Paul Zumthor - A Letra e a Voz, literatura medieval

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PAUL ZUMTHOR

A LETRA E A VOZ A “literatura” medieval Tradução: A M Á L IO P IN H EIR O (Parte i) JERUSA PIRES FERREIRA (Parte II)

1° reimpressão

aP §F *_ C o m p a n h ia D a s L e t r a s

Copyright © 1987 by É ditions du Seuil Copyright de “A letra e a voz de Paul Zum thor” © 1993 by Jerusa Pires Ferreira Titulo original: L a lettre e t la voix D e la “ littéra tu re” m édiévale Capa: E ttore B o ttin i sobre detalhe de A leija d o s, lou cos e m en d ig o s (c. 1560), gravura em metal de Pieter Brueghel Preparação: M ário Vilela Revisão: Touché! E d ito ria l A n a M aria B arbosa

Obra publicada com o ap oio do M inistério da Cultura do governo francês D ados Internacionais de C atalogação n a Publicação (C1P) (C âm ara Brasileira d o Livro, SP, Brasil)

Zum thor, Paul, 1915A letra e a voz : A “ literatura” medieval / Paul Zum ­ th o r ; trad u ção A m álio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. — São P aulo : C om panhia das Letras, 1993. O bra publicada com o apoio do M inistério da C ultura do governo francês. B ibliografia. ISBN 85-7164-340-7

1. L iteratura medieval - H istó ria e crítica 2. Tradição oral - Europa i. Título, n . T ítulo: A literatura medieval. 93-2621

CDD-809.8940902

índices p ara catálogo sistemático: 1. Literatura medieval : H istó ria e crítica 809.8940902

2001 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Pauüsta, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone: (11) 3846-0801 Fax: (11) 3846-0814 www.companhiadasletras.com.br

ÍNDICE

P refácio ...............................................................................................

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IN T R O D U Ç Ã O 1. Perspectivas O mal-entendido. A s múltiplas oralidades. Deslocamentos ne­ cessários. M arcos espaciotemporais.............................................. 15 I. O C O N TE X TO 2. O espaço oral Os índices de oralidade. Dizer e escutar. A n te s da escrita. A rede das tradições.........................................................................

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3. Os intérpretes Jograis, recitadores, leitores. Um papel social. A festa. O de­ safio...................................................................................................... 55 4. A palavra fundadora A voz da Igreja. Os Doutores. Os Príncipes. Convergências fu n ­ cionais. O nomadismo da voz......................................................... 75 5. A escritura Formas e técnicas. Os escribas. Maneiras de ler. A voz na es­ crita...................................................................................................... 96 6. Unidade e diversidade “E ru d ito ” e “popular”. A inscrição do vulgar. A escritura e a imagem. A preocupação da voz.................................................. 117

II. A O BRA 7. M em ória e comunidade M em ória e laço social. Intervocalidade e movência. Os relés cos­ tumeiros. O p oder vocal. .............................................................. 139 8. Dicção e harm onias Formas e níveis de formalização. Os ritmos. Prosa ou verso?.... 159 9. O texto vocalizado Um jo g o vocal. A palavra e o canto. Composição numérica. E feito s textuais. O “fo rm u lism o ”....................... .......................... 181 10. A ambigüidade retórica R itm o e convenção. A glosa integrada. Uma sintaxe oral? Dis­ curso direto............................................................................................ 201 11. A performance O texto em situação: os “papéis”. O ouvinte cúmplice. Provas circunstanciais. O “teatro ”............................................................... 219 12. A obra plena A voz e o corpo. D o gesto poético à dança. O espaço e o tem ­ po. Uma teatralidade generalizada.............................................. 240

C O N C LU SÃ O 13. E a “ literatura” ? O caso do romance. A ilusão literária.........................................265 Posfácio: A letra e a voz de Paul Z um thor — Jerusa Pires Ferreira ............................................................................................ 287 Nolas .................................................................................................. 297 Docum entação ................................................................................. 307

No curso dos anos 50 de nosso século, vários medievalistas desco­ briram a existência da poesia oral. Isso deu um pouco de que falar, pro­ vocando até tempestades no copo de água dos professores. Ninguém, certamente, jam ais pusera em dúvida o papel dos trovadores, menestréis, Minnesànger e outros artistas do verbo na difusão da “ literatura” medieval. Esta, aos olhos da m aioria dos germanistas, destinara-se, em seu conjunto, à transmissão da boca ao ouvido; aos romanistas, espe­ cialmente os franceses, repugnava tal generalização; mas, de qualquer modo, ninguém tirava desse fato conclusões a respeito dos textos que nos foram preservados. Assim, toda um a ordem de traços relativos à poeticidade da linguagem medieval era menos negada, era simplesmen­ te desconhecida. É a existência dessa ordem o que, no rastro dos etnógrafos, atravessada por um feliz acaso, constataram , com entusiasmo ou timidez, alguns de nossos pioneiros. Na mesma época (em 1933), o grande Menéndez Pidal, tão poeta quanto erudito, publicava os dois gros­ sos volumes de seu Romancero hispânico, traçando a história oral de um gênero poético testemunhado desde o século xiv. As estratégias constitutivas da poesia apareciam assim irredutíveis aos modelos que eram considerados até então os únicos válidos e, como por natureza, intemporais; pensava-se que as condições de seu exercício não tinham medida comum com as retóricas da escritura. Um dos primeiros, Werner Krauss, reconheceu isso... justam ente a propósito do Romancero da guerra civil espanhola. Num recuo de mais de trinta anos, podemos espantar-nos com o escândalo que provocou, entre alguns, a emergência dessas novas pla­ gas no horizonte de seus estudos. Mais valia negar a evidência, e essa ameaça que só a curto prazo se tinha razão de temer não arruina a esta­ bilidade de um a filologia assentada sobre séculos de certezas. Entretan-

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(o, a curiosidade e a honestidade intelectuais (talvez incitadas pelo as­ sombro), ou então o gosto saboroso do risco, levaram outros a trilhar o território desconhecido. Tomava-se posse desse novo continente; ou melhor: já que lembranças muito antigas despertavam para essa aven­ tura, recuperava-se o direito sobre um universo perdido. Essa região — nossa velha poesia oral —, da qual se desenhavam pouco a pouco as paisagens, havia sido durante longo período renegada, ocultada, recal­ cada em nosso inconsciente cultural. Era um pouco dessa história o que, por volta de 1960, nos contava M arshall M cLuhan. Doze ou quinze ge­ rações de intelectuais form ados à européia, escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que elas secretam, haviam perdido a facul­ dade de dissociar da idéia de poesia a de escritura. O “ resto”, margina­ lizado, caía em descrédito: carim bado “ pop u lar” em oposição a “ eru­ dito” , “ letrado” ; tirado (fazem-no ainda hoje em dia) de um desses termos compostos que mal dissimulam um julgam ento de valor, “ in­ fra” , “ paraliteratura” ou seus equivalentes em outras línguas. Mesmo em 1960-5, ao menos na França, prejudicava gravemente o prestígio de um texto do (suponhamos) século xii a possibilidade de provar-se que seu modo de existência havia sido principalm ente oral. De tal texto ad­ mirado, tido por “ obra-prim a”, um preconceito m uito forte impedia a m aioria dos leitores eruditos de adm itir que tivesse podido não haver sido nunca escrito e, na intenção do autor, não haver sido oferecido so­ mente à leitura. O termo literatura marcava como um a fronteira o limite do admis­ sível. Um a terra de ninguém isolava aquilo que, sob o nome folclore, se deixava às outras disciplinas. No início de nosso século, a “ literatu­ ra’ ’ adotava assim, em escala m undial, de m aneira exclusiva, os fatos e os textos homólogos aos que produzia a prática dom inante da Europa ocidental: estes os únicos concernentes à consciência crítica, tendo-selhes creditado caracteres que, segundo a opinião unânime, provinham de sua competência. Em alguma medida, o conjunto de pressupostos que administravam essa atitude de espírito originava-se do centralismo político que, havia longo tempo, fora instaurado pela m aioria dos Esta­ dos europeus. Estava de acordo com as tendências mistificadoras, até alegorizantes, que aí presidiam à elaboração das “ histórias nacionais” : cxaIlação do herói que personificasse o superego coletivo; a confecção ilc um Livro de Imagens no qual fundar um sentido que justificasse o lalo presente: as palavras de Joana d ’Arc, a cruzada de Barba-roxa ou a logueira de Jan Huss... A Segunda Guerra M undial não deixou de pó imiilus dessas estátuas, nem abrigou essas garantias. No espaço de lu-in poucos anos, um poderoso retorno do reprimido abalava, com a

história, as outras ciências hum anas e, em sua trilha, os estudos ditos literários. Foi então que, pela janela entreaberta, o termo oralidade enirou como um ladrão no vocabulário dos medievalistas. O termo, mas em proveito de que idéia? Em seu uso mais comum, exclusivamente, com função negativamente classificatória, que remetia à ausência de escritura. O problema central, nessa ótica, se reduzia a uma exclusão ou a um a dosagem: sim, não; ou sim e não. A difusão tardia do belo livro de H. J. Chaytor, From script to p rin t (cuja primei­ ra edição data de 1945), em seguida aos trabalhos (anteriores a 1935!) de Milmam Parry sobre a epopéia iugoslava, deu consistência a essas questões: dispunha-se então, parecia, de procedimentos que permitiam semantizar, sobre o plano da form a poética, cada um dos termos em pauta. Pesquisas antropológicas como as de Walter Ong, após McLulian, permaneciam, em compensação, ignoradas pela grande maioria dos medievalistas e, antes do fim dos anos 70, não tiveram efeito sobre os seus trabalhos. Tais são as bases sobre as quais trabalham os e discutimos (durante os mesmos anos em que se desenvolvia m inha carreira de professor). Pois eis que hoje um a ilusão começa a se dissipar, ao mesmo tempo em que um a dúvida se insinua: a “ oralidade” é um a abstração; somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas. Essa simples verdade da experiência levou tempo a penetrar entre nós. De fato: teste­ munhas, livros e ensaios diversos, já bastante numerosos, apareceram desde o início dos anos 80. Médicos, psicanalistas, etnólogos, músicos c poetas: remeto à bibliografia de minha Introduction à la poésie orale. ( )s medievalistas, espero, não tardarão a acom panhar — ao preço, sem dúvida, de um a dupla conversão metodológica. Eles só o conseguirão, de fato, se admitirem considerar, pelo menos num primeiro momento, a poesia medieval como objeto de antropologia e como locus dramaticus privilegiado no qual “ captar”, em sua mais plena significância, as tensões que colocam em questão nossa idéia do homem; romper radi­ calmente com a terminologia e os conceitos que nos inspirou e que man­ teve, como resultado de nossa natural inércia, a experiência da escritura com o risco de retornar, sob outra luz, para além dessa purificação.

M inha intenção não é chover no m olhado provando a existência ile uma oralidade medieval, mas valorizar o fato de que a voz foi então um fator constitutivo de toda obra que, por força de nosso uso corren­ te, foi denom inada “ literária” . Pretendo menos afirm ar a importância da oralidade na transmissão, na produção mesma, dessas obras do que 9

tentar julgar e medir o que essa oralidade implica; menos avaliar o vo­ lume de um “ setor oral” no conjunto dos textos conservados do que neles integrar os valores próprios de m inha percepção e de m inha leitu­ ra. Esse desejo me leva, no trajeto, a tornar a dizer certas coisas já ditas (e às vezes m uito bem!); assim, acho útil continuar e ligar em feixes os fios das diversas reflexões, análogas se não convergentes, cuja acum u­ lação m anifesta a homogeneidade. Sem dúvida, não é prematuro, em 1985, esboçar tal síntese e assumir abertam ente o alegre risco do em­ preendimento. Catorze anos depois do térm ino de meu Essai de poétique médiévale, ofereço um quadro que, para meus propósitos, a abran­ ge e a situa. Um leitor que retome hoje o Essai aí descobre sem dificuldade os pontos de am arração desse livro: várias vezes, nele assi­ nalava o aspecto “ teatral” de toda a poesia medieval, mas não ia nada além dessa declaração, cujas conseqüências ficavam implícitas. A letra e a voz tenta definir essa teatralidade, noção abrangente e não contradi­ tória com as que usava o Essai. Este tratava de textos. Meu ponto de vista aqui é o da obra inteira, concretizada pelas circunstâncias de sua transm issão pela presença simultânea, num tem po e num lugar dados, dos participantes dessa ação. A obra contém e realiza o texto; ela não o suprime em nada porque, desde que tenha poesia, tem, de um a m a­ neira qualquer, textualidade. Ademais, apesar da cronologia, a obra publicada em 1987 desfruta de m aior autonom ia, em com paração àquela de 1972. Ela se dirige, por essa mesma razão, a um público m aior do que antes: além do círculo dos medievalistas especializados no estudo dos textos, a todos os medievalistas; além da com unidade de medievalistas, aos apreciadores de textos. As muitas revisões que tive de operar (livres de toda iconoclastia) poderiam referir-se a todos. Por isso, desejoso de facilitar a leitura aos não-historiadores, forneci aqui e acolá informações que os medie­ valistas titulados acharão provavelmente supérfluas; que eles as risquem e passem. Traduzi todos os textos citados em francês antigo ou em lín­ gua estrangeira; salvo indicação contrária, essas traduções são minhas. Os exemplos que trago (várias vezes complexos), aqueles que, mais ra­ ramente, discuto, são quase sempre pontuais e form am um a série des­ contínua; esse pontilhism o é o resultado de um a escolha — a única que, pareceu-me, poderia, com um pouquinho de sorte, permitir-me juntar a rapidez da escritura aos encadeamentos da argumentação. Este livro foi escrito entre 1982 e 1985. Forneço, no fim do volume, sob o título “ Docum entação” , um a lista de estudos nos quais, no todo ou em parte, por um ou outro motivo, me baseei. As notas de rodapé só dão as referências particulares. O exame desse material cessou no fim 10

de 1985. A diversidade dos pressupostos e dos métodos representados por tais estudos exige que seja dado sumariamente ao leitor um eixo de referência cronológico. Toda vez que faço referência a essas pesqui­ sas, emprego, de m odo sistemático, as palavras recentemente para os anos 1980-5, anteriormente para os anos 1970-80 e antigamente para tudo o que os precedeu. De outro lado, remeto conjuntamente à m inha Iníroduction à la poésie orale, na qual tentei elaborar os princípios de uma poética da voz. Originalmente, era meu propósito que aquela obra fos­ se o capítulo introdutivo desta. Desejo que meu leitor não as dissocie* Montréal, dezembro de 1985

(*) Um primeiro esboço deste livro forneceu, em fevereiro-março de 1983, a matéria pura quatro aulas no Collège de France; o texto foi publicado em 1984 pelas Presses Univcrsilaires de France, sob o título La Poésie et Ia Voix dans la cm lisation médiévale.

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