão pós-almoço quieto e estirado dentre caixas de papelão espalhadas pelo carpete cinza bem pouco espesso do arquivo morto, o intruso que chegou de surpresa, sujeito bem apessoado, jovem e promissor, pelas proximidades, bem ao lado, aguardando também estirado no arquivo morto o melhor momento para se lançar às ruas, aguardando amainar o trânsito de veículos e a movimentação das avenidas engarrafadas em pleno horário de rush. O jovem e promissor na profissão, sorridente, de voz até agradável,
voz modulada e de bom timbre e sonoridade, histórico de radialista, porém intrometido, em má hora, péssima, e que não conseguia parar um minuto sequer de falar e falar em sequência, um assunto emendado ao outro. Silvia, a praticante de yoga, que não mais poderia aliviar suas dores e a tensão acumulada de seu trabalho e rotina, o filho que começava a lhe trazer sérias preocupações, ela na labuta, cinco anos em mesma repartição da instituição bancária, convivendo em mesmas saletas apinhadas de cabos e fibras ópticas, saletas apinhadas
de
computadores
emitindo
zumbidos
vindos
de
ventoinhas de refrigeração. Não mais poderia endireitar a sua coluna vertebral e com isto aliviar os sintomas da conhecida e muito íntima sua enxaqueca. De dia para outro, após a chegada de Marta, viu-se tolhida do hábito, viu perder-se na atmosfera fugidia todo o brilho e o frescor do novo, perder-se no ar a revolução ao descobrir poder praticar o seu exercício milenar em um ambiente de trabalho retirado, meio escondido, em ponto-cego não detectável pelas câmeras de segurança. Vinte, trinta minutos enquanto solitária, quando poderia se aproveitar da mudança de turnos entre funcionários e se deliciar com o ritual de sua maravilhosa almofadinha de flores desidratadas e frescas, aromáticas, emissoras de energias e vibrações positivas, a fragrância e vibração únicas de flores de macela colhidas em territórios sagrados, óbvio, não qualquer mera flor de macela, mas tão somente as colhidas em sazonalidades de inverno em vales próximos a Itatiaia e imediações, as sagradas, míticas e espetaculares colinas e prateleiras rochosas do vale de Agulhas Negras.
Muito distantes do vale sagrado de florescimento das transcendentais fragrâncias e vibrações positivas de flores de macelas nativas, também outras culturas, além de tão somente outras distâncias, também outros contextos, geografias, climas, outras gentes, diferentes povos, praticamente todos haveriam de exercer voluntaria, ou involuntariamente, o direito nato e oficioso por sua parcela de egoísmo justificável pelo imaterial instinto de sobrevivência. Semelhanças mundo afora, o ser humano que foi capaz de evoluir no planeta e, em teoria, dominar seu território a partir de sua adaptabilidade. O raciocínio e a habilidade manual sobrepujando a força física. Foi capaz de evoluir e prosperar enquanto espécie biológica cercada por outras espécies competidoras em um embate feroz e brutal. Foi capaz também de evoluir de forma intraespecífica, o seu gene particular e egoísta demandando lugar de direito e posição de destaque dentre outros tantos incontáveis genes humanos, a sua descendência a agir de uma forma vantajosa e primordial, os seus filhos primogênitos, a sua tão criteriosa escolha por parceiros sexuais que lhe trouxessem novos rebentos à sua tão íntima linhagem de características muito desejadas. Um melhoramento genético em constante aperfeiçoamento, a escolha criteriosa, mediante critério e apuro, em detalhe, a busca pela sofisticação e performance elevada, um corpo físico vigoroso e proporcional, simétrico e sadio, em paralelo suportando uma mente ágil e sã, a mente higienizada e ativa, ligeira, uma mente dinâmica. Haveria de ser. Outros povos e outras gentes, outros contextos. Algo muito distante de João Pedro, de Marta ou de Silvia, a funcionária de filho problemático, porém outros contextos
haveriam de proporcionar claras similaridades. Um porteiro de gigantesco complexo de apartamentos residenciais populares, bem poderia ser o porteiro que revezava os seus turnos de trabalho no andar térreo da instituição bancária de renome nacional e internacional, o mesmo que haveria de conhecer de vista João Pedro e a grande maioria dos funcionários do banco, todos eles entrando e saindo diariamente, passando por sua frente, bem próximos, poderia diferenciar seus cheiros, alguns sorridentes, alguns preocupados, outros tensos, outros abstratos. Bem poderia ser o mesmo porteiro, aquele específico, que os mais íntimos e dados à prosa saberiam sempre trajar por debaixo do uniforme identificador de sua empresa de segurança a camiseta do time de futebol ou outro esporte do coração toda vez que o mesmo se apresentava em campo em dia anterior. Bem poderia ser o mesmo porteiro, qualquer um, no Brasil e no mundo, o mesmo porteiro um alguém de outro contexto, outra cultura e geografia, igualmente um proletário em labuta diária para sustentar esposa e três filhos pequenos, também ele guardaria similaridades e mesmo características idênticas, também ele teria lá os seus vícios e os seus comportamentos e hábitos adquiridos a partir de repetitiva observação de sua rotina diária. Um ser humano tal qual qualquer outro, com virtudes e deficiências, e, como qualquer outro, também muitas vezes predominantemente de fato egoísta. Em sua portaria de entrada em complexo residencial de centenas de apartamentos, confins do continente asiático, cidade de população excessiva, extravasando, aglomerados, gente aglomerada se empurrando umas às outras enquanto atravessava
as catracas de controle de fluxo da movimentada e barulhenta portaria, todas as pessoas empurradas e puxadas mediante uma situação econômica de extrema competição, todos competindo pela sobrevivência de suas proles, o contexto de tantas cidades espalhadas mundo afora, o contexto de uma cidade de Terceiro Mundo no Sudeste Asiático que bem poderia ser o Brasil atual ou ao menos quatro ou cinco outros países da América do Sul. Na portaria de entrada de complexo residencial de centenas de apartamentos populares de baixo padrão o porteiro meio suarento após carregar à avenida de trânsito agitado defronte dos prédios os vários e vários sacos de lixo diários produzidos por tão numerosa população de habitantes, um suor salgado pregado à camisa que rápido evaporava quando finalmente se sentou à portaria e sossegou, quase encostando-se em um ventilador barulhento e de segunda mão. Tal porteiro proletário e dedicado, esforçado, nascido em cidade do Sudeste Asiático tropical, mesmo sem ter adequada noção de outras realidades dispersas pelo mundo afora, guardaria também ele nítidas semelhanças com representantes de outros povos diversos de outros continentes, outras gentes e outras geografias, outras geopolíticas. Em sua realidade um patrão disciplinador, o seu chefe contratante, tratava os porteiros e faxineiros do complexo residencial de apartamentos com mão de ferro, exigia muito, e sempre protelava os prometidos aumentos de salário irrealizáveis. Gerenciava porteiros e faxineiros, dúzias deles, os porteiros em turnos contínuos revezados de vinte e quatro horas, abusivas cargas horárias de doze horas contínuas cada, os faxineiros também em turnos de doze horas contínuas, porém a estes durante
o claro do dia, manhãs e tardes. Aos porteiros era terminantemente proibido o acesso a quaisquer tipos de televisores, tão comuns em portarias brasileiras, assim aceitas, poucos os questionavam, apesar de todos saberem ser impossível manter olhares atentos em dois pontos focais distintos e de profundidades diferentes ao mesmo tempo. Nem as modernas câmeras de filmagem digital seriam capazes de focalizar duas profundidades simultâneas e em mesmo plano. Ainda não. Rádio era tolerado, não exatamente permitido, tolerado. O chefe patrão de baixa estatura asiática inversamente proporcional ao autoritarismo jamais disse expressamente permitir, se questionado diria não, mas achou por bem fazer vista grossa, fazer-se de desentendido, para não criar mais uma de tantas outras animosidades, para fazer-se de benévolo, um bom patrão e um bom e regular pagador. Um minúsculo aparelho de rádio à pilhas AA permitiu ele nas portarias do gigantesco complexo de apartamentos populares. Em ao menos uma destas portarias tal aparelho seria encontrado,
sempre
funcionado,
sempre
com
chiados
e
interferências incômodas. O porteiro suarento por sempre ter de trazer à avenida defronte os sacos de lixo amontoados de seus colegas faxineiros, pesados e asquerosos gotejantes sacos de lixo de incontáveis moradores de centenas de apartamentos minúsculos, tal porteiro dedicado e suarento haveria de se permitir algum luxo, alguma distração, algo mínimo que aliviasse a carga de trabalho contínua de doze horas. Poucos direitos trabalhistas em terras abafadas e sujeitas às monções sazonais da Ásia tropical, bem poucos direitos trabalhistas e isto quando não inexistentes em realidade. Não poderia sequer se ausentar para o almoço, devorava o conteúdo frio
de um pote de plástico trazido de casa, sentado ao pequeno cômodo da portaria, como sempre, como de costume, de onde deveria permanecer em alerta constante, quase sempre tendo de falar com moradores e cuspir sem querer pequenos e mastigados pedaços de grãos de arroz branco temperado com ervas locais e com muita pimenta, falar e almoçar ao mesmo tempo, mastigando e atendendo os moradores de passagem, sem descanso, sem pausa, sempre um trânsito contínuo de pessoas agitadas, um entra e sai permanente, sem qualquer tempo para descanso ou pausa considerável. Reclamar ao patrão contratante equivaleria ao taxativo pedido de demissão. Haveria de se permitir algum luxo, algum relaxamento e distração, ao menos, e o pequeno rádio à pilhas AA sempre emitindo seus chiados e interferências em muito o ajudava. Chiados e interferências em meio às falas do locutor da estação de rádio nacional, quando audíveis, nunca ao ar uma transmissão totalmente limpa e agradável, sempre um zumbido incômodo transmitido, a depender da posição em que colocasse o pequeno aparelho portátil ao longo do cômodo da portaria de pequenas dimensões. Ao lado da janela, acima da bancada, ou sempre a procurar uma melhor posição para a recepção, ademais a depender de tempo chuvoso ou dia ensolarado, alguns pontos específicos conhecidos onde conseguiria captar no ar pela antena esticada um melhor sinal de recepção, algo menos barulhento e algo ao menos suportável aos ouvidos. Grande diferença afastar o pequeno aparelho de recepção de ondas invisíveis de rádio, aparelho que funcionava ainda com pilhas AA, a despeito dos inúmeros modelos disponíveis a preço acessível,
os modelos de baterias recarregáveis em tomadas de força, de estilos que o porteiro fortemente desprezava, aos quais reputava como fajutos, vindos da concorrente China, horríveis e imprestáveis concorrentes segundo ele. Nada parecia vir de bom da vizinha China, isto aos olhos de seus conterrâneos ao menos. Grande diferença fazia afastar e buscar a melhor posição para o pequeno aparelho, sua recepção de ondas propagadas ao ar, em geral melhor funcionava ao afastá-lo das paredes do cômodo e aproximálo do corpo de uma pessoa. Magnetismo talvez. O dia seria histórico, não para todos, nem mesmo para os seus outros colegas de trabalho porteiros e faxineiros, mas para o porteiro suarento dedicado que sempre era o incumbido de trazer os pesados e asquerosos gotejantes sacos de lixo de moradores, então depositá-los ao chão da avenida de absurdo tráfego de veículos defronte. O dia seria histórico, para ele ao menos, pois seu time favorito de críquete, de bem poucos torcedores, haveria de disputar tenso e aguardado jogo crucial do campeonato. Ironias do destino, um esporte que se fixou em gosto popular, origem elitista, mas não seria o único desta natureza. O boxe atual lutado em ringues foi inicialmente praticado por aristocratas, dois terços brutalidade e um terço estratégia, para equilibrar, apaziguar. Por outro lado os variados e bem conhecidos casos e exemplos, esportes de origens mais populares e menos monárquicas, praticados em pátios de cortiços imundos de valas de esgoto a céu aberto temperados com temperaturas tropicais e umidades sufocantes, as chuvas da estação das monções no Sudeste Asiático que tudo varriam, que deslocavam paredões de água suja sugados de poças acumuladas eternamente aos chãos de terra batida nas
proximidades de enormes aglomerados de cortiços, incontáveis barracos de madeira de habitações sub-humanas. Doença, miséria, falta de planejamento familiar, fanatismo religioso e apego a crenças medievais. A bem de um mínimo de saúde mental haveria de florescer e frutificar um esporte popular qualquer que amainasse espíritos e deslocasse mentes ativas aos férteis terrenos fantasiosos da abstração. Para tantos habitantes e cidadãos não apenas uma mera abstração, longe disto, o porteiro moreno cor de chocolate com alto teor de cacau, cabelo preto muito oleoso e muito liso, sempre suarento e dedicado, que não contava ainda seus trinta anos, para ele fora na vida uma frustração prévia profissional. Jamais treinou o esporte preferido adequadamente desde então, e se viu forçado a abandonar sua particular tentativa de carreira profissional como jogador habilidoso e empenhado aos treinos. Impossível conciliar as duas coisas, o sonho de uma carreira esportiva remunerada e as doze horas de trabalho enfurnado em um pequeno cômodo de portaria em complexo residencial gigantesco, um expediente de trabalho somado às três horas diárias necessárias de deslocamento casa, emprego, ida e volta. Somente mais um dentre um enorme contingente de milhões de outros jovens frustrados, um em cinquenta mil haveria de ser bem-sucedido, e o jovem porteiro bem sabia já não fazer parte de qualquer estatística sensata ou esperança possível. Viveria ao trabalho e trabalharia para viver, nesta ordem. Se tivesse sorte conseguiria manter-se no mesmo emprego por dez anos ou mais, com mais sorte ainda viria a se aposentar com rendimentos mínimos e insuficientes, irrisórios, de impossível sobrevivência, mas mesmo
assim com muita sorte e acaso, caso conseguisse se manter no emprego por trinta e cinco longos anos ininterruptos. Não perderia a oportunidade, uma reclamação mais severa de morador do complexo de apartamentos populares equivaleria a sérios problemas e preocupações junto ao chefe, tão mais fácil ao empregador patrão de baixa estatura e alta arrogância, de autoritarismo inversamente proporcional ao tamanho, tão mais conveniente manter os seus funcionários mal pagos e em permanente estado de atenção e temor. Melhor seriam os resultados caso os mantivesse temerosos, a cada novo mês e a cada novo ciclo de contrato, todas e todos funcionários tementes e apreensivos, a todo o momento solícitos, competentes, e buscando e se esforçando para o aumento de desempenho e de rendimento. Fazer parte do serviço a atribuição designada a outros profissionais seria considerado fácil e até prazeroso, ao menos para quem não quer, e não pode, ser demitido sumariamente, da noite para o dia. O que seria carregar alguns pesados e gotejantes asquerosos sacos de lixo de milhares de produtores de esgoto, carregá-los dentre um percurso de trezentos metros entre as primeiras escadarias dos edifícios baixos e a avenida barulhenta de trânsito absurdo, o que seria de tão anormal? Só um esforço adicional, dentre tantos outros esforços adicionais demandados diariamente, não mais, dentre o já penoso esforço de três horas diárias ao transporte público, às vezes mais, percurso de ida e volta, em deslocamento desconfortável, transporte público coletivo abarrotado e estafante, o percurso repetitivo e monótono entre casa e trabalho, segunda-feira a sábado, doze meses ao ano.
Não seria, e não poderia ser a lhe ameaçar, a chance de alguma reclamação descabida qualquer quanto ao uso de um inofensivo aparelho de rádio portátil de pilhas em horário não permitido, não seria isto a lhe ameaçar, a lhe trazer maiores preocupação. Mesmo assim não se permitiria ao risco, haveria de se manter em linha, um cuidado extra ao evitar a todo custo qualquer animosidade, fosse esta com um morador que pagava taxa de administração e, portanto, que pagava o seu parco salário, ou fosse alguma animosidade com os colegas de profissão e de portaria. Colegas que poderiam ou não aprovar o seu gosto peculiar e a fanática paixão por um time de críquete tão inusual e desconhecido, que certo dia lhe trouxe esperanças de migrar de seu cortiço imundo levando mãe, esposa e três filhos, e mais um adicional quarto rebento a caminho de fazer-se ao mundo injusto e desigual de sua periferia superpopulosa. Haveria de se manter em linha. Televisores eram terminantemente proibidos no interior da portaria, mas pequenos rádios de pilha tolerados, embora nunca abertamente admitidos, o patrão contratante não se daria a aparentar ser um sujeito coração mole, a demonstrar afrouxar sua vigilância estrita, nem a sentir uma fração mínima que fosse de seu poderio e autoritarismo em questionamento, em uma questão de dúvida, jamais, então tolerava, fazia vista grossa, mas caso indagado de forma direta jamais permitiria abertamente nem um pequenino aparelho de rádio que fosse. Uma distração mínima, algum alívio, tornar a jornada de trabalho extenuante de doze horas ininterruptas um pouco mais suportável. Impensável, fora dos planos deixar de acompanhar ao
vivo a transmissão de partida crucial e histórica do pequeno e periférico time de críquete, impensável e fora dos planos deixar de imaginar-se lá mesmo, ao calor da peleja, disputando partida em campo de grama, rebatendo bolas de couro, tal qual um basebol com variações, correndo ligeiro, de quepe e calças brancas grudadas ao corpo, ele um promissor esportista profissional, faturando ao menos o suficiente para sobreviver e tirar mãe e família do cortiço imundo superpopuloso que habitavam. Um sonho de infância, irrealizado. Máxima frustração. Um ou outro ponto e localização muito específica na portaria faria o pequeno rádio de pilhas AA reproduzir a narração do locutor da partida de forma menos estridente, com menor chiado e ruído, de forma um pouco mais tolerável, que ao menos não fosse incômoda a ponto de enlouquecer todo e qualquer habitante do pequeno cômodo de abafada e movimentada portaria condominial. Mês após mês descobriu por empírica experimentação, quase uma ciência aplicada, com regras e procedimentos, o pequeno aparelho que melhor captava as ondas de rádio em posição tal, a depender de dia chuvoso ou dia ensolarado, se mais próximo da janela de alvenaria da portaria aos finais da tarde, ou mais próximo da porta de entrada pelas manhãs, mas sempre invariavelmente emitindo menor chiado e interferência ensurdecedora caso houvesse corpo qualquer por perto, homem ou cachorro de companhia, caso houvesse alguma massa de carne a emitir energia estática e calor. Haveria portanto de, tanto quanto possível, posicionar-se sempre o mais próximo que pudesse do pequeno aparelho portátil de pilhas e de sua antena de metal amassado esticada e já oxidada pelo tempo.
Impensável e fora de questão perder a narração transmitida ao vivo, partida de críquete crucial e histórica, impensável e fora de questão deixar de acompanhar tudo quanto possível de seu pequeno cômodo de portaria. Se necessário colocaria o pequeno rádio de pilhas no bolso, o levaria para aqui e acolá, descontaria a imensa interferência e chiado insuportável, mas ao menos tomaria conhecimento caso algum lance ou jogada mais decisiva fosse executado numa partida de extrema rivalidade, que na prática tinha noventa e cinco por cento dos torcedores de um único lado, o time mais conhecido e popular, o qual torcia e praguejava para que não ganhasse de jeito nenhum, um rival. Que milhões de torcedores ficassem desapontados, mas que não ganhassem naquele dia fatídico, que não abatessem jamais o seu pequeno e quase desconhecido obscuro time de críquete do coração. Caso tivesse que se deslocar por algum momento para fora da guarita, nas quase duas horas do dia enquanto seria disputada a aguardada partida de críquete, consideraria a si mesmo um desconto, que perdesse algo, alguma informação crucial vinda do locutor da estação de rádio, algo necessário a ouvir que, pelo excesso de chiado e interferência, não conseguiria compreender da locução realizada ao vivo. Procuraria ficar quieto a um canto, tanto quanto possível, ousaria pedir favor ao parceiro de turno, estavam combinados, depois retribuiria o favor em dobro. Se algum morador qualquer solicitasse serviço, iria fazê-lo o parceiro de turno, ele que se ausentasse por alguns minutos da portaria, depois retribuiria o favor, com isto poderia se concentrar mais, e, sobretudo, posicionar melhor o pequeno receptor de rádio para uma reprodução
minimamente audível e não comprometida por ensurdecedores chiados e interferências. Em quinze minutos tudo veio a desmoronar. O parceiro de turno não apareceu ao expediente justamente no histórico dia da transmissão ao vivo, mandou informar por recados que teve problema sério de falecimento em família, e que no dia posterior traria sem falta um atestado por escrito para justificar ao patrão. Este, por sua vez, rápido exerceu sua chefia e providenciou um substituto, remanejou outro funcionário de outro edifício em bairro distante, providenciou tudo, com rapidez e agilidade, pois não se atinava muito às leis trabalhistas de seu país, mas sim sabia honrar contratos, sim, e tinha palavra de honra. Foi assinado contrato garantindo seis porteiros em três diferentes portarias, sete faxineiros por turno, além de três vigias noturnos. Haveria de cumprir a palavra, haveria de manter-se na chefia e com a empresa aberta e ativa, a sua palavra de honra e confiança. Cientes da competição feroz, contingentes de trabalhadores sempre batendo às portas de patrões contratantes em busca de qualquer pífio contrato temporário, dezenas de outras empresas concorrentes no mercado, disputando o ramo de fornecimento de serviços terceirizados, neste contexto e competição jamais o sujeito franzino e diminuto chefe contratante autoritário vacilaria ou sequer exporia o seu ponto fraco. Depois repreenderia, humilharia, e quase chegaria a ponto de agressão física perante o porteiro que faltou serviço, ousou, e somente avisou e mandou recado de última hora. Se não tivesse sequer avisado, que não retornasse nunca mais, haveria de pegar as trouxas parcas e estaria sumariamente posto no olho da rua.
Em quinze minutos todo o planejamento de Vinay, o porteiro suarento cor de chocolate amargo, de cabelo muito negro, oleoso e muito liso, em instantes toda a sua previsão de combinar uma troca de favores com o provável parceiro de turno em portaria, seu plano traçado para acompanhar por rádio a partida transmitida ao vivo, tudo veio a desmoronar. No horário esperado o parceiro de portaria não apareceu, chegou apressado e preocupado um outro funcionário desconhecido, que não conhecia e jamais tinha sequer visto, muito menos compartilhado turno de expediente, muito menos em cômodo de portaria pequena onde pouco espaço havia para duas pessoas acrescidas a um cubículo interno sofrível e apertado tido como banheiro rústico. Haveria de ousar, máxima ousadia, nem tanto pelo funcionário que não conhecia, não por ele, que saberia ao menos reconhecer favores e trocá-los como moeda a negociar, mas por seu patrão autoritário de baixa estatura que, bem sabia, não perderia a oportunidade de obter informações preciosas mediante os rumores e boatos que usualmente infiltrava dentre os seus funcionários coagidos, ele sempre procurando os dividir, sempre vigiando para que não se organizassem em demasia, sindicalizados, não pleiteassem direitos, não exigissem ou se manifestassem e, sobretudo, não criassem íntimas amizades no trabalho, o que seria o equivalente a unir forças e argumentos contra o patrão. Jamais permitiria. Dividir e conquistar, enquanto chefe e proprietário de empresa bem conhecia o lema dos generais romanos antigos, melhor e mais prudente sempre semear e cultivar a discórdia, vigiar para que seus funcionários não se organizassem, não tivessem intimidades em demasia, não ousassem estratégias conjuntas de
agregação de forças contra o que fosse chamado por eles de opressão ou de qualquer tipo de exploração trabalhista. Jamais, isso não, não permitiria, não daria brechas ou sequer oportunidades. A máxima e inédita ousadia consistiria em Vinay assumir enorme risco, quase um risco de morte, supor que o funcionário temporário, de expediente a ser cumprido em doze horas e não mais, viesse a guardar segredos e ser confiável, pois não era segredo algum que todo e qualquer funcionário temporário servia como fonte de informação infiltrada e como fornecedor especializado de dados particulares obtidos ao longo de conversas confidenciais dentre os funcionários estabelecidos. Um infiltrado do patrão, algo assim. A considerar que todos admitiam ser interpelados previamente pelo chefe para ficarem de olho e denunciar qualquer desvio ou vício de comportamento dentre os funcionários efetivos de longa data, também haveriam de admitir serem capazes de guardar um pequeno segredo confabulado às escondidas, entre dois trabalhadores esforçados e dedicados, que tão somente queriam aliviar a pressão diária e a tensão ao longo de exaustiva jornada de trabalho contínuo. Um enorme risco a correr, nunca havia sequer visto antes o sujeito que chegou esbaforido, preocupado e cinco minutos atrasado, que chegou à portaria, ao posto de trabalho, em substituição temporária e repentina ao mais usual e conhecido parceiro seu de portaria. Um risco a correr, não parecia ser sujeito de grande confiança, antes pareceu ser excessivamente temeroso ao padrão, todos eram, assim agiam, sem novidades até então. Enorme risco a correr ter de confiar no sujeito, confabular intimidades, supor que o patrão autoritário de baixa estatura não o
pressionaria de jeito, como costumava e bem sabia fazer com maestria, com precisão e apuro. Bem poucos conseguiam escapar quando o patrão franzino emparedava os seus funcionários submissos e amedrontados em um momento certo e em lugar certo, preciso golpe, os pegava de jeito, em arapuca, sem chances de defesa ou tempo de reação, sem possibilidade de escolherem palavras escusadas ou justificativas outras. Uma encruzilhada moral. Vinay haveria de tomar ligeira decisão, escolher qual o rumo a seguir, como agir, o que fazer afinal, para que dentre todas e quaisquer hipóteses, não houvesse sombra alguma de dúvida quanto a ele ser capaz de acompanhar a partida transmitida ao vivo, acompanhar o desempenho de seu time de críquete de paixão, ele um fanático torcedor minoritário. Resolveu arriscar, uma dentre duas possibilidades, arriscaria o tudo ou nada, correria risco e confiaria que seu parceiro temporário de trabalho guardaria ao menos algum segredo, ou isto ou então perderia a transmissão do jogo ao vivo pelo rádio. Ninguém no mundo conhecido o demoveria da crença absoluta e infundida em sua alma de que torcer e imaginar cenários vitoriosos, realmente, e de fato muito realmente, realisticamente, haveria de influir com certeza no resultado final da partida em campo. Nação de população respeitadora de fundamentos religiosos arraigados, tradicionalíssimos, milenares, alguns destes fundamentos atados a conceitos extremos, dogmas e verdades inquestionáveis. O caldeirão de culturas mistas pronto e fervente, caldo nutritivo a ser colonizado por cepas de organismos oportunistas, crença e fé, preces e jejuns, abstinência, estudos e leituras, um único livro de cabeceira, a sua verdade íntima e
particular, a sua fé, muitas vezes um único livro a sobrepujar e a se agigantar sobre todos os outros disponíveis. Imerso neste contexto, não tardaria a fomentar uma fé cega, ter fé, recorrer vez por outra a entidades imateriais superiores, guias e gurus, tantos e tantos deles espalhados e esparsos, em cada bairro periférico de povoamento pobre e carente, tantos e tantos guias espirituais e gurus. Assim fosse, necessitaria torcer e direcionar energias positivas, os seus pensamentos de torcedor de críquete apaixonado, de algum modo seriam transmitidas tais energias e tais pensamentos pelo ar, nem que fossem decodificados e energizados por ondas eletromagnéticas de rádio, ou de qualquer outra forma viável. Considerando o porteiro não poder fazer-se presente ao estádio de críquete, teria ao menos a chance de tentar influenciar os jogadores distantes em campo e em tempo real, em mesmo minuto, mesmo segundo. A sua tensão e adrenalina seriam vívidas e bem reais, as mesmas sentidas pelos jogadores em campo distante, ele próprio um reles porteiro e ex-atleta frustrado. Praticamente nenhum fã apaixonado de esportes é apenas um mero torcedor, é antes de tudo alguém que desequilibra a própria razão e emoção interior, que acredita ser capaz de desempenhar um papel tal qual o dos jogadores efetivamente em campo, tal qual um esportista adicional no time, ele o torcedor, o reforço invisível escalado pelo treinador para disputar toda e qualquer partida oficial em campo. Arriscaria, correria o risco de ousar liberdades perante o funcionário desconhecido e temporário, tinha ao menos a fé necessária, a sua crença. Qualquer coisa possível exceto perder e deixar de acompanhar o desenrolar da
disputa de críquete em tempo real, minuto a minuto, segundo a segundo. Tudo menos isto. Bem sabia haver posição muito específica, um local certo a posicionar o pequeno rádio de pilhas AA que jamais aceitaria substituir por um modelo mais moderno e sofisticado, algum melhor e de bateria recarregável, mas que proibitivamente e certamente viria da vizinha rival China, que tantos empregos locais nacionais subtraía ao inundar regiões inteiras da Ásia com seus bens de consumo de valor monetário de venda impossível de ser igualado. Que fosse. Posicionaria o pequeno aparelho nacional de rádio próximo à porta de entrada da portaria de seu trabalho, o cômodo pequeno de alvenaria, uma das três portarias mais ou menos equidistantes do enorme complexo de edifícios residenciais de baixa renda. Posicionaria portanto o pequeno aparelho de rádio portátil próximo à porta, impossível localização mais evidente, todos o veriam, todos antes o escutariam e logo associariam de onde viria tal ruído e locução, uma associação mais do que imediata. Considerando o estado do dia, ensolarado e úmido, o período de meio da tarde, e principalmente e de forma determinante a possibilidade de, ao ficar defronte à mesa ao lado da porta de entrada da portaria, formar a desejada barreira de carne e ossos magnetizada que, sem saber ao certo como explicar, resultava certamente e de forma muito prática e inquestionável em uma melhor recepção das ondas eletromagnéticas. Uma transmissão com bem menos chiados e ruídos, suportável até, o que não era muito comum em outras situações quando o aparelho de rádio era deixado distante de qualquer corpo magnetizado, fosse gente ou o
conhecido cachorro de companhia. O cão preto de companhia que vivia pelas redondezas, que a ninguém importunava, habitué dentre os moradores, e que às vezes vinha das ruas meio fedido choramingar sobras de refeição junto à portaria. Tudo planejado, exceto o que não estivesse planejado. Não esperava a chegada do funcionário substituto, por outro lado o seu parceiro de trabalho costumeiro entenderia perfeitamente a troca de favores, não abriria a boca ao patrão, não era de seu feitio. Todos os funcionários que somavam mais de ano de experiência bem sabiam como agir e como não agir em questões de hierarquia, os limites de atuação claros, os riscos a correr, o que seria possível e o que seria impossível manter em seguro segredo e confidencialidade dentre os trabalhadores mais ousados e menos submissos ao patrão. Arriscaria. Vinay teve de pensar rápido, escolher ligeiro uma dentre duas opções, o menor dos males talvez, resolveu arriscar. Pela lei cotidiana empírica e não escrita pelos homens, um imprevisto é pouco, em geral eles aparecem súbitos e acompanhados, ladeados, até em trio, alguma lei empírica prática cotidiana que alguém nalgum dia vindouro qualquer virá a calcular, explicar e relatar de forma conclusiva e matemática, pôr em papel branco. O que fosse, assim acontecia, a combinação fortuita de acontecimentos inusitados que percorrem e se comprazem atravessando insólitos as vidas das pessoas e de todos os povos espalhados pelo planeta Terra. em
Aparecer do nada um funcionário esbaforido e preocupado substituição, pouco confiável quanto as conversas de
pequeninas rebeliões hierárquicas, isto foi pouco, muito pouco. Um imprevisto geralmente não surge solitário, gosta de companhia,
preza os devidos pares. No fatídico dia, dia histórico, não somente haveria enorme constrangimento ao arriscar ouvir rádio em pleno horário de serviço e em local de portaria que atrapalharia as trocas de informações diárias com as centenas de moradores dos edifícios, não só, não seria pouca coisa, uns quinze minutos antes do início marcado da transmissão do jogo de críquete pelo rádio aparece junto à portaria morador desesperado relatando vazamento catastrófico em banheiro de apartamento, vazamento já infiltrando ao apartamento do pavimento abaixo, solicitando utilizar telefone para comunicar a quem fosse a devida autoridade de direito, todo um enredo contado, em muito detalhe. Relatou dúzias de reclamações a um dos síndicos do complexo de edifícios, relatou tudo em detalhes, enredo novelesco, muita tensão e estresse envolvido, a receita mais do que pronta e perfeita para o colapso, para um final de dia dificilíssimo entregue aos porteiros, mais um dentre tantos, uma problemática a ser enfrentada pelos porteiros mal remunerados e sobrecarregados por jornadas excessivas de trabalho e plantões. Porteiros que faziam as vezes de faxineiros, quando necessário, e de quase síndicos, quando necessário, o que era considerado por eles como pior e bem mais difícil e penoso do que uma suja e demorada honesta faxina. Um morador muito considerado e respeitado dentre a comunidade formada dentre tantos e tantos inúmeros apartamentos, padrasto de um dos atuais síndicos de bloco, sujeito ativo, influente e a quem muitos se espelhavam como um representante local de anseios e desejos diversos. Sob nenhuma circunstância tal morador poderia ser contrariado, equivaleria a sentença de morte junto ao patrão de empresa terceirizada autoritário que não tolerava
desaforos ou questionamentos, menos ainda queixas advindas de clientes pagantes. Os porteiros teriam de solucionar e encaminhar a questão, não bastaria apenas comunicar as autoridades municipais envolvidas com o fornecimento de água e esgoto. Os porteiros teriam de dar conserto e solução ao menos a um improviso temporário, um remendo, algo qualquer que evitasse o gotejar contínuo e o acúmulo de água que não cessaria por uma noite inteira até a chegada tardia, caso chegasse, da conhecida ineficácia de uma companhia de águas e esgoto estatal. Um vazamento em encanação a importunar dia e noite caso não cessado. Sequer passar pela cabeça a ideia de ausência prolongada da guarita de portaria já foi o suficiente para fazer gelar o sangue do porteiro suarento esforçado ex-candidato a jogador profissional de críquete em time da região. Seria uma extrema má sorte, coisa de karma, impensável combinação fortuita de eventos indesejados. O que haveria feito de tão errado para ter de enfrentar, tão subitamente, tamanha onda de azar? Bom indício não seria, tudo vem em grupos de três, um provérbio local, duas outras temíveis más sortes, portanto eventos fortuitos implacáveis e mais do que certeiros ainda haveriam de abatê-lo. Vinay não era sujeito negativista, acreditava fielmente em seu deus e também em um panteão completo de outros deuses, sortido e vasto, de outros tantos deuses ancestrais milenares e muito amados do fundo de seu coração. Orou, torceu, pediu forças, energias e vibrações, pediu atenuação de karma, uma negociação pragmática justa e nada escusa. Prestaria serviço comunitário gratuito, daria o triplo de esmolas a monges budistas mendicantes nas ruas imundas durante todo o resto do ano, o que fosse, mas que não fosse jamais tolhido
inesperadamente de um justo e merecido prazer e satisfação ao presenciar em tempo real o seu time favorito de críquete que, certamente e assim já era prognosticado em uma curva etérea do destino das coisas, haveria de se sagrar campeão de torneio nacional de uma forma inédita e absolutamente contrária às probabilidades matemáticas. Não houve alternativa possível, não deixaria de lado a portaria com um estranho desconfiado e a desconfiar, pensou rápido, teve de raciocinar como animal acuado, uma lufada ligeira de instinto de sobrevivência, outro pequeno sopro de sagacidade, e mais uma fugaz porção dosada de ousadia a se somar. Ousou, ousou e orou, rezou interiormente suas preces particulares mais do que sagradas. Uma atenuação de karma, depois pagaria com juros e dividendos nas instituições bancárias de almas desgarradas mundo
espiritual
afora.
Ousou,
arriscou,
usou
de
alguma
capacidade de persuasão frente à situação, lançou mão de tudo aquilo, quase de tudo, aquilo que poderia engendrar quem estivesse encurralado tal qual animal acuado em um terrível beco sem saída. Posteriormente negociaria os detalhes e complexidades de seu karma mais do que particular. Considerando que rituais sagrados bem conduzidos por mestres iluminados gabaritados poderiam romper o ciclo pré-determinado de reencarnações sucessivas, o crematório de um cadáver às margens do Rio Ganges, o que seria de uma mera e justa negociação mercantilista com algum emissário divino autorizado? Assim pensou. Foi um bom final de tarde, memorável, inesquecível, ao ousar e ao negociar junto a seu panteão íntimo de deuses milenares, ao corajoso ousar, descobriu que alternativas havia em meio à mera
existência material e carnal de simples humano imperfeito mortal. Asiático, suarento e de baixa renda. Passou quase todo o resto do período de expediente de trabalho em justo atendimento ao morador influente e de múltiplas relações com os figurões presidentes de associações, líderes comunitários, inspetores de blocos de apartamentos, comunidade em geral. Um ex-síndico, na prática porém um atual ocupante do cargo, ao que tudo indicava seria um eterno síndico, mesmo de mandato vencido há tempos, ou na teoria apenas o padrasto de um deles, o verdadeiro, mas que jamais passou por devida eleição ou devida oficialização em papel escrito. Era quem entrou em gosto e em aceitação popular, isto mais do que bastaria. Morador influente tanto para outros moradores quanto para o patrão da empresa terceirizada prestadora de serviços. Não seria, e não foi, naquele final de tarde fatídico, cliente de respeito minimamente destratado ou desatendido. Um final de tarde memorável. Vinay se dirigiu ao apartamento indicado, atrás do vazamento de encanação, lá deu seu jeito de sagaz porteiro que deve sempre sobreviver com instinto e trazer ao final de mês a paga para o arroz e o peixe fresco de esposa e filhos pequenos. Suou em bicas, como de costume, nenhuma novidade, apartamento geminado apertado e abafado, pior ainda com excesso de umidade decorrente de vazamento inoportuno em encanamento velho que os proprietários não consertavam nem mesmo após cobranças metódicas e reclamações justas. Por seu lado, sob ameaças, jamais deixavam de cobrar dos inquilinos os devidos aluguéis infalíveis semanais. Um bom final de tarde, memorável, empapou a camisa com o nome e o símbolo bordado da empresa do patrão, encharcou-a de
um suor que logo azedou no corpo, um suor sagrado, por certo salgado,
deu
seu
jeito
no
vazamento
do
encanamento
comprometido, serrou e cortou, pelejou, se molhou todo, remendou, antes raspou cano para deixar rugoso, colou as partes e até quebrou uma parte da alvenaria da parede com marreta e talhadeira. Em quase duas horas de serviço árduo e suarento, desconfortável, em uma labuta de ambiente quente e úmido, em duas horas de trabalho teve a extrema e indizível felicidade ao ouvir inteira, sem interrupções, sem chiados ou interferências, a aguardada partida completa de seu time de críquete de coração em momento tão inédito e improvável de campeonato local de invejável projeção nacional. Não foi a presença de porteiro substituto temporário o que lhe trouxe a quebra inesperada do vício egoístico adquirido, o posicionar ao bel-prazer e desejo um pequeno aparelho de rádio, onde bem entendesse, para uma melhor captação de ondas eletromagnéticas dentro do cômodo da portaria. Não, não desta vez, ao invés levaria sábio ensinamento e experiência de vida, continuaria acreditando piamente e religiosamente que todos fatos corriqueiros chegam às pessoas em levas sequenciais de três, tais quais três ondas sequenciais em seu mar de praia de origem onde nascera, repleta de pescadores artesanais, a costa tempestuosa de Sudeste Asiático regada a monções e terríveis catástrofes naturais. Sim, tudo viria em ciclos de três, mas não necessariamente todos eles simultâneos, ao menos não necessariamente naquele dia memorável. Achou-se poupado, agraciado, o ciclo fortuito em número de três não seria exposto naquele final de tarde histórico e aprazível, ao menos não naquele. O local do conserto de vazamento
se mostrou praticamente perfeito para sua audição e torcida apaixonada.
4. João Pedro Datsi suspeita entender a evolução da vida no planeta.
Evolucionismo estudou, superficialmente, como leigo, seu conhecimento mais empírico do que catedrático. Necessários estudos e mínimas leituras: sociologia, geopolítica, antropologia, evolucionismo, História das religiões. Tudo aquilo que, espremido, concentrado e filtrado em grosso caldo, poderia ser em parte considerado como o âmago, a essência, o princípio ativo aromático essencial da Humanidade. Muita pretensão, arrogância mesmo. Que fosse. Esperar ter o conhecimento total e cobrar-se interiormente quanto a tal título honorário como algo imprescindível à concorrência representativa de seu povo, de sua cidade. Cobrar-se desta forma seria um claro exagero. Supôs impraticável. Mas que tentasse, mesmo imperfeito e incompleto que era, haveria de estar sempre de olhos e ouvidos atentos, sempre. Haveria de ser chegado enfim o seu momento, a sua guinada de vida, a decisão mais importante até então tomada em suas poucas décadas de existência enquanto ser humano frágil e mortal. "Viva como se fosse morrer amanhã, aprenda como se fosse viver para sempre". Pensamento um tanto cármico, reencarnal, um tanto distante das superpovoadas religiões anímicas do Sudeste Asiático ou Extremo Oriente longínquo.
Então o homem teria conserto, enquanto acidente evolutivo haveria de consertar-se, sim, uma autorremediação, pois voluntária, somente a ele próprio, a cada único representante da espécie, caberia a remediação e a reforma íntima. Acidente evolutivo, assim catalogado por evolucionistas e exobiólogos, na prática um evento orgânico biológico parcialmente bem-sucedido, mas nem tanto. Constatou-se cientificamente o ser humano um evoluído direto do verme, seu ancestral comum também ao chimpanzé quase seu primo e a todos os outros seres animais do planeta Terra: mamíferos, aves, anfíbios, répteis, o verme, os protozoários e tantos outros até as primeiras bactérias primitivas unicelulares. Esforço intelectual imenso e, por vezes, desgastante. O imaginar a evolução do homem a partir de uma bactéria, passando pela complexidade de um verme e então de um réptil. O que defendiam os evolucionistas e os exobiólogos era a casualidade pura e aleatória da evolução humana, um acidente de percurso dentre a imensa cronologia do planeta Terra. Ancestrais em comum, portanto quase a totalidade dos seres animais, guardariam claras semelhanças: boca, par de olhos, nariz, cauda, extremidades de aparelho reprodutor simultâneas ao aparelho excretor. Uma mesma embriologia, os embriões de cada animal que apresentam nítidas semelhanças em seus estágios germinais: espinha dorsal, sistema nervoso. Tudo muito parecido e concatenado para que não seja jamais negada a evidente correlação entre diferentes espécies animais, seja um peixe, um anfíbio, ou um franzino mamífero bípede primata. Ao se supor que a vida na Terra tenha mesmo evoluído por fenômeno peculiar interior. Ao se supor que a panspermia cósmica
não desempenhou papel crucial em uma dispersão de férteis e viáveis propágulos que vieram a atingir o sistema planetário solar bilhões de anos atrás. Se tal, se a panspermia cósmica ocorreu em vizinhanças, ao menos todas as imaginativas e fantasiosas ficções científicas não seriam isentas de relativo acerto. Ao menos então se justificaria que seres extraterrestres haveriam de possuir também uma boca, nariz, e par de olhos, postura ereta, tudo muito bem conveniente e contemporâneo.
assemelhável
ao
ser
humano
terráqueo
Perfeita e miraculosa vida. Há controvérsias, alguns estudiosos ponderam. Dentre todos os animais os humanos estariam em vantagem competitiva por possuírem maior capacidade de raciocínio, um único fator dentre outros tantos, desenvolvida a partir de uma postura bípede diferenciada aos outros primatas que lhe permitiu percorrer maiores distâncias enquanto caminhava, lhe permitiu se deslocar com menor gasto energético e, ao mesmo tempo, reservar mãos livres para manipular objetos quaisquer. Em paralelo possuía comparativamente olfato menos sensível, visão, audição, possuía imprecisa percepção magnética, carregava cóccix e apêndice intestinal que somente lhe causariam problemas e complicações, possuía uma andadura ereta a constante contrariar o melhor desempenho mecânico, a contrariar as leis físicas, tanto quanto as juntas dos joelhos não projetadas para as necessárias cargas repetitivas e consecutivas. O homem e mulher nem tão perfeitos assim que apresentavam extremidades de aparelho reprodutor e aparelho excretor simultâneas, um permanente risco de infecções e morbidades tanto quanto as verificáveis em início de trato digestório simultâneo ao trato respiratório.
Algumas
imperfeições
residuais
em
meio
a
tantas
semiperfeições. Imperfeições algumas em meio aos mecanismos fisiológicos de extrema engenhosidade e eficácia, o sistema de ecolocalização sonar dos morcegos mamíferos voadores, a estrutura e funcionamento admiráveis do sistema ocular dos polvos marinhos moluscos ditos insignificantes. Haveria, afinal, esperança plausível para o destino futuro do ser humano? Enorme pretensão João Pedro questionar-se, tinha consciência de sua enorme pretensão, a mesma enorme pretensão e esforço intelectual ao suspeitar entender como e quando um Stephen Hawking evoluiu após milhões de anos de mutações somadas de uma bactéria unicelular primitiva. Imenso esforço intelectual e capacidade imaginativa, talvez nem tanto, visto que o extraordinário e coerente físico ateu foi acometido por doença degenerativa em tenra idade, um cisco imperfeito dentre os genes humanos alardeados como miraculosos e sublimes. Caso tivesse vivido alguns milênios atrás seria provavelmente abatido em pilhagens e violências intertribais ou simplesmente abandonado ao relento incapaz de autossobrevivência. O caminhar da vida no planeta Terra às vezes se mostra aparentemente cruel, beirando o sádico, implacável certamente, tal qual a ação de um manipulador soberano de fantoches que se apraz mediante o sofrimento e aflição de suas marionetes dirigidas e articuladas centímetros abaixo de si. “Faço o homem a minha imagem e semelhança”. Faria sim algum sentido se a vida no planeta Terra comprovadamente fosse um gérmen semeado de corpo cósmico viajante por galáxias e eras imemoriais, um gérmen presente encistado e congelado, escondido em suas profundezas terrenas, incrustado em corpo astral vindo de
confins quiçá de outras galáxias que hoje nem mais existiriam, suas luzes que vistas do Sistema Solar refletem uma imagem capaz de viajar por bilhões de anos-luz. Uma galáxia antiga de bilhões de anos de idade que passou por processo de florescimento e colapso, uma transformação a partir do desenvolvimento em fornalha, posterior arrefecimento, e subsequente expansão cataclísmica de seus sóis imensos borbulhantes. Então não seriam tão despropositados os clássicos de ficção científica expondo criaturas diversas de diferentes galáxias todas com olhos, nariz e boca. Um tanto quanto semelhantes ao padrão de vida na Terra. O mecanismo maravilhoso dos olhos animais, ou nem tanto. Degenerações de mácula, de retina e tantas outras decrepitudes a aparecer com o passar do tempo, alguns até mesmo em precoce idade, mas certamente a acometer todos e todas bem antes que o organismo completo do infeliz ser entre em direto ocaso e venha a se findar. O olho um nervo exposto, extremamente sensível e vulnerável, imperfeito portanto. Estúpidos e resilientes tubarões marinhos e crocodilos africanos também vulneráveis caso alguma infeliz presa abocanhada a se debater consiga golpeá-los com uma acurácia de centímetros bem em seus globos oculares imprudentemente expostos. Davi contra Golias. Não haverá Golias estúpido que não exponha de forma nítida a imperfeição em possuir um nervo exposto em sua fronte. Não à toa a ficção científica foi criativa e imaginativa ao supor criaturas alienígenas bizarras simplesmente sem globos oculares, que poderiam assim atirarem-se ao combate aberto e sanguinário sem receios e de forma inescrupulosa, afinal tantos e tantos outros mecanismos possíveis conhecidos haveria de visão e captura sensitiva, a formação de
imagens por percepção térmica, por matizes infinitos entre tonalidades de luz claras e escuras, matizes que poderiam ser perceptíveis pela pele ou por qual fosse o revestimento externo da dita bizarra criatura. Os mecanismos avançados de formação integral de imagens complexas e de cenários completos a partir de sonares de ecolocalização, a partir de uma emissão e recepção conveniente de ondas acústicas vibratórias autogeradas por um mamífero voador. João Pedro Datsi percebeu fagulhas de entendimento, um enorme esforço intelectual, pretensão até mesmo, mas sim, julgou compreender algo a respeito do intrincado funcionamento humano, ainda que imperfeitamente, não integralmente. Não se atreveria a mergulhar no oceano profundo e às vezes quase proibitivo da estrita teoria da evolução de Darwin em constante embate involuntário frontal às teorias fundamentalistas religiosas, os dogmas pétreos e os tabus intocáveis que insistiam em questionar irresponsavelmente a averiguação da ciência moderna. Sim, seria menos difícil intuir um pouco sobre biologia, de fato admitir a engenhosidade quase absurda da vida no planeta, os arquitetados mecanismos de adaptação dos seres animais e vegetais, toda a sua complexidade notável e imensa, sua evolução lentíssima através de inúmeras gerações. Também não seria tão difícil reconhecer que imperfeições havia, que em muito se justificaria a hipótese de que a vida está em constante e flexível aprimoramento, os mais fortes ou adaptados suplantando quase sempre aqueles fracos ou não capacitados. Seria uma matéria e um assunto de vestibular aos adolescentes. O estudar textualmente que o sistema respiratório de mamíferos é extremamente dependente e limitado, que muita
umidade é necessária ao seu íntegro e perfeito funcionamento, muita água armazenada, os alvéolos pulmonares em trocas constantes de gases antagônicos, um gás residual e um gás renovador, mas sempre reagindo sob necessária umidade que é perdida ao ambiente exterior. O feixe visível de água microscópica que logo se condensa ao ar ao ser expelido do sistema respiratório, boca e nariz, retirado dos mamíferos em dias frios de temperaturas bem inferiores aos trinta e sete graus centígrados de seus organismos, em média. Portanto mecanismo fisiológico muito dependente, de água. Não à toa o conhecimento popular reza que se pode ficar algumas semanas sem alimentação, mas bem pouco tempo sem ingerir água fresca. A constante e às vezes excessiva perda de água do organismo devido ao mecanismo orquestrado de respiração pulmonar. Uma mesma vantagem prática aos machos da espécie constituindo em contrapartida uma desvantagem prática para as fêmeas de mesma espécie. Injustiça evolutiva ou injustiça divina criacionista, vinda inadvertidamente de um arquiteto cósmico dotado de poderes que extrapolariam os domínios do puro milagre e do misticismo imaterial. A anatomia dos machos de quadril compacto que facilitaria a mobilidade e o ato de rápido deslocamento enquanto bípede ereto, um quadril compacto quando somado às pernas em disposição aproximadamente paralela e retilínea. As fêmeas de mesma espécie que obviamente não se submeteriam ao não agraciamento divino, um menosprezo, também elas mereceriam o caminhar ereto bípede, porém estas pagariam um oneroso e agoniante tributo ao destino. Haveriam de sofrer dores lancinantes indescritíveis, haveriam de penar em cada único ato de parir suas
crias, a pélvis comprimida e o canal vaginal pouco simétrico decorrentes de postura ereta bípede, um imenso risco de óbito contido em cada único ato sublime de expulsar ao mundo a sua prole e descendência. Das trevas profundas do útero ao mundo iluminado. Dar feixes claros e sábios de luz ao nascedouro. Dar luz ao filho, dar a luz. Algum esforço intelectual, mas nem tanto, o que fosse matéria e assunto de prova vestibular estaria de razoável tamanho, uma tarefa adolescente, primária, mais do que o suficiente a quem ousava e pretendia ingressar no complexo e penoso universo da política democrática partidária. Que houvesse preparo e capacitação, não se trataria de tarefa simples, necessária alguma labuta aos mais fracos e mais ingênuos. Mas não seria exatamente o evolucionismo ou a panspermia cósmica e exobiologia os focos de João Pedro no momento. Outras prioridades bem mais imediatas: ler e estudar ainda dúzias de volumes de obras para se inteirar de forma razoável acerca da história da política partidária no Brasil e no mundo. Um assunto bem mais terreno e realístico, cotidiano. O apoio, mediante políticas públicas, aos contingentes populacionais em risco e penúria social. Foco às populações mais miseráveis e em risco social, pouco tempo e energia disponível restará às elucubrações filosóficas, encruzilhadas científicas, e aos complexos dilemas existenciais modernos humanos. Uma preocupação bem mais cotidiana e contemporânea, a situação geopolítica e econômica dos países ditos em desenvolvimento, aí sim a sua temática de maior interesse, aquilo que deveria saber e ler obrigatoriamente, o que deveria aprender, e aplicar no dia a dia mais cotidiano. Tudo aquilo que em breve seria
muito necessário ao seu processo planejado de campanha em candidatura eleitoral político-partidária. Procurar a todo custo entender minimamente o comportamento das pessoas, as que estivessem ao seu alcance e viabilidade ao menos, inseridas em seu contexto, seu país e Nação. Entender o que se passa diariamente dentre a labuta da sobrevivência dos trabalhadores e das mães de família proletária, o seu claro universo amostral que seria muito diretamente o fator preponderante e decisivo para que algum dia qualquer, se bem-sucedido, viesse a ser eleito democraticamente de forma majoritária em pleito eleitoral regional após a devida vinculação político-partidária. Tudo e todos sempre inter-relacionados, o entender a cabeça das pessoas, seus pensamentos cotidianos de trabalhadores braçais e mães de família atribuladas e sobrecarregadas, a realidade prática e a teoria científica comparada, a teoria sociológica, antropológica, a teoria política. O ser humano enquanto animal político. A massa encefálica pouco utilizada, apenas uma porcentagem dela, ao que se indica. Descobrirão em breve futuro bem mais a respeito de espaços aparentemente pouco utilizados, uma imensa quantidade de massa cinzenta cerebral composta de proteína, minerais e gordura, por si só insensível à dor, que seria capaz de justificar o título de perfeição biológica atribuído ao Homo sapiens sapiens. Talvez nem tanto. Se mecanismo perfeito e impoluto fosse, não haveria os tantos por cento de massa encefálica aparentemente com baixa utilização, só para pesar a cabeça e consumir energia. Se mecanismo perfeito fosse o homem, não haveria as terminações nervosas menos ajustadas do sistema ocular humano em comparação aos extraordinários olhos dos
polvos marinhos. Uma prática bem mais cotidiana, realística e urgente. “Quem tem fome, tem pressa”. Os enormes contingentes de populações desfavorecidas e em gritante risco e penúria social. Teoria e prática, a constatação diária e crua, nua e crua, nada utópica, o sombrio taciturno cenário de um contexto racional e quase nada emocional. Um esforço constante e muito necessário ao deixar de lado, tanto quanto possível, o componente emotivo em favorecimento ao mais significativo componente racional e científicomatemático. A experiência humana no planeta Terra fracassou, ou algo assim, algo bem próximo disto, em tradução livre e espontânea. O controverso sujeito, amado e odiado, tal qual todo e qualquer personagem controverso, o cineasta dinamarquês Lars von Trier certa vez taxou esta máxima contundente, ácida e corrosiva. Máxima que não deva vir dele exclusivamente. Nada se faz ou se pensa contemporaneamente que já não tenha sido aventado por filósofos e pensadores da Antiguidade, os gregos tanto quanto os filósofos do Extremo Oriente, tudo está lá, há milênios escrito, basta vasculhar e pesquisar com acurácia e com o devido espírito crítico, basta procurar com a devida cautela e com o necessário comedimento para não cair em armadilhas históricas, em geral basta ter olhos de ver ou alguma percepção mais afinada que seja. A História contada exclusivamente pelos povos vencedores e a História que seja a mais conveniente e digerível, somente os fatos que sejam os aceitáveis ou os politicamente corretos, somente os fatos mais facilmente absorvíveis. Não, não estes, mas a completude imprescindível da História, a sordidez incluída, o egoísmo, e a lascívia humana também, os genocídios inúmeros
praticados sobre populações de indefesos enfraquecidos em nome e em honra das religiões terrenas e em nome da luz sagrada de um deus supremo onipresente e onisciente. João
Pedro
perguntava-se
interiormente.
Haveria
de
consertar a humanidade ao ingressar a política partidária? Colossal e irreal pretensão. Um grupamento humano seleto e capacitado, quanto menos um único cidadão solitário, insignificante, jamais haveria ele de mudar de lugar um milímetro sequer da linha tortuosa exposta em gráfico matemático abstrato, o rumo e o curso de toda a humanidade conhecida. Necessário se faria todo um contexto favorável e claramente disposto, visível e acessível, haveria de ser esta a premissa mais do que fundamental e inquestionável. Ele jamais mudaria algo, mas pôde vislumbrar alguma mínima e talvez ligeiramente significativa atitude proativa, sua força de vontade, mudar algo ao menos em seu contexto regional, ao menos em sua restrita área de atuação e proximidades. O agir localmente, pensando globalmente. Algo assim. Alguém deve ter vislumbrado coisa semelhante antes dele, certamente, talvez alguém tentou anteriormente implementar algo bem próximo ou similar. Houve indígena xavante nativo que ingressou eleito em Congresso Nacional, prometeu inovações comportamentais, na época ficou notado ao gravar em aparelhos à pilhas de fitas cassete os depoimentos e promessas de seus pares deputados federais, à semelhança do que já fazia antes de eleito, em plenos idos difíceis e perigosos anos setenta de ditadura militar, em corajosa atitude de cobrança, as demarcações de terras indígenas negociadas junto ao imprevisível Governo Federal ditatorial. O cacique Juruna chegou lá, foi eleito, entremeou os
intestinos labirínticos do poder central, seu centro e miolo, dentre os poderosos da época, dentre os generais militares de cara fechada e poucos amigos, teve a oportunidade de fazer a diferença. A sua própria eleição uma imensa e considerável inovação, a diferença, ocorrência até então inédita e portanto bastante simbólica. Talvez o caminho das pedras estivesse posto, antes desbravado, uma consequência sequencial de fatores, um início remoto e talvez não identificável e visualizável com total precisão, um início perdido ao tempo, mas alguém haveria de ter pensado algo similar, mesmo em solo nacional, quanto mais em outros países e outros contextos geopolíticos mundo afora. O caminho das pedras traçado, as lajotas de ardósia esverdeada natural coletadas em lâminas e já dispostas equidistantes sobre um solo encharcado, sobre as lamas pegajosas de várzeas, pedras de auxílio para permitir menos dificuldades de movimentação, para agilizar a logística de deslocamento. O caminho bem indicado, sinalizado, por onde e como segui-lo. A questão e dúvida imensa do momento seria considerar este projeto íntimo e muito peculiar como um plano exequível, de fato viável, na prática avaliar se seria mesmo um projeto possível e aplicável. Candidaturas mais do que esdrúxulas houve, inúmeras, vários exemplos, candidatos imaginativos eleitos irregularmente, extraoficialmente, eleitos dentre duas imensas aspas, um termo cabível, por vezes irônico, e bem autoexplicativo. A rinoceronte cacareco de zoológico eleita com votação recorde em pleito municipal ainda antes da ditadura militar, aí sim um claro voto de protesto e escárnio, mas vários outros casos tão gritantes quanto, porém mais úteis e práticos. Casos inúmeros havia, inúmeros
candidatos eleitos oficialmente, de forma regular, gente de duas pernas, eleita sem saber ao certo sequer qual planeta ou galáxia habitava.
5. Um prognóstico pessimista. “Não dará certo...”
- Ema datshi. Nunca foi, nunca foi por isto, nem foi esta a origem. Nada tão exótico. Pimentas e queijo datshi acompanhados do arroz milenar dos orientais, comida tradicional do Butão, proximidades de Nepal, Himalaia, cercanias orientais do globo terrestre, um rigor alimentício. Nada disto, assim suspeito, mas também eu não tenho total e absoluta certeza, não posso afirmar se Datsi viria a partir desta obscura origem etimológica... - Não serei eu a saber, não vim de sua família. Se você não sabe, então a informação correta se perdeu no tempo e espaço, ou simplesmente a opção mais fácil e cômoda de resposta é a de que não existe a informação correta, ou que a resposta não possa jamais ser encontrada. O mais simples a explicar seria os seus avós acharem o nome interessante, de boa sonoridade, e então apreenderam o sobrenome sem dar tanta importância ao real significado. Tanto nome que aparece do nada sem maior criatividade, pode ter sido tão somente mais um destes... - É provável... Este mês fará cinco anos desde nossa separação, quanta coisa aconteceu desde então...
- Não precisa ficar me lembrando. Cinco anos. Um, dois, dez, que diferença fará? Meus filhos estão lindos, o maior já joga futebol melhor do que todos os outros meninos do condomínio. É precoce, irá agora iniciar o primeiro ano do ensino fundamental, é lindo, a cara do pai, acho que já lhe mostrei a foto, a cara do pai. Poderia ser a sua cara, mas você nunca quis aceitar a paternidade... Melhor assim, será amado por mim e por um pai que realmente o quis... - Sua empresa de consultoria, a atendente com a qual falei ao telefone, perguntou se os trâmites do contrato estavam acertados e redigidos, passou número de conta corrente bancária, ela deve estar aguardando algum depósito polpudo de minha parte em breve... - Não seja tolo, lhe falei que não irei cobrar nada, é assim mesmo, lógico que a secretária da empresa iria perguntar coisas do tipo, não pense que é de filantropia que vem o salário dela, nem as minhas remunerações por consultorias prestadas. Sou de palavra, você sabe disto, podemos ter rompido relacionamento íntimo de forma pouco amistosa no início, mas você bem sabe que não sou mulher de conversa mole, que odeio hipocrisias... Mas o fato é que me parece que este seu projeto não dará certo. Seus planos de carreira político-partidária são pouco realísticos, soam até mesmo um tanto utópicos... - Sem utopia não se vislumbra transformação... - Você sempre foi um pouco ingênuo, sonhador, quando namoramos ficava me reprimindo por querer constituir família logo, o que esperar? Para o homem é fácil, basta copular, para a mulher tudo é muito mais complicado, a gravidez, parto e amamentação, depois o cuidado diário, o contato sensível de peles entre mãe e filho. Sofri
muito com os dois filhos, todas mães sofrem, sofri quase com prazer, sempre foi o meu desejo íntimo, tive disfunção hormonal na primeira e na segunda gravidez, algumas complicações e muitos transtornos. Assim é. As mães são guerreiras, estou satisfeita, vale qualquer sacrifício, e você, João Pedro, sempre ingênuo, sempre me reprimindo e jogando a ladainha toda de que o mundo é um lugar injusto e desigual, que não é um bom lugar para botarmos mais crianças e para criá-las. Pensamento ingênuo, pessimista, sombrio demais, foi bom nos separarmos, ao menos me livrei da nuvem negra que pairava sobre sua cabeça, seu pessimismo recorrente... Melhor você pôr os pés no chão, João Pedro, enquanto há tempo... - Imagino que não gastarei tanta energia extra ao tentar, ao menos ao tentar. Ingressar em carreira político-partidária mediante eleição majoritária democrática não pode ser assim tão ruim. Claro que não é, muita gente maluca se elege, consegue arrebanhar número expressivo de eleitores, gente que vota sem saber ao certo o histórico do candidato, sem saber ao certo de quem se trate. Ser eleito é para poucos, bem poucos, mas mais difícil ainda deva ser cumprir o mandato integralmente, suportar seus percalços, as pressões políticas, pressões diárias de opositores, de partidos rivais. Muita gente querendo derrubar e destruir ao invés de construir e agregar... - Levantei os dados que você me pediu. Não é pouca coisa, ainda não conclui tudo, há muita coisa ainda, posso finalizar em meu tempo vago. Esta época tenho as quintas-feiras livres, farei o que combinamos, tome como um serviço de cortesia, um pro bono ou algo assim, os sócios majoritários de minha empresa gostaram da
proposta,
acharam
interessante,
então
vamos
encampar,
a
consultoria irá apoiar este serviço como um pro bono, será o primeiro do tipo, então na verdade se tratará tudo como um investimento. Quem sabe você consegue alguma votação razoável ou quem sabe aparece sua figura na mídia e faz indiretamente publicidade de nossa empresa de consultoria. A primeira possibilidade é bem remota, pessoalmente não acredito, mas bem sei que você se expressa bem, é articulado na fala e é bem apessoado, fará sucesso na mídia, talvez no fundo seja isto o que sempre desejou em primeiro lugar. Os meus sócios-gerentes apostaram nisto, apostaram que valeria a pena apoiá-lo com as coletas de dados e com a elaboração de seu planejamento e cronograma até o dia das eleições... - Sou grato... Interessante perceber isto, Lúcia, é algo curioso, você me acha uma pessoa pessimista, mas é você quem não acredita em possibilidades de mudanças sociais a partir de política partidária... Não vejo outro caminho, haverá outra alternativa? Passou-se a nossa fase frívola de adolescentes revolucionários transformadores do mundo conhecido. A ação direta, o anarcossindicalismo, tudo muito bonito, tudo muito romântico e intrigante, tal qual o comunismo, tudo lindo, romântico, utópico e impraticável, a ingenuidade ao supor que o ser humano não demonstrará qualquer sombra de egoísmo, que o ser humano não cobiçará sempre algo a mais do que o seu vizinho detém. Ingenuidade ao acreditar que todos e todas, tão diversos e frutos de tão diversas experiências e experimentações de vida, sejam todos solidários e preocupados em repartir sempre, preocupados com o bem-estar coletivo em detrimento do desejado favorecimento individual... Seria ótimo, o
mundo dos sonhos, mas o mundo dos sonhos claramente difere do mundo real, ao menos não é o que temos visto ultimamente, o século vinte e um, nada muito diferente do século passado, as mesmas guerras e os mesmos conflitos em escala regional... A ação direta mudará? Um Estado sem Governo... O governo do povo e para o povo, e quem os elegerá? A ditadura do proletariado então? Os trabalhadores no poder... Será correto ignorar as minorias, mesmo elas representativas de algumas pessoas nascidas em berço de ouro? O que faríamos nós se nascêssemos também em um berço de ouro, o que eu faria, abandonaria e renegaria tudo, simples assim? Buda abandonou, ao que consta, Gandhi em parte, renegou alguns bens, seu passado mundano, optou pelo jejum e pelo desapego material, quantos mais? Não me parecem a regra, mas sim as exceções... - Quantas e quantas perguntas. Isto me faz lembrar os livros que lemos juntos quando namorados apaixonados, adolescentes e recém-adultos, lembro-me de dois deles ao menos, o erva do diabo do Castañeda e os deuses astronautas do von Däniken. Estou divagando... Em deuses astronautas o autor faz inúmeras questões, acho que ele admite umas trezentas perguntas ao longo do livro inteiro, ao menos... É muito: e se, e se... O mundo está cheio de “e se...”, mas o que se precisa são respostas, mais respostas e soluções e menos questionamentos infindáveis. Há muita coisa que não tem solução prática e ligeira, você bem sabe disto, João Pedro... - O problema é que os políticos brasileiros estão todos desacreditados, mas veja outros contextos, nunca fui lá, mas muitos que lá já estiveram dizem realmente que em alguns países é muito
diferente, algo inimaginável para nossos padrões sul-americanos. Dizem e atestam que políticos eleitos pelo povo, por exemplo, em países escandinavos, em nada se assemelham aos nossos políticos sul-americanos. Isto não é utopia, não se trata disto, não poderá ser uma utopia, não consigo imaginar que seja assim tão difícil ou algo assim tão distante no tempo e no espaço. Uma possibilidade, algum dia chegarmos a ter políticos que não pensem em privilégios do cargo, que não pensem primeiramente em boas remunerações e acomodações para inúmeros assessores amigos seus íntimos. Não consigo imaginar isto impossível em nosso país, claro, não será do dia para a noite, uma geração talvez, talvez uma geração seja o suficiente, uns cinquenta anos, quem sabe, pode haver uma transformação lenta, mas há de se começar em algum momento. Ter esperanças de que em cinquenta anos o cenário político sulamericano seja composto de pessoas eleitas pelo povo que sejam todas abnegadas pela causa e que não coloquem os seus interesses de promoção pessoal e de poderes quase ilimitados em primeiro plano. Não pode ser ingenuidade isto, ter este tipo de esperança. Há de se começar em algum momento, dar um pontapé de início, tudo começa quase do nada, do zero, então o momento pode ser agora... Por que não? Há de ser agora... - Seu projeto já foi tentado anteriormente, outros já tentaram, fazer tudo o mais transparente possível, todas as planilhas abertas... Cedo ou tarde aparecem os diversos questionamentos, compras sem licitação. A licitação engessa tudo, os auditores de plantão acabam por processar quem faz compras sem licitação, mesmo que elas sejam urgentes e por uma boa causa. Você bem sabe como funcionam as coisas, o mundo burocrático, bem sabe que no ramo
político-partidário sempre haverá oposição, partidos de legendas diferentes, propostas diferentes, representações diversificadas, gente do contra, sempre há gente do contra... - Tenho esperanças, senão não começaria nada disto, senão não dedicaria tanta energia e tanto tempo utilizado em planejamentos, em pesquisas prévias, levantamentos de dados, em conversas com pessoas que possam me dar indicações e informações precisas e confiáveis... Ocorre que se o projeto não der certo, terei pouco a perder. Toda a raiz, o princípio estrutural do método que utilizarei, se baseia em uma não subjugação, em não se dobrar, não desistir ao primeiro sinal negativo. As opções disponíveis: ou a coisa toda será transparente e absolutamente aberta, será cem por cento baseada na ética e na moral, no bom senso, ou então não há qualquer razão pela qual o projeto deva sequer existir. Por isto adotarei o lema dos guerreiros samurais orientais que vão às batalhas de peito aberto: mais valerá a dedicação máxima à causa, dar-se ao máximo, dar o melhor de si, a entrega da alma, do que o resultado vitorioso da batalha propriamente dito. Vitória ou derrota será uma consequência de inúmeros fatores, dentre eles vários fatores os quais não terei completa ou nenhuma gestão, então estarei satisfeito se entregar o meu melhor, o melhor de meu caráter pessoal, resguardando os princípios básicos e inamovíveis de transparência, de ética e de moral. Se assim for, sem dúvida valerá a pena e valerá todo o esforço e dedicação empreendidos... - Escancarar aos outros as planilhas de custos sempre é atitude arriscada, é o que a nossa esquipe levantou vindo de dados de experiências acompanhadas por minha empresa, e também por outras consultorias especializadas do tipo... Sempre há o risco de
deixar passar algo, de alguém não anotar algum gasto, algum custo supérfluo, ou então o risco de que este custo varie dentre um período de acompanhamento, desde quando foi computado inicialmente e posteriormente, ao longo do tempo. Isto acontece, pode acontecer, não é nada incomum, você relatará que gastou xis em um evento qualquer, uma necessária reunião de campanha préeleitoral, e depois fica sabendo que a empresa tal de logística contratada esqueceu-se de lhe mandar o custo embutido de algum frete esporádico, ou de uma viagem adicional realizada, aquilo que pode ser o transporte para os participantes desta reunião política em um bairro distante, por exemplo. O funcionário responsável simplesmente não lhe mandou o dado correto, uma ocorrência aleatória, acidental. Por uma questão de ética você deverá aceitar o novo custo, perdoar a falha do funcionário, então depois alguém, um auditor de fora, poderá questionar o porquê de dados tão divergentes, você terá de se explicar, sim, haverá justificativa, mas lhe tomará tempo, você terá de parar tudo para atender a solicitação e se concentrar na solução, ou então terá de botar alguém, um terceiro, delegar função para que a pendência seja resolvida, terá de denominar algum funcionário remunerado, exclusivamente para tratar de coisas do tipo...
incumbido
- Conheci alguns políticos de carreira os quais confio, neles me inspirei, há deles, poucos, mas há. Triste saber que muitas vezes estes políticos não são reeleitos, aquilo que é notícia negativa vem à tona, bom que assim seja, mas o que é de positivo é pouco conhecido. Há político de carreira que desde quando assumiu o primeiro dia do cargo abriu mão de benefícios em dinheiro, não os saca de conta bancária, e tudo está lá para comprovação, verbas de
gabinete que não são usadas integralmente, então em teoria sobram recursos financeiros na assembleia legislativa para que se invista em outras demandas, em teoria, na prática não é bem assim o que acontece. Na última eleição houve senador e deputado federal que não se reelegeu e que nunca recebeu verba adicional de gabinete. Gente honesta e ética que abriu mão de várias verbas adicionais de direito desde o primeiro dia de mandato... Se não houver costura política, quase diplomática, e se não houver articulação com as bases eleitorais, com a massa de votantes, articulação com os vereadores da base e com os líderes comunitários, uma articulação genuína com os interesses que os representam, e também às vezes infelizmente os manipulam, sem esta base maior, ampla e mais maciça, ninguém é eleito ou reeleito, com o tempo cairá em ostracismo... - Muitas vezes as verdades são incômodas, incomodam muita gente, muitas vezes é preferível não conhecermos toda a verdade. Você bem sabe, João Pedro, nos amamos por um longo tempo, fomos apaixonados, meses e anos intensos, vividos com ímpeto e com tesão, com intensidade, de corpo e alma, carne e espírito, nos conhecemos bem naquela época. Não somos mais novatos neste mundo, embora ainda jovens, muita coisa ainda a experimentar, mas bem sabemos como são as contradições humanas, esta afinidade pelo desajustamento. Por isto nos escolhemos mutuamente, não foi? Lógico que, em meu caso, errei em grande parte nesta escolha, ao supor que você seria capaz de lidar com a situação e que seria capaz de nos dar filhos maravilhosos, os filhos que hoje tenho com outro homem ao qual amo...
- Não precisa levar para este lado, Lúcia, você nunca perde a oportunidade de levar para este outro lado... - Pois bem... Há inúmeros casos de gente que falhou ao querer expor verdades inconvenientes. É lugar comum, muita coisa que não faz sentido se dita e trazida à tona com total e absoluta sinceridade, outras tantas coisas que simplesmente não são atrativas às pessoas em geral, então faz-se de conta que elas não existem... Deve ser algo de dentro, no âmago de homens e mulheres, deve ser um mecanismo de autodefesa, ninguém gosta de ser lembrado de que vivemos em uma sociedade que esconde psicopatias e atrocidades... É sim uma autodefesa, tal qual não tocar no assunto doença quando se está adoentado, não deve ser muito recomendável para as melhorias do processo de recuperação na convalescência... - Vê aquele varredor de rua do outro lado desta calçada, aquele falante de espanhol bem moreno? Passou por nosso lado há pouco, esbarrou a vassoura nesta mesa de bar, fez tremer o copo de chopp aqui apoiado. Também pudera, estamos no meio da calçada, um ambiente público, que em tese não deveria ser utilizado de maneira privada. Somos invasores. Como seria possível algum cidadão morador deste bairro que seja cadeirante passar por aqui? Estamos no meio de uma calçada pública e no meio de uma tarde de sábado, clima agradável, bem expostos e às vistas, na rua, este bairro de classe média, este pub temático que até que não é tão caro assim... Você sempre teve bom gosto, sempre soube escolher, aqui será local e tempo mais do que suficientes para tratarmos dos encaminhamentos necessários para o momento... Passou-me pela cabeça que se seu marido fosse ciumento teria contratado detetive
para nos fotografar em detalhes, como se fôssemos nos permitir intimidades físicas ou como se, por aquilo que bem lhe conheço, você fosse capaz de escolher marido minimamente ciumento... Verdades ditas e expostas, feridas abertas, muitas das vezes... Sim, bem sei que há muitos casos espalhados mundo afora, lembro de vários... Vê o varredor de rua? Parece propositadamente falar alto em seu espanhol nativo. Apostaria em dizer que é um migrante venezuelano. Não tem pudor ou receio em falar o seu espanhol muito ligeiro, que poucos de nós entenderíamos, ainda mais falando rápido e embolado como parece daqui à distância. Deve ter orgulho de sua origem e de labutar mesmo em serviço insalubre e exaustivo... Interessante agora, a primeira coisa que me vem à cabeça é o repórter alemão que se passou por turco e denunciou os preconceitos dos alemães nativos aos turcos imigrantes. Cabeça de turco, o nome do livro que escreveu, bem lembro, o jornalista se passou por turco imigrante ilegal, tingiu o cabelo de preto, fez sotaque forçado, bigodão preto, aceitou ser contratado como trabalhador braçal, depois recebeu inúmeras críticas, boa parte delas negativa, diziam que foi uma atitude parcial, que com o disfarce e o fingimento haveria induzido ao erro, haveria exacerbado diversas situações cotidianas as quais, se não fosse o disfarce e a dissimulação, dificilmente ocorreriam tal como de fato ocorreram... Por fim ao menos suscitou o debate intenso, críticos favoráveis e contrários, mas a verdade é que tocou na ferida, escancarou que sim, que há preconceito velado, muito, ou nem tão velado, preconceito de habitantes pátrios nativos contra refugiados involuntários ou imigrantes diversos que chegam à Alemanha, vindos de fora, por pura vontade e dispostos a correr inúmeros
riscos... Tantas e tantas situações... Sim, sentimos grande incômodo e perturbação, enquanto seres humanos, ao tomar conhecimento através do noticiário de televisão de que dois irmãos tentaram a todo custo envenenar os pais idosos e demandantes de cuidados médicos diários, tentaram os envenenar com veneno raticida fora de circulação das lojas agropecuárias, veneno banido no mercado devido à estúpida toxidez, usaram o troço para matar pai e mãe e tentar receber o montante em dinheiro de uma apólice de seguro de vida... Acho que todos nos entristecemos bastante ao recebermos tais notícias, mas sempre foi assim, não? Preferimos atestar que são exceções, preferimos acreditar que a regra não é esta, que há muita gente fazendo muita coisa boa... Sim, é uma autodefesa, algo que nos faça sentir um pouco melhores no dia a dia, um pouco mais aliviados e leves, ao menos... - Tão logo você abrir as planilhas da etapa pré e da etapa partidária de candidatura eleitoral oficial, tão logo você escancarar ao público tudo e optar pela transparência total, a partir de então terá de lidar com inúmeros questionamentos, será infalível, aí então o que nossa consultoria prevê é que você deverá dedicar muito tempo e energia em explicações e justificativas. Prevemos com razoável segurança que infalivelmente você acumulará tarefas e serviços, não dará conta, precisará contratar mais gente, mais assessores, então verá a bola de neve que se forma, o ciclo vicioso, então perceberá que precisará de mais verba de gabinete para dar conta das demandas, os custos aumentam, mais gente a contratar, mais gastos, mais custos, maior a demanda por verbas de gabinete destinadas à remuneração de assessores parlamentares, dinheiro que vem dos
impostos do cidadão comum, do mais pobre principalmente... Percebe aonde quero chegar? - Bem sei que largo em desvantagem, competirei com muitos candidatos que tiveram desde o berço a convivência políticopartidária desejável, coisa de tradição no sangue, com gente que é membro de clãs e de famílias tradicionais conversadoras, famílias de integrantes envolvidos com política e politicagens há décadas, diversas gerações... Tive um tio que hoje é falecido, minha inspiração, marcou muito minha infância, era como um segundo pai. Ainda hoje o vejo em sonhos, ainda sonho, você se lembra, Lúcia, o quanto os sonhos têm peso e importância em minha vida, convivemos juntos por um longo tempo, ainda não vejo tantos significados relacionados, nunca os vi com tanto realismo, continuo achando que não é um fenômeno para ser levado ao pé da letra, jamais, continuo com esta convicção, mas ainda percebo o quão são importantes os sonhos para fazerem o raciocínio funcionar, para intuir coisas bem distintas, que pouco ou nada têm a ver com o significado do sonho em si, mas que de alguma forma disparam gatilhos na mente, botam a cabeça pra funcionar. E então percebemos coisas óbvias bem à nossa frente, que até então ignorávamos... Curioso isto, às vezes acho que pode ser o que chamam de deus, o tal deus único, alguns assim dizem, que deus nos daria conselhos diários, que os bons anjos nos intuem inúmeras coisas, a cada novo dia, mas para quem não acredita não deve fazer muita diferença, ou faça, alegará que são as vozes da consciência. Todo mundo, acredito, ouve vozes no mais profundo de sua consciência quando esta esteja sóbria e em pleno funcionamento. Curioso lembrar-me disto agora. Sabe qual será
uma das pautas de minha candidatura? Ainda não escrevi todo o conteúdo programático, apenas parte dele, a parte que você já leu para se embasar no diagnóstico e projeto de sua empresa de consultoria. Tenho certeza de que você ainda não soube desta parte programática de minha candidatura, caso contrário já teria comentado algo, certamente. Ocorre que defenderei e advogarei, entre aspas, a pauta de descriminalização do uso e posse de entorpecentes... Tá vendo como, por este lado, correrei inúmeros riscos, como a minha proposta de candidatura é quase um tiro no pé? Certa vez eu próprio chamei meu projeto partidário de um autocometimento de escancarado suicídio político... - O que a liberação, ou a descriminalização, o que quer que chame, tem a ver com os sonhos que você se lembra do tio falecido? - Tem a ver, muito. As vozes vindas das profundezas da consciência quando sóbria, mas é um equívoco achar que não haja aditivos que extrapolem inúmeras percepções, aditivos que, na verdade, não seriam eles os criadores de uma ilusão, mas sim seriam fortes auxílios e alavancas, a agir sobre um contexto prévio estabelecido, uma linha tênue entre a sobriedade e a letargia do sono. A cafeína é uma alavanca, aditivo, talvez a mais conhecida e experimentada. Em minhas recentes andanças, que começaram tão logo nos separamos, senti-me perdido, precisava de novos ares, tanto quanto você. Você respirou novos ares, se oxigenou, emplacando outro relacionamento logo em seguida, eu dei meus pulos... Resolvi buscar algo de diferente, de bem diferente, diga-se de passagem, resolvi aventurar-me em templos e terreiros, mais por uma curiosidade escondida. Nunca fui homem de muita fé, de devoção cega aos dogmas e rituais, quaisquer que fossem, mesmo assim
avaliei na época que seria bom e saudável, então fui, entrei de coração aberto, de corpo e alma, como queiram classificar, sem preconceitos e sem maiores receios e temores, existindo ou não de fato o que se chame de alma ou espírito. O que existe é muito de tradição, uma coisa antiga, algumas das tradições que se mantêm milenares, todos os povos e culturas, também a nossa, de matriz predominante africana, mas há delas espalhadas pelo mundo todo, sempre houve subterfúgios, escapadas, escapismos talvez, hiperssensibilização da mente mediante o auxílio de substâncias naturais raras e escassas, tanta e tanta coisa disponível na natureza, nas matas da selva tropical, nos bosques temperados asiáticos, na Oceania, o homem sempre lançou mão de psicotrópicos para auxílio às suas viagens extracorpóreas... - Quem diria. Você virou um metafísico, sabe os termos difíceis do ramo fugidio dos alucinógenos... - Ridicularizar muitas vezes é a reação mais imediata das pessoas, não tenho dúvidas quanto a isto, certamente serei ridicularizado, mas isto até que não é ruim, será muito pior vir a ser alvo de extremismos, alvo aberto de fundamentalistas religiosos que alegarão vínculos meus com um satanás cheiroso a enxofre, o diabo a quatro, aquela ladainha toda de gente que vê fantasmas e demônios em tudo e em todos. Isto sim devo temer e será motivo de preocupação, mas não serei um tolo ingênuo a comprar briga com gente grande e poderosa, gente com quem não possa lidar ou suportar... Um político que faz constantes inimigos pode ser amado e odiado ao mesmo tempo, amado por quem é inimigo de seu inimigo, mas não vale a pena, jamais, um risco demasiado, não há capital político que valha o sacrifício... Angariar lucro sempre, levar
vantagem, capitalizar com tudo e com todas as situações, sem desperdício. Bem sei com quem é possível lidar e com quem os riscos serão bem maiores, gente perigosa, mas não deixa de ser uma grande pretensão de minha parte. Somente a experimentação me trará confiança, só a experiência vivida dirá e atestará, ninguém em sã consciência pode afirmar que sabe com grande porcentagem de segurança como são as entranhas do universo político-partidário, ainda mais em contextos tão complexos quanto os dos cenários latino-americanos. Não é assunto simples em nenhum lugar do mundo, dizem que entender o Brasil não é algo para principiantes, mas imagino que nosso histórico de políticos de carreira julgados e condenados, afastados por denúncias de corrupção, não nos seja nada favorável... - Achamos, todos nós da consultoria, quase em unanimidade, que os maiores riscos de fracasso de sua proposta estão relacionados principalmente aos comprometimentos os quais você será cobrado, tanto no período de campanha, pré-eleitoral, quanto, caso eleito, no decorrer de um possível mandado de quatro anos consecutivos. Isto é fator de grande preocupação, o maior fator e maior risco de fracasso, assim avaliamos. Você terá tudo detalhado e relatado por escrito em relatório pormenorizado, em breve, mas posso já lhe adiantar algo... Não há nenhuma novidade, sempre acontece em tudo na vida, todos nós já bem sabemos, todos nós após alguma maturidade adquirida em solavancos e altos e baixos, após atribulações aprendemos o que a vida terá a nos ensinar. Não há novidades, cargos de maior responsabilidade são os mais bem remunerados do mercado, a vida empresarial é assim, são também os cargos de maiores riscos embutidos para o profissional bem
pago, os riscos possíveis quanto a questionamentos em processos acusatórios justos e bem embasados... Veja o que ocorre agora, neste exato momento, é emblemático, um presidente-executivo de companhia mineradora de projeção internacional, substituído por outro executivo experiente, em meio a um desastre ambiental de proporções catastróficas, centenas de vítimas fatais, alguém de perfil diplomático que você acha que deverá ser o testa de ferro, alguém a responder e a ter de se defender de tudo, um fuzilamento popular, justo talvez, a ter de defender o nome e a reputação da empresa danosa a qual é nomeado como o atual e poderoso presidente-executivo. Maior a responsabilidade, portanto maiores os riscos, maior a remuneração recebida ao final do mês. Não importa se o sujeito ao cargo é inocente, se é bem-intencionado ou não, só o fato de ser o responsável legal pelas atividades da mineradora, seu presidente-executivo, já implica em sua coautoria. Quantos e quantos prefeitos, governadores, e até presidentes democraticamente eleitos mundo afora, quem dirá no nosso Brasil, já foram responsabilizados civil e criminalmente por equívocos e erros de ações realizadas por seus subordinados, seus departamentos de governo, sucursais, secretarias e subsecretarias, tudo e todos vinculados à sua direta gestão? Sabe quantos? Não cabem nos dedos de nossas mãos todas juntas, é muita gente processada e muitas delas condenadas e que tiveram a vida transformada de súbito em uma tormenta. Não é ramo para os mais fracos, os de cabeça-fraca, ou se tem nervos de aço e coração forte nesta seara ou não se assume cargo qualquer de maior responsabilidade e remuneração. Sempre haverá escolhas muito difíceis a fazer, assim é em qualquer escala de responsabilidades,
desde uma mais baixa, mais básica, uma associação de moradores de um bairro, um condomínio de pacatos residentes endinheirados, sempre alguém terá de assumir uma decisão conclusiva final, terá de bater o martelo. Muita coisa cabe ao presidente da associação decidir, de uma vez por todas, a ele cabe a decisão final, então deverá tomar a atitude que agrade um maior número de moradores e desagrade poucos, só que estes poucos podem ser quarenta e nove por cento do total, o que é uma enormidade... Percebe o que quero dizer? Claro, todos nós sabemos que é um assunto complexo, todas as decisões difíceis são, muitas vezes você terá de fazer a chamada escolha de Sofia, o momento crucial quando você fatalmente será instado a decidir salvar a vida de um de seus filhos para que seja poupado o outro, a quem escolherá?... - Semana passada apareceu no noticiário... Um barco com refugiados no meio do oceano, à deriva após problemas mecânicos no motor que não aguentou a sobrecarga de peso dos inúmeros ocupantes. Uma situação limítrofe, quando o instinto de sobrevivência deve falar mais forte. Quem será capaz de julgar se não tiver experimentado na carne uma situação extremada? Imagine-se caída no oceano em meio a uma multidão a se afogar desesperada, você já quase submergindo após ter engolido muita água salgada, no desespero, sem poder respirar direito, em pânico. Será que não nos apoiaríamos nos outros, os afundando no oceano, para conseguirmos manter o nosso próprio pescoço acima da superfície? É um bocado de questionamento, nunca é bom ficar perguntando coisas que ninguém quer responder, ou coisas que nos deixam desconfortáveis ou incomodados ao ter de responder. O barco com refugiados que vi no noticiário acabou por afundar, por
sorte havia pelas proximidades um navio do Médico Sem Fronteiras. Os relatos posteriores dos ocupantes envoltos em mantas térmicas prateadas e tomando água mineral fresca foram perturbadores... Misturados junto ao barco precário de fuga havia centro-africanos e norte-africanos muçulmanos da chamada África branca. Os centroafricanos mais robustos e dispostos ameaçaram os árabes, os menos corpulentos. O porão da barcaça de fuga aquecia cada vez mais a níveis proibitivos, com o motor velho que não dava conta da sobrecarga de gente e de peso... Os resgatados relataram chegar a um ponto de calor insuportável, sufocante, os mais fortes e dispostos do grupo forçaram a subida de seus parentes e seus parceiros conhecidos ao pavimento superior da barcaça, um lugar pouco mais fresco e arejado, empurraram brutalmente para baixo, ao porão, os que eram seus desconhecidos, forçando-os e os mantendo no pavimento inferior. Alguns mais exaltados após a confusão formada e após algumas agressões mais brutais ameaçaram atirar os competidores árabes ao mar, sem piedade, pois o barco já fazia água e o naufrágio seria uma questão de minutos, pondo a vida de todos ocupantes em risco, mulheres e crianças inclusos, todos sob iminente risco de naufrágio e afogamento. Desnecessário dizer que não havia coletes salva-vidas disponíveis. Acho que todos nós, em algum momento, devemos ser susceptíveis ao despertar do instinto interior mais bestial, reptiliano, a necessidade imperiosa de sobrevivência mais imediata... Fico aqui pensando se eu não seria forçado a fazer o mesmo se tivesse que escolher entre um companheiro de viagem desconhecido, de outra região e etnia, e os próprios membros de minha família, sangue de meu sangue, uma mulher e um filho meus, o filho que nunca tive. A
escolha de Sofia, tal qual você se referiu... Sabe o que mais me chamou a atenção nas cenas do noticiário da tevê? Após resgatados, a salvos no convés do navio do Médico Sem Fronteira, já menos tensos e em hidratação, era visível a disparidade, gritante o abismo que existia em separação, seria capaz de se notar o ar denso e a tensão, o ar pesado e fatiável à faca, a atmosfera incômoda e perturbadora, a clara divisão de grupos, de um lado do convés do navio de resgaste um punhado de gente encolhida e cabisbaixa, e de outro lado, os centro-africanos dançavam e cantavam seus cânticos tradicionais, sorrisos brancos e brilhantes, sinceros, gingavam e batiam palmas de louvor e contentamento. Por outro lado os norte-africanos afastados e todos taciturnos, ressentidos, calados, amargurando um evento muito recente e muito traumático que lhes mudaria a percepção e o sentido de suas vidas inteiras a partir de então... - Há decisões de enorme responsabilidade, às vezes o difícil limite de escolha entre o menor de dois males, ambos males, ambas escolhas de vida ou de morte, muito difíceis. Um político de carreira ou um gestor de megaempresa terá de lidar com isto a todo o tempo, no entanto trata-se de algo tênue e bem mais enganoso do que possa parecer, pode ser algo camuflado, que à primeira vista não esteja tão aparente... Você dá uma canetada e em segundos transfere uma rubrica orçamentária da secretaria de saúde para a secretaria de educação porque não pode deixar os alunos do primeiro ano do ensino fundamental em rede pública sem a devida merenda diária, transfere a rubrica orçamentária após a avaliação e a checagem de seus assessores legislativos diretos, vê que há espaço para o remanejamento, uma luz ao final do túnel, aí então
por descuido ou empecilho burocrático alguma compra importante deixa de ser realizada a contento, o dinheiro que foi tirado emergencialmente da secretaria de saúde deixou de viabilizar justamente a aquisição em licitação de uma vacina qualquer, acabou por cancelar a prolongada licitação. Um ano depois um cidadão que deixou de ser vacinado na data correta, segundo o calendário de sua caderneta de vacinações obrigatórias, um cidadão que atrasou a sua imunização mais indicada pelos médicos, decorre que por fatalidade inesperada este cidadão pagador de impostos vem a óbito. Alegam os familiares dele e os advogados contratados que a morte foi por causa e consequência da vacina obrigatória aplicada tardiamente que não fez o desejável efeito de imunização. O secretário de saúde alega que a vacina seria desejável em período tal, mas que também poderia ser ministrada em período outro tal. Decorre um entrevero jurídico, o juiz entende que o Estado é o culpado, e que você, prefeito ou governador eleito democraticamente, responderá perante a lei como o claro representante oficial do Estado... Nada é tão simples quanto parece, há inúmeros casos de gente que responde na justiça por homicídio com intenção de dolo, dolo eventual, homicídio culposo, e até mesmo homicídio doloso por uma simples má gestão burocrática de sua pasta de orçamentos empresariais ou governamentais. Alguns agem por má-fé pura, é verdade, mas não faz sentido supor que cem por cento deles foram mal-intencionados quando se conhece minimamente como funciona, ou como não funciona, a absurda burocracia de compras estatais governamentais... - Há muita promiscuidade entre o público e o privado. Inúmeros casos de candidatos eleitos democraticamente mundo afora que
vieram do setor empresarial e lá tiveram a sua formação. Veja a maior potência do globo terrestre na atualidade, o famigerado país das oportunidades. No Brasil também houve aventureiros do tipo, inovadores, não os reprimo, foram e são uma clara opção aos eleitores desiludidos que sentiram desgostos e decepções com os clássicos políticos de carreira, eleitores desesperançosos que valorizaram o caráter de gestor e administrador dos candidatos disponíveis ao invés de ortodoxa habilidade política e diplomática... Imagine o caso extremo tal qual ocorre hoje na maior potência do globo terrestre, nos EUA, uma megaempresa particular e familiar, que carrega o nome do clã, com inúmeras ramificações, totalmente imiscuída na economia de uma nação gigantesca e dinâmica, alocando por sua vez outras empresas parceiras terceirizadas, suas subsidiárias por contrato, movimentando milhares de funcionários envolvidos, um fluxo gigantesco de dinheiro entrando e saindo da bolsa de valores a cada minuto, muito interesse em jogo, dinheiro que, em mínima porcentagem, poderia mudar a vida de muita gente, até mesmo de uma cidade inteira... Não sei bem como funciona, mas é de se imaginar que o presidente Trump tenha previsto o tamanho da encrenca em potencial. É de se imaginar que tenha delegado um departamento específico, diversos assessores empresariais seus, todo um monitoramento de perto e bem detalhado acompanhado por especialistas muito bem remunerados, funcionários particulares, para coletar inúmeros dados de forma contínua e, eventualmente, tentar justificar sólida defesa em algum processo futuro acusatório de vantagens indevidas obtidas pela fusão pessoal entre o público e o privado. As suas inúmeras empresas prestadoras de serviços, que sempre e desde a fundação
do zero prestaram serviços ao Estado norte-americano, com a diferença que, do dia para a noite, o representante máximo do Estado passa a ser o mesmo representante do conglomerado gigantesco de empresas privadas, o patrão, a sua própria empresa tradicionalíssima familiar… Dizem que abriu mão do salário de presidente, também pudera, com certeza seriam migalhas em comparação, mas são coisas assim que atraem a simpatia popular, geram um carisma. Dizem também que ele viaja sempre em aviões particulares de sua empresa e pouco usa os recursos do governo para seu deslocamento aéreo. Por terra, vai sempre com aquele cofre hermético de segurança sobre quatro rodas, de portas grossas imensas, que blindado aguenta explosões e bazucas... Imagina-se as dificuldades que terá, considerando o tempo, os recursos e as energias, as explicações que deverá despender em defesas advocatícias a todo o momento, opositores políticos que querem derrubá-lo, sempre alegando que suas empresas lucraram bilhões a partir de alguma mudança brusca em política macroeconômica governamental. Ocorre em qualquer lugar do mundo, a sobretaxação de um bem commodity de exportação qualquer, o minério de ferro brasileiro por exemplo, pedra bruta que vai pro outro lado do planeta em gigantescos navios-cargueiros. Exportar pedra. Um único dólar de aumento por tonelada exportada, mas que bem poderia chegar a dois, três dólares, mas que seja um único dólar de oscilação no preço internacional, como já aconteceu e acontece muito mais com o barril do petróleo no mercado. Este único dólar em conta de um exportador de proporções colossais equivale a bilhões de dólares mensais, o que é mais do que o suficiente para pagar todas as eventuais multas, os ressarcimentos,
as indenizações e ainda custear os novos investimentos que se façam para apaziguar um dano ambiental gigantesco eventual de uma mineradora de grandes proporções, ou, no caso da indústria petroleira, com seus barris de petróleo a preço internacional que flutuam as casas das dezenas de dólares ao longo de um ano. Significa à companhia petroleira dinheiro mais do que suficiente para pagar tudo aquilo que tiver de pagar após um vazamento de óleo bruto em pleno santuário ecológico marinho. Tudo é uma questão de dinheiro, afinal de contas, por isto o homem não pisou novamente a Lua, pisará logo que ricaços bilionários banquem uma viagem de lazer para realizarem um sonho de vida e um desejo íntimo intrigante que sempre tiveram ao assistir Star Wars e Star Trek. Dizem que há uma fortuna lá só em objetos e equipamentos que teriam um valor histórico incalculável, tranqueiras usadas nas primeiras missões tripuladas, desde sessenta e nove para cá, alguns equipamentos banhados a ouro, em um leilão arrecadariam milhões pagos por colecionadores que gostariam de ter na sala de jantar um pedaço do equipamento do primeiro astronauta a pisar superfície de astro fora do planeta Terra. Talvez o custo de uma missão de faxina e recolhimento de tranqueiras valha a pena por aquilo que arrecadar depois em leilão... - Acontece e acontecerá com qualquer empresário de carreira que ingressar na política-partidária. Há casos no Brasil e vários outros na América Latina, sempre haverá, em boa parte por esta lógica simples: “se o sujeito é um bom gestor de empresas, será capaz também de administrar o Estado...”. Certamente há uma intersecção, um interesse mútuo, às vezes indisfarçável, imagine se a empresa de consultorias a qual sou sócia tivesse ações aplicáveis
na bolsa de valores, o mercado nacional de especulação, ciranda financeira, óbvio que eu acharia muito bom que a bolsa de valores apresentasse resultados positivos crescentes e contínuos, em longo prazo, que mais e mais investidores aportassem em território nacional trazendo dólares e euros na bagagem. Óbvio que se eu tivesse qualquer mínima gestão e controle sobre a macroeconomia nacional acharia ótima uma política de incentivo e de redução de taxas e impostos às companhias multinacionais interessadas em investimentos específicos no mercado de consultorias e monitoramento de riscos de empreendimentos... Há economias mais liberais do que outras, no sentido de pouca intervenção e regulação estatal, no sentido de liberalismo econômico do capitalismo mais ortodoxo e acirrado. Há maior e menor permissividade para que empresários apliquem seu dinheiro como bem entendam, como melhor lhes aprouver, mas de fato, caso você João Pedro, seja eleito, terá todas as suas contas devassadas, seus rendimentos, declaração de bens, imposto de renda, seu histórico de patrimônio antes e depois das eleições. Assim é, sempre será, o que afinal é algo bom, não? Supõe-se que sim. Conheci um caso de uma prefeita de município pequeno de interior que tinha registrada empresa
familiar
de
prestação
de
serviços
de
limpeza
e
manutenção, uma empresa que havia décadas prestava serviço terceirizado para o governo municipal. Após eleita sua empresa faliu, algo impensável, era sólida e bem saneada, não suportou a carga imensa de processos e denúncias por favorecimento ilícito, a intersecção entre o público e o privado. Nunca soube se houve, ou não, má-fé por parte da prefeita eleita democraticamente, que completou apenas um único mandato de quatro anos e amargou
depois o nome familiar manchado e o ostracismo político. Nunca mais se aventurou em funções legislativas, disse ter ficado uma pessoa amarga... - Sabe de uma coisa? É interessante, me passou pela cabeça agora... Olhe em que ponto nós chegamos... Não digo tanto por você, que sempre foi uma mulher precoce e promissora, que sempre me pareceu querer mais e mais, mas digo também por mim. Veja aonde chegamos, de dois jovens despretensiosos namorando loucamente e irresponsavelmente, viajando pra lá e cá em estradas de terra com enormes mochilas, não nos importando em aguardar ônibus interestadual em rodoviária de madrugada, sem dormir direito, ficado às vezes sem tomar banho direito, aproveitando a vida que nos era exposta à luz, aproveitando a claridade, o mundo inteiro à nossa disposição, nós indo atrás, para o que sempre quiséssemos, sempre com um pensamento positivo e otimista. Nunca tivemos medo de nada, íamos com a cara e com a coragem, de peito aberto, nos arriscando a violências, mas íamos sempre otimistas, com o coração aberto, sabedores e muito confiantes de que nada poderia acontecer a quem chega com boas intenções e sempre se apresenta nos lugares com a devida humildade e respeito. Éramos ingênuos, todos de nossa idade eram e sempre serão um tanto imaturos. Dez anos depois estamos em mesa de bar chique em calçada de rua de bairro badalado, sábado à tarde, despreocupados, um sol de final de tarde lindo, acobreado e em feixes de luz inclinados, que bate sobre esta mesinha circular onde tomamos chopp gelado e suave, cremoso, delicioso, ambos despreocupados com a vida... O venezuelano passa por aqui, varreu a rua e, na hora, intuímos todo um contexto social, toda uma
geopolítica por detrás... Ficamos treinados, experientes, rodamos um bocado, conhecemos gentes e lugares, os Andes, a Patagônia, o litoral brasileiro inteiro, isto nos deu tarimba, nos preparou para a vida que hoje temos, você contente com seus filhos crescendo e seu com seu marido empresário em casa, eu ainda meio errático, com este plano de carreira político-partidária um tanto ambicioso que, ainda nem sei bem o porquê, sua empresa de consultorias de riscos decidir bancar... Sabe de uma coisa? Posso parecer piegas, mas há meses percebo que a paz me invadiu... Não sei bem se é pieguice, talvez um pouco de vergonha hipócrita enrustida, talvez um pouco de temor em admitir isto, que sinto no coração e na alma que a paz me invadiu. Um pouco de temor supersticioso talvez, ter medo de admitir isto para não azedar, para não trazer energias negativas em volta, para não trazer o pessimismo... Afirmar isto e amanhã receber notícia súbita de tragédia inesperada... - Parece piegas... - Imaginava que assim acharia... Então seja prática, como você sempre foi, seja pragmática, imagine seu contentamento, realização, o que chamar, qual sentimento chamar, a sua satisfação por possuir agora os filhos saudáveis os quais sempre sonhou, por ter em casa um marido que os provém e, conforme diz, que a ama. Se não é a paz de espírito que a invade, então que seja algo mais, o que chamar... Bem sei que é um relato que parece totalmente sem sentido para quem não vivencia, sei bem como é, é meio egoísta, ficar se achando feliz, falando bom dia para tudo e todos, a todo momento, falando bom dia para as árvores e as borboletas, para a mãe natureza, sempre de forma ingênua achando que todos devam sentir a paz e a serenidade que estamos sentido em dado momento
específico. Ou aquilo que chamem, que estão sentido a palavra do senhor Jesus ou o raio que os parta, o que for... Ocorre que, de fato, há algumas semanas a paz me invadiu. Foi quando abri o envelope pela segunda vez, pedi contraprova, não foi da primeira vez, quis ter certeza, a biopsia traumática e aflitiva que fiz deu resultado de tumor benigno, estava preocupado, sem dormir direito, e então ficava o dia inteiro tal qual um zumbi, um morto-vivo, sem energias para nada, pois simplesmente não conseguia dormir direito e então meu corpo e mente não desligavam nunca, não relaxavam, não se recompunham para um novo dia de trabalho a enfrentar. Algo de muito profundo mudou em minha vida, não vou ficar me vangloriando, bem sei que neste exato momento, bem lá no laboratório que me entregou o segundo envelope, diversos outros resultados de exames deram em resultados negativos, mostram tumores malignos, alguns em estágio avançado quando não há mais muito o que se fazer. Imagino uma profissional de enfermagem que tenha de organizar e divulgar todas as dezenas de resultados laboratoriais diferentes a cada dia, que deve agir sempre com um mínimo de profissionalismo, que não pode se alterar, deve ter uma postura médica fria e calculista, tratar com esmero cada envelope de informação crucial reveladora, um dado de laboratório que na prática significa nada menos do que a vida ou a morte do paciente. Tratá-los como meros pedaços de papel com gráficos, diversas escalas, números, intervalos demonstrativos de miligramas e partes por milhão disto e daquilo, a enfermeira a tratar tudo como se matemática pura fosse, como dados matemáticos expostos burocraticamente e de forma repetitiva e visualizável em papel... - Você já havia falado, fico contente que deu negativo...
- Então minha vida mudou, óbvio que haveria de mudar, vou dar muito mais importância para coisas simples, finalmente largar aqueles cigarros malditos, os mesmos que, largando ou não, ainda me trarão alguma preocupação futura... O estrago já foi feito, assim disseram os médicos, o preço virá com o tempo, mais cedo ou mais tarde, mas virá, poderá comprometer algum órgão só após uns noventa anos de idade, se é que vou viver até lá. Caso arrebentar tudo e comprometer a saúde somente após meus noventa anos vou achar bom, terei vivido o bastante. Estou novo ainda, estamos novos, jovens, cheios de vida, ninguém deveria merecer receber diagnóstico de tumor maligno antes dos setenta anos de idade. A expectativa de vida no Brasil é de setenta e cinco anos, então ninguém deveria receber notícia ruim de condição de saúde antes disto... Pode ser piegas, mas de um tempo para cá venho sentido uma paz interior indescritível, sinto que estou com saúde e que devo valorizar cada minuto do dia. Ao mesmo tempo não deixo de ficar um pouco deprimido, não deixo de perceber que tive sorte, que outros tantos envelopes lacrados do laboratório médico chegam pela segunda vez aos seus destinatários confirmando um exame inicial feito em contraprova, atestando tantos e tantos tumores malignos em estágios avançados e metástases os quais serão indestrutíveis. É triste. Tomar as dores do mundo, os fardos dos outros. É praticamente insuportável, ninguém dá conta, mas não consigo deixar de pensar, fico um pouco deprimido, e esta melancolia passageira é o que traz minha paz de espírito atual, a serenidade, o vir a saber que, se chegar o momento da finitude, chegou o momento, nada há de se fazer, lamentarei ter o diagnóstico desfavorável enquanto ainda tão jovem, a vida toda pela
frente, mas ao mesmo tempo me dá uma certa serenidade saber que vivi um bocado, que nós pudemos ir juntos de Machu Picchu à Patagônia, carregando enormes pesos em enormes mochilas de costas, nos amando loucamente... - Foram outras épocas. Nós mudamos... - Sim, todos mudam, seria de se esperar, a ingenuidade ficou para trás, à frente estão as maiores responsabilidades e preocupações, ninguém pode ser exatamente despreocupado e irresponsável aos vinte, trinta, o tanto quanto era aos dezessete, dezoito anos, enquanto ainda experimentando e amadurecendo corpo e mente para a vida que se tem escancarada e disponível à frente... A paz me invadiu, então resolvi dar alguma contribuição, retribuir, na verdade me vi nesta obrigação de dar alguma retribuição. É estranho, um sentimento inédito, já havia sentido algo parecido, mas de forma artificial, então não deve contar muito como uma real experiência válida. Não é o tipo de paz de espírito que se tem quando tomamos um relaxante muscular, um calmante qualquer, um tarja-preta, certamente a ação de poderosa química sintética a agir no sistema nervoso por inteiro, não isto. Isto conheço, sei como é, acho que todos nós devemos conhecer algo mais ou menos parecido, esta coisa química artificial medicamentosa, mas a paz que me invadiu é autêntica, então provavelmente o cérebro interpreta de forma diferente, entende que se trata de coisa genuína, mais séria. A consciência fica limpa, tranquila, portanto mais plena, serena, pois há uma certeza profunda de ser uma reação orgânica natural, sem aditivos químicos artificiais ou subterfúgios. Acho que todos nós sabemos como é. É mais ou menos como tomar heroína na veia, dizem, isto não sei nem quero saber, mas assim dizem,
como tomar na veia um opiáceo qualquer, ou como fumar ópio. Diz a literatura que poucas coisas são mais tranquilizadoras do que o efeito do ópio, não à toa houve guerra histórica por isto, a GrãBretanha no século dezenove quase subjugou a China milenar, uma população de fumantes de ópio, soldados dentre eles, que só faziam contemplar, de forma apática, letárgica, relaxada, e ainda pagavam caro pelo produto narcótico importado. Com isto uma nação inteira, mesmo milenar, poderia ser facilmente dominada... Aquela piada que nós, aqui no Brasil, regionalizamos. Alguém chega esbaforido falando para um dono de chácara que a vaca foi pro brejo, uma expressão popular muito regional e muito particular de nossa realidade: “a vaca foi pro brejo...” Aí então o dono da chácara, tranquilão, se espreguiçando na rede dependurada na sombra da varanda fresca da propriedade rural, uma linda e enorme jaqueira exalando aromas adocicados das frutas maduras ao redor, todo o frescor de sombra e de umidade, o chacareiro retruca que ninguém deve se preocupar, que não há motivo para pânico, que alguém depois vai lá e desatola a infeliz da vaca do brejo... Coisas da tradição rural que muitos brasileiros ainda guardam, que nós, da cidade grande, nem tanto, mas bem conhecemos e citamos a recorrente expressão popular. - Não precisa detalhar tanto, bem sei sobre o que você fala, senti isto temporariamente nos primeiros meses de minha primeira amamentação, olhar para a carinha fofa e amassada do filhote recém-nascido equivale a uma dose cavalar de calmante químico, me deixava em estado sublime, pisando em outro mundo... - Pois passei muito tempo dentre consultas médicas, exames penosos de consultório, com preparo prévio disciplinado, jejum
prévio, abstinência, a tensão posterior ao esperar os resultados de exames laboratoriais, sempre ouvindo notícias ruins, do que poderia acontecer de pior, sempre os piores cenários, sempre se preparando involuntariamente para receber as piores notícias, como a me preparar, amaciar a carne e o espírito, amaciar para quando a pancada vir. Se viesse, não me pegaria tanto de surpresa, desprevenido, carne e espírito já estariam mais ou menos amaciados... Eu sempre fui um pouco assim, sempre projetei o pior dos cenários, vi o copo de vidro meio vazio, como dizem, em vez de enxergar o lado bom, o copo meio cheio... Mas foi bom sentir esta tranquilidade tão profunda, relaxante mesmo, um relaxante muscular poderoso, pois assim é seu efeito. Sinto o corpo mais balanceado, disposto, inteiro, por isto, se você notar, Lúcia, verá que meu semblante está mais relaxado, minha face mudou um pouco. Não é por acaso que dizem que quando estamos tranquilos e serenos enxergamos melhor, a luz ambiente nos parece mais bela, a nossa vista, o nosso globo ocular mesmo, os músculos da face, as pálpebras, a vista fica mais relaxada e serena, olhares livres de tensão, tendem a nos fazer ver tudo de forma mais bonita, melhor. Há uma explicação orgânica para este fenômeno, não é nada puramente abstrato ou inexplicável. Semana passada li no jornal que, após ter filho já desacreditado pelos médicos, recuperado de doença grave, um ator famoso de novelas jurou devoção ferrenha à santa não sei o quê, jurou pagar promessa, caminhar ajoelhado sei lá que percurso, irá todo ano ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, na beira da rodovia Dutra, diz ter virado devoto ferrenho e fiel, uma graça conquistada. Achou-se grato e devedor de retribuição. Acho que todos nós temos um pouco disto, querer
retribuir à humanidade quando nos sentimos bem e contentes, querer dar uma parcela de contribuição ao mundo, às pessoas em redor... Por isto, este o motivo, pode parecer piegas sim, meio injustificado, até mesmo meio tolo e ingênuo, mas assim é. Sinto-me bem, aliviado ultimamente, então ficou claro em minha mente, após muita reflexão, não foi do dia pra noite, ficou claro para mim que é chegado o momento, para finalmente pôr em prática algo que sempre passou pela minha cabeça de forma meio vaga, nunca muito a sério, algo que ficava rodando na cabeça mais como uma diversão, um passatempo, uma ilusão boa, o que se chama de prazerosa ficção, só que agora não mais julgo como mera ficção. Cabe a mim, vou pôr em prática o plano, sou grato por sua empresa de consultoria de riscos, muito grato por terem encampado a ideia, dei muita sorte, agora percebo, de conhecer você e o sócio majoritário, estudamos juntos na faculdade, ele quer alavancar a empresa de vocês, experimentar algo novo. Confessou-me que, depois que o Barack Obama ganhou reconhecimento mundial como inspirador de melhor campanha publicitária do mercado americano, justamente a campanha de sua primeira candidatura presidencial, depois disto, Lúcia, o seu chefe e meu amigo de longa data achou por bem tentar algo parecido, vincular uma análise detalhada de viabilidade de negócios a uma campanha político-partidária. Seja o que vier, as possibilidades de minha vitória são ínfimas, mas também o custo para sua empresa não será dos maiores... De toda forma vou divulgar que sou patrocinado por vocês, o que já dará alguma publicidade e visibilidade à sua consultoria e aos consultores outros envolvidos. É raro uma empresa deste tipo ser citada como autora de estudo detalhado em diagnósticos de
candidaturas
a
políticos
novos
de
carreira,
a
marinheiros
inexperientes de primeira viagem... - Uma coisa é certa: o tanto que as coisas mudam, o quanto nós próprios,
cada
um,
muda
muito...
Éramos
adolescentes
irresponsáveis, aventureiros demais, sem medos, mas quem não era em nossa idade? Foi bom, aproveitamos, fizemos as mochiladas América Latina afora, quebramos a cara algumas vezes, por pouco não sofremos violência mais séria, mas é verdade, como você diz, João Pedro, íamos com pensamento positivo, com postura humilde, de coração aberto, então tínhamos imensa autoconfiança, e esta autoconfiança nos ajudava a chegarmos sempre bem aos lugares, ajudava a irradiarmos algo de energia positiva e saudável... A paz... Todos deveríamos ter paz de espírito em vida, não é mesmo? Imagine se haveria conflitos e desavenças mundo afora se todos andassem pelas ruas com a cabeça erguida e com o coração tranquilo, caminhando contente, satisfeito, satisfeito com o pouco que cada um tem para si, com o que lhe baste... De tempos para cá uma guinada extrema, era de se esperar, a maternidade, uma guinada após a outra, não é fácil descrever, talvez um homem não tenha a mínima noção, talvez jamais entenda, afinal não terá os devidos hormônios no sangue... Nós, mulheres, após a primeira maternidade, passamos a viver para outro ser, para outra pessoa, quase com exclusividade, nossa vida só passa a fazer sentido se for para servir o filho que botamos no mundo, o rebento que parimos, vive-se por outro e para um outro, não para nós mesmos. É um pouco assim, um pouco de insanidade, pois se a mãe adoece ou não se cuida acaba por prejudicar o cuidado necessário do filho dependente, o tornará carente e desaquecido... Então a paz real
deve ser presenciar os filhos bons e saudáveis, crescendo e aprendendo, virando gente adulta aos poucos. A mãe genitora deve estar em paz, esta serenidade que também sinto neste exato momento pela beleza deste feixe de sol de final de tarde que atravessa estas mesas de bar, a luz bela somada a um pouco de vapores inebriantes dos dois copos de chopp já tomados, um sábado à tarde, foi uma boa e produtiva semana de trabalho, chegarei em casa logo, logo, para beijar beijos molhados e barulhentos nas bochechas fofas de meus filhos queridos. Eu deveria me sentir envergonhada se admitisse que não estou em paz comigo mesma, ou, ao menos, que não tenha a obrigação ou não precise admitir necessariamente que estou de fato em paz comigo mesma... - Voltaire, inspirador da Revolução Francesa, certa vez disse algo como: “Deus não existe, mas não conte isso ao meu servo, para que ele não me mate durante a noite”. Acho que este será o ponto mais delicado que terei de aprender a lidar mesmo se eu não chegar a ser eleito, já no processo de candidatura, a corrida eleitoral, disputa por votos, terei de aprender a lidar com isto. A mentira. Estudiosos comportamentais e de áreas da psicologia afirmam categoricamente que todos nós mentimos, que quem diz não mentir já o faz de início. Pego-me pensando várias vezes, passei a treinar, a prestar mais atenção às diversas situações cotidianas quando se tem muito contato com várias outras pessoas em redor, com o público em geral, a matéria-prima do político, oportunidades de contato com gente que não se conhece nem sequer superficialmente. Passei a fazer este exercício, este monitoramento, e então notei o quanto todos nós mentimos, blefamos. Há uns dois meses tive de
comunicar mudança de plano de assinatura de fornecimento de dados móveis de internet, liguei algumas vezes para o serviço telefônico de atendimento ao consumidor pedindo a alteração de assinatura, sem sucesso. Na quarta ou quinta vez quando liguei, ainda sem sucesso de conclusão da demanda, falei para a atendente do outro lado da linha que eu tinha já protocolado uma reclamação extensa e detalhada no Procon, que estava gravando todo aquele telefonema para servir de prova material. Balela. Menti duas vezes. Óbvio eu tentava alguma leve pressão para ter a solução da pendenga. - Talvez eles, das operadoras de internet, também mintam toda a vez em que nos contem que estão tentando solucionar nosso problema buscando a forma de plano mais viável e econômica para nosso perfil de consumidor. Não creio. Buscarão o contrato que seja mais vantajoso para a empresa deles, senão a empresa quebra, não sobrevive, não gera suficientes lucros para custear os investimentos necessários, nem sequer para arcar com as despesas obrigatórias, os pagamentos de funcionários. O lucro bruto e o lucro líquido. Não há empresa comercial que viva só de caridades... - Com absoluta certeza chegará o momento em que irão me perguntar se acredito em Deus, se defendo o aborto, se pratiquei sexo sem preservativo, se nunca tentei fraudar imposto de renda, se irei com cem por cento de garantia construir a creche do bairro cujos moradores irão me confiar uma votação expressiva que possa mudar os rumos de minha candidatura. Chegará o momento em que seu filho, Lúcia, lhe perguntará aonde foi que a cegonha o deixou recém-nascido, envolto em asseado e impecável pano branco, para você mamãe, o acolher de forma amável e um pouco surpreendida,
retirar com o devido ritual a encomenda expressa e importante feita às famigeradas aves cegonhas parideiras solícitas e pontuais... - Falarei que veio ao mundo porque transei com o pai dele, falarei que a titia enferma, quando morrer, não irá se transformar em estrelinha do céu, irá ser enterrada e sua carne apodrecerá como ocorreu com o cachorrinho que ele cuidou e alimentou com ração especial por algum tempo... - É a exceção, então. Não me admira, por isto tive atração por você, porque você sempre foi uma mulher diferente, a exceção dentre as regras, mas sei que pagou um preço alto por isto, não foi? Teve de amargar dissabores imensos... - Não quero falar sobre isto agora, nunca quis falar sobre isto... - Muitas vezes falar a verdade traz imediato sofrimento. Voltaire preferiu mentir ao seu servo, caso contrário o servo, irado, iria esfaqueá-lo pelas costas com todas as justificativas do mundo, ao seu jeito, sua visão de universo pessoal, mediante a sua íntima consciência de devoto e temente a Deus que não deva tolerar infiéis. Talvez o significado seja outro, ou pode haver mais de um significado: o servo, conhecendo não existir Deus, mataria o mestre para ficar com seus bens, afinal o pecado não mais teria razão de existir ao mundo. Quando o instinto de sobrevivência aperta, devemos mentir tal qual um lunático, mentir pelos cotovelos, a torto e a direito. Um fugitivo de guerra que se esconde em escombros arrasados de cidade destruída por bombardeios, ele faminto, sedento, adoentado, ferido, e ainda por cima perseguido implacavelmente por soldados rivais que querem dependurá-lo em praça pública com grossos ganchos em formato de anzol, ganchos
de açougueiro. Dá pra imaginar o fugitivo descoberto nas ruínas pelos perseguidores rivais sedentos por vingança, o fugitivo quando interpelado de forma brutal respondendo honestamente à questão crucial dos algozes que lhe garantirá o alívio da misericórdia ou lhe condenará à morte após um demorado sofrimento e esfolamento da carne... Os soldados rivais que o encontram sob arrasados escombros medonhos perguntam se ele matou alguém do exército inimigo. O sujeito sedento, doente, confuso e em estado de pânico, vai se portar tal qual o ser humano mais honesto e coerente do planeta Terra e, com a maior coragem e confiança do mundo, retruca que sim, que foi ele mesmo quem, entrincheirado, atirou de fuzil na cabeça do sargento alinhado em fileiras inimigas dias atrás... - Você até agora nada perguntou, nem a mim nem aos outros envolvidos na consultoria, é uma pessoa discreta, comedida, não se precipita, admiro isto, admirei quando o amei, tempos atrás. Acho muito importante que as pessoas saibam o momento certo de falar e de se expressar, o momento é tão ou mais importante do que o próprio conteúdo. Não se precipitar jamais, realmente é uma qualidade reconhecível, será um requisito interessante para que você seja bem-sucedido nesta sua pretensão de carreira políticopartidária. Você nada perguntou. Eu, como eleitora comum, votarei por aqui mesmo, para este pessoal estranho que aí está, estas opções de candidatos ao governo do estado que são todas terríveis. Vou acabar votando no menos ruim, o que é péssimo. Por que eu votaria em você? Ou, por outro lado, por que não votaria? Se você precisasse me convencer, eu a fazer uma escolha dentre opções nada boas, ainda ninguém em vista que haveria de me sensibilizar e
angariar minha simpatia, enfim, ninguém de confiança em vista. Se eu, enquanto eleitora que não vê grandes vantagens ou diferenças entre candidatos, que não tem paciência para acompanhar propostas por escrito, extensas, de candidatos em pleito de urnas próximo, portanto em tese uma eleitora bem pouco consciente e pouco madura politicamente, pouco cidadã, o que seja, se eu resolver votar em quem me trouxer algo de palpável e benéfico mais imediato, vamos imaginar que eu tenha interesses particulares se fosse funcionária pública estatutária do setor judiciário, concursada, estaria eu interessada em aumentos salariais justos de reposição da inflação acumulada, aumentos e ganhos reais justos um pouco acima da inflação, que na verdade não seriam aumentos, mas uma restituição de perdas monetárias, juros e correção. Suponha que eu seja sabedora e consciente de que a demanda de minha classe profissional específica, já mais privilegiada se comparada às outras categorias de profissões mais proletárias, é uma demanda que me atende, mas que, se implantada, trará prejuízos às outras classes de trabalhadores que sequer tiveram correção inflacionária nos salários mensais. Bem sabemos que muitas vezes vale o dito popular de que “quem chora mais, mama mais”. Talvez por isto quem tenha recursos e dinheiro para pagar bons advogados e escritórios de contabilidade geralmente se safa de processos mais cruentos os quais a maioria da população proletária não seria capaz de se safar. Ocorre todo dia, agora mesmo, neste exato momento, quem depende de defensoria pública sobrecarregada, quem não pode custear bons advogados, estes têm bem menos chances de sucessos em causas judicializadas. Assim ocorre. Quem puxa e repuxa a legislação geralmente encontra algo, alguma possibilidade,
alguma brecha, então se protocola oficialmente esta solicitação, em vista algum ganho provável para a categoria de profissionais. Eu, enquanto interessada na causa, irei buscar o que for de direito. Considerando que eu pago mensalmente um sindicato de classe, irei exigir a sua atuação formal e expressa quando mais necessária. Aí então eu, supondo-me funcionária pública estatutária do judiciário, concursada, irei querer saber de você, enquanto candidato disponível, irei querer saber qual o seu posicionamento, se você, candidato, irá encampar ou não a causa de minha categoria profissional. Ambos, interessados e legisladores, somos sabedores de que atender uma classe única de trabalhadores implicaria em provável desigualdade, talvez até injustiça, pois provavelmente não haveria orçamento suficiente, dinheiro em caixa, para atender as mesmas demandas de outras classes e carreiras ou para a sempre deficitária saúde pública e educação básica. Prefeituras
de
municípios
e
estados
inteiros,
atualmente,
comprometem cerca de oitenta, às vezes mais por cento de seus orçamentos com a folha de pagamentos de salários do funcionalismo público. Você se posicionaria favorável à nossa demanda, ciente de que seríamos, a nossa categoria específica de trabalhadores, perfeitamente capazes de decidir o rumo de uma eleição, você ciente de que seríamos nós o crucial fiel da balança que poderia viabilizar ou não o seu estimado sonho de vida política tão e tanto aguardado? - Eu poderia me sair com a resposta mais fácil, a de que votaria em assembleia de acordo com minha consciência... - Mas qual seria a sua consciência de ocasião, em um momento tão delicado? Sua consciência pode mudar, acontece, você bem pode
alegar que analisou melhor a questão, ouviu as bases eleitorais, ouviu mais gente, lideranças de categorias, e que honestamente, de forma simples e pragmática, apenas mudou-se de ideia, fez outro juízo de valores a partir de um argumento inicial mais bem avaliado... - Não faz muito tempo tive um mau pressentimento. Não foi um sonho ruim, foi algo que veio à mente em plena luz do dia, enquanto em transporte público, num minuto de tédio, a monotonia do trânsito engarrafado de uma cidade que se expande enlouquecida. Veio à mente, parece inegável, me verei em uma sinuca de bico, cedo ou tarde, será questão de tempo. Prever isto traz algum remorso e preocupação, alguma culpa, não haverá como evitar, cedo ou tarde precisarei recorrer a algum estratagema de blefe. Mentira na prática, fica mais bonito e suave nomear blefe, tal qual chamar as mentiras de inverdades, um eufemismo certamente, mas blefe fica ainda mais bonito, o blefe dos jogos maravilhosos de pôquer jogados a poucas moedas insignificantes esquecidas nos bolsos das calças. Um blefe do bem, se isto for possível, o blefe daquela tia que conta à sobrinha pequenina que determinada pessoa virou estrela brilhante no céu após seu passamento material e carnal pelo planeta... Vivemos em país religioso, a América Latina o é, inegável, talvez ainda não fundamentalista, talvez não de uma religiosidade extremada, sectária, mas o cenário atual parece suficientemente dogmático e intenso, e todos dogmas têm o efeito potencial de uma bomba nuclear se manipulados sem os devidos equipamentos de proteção individual... Exigir uma resposta taxativa sobre acreditar ou não em Deus sempre me pareceu injusto e desonesto. Fato comum as pessoas pressionarem um interlocutor com o dilema: “acredita ou
não?” Como se não houvesse um meio-termo possível… É algo bastante injusto, sempre achei muito injusto este dualismo. Há coisas que não têm resposta fácil, coisas que não são nada simples de compreender. Primeiro de tudo é preciso saber ao que se refere a denominação Deus, qual a intenção da pessoa que pergunta, a pessoa que quer uma resposta taxativa e dualista, o sim ou o não, puros e simples, sem maiores opções, e algumas coisas não têm uma única resposta simples e certeira, única, nunca tiveram, assim ocorre, é mais ou menos como perguntar se alguém tem medo da morte. Sim ou não. Depende, qual é a referência? Temos medo da morte ou do sofrimento? Acho que todo mundo deve ter algum receio ou preocupação quanto ao sofrimento, morrer sofrendo, em leito de hospital, cheio de tubos espetados nas veias duras e doloridas. De fato é um medo oculto, ou será uma tristeza justificada por não poder viver e curtir a vida um pouco mais? Pode-se pensar que ter medo da morte é absolutamente fora de questão, afinal todos morrem, assim é o ciclo da vida, certeiro, então em tese não faz qualquer sentido temer um ciclo natural da vida, mas há a incompreensão do que signifique esta passagem, esta cessação do mundo material e carnal, para quem acredite, a solene e sagrada passagem,
o
desenlace
para
o
plano
espiritual.
Haverá
comprovação absoluta e inequívoca, científica, de que há o mundo espiritual, de que existem as sucessivas reencarnações ou algo neste sentido? Muita pergunta, não é mesmo? Muita pergunta sem resposta fácil que só nos faz gastar energia e fosfato dos miolos... - Não costumo perder muito tempo com estas perguntas de respostas não simples nem práticas...
- Faz bem, gostaria de ser mais assim também, não me preocupar tanto, não à toa dizem que quem pensa demais tende a atingir uma aguda pane de funcionamento, um colapso qualquer, esgotamento, em qualquer dia vindouro. Não são poucos os filósofos e pensadores que ficaram afetados e transtornados simplesmente por tanto refletir sobre questões existenciais insolúveis e inatingíveis. Eu jamais conseguiria dar uma resposta de forma fácil e taxativa se acredito ou não em Deus. Aí reside o provável blefe. Não creio que no Brasil de hoje alguém possa ser vitorioso em votação democrática para cargo eletivo qualquer se tiver opiniões muito opostas às correntes religiosas mais corriqueiras e tradicionais, a crença religiosa da maioria da Nação, o povo e a cultura de um País. Então em uma reunião pública qualquer ou em uma fala improvisada de palanque montado em bairro carente, num discurso público, o candidato a cargo eletivo é questionado taxativamente pelo pastor da igreja evangélica local, que de antemão já levantara suspeitas quanto ao caráter e idoneidade crente do desconhecido candidato a político profissional. O pastor local o questiona, precisa da resposta, de forma taxativa, pois para ele o fato de crer em Deus é ou sim ou não. O pastor local precisa expor as entranhas deste candidato que sequer conhece, farejar de longe qualquer resquício de blasfêmia, expô-lo aos prováveis fiéis seus, seu rebanho de cordeiros, os talvez interessados em elegê-lo pelo voto popular. Assim ocorre, pronto, aí a sinuca de bico montada, o beco sem saída, uma pura tentação ao blefe mais fácil e prático, ao sórdido recurso usual de dissimulação... - Haverá um grande número de possibilidades, haverá gente que irá considerar sua resposta evasiva tal qual uma expressa negação a
Deus. Outros o considerarão desonesto ou titubeante, sem personalidade, um indeciso imaturo que não requer qualquer tipo de confiança ou voto. Você nunca será capaz de agradar a todos, tenho certeza que você bem sabe disto. Se na maioria dos casos conseguir cinquenta por cento, mais um, dê-se por satisfeito. Governar é aquela estória de ter de resolver a angústia de duas mães que disputam um mesmo filho, cada qual alegando honestidade, aí então o governante supremo, rei, divindade, ou seja lá o que for, decide-se sabiamente por partir o filho ao meio, ao que a legítima mãe prontamente demonstra sincero desespero imediato, denunciando assim a impostora ao lado. Você terá de tomar decisões do tipo, só que pode ter a certeza de que na maioria das vezes o desfecho não será nada glorioso, poderá até mesmo ser uma criança inocente partida ao meio... - Sim, é por aí, não há dúvida, já conversamos sobre isto, entendo a sua colocação, aí está o meu ponto fraco, algo que certamente todos os adversários políticos saberão explorar e obter vantagens competitivas... Constantemente reflito a respeito, parece ser algo incompatível ao caráter humano, porém tenho uma pequena ponta de esperança de que este sentimento seja algo de nós, brasileiros, latino-americanos todos talvez, ou seja, algo que não conseguimos perceber, algo que não conseguimos alcançar com exatidão, pois não fomos criados com uma mentalidade presente várias vezes em países de mais história, de maior cultura, mais tolerância e mais experiências vividas entre suas populações próximas fronteiriças. É triste e quase deprimente ter de admitir, mas me parece que, no Brasil de hoje, talvez também no de décadas atrás, se torna impossível alguém se eleger para um cargo democrático em pleito
imparcial caso seja absolutamente sincero e honesto, caso seja sensato quanto ao que planeja como método de gestão de sua passagem enquanto governante do povo. Estranho isto, não é? O político precisa ser quase um mestre da ilusão, deixar de dizer algumas poucas palavras, mascarando-as, desviando de seus significados, para não se comprometer futuramente, não ter seu testemunho registrado para a posteridade, para breves confrontos quanto a coerência e a exatidão do discurso, quanto a ética e a moral... - Muito teórico. Sai dessa, pula fora, quer entrar em parafuso, dar nó na cabeça? Vai em frente, não perco tempo com isto, tenho meus filhos lindos e amados pra criar... - Daí vem o blefe. É preciso blefar, saber blefar, saber ser familiar ao subterfúgio e à dissuasão. Vou ter de blefar, não há escolha possível, se tiver de dizer tudo aquilo que penso, se tiver de expor minha alma, a alma no sentido de âmago, substância, essência, se eu tiver de escancarar isto, jamais serei eleito. O fundamentalismo religioso enrustido jamais me aceitará, me comerá vivo, o fígado cru acebolado... - Há quem diga que os fins justificam os meios. Não foram poucos os políticos que se elegeram e se mantiveram no poder ao sobrepor realizações favoráveis ao povo paralelas a contínuos casos de corrupção… - Há sim esta cortina de fumaça possível. Isto pode ser o diferencial, o peso na balança, o que poderá manter alguém no cargo por certo período de tempo. Quanta e quanta gente de que ouvimos falar, tantos exemplos, os políticos tradicionalistas do presente e do
passado, todos populistas, amados pelo povo, seus eleitores, amados e odiados, algumas vezes ambas as coisas ao mesmo tempo. Prefeitos, governadores, presidentes, políticos de carreira que podem ser acusados de tudo um pouco, mas jamais de não se portarem sagazes e atentos aos movimentos das massas populares. Jamais isto, o poder de observação e raciocínio lógico simplista sempre lhes foi notável. De fato, se o blefe se sobrepuser, ficar sozinho, isolado, for o fator que mais chame a atenção dos eleitores, tanto quanto um evento de corrupção ou mau uso de recurso público, ou seja o que for que desabone a conduta do político eleito, se o fator negativo ficar mais evidente do que as realizações que, por outro lado, agradam ao povo, aí certamente pode começar a trajetória decadente do político de carreira, o rumo certeiro ao autoextermínio. A cortina de fumaça terá de ser algum projeto bem sucedido, que traga benefício imediato à população, para um contingente significativo populacional, um bairro de periferia inteiro ao menos. Particularmente, eu aposto em projeto já elaborado, posto em papel, no programa de governo a divulgar amplamente por escrito, coisa minha, para caracterizar, a marca do governo, um carimbo e estilo, tal qual tantos gostam de alardear arrogantes, algo a ser identificável facilmente e rapidamente, associável ao nome do autor do projeto, como os restaurantes comunitários de baixo custo de um prefeito, que aderem ao gosto popular e passam a ser chamados de bandejões do Joaquinzão, ou algo assim…
6. Quando e como João Pedro Datsi permanecerá no poder.
O documento com assinatura autenticada em cartório regular e protocolado junto à assembleia legislativa do município não era dos mais robustos, outros muito mais ambiciosos e caudalosos havia, muito mais pesados, milhares de folhas impressas, muito papel, papel impresso em face única de folha para dar maior volume final, muito texto repetitivo, mais do mesmo já relatado que era citado inúmeras vezes. Projetos e textos realmente mal escritos, mal elaborados, frutos de políticos inexperientes, mas sobretudo, ideias de políticos com pouca ou nenhuma capacidade administrativa ou de gestão dos orçamentos, das rubricas, e dos esparsos bens públicos já estruturados. Necessária a cópia oficial em papel impresso. Formalidade retrógrada, não mais deveria haver tal exigência em pleno começo de século vinte e um, a acessibilidade disponível pela rede mundial de computadores, tudo disponível de forma prática e com a menor demanda de recursos possível. Em contraponto, papel a ser produzido, celulose gerada lentamente por árvores após anos e anos, muito material químico para branqueamento das folhas, mais muito material químico para tratamento das lagoas de decantação do produto tóxico utilizado em tal branqueamento de folhas sulfite, brancas e perfeitas, em resmas que eram consumidas aos montes, branquíssimas, chegavam em caixas, transportadas por veículos que poluíam as cidades, causavam acidentes horríveis de trânsito com inúmeros feridos, com amputados, mortos, vísceras e famílias destruídas. Necessária por protocolo a cópia em papel impresso, expresso, formal. Que fosse. Necessário o carimbo em etiqueta holográfica reluzente comprada a preço lucrativo exigido em cartório
de notas da região. Os cartórios brasileiros, verdadeiras instituições e atestados da burocracia pouco lógica e da ânsia por complexidade e formalidade oficial dos órgãos públicos, por consequência os órgãos privados levados de roldão, engolidos, também eles. O cidadão comum, todos e todas, todos pegos de supetão, engolidos, todos eles tais quais engrenagens de um imenso sistema, a todo o tempo tendo de provar que se está vivo, provar que foi demitido ou contratado para um trabalho, provar por meio de carimbos holográficos reluzentes capazes de impressionar que atestem que ali não há ilegitimidades, que tudo se mostra em acordo às leis e a ordem posta. Tudo muito burocrático e organizado, em aparência ao menos, em papel impresso, todos os pingos nos is, nenhum ponto de coser dado sem nó de segurança posterior. A um agente cartorial, os históricos funcionários tabeliães, figuras já renomadas do folclore nacional de ao menos dois séculos sucessivos de documentos amarelados, engavetados e roídos nas pontas, bordas de papel escurecido e carcomido. A um agente cartorial sempre cabe a citação clássica ao definir e ao salientar a importância de seu trabalho remunerado deveras fundamental e imprescindível: "se houvesse cartórios na antiguidade tudo estaria constatado, tudo muito bem organizado, os pingos nos is, o capítulo tal do livro sagrado escrito dia tal, no local tal, pelo autor tal. Tudo muito certeiro, descrito, claro e organizado… ". Necessária a cópia formal oficial em papel impresso, o plano de governo para quatro anos de mandato, o fator reluzente atrativo que faria eleitores prestarem atenção a determinado candidato dentre tantos outros, faria eleitores depositarem voto e confiança em candidato desconhecido e sem percurso de carreira política prévia
ou tradicional. Algo que pudesse ser compreendido tanto por estudiosos intelectuais do tema gestão governamental quanto pelas massas, o povo ordinário menos letrado, a massa fundamental de trabalhadores proletários que sempre decidiu e sempre decidirá uma eleição qualquer enquanto haja a obrigatoriedade do voto ao cidadão comum pagador de impostos no país. E nada haveria de mais popular e imediato para o povo, de mais compreensível e prático, nada mais urgente do que a questão fundamental da saúde física e mental de um cidadão ordinário. A citação básica, todos gostavam de citar, de profetizar, demonstrar intelecto mesclado à sensibilidade pragmática e popularesca. Todos os políticos de longa carreira, de vários e sucessivos mandatos eletivos, todos assim diziam, as necessidades básicas do povo em primeiro lugar, pregavam que um cidadão deveria ter garantidos prioritariamente os seus direitos obrigatórios básicos de saúde, educação e transporte. Na prática pouco faziam para garanti-los, historicamente pouco ou nada faziam ou fizeram. Por seu lado o cidadão ordinário sempre soube, desde sempre, que o sistema público de saúde gratuita jamais seria satisfatório e eficaz enquanto não fosse frequentado e usufruído pelos
mesmos
legisladores
que
comandavam
as
pastas
governamentais de saúde e comandavam os rumos do país, seja em seus rincões escondidos de interior, seja em seus municípios urbanizados, estados ou macrorregiões federais e as megalópoles. Todos diziam que o mais fundamental para um cidadão é o estado de saúde do indivíduo, e que então fornecidas as condições básicas de saúde e vigor físico e mental para este indivíduo, a partir daí poderia ser pensado pelo governante o complemento de aporte
secundário em educação, em emprego e renda, e em transporte subsidiado logo em sequência. Mais contundente: era quase senso comum dentre o povo que a saúde seria o mais premente dentre todos os outros benefícios governamentais socializados dentre a camada de diversas classes econômicas de um universo de eleitores votantes. O plano de governo registrado em cartório, para todos verem e admirarem, posto e formalizado em papel, expresso, aquilo que João Pedro supunha uma possibilidade, aquilo que garantiria a sua eleição e, ao mesmo tempo, seria o tão necessário fator pano de fundo para encobrir o blefe particular engendrado toda e qualquer vez quando ele fosse questionado sobre questões dogmáticas e tabus
diversos
que
tivessem
um
mínimo
teor
de
caráter
transcendental ou religioso. Colocar em dúvida citações de escrituras sagradas nunca foi atitude das mais bem vistas, muito menos a um candidato político qualquer que se preze. Haveria plano, cronograma, meta, proposta, e a bem da verdade tudo razoavelmente pesquisado e discutido com especialistas, ainda que informalmente e em uma amostragem nem tão ampla quanto fosse a de se desejar. Para João Pedro Datsi o plano era razoavelmente simples, exequível, um custo de implantação que se pagaria quase com certeza garantida, tal a grande demanda pública pela prestação de serviço específico ofertado, tal a sua urgência, uma premente e contínua demanda social. Haveria de funcionar, haveria de dar certo, ao menos seria imaginável tentar convencer o eleitor a apostar as suas fichas em seu projeto político particular de governo, isto o mais importante e fundamental de todo o restante de atributos. Seu programa principal
proposto de governo consistia na criação de unidades regionais de saúde, dentre bairros ou distritos, muitas delas aproveitando a infraestrutura já existente e disponível, postos de saúde, seções de hospitais, prontos-socorros e outras unidades médicas de órgãos governamentais. Aproveitar o máximo que fosse possível e o que estivesse subutilizado, já instalado, se necessário criar novas dependências adaptadas que se pagariam dentre de um ou dois anos no máximo, um investimento, assim pensava, assim planejou seu expresso e formal plano de governo enquanto candidato a eleição próxima. Transformar o Estado em um eficiente polo gerador de competências em saúde, em formação médica profissional de qualidade, em capacitação, treinamento contínuo e aprimoramento de variados profissionais da área médica, em sua grande maioria profissionais de enfermagem e médicos generalistas formados em academia, clínicos gerais, também os especialistas dotados de formação médica direcionada e altamente específica, também estes, porém em maioria os profissionais cuja formação acadêmica teórica e prática demandasse o menor tempo mínimo de estudo obrigatório e dedicação. Profissionais devidamente capacitados, dotados de maior experiência e vivência prática, residências médicas, aptos a atuar precisamente onde houvesse a demanda regional mais imediata, onde houvesse a população mais carente e necessitada. Seu plano, um plano de governo a ser ofertado à população altamente carente e sempre demandante de tais serviços fundamentais básicos, sua ideia surgida após alguma discussão do tema com gente do setor, e principalmente após ouvir muita queixa cotidiana em posto de saúde frequentado pelos descapitalizados
incapazes de arcar com os custos exorbitantes de um plano de saúde particular. Aquele que consertasse a área da saúde pública certamente cairia nas graças do povo. Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são, havia muito em Macunaíma já se profetizara. Uma das maiores dificuldades previstas seria fazer-se convincente, convencer a população constantemente demandante por uma oferta de saúde de mínima qualidade, convencer a todos de que haveria de fato alguma fórmula quase mágica e quase inédita que fosse capaz de resolver um problema centenário e desde sempre existente no Brasil. Muita pretensão, alguma empáfia certamente, aquele que chegasse do nada, desconhecido, alardeando a solução miraculosa ao problema centenário seria taxado a princípio de lunático, ao menos de visionário irresponsável, e talvez até mesmo de sonhador imaturo em um universo de fantasias tolas e inacessíveis. Convencer o povo, a massa de eleitores, eis o que se apresentava a João Pedro Datsi como o xis da questão. Haveria de colocar tudo em papel e muito bem escrito e muito bem explicado, detalhado, exemplificado. Registar tal documento oficial em cartório, seu plano de governo, oficializar, tudo em caráter prévio, assumir portanto total compromisso e comprometimento. Por utópica e ambiciosa que fosse a sua proposta, não era totalmente inédita ou inaudita. Exemplos globais havia, alguns poucos ao menos, uma ou outra iniciativa de sucesso pinçada e escolhida a dedo dentre a imensa maioria de nações que nunca conseguiram equilibrar a contento os custos relativos ao fornecimento de um sistema estatal de saúde democratizado e, por outro lado, os interesses significativos e sempre presentes da indústria
farmacêutica,
também
o
espírito
de
corpo
arraigado,
o
corporativismo oriundo dos inúmeros profissionais e empresas da área médica. Alguma experiência global havia, algum exemplo prático, raro, de Estado que priorizasse a área de saúde pública, ou que fomentasse a saúde privada acessível e a custos justos e parcialmente subsidiados. Um meio-termo, nem deixar tudo sob a imensa responsabilidade do Estado, nem sob as leis de livremercado e de competição mercadológica baseadas tão somente na existência de oferta e procura por um importante serviço público essencial. Não deixava de ser visionário, deveras pretensioso, beirava o utópico, o irrealizável, um sonho irresponsável, mas valeria a pena, assim pensou João Pedro. O momento era adequado, aquele o momento certo, tanta coisa anterior fracassada, experimentos falhos, portanto pouco a perder, tanta proposta que nunca deu certo, tantos planos de políticos ambiciosos que somente visavam a própria manutenção do cargo, visavam a permanência na vida pública com seus mandatos eletivos sucessivos e emendados um ao outro, sempre a bajular e favorecer os seus currais eleitorais. Políticos de carreira que somente visavam permanecer fixos e sólidos dentro do círculo de poder, permanentes, frequentadores assíduos e garantidos das assembleias legislativas municipais, das câmaras estaduais e do Congresso nacional. Ousou. Arriscou ousar, pouco teria a perder, sem temer vir a ser ridicularizado, acreditava de fato e do fundo de seu coração na exequibilidade
da
proposta,
achava-a
factível,
viável
economicamente, valeria a pena tentar, valeria a pena lançar todas as fichas sobre a mesa de carteado, uma aposta grande e
ambiciosa, mas que não julgou irresponsável nem fora de tempo e de espaço. Foi coisa pensada.
7. Caem as trevas...
Deus dialogando com o demônio Mefistófeles: (…) O Senhor: Parece-se contigo. O teu regalo é esse: acusar sempre. Então no mundo nada há bom? Mefistófeles: Não senhor. Quanto eu lá vejo passa até de ruim . Chega a haver dias que eu próprio tenho lástima dos homens, coitados! Nem me animo a atormentá-los (...) Fausto - Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
Escuridão suscita incerteza. Incerteza suscita desconforto, desassossego. Fez-se a escuridão, desde sempre, desde que há o mundo, há a escuridão, as trevas, a noite que sucede contínua os dias de claridade e de ampla percepção visual. Há oculta a percepção imiscuída às trevas, sempre houve, as criaturas noturnas que adormecem quando há o dia, que se esgotam em sono profundo e refazedor após uma jornada noturna ampla e conturbada de caçadas e tocaias, as criaturas noturnas que enxergam e percebem, sentem, em um meio atmosférico onde poucos enxergam e poucos percebem, poucos sentem. Caem as trevas, e em meio à escuridão há a incerteza, decorre o mistério, a dúvida, o questionamento, decorre o não saber o que há por detrás. Sempre um alerta, sempre há algo por detrás. Um alerta, o recado claro de sinal, o não ultrapasse, tanto quanto os claros recados dados aos predadores incautos que tentem
abocanhar um anfíbio tropical de coloração viva, o espetacular contraste entre o negro brilhoso e o alaranjado, a salamandra de charcos com toxidez extremada nos poros da pele, seu órgão mais externo, uma couraça protetora peçonhenta e muito externa, a transição clara entre o meio ambiente de intempéries e o animal de sangue frio, um animal vivaz e mais do que selvagem. Ao amanhecer elas adormecem. As belas e míticas criaturas noturnas, sempre elas, infalíveis, que saem de suas tocas remotas de segurança aos crepúsculos, saem do abrigo aos finais de tarde, os abrigos utilizados para evitar a humanidade e sua cacofonia. Humanidade: seres bípedes repulsivos, tão únicos e tão repulsivos, tão tendentes à completa autodestruição e ao autoesgotamento. Ao amanhecer elas adormecem, belas criaturas noturnas, que amam a escuridão e as trevas, se dirigem saciadas de gozo ao merecido repouso que as livrará de vindouros perniciosos raios solares diurnos inundados de ultravioleta. Caem as trevas, e o fizeram explícitas e arrogantes sobre a humanidade inteira, sobre toda sua completude espalhada pelo planeta. Não menos do que toda a humanidade, pois um agrupamento abstrato de seres construído e criado pelo patriarca do máximo carregador da luz. Fiat lux. Lúcifer, o portador da luz, aquele ao qual se incumbiu a tarefa hercúlea, não menos do que o disseminar da clareza, a claridade, as luzes da razão, o aclaramento sobre todos os corpos e mentes, a clareza de entendimento que propicie a plenitude do espírito e, portanto, a plenitude da eternidade imaterial das almas variadas e multidiversas. Onde há o humano há o seu aroma, um pungente resíduo orgânico,
jamais
adequadamente
descartável,
inconfundível,
inimitável, um resíduo de asco e podridão, a podridão intrínseca de seus intestinos e interiores, decomposição microbiana em permanente curso e constante calor e ascensão. Um frenesi de microcriaturas decompositoras a postos e de prontidão, ávidas, sempre muito vívidas e muito hábeis, sempre muito bem treinadas em suas tarefas diárias mais básicas: o banquete farto e o festim à vida que acaba de cessar em um corpo seu hospedeiro. Ar atmosférico do planeta que deixa de circular úmido por mornos mamíferos pulmões. Onde há o humano permitiu-se a escuridão, a mais profunda das, o seu âmago interior de questionamentos, dúvidas, incertezas. O negrume profundo, medos e temores, o mistério eterno da alma humana, o mistério fundamental de seu processo de criação, do equilíbrio imaterial e invisível entre forças em oposição permanente, um contraste constante e ampla oposição, o maniqueísmo e dicotomia, o Bem e o Mal, sempre, eternamente tal embate. A escuridão que sucede o clarear, noites após dias, sempre o Bem em oposição ao Mal, assim taxados e registrados pelo homem, para sua conveniência e conforto, por mera carência de melhores definições e categorizações, por mera carência de maiores possibilidades de explicação simplista e de ligeira fácil justificativa. Caem as trevas, e o fizeram sobre a humanidade como um todo, desde sempre, desde a primordial criatura de barro, moldada de terra da superfície argilosa própria do planeta, o barro: terra, água e liga orgânica e mineral. O barro primordial argiloso que originou a criatura humana, um ser animado inundado e imerso, com todos os seus defeitos e predicados autodestruidores: a ganância, o egoísmo, ódio, culpa, inveja. Os círculos contínuos de
poder muito humano e muito material, o apego à matéria, o poder de sobrepujar adversários, rivais, competidores, sempre ao tentar sobrepujá-los por esparsos recursos: alimento e procriação, por vastidão de território e amplitude de atuação. Círculos muito contínuos de poder humano, cíclicos, círculos retroalimentados, uma energia que parece inesgotável sempre fomentada de forma permanente e eficaz. Uma fornalha infernal imensa de combustão, depósito constante de muita lenha seca a carbonizar. Lúcifer regozijaria. Óbvio encontrar um campo fértil de colheitas a ceifar, Lúcifer e Baphomet, enviados diretos e confiáveis, ambos ordenados por Satã em glória e majestade, jamais decepcionariam seu mestre supremo, jamais sequer o fizeram em todo o curso da história, nunca ousaram tal imperdoável traição, ambos acreditados ou não acreditados pelos frágeis humanos. Pouca diferença faria, sempre haveria os que os enxergavam, os que os percebiam ao redor, e também sempre haveria os mais céticos e imunes. Havia os imunes, os totalmente blindados aos sopros lascivos insinuantes da dupla grotesca, enquanto imunes seriam quase totalmente blindados aos sopros etéreos e às lascivas insinuações. Pouco importava, sempre houve crentes e sempre houve céticos, desde os primórdios da humanidade. Acreditados ou não pelos humanos, entes etéreos iriam caminhar da mesma forma, engendrar seus percursos predefinidos de rota e rumo, iriam caminhar seguros bem sabiam por onde, o caminho já gasto e utilizado de pedras planas de calçamento, o percurso e rumo muito bem definido e previamente traçado. O poder, o poder do homem, literalmente o poder significando de forma nítida o ser capaz, estar devidamente capacitado, a
premissa, o poder vir a realizar algo, a empreender específica tarefa racional. O que diferencia o homem da engenhosidade quase milimétrica e excepcional de alguns insetos sociais, os favos hexágonos de Apis mellifera, o que os diferencia é, e sempre foi, a capacidade muito humana em projetar na mente em antecipação aquilo que pretende após executar. O poder do homem, potencial, imensa capacidade para realizações múltiplas. Respeito e temor, muitas vezes, o poder pessoal que exala o temor, a apreensão sentida por outros mais sensíveis, a apreensão submissa e súdita ao não se subjugar vencido e arriscar-se, ao não se dobrar a tal determinada potência e grandeza imensa. A soberba do déspota monarca endeusado. O homem gregário, que desde sempre optou por viver em bandos, agrupado e aquecido, tanto quanto outros animais, vários deles, mas o homem com a capacidade tão única de criar abstrações e mitos, de agregar os semelhantes por clara ideologia, por crença e fé, a capacidade de visualizar e configurar uma fé mítica abstrata que seja viável e capaz de unir coesa um grupamento bem maior de indivíduos. Os bandos enormes de hominídeos formados em eras primordiais, os quais as disputas naturais dentre machos alfa seriam apaziguadas pela introdução do gérmen da fé, a crença abstrata e sensorial, a liga e amálgama de união e parcial concórdia dentre prováveis desafetos ainda que iguais. A inventividade humana testou e aprovou o método de liga orgânica e mineral, a amálgama, o difícil ponto de fusão e de junção, a capacidade revolucionária e histórica em agregar seres esparsos aparentemente afins, os grandes bandos humanos, uma massa de carne, todos eles imersos em uma estrutura formada e
sólida de grande poder, uma força, imersos em hierarquias, em obediências, submissões. Imiscuídos e cúmplices, voluntaria ou involuntariamente. Liderança. Líderes escolhidos ao acaso ou emissários diretos divinos, entes sagrados iluminados portanto, inquestionáveis, imenso temor geral gerariam caso porventura questionados. Que não
ousassem
jamais
questioná-los,
nenhum
dos
divinos
emissários, que nada nem ninguém sequer os questionasse. Um poder abstrato que muito tempo depois, idos das primeiras civilizações, se materializou. Por convenção tal abstrato poder se associou com a geopolítica, com os palpáveis conceitos recémcriados de Estado e de Nação. O domínio do universo humano passa pelo domínio de seu ambiente e de seu contexto geopolítico. Em milênios de História escrita bem poucos argumentos parecem ilustrar algo tão diferente desta máxima experimentada e profundamente vivenciada. João Pedro Datsi haveria de ser assediado, tantos e tantos outros antes dele o foram, às centenas, aos milhares, seria tão somente mais um dentre a multidão de procurados, talvez apenas mais um ordinário de menores proporções. Aos seus captores, valeria a energia despendida, bem valeria tempo e dedicação empreendidos, valeria a procura, a tentativa de semear em solo fértil uma
semente
maldita
negra
e
intoxicada
pelos
miasmas
repugnantes das reentrâncias do submundo. Não menos. João Pedro acalentava planos sublimes, altruístas, os seus planos, um plano de governo exequível, fruto de sua extremada sensibilidade e percepção do caráter humano difuso no ar atmosférico ao redor. Seu planejamento altruísta e solidário, o
investir recursos públicos no desenvolvimento de profissionais bem capacitados e treinados na área de saúde, em todas as suas vertentes: nutrição, fisioterapia, odontologia. Aquilo que viesse a resultar em melhoria direta de qualidade de vida da população mais carente. Um belo e ousado planejamento, viável e factível, julgava que sim, um plano de governo futuro fruto de alguma pesquisa e de muita vivência e atenção aos anseios populacionais mais gritantes e imediatos. Recursos investidos pelo governo, dinheiro aportado, o Estado atuante portanto, um investimento cíclico, praticamente de garantido retorno, a redução de despesas gerais em médio e longo prazos e, sobretudo, a clara e legítima possibilidade de abertura imediata de um significativo fluxo de turismo, consumidores ávidos em consequência, a economia girando, um turismo dinâmico e agitado inteiramente relacionado às ciências médicas e hospitalares. Seu planejamento de gestão governamental, com cronograma e tudo o mais, completo e registrado oficialmente em papel e cartório formal. Inter-relação entre setores econômicos que não tardaria a contrabalancear o fluxo de caixa, até mesmo mais dinheiro e recurso a entrar do que a sair. Não haveria como tardar a contrabalancear receitas e despesas frente ao enorme e constante déficit de serviços especializados, a gigantesca lacuna sulamericana, todos e quaisquer países vizinhos a enfrentar os mesmos dilemas e os mesmos problemas de gestão estatal da saúde pública. Um fluxo cíclico que se retroalimentaria, tal qual deveriam ser retroalimentados todos os mananciais de energia de finitos recursos. Em Macunaíma há muito se profetizou: “pouca
saúde e muita saúva os males do Brasil são”. Desconhecedor de nações vizinhas por limitações logísticas e aeromodais em sua época, Macunaíma seria parcial, haveria de ser, mas ingênuo jamais, embora aparentasse, sua imensa sabedoria empírica e pragmática, ao que se consta, teria ele imensa e prática vivência e sabedoria, teria ele o devido reconhecimento. Não haveria ingenuidade em supor também ele que os problemas e dificuldades do Brasil possuem grande similitude com os problemas e dificuldades de seus países vizinhos e de suas proximidades geográficas. Um fluxo contínuo e retroalimentado seria então gerado, fomentado, valorizado pelo governo de situação, qual fosse tal governo, pois imediata seria a percepção ampla do pote de ouro que se mostrava apto à cata e contabilização. Profissionais formados e estudantes novatos que viriam de fora, outros países, demandando sedentos os préstimos de universidades bem abastecidas, com isto obrigatoriamente deixariam no país anfitrião a paga por justa estadia, por alimentação, deslocamento, deixariam os percentuais de impostos e taxas comumente e legalmente cobrados que todos estariam acostumados a arcar. A economia mais ampla do município envolvido a girar azeitada, uma única moeda valorada do dinheiro local corrente que era movimentada e que atiçava, em efeito cascata, outros dois ou três valores equivalentes consecutivos, todos muito interdependentes e capitalizados. Demanda por estadia provisória confortável aos estudantes e profissionais a ser sempre abastecida, a rede hoteleira e de albergues constantemente aquecida, sempre com uma oferta e procura
dinâmica
e
atualizada.
Graduação,
pós-graduação,
simpósios, congressos, eventos em geral, dos mais diversos, todos eles em direta relação à área de saúde em suas múltiplas facetas e funcionalidades. Pacientes em tratamento, adoentados ou não, vindos do exterior em busca de terapias inovadoras e exitosas, trazendo na bagagem a moeda forte de seus países de origem. Uma área de contínuo progresso e inovação, setor médicohospitalar, sempre a inovação, as pesquisas contínuas, quase infinitas, todo o mistério do corpo e mente humana a ser desvendado, imenso território para experimentações, estudos clínicos mais aprofundados, fisiologismos, quase o infinito. Um número amostral alto e exigente a pedir mais e mais comprovação, uma estatística que deve se exibir à sociedade com maiores variáveis, englobando mais indivíduos a serem estudados e mais e mais dados constantemente gerados. Novas drogas e tratamentos, novas experimentações laboratoriais e de campo, testes clínicos em populações específicas e em determinados contextos, gente a ser triada e testada em tratamentos sob uma quase infinitude de parâmetros: dietas, clima geográfico, idade, constituição de ossatura, sedentarismo ou atletismo, presença ou ausência dos fatores de risco e complicações de contágio bem mais específicas. Dentre as ciências, a mais dinâmica e prioritária talvez seja mesmo a ciência médica. Uma ciência mais básica dentre todas as outras, a sobrevivência, o instinto de sobrevivência e manutenção vital, sobrevivência muito quista e bem remunerada. Uma cadeia cíclica econômica vasta, poderosíssima: editoras de livros e livrarias a fornecer volumes e coleções completas, volumes e mais volumes impressos coloridos em bom e
caro papel couché, ainda o hábito e praticidade de consultas em papel
a
manusear;
também
o
fomento
do
mercado
de
comercialização digital, os visualizadores tecnificados em três dimensões, os recursos audiovisuais sempre em progresso e impressionante desenvolvimento. Editores e programadores de tecnologia da informação em um mercado aquecido e dinâmico, amplo, a literatura consultada básica e obrigatória às diversas faculdades e carreiras médicas: neuropsiquiatria, homeopatia, acupuntura, oftalmologia, cirurgia plástica e estética reconstrutiva. Não seria por menos, tal aporte imenso de recursos e oportunidades de arrecadação de impostos e taxas haveria de atrair gente de todos os cantos do planeta. Turismo de tratamento médico. Quantos e quantos endinheirados sempre buscaram os melhores e mais caros tratamentos possíveis, o dinheiro farto lançado sem maiores escrúpulos ao tudo ou nada, quando e se assim convir, ainda mais caso haja desesperado estágio terminal em jogo, ou caso haja o desengano pelas terapias disponíveis e acessíveis em seus países de origem. Haveria de funcionar, valeria a pena tentar, antes disto tentar vender a ideia ao público eleitor, convencê-lo de que, em breve, haveria nítida a possibilidade hipotética de um dos membros de cada família de periferia local vir a ser empregado dentre a economia de mercado farmacêutico e hospitalar, ou a possibilidade clara de vir a se capacitar formalmente em faculdade ou curso técnico profissionalizante para exercer em alguns anos vindouros uma profissão bem remunerada e muito bem valorizada. Nada menos do que o curso natural e previsível da História. Uma linha nada retilínea, porém contínua, com um rumo e
sequência, com direção, um sentido mais do que provável e predito. O Homo sapiens previsível, pueril mesmo após maduro e experiente, sempre esperançoso e utópico, julgando o alcance da felicidade imaterial algo plausível e em verdade palpável. Assim supunha, assim julgava, a massa crítica preponderante de Homo sapiens, os tais mesmos exatos que forçosamente enxergavam alvoreceres e não os crepúsculos, os que, em maioria absoluta, percebiam a gentileza e o altruísmo singelo em atitudes mascaradas de torpeza e egoísmo. O ser humano egoísta, seu intrínseco e infalível gene egoísta, que necessita passar descendentes muito particulares às próximas gerações, o ser humano que necessita depositar seu sêmen e DNA exclusivo em prole confiável e viável de novos futuros reprodutores com suas características afins. Para alguns, porém, bem poucos e minoritários, o ser humano seria nada menos do que ingênuo, imaturo e pueril. Tais poucos que assim pensavam, enquanto minoritários, mesmo involuntariamente se mostravam imensamente capazes em agregar e condensar outra porção de massa crítica diferenciada densa e semipastosa, de rara matéria pesada e coesa, nada menos do que a oculta massa escurecida a qual, figurativamente, sempre e desde sempre se atribuiu todo o Mal e toda a maledicência do planeta Terra inteiro. No entanto não haveria qualquer necessidade de configurar em massa semipastosa, massa tocável, densa e coesa, de matéria escura com peso e volume aferíveis, a configuração e a convergência de todo o mal sobre o planeta. Tal Mal se faria, independente, com o nome qualquer que lhe atribuíssem, qual fosse, pouco importava a denominação, as metáforas vastas e criativas, espalhadas mundo afora, das mais diversas, amplas e
espirituosas, geniais e ilustrativas, plásticas, admiráveis. O ser humano sempre foi um prodígio admirável em configurar ao Mal uma impagável plasticidade gráfica exibicionista, em atribuir ao Mal inequívocas colorações quentes e extravagantes. Não menos, teorias mil, para alguns plausível é supor que os infernais chifres diabólicos seriam, em realidade, reminiscências de um passado ancestral de dez mil anos em épocas quando alienígenas incutiam sobre criaturas terrestres fragilizadas feixes magnéticos de luz e pura energia. O traçado de um raio devidamente energizado sob a forma de um chifre animal incrustado ao crânio do sujeito dito iluminado. Ou plausível também supor a semelhança demoníaca com os hábitos dos caprinos ruminantes. Infelizes caprinos, inspiraram Baphomet, caíram fundo ao desgosto da humanidade. Pan se in caprae figuram convertit. Pan assumiu a forma de uma cabra. Fosse massa pastosa ou semipastosa, dotada de densidade palpável e volume aferíveis, enegrecida ou não, qual fosse, alguns agrupamentos minoritários de gente alegavam piamente que o curso da História sempre exibiu a materialização desta energia, mesmo quando etérea plasmada na matéria, abstrata e volátil, a ludibriar a própria matéria. Uma energia oculta sempre presente, tais quais as massas de ar que, pedaços de atmosfera nada imponderáveis que são, assumem peso e volume, assumem e respeitam as grandezas físicas do universo, seu padrão imutável, grandezas físicas, quer sejam elas postas formalmente em papel, devidamente descritas matematicamente ou não. O necessário equilíbrio de forças em oposição, o mecanismo de cargas e contrapesos. Os bem poucos mais dotados em
clarividência e percepção extrassensorial haveriam de perceber, somente eles notavam os movimentos sutis das massas humanas, notavam o fluxo obscuro da humanidade, fortemente e nitidamente percebiam o infeliz e indesejado aquecimento do deísmo sobre o ceticismo, uma ingrata constatação. Percebiam o fim de uma era de busca por racionalidade científica, busca por agnosticismo. Notavam o declínio de uma procura salutar a equilibrar o irracional e a paixão emocional perante o mais racional e coerente. Notavam o crescimento da fé dogmática, as crenças pouco explicáveis, o arrefecer e crepúsculo do materialismo dialético, Deus enquanto ser imaterial superior e inquestionável em clara alta de mercado, bem valorizado. A chegada do momento humano, em início de século XXI, quando novamente o fundamentalismo religioso se faria presente, novamente, reconfigurando e requentando experiências vividas anteriormente em idos distantes da obscura Idade Média. Fundamentalismo religioso, Deus sobretudo e sobre todos, acima de todos, acima do Mal, pois óbvio acima do Bem sempre se posicionaria afiançável. Alguns poucos notariam, um pequena massa crítica, minoritária, alguns poucos indivíduos na sociedade, mesmo assim notariam, não se deixariam iludir pelas levas efêmeras e pelas ondulações do efeito manada, dos inúmeros e espalhados cordeiros seguidores submissos, obedientes, cabisbaixos
sem
maiores
questionamentos
e
ausentes
de
necessárias dúvidas existenciais. Religião e política, carne e unha, desde sempre, justo onde não caberiam, justo onde não haveriam de estar, uma coexistência intrínseca e interdependente, promíscua e temerária, o imenso declínio desfavorável da rota civilizatória. A queda, fabulosa caída,
magistral e histórica, a queda de Satã desde o paraíso, precipitação grotesca, chamuscando o límpido céu azul-claro de fumo e de poluentes altamente tóxicos e voláteis. Satã caiu, por uma cova no pavimento celestial, escoadouro, um funil de matéria macia, a macia matéria de serenidade e uvas frescas adocicadas do paraíso eterno e aprazível prometido por Deus aos seus súditos obedientes, aos que não o questionassem jamais, somente a estes. Satã caiu, voluntário, expulso em verdade, porém após voluntariar-se a candidato rebelde, a ente malquisto, um cancro asqueroso, repugnante e contagioso, repleto de bactérias, de microrganismos patogênicos e imensamente destrutivos. A queda do anjo rebelde Satã desde eras primordiais, os confins da criação humana, milhares de anos perdidos e parcialmente esquecidos no tempo e no espaço. Os primeiros monarcas de pseudocivilizações em conluio, grata conspiração, déspotas e imperadores mandatários divinos, a tirania condensada e acumulada do espírito humano belicoso e dominador, o domínio pela força, a violência como ferramenta de controle e sobrevivência. Idos primordiais de milhares de anos, milênios atrás, as origens do homem, violência, derramamento de sangue, traição, tortura, violação sexual e sadismo, a matéria-prima mais do que presente em todas as escrituras sagradas antiquíssimas das principais religiões adotadas pelo rebanho humano esparso, poli ou monoteístas, todos e quaisquer. Impossível dominar mentes e espíritos sem transpor a barreira hierárquica interposta entre deuses e homens, a escala social, castas e subcastas, etnias e pseudoraças, a classificação fenotípica das aparências e feições particulares assimétricas. O
homem em escala variável de configuração exterior, tamanho e formato, cor da pele e íris ocular, todos e tudo sobrepostos pelo tão único e inquestionável vermelho-sangue de mesma energia corpórea vital, um bem comum. O Mal haveria de dominar mentes e espíritos, uma vez acreditado assim haveria de ocorrer, tão somente caso acreditado pelos humanos, cultuado e compreendido, pois haveria o Mal onde há o Bem, o azar onde há a sorte, tanto quanto qualquer mera e ordinária sucessão de dias e noites, de crepúsculos e alvoreceres. Sim, seria por meio da organização ditada pelos homens o caminho para o domínio de mentes e de espíritos, tão somente pelo atravessar da escala social organizativa, o atravessar de padrões e posições hierárquicas, de sistemas, a teoria dos sistemas explícita e sempre atuante involuntária, um berço e tumba de nações e civilizações inteiras. Havia muito ousaram louvar uma criatura bestial não divina, fortemente proibida e defenestrada, havia muito ousaram buscar o prazer imediato e viciante, a lascívia universal, o oposto ao nirvana budista, a dita extinção do sofrimento devido à extinção do princípio do desejo, portanto a castração da busca pelo prazer, pelo mecanismo de recompensa muito humano, o mecanismo de um gatilho alcançável e viável em que seja possível atingir certeiro gozo e conforto imediato. Monarcas e soberanos em conluio, desde sempre, desde tempos ancestrais imemoriais, sempre e desde sempre a face oculta de Satã a tudo observar, maledicente e ousado, divertindo-se perante a imbecilidade humana, jocosa imbecilidade, fanfarronice infindável.
O
suprassumo,
a
essência
do
rocambolesco
materializada em seres bípedes frágeis castrados de ambições e de mínimas ganâncias. Tudo e todos teriam parcela de ganância e ambição. Satã, Lúcifer e Baphomet teriam, por óbvio também estes, ambiciosos por natureza, e dentre o rebanho de cordeiros do pastor celestial em oposição, o pastor a dominar céus celestes de azul-claro suave e gentil, também dentre estes, não poderia deixar de haver a imperfeição da criação divina, notável e arrependida imperfeição, vergonhosa, uma mácula, a vergonha do Criador ao botar no mundo seres tão falíveis e incoerentes, tão humanos. Encontrar nos homens o veio de solo fértil rico e prolífico da imperfeição criadora divina não seria tarefa tão ingrata, não seria oneroso ou monótono, tão vasto era o rol de falibilidades e vícios, de comportamentos vagos, entorpecimentos nada sóbrios e nada sãos, o grotesco e violento da insanidade e insalubridade humana. Os indivíduos minoritários ocultos dentre a sociedade perceberam, sempre notavam, sempre atentos, minoritários, porém equidistantes espalhados mundo afora, cada qual em cada continente e cada porção de terra, em cada etnia e condição geopolítica. Minoritários negadores da perfeição criadora divina sempre haveriam de perceber, sempre atentos, sempre notavam os movimentos das massas e dos fluxos de acontecimentos cotidianos. João Pedro Datsi seria tão somente mais um, mais um dentre tantos outros seus pares involuntários predecessores, tantos outros e outras tantas antes dele, o ingênuo João Pedro seria tão somente mais um. Os tentáculos musculosos das forças em constante oposição, antagônicas e sempre em oposição, a carga e o contrapeso. Tentáculos musculosos em poderosa ânsia a tudo
abarcar tanto em prol das forças ditas do Bem quanto aquelas ditas do Mal. Assim ditas, classificação imperfeita, pois forças miscíveis, dicotomia necessária ou nem tanto, maniqueísmo tolo, a necessidade de alguma compreensão humana a partir de certeiros contrastes e segregações. A incapacidade humana de enxergar algo mais além do dia e da noite, de perceber em profundidade e por detrás do cortinado imenso de crepúsculos e alvoreceres. Tantos e tantos tentáculos musculosos, poderosos e abarcadores, os mesmos tentáculos, tais, os mesmos opositores, uma oposição física explicável, uma musculatura se entrelaçando mutuamente, em espiral caótica de gigantesco pandemônio, deslizando tecido brilhoso e se enroscando, um tecido escorregadio, tentáculo não pegajoso, que na verdade desliza sim com perfeição, que perpassa entre as engrenagens e roldanas do tecido social, complexo tecido social, e que desliza e se imiscua com enorme perfeição, tentáculo perfeitamente azeitado, ligeiro e ágil. Elitismo e individualismo, hedonismo, todos os fiéis conceitos que adjetivam o conturbado comportamento humano e, com muito esforço filosófico, geram nomeados adjetivos que tentam o justificar. Em oposição, Igreja Católica Apostólica Romana e satanismo compartilham intrínsecas semelhanças e imensas paridades. O elitismo e individualismo da Igreja em seus ritos, em liturgias, em hierarquias respeitosas imutáveis. Um Vaticano centenário fundado e sustentado em ouro e pedras preciosas, em imóveis de localização privilegiada e em títulos abstratos de mercado financeiro capitalista representados e intermediados por papéis dotados de mecanismos de segurança holográfica e digital. Comportamentos bem caros aos satanistas: elitismo, individualismo e hedonismo. Os
mesmos, paridade quase absoluta. O hedonismo da Igreja Católica por muito tempo obscuro e dissimulado, em escamoteações, aos poucos revelado, trazido
históricas à tona,
envergonhadamente reconhecido, tão somente após milhares de casos pontuais de abusos sexuais e vilipêndios altamente contraditórios mundo afora. A contradição das cargas e dos contrapesos. Deus Criador e Satã criatura em comunhão universal de bens. Previsível se imiscuir dentre os soberanos e os poderosos, quais fossem, mesmo aqueles abstratos, mesmo o mercado financeiro enquanto ente etéreo abstrato imponderável, enquanto miasma, também mesmo a política partidária enquanto mecanismo organizacional das relações sociais e interpessoais na sociedade. Principalmente ambos, tais significativos entes abstratos imponderáveis e amplamente dispersos tal qual um gás ao vasto e amplo ar atmosférico. Não haveria mais perda de tempo, mesmo para quem teria todo o tempo do mundo, para quem teria nada menos do que a infinitude da imensidão cósmica em tempo e em espaço, um ciclo contínuo que revolvia, em espiral, o ressurgimento, ressurgência enquanto água marinha profunda adormecida periodicamente à superfície dos oceanos.
que
se
faz
Cargas e contrapesos. Carga enquanto grandeza física de energia, tal qual a luminescência que a tudo aclara e norteia, a energia carregada e concentrada, esta se faria novamente, à tona, se faria a colossal carga de energia a atingir homens e mulheres, ambos muito humanos, muito falíveis e gananciosos. O individualismo, elitismo e hedonismo. Necessária carga de energia a
ser direcionada, assim alguns indivíduos minoritários em sociedade oculta supunham, pois percebiam as reações muito humanas, suas imprecisões, suas contradições eternas, a contradição dos dogmas da criação divina, da fé, a bondade e a gentileza a destilar em temperança o hábito e a atitude moral dos homens. Sem maior perda de tempo, necessária contracarga de energia poderosa e vital, o fundamentalismo religioso que novamente mostrava suas amplas faces expostas, que retornava conspícuo, tal qual ressurgência marinha adormecida em frias camadas fluidas mais profundas, muito frias, que viriam novamente à tona nos oceanos para gradual desejável aquecimento e oxigenação. Uma água marinha rica em nutrientes, acalorada e energizada, com vida e dinâmica própria, dotada de plâncton e de fitoplâncton, dinâmica e muitíssimo viva e ativa. Ao redor do globo terrestre se faria a carga imensa de energia, a contracarga, se faria arrogante pois provocada, pois estimulada, em reação e forte oposição, em reação ao ressurgimento do fundamentalismo monoteísta religioso. Que viesse a ressurgência pagã, que viesse à tona o profano e o dessacralizado, a quebra de dogmas e paradigmas da fé, que viesse à tona a contradição da criação divina perfeita e gentil. Seria o momento, momento histórico, cronológico, os meios e ferramentas há muito conhecidos, mais do que conhecidos, sempre o foram, desde sempre, o poderio político-financeiro como forte agente transformador, desde sempre, desde tempos primordiais, desde a origem, tanto para o bem quanto para o mal. Involuntário, João Pedro tão somente seria mais um dentre muitos, seria o artífice involuntário, o direto executor. Por meio dele,
seu espírito, obsidiado e assediado, dobrado e incapaz de proporcional reação, curvado e frágil mediante colossal energia. Por meio dele. Seria ele tão somente mais um ordinário a pisar o planeta, um ser errante, tais quais seus antecessores prévios nem tão inocentados. Por intermédio dele os tentáculos musculosos se enroscariam, girariam e se torceriam azeitados mostrando uma superfície lisa, lustrosa, ágil e faceira. A caída das trevas enfim, mais uma vez de tantas outras quedas ao longo da História, a escuridão e o obscurantismo a tomar as rédeas da humanidade, a contemporânea Idade Média obscurantista e irracional, o triunfo da bestialidade irracional, mais uma vez, em contraponto à cordialidade e submissão. Necessário contraponto. Por inúmeras ocasiões a História pedirá um equilíbrio, uma violência insana, a mesma tal e qual atitude sanguinária descrita no Antigo Testamento e praticada farta pelo autoproclamado criador de todos os mundos conhecidos. O triunfo da morte e da decrepitude, triunfo da decomposição e podridão orgânica autogerada desde si própria, de suas próprias entranhas intestinas, dos próprios órgãos internos e tecidos em ossatura. Degradação orgânica acelerada por aerobiose, pela oxigenação e acaloramento provenientes da inversão de camadas fluidas, tais quais as ressurgências oceânicas, o fluido marinho oriundo de profundezas vivificado que se exporia à superfície alcançável pelos sentidos, pelo olhar, por mente e visão bastante humanas. Boa intenção. Seria realmente uma boa intenção o vir a favorecer um número qualquer de pessoas esparsas, aleatórias, proporcionar melhoria em sua qualidade de vida, pessoas indiscriminadas. Por outro lado mais desejável caso fossem
familiares e mesmo os componentes do círculo íntimo de relacionamentos. Certamente uma boa e nobre intenção, a boa causa, justa causa. Uma causa deve necessariamente ser boa e justa caso traga benevolências e benefícios. A causa dos cristãos cruzados medievais seria então boa e justa por combater doutrinados rivais fanáticos por outras fé e outros dogmas, a lâmina da espada da Igreja sobre os pescoços de infiéis, pouco importando se acima de um céu abarcador de claridade e coerência filosófica baseada em escrituras sagradas inquestionáveis e indubitáveis. Satã haveria de salivar em expectativa e excitação. Seria realmente uma boa intenção a de todo e qualquer cidadão que viesse a pleitear cargo político-partidário de carreira estável, a boa intenção de um sujeito a ter a política partidária como meio e finalidade de vida profissional e cidadã, alguém a concorrer a cargo eletivo por maioria simples de votantes, afinal eleito por atrair sim a confiança e a simpatia, por ser bem-sucedido aos eleitoreschave em sua premissa particular de necessário e fundamental convencimento e credibilidade. João Pedro tinha planos, alvissareiros planos, do fundo do coração desejava a melhoria geral da vida de seu povo, desejava que sofressem bem menos, os mais necessitados, desejava que tivessem menos tempo de espera em filas de hospitais públicos, menos períodos de cruento desemprego e frustração econômica, menos carências e vicissitudes de vida, violências cotidianas e negativas falhas contínuas em segurança pública. Um bom e nobre desejo, tal qual o bom e nobre desejo justificado e sanguinário de um cristão cruzado medieval sobre os infiéis muçulmanos em suas
vizinhanças
de
planícies.
Jesus
Cristo
o
homem
menos
compreendido dentre todos os habitantes do planeta Terra. Um bom plano, exequível, factível, julgava sincero que seu planejamento seria capaz de melhorar a qualidade de vida de seu povo de forma gradual, passo a passo, e talvez até mesmo em médio e curto prazo. Seria questão de tempo, pouco tempo, assim apostaria as suas fichas e suas energias. Em vistas de resultados mais
imediatos
apenas
um
primeiro
período
de
formação
especializada profissionalizante, três ou quatro anos no máximo, a primeira turma de técnicos em enfermagem, técnicos em radiologia, fisioterapia, e outras áreas afins que não demandassem prolongados estudos médicos com vistas à graduação mais aprofundada como profissionais clínicos-gerais. Sucessivas turmas de estudantes dedicados a entrar no mercado de trabalho suprindo a imensa lacuna e déficit de profissionais qualificados do setor. Instalações clínicas de pequenas e médias dimensões a serem inauguradas, o atendimento mais básico e direto, imediato e presente de saúde geral, atingir certeiro e preciso o público-alvo eleitor. Um custo a ser abatido, tudo planejado com previdência, seu plano de governo, parcerias com empresas que seriam beneficiadas por abatimentos graduais e proporcionais de impostos e taxas caso contribuíssem para o custeio rateado do valor final dos tratamentos de saúde da população.
Uma
relação
de
ganho
mútuo,
quanto
mais
contribuíssem ao financiamento da saúde pública, mais seriam tais empresas
classificadas
de
forma
positiva
e
atrativa.
Uma
classificação reluzente e bem polida que gerava em consumidores a simpatia pela preferência a estas empresas filantrópicas frente a
ampla concorrência pouco responsável socialmente que se situasse em similares condições competitivas. Em tese os empresários contribuintes ganhariam pontos imaginários e pontos reais, uma graduação em escala ascendente que viria a configurar e a representar ao final, na ponta do mercado, um maior número de vendas e de encomendas por honestos e razoáveis serviços oferecidos. O turismo médico-científico a se aquecer, também tudo o que se relacionasse diretamente a tal atividade turística, ainda que não das mais convencionais. Uma intrínseca cadeia de serviços em oferecimento e disponibilidade: hotelaria, gastronomia, logística, fornecimento de insumos e equipamentos especializados. Exemplos havia, países conhecidos mundialmente pela qualidade de seus centros de pesquisa e tratamento médico-hospitalar. O presidente de nação tal que vai ao exterior tratar grave patologia coronariana no hospital tal que sempre aparece em notícias de jornais e televisão. O esportista olímpico de ponta mundialmente famoso e de alto desempenho que busca delicada cirurgia ortopédica em único centro conceituado a aplicar uma nova técnica médica de intervenção e de procedimentos. Um otimista sonhador, utópico, talvez João Pedro Datsi assim o fosse, nada além, nada mais do que um dentre tantos outros sonhadores utópicos, um otimista excessivo, transbordante, de fato um otimista ao que dissesse respeito aos rumos e sequências que o caráter e moral humana imprimiriam em civilizações globais ao longo dos anos vindouros. Se tivesse à disposição as ferramentas necessárias faria a diferença dentre a sociedade, assim supunha, assim julgava ser capaz de fazê-lo, ser capaz e sabedor ao quebrar
um ciclo vicioso de padrões repetidos irracionalmente, a ditadura imbecil dos nove e noventa e nove. Todos adotavam, vendiam um produto a nove e noventa e nove, mesmo nunca devolvendo um centavo de troco em compra de balcão, mesmo nunca sequer se envergonhando de praticar tão imensa hipocrisia. Haveria dia futuro quando consumidores preferissem os vendedores mais honestos e sensatos, os que venderiam seus produtos a redondas dez unidades da moeda nacional corrente. Consideração e coerência. João Pedro imaginava-se tal qual um diretor de companhia multinacional de alimentos, por óbvio forçando-se a considerar a produção de uma bebida açucarada e destituída de nutrientes como um verdadeiro alimento. Em iniciativa própria e voluntária, consciente, viria tal diretor a implementar estratégia inovadora de vendas e divulgação de seus produtos alimentícios consolidados globalmente. Iria corajosamente admitir ao público consumidor em geral, aos milhões de ávidos consumidores globais de refrigerante, iria admitir que, de fato, seu produto líquido rentável e vendável constituía e guardava pouca diferença comparativa ao puro veneno sintetizado em laboratório. Gradual veneno, de efeito crônico, molécula cumulativa ao organismo, mas nada diferente de fato do que um puro veneno, mesmo quando diluído: sacarose refinada, cafeína e sódio em excesso, ácido fosfórico corrosivo. Sobretudo, e bem mais grave, a capacidade de ludibriar e mascarar um sistema digestório de uma pessoa faminta, alterando-o para o estado mascarado de sujeito alimentado. Portanto a fome oculta, a ocorrência de uma gente subnutrida, anêmica, de olhar pouco expressivo e amarelado
carente de vitaminas e minerais e, no entanto, apresentando sobrepeso e um ventre saliente explícito. Pouquíssimos admitiriam ganhar garantido dinheiro arrasando a condição de saúde alheia. Necessário quebrar o ciclo vicioso, inovar, admitir os dez inteiros ao invés dos nove e noventa e nove. Uma constatação nada retilínea, nada precisa, sempre haveria argumentos em desfavor, inúmeros, sempre haveria o argumento da experimentação própria, daquilo que cada indivíduo experimenta em vida e agrega em acúmulo de vivência sucessiva. Sempre haveria o argumento daquilo que os outros indivíduos nas proximidades experimentam. O próprio indivíduo que foi criado e nutrido sem restrições aos doces e refrigerantes. O indivíduo conhecido fulano de tal que consumiu por toda a vida um maço de cigarros diários vindo a falecer aos quase cem anos de idade. O argumento explícito do contentamento, o prazer certeiro imediato e efêmero, este talvez o mais poderoso dentre todos os argumentos: Satã se deliciaria em imenso gozo e satisfação toda e qualquer vez quando uma criatura divina genérica sentisse o efêmero prazer imediato do açúcar branco refinado na língua, entorpecida criatura incapaz de perceber o lento e inexorável efeito crônico de uma reação metabólica em curso, silenciosa a princípio, escamoteada, e por vezes um tanto direta, agressiva e cruel. O imenso gozo e satisfação de Satã em pessoa e majestade, único e imortal, fumegante e lascivo, emitindo eternos miasmas de enxofre e putrefação. O próprio. Um gozo de satisfação e principalmente de realização, um ente, ser imaterial quase de carne e osso capaz de notar em profundidade a ação lenta do autoextermínio voluntário de uma vã criatura divina imperfeita e
castrada por inúmeros dogmas e liturgias a observar e respeitar. Bem poucos notariam o tempo fluido diluído na atmosfera, a sua densidade esparsa. Pouquíssimos seriam capazes de retardá-lo ao bel-prazer, tornar o tempo em realidade mais denso e pastoso, quase derretê-lo e domá-lo, à semelhança das figuras magistralmente pintadas em tela por Salvador Dalí. Plasmar o tempo: imensa ousadia e afronta ao Criador inquestionável do universo e de todas as coisas ocupantes nele inseridas. Um ousado, salvador. Simultâneos
dois
processos
organometabólicos
bem
distintos, mais, bem além disto, também a química inorgânica atuante pareada à química orgânica. Somente poucos saberiam, somente os pouquíssimos entendedores, os bem poucos aos quais se permitiu a compreensão e a clarividência, o anjo Satã abençoado no processo primordial de criação universal, dentre outros anjos e arcanjos dotados de percepções extrassensoriais e de atributos sobre-humanos. Negou-se ousado a devolver de mão beijada submissa tais poderes a ele inicialmente atribuídos. Rebelou-se desafiador e manteve a soberba, refinou sua gigantesca arrogância, jamais abriria mão de suas grandes asas costais fantásticas que fortes resistiram ao impacto e ao chamuscar em colossal atrito de sua magnífica queda violenta desde o paraíso. Uma bola de fogo de brilho incômodo ofuscante e combustão a riscar o céu azul-claro do planeta
até
o
abismo
profundo
muito
abaixo,
a
camada
subssuperficial do planeta inteiro formado por terra, mar e ar. Uma substancial reação química inorgânica proveniente do etéreo imaterial ainda não inteiramente compreendido. Muito ainda seria necessária de recorrente pesquisa humana, de repetitiva e
dedicada ciência investigativa comprobatória. E independente de justificarem adequadamente ou não, de comprovação puramente científica ou não, ocorria que processos inorgânicos obscuros e escamoteados
se
fariam
inexoráveis,
aleatórios,
afinal
não
dependiam de demais fatores pseudorreligiosos, nunca deles dependeram para coexistir, se fariam ao mundo de toda forma, com a devida arrogância e estupidez. Uma força imensa estúpida em intempestividade explosiva. A implosão brusca de toda a hipocrisia e a incoerência de uma cordialidade monoteísta proveniente de um deus único criador do universo, onisciente e onipresente, enquanto uma vasta ideia abstrata pouco explicável. Entidade inquestionável de extrema perfeição, representação suprema de toda a justiça e de toda a bondade do universo. O rebanho infindável, alinhado em longínqua perspectiva na paisagem, enfileirado, um rebanho fértil de cordeiros submissos cabisbaixos e resignados em penitência e constante divina punição. Um pragmatismo claro e explícito, exacerbado, a coalização de forças em constante e eterno balanço e desequilíbrio, uma operação escusa subterrânea que encerrava a contradição de, simultaneamente, se mostrar evidente tanto quanto abstrata. Quem tivesse conhecimento entenderia desde sempre. “Aquele que tiver entendimento calcule o número da besta...”. Desde os primórdios, início das primeiras civilizações e dos primeiros códigos de escrita rudimentar rupestre. Haveriam de entender tal inconfundível equilíbrio de forças, desde todo o sempre perdido quase imemorial na história da humanidade. A muito pragmática atitude de contrabalancear energias em forte e cruenta oposição, o âmago e a
razão única de existir de toda a completude de um universo infinito encerrado em si próprio. Início de século vinte e um apresentando somente mais um dentre vários acontecimentos de ciclos sucessivos. Não haveria grandes novidades. Antigas escrituras sagradas e temidas há milênios relatando fartas e sempre presentes matanças vingativas sanguinárias em nome do deus único criador de todas as coisas do mundo conhecido. Bastante justo. Bem justo e coerente derramar sangue esparso em nome de deus, perpetrar tudo aquilo que fosse tão necessário para a cruzada santa, para a intifada de califado, ou para o contra-ataque de diáspora judaica. Uma cruzada sacrossanta e abençoada contra o grande e perigoso Satã, demônio abominável possuidor de treze cabeças escamosas imundas e regenerativas. Os eventos traumáticos de abertura do século na principal potência econômica e bélica mundial explicitamente representada por nação identificada como o grande antro, o povo pecador infiel. Uma falsa compreensão. Também dentre o dito grande povo pecador infiel, assim visto por fundamentalistas islâmicos, a presença de tantos outros extremados religiosos a pregar, nada menos, o mesmo extremismo religioso, cegos a louvar fanáticos o exato mesmo deus, o deus único onisciente e onipresente, nada menos do que o exato mesmo monoteísmo de vários profetas e de identificáveis raízes originárias em comum e em comunhão. Por parte exclusiva dos representantes do paganismo e do ocultismo não haveria grandes temores. Temor e acovardamento não lhes eram palavras e conceitos peculiares ou familiares. Desde sempre sofreram perseguições e injustas emboscadas, desde sempre, a expulsão retumbante do paraíso divino, historicamente
foram alvo de perseguições e retaliações. Algo a lhes moldar o caráter e temperamento, um inesquecível batismo de ferro e fogo, batizados em fogo, desde o nascimento ter contato íntimo com a dor aguda mais cruenta, a dor das brasas a chamuscar carnes cruas, tendões e ossos, e também a dilacerar crônica o espírito livre vagabundo e imortal. Impossível desistir do direito perpétuo à liberdade espiritual, impossível abrir mão do direito de empreender tantos e quaisquer sobrevoos de alma que lhes fossem desejáveis e ambicionados. Definitivamente não se tratava de temor o sentimento manifesto, não o temor, mas a direta e forte explícita apreensão. O aviso mais do que saliente, alerta nítido e muito direto, o aviso quase ofuscante de alerta máximo para que atitude qualquer proativa fosse tomada com máxima urgência. Assim enxergavam os pagãos ocultistas espalhados mundo afora, todos com mesmo sentimento e mesma compreensão, todos percebendo inegáveis as cotidianas nuances e minúcias de um movimento a princípio lento, mas um movimento gradual e com rumo e objetivos claros, o movimento fundamentalista monoteísta de início de século vinte e um. Nova cruzada contemporânea talvez, somente o tempo a dizer, somente
o
desenrolar
sucessivo
dos
acontecimentos.
O
recrudescimento da onda religiosa dogmática conservadora das três principais correntes de fé e observância estrita de sagradas escrituras pétreas desde muito repassadas às gerações posteriores. Gerações após gerações, uma tradição oral, vocalizada, repassada por estórias provavelmente exageradas e aumentadas, somente muito tempo depois depositadas e descritas em oficial código manuscrito. A tendência muito humana de fantasiar e de
enfatizar eventos para lhes configurar um maior impacto e credibilidade. A observância estrita de escrituras antiquíssimas perdidas em idos quase imemoriais não tem se mostrado aliada ao progresso humano. Necessário pesar e contrapesar quem, de fato, estaria verdadeiramente interessado no avançar razoável do progresso humano. Não seria de todo desarrazoado imaginar que parcela significativa dos homens não estaria de fato interessada no progresso. Um progresso que sequer aventar poderia soar como traição, assim interpretado, pois em escrituras sagradas pétreas não haveria a possibilidade de retoque, muito menos correção ou revisão. Seria uma indesculpável e imperdoável blasfêmia, extrema injustiça, traição covarde, a covardia extrema, afinal assim seria ignorar e rebaixar o pensamento supremo de Deus em um momento tão iluminado e sublime. Haveria de fato de ser imperdoável o crente, e punível com o mais agudo de todos os castigos mortais previamente advertidos. Não caberiam revisões e retoques, mesmo as interpretações seriam majoritariamente desfavoráveis, portanto desfavorável a coerência, o sopesar daquilo que haveria de razoável, uma racionalidade mínima quase impossível mediante tanto dogma inquestionável, mediante tanta fé cega e emotiva, a fé do beato fiel, inabalável, fé que jamais deve fraquejar, que deve manter constante vigilância e policiamento. Policiar-se sempre, não desviar jamais de rumo e de sentido, manter-se íntegro e fiel. Em forte contraponto, aos pagãos e ocultistas não caberia o temor, caberia antes a apreensão, o perceber claramente que havendo novo embate existencial contemporâneo o resultado seria dramático e enfático. Assemelhava-se ao exibir a um detento
apenado o retrato fidedigno de um inimigo seu mortal de sangue. Algo próximo, um vislumbrar de que as crenças monoteístas que dominavam o mundo seriam capazes de empreender novo embate conflitivo entre forças existenciais ditas do Bem e do Mal. Um vislumbrar um tanto apreensível. Uma apreensão razoável e cabida. A um detento apenado por crime brutal se lhe apresenta o retrato fidedigno de seu arqui-inimigo de sangue, alguém ao qual nada deseje de bom, antes deseje o ódio puro concentrado. Imensa repulsão, pois, ao final, bem sabe ele e se assegura de que um eventual encontro direto com tal sujeito odiado boa coisa não resultará. Resultado dramático e pungente, de sangue, absoluto e certeiro sangue a ser derramado em profusão, um encontro de vida ou morte, obrigatoriamente assim, no qual tão somente um dos lados opostos haveria de permanecer, mesmo que não intacto, mesmo que mortalmente ferido. Não raro encontros desta laia resultarem em dilacerações múltiplas e simultâneas, em ferimentos mortais aos quais um provisório e momentâneo vencedor em seguida não sobreviva ou sequer se recupere a contento. O retirarse exausto e esgotado, exangue, de um campo de batalhas árduo e árido, brutal, que foi palco de uma disputa ferina atroz fratricida. Chão batido e sujo, imundo, pavimento de sangue seco coagulado e pútrido, acumulado proveniente de inúmeros soldados aguerridos tombados, desapegados, que se entregaram ao quase martírio voluntário, seguidores de uma causa e de um ideal profundo e acreditado, muito acreditado de fundo de coração. Temor e acovardamento não seriam conceitos familiares aos pagãos. Uma apreensão, aviso máximo de alerta crucial, tal qual o rugido de um leão africano em cio reprodutivo, uma fera que
disputará implacável uma rinha impiedosa de vida ou morte, disputa inapelável frente a possibilidade de substituição de um macho reinante alfa por um jovem macho a recém se fazer maturo sexualmente pelas redondezas. O rugido de um leão selvagem, saudável e bem alimentado que, nada menos, som gutural, signifique a chamada obrigatória ao embate próximo, a chamada inconfundível à prestação de contas, o momento crucial e definitivo quando se mostrará ao restante do grupo, leoas e jovens machos imaturos, quem de fato manda e impera em todo o território de caça nas imediações. Configurava-se
o
cenário,
a
paisagem
disponível
contemporânea, a perspectiva no tempo e no espaço de sucessivas planícies vastas sem sol onde, em cada qual, seria representável um futuro sombrio pouco promissor e bem desfavorável ao culto e ao alimento de seitas heterodoxas que ousassem questionar sagrados ensinamentos de sagradas escrituras milenares e muito abençoadas. Um cenário contemporâneo, de inícios do século vinte e um, uma perspectiva global, pouco variável, muitos e claros pontos em comum. Seria evidente a escolha voluntária pelo embate, pelo enfrentamento, por fortemente combater o que se julgava o câncer maior da sociedade, combater o que se julgava o mais reprovável e a raiz única e fundamental de todos os males e desassossegos de todas as criaturas divinas advindas do fabuloso paraíso deísta. Fundamental e justificado, abençoado, perdoável, altivo e recomendável, nobre e puro, honroso, assim reputavam os deístas o embate direto e irrestrito às forças pagãs representadas pelos abomináveis seguidores de Satã.
Tal qual retrato conspícuo de arqui-inimigo apresentado ao apenado em cela solitária imunda e insalubre, a configuração de início de século se apresentava repulsiva e cruel, um convite inegável à disputa. Mostrava-se nada promissora, de fato preocupante, uma fonte forte e constante de apreensão. Necessária uma contrapartida, a contracarga, contrapeso, a compensação, os mecanismos automáticos e quase involuntários de compensação imediata os quais o universo costuma operar em silêncio, quer assim queiram ou não todas as partes e energias envolvidas. O campo de batalha estaria posto à mesa, o tabuleiro do jogo eterno conflituoso entre as forças do Bem e do Mal, o perpétuo conflito cósmico, objeto essencial e primordial de toda a razão existencial de seres humanos porventura habitantes temporários do planeta Terra. As falhas expressas de uma humanidade falível por si própria. Território vasto e fértil, terreno bem adubado e calcareado mais do que propício à hipocrisia e à dissimulação. A vergonhosa falha criacionista, ato falho impossível, jamais admissível, pois o Criador dos céus e da terra jamais admitiria, talvez o faria tão somente o seu autoproclamado filho, ou os autoproclamados filhos, no plural. Inúmeros assim identificaram-se, ao menos um pretenso ser humano de carne e osso para cada qual das principais religiões monoteístas. Também para algumas religiões politeístas, também para alguns de milhões de divindades do panteão hindu a sobrevoar extensões baixas anteriormente planeadas da atmosfera do planeta Terra. Dissimulação, blefe, hipocrisia, naturezas inatas terrestres, longe de configurar uma exclusividade muito humana ao se supor
que
também
outros
primatas
possuiriam
tais
repreensíveis
comportamentos inatos. O planeta inteiro enquanto local cósmico de expiação e de certeira depuração. Dentre bilhões e bilhões de seres humanos, cada qual insignificante e ordinário, cada qual jamais capaz de alterar qualquer rumo ou direção, alterar um fio sequer, cada qual sustentando enorme empáfia interior, carregando às gerações posteriores sua intenção clara porém não declarada de repasse dos próprios genes, perpetuação da própria descendência. Sempre este método, sempre este procedimento progenitor infalível e sucessivo. Bilhões de seres ordinários desprezíveis, apenas mais um sujeito dentre muitos outros latino-americanos, somente mais um dentre estes tantos outros. O codinome assim classificável como João Datsi não haveria de negar a sua raiz alegada, a sua procedência fruto de uma entidade mítica criadora universal, ente supremo onisciente e onipresente. A origem não seria negada, afinal necessário
não
negá-la
por
não
compreendê-la
em
sua
integralidade e concepção. Outros tantos bilhões de seres humanos ordinários se computados enquanto almas diversas, almas únicas e numeráveis, pessoas que passam pelo planeta e o pisam em constante florescer e constante ocaso, cada qual um espírito a habitar um novo embrião primordial, feto em formação dentro de um aquecido e conveniente útero materno acolhedor. Dissimulação e hipocrisia, o blefe desavergonhado portanto, estratégia de sobrevivência em muitos casos. O melhor dentre dois males, contar às crianças o aparecimento de uma linda estrela nova no firmamento celestial, algo inédito, acontecimento cósmico histórico que passaria a configurar a abóbada estrelar aos céus
noturnos belos e de vista límpida. A nova e bela estrela luminosa brilhante e levemente azulada que passaria a configurar e a se exibir nos céus claros noturnos de noites de temperatura amena e agradável. O novo astro cósmico de grandeza e dimensão absurda a materializar em massa e volume a alma de um parente próximo querido recém-falecido. Valeria o conto, o blefe, melhor assim, faria a criança ainda imatura se transformar em um infante menos entristecido, a aliviaria, valeria desta forma a justificativa, a atitude ao tentar apaziguar amargurado choro, cessá-lo momentaneamente, até o subsequente conto de nova aparição de nova estrela no firmamento a homenagear os vindouros recém-falecidos de convívio estimado e intenso. Estratégias
de
sobrevivência,
das
mais
variadas,
a
humanidade assim requeria, em todo e qualquer dia, uma demanda cotidiana constante de dissuasões e de estratagemas oblíquos, a convivência necessária dentre indivíduos em uma sociedade de grupo obrigatório, em um contínuo atrito de personalidades e arestas mal aparadas. Dentre tantos outros seres humanos, João Pedro não seria a exceção, não seria ele o capacitado a negar a sua natureza muito humana originária, a sua natureza diáfana imaterial. Convocado para membro integrante de tribunal de júri de comarca pela segunda vez usou de subversão. Inverteu valores. Não menos do que um crime quase inafiançável e vergonhoso para quem postula em breve uma notória carreira político-partidária. Imperdoável, quase um pecaminoso crime de morte. Convocado pela segunda vez na vida a membro integrante de tribunal de júri de comarca, achou por bem lançar mão da dissuasão. Hipocrisia em boa definição, a fomentou consciente e
voluntário, a alimentou, deu guarida, seria portanto de fato imensamente culpável, um contribuinte assíduo a pagar e a cimentar o imenso paredão maciço da consolidada hipocrisia humana. Refletiu, pensou e pesou possibilidades, um pensamento pragmático, deveria agir com rapidez, dar resposta com brevidade ágil, ser prático e taxativo. Seria ou pegar, ou largar. Decidiu-se. Uma saída e solução mais do que pragmática, assim terceiros requeriam, assim a situação posta à mesa requeria, tomar uma decisão clara e imediata, somente duas dentre as possibilidades existentes: pegar ou largar. Largar a convocação seria a mais complicada, sem dúvida, haveria de ocasionar em decorrência alguma implicação jurídica punitiva envolvida. Ser convocado oficialmente, intimado, a membro de tribunal de júri de comarca não configura, enfim, algo de relevante ampla escolha e opção. Definitivamente não é. Convocação com caráter de intimação, correspondência a domicílio com brasão formal da República, efetivação de registro junto ao Ministério da Justiça, tudo o que se configura em algo bem diferente do que um mero e opcional simples convite para evento. João Pedro haveria de decidir-se, haveria de pensar rápido, optar pela escolha mais viável dentre duas possíveis, o menor dos males apresentado. Quando da primeira convocação formal, anos atrás, exercia cargo público de servidor temporário, concurso provisório, portanto conseguiu folga posterior dobrada junto ao contratante. Documento formal enviado a domicílio com o brasão imponente da República, papel de respeito, em nenhum ambiente de trabalho no mundo o chefe de subalterno iria questionar ou discutir, nenhum chefe ou patrão iria duvidar ou negar a funcionário
contratado qualquer. Cada dia de comparecimento ao tribunal do júri a render ao empregado dois dias de folgas que somados ao tempo total de comparecimento resultariam em um período vantajoso. Caso fossem seis dias no mínimo, vindos de três presenças ao tribunal, estes emendariam ao final de semana, portanto na prática oito dias futuros justificáveis, uma ausência requerida no trabalho enquanto servidor público oficial. Valeria o sacrifício de assistir sessões prolongadas e entediantes em que somente advogados de acusação e a promotoria se deliciavam com a retórica e a eloquência de seus termos jurídicos muito peculiares, rebuscados e muito íntimos. Em segunda convocação, sem dúvida decorrente de experiência anterior bem avaliada pela comarca de justiça local, desta
feita
concursado
a
cobertura
privilegiada
mais
cabia.
não
lhe
de
funcionário
Verdade
que
público
mesmo
o
funcionalismo privado há de respeitar convocação da justiça e dispensar funcionário sob justificativa, força de lei trabalhista, mas a relação entre partes nunca é tão linearmente comparável ao serviço público e certamente um empregador privado há de sopesar e avaliar com critério a conveniência econômica quanto a manutenção de um funcionário faltoso no seu quadro de assalariados com carteira assinada. Certamente um empregador privado haverá de optar por funcionário que não invente muitos atestados e declarações oficiais, que não seja recorrente em pedir dispensa de trabalho por motivos particulares, sejam estes oficiais ou oficiosos, justificáveis ou não. João Pedro haveria de declinar, tarefa nada fácil, declinar intimação seria somente possível caso escusa formalmente aceita,
caso
apresentada
justificativa
expressa
oficial
devidamente
homologada pessoalmente ao promotor público, em sessão oficial do tribunal, sessão prévia aos julgamentos de casos específicos propriamente ditos, em sua grande maioria crimes de homicídios. De fato estava farto, sem qualquer paciência, sem tempo disponível, não mais usufruindo as regalias do funcionalismo público, regalias ainda que temporárias de uma não efetivação, mesmo assim não mais havendo possibilidade de ressarcimento em dias de folgas futuras por trabalhos convocatórios obrigatórios enquanto cidadão honesto pagador de devidos impostos. Sem qualquer paciência naquele momento, ainda mais suspeitando que os casos de tribunal de júri daquela comarca, em tal época, seriam por demais complicados, por demais demorados. A mais do que obrigatória e formal necessidade de não convívio entre integrantes do tribunal de júri, seu estrito isolamento mediante terceiros, o isolamento de convivência necessário e formal, todos eles dignos cidadãos de reputação ilibada, integrantes isolados, sem acesso à mídia, telefonemas, sem acesso às transmissões de telejornais ou de demais informativos noticiosos. Uma dedicação quase exclusiva, mesmo que momentânea, por vezes desgastante a quem não possui tantas afinidades junto à carreira jurídica formal, tarefa por vezes excessiva a um cidadão comum que, de súbito, é intimado a prestar os seus deveres e obrigações enquanto cidadão acima de qualquer suspeita. Abrir mão da liberdade por horas, às vezes dias, em prol de uma causa, e em boa parte dos casos condenar à prisão um negro iletrado morador de periferia que estava no lugar errado, na hora errada.
Seria honesto e altivo admitir ao promotor público na sessão de convocação que estava farto e que não teria qualquer paciência para integrar um novo tribunal de júri convocatório. Admitir ao promotor público que há tempos, em primeira convocação anos atrás, interessou-se primeiramente pela nova experiência e pela possibilidade de pedir as futuras folgas compensatórias dobradas de expediente, uma agradável e desejada ausência posterior do trabalho, dias a usufruir que poderiam emendar com um final de semana qualquer para uma boa escapada estratégica de rotina, provavelmente em viagem oportuna às praias do Nordeste brasileiro. Honesto, altivo admitir, um ato de hombridade e honradez. Por que não? Assim simplesmente seria de fato digno de si próprio, digno de um pretenso candidato a carreira político-partidária inovadora e revolucionária dentre os costumes arraigados corruptos vindos de parlamentares dissuasivos. Por que não? Ilustríssimo promotor, não estou com paciência e disposição mínima para novo tribunal de júri. Ilustríssimo seria já indicativo de uma grande hipocrisia. O pronome de tratamento não era obrigatório aos cidadãos ordinários ao se referirem aos promotores públicos, uma afetação portanto, uma intenção escusa voltada a amenizar o impacto negativo de uma solicitação desfavorável ao Estado. O declinar de uma intimação formal considerando que sem um número mínimo de integrantes aptos ao tribunal do júri, as sessões jamais seriam oficialmente aceitas ou sequer realizáveis por falta de quórum mínimo. Jamais seria aceitável, jamais teria a sua solicitação sequer avaliada com o devido interesse detido, não poderia simplesmente
alegar ao promotor público em sessão convocatória prévia às análises de julgamentos propriamente ditos, jamais poderia alegar que estava de fato sem um mínimo de sentimento cidadão estocado, esforçando-se sobremaneira para não se expressar ao promotor de forma bem mais coerente e representativa, esforçandose a não se expressar por meio dos termos chulos e bem mais populares que lhe passavam pela mente no momento. Falar não estou com saco não colaria, jamais seria aceito tal argumento chulo e, muito pior, poderia até resultar em advertência formal jurídica e punição, não raro resultaria em formal e justificável desacato à autoridade do promotor. Punição à vista, quase certeira, um risco absurdo e irresponsável a ser evitado a todo custo. Nada comparável a, por outro lado, exercer uma devida hipocrisia e dissimulação. Esta atitude a tudo seria enquadrável, um encaixe perfeito, bem conveniente, portanto haveria de blefar, mentiria de fato, com clareza, assertiva pura e direta, não admitiria ao promotor não estar com saco para participar de um novo tribunal de júri, antes mentiria, desavergonhadamente, uma direta e clara mentira, nome próprio e justificado, impossível negá-la. Falaria pessoalmente em sessão oficial algo inventivo e previamente elaborado: “sou trabalhador autônomo, não tenho como comprovar a ocupação, preciso dar expediente diário para trazer comida aos filhos, não posso me ausentar...”; “tenho claustrofobia ainda não diagnosticada, tenho uma síndrome rara que traz aversão ao convívio formal em sociedade, tenho preconceito contra advogados, contra negros, contra asiáticos, sofro de diarreia incontida...”. O que fosse. Algo inventivo que não demandasse comprovação formal por papel passado e assinado por terceiros...
Muito mais honesto, digno e nobre de sua pretensão clara à carreira político-partidária, bem mais digno ao título de desbravador de tabus e de paradigmas, o quebrar o ciclo vicioso da corrupção política infindável. Ser alguém diferenciado, somente se para isto fosse, assim desejava, assim configurava seu plano íntimo traçado e posto em papel por meio da sua proposta de candidatura partidária em pleito democrático regularmente auditado. Por que seria tão difícil? Por que não seria aceitável? Perguntou-se. Em seu âmago sempre achou difícil de aceitar tais comportamentos hipócritas diários e cotidianos os quais todas as pessoas, em qualquer canto do mundo, em maior ou menor grau, devem e tendem a vivenciar. Tão mais fácil se todos fossem não menos do que sinceros. Não que se trate de perfeccionismo filosófico de caráter, uma bondade e gentileza transbordantes, a se classificar excessivos cabendo a categorização de excesso de gentileza, de excesso de um sentimento favorável e desejável, solidário. Estranhamento ao se considerar ser possível um excesso de amor e de altruísmo. Nem tanto. Nem tanto, nem tanto ao lado do perfeccionismo de caráter, a galvanização e polimento de uma reputação ilibada que, de tão honesta, mete-se em apuros. Negar à criança entristecida e desolada a possibilidade de uma fantasia agradável e reconfortante, a fantasiosa e maravilhosa parábola de uma tia querida que virou estrela no firmamento do dia para a noite. Estrela a brilhar no céu noturno de noites límpidas de temperatura agradável, tão bela e luzidia, levemente azulada, brilhante, tudo decorrente e em função de sua tia querida que não mais lhe fará os espetaculares bolos de cenoura com cobertura de chocolate crocante que saíam mornos do
forno da cozinha da tia exalando ainda por cima um aroma cítrico das cascas de laranja colocadas na receita.
8. Um raro alinhamento de astros no firmamento, condição imperdível...
- Quais são as chances? - Algumas, não muitas, mas há chances, o que já é algo promissor. Há tempos não aparece nada parecido... - Está fazendo alarido, não é mesmo? Impressiona perceber que o início deste século gera sujeitos famigerados mundo afora, milhões de pessoas que, em tese, acompanham e se atentam ao pensamento de um líder carismático qualquer. É algo promissor, tenho esperanças, é bem provável que nossa fé e crença saia fortalecida, precisamos trabalhar com afinco e inteligência neste sentido, há chances de finalmente presenciarmos a chegada dominante de nosso mestre Satã sobre a humanidade decadente... - Há uma chance, valerá o risco e a energia despendida, o nosso tempo investido, um investimento, assim devemos encarar, mais um de tantos investimentos que já fizemos, à espera de remuneração certeira, tal qual uma aplicação em bolsa de valores, ou em ações empresariais de alto risco, das de perfil ousado e agressivo, as aplicações de risco que tanto costumamos fazer e nos dão imenso prazer e expectativa. Chama a atenção a condição atual, este momento único, este início de nova era, algo promissor. Posso estar
enganado, mas sinto algo fantástico, creio realmente que estamos em um novo início de era, o tempo cíclico e contínuo ao qual as hipocrisias serão esmagadas e empurradas de lado, finalmente, a era mais esclarecida e elitista do racional sobrepujando o emocional, assim espero, assim oro diariamente, clamo e louvo aos nossos deuses pagãos, todos eles... - O sujeito diz querer fazer história, assim ocorre, é ousado, querer fazer história, entrar para a história, fazer parte de um quase cenário mais amplo de ineditismo. Às vezes acontece, de fato pode acontecer, de tempos em tempos alguém inova e ousa, aparece do nada, de fato pode chegar a entrar para a história sem nem mesmo perceber.
O
reconhecimento
ocorrerá
algum
tempo
depois,
posteriormente em reflexões avaliarão que tal sujeito em tal situação peculiar de fato fez história e se destacou, fez algo novo e diferenciado, inovou, e mereceu o martírio da carne, mereceu e justificou entregar-se em oferenda e holocausto, doar-se, sofrer a abrasão da dor física como se faz necessário, o purgar da carne e da alma, uma depuração... - A proposta de candidatura política é realmente inovadora, é para poucos, e é disto o que precisamos, alguém que rompa o mesmismo, que quebre imbecis paradigmas, assim virá a nova era, assim os verdadeiros ensinamentos pagãos se difundirão à humanidade. Há realmente uma possibilidade, um ânimo inovador e esperançoso na atmosfera circundante... - Diz querer fazer história ao propor uma candidatura que acarretará em mandato democrático ineditamente transparente, com as contas abertas, as planilhas abertas, exibindo todas as despesas dos assessores e dos funcionários concursados, tudo demonstrado às
claras, todas as despesas e receitas, todos os honorários, à vista de todos em páginas eletrônicas de livre acesso, o próprio salário de deputado às vistas. Além disto diz que jamais se comprometerá em causa contrária, diz se comprometer a seguir fielmente a própria consciência e as próprias convicções, aí reside um absurdo, nenhum político de carreira sobrevive por tempo considerável no ramo se não faltar com a verdade de vez em quando, se não fizer concessões escusas, se não disser sim quando quer dizer não. Aí reside algum perigo de que, se eleito, o sujeito não termine o mandato completo. Não conheço político de carreira que sobreviva no ramo ao comprometer-se a jamais mentir... - Vamos dar um crédito, um desconto, afinal o rapaz é jovem, animado, tem a energia necessária, a energia que tínhamos mais ou menos na idade dele, os jovens adultos que se sentem capazes de carregar o mundo nos ombros, isto é bom, isto é o promissor da situação, esta mesma energia vital, disto nosso mestre tanto gosta, isto tanto aprecia, este sangue morno que circula ligeiro nas veias dos adultos jovens, os que serão de fato os mais capazes de mudar sequer algo no curso da história, dentre um conjunto agregado de pessoas, mudar algo significativo no mundo, um mundo irracional de mesmices e de monotonia... - O contexto global atual é favorável, este início de século tem mostrado matizes bem interessantes, o renascer do fascismo explícito, a pauta e a questão migratória forte, a xenofobia explícita e desavergonhada, o ódio entre povos, entre classes, o gérmen necessário, o ódio e a violência, a receita perfeita, aquilo que nosso mestre tanto aprecia e estima. O caos destruidor e reconstrutor por vezes a se fazer necessário e imperioso, caos e violência, um ciclo,
o ressurgimento de um ciclo perpétuo de batalhas, as infindáveis batalhas de uma guerra sangrenta provavelmente perpétua, a guerra que talvez nunca ganhemos, mas que também não será jamais vencida pelo arrogante autoproclamado criador de todo o universo conhecido... É pelo contexto global que me animo, que tenho esperanças, que realmente acho que há chances neste sujeito ousado. Ele poderá ser involuntariamente nosso emissário, o dispersor de nossa profanada filosofia superior, mesmo enquanto involuntário, não perceberá, jamais perceberá, mas mesmo assim fará o serviço valoroso necessário, cumprirá a missão, espalhará a palavra de Satã aos quatro cantos, a começar por nosso país subdesenvolvido primitivo de ignorantes. Sim, ele espalhará, inocente, ingênuo até mesmo, será mais um de tantos, de tantos outros prévios que serviram às nossas finalidades sem sequer saberem, sem se darem em conta, cumpriram a sua missão inocentes, meio ingênuos, mas foram úteis, nossa ferramenta valiosa, a que temos em mãos, a ferramenta humana de seres imperfeitos e gananciosos que todos somos, feitos de carne e ossos que apodrecem aos poucos, sujeitos aos prazeres e aos sofrimentos da carne, sujeitos também às depurações necessárias da alma, aos flagelos do espírito, ao purgar das antecâmaras do inferno. O próprio purgatório por si assim configurado... - Observe estes livros todos nas prateleiras de sua bela biblioteca particular, veja estas belas madeiras escuras polidas e talhadas, brilhantes, que tão magníficas honram o conteúdo destes volumes escritos todos de capa dura... Não podemos nos iludir, nos entorpecer, habitamos um ambiente doméstico protegido, construímos isto, este ambiente, esta proteção, há uma certa
artificialidade no ar, neste nosso ambiente doméstico protegido, esta bruma aromática que toma o ambiente, o fumo embaçado de seu cachimbo importado, tudo isto é belo e confortável, nos puxa à reflexão e ao estudo, mas ambos bem sabemos, o embate lá fora, nas ruas, é bem mais cruento e acalorado. Estes momentos de relativo ócio físico e de intenso trabalho intelectual nos são ricos, se considerarmos que isto é uma justa recompensa ao suor e sangue derramados em campo... Somente ao campo, no calor das batalhas, é que se fará a consumação do intento maior, a proposta magistral, o domínio e fortalecimento das energias que finalmente equilibrarão o contexto atual desta tola onda fundamentalista cordial religiosa... Não nos iludamos, este planejamento, esta aposta, a análise deste cenário, este sujeito promissor, mais um de tantos jovens promissores, o sujeito ordinário que irá funcionar tão somente qual um peão a mais no imenso tabuleiro a ser jogado, este peão, ordinário, insignificante, que no entanto caberá investir, justificará o investimento, explicará o tempo e a energia despendidos... - É verdade que habitamos um ambiente protegido, relativamente refratário ao embate mais cruento, às vezes isolado do debate cotidiano mais acalorado e da rotina das ruas, e é lá que eclodirá o que mais se aproxima de uma verdadeira revolução, no sentido de uma mudança brusca de acontecimentos, lá, nas ruas, tão somente lá, nas massas de povo suarento e semianalfabeto, os contingentes mais propícios a aceitar a energia que não conseguem explicar, a energia irrefreável oculta vinda do paganismo e dos cultos anímicos de matriz africana... O trabalho deverá ser contínuo, sem esmorecimentos, a cada dia a nossa fé maior deve ser fortalecida, se assim conseguirmos vislumbrar, um panorama futuro, em breve
futuro, não algo distante e inalcançável, mas sim algo que venha a nos animar nos dias de hoje, esta contemporaneidade, sim, poderemos sentir nas veias mornas e nos poros da pele, esta sensação promissora, esta energia, a força, o imenso poderio de nossa fé que se fortalece mediante estes casos esporádicos todos que nos aparecem, estes estudos de caso interessantes que nos são exibidos de tempos em tempos, casos para que analisemos, avaliemos, estudemos em profundidade e atestemos se porventura poderão ser exequíveis, se poderão vingar nalgum dia vindouro destes... Creio que sim, sinto isto, sinto uma indicação promissora, uma esperança, finalmente a possibilidade de ocuparmos com um representante apto algum cargo político-partidário de monta, ocuparmos com alguém que aporte sangue novo, não com aqueles senadores
caquéticos
e
esclerosados
que
praticamente
abandonaram nossas convicções após anos e anos de mandato eletivo, que hoje somente pensam em suas regalias e bem-viver. Perdi a confiança nestes, se corromperam todos, colocaram o bemestar particular acima de nossa causa pagã nobre e superior. Sabe muito bem qual a minha opinião sobre estes indivíduos, traidores. Ao exercer minhas inquestionáveis funções de Grão-mestre em exercício tenho jurisdição sobre suas vidas, bem posso decretar a pena capital, mas tenho sido misericordioso, minha presidência ao conciliábulo tem sido misericordiosa. Por vezes me pego refletindo se não devo ser menos leniente e mais implacável, se não devo iniciar uma necessária era de rigor e disciplina, talvez disto necessitemos, de mais rigor, de mais ênfase, de menos escrúpulos até mesmo...
- Caso de fato eleito deverá galgar os espaços disponíveis aos poucos, não se trata de processo brusco, será uma excelente oportunidade para, também nós, exercermos a paciência e a prudência. Não podemos deixar claros nossos intentos de início, como sempre tudo deverá ser operado na obscuridade, da forma como tanto apreciamos, o oculto e a dúvida, sempre esta sombra inicial, esta bruma, o embaçamento deste belo fumo de seu cachimbo ao interior desta bela biblioteca, tal qual... Caso de fato eleito, o sujeito deverá primeiramente articular-se para manter-se no cargo a contento, de início, o que nem sempre é tarefa fácil, haverá ele também de se entregar a conchavos e acordos escusos, provavelmente, mesmo ao que consta defendendo uma plataforma de atuação diferenciada, um mandato mais honesto, fora dos padrões do conhecido jogo partidário tradicional, ao menos segundo o que ele diz, ao menos segundo o que ele apregoa... Pessoalmente não acredito em choques de gestão, em mudanças bruscas de mentalidade coletiva. Bem sei que sou um voto perdido, mas não acho a estratégia de uma revolução brusca uma boa medida. Sim, gostaria e todos nós gostaríamos de um colapso brusco e fulminante de todas as religiões monoteístas, a queda suprema da escuridão sobre todos os conceitos hipócritas e piegas, bem gostaríamos, mas pessoalmente não creio que tal cenário idealístico seja possível atualmente, não em curto prazo. O choque de gestão, alguém que chegue e bote ordem em tudo, bote os pingos nos is, alguém que revolucione do dia para a noite, corrija enfim todos os desmandos históricos, as hipocrisias vãs, alguém que desfaça todos os tolos dogmas, rompa pétreos paradigmas... Há tempos não mais espero a chegada brusca e corretora do anticristo, não mais,
imaginar um cenário ideal e espetacular, digno de nota, a ser marcado forte dentre a cronologia efêmera do homem sobre a Terra, não mais... Uma situação realística bem mais terrena. O contato inicial com o jovem político a assumir cargo eletivo deverá ser cauteloso, muito cuidadoso, gradual. Tomemos como exemplo o caso anterior que vivenciamos, naquela ocasião quase cometemos um erro crasso comprometedor, o erro de querer adiantar as coisas, por ansiedade e expectativa nossa, sim, unicamente nossa falha. Desta vez precisaremos de mais cautela. O sujeito nem mesmo está eleito e nós já adiantando os cenários futuros, mas isto é bom, já irmos
planejando
tudo,
prevermos
os
cenários
possíveis,
planejarmos a forma de contundente ação, os métodos, lembrarmos as lições aprendidas, as vivências, os erros e os acertos. Uma vez realmente eleito deveremos aguardar algum tempo, não nos mostrarmos a ele de pronto, deixarmos abaixar um pouco a euforia de posse e talvez até mesmo o primeiro ano de mandato, digo isto, até mesmo, até mesmo esperarmos um ano inteiro, o primeiro ano de mandato passar, o período em que o novo ocupante do cargo chegará cheio de energias e ideias, cheio de intenções as quais logo em primeiro ano perceberá muito complicadas e irrealizáveis... Então haverá um esperado arrefecimento, o previsível lidar com a realidade, com o status quo, assim ocorrerá provavelmente, e será aí então quando deveremos agir, aos poucos, uma introdução gradual, mas ele perceberá, mesmo inicialmente escondendo nossas reais intenções ele provavelmente perceberá aquilo que portamos, nós, os portadores da luz, a luz do esclarecimento e da sensatez, o racional, sobre a escuridão, o inverso da escuridão, para ludibriar os tolos, a mando de Lúcifer, sábio e coerente, o
supremo e único portador da luz, o domínio sobre a sombra da hipocrisia e da dúvida, o inexplicável de questionamentos existenciais intermináveis, os dogmas e mistérios de um deus criador único, onisciente e onipresente, que se anula, se contradiz, também ele contraditório em si próprio, falsário e charlatanista, o grande disseminador de mentiras históricas e de intrigas menores interesseiras... A luz, a nossa luz, representativa da elucidação e da abertura de portais e de caminhos para a mente infinita e para o poder de nosso espírito. O contraditório, sempre o conflito eterno. Que todos os tolos tenham dúvidas se assim preferirem, a incompreensão, o anticristo, tal qual o princípio da escuridão camuflado em véu de portador da luz... - Aperfeiçoamos com as lições aprendidas, creio que sim, não nos esqueceremos, o necessário evoluir, a evolução depuradora, o aperfeiçoar de métodos, refiná-los, que assim seja, precisamos ouvir mais gente, nosso pessoal, nosso caro conciliábulo satânico, também o decano da assembleia, todos eles, toda nossa congregação de blasfemadores. Aqui nesta mansão nos reuniremos em breve, em sabá noturno, mais um deles, dentre tantos outros, nosso satisfatório histórico de agradáveis madrugadas de intelecto e elucidação, nossa história produtiva, a célula profana local reconhecida mundialmente, de tantos ganhos, poucos erros, de evolução, o que faz notarmos estar no caminho certo, o caminho justo, da lucidez sobre a hipocrisia, da força imperativa sobre a fraqueza. O domínio voluntário mental e o sobrepujar de fraquezas e fragilidades muito humanas, o domínio da mente sobre a cordialidade, sobre a subserviência, sobre as massas populacionais ignorantes apáticas e cabisbaixas, os submissos, todos eles, sem
qualquer vontade própria, sem iniciativa, sujeitos todos e submissos aos princípios, às liturgias e aos dogmas de um deus injusto, ciumento e vingativo, presunçoso arquiteto do universo, egoísta por natureza e determinação sagrada previamente escriturada... É fato que nossa estratégia de aproximação deverá ser gradual, cautelosa, não nos apresentaremos sem os devidos véus iniciais, pois quase sempre há o choque, a maioria das pessoas fica chocada, surpresa, mesmo aquelas simpáticas à nossa causa. Sempre é prudente mantermos alguns defensivos véus iniciais. Aos poucos perceberão, aos poucos o jovem sujeito candidato a político perceberá, é bom isto, mantermos necessária discrição, mesmo porque ele não conseguirá absorver todos os princípios e nossa filosofia de uma única vez, também ele deverá amadurecer, passar por um processo de maturação, irá ele perceber que somos a melhor alternativa dentre as apresentadas no jogo de tabuleiro, irá perceber que somente por intermédio de nossa influência ele conseguirá se manter em cargo eletivo por período considerável, em mandatos sucessivos, para então, de fato e de direito, implementar e disseminar a palavra de Satã mesmo que seja involuntariamente, mesmo sem se dar conta. Irá combater a proliferação das igrejas monoteístas, do deus único arquiteto criador dos céus e da terra, autoproclamado engenheiro imperfeito que jamais admitiu a falha de sua obra pérfida, dita a sua criação, grotesca, uma construção deficitária a qual jamais admitiu qualquer erro ou falha. A imagem e a semelhança próprias, criaturas semelhantes a ele próprio, o deus criacionista, uma pretensiosa extrema arrogância e empáfia, o condenar toda a humanidade a olhar-se ao espelho e imaginar-se um fiel representante e um depositário de algum ser etéreo criador
primordial e originário do cosmos infinito em sua integralidade, ao simples estalar de dedos, por magia e por simples tola intenção, a chama da intenção divina... - Os fundos de ações têm se desvalorizado levemente na bolsa de valores, a cotação diária. As ações empresariais majoritárias, de maior risco e mais agressivas, têm demonstrado a flutuação nervosa de sempre. O tentáculo econômico é um dos que não arrefece, é um capital garantidor e rentável, devemos reconhecer, possuir uma sede física e membros integrantes críticos no Brasil tem as vantagens e as desvantagens, como ocorre claramente em outras células do conciliábulo mundo afora, mas ao menos quanto a questão econômica devemos ser bem gratos. Este terreno fértil e irrigado para as elites econômicas, os detentores majoritários de capital financeiro, as instituições privadas monetárias, que sabendo especular e investir no mercado pouco esforço despendem, pouco trabalho e labuta de fato empreendem. As elites, uma genética superior, ainda que qualquer ser humano ordinário tacanho e rude possa investir na bolsa de valores caso tenha capital suficiente. Nosso país é terra fértil para o fortalecimento de clãs e de castas, terreno fértil para a revitalização das leis amaldiçoadas e malditas da eugenia em sua pureza, afinal tantos e tantos privilégios se situam em mãos erradas, nas mãos de gente semianalfabeta e ignorante que não sabe sequer votar nas eleições municipais. Então somam-se duas vantagens inegáveis deste pedaço de terra tupiniquim atrasado e terceiro-mundista, esta terra de vapor úmido e bafo selvagem. Nada melhor do que sermos refratários de fato, do que exercermos a valiosa intelectualidade produtiva entre quatro paredes,
esta
sua
biblioteca
aconchegante
de
aclimatação
controlada, a adega de vinhos caros e raros logo ao lado, também aclimatada, constante, estabilizada, temperatura e umidade, somente assim se fará o pensamento mais estruturado, aqui e tão somente, dentre quatro paredes confortáveis. Dentre as nossas estimadas assembleias de membros integrantes será onde refletiremos e traçaremos as estratégias a serem adotadas em breve futuro. Chega a ser patético às vezes, quando paramos para avaliar, esta terra tupiniquim atrasada e selvagem e ao mesmo tempo tão boas características e condições para nossos intentos velados: o histórico de ancestralidade anímica africana; os juros escorchantes e as garantias elitistas do sistema financeiro a aprofundar o imenso fosso social entre classes econômicas; o analfabetismo político da imensa massa populacional, que é capaz de eleger de fato qualquer imbecil que lhe seja apresentado embalado e bem-acabado, de forma plastificada, vistosa e profissional, apenas seguindo o apelo e a demanda, as carências mais primitivas das massas iletradas... - O tentáculo econômico nos é favorável, de fato, não vejo grandes preocupações quanto aos balanços de nosso orçamento geral em curto nem em médio prazo, fato. A possibilidade de inserção em cargo político-partidário se mostra ainda mais promissora, o importante tentáculo político, aí de fato precisamos alimentar com maior foco, fortalecer este membro musculoso e abarcador, os imensos poderes de tentáculos invisíveis a serem nutridos e fomentados... Há tempos venho insistindo neste aspecto, ainda vacilamos muito, perdemos tempo, estamos a perder o bonde da história, estamos muito atrás de outras células em outros países, muito aquém do que poderíamos alcançar. O potencial é imenso,
basta vermos a influência e o poder que as famílias tradicionais de políticos de carreira exercem localmente, em paralelo com o sábio e prudente domínio que também exercem sobre os meios de comunicação variados: jornais, revistas, rádios e principalmente retransmissoras de televisão aberta cem por cento comprometidas com uma pauta política de um governante influente local específico, a força midiática cem por cento submissa, comandada, um veículo de comunicação tendencioso e enviesado ao extremo... Então outro dos tentáculos, o tentáculo midiático, este de boa representação atual, o nosso caro diretor de programação mandachuva autoritário e arrogante, difícil de tratar, um egocentrismo indisfarçável, mas que bem serve aos nossos propósitos, que tão bem nos traz préstimos e realizações, profissional de enorme influência e reconhecimento em sua área de atuação. Que seja, não simpatizo com ele, nunca simpatizei, mas que seja, ele ao menos mantém em bom estado e vigor o nosso tentáculo midiático, ao menos por enquanto, ao menos tem mantido, mesmo sendo um sujeito descartável. O dia em que não mais cumprir nossos intentos e não mais nos for útil será eliminado, sumariamente... A vertente político-partidária é a que mais merece esforço e energia focal, sempre defendi isto, não basta a questão política costumeira de nossa assembleia constituída, nossa esfera de influências, aqueles escolhidos e aptos, afins, aos quais conseguimos alcançar. Tanta gente e tantas empresas as quais conseguimos abraçar e dominar, mas isto não basta, é preciso uma infiltração profunda e segura dentre o universo políticopartidário constituído nas grandes cidades, como ocorre em países do Leste Europeu, ou tal qual ocorre nos Estados Unidos, também lá terrenos férteis e adubados, possíveis de frutificação,
congressistas nas câmaras de representantes eleitos que sequer escondem ou se inibem por seu explícito elitismo e nacionalismo, por suas defesas às teorias eugênicas superiores.. Que o mestre supremo do inframundo os gratifique com negras e mornas bênçãos de força implacável e de poder duradouro... - Há o vislumbre de um cenário de esperança, por que não? Por que também nós não poderíamos ter um reconhecimento mundial em futuro próximo? O avanço do nacionalismo e do fundamentalismo religioso, as faces opostas de uma mesma moeda de vil metal e de ganância, o extremismo dogmático pentecostal e o católico, ambos pudicos, a nos favorecer de forma involuntária e emburrecida, acéfala, intelectualmente inferior e patética, risível até mesmo, tola e infantojuvenil... Em todo este contexto há de frutificar a veia primordial do satanismo, enfim o aclarar de uma nova era, era cronológica de mais racionalidade e de pujança, de força implacável, de predomínio justo dos mais fortes e adaptados, dos que não observam de forma cordial e submissa as amarras e os regulamentos castradores do prazer carnal. Nós, que não nos martirizamos pela busca irrefreável ao prazer, que o admitimos. Nós, que não nos flagelamos em decorrência de pecados eventualmente cometidos, o próprio conceito de pecado em si, imbecilidade humana deísta. Não! Negaremos tudo, a negação absoluta, o oposto, a cruz cristã invertida, todo o oposto e o oculto, a noite a sobressair sobre o dia, o submundo imperando, a era cronológica finalmente de soerguimento dos ensinamentos sábios e superiores de nosso mestre supremo Satã... Há o vislumbre de um cenário de esperança, caso de fato consigamos em tempo hábil fortalecer este imaginário tentáculo político-partidário. Que apodreçam! Abaixo os
senadores que nos traíram todos, cortemos as suas cabeças cheias de corrupção e de mentiras, de falsidades, bon vivants nababescos e monótonos que são, acumuladores de gordura corporal e de ócio, odeio-os todos, sem exceção, que suas cabeças cheias de detritos e afetações sejam cortadas. Decepemos, não mais nos servem a nada, somente a eles próprios, na primeira oportunidade disponível nos traem e adotam as suas causas íntimas particulares de interesse imediato, a manutenção no cargo e no poder político. Traidores, não têm qualquer honra ou hombridade, só pensam em si, em suas regalias e privilégios, e em manterem-se eternamente como bon vivants frequentadores falsários de rodas de conversa hipócrita e de uma sociedade cafona equivocada que é incapaz de apresentar propostas concretas para o combate às teorias deístas arcaicas e rebuscadas da atualidade. O combate às religiões monoteístas que a cada dia tornam-se mais volumosas e incômodas... Por outro lado apresenta-se agora o jovem pretenso a político de carreira com uma plataforma de atuação dita inovadora e não tradicional, apresenta a todos os eleitores um cenário promissor, ao qual valerá o investimento direcionado, um cenário ao qual valerá o tempo e a energia focalizados... Um empreendimento. Será um risco bem menor do que o risco representado pela flutuação das ações empresariais de alta volatilidade e aquelas existentes na bolsa de mercadorias e futuros, os investimentos de capital mais agressivo, justamente os que tantos dividendos nos rendem neste país selvagem e terceiro-mundista que tanto preza os juros escorchantes e a inaptidão eletiva de seus adequados e merecidos governantes...
- Trata-se de uma retomada de posições, recuperar um tempo irresponsavelmente perdido por nós, entendo este ponto, trata-se de uma crítica perspicaz, o necessário e imediato fortalecimento da ramificação político-partidária, uma recuperação, tanto quanto, ao mesmo nível da robustez já alcançada em nossa ramificação econômica... Por muito tempo tendemos a isto, a supor que dominando e abarcando o poder do capital econômico-financeiro poderíamos sobressair influências em outras áreas sem maiores percalços e imprevistos. Muitos de nós supõem que o viés econômico a tudo dominará, sempre, que basta que estejamos fortalecidos e influentes dentre os representantes privados do sistema financeiro capitalista e tudo se resolverá, e tudo poderemos encaminhar e resolver. Para mim isto sempre foi um ledo engano, um erro crasso até mesmo, sempre alertei em assembleias regulares quanto a isto, quanto a este equívoco em que insistimos em trilhar. Sempre retrucam nossos colegas com exemplos vastos, os exemplos que vêm do Sudeste Asiático, da América do Norte, da Europa católica principalmente, sempre os mesmos exemplos, aos quais vários de nossos pares se apoiam constantemente. Mas o mundo muda, a vida muda, constante, tudo se molda ao longo do tempo, tais quais as flutuações de ações empresariais na bolsa de valores, extremamente voláteis e moldáveis, e talvez haja uma miopia de percepção, uma desvio de entendimento. É fato que em um sistema político capitalista exacerbado, em economia de livremercado, ressalvados os vieses de ultraliberalismo econômico, é fato que nota-se o domínio financeiro capaz de muita coisa, por vezes capaz de se sobrepor ao domínio e ao poderio político tradicional. Desnecessário citar nossos indignos senadores no
Congresso Nacional, os traidores nefastos, que consumiram algo de nossos aportes de dinheiro em espécie, produto cada vez mais complicado de se conseguir, que cada vez mais levanta suspeitas e inquéritos policiais em consequência. Boa parte dos malotes em cédulas frescas de cem reais saídas do Banco Central foi para aqueles traidores repugnantes, odeio-os todos! Pagarão com a vida tão logo haja a oportunidade... Estamos perdendo tempo, o bonde da história, como dizem, e tempo é dinheiro. Ainda bem que creio sinceramente que há uma recuperação possível, que poderemos recuperar o tempo perdido, retomar o bonde da história, mas isto somente tem se mostrado possível pois, no contexto do Brasil atual, de fato o poder econômico até então tem sido quase tão, ou mais, influente do que o poderio político-partidário. Mas isto pode mudar. Pode mudar e precisamos estar atentos e preparados, precavidos, já
inseridos
com
certa
profundidade
na
ramificação
dos
representantes democraticamente eleitos junto ao sistema eleitoral vigente, em todas as esferas, em todas as escalas, desde a esfera municipal, a estadual, e principalmente a esfera mais abrangente federal. Tanto no campo do poder legislativo, judiciário e, principalmente, junto ao poder executivo estadual e federal... - Tendo ao rumo e sentido de sua opinião. Um pouco mais trabalhoso será convencer outros membros do conciliábulo, nosso ilustre decano principalmente, sabidamente um tanto quanto anacrônico, para dizer o mínimo. Ao cotidiano vemos, para quem quiser enxergar ao menos, realmente é bem possível ver o quão influente dentre a sociedade é o ramo político. Não se sabe até quando em nosso país o dinheiro possa sobressair ao caráter e integridade das pessoas, da sociedade. É uma aposta de risco a ser
feita, tais quais tantas outras apostas de risco que sempre fazemos e sempre fizemos em conjunto. Os exemplos e possíveis aprendizagens são vastos e fartos, espalhados por todas as áreas e todos os setores da vida em sociedade organizada, espalhados por cada uma das condições geopolíticas do território nacional. Sempre vemos, sempre é possível enxergar para quem tenha os olhos treinados. Ontem mesmo, vimos nos noticiários, o diretor de uma agência de fiscalização do setor médico federal foi substituído. O chefe do Executivo Federal, o presidente da República, tem esta prerrogativa, a ele cabe isto, então do dia para a noite substituiu o tal do diretor nacional, em tese mudou praticamente tudo. Neste ramo de saúde federal mudar a chefia, a cabeça pensante, influi diretamente e rapidamente em todos os serviços públicos envolvidos, pois é a partir da direção-geral que são direcionadas as políticas públicas de atuação do Ministério da Saúde, a vastidão por vezes caótica do sistema universalizado de saúde pública no Brasil... Pois bem, o diretor-geral foi substituído, exonerado sumariamente, da noite para o dia, afinal trata-se de uma prerrogativa
presidencial.
Foi
exonerado
provavelmente
por
discordar do mandatário do Executivo, simples assim, não concorda vai à guilhotina, impiedosamente... Imagine-se o tanto de influência que isto traz aos rumos das políticas públicas de saúde e, diretamente, ao andamento e controle social, à sociedade com um todo, imediatamente traz sérias e marcantes consequências. O que havia na pauta do setor? Hoje um dos debates é a questão da cannabis medicinal e terapêutica. Há setores progressistas apoiando, setores conservadores contrários, e para nós trata-se de uma pauta de extrema importância e interesse. Seria bastante
favorável a nós se o cultivo e o consumo fossem disseminados nacionalmente. Seria uma possibilidade de fortalecimento de nossa fé e possivelmente geraria uma perspectiva de novos e valiosos fieis adeptos, o caráter psicotrópico salientado, uma ancestral e milenar ferramenta, utilitária e benfazeja, há milênios acessando subliminarmente alguns dos portais de percepção e de sensibilidade avançada dos povos viventes. Magistral erva selvagem medicinal e ritualística tradicional cultuada e cultivada pelas maravilhosas feiticeiras ousadas e corajosas da Idade Média, cultivadas muitas vezes em segredo, ervas vindas de confins distantes, feiticeiras sábias e experimentadas, valentes, mestras respeitáveis dentre as ciências antigas ocultas e solidificadas, as sabedorias empíricas e malditas as quais a mera vã ciência burocrática contemporânea tantas dificuldades tem em absorver e aceitar... - De fato trará consequências imediatas, em pouco tempo veremos, e infelizmente será um revés, um passo atrás. Claramente o chefe do Executivo, ao colocar como diretor-geral um sujeito evangélico conservador, irá querer barrar o avanço das pesquisas e da experimentação clínica relacionada à cannabis terapêutica e medicinal. Que nem se fale sequer na possibilidade de uso recreativo... Será um provável retrocesso, já podemos esperar isto, foi colocada claramente a posição prévia de direção contrária à permissividade,
alguns
representantes
religiosos
mais
conservadores citaram até mesmo que trata-se de uma erva oriunda do continente africano amaldiçoado por vodus, crendices pagãs e magias negras. Teremos o que lamentar, os cultos ancestrais anímicos nos são bastante favoráveis, desejável é a sua aceitação e disseminação dentre a população, bem sabemos, assim sempre
ocorreu, desde sempre, as sabedorias e os conhecimentos que possam ser aproveitados, que possam ser úteis. Sempre há o que tirar de produtivo de todo o cabedal de experimentação tradicional, o montante de conhecimento que se faça ao longo dos milênios, com o histórico e arraigamento popular, com sua aceitação... Então se vê claramente a influência política, é bem visível aos que tenham olhos não míopes, claro está, o contexto todo, é óbvio que se impõe um caráter religioso conservador cristão em uma direção de órgão público de crucial alcance federal, e este padrão tende a se repetir caso o Executivo não retroceda em sua pauta fundamentalista religiosa, e a tendência é que realmente não retroceda jamais, pois foi tal pauta, esta mesma, paralela à influência da bancada evangélica no Congresso, foi esta pauta que sustentou e alavancou a eleição do atual mandatário federal, algo tal qual uma promessa inabalável e fiel de campanha política nas eleições partidárias... - O barrar de avanços quanto a permissibilidade do uso de cannabis sim é uma decorrência de pauta política. O tanto de influência que é gerada com uma única substituição de cargo em comando, assim sempre ocorreu, tal qual quando, anos atrás, mudou-se o comando da Polícia Militar, um novo comandante que chegou forte defendendo a pauta tradicional do “bandido bom é bandido morto”... Bem sabemos, enxergamos e presenciamos, experimentamos no cotidiano o que foi comprovado em estatísticas oficiais e mesmo nas extraoficiais. Bem sabemos, mudou-se da água para o vinho, seja lá qual for, vinho para uns, água para outros. Para nós foi vantajoso naquela época, mais mortes, mais sangue derramado, as periferias pobres das grandes cidades em conflito permanente, o ambiente ideal, o caos, pandemônio, terreno adubado para os sobrevoos
ligeiros e intrigados de íncubos e súcubos, os seres etéreos que a tudo
observam,
que
tudo
avaliam,
os
mais
difundidos
e
entremeados dentre o cotidiano carnal e a vã rotina apegada à vil materialidade humana... Sim, o poderio político é imenso, certeiro e ditador de rumos e de perspectivas. Vejamos o Ministro da Economia, que agora quer deixar de taxar e de cobrar alguns impostos das igrejas evangélicas, mais especificamente destas, ignorando as igrejas católica e protestante. Imagine-se o burburinho que isto vai causar. Em nosso país ainda tão influente de tradições católico-apostólico-romanas, a América Latina dos amantes de papas em breves visitas, burocratas endeusados e cheios do ouro do Vaticano, que agora têm um representante jesuíta, quase um franciscano, avesso às regalias, avesso ao brilho das riquezas acumuladas e saqueadas por séculos pelo Vaticano imponente. Que tempos os quais vivemos hoje em dia!... - Assim é, devemos levar estas discussões todas às próximas assembleias, aos conciliábulos, apresentar argumentos e tentar convencer
os
outros
agregados,
convencer
o
decano
principalmente, os sábios todos que integram os sabás malditos tão nobres e caros a nossa causa e nossa crença profana... Tantas e variadas implicações. O tentáculo político é bem mais pujante do que muitos imaginam. Em um sistema de poderes presidencialista, ao menos enquanto não se avance no debate acerca do parlamentarismo, o mandatário do Executivo tem elevadas prerrogativas, pode muito. Há pouco houve a discussão a respeito do alcance e da ingerência presidencial dentre as reitorias das universidades públicas, o poder de determinar e de escolher os reitores que as administram, um poderio presidencial que em tese
viria a sobrepujar e a subjugar alguma eventual vontade de pesquisadores científicos e de educadores de carreira. Uma enormidade de consequências e implicações, a influência direta, de acordo com o caráter pessoal e convicção filosófica de um reitor específico, sobre todo o rumo e direcionamento de uma universidade tradicional que seja quase centenária em histórico, e com milhares de alunos, integrada por pesquisadores e educadores dela dependentes diretamente e cotidianamente... - Há sempre a possibilidade de influências mais extremadas, de mudanças vindouras dentro de uma estrutura político-administrativa, mudanças ainda mais abrangentes. Os Estados enquanto Nações têm esta autonomia. Por mais bizarro que possam parecer tais países governados por uma imaginária junta de iluminados que detém o poder, quer sejam estes apoiados ou não pela maioria da população habitante de tal infeliz Estado hipotético. Uma vez reconhecido pela ONU, reconhecido está, o Estado passa assim a fazer parte da liga de nações... Chamam de seres bizarros alguns de nós que se aprazem com os subterrâneos escuros para gratas reuniões sabáticas, os que se aprazem com o esoterismo. Nós que voluntariamente nos deleitamos em não seguir fixos padrões e paradigmas, que ousamos quebrar a lógica de uma ortodoxia constituída. Nós que frequentemente somos vistos como seres desajustados,
mas
que,
ao
mesmo
tempo,
tanto
somos
demandados pela mesma sociedade hipócrita que nos solicita os préstimos e as consultorias valiosas, e que reconhece a nossa importância enquanto sociedade civil organizada... Hipócritas! A grande maioria deles todos...
- Impressionou-me a palestra do mês passado. A princípio pareceume ficção científica, mas afinal, faz muito sentido considerarmos que todas as inovações de qualquer época da humanidade pareceram inicialmente peças de pura ficção e fantasia... - A mim trata-se de ficção científica, nada menos, se for algo que ocorra em cem anos, a longo prazo, pouco nos interessa no momento. Será de mais valia botarmos energia e recursos em sobreviver com pujança durante estes cem anos até que algo muito futurista e distante no tempo e no espaço possa vir a ser implementado... - Mas é prudente nos precavermos, não? Sempre foi isto, esta atitude atenta, o que assegurou a nossa permanência ao longo das eras e das diferentes gerações. Os primórdios remontam a um tempo quando praticamente nada da atual tecnologia estava disponível e acessível. Cabe-nos a sagacidade, a ampla visão. As sociedades ocultas muitas vezes apresentam falhas explícitas e imperdoáveis que as condenam ao eterno sepultamento, muitas foram extintas sumariamente, se devoraram internamente, entre si próprias, um erro histórico. Cabe a desculpa alegável em suas distantes épocas cronológicas mais remotas, mas não hoje em dia, na contemporaneidade, não hoje em um mundo tão globalizado e de comunicação integral tão instantânea. Ligações transoceânicas imediatas, som e imagem de qualidade e alta definição, uma tecnologia que se mostra quase isenta de suspeitas, aparentemente. É prudente desconfiar, não há como sabermos com total confiança, esta mesma tecnologia que tanto nos surpreende e tanta margem exibe à manipulação e ao direcionamento por mentes bem mais capacitadas e inventivas...
- Pareceu ficção científica. Não que não seja assunto para tão já tratarmos em debates, mas me parece longe de ser algo de preocupação mais imediata, porém, como dizem, o que assegurou a permanência e solidez de nossa sociedade oculta ao longo dos séculos e ao longo das gerações foi justamente a precaução e a visão sagaz a longo prazo, isto nos é sempre recomendável, desejável, favorável... Não estamos em um estágio inepto, retrógrado, longe disto, faz-se prudente a constante atualização, atentar ao dinamismo cada vez mais necessário da atualidade. Creio que em geral temos consciência disto, todos nós dentre o conciliábulo, também as outras células internacionais, salvo algumas poucas exceções, gente muito tradicionalista e avessa à modernidade, alguns poucos, em geral dentre as células do Norte da África, mas em geral temos a necessária consciência, quero crer nisto... Este debate acerca de inteligência artificial, algoritmos gerenciando a sociedade, influenciando a tudo e a todos, cedo ou tarde será um debate concreto que tomará algum de nosso tempo e de nossa energia... A palestra que presenciamos mês passado de fato me pareceu ficção científica, talvez eu exagere um pouco, bem sei que outros parceiros deram muito mais atenção e se mostraram visivelmente preocupados, acharam a hipótese bem mais pertinente. Ocorre assim, as diversidades entre gerações e culturas dentre nosso pessoal, que assim seja, certas coisas não cabem a mim neste exato momento, o decano que analise a coesão do grupo quando for necessária a sua importante e respeitada atuação, tratase de sua competência, sua prerrogativa, tanto quanto as prerrogativas superiores de nossos Grão-mestres. Cabe-nos levar a preocupação às próximas assembleias... Fico imaginando. Se tudo
de fato vir a se concretizar, o tanto que será diferente a sociedade em que viveremos em breve futuro, o tanto que, talvez, seja mais temerário empreender reuniões secretas e encontros clandestinos ocultos. Tudo tenderá a ser mais vigiado e monitorado, não sabemos ao certo, parece um futuro distópico, quase apocalíptico até mesmo, no entanto me parece que as coisas tenderão naturalmente a um equilíbrio... Seria um cenário por demais pessimista imaginar que só haja perseguição e invasão de privacidade, imaginar somente os aspectos mais negativos. Creio realmente que haverá um necessário equilíbrio, vejamos hoje, o quanto a tecnologia avança em ritmo acelerado, e avança por todos os lados, tanto do lado de quem queira usar tal ferramenta para nobres finalidades, quanto para quem queira usá-la para fins escusos e clandestinos. Parece que não há muito controle possível sobre isto, sempre é assim. Uma ferramenta se usa para o bem ou para o mal, o avião recém-inventado que despeja bombas incendiárias sobre cidades inocentes e o mesmo avião que transporta em caixa térmica um coração de um falecido para um transplante salvador de um doente crônico terminal... Algoritmos regendo tudo, a tudo e a todos, influenciando a política administrativa de Estados inteiros, de Nações, a biometria a observar a todos, locais públicos e privados, a adentrar espaços particulares por intermédio de drones não tripulados, cada vez menores e mais ágeis, capazes de invadir silenciosos uma janela aberta qualquer de uma residência distante, capazes de filmar e de registrar praticamente tudo, de transmitir imagens em tempo real, transmitir sons e até mesmo olfatos em tempo real, imediatamente, um reality show pitoresco e futurista, algo assim...
- Esta tese, hipótese, suposição, previsão ou seja lá o que for. Esta tese de biometria e algoritmos não me parece tanto uma ficção científica no sentido pleno e de algo utópico, fantasioso e não realizável... Pareceu-me bem menos fantasioso, impressionou-me de fato a palestra que presenciamos, as colocações que me pareceram bem pertinentes vindas do cientista palestrante, que não é nenhum novato no ramo. Não vi muito alarmismo, vi mais uma resignação, algo a mais que todos teremos de lidar e nos acomodar com o tempo, algo ao qual teremos de aceitar de fato, tal qual o tanto de tecnologia que nos chega e que sempre nos chegou a cada nova geração, a nossos pais e aos pais destes, nossos avós, tanta e tanta coisa que chega brusca e praticamente tudo modifica, em pouco tempo, às vezes até mesmo do dia para a noite. Não faz sentido pensarmos que, com todos os defeitos e inseguranças, não seja mais prático, por exemplo, o uso de telefonia celular. Imagine se nos comunicássemos, o nosso seleto grupo profano, somente por intermédio de telefonia fixa... O tradicionalismo às vezes peca por seus excessos intrínsecos... A inteligência artificial a reger os rumos político-administrativos de uma Nação, imagine-se... Não precisaríamos tanto de nosso ilustre jovem sujeito candidato a político de carreira, não é mesmo? Afinal seriam fartos dados rodados e analisados ligeiramente em milhões de combinações digitais possíveis o que administraria na prática toda e qualquer gestão governamental que se preze... Qual administração no planeta Terra abriria mão de uma economia incomensurável de tempo, de energia e de dinheiro e, principalmente, não estaria desejosa e tentada a terceirizar de tudo, a evitar maiores responsabilidades, evitar processos jurídicos, penais, cumplicidades
e montantes imensos de causas advocatícias, jurisprudências decorrentes da legislação, da fiscalização dos tribunais de constas, tudo o mais... Sobretudo a questão penal, os intermináveis e penosos processos advocatícios de responsabilidade civil e administrativa, a esfera criminal em casos mais extremos. Processos aos quais todo e qualquer governante instituído está sempre sujeito. Trata-se de um cipoal imenso, um imbróglio jurídico quase infindável, a cada novo dia vemos nos noticiários do jornal, gente que é investigada, presa preventivamente, que tem os bens confiscados, familiares também investigados, expostos, muitas vezes justa e outras injustamente. Corruptos e corruptores, a ganância exacerbada, à enésima potência, o poder quase incomensurável do dinheiro, aquilo que dizíamos de o poderio econômico muitas vezes ser capaz de sobrepujar o poderio políticoadministrativo. É fato, assim ocorre comumente. Imagine. Investirmos um bocado de energia e de capital financeiro em um sujeito, um jovem cidadão, que talvez possa involuntariamente nos trazer algum mensurável leve benefício futuro, algo assim, que talvez possa vir a ter alguma influência em alguma política pública em nível local com possíveis implicações em nível regional e nacional. Uma aposta de riso, um risco que já avaliamos valer a pena, já avaliamos como aposta nada impraticável ou desprezível, uma aposta até que baixa mediante tantas outras cartadas de risco que tão usualmente tendemos a empreender... Então cai do céu, ou se ergue dos infernos, uma tecnologia absurdamente complexa e inovadora denominada inteligência artificial, IA assim denominada, revolucionária tecnologia, de ponta, vanguarda, um lampejo de vislumbre futurístico, provável, não apenas utópico ou fantasioso,
talvez portanto menos ficção científica do que realmente pareça à primeira vista... Chega brusca a tal da IA, e rápido faz-se usual em todos os ramos e subdivisões da sociedade, em seus mais variados ramos, a esfera econômica, socioambiental, organizacional, política, burocrática, tudo passa então a ser gerido com o auxílio cada vez mais necessário e significativo de processadores e avaliadores de centenas de milhares de dados e estatísticas, de tudo um pouco, a biometria que pode chegar de fato assustadora, o reconhecimento facial de todos os cidadãos que circulem por locais públicos e mesmo que se situem em seus locais privados, um banco de dados gigantesco, quase infinito, a armazenar informações e características pessoais de cada cidadão, desde sua tipagem sanguínea, o histórico médico, orientação sexual, crença e fé religiosa, vinculação a partido político, ficha criminal, de tudo... O Estado governado por uma inteligência artificial... - A mudança mais ampla, abrangente, estrutural mesmo, de uma política de Estado, deve ser sempre colocada como uma carta à mesa, uma possibilidade e cenário a nunca ser descartado. Um Estado teocrático de acordo e de pleno aceite jurídico, a ser descrito e previsto em constituição federal, ou seja qual for a organização de leis e regulamentos oficiais de uma gestão de país, constitucional ou não. Um país que passa a ser descrito tal qual uma teocracia, governando por dogmas religiosos e fundamentado em escrituras sagradas milenares, tudo um fruto direto de uma mudança gradual e nem tão lenta que se iniciou a partir de um pequeno grupelho de parlamentares altamente interessados em suas causas particulares e benefícios próprios. Uma articulação política de um Congresso bicameral que rege o Estado, câmara dos deputados federais e
senado federal. Uma articulação escusa e de pouco alarde, sem tanta atenção midiática, sem tanta fiscalização e monitoramento de uma oposição partidária enfraquecida e silenciada pela ameaça orçamentária e pela mão firme do viés político de Estado dominante, pela bancada de representantes político-partidários, bancada hegemônica e que não tolera voz dissonante em contraposição. Articula-se a legislação existente em vigor, com habilidade e presteza, um ágil movimento temporal e efêmero em se tratando de cronologia que considere desde a fundação da República, quase um lapso de tempo, pequeno período de alguns anos na história quando um seleto grupo de legisladores iluminados bota em pauta, articula, vota e aprova uma tão imensa alteração em nível federal, aprova uma alteração dentre os princípios magnos que gerenciam uma Nação, a Constituição Federal, lei pétrea, irretocável ou o que o valha... E pronto, abracadabra, do dia para a noite se impõe um Estado teocrático, regido por leis milenares fundamentalistas e sectárias, sagradas escrituras, algo que parece complexo e improvável em teoria, mas que na prática pode ocorrer com bem menos dificuldade do que supomos em vãs fantasias ao conforto de uma biblioteca particular aconchegante em dia chuvoso. Óbvio que todo e qualquer contexto político-administrativo será passível de contestação
posterior,
sempre
haverá
esta
brecha,
esta
possibilidade, é parte do jogo democrático e parte também do jogo autoritário. Imagine-se uma lei magna de Estado que preveja que algumas cláusulas e determinações somente possam ser alteradas mediante todo um rito legislativo e após uma análise complexa de cabimento jurídico jurisprudencial. Imaginemos. O Estado nacional passa a ser teocrático de fato e de direito, e passa a adotar políticas
públicas que se baseiem tão somente em uma religião de fé específica. Passa a condenar e justificadamente a perseguir opositores: ateus, agnósticos e todos os que professem alguma outra fé religiosa, alguma prática ou cerimonial qualquer que não se enquadre naquilo que o Estado reconhece como legal e formal mediante regulamentação oficial aceita e chancelada por terceiros e por sua elite sábia governamental. A sociedade civil organizada, fundamental. Não há golpe de estado possível ou choque de gestão brusco possível se não houver algum mínimo apoio das ruas, do povo em massa, e também da intelligentsia contemporânea atuante em uma determinada época. A posteriori há sempre alguma possibilidade de reversão, muda-se novamente a Constituição, mas há sempre também a sombra da ilegalidade, a contestação razoável que alguns possam fazer à distância... Sobretudo haverá o bom senso. O parlamento nacional-socialista na Alemanha da década de trinta regulamentava em caráter oficial variadas práticas antissemitas. Seria pouco provável ou juridicamente inviável a contestação formal por cidadãos dentre a sociedade germânica ou por uma oposição política praticamente castrada. Somente caberia para eventual transformação o que tecnicamente seria perfeitamente enquadrável como um claro golpe ilegal e subversivo. Exemplos há em profusão, o nosso pseudoditador tupiniquim Getúlio Vargas, também as possibilidades de derrubada do regime militar instalado a partir de sessenta e quatro... Há casos em profusão ao redor do mundo... Fundamental é algum mínimo apoio popular e o suporte da elite pensante dentre a sociedade civil organizada, afinal bem sabemos que o golpe de sessenta e quatro seria mais bem descrito como um golpe cívico-militar, o “Deus,
Pátria e família” que tanto lembramos em imagens e vimos grafado em faixas e cartazes. Deus acima de tudo e de todos, um alerta, para nós em especial um indicativo severo de possibilidade visível de vindoura repressão e recrudescimento... - Deve sempre haver algum apoio popular, mas também não menosprezemos a capacidade de repressão arraigada e histórica que possa se estabelecer e se fixar com raízes sólidas. Governantes que vigiam de perto seus cidadãos e garantem a manutenção
e
permanência
de
um
clã
familiar
político
continuamente no poder por intermédio de coerção, por intermédio de explícita distribuição de benefícios e de dividendos a apoiadores e a espiões infiltrados, explícitos ou nem mesmo tanto, nem tão ocultos. Vários e variados mecanismos de controle e de repressão, o método de encorajar denúncias vindas de vizinhos em quarteirões de bairros populosos, de denunciar os que levantem suspeitas acerca de prováveis práticas subversivas dentre os habitantes dos bairros mais densos demograficamente, a massa da população em constante burburinho de questionamento e de contestação civil. Método tão bem conhecido e tão antigo, por tantos tão usado e abusado, temerário, funcional, de amplo espectro e de grande temor e respeito embutido. Se um morador qualquer de bairro populoso vir a notar movimentação suspeita, subversiva ou clandestina, de cidadãos revoltosos que detenham pensamentos políticos em oposição aos governantes autoritários de então, algum revoltoso, alguém que ouse não calar-se achando-se protegido em ambiente controlado de bairro denso e labiríntico, aí então tal cidadão revoltoso passa a atuar no que ele próprio considere como a sua resistência e o seu boicote particular, passa a se fazer notar pelas
vizinhanças, mesmo discreto e precavido. Ocorre que uma suposta família habitante do bairro denso em população e em labirintos de ruas estreitas sem saneamento básico, esta suposta família não revoltosa, vem a tomar conhecimento da subversão de um pequeno grupo discreto a ser organizar no bairro, a se reunir de forma clandestina e ao máximo precavida, oculta, secreta, tais quais as sociedades secretas esotéricas profanas atuais. Por que não a comparação? Se os circundantes do quarteirão ou do bairro não denunciam às autoridades repressoras ditatoriais o tal do grupo clandestino revolucionário revoltoso, tais circundantes vizinhos, mesmo inocentes e tementes ao seu ditador de plantão, passam imediatamente à classificação de colaboradores, por não denunciarem, por não exercerem o dever de cidadão em Estado repressor, passam a ser cúmplices, de pronto passam a coniventes, coautores até mesmo. Advém daí uma pena por demais severa, uma condenação do governo, execração pública, exposição nefasta e taxação formal de culpa por sedição e terrorismo, um temor, o temor de qualquer cidadão: ser taxado publicamente como terrorista. Imagine-se o cenário, o que ocorre hoje mesmo, agora mesmo em ambientes do Oriente Médio, da Coreia do Norte, em rincões da África ditatorial... O ser humano, de fato, é bem mais perverso do que pintam vãs cores embelezadoras...
9. O tabuleiro de jogo montado à mesa.
Por anos e anos sucessivos morder a própria bochecha, a porção
interna
da
boca,
logo
acima
da
língua.
Repetir
involuntariamente o processo infeliz de forma contínua, em um período nebuloso, umas duas ou três vezes esparsas a cada semestre de vida transcorrida, um período no semestre de semanas tristes e nebulosas, de machucados expostos em carne crua a nunca cicatrizar. Repetir, sempre de forma repetitiva, nunca acontecia uma única vez, uma única mordidela acidental. Após ferido, o tecido interno da boca acima da língua pedia mais atenção, bem mais, pedia não menos do que a repetição, o cruento ferimento sobre o ferimento anterior. Ao passar do tempo e, por puro acaso aleatório do destino, alguém ouve falar de técnica revolucionária da medicina para dar jeito no lamentável hábito involuntário, uma cirurgia que corrija o maxilar, o desloque de posição, e que trará quase cem por cento de segurança ao paciente, trará a quase certeza de que não mais venha a ferir o sensível tecido interno da boca, justamente em momentos tão desejados quanto o degustar de uma apetitosa e fumegante bem temperada refeição enquanto faminto. Um mau humor, péssimo, qualquer pessoa haveria de demonstrar e sequer conseguir disfarçar. Por anos e anos sucessivos morder a própria bochecha, a porção interna da boca, logo acima da língua, ferimento sobre ferimento, tal e qual algum possível espírito obsessivo e zombeteiro da doutrina de Kardec em plantão permanente tanto deseje e disto se alimente. Um dos únicos prazeres possíveis, o mais imediato talvez, dos mais primitivos e bestiais, animalescos, pois um prazer da carne, da saciedade, físico e emotivo, saciar o corpo de caça apanhada e
satisfazer a mente em decorrência, aplacá-la ciente de que o abastecimento em calorias para nova temporada foi garantido ao estômago pedinte. O prazer da carne, de um alimento qual seja, desde que apetitoso e nutritivo. Não mais sentir tal básico e primordial prazer, o único à vista, após o único outro prazer possível, o de se render ao sono irresistível, os poucos segundos de entorpecimento e relaxamento antes da semi-inconsciência. Dois prazeres somente possíveis caso condições prévias estabelecidas, algumas ao menos. Ao corpo físico é necessário algum apetite, alguma ânsia por recarga de massa de alimentos, por encher novamente em volume o trato digestório, estômago, também a deglutição, o mecanismo potente das mandíbulas ao mastigar, que tão fortemente aciona gatilhos cerebrais poderosos e benfazejos, a vivacidade da mastigação. À mente faz-se necessário algum esgotamento mínimo, paralelo a mais baixa atividade metabólica do organismo, também alguma ânsia por repouso e refazimento após carga de trabalho justo e honesto. Algum infeliz largado ao mundo haveria de se reconhecer, haveria de notar as semelhanças e se identificar em grande grau, alguém transtornado, perturbado e dobrado por carga excessiva de pressão externa, pelo estresse da vida cotidiana em cidade grande, somente mais um de tantos outros absorvido e sugado por um sistema de engrenagens muito ágeis e poderosas, que usualmente tende a espremer e extrair o sumo vital de seres de carne e ossos, nervos e cartilagens. O físico e o mental, o psicossomático atuando forte, mente atuando sobre o corpo e vice-versa, uma ligação umbilical de entranhas e de sangue fluido.
Algum infeliz largado ao mundo haveria de se reconhecer, o pior momento de sua vida, a pior fase de sua existência, uma descida involuntária ao verdadeiro inferno dos pecadores, assim haveria de se identificar, de atribuir semelhanças e claras metáforas, um sujeito qualquer infeliz largado ao mundo vasto e sofrível. O pior momento da vida seria não sentir prazer algum à exceção dos poucos segundos anteriores ao adormecimento do corpo após um esgotamento esmagador de grande carga de estresse tóxico diário. Sequer o sabor dos alimentos o satisfaria. Se assim o fosse, o ferimento contínuo da parte interna da boca o relembraria cruel e implacável, bloquearia o prazer pleno, as mordidas involuntárias que continuariam a articular com a mandíbula, relacionadas, toda e qualquer vez quando fosse ingerido alimento sólido qualquer. Um transtornado infeliz largado ao mundo vasto, em perturbação nítida e aparente, dobrado e vilipendiado por carga de estresse. Teve coluna vertebral praticamente esmagada, o peso e a pressão implacável do somatório de energias negativas presentes na densa atmosfera tóxica e no clima regional acinzentado. Transtornado e amargo vê sua vida revolver, de cidadão comum passa a presidiário e então a ex-presidiário. Dez anos preso inocente, assim alegados, dez anos tirados de sua vida infeliz de transtornado que se rendeu à violência após esmagado por estresse cotidiano enquanto cidadão honesto pagador dos devidos impostos. Uma vez liberto transforma-se em workaholic, viciado e dependente químico em trabalho e em resultados palpáveis, não menos, outra infelicidade, outro transtorno claro e inegável, mas precisa e vê a necessidade imperiosa por recuperar o tempo perdido, por compensar e equilibrar ao menos os dez anos roubados de sua
vida, dez anos roubados por injusta condenação de um inocente. Alegadamente. Uma síndrome psíquica, assim reconhecida por especialistas e estudiosos, mas nem seria necessária tal categorização acadêmica. Muito menos. Uma síndrome reconhecível e recorrente em outros ex-detentos, alegadamente inocentes ou nem tanto, a imperiosa necessidade de autossatisfação por recuperar o duro e amargo tempo escoado por dentre os dedos das mãos, tal qual areia perdida que não se consegue deter em mão e se esvai para dissolvição quase eterna ao solo. Impossível após escoar dentre os dedos vir a se agregar a contento cada disperso grão de fina areia seca de leito de rio. Uma conta matemática básica, relativamente simples e pueril, algo assim, tabelar em adição e subtração números representativos, para configurar e exibir, que fossem em gráficos imaginários fantasiosos, em uma escala de linhas e quadrículos somente presente no interior da mente, mesmo assim uma conta matemática bastante simples e básica, pueril até. Trabalhar em dobro por dez anos para recuperar os prévios dez perdidos injustamente, apagados da adequada linha vital corrida desejável a qualquer pessoa sã e ativa, a qualquer cidadão justo economicamente ativo. Coisas e empreendimentos que não resultaram em nada, ou que simplesmente não deram certo, não vingaram, energias e tempo gastos, desperdiçados portanto, os grãos de areia muito fina que se vão para todo o sempre, impossível recuperá-los sobre o solo após dispersos. Dez anos de vida perdidos, para alguns até mesmo mais do que este amargo período, uma condenação e um pagamento ainda
maior. Dez anos ao menos necessário recuperar, compensar, equilibrar com realizações factíveis e contabilizadas, a conta matemática simples e direta. Um tempo e energia empreendido, não pouco deles, muita coisa que resulta inútil e sem finalidade prática, que nada de concreto e palpável deixa como legado. Coisas e realizações visualizáveis, quaisquer que sejam, o trabalho braçal visualizável, o mais nítido, o monte de toras de lenha empilhada que é transferido de lugar para outro, remanejado, movido, portanto claramente visível sua translocação, fruto de imenso trabalho despendido, de esforço e energia realizadas para algo construtivo, palpável, e muito facilmente visualizável. Ao menos o monte de lenha empilhada foi movido, foi transferido para porção do terreno mais adequada, com isto desimpediu acesso e liberou espaço útil, uma utilidade, um trabalho bastante útil e prático, visível. Imensa satisfação ao liberar espaço e desimpedir acesso de forma definitiva. Uma construção de tijolos de alvenaria, tijolo a tijolo, manualmente, árduo e desgastante trabalho braçal, muito suor derramado, corpo quente suarento do proletário de mãos grossas e ressecadas pelo constante manusear de pedras e massa de cimento, diariamente. A construção de alvenaria, dois ou três cômodos externos ao fundo de um terreno de habitação popular, uma edícula que seja, pequeno compartimento exterior, quatro paredes, sem laje, teto de telhas simples, fibrocimento, que ficam expostas e bolorentas vistas de dentro. Sem teto ou laje portanto, mesmo assim necessária adequada fundação, mesmo que base não prevista para recebimento da carga adicional de peso da laje de concreto, até cinco vezes mais do que o peso final após seca,
enquanto processo de cura do concreto muito úmido e pastoso, do concreto de preenchimento horizontal do projeto de laje. Nem tanto, construção sem laje, quatro paredes, madeiramento sob telhas e a fundação abaixo a contento, um alicerce escavado ao solo, um metro ao menos, as sapatas estimadas para suportar o peso e a carga das paredes. Tudo em um cálculo empírico, nada a ver com uma obra de engenharia oficial, os fabulosos mestres de obras tão práticos e experientes, proletários, extraoficiais. Bota-se alicerce de setenta centímetros de profundidade ao solo argiloso, ferro de vergalhão diâmetro tal na armação de concreto, pedra brita tamanho tal para reforço da massa, e que se siga a obra, que não pare nem se detenha jamais. A pequena e simplória construção de alvenaria está pronta, entregue ao proprietário contratante do serviço completo e bem executado, aprontada com esmero, paredes rebocadas, cobertas internamente por acabamento de massa de gesso apropriado e pintadas com tons pastéis por dentro, e da coloração de maior afinidade do dono por fora. Um serviço entregue a contento e a preço coerente. Serviço entregue e posteriormente abandonado à deterioração lenta e inexorável do tempo. “Chorar sobre o leite derramado”. Expressão presente em diversos idiomas. Depois de perdido, perdido todo o trabalho está, uma fração de segundo, um impulso incontido, tal qual o impulso do atirador que aperta o gatilho, para experimentar qual a pressão necessária para o acionamento, após tentar por vezes o mesmo aperto que não resulta em disparo, após não chegar a atingir o ponto de ruptura onde o martelo estúpido do mecanismo de disparo da arma acione mecanicamente e impacte brutalmente a zona de
contato com o cartucho, enorme pressão sobre lâmina de metal, força grande em área mínima, pressão, e com isto toda a máquina articulada exploda em pequena câmara a pólvora após esta entrar em ligeira combustão. Um evento expansor de volume de ar, ar que comprimido em câmara rígida só vê o orifício do cano como saída. O impulso, agir por impulso, com pouca ou nenhuma reflexão prévia, uma situação crucial de poucos ou ausentes escrúpulos. Aperta-se o gatilho, parcial intenção, mais por um reflexo muscular do dedo da mão, reflexo quase involuntário, aperta-se o gatilho, e apertado está, em fração de segundo uma vida pode ser subtraída, a vida de um terceiro ou do próprio atirador desprecavido. Em fração de segundo o leite se perde, o balde pesado de leite valioso depois de lentamente cheio se dobra ao solo, espalhando todo o precioso e nutritivo conteúdo. Em fração de segundo o mecanismo estúpido do revólver é acionado, gira o tambor e explode, tempo perdido, tempo e energia vital. O compartimento externo de alvenaria que é entregue com esmero pelo construtor e então é abandonado à deterioração do tempo, é deixado ao ostracismo e desperdício, corrosão irrecuperável de materiais. Refazer o tempo perdido, o conteúdo precioso do balde de leite derramado, trabalhar em dobro, a fase posterior, fase de recuperação, de compensação, um equilíbrio de forças e de energias, trabalhar em dobro para recuperar todo o lamentável tempo perdido. Dez anos desperdiçados de uma vida promissora, dez anos de condenação dita injusta em penitenciária, após isto, virar um ex-presidiário com clara e inegável síndrome de workaholic, um dependente químico de resultados concretos e palpáveis e de esforço despendido. Urge a necessidade de compensação.
Excessos burocráticos, as licitações estatais que resguardadas por lei visam algum controle governamental sobre os custos e sobre os gastos espúrios. João Pedro Datsi não escaparia delas, ninguém escaparia, bom senso e regulamentação, uma mistura às vezes imiscível e complicada, o dilema entre agir com a livre consciência ou agir conforme as leis, seu rigor, sempre a ser questionável o que haveria de, de fato, ser considerável como a verdadeira e real livre consciência. Ninguém poderia ser o detentor universal da verdade, o possuidor imaterial da luz e da elucidação sobre todos os seres viventes do planeta Terra. Bom senso em choque frontal e bloqueador de forças face ao exposto por aquilo que é oficialmente legislado e regulamentado. Na prática costuma ocorrer um impedimento castrador, um bloqueio pragmático, nítido impeditivo bem efetivo e bem evidente. O gerente de repartição pública responsável pela preservação socioambiental de uma região afastada de interior de estado fronteiriço. Sentado em sua cadeira de gerente de escritório, a mais sofisticada delas, em porção privilegiada da repartição, final de sala coletiva, uma única cadeira estofada daquele modelo em todo o escritório, a mais confortável e novata. O gerente competente vê pela janela distantes caminhões rústicos, quase sucatas sobre rodas, transportando barulhentos centenárias toras de jatobá recémextraídas ilegalmente da densa floresta amazônica próxima. Uma única imensa e fabulosa tora de mais pura madeira de lei amazônica por caçamba de caminhão, muito valiosa no mercado clandestino do sudeste do país, imensa tora de grande diâmetro e dimensão, uma grandiosidade e extremo valor de mercado, excelente qualidade de madeira, muito desejada pelas serrarias e principalmente por
carpinteiros que reconhecem e apreciam as qualidades mecânicas e físico-químicas dos jatobazeiros, sua maleabilidade e trabalhabilidade quando da confecção de móveis, ripados e peças artesanais de marcenaria das mais diversas. Insuportável assistir passivo as belíssimas e gigantescas toras se esvaindo da beira da mata exuberante. Mais belíssimas e gigantescas enquanto apreciadas de dentro da mata, em seu território de origem e de direito, em sua umidade e sombreamento únicos, apreciadas bem vivas enquanto verticais, vivas e reluzentes. Após abatidas e serradas, triste fim, cerne e alburno expostos, visível a madeira preciosa interna, sua bela coloração e regularidade, sua superfície muito plana e sem quaisquer falhas, ótima para carpinteiro competente moldar e formatar, eles os maravilhosos artesãos da nobre madeira morta assim disposta. Beirando o insuportável não tolerou a angustiante situação, não tolerou continuar observando através da janela do escritório os caminhões sucata distantes transportando as gigantescas toras de jatobá cortadas, belas toras de madeira recém-abatida, uma madeira morta, não a mesma madeira apreciável enquanto vertical, a madeira viva que atinge a longínqua extensão de trinta metros de altura em busca da insolação necessária à fotossíntese primordial, uma competição implacável por espaço entre todos os vegetais da floresta amazônica mais demandantes de necessária luz para a produção de carboidratos e para a síntese de minerais. Imbuído de espírito ambientalista por óbvio não tolerou a lamentável situação, o contínuo observar passivo do avanço da frente de desmatamento, imensas clareiras devastadoras que eram abertas na densa floresta amazônica, um estrago enorme, quase
irreversível, árvores centenárias, duzentos anos de história ao menos, entes perenes que nunca voltariam a habitar seu lugar de fato e de direito na selva luxuriante quente e úmida. Não era gerente e chefe de equipe concursado em instituição pública voltada à defesa do meio ambiente por falta de competência, sequer falta de afinidade ou mérito. Era antes um de tantos outros jovens sonhadores em salvar o planeta Terra, em combater ativos navios baleeiros sabotando-os de forma agressiva, também com ânsia e disposição juvenil por se acorrentar em árvore de mata e impedir ousado e arrogante o seu abate por barulhentas e fumegantes motosserras, objetos mecânicos contundentes e poluidores criados em pranchetas de projeto arquitetado por ninguém menos do que Satanás em pessoa. Ao não se enquadrar como somente mais um mero funcionário público em busca de estabilidade de emprego e salários caudalosos, o gerente de escritório de instituição pública voltada à proteção do meio ambiente em plena cidade de interior já no interior da densa floresta amazônica, tal gerente idealista e visionário, jovem porém experiente, com histórico de ativismo e postura socioambiental, uma ou outra detenção temporária por desacato e invasão de propriedade no currículo. Ao se identificar muito mais como apaixonado pela causa socioambiental, o gerente não suporta a passividade e parte para o bom senso, ou nem tanto, talvez nem tanto, bom senso seria manter-se vivo no cargo, ativo e factível, mesmo assim decide-se a uma dura resolução. Moveria dinheiro, um remanejamento de rubrica orçamentária do escritório, dinheiro inicialmente previsto para outra finalidade, remanejado para a compra emergencial de combustível às camionetes, e com isto
rodaria as viaturas de fiscalização do órgão ambiental que poderiam, em parte, combater um mínimo do enorme comboio de caminhões sucata que sacavam clandestinamente sem parar os belos jatobás e angelins das matas amazônicas da região. Bom senso seria manter-se vivo e ativo ao cargo, imprimindo o perfil profissional e seu comprometimento com a causa socioambiental, sua forma apaixonada e extremamente dedicada de dar expediente diário, competente, produtiva e desburocratizada. Não tardou amargou processo formal judicial, advogado de madeireiros entrou com denúncia, óbvia acusação, uma causa ganha, fácil de comprovar, compra de combustível sem licitação, dinheiro público, aquisição sem respeitar a famigerada lei federal regulamentadora de processos de licitação pública. Perdeu processo, improbidade administrativa, causa perdida, um desgaste, foi exonerado e entrou para a lista negra, um pária dentro e fora da instituição, o órgão estatal que não poderia suportar de seus servidores concursados um decorrente processo e pagamento de ressarcimento e indenização por dita má-fé pública. Uma carreira promissora destruída pelo rigor entrelaçante do cipoal impensável de burocracia estatal vigente. Talvez melhor mentir um pouco, uma tola inverdade, mentirinha boba de criança. João Pedro caso confrontado a deitar mão sobre a bíblia em juramento haveria de titubear, sem dúvida vacilar e posteriormente questionar, estranhar o ritual de posse de um cidadão político eleito em pleito democrático regular e oficial. Nem tanto, não estaria ainda em tribunal de júri, ou não estaria ele em unidade da federação de histórico fundamentalista religioso conservador da família, de Deus e de todos os bons e sacros
costumes. Os variados estados da união estadunidense norteamericana, a bíblia quase sempre presente, papel grafado de sentido transcendente e imaterial. Nem muitas diferenças ao Brasil tropical com seus obrigatórios instrumentos de tortura cristãos expostos à vista de todos bem acima da maior autoridade constituída em plenárias de fóruns de comarcas judiciais dos principais municípios do país. Uma tola mentira infantojuvenil, descomplicadora ao extremo, evitaria um bocado de embaraços e trâmites desnecessários, bom senso portanto, talvez alegar bom senso por evitar burocracias e engrenagens retardantes do desejável construtivo progresso econômico. Uma entrega de cédula monetária rasgada, das que omitem até mesmo algum número ou informação do mecanismo de segurança, entregar à balconista de comércio tal nota danificada, repassá-la de forma ligeira, meio dissimulada, enquanto falante de algo abstrato ao balconista do comércio, para desviar a atenção da cédula de dinheiro comprometedora e danificada pelo manuseio. Supor tão mais simples e pragmático alegar ao vendedor de loja no comércio de rua que tal nota de dinheiro rasgada tenha sido ontem entregue pelo mesmo estabelecimento ao mesmo portador, um troco de compra banal em espécie. Não era. A nota rasgada veio de outra pessoa qualquer não reconhecida, impossível lembrar, nem foi notada a princípio, haveria de ser pragmática e simplista a tentativa de reintroduzi-la de forma dissimulada, alegando em caso de questionada e recusada por terceiros ter ela vindo do mesmo estabelecimento que agora a refuta devido ao rasgão. Todos mentem, e quem diz não fazê-lo já o faz. A ser comprovado ser humano perfeito que jamais minta, alguém a ter
sérias complicações e embaraços em vida, mas também talvez alguém mais feliz que uma pessoa comum e ordinária. Talvez os deficientes mentais que jamais mintam sejam eles de fato, por jamais mentirem, bem mais felizes que os ditos normais. Mentira, inverdade, tema bem delicado e caro a um político de carreira que se preze. Mentir como contrabalanço, como vingança, um ato de agressão, engendrado para satisfazer e aliviar os impulsos violentos. Ao mentir está consumada a vingança perante a sociedade também ela extremamente falsa e hipócrita. Um imaginário jogo eletrônico ultraviolento que é bem utilizado como certeira válvula de escape de instintos bestiais indevidamente reprimidos. Liberação de intempestiva energia que se acumulada e condensada bom resultado não trará. Uma satisfação vicária dos impulsos, um bode expiatório, substituto conveniente para o momento, o boneco de palha Judas da malhação nas ruas de periferia, boneco de pano e palha para se bater com força, descarregar energia e ódio, destilar todo o ódio puro concentrado tanto quanto possível. O bode expiatório, a ele toda a culpa e o pecado, a ele tão somente, que receba pois toda a energia negativa, e após abastecido nefastamente com tal carga de energia negativa apto estará a ser entregue em sacrifício purificador mediante tóxico sangue derramado. Da mesma época de Judas, Jesus entregue de mãos lavadas para a agoniante crucificação. Após seu flagelo viu-se aplacado parte do rancor popular cultivado por seus inimigos. Os dilemas e dúvidas relacionados à carreira político-partidária sempre presentes, ao menos para quem seja responsável e coerente, pois para os desleixados e inescrupulosos nos quesitos da coisa pública tudo parece ser bem mais simples e despreocupado.
Um permanente incômodo para os mais responsáveis, preocupação na certa. Um incômodo permanecer a se cobrar, a se policiar, sempre os embates existenciais a respeito do ético e da moral de vida de um político de carreira. Incômodo. Pedra no sapato tal qual o cachorro insuportável da vizinhança, o mesmo que teve seus hábitos selecionados e manipulados pelo homem, que o ensinou e o acostumou a alimentos tal, mimos e cuidados tal. Haveria de uivar e choramingar para incômodo das vizinhanças na ausência de seus tutores ao domicílio. Em ambiente selvagem, o cão selvagem original,
choramingar
continuamente
equivaleria
à
predação
implacável, a virar caça de carnívoro mais robusto, o latido estridente a atrair toda sorte de predadores noturnos. Choramingar equivaleria a não aguçar a audição aos alertas de tocaia, às movimentações sorrateiras de caçadores crepusculares. O cachorro mimado doméstico a incomodar vizinhanças, a sempre emitir ruído perturbador, tal qual o ruído perturbador que João Pedro Datsi ouvia diariamente ao mais profundo de sua mente, o eterno questionar de dúvidas existenciais. Valer ou não a pena arriscar-se tanto, botar corpo e alma em empreitada tão transformadora e ambiciosa, o ousar aprovação pelo povo como um de seus fiéis representantes oficiais. Dignidade
e
honra
a
exercer
perante
tão
imensa
responsabilidade do cargo efetivado. Honra e profissionalismo, coerência, sobretudo imparcialidade. Não o comportamento ligeiramente reprovável de um funcionário público de agência bancária, que presta um atendimento de extrema qualidade ao cliente, porém tão somente em dias de expediente bem pouco movimentado quando o funcionário precise lançar mão de
passatempos para que a carga horária total do expediente de um monótono dia entre feriados não tarde tanto a se esvair. Imparcialidade esperada e desejada. Comportar-se, se eleito, como representante popular dos anseios justos dos cidadãos, direcionar a mesma atenção e comprometimento independente de outros fatores externos que nada sejam de responsabilidade do mesmo cidadão demandante por solução de seu problema imediato. Evitar prestar atendimento a alguém de acordo com humores e intenções escusas, fazer um jogo de passatempo ou, por outro lado, um jogo apressado e incompleto de acordo com fatores outros. Não gerenciar o tempo investido e a produtividade deveria ser preocupação primordial de um político remunerado para servir e representar o povo. Se eleito João Pedro Datsi faria a diferença, o seu compromisso, ele próprio bem acreditava na meta. Saberia tomar decisões difíceis, uma promessa ao tio falecido que eventualmente lhe aparecia em bons sonhos. Prometeu ao tio. Se por hipótese fosse proprietário de multinacional de refrigerantes iria revolucionar e cortar os índices de açúcar branco refinado apresentados pelo produto comercial de sucesso, iria ser o primeiro e único administrador a admitir a falha de caráter e a tentativa de compensação enrustida ao contrabalancear o extremo prejuízo à saúde das crianças por intermédio de campanhas publicitárias doadoras de brindes e de verbas à filantropia. Uma gigantesca revolução, pouquíssimos teriam coragem suficiente. Mesmo assim prometeu ao tio, hipoteticamente, e para exercer uma metáfora de vida mais ampla a ser aplicada em breve. Perderia milhões na bolsa de valores, o valor de mercado da
empresa multinacional de produção de refrigerantes açucarados despencaria internacionalmente. O dono visionário e ousado investiria e redirecionaria verbas para o fomento de produção e instalação de painéis de energia solar, desativaria plantas inteiras de chão de fábrica e o recurso resultante iria direto para pequenos agricultores familiares de assentamentos da reforma agrária voltados à agroecologia. Demovido pelo tio falecido, quase, não se renderia, tentaria argumentar e se defender. O tio falecido não gostou nada, disse ser criado à base de muito pé de moleque e quebra-queixo… Disse mais, que a mãe dele morreu aos cem anos de idade comendo torresminho com tutu de feijão mineiro, que a única coisa que suspeitava fazer mal à saúde seria o vício de fumar cigarro, pois que era uma delícia, mas depois às vezes o fazia tossir no meio da noite. Assim disse. Quase demovido. O tio falecido não o dobrou de opinião, mas foi um pequeno choque inédito, uma pequena cisão, pela primeira vez houve discordância plena e frontal, algo que deveria ser previsível, que certamente deveria ser previsto com antecedência, mas que João Pedro em seu respeito grande e quase idolatria pelo tio achava por bem ignorar, fazer de conta, fantasiar uma relação entre encarnado e desencarnado quase utópica, pois seguramente de um alinhamento fantasioso e incomum aos meros humanos cidadãos ordinários. Inumano seria ignorar os fatos claros e as estatísticas, cada vez mais se abastecia de dados e estatísticas. Informação que chegava forte com o advento da internet, muita informação, excessiva por vezes, muita interferência que se mostrava difícil de sedimentar. Das últimas foi assistir a documentário na tevê,
impactante tal qual todo documentário denúncia deva ser. Um barco que percorre os rios estreitos e os largos da Amazônia brasileira durante o período das cheias, mas bem poderia ser a outra Amazônia latino-americana, ou bem poderia ser em rios barrentos de regiões de moções do Sudeste Asiático. O barco sofisticado todo de metal, de pintura colorida e reluzente, de fato brilhava belo ao sol tropical, haveria ele de ser bastante aguardado pela população ribeirinha, um pedaço enorme de metal colorido e reluzente flutuante, enorme bocado de prazer e satisfação, que trazia em refrigeradores e congeladores horizontais e mostruários verticais uma fartura e amostra completa dos produtos da companhia alimentícia internacional de extremo sucesso, trazia deliciosos sorvetes de massa, em potes que depois eram usados pelos consumidores também para botar farinha de mandioca bem seca e bem tostada que ficava armazenada nos barracos ribeirinhos, em prateleiras rústicas de madeira-branca amazônica. Impossível refutar o apelo por prazer imediato. Quase impossível. O prazer mais imediato, óbvio, descontada com prepotência e força a importante parcela de serenidade pós-ingestão, por alguns considerada de lampejo, apenas parcialmente considerada, por outros sonegada e com arrogância ignorada. Mas menor influência teria uma inundação calórica de rápida absorção repleta de milhares de quilocalorias em questão de segundos ou minutos, pouco menos, menor influência à corrente sanguínea adocicada, calorias ingeridas em organismo de alta fisiologia e musculatura, em organismo de queima diária elevada, milhares de unidades de energia, fornalhas humanas, mensurável em joules e grandezas físico-químicas, tudo carbonizado em serviço braçal bruto, mecânico, em baldes de água
carregados desde a beira dos igarapés para o cozimento da macaxeira fresca em forno de barro abastecido à lenha do chão das matas. O barco colorido e reluzente de metal maciço a brilhar ao sol tropical haveria de trazer coisas boas e haveria de trazer o prazer imediato a uma população ribeirinha sofrida privada de outros fáceis prazeres. Produtos saudáveis, aparentemente, mas nem tanto. Leite de vaca em pó haveria de ser alimento rico e saudável e sem contraindicações. Algumas, poucas. A genética nativa original seria pouco tolerante à lactose, ou menos tolerante, dentre estes infelizes mais provável estaria a faixa de, diziam, trinta por cento dos adultos que são intolerantes em algum grau à lactose, em geral por baixa produção endógena da enzima lactase atuante na quebra e redução de açúcares complexos tal qual o do proveniente dos leites animais. Saudável leite nutritivo de bons teores de proteínas de alta qualidade e presença em aminoácidos essenciais, muito bom porém insubstituível ao leite humano materno aos neonatos, cheio de anticorpos, esta a maior falha histórica da empresa alimentícia multinacional: alardear leite de vaca pulverizado como alimento completo mais prático e acessível às mães amamentantes de regiões empobrecidas mundo afora. Em região de população carente o mais prático, o mais fácil e menos desgastante haveria de ser a princípio buscado. O documentário de tevê foi apenas mais um, outras informações e dados havia, muitos deles, um batalhão de médicos atestando diabetes e hipertensão como diretamente relacionados à má alimentação contemporânea, ainda que, se tais dados fossem
de seu conhecimento, o tio falecido de João Pedro pouca atenção ou nenhuma iria de fato direcionar. Decidiu-se. Respirou fundo, tomou coragem e contradisse o tio amado. Uma convicção. Estava convicto a revolucionar a indústria mundial se presidente-executivo de indústria transnacional alimentícia rentável e de sucesso fosse. Uma ousadia, haveria de ser. Por livre e espontânea vontade, voluntariamente, iria ele revolucionar o mercado e cortar da linha de produtos oferecidos pela empresa aqueles apontados que contivessem elevada porcentagem de açúcar branco refinado. Bem poderia ser o corte brusco, mas como gestor experiente presidente-executivo bem sabia que choques de gestão bruscos tendem a não ser efetivos e factíveis. Talvez ao menos cortar em um terço, já muita coisa, uma poda significativa, substituir toneladas anuais de açúcar branco refinado pelo açúcar mascavo, talvez, experimentar e buscar mais informações científicas e resultados comprovados sobre adoçantes naturais, ervas, estévia ou lá o que fosse que houvesse de novo e empolgante no mercado internacional. Os bons e imediatos prazeres. O diabo, de fato, moraria nos detalhes. Um semblante de satisfação, semblante relaxado de plenitude e contentamento, um contexto ao qual Deus não poderia refutar ou sequer ignorar, o deus único e bondoso, criador e cuidador de seus filhos amados esparsos desgarrados. Um engodo. O engodo estaria não no contexto, mas em não visualizá-lo límpido e de ângulo favorável, aí o grande erro e equívoco humano, pois o semblante relaxado de satisfação ao saborear o delicioso e carameloso quebra-queixo era a fina e tênue, muito sutil, capa superficial, somente a superfície, só a camada perceptível mais
externa. Também a benfazeja sensação posterior, a atuação significativa do carboidrato em nível orgânico celular, glicemia e glicogênio. O diabo haveria de habitar dentre os detalhes e minúcias. Ou Deus seria, de fato, um agente supremo cruel e vingativo, um punidor cósmico democrático, que atingiria ricos e pobres, bondosos ou malévolos, que puniria por lógica todas as suas frágeis criaturas de seu cosmológico e histórico processo de criação de todos os mundos conhecidos e imagináveis. O contexto holístico. Tudo enxergado muito de cima, um ângulo límpido superior, quase desde camadas estratosféricas, lá de onde se poderia perceber a curvatura do planeta, sua luminescência bela estupefaciente, desde uma abóboda diáfana, calma e silenciosa de muita paz e sabedoria. Mas o diabo haveria de habitar sagaz dentre os detalhes. Cada expressão de gozo e satisfação momentânea relacionada ao processo de saborear e deglutir um bom pedaço de carameloso quebra-queixo. Agindo dissimulado em meandros subterrâneos o diabo haveria de atuar com sua enorme maestria e sagacidade. Haveria de. Ou Deus talvez fosse injusto e não esclarecido aos humanos, pois não poderia ser má coisa o prazer e a satisfação do momento, não poderia ser má coisa sentirse tão bem e aprazível a ponto de desejar o mesmo bem e o mesmo contentamento a todos os outros viventes ao redor. Haveria de ser boa coisa ser um agente ordinário comum, porém um fiel replicador de gentileza, um sujeito de boas intenções e de boas energias a contagiar os próximos. Em subterfúgios o diabo haveria de atuar maestral, haveria de engendrar e articular desde o seu imundo submundo. Atuaria e elevaria os índices de glicemia sanguínea a ponto de sobrecarregar o pâncreas superutilizado, aos poucos
inutilizá-lo para todo o sempre, de forma irreversível e a nível celular, não regenerativa. Bom alvitre seria redirecionar verbas da empresa alimentícia multinacional baseada no consumo e fomento de toneladas de açúcar branco ultrarrefinado. Um bom alvitre, se presidenteexecutivo fosse redirecionaria verbas imensas, remanejaria rubricas, faria o que bem entendesse, pois seria ele a ter o poder de veto no conselho deliberativo da empresa junto aos vários acionistas da bolsa de valores. Angariaria prosélitos, gente que acreditaria em sua nobre causa de princípios do século vinte e um, os jovens capitalistas investidores principalmente, eles principalmente, que o apoiariam,
ambientalistas,
quem
sabe
os
veganos,
que
o
incentivariam a, de fato, lucrar bem menos em curto prazo, mas em médio e longo prazos esperar os lucros de recuperação futuros, uma amortização gradual, o redirecionamento de verbas caudalosas surgidas e decorrentes da desativação de fábricas inteiras voltadas à industrialização de refrigerante muito calórico e muito açucarado. Verbas caudalosas que iriam a partir de então para o incentivo direto à agricultura familiar regional, verbas investidas em produções agrícolas em pequena escala, pulverizada dentre milhares e milhares de famílias agricultoras beneficiárias mundo afora, gente de assentamentos da reforma agrária, a produção dinâmica e ligeira de ervas aromáticas de poder adoçante infinitas vezes menos calórico do que a sacarose de cana-de-açúcar ou de beterrabasbrancas açucareiras da Europa. Uma revolução. Se presidente-executivo fosse. Como candidato recém-eleito teria João Pedro algumas ferramentas em mãos para implementar suas pequenas revoluções particulares
influenciadoras do comportamento e interação de cidadãos comuns com o governo empossado, a começar por atuar com tais ferramentas em seu distrito local cujos eleitores o elegeriam democraticamente em pleito justo e oficialmente assim reconhecido.
10. Nunca termina.
Jamais terminará, jamais um final haverá. Tudo aquilo que necessariamente há de se equilibrar, contrapeso e contrabalanço, os opostos que se complementam. Expurgar força contrária na maioria das vezes parece não ser a melhor estratégia e opção, os extremos, o extremo necessário em direta oposição. A natureza muito
humana,
seu
hábito
e
característica,
as
múltiplas
personalidades, uma biodiversidade, por isto sempre o inegável contraponto, o inegável embate entre valores diametralmente opostos. O culto clandestino pagão sempre haverá de tentar abarcar com poderosos tentáculos todo o mundo conhecido e o volume de ar disponível ao redor, talvez nunca se contente com o filão já angariado, o naco sanguinolento de carne crua já abocanhado e garantido. Pouca diferença, uma vez experimentados e degustados os desejados privilégios, quase sempre torna-se bem mais difícil e complicado o posterior desapego voluntário. Pouca diferença. O formato recalcitrante com o qual o culto pagão subterrâneo direcionava energias para sua reentrância na sociedade civil organizada seria o mesmo formato arquitetado por políticos de
carreira democraticamente eleitos, seus subterfúgios para a manutenção sequencial de seus nomes nos topos das esferas de influente poder político, poder econômico e poder social. Os mesmos mecanismos, pouco variavam os métodos, os mesmos formatos, a diretriz econômica e propagandística com a qual a multinacional bem-sucedida de produtos alimentícios generosos e ditos nutritivos viria a se manter no topo do ranking de ações valorizadas do mercado da bolsa de valores nacional e das mais importantes bolsas estrangeiras, em cada um dos continentes do globo exceto a Antártida. Maior o valor de mercado, maior o lucro líquido e maior a possibilidade de novos investimentos em novos produtos alimentícios inovadores, investimentos em sofisticação tecnológica
permanente
de
embalagens
promissoras,
em
criatividade posta e exercitada a partir do lançamento de produtos emblemáticos ao mercado consumidor, tais quais foram emblemáticos o aparecimento do leite em pó e do leite condensado, este por muitos anos utilizado e consumido de forma quase miraculosa, um produto que matava a fome e não demandava conservação. Imensa criatividade e inovação, imensa praticidade, produto alimentício inovador que acrescido de água se fazia em litros e mais litros de leite de vaca adocicado. Muita gente tirou da inanição em períodos cruentos de guerra e conflitos regionais violentos. Um alimento salvador, e cariogênico. Seria empolgante e motivador para os profissionais executivos gestores das marcas diversas influentes do mercado mundial, seria empolgante o jogar e o movimentar de peças polidas em um adequado e amplo tabuleiro de xadrez. Um lance bem dado e o xeque-mate
seria
alcançado,
um
lance
que
constatava
e
comprovava uma imensa perspicácia e antevisão de jogo. O exercício de antecipar os próximos lances e os próximos movimentos de uma disputa em igualdade de condições. Oxalá acertar em cheio, oxalá vencer as peças poderosas do xadrez adversário,
o
mercado
predador
concorrente,
uma
lei
de
sobrevivência, onde somente os mais fortes ou mais adaptados se mantêm em cena. O profissional executivo presidente de empresa multinacional alimentícia influente possuía seus desejos íntimos e a tendência a deixar para a posteridade a sua marca pessoal, seu carimbo particular, seu caráter, o desejo de poder falar aos netos diversos que foi o avô deles quem, nalgum dia distante do passado, revolucionou o mercado mundial e lançou produto alimentício inovador que passaria a ser consumido e buscado por populações inteiras, em áreas geopolíticas amplas e dotadas de milhões de consumidores pagantes ávidos por produtos em teoria saudáveis e extremamente práticos a ponto de serem buscados e disputados diariamente por toda uma vida, por todos os integrantes de uma família padrão. Uma elevação suprema quase sublime e etérea, o ato de transformar-se em celebridade de reconhecimento indiscutível, tornar-se um dos raríssimos habitantes do planeta Terra a deixar registrada a sua história particular, a deixar em linha cronológica de livro didático de História a ser estudado por todas as gerações posteriores. Grafar em linha cronológica de livro científico o seu registro mais do que particular, sua marca, selo e carimbo, sua impressão queimada fundo em madeira de lei e lapidada em eterna laje indestrutível de mármore. Mérito laureado a bem poucos, os
pouquíssimos cidadãos ordinários que, póstumos ou não, se tornaram extraordinários e praticamente imortais. Grande maioria dos políticos de carreira desejava não menos do que a imortalidade, desejava virar verbo e adjetivo, uma marca peculiar, a característica marcante e de fácil reconhecimento. Um conto kafkaniano, uma lei draconiana, o sadismo do marquês e a psicanálise freudiana. Também os cidadãos bem mais ordinários e menos cultos, bem menos inovadores, mas que também mereceram de alguma forma o seu lugar no raro panteão dos adjetivados e verbalizados. Sempre haveria em cada contexto geopolítico quem associasse o nome de um político popular qualquer a um verbo ou adjetivo, uma palavra usual a ser flexionada em neologismo inédito, o nome do político fulano de tal acrescido de sufixo ar, ou er, e os adjetivos, e mais e mais, e os locais públicos e movimentados, frequentados pelo povo, que facilmente recebiam tais nomes imortalizados também como gírias popularescas. Melhor falarem de mim sob gírias do que ninguém falar de mim: assim pensavam noventa por cento de todos os políticos brasileiros eleitos de carreira. João Pedro Datsi se comportava tal qual visionário, um idealista, alguém que ansiava e se sentia com energias e tempo disponíveis para batalhar e eventualmente se desgastar em labutas ao teorizar um mundo ideal. Bom constatar que tinha tempo e energia, que se sentia apto e saudável, naturalmente fortificado, de alma e consciência límpidas. Quem se sente dotado de energia e disposição chacoalha o ambiente ao redor, um perigoso rival frontal ao tédio e monotonia, o matador e ceifador de tais letárgicos sentimentos.
Acreditava e apostava em sua proposta, haveria de dar certo, haveria de ser bem-sucedida semelhante proposta, tudo estava claro e apresentado, consolidado em dados e em estatísticas, em outros países funcionava, haveria de funcionar também no Brasil. O desenvolvimento de turismo médico, tudo e todos relacionados a cursos, capacitações, comércio e indústria, desenvolvimento tecnológico de equipamentos e de métodos inovadores no ramo da medicina, enfermagem, odontologia. Haveria de ser bem-sucedida tal proposta, muita gente empregava, diversos setores interligados, empregos diretos e muitos indiretos, hospedagem, alimentação, logística para todo o fluxo de interessados, de estudantes, profissionais,
pesquisadores
e
investidores
diversificados.
A
economia regional a rodar e o desemprego a diminuir, em paralelo, a graduação técnica de milhares de profissionais que passariam a possuir
maiores
conhecimentos
científicos
e
tecnológicos
específicos, uma profissão demandada pelo mercado. O tio falecido que lhe aparecia em sonhos em muito o ajudou, um conselho sensato e realista, de quem aprende e apreende informação a partir de erros e de acertos sucessivos. Discordou de rigor alimentar preconizado pelo sobrinho, sempre achou que mais importante seria comer do que passar fome. Deus o livrasse de ter de passar fome de novo, tal qual ele em parte e também os seus conterrâneos suportaram na década de quarenta, que Deus o livrasse. Mesmo simpático ao anarcossindicalismo de boa parte de seus ancestrais conterrâneos, os que se rotulavam como anarquistas, mas nem tanto, mas que acreditavam em Deus: “anarchico ma non tróppo”. Pregava somente o cigarro como maléfico à saúde, nem tanto, nunca soube explicar o pai que fumava
cigarros de palha e foi morrer de sarampo, talvez houvesse na palha de milho utilizada para enrolar tais cigarros uma substância natural qualquer que atuaria benéfica ao organismo, afinal sempre suspeitou que do milho e do trigo nada de ruim poderia se originar. O tio falecido de João Pedro Datsi, um bom e agradável sujeito, boas lembranças, ele sentado ao sofá antiquado da casa da família em épocas de menor trânsito de carros nas ruas, época de menor dependência ou ausência completa de tecnologias imprescindíveis, de maior tempo nas ruas lançando peão de barbante, pulando amarelinha, as casas delimitadas e riscadas a giz no chão, céu e inferno quadriculados, mais tempo lúdico e físico rebatendo bolinha de borracha com taco cruzado com parceiro em busca de vitória e pontuação. Não haveria consultoria especializada que previsse com total segurança o futuro próximo de João Pedro Datsi. Nunca termina. Nem sua ex-companheira, que bem o conhecia intimamente, nem ela seria capaz de prever com margem aceitável de segurança. Sempre um prognóstico, o lidar e aceitar as probabilidades. Quem deseja acertar em loteria deve estar disposto também a levar raio de tempestade, descarga elétrica na cabeça, probabilidades similares, exceto a quem nunca se expõe à chuva, mas que poderia ser expor a acidentes de choque domésticos ainda mais corriqueiros. Tudo uma questão de probabilidades. Deus haveria de achar aprazível refutar e contrariar todas as probabilidades, bom e miraculoso que se julgava ser. Os homens em geral também o julgavam desta forma: bom, miraculoso e misericordioso. Pouca coragem disponível ao ato de alguém rebelde sequer discordar.
A consultoria especializada traçou cenários, prognósticos bem detalhados e interessantes, análises intrigantes, realmente um fruto de pensamento sagaz e realista. Foi boa tal consultoria, produtiva, o trabalho de analistas capacitados que iria apostar em propaganda própria, óbvio, que não iria fazer caridades ou filantropias, que de fato estava atrás dos méritos e dos louros semelhantes àqueles obtidos em campanha eleitoral pregressa inovadora estadunidense, o primeiro presidente negro eleito da história em um país de episódio dramático de segregação racial. Uma eleição e posse bem-sucedida a partir de uma estratégia de marketing pessoal muito bem traçada, inovadora e perspicaz, extremamente criativa e atraente, sobretudo atuante em uma ampla trama de redes sociais digitais de então. O Grão-mestre prognosticou, quase suplantou o pensamento do conselheiro decano do conciliábulo, que aos poucos passava a demonstrar ligeiros sinais de decrepitude. A decisão fora tomada, coletiva, sábia, muitos diriam, seria uma atitude concreta e proativa visando a permanência do ritual pagão por mais um século ao menos, a vida útil de uma organização secreta que se somaria a quase outros mil anos ao menos de culto e crença profana tradicional. De forma alguma insistiriam no erro, uma vez detectado o equívoco haveria a assembleia de suplantar o ponto fraco identificado de antemão, corrigir e dosar o desequilíbrio apontado dentre o direcionamento de energias empreendidas, o baixo investimento em ramificações políticas pelo culto em detrimento da energia direcionada às ramificações econômicas, as que sempre se mostraram a eles ainda mais imediatas e rentáveis. Erro crasso ignorar
a
política
partidária
como
potencialmente
rentável,
indiretamente e até mesmo diretamente, um novelo de cordões que se perfilavam e haveriam de cobrir imensa extensão de território, imenso alcance. Uma legislação formal e jurídica que após oficializada e atuante dentre a sociedade representaria ganhos inimagináveis aos mais interessados e capazes de prever cenários futuros. Nunca terminará, enquanto houver Deus haverá o seu contraponto imediato, um antagonista, contrabalanço, alguém haveria de representar o pecado blasfemo impuro para que assim houvesse
a
necessária
correção
de
rumos
aos
cordeiros
desgarrados do rebanho súdito divino. A existência e aceitação do pecado seria possível e factível se agente tentador digno de representação maléfica houvesse. Blefar, ou mentir, ou faltar com a verdade, ou dissimular, exercer a arte do engodo e do estelionato intelectual. O germe da corrupção humana. João Pedro Datsi não escaparia, também ele haveria de lançar mão de um blefe, apenas uma das quase infinitas maneiras de enganar a si mesmo visando posteriormente enganar os demais em seu círculo de influências. A arte da dissuasão, chamar os acontecimentos e as situações por outros nomes, não nomeá-los corretamente, omitir a colocação devida dos pingos nos is. Se questionado
a
respeito
de
dilemas
religiosos
e
tabus
comportamentais haveria de contemporizar, tal qual todos outros políticos de carreira que conhecia, haveria de buscar outras respostas transversais possíveis mediante o cerne do questionamento em si. Procuraria ganhar tempo, até a desejável desistência do interlocutor, até vencê-lo pelo cansaço, por tédio ou
exaustão, visto que resposta concreta este interlocutor não receberia. Atenuantes, ao menos quanto a dizer sim ou não sobre acreditar em Deus, ao menos isto já tinha na ponta da língua, um discurso ensaiado. Diria ser impossível responder em tal nítido maniqueísmo apresentado, em tal falta de demais opções, ser encurralado em uma obrigatória escolha de branco ou negro quando tonalidades de cinza haveria, e mais, quem lhe garantiria que o que se convencionou a chamar branco, negro em verdade o fosse? As múltiplas facetas, a moeda que não expõe apenas as duas faces mais conspícuas, expõe também a tênue superfície de transição entre ambas faces principais, a área milimétrica de extrema importância que mantém uma moeda em pé na posição vertical sobre um plano horizontal. João Pedro teria os seus deuses particulares, o seu conceito próprio de deus, o que lhe conviesse para que pudesse ao menos dormir cada noite em casa após um dia de honesta labuta, pudesse dormir e repousar o espírito e o corpo com a consciência razoavelmente tranquila. Articulações escusas paranormais seriam uma semente germinada exclusivamente em campo fértil para tal. Para os crentes tudo seria possível. O que não se explica, se bota na conta de Deus. Deus ex machina e tudo se resolve, a anticiência pode então livre dar os ares de sua graça, pode imperar soberba e manter-se em ocupações da mente crente dos homens menos dados a questionamentos e rebeldias justificadas. Mas não seria uma articulação sobrenatural o que influenciaria factualmente no sucesso ou fracasso da provável carreira política de João Pedro. Não isto.
Tomou-lhe um bocado de tempo e de energia. Para quem acredita que nada é em vão, valeria. Valeria a pena, ter planejado tudo, uma meta ambiciosa, atestar e expor todos os dados com total transparência,
em
páginas
eletrônicas
de
acesso
livre
e
democrático, a planilha aberta exposta de seu mandato, os gastos com assessores, com combustível, ligações telefônicas, nada escaparia do fiel escrutínio. De fato seria algo inovador, os outros políticos de carreira não eram exatamente acostumados a tal comportamento, em geral valia e sempre valeu a regra tácita e camuflada de que o melhor e mais prudente seria não tocar em complicação das grandes. Fugir tanto quanto possível do tema espinhoso e traiçoeiro, por tentadoras que eram as alternativas apresentadas, gratamente oferecidas, com requintes de luxo e de ostentação. Difícil evitar as tentações: atendimento especial privilegiado em aeroportos, ser chamado de vossa excelência, de ilustríssimo, doutor seria dos menores e menos pontuados dentre os respeitosos adjetivos e pronomes de tratamento. Verba parlamentar à plena disposição, possibilidade de contratação
formal
de
até
treze
assessores
em
cargos
comissionados, não concursados, muita coisa, gente para lotar um escritório. Impossível ao mandatário do cargo público alegar que não conseguiria cumprir as suas obrigações parlamentares por falta de auxílio especializado. Critérios vagos e um tanto subjetivos para a contratação não concursada, historicamente eram cargos comissionados de gente de confiança do mandatário, o seu círculo íntimo de amizades e de parentescos. Previu que compraria briga grande e faria desafetos, os colegas parlamentares que não
concordavam com tal transparência e inovação, mas que não o admitiam publicamente. Um
pensamento
inovador,
agenda
progressista
não
conservadora, as metas de governo, orçamento participativo, aquilo com o qual poderia contar como verbas de investimento em emendas parlamentares. Tudo bem detalhado, transparente, para ampla consulta e julgamento da população diretamente beneficiada. Haveria de blefar em quesitos religiosos e comportamentais, via-se encurralado e seria ato contraproducente se não lançasse mão de pequeno blefe, mas em geral sua proposta era relativamente simples: fazer um teste, experimentação, arriscar alto, constatar até quando poderia se manter no cargo eletivo se postura diferenciada adotasse, o máximo de honestidade possível, em medida de tanto o que pudesse vir a suportar. Aposta de alto risco, se não conseguisse reeleição ou sequer finalizar o prazo do mandato, mesmo assim haveria de divulgar um balanço detalhado em minúcias, toda a verba investida, todos os contratos com terceiros sob futura licitação, bem como as explicações e justificativas a respeito de eventual comportamento repreensível de algum de seus candidatos a assessores de confiança diversos. De súbito as trevas caíram. Não foi fenômeno isolado, sem causa e histórico pregresso, sem condição preestabelecida bem formada e solidificada como base e alicerce. De súbito a cena política partidária almejada por João Pedro foi abalada por acontecimento fortuito, um atentado explícito a candidato presidencial descuidado, que gerou comoção e o humanizou devido ao cruento sofrimento. Bastou. Foi eleito para governo federal, o chefe do Poder Executivo de um país inteiro, a Nação, em parte
capitaneado por todo um conjunto de forças sociais irresistíveis, a bancada no Congresso de fundamentalistas religiosos, muita gente, a bancada de parlamentares mais permissíveis às ações policiais e se segurança pública de extrema contundência. E, principalmente, o contingente de políticos e de população insatisfeita e em clara oposição a tudo e todos que remetessem ao recente passado governamental de determinados partidos políticos dissidentes. Uma guinada de rumos, mudança brusca que com o passar do tempo ligeira se mostrou nem tão brusca. Elementos pregressos havia, muita gente a pensar e a atuar tal qual pensava e atuava o recente presidente eleito, quarenta por cento dos eleitores totais, um contingente de dezenas de milhões. Impossível não reconhecer o desejo voluntário de dezenas de milhões de cidadãos brasileiros. Caíram as trevas, ou, em verdade a luz se fez. O fiat lux criacionista do Antigo Testamento, parte dele compartilhado por outras crenças monoteístas. O fundamentalismo religioso grassando em terreno fértil pré-adubado e devidamente preparado com cuidado e esmero, o pensamento conservador antiprogressista judaico-cristão sobretudo. Pobre e malsucedido Jesus Cristo, aparentemente não avançou de forma satisfatória em sua tarefa admitida de lavar com água limpa o sangue do Antigo Testamento, a lei de talião, “olho por olho, dente por dente”. Benito Mussolini se reviraria satisfeito em solo de ossos pulverizados do inferno, mas talvez pudesse estar ele em verdade no céu paradisíaco do Criador, se assim lido com rigor o Antigo Testamento. Nunca terminará. Os homens em permanente conflito, embate e oposição. De súbito o
pavimento estabelecido para o projeto progressista inovador de João Pedro Datsi se mostrou bem pouco favorável.