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RENÉ MENARD
VOLUME III
Titulo do original francês LA MYTHOLOGIE DANS L'ART ANCIEN ET MODERNE EDITOR
PIETRO MACERA
DIREÇÃO EDITORIAL TRADUÇÃO REVISÃO FINAL MONTAGEM E ARTE FINAL EQUIPE DE ARTE SALVATORE MACERA NETO EQUIPE DE REDAÇÃO
Nossos agradecimentos pelo constante incentivo que recebemos de: MARGHERITA STEFANELLI MACERA
IN MEMORIAM
R. MARIO STEFANELLI
SALVATORE MACERA
CHRISTINA MACERA
NICOLA STEFANELLI
ANGELINO MACERA
GIOVANNI GRILO
EMILIA GIOVANNA A. MACERA
JOSÉ LASTORINA
MARIANA MACERA
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou utilizada de qualquer forma ou por qualquer método, eletrônico ou mecânico, sem autorização prévia por escrito dos Editores.
1ª Edição 1985 2 ª Edição 1991 Impresso no Brasil Printed in Brazil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ménard, René, 1827-1887. Mitologia greco-romana / Rene Menard ; tradução Aldo Della Nina. — São Paulo : Opus, 1991. Obra em 3 v. 1. Mitologia grega 2. Mitologia romana I. Título.
91-1334
CDD-292
Índices para catálogo sistemático: 1. Mitologia greco-romana 292
CAPITULO VI
CUPIDO
Nascimento de Cupido. — Educação de Cupido. — Tipo e atributos de Cupido. — Esaco. — Pico e Circe. — O cabelo de Niso.
Nascimento de Cupido
Cupido nos tempos primitivos é considerado um dos grandes princípios do universo e até o mais antigo dos deuses. Representa a força poderosa que faz com que todos os seres sejam atraídos uns pelos outros, e pela qual nascem e se perpetuam todas as raças. Mitologicamente, não sabemos quem é seu pai, mas os poetas e escultores concordam em lhe dar Vênus por mãe, e é realmente naturalíssimo que Cupido seja filho da beleza.
O nascimento de Cupido proporcionou a Lesueur o tema de uma encantadora composição. Vênus sentada nas nuvens está rodeada das três Graças, uma das quais lhe apresenta o gracioso menino. Uma das Horas, que paira no céu, esparze flores sobre o grupo (fig. 372).
Educação de Cupido
Notando Vênus que Eros (Cupido) não crescia e permanecia sempre menino, perguntou o motivo a Têmis. A resposta foi que o menino cresceria quando tivesse um companheiro que o amasse. Vênus deu-lhe, então, por amigo Anteros (o amor partilhado). Quando estão juntos, Cupido cresce, mas volta a ser menino quando Anteros o deixa. É uma alegoria cujo sentido é que o afeto necessita de ser correspondido para desenvolver-se. A educação de Cupido por Vênus proporcionou assunto para uma multidão de maravilhosas composições em pedras gravadas. Vênus brinca com ele de mil modos diversos, pegando-lhe o arco ou as setas e seguindo-lhe com o olhar os graciosos movimentos (fig. 376). Mas o malicioso menino vingase, e várias vezes a mãe experimenta o efeito das suas flechadas. Cupido era freqüentemente considerado um civilizador que soube mitigar a rudeza dos costumes primitivos. A arte apoderou-se dessa idéia, apresentando-nos os animais ferozes submetidos ao irresistível poder do filho de Vênus. Nas pedras gravadas antigas vemos Cupido montado num leão a quem enfeitiça com os seus acordes; outras vezes atrela animais ferozes ao seu carro, após domesticá-los, ou então quebra os atributos dos deuses, porque o universo lhe está submetido (figs. 374 e 375). Não obstante o seu poder, jamais ousou atacar Minerva e sempre respeitou as Musas.
Cupido é o espanto dos homens e dos deuses. Júpiter, prevendo os males que ele causaria, quis obrigar Vênus a desfazer-se dele. Para o furtar à cólera do senhor dos deuses, viu-se Vênus obrigada a ocultá-lo nos bosques.
Fig. 372 — Nascimento de Cupido (segundo um quadro de Lesueur).
onde ele sugou o leite de animais ferozes. Também os poetas falam sem cessar da crueldade de Cupido: "Formosa Vênus, filha do mar e do rei do Olimpo, que
ressentimento tens contra nós? Por que deste a vida a tal flagelo, Cupido, o deus feroz, impiedoso, cujo espírito corresponde tão pouco aos encantos que o embelezam? Por que recebeu asas e o poder de lançar setas, a fim de que não pudéssemos safar-nos dos seus terríveis golpes?" (Bíon).
Fig. 373 — Vênus e Cupido.
Um epigrama de Mosco mostra a que ponto conhecia Cupido o seu poder, até contra Júpiter. "Tendo deposto o arco e o archote, Cupido, de cabelos encaracolados, pegou um aguilhão de boieiro e suspendeu ao pescoço o alforje de semeador; depois, atrelou ao jugo uma parelha de bois vigorosos e nos sulcos atirou o trigo de Ceres. Olhando, então para o céu, disse ao próprio Júpiter: "Fecunda estes campos, ou então, touro da Europa, eu te atrelarei a este arado." (Antologia).
Fig. 374 — A força de Cupido (segundo uma pedra gravada antiga).
Fig. 375 —Cupido triunfante [segundo uma pedra gravada antiga Cupido pode ser considerado aqui por amor ao vinho, em virtude dos seus atributos báquicos.
Luciano, nos seus diálogos dos deuses, assim formula as queixas de Júpiter a Cupido: "Cupido. — Sim, se cometi um erro, perdoa-me, Júpiter. Sou ainda menino e não atingi a idade da razão. Júpiter. — Tu, Cupido, um menino?! Mas se és mais velho que Japeto. Por não teres barba nem cabelos
Fig. 376 — Vênus e Cupido (segundo uma pedra gravada antiga).
brancos, julgas-te ainda menino? Não. És velho e velho maldoso. Cupido. — E que mal te fez, pois, este velho, como dizes, para que penses em encadeá-lo? Júpiter. — Vê, pequenino malandro, se não é grande mal insultar-me a ponto de fazeres com que eu me revestisse da forma de sátiro, touro, cisne e águia. Não fizeste com que mulher alguma se apaixonasse de mim próprio,
e não sei absolutamente que, pelo teu sortilégio, eu tenha conseguido agradar a uma que fosse. Pelo contrário, devo recorrer a metamorfoses e ocultar-me. É verdade que amam o touro ou o cisne, mas se me vissem morreriam de medo." (Luciano). Cupido inspirou encantadores trechos a Anacreonte: "No meio da noite, na hora em que todos os mortais dormem, Cupido chega e, batendo à minha porta, faz estremecer o ferrolho: "Quem bate assim? exclamei. Quem vem interromper-me os sonhos cheios de encanto? — Abre, responde-me Cupido, não temas, sou pequenino. Estou molhado pela chuva, a lua desapareceu e eu me perdi dentro da noite." Ouvindo tais palavras apiedei-me; acendo a lâmpada, abro e vejo um menino alado, armado de arco e aljava; levo-o ao pé da lareira, aqueçolhe os dedinhos entre as minhas mãos, e enxugo-lhe os cabelos encharcados de água. Mal se reanima: "Vamos, diz-me, experimentemos o arco. Vejamos se a umidade o não estragou." Estica-o, então, e vara-me o coração, como faria uma abelha; depois, salta, rindo com malícia: "Meu hóspede, diz, rejubila-te. O meu arco está funcionando perfeitamente bem, mas o teu coração está agora enfermo." (Anacreonte). "Um dia, Cupido, não percebendo uma abelha adormecida nas rosas, foi por ela picado. Ferido no dedinho da mão, soluça, corre, voa para o lado de sua mãe: "Estou perdido, morro! Uma serpentezinha alada me picou. Os lavradores dizem que é uma abelha." Vênus responde-lhe: "Se o aguilhão de uma simples abelha te faz chorar, meu filho, reflete como devem sofrer aqueles a quem tu atinges com as setas!" (Anacreonte).
Tipo e atributos de Cupido
Na arte Cupido apresenta dois tipos distintos, pois uma das vezes o vemos como adolescente, outras sob o
aspecto de gracioso menino. Mas o primeiro de tais tipos é o mais antigo. Uma pedra gravada nos mostra Cupido de estilo antigo, representado por um éfebo alado e disparando uma seta (fig. 377). O arco, as setas e as asas são sempre os atributos de Cupido.
Fig. 377 — Cupido de antigo estilo (segundo uma pedra gravada)
O tipo de Cupido adolescente está fixado perfeitamente num tronco do museu. Pio-Clementino (fig. 378). Os membros, infelizmente, faltam. Os ombros apresentam vestígios de orifícios abertos para acolherem o pé das asas. A cabeça, de delicada beleza, está coberta de cabelos encaracolados. Foi Praxíteles, contemporâneo de Alexandre, que fixou na arte o tipo de Cupido. Sabe-se que o grande escultor era freqüentador assíduo da famosa cortesã Frinéia. Esta, ao lhe pedir um dia que ele lhe cedesse a mais bela das suas estátuas, teve o prazer de ser ouvida. Mas Praxíteles não lhe explicou qual delas seria. Frinéia, então, mandou que um escravo fosse à casa do escultor, e dali a pouco o escravo voltou dizendo que um incêndio destruíra a casa de Praxíteles e com ela a maior
parte dos seus trabalhos; no entanto, acrescentou, que nem tudo desaparecera, Praxíteles precipitou-se imediatamente para a porta, gritando que estaria perdido todo o fruto dos seus longos esforços, se o incêndio lhe não tivesse poupado o Cupido e o Sátiro. Frinéia tranqüilizou-o assegurando-lhe que nada estava queimado e que, graças ao ardil, ficara sabendo dele próprio o que de melhor havia em escultura. Escolheu, assim, o Cupido. Mas não era para guardá-la que a cortesã pedira a obra-prima ao grande escultor, pois, na Grécia, os costumes licenciosos não impediam sentimentos elevados. Frinéia doou a estátua à cidade de Téspies, sua pátria, que Alexandre
Fig. 378 — Cupido adolescente (segundo um busto antigo).
acabara de devastar. A escultura foi consagrada num antigo templo de Cupido, e foi graças a esse Destino religioso que se tornou espécie de compensação para uma cidade destruída pela guerra. "Téspies já não é mais nada, diz Cícero, mas conserva o Cupido de Praxíteles, e não há viajante que não vá visitá-la para conhecer tão esplêndida obra-prima." Esse Cupido era de mármore, as asas eram douradas, e ele empunhava o arco. Calígula mandou que o transportassem para Roma; Cláudio devolveu-o aos habitantes de Téspies, Nero roubou-o de novo.
A célebre estátua foi, então, colocada em Roma sob os pórticos de Otávio, onde pouco depois a destruiu um incêndio. O escultor Lisipo também fizera uma estátua de Cupido para os habitantes de Téspies, colocada ao lado da obra-prima de Praxíteles. A famosa estátua conhecida pelo nome de Cupido empunhando o arco passa por ser cópia de uma dessas duas obras (fig. 379). Via-se também no templo de Vênus em Atenas um famosíssimo quadro de Zêuxis, representando Cupido coroado de rosas.
Fig. 379 — Cupido entesando o arco (segundo uma estátua ant i ga).
Até a conquista romana, quase sempre fora Cupido representado como adolescente de formas esbeltas e elegantes. A partir de tal época, surge mais freqüentemente sob o aspecto de menino. A arte dos últimos séculos representou muitas vezes Cupido. No quarto de banho da cardeal Bibbiena, no Vaticano. Rafael fixou Cupido triunfante, fazendo puxar o carro por borboletas, cisnes, etc. Numa multidão de encantadoras composições mostra-o doidejando ao lado de sua mãe ou então abandonando-a, após havê-la picado. Parmeggianino fez com Cupido e o seu, arco uma graciosa figura que, por longo tempo foi atribuída a Correggio. Correggio e Ticiano, por sua vez, fixaram Cupido em todas as suas formas, mas nenhum pintor o representou tantas vezes quantas Rubens. Os cupidos frescos e bochechudos do grande mestre flamengo podem ser vistos em todas as galerias, brigando, brincando. voando, correndo, colhendo frutos, etc. Na Escola francesa, le Poussin representou muitas vezes Cupido, mas le Sueur pintou a história completa nos salões do palácio Lambert, e o austero pintor de São Bruno soube evidenciar, sem jamais deixar de ser casto, uma graça encantadora nesses temas mitológicos. Vemos, desde os primórdios do século dezoito, a importância desmedida que Cupido terá nas produções artísticas da época. Coypel pintara, nos salões do cardeal Dubois, um forro representando o Grupo celestial desarmado pelos cupidos. Notase ali, diz o biógrafo do pintor, um desses pequeninos deuses que se eleva, rindo, na águia de Júpiter; mas quem ousa tentar apoderar-se do raio, queima-se, arrepende-se e foge. Outro, mais obstinado, nota com despeito que todas as suas setas se partem contra a égide de Minerva, e tenta inutilmente novos esforços. O Tempo detém pela asa o temerário que acaba de lhe roubar o relógio e a foice, Vê-se a balaustrada que encima a cornija desabar sob os passos do impiedoso destruidor. O resto da composição apresenta aos olhos a simpática e nobre brincadeira que tanto apraz ao espírito e da qual somente o espírito pode ser inventor. Cupido fazendo o seu arco, de Bouchardon, atualmente no museu do Louvre (fig. 381), encontrava-se, outrora numa ilha no meio do lago do Trianon. A formosa
estátua, fortemente desdenhada no começo deste século, conforma-se bastante ao espírito do século dezoito. Cupido, vencedor dos deuses e dos homens, apoderou-se, sem nenhum trabalho, da maça de Hércules, e enquanto se
Fig. 380 — Cupido (segundo uma estátua antiga).
ocupa em dela fazer um arco, inclina a cabeça com um movimento de faceirice algo afetado, mas cheio de graça. Na mesma época, Boucher cobria os seus entrepanos de cupidozinhos rechonchudos, cheios de encanto, mas que só
possuem longínqua relação com o tipo fixado por Praxíteles e Lisipo. Citemos uma Mercadora de cupidos, imitação de antiga pintura famosa, que reproduzimos (fig. 383) ; a escola imperial representou freqüentemente Cupido. Mas entre os artistas dos últimos séculos, nenhum o representou tantas vezes como Prudhon.
Fig. 381 — Cupido fazendo o seu arco (por Bouchardon, museu do Louvre).
Embora tais composições pequem, uma vez que outra, por um pouco de afetação, são quase sempre encantadoras. A maioria foi popularizada pela gravura ou pela litografia. Aqui, vemos Cupido de pé, asas abertas, passar os braços em volta do pescoço da Inocência sentada num cabeço. Mais longe, a Inocência seduzida por Cupido é arrastada pelo Prazer e seguida pelo Arrependimento. Outras vezes, o autor representa Cupido preso por um elo de ferro ao pedestal de um busto de Minerva e pisando com o pequenino pé, mas em troca, outras é Cupido triunfante que se vinga da mulher insensata a qual julgou encadeá-lo para sempre.
Cupido fere muitas vezes sem ver, e dá origem a sentimentos que nem o mérito, nem a beleza explicam suficientemente. Foi o que Correggio pretendeu exprimir ao representar Vênus prendendo uma venda sobre os olhos do filho. Ticiano pintou o mesmo tema que se vê reproduzido com freqüência na arte dos últimos séculos.
Fig. 382 — Cupido num hipocampo (segundo uma pedra gravada antiga).
Esaco
Cupido produz naqueles aos quais fere efeitos surpreendentes, que na Lenda se traduzem sempre por metamorfoses. Assim, o mergulhão é uma ave que voa sempre acima das águas e nela mergulha freqüentemente. Noutros tempos, tratava-se do filho de um rei, que tinha
aversão à corte do pai e evitava participar das festas que ali se realizavam, preferindo ir aos bosques, por ter a esperança de encontrar a ninfa Hespéria a quem amava ternamente. Entretanto Esaco, assim se chamava ele, não era correspondido. Um dia, estando a ninfa a fugir-lhe à perseguição amorosa, foi picada por uma serpente venenosa e morreu. Esaco, desesperado por lhe ter causado a morte, atirou-se ao mar do alto de um rochedo. Mas Tétis, comovida, sustentou-o na queda, cobriu-o de penas, antes que ele caísse na água e impediu-o, assim, de morrer, por maior que fosse o seu desejo de não sobreviver à querida Hespéria. Indignado contra a mão favorável que o protege, queixa-se da crueldade do Destino que o força a viver. Eleva-se no ar, depois se precipita com impetuosidade na água; mas as penas o sustêm e reduzem o esforço que ele faz para morrer. Furioso, mergulha a todo instante no mar, e procura a morte que o evita. O amor tornou-o magro, tem coxas longas e descarnadas e um pescoço muito comprido. Ama as águas, e é pelo fato de nelas mergulhar constantemente que se chama mergulhão. (Ovídio).
Pico e Circe
Pico, filho de Saturno e rei da Itália, era um jovem príncipe de maravilhosa beleza. Todas as ninfas o admiravam quando o viam, mas a feiticeira Circe não se contentou com admirá-lo, e quis que ele a desposasse. No entanto, só colheu desdém. pois ele amava perdidamente Canenta, filha de Jano. Um dia, tendo ido caçar javalis, encontrou Circe, que lhe confessou abertamente a sua paixão. Vendo-se desdenhada, a feiticeira proferiu as terríveis palavras de que se serve para fazer empalidecer a lua ou obscurecer o sol. Pico, aterrorizado com as fórmulas mágicas, começou a fugir; mas imediatamente
notou que estava correndo muito mais velozmente do que de hábito, ou antes que estava voando, visto que fora metamorfoseado em ave. Na sua cólera, pôs-se a dar fortes bicadas nas árvores; as penas tinham conservado a cor das vestes usadas por ele naquele dia, e o broche de ouro que as prendia ficou assinalado no seu pescoço por uma mancha amarelada, brilhante. Canenta chorou tanto que o seu formoso corpo terminou por se evaporar nos ares. e dela nada mais restou,
O cubelo de Niso
De todas as metamorfoses operadas por Cupido, não há nenhuma que seja tão surpreendente como a de que foi vítima Cila, filha do rei Niso. O rei de Creta, Minos, após devastar as costas de Megara, iniciara o cerco da cidade, cujo Destino dependia de um cabelo de ouro que Niso, rei do país trazia entre os cabelos brancos. O sítio já durava havia seis meses sem que a sorte se declarasse nem por um partido, nem por outro. Em Megara havia uma torre cujas muralhas produziam um som harmonioso desde que Apolo ali deixara a sua lira. A filha do rei, Cila, subia freqüentemente, em tempo de paz, a essa torre, para ter o prazer de produzir nas muralhas alguns sons atirando-lhes pequeninas pedras. Durante o cerco, também visitava o mesmo lugar para de lá ver os ataques e os combates feridos em torno da cidade Como fizesse bastante tempo que os inimigos se achavam acampados em torno, ela conhecia os principais oficiais, as suas armas, os seus cavalos e a sua maneira de combater. Nota sobretudo o chefe, Minos, com particular atenção e mais do que o necessário para a sua tranqüilidade, tanto que a paixão atingiu tal ponto que ela resolveu sacrificar o país à glória do estrangeiro a quem amava.
Uma noite, enquanto a cidade inteira estava imersa no sono, penetrou no aposento do pai e cortou-lhe o cabelo fatal. Munida do precioso objeto, a infeliz Cila, a quem o crime dava nova ousadia, saiu da cidade, atravessou o campo inimigo, chegou à tenda de Minos a quem confiou o cabelo do qual dependia a salvação da cidade. Minos sentiu aversão por tão desnaturada filha, e recusou-se a
Fig. 383 — Mercadora de cupidos (segundo uma pintura antiga).
vê-la. O cabelo estava cortado, a cidade caiu entre as mãos dos inimigos, mas Minos partiu imediatamente depois, proibindo o embarque de Cila nos seus navios. Foi em vão que ela alcançou, banhada em lágrimas, a praia, cabelos desalinhados, braços estendidos para o homem que a repelia. Viu partir o navio, e, no seu desespero, atirou-se ao mar para seguir a nado o ente amado. Mas notou seu pai, Niso, que, metamorfoseado em gavião, a perseguia, e começava a cair sobre ela para a dilacerar a bicadas. Assim, em vez de nadar, Cila começa também
a voar sobre a superfície da água, pois estava, por sua vez transformada em calhandra. Desde então a ave de rapina, que ela tão indignamente traíra. não cessa de lhe fazer cruel guerra. (Ovídio).
Fig. 384
—
Arco e aljava de Cupido com a borboleta de Psique.
CAPÍTULO VII
PSIQUE
Beleza de Psique. — Ciúme de Vênus. — O oráculo de Apolo. — Psique raptada por Zéfiro. — O palácio de Psique. — As irmãs de Psique. — A gota de azeite. — Cólera de Vênus. — As núpcias de Psique. — A alma humana.
Beleza de Psique
Tinha um rei três filhas belíssimas. Mas, por mais encantadoras que fossem as duas mais velhas, era possível encontrar na linguagem humana elogios proporcionados ao seu mérito, ao passo que a menor era de perfeição tão rara, tão maravilhosa, que não havia termos que a exprimissem. Os habitantes do país, os forasteiros, enfim todos acorriam, atraídos pela reputação de semelhante prodígio; e depois de contemplarem tal beleza de que nada se aproximava, ficavam confusos de admiração, e,
prosternando-se, a adoravam com religioso respeito, como se se tratasse da própria Vênus. Em breve, espalhou-se a nova de que era a própria Vênus que vinha habitar a terra sob a aparência de simples mortal, e o prestígio da verdadeira deusa ficou abalado. Ninguém mais ia a Cnido, ninguém mais ia a Pafos, ninguém mais navegava para a risonha ilha de Cítara. Os antigos templos de Vênus estavam vazios, as cerimônias negligenciadas, os sacrifícios suspensos, e os seus altares solitários só apresentavam uma cinza fria no lugar do fogo onde antes ardiam incensos. Mas quando Psique passava, o povo, apinhado, tomando-a por Vênus, lhe apresentava grinaldas, atirava-lhe flores, dirigia-lhe votos e preces. De todas as partes do mundo vinham peregrinos oferecer-lhe vitimas. Essa homenagem à beleza, tão de acordo com o espírito antigo, constitui o tema de uma composição de Rafael (fig. 385).
Fig. 385
—
O povo ajoelhado perante Psique (segundo uma composição de Rafael)
Ciúme de Vênus
Vênus, que do alto do céu via tudo, não pôde refrear a indignação. "Como? dizia ela. Eu, Vênus, a primeira alma da natureza, origem e germe de todos os elementos, eu que fecundo o universo inteiro, devo partilhar com uma simples mortal as honras devidas à minha posição suprema ! Deverá o meu nome, que é consagrado no céu, ser profanado na terra, terei eu de ver os meus altares descuidados por uma criatura destinada a morrer? Ah, a que assim usurpa os meus direitos vai arrepender-se da sua insolente beleza!" Imediatamente chama o filho, o menino de asas, tão audaz, o qual, na sua perversidade, desafia a moral pública, arma-se de archotes e setas, cometendo com impunidade as maiores desordens e jamais fazendo o menor bem. Excita-o com as suas palavras, e diante dele dá vazão a todo o seu enorme despeito. "Meu filho, em nome da ternura que te une a mim, vinga tua mãe ultrajada; mas vinga-a plenamente. Só te peço uma coisa: faze que a jovem se inflame da mais violenta paixão pelo último dos homens, por um infeliz condenado pela sorte a não ter nem posição social, nem patrimônio, nem segurança de vida; enfim, por um ser de tal modo ignóbil que no mundo inteiro não se encontre outro igual !" Assim falando, beijava o filhinho amado.
O oráculo de Apolo
Vênus, por sua vez, extravasava a sua cólera, cujos efeitos já se faziam sentir, porque, enquanto as duas irmãs de Psique desposavam reis, a infeliz jovem, culpada
de excesso de beleza, encontra por toda parte adoradores, mas não marido, e seu pai, desconfiando de que uma divindade qualquer obstaculasse o homem da filha, vai consultar o mácula de Apolo que lhe ordena expor a filha num rochedo para um himeneu de morte. Seu marido não será um mortal: traz asas como as aves de rapina cuja crueldade ele possui e escraviza os homens e os próprios deuses. Sempre é necessário obedecer, quando um deus fala. Após vários dias consagrados ao pranto e à tristeza, prepara-se a pompa do fúnebre himeneu. O archote nupcial é representado por archotes cor de fuligem e cinza. Os cantos jubilosos de himeneu se transformam em uivos lúgubres, e a jovem noiva enxuga as lágrimas com o próprio véu de casamento.
Psique raptada por Zéfiro
Uma vez terminado o cerimonial de morte, conduziram a infeliz Psique ao rochedo em que deveria aguardar o esposo. Era uma montanha alcantilada. Quando ali chegou, apagaram-se os archotes nupciais que haviam iluminado a festa fúnebre do triste himeneu, e cada um voltou para casa. Os pais de Psique, encerrados no palácio, recusaram-se a sair, condenando-se às trevas eternas. Tremendo de espanto, Psique afogava-se nas lágrimas no pico da montanha, quando de súbito o delicado sopro do Zéfiro, agitando amorosamente os ares, faz ondular dos dois lados a veste que a protegia, cujas dobras se enchem insensivelmente. Soerguida sem violência, Psique reconhece que um sopro tranqüilo a transporta suavemente. O rapto de Psique pelos Zéfiros é uma das mais arrebatadoras composições de Prudhon (fig. 386). Mais leves que as nuvens, os graciosos meninos alados se elevam docemente no ar e arrebatam Psique sem lhe
perturbarem o sono tranqüilo. Daí a pouco Psique desliza por um declive insensível até um profundo vale situado abaixo dela, e vê-se sentada no meio de uma relva coalhada de flores.
Fig. 386 — Rapto de Psique (segundo Prudhon).
Deposta sobre espessa e tenra relva que formava um fresco tapete de verdura, ela olha em volta de si e percebe uma fonte transparente como cristal, no meio de árvores altas e copadas. Perto das margens, ergue-se uma morada real não construída por mãos mortais senão mediante arte
que só pode ser divina. Os muros estão recobertos de baixosrelevos de prata e os soalhos são de mosaico de pedras preciosas cortadas em mil pedacinhos e combinadas em variadas pinturas.
O palácio de Psique
Convidada pelo encanto de tão lindo lugar, Psique cria ânimo a ponto de ultrapassar o limiar, e, cedendo à atração de tão grande número de maravilhas, lança cá e lá olhares de admiração. Mas o que ao mesmo tempo a impressiona é a solidão absoluta em que se encontra. Uma voz saída de um corpo invisível lhe fere, subitamente, os ouvidos: "Por que, soberana minha, vos admirais de tão grande opulência? Tudo quanto vedes é vosso. Entrai nestes aposentos, aguarda-vos um banho, para refazerdes as forças, e o banquete real que vos é destinado não se fará esperar. Nós, cuja voz estais ouvindo, estamos às vossas ordens, e executaremos atentamente as vossas ordens." Psique viu realmente um repasto magnificamente preparado. Sentou-se, então, à mesa, e diante dela se sucediam os vinhos mais deliciosos, as iguarias mais incomuns, mas aparentemente trazidas por um sopro, pois não distinguia nenhum ser humano. Um delicioso concerto a alegrou, mas os cantores eram invisíveis. Admirada, e ao mesmo tempo, assustada, pensando no esposo que aguardava, cedeu, no entanto, à fadiga e adormeceu sem que ninguém lhe perturbasse o repouso. Quando desperta, ouve as mesmas vozes misteriosas que na véspera, e recebe os mesmos cuidados de seres que não consegue distinguir. Vários dias transcorrem sem que lhe seja dado ver alma viva. Se o esposo invisível a visitou foi com certeza quando estava adormecida, pois ela nada
enxergou, e o amo do palácio em que está lhe é tão desconhecido como os criados que a servem. Psique recebendo o primeiro beijo de Cupido inspirou a Gérard um belíssimo quadro que se encontra no Louvre (fig. 388). A borboleta, símbolo da alma, esvoaça sobre
Fig. 387 — Cupido e Psique (segundo um monumento antigo, no museu Capitolino).
a cabeça da jovem sentada num cabeço de relva; o seu aspecto ingênuo e algo espantado se explica pela presença de Cupido que, invisível para ela, lhe dá um beijo na testa. No entanto, o esposo existia, pois embora ela o não visse, lhe ouvia a doce voz a preveni-la de um perigo que
correria. "Psique, minha doce amiga, dizia a voz, minha companheira adorada, a sorte cruel te ameaça de um terrível perigo; tuas irmãs, já turbadas com a idéia da tua morte, procuram-te, e não tardarão em chegar a este
Fig. 388 — Cupido e Psique (segundo o quadro de Gerard, museu do Louvre).
rochedo. Não te comovas com os seus falsos queixumes, e não cedas aos perniciosos conselhos que elas te derem para levar-te a me ver. E acrescentou que a sacrílega
curiosidade os separaria para sempre e a mergulharia num abismo de males. Psique agradeceu ao marido os conselhos Aliás, o tom daquela voz era tão penetrante que se sentia atraída a ele por urna força desconhecida. Assim, prometeu-lhe que obedeceria.
As irmãs de Psique
Entretanto, Psique, lembrando-se do oráculo de Apolo, tremia de espanto. pensando que, apesar da voz tão doce, fosse o esposo sem dúvida um horrível monstro, visto que o temiam homens e deuses. Estando a devanear, ouviu de súbito, ao longe, vozes de mulheres, de mistura com gemidos e SOJUCCS, e, pouco depois, escutando, reconheceu-as pelas de suas irmãs que a choravam. Comoveu-se, apesar de tudo, e, desejando tranqüilizar a família, pediu mentalmente ao invisível marido permissão para dispor de Zéfiro. As duas irmãs foram então arrebatadas como o fora Psique e transportadas para o palácio. Após os primeiros abraços e beijos, Psique, com insistência de criança. mostrou-lhes os magníficos móveis, os deliciosos jardins, os terraços de onde se descortinavam horizontes sem fim. Tantas maravilhas só lograram aumentar o ciúme nutrido pelas duas irmãs havia tempo, e elas a cobriram de perguntas embaraçadoras sobre o esposo que tanta riqueza lhe proporcionava. A pobre Psique, que ainda o não vira, não pôde satisfazer-lhes a indiscreta curiosidade. Todos os dias elas lhe pintavam o marido como horrível dragão repulsivo. A infeliz não resistiu.
A gota de azeite
Chegada a noite, espera que todos estejam dormindo na casa. Acende, então, a sua lâmpada, aproxima-se do leito e reconhece o filho de Vênus, perto de quem estão o arco, a aljava e as setas. Psique pega uma e fere levemente um dos dedos, inoculando, assim, em si própria e em elevada dose amor ao próprio Cupido. Mas enquanto contempla com arrebatamento o deus que lhe é esposo, cai sobre o ombro de Cupido uma gota de azeite. A partir de então, já Psique não tem mais esposo, pois Cupido desaparece, deixando-a no seu palácio solitário. A formosa cena foi freqüentemente representada na arte dos últimos séculos, e Picot, de quem todos se riam tanto há alguns anos, compôs maravilhoso quadro (fig. 389).
Fig. 389 — Cupido abandonando Psique (segundo um quadro de Picot).
Psique, desesperada, corre à doida pelos campos e se precipita a um rio de águas revoltas. Mas o rio não a quer, e as ondas a devolvem sã e salva à margem. O deus Pã, que lá se encontrava, lhe revela as impiedosas ordens que Cupido recebera de Vênus.
Fig. 390 — Psique (segundo uma estátua antiga).
As irmãs de Psique, desejosas de saber se o conselho fora seguido, vão ao rochedo do qual Zéfiro as arrebatara.
Quando o vento começa a soprar, julgam que é o mensageiro que vai conduzi-las ao pé da irmã e, entregando-se-lhe sem desconfiança, tombam ao pé do rochedo onde foram encontradas no dia seguinte, mortas. Zéfiro, com efeito, não pôde receber ordens de Cupido, pois Cupido está doente, e, vigiado no leito, ouve as censuras de sua mãe ultrajada: "Que lindo pai de família não serieis! dizia-lhe Vênus. E eu, por minha vez, não tenho idade e dignidade para que me chamem de vovó?
Cólera de Vênus
Vênus manda procurar Psique por toda a terra, e, na sua cólera cheia de ciúme, pergunta a si própria que suplício lhe deve infligir. Não contente de mandar que a vergastem, quer impor-lhe trabalhos superiores às suas forças, e ordena-lhe que vá aos infernos pedir a Prosérpina uma caixa de beleza de que necessita para o seu atavio. Psique parte, certa de que nunca mais voltará; mas no caminho encontra uma velha torre que sabe falar e lhe ensina como deve proceder, recomendando-lhe bem, quando estiver de posse da caixa, que não ceda à tentação de uma curiosidade que já lhe foi funesta uma vez. Esclarecida pela torre, Psique atravessa o rio das mortes na barca de Caronte, faz calar Cérbero atirando-lhe um bóio com mel e chega à presença de Prosérpina que lhe entrega a caixa de beleza exigida por Vênus. Quando volta à terra, Psique, sozinha, e de posse da caixa cujo conteúdo conhece, começa a refletir. Por que não há de servir à própria Psique essa beleza que o seu odioso tirano a mandou procurar no meio de mil perigos? E se roubasse uma partezinha, quem sabe se não conseguiria reconquistar o marido desaparecido? Após muita hesitação, a caixa cede finalmente ao esforço por ela feito, mas em vez da beleza o que sai é um vapor sonífero e Psique,
desmaiada, tomba com a face voltada para o chão. Perto dela, todavia, está um amigo, o próprio Cupido, que, vigiado de perto no palácio de sua mãe, conseguiu, não
Fig. 391 — Cupido reanimando Psique (por Thorwaldsen).
Fig. 392 — Psique pensativa.
obstante, escapar pela janela. Desperta Psique com a ponta de uma das suas setas e pede-lhe que vá à casa de sua mãe, que ele se incumbirá do resto.
As núpcias de Psique
Cupido voa ao pé do trono de Júpiter que, enternecido pelas suas lágrimas, dá a imortalidade a Psique e convida todos os deuses para o banquete de núpcias. Um baixo-relevo antigo do museu Britânico mostra Cupido e Psique deitados no leito nupcial (fig. 393) : Cupido dá de beber à esposa a quem abraça. Um cupidozinho lhes traz uma pomba, símbolo do afeto mútuo, e outro, colocado perto da mesa em que se realizou o banquete, brinca com uma lebre, símbolo da fecundidade.
Fig. 393 — Núpcias de Cupido e Psique (segundo um baixo-relevo antigo do museu Britânico).
O banquete nupcial de Cupido e Psique foi representado por Rafael de maneira muito mais suntuosa. Vemos as Graças vertendo perfumes sobre Psique, colocada ao lado de Cupido, e as Horas espalham flores sobre os convidados. Psique, admitida ao seio dos imortais, torna-se inseparável do marido. O sentido da alegoria é fácil de compreender. Psique é o símbolo da alma: uma indiscreta curiosidade a impeliu e ela sofreu espantosas torturas. Mas, purificada por uma série de provas de que saiu vitoriosa, encontra a felicidade com a imortalidade. Conhecemos poucos monumentos antigos que fixem os pormenores da história de Apuléio. Mas o encantador grupo de Cupido
e Psique, no museu Capitolino, apresenta sob a sua forma plástica a união da alma e do corpo (fig. 387). O famoso grupo de Canova, no Louvre, nos apresenta o mesmo tema, concebido de maneira totalmente diversa. O hábil escultor italiano, apesar de um pouco de afetação. conseguiu imprimir um caráter verdadeiramente etéreo às suas duas figuras de mármore (fig. 394). "A ficção
Fig. 394 — Cupido e Psique (segundo um grupo de Canova, museu do Louvre).
do Amor e de Psique, diz Creuzer, reúne em maravilhosa aliança o gênio da forma, que lisonjeia os sentidos, e o do fundo que mergulha a alma num devaneio sem fim. Eros, segurando uma borboleta suspensa acima de um archote é encarado poeticamente um perfeito emblema
dos tormentos do amor, encarado no sentido dos mistérios, esse emblema contém a idéia profunda e salutar das manchas da matéria e dos sofrimentos da alma purificada pelo fogo do impuro contacto." A lenda de Cupido e Psique, tal qual a narramos, segundo Apuléio, parece ter sido quase estranha aos artistas da antiguidade, os quais, no entanto, longe estão de lhe haverem desconhecido o espírito. Um incrível número de pedras gravadas representa Psique nas suas relações com Cupido, e fixa as dores e as alegrias daí resultantes. Aqui, vemos Cupido queimando num archote
Fig. 395 — Cupido e Psique (segundo um vidro antigo).
a borboleta, símbolo da alma humana, e voltando a cabeça, em pranto, para não ver o mal que faz (fig. 399). Ali, são as alegrias e as esperanças do himeneu que o artista nos apresenta. As cenas de casamento são freqüentemente representadas pela união de Psique e Cupido. Assim, vemos numa pedra gravada antiga dois esposos sob o aspecto de Cupido e Psique, com a cabeça coberta por um véu e segurando pombas, símbolos do amor conjugal. Um cupidozinho, segurando a cadeia que liga os esposos, condulos para o leito nupcial, e outro,
colocado atrás deles, segura-lhes sobre a cabeça um cesto de frutos, emblema de fecundidade (fig. 395). Tais camafeus eram dados como presentes de núpcias. A borboleta (1) era para os antigos a forma visível da alma humana, e é por isso que as asas de borboletas constituíam o atributo de Psique. Os camafeus no-la mostram freqüentemente sentada e sonhadora (fig. :392). É a alma de um vivo que pensa na imortalidade, ou a alma de um morto que já a conquistou?
Fig. 396 — Cupido e Psique (segundo uma pedra gravada antiga)
Às vezes a crueldade de Cupido aparece sob luz mais brutal. As dores que ele causa, as torturas que inflige à alma, são personificadas por uma alma que ele segura __________________________ (1) Psique, em grego, significa alma e borboleta.
pelos cabelos, e que já não lhe pode escapar (fig. 397). Não necessita mais do arco, porque o ferimento está feito, mas conserva o archote para queimar a vítima.
Fig. 397 — Cupido amarrando Psique (segundo uma pedra gravada antiga).
A alma humana
Segundo as crenças admitidas pelos filósofos, e que, de acordo com alguns escritores, teriam sido objeto de ensino especial nos mistérios, as almas existem anteriormente ao nascimento terreno, e são atraídas para a vida
pela volúpia, ou se assim quisermos, por Vênus. Giram em torno da terra, como as borboletas em torno da luz, e, quando chegam bem perto, não podem mais afastar-se e são condenadas à vida, cuja imagem sedutora vêem num espelho místico, tão freqüentemente representado nas urnas fúnebres. Sofrem a tentação de beber na taça da vida, na taça de Baco, e, mal tocam com os lábios o licor sagrado, se encarnam num corpo. "A união das almas com os corpos mortais, diz Creuzer, se deve a várias causas : diversos motivos as impelem para as esferas inferiores. Algumas ali descem, porque ainda não tinham
Fig. 398 — Mercúrio prende às costas de Psique as asas de Cupido agrilhoado (segundo uma pedra gravada antiga).
descido e são necessárias à manutenção da economia do mundo. São as almas novas ou noviças. Outras voltam aos corpos para expiarem culpas anteriores Outras, enfim, cedem voluntariamente à sua inclinação pela terra. Tal inclinação provém de haverem elas contemplado o espelho, o mesmo espelho em que se vira Dionísio, antes de criar as existências individuais. Mal vêem a própria imagem, um desejo violento se apodera de todas elas, e o que almejam é descer e viver individualmente. As almas, na sua sede de existência individual, abandonam a morada celestial e partem em busca de novos destinos.
Uma vez que tenham bebido na taça de Liber-Pater, embriagadas, apaixonadas pela matéria, perdem pouco a pouco a recordação da origem. E é tal esquecimento que as impele a unir-se aos corpos. As melhores dentre elas, temendo o nascimento, evitam a fatal beberagem cuja sedução as conduziria à terra. Até entre as que não sabem resistir, há uma diferença. As mais nobres bebem comedidamente, prendem-se fortemente ao Gênio tutelar que lhes é destinado para acompanhá-las na Terra, têm os olhos fitos nele e obedecem-lhe à voz. Outras, porém, não são assim. Bebem a largos sorvos, e este mundo, que não passa de tenebrosa caverna, lhes parece belo. Acabam, pois, de esquecer-se, fascinadas pelos atrativos, pelas delícias da gruta de Dionísio, símbolo do mundo sensível e das suas voluptuosidades." (Creuzer). "0 que chamamos vida, diz Cícero, é uma verdadeira morte. A nossa alma só começa a viver quando, livre dos entraves do corpo, participa da eternidade e, de fato, as antigas tradições nos ensinam que a morte foi concedida pelos deuses imortais, como recompensa aos que eles amavam." (Cícero). "Os que choramos não nos foram tirados para sempre, e não estão perdidos para nós; estão apenas distantes da nossa vista e do nosso contacto por determinado tempo. Assim, quando nós também chegarmos ao termo que a natureza nos prescreveu, voltaremos a privar com eles." (Cícero).
Fig. 399 — Cupido queimando num archote a borboleta.
LIVRO VI
MERCÚRIO E VESTA
CAPÍTULO I
MERCÚRIO
Tipo e atributos de Mercúrio. — Mercúrio, inventor da lira. — Mercúrio, deus dos ladrões. — Mercúrio, deus do comércio. — Mercúrio, deus dos ginásios. — Mercúrio pedagogo. — Mercúrio crióforo. — Mercúrio, guarda das estradas. — Mercúrio, deus da eloqüência. — Mercúrio, mensageiro dos deuses. — Mercúrio, condutor das almas. — Queixas de Mercúrio.
Tipo e atributos de Mercúrio
A mudança, a transição, a passagem de um estado a outro foram personificados em Mercúrio. (Hermes). Mensageiro celeste, leva aos deuses as preces dos homens e aos homens os benefícios dos deuses; condutor das sombras, é a transição entre a vida e a morte; deus da eloqüência e dos tratados, faz passar ao espírito dos
outros o pensamento de um orador ou de um legado. É o deus dos ginásios, porque na luta há troca de forças; é o deus do comércio e dos ladrões, porque um objeto vendido ou roubado passa de uma mão a outra. Nos monumentos de estilo arcaico, e principalmente nos vasos. Mercúrio surge como homem na plenitude da idade, com barba espessa e pontiaguda, longos cabelos encaracolados, um chapéu de viagem, asas talares e na mão o caduceu que freqüentemente se assemelha a um cetro. Mercúrio barbudo aparece também. algumas vezes, em belíssimas pedras gravadas de época posterior, mas que são imitações evidentes de um tipo mais antigo.
Fig. 400 — Mercúrio barbudo (segundo uma pedra gravada antiga).
Na grande época da arte, esse deus se revestiu de caráter muitíssimo diferente. Mercúrio torna-se, então, um efebo, macio e ágil, sempre imberbe, de cabelos curtos e apresentando o tipo perfeito dos jovens que freqüentam os ginásios. O seu rosto nunca tem a majestosidade de Júpiter, nem a altivez de Apolo, mas freqüentemente o cunho de uma grande finura, de acordo cem o seu papel na Lenda, em que personifica sempre a astúcia e a habilidade.
Fig. 401 — Mercúrio (segundo uma estátua antiga).
O pétaso alado e o caduceu são os atributos de Mercúrio. O pétaso é um chapéu tessaliano que em Mercúrio só tem de particular as asas; quando o deus está de cabeça descoberta, como na figura 404, as asas estão simplesmente plantadas nos cabelos, à guisa de pontas. O caduceu é uma vareta entrelaçada de serpentes e por vezes acompanhada de duas pequeninas asas; tem uma origem mitológica. Mercúrio, vendo duas serpentes que se batiam, separou-as com a sua vareta, em torno da qual elas se entrelaçam. Às vezes, deparam-se-nos asas nos pés de Mercúrio (fig. 400), mas nunca nas costas.
Fig. 402 — Mercúrio associado a Vênus (numa medalha de Septímio Severo).
Dá-se ainda a Mercúrio outra série de atributos em relação com as suas diferentes funções. Como divindade pastoral, acompanhado uma ou outra vez de um carneiro ou uma cabra; como inventor da lira, coloca-se-lhe ao lado uma tartaruga. É um galo que o caracteriza como
deus do ginásio, e a bolsa que segura com a mão revela o deus da mudança. Todos esses atributos se encontram reunidos numa bela pedra gravada antiga (fig. 410). A bolsa aparece, sobretudo, nas figuras da época romana, em que o caráter comerciante do deus acaba por preponderar sobre os demais.
Fig. 403 — Hermafrodita (segundo uma estátua antiga).
Mercúrio nasceu da união de Júpiter e de Maia, filha do Titã Atlas. Divindade arcádia, é numa gruta do monte Cilene que vê o dia pela primeira vez, e é por isso que alguns lhe dão o nome de deus de Cilene. Poucas divindades aparecem tão freqüentemente como Mercúrio na mitologia; o seu papel é importantíssimo, e em numeresos casos é, como os nossos criados de comédia, o personagem que tudo faz, embora sempre dependente. Além das cenas da Lenda, das quais participa diretamente, Mercúrio surge em alguns monumentos ao lado de outras divindades, às quais se liga simbolicamente. Uma moeda de Marco Aurélio apresenta-o ao lado de Minerva, em virtude da relação existente entre o deus do
Fig. 404 — Mercúrio (segundo uma estátua antiga, museu do Louvre).
comércio e a deusa da indústria. As relações com Vênus são ainda mais diretas, pois da união de ambos é que nasce Hermafrodita (Hermes-Aphrodite). Plutarco explica tal união dizendo que a eloqüência e o encanto da linguagem devem associar-se ao atrativo da beleza.
Mercúrio, inventor da lira
Mercúrio inventou a lira no mesmo dia em que nasceu. "Mal saiu do seio materno, não ficou envolto nos sagrados cueiros; pelo contrário, imediatamente ultrapassou o limiar do antro sombrio. Encontrou uma tartaruga e dela se apoderou. Estava ela na entrada da gruta, arrastando-se devagar e comendo as flores do campo. Ao vê-la o filho de Júpiter alegrase; pega-a com ambas as mãos, e volta para a sua morada, com o interessante amigo. Esvazia a escama com o cinzel de brilhante aço e arranca a vida à tartaruga. Em seguida, corta alguns caniços, na medida certa, e com eles fura o costado da tartaruga de escama de pedra ; em volta estende com habilidade uma pele de boi, adapta um cabo, no qual, nos dois lados, mergulha cavilhas; em seguida, acrescenta sete cordas harmoniosas de tripa de ovelha. "Terminado o trabalho, ergue o delicioso instrumento, bate-o com cadência empregando o arco, e a sua mão produz retumbante som. Então o deus canta improvisando harmoniosos versos, e assim como os jovens nos festins se entregam à alegria, ele também conta as entrevistas entre Júpiter e a formosa Maia, sua mãe, celebra o seu nascimento ilustre, canta as companheiras da ninfa, as suas ricas moradas, os tripés e os suntuosos tanques que se encontram na gruta." (Hino homérico). A tartaruga é o atributo de Mercúrio pois é com a escama de uma tartaruga que ele fez o primeiro modelo da lira. Nos monumentos que o representam, vemos
muitas vezes uma tartaruga sob o pé do deus (fig. 405), ou uma lira: o jovem deus, com fisionomia cheia de malícia, acaba de ajustar dois chifres de carneiro numa carapuça de tartaruga, e, tocando pela primeira vez as cordas estendidas, ouve com surpresa os sons que lhe encantam os ouvidos arrebatados.
Fig. 405 — Mercúrio inventor da lira (segundo unia estátua antiga).
Fig. 406 — Mercúrio sentado (segundo um bronze do museu de Nápoles).
Mercúrio, deus dos ladrões
Desde a mais tenra infância mostrou Mercúrio as qualidades que dele iriam fazer o deus dos ladrões. No mesmo dia em que nasceu, roubou o tridente de Netuno, as setas de Cupido, a espada de Marte, a cintura de Vênus, etc. Foi para fechar tão belo dia que foi roubar os bois guardados por Apolo, e para que ninguém lhe seguisse as pegadas, resolveu fazê-los caminhar de costas. Levou-os assim até Pilos, onde imolou dois aos deuses do Olimpo, e ocultou os demais numa caverna. Mercúrio desconfiou que o pastor Bato, o qual guarda em tal lugar os rebanhos do rico Neleu, divulgaria o seu roubo, se fosse interrogado, e sobretudo se disso lhe adviesse alguma vantagem ; assim, aproximando-se-lhe, pôs-se a acariciá-lo, e disse-lhe pegando-o pela mão : "Meu amigo, se por acaso alguém vier pedir-te novas deste rebanho, dize que o não viste; como recompensa, dou-te esta bela novilha. — Podes estar certo, retrucou Bato, recebendo-a; esta pedra que vês será mais capaz de trair-te o segredo do que eu." Mercúrio fingiu, então, afastarse, e voltando um instante depois sob outro aspecto: "Bom homem, disse-lhe, se viste passar por aqui um rebanho, peço-te que me ajudes a procurá-lo; não favoreças com o teu silêncio o roubo que sofri; dar-te-ei uma vaca e um touro." O ancião, vendo que lhe ofereciam o dobro do que recebera : "Penso, respondeu, que o teu rebanho deve estar nas cercanias desta montanha; sim, deve estar, se me não engano." Mercúrio, rindo-se de tais palavras, disse-lhe: "Ah, tu me trais, não é verdade? Pérfido, enganas-me!" Assim dizendo, metamorfoseou-o na pedra que se chama de toque, a qual serve para reconhecer-se se o ouro é de boa liga ou se é falso. (Ovídio). Quando sobreveio o dia, Mercúrio voltou às alturas de Cilene. Ali, curva-se e esgueira-se para dentro da morada, entrando pela fechadura. Caminha com passo furtivo no reduto sagrado da gruta, penetra sem ruído como faz habitualmente na Terra, e assim chega até o seu leito, onde se cobre com fraldas, como qualquer
criancinha e fica deitado, com uma das mãos brincando com a faixa, e com a outra empunhando a melodiosa lira. Mas o deus não pudera ocultar a fuga a sua mãe, que lhe dirigiu a palavra nestes termos: "Pequenino astuto, menino cheio de audácia, de onde vens durante a treva da noite? Temo que o poderoso filho de Latona te cubra os membros de pesados laços, te arranque a esta morada, ou te surpreenda nos vales, ocupado em temerários roubos." Mercúrio respondeu-lhe com palavras cheias de astúcia: "Mamãe, por que pretendes assustar-me como se eu fora uma criança débil que mal conhece uma fraude e treme ouvindo a voz de sua mãe? Quero continuar a exercer esta arte que me parece a melhor para a tua glória e a minha". (Hino homérico). Apolo não conseguira informações sobre os bois; mas notando um pássaro que cruza o céu, com as asas abertas, reconhece imediatamente, na sua qualidade de profeta e áugure, que o ladrão é o filho .de Júpiter. Atira-se com rapidez aos picos de Cilene, e penetra na gruta, onde Maia deu à luz Mercúrio. O menino, vendo Apolo irritado pelo roubo das reses, amontoa-se numa bola e envolve-se nas fraldas. O filho de Latona, após procurar por toda parte, dirige estas palavras a Mercúrio : "Menino, que repousas neste berço, dize-me imediatamente onde estão as minhas reses; se o não fizeres, erguer-se-ão entre nós funestos debates ; agarrar-te-ei e precipitar-te-ei no sombrio Tártaro, no seio das sombras funestas e horríveis. Nem teu pai, nem tua mãe venerável poderão devolver-te à luz, e tu viverás eternamente sob a Terra." Mercúrio responde-lhe com astúcia : Filho de Latona, por que falas de maneira tão impressionante comigo? Por que vens procurar aqui as tuas reses? Eu nunca as vi, e delas nunca ouvi falar; não me é possível indicar-lhe o ladrão; por conseguinte, não receberia a recompensa prometida a quem fizer com que o descubras. Não tenho a força de homem capaz de roubar rebanhos. Não é esse o meu trabalho, porquanto outros cuidados me reclamam: preciso do suave sono, do leite de minha mãe, destas fraldas que me cobrem, e dos banhos mornos. Trata de evitar, pelo contrário, que se saiba desta divergência: seria um escândalo para todos
os imortais saberem que um menino recém-nascido transpôs o limiar de tua morada com reses não domesticadas. O que dizes são palavras de insensato. Nasci ontem, as pedras houveram dilacerado a pele delicada dos meus pés; mas se exiges pronunciarei um juramento terrível: jurarei pela cabeça de meu pai que não conheço o ladrão das tuas reses." (Hino homérico).
Fig. 407 — Mercúrio, deus dos ladrões (segundo uma estátua antiga do museu Pio-Clementino).
Entretanto, Apolo não se deu por vencido, e pegando o garoto ao colo, o levou a Júpiter, a quem pediu os bois que o filho lhe roubara. Mercúrio começou por negar descaradamente o roubo; mas Júpiter, que tudo sabe, ordenou-lhe que devolvesse o que pegara indevidamente, e o menino conduziu Apolo para a gruta em que ocultara os animais. Enquanto Apolo os contava, Mercúrio começou a tocar lira, instrumento que ele acabara de inventar, e Apolo ficou de tal modo encantado que quis comprarlho. Mercúrio, na sua qualidade de deus do comércio, valeu-se da ocasião para um bom negócio, e pediu em troca os bois. Apolo, imediatamente, tentou tocar lira, mas enquanto lidava para arrancar os acordes, Mercúrio descobriu o meio de inventar o cálamo. Apolo desejou também o novo instrumento, que Mercúrio lhe vendeu em troca
do caduceu, vareta mágica, entrelaçada de serpentes e que lhe serviu mais tarde para adormecer Argos. O descaramento com o qual Mercúrio soube mentir no mesmo dia em que nascera, e a inteligência com a qual defendeu uma péssima causa, lhe garantiram o patronato dos advogados.
Fig. 408 — Busto e atributos de Mercúrio.
Um epigrama da Antologia zomba do deus dos ladrões: "Posso tocar numa couve, deus de Cilene? — Não, transeunte. — Que vergonha há nisso? — Não há vergonha, mas existe uma lei que proíbe apoderar-se do bem alheio. — Que coisa estranha! Mercúrio estabeleceu uma lei contra o roubo!"
Mercúrio, deus do comércio
Desde o nascimento possuíra Mercúrio o gênio da permuta, e é por isso que é o deus do comércio. A arte o caracteriza, então, pela bolsa segura pela mão. O emblema é o mesmo que o que se atribui ao deus dos ladrões; mas em vez de aparecer sob as feições de um menino que acaba de fazer uma peraltice, apresenta a grave fisionomia de homem que refletiu e pesa o valor dos atos.
Fig. 409 — Medalhas arcádias e romanas, com o galo, atributo de Mercúrio.
Considerado como deus do comércio e da permuta, Mercúrio segura habitualmente uma bolsa: traz o mesmo atributo quando é deus dos ladrões, mas neste caso está representado com as feições de menino que sorri maliciosamente, por alusão às aventuras que lhe assinalaram a mais tenra infância. Uma estátua do museu Pio-Clementino assim o representa, segurando uma bolsa com uma
das mãos, e aplicando com significativo sorriso um dedo sobre os lábios, como que recomendando silêncio (fig. 407). Temos no Louvre duas estátuas de análogo caráter; numa delas, o menino usa uma camisa curta, na outra um pequenino manto guarnecido de capuz.
Fig. 410 — Mercúrio (segundo uma pedra gravada antiga).
Mercúrio, deus dos ginásios
Mercúrio preside aos exercícios. Mas sob tal aspecto, a arte lhe modifica o caráter; não traz mais o capacete e as asas, e se apresenta inteiramente nu sob o aspecto de vigoroso efebo, que ocupa o lugar médio entre o caráter delgado de um Apolo e o caráter robusto de um Hércules. Numa soberba estátua do museu Pio-Clementino, que fora erradamente denominada Antinoo, Mercúrio está apoiado
â um tronco de palmeira, e traz a clâmide enrolada em volta do braço esquerdo (fig. 411). Os atributos de Mercúrio como deus dos ginásios são a palmeira e o galo. O galo é, por excelência, a ave de luta, e os combates de galos eram um grande divertimento para os gregos. Não é de surpreender, portanto, que tenha sido escolhido para simbolizar a luta e os exercícios que a ela se ligam.
Fig. 411 — Mercúrio, deus dos ginásios (segundo uma estátua antiga do museu Pio-Clementino).
As imagens de Mercúrio figuravam sempre nos ginásios. "Aqui se colocou, para proteger este belo ginásio, o deus que reina no monte Cilene e nas suas elevadas florestas, Mercúrio, a quem os jovens gostam de oferecer amarantos, jacintos e violetas perfumadas." (Antologia). Essas imagens do deus eram às vezes uma simples cabeça pousada numa mísula. O deus ri-se, ele também, de tal uso, num epigrama da Antologia: "Chamam-me Hermes, o veloz. Ah, não me coloqueis nos ginásios, privado de pés e de mãos ! Sobre uma base, sem mãos e sem pés, como poderei ser veloz na corrida ou hábil na luta?"
Mercúrio pedagogo
As letras servem para a transmissão das idéias. Como deus da permuta e da tradição, Mercúrio é, pois, inventor das letras: ensinando aos homens a transformação das suas idéias em caracteres que as exprimem, esse deus tornou-se naturalmente protetor dos ginásios. Invocam-no os mestres que ensinam aos meninos os elementos da ciência; invocamno também os escrivães públicos e todos os que se dedicam a escrever. Os instrumentos de que nos servimos para a escrita, para a geometria, fazem parte das suas atribuições, e os que ganham a vida, deles se valendo, os dedicam ao deus quando são demasiado velhos. É o que se vê num pequenino trecho da Antologia grega, onde um velho mestre de escola se coloca sob a proteção do deus a quem serviu. "Um disco de chumbo negro para traçar linhas, uma régua que assegura a constância de direção, vasos de liquido negro para escrever, penas bem aparadas, a dura pedra que aguça o caniço e lhe devolve a finura, o ferro que o modela com a sua ponta e a sua lâmina, todos esses instrumentos do seu ofício, Menedemotos consagra, ó Mercúrio, pois que a idade lhe toldou os olhos. E tu, deus prestativo, não deixes morrer de fome o teu obreiro."
Fig. 412 — Mercúrio-menino no seu carro (segundo um baixo-relevo antigo),
Mercúrio crióforo
A Arcádia, um dos principais centros da velha raça pelásgica, sonharia em Mercúrio, ou antes em Hermes, uma personificação da potência protetora da natureza e especialmente da terra. Era figurado na origem por um pedaço de madeira encimado por uma cabeça, e ali se fixava um símbolo grosseiro, que entre os povos pastores exprime simplesmente a força geratriz. Esse caráter pastoral desaparece, de resto, rapidamente, para passar ao deus Pã, que em várias tradições é filho de Mercúrio. Mas o carneiro, que lhe é consagrado, e que vemos às vezes entre os seus atributos, relembra o seu antigo caráter de divindade campestre, e é sob tal aspecto que se chama Mercúrio crióforo, ou porta-carneiro.
Fig. 413 — O carneiro de Mercúrio.
Um monumento antigo nos mostra o carneiro de Mercúrio trazendo a bolsa do deus (fig. 413), que numa antiga moeda parece estar montado num carneiro: uma espiga, na sua frente, indica o seu caráter pastoral (fig. 414).
Mercúrio, guarda das estradas
Mercúrio, como deus do comércio, é naturalmente protetor das estradas e da navegação. Nos tempos primitivos, montes de pedras colocados nas encruzilhadas dos caminhos serviam de altares destinados ao deus: mais tarde, foram feitos de outra maneira, mas sempre com o mesmo Destino. Uma linda pedra gravada nos apresenta Mercúrio tocando uma coluna miliar com o seu caduceu. A coluna está ornada de um ramo, e um bordão recurvo, do tipo dos usados pelos viajantes, se acha no altar que a suporta. Há de notar-se que o deus, não sendo aqui considerado como mensageiro, está desprovido de asas. O manto aberto ao lado, chamado paenula, e o gorro, indicam o costume habitual dos viajantes de quem Mercúrio é o deus tutelar (fig. 415).
Fig. 414 — Mercúrio no carneiro (segundo uma medalha antiga).
Mercúrio, deus da eloqüência
Os monumentos da arte dão a Mercúrio, quando é considerado como deus da eloqüência, uma atitude particular: ele levanta levemente o braço direito como se
pretendesse demonstrar alguma coisa. Pode ver-se essa atitude tio Germânico do Louvre, que não é um Germânico, senão um orador romano com os atributos de Mercúrio, como indica a tartaruga posta ao seu lado. Mas os monumentos em que o próprio deus está representado com o gesto característico do orador são assaz raros, embora os autores falem constantemente deles. Entretanto, vemo-lo sob tal aspecto numa linda pedra gravada, em que o deus se acha caracterizado pelo caduceu alado que ele empunha com a outra mão.
Fig. 415 — Mercúrio, deus dos viajantes (segundo uma pedra gravada antiga).
A arte de comunicar as idéias pela linguagem participava naturalmente dos atributos de Mercúrio, porque ele é o deus da permuta sob todas as formas. Era ele também que todos invocavam para adquirir os dons da memória e da palavra, como se pode ver num hino órfico a Mercúrio que contém as litanias do deus: "Filho bem amado de Maia e de Júpiter, deus viajante, mensageiro dos imortais, dotado de grande coração, censor severo dos homens, deus prudente de mi] formas, assassino de
Fig. 416 — Mercúrio, cognominado Germânico (estátua antiga no museu do Louvre).
Fig. 417 — Mercúrio, deus da eloqüência (segundo uma pedra gravada antiga).
Argos, deus de pés alados, amigo dos homens, protetor da eloqüência, tu que gostas da astúcia e dos combates, intérprete de todas as línguas, amigo da paz, que trazes um caduceu sangrento, deus venturoso, deus utilíssimo, que presides aos trabalhos e às necessidades dos homens, generoso auxiliar para a língua dos mortais, ouve as minhas preces, concede um feliz fim à minha existência, concede-me felizes obras, um espírito dotado de memória e de palavras escolhidas." (Hino órfico).
Mercúrio, mensageiro dos deuses
Mercúrio transmite aos deuses as preces dos homens e faz subir a eles a fumaça dos sacrifícios. Mas é sobretudo o mensageiro dos deuses e o fiel intérprete das ordens que está incumbido de levar. É ele que por ordem de Júpiter conduz as três deusas à presença do pastor Paris encarregado de lhes adjudicar o prêmio da beleza. Possui asas no pétaso e tem asas talares para indicar a rapidez do seu vôo. Devotado mais especialmente a Júpiter, torna-se, se preciso, ministro complacente dos seus prazeres. O caduceu usado por Mercúrio parece ter significados diversos: primitivamente era apenas a vareta usada pelos arautos que iam e vinham por diversos países em prol das relações internacionais. Em outras circunstâncias a vareta reveste-se de uma espécie de caráter mágico: é com ela que Mercúrio adormece Argos e é dela que se serve para evocar as sombras. Em torno dos emblemas que caracterizam Mercúrio, Gabriel de Saint-Aubin colocou mariposas para indicar a leveza e a rapidez do vôo. "0 apelido de mensageiro, de servidor, diz Creuzer, tão freqüentemente dado a Hermes, está quase sempre acompanhado do de assassino de Argos, em que se revelam tão bem nas lendas pelásgicas as suas relações com a lua e o céu estrelado. A vaca Io, efetivamente, e o vigilante
Fig. 418 — Mercúrio, estátua de bronze (por Gian di Bologna. em Florença).
Argos, que traz os seus inúmeros olhos fitos nela, não parecem ser outra coisa. Quanto a Hermes, enviado pelo senhor dos deuses a libertar a sua amante de tão incômoda vigilância, nada mais faz, ao matar Argos, do que cumprir a missão que lhe é confiada, de presidir à alternativa do dia e da noite, da vida e da morte." (Creuzer). 0 famoso Mercúrio de Gian di Bologna, em Florença, mostra o deus sob o seu aspecto de mensageiro, correndo com extrema leveza e empunhando o caduceu (fig. 418).
Fig. 419 — Mercúrio, mensageiro dos deuses (segundo uma pedra gravada antiga).
Mercúrio, condutor de almas
Além do seu papel de mensageiro dos deuses, Mercúrio está especialmente incumbido de transportar as almas dos mortos ao reino de Plutão. Vários monumentos no-lo apresentam sob tal aspecto, que, aliás, se conforma às narrações dos poetas. Assim é que, numa
pintura antiga, vemos Plutão e Prosérpina sentados num trono e recebendo uma jovem que Mercúrio lhes conduz. Está protegido por uma ampla clâmide envolta sobre o braço e traz o pétaso alado. Com uma das mãos, empunha o caduceu e com a outra conduz a jovem, seguida por sua vez de outra mulher velada (fig. 421).
Fig. 420 — Mercúrio, condutor das almas (segundo uma pedra gravada antiga).
Vemos também, por vezes, Mercúrio caminhando rapidamente e segurando com a mão uma almazinha caracterizada pelas asas de borboleta: é por isso que Horácio, invocando Mercúrio, lhe dirige estas palavras: "És tu que, amado igualmente pelos deuses do Olimpo e pelos deuses do Inferno, reúnes com a tua varinha de ouro as sombras leves e conduzes as almas piedosas à venturosa morada que lhes está reservada." Uma interessante pedra gravada antiga nos apresenta Mercúrio evocando uma sombra a quem ajuda a sair da Terra (fig. 422). Dessa feita não é uma alma que ele conduz aos infernos, pois, muito pelo contrário, a tira
Fig. 421 — Mercúrio conduzindo uma alma ao reino de Plutão.
Fig. 422 — Mercúrio evocando urna sombra (segundo uma pedra gravada antiga).
do reino subterrâneo. Embora fatos semelhantes não constituíssem nada de surpreendente na mitologia, é difícil determinar a que lenda essa pedra gravada faz referencia.
Queixas de Mercúrio
Dentre todos os deuses da antiguidade, não há nenhum que tenha exercido tantas ocupações como Mercúrio. Intérprete e ministro fiel dos demais deuses, e em particular de Júpiter, seu pai, serve-os nos seus problemas ou nos seus prazeres com infatigável zelo.
Fig. 423 — Atributos de Mercúrio.
A multiplicidade das funções de Mercúrio é verdadeiramente extraordinária, e o mais ativo dos deuses chega às vezes a lamentar-se. "Há, por acaso, um deus
mais Infeliz do que eu? Ter, sozinho, que fazer tanta coisa. sempre curvado ao peso de tantos trabalhos! Desde o romper do dia, devo levantar-me para varrer a sala do banquete; depois, quando já estendi tapetes para a assembléia e pus tudo em ordem, preciso ir ao pé de Júpiter, a fim de levar ordens à Terra, como verdadeiro correio. Mal regresso, ainda coberto de pó, devo servir-lhe a ambrósia, e antes da chegada do escanção, era eu quem lhe dava o néctar. O mais desagradável, porém, é que, único dentre os deuses, não fecho olho durante a noite, pois tenho de conduzir as almas a Plutão, levar-lhe os mortos e sentar-me ao tribunal. Os trabalhos do dia não têm fim; além de assistir aos jogos, de fazer o papel de arauto nas assembléias, de dar aulas aos oradores, encarrego-me, simultaneamente, de tudo quanto diz respeito às pompas fúnebres." (Luciano).
CAPÍTULO II
PÃ, DEUS DA ARCÁDIA
Nascimento de Pã. — Cupido, vencedor de Pã. — Pã e Syrinx. — Pítis metamorfoseada em pinheiro. — Pã e a ninfa Eco. — Pã, filho de Mercúrio. — Pã, divindade pastoril. — Pã, deus universal.
Nascimento de Pã
Pã, antiquíssima divindade pelásgica especial à Arcádia, é o guarda dos rebanhos que ele tem por missão fazer multiplicar. Deus dos bosques e dos pastos, protetor dos pastores, veio ao mundo com chifres e pernas de bode. Pã é filho de Mercúrio. Era assaz natural que o mensageiro dos deuses, sempre considerado intermediário, estabelecesse a transição entre os deuses de forma humana e os de forma animal. Parece, contudo, que o nascimento de Pã provocou certa emoção em sua mãe, assustadíssima
com tão esquisita conformação: e as más línguas pretendem até que, quando Mercúrio apresentou o filho aos demais deuses, todo o Olimpo desatou a rir. Mas como é provável que haja nisso um pouco de exagero, convém restabelecer os fatos na sua verdade, e eis o que diz o hino homérico sobre a estranha aventura. "Mercúrio chegou à Arcádia fecunda em rebanhos ; ali se estende o campo sagrado de Cilene; nesses páramos, ele, deus poderoso, guardou as alvas ovelhas de um simples mortal, pois concebera o mais vivo desejo de se unir a uma bela ninfa, filha de Dríops. Realizou-se enfim o doce himeneu. A jovem ninfa deu à luz o filho de Mercúrio, menino esquisito, de pés de bode, e testa armada de dois chifres. Ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge. Espantam-na aquele olhar terrível e aquela barba tão espessa. Mas o benévolo Mercúrio, recebendo-o imediatamente, pô-lo ao colo, rejubilante. Chega assim à morada dos imortais ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma lebre. Depois, colocando-se em frente de Júpiter e dos demais deuses, apresenta-lhes o menino. Todos os imortais se alegram, sobretudo Baco, e dão-lhe o nome de Pã, visto que para todos constituiu objeto de diversão."
Figs. 424, 425 — Cabeças de Pã (segundo antigas moedas).
Na estátua de Pã, que se acha no Louvre, possui a cabeça um caráter de animalidade muito bem expresso pela conformação estreita da testa, pela disposição dos olhos e pela curvatura do nariz, que relembra a cabeça do bode (fig. 430). Às vezes, tem pernas de homem, e em várias moedas o vemos sob a forma de rapaz. Está,
aliás, perfeitamente caracterizado pelo cajado pastoril (fig. 427). Mas nas tradições mitológicas, é sempre velho e contrasta, mediante a estrema fealdade, com as outras divindades.
Fig. 426 — Pã (segundo uma moeda de Messena). (Sicília).
Fig. 427 — Pã (segundo uma antiga moeda arcádia).
Cupido, vencedor de Pã
As ninfas zombavam incessantemente do pobre Pã em virtude do seu rosto repulsivo, e o infeliz deus, ao que se diz, tomou a resolução de nunca amar. Mas Cupido é cruel e afirma uma tradição que Pã, desejando um dia lutar corpo a corpo com ele, foi vencido e abatido, diante das ninfas que se riam. O duelo está
figurado em pinturas antigas e Carraci, na gravura que fez sobre o tema, escreveu em baixo como divisa: Omnia vincit amor (Pã, em grego, significa omnia em latim. ou tudo, em português). Deparam-se-nos ali duas ninfas contemplando com um sorriso malicioso o singular combate, em que o menino alado agarra o braço nervoso do velho Pã que não pode mais resistir (fig. 428).
Fig. 428 — Cupido. vencedor de Pã.
Pã e Syrinx
Um dia percorria Pã o monte Liceu, segundo o seu hábito, e encontrou a ninfa Syrinx que jamais quisera receber as homenagens de nenhuma das divindades e que
só tinha uma paixão : a caça. Aproximou-se dela, e como nos costumes campestres se vai imediatamente ao objetivo, sem nenhum artifício, sem nenhum desvio, disse-lhe: "Cedei, formosa ninfa, aos desejos de um deus que pretende tornar-se vosso esposo. (Ovídio).
Fig. 429 — Pã (segundo uma estátua antiga).
Queria falar mais; mas Syrinx, pouco sensível àquelas palavras, deitou a correr, e já chegara perto do rio Ladon, seu pai, quando, vendo-se detida, rogou às ninfas, suas irmãs, que a acudissem. Pã, que lhe saíra no encalço, quis abraçá-la, mas em vez de uma ninfa, só abraçou caniços. Suspirou e os caniços agitados emitiram um som doce e queixoso. O deus, comovido com o que acabava de ouvir, pegou alguns caniços de tamanho desigual e, unindo-os
Fig. 430 — após (estátua antiga. museu do Louvre),
com cera, formou a espécie de instrumentos que se chama syrinx e que constitui a flauta de sete tubos, transformada em atributo de Pã. Numa composição cheia de vida e movimento, Rúbens representou o deus Pã perseguindo Syrinx. Antoine Coypel, por sua vez, nos apresenta o deus segurando instrumentos que acaba de fabricar, enquanto o maligno Cupido lhe anuncia que os sons amorosos que ele dali tirar atrairá, apesar de toda a sua fealdade, as belezas que o desdenham.
Pítis metamorfoseada em pinheiro
Com efeito, em breve, os melodiosos acordes fazem acorrer de toda parte as ninfas que vêm dançar em volta do deus chifrudo. A ninfa Pítis parece tão enternecida que Pã renasce com a esperança e crê que o seu talento faz com que seja esquecido o rosto. Sempre tocando a flauta de sete tubos, começa a procurar lugares solitários e percebe, finalmente, um rochedo escarpado no alto do qual resolve sentar-se. Pítis segueo. Para melhor ouvi-lo. aproxima-se cada vez mais, tanto que Pã, vendo-a bem perto, julga o momento oportuno para lhe falar. Não sabia o infeliz que Pítis era amada por Bóreas, o terrível vento do norte, que naquele instante soprava com grande violência. Vendo a amante perto de um deus estranho, Bóreas foi acometido de um acesso de ciúme furioso, e, não se contendo, soprou com tal impetuosidade que a ninfa caiu no precipício, e despedaçou contra as pedras o formoso corpo, imediatamente transformado pelos deuses em pinheiro. Foi depois disso que essa árvore, que traz o nome da ninfa (Pítis significa, em grego, pinheiro) foi consagrada a Pã, e é por esse mesmo motivo que nas representações figuradas, a cabeça de Pã está muitas vezes coroada de ramos de pinheiro.
Pã e a ninfa Eco
O destino de Pã era amar sempre sem que nunca lograsse unir-se à criatura amada. Continuando a fazer música na montanha, ouviu, saída do fundo do vale, uma terna voz que parecia repetir-lhe os acordes. Era a voz da ninfa Eco, filha do Ar e da Terra. Desceu, então, para procurar a que lhe havia respondido, sem nunca poder atingi-la, embora ela lhe respondesse constantemente; a cruel ninfa parecia rir-se dele. Mas, francamente, ninguém a pode censurar por isso. Quando se ama o belo Narciso, como é possível encarar o velho Pã? Pã é sempre velho, apesar de ter tido por pai Mercúrio, que é eternamente jovem.
Pã, filho de Mercúrio
Um dia o pai e o filho encontraram-se: Pã. — Bom dia, Mercúrio, meu pai ! Mercúrio. — Bom dia. Como dizes que sou teu pai? Pã — Não és Mercúrio, o deus de Cilene? Mercúrio. — Sim. Mas como és meu filho?... Ah, por Júpiter! Lembro-me agora da aventura! Quer dizer que eu, que tanto me orgulho desta minha beleza, e que não tenho barba, devo ser chamado teu pai ! Todos se rirão de mim, por ser meu filho um sujeito tão bonito assim! Pã. — Mas eu não vos desonro, meu pai. Sou músico e toco muito bem flauta. Baco não dá um passo sem mim. Escolheu-me por amigo e companheiro das danças, e sou eu quem lhe conduz os coros.
Mercúrio. — Pois bem, Pã (creio que é esse o teu nome), sabes como podes ser-me agradável? E queres, além disso, conceder-me um favor? Pã. — Ordenai, meu pai, e nós veremos. Mercúrio. — Vem cá, dá-me um abraço. Mas cuida de me não chamares de pai na presença de estranhos. (Luciano) .
Pã, divindade pastoril
Como símbolo da obscuridade, Pã causa nos homens os terrores pânicos, isto é, sem motivo. Na batalha de Maratona, inspirou aos persas um desses terrores súbitos, o que contribuiu bastante para assegurar a vitória aos gregos. Foi por causa desse auxílio que os atenienses lhe consagraram uma gruta na Acrópole. Todavia, a princípio, Pã nada mais era do que a divindade pastoril dos arcádios que o invocavam para que lhes multiplicasse os rebanhos. "Glauco e Coridon, que conduzem juntos os seus rebanhos de bois pelas montanhas, ambos arcádios, imolaram a Pã, guarda do monte Cilene, a novilha de lindas pontas; e as pontas, de doze palmas, prenderam-nas em sua honra, mediante um longo cravo, ao tronco deste plátano copado, bela oferta ao deus dos pastôres." (Antologia). As imagens primitivas de Pã eram providas de um símbolo cuja crueza significativa nada possuía naquele tempo de licencioso. O seu culto, que posteriormente se sumiu diante do das divindades do Olimpo, é extremamente antigo na Arcádia e muito certamente anterior a qualquer civilização. "Quando a educação do gado não prosperava, diz Creuzer, os pastores arcádios golpeavam os ídolos do deus Pã, costume que prova a sua profunda barbaridade em matéria de religião,"
Pã, deus universal
Sob a influência da poesia órfica, o deus Pã tornou-se o símbolo panteísta fundado na interpretação do seu nome: a flauta de sete tubos representa, então, as sete notas da harmonia universal, e a fusão das formas animais com as formas humanas corresponde ao caráter múltiplo cia vida no universo. É sob tal aspecto que Pã nos surge numa linda composição de Gillot. Essa imagem corresponde à idéia que da antiguidade tinha o século dezoito. Toda a natureza está em festa diante do deus que simboliza a universalidade dos seres; mas tal festa, tão repleta de vida e de movimento, nos lembra as quermesses flamengas muito mais que os baixos-relevos antigos. Sob o reinado de Tibério, estando um navio ancorado, ouviu-se uma voz misteriosa que gritava: "O grande deus Pã morreu!" Desde então, nunca mais se ouviu falar dele.
Fig. 431 — Sacrifício a Pã (segundo uma pedra gravada antiga).
CAPITULO III
VESTA
Tipo e atributos de Vesta. — O altar doméstico. — A chegada da noiva. — As vestais romanas. — Os lares domésticos. — Os gênios.
Tipo e atributos de Vesta
Vesta é a personificação do lar, onde se mantém o fogo sagrado que preside aos destinos da família ou da cidade. Não possui lenda: era a primeira filha nascida de Saturno e de Réa, e foi como as outras engolida por seu pai. Mais tarde, quando tornou a ver a luz, recusou-se a desposar qualquer um dos deuses. "Os trabalhos de Vênus não são agradáveis a Vesta, virgem venerável, a primeira gerada pelo astuto Saturno, e a última, segundo a vontade do poderoso Júpiter. Apolo e Mercúrio desejavam desposar a augusta deusa, mas ela não concordou, recusou-se constantemente a ceder e, tocando a cabeça do
poderoso deus com a égide, proferiu o grande juramento que sempre manteve de ficar virgem para sempre. Em vez do himeneu, seu pai a premiou com uma belíssima prerrogativa : com efeito, no lar, ela recebe todas as primícias das ofertas, é honrada em todos os templos dos deuses e é para os mortais a mais augusta das deusas." (Extrato do hino homérico a Vênus).
Fig 432 — Vesta (segundo uma estatueta antiga).
Em toda a antiguidade foi o lar considerado símbolo da vida doméstica, cuja felicidade repousa na castidade da esposa. Vesta era a guarda da família e ligava-se aos deuses penates, isto é, aos antepassados protetores dos membros vivos da família: o seu lugar era, pois, no meio da casa. Por conseqüência, tinha um altar na cidade como guarda da comunidade, e quando os colonos partiam para fundar nova cidade, cuidavam de levar o fogo do lar comum que ardia na cidade para acender o que iriam estabelecer na nova pátria. Ovídio, nos seus Fastos.
assim fala de Vesta: "Devemos ver em Vesta apenas a chama ativa e pura ; e não há corpo que nasça do fogo. Portanto, ela é virgem com todos os direitos e gosta de ter companheiras na sua virgindade. O teto recurvo do templo de Vesta não ocultava nenhuma imagem. É um fogo inextinguível que se esconde nesse santuário. Nem Vesta, nem o fogo têm imagens. A terra se sustenta pela sua própria força; Vesta tira, portanto, o seu nome do fato de se suster pela sua própria força, mas o lar é assim chamado em virtude das chamas e do fato de aquecer e avivar todas as coisas. Figurava, antigamente, entre as primeiras peças do aposento; é daí também, creio eu, que se derivou a palavra vestíbulo, e é por isso que nas preces dizemos ainda a Vesta: tu que ocupas os primeiros lugares. Era costume outrora sentar-se em longos bancos, diante do lar, e supor que os deuses assistiam ao festim." Engana-se evidentemente Ovídio quando diz que Vesta não tem imagens. O que sucede, na verdade, é que são extremamente raras. Plínio cita uma estátua de Vesta, esculpida por Scopas, que gozava de grande fama. A que reproduzimos é uma das raríssimas imagens da deusa chegadas até nós. Está vestida da túnica talar, apertada por um cinto, e por cima usa ampla manta. Um longo véu lhe cai sobre os ombros; empunha uma lâmpada, símbolo do fogo eterno. Vemos, por vezes, lâmpadas consagradas a Vesta, que se caracterizam por uma cabeça de burro. Esse animal aparecia igualmente em certas festas em honra da deusa, onde se pretendia relembrar o serviço que fora prestado a Vesta pelo burro de Sileno. Um dia, Príapo, divindade campestre de caráter jovial e pouquíssima disposta à veneração, notou a deusa que adormecera sobre a relva e, julgando não ser visto, aproximou-se sorrateiramente dela para a abraçar. Mas o burro de Sileno, que pastava pela vizinhança, indignou-se ao ver que se pretendia fazer tamanha afronta à augusta deusa, e pôsse a zurrar tão fortemente que todo o Olimpo despertou.
O altar doméstico
Toda casa antiga continha um altar no qual devia haver sempre um pouco de cinza e carvões ardentes. Esse altar, era o lar, que Vesta personifica. O fogo sagrado devia ficar puro de qualquer imundície. A ele não era permitido atirar objetos sujos, e a sua luz não podia iluminar ações inconvenientes ou culposas. O fogo jamais se extinguia, e devia arder enquanto existisse a família. Se, por desgraça morria, só era possível tornar a acendê-lo mediante certos ritos que recordam o descobrimento do fogo. Era preciso, para acender o fogo sagrado, concentrar num ponto os raios do sol, e esfregar rapidamente dois pedacinhos de madeira de determinada espécie, para deles fazer saltar uma fagulha. A não ser assim, o fogo era considerado impuro. Ninguém saía de casa sem dirigir uma prece ao lar, pois este era o deus da família. O repasto da família era para os antigos um ato religioso, pois os alimentos se coziam no lar. Antes de comer, atiravam-se às chamas as primícias do alimento, e sobre elas se espalhava a libação do vinho: era a parte da deusa, e quando as chamas se erguiam ninguém duvidava da existência de uma comunhão íntima entre a família e a sua divindade protetora. Em torno do lar vigiam os antepassados, pois o culto dos manes se ligava Intimamente ao de Vesta, que, sendo o lar, constitui naturalmente o centro da família. Se tem o seu templo na cidade é por ser o centro das famílias que a esta compõem. Se é honrada por toda parte como grande deusa é por ser o centro do mundo.
A chegada da noiva
Embora a deusa esteja por toda parte, é na família que ela tem o seu princípio. Assim, não é no templo que se contraem as núpcias, é diante do lar. A cerimônia do casamento compreende três atos que se prendem, todos, ao lar. Em primeiro lugar, o pretendente se apresenta ao pai da .jovem, o qual reúne a família em torno do seu lar, oferece um sacrifício, e quando a chama arde declara mediante uma fórmula consagrada que autoriza a filha a renunciar aos seus antepassados, e a deixar o seu lar para ir partilhar do do marido. Depois, a jovem, vestida de branco, inteiramente coberta por um grande véu, cabeça coroada de flores, é conduzida pelo esposo à nova morada. Precede-a um portador de archote: é o archote do himeneu. Chegada à frente da casa, cantam todos um hino religioso e, na frente do limiar, se realiza uma cerimônia característica, o rapto. A jovem não entra por si na casa; pelo contrário, coloca-se no meio das mulheres da família a que deixa de pertencer, como que lhes pedindo proteção. Estas fingem, realmente, defendê-la, mas o esposo, após uma luta simulada, pega a noiva, ergue-a nos braços, fá-la ultrapassar a soleira da porta, cuidando bastante de que os seus pés não toquem o chão. Se ela entrar tocando o limiar com os pés, estará no interior como forasteira a quem se recebe, ao passo que ali deve estar como a criança que nasceu na casa, e que não veio de fora. Então a noiva se aproxima do fogo sagrado, olha os retratos dos antepassados que rodeiam a sala, e que já agora são os seus: na chama do lar pedem-lhe que coza um pão recitando preces, e quando o pão está pronto, os dois esposos o comem. A partir de tal momento, a esposa mudou inteiramente de família. É aos antepassados do marido que fará ofertas, por se terem tornado os seus. O casamento é para ela um segundo nascimento, e o lar que arde na sua morada é, por fim, a sua divindade protetora.
As vestais romanas
O colégio das vestais em Roma foi particularmente famoso na antiguidade. As vestais tinham por missão guardar o fogo sagrado, que não podiam deixar se extinguir. Para ser admitida a jovem devia ter pelo menos seis anos e no máximo dez, ser filha de pais livres e estimados, e não apresentar defeito físico. As suas funções duravam trinta anos: os dez primeiros eram consagrados ao noviciado, os dez seguintes à prática dos ritos sagrados, os dez últimos ao ensino das noviças. As vestais faziam voto de virgindade enquanto lhes durassem as funções As que os violassem eram enterradas vivas, e o homem que houvesse ultrajado uma vestal condenado a ser flagelado até morrer. Durante mil e cem anos que durou a instituição, vinte foram as vestais acusadas de impureza, e treze foram condenadas.
Fig. 433 — Vestal (segundo urna estátua antiga).
A cerimônia do sepultamento de uma vestal culpada realizava-se em lugar especial, situado dentro dos muros de Roma, e obedecia aos ritos prescritos. Preparava-se uma sepultura à qual se podia penetrar por uma abertura praticada na superfície do solo, e ali se armava um leito. Perto do leito, punha-se uma lâmpada acesa, pão, água, um pote de leite e uma pequenina provisão de azeite. A vestal culpada atravessava a cidade numa liteira hermeticamente fechada, e a multidão recebia ordem de, à sua passagem, manter o mais rigoroso silêncio. Quando o cortejo chegava ao lugar do suplício, os lictores desprendiam as correias da liteira, enquanto o grande pontífice recitava as preces consagradas. Então, a vestal, coberta de um grande véu, descia ao seu túmulo que era imediatamente fechado. Às vezes, como no que se chamava juízo de Deus, na Idade Média, a deusa provava mediante um milagre a inocência da sacerdotisa acusada. Foi assim que a vestal Cláudia Quinta provou a sua virtude conduzindo, com apenas o auxílio do seu cinto, no porto do Tibre, o navio que trazia a estátua da deusa Cibele, que Átala dera de presente aos romanos, e que nenhum esforço conseguira até então mover. As vestais que haviam terminado o seu tempo de serviço religioso podiam casar-se. Enquanto sacerdotisas, habitavam o templo e eram alimentadas a expensas do tesouro público. Várias estátuas antigas nos transmitiam o costume das vestais. Essas sacerdotisas gozavam de grande consideração : a sua palavra era acreditada, e elas não prestavam juramento. Caminhavam precedidas de um lictor com os feixes, e se, durante o percurso, uma delas encontrasse um criminoso conduzido ao suplício, salvava-lhe a vida, contanto que afirmasse ser aquele um encontro fortuito e não premeditado. Enfim, por toda parte em que as vestais se apresentassem, tinham assegurado lugar de honra. Durante a decadência, as vestais, que primitivamente traziam uma longa túnica branca, uma faixa e um véu, abandonaram em grande parte a simplicidade do começo. O colégio das vestais foi abolido definitivamente pelo imperador cristão Teodósio, no ano de 389 da nossa era.
Uma medalha de Lucília, mulher de Lúcio Vero, nos apresenta seis vestais sacrificando num altar aceso, diante de um pequeno templo redondo com a estátua de Vesta (fig. 434).
Fig. 434 — Vestais sacrificando (segundo uma medalha antiga).
Os lares domésticos
Os lares ou manes são deuses da família cujo culto se liga estreitamente ao da deusa do lar. Presidiam à guarda das casas e das famílias de que eram, de certo modo, gênios tutelares. As figurinhas que os representam eram em geral postas num nicho contíguo ao lar; o cão lhes é especialmente consagrado. O lar familiar nos surge, freqüentemente, sob a forma de menino agachado que tem um cão aos pés. Traz, por vezes, o cão aos ombros e um cesto de provisões lhe está na frente. pois deve cuidar de que à família nada falte (fig. 435).
Era crença universalmente difundida poder a alma dos mortos voltar à teria a fim de proteger os parentes ou amigos. Mas para tanto, mister se fazia que os mortos tivessem sido inumados segundo os ritos, e daí advém a importância que se atribuía às cerimônias fúnebres e o temor que todos tinham de vê-las faltar por ocasião do sepultamento.
Fig. 435 — Lar privado (segundo uma estátua antiga).
Os gênios
A arte raramente representou os lares privados, mas reproduziu sob toda espécie de aspectos os demônios ou gênios, seres intermediários entre o homem e a divindade, e cujo papel nunca foi bem definido. Vemo-los freqüentemente nos sarcófagos, onde personificam sem
dúvida os gostos do defunto. Lutam no estádio, correm em carros no hipódromo, caçam javalis ou cervos, participam do cortejo das divindades marinhas, colhem uvas, e exercem outros mil misteres. Há gênios lavradores, gênios cordoeiros, gênios lutadores, gênios caça-dores, etc. Com freqüência brincam uns com os outros, e pregam-se mutuamente peças cheias de espírito. Os artistas gregos colocavam-nos por toda parte e a profusão com a qual os semeavam nos monumentos provém de uma razão decorativa e de uma razão mitológica. A arte dos últimos séculos deu às vezes aos anjos a forma de gênios; mas como as ocupações dos anjos não são demasiadamente variadas, foi preciso voltar a concepções pagãs. Foi o que fez Rafael em várias circunstâncias, e notadamente no seu encantador Ronda de Génios. Os meninos alados dançam alegremente no prado, ao som da música tocada por dois cupidos, reconhecíveis pela aljava que lhes está perto.
Fig. 436 — Gênios das corridas de carros (segundo um baixo-relevo antigo).
Os gênios eram geralmente benéficos. Muito embora dotados de poder assaz limitado, todos se preocupavam em satisfazê-los. Gostavam da alegria e das pessoas alegres. O que se entregasse à tristeza afligia o seu gênio, pois que todo homem tem o seu. É ele que leva a alma ao corpo que ela deve habitar, e a escolta sorridente quando deixa a terra para ir ao país das sombras. A melancolia sempre foi desconhecida da antiguidade. Quando um gênio parte para a grande viagem, os
companheiros abandonam um instante o folguedo para assistir aos seus funerais, como no-lo mostra le Poussin, numa das suas graciosas composições (fig. 437).
Fig. 437 — Funeral de um gênio.
LIVRO VII
BACO E O SEU CORTEJO
CAPITULO I
TIPO E ATRIBUTOS DE BACO
Baco oriental. — Baco tebano. — A vinha, a hera e o tirso. — O cisto e a serpente báquica. — Os animais báquicos. — Baco inspirados. — Baco, inventor do teatro. — A taça mística. — As festas de Baco.
Baco oriental
Baco (Dionisos) é a personificação do vinho. O seu culto, menos antigo que o dos demais deuses, revestiu-se de certa importância, à medida que se foi ampliando a cultura da vinha. Associou-se, então, a Ceres, e ambos foram honrados nas mesmas festas como príncipes soberanos da agricultura,
"A Grécia antiga dos tempos primitivos, diz Ottfried Mueller, contentava-se de um Hermes fálico, como representação figurada desse deus; e a arte grega de todas as épocas conservou o hábito de erigir cabeças de Baco, sozinhas, ou até simples máscaras dessa divindade. O Hermes fálico foi em breve substituído pela figura soberba e majestosa do velho Baco; a cabeça está ornada de uma cabeleira magnífica cujas madeixas são seguras por meio de uma mitra, descendo a barba em linhas sinuosas, e respirando em todos os traços da sua fisionomia algo de aberto. O seu costume, de magnificência oriental, é quase o de uma mulher, e o deus segura geralmente nas mãos o rhyton e um pâmpano. Foi somente mais tarde, na época de Praxíteles, que do cinzel do escultor saiu o jovem Baco, representado e concebido com as feições de um efebo, ou de um adolescente em quem as formas do corpo, suavemente fundidas e sem musculatura bem acentuada, anunciam a natureza quase feminina do deus; as
Figs. 438, 439 — Cabeças de Baco (segundo moedas antigas).
feições da fisionomia constituem uma singular mescla do delírio báquico e de um ardor indeterminado, sem precisa finalidade. Nessa fisionomia se manifesta e fala claramente a voz da alma de Baco partilhando o entusiasmo e o delírio que ele causa. As formas e as feições dessa representação figurada de Baco deixam lugar, contudo, à expressão grandiosa e imponente que revela em Baco o filho do raio, o deus a cujo poder ninguém resiste. A
mitra que lhe rodeia a testa, e a coroa de pâmpano ou de hera que lhe fazem sombra, contribuem poderosamente para a expressão báquica; a cabeleira desce em longos e sedosos anéis sobre os ombros; o corpo está habitualmente nu, com exceção de uma pele de cabrito usada negligentemente; somente os pés estão presos num magnífico calçado, os coturnos dionisíacos; o bordão leve rodeado de pâmpanos, com a pinha, serve de cetro e de apoio ao deus. Entretanto, o himátion que vai até os calcanhares se adapta perfeitamente ao caráter de Baco; às vezes, também, e nos monumentos dos últimos tempos da arte, Baco surge inteiramente vestido à maneira das mulheres. A atitude das estátuas de Baco é em geral a do deus apoiado comodamente, ou deitado, ou sentado no trono; em pedras e nos quadros o deus caminhando com passo avinhado, montado nos seus animais favoritos ou por eles puxado. Um sátiro favorito lhe serve freqüentemente de apoio e outro desempenha o papel de escanção." A mais bela estátua que conhecemos de Baco barbudo é a outrora designada pelo nome de Sardanápalo, em virtude de uma inscrição que tem esse nome, mas que posteriormente se reconheceu ter sido ali acrescentada mais tarde. É o Baco oriental em toda a sua majestade; os longos cabelos são retidos pela mitra, e a majestosa barba desce-lhe até o peito. Um amplo manto, que envolve duas vezes o corpo, cai-lhe até os pés calçados com o coturno (fig. 440). Temos no Louvre vários formosos bustos de Baco oriental, alguns de estilo arcaico: são, às vezes, designados pelo nome de Baco indiano (fig. 441), embora o tipo seja originário da Lídia ou da Ásia Menor. Mas é sob tal forma, aliás o mais antigo tipo do deus, que ele aparece quase sempre nos monumentos relativos à conquista da índia. De resto, o costume que lhe dão os baixos-relevos e os vasos não é idêntico ao descrito pelos poetas. "Cada chefe, diz Nonnos, conduzia, separadamente, as suas tropas a Baco, e o deus, ardente, comandava todo o exército no seu mais brilhante esplendor. Não usava na refrega escudo, forte lança ou gládio suspenso aos ombros; não cobria a cabeleira com um capacete de bronze que lhe protegesse a cabeça invencível, mas cingia a cabeça com
Fig. 440 — Baco indiano, cognominado Sardanápalo (estátua antiga).
formidável coroa Em lugar de borzeguins artisticamente feitos e subindo até os joelhos, acrescentara a coturnos de púrpura um calçado de prata. A nébrida com a qual cobria o peito, servia-lhe de couraça. Com a mão esquerda segurava um chifre de ouro cheio de vinho delicioso; e
Fig. 441 — Baco indiano (segundo um busto antigo).
desse chifre o líquido jorrava abundantemente. Com a mão direita, trazia o tirso agudo envolto em espessa hera, que lhe sombreava a ponta de aço. Ao ouro da superfície havia adaptado uma faixa circular."
Baco tebano
O baco tebano, mais geralmente imberbe, é muito mais comum na escultura. O pintor Aristides fizera um famosíssimo Baco, levado a Roma após a tomada de Corinto. "Múmio, diz Plínio, cognominado Acaico pela sua vitória, foi o primeiro que iniciou os romanos nos quadros estrangeiros. Por ocasião da venda do saque, Átala, rei de Pérgamo, comprara por seiscentos mil dinheiros um Baco de Aristides. O cônsul, admirado do preço e supondo no quadro alguma virtude que ele desconhecia, retirou-o da venda, apesar das queixas do rei, e colocou-o no templo de Ceres. Creio que foi o primeiro quadro estrangeiro dado a público em Roma, mas posteriormente grande número deles foi colocado no Forum."
Fig. 442 — Baco frígio (segundo um baixo-relevo antigo).
A forma quase feminina de Baco tebano representa o deus com as feições da mocidade e em todo o esplendor da beleza. A sua expressão descuidada indica um semi-sono, um lânguido devaneio. Às vezes nu, outras coberto de uma pele de cervo, aparece freqüentemente montado
Fig. 443 — Baco tebano estátua antiga)
Fig. 444 — Baco (segundo uma estátua antiga, museu do Louvre).
numa pantera ou num carro puxado por tigres. A vinha, a hera, o tirso, a taça e as máscaras báquicas constituem-lhe os atributos mais comuns (figs. 443 e 445).
Fig. 445 — Baco deitado (segundo uma estátua antiga).
A vinha, a hera e o tirso
A vinha, a hera e o tirso são emblemas que se prendem ao fabrico do vinho, ou aos efeitos que ele produz. A hera passava, na antiguidade, por ter a propriedade de impedir a embriaguez, e era por isso que, nos festins, os convivas com ela se coroavam. Essa planta forma também freqüentemente a coroa de Baco. Enrola-se freqüente-mente em torno do tirso cuja extremidade termina por uma pinha. Em numerosos lugares, realmente, a pinha entrava no fabrico do vinho, que devia diferir, em muitos aspectos, do que é hoje em dia. Vê-se pela facilidade com a qual Ulisses adormece o ciclope, dando-lhe duas vezes
um pouco de vinho, que essa bebida era, ao menos em alguns lugares, extremamente capitosa. Os antigos misturavam-lhe mel e quase sempre água. Era raríssimo ver alguém sorver vinho puro.
O cisto e a serpente báquica
O cisto místico é a caixa ou cesto no qual se encerravam os objetos sagrados que serviam ao culto de Baco. O cisto é um emblema que se encontra em inúmeros monumentos báquicos; quase sempre está unido à serpente, como verificamos nas medalhas chamadas cistóforos (fig. 446). A serpente, que já vimos estar ligada a Esculápio, encontra naturalmente o seu lugar ao lado das imagens de Baco, por motivo das virtudes curativas que se atribuíam ao vinho.
Os animais báquicos
O tigre, a pantera e o lince acompanham habitualmente o cortejo de Baco, nas cenas em que o jovem deus é representado como triunfante. A presença deles bastaria para afirmar o caráter oriental que se encontra em todas as lendas que lhe constituem o mito. O burro que traz Sileno se explica naturalmente, pois Sileno é o pai nutridor de Baco. Esse burro, aliás, é famoso pelo papel que desempenhou na luta dos deuses contra
os gigantes: tendo percebido o exército inimigo em ordem de batalha, pôs-se a zurrar de tal maneira que todos os gigantes imediatamente fugiram.
Fig. 446 — Cisto e a serpente báquica (segundo uma medalha antiga).
A lebre aparece também em alguns monumentos, e o seu caráter simbólico está bem determinado pelo fato de os antigos fazerem dela símbolo de fecundidade. Vemo-la sob tal aspecto num vaso que representa Líber e Libera; Líber é o nome que os latinos davam habitualmente a Baco, e Libera, a deusa que lhe está ligada, parece ser a mesma que Ariadne ou Prosérpina. Essas duas divindades estão sentadas nos dois lados de uma eminência que forma uma espécie de gruta. Um velho sátiro apresenta à Libera um ovo, outro emblema de fecundidade, e uma lebre, que corresponde à mesma idéia, está situada perto de Líber, o qual empunha o tirso báquico (fig. 447). Por análogas razões, o carneiro, o bode e o touro figuram freqüentemente nos monumentos relativos ao culto de Baco. A cabeça de carneiro é emblema conhecidíssimo, e o bode, de quem os pãs e os sátiros, sequazes de Baco, tiraram a forma, era o animal que se sacrificava mais especialmente ao deus que faz amadurecer os frutos. Num antigo camafeu, depara-se-nos o sacrifício do bode; o animal está retido por um jovem sátiro, diante do qual se acha uma bacante deitada, que segura um tirso e pega um tímpano suspenso de uma árvore. As suas homenagens se dirigem a uma pequenino Baco barbudo, com o costume lídio e uma taça (fig. 448).
Havia, aliás, uma razão mitológica para que o bode fosse mais especialmente o animal de Baco. Seu pai Júpiter, para subtraí-lo às perseguições de Juno, tinha-o, segundo certas tradições, metamorfoseado em cabrito, na
Fig. 447 — Líber e Libera (segundo uma pintura de vaso).
Fig. 448 — Sacrifício de bode (segundo um camafeu antigo).
mocidade. Numa medalha de Laodicéia, capital da Frigia, vemos Júpiter segurando nos braços o pequeno Baco, e ao lado do rei dos deuses surge o jovem cabrito, cuja forma o menino vai revestir.
Como símbolo da agricultura, Baco, que freqüentemente se liga a Ceres (fig. 454), reveste-se por vezes da forma de touro, animal gerador que personifica a fecundidade da terra. Uma linda pedra gravada do gabinete das Medalhas nos mostra o touro báquico, ou dionisíaco, caracterizado pelo tirso que lhe vemos aos pés (fig. 450).
Fig. 449 — Baco (segundo urna estátua antiga).
Esse emblema parece que tem a sua origem no Egito. Osíris, que é para os egípcios uma personificação do sol e mais particularmente do sol poente, pois que reina sobre
os mortos, encarna-se sob a forma de boi, Ápis; e Baco. que tem sido freqüentemente assimilado a Osíris, devia naturalmente revestir-se da mesma forma. O touro aparece freqüentemente nas festas báquicas. A figura 451 no-lo mostra ornado das faixas para o sacrifício; traz uma sacerdotisa ou mênade, de cabeça ornada por uma
Fig. 450 — Touro báquico ou dionisíaco (segundo uma pedra gravada antiga).
Fig. 451 — Touro ornado para o sacrifício (segundo uma pintura de vaso).
coroa e erguendo com a mão esquerda o amplo manto que a cobre. É conduzido em grande pompa e está seguido por uma personagem armada de lança e segurando na mão ramos de folhagem. Em outro monumento, o sacrifício está prestes a se realizar. As mênades rodeiam o touro perto do qual vemos
os archotes acesos e rodeados de uma faixa que a sacerdotisa pega com a mão (fig. 452). Hébon, divindade da Campânia, por vezes identificado com Baco, era representado sob a forma de touro de rosto humano, barbudo. Julgaram muitos reconhecê-lo nas medalhas da Itália do sul, nas quais está fixado esse emblema. Mas atualmente está quase demonstrado que esses touros humanos são em quase toda parte a representação de um rio local e não têm, por conseguinte, senão relação pelo menos assaz indireta com o culto de Baco.
Fig. 452 — Sacrifício do touro (segundo um baixo-relevo antigo).
Baco inspirador
A inspiração que nasce da embriaguez fez com que se atribuíssem a Baco algumas das qualidades que, habitualmente, constituem o apanágio de Apolo, o deus inspirador por excelência. Essas duas divindades estão reunidas num medalhão de Adriano, onde as vemos colocadas num carro puxado por uma cabra e uma pantera (fig. 453). Baco empunha o seu tirso, Apolo a lira; Cupido, montado na cabra, parece conduzi-los, tocando a flauta dupla.
"Baco e Apolo, diz Creuzer, se opõem. Estavam reunidos em Delfos pelo culto e pelas representações figuradas. Mas tal reunião nada mais era que a conseqüência da sua oposição que se encontrava até no contraste dos hinos característicos dedicados a uma e outra divindade; a Apolo (a unidade) o peão grave e simples; a Baco (a multipli-
Fig. 453 — Baco e Apolo (segundo uma medalha de Adriano).
Fig. 454 — Baco e Ceres (segundo uma medalha dos nicenos).
cidade) o ditirambo variado e desordenado. Daí a agitação das festas báquicas, comparada à regular ordenação das de Apolo. Daí Baco às vezes criança, outras rapaz, outras homem feito, outras ancião; Apolo, pelo contrário, sempre semelhante a si próprio, dotado de mocidade eterna e divina.
Baco, inventor do teatro
Baco substitui às vezes Apolo, como condutor das Musas, e os monumentos o mostram freqüentemente associado a Melpomene, a musa da tragédia. É porque realmente Baco é o inventor do teatro, e foi durante as festas celebradas em sua honra que se representaram as primeiras peças. Tais festas se realizavam no momento da vindima : colocados num carro, os vindimadores borravam o rosto com uvas, e imediatamente se iniciavam os folguedos. O carro tornou-se uma construção, quando os vindimadores se tornaram comediantes. As máscaras (figs. 455 e 456), com as quais se ornavam muitas vezes os túmulos, prendiam-se aos mistérios de Baco, como inventor da tragédia e da comédia e indicavam que a vida, como as peças de teatro, nada mais é do que uma mescla de prazeres e dores, em que cada um desempenha um papel diferente. Assim é que Baco, o qual primitivamente era o vinho personificado, se tornou de certo modo símbolo da vida humana, considerada espécie de ebriedade da alma, que no seu extravio vinha apoderar-se de uma prisão terrestre nascendo num corpo material.
Fig. 455 — Máscara trágica.
A taça mística
Segundo Creuzer, a taça, que é o atributo de Baco, tinha um significado místico. "A alma, sorvendo-a, embriaga-se, esquece a sua natureza superior, não pensa mais senão em unirse ao corpo pelo nascimento, e segue a estrada que deve conduzi-la à sua morada terrena. Felizmente,
Fig. 456 — Máscara báquicas
ali encontra outra taça, a da sabedoria, onde pode beber, onde pode curar-se da sua primeira embriaguez, onde recobra a lembrança da sua origem e, com ela, o desejo de regresso à morada celeste.
Vemos, algumas vezes, em baixos-relevos, Baco barbudo, figurado em hermas, na companhia de crianças que preparam a cuba. Umas saboreiam o vinho, ou nele mergulham as mãos; outras querem imergir inteiramente no vinho ou já cambaleiam, sob a ação do licor báquico. Noutros monumentos, vemos velhos sátiros, antigos companheiros de Baco pisar aos pés as uvas para fazerem o licor embriagador, enquanto um dos seus companheiros espreme com os dedos o suco de uma uva num vaso (fig. 458).
As festas de Baco
Alguns monumentos se baseiam nas festas de Baco, que eram, como as de Ceres, destinadas a agradecer aos deuses os benefícios da terra. Os ritos observados durante a procissão se prendiam à lenda do deus. Numeroso bando de meninos, coroados de heras e segurando pâmpanos, corria e dançava diante da imagem do deus, colocado num berço de pâmpanos e circundado de máscaras trágicas e cômicas. Em torno, traziamse vasos, tirsos, grinaldas, tambores, faixas, e, atrás do carro, vinham os autores, os poetas, os cantores, os músicos de toda espécie, os dançarinos, todos os que, no exercício da sua arte, precisam de inspiração, cuja fonte era considerado o vinho. Quando a procissão chegava ao fim, começavam as representações teatrais e os combates literários em honra de Baco, cujas festas sempre se realizavam no outono. Essas festas revestiram-se, aliás, de caráter bastante diferente, segundo os países e as localidades em que se celebraram. Parece que em Roma, deram lugar a cenas de desenfreada licenciosidade, e foram até seguidas de assassínios, pois o senado se viu obrigado a aboli-las; mas como os iniciados nos mistérios de Baco eram ao mesmo tempo acusados de formar uma associação secreta,
de caráter político, é difícil conhecer exatamente a verdade sobre essa misteriosa questão. Na Grécia, as festas de Baco tinham originariamente um caráter exclusivamente campestre. "Outrora diz Plutarco, celebravam-se
Fig. 457 — Atributos de Baco.
Fig. 458 — Sátiros pisando uvas (segundo um baixo-relevo antigo)
as festas de Baco com formas simples, que não excluíam a alegria: trazia-se à cabeça uma bilha cheia de vinho e coroada de pâmpanos; depois vinha um bode sustentando um cesto de figos, e finalmente o falo, símbolo da fertilidade; mas tudo isso caiu em desuso e foi esquecido." Um luxo desenfreado acompanhou mais tarde as festas de Baco, que em várias cidades, e notadamente em Alexandria, se celebravam com a maior magnificência. Ateneu nos legou uma curiosa descrição da grande procissão báquica, que se realizou nesta última cidade, sob o reinado de Ptolomeu Filometor.
Fig. 459 — Festa em honra de Baco (segundo um baixo-relevo antigo).
"A divisão dionisíaca era precedida de silenos, uns cobertos de mantos de púrpura escura, outros de mantos de púrpura clara. Eram seguidos de sátiros trazendo archotes de folhas de hera, de ouro. "Depois deles, surgiam Vitórias tendo asas de ouro. Traziam elas fogões para a queima de perfumes, com seis cúbitos, ornados de ramos dourados de hera. Essas Vitórias tinham túnicas cujos tecidos representavam diversas figuras de animais, e estavam ornadas do mais luxuoso atavio de ouro. "Seguia-se-lhes um altar duplo, de seis cúbitos, guarnecido de uma folhagem de hera, de ouro, e em torno do qual corria uma grinalda de pâmpano de ouro, presa
com faixas de uma mistura branca. Atrás, vinham cento e vinte meninos, cobertos de túnicas de púrpura, trazendo incenso, mirra e açafrão em bacias de ouro. Depois, avançavam quarenta sátiros cingidos de coroas de hera feitas de duro. Seguravam com a mão outra coroa igualmente de ouro. Tinham o corpo pintado de púrpura e de outras cores: dois silenos, de clâmides de cor de púrpura, traziam calçados brancos. Um deles trazia um chapéu e um pequeno caduceu de ouro, o outro segurava um clarim. Entre eles marchava um homem de quatro cúbitos de altura, em vestes de ator trágico com uma máscara e uma cornucópia de ouro. "Atrás deles, vinha uma mulher de belíssimo porte, ricamente ornada de ouro e prata: com uma das mãos trazia uma coroa de perses, com a outra uma palma. Depois dela, vinham as quatro Estações, bem ornadas, trazendo cada uma os frutos que lhe são próprios: seguia-se-lhes, carregado, um altar de ouro. Passaram, então, outros sátiros coroados de hera de ouro e vestidos de púrpura. Traziam um vaso de ouro para vinho. O poeta Filisco, sacerdote de Baco, e todas as pessoas ligadas, pela sua profissão, ao culto desse deus, vinham depois Em seguida, traziam-se os tripés análogos ao de Delfos, prêmios destinados aos atletas. O que estava reservado aos adolescentes tinha nove cúbitos de altura, e o que se destinava aos homens feitos tinha doze. "Veio depois um carro de quatro rodas, puxado por cento e oitenta homens, trazendo uma estátua de Baco, a fazer uma libação com uma taça de ouro. Tinha esse Baco uma túnica rastejante e por cima dela um manto de tecido transparente, e outra veste de púrpura bordada de ouro. "No carro. e diante de Baco, havia uma cratera da Lacônia, um tripé e taças de ouro. Formara-se, em torno dele, um berço com pâmpanos, hera, e outras folhagens. donde pendiam coroas, grinaldas, tirsos, tambores, faixas. máscaras trágicas, cômicas e satíricas. No carro viajavam também os sacerdotes, as sacerdotisas e as mulheres que traziam os crivos. Passaram, em seguida, as lídias, de cabelos esparsos, e coroadas umas com serpentes, outras com teixos, vinhas e heras; empunhavam estas punhais, aquelas serpentes.
"Depois delas, vinha outro carro de quatro rodas, com uma largura de oito cúbitos, puxado por sessenta homens e trazendo, sentada, a figura de Nisa, revestida de uma túnica amarela bordada de ouro e de um sobretudo da Lacônia. A figura levantava-se artificialmente, sem que ninguém a tocasse: vertia leite de uma taça e tornava a sentar-se. Segurava com a mão esquerda um tirso, em torno do qual estavam enroladas umas faixas. A testa achava-se coroada de hera e de uvas de ouro, enriquecidas de pedras preciosas. Sombreava-a também uma folhagem. Nos quatro cantos do carro haviam sido colocados archotes de ouro.
Fig. 460 — Sileno e os sátiros (segundo uma pedra gravada antiga).
"Em seguida, foi a vez de outro carro de vinte cúbitos, puxado por trezentos homens. Havia-se construído nele um lagar cheio de uvas. Sessenta sátiros pisavam-nas, cantando ao som da flauta a canção do espremedor. Sileno presidia a tudo e o vinho doce corria ao longo do caminho.
"Esse carro era seguido de outro puxado por sessenta homens, trazendo um odre feito de pele de leopardo. Era acompanhado de cento e vinte sátiros e silenos, todos coroados e empunhando vasos e taças de ouro. Ao lado, via-se imensa cratera de prata ornada de animais esculpidos em relevo e rodeada de um cordão de ouro enriquecido por pedras preciosas. Depois vinham dez grandes bacias e dezesseis crateras de prata, uma grande mesa de prata de doze cúbitos e outras trinta de seis cúbitos, quatro tripés um dos quais de prata maciça, e os demais enriquecidos de pedras preciosas, vinte e seis urnas, dezesseis ânforas semelhantes às das Panatenéias e cento e sessenta vasos para refrescar o vinho. Todo esse vasilhame era de prata ; o de ouro seguia-se: em primeiro lugar quatro crateras com belas figuras em relevo, grandes tripés e um bufê enriquecido de pedras preciosas. cálices, urnas e um altar. "Mil e seiscentos meninos vinham depois, vestidos de túnicas alvas e coroados de hera ou de folhas de pinheiro. Traziam taças de ouro e prata: os vinhos tinham sido preparados de maneira que os que se achavam presentes no estádio pudessem apreciar-lhe a doçura. Em seguida, aparecia um carro contendo o leito de Semele, seguido de outro carro, representando uma gruta profunda coberta de hera e rodeada de ninfas coroadas de ouro. Jorravam daí duas fontes, uma de leite, outra de vinho, e do alto saíam pombas e rolas, com fitas presas às patinhas, de maneira que, tentando voar, pudessem ser agarradas pelos espectadores. "A seguir, vimos a representação de Baco no seu regresso da Índia. O deus, sentado num elefante, estava vestido de um manto de púrpura, coroado de hera, e segurando na mão um tirso de ouro. Na sua frente, e sobre o pescoço do elefante, estava um satirozinho coroado de ramos de pinheiro. Quinhentas jovens vestidas de túnicas de púrpura e com a cabeça coroada de folhas de pinheiro, caminhavam após dele e eram, por sua vez, seguidas de cento e vinte sátiros armados. Cinco grupos de burros montados por silenos e sátiros coroados eram seguidos de vinte e quatro carros puxados por elefantes.
Havia. depois, sessenta carros puxados, cada um, por dois bodes, oito atrelagens de dois avestruzes, sete de cervos, e todos os carros estavam montados por meninos trazendo um tirso e cobertos de vestes de tecido de ouro. Os carros puxados por camelos, que se seguiam, vinham em fileiras de três e estavam seguidos por outros puxados por burricos e trazendo as tendas das nações estrangeiras. Acompanhavam-nos mulheres índias, na qualidade de cativas. seguidas dos etíopes que traziam os presentes, seiscentos dentes de elefante, dois mil troncos de ébano, e sessenta crateras de ouro e prata. Depois, surgiam dois caçadores, trazendo lanças de ouro, os quais abriam uma marcha de dos mil e quatrocentos cães da Índia ou da Hircânia, conduzidos por cento e cinqüenta homens trazendo árvores das quais pendiam todas as espécies de animais selvagens e aves: em gaiolas, viam-se papagaios, pavões, galinhas de Angola, faisões e inúmeras outras aves da Etiópia.
Fig. 461 — Festa em honra de Saco (segundo um baixo-relevo antigo)
"Vinham depois os bandos de animais, entre os quais se notavam cento e trinta carneiros da Etiópia, trezentos da Arábia, vinte e seis bois brancos da Índia, oito da Etiópia, um grande urso branco, catorze leopardos, dezesseis panteras, quatro linces, três ursozinhos, uma girafa, um rinoceronte da Etiópia.
"Finalmente, num carro de quatro rodas, vinha Baco, representado no momento em que se salvou no altar de Réa, quando estava sendo perseguido por Juno. Príapo estava ao seu lado. Esse carro era seguido de mulheres ricamente vestidas e magnificamente ornadas, as quais personificavam as cidades gregas das costas da Ásia e traziam, todas, coroas de ouro."
CAPÍTULO II
SILENO
O pai nutridor de Baco. — Sileno e as jovens. — Embriaguez de Sileno.
O pai nutridor de Baco
Sileno, que é o odre personificado (fig. 462), exerce naturalmente as funções de pai nutridor de Baco, que é o vinho. Apresenta na arte dois caracteres diferentíssimos. Nos baixosrelevos e nas pedras gravadas antigas, as suas formas grosseiras e obesas servem para realçar, pelo contraste, a elegância de Baco e a ligeireza dos sátiros e das mênades. A sua perpétua embriaguez necessita sempre de um guia. Nas cenas báquicas, vemo-lo montado num burro, que parece esmagado pelo enorme peso do ventrudo amo, e sustentado por sátiros que o impedem de cair para um dos lados.
O vinho é uma fonte de inspiração, e como Baco é o inventor da comédia, seu pai nutridor devia, em certas circunstâncias, revestir-se de um caráter, senão mais grave, pelo menos mais digno. Quando segura o pequenino Baco nos braços, Sileno cessa de ser ventrudo. A bela estátua do Louvre, intitulada Fauno e o Menino, nos mostra o preceptor de Baco, sob o aspecto de velho sátiro de membros delgados e nervosos, e grande nobreza de
Fig. 462 — Sileno, odre personificado (segundo uma estátua antiga do museu de Nápoles).
feições (fig. 463). Descobriu-se também em Pompéia, ou em Herculanum, uma encantadora estátua de bronze, que representa Sileno tocando címbalos, para distrair Baco, menino, que lhe está sobre os ombros e a quem ele fita girando a cabeça com ar infinitamente gracioso (fig. 464).
Fig. 463 — Sileno e Baco (grupo antigo, chamado o Fauno e o Menino, museu do Louvre).
Sileno e as jovens
Sileno vive sempre embriagado, mas em dados momentos, possui a embriaguez adivinhadora e inspirada, a embriaguez religiosa que sabe tudo e pode revelar aos homens os mistérios da origem do mundo. Platão o
Fig. 484 — Sileno, pai nutridor de Baco (segundo um grupo antigo do museu de Nápoles).
considera emblema de uma profunda sabedoria, oculta sob um exterior repulsivo, e Virgílio, na história de Crômis e Mnasila, nos revela o verdadeiro aspecto de Sileno no culto báquico : "Crômis e Mnasila, jovens pastores, viram no fundo de uma gruta Sileno adormecido, de veias inchadas, como sempre, pelo vinho bebido na véspera. Longe dele estava a coroa de flores, que lhe caíra da cabeça, e a pesada taça pendia-lhe da cintura por uma asa. Os pastores agarram-no (pois havia tempo que o ancião os iludia
Fig. 465 — Baco e Sileno segundo uma estátua antiga).
com a esperança de uma canção) e o amarram com as suas próprias grinaldas. Egle une-se a eles e os anima, Egle, que era a mais bela das Náiades; e no momento em que Sileno abre os olhos, ela lhe avermelha com o suco de amora a testa e as têmporas. Sileno, rindo-se, lhes pergunta: "Para que servem esses laços? Desamarrai-me, filhos; já é bastante o me haverdes surpreendido. Ides ouvir as canções que exigis..." Imediatamente
Fig 466 — Sileno montado no burro (segundo uma pedra gravada antiga).
começa. Deveríeis ter visto os faunos e os animais selvagens dançar em torno dele, e os carvalhos mais duros balançar a harmoniosa copa. Com menos alegria, o Parnaso ouvia a lira de Apolo; o Ródope e o Ismare ouviam com menos arrebatamento os acordes de Orfeu. Pois ele cantava como, na imensidão do vácuo, se reuniram os
princípios da terra, dos mares, do ar e do fogo fluido, como desses primeiros elementos saíram todos os seres, como, a princípio mole barro, o globo se arredondou em sólida massa, se endureceu pouco a pouco, forçou Tétis a conter-se nos seus limites, e se revestiu insensivelmente de mil formas diferentes. Cantava a terra, assombrada aos primeiros raios do sol, as nuvens a se erguerem no espaço, para tornarem a cair em chuva do alto dos ares, as florestas apresentando as pontas nascentes, e os animais errantes, pouco numerosos ainda, sobre montanhas desconhecidas." (Virgílio).
Embriaguez de Sileno
Sileno, que nas bacanais representa o elemento bufão, e parece ser posto ali para divertir as mênades com a sua embriaguez cambaleante e a sua obesidade, tem sido freqüentemente empregado na decoração das fontes, dos candelabros, das taças, etc. O tipo de Sileno figura naturalmente nos quadros mitológicos dos pintores dos últimos séculos. Rubens gostava de representar Sileno gordo e ventrudo, acompanhado de sátiros e ninfas que espremem uvas sobre ele, e escoltado por cupidos sorridentes e carregados de frutos. Gérard Honthorst tem, no Louvre, um triunfo de Sileno, magnificamente pintado, mas de caráter singularmente trivial : a bacante que o acompanha é verdadeiramente por demais flamenga. Se dermos crédito a Nonnos, os sátiros sequazes de Baco seriam descendentes de Sileno. "O velho Sileno, diz ele erguendo nas mãos a férula, Sileno. dotado de dupla natureza. filho da Terra, armou-se e levou a Baco os três filhos que lhe consagrou. Sustentam com as maças, auxílio
da velhice, os passos de seu pai cambalaleante. Velhos eles também apoiam o corpo preguiçoso e enfraquecido a uma cepa; os anos se lhe renovaram demais, e foi deles que saiu a dupla e ardente geração dos sátiros polígamos."
Fig. 467 — Sileno (segundo um quadro de Rúbens).
CAPITULO III
BACANTES E SÁTIROS
As bacantes e as mênades. — Os pás e os sátiros. — Os Faunos.
As bacantes e as mênades
As primeiras mulheres votadas à celebração dos mistérios de Baco, chamadas bacantes ou mênades, foram as ninfas que haviam criado o jovem deus. Nos baixos-relevos de bacanais, e notadamente no do vaso Borghese, que é o mais belo, o jovem deus, calmo no meio da ebriedade geral, segura o tirso, ouvindo uma bacante que toca lira. Os centauros e os sátiros figuram também no habitual cortejo do deus; os centauros arrastam-lhe o carro e os sátiros dançam-lhe em torno, tocando tamborim, enquanto os meninos, montados em leões ou panteras, precedem a ruidosa procissão. A arte não faz diferença nenhuma entre as mênades e as bacantes, mas um trecho de Eurípides mostra que
há uma, mitologicamente falando. As bacantes são as mulheres tebanas retiradas para o monte Citerão, e as mênades são as companheiras que Baco tinha na Ásia e que o acompanharam à Grécia. Entretanto, o poeta Nonnos qualifica de bacantes as mulheres que acompanharam Baco à conquista da Índia e pinta um quadro interessantíssimo dos seus modos de ser. "Entre as bacantes, diz ele, esta envolveu a cabeça com um manto de víboras; aquela segura os cabelos sob a hera perfumada ; uma faz vibrar na mão frenética um tirso armado de ferro; outra, mais furiosa ainda, deixa cair da cabeça, livre de véus e de faixas, a longa cabeleira; e os ventos brincam com as madeixas nos dois lados dos ombros. Umas vezes agitam elas o duplo bronze dos címbalos sacudindo sobre a cabeça os anéis de cabelos; outras, presas de acessos de cólera multiplicam sob a palma das mãos o rolar dos tamborins; e o ruído dos combates se repercute. Os tirsos tornam-se chuços; e o aço oculto pela folhagem é a ponta dessa lança ornada de pâmpanos. Uma bacante, no seu ardor pela carnificina, prende sobre a cabeça os pares de serpentes mais vorazes; outra coloca sobre o peito o envoltório dos leopardos, enquanto uma terceira, fazendo um manto da pele malhada dos cervozinhos monteses, toma o aspecto de elegante cervo. Esta, trazendo sobre o seio um leãozinho arrancado ao peito de sua mãe, confia ao leite de um seio humano a cria ilegítima Aquela, envolvendo a cintura virginal com os tríplices elos de uma serpente, deles se vale cromo de uma cintura interior, pois a serpente move a língua em torno dela, silva docemente, e se torna vigilante guarda do pudor da moça, enquanto esta, por sua vez. dormita entregue aos vapores do vinho. Uma, cujos pés livres de coturnos pisavam nas montanhas os espinheiros, mantém-se sobre uma planta ericada de espinhos: outra, deslizando, inesperadamente. pelo dorso de um camelo de longas pernas, lhe aguilhoa com a ponta do tirso o pescoço recurvo; depois, quase desaparece, levada por esses pés que não vêem o atalho. O enorme animal, livre de qualquer freio, desvia-se mil vezes na sua impetuosa marcha, e esburaca a terra, até o momento em que se dobra e se deita sobre a areia. Esta, nas encostas das florestas em que pastam os bois, pega a pele de um touro
furioso e selvagem; depois, dilacerando com as unhas impiedosas o couto do animal, o despoja do envoltório, enquanto aquela, soprando. lhe enche as entranhas. No alto de um pico, via-se, privada de véu e de calçado, uma virgem saltando de uma pedra aguda à outra beirada dos precipícios, sem estremecer; e as pedras do morro não lhe feriam os pés nus."
Fig. 468 — Bacante (segundo uma pedra gravada antiga).
O escultor Scopas, que vivia por volta de 450 antes da nossa era. parece ter fixado o tipo dessas mênades descabeladas A sua bacante, representada em estado de embriaguez, trazia um cabrito a quem degolara, e os cabelos esparsos agitados pelo vento. Não obstante a expressão do seu furor báquico, conservava a flexibilidade e a graça de uma mulher, e o deus que a agitava não lhe alterava absolutamente a beleza dos traços.
"Quem, perguntava um poeta, embriagou esta bacante? Foi Baco ou Scopas? — Foi Scopas. — Parai, parai esta estátua, senão ela foge ! exclamava outro." Um epigrama da Antologia grega faz a crítica de uma estátua de bacante que não correspondia bastante ao caráter a elas ordinariamente atribuído pela mitologia: "O escultor fez essa bacante pudica, não sabendo ainda, sem dúvida, agitar os címbalos. Com os olhos abaixados, tem ela aspecto reservado que parece dizer: "Ide-vos, e eu tocarei os címbalos, quando aqui não houver mais ninguém."
Fig. 469 — Sátiros de estilo arcaico (segundo uma pintura de vaso).
Os pãs e os sátiros
Além das bacantes, o culto de Baco ministrou à arte tipos que, em certa medida, associam a forma animal à forma humana: é o bando dançante dos pãs e dos sátiros. Nonnos representa os pãs como tendo participado da conquista da índia. "Os que, nas suas grutas nativas.
trazem o nome de Pã, seu pai, amigo das solidões; esses pãs, cuja forma humana se une à de um bode peludo, participavam do exército de Baco; doze egipãs vigorosos avançam, e todos se jactam de ser oriundos do Pã primitivo, o deus montanhês." (Nonnos).
Fig. 470 — Sátiro fazendo dançar um menino (segundo uma pedra gravada antiga).
Os sátiros participam também do homem e da cabra com a qual, aliás, gostam de brincar, como se pode ver em várias pedras gravadas antigas (fig. 471). Mas a mitologia estabelece uma diferença entre os pãs e os sátiros. O sátiro pertence a uma ordem mais elevada, por participar mais da natureza do homem e menos da natureza do animal. A animalidade é saliente nos sátiros pelas orelhas pontudas, mas às vezes eles possuem formas encantadoras, embora sempre desprovidas de nobreza. Os jovens sátiros, de pequenino nariz chato, rudimentos de pontas, e pregas que quase sempre possuem sob o queixo,
como os cabritos, têm notável expressão de alegria. Riem-se facilmente dos pãs aos quais se sentem superiores e armam-lhe mil ciladas. Os pastores, vavelmente deram mitologia: a alegria se desse o nome de
cobertos de peles de cabra, muito proorigem à forma assumida pelos sátiros na e a zombaria que se lhes atribui fez com que sátira ao poemeto cômico.
Fig. 471 — Sátiro (segundo uma pedra gravada antiga).
Os pãs, os egipãs e os faunos diferem pouquíssimo dos sátiros. Todas essas pequeninas divindades aparecem na mitologia como seres intermediários entre os deuses e os animais, e a sua vida, toda instintiva, participa inteiramente destes últimos, e mais particularmente do bode, do qual tiraram os costumes e a forma. O seu papel mitológico corresponde portanto, na vida animal, ao dos heróis na vida humana, uma vez que os heróis superiores aos demais homens, embora subordinados aos deuses, participam simultaneamente das duas naturezas.
Todo esse bando que acompanha Baco por toda parte, tende para a embriaguez e para a música. Os sátiros dançam tocando címbalos, correm atrás das ninfas, repousam tocando flauta. A criação de tais tipos pertence à escultura; trata-se de puros caprichos. Nada filosófico deu origem à sua lenda, e eles não têm outra missão senão alegrar o jovem deus sempre semiadormecido nos vapores do vinho. Os sátiros, como todos os sequazes de Baco, acompanharam o deus na sua guerra contra os índios, mas, segundo o que Nonnos nos ensina dos seus hábitos, não devem ter sido muito úteis nos campos de batalha. "Incessantemente, diz-nos o poeta nas suas Dionisíacas, o bando chifrudo dos sátiros se embriaga com taças cheias até a borda; sempre ameaçadores no tumulto, sempre fujões na luta; leões distante da refrega, lebres no combate, hábeis dançarinos, mais hábeis ainda em sorver o vinho das maiores ânforas. Pouquíssimos capitães entre eles aprenderam, sob as ordens do valoroso Marte, a arte tão multiforme da guerra, e souberam fazer manobrar batalhões. No exército de Baco, uns se cobriam de peles de boi, outros se abrigavam sob as peles de leões; estes se envolvem em peles de pantera, aqueles se armam de poderosas maças; às vezes, passam em torno dos rins peles de cervos de chifres ramosos, e fazem com elas um cinto estrelado; outras, ajustam nas têmporas pontiagudos chifres; raros cabelos lhes crescem na cabeça desigual e se prolongam até os supercílios tortuosos; quando marcham, os ventos alados sopram contra as suas orelhas tesas e as faces peludas; uma cauda de cavalo lhes prolonga o dorso, arredonda-se-lhes em torno dos rins e se ergue". A antiguidade primitiva representava os sátiros com formas grotescas ou terrificantes, e se aprazia em os imaginar raptores de ninfas. Continua-se sempre a fazer velhos sátiros barbudos; mas a arte da grande época deixou também sátiros mais jovens, nos quais a elegância de formas e uma simpática malícia se unem ao caráter primitivo dos companheiros de Baco. Finalmente, houve sátiras e sátiros crianças, sempre bem gordinhos, de ar malicioso, mas de maneira nenhuma maus. Os sátiros possuem, como sinal distintivo da estirpe, nariz chato, orelhas pontudas, olhos oblíquos, cabelos eriçados, chifres
nascentes e duas papadinhas sob o queixo. como os cabritos. Hesíodo diz que os sátiros são uma raça que para nada vale; o epíteto será justo, mas como correm incessantemente atrás das ninfas, a quem perseguem através dos bosques, os pintores e escultores encontraram nos costumes deles temas para uma verdadeira multidão de belíssimas composições.
Fig. 472 — Baco conduzido por um sátiro (segundo uma pintura de vaso).
Foi provavelmente o escultor Praxíteles que fixou o tipo dos sátiros tais quais se nos deparam em numerosos monumentos antigos. Fizera ele um sátiro de bronze que, na antiguidade, conquistara tamanha reputação a ponto de, em Atenas, ser conhecido apenas pelo vocábulo Célebre. Entre as demais representações famosas de sátiros, citava-se a de Protógenes. É o quadro que Protógenes se aprestava a fazer quando Demétrio assediou Rodes, onde vivia o ilustre artista, cuja casa, por ordem do vencedor, foi respeitada. Temos nos nossos museus várias admiráveis estátuas de faunos ou de sátiros. O Fauno flautista do Louvre é considerado imitação de uma escultura de Praxíteles. O nome de Fauno flautista corresponde, aliás, a duas estátuas quase análogas e das quais o catálogo do museu diz
o seguinte: Estas duas encantadoras estátuas representam sátiros adolescentes, tocando flauta (figs. 474 e 475). De pernas cruzadas, apoiam-se eles descuidadamente, o primeiro a um cipo, o segundo a um tronco de árvore. O manto feito de pele, preso ao ombro, recobre em parte os suportes colocados no lado esquerdo. O Sátiro em repouso, pintado por Protógenes, apoiavase talvez a uma colunazinha. Admite-se geralmente que o célebre sátiro de Praxíteles, conhecido pelo nome de Periboetos (o Famoso), foi o original das nossas estátuas, hipótese muito provável, visto que quase todos os museus possuem tal motivo freqüentemente repetido. O estilo e a idéia relembram, com efeito, as tendências da escola de Praxíteles e o florescimento da poesia bucólica; mas o Periboetos trazia uma taça.
Fig. 473 — Fauno e Fauna (segundo um busto antigo, museu de Nápoles).
O Fauno em repouso, do Vaticano, passa igualmente, talvez com maior razão, por ser imitação do sátiro de Praxíteles (fig. 477). O Fauno dançarino da galeria de
Fig. 474 — Fauno flautista (segundo uma estátua antiga, museu do Louvre)
Florença é um sátiro menos jovem que os precedentes e possui formas que se aproximam da idade viril. O mesmo podemos dizer da bela estátua conhecida pelo nome de Fauno tocando címbalos (fig. 476), da qual diz Clarac,
Fig. 475 — Fauno flautista (segundo uma estátua antiga).
na sua grande obra sobre as estátuas antigas da Europa: "Vemos aqui uma das mais lindas estátuas da antiguidade. É tão valiosa pelo sábio trabalho do artista como pelo conhecimento que nos dá do instrumento preso ao seu pé
direito. Compunha-se esse instrumento de dois pequeninos crótalos (hoje castanholas) fixados a duas tábuas reunidas por uma espécie de charneira, de modo que era possível batê-los um contra o outro. Chamava-se scabillum, e a sua parte superior era ligada ao pé, como nos é dado ver. Batiam-se cadencialmente as castanholas, quer para
Fig. 476 — Fauno tocando címbalos (segundo uma estátua antiga).
Fig. 477 — Fauno em repouso (segundo uma estátua antiga, em Roma).
marcar o compasso, quando só havia um scabillum num coro de músicos, quer para acompanhar os demais instrumentos, quando havia vários. Chamei Fauno a essa
Fig. 478 — Fauno dançando (segundo uma estátua antiga).
estátua, com os escritores que me precederam, mas o ,u verdadeiro nome deve ser Sátiro. Não se pode duvidar de que Fauno seja apenas uma divindade da mitologia
romana, e o belo mármore é indubitavelmente ou uma estátua grega, ou copia de uma estátua grega. É sabido que os sátiros, na antiga mitologia, tinham formas humanas com exceção das orelhas e da cauda de cavalo. Os faunos se lhe assemelhavam, mas, depois de Zêuxis, passaram a ter cauda de bode."
Os Faunos
O verdadeiro Fauno é primitivamente um deus itálico, que a arte confundiu com os sátiros. Entre os velhos autores surge com todos os caracteres de um civilizador, que suaviza os costumes nômades mediante a música. É inventor da gaita pastoril. Quando o culto dos gregos se espalhou pela Itália, as relações que Fauno apresentava com Pã fizeram com que os dois se confundissem, não obstante a diversidade de suas lendas. Como todos os deuses primitivos da Itália, Fauno cuidava da fecundidade dos rebanhos e recebia as homenagens dos pastores. Diversas lindas estátuas antigas o representam com um caráter pastoril, trazendo um cabrito aos ombros (fig. 479). O brilhante cortejo de Baco inspirou freqüentemente os artistas dos últimos séculos; mas nenhum deles penetrou tanto quanto le Poussin o caráter da mitologia grega. Possuímos belíssimos exemplos no museu de Louvre, na Galeria Nacional de Londres, e nas várias grandes coleções da Europa. Há uma embriaguez e uma alegria encantadoras nesses sátiros que correm atrás das ninfas dos bosques, e não houve artista que melhor compreendesse esses tipos estranhos. Como é linda também a composição em que vemos um sátiro, um fauno, uma hamadríada e dois cupidos viajando juntos para irem à festa de uma divindade rústica qualquer, onde se realizarão ao ar livre danças alegres e repastos, onde as honras caberão às uvas! Cupido leva as gaitas diante do cortejo; mas a hamadríada
cansada, quer que o sátiro a carregue, pois há pressa de chegar: tem-se a impressão de já estar ouvindo a ruidosa alegria das festas de Pã ou de Baco. Fragonard (fig. 480) e Clodion gostavam também de representar os alegres sátiros e nisso punham toda a vida e encantadora inteligência da arte francesa do século dezoito.
Fig. 479 — Fauno e cabrito (segundo uma estátua antiga).
Os temas de tal gênero não podiam deixar de agradar a Rubens, que neles via um pretexto para grande variedade de matizes para as carnações e o tumulto de movimentos que lhe interessava a imaginação. Em enorme quantidade de quadros, disseminados pelas nossas coleções, pintou reuniões de bacantes e de sátiros, com frutos, flores, tigres listados, meninos rechonchudos, ninfas
adormecidas, e por toda parte espalhou uma alegria, uma riqueza de tons, um maravilhoso arrebatamento. A grande Bacanal de Jordaens, no museu de Bruxelas, é também obraprima de esplendor e de luz; toda essa mitologia materialista dos pintores flamengos seduz a vista como um ramalhete, sem contudo jamais atingir a cadência que constitui o encanto das concepções antigas.
Fig. 480 — Sátiros e ninfa.
As cenas báquicas são freqüentemente representadas nos sarcófagos ou nos baixos-relevos dos vasos. O vaso Borghese, no museu do Louvre, é particularmente famoso por tal gênero de representações. Baco, coroado de uma faixa e de um ramo de hera, segura com a mão direita o seu tirso e coloca a outra sobre o ombro de uma bacante que toca lira. Outra bacante agita um tamborim por trás
do deus; diante deste vemos uma pantera deitada e um sátiro dançando. No outro lado do vaso, o velho Sileno se abaixa penosamente para pegar a taça. Perto, uma bacante toca crótalos, um sátiro toca uma flauta dupla, etc. Esse magnífico vaso de mármore foi descoberto no século XVI, em Roma, perto dos jardins de Salústio.
CAPÍTULO IV
OS CENTAUROS
Os centauros primitivos. — Baco e os centauros. — Hércules e os centauros. — Rapto de Hipodâmia Os centauros primitivos
Os montanheses da Tessália, da época pelásgica, já eram excelentes cavaleiros quando o uso de montar a cavalo não era conhecido no resto da Grécia. Foram considerados pelos vizinhos espantados como monstros, e por gostarem do vinho, as lendas mitológicas os classificaram imediatamente no cortejo de Baco. Nos tempos primitivos foram os centauros representados como homens, no dorso dos quais se adapta a cauda ou até o corpo de um cavalo, mas conservando pernas de homem na parte anterior (fig. 481). A grande época substituiu a esse tipo grosseiro o de um cavalo cujo peito e cuja cabeça cedem o lugar à parte superior do corpo de homem. Os centauros
têm orelhas pontudas como os sátiros, mas tal caráter não é partilhado pelas centauras, cuja parte superior do corpo é, quase sempre, de estonteante beleza. O centauro Borghese, no museu do Louvre, é uma das mais belas representações dessas personagens mitológicas (fig. 482). O catálogo diz o seguinte: "Um centauro, de mãos amarradas às costas, traz no lombo um cupido báquico para o qual volta a cabeça, e a quem tenta fustigar com a cauda de cavalo. A dolorosa expressão de sua figura oferece certa semelhança com a de Laocoonte. Uma das orelhas está abaixada e a outra se ergue em ponta. A extremidade do nariz, coberta de rugas, lembra as narinas do cavalo que relincha. Na sua impotência, o monstro implora a graça do jovem vencedor. Cupido tem os braços estendidos, como se estivesse manejando um chicote. Inclina-se para o lado direito, de modo que o seu olhar triunfante encontra o do centauro martirizado. Tem as têmporas coroadas de folhas de hera, e nas faces se lhe nota a pequena madeixa de pelos que caracteriza os sequazes de Baco." Existem várias repetições do famoso grupo.
Fig. 481 — O centauro primitivo (segundo uma pedra antiga).
As representações das centauras, embora muito mais raras que as dos centauros, surgem por vezes nos sarcófagos ou nas pedras gravadas. Zêuxis fizera uma centaura aleitando os filhos, quadro que gozara de grande
Fig. 482 — O centauro Borghese (estátua antiga. museu do Louvre).
celebridade e que Luciano assim descreve: "É sobre uma relva verde que a centaura está representada; a sua parte inferior, que é a de uma égua, está deitada sobre o lado. Os pés traseiros estão estendidos e os dianteiros dobrados; uma das pernas parece apoiada sobre o joelho, enquanto a outra descansa sobre o chão, como fazem os cavalos quando querem levantar-se. A parte superior é a de uma formosa mulher que se apóia num cotovelo; segura nos braços um dos dois filhos e apresenta-lhe o seio; o outro filho suga a mãe, à moda dos potrinhos. No alto do quadro está o centauro, do qual só notamos a metade do corpo, e que parece estar à espreita. Inclinado para os filhos, sorri-lhes, e com a mão direita segura um leãozinho a quem levanta acima da cabeça, como que disposto a assustá-los." Toda a Grécia conhecia o quadro de que vários autores falaram. Vemos também lindas centauras num baixo-relevo báquico do museu Pio-Clementino. Uma, que segue a Baco, segura na mão castanholas que um jovem sátiro tenta arrancar-lhe, a outra se volta para expulsar um sátiro que acaba de montar nela.
Baco e os centauros
O poeta Nonnos fala de uma raça de centauros cornudos que acompanharam Baco na sua expedição à índia. "Outra tribo de centauros com aspecto de homens se apresenta: é a raça peluda dos Feres de lindos chifres; Juno deu-lhes um corpo portador de chifres também, mas de natureza inteiramente diversa. Foram, outrora, sob forma humana, filhos das Náiades que se chamam Híades, filhas do rio Lamos. Cuidaram de Baco, o enjeitado de Júpiter, e esses zelosos guardas do invencível Baco não possuíam naquela época um vulto estranho. Muitas vezes, em
tenebroso antro, acalentavam-no nos braços, quando ele exigia aos gritos a morada paterna. Menino ainda, e já astuto, imitava às vezes em tudo um cabrito recém-nascido; oculto no fundo do redil, cobria-se inteiramente de longos pelos, e sob tão estranha aparência, imitava a marcha e os passos da cabra; às vezes, disfarçando-se com a forma mentirosa de uma mulher, assemelhava-se a uma jovem, retinha os cabelos sob adornos perfumados e vestia-se de roupa de mil cores. Depois, rindo-se do ciúme de Juno, fazia sair dos lábios uma voz feminina. Em seguida, cruzava um pano sobre o peito, e fingia sustentar as rotundidades do seio; e como que para defender o pudor, envolvia o corpo numa faixa de púrpura. O mistério foi inútil; Juno, que lança do alto e de todos os lados o seu inevitável olhar, surpreendeu todos esses disfarces e zangou-se com os guardas de Baco. Então, colhendo durante a noite as flores maléficas da Tessália, impôs a eles um sono encantado; depois, destilou-lhes sobre os cabelos essências envenenadas, ungiulhes a cabeça com um licor penetrante e mágico, e alterou-lhes a antiga aparência humana. Assumiram, pois, a forma de animal de longas orelhas. Atrás, nasceu-lhes a cauda de cavalo, e nas têmporas lhes brotou o chifre de boi; os olhos se lhes alargaram nas testas chifrudas. Os maxilares de alvos dentes alongaram-se para o queixo; uma crina esquisita se lhes escapou do pescoço e se lhes estendeu até os pés."
Hércules e os centauros
Os centauros aparecem freqüentemente na mitologia: os seus costumes selvagens eram bastante conhecidos dos gregos e o termo de centauro eqüivalia ao de brutal e feroz. Com exceção do centauro Quíron, tipo absolutamente à parte, e que sabe atirar com o arco, as únicas armas conhecidas dos centauros são tições ardentes de árvores que arrancam, ou pedras que colhem. O seu
alimento era a carne crua; gostavam da embriaguez. Quando Hércules andava à procura do javali de Erimanto, encontrou o centauro Folos, que lhe deu hospitalidade e, para lhe dar de beber, o conduziu a um tonel de vinho recebido de Baco. Uma pintura de vaso de estilo arcaico nos mostra Hércules coberto com a pele de leão avançando para o tonel ; o centauro Folos, que o segue, segura na mão a habitual arma dos centauros, isto é, um tronco arrancado da floresta (fig. 483). Mal o aroma do vinho se espalhou pelos ares, os centauros acorreram de todos os lados, e, reunindo-se tumultuosamente diante da caverna de Folos, exigiram aos brados que lhes fosse entregue o apreciado líquido. Hércules repeliu-os, matando bom número. Esse combate deu origem a várias representações antigas (fig. 484). Na arte dos últimos séculos, Lebrun fez, em torno do combate de Hércules contra os centauros, uma composição cheia de vida e de movimento, cuja animação contrasta com as produções da antiguidade nas quais raramente se vê o fogo e a paixão dos artistas modernos (fig. 485).
Rapto de Hipodâmia
A guerra dos atenienses contra os centauros, por ocasião do rapto de Hipodâmia, constitui também o tema de grande número de representações. Piritus, desejando desposar Hipodâmia, convidara para as núpcias Teseu e os atenienses; mas convidara igualmente os centauros, na esperança de que o aspecto deles distraísse os convivas e alegrasse a festa; mal os centauros começaram a se aquecer com os vapores do vinho, esqueceramse de toda e qualquer conveniência. Um deles, Eurites, derrubou a mesa do banquete e pegou Hipodâmia pelos cabelos, com o fito de a raptar. Os demais centauros, seguindo o exemplo, apoderaram-se das mulheres que lhes agradavam ou
que estavam ao alcance das mãos. A festa transformou-se imediatamente, e por toda parte ressoaram gritos de mulheres.
Fig. 483 — Hércules e o centauro Folos (segundo uma pintura de vaso).
Fig. 484 — Hércules combatendo os centauros (segundo uma medalha antiga).
Teseu, então, aproximou-se do centauro Eurites e lhe arrancou Hipodâmia. O centauro atirou-se contra Teseu. Perto do lugar em que se batiam havia um vaso antigo de enorme tamanho; Teseu pegou-o e, atirando-o à cabeça de Eurites, lhe esmagou o crânio. O centauro, rolando sobre a areia, vomitou, com o sangue. o vinho que acabava de sorver.
Os demais centauros, vendo o irmão morrer, enfureceram-se, e animados pelo vinho, servem-se como armas de tudo quanto lhes cai nas mãos. Por toda parte voam vasos, pratos e jarras; tudo quanto servia para o festim se transforma em instrumento de guerra. Após terrível luta, foram os centauros exterminados. O combate foi representado em grande número de baixos-relevos, entre outros nas métopas do Partenão.
Fig. 485 — Hércules combatendo os centauros.
O rapto de Hipodâmia e o castigo do raptor figuram também em pinturas antigas (figs. 486 e 487). Vemos o centauro segurando uma grande pedra para lutar contra Teseu que ergue a maça. Um centauro já batido pelo herói trata de fugir. O combate de Teseu contra os centauros era considerado pelos atenienses um dos seus títulos de glória durante a idade heróica. Os episódios estão fixados nas métopas do Partenão. Canova compôs sobre essa luta um famoso grupo, que, no entanto, está longe de possuir a energia do preparado por Brye sobre o mesmo tema.
Aqui o herói ateniense salta sobre o centauro cuja cabeça segura com uma das mãos, enquanto com a outra o golpeia (fig. 488)
Fig. 486 — Hipodâmia raptada pelos centauros (segundo uma pintura antiga)
Fig. 487 — Teseu combatendo os centauros (segundo uma pintura antiga)
Fig. 488 — Teseu e o centauro,
CAPÍTULO V
O NASCIMENTO DE BACO
Cadmo e o oráculo. — Os companheiros de Cadmo. — O dragão de Marte, — Núpcias de Cadmo e Harmonia. — Júpiter e Semeie. — A coxa de Júpiter. — A nutriz de Baco, — Ino e Palemon.
Cadmo e o oráculo
O rei de Tiro, Agenor. não encontrando sua filha Europa, que Júpiter mandara fosse levada para Creta ordenou ao filho Cadmo que percorresse a terra até descobrir o paradeiro da irmã, e proibiu-lhe voltar à Fenícia sem ela. Cadmo, após buscá-la em vão, foi consultar o oráculo de Apolo para saber o que devia fazer, e dele recebeu a seguinte resposta: "Encontrarás num campo deserto uma novilha que ainda não suportou jugo nem puxou arado: segue-a, e ergue uma cidade no pasto em que ela se detiver. Darás ao lugar o nome de Beócia."
Mal Cadmo saiu do antro de Apolo, viu uma vaca que ninguém vigiava e que caminhava lentamente; não lhe notou no cangote sinal nenhum de ,jugo; por conseguinte, seguiu-a. adorando cm respeitoso silêncio o deus que lhe servia de guia. Passara o rio Cefisa e atravessara os campos de Panope, quando a novilha se deteve e, erguendo a cabeça, mugiu. Em seguida, olhou para os que a tinham seguido, e deitou-se sobre a relva. O fato está representado numa antiga moeda: Cadmo segura a lança ao lado da novilha, muito tenra. A concha perto de Cadmo indica a sua origem fenícia (fig. 489) .
Fig. 480 — Cadmo e a novilha (segundo uma medalha antiga).
Os companheiros de Cadmo
Cadmo, após beijar a terra estrangeira e dirigir voto ás montanhas e às planícies do país, resolveu oferecer um sacrifício a Júpiter, e ordenou aos companheiros que fossem buscar água. Havia nas proximidades urna antiga floresta que o ferro jamais tocara, no meio da qual exista uma gruta coberta de espinheiros; a entrada era baixíssima ; e dela jorrava água em abundância. Tratava-se do retiro do dragão de Marte : o monstro era horrível, tinha a cabeça coberta de escamas amarelas, que
brilhavam como ouro, dos olhos saía-lhe fogo e u corpo parecia inchado pelo veneno que continha. Exibia três fileiras de aguçadíssimos dentes e três línguas (lotadas de movimentos incrivelmente rápidos. Mal os companheiros de Cadmo entraram no antro do dragão, com a intenção de tirar água, o ruído que fizeram despertou o monstro, o qual começou a silvar; os infelizes fenícios foram todos mortos pelo dragão que a uns dilacerava com os dentes, a outros sufocava, enrodilhando-se-lhes em torno, ou envenenava com o hálito.
O dragão de Marte
Entretanto Cadmo, espantado por notar que os companheiros não regressavam, tratou de procurá-los. Cobrindo-se da pele de um leão, empunhou a lança e o dardo, e entrou na floresta onde imediatamente percebeu o dragão de Marte, deitado sobre o corpo dos fiéis companheiros, sugandolhes o sangue. Pegou, então, uma pedra de enorme tamanho, e atirou-a contra o monstro com tal impetuosidade que até as mais fortes muralhas e torres houveram estremecido. A cena está figurada numa pintura de vaso onde vemos Cadmo, com a clâmide e o capacete beócio, segui ando na mão esquerda um vaso para tirar água e na direita uma pedra que atira ao dragão da fonte de Dirceu. Este se levanta medonhamente à entrada da gruta, diante da qual cresce um loureiro. Duas mulheres ricamente vestidas, sem dúvida ninfas da floresta, estão de pé de cada lado da gruta : uma delas segura na mão um ramo, a outra uma taça. No céu, vêem-se as divindades que assistem à cena, e que, segundo um uso espalhadíssimo entre os pintores de vasos, só apresentam a
parte superior do corpo. São elas, começando pela esquerda, Mercúrio, coroado de mirto e empunhando o caduceu, Vênus completamente vestida e caracterizada pelo espelho, Pã reconhecível pelos chifres de bode, e um sátiro que traz o tirso e a faixa sagrada. O sol mostra uma parte do seu disco. Enquanto o herói contemplava o enorme tamanho do dragão abatido, ouviu a voz de Palas que lhe ordenava semeasse os dentes do animal nos sulcos que trataria de abrir na terra. Cadmo obedece à ordem da deusa; imediatamente os torrões começaram a mover-se, e deles saiu uma safra de combatentes. Em primeiro lugar saíram lanças, depois os capacetes ornados de penas; em seguida, perceberam-se os ombros, o peito e os braços armados dos novos homens, que começaram a lutar uns contra os outros, mal viram a luz. Igual fúria animou o bando inteiro; os infortunados irmãos encharcaram com o sangue a terra que os formara, e mataram-se a ponto de só restarem cinco. Estes passaram a ser companheiros de Cadmo, que os empregou na construção da cidade de Tebas, ordenada pelo oráculo. (Ovídio).
Núpcias de Cadmo e Harmonia
Harmonia, filha de Vênus e de Marte, foi a esposa que Júpiter destinava a Cadmo, e todos os deuses quiseram assistir às suas núpcias, realizadas na cidade recém-fundada. Cada um deles levou um presente a Harmonia, e Vênus entregou-lhe, entre outras coisas, um colar que se tornou famoso nas lendas tebanas. Segundo certas tradições, Júpiter teria dado Harmonia a Cadmo, para recompensar o herói pelos serviços recebidos na luta contra Tifão, que descobrira o raio do rei dos deuses e conseguira apoderar-se dele.
Um baixo-relevo antigo, infelizmente assaz mutilado, nos mostra as núpcias de Cadmo e Harmonia. O herói, coberto apenas do capacete, está sentado perto da esposa e rodeado por várias divindades (fig. 490).
Fig. 490 — Núpcias de Cadmo e Harmonia (segundo um baixo-relevo antigo).
Júpiter e Semele
Cadmo teve do seu casamento com Harmonia um filho, Polidoro, e quatro filhas, Autonoe, Ino, Semele e Agave Semele foi amada de Júpiter e tornou-se mãe de Baco; mas a nova paixão do senhor dos deuses não podia ficar por muito tempo oculta a Juno, que resolveu vingar-se antes do nascimento da criança trazida p r Semele no seio. "A implacável deusa, resolvida a perder a rival, revestiu-se do aspecto de Beroé, a velha nutriz de Semele, e indo visitar a jovem, fez habilmente com que a conversação recaísse sobre Júpiter. Prouvera ao c& , disse à filha de Cadmo que seja o próprio Júpiter quem te ama! Mas eu temo por ti: quantas moças não foram iludidas por simples mortais que se diziam um deus qualquer! Se
aquele de quem me talas for verdadeiramente Júpiter, ele saberá dar-te provas certas, vindo visitar-te com a majestade que o acompanha, quando se aproxima de Juno." Enganada por tão artificiosas palavras, a filha de Cadmo pediu a Júpiter que lhe concedesse uma graça, sem especificar qual, e o pai dos deuses e dos homens jurou pelo Estige que a concederia. Descontente e inquieto com o que ela lhe pedira, mas não podendo retirar um juramento pelo Estige, reuniu os trovões e os raios e foi visitar Semeie. Mas a habitação de um morta] não poderia resistir àquilo, e mal o deus se aproximou do palácio de Semeie o incêndio se generalizou. A filha de Cadmo ficou reduzida a cinzas, e Júpiter mal teve tempo para retirar-lhe do seio o menino que ela ia dar à luz e encerrá-lo na sua coxa, onde ficou até o dia designado para o nascimento". (Ovídio). Esse menino foi Dionisos, chamado pelos latinos Baco, ou Líber, que assim nasceu duas vezes e foi educado pelas ninfas de Nisa.
A coxa de Júpiter
O poeta Nonnos assim narra o nascimento de Baco, ao sair da coxa de Júpiter: "Entretanto, ao vê-lo sair de Semeie já queimada, Júpiter acolheu Baco semiformado fruto de tal nascimento produzido pelo raio, encerrou-o na coxa, e águardou o curso da lua que traria a maturidade. Dali a pouco a rotundidade amoleceu sob as dores do parto, e o menino, que passara do regaço feminino ao regaço masculino, nasceu sem deixar uma mãe, pois a mão do filho de Saturno, presidindo pessoalmente ao parto, destruiu os obstáculos e soltou os fios que cosiam a coxa geradora. Mal se livrou do divino parto, as Horas, que lhe haviam estipulado o tempo, coroaram Baco de grinaldas de hera como presságio do futuro.
Cingiram-lhe a cabeça carregada de flores e ornada dos chifres de touro (alusão a Baco-Hébon). Depois, tirando-o da colina da Dracônia que o vira nascer, Mercúrio, filho de Maia, voou, segurando-o, e foi o primeiro em chamá-lo de Dionisos, como lembrança da sua origem paterna. Com efeito, na língua de Siracusa, Nisos quer dizer coxo, e Júpiter caminhava coxeando quando trazia na coxa o peso de filho. Chamaram-no igualmente Erafriotes, deus cosido, por ter estado cosido na coxa do próprio pai (fig. 491). (Nonnos).
Fig. 491 — Mercúrio e Baco (segundo uma pintura de vaso).
A estranha maneira pela qual Baco veio ao mundo inspirou a Luciano um dos seus diálogos cômicos sobre os deuses. Netuno. — Posso agora, Mercúrio, ver Júpiter? Mercúrio. — Na,. Netuno: Netuno. — Em todo caso, anuncia-me. Mercúrio. — Não insistas, digo-te. O momento não convém, e tu não podes vê-lo agora. Netuno. — Estará com Juno? Mercúrio. — Nada disso: enganas-te. Júpiter está doente.
Netuno. — De que doença, Mercúrio? O que me contas é assombroso. Mercúrio. — Tenho vergonha de to dizer, mas é exatamente isso. Netuno. — Não te pejes em frente de mim, que sou teu tio, afinal. Mercúrio. — Pois bem, Netuno acaba de dar à luz. Netuno. — Dar à luz? Ele? Ora! E como? Quer dizer que nos ocultou que tinha os dois sexos... Mas o seu ventre nunca se dilatou! Mercúrio. — Tens razão, porque não era ali que trazia o filho. Netuno. — Compreendo. Deu à luz pela cabeça, como no caso de Minerva. Safa, que cabeça fecunda! Mercúrio. — Nada disso! Era na coxa que trazia o filho que teve de Semeie. Netuno. — Ah, excelente deus que traz filhes e dá à luz por todos os lados! Quem é essa Semele? Mercúrio. — Uma tebana, uma das filhas de Cadmo. Júpiter amou-a, e ela concebeu um filho. Netuno. — E depois, Mercúrio? Mercúrio. — Juno, cujo ciúme bem conheces, visitando Semeie, persuadiu-a a rogar a Júpiter que a fosse ver com os trovões e os raios; Júpiter consentiu, chegou empunhando os raios, ateou fogo à casa, e Semele pereceu no incêndio. Ordenoume ele, então, que fendesse o ventre da mulher, e lhe trouxesse o embrião incompleto, que ainda não contava sete meses. Obedeci, Júpiter abriu a coxa e na brecha colocou o menino. Hoje, chegado o terceiro mês, deu-o à luz. Netuno. — E onde está o menino, agora? Mercúrio. — Levei-o a Nisa e confiei-o aos cuidados das ninfas, com o nome de Dionisos. Netuno. — Por conseguinte, Júpiter é simultaneamente pai e mãe desse Dionisos. Mercúrio. — Naturalmente. Mas vou levar-lhe, neste momento, água para lavar a ferida, e ajudá-lo em tudo quanto é preciso nessas ocasiões." Cita Diodoro de Sicília algumas das explicações dadas no seu tempo sobre o segundo nascimento ou encarnação de Baco. Segundo uns, tendo a vinha desaparecido pelo dilúvio de Deucalião, reapareceu na terra, quando as
chuvas cessaram. Ora, a vinha nada mais é do que Baco que e mostrou aos homens segunda vez, após ter sido conservado por algum tempo na coxa de Júpiter, segundo a fórmula mitológica. Diziam outros que Baco nascia realmente duas vezes, contando como primeiro nascimento a germinação da planta, e como segundo a época em que a vinha dá uvas. Enfim, os que acreditavam na realidade histórica da personagem sustentavam que havia vários Bacos, reunidos pela credulidade popular num único.
Fig. 492 — Baco lavado pelas ninfas (segundo um baixo-relevo antigo) .
O segundo nascimento de Baco foi tema de numerosas representações plásticas. Num vaso arcaico do British Museum de Londres, vemos Júpiter com a coxa enfaixada. Num espelho etrusco, vemos Júpiter sentado, empunhando o cetro; o jovem Baco sai-lhe da coxa. Atrás de Júpiter, uma parca alada preside ao nascimento do menino e assinala o instante. Baco é recebido por uma ninfa que lhe estende os braços, e atrás dela fica Apolo, segurando um ramo de loureiro (fig. 493). É assim, diz Nonnos, que em conseqüência desses partos sobrenaturais, Mercúrio, seu aliado, leva nos braços o menino já semelhante à lua e que não verte uma lágrima. Incumbiu ele as ninfas, filhas do rio Lamos, de cuidar do enjeitado de Júpiter, de cabeleira ornada de
cachos de uvas. Elos o acolheram nos braços e cada unia ofereceu o leite do seu seio. Deitado nos joelhos delas, e jamais dormitando. o deus lançava constantemente o olhar para o céu, e divertia-se batendo o ar com os pés. À vista do pólo, novo para ele, observava com estupefação a rotundidade dos astros da pátria, e sorria." (Nonnos). Um baixo-relevo do Capitólio nos mostra as ninfas ocupadas em lavar o pequenino Baco que uma delas tem nos joelhos, enquanto a outra verte água num vaso. No mesmo momento, vemos à direita Baco um pouco maior, e divertido por alguns sátiros, e à esquerda, está ele montado num cabrito e traz nos ombros o cisto místico, seguindo um sátiro que conduz o cabrito (fig. 492).
A nutriz de Baco
"Mas em breve, diz Nonnos, a esposa de Júpiter notou o filho divino, e zangou-se. Por efeito da sua terrível cólera, as filhas de Lamos enfureceram-se sob a vergasta da péssima divindade. Em suas casas, precipitavam-se contra os que as seguissem; nas encruzilhadas, degolavam os viajantes. Lançavam gritos horríveis, e no meio de violentas convulsões, os seus esgares lhes desfiguravam o rosto; corriam de um lado a outro, entregues ao frenesi, umas vezes girando e saltando, outras fazendo esvoaçar ao vento a cabeleira. Os véus açafroados do peito tornavam-se brancos sob a espuma que lhes caía da boca. Na sua demência, teriam despedaçado o próprio Baco, ainda menino, se Mercúrio, deslizando passo a passo e em silêncio, não o tivesse raptado segunda vez para depô-lo na casa de Ino, que havia pouco dera à luz. Acabava ela de dar à luz o filho Melicerte, e estava a acalentá-lo; o seio regurgitava-lhe de leite. O deus falou-lhe com voz afetuosa: "Mulher, eis aqui um menino; recebe-o. É o
filho de tua irmã Semeie. Os raios do quarto nupcial não o atingiram. e as faíscas que perderam sua mãe o pouparam. Deixa-o ficar ao pé de ti, oculto, e cuida de que nem o olho do Sol, durante o dia, nem o da Lua, durante a noite, o vejam fora do teu palácio. Senão, Juno será capaz de o descobrir." Assim falando, Mercúrio, agitando nos ares as ágeis asas talares, voa e desaparece nos céus. Ino obedece; e ternamente abraça Baco, privado de mãe, e oferece o seio a ele e ao filho (fig. 494).
Fig. 493 — Nascimento de Baco (segundo um espelho etrusco).
Um belo baixo-relevo, esculpido em torno de uma cratera do museu de Nápoles, mostra Ino, a quem Mercúrio, seguido de sátiros e de mênades, leva o divino filho. Atrás de Ino, estão de pé seu esposo Atamas e suas duas irmãs, Agave e Autonoe. "Ino confiou Baco à particular vigilância da ninfa Místis, a de luxuosa cabeleira, que Cadmo criara, desde a infância, para o serviço íntimo de Ino. Ela é que tirava
menino do seio onde se alimentava, e o encerrava em tenebroso esconderijo. Mas a resplendente luz da testa anunciava, por si, o enjeitado de Júpiter: os muros mais sombrios do palácio se iluminavam, e o esplendor do invisível Baco dissipava todas as trevas, Ino, durante toda a noite, assistia aos folguedos do menino; e muitas vezes Melicerte, inseguro, engatinhava em direção a Baco, que balbuciava o grito de Evoé, e ia sugar com os lábios rivais
Fig. 494 — Mercúrio entregando Baco a uma ninfa.
Fig. 495 — Mercúrio pega o menino Baco que sai da coxa de Júpiter (segundo um baixo-relevo do museu Pio-Clementino).
o seio vizinho. Após o leite da ama, Místis dava ao jovem deus os demais alimentos e vigiava-o sem nunca adormecer. Hábil no seu inteligente zelo, e exercitada na arte mística cujo nome trazia, foi ela que instituiu as festas noturnas de Baco; foi ela que, para expulsar das iniciações o sono, inventou o tamborim, os guizos ruidosos e o duplo bronze dos ensurdecedores címbalos. Foi a primeira em acender os archotes para iluminar as danças da noite, e fez ressoar Evoé em honra de Baco amigo da insônia. Foi também a primeira, curvando as hastes das flores em grinalda, a cingir a cabeleira de uma faixa de pâmpanos, e teceu a hera em torno do tirso; depois, ocultou-lhe a ponta de ferro sob as folhas, para que o deus se não ferisse. Quis que os falos de bronze fossem presos aos seios nus das mulheres, e aos seus quadris as peles de cervos; inventou o rito do cesto místico, todo repleto dos instrumentos da divina iniciação, brinquedos da infância de Baco, e foi a primeira em prender em volta do corpo essas correias entrelaçadas, de répteis. (Nonnos). "Foi ali, sob a guarda e sob os numerosos ferrolhos da discreta Místis, num canto do palácio, que os olhares infalíveis da desconfiadíssima Juno descobriram Baco. Jurou ela, então, pela onda infernal e vingadora do Estige, que inundaria de desventuras a casa de Ino; e sem dúvida teria exterminado o próprio filho de Júpiter, se Mercúrio, prevenido, o não tivesse imediatamente levado às alturas da floresta de Cibele; Juno para lá correu com toda a velocidade dos seus pés. Mas Mercúrio chegou antes, e levou o deus chifrudo à deusa." (Nonnos).
Ino e Palemon
Entretanto Juno, que não conseguira atingir Baco, perseguiu com a sua cólera os que estavam ligados ao deus. A morte de Semeie, mãe de Baco, não lhe bastava. Quis ela ainda golpear Ino, irmã de Semeie, que servira
de nutriz a Baco. Ino orgulhava-se de ser filha de Cadmo e mulher de Atamas, rei de Tebas, a quem dera vários filhos. Juno desceu aos infernos em busca de Tisífona, uma das Fúrias, e ordenou-lhe que afligisse de loucura furiosa Atamas e Ino. A serva de Juno mal entra no palácio faz com que, tanto o rei como a rainha, sintam os terríveis efeitos da sua presença. Atamas, acometido de súbita fúria, corre pelo palácio, gritando: "Coragem, companheiros, estendei as redes nesta floresta; acabo de perceber uma leoa com dois leõezinhos". Põe-se, então, a perseguir a rainha que ele supõe ser um animal feroz, arranca-lhe dos braços o jovem Learco, seu filho, o qual, divertindo-se com o arrebatamento do pai, lhe estendia os braços, e, fazendo-o girar duas ou três vezes, atira-o contra uma parede, esmagando-o. Depois, ateia fogo ao palácio. Ino, tomada de semelhante furor, por efeito da dor que lhe causara a morte do filhinho, ou pelo fatal veneno espalhado sobre ela por Tisífona, dá gritos horríveis, trazendo ao colo Melicerte, e dizendo: Evoé, Baco! Juno sorri quando ouve pronunciar o nome desse deus. "Que teu filho, diz-lhe ela, te auxilie a passar o tempo nessa fúria que te possui." À margem do mar, encontra-se um rochedo escarpado, cujo fundo serve de refúgio às águas que o cavaram; o alto está eriçado de pontas e avança bastante para o mar; Ino, a quem o furor dava novas forças, monta sobre esse rochedo e se precipita com Melicerte: as ondas que a recebem se cobrem de espuma e a sorvem. (Ovídio). Vênus, que era aliada da família de Cadmo por sua filha Harmonia, foi ao encontro de Netuno e, mediante os cuidados de ambos, Ino e Melicerte, perdendo o que tinham de mortal, tornaram-se divindades marinhas. Ino tomou, então, o nome de Leucotéia e Melicerte o de Palemon. Vários monumentos fixam tal aventura. Numa moeda de Corinto, vemos Ino apresentando a Netuno seu filho Melicerte, e noutra vemos Melicerte transportado por um delfim (figs. 496 e 497). Finalmente, uma soberba estátua antiga representa Leucotéia, sob a forma de Ino, nutriz de Baco, segurando nos braços o divino filho (fig. 498).
Mal a notícia de tais fatos se espalhou pela cidade, as damas tebanas correram à margem do mar em busca da rainha e, seguindo-lhe as pegadas, chegaram ao rochedo de onde ela se havia atirado. Na aflição que lhes causa tão trágico desfecho, rasgam as vestes, arrancam os cabelos, e deploram as desventuras da infeliz casa de Cadmo, zangam-se com Juno, e censuram-lhe a injustiça e crueldade.
Fig. 496 — Ino e seu filho (segundo uma moeda de Corinto).
Fig. 497 — Palemon no delfim (segundo uma moeda antiga).
A deusa, ofendida com as suas queixas, diz-lhes: "Ides ser vós outras os mais terríveis exemplos dessa crueldade que tanto me censurais." O efeito segue-se à ameaça. A que mais afeiçoada fora a Ino, prestes a lançar-se ao mar, imobiliza-se e vê-se presa ao rochedo. Outra, enquanto fere o próprio seio, sente os braços tornarem-se duros e inflexíveis. Outra, com os braços estendidos para o mar, não mais consegue movê-los. E mais outra, que estava arrancando os cabelos com as mãos, sente que estas, e os cabelos se transformam em pedra.
A maioria sofre mudança análoga e fica na mesma atitude em que estavam no momento da metamorfose. As demais companheiras da rainha, transformadas em aves, desde então esvoaçam no mesmo lugar e roçam as ondas com a ponta das asas. (Ovídio).
Fig. 498 — Leucotéia.
CAPÍTULO VI
EDUCAÇÃO DE BACO
Baco na corte de Cibele. — A infância de Baco. — Baco e Ampelos.
Baco na corte de Cibele
Vimos que o jovem deus, após inúmeras peripécias, acabou por ser conduzido a Cibele. Um baixo-relevo do Louvre nos mostra uma variante da narração de Nonnos. Vemos ali Cibele ou Réa, com a cabeça coroada de torres, que acolhe o jovem Baco; mas em lugar de Mercúrio, são as ninfas que apresentam o menino à deusa visível apenas a meio corpo, por sair da terra da qual é personificação. Júpiter assiste à cena e contempla o filho com olhos satisfeitos (fig. 499). Segundo outra tradição, Baco teria ido procurar Cibele sem outro auxílio, a não ser o dele próprio. Juno, que não conseguia perdoar-lhe ser filho de Júpiter, feriu-o de loucura na infância, e o jovem deus quis, para curar-se,
ir consultar o oráculo de Dodona, mas um lago formado subitamente lhe obstaculou a passagem. Logrou, contudo, atravessar, graças ao burro no qual estava montado, e em breve soube que Cibele lhe devolveria a saúde, iniciando-o nos seus mistérios. Após errar por algum tempo presa do delírio, chegou à Frigia, onde Cibele o curou realmente, ensinando-lhe o seu culto. O uso dos címbalos, dos archotes, dos animais ferozes para conduzir o deus, provém com efeito dos cultos orientais.
Fig. 499 — Baco acolhido por Cibele (segundo um baixo-relevo do Louvre).
A infância de Baco
Nonnos, a quem é preciso sempre recorrer, quando se trata de Baco, assim narra a maneira pela qual se passaram os anos da sua infância: "A deusa criou-o, e, bem mocinho ainda, o fez montar no carro puxado por ferozes leões... Aos nove anos, já possuído da paixão
da caça, ultrapassa na corrida as lebres; com a sua mãozinha, dominava o vigor dos veados malhados; trazia sobre o ombro o tigre intrépido de pele malhada, livre de qualquer laço, e mostrava a Réa (1) nas mãos os filhotes que acabara de arrancar ao leite abundante da mãe ; depois, arrastava terríveis leões vivos; e, fechando-lhes entre os punhos os pés reunidos, dava-os de presente à mãe dos deuses, a fim de que ela os mandasse atrelar ao seu carro. Réa observava sorrindo e admirava tal coragem e tais feitos do jovem deus, ao passo que à vista do filho vencedor de formidáveis leões, os olhos paternais de Júpiter irradiavam maior alegria ainda. Baco, mal ultrapassou o limite da infância, revestiu-se de suaves peles, e ornou os ombros com o envoltório malhado de um veado, imitando as variadas manchas da esfera celeste. Reuniu linces nos seus estábulos da planície da Frígia, e atrelou ao seu carro panteras, honrando a imagem cintilante da morada dos seus maiores. Foi assim que, desde cedo, desenvolveu o gosto montanhês ao pé de Réa, amiga das elevadas colinas; nos picos, os pãs rodeiam nos seus giros o jovem deus, também hábil dançarino; atravessam os barrancos com os seus pés peludos, e, celebrando Baco nos seus tremendos saltos, fazem ressoar o chão debaixo dos seus pés de bode." (Nonnos). Vários monumentos se prendem à educação de Baco, e sobretudo à sua primeira infância. Um dos mais característicos é uma terracota onde vemos o pequenino Baco no berço: um fauno segurando o seu tirso e uma bacante agitando o seu archote executam uma dança báquica em torno do menino (fig. 500). A arte dos últimos séculos se apoderou naturalmente desse tema que tão bem convinha à pintura e à escultura. Le Poussin é, dentre todos os nossos artistas, o que melhor compreendeu o espírito da mitologia. Um dos seus melhores quadros, nesse gênero, é a Educação de Baco. O menino divino está entretido em beber o suco da uva que um sátiro esmaga numa taça de ouro, enquanto alguns cupidos brincam com uma cabra, ou descansam no seio das ninfas do bosque (fig. 501).
_______________________ (1) Diz o autor às vezes Cibele e outras Réa. Na época em que vivia Nonnos, reinava completa confusão entre a mãe de Júpiter e a deusa da Frígia.
Fig. 500 — Berço de Baco (terracota antiga).
Fig. 501 — Educação de Baco (segundo um quadro de Poussin, museu do Louvre).
Baco e Ampelos
Quando Baco estava na Ásia Menor, banhando-se com os sátiros nas águas do Pactolo e brincando com eles nas costas da Frigia, ligou-se .da mais estreita amizade com um jovem sátiro chamado Ampelos. Em breve, tornaram-se inseparáveis; mas um touro furioso matou um dia o infeliz Ampelos, e Baco, não podendo consolar-se, derramou ambrósia nos ferimentos do amigo que foi metamorfoseado em vinha, e é precisamente esse divino suco que deu à uva a qualidade embriagadora. (Nonnos) . Baco, realmente, colheu um cacho de uvas e, espremendo o suco, disse: "Amigo, a partir deste instante serás o remédio mais poderoso contra as dores humanas." Um baixo-relevo antigo do museu Pio-Clementino representa Baco e Ampelos, ambos cingidos de uma grinalda, e rodeados de panteras que brincam aos seus pés. Vemos igualmente no chão máscaras, uma cabeça de carneiro e um cesto místico. Algumas bacantes e alguns sátiros executam as suas danças em torno do deus, e entre eles notamos um velho camponês, segurando um cabrito e várias serpentes, e reconhecível pela túnica cingida de cordões paralelos, dos quais pendem campainhas. Ampelos, a personagem colocada ao lado de Baco, é uma personificação da vinha (fig. 502). Foi então que Baco começou a percorrer o Oriente: no Egito, vemo-lo em relação com Proteu; na Síria, luta contra Damasco, que se opõe à introdução da cultura da vinha. Vencedor, continua a viagem, atravessa os rios sobre um tigre, lança uma ponte sobre o Eufrates, e empreende a gigantesca expedição contra os indianos.
Fig. 502 — Baco e Ampelos (segundo um grupo antigo).
CAPÍTULO VII
A LENDA HERÓICA DE BACO
A conquista da índia. — Baco em Tebas. — Os marujos de Acetes. — Penteu dilacerado pelos bacantes. — Cadmo metamorfoseado em serpente. — As filhas de Mínias. — Baco e Licurgo. — Baco e Perseu. — Baco e Erígone.
A conquista da Índia
A lenda heróica de Baco parece ser apenas a história da plantação da vinha, e a narração dos efeitos produzidos pela embriaguez, desde que o vinho se tornou conhecido. O temor desses terríveis efeitos explica naturalmente a oposição que se lhe depara por toda parte, quando ensina aos homens o uso do vinho por ele personificado. O culto de Baco apresenta grandes relações com o de Cibele, e o caráter ruidoso das suas orgias relembra
a algazarra que se fazia em homenagem à deusa. Mas a história da conquista da índia dá às tradições em torno de Baco um caráter especialissimo. Segundo vários mitólogos, as narrações que a isso se prendem só se teriam popularizado após a conquista de Alexandre. Creuzer considera, pelo contrário, essa história bastante antiga. Nessa expedição memorável, as ninfas, os rios e Sileno, sempre montado no seu burro, formavam o cortejo particular do deus, mas o cortejo era engrossado por numeroso bando de pãs, de faunos, de sátiros, de curetes e de seres estranhos, dos quais nos dá Nonnos uma nomenclatura pormenorizada no seu poema das Dionisíacas. Toda essa narração apresenta caráter fantástico e maravilhoso. Quando o rei da índia, Deríades, quis atirar-se contra Baco, uns pâmpanos que brotavam da terra lhe enlaçaram subitamente os membros e lhe paralisaram os esforços : quando o exército do deus se encontra nas margens de um rio, o rio se transforma em vinho, a um sinal do deus, e os indianos sedentos que pretendem beber são imediatamente tomados por um delírio desconhecido.
Fig. 503 — Baco sobre a pantera (pintura de vaso) .
"À voz do indiano, diz Nonnos, os seus negros compatriotas acorrem em multidão às margens do rio de suave perfume. Um, firmando ambos os pés no limo,
mergulhado até o umbigo nas vagas que o banham por toda parte, se mostra semi-inclinado, peito recurvado sobre a corrente, e dali sorve, no oco das mãos, a água que destila o mel. Outro, perto da embocadura, possuído de ardente sede, mergulha a longa barba nas ondas purpurinas, e, estendendose sobre o chão da margem, aspira profundamente o orvalho de Baco. Este, debruçado, aproxima-se da fonte tão vizinha, apóia os braços na areia úmida, e recebe nos lábios sedentos o fluxo do licor que mais sede ainda lhe dá. Os que só têm à mão o fundo do pote quebrado, retiram o vinho com uma concha. Grande número bebe na torrente vermelha, e enche as taças rústicas dos pastores dos campos. Após assim sorverem o vinho à vontade, vêem as pedras duplicar-se, e julgam que a água se escoa por dois lados; entretanto, o rio continua a murmurar no seu curso e a fazer ferver as águas, enquanto as margens embalsamadas enviam uma à outra as vagas da deliciosa bebida. Uma torrente de embriaguez inunda o inimigo. Este extermina a raça dos bois, como se estivesse ceifando a geração dos sátiros. Aquele persegue os bandos de veados de cabeças alongadas, e julga-os, em virtude da sua pele simetricamente manchada, o bando das bacantes, enganado pelas nébridas elegantes com que elas se adornam. Um guerreiro, dando altos brados, agarra-se a uma árvore que ele golpeia de todos os lados, e, percebendo que os ramos ondulam movidos pelo vento, abate as pontas dos ramos mais tenros, e fende assim a folhagem de copado carvalho, julgando estar a cortar com o gládio a intacta cabeleira de Baco. Luta contra a folhagem e não contra os sátiros; e na sua alegria imbecil, conquista contra a sombra uma sombra de vitória. Outros indianos, irresistivelmente transportados pelos vapores que entontecem o espírito, imitam com os gládios, as lanças e os capacetes, os júbilos guerreiros dos coribantes, e na sua dança das armas batem em torno os escudos. Um se deixa levar pelos cantos da musa báquica, e salta como nos coros dos sátiros; outro se enternece com o som do tamborim, e no seu gosto impelido ao delírio pelo sonoro ruído, atira ao vento a aljava inútil." Um vaso grego nos mostra o rei dos indianos, abatido por Baco, que segura o tirso e a cepa. Contudo, o
combate só raramente é que aparece nos monumentos antigos; mas vemos ali freqüentemente cenas relativas ao triunfo de Baco e do seu exército. Quase sempre se trata de prisioneiros indianos, de mãos agrilhoadas, marchando em companhia dos elefantes e dos tigres do pais e escoltados por mênades e bacantes (fig. 504).
Fig. 504 — Regresso da conquista da índia.
Um baixo-relevo do museu Chiaramonti representa Baco, sentado num trono com Pã ao lado. O rei Deríades está preso e prosterna-se diante do jovem deus, enquanto alguns indianos se amontoam aos pés dos cavalos e dos centauros, que arrastam em carros Sileno e as bacantes. Noutro monumento vemos um leão seguido de dois camelos levando um indiano e uma indiana, símbolo dos povos submetidos. Vem em seguida o carro do triunfo, puxado por dois elefantes e trazendo Baco vencedor, apoiado 'ao fiel Ampelos, e rodeado pelo seu cortejo. O velho Sileno embriagado, sobre o seu burro, figura freqüentemente nessas pompas triunfais. Temos no Louvre dois baixos-relevos sobre a conquista da índia: um deles representa o combate, o outro o triunfo. No primeiro, Baco, a cavalo, acaba de abater um dos inimigos e está às voltas com outros dois. Uma mênades, situada ao lado do jovem deus, tem perto um cesto (ou cisto místico) do qual sai uma serpente. Na mesma cena, depara-senos um elefante com alguns indianos, um dos quais se abate em virtude do ferimento que acaba de sofrer, enquanto outro ergue o braço pai a implorar perdão, e um terceiro oferece
ao deus vitorioso uma coroa de flores. No triunfo de Baco, vemos o jovem conquistador da índia, indolentemente deitado no seu carro triunfal puxado pelas panteras conduzidas por Sileno; um cupido está montado nelas. O carro é precedido por sátiros, mênades tocando címbalos, ou batendo o tamborim. amazonas de capacete, e seguido (Te um elefante trazendo prisioneiros indianos. O regresso da conquista da Índia aparece igualmente na arte dos últimos séculos, e há na Galeria Nacional de Londres um admirável quadro de Ticiano sobre o tema.
Fig. 505 — Baco e Pã (segundo um fragmento de baixo-relevo antigo).
Baco em Tebas
Após percorrer a Ásia, Baco, que nascera em Tebas, quis também que esta cidade fosse a primeira da Grécia e conhecerlhe o culto: disso é que lhe provém o nome de Baco tebano,
No começo da tragédia das bacantes, de Euripides, Baco dá a conhecer a sua encarnação e a sua chegada a Tebas. "Eis-me nesta terra dos tebanos, eu, Baco, gerado pela filha de Cadmo, Semele, após ser visitada pelo fogo dos raios; deixei a forma divina por outra mortal e venho visitar a fonte de Dirce e as águas de Ismenos. Vejo perto deste palácio o túmulo de minha mãe atingida pelo raio, e as ruínas fumegantes de sua morada, e a chama do fogo celeste ainda viva, eterna vingança de Juno contra minha mãe. Aprovo a piedade de Cadmo, que, tornando este lugar inacessível aos pés dos profanos, o consagrou à filha; e eu o sombreei por toda parte de pâmpanos verdejantes. Deixei os vales da Lídia, onde abunda o ouro, e os campos dos frígios; atravessei as planícies ardentes da Pérsia e as cidades da Bactriana, a Média coberta de pedras e a feliz Arábia, e a Ásia inteira, cujo mar salgado banha as margens cobertas de cidades florescentes, povoadas simultaneamente por uma mistura de gregos e de bárbaros, e é essa a primeira cidade grega em que entrei após ter conduzido para lá as danças sagradas e celebrado os meus mistérios, para manifestar a minha divindade aos mortais. Tebas é a primeira cidade da Grécia em que fiz ouvir os brados das bacantes cobertas da nébrida e armadas do tirso envolto em hera."
Os marujos de Acetes
Um dia, um navio proveniente da Lídia deteve-se na ilha de Naxos. Acetes, o capitão, ordenou aos marujos que fossem à ilha buscar água, e eles lhes levaram um menino de singular beleza encontrado em lugar deserto; o menino, ainda adormecido e quase embriagado, só caminhava cambaleando e penava para acompanhá-los. Pelo seu aspecto e pelo seu passo, o capitão assegurou aos
companheiros que ele só poderia ser uma divindade. Mas os marujos, não partilhando do entusiasmo do capitão, declararam que o menino lhes pertencia, uma vez que o haviam descoberto, e que tinham a intenção de vendê-lo, certos de que lograram obter excelente preço. Acetes tentou opor-se a tal projeto, dizendo que não permitiria se embarcasse o menino, 'mas a equipagem, não desejando largar a presa, revoltou-se e fez-se ao largo. Mal o navio chegou ao alto mar, deteve-se. Os marujos. espantados, remaram com mais força, e estenderam todas as velas, esperando fazer com que o barco navegasse; mas umas folhas de hera cobriram imediatamente os remos, e, agarrandose também às velas, as impediram de desempenhar o seu papel. Baco, em pessoa, apareceu naquele momento coroado de cachos de uvas, segurando na mão o tirso e rodeado de tigres, linces e panteras, como tem o hábito de fazer. No mesmo instante, os companheiros de Acetes viram-lhes a pele recobrir-se de escamas de peixe, e os membros transformar-se em nadadeiras. Estavam metamorfoseados em delfins, e, soprando pelas ventas a água que tinham engolido, saltavam em torno do navio onde Acetes, o único que conservara a forma humana, estava estupefato. O jovem deus tranqüilizou-o e ordenou-lhe que singrasse em direção a Naxos. Mal chegou, acendeu fogos nos altares do deus e pôs-se a celebrar-lhe os mistérios. A aventura de Acetes e da sua equipagem está representada numa série de pequenos baixos-relevos que decoram o monumento de Lisícrates em Atenas; vemos ali os marujos transformados em delfins, atirando-se ao mar.
Fig. 506 — Um companheiro de Acetes.
Penteu dilacerado pelas bacantes
Penteu, neto de Cadmo, e rei de Tebas, quis opor-se à chegada de Baco no seu país. Os campos começavam a ressoar com o ruído que acompanha a celebração do jovem deus, cuja próxima vinda estava anunciada, e todos se apressavam em ver os mistérios até então desconhecidos. Generosos filhos de Marte, exclama Penteu, que fúria vos possui? O tumulto confuso dos instrumentos de bronze e das flautas, vãos encantamentos, vos farão perder a razão? Nunca vos assombraram nem o fragor das armas nem a vista dos dardos e das flechas; os batalhões armados sempre vos encontraram invencíveis; deixar-vos-eis vencer por mulheres, por um bando de homens efeminados, enlouquecidos pela embriaguez, que fazem estremecer os ares com o som dos seus tambores? Sois vós os sábios anciães que atravesssaram tantos mares para virem com os seus deuses penates estabelecer-se neste país, e aqui construir uma nova Tiro? Hoje, deixar-vos-eis vencer sem combater? Se os destinos resolveram a ruína de Tebas, caia esta sob o esforço dos seus inimigos; empreguem-se, para a sua destruição, as máquinas de guerra, o ferro e o fogo; pelo menos se acontecer que sejamos vencidos, seremos infelizes sem ser culpados, e as nossas lágrimas poderão correr sem vergonha. Mas hoje esta cidade vai tornar-se conquista de um menino fraco e desarmado, de um jovem efeminado que não ama a guerra, que não ama os combates, que não ama o manejo dos cavalos, e que sempre vemos perfumado, coroado de hera, e vestido de uma túnica de ouro e púrpura. Se vos não opuserdes ao meu desígnio, hei de forçá-lo a confessar a impostura da sua origem e dos seus mistérios. Acrísio não teve, por acaso, coragem bastante para desprezar esse deus imaginário, e para lhe recusar a entrada de Argos? Será preciso que esse forasteiro faça tremer hoje Penteu e toda a cidade de Tebas?" (Ovídio). Penteu ordena, então, aos oficiais que se apoderem do deus, desde o instante em que chegue, e que lho levem agrilhoado. A família, no entanto, opunha-se-lhe, e todos
quantos o rodeavam buscavam fazer com que mudasse de opinião. Os oficiais não tardam em regressar, conduzindo um prisioneiro, imediatamente atirado à prisão, mas enquanto se preparam os instrumentos de suplício, os grilhões de que o prisioneiro está carregado tombam sem que ninguém os haja despedaçado, as portas da prisão se abrem por si, e a cela se esvazia. Penteu percebe com que inimigo tem que lutar; mas longe de desanimar, encoleriza-se a inda mais. Ele próprio quer enfrentar o deus e parte para o monte Citeron, onde se celabram as suas orgias. A primeira bacante que reconhece é sua própria mãe, secretamente iniciada nos mistérios de Baco, e que, na embriaguez do delírio, não reconhece o filho. Toma-o por um monstro que vem perturbar a orgia báquica, e brada: "Eis aqui o espantoso javali, ei-lo aqui !" As companheiras descabeladas, acorrem, dando altos gritos e o dilaceram, arrancando-lhe os membros. Quando em Tebas se sabe da sorte do desventurado rei, as mulheres da cidade correm aos altares de Baco. e todo o povo lhe reconhece o culto. Uma pintura de vaso representa Penteu dilacerado pelas bacantes. Sua mãe, Agave, lhe arranca um braço; Ino agarra-o por uma das pernas; Autonoe e o bando furioso o atacam por todos os lados e a pantera de Baco participa também do feito, dilacerando a perna do infeliz Penteu. Nas duas extremidades da composição, vemos, de um lado, centauros que voltam a cabeça, fazendo música, de outro, a ninfa do Citeron que segura a sua urna e está acompanhada de uma grande serpente, símbolo báquico (fig. 507).
Cadmo metamorfoseado em serpente
Após as espantosas desgraças que se abateram sobre a sua família, Cadmo abandonou a cidade que fundara, e, depois de errar por longo tempo por diversos países,
chegou à Ilíria, com Harmonia, sua mulher, que jamais o quisera abandonar. Abatidos ambos pelas desventuras conversavam sobre as calamidades da casa. Cadmo, lembrandose do dragão que matara e refletindo que, sem dúvida, estava consagrado a alguma divindade que agora o perseguia, suplicou aos deuses vingadores que lhe pusessem cobro aos pesares, metamorfoseando-o em serpente Mal terminou a prece, percebeu que o corpo se lhe ia mudando, e a pele endurecendo; e as pernas, que se unem, passam a formar uma longa cauda. Visto que os braços ainda não haviam experimentado a mesma metamorfose, estende-os a Harmonia e roga-lhe que o abrace, enquanto pode, antes que o corpo inteiro se lhe mude em serpente.
Fig. 507 — Penteu dilacerado pelas bacantes (segundo uma pintura de vaso).
Quis falar mais, porém, tendo-se fendido a língua, não proferiu palavras distintas e só logrou exprimir os seus queixumes mediante silvos; é a única voz que a natureza lhe concedeu. "Caro Cadmo, exclama Harmonia, esposo infortunado, que te sucedeu? Ah, permitam os deuses que eu experimente a mesma mudança! Enquanto dava vazão às queixas, e enquanto o esposo continuava a acariciá-la, ela própria se transformou em serpente. O prodígio encheu de assombro os companheiros de Cadmo que estavam presentes. As duas serpentes, de cabeça erguida, após se acariciarem, rastejaram por algum tempo uma ao lado da outra, e penetraram a floresta mais próxima. A partir daquele momento, tais serpentes não
evitam a companhia dos homens e não lhes fazem mal nenhum; meigas e tranqüilas ainda se lembram do que foram noutras épocas.” (Ovídio). Segundo outras tradições, não teria sido voluntariamente que Cadmo se retirou para a Ilíria; pelo contrário, teria sido obrigado a afastar-se com a família e os amigos, em virtude de uma sedição popular. Anfião, protegido de Apolo, que ergueu os muros de Tebas ao som da lira, foi rei da região, e o suplício que infligiu a Dirce indica certas lutas políticas que bem poderiam ter tido igual-mente um caráter religioso. Mas é sempre dificílimo discernir qual o fundo histórico dissimulado nas lendas que sempre nos apresentam o culto de Baco a se estabelecer com a maior dificuldade. Termina, contudo, por se firmar em Tebas como no resto da Grécia, e a lenda das filhas de Mínias parece ser a última manifestação de uma oposição feita ao deus do vinho.
As filhas de Mínias
Enquanto o culto de Baco já era reconhecido em toda a Grécia, as filhas de Mínias se obstinavam em negar-lhe a divindade. Em vez de assistirem às festas do deus ficavam em casa, trabalhando e rindo-se dos mistérios sagrados. Uma noite, estando a se divertir à custa de Baco e do seu culto, ouviram subitamente um ruído confuso de tambores, flautas e clarins, que as assombrou, tanto mais que não conseguiram enxergar alma viva Um perfume de mirra e de açafrão se espalhou pelo quarto, e a tela que estavam tecendo não tardou em se cobrir de vegetação, produzindo pâmpanos e folhas de hera. O fio que acabavam de empregar converteu-se em cachos de uvas, e as uvas revestiram-se da cor da púrpura espalhada pelo trabalho.
Já se estava na hora do dia em que as trevas que começam a invadir tudo e a luz que se vai nos deixam sem saber se ainda é dia ou se já é noite, quando um medonho estrondo sacudiu a casa inteira, que imediatamente foi vista repleta de archotes acesos e de outros mil fogos; ouviram-se berros, como se a casa estivesse cheia de animais ferozes. As filhas de Mínias, terrorizadas, trataram de se esconder para se protegerem do fogo e da luz; mas enquanto buscavam os recantos mais secretos da casa, uma membrana extremamente tênue lhes cobre o corpo, e asas finíssimas se lhe estendem sobre os braços. A obscuridade que reina nos lugares em que se ocultaram as impede de notar que mudaram de aspecto. Entretanto, sobem ao ar, onde, sem terem pernas, se sustentam com asas compostas de uma pele muito fina e transparente. Querem falar, mas emitem apenas um débil som, proporcionado à pequenez do corpo; uma espécie de murmúrio queixoso é toda a voz que lhes resta para exprimir a dor. O ambiente das casas continua a lhes agradar, e não gostam dos bosques, como as demais aves; inimigas da luz da qual sempre fogem, só voam de noite. São morcegos. (Ovídio).
Baco e Licurgo
Enquanto isso, Baco, tendo levado o seu culto à Trácia, foi perseguido pelo rei do país, chamado Licurgo, o qual muito provavelmente assustado pelos efeitos da embriaguez, mandara fossem arrancadas todas as vinhas. Baco viu-se obrigado, para salvar-se, a atirar-se ao mar, onde foi acolhido por Tétis, a quem deu, como recompensa pela hospitalidade, uma taça de ouro feita por Vulcano. Todas as bacantes e os sátiros que o haviam acompanhado foram lançados à prisão. Foi por castigo a tal feito que a região se viu atingida de esterilidade, e
Licurgo, enlouquecido, matou pessoalmente seu próprio filho Drias. Tendo o oráculo declarado que o país só recobraria a fertilidade, depois de morto o rei ímpio, os súditos o encadearam ao monte Pangeu, e ali o pisaram com os cavalos. As bacantes livres, ensinaram os mistérios do novo deus à Trácia A luta entre Baco e Licurgo está representada com diversas variantes nos monumentos antigos. Num vaso pintado, vemos o rei da Trácia golpeando as mênades, uma das quais está caída aos seus pés. Num sarcófago, em Roma, Licurgo está representado combatendo com o duplo machado de que se serviam os bárbaros. Urna bacante, deitada aos seus pés, se metamorfoseia em vinha para o enlaçar com os seus ramos e embaraçar-lhe os movimentos. Uma mênade, tendo ao seu lado a pantera báquica, combate o rei com dos archotes acesos, enquanto Baco contempla a cena, apoiando-se indolentemente sobre Sileno. Uma pintura de vaso nos mostra Licurgo matando o filho com o machado de dois gumes.
Baco e Perseu
A lenda de Baco, atirado ao mar e recolhido por Tétis a quem oferece uma taça de ouro, prende-se, segundo Ateneu, ao fabrico do vinho e traduz mitologicamente o hábito existente em certas regiões de se servir da água do mar paia acelerar a fermentação da uva.Em Argos, onde Juno era especialmente honrada, o culto de Baco encontrou graves dificuldades para se estabelecer. Os habitantes recusaram-se a honrá-lo, e mataram as bacantes que o acompanhavam. O deus feriu de loucura furiosa as mães, que começaram a dilacerar os próprios filhos. O herói Perseu, protetor de Argos, decidiu então combater Baco, e segundo um vaso grego, em que a cena esta figurada, não parece ter tido
vantagem (fig. 508). Entretanto, segundo outras tradições, teria sido vencedor e teria até lançado Baco ao lago de Lerna. Pausânias diz simplesmente que, quando a disputa terminou, Baco foi honrado em Argos, onde se lhe ergueu um templo. Cita Creuzer um vaso cujo tema consagra a introdução da vinha na Etólia. "Vemos ali, diz ele, Altéia, mulher rei de Calidon, conversando com Dionisos por ela apaixonado, do alto de uma janela, onde também no-la mostra uma pintura que completa esta, e que oferece o deus adormecido diante da porta, cujo limiar acaba de ser cruzado pelo marido que lhe cede o lugar. Sabe-se que, como preço de tal complacência, recebeu o presente da vinha, e que Altéia teve de Baco a famosa Dejanira, esposa de Hércules, como teve de Marte o herói Meleagro."
Baco e Erígone
Foi no reinado de Padião, filho de Erecteu, rei de Atenas, que Baco, acompanhado de Ceres, visitou pela primeira vez a Ática. Esse incidente mitológico tem certa importância na história, por mostrar que na opinião dos atenienses o cultivo da vinha e do trigo foi precedido no país pelo da oliveira, que Minerva lhes ensinara no mesmo instante da fundação da cidade. Baco, chegado, foi à casa de um ateniense chamado Icário, que o recebeu muito bem; como recompensa pela hospitalidade Baco lhe ensinou a maneira de fazer vinho. Icário, fazendo-o, quis que o provassem os camponeses da redondeza. que o acharam delicioso. Mas embriagaram-se completamente, e, julgando que Icário os havia envenenado, atiraram-no a um poço. A visita de Baco a Icário está figurada em vários baixos-relevos (fig. 509). É preciso notar que, nessa cena, o deus aparece sempre sob a forma do Baco oriental.
Tinha Icário uma filha de extrema beleza, chamada Erígone, por quem Baco se apaixonou. A fim de unir-se a ela, metamorfoseou-se em cacho de uvas, e quando a jovem o percebeu sob tal forma, apressou-se em colhê-lo e comê-lo; foi assim que se tornou esposa do deus, de quem teve um filho chamado Estáfilos, cujo nome significa uva. Foi ele que, mais tarde, ensinou aos homens que, misturando-se água ao divino licor, este não mais produzia a embriaguez.
Fig. 508 — Baco combatendo Perseu (segundo uma pintura de vaso).
Quando Icário foi morto, Erígone nada sabia do que se passara, mas inquieta por o não ver regressar, tratou de procurá-lo e não tardou em ser atraída pelos uivos da pequenina cachorra Moera, que chorava ao pé do poço a que Icário fora atirado. Quando Erígone soube o que sucedera ao infeliz pai, foi tal o seu desespero que se enforcou. Baco encolerizado, enviou aos atenienses um delírio furioso que os levou a se enforcarem no mesmo lugar em que haviam morrido Icário e a filha. O oráculo, consultado, respondeu que o mal cessaria quando tivessem sido punidos os culpados e prestadas homenagens às vítimas. Júpiter colocou Icário entre os astros e dele fez a constelação de Bootes. Erígone tornou-se a da Virgem, e a cachorra Moera passou a ser a da Canícula.
Todas essas tradições se prendem à introdução do cultivo da vinha na Ática, e aos efeitos imprevistos da embriaguez. O sono de Erígone foi freqüentemente representado; Girodet fez dele o tema de uma das suas composições mais graciosas.
Fig. 509 — Baco na casa de Icário (segundo um baixo-relevo antigo, no Louvre).
CAPÍTULO VIII
BACO MÍSTICO
Baco em Naxos. — Baco e Ariadne. — Baco e Prosérpina. — Semeie reconduzida dos infernos.
Baco em Naxos
Baco visitou ainda uma infinidade de regiões para ali plantar a vinha, e a tradição o faz ir até a Espanha; mas, segundo Nonnos, foi após a sua viagem à Ática que ele veio para Naxo para aqui realizar as suas núpcias místicas com Ariadne. "Em breve abandona o deus as correntes do Ilisso amado pelas abelhas, e vai com todas as suas alegrias para a ilha de Naxos carregada de vinhas; o intrépido Eros sacode as asas em volta, e Vênus, que lhe prepara o himeneu, guia-lhe a marcha. Teseu acabava de ali abandonar, dormindo ainda na margem, a virgem que deixara a pátria; e o bárbaro, esquecendo as promessas, fugira sobre as ondas Baco vê Ariadne
dormitar solitária e o amor se une à admiração; ouve-lhe os queixumes e aproxima-se da ninfa em todo o esplendor da sua divindade. Mas o impetuoso Eros a fere com as setas do seu arco, e lhe inspira um amor mais ardente que o primeiro, pois pretende unir ao deus a filha de Minos... Baco consola Ariadne, que, no seu júbilo, atira para sempre ao mar a lembrança de Teseu e recebe a promessa de himeneu com o celeste apaixonado. Eros prepara o leito nupcial. Tudo floresce em torno dela; ressoa o coro das núpcias; as dançarinas de Orcomene rodeiam Naxos com a relva da primavera; a hamadríada canta, e a ninfa
Fig. 510 — Ariadne abandonada (segundo Luca di Giordano).
das fontes, a Náiade sem calçado e sem faixa, celebra a união entre Ariadne e o deus do vinho. Ortigia dá gritos de alegria em honra de Baco, irmão de Febo que a protege; entoa um hino nupcial, e dança, no meio das ondas, embora ali esteja por fim inflexível. Eros, por um esplendente presságio, forma com as rosas brilhantes, com as
quais entrelaça os cálices, uma coroa que refulge como os astros, precursora da coroa celeste; e o enxame dos Amores que acompanha o casamento salta em volta da esposa de Baco." A chegada de Baco a Naxos forma o tema de uma pintura de Pompéia e se encontra igualmente reproduzida em vários monumentos. Num baixo-relevo do museu Pio-Clementino, vemos Morfeu, com as feições de ancião alado, que prolonga o sono de Ariadne, adormecida em Naxos; um sátiro ergue a túnica que a cobre. Cupido guia Baco apoiado ao jovem Ampelos (a vinha) e lhe mostra com a ponta do dedo a formosa abandonada. Assim é que a arte dos últimos séculos compreendeu mais habitualmente o tema. Ticiano e Luca Giordano (fig. 510) compuseram encantadores quadros, onde se nos depara o bando saltante dos sátiros, acompanhado de tigres e de cabras, chegar à presença de Ariadne abandonada.
Fig. 511 — Ariadne adormecida (segundo uma estátua antiga).
Baco e Ariadne
0 tipo de Ariadne está em conformidade perfeita com o de Baco. Ela parece representar a ebriedade eterna, e a sonolência do seu rosto concorda muito bem com a habitual expressão do jovem deus. A antiguidade nos
legou várias belas estátuas de Ariadne, entre outras uma famosíssima, no museu do Vaticano, por longo tempo conhecida pelo nome de Cleópatra; tal atribuição lhe provinha do bracelete em forma de serpente que usa no braço esquerdo. O lindo busto de Ariadne, cujo molde nos é dado ver em todas as nossas escolas de desenho, muito bem poderia ser apenas uma imagem de Baco, pois este deus apresenta com freqüência formas femininas (fig. 516). Ariadne está representada como companheira de Baco em quase todos os monumentos que fixam o triunfo do deus, o qual, quando está com ela, parece geralmente um rapaz jovem e imberbe. Um baixo-relevo do museu Britânico pode passar pelo tipo desse gênero de composição, assaz freqüente nos monumentos. Vemos ali, em primeiro lugar, à esquerda Baco e Ariadne, semideitados no carro triunfal: Baco derrama vinho num recipiente seguro por uma personagem rústica que se acha atrás. O carro é puxado por dois centauros um dos quais toca flauta dupla, enquanto o outro dedilha a lira. Diante deles, o deus Pã abre com o pé de bode o cesto místico. Sileno, no seu burro, acompanhado de bacantes, de sátiros e de personagens rústicas, forma o outro lado da composição. O leito nupcial de Baco e de Ariadne está representado num vaso, onde os dois esposos estão acompanhados de Hércules. Baco, coroado de hera, segura na mão direita um bastão e na esquerda uma taça. Ariadne, por sua vez, segura um tirso e um cântaro. O par está acompanhado de duas bacantes e de uma figura alada que parece ser o gênio dos mistérios ou Telete, a iniciação personificada (fig. 512). As núpcias místicas de Baco e Ariadne figuram sob as formas mais variadas numa quantidade quase infinda de monumentos. Por vezes, vemos os dois esposos, coroados de pâmpanos, segurando tirsos nas mãos e levados em carros puxados por centauros (fig. 514), outros estão semideitados, um na frente do outro, num paralelismo ornamental, e o jovem Ampelos se encaminha para eles num carro puxado por tigres, no qual se encontra um cupido tocando lira. Às vezes, Ariadne, semicoberta pelo véu de noiva, aparece na companhia de Himeneu que
segura o seu archote num carro puxado por duas panteras guiadas por Cupido, e Baco está atrás, de cabeça coroada de cachos de uvas Alhures, os dois esposos figuram num carro puxado nos ares por um centauro e uma centaura que toca lira, enquanto Cupido voa diante deles (fig. 513).
Fig. 512 — Leito de Baco (segundo um vaso antigo).
Baco e Prosérpina
As cenas que se prendem à união mística dos dois esposos são freqüentíssimas nos monumentos funerários da antiguidade; mas Ariadne se identifica, às vezes, como Prosérpina. Baco é aqui considerado deus da morte. O sol do outono, que amadurece as uvas, é o precursor do inverno em que a vegetação desaparece; é pois, natural, que Baco seja associado a Prosérpina, a qual, na sua qualidade de filha de Ceres, representa a vegetação, e como esposa de Plutão assinala o inverno, ou o momento em que a vegetação desaparece sob a terra. Prosérpina. rainha dos infernos, se confunde freqüentemente com
Ariadne, filha de Minos, que julga os mortais, à entrada dos infernos. Ariadne, considerada como a ebriedade eterna, que tão bem corresponde à idéia dos antigos quanto à morte, liga-se naturalmente a Baco, e a união mística de ambos é, talvez, o símbolo que mais freqüentemente se encontra nos sarcófagos.
Fig. 513 — Apoteose de Baco e Ariadne.
Fig. 514 — Núpcias de Baco e Ariadne.
Num famoso sarcófago do museu Pio-Clementino, vemos Baco e Ariadne ou Prosérpina celebrando a união no leito sagrado. Estão ambos coroados de hera. A deusa segura a taça e o tambor báquico, enquanto o jovem deus
apresenta de beber à pantera, deitada entre eles. Mercúrio, mênades e sátiros completam a composição à direita e à esquerda. No centro, e abaixo do grupo principal, vemos Sileno e o velho Pã entre dois cupidos. Um tema análogo está fixado na tampa do mesmo sarcófago. As duas divindades ocupam o centro, e Ampelos chega num carro puxado por dois tigres sobre um dos quais está montado um cupido alado que dedilha a lira. No outro lado, vemos um Pã embriagado sustentado pelas mênades.
Fig. 515 — Baco e Prosérpina (busto antigo).
Num soberbo camafeu antigo, depara-se-nos Baco no seu carro triunfal, acompanhado de uma deusa, que pode ser Prosérpina ou Ariadne (fig. 517). Nas festas místicas do Elêusis, Baco aparecia como filho de Ceres, e tinha então o nome de Iaco. Na guerra dos Gigantes, Baco fora morto pelos inimigos dos deuses; o corpo havia sido retalhado, e por vários dias ele sofrera a lei da mortalidade. Os seus membros dispersos foram levados a Ceres, que lhe devolveu a vida; é por isso que Ceres era considerada sua segunda mãe. Sabia-se também que estivera nos infernos em busca de sua primeira mãe, Semeie, a qual morrera queimada, ao receber a visita de Júpiter.
Fig. 516 — Busto de Ariadne (segundo uma estátua antiga).
Semele reconduzida dos infernos
Um belo espelho etrusco representa Baco em atitude repleta de graça, apoiando a cabeça ao seio de Semele a quem trouxe de volta dos infernos e que está atrás dele. Apolo, segurando na mão um ramo de loureiro, assiste à cena, em companhia de um pequenino sátiro que toca flauta dupla (fig. 518).
Fig 517 — Baco e Prosérpina (segundo um camafeu antigo).
Nos mistérios de Elêusis, a espiga de trigo que renasce à vida, após apodrecer na terra, e o vinho generoso, que sai da uva pisada, eram símbolos de ressurreição, apresentados aos iniciados sob a forma de bolo sagrado e de libação. Nos sarcófagos, em que aparece tão freqüentemente nos baixosrelevos, Baco está por vezes
representado com as feições de defunto, enquanto Ariadne ou Prosérpina se revestem das de defunta. Havia, na antiguidade, fábricas de sarcófagos que eram preparados de antemão com todos os atributos esculpidos convenientes ao monumento. A cabeça de Baco e a de Ariadne só ficavam reduzidas, para permitirem a representação do resto daqueles aos quais pertencia o túmulo. Apuléio, nas suas Metamorfoses, fala de uma viúva, que manda esculpir a imagem do marido, com os atributos de Baco. Temos no Louvre um exemplo desse uso no famosíssimo monumento designado pelo nome de Sarcófago de Bordéus. Ariadne está semideitada ao lado de Baco rodeado do seu cortejo de sátiros e de mênades. A cabeça de Ariadne está apenas preparada. Noutro baixo-relevo do Louvre, são dois centauros, que fazem parte do cortejo de Baco e de Ariadne, que seguram nas mãos o medalhão dos mortos.
Fig. 518 — Baco e Semeie (segundo um espelho etrusco).
LIVRO VIII
HÉRCULES E TESEU
CAPÍTULO I
INFÂNCIA DE HÉRCULES
Júpiter e Alcmena. — O ciúme de Juno. — O leite de Juno. — Hércules sufoca duas serpentes. — Hércules entre o Vício e a Virtude. — A morte de Anfitrião. — Demência de Hércules.
Júpiter e Alcmena
O pai dos deuses e dos homens, querendo criar para os deuses e para os homens um herói que os defendesse da desventura, atirou-se do Olimpo, remoendo na mente maravilhosos projetos (Hesíodo) ; procurando, então, que mulher poderia ser digna do herói que pretendia dar ao mundo, não encontrou outra que superasse Alcmena, mulher de Anfitrião, a quem, dessarte, ficou reservada a ventura de mesclar o seu sangue ao do divino filho de Saturno (Píndaro). Não foi para satisfazer uma paixão que Júpiter quis unir-se a Alcmena; foi apenas para gerar Hércules (Diodoro), Mas Alcmena, diz Hesíodo,
amava o esposo, como não houve mulher que amasse o seu. Assim, Júpiter revestiu-se da forma do marido, e Alcmena ignorou que estivera unida ao rei dos deuses. Daí também apresentar Hércules o duplo caráter do homem na terra e de deus no céu. Essa encarnação de um deus num homem não feria absolutamente o sentimento popular, mas não se lhe compreendia o lado cômico. Uma pintura de vaso nos mostra uma caricatura antiga, feita sem dúvida como lembrança de um drama satírico sobre a aventura de Anfitrião (fig. 519). Vemos
Fig. 519 — Júpiter diante da janela de Alcmena (segundo uma pintura de vaso).
nele Júpiter disfarçado, e provido de grosso ventre; tem o módio e traz uma escada para galgar a janela de Alcmena que contempla a cena. Mercúrio, disfarçado por sua vez, de escravo, mas reconhecível pelo caduceu e pelo pétaso, está na sua frente. Ambos trazem calças feitas, segundo um modelo que se nos depara freqüentemente nas antigas figuras de comediantes,
O ciúme de Juno
Era Anfitrião rei de Tirinto e neto de Perseu. Após a aventura mantida com Alcmena, Júpiter declarou em voz alta no Olimpo que o primeiro filho que nascesse na família de Perseu, gozaria do poder soberano. Juno, atormentada pelo habitual ciúme, obrigou o rei dos deuses a jurar que o que acabava de anunciar se verificaria, e foi ao encontro de Nicipa, mulher de Estenelo, que também pertencia à família de Perseu, e cujo filho devia nascer pouco depois do de Alcmena. A deusa adiantou-lhe o termo de gravidez, de tal modo que o filho, que foi Euristeu, nasceu antes de Hércules, e se viu, dessarte investido do poder soberano anunciado por Júpiter. A impiedosa Juno não se limitou àquilo; desejando por um obstáculo ao nascimento de Hércules, enviou à casa de Alcmena duas feiticeiras, incumbidas de impedir, com os seus malefícios, que a criança visse a luz do dia. Mas o poder de Júpiter é maior que os feitiços e sortilégios. Um baixo-relevo do museu Pio-Clementino nos mostra as duas feiticeiras ao pé do leito de Alcmena, rodeada das suas ancilas uma das quais segura no colo o pequeno Hércules. Os dedos entrelaçados das feiticeiras constituem um sinal de malefício. Hércules ocupa o meio do baixo-relevo ; no outro lado Mercúrio carrega a criança nos braços; o rio Ismênio personificado e Anfitrião de pé terminam a composição.
O leite de Juno
Quando o menino viu a luz do dia, Alcmena, temendo o ciúme de Juno, mandou expor Hércules num campo. Mercúrio levou o recém-nascido ao Olimpo, e o colocou
maliciosamente no seio da rainha dos deuses, adormecida. O menino mordeu tão fortemente o seio da deusa, que o leite dali se escapou dando origem à Via Láctea. Juno reconhecendo o erro, repeliu imediatamente Hércules. Minerva, então, tornou a levar à mãe o filho que sugara o leite da imortalidade. Há no museu de Madri um quadro de Rúbens, representando Juno a aleitar Hércules (fig. 520). A deusa está sentada numa nuvem, perto do seu carro puxado por pavões, e vê-se o leite a se lhe escapar do seio para cair no céu. Tintoretto, num quadrinho que fez parte da galeria do duque de Orléans, mostrou Júpiter apresentando pessoalmente ao menino o seio de Juno.
Hércules sufoca duas serpentes
Alcmena dera à luz dois filhos gêmeos, Hércules, filho de Júpiter, e Ificles, filho de Anfitrião. Todos os dias, após lavá-los e aleitá-los, deitava-os num escudo de bronze para os acalentar. Uma noite, a cruel Juno envia duas enormes serpentes as quais rastejam em direção aos dois meninos adormecidos. Ificles dá um grito, mas Hércules, imperturbável, agarra os dois répteis e de tal modo os aperta que acaba por sufocá-los (fig. 521). Plínio fala de um quadro pintado por Zêuxis representando Hércules, menino, no ato de sufocar as duas serpentes na presença de Anfitrião e de Alcmena, pálida de espanto. O mesmo tema figura numa pintura de Herculanum, na qual Anfitrião puxa da espada para socorrer o filho (fig. 522). Um baixo-relevo do museu Pio-Clementino e um bronze de Herculanum apresentam Hércules sufocando as serpentes. Na arte dos últimos séculos, um encantador quadrinho de Carracci, no Louvre, fixa perfeitamente o tema, que também foi pintado pelo inglês Reynolds.
Hércules entre o Vício e a Virtude
A educação de Hércules foi completa; com Anfitrião aprendeu a conduzir o carro, com Casto a combater munido de toda e qualquer arma, com Lino a tocar lira, com Eurito a disparar setas. O sábio Radamanto e o centauro Quiron figuram também entre os seus preceptores. O talento musical de Hércules foi celebrado pelos artistas, os quais, nos baixosrelevos, o colocam umas vezes ao lado das Musas, e, nas pedras gravadas, o mostram ocupado a tocar lira (fig. 523). Hércules, já adulto, afasta-se um dia para meditar no gênero de vida que deve levar; aparecem-lhe, então, duas mulheres de grande estatura, uma das quais, lindíssima, que era a Virtude, possuía majestoso rosto cheio
Fig. 520 — Juno aleitando Hércules (segundo o quadro de Rubens).
Fig. 521 — Hércules-menino (segundo uma estátua antiga).
Fig. 522 — Hércules sufocando as serpentes (segundo uma pintura de Herculanum).
de dignidade, pudor no olhar e túnica branca. A outra, a Moleza, tinha olhar livre e vestes esplêndidas. Cada uma delas tentou conquistá-lo, mediante promessas, anunciando uma que o faria triunfar de todas as provas da vida, assegurando a outra que lhe evitaria o trabalho de lutar. Hércules preferiu a Virtude. (Xenofonte).
Fig. 523 — Hércules tocando lira (segundo uma medalha antiga).
A cena está representada numa medalha em que se nos depara Hércules entre Minerva e Vênus. Rubens pintou o tema para o duque de Toscana, e o seu quadro se encontra na galeria de Florença. Gaspard de Crayer representou a mesma cena.
A morte de Anfitrião
Até a idade de dezoito anos, Hércules não teve outra ocupação senão guardar os rebanhos nos pastos, ou perseguir as feras nas florestas. Um dia, ao voltar da caçada, viu os enviados dos minieus de Orcomene, que vinham receber o tributo imposto pelo seu rei Ergino aos tebanos, e matou-os. Ergino voltou com um exército, mas foi vencido e morto por Hércules, que pôs os minieus
Fig. 524 — Hércules-menino (segundo uma estátua antiga).
em fuga, e os obrigou, por sua vez, a um tributo duas vezes superior ao que tinham tido a pretensão de receber. Anfitrião morreu no combate que conquistou para Hércules a mão de Megara, filha de Creonte. Essa expedição foi o início da celebridade de Hércules.
Demência de Hércules
Juno, não logrando habituar-se à idéia da glória que o filho de Júpiter deveria conquistar, deliberou desonrar-lhe a vida, enviando-lhe uma loucura furiosa. Enquanto o herói gozava em paz do repouso da família, vêem-se-lhe, repentinamente, alterar as feições; os olhos saltam-lhe e deixam ver o fundo das suas órbitas sangrentas; a espuma lhe tomba dos lábios, e lhe conspurca o queixo ornado de abundante barba. E, então, ele exclama com uma gargalhada frenética: "Dai-me o arco! Onde está a minha maça? Vou a Micenas; armai-vos de alavancas e de picaretas para demolir as construções erguidas pela industriosa arte dos ciclopes." Põe-se a caminhar, e, embora não tenha carro, pretende ter um e instala-se nele, chicoteando os cavalos que julga ver, como se estivesse segurando as rédeas. O desventurado percorre assim o palácio, presa da demência, e, julgando golpear monstros, mata um após outro os filhinhos que inutilmente lhe pedem graça. A pobre mãe arrasta o último para o fundo do palácio e fecha as portas. O esposo, julgando-se em frente dos muros dos ciclopes, abate as portas e atinge com a mesma seta a mulher e o filho. Em seguida, dispõe-se a abater o pai; mas de súbito aparece a deusa Palas, que derruba o herói, ainda ardente do desejo de carnificina e o mergulha em profundo sono. (Eurípides). Mal Hércules recobrou a consciência, viu toda a enormidade do crime cometido. Presa do mais violento
desespero, condenou-se ao exílio, e, após ter-se feito purificar, consultou o oráculo a fim de saber para onde devia retirar-se. Ordenou-lhe o deus que fosse ao encontro de Euristeu, seu maior inimigo, e se submetesse a todos os trabalhos que lhe seriam exigidos. Era assim que os destinos haviam ordenado. Aí começa a vida heróica de Hércules, tão freqüentemente representada nos monumentos. Obedecendo às ordens do oráculo, foi para Tirinto, a fim de se colocar à disposição de Euristeu. Recebeu de Mercúrio uma espada, de Vulcano uma couraça, de Apolo setas, de Minerva um manto, e ele próprio arranjou poderosa maça na floresta de Niméia. Convém observar que, em numerosas representações arcaicas, Hércules usa a veste dos heróis gregos, e combate ao lado de Íolas, seu amigo, que conduz o carro. Mais tarde, foi representado empregando apenas a maça e tendo por veste apenas uma pele de leão.
CAPITULO II
OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES
O leão de Neméia. — A hidra de Lerna. — A corça de chifres de ouro. — O javali de Erimanto. — As estrebarias de Áugias. — As aves do lago Estínfale. — A rainha das amazonas. — Os cavalos de Diomedes. — Os bois de Gerião. — O touro de Creta. — As maçãs de ouro das Hespérides. — A descida aos infernos.
O leão de Neméia
O primeiro trabalho imposto a Hércules por Euristeu foi ir matar o leão de Neméia que infestava as cercanias da cidade. Tinha o animal monstruoso tamanho, e, sendo invulnerável, mister se fazia empregar a força dos braços para o domar. O herói, a princípio, esgotou a aljava, mas a pele do leão era impenetrável às setas. Hércules,
em seguida, pretende pegar a maça, mas ela se despedaça contra os ossos do monstro. O leão, entretanto, foge para o seu antro. O herói segue-o: após tapar-lhe a entrada. combate a fera corpo-acorpo, e, apertando-lhe o pescoço com ambas as mãos, o estrangula (fig. 525). Envolve-se na pele que era imensa, e dela se serve, posteriormente, como de arma defensiva. O combate figura assaz freqüentemente nos vasos gregos de antigo estilo, e notadamente no Louvre, onde vemos Hércules realizar o feito na presença de Íolas e Minerva. A mesma cena figura também em moedas e pedras gravadas. O leão de Neméia era filho de Tifão e de Equidna. Após a morte, foi colocado entre as constelações. Um quadro de Rubens, no museu de Berlim, representa Hércules estrangulando o leão de Neméia.
Fig. 525 — Hércules sufocando o leão de Neméia (segundo uma medalha antiga).
A hidra de Lerna
Nascida, como o leão de Neméia, do gigante Tifão e da terrível Equidna, a hidra, que infestava os pantanais de Lerna na Argólida, era provida de várias cabeças e, quando se lhe cortava urna, outras duas imediatamente a substituíam. Tendo Hércules recebido ordem de ir combatê-la, expulsou o monstro do seu abrigo por meio
das setas; feriu-se, então, terrível luta entre o herói e o monstro que se lhe enrolava nas pernas (fig. 526). Um grande caranguejo enviado por Juno quer morder o herói por trás, enquanto ele luta. Hércules, notando que, conforme ia cortando as cabeças da hidra, elas renasciam em número ainda maior, chamou em seu auxílio Íolas, o qual, queimando os ferimentos com um tição, conseguiu deter o crescimento de novas cabeças. Após a vitória, o herói temperou as suas setas no sangue da hidra de
Fig. 526 — Hércules combatendo a hidra de Lema (segundo uma pedra gravada antiga).
Lerna, e foi a partir dessa época que elas começaram a infligir ferimentos incuráveis. A cena constitui o tema de uma pintura de vaso, na qual Hércules acaba de depor a maça, como arma incomoda para combater semelhante inimigo. Coberto da pele de leão segura uma harpa semelhante à de Perseu, com a qual vai cortar as cabeças do monstro. No outro lado do vaso, vemos Íolas, o fiel companheiro de Hércules, armado, preparando-se para
lançar uma seta contra a hidra; atrás dele, Minerva dispõe-se a matar o enorme caranguejo que, para socorrer a hidra, quis morder o pé do herói estimado por Minerva (fig. 527). Várias pedras gravadas mostram a serpente enroscando-se numa das pernas de Hércules. Policleto fizera de Hércules matando a hidra de Lerna uma estátua famosa na antiguidade. Guido, num quadro do Louvre, e Rubens, num quadro do museu de Madri, trataram o mesmo assunto, inspirando-se em velhas composições.
Fig. 527 — Hércules combatendo a hidra (pintura de vaso).
A corça de chifres de ouro
Euristeu impôs, então, a Hércules que lhe trouxesse a corça de chifres de ouro. Sendo ela consagrada a Diana, não quis o herói matá-la e viu-se obrigado a persegui-la durante um ano. Acabou por atingi-la, pô-la aos ombros, e a levou a Euristeu. Havia cinco corças da mesma espécie: quatro estavam atreladas ao carro de Diana. A quinta, não tendo ocupação, corria em liberdade pelas florestas da Arcádia. Essa foi a atingida por Hércules.
O javali de Erimanto
O quarto trabalho imposto a Hércules foi ir buscar javali de Erimanto, horroroso monstro que amedrontava a região. Após procurá-lo por longo tempo, conseguiu o herói chegar ao lugar em que a fera se encontrava, e pegando-a viva, pô-la aos ombros, o que de tal modo espantou Euristeu, que imediatamente tratou de se ocultar numa cuba de bronze. Nos baixos-relevos de estilo arcaico, o tipo de javali se afasta bastante dos que vivem nos nossos países, e está sempre figurando com o mesmo caráter nos vasos em que o vemos freqüentemente representado (fig. 528).
As estrebarias de Áugias
Euristeu, desejando humilhar Hércules, ordenou-lhe que fosse limpar as estrebarias de Áugias, filho do Sol e possuidor de enormes rebanhos; os estábulos estavam repletos de estrume amontoado havia anos. O herói rumou para a propriedade de Áugias, e propôs-lhe fazer a limpeza toda num único dia, se ele lhe prometesse a décima parte dos rebanhos. Áugias, certo de que o feito seria impossível, aceitou sem hesitar. Hércules desviou o curso de um rio por meio de um canal, e fê-lo passar através dos estábulos. Mas Áugias recusou-se a pagar o prometido, e Hércules, matando-o, entregou o país ao filho.
As aves da lago Estínfale
Os pântanos do lago Estínfale na Arcádia estavam cobertos de grossos espinhos, e serviam de abrigo às aves de Marte, cujas asas, cabeça e bico eram de ferro. Tinham elas garras extremamente recurvas, lançavam as penas como se fossem seta aos homens que, porventura, se lhes deparassem, roubavam os animais dos campos e nutriam-se até de carne humana. O seu tamanho era desmedidamente grande, e eram tão numerosas que, em bando, velavam a
Fig. 528 — Hércules levando a Euristeu o javali de Erimanto (segundo uma pintura antiga de Pompéia),
claridade do sol. Hércules, incumbido de combater tão terríveis adversárias, começou por espantá-las com o estrondo dos címbalos de bronze, a fim de obrigá-las a surgir; depois, feriu-as com as suas setas (fig. 529), ou as abateu com a maça (fig. 530). Os monumentos representam o combate sob essas duas formas. Um vaso pintado nos mostra a cena sob um aspecto grotesco. Hércules, com o aspecto de um menino rechonchudo, luta contra duas aves, cujo tamanho desmedido contrasta fortemente com o seu. Acaba de agarrar o pescoço da primeira, e a segunda se aproxima para morder o braço que empunha a maça pronta para golpear (fig. 531).
Fig. 529
— Hércules combatendo com as setas contra as aves do Estínfale (segundo uma moeda antiga).
A rainha das amazonas
Hipólita, rainha das amazonas, era filha do deus Marte, que lhe dera, como sinal da sua dignidade real, um cinturão e um véu. A filha de Euristeu desejou tê-los, e Hércules recebeu a incumbência de ir buscá-los. Para obedecer às ordens de Euristeu, partiu Hércules para os longínquos páramos em que vivem as amazonas; situa-selhes o pais para além da Ásia Menor, e bem perto dos confins do universo. Uma pintura de vaso nos mostra o herói usando a pele do leão de Neméia e armado da maça com a qual se empenha em luta contra a rainha das amazonas, que está a cavalo e segura um dardo (fig. 532).
Hércules, após encarniçada peleja, venceu o exército das amazonas, e aprisionou a rainha, que foi desposada por Teseu e veio a ser mãe do famoso caçador Hipólito. Em seguida, levou a Euristeu os objetos que lhe tinham sido exigidos. Esse feito de Hércules é um dos que os gregos consideravam dos mais gloriosos para a sua memória.
Fig. 530
— Hércules combatendo com a maça contra as aves do Estínfale (segundo uma moeda antiga).
Os cavalos de Diomedes
Diomedes, filho de Marte e rei dos bistônios, povo guerreiro da Trácia, tinha quatro cavalos, chamados Podargo, Lampo, Xanto e Dino. Vomitavam fogo pelas ventas e só se nutriam de carne humana. Diomedes dava-lhes a devorar todos os forasteiros que lhe caíam nas mãos. Hércules atacou os bistônios, pô-los em fuga, e apoderou-se de Diomedes que entregou aos cavalos, para que estes o devorassem. A cena está figurada em baixos-relevos antigos e forma o tema de um grupo do Vaticano (fig. 533). O quadro que Gros executou sobre Hércules e Diomedes atraiu sobre o artista críticas tão cruéis, que o atiraram a um profundo desespero e foram, segundo se afirma, a causa da sua morte.
Os bois de Gerião
Euristeu pediu, então, a Hércules que lhe trouxesse os bois de Gerião. Grissor, que reinava na Espanha, nascera do sangue jorrado da cabeça de Medusa, cortada por Perseu. Gerião, seu filho, era desmedidamente grande, e ademais tinha três corpos que só se uniam pela região do ventre. Tal singularidade, que fez com que o chamas-sem de triplo Gerião, tornava-o extremamente temível, por não se poder contra ele empregar nenhuma finta. Os
Fig. 531
— Hércules e as aves do Estínfale (segundo uma pintura de vaso)
seus magníficos rebanhos compunham-se de enormes bois de cor vermelha, colocados sob a vigilância do gigante Euritião e do cão Ortro. O cão, filho de Tifão e irmão de Cérbero, possuía duas cabeças, e tinha prodigiosa força. Mal viu Hércules, atirou-se-lhe ao encontro, seguido de Euritião, mas ambos tombaram sob os golpes do herói que imediatamente começou a se apoderar dos bois, quando
o triplo Gerião acorreu, por sua vez. Uma terrível luta e iniciou entre eles, mas para Hércules foi apenas oportunidade para um novo triunfo. O combate está figurado em vários monumentos. Numa pintura de vaso, Hércules, nu e imberbe, ataca Gerião cem a maça. Gerião, que está vestido e armado de espada, não apresenta o tríplice corpo que lhe atribui a tradição, e sim três cabeças. Minerva e Mercúrio, postos atrás de Hércules, são simples espectadores do combate (fig. 534).
Fig. 532 — Hércules combatendo a rainha das amazonas (segundo uma pintura de vaso).
Mas o monumento mais importante sobre a Fábula de Gerião é uma taça célebre, no meio da qual figura uma personagem a cavalo (fig. 535). A cena mitológica se desenrola em volta. O herói, barbudo e coberto com a pele de leão, acaba de disparar uma seta contra o triplo Gerião, e ergue a maça para dar-lhe combate. O inimigo está formado pela reunião de três guerreiros, dois dos quais estão de pé,
prontos para lançar o dardo, enquanto o terceiro acaba de tombar atingido por uma seta. Entre os combatentes está o cão Ortro, caído e igualmente atingido por setas. Atrás de Hércules, Minerva, acompanhada de Íolas, contempla a luta como espectadora; perto, Euritião, o pastor de Gerião, está caído e ferido. A filha do rei, atrás de Gerião, puxa os cabelos, desesperada, e parece implorar a piedade de Hércules. Do outro lado da taça, os bois são levados pelos companheiros de Hércules.
Fig. 533
— Hércules matando Diomedes (segundo um grupo antigo, em Roma).
Num antigo grupo do Vaticano, Hércules, que tem o porte de gigante, segura na mão esquerda o chifre de um boi e com a direita abate Gerião, homem de três cabeças.
O touro de Creta
Euristeu ordenou a Hércules que fosse domar o touro de Creta, terrível animal saído das águas do mar, o qual vomitava chamas e devastava toda a região. Hércules domou-o. Foi esse o seu décimo trabalho. A lenda está literalmente reproduzida na do touro de Maratona, de que falaremos a propósito de Teseu.
Fig. 534 — Hércules e o triplo Gerião (segundo uma pintura de vaso).
As maçãs de ouro das Hespérides
Quando Juno desposou Júpiter, cada divindade lhe deu um presente e a Terra produziu para ela uma árvore carregada de maçãs de ouro. Estava a árvore no jardim
das Hespérides, filhas do Titã Atlas, que suporta o céu nos ombros. Um formidável dragão se incumbia de guardar a árvore. Euristeu exigir tais maçãs, e Hércules tornou a partir. Durante o caminho, brigou com Cicno, filho de Marte, e matou-o. O deus da guerra, encolerizado, atirou-se contra Hércules, para vingar o filho morto. Ninguém sabe como houvera terminado a luta espantosa que se feriu então, se não fora a intervenção de Júpiter que lhe pôs cobro com um raio que separou os combatentes.
Fig. 535 — Os bois de Gerião (segundo uma pintura de vaso).
Para encontrar o caminho, o herói, segundo o conselho das ninfas do Eridã, foi consultar o velho Nereu e o obrigou a dizer o que ele queria; os vasos que reproduzem tal cena mostram Nereu com forma de Tritão (fig. 536). Hércules, após libertar de passagem Prometeu, aproximou-se de Atlas, que possui o jardim das Hespérides, e .propôs-lhe sustentar o céu, no seu lugar, se ele lhe cedesse as maçãs de ouro (fig. 538). Atlas consentiu, pois, concebera o projeto de deixar o céu para sempre sobre os ombros de Hércules. O herói, no entanto, rogou-lhe que retomasse o peso apenas um instante, para que pudesse ter tempo de fazer um coxim. Atlas aceitou a proposta, Hércules apoderou-se das maçãs e lá o deixou. Nas portas do templo de Olímpia, via-se Hércules preparando-se para tomar o fardo de Atlas ; Paneno pintara o mesmo tema na balaustrada que rodeava o trono de Júpiter olímpico.
Fig. 536 — Hércules e Nereu (segundo um baixo-relevo de Assoa, no Louvre).
Hércules no jardim das Hespérides constitui assunto de numerosíssimas representações. Num espelho etrusco, Hércules, imberbe e segurando a maça, acaba de devolver a Atlas o peso do mundo e, afasta-se, levando as maçãs. Atlas usa uma longa barba e tem a cabeça coberta por um casquete. Vemos-lhe nos ombros uma parte da abóbada estrelada (fig. 537).
Uma pintura de vaso nos mostra no seu todo a cena do jardim das Hespérides. No alto do vaso, depara-se-nos Atlas suportando o mundo. e escoltado de um lado por Lúcifer a cavalo e segurando um archote, de outro pelo Sol no seu carro. Perto dele está Hércules, de pé, empunhando a maça. Minerva, sem capacete, está sentada atrás do herói, e separada dele por uma pequenina vitória. Na parte inferior, cujo centro está ocupado pela árvore
Fig. 537 — Hércules devolve a Atlas o peso do mundo (segundo um espelho etrusco).
das maçãs de ouro, rodeada pela serpente, vêem-se as Hespérides, três num lado e quatro no outro, e segurando nas mãos os instrumentos de atavio, aparentemente despreocupadas com a cena principal (fig. 539).
Fig. 538 — Hércules suportando o céu (segundo uma pedra gravada antiga).
Fig. 539 — Hércules no jardim das Hespérides (segundo uma pintura de vaso).
O mesmo tema está representado, sob forma mais clara, noutra pintura de vaso, onde nos assombra a ausência de Atlas. Aqui, as Hespérides são em número de cinco: uma delas apresenta o alimento à serpente, que é de tamanho descomunal e se enrosca em torno da árvore a qual ocupa o centro da composição. Uma das Hespérides colhe uma maçã de ouro que vai entregar a Hércules posto atrás dela. No céu aparecem, mas somente com o busto, de um lado Juno e Pã, do outro Mercúrio e uma ninfa, divindades que assistem à cena, sem todavia dela participarem.
A descida aos infernos
Euristeu, vendo que Hércules voltava sempre vitorioso das expedições, decidiu pôr cobro àquilo ordenando-lhe que trouxesse Cérbero, o cão que guarda os infernos. Antes de tentar tão perigosa expedição, foi o herói procurar Eumolpe, em Elêusis, para que pudesse iniciar-se. A iniciação de Hércules nos mistérios está figurada num vaso pintado; o herói apoia-se na maça; a pele de leão lhe está sobre o braço; na mão esquerda segura um ramo de mirto, símbolo da iniciação. Na sua frente, uma sacerdotisa de Ceres empunha uma lança de ponta para baixo, e com a outra mão apresenta a Hércules a faixa dos iniciados (fig. 540). Chegado a Tenaro, na Lacônia, onde se situa a entrada dos infernos, Hércules ali desceu por essa abertura. Todas as sombras, com exceção das de Meleagro e de Medusa, fugiram à sua aproximação. Quis o herói ferir Medusa com a espada, mas Mercúrio lho impediu, explicando-lhe tratar-se de uma sombra. Em seguida, Hércules libertou Teseu dos grilhões, mas não logrou prestar o mesmo serviço a Piritus, em virtude de um tremor de terra. Matou uma das novilhas de Plutão, e deu o sangue
às almas para que estas o sorvessem; foi também matar Menécio, guarda dos rebanhos de Plutão: mas Prosérpina conseguiu que ele o poupasse. Finalmente, apoderou-se de Cérbero, e tornou a subir à terra em Trezena. Uma pintura de Pompéia mostra o herói acompanhado de Mercúrio e trazendo o cão infernal. Uma linda estátua antiga, em Roma, representa Hércules segurando Cérbero acorrentado. O mesmo assunto aparece algumas vezes em pedras gravadas (fig. 541).
Fig. 540 — Hércules iniciado nos mistérios (segundo um vaso pintado).
O conjunto dos doze trabalhos de Hércules está reproduzido em vários monumentos, mas a ordem de tais trabalhos nem sempre é a mesma. Damos a sucessão dos doze trabalhos tal qual está representada num baixo-relevo antigo, desenvolvido em torno de um vaso de mármore, proveniente da Villa Albani. Vemos em primeiro lugar Hércules, combatendo o leão de Neméia: a ninfa do lugar mantém-se atrás do
herói a quem vai apresentar a palma da vitória. Em seguida, Hércules volta dos infernos, trazendo Cérbero e seguido de Teseu, por ele libertado; depois, apodera-se dos cavalos de Diomedes, e vemos perto dele a Trácia personificada; e é o país em que se realizou esse feito. Na faixa inferior vemos, ao lado de uma palmeira, Hércules combatendo a hidra de Lerna : a ninfa dos pântanos de Lerna está de pé ao seu lado. Depois, Hércules pega a corça de chifres de ouro. Em seguida, combate as aves do lago Estínfale, e a ninfa do lago está sentada atrás. Mais longe, domina o touro de Creta, e limpa os estábulos de Áugias. Essa última cena é assaz obscura: o herói tira com um vaso a água do Alfeu ou do Peneu, cujo curso vai desviar, e o rio personificado está sentado diante dele.
Fig. 541 — Cérbero amarrado por Hércules (segundo uma pedra gravada antiga).
Na última seqüência, vemos o combate contra o triplo Gerião, atrás de quem está a Ibéria personificada, depois a árvore do jardim das Hespérides, em torno da qual se enrosca a serpente, e finalmente o combate contra os
centauros que aqui constitui o décimo-segundo trabalho. O combate não figura habitualmente entre os doze grandes trabalhos de Hércules, e aqui substitui a luta contra a rainha das amazonas, não representada no vaso. Tais divergências provêm do fato de a divisão dos trabalhos de Hércules em doze não remontar a uma grande antiguidade; essa divisão revestiu-se de importância numa época em que sendo Hércules considerado uma divindade solar, quiseram estabelecer uma correspondência entre os seus feitos e os doze signos do Zodíaco.
CAPÍTULO III
OUTROS FEITOS E APOTEOSE DE HÉRCULES
Hércules e Telefo. — Hércules e Busíris. — Os pigmeus. — Hércules e Ante«. — As colunas de Hércules. — Hércules e Caco. — Hércules e Onfale. — Os cercopes. — Hércules e Aquelous. — Rapto de Dejanira. — A fogueira de Hércules. — Apoteose de Hércules.
Hércules e Telefo
Além dos doze trabalhos de que acabamos de falar, e que constituem um conjunto na vida do herói, a lenda atribui a Hércules uma multidão de feitos, aos quais é difícil dar uma ordem rigorosa, pois a maioria das vezes não se ligam uns aos outros e foram várias as regiões em que se desenrolaram. Mas tais aventuras servem para completar o tipo de Hércules, que nos aparece sempre como domador de monstros e reparador de erros.
Após limpar os estábulos de Áugias e expulsar esse príncipe que lhe recusava o premio, Hércules instituiu os jogos olímpicos, ergueu um altar a Pélope, e doze altares aos doze deuses. Em seguida, rumou para Pilos, de que se apoderou, apesar de Plutão ter socorrido os pilenses, ficando ferido pelo herói. Daí partiu para a Lacedemônia, para onde fora chamado por Tíndaro, que havia sido expulso do trono, e a quem o herói devolveu os seus estados, após matar-lhe o rival Hipocoonte. Em Tegeu, Hércules conheceu Auge, sacerdotisa de Minerva, e fê-la mãe de Telefo. Auge ocultou o filho no templo de Minerva. Mas a peste desolou o país, e o oráculo, consultado, declarou que o templo da deusa fora profanado. O pai da sacerdotisa ordenou, então, que o recém-nascido fosse abandonado numa montanha. O recém-nascido foi socorrido por uma corça que o aleitou. Uma pintura de Herculanum mostra Hércules contemplando o filho a sugar o leite da corça. Perto do herói vemos a Arcádia personificada e atrás dela o deus Pã, que era particularmente venerado nessa região (fig. 542). Numa medalha de Tarso, depara-se-nos Hércules trazendo o filho que estende os bracinhos para a corça que o nutriu (fig. 543).
Fig. 542 — Telefo aleitado por uma corça (segundo uma pintura de Herculanum),
Hércules e Busíris
No Egito, encontramos Hércules na presença do rei Busíris, a quem ele mata para abolir os sacrifícios humanos. Uma espantosa fome desolara o país: um adivinho anunciara que o flagelo somente cessaria quando se imolasse, todos os anos, um forasteiro. Cem vítimas caíram assim sucessivamente até a chegada de Hércules. Carregado de pesados grilhões, foi o herói levado à presença do rei que ia fazê-lo morrer. Mal chegou, porém, despedaçou os grilhões, matou o rei, e aboliu os sacrifícios humanos. A cena está representada num vaso de estilo arcaico, onde vemos Hércules golpeando o rei bárbaro (fig. 544).
Fig. 543 — Hércules e Telefo (segundo uma medalha de Tarso)
Os pigmeus
O herói partiu, em seguida, para regiões desconhecidas, situadas perto das cabeceiras do Nilo. Habitam lá os pigmeus, que são os liliputianos da antiguidade. Esses
anões estão continuamente em guerra com os grous. Os pigmeus só tinham um cúbito de altura; suas mulheres eram mães aos três anos e velhas aos oito. As casas eram feitas de cascas de ovos, e eles cortavam o trigo com machados. Os vasos gregos mostram freqüentemente o combate dos pigmeus contra os grous, inimigos encarniçados. Plínio diz que os homenzinhos eram armados de setas; afirmam que montavam carneiros e fálos descer na primavera das montanhas da Índia, em que viviam, sob um céu puríssimo, para rumarem ao mar Oriental, a fim de sustentar durante três meses a guerra contra os grous, quebrarlhes os ovos, roubar-lhes os filhos, sem o que, não poderiam resistir aos bandos cada vez mais numerosos dessas aves.
Fig. 544 — Hércules matando Busíris (segundo uma pintura de vaso)
Eram os pigmeus feiíssimos e tinham a cabeça desproporcionada com o resto do corpo; as pernas sobretudo, eram curtíssimas. Não obstante o pequenino tamanho, ousaram haver-se com o próprio Hércules. O herói avançara nos desertos da Líbia, e, sentindo-se cansado, deitara-se
por terra, adormecendo. Chegara, sem o saber, ao país dos pigmeus, os quais, mal o perceberam, não cuidaram absolutamente de fugir, mas de avançar em fileiras cerradas contra ele. Foi um cerco feito com todas as regras. As duas alas do exército dividiram-se para atacar, cada uma, uma das mãos, e, enquanto o grosso da tropa atacava o corpo do herói, e os arqueiros atavam os pés, o rei dos pigmeus, conduzindo um corpo de escol, incumbiu-se da cabeça e do rosto. Hércules, no entanto, despertou, e pôs-se a rir, quando viu que inimigos tinha pela frente; depois, recolhendo todos aqueles serezinhos com a mão, envolveu-os na pele do leão de Neméia, e levou-os consigo como curiosidade A lenda foi retomada, sob outra forma, no romance de Gulliver. Várias pinturas de Herculanum representam o combate dos pigmeus contra os grous.
Hércules e Anteu
Hércules, passando pela Líbia, encontrou o gigante Anteu, que tinha sessenta e quatro cúbitos de altura. Anteu obrigava os forasteiros a medir força com ele, submetia-os a uma derrota certa. O gigante construíra um templo a Netuno, com os crânios acumulados das vítimas. O que lhe dava terrível força, era o fato de, cada vez que tocava a Terra, sua mão, adquirir novo vigor. Hércules ergue-o do chão e esmaga-o entre os braços. Policleto fizera essa cena, da qual os vasos pintados e os camafeus nos mostram várias outras representações (fig. 545). Mantegna desenhou-a com incomparável energia.
As colunas de Hércules
Hércules, seguindo as costas da Líbia, chegou a um ponto em que elas tocam a Europa. Mas separou as montanhas de maneira que pudesse unir o Oceano ao mar Mediterrâneo, e, como lembrança do gigantesco trabalho, ergueu duas colunas. Daí o fato de, noutros tempos, serem chamadas colunas de Hércules as montanhas que hoje constituem o estreito de Gibraltar. Durante a expedição o sol dardejava os seus raios sobre ele com tal ardor, que, por impaciência, Hércules lhe disparou uma seta. Mas, longe de se considerar insultado, o sol admirou a intrepidez do herói e lhe deu uma cratera de ouro de que Hércules se valeu para atravessar o mar, como provam os monumentos nos quais vemos o herói navegando numa taça.
Fig. 545 — Hércules e Anteu (segundo uma pedra gravada antiga).
Hércules e Caco
Após a sua viagem à Espanha, Hércules atravessou a Gália e a Itália. Estando perto do Tibre, deteve-se numa planície para fazer pastar os seus rebanhos, e ele próprio, fatigado, se estendeu sobre a relva. O lugar era habitado por um filho de Vulcano, chamado Caco, homem na parte superior, monstro na parte inferior, de tamanho enorme e capaz de vomitar chamas pela boca. Seduzido pela beleza do rebanho, Caco decidiu apoderar-se dele. Mas temendo que, impelindo os bois para a frente, as pegadas conduzissem o dono deles à sua caverna, tomou o partido de os arrastar pela cauda, de recuo, apropriando-se apenas dos mais belos (fig. 546). Hércules, ao despertar, revistou o rebanho, e não o achando completo, vai diretamente à caverna vizinha, enganado pelos vestígios. Mas vendo-os no sentido contrário, e não sabendo para onde dirigir as buscas, resolveu abandonar tão perigoso sítio. Estava para partir, quando algumas novilhas começaram a mugir,
Fig. 546 — Caco (segundo uma pedra gravada antiga).
tristonhas por terem que abandonar as companheiras. As demais responderam do antro que as ocultava. (Tito Lívio). Hércules, avisado pelos gritos ouvidos, voltou sobre os seus passos, e caminhou diretamente para a caverna, cavada no monte Aventino. Algumas cabeças ensangüentadas pendiam da porta fechada por uma pedra que vinte bois não poderiam ter movido. Em volta, estavam disseminados os ossos dos viajantes mortos por Caco. Hércules aproxima-se da horrível caverna, arranca a pedra, e, não obstante os turbilhões de chamas e de fumaça vomitados pelo monstro, agarra-o, aperta-lhe a garganta e estrangula-o. Para relembrar tal feito, os habitantes do monte Aventino celebravam todos os anos uma festa em honra de Hércules. Numa medalha de Antonio Pio, vemos Hércules com a maça e Caco estendido no chão, diante da caverna. Os habitantes vêm agradecer ao herói que é desmedidamente grande (fig. 547). A morte de Caco inspirou a Demoyne, da escola francesa, um notável quadro que se encontra no Louvre. Hércules abate Caco, enquanto as vacas, aterrorizadas, fogem para todos os lados. O rio Tibre está personificado e acompanhado de duas Náiades. Mas, entre as obras dos últimos séculos, nenhuma tem a reputação do grupo de Baccio Bandinelli, o rival de Benevenuto Cellini. O grupo está em Florença.
Hércules e Onfale
Hércules, após realizar todos esses trabalhos, resolveu tornar a casar-se. Sabendo que Eurito, rei da Ecália, propusera a mão de Iola, sua filha, a quem o vencesse no arco, Hércules apresentou-se e saiu vitorioso; mas o monarca não quis cederlhe a filha; o herói, profundamente encolerizado, precipitou Ifito, filho do rei, do alto dos
muros de Tirinto. Tal crime exigia uma expiação, e Hércules rumou para Delfos, a fim de saber o que devia fazer. A pítia recusou-se a responder-lhe, e Hércules tirou o tripé sagrado onde ela dava os seus oráculos. Mas Apolo, em pessoa, veio buscar o seu tripé, e uma terrível luta ia ferir-se quando Júpiter lançou o seu raio para separar os combatentes.
Fig. 547 — Hércules recebe os agradecimentos dos habitantes do monte Aventino (segundo uma medalha antiga).
No entanto, o oráculo decidiu falar; mas pediu a Hércules que se deixasse vender como escravo, por expiação do crime que cometera, e entregar o produto da venda a Eurito, como indenização pela morte do filho. Mercúrio vendeu-o por três talentos a Onfale, rainha da Lídia, por quem o herói se apaixonou. Devemos a essa história vários monumentos. Nas estátuas, vemos Hércules envolto num manto de mulher, tecendo, enquanto Onfale, coberta por uma pele de leão, segura a maça do herói (fig. 548). Um mosaico do museu do Capitólio representa Hércules, semicoberto por um manto de mulher, segurando o fio da roca. Aos seus pés, alguns cupidos brincam com um leão amarrado, imagem do herói dominado pela paixão (fig. 550). Numa pedra gravada antiga, vemos Onfale penteando o herói, cuja pele de leão e aljava, já inútil, estão nas mãos de um cupido (fig. 553).
Uma pedra gravada, que se julga ser imitação de uma obra de Lisipo, mostra Hércules que, após erguer o mundo, parece sucumbir sob o peso de um gracioso cupido que lhe está nos ombros. O herói agita inutilmente a maça, e já dobra o joelho (fig. 551). Finalmente num entalhe famoso do museu do Capitólio, vemos vários cupidos fazendo esforços inauditos para erguer a maça (fig. 552).
Os cercopes
Esse período da vida de Hércules foi, no entanto, tudo, menos inativo, e vários bandidos sucumbiram aos seus golpes. Foi também durante a escravidão que ele agarrou e agrilhoou os cercopes, homens maus que haviam atormentado e roubado o herói, durante o sono deste. Amarrou-lhes pés e mãos e levou-os a Onfale. Uma peça de Selinonte, considerada um dos mais antigos monumentos da escultura, mostra Hércules levando os cercopes, de cabeça para baixo (fig. 554). Esses cercopes, que Hércules venceu e levou amarrados a Onfale, eram os mais astutos e celerados de todos os homens. Júpiter proibiu-lhes, pois, o uso da palavra, de que se valiam apenas para a mentira e o perjúrio, e só conservaram uma voz enrouquecida, espécie de constante queixume. Ao mesmo tempo, o seu tamanho ficou diminuído, o nariz achatado, o rosto semeado de rugas, e o corpo se lhes cobriu de um pelame vermelho. Haviam sido transformados em macacos, de modo que, cessando de ser homens, se lhes assemelhavam ainda, depois da metamorfose. (Ovídio).
Hércules e Aquelous
Quando o herói terminou os três anos de cativeiro que lhe haviam sido impostos, foi a Calidon. O rei desse país, Oeneu, possuía uma filha admiravelmente formosa, requestada por uma multidão de príncipes e heróis.
Fig. 548 — Hércules e ()afale (segundo um grupo antigo).
Hércules pôs-se no meio, e todos desistiram, com exceção de Aquelous, filho de Oceano. Os dois heróis fizeram valer os seus direitos, e como Aquelous contestasse os de
Hércules, este, que nunca fora dotado de eloqüência, gritou, encolerizado: "0 meu braço é muito mais temível que a minha língua; contente com saber vencer, cedo-te a frívola vantagem de falar melhor do que eu." Ao mesmo tempo,
Fig. 549 — Hércules e Onfale (segundo um baixo-relevo antigo).
atirou-se sobre o adversário, e entre eles se feriu medonha luta. Após se verem obrigados a tomar fôlego por quatro vezes, sem que um lograsse superar o outro, os dois rivais
acabaram por se apertar de tal maneira que Aquelous tombou cambaleante, sob os golpes do adversário, sem contudo o largar. Mas, sentindo-se esmagado sob o peso dele, como se se tratasse do peso de uma montanha, metamorfoseou-se em serpente, e procurou enroscar Hércules. Disse-lhe, então, Hércules, com desdém: "Dominar
Fig. 550 — Hércules fiando (segundo um mosaico antigo).
serpentes era coisa que eu fazia quando criança!" A serpente transformou-se em touro: Hércules pegou-o com tal força que lhe arrancou um chifre (fig. 555), e Aquelous, cedendo à dor, deixou o lugar ao rival e desapareceu sob as águas.
O célebre ajuste proporcionou tema para várias composições, principalmente em vasos pintados. Uma ânfora de figuras vermelhas nos mostra Hércules brandindo a maça com a mão esquerda, e com a direita colocando o
Fig. 551 — Hércules vencido por Cupido (segundo uma pedra gravada antiga).
Fig. 552 — Cupidos erguendo a maça de Hércules (segundo uma pedra gravada antiga).
arco na frente. Ataca Aquelous, que aparece sob o aspecto de touro de rosto humano com um longo chifre (fig. 556). A mesma cena está representada num grupo antigo, e na arte dos últimos séculos, constitui o assunto de uma estátua de Bosio que se vê no jardim das Tulherias.
Fig. 553 — Hércules penteado por Onfale (pedra gravada antiga).
Fig. 554 — Hércules e os cercopes.
Segundo certas tradições, o chifre de Aquelous ter-se-ia transformado na cornucópia, que outros fazem provir da cabra Amaltéia. Um vaso antigo mostra Hércules
apresentando a Júpiter o chifre de Aquelous, transformado em cornucópia: o rei dos deuses está sentado e empunha um grande cetro terminado por uma ave. Juno está de pé, atrás dele, e apoia a mão no espaldar do trono (fig. 557).
Fig. 555 — Hércules e Aquelous (segundo uma pedra gravada antiga).
Fig. 556 — Hércules e Aquelous (segundo uma pintura de vaso).
Rapto de Dejanira
Hércules, vitorioso, quis levar Dejanira, mas viu-se detido diante de um rio desmedidamente engrossado pela chuva e pelo degelo. O centauro Nesso convidou Dejanira a montar nele para a travessia; Hércules, não duvidando do plano do centauro, consentiu. Rubens nos mostra Dejanira no momento em que vai montar no centauro (fig. 558).
Fig. 557 — Hércules apresenta a Júpiter a cornucópia de Aquelous (segundo um vaso pintado).
Mal foi o rio atravessado, Hércules, que ficara na outra margem, ouve um grito: o centauro fugia levando o peso. O herói, furioso, matou o raptor (fig. 560). O rapto de Dejanira pelo centauro Nesso está representado num espelho etrusco de caráter assaz arcaico: o centauro, que se volta para abraçar Dejanira, possui uma
Fig. 558 — Nesso e Dejanira (segundo um quadro de Rubens
Fig. 559 — Rapto de Dejanira (segundo qm espelho etruscol,
longa barba perfeitamente penteada (fig. 559). Guido e Luca Giordano fizeram sobre o mesmo tema trabalhos célebres; mas enquanto Guido se preocupa, sobretudo, com mostrar a paixão do centauro (fig. 561), Luca Giordano compõe um centauro espantado, que, na fuga, traz os olhos fitos em Hércules, cuja seta pretende evitar.
Fig. 560 — Dejanira chama Hércules em auxílio (segundo uma pintura de vaso).
A fogueira de Hércules
Nesso, vendo-se prestes a dar o derradeiro suspiro, cuidou de vingar-se. Pegou a túnica ensangüentada e deu-a a Dejanira, como talismã para que o marido a amasse. Rúbens representou essa cena. Dejanira tinha ciúmes de
Iole, que Hércules sem dúvida raptara, pois as pedras gravadas os mostram freqüentemente juntos (fig. 562). Crendo-se desleixada pelo esposo, Dejanira lembrou-se do presente de Nesso, e quis valer-se do talismã. Entregou,
Fig. 561 — Rapto de Dejanira pelo centauro Nesso (segundo um quadro de Guido Reni, museu do Louvre).
pois, a Licas, arauto de Hércules, a túnica do centauro, incumbindo-o de a levar ao amo; mas apenas o infeliz Hércules se cobriu com tal túnica, cujo poder desconhecia, sentiu um horrível veneno penetrar-lhe o corpo e fez
ressoar pelo monte Oeta os seus gritos e gemidos. Envidou todos os esforços possíveis para tirar aquela veste envenenada, mas só conseguiu arrancá-la tirando, ao mesmo tempo, a pele, a que de tal modo aderira o manto que, com ela, saiu também carne. O fogo que devorava as entranhas de Hércules fazia crepitar os seus músculos e derreter a moela dos seus ossos. Louco de raiva e de dor, dando horríveis gritos, correndo pela montanha, como um tigre furioso que traz no flanco a seta que o atingiu, encontra Licas; o desventurado mensageiro portador da túnica, e, agarrando-o por um dos membros, atira-o aos ares, onde o corpo da vitima gira até chegar ao mar. Canova explorou esse selvagem tema.
Fig. 562 — Hércules e Iole (segundo uma pedra gravada antiga).
O herói, não podendo mais suportar as dores, quis acabar com uma vida que para ele era um sacrifício. Arranca as árvores do monte Oeta, com as quais prepara gigantesca fogueira, coloca em cima a pele do leão de Neméia, e, deitando-se sobre ela, entrega ao amigo Filocteto, o arco e as setas, que deveriam ser tão fatais a Tróia, e lhe ordena que ateie fogo à pilha de lenha. As chamas, subindo em turbilhão, não tardam em envolvê-lo
por todos os lados; mas quando tudo o que era mortal ficou consumido, Júpiter o arrebatou para o céu e o colocou no meio dos deuses. A morte de Hércules constitui o tema de um quadro de Guido que está no museu do Louvre (fig. 564), e de uma escultura que serviu de peça de recepção a Guillaume Coustou. Os dois artistas, inspirando-se no mesmo pensamento, mostram o herói sentado na fogueira e erguendo o braço para o céu ao qual invoca.
Fig. 563 — Hércules em repouso (segundo uma estátua antiga).
Apoteose de Hércules
Os sofrimentos de Hércules na fogueira do monte Oeta foram raramente fixados na arte antiga, mas a sua apoteose se vê com freqüência. Um belo vaso pintado, depara-se-nos a fogueira do Oeta ao mesmo tempo que a
apoteose. No plano inferior, vemos a fogueira acesa, com o tronco ainda não queimado de Hércules. Filocteto, que acaba de acendê-la, retira-se levando as duas lanças e a aljava do herói: no outro lado, uma ninfa derrama água de uma jarra para extinguir as chamas. Em cima, Hércules, que reencontrou a mocidade, está sentado na quadriga de Minerva, em companhia da Vitória alada que segura as rédeas. Mercúrio conduz o carro para o Olimpo, e Apolo, segurando ramos de louro, acolhe o herói como imortal (fig. 566).
Fig. 564 — Morte de Hércules (segundo um quadro de Guido Reni, museu do Louvre).
Em outros monumentos o herói celebra o seu casamento no Olimpo com Hebe, a deusa da mocidade (fig. 565).
Fig. 565 — União de Hércules com Hebe (segundo um espelho etrusco).
A mais famosa estátua que possuímos de Hércules deificado é o fragmento antigo conhecido pelo nome de Torso de Belvedere, descoberto pelo fim do século quinze,
perto do teatro de Pompéia, e que está em Roma. Essa obraprima, que traz o nome, desconhecido aliás, de Apolônio de Atenas, inspirava tão viva admiração a Miguel Ângelo que este, quando cegou, sentia ainda prazer em apalpá-la com os dedos. Faltam a cabeça, os braços e as pernas. Winckelmann faz observar, a propósito de tal estátua, que as veias jamais são aparentes no Hércules deificado, ao passo que as vemos no herói vivo, quando acaba de realizar os seus prodigiosos trabalhos. A apoteose de Hércules, pintada por Lemoyne num teto do palácio de Versalhes, é uma das páginas mais importantes da escola francesa.
Fig. 566 — Morte e apoteose de Hércules (segundo uma pintura de vaso).
Sob a influência da poesia, Hércules torna-se o ideal da energia benéfica, do trabalho civilizador triunfante de mil obstáculos que a terra faz brotar sob os passos da humanidade. Nos mais antigos monumentos da arte, já se apresenta como o tipo perfeito do herói e do atleta. Esse tipo, levado à perfeição por Miron e Lisipo, está sobretudo expresso pelo desenvolvimento dos músculos, pela pequenez da cabeça, cujos cabelos são curtos e encaracolados, pela amplidão da nuca, pela largura do peito
Fig. 567 — Hércules Farnese (segundo urna estátua antiga).
e pelo vigor dos membros. Tais caracteres, que fazem reconhecer as representações de Hércules melhor ainda que os seus atributos comuns, a maça e a pele de leão, são evidentíssimos na estátua intitulada Hércules Farnese. Está ela assinada com o nome de Glícon ; mas como semelhante estátua, de execução medíocre, traz o nome de Lisipo, crê-se que uma e outra são imitações do mesmo original de autoria de Lisipo. O Hércules Farnese representa o herói no momento em que descansa dos seus gloriosos trabalhos. Hércules, o herói divinizado, era uma das divindades mais populares da antiguidade. O porco era o animal que se lhe oferecia habitualmente em sacrifício: é por isso que, numa pedra gravada do museu de Florença, vemos um Hércules montado num porco (fig. 568). Segura numa das mãos a maça tradicional e na outra um cântaro, símbolo do seu culto. Invocava-se a proteção de Hércules contra os animais ferozes. É o que se nos depara num epigrama da Antologia: "Por Hércules, comedor de bois, filhos destes campos, os lobos devoradores cá não mais virão, e os ladrões cuidarão de vos não invadir as casas, nem que um sono inoportuno vos cerre os olhos. Porque Denis me ergueu uma estátua, dirigindo-me esta prece : "Seja Hércules o vigilante guarda deste país." (Antologia).
Fig. 568 — Hércules montado num porco (segundo uma pedra gravada no museu de Florença).
CAPÍTULO IV
TESEU
A infância de Teseu. — A pedra levantada. — A túnica rastejante. — A árvore de Sínis. — O leito de Procusto e o rochedo de Cirão. — A taça envenenada. — O touro de Maratona. — Teseu e o Miniaturo. — Ariadne abandonada. — A morte de Egeu. — Teseu combate as amazonas. — Teseu e Piritus. — Teseu nos infernos. — Morte de Teseu.
A infância de Teseu
A lenda heróica de Atenas personifica-se em Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas. Fora criado em Trezene, na casa de Piteu, seu avô materno. Hércules, tendo ido um dia visitar Piteu, largou a pele de leão para sentar-se à mesa. Várias crianças de Trezene, entre as quais Teseu,
contando mais ou menos sete anos de idade, aproximaram-se do herói, mas, à vista da pele de leão, fugiram todas com exceção de Teseu, que, muito longe de demonstrar qualquer medo, arrancou um machado das mãos de um dos domésticos, e deixou-o cair corajosamente sobre o que julgava um leão verdadeiro.
A pedra levantada
Egeu, antes de deixar Trezene, pusera a espada e o calçado debaixo de uma grande pedra, e recomendara a sua mulher Etra que lhe não enviasse o filho a Atenas senão depois de poder ele levantar a pedra. Queria que o velho Piteu, o qual gozava de grande reputação de sabedoria, dirigisse inteiramente a primeira educação do filho. Mal atingiu Teseu a idade de dezesseis anos, levantou a pedra, e, apoderando-se do que ela ocultava, resolveu rumar para Atenas, a fim de ali conquistar glória. Um baixorelevo do museu Campana nos mostra o herói levantando, no meio da família assombrada, a enorme pedra que cobria as armas de seu pai Egeu (fig. 570). A cena está também representada numa moeda, mas Teseu está ali sozinho (fig. 569).
Fig. 569 — Teseu (segundo uma moeda antiga).
Chegando secretamente às cercanias da cidade, onde era absolutamente desconhecido, mostrou Teseu de novo a sua força. Tinha ele uma túnica rastejante e belos cabelos bem encaracolados que lhe caíam, em cachos, sobre os ombros.
Fig. 570 — Teseu erguendo a pedra (segundo um baixo-relevo antigo)
A túnica rastejante
As vestes longas eram muito desdenhadas em Atenas, onde as consideravam sinal de moleza. Ao passar perto de um templo de Apolo, terminado de construir, Teseu ouviu os obreiros dizer, rindo-se: "Para onde irá essa moça tão bonita, sozinha?" O jovem herói sentiu-se ofendido com o gracejo ; nada retrucou, mas, desatrelando
dois bois de um carro coberto, pegou a cobertura do carro e atirou-a por cima do teto em que trabalhavam os obreiros. Refletindo, em seguida, que ninguém o tomaria por moça, desde que se assinalasse por um feito que o tornasse famoso, resolveu não entrar imediatamente em Atenas, e só apresentar-se ao pai quando fosse digno disso.
A árvore de Sínis
Todas as regiões da vizinhança estavam, naquela época, infestadas de bandidos. Teseu tomou a resolução de destruí-los. Assim, rumou para o lado de Epidauro, onde Perifetes, que passava por filho de Vulcano, guardava a grande estrada e matava os viajantes com uma maça de bronze. Eliminou-o Teseu, e guardou a maça como troféu. Em seguida, dirigiu-se para o istmo de Corinto guardado pelo bandido Sínis; este costumava curvar dois grandes pinheiros um para o outro, e deixava que se endireitassem,
Fig. 571 — Sínis e Teseu (segundo uma pintura de vaso).
após a eles amarrar os vencidos. As árvores, endireitando-se, puxavam cada uma para um lado, e visto que os laços não cediam, os desventurados ficavam despedaçados. Teseu deu-lhe a mesma morte. Num baixo-relevo do museu Campana vemos Sínis amarrado a um pinheiro e o herói prestes a golpeá-lo. A mesma cena figura em vasos (figs. 571 e 572). A árvore de Sínis está sempre representada por um arbusto nos monumentos arcaicos. pois os artistas, que não tinham veleidades de paisagista, se contentavam com indicar o sentido da lenda e não traduzir-lhe a realidade pictórica.
Fig. 572 — Teseu matando o bandido Sínis (segundo uma pintura de vaso).
O leito de Procusto e o rochedo de Cirão
O bandido Procusto possuía singular mania; queria que todos tivessem a sua altura, e para tanto mandava se deitassem no seu leito os viajantes detidos. Se ultrapassassem a medida do leito, cortavam-se-lhes as
extremidades das pernas ; se, pelo contrário, fossem demasiadamente pequenos, puxavam-nos mediante cordas, até que atingissem o comprimento exigido. Teseu limpou a região da presença do bandido, e correu depois atrás de Cirão, menos maníaco, mas igualmente mau. Cirão era gulosíssimo, e gostava sobretudo de tartarugas. Para lhes tornar a carne mais delicada nutria-as de sangue humano. Os viajantes, despojados de tudo, eram conduzidos ao alto de um rochedo e de lá atirados ao chão, onde se achavam as tartarugas que imediatamente começavam o seu repasto, e que pareciam apreciar muito a iguaria. Teseu, apoderando-se de Cirão, confiou-o a elas. É sempre a pena de Talião, expressão primitiva da justiça entre os homens, que reaparece nessas lendas, e Teseu, como Hércules, se transforma no grande reparador dos erros, no protetor das populações oprimidas, e no temível inimigo dos inimigos do gênero humano.
A taça envenenada
Após livrar a Ática dos bandidos que a assolavam, julgou Teseu que poderia, sem corar, apresentar-se ao pai, e chegou a Atenas, então fortemente agitada por graves dissensões. Os palântidas, sobrinhos do rei, queriam apoderar-se do poder; eram cinqüenta e possuíam inúmeros sequazes, pois ninguém na cidade conhecia pessoalmente Teseu, e muitos duvidavam de que o filho do rei ainda continuasse vivo. Por outro lado, o velho Egeu estava inteiramente sob a influência da feiticeira Medeia, que, desconfiando do forasteiro, quis mandá-lo envenenar, antes que o pai o pudesse reconhecer. Mas o monarca ateniense, notando a espada que Teseu empunhava, reconheceu-o por seu filho, e lhe arrancou das mãos a taça envenenada, que lhe mandara servir, Um fragmento de
baixo-relevo antigo representa a cena, em que vemos Medéia de pé, atrás de Teseu a quem o pai arranca a taça, e águardando o efeito da poção (fig. 574). A feiticeira, vendo os seus artifícios descobertos, tratou de fugir.
Fig. 573 — Morte de Procusto (segundo uma pintura de vaso).
O touro de Maratona
Alguns anos antes, Androgeu, filho do rei de Creta, Minos, viera a Atenas para os jogos gímnicos e vencera todos os concorrentes. Um enorme touro devastava naquele momento a planície de Maratona; Antrogeu, contando com a sua força, quis combatê-lo, mas foi morto. Minos acusou Egeu da morte do filho, e veio sitiar Atenas com um exército formidável; não conseguindo apoderar-se da cidade, dirigiu-se a Júpiter vingador, que enviou uma peste aos atenienses. Estes consultaram o oráculo, o qual lhes ordenou, para apaziguar o deus, que mandassem, em intervalos regulares, sete moços e sete moças à ilha de Creta, a fim de servirem de pasto ao Minotauro, monstro de cabeça de touro.
Um baixo-relevo esculpido em volta de um vaso conhecido pelo nome de vaso de Orsay parece representar o Minotauro arrastando os jovens atenienses para os imolar. É pelo menos uma das explicações que se dão a essa singular composição em que outros pretenderam ver Baco conduzindo as plêiades. O notável vaso suscitou grandes discussões entre os sábios, mas perdeu todo o seu valor arqueológico, depois que se lhe contestou a antiguidade: crê-se, hoje, tratar-se de um trabalho da Renascença (fig. 575).
Fig. 574 — Egeu retira a taça envenenada destinada a seu filho Teseu (segundo um fragmento antigo).
Fig. 575 — O Minotauro conduz as jovens (baixo-relevo do vaso de Orsay).
Os atenienses já tinham pago duas vezes o tributo exigido, quando Teseu chegou. Começou ele por ir à planície de Maratona em busca do touro furioso que conseguiu trazer vivo à cidadela sacrificando-o a Apolo.
Uma pintura de vaso representa a luta: Teseu dominou o touro ao qual obriga a curvar a cabeça diante de Minerva, protetora de Atenas. A Vitória voa-lhe ao lado e Egeu assiste ao triunfo do filho (fig. 576).
Fig. 576 — O touro de Maratona (segundo uma pintura de vaso).
Teseu e o Minotauro
Teseu decidiu, em seguida, ir combater o Minotauro. O empreendimento não era fácil, pois o Minotauro possuía prodigiosa força, e seu pai Minos, desejando subtraí-lo a todos os olhares, o colocara no meio de inextricável labirinto construído por Dédalo. Era impossível descobrir-lhe a saída, uma vez que nele se entrasse. Teseu não ignorava os perigos de toda espécie que deveria enfrentar: antes de embarcar, foi consultar o oráculo de ApoIo que lhe aconselhou pôr-se sob a proteção de Vênus. Foi efetivamente essa deusa que inspirou a Ariadne, filha de
Minos, uma paixão pelo herói, a quem ela deu um novelo de fio para o guiar nos tortuosos caminhos do labirinto, e assim poder encontrar o caminho, quando pretendesse sair. Teseu combateu o Minotauro e matou-o. Foi em memória da sua libertação que, mais tarde, ele ergueu um templo na cidade de Trezena. Segundo Raoul Rochette, a vitória de Teseu contra o Minotauro deve ser considerada um símbolo da religião grega, que, cada vez mais humana nos seus desenvolvimentos, tendia a fazer desaparecer em torno dela os sacrifícios humanos. A cena foi representada em monumentos de estilo primitivo. Num vaso de estilo bastante arcaico, vemos Teseu varar o Minotauro com a espada. O monstro tenta inutilmente defender-se com uma pedra. Dois jovens atenienses, que Teseu está prestes a libertar, estão nus e empunham, cada um, uma lança, mas não participam absolutamente da ação, da qual são simples espectadores, como o são duas moças vestidas de túnicas longas e estreitas (fig. 578). Na arte dos últimos séculos, Canova compôs sobre o tema dois grupos que se encontram em Veneza. Num deles, o herói está sentado sobre o monstro em atitude tomada de um camafeu antigo; no outro, segura-lhe a cabeça que ,se prepara a esmagar com a maça.
Ariadne abandonada
Quando Teseu vitorioso deixou a ilha de Creta, Ariadne embarcou com ele, mas o herói, não desejando contrair com uma estrangeira união que seria mal vista em Atenas, abandonou-a na ilha de Naxos, onde ela foi, em seguida, encontrada por Baco de quem se tornou esposa. O abandono de Ariadne por Teseu está figurado em vários trabalhos antigos. Uma pintura de
Herculanum nos mostra a filha de Minos que vê o navio afastarse, e Cupido, ao seu lado, chorando (fig. 579). O estranho abandono de uma jovem a quem Teseu devia a vida nunca foi bem explicado pelos mitologistas. Dizem uns que o herói obedecera às ordens de Minerva;
Fig. 577 — O Minotauro. o Labirinto (segundo uma moeda antiga).
Fig. 578 — Teseu matando o Minotauro (segundo uma pintura de vaso).
afirmam outros que foi o próprio Baco quem lhe ordenou não conduzir mais longe a mulher que ele pretendia desposar. Mas a cena proporcionou à arte temas que foram reproduzidos sob todas as formas, A moda no século
dezoito impôs o retrato dos vultos ilustres com os atributos dos heróis mitológicos, e Largillière adquiriu nesse gênero grande reputação. "É interessante, diz Ch. Blanc, ver a famosa Duclos, comediante do século dezoito, na época de Luís XIV e do regente, aparecer no papel de Ariadne, vestida mais ou menos como se vestiam madame de Tencin ou madame de Prie: vestes erguidas, corpete em forma de coração, brincos, fitas, e um penacho que produz o efeito mais grotesco na cabeça de uma Ariadne desesperada. Nesse atavio, Duclos queixa-se da partida de Teseu, cujo navio se vê ao longe, enquanto, no segundo plano, se notam as bacantes e Sileno, à moda antiga. Não é tudo: um geniozinho, digno de Rubens, vai depor uma coroa de estrelas na cabeça de Duclos, e com uma só mão empunha o cetro da tragédia, a máscara de Melpômene e um ramo de louro. Tudo constitui excelente pintura : não se é mais interessante, não se é mais pintor."
Fig. 579 — Ariadne abandonada na ílha de Naxos (segundo uma pintura antiga descoberta em Pompéía).
A história de Teseu e de Ariadne está desenvolvida em quatro cenas diferentes num grande mosaico descoberto perto de Salzburgo e atualmente em Viena. O mosaico não mede menos de dezoito pés de comprimento por quinze de largura. No centro, vemos o labirinto construído por Dédalo, com Teseu combatendo o Minotauro. Na repartição à esquerda, Ariadne entrega a Teseu o novelo de fio que o guiará no labirinto, e na que está em cima dá a mão a Teseu, o qual a faz subir ao navio que os deve conduzir. Finalmente, na última repartição, a da direita, deparase-nos Ariadne sentada em atitude triste e provavelmente abandonada. Teseu trouxera com ele os jovens atenienses raptados à fúria do Minotauro. O reconhecimento dos desventurados está muito bem expresso numa pintura de Herculanum, em que o herói vencedor recebe os seus abraços (fig. 580).
A morte de Egeu
Antes de regressar a Atenas, Teseu desembarcou na ilha de Delos, e executou diante do templo de Apolo, com os jovens que acabava de libertar, uma dança que reproduzia os contornos do labirinto. Ao voltar à pátria, um esquecimento do piloto causou a morte de Egeu, o qual combinara com o filho que, se este retornasse vitorioso da expedição, colocaria uma vela branca no navio, em lugar da habitual negra, em virtude do uso nefasto ao qual estava destinado Mas tendo sido o sinal esquecido, o infeliz Egeu julgou que o filho tivesse sido devorado pelo monstro, e atirou-se do alto da cidadela. Os atenienses conservaram como relíquia a galera que trouxera Teseu vitorioso, e dela se valiam todos os anos para levarem as suas ofertas a Delos. O navio estava inteiramente reparado, pois à medida que uma prancha apodrecia, era imediatamente substituída por outra. Venerado, era mostrado aos viajantes, no tempo de Demétrio de Falera.
Teseu combate as amazonas
Teseu ocupou-se em primeiro lugar da organização interna do reino, depois acompanhou Hércules na sua expedição contra as amazonas. Desposou-lhes a rainha Antíope e dela teve um filho chamado HipóIito. Mas, no seu regresso, tendo abandonado Antíope para desposar Fedra, quiseram as amazonas vingar a afronta e realizaram uma grande invasão da Ática, em que foram exterminadas. Numa pintura de vaso, vemos Teseu, varando com a lança a nova rainha das amazonas, Hipólita, a qual está seguida de outra amazona que atira uma seta a Teseu, para socorrer a companheira (fig. 582). A guerra das amazonas, que os atenienses consideram um fato capital na história heróica, constitui o tema de enorme quantidade de representações nos vasos e nos baixos-relevos que ornam os sarcófagos ou decoram os monumentos. Estava esculpida no templo de Figalia.
Fig. 580 — Agradecimentos a Teseu (segundo uma pintura antiga).
Fig. 581 — Teseu (segundo uma estátua antiga).
Teseu e Piritus
Após tão memorável feito, Teseu tomara a resolução de viver tranqüilamente no seu reino, quando soube que Piritus, rei dos lapitas, se preparava para entrar nos seus estados com poderoso exército. O rei de Atenas viu-se, pois, obrigado a enfrentá-lo. Mas quando os dois heróis se colocaram um em face do outro, sentiram-se dominados por tal simpatia, que, em lugar de se combaterem, estenderam-se as mãos. Desejoso de fortalecer a aliança, Piritus convidou Teseu e os atenienses para as suas núpcias com a bela Hipodâmia, que se realizariam em breve, e foi em tal ocasião que ocorreu o famoso combate contra os centauros de que falamos mais acima. Os dois amigos ligaram-se intimamente e Piritus ajudou Teseu a raptar Helena, ainda na sua primeira mocidade. Mas Teseu não logrou aproveitar-se do rapto, pois os dois irmãos de Helena, Castor e Pólux, vieram buscar a irmã e a conduziram a Esparta, onde ela, posteriormente, desposou Menelau.
Fig. 582 — Teseu combate as amazonas (segundo uma pintura de vaso).
Teseu nos infernos
Em troca do serviço prestado a Teseu, Piritus confessou-lhe estar apaixonado por Prosérpina, e pediu-lhe que o ajudasse a raptá-la. A tarefa era difícil, mas a amizade impõe deveres, e Teseu viu-se obrigado a concordar. Dirigiram-se ambos ao cabo Tenare na Lacônia, onda há uma entrada dos infernos, e ali penetraram sem grande dificuldade. A expedição não foi feliz, e terminou até pelo ridículo: os dois amigos não lograram alcançar o objetivo da jornada, pois, estando cansadíssimos, sentaram-se numa pedra, mas a ela ficaram colados sem poderem mexer-se. Teseu ainda estaria ali, se Hércules não houvesse obtido de Plutão licença para o livrar: quando Hércules o arrancou, deixou ele uma parte da carne no malfadado assento. Quanto a Piritus, não julgou Hércules conveniente tirá-lo de tão desagradável situação.
Morte de Teseu
Teseu, além dos feitos que se prendem diretamente à história heróica dos atenienses, fizera parte da expedição dos argonautas, e participou da caça ao javali de Calidon e de todos os eventos da sua época. No entanto, encontrou um fim muito triste; tendo ido visitar Licomedes, rei de Ciros, este, invejoso da reputação de Teseu, ou corrompido pelos inimigos, mandou que o precipitas-sem do alto de um rochedo. Havia em Atenas dois quadros famosíssimos representando Teseu : um era pintado por Parrásio e outro por
Eufranor. Este último passava por apresentar melhor o caráter do herói, e Eufranor dizia que o Teseu de Parrásio estava nutrido de rosas, ao passo que o seu estava nutrido de carne. Essa expressão, citada por Plínio, basta para mostrar claramente qual podia ser a tendência das duas escolas rivais.
ÍNDICE
GRAVURAS Fig. 372 Fig. 373 Fig. 374 Fig. 375 Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig.
376 377 378 379 380 381 382 383 384 385
Fig. 386 Fig. 387 Fig. 388 Fig. Fig. Fig. Fig. Fig.
389 390 391 392 393
Fig. 394 Fig. Fig. Fig. Fig.
395 396 397 398
Fig. 399
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Nascimento de Cupido (segundo um quadro de Lesueur) ...................11 Vênus e Cupido .................................................................................12 A força de Cupido (segundo uma pedra gravada antiga) .....................13 Cupido triunfante (segundo uma pedra gravada antiga). Cupido pode ser considerado aqui por amor ao vinho, em virtude dos seus atributos báquicos ........................................13 — Vênus e Cupido (segundo uma pedra gravada antiga) ........................14 — Cupido de antigo estilo (segundo uma pedra gravada) ........................16 — Cupido adolescente (segundo um busto antigo) .................................17 — Cupido entesando o arco (segundo uma estátua antiga) ....................18 — Cupido (segundo uma estátua antiga) ................................................20 — Cupido fazendo o seu arco (por Bouchardon, museu do Louvre) ........21 — Cupido num hipocampo (segundo uma pedra gravada antiga) ...........22 — Mercadora de cupidos (segundo uma pintura antiga) .........................25 — Arco e aljava de Cupido com a borboleta de Psique .............................26 — O povo ajoelhado perante Psique (segundo uma composição de Rafael) ......................................................................................................28 — Rapto de Psique (segundo Prudhon) ...................................................31 — Cupido e Psique (segundo um monumento antigo, no museu Capitolino) ....................................................................33 — Cupido e Psique (segundo o quadro de Gérard, museu do Louvre) ................................................................................... 34 — Cupido abandonando Psique (segundo um quadro de Picot) ............. 36 — Psique (segundo uma estátua antiga) ................................................ 37 — Cupido reanimando Psique (por Thorwaldsen) .................................. 39 — Psique pensativa ...............................................................................39 — Núpcias de Cupido e Psique (segundo um baixo-relevo antigo do museu Britânico)......................................................................................40 — Cupido e Psique (segundo um grupo de Canova, museu do Louvre) ...................................................................................41 — Cupido e Psique (segundo um vidro antigo) .......................................42 — Cupido e Psique (segundo uma pedra gravada antiga) ......................43 — Cupido amarrando Psique (segundo uma pedra gravada antiga) .......44 — Mercúrio prende às costas de Psique as asas de Cupido agrilhoado (segundo uma pedra gravada antiga) ...........................................45 — Cupido queimando num archote a borboleta ....................................46
Fig. 400 — Mercúrio barbudo (segundo uma pedra gravada antiga) ....................50 Fig. 401 — Mercúrio (segundo uma estátua antiga) ............................................51 Fig. 402 — Mercúrio associado a Vênus (numa medalha de Septímio Severo) ..........................................................................52 Fig. 403 — Hermafrodita (segundo uma estátua antiga) .....................................53 Fig. 404 — Mercúrio (segundo uma estátua antiga, museu do Louvre) ...............54 Fig. 405 — Mercúrio inventor da lira (segundo uma estátua antiga) ...................56 Fig. 406 — Mercúrio sentado (segundo um bronze do museu de Nápoles) ..........56 Fig. 407 — Mercúrio, deus dos ladrões (segundo uma estátua antiga do museu Pio-Clementino) ...........................................................59 Fig. 408 — Busto e atributos de Mercúrio ..........................................................60 Fig. 409 — Medalhas arcádias e romanas, com o gale, atributos de Mercúrio .....61 Fig. 410 — Mercúrio (segundo uma pedra gravada antiga) ..................................62 Fig. 411 — Mercúrio, deus dos ginásios (segundo uma estátua antiga do museu Pio-Clementino) ........................................................... 63 Fig. 412 — Mercúrio-menino no seu carro (segundo um baixo-relevo antigo) ..........................................................................................64 Fig. 413 — O carneiro de Mercúrio .....................................................................65 Fig. 414 — Mercúrio no carneiro (segundo uma medalha antiga) ........................ 66 Fig. 415 — Mercúrio, deus dos viajantes (segundo uma pedra gravada antiga) ...........................................................................67 Fig. 416 — Mercúrio cognominado Germânico (estátua antiga no museu do Louvre) ........................................................................ 68 Fig. 417 — Mercúrio, deus da eloqüência (segundo uma pedra gravada antiga) ............................................................................ 68 Fig. 418 — Mercúrio, estátua de bronze (por Gian di Bologna, em Florença) ..................................................................................... 70 Fig. 419 — Mercúrio, mensageiro dos deuses (segundo uma pedra gravada antiga) ............................................................................ 71 Fig. 420 — Mercúrio, condutor das almas (segundo uma pedra gravada antiga) ............................................................................72 Fig. 421 — Mercúrio conduzindo uma alma ao reino de Plutão ........................... 73 Fig. 422 — Mercúrio evocando uma sombra (segundo uma pedra gravada antiga) ............................................................................73 Fig. 423 — Atributos de Mercúrio .......................................................................74 Figs. 424, 425 — Cabeças de Pã (segundo antigas moedas) ................................77 Fig. 426 — Pã (segundo uma moeda de Messena) (Sicília) ...................................78 Fig. 427 — Pã (segundo uma antiga moeda arcádia) ...........................................78 Fig. 428 — Cupido, vencedor de Pã ....................................................................79 Fig. 429 — Pã (segundo uma estátua antiga) ......................................................80 Fig. 430 — Pã (estátua antiga, museu do Louvre) ...............................................81 Fig. 431 — Sacrifício a Pã (segundo uma pedra gravada antiga) .........................85 Fig. 432 — Vesta (segundo uma estatueta antiga) ..............................................87 Fig. 433 — Vestal (segundo uma estátua antiga) ................................................91 Fig. 434 — Vestais sacrificando (segundo uma medalha antiga) .........................93 Fig. 435 — Lar privado (segundo uma estátua antiga) ........................................ 94 Fig. 436 — Gênios das corridas de carros (segundo um baixo-relevo antigo) ......................................................................................... 95 Fig. 437 — Funeral de um gênio.......................................................................... 96 Figs. 438, 439 — Cabeças de Baco (segundo moedas antigas) .............................100 Fig. 440 — Baco indiano. cognominado Sardanápalo (estátua antiga) ................102 Fig. 441 — Baco indiano (segundo um busto antigo) ..........................................103 Fig. 442 — Baco frígio (segundo um baixo-relevo antigo) ....................................104 Fig. 443 — Baco tebano (estátua antiga) ............................................................105 Fig. 444 — Baco (segundo uma estátua antiga, museu do Louvre) .....................106
Fig. 445 Fig. 446 Fig. 447 Fig. 448 Fig. 449 Fig. 450 Fig. 451
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Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig.
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452 453 454 455 456 457 458 459 460 461 462
Fig. 463 — Fig. 464 — Fig. 465 — Fig. 466 — Fig. Fig. Fig. Fig.
467 468 469 470
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Fig. 471 — Fig. 472 — Fig. 473 — Fig. 474 — Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig. Fig.
475 476 477 478 479 480 481 482 483 484
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Fig. 485 — Fig. 486 — Fig. 487 —
Baco deitado (segundo uma estátua antiga) ......................................107 Cisto e a serpente báquica (segundo uma medalha antiga) ...............109 Líber e Libera (segundo uma pintura de vaso) ...................................110 Sacrifício de bode (segundo um camafeu antigo) ...............................110 Baco (segundo uma estátua antiga) ..................................................111 Touro báquico ou dionisíaco (segundo uma pedra gravada antiga) ....112 Touro ornado para o sacrifício (segundo urna pintura de vaso) .......................................................................................112 Sacrifício do touro (segundo um baixo-relevo antigo) ........................113 Baco e Apolo (segundo uma medalha de Adriano) .............................114 Baco e Ceres (segundo uma medalha dos Nicenos) ...........................114 Máscara trágica ................................................................................115 Máscaras báquicas ...........................................................................116 Atributos de Baco .............................................................................118 Sátiros pisando uvas (segundo um baixo-relevo antigo) ....................118 Festa em honra de Baco (segundo um baixo-relevo antigo) ...............119 Sileno e os sátiros (segundo uma pedra gravada antiga) ...................121 Festa em honra de Baco (segundo um baixo-relevo antigo) ................123 Sileno, odre personificado (segundo uma estátua antiga do museu de Nápoles) .......................................................................................126 Sileno e Baco (grupo antigo, chamado o Fauno e o Menino, museu do Louvre) ...........................................................................................127 Sileno, pai nutridor de Baco (segundo um grupo antigo do museu de Nápoles) ..................................................................128 Baco e Sileno (segundo uma estátua antiga) .....................................129 Sileno montado no burro (segundo uma pedra gravada antiga) ....................................................................................... 130 Sileno (segundo um quadro de Rubens) .......................................... 132 Bacante (segundo uma pedra gravada antiga) ................................. 135 Sátiros de estilo arcaico (segundo uma pintura de vaso) ................. 136 Sátiro fazendo dançar um menino (segundo uma pedra gravada antiga) .......................................................................... 137 Sátiro (segundo uma pedra gravada antiga) .................................... 138 Baco conduzido por um sátiro (segundo uma pintura de vaso) .......................................................................................... 140 Fauno e Fauna (segundo um busto antigo, museu de Nápoles) ..................................................................................... 141 Fauno flautista (segundo uma estátua antiga, museu do Louvre) ...................................................................................... 142 Fauno flautista (segundo uma estátua antiga) ................................ 143 Fauno tocando címbalos (segundo uma estátua antiga) .................. 144 Fauno em repouso (segundo uma estátua antiga, em Roma) ........... 145 Fauno dançando (segundo uma estátua antiga) .............................. 146 Fauno e cabrito (segundo uma estátua antiga) ................................ 148 Sátiros e ninfa ................................................................................ 149 O centauro primitivo (segundo uma pedra antiga) .......................... 152 O centauro Borghese (estátua antiga, museu do Louvre) ................ 153 Hércules e o centauro Folos (segundo uma pintura de vaso) ........... 157 Hércules combatendo os centauros (segundo uma medalha antiga) ....................................................................................... 157 Hércules combatendo os centauros ................................................. 158 Hipodâmia raptada pelos centauros (segundo uma pintura antiga) ....................................................................................... 159 Teseu combatendo os centauros (segundo uma pintura antiga) ....................................................................................... 159
Fig. 488 — Teseu e o centauro ......................................................................... 160 Fig. 489 — Cadmo e a novilha (segundo uma medalha antiga).......................... 162 Fig. 490 — Núpcias de Cadmo e Harmonia (segundo um baixo-relevo antigo) ....................................................................................... 165 Fig. 491 — Mercúrio e Baco (segundo uma pintura de vaso) .............................. 167 Fig. 492 — Baco lavado pelas ninfas (segundo um baixo-relevo antigo) ............. 169 Fig. 493 — Nascimento de Baco (segundo um espelho etrusco) ......................... 171 Fig. 494 — Mercúrio entregando Baco a uma ninfa ........................................... 172 Fig. 495 — Mercúrio pega o menino Baco que sai da coxa de Júpiter (segundo um baixo-relevo do museu Pio-Clementino) ................. 172 Fig. 496 — Ino e seu filho (segundo uma moeda de Corinto) .............................. 175 Fig. 497 — Palemon no delfim (segundo uma moeda antiga) .............................. 175 Fig. 498 — Leucotéia ......................................................................................... 176 Fig. 499 — Baco acolhido por Cibele (segundo um baixo-relevo do Louvre) ........ 178 Fig. 500 — Berço de Baco (terracota antiga) ...................................................... 180 Fig. 501 — Educação de Baco (segundo um quadro de Poussin, museu do Louvre) .................................................................................. 180 Fig. 502 — Baco Ampelos (segundo um grupo antigo) ........................................ 182 Fig. 503 — Baco sobre a pantera (pintura de vaso) ............................................ 184 Fig. 504 — Regresso da conquista da índia ........................................................ 186 Fig. 505 — Baco e Pã (segundo um fragmento de baixo-relevo antigo) ............... 187 Fig. 506 — Um companheiro de Acetes .............................................................. 189 Fig. 507 — Penteu dilacerado pelas bacantes (segundo uma pintura de vaso) ...................................................................................... 192 Fig. 508 — Baco combatendo Perseu (segundo uma pintura de vaso) ................ 197 Fig. 509 — Baco na casa de Icário (segundo um baixo-relevo antigo, no Louvre) .................................................................................. 198 Fig. 510 — Ariadne abandonada (segundo Luca di Giordano) ............................ 200 Fig. 511 — Ariadne adormecida (segundo uma estátua antiga) .......................... 201 Fig. 512 — Leito de Baco (segundo um vaso antigo) ........................................... 203 Fig. 513 — Apoteose de Baco e Ariadne ............................................................. 204 Fig. 514 — Núpcias de Baco e Ariadne .............................................................. 204 Fig. 515 — Baco e Prosérpina (busto antigo)...................................................... 205 Fig. 516 — Busto de Ariadne (segundo uma estátua antiga) .............................. 206 Fig. 517 — Baco e Prosérpina (segundo um camafeu antigo) ............................. 207 Fig. 518 — Baco e Semele (segundo um espelho etrusco) .................................. 208 Fig. 519 — Júpiter diante da janela de Alcmena (segundo uma pintura de vaso) ......................................................................... 212 Fig. 520 — Juno aleitando Hércules (segundo o quadro de Rubens) ................. 215 Fig. 521 — Hércules-menino (segundo uma estátua antiga) ............................. 216 Fig. 522 — Hércules sufocando as serpentes (segunda uma pintura de Herculanum) ......................................................................... 216 Fig. 523 — Hércules tocando lira (segundo uma medalha antiga) ..................... 217 Fig. 524 — Hércules-menino (segundo uma estátua antiga) ............................. 218 Fig. 525 — Hércules sufocando o leão de Neméia (segundo uma medalha antiga) .................................................. 222 Fig. 526 — Hércules combatendo a hidra de Lerna (segundo pedra gravada antiga) ................................................. 223 Fig. 527 — Hércules combatendo a hidra (pintura de vaso) .............................. 224 Fig. 528 — Hércules levando a Euristeu o javali de Erimanto (segundo uma pintura antiga de Pompéia) ................................. 226 Fig. 529 — Hércules combatendo com as setas contra as aves do Estínfale (segundo uma moeda antiga)...................................................... 227
Fig. 530 — Hércules combatendo com a maça contra as aves do Estínfale (segundo uma moeda antiga)...................................................... 228 Fig. 531 — Hércules e as aves do Estínfale (segundo uma pintura de vaso) ..................................................................................... 229 Fig. 532 — Hércules combatendo a rainha das amazonas (segundo uma pintura de vaso) ................................................................. 230 Fig. 533 — Hércules matando Diomedes (segundo um grupo antigo, em Roma) .................................................................................. 231 Fig. 534 — Hércules e o triplo Gerião (segundo uma pintura de vaso) ............... 232 Fig. 535 — Os bois de Gerião (segundo uma pintura de vaso)............................ 233 Fig. 536 — Hércules e Nereu (segundo um baixo-relevo de Assos, no Louvre) ................................................................................. 234 Fig. 537 — Hércules devolve a Atlas o peso do mundo (segundo um espelho etrusco) .................................................................. 235 Fig. 538 — Hércules suportando o céu (segundo uma pedra gravada antiga) ......................................... 236 Fig. 539 — Hércules no jardim das Hespérides (segundo uma pintura de vaso) ..................................................................................... 236 Fig. 540 — Hércules iniciado nos mistérios (segundo um vaso pintado) ............ 238 Fig. 541 — Cérbero amarrado por Hércules (segundo uma pedra gravada antiga) ......................................... 239 Fig. 542 — Telefo aleitado por uma corça (segundo uma pintura de Herculanum) ..................................... 242 Fig. 543 — Hércules e Telefo (segundo uma medalha de Tarso) ........................ 243 Fig. 544 — Hércules matando Busíris (segundo uma pintura de vaso) .............. 244 Fig. 545 — Hércules e Anteu (segundo uma pedra gravada antiga) ................... 246 Fig. 546 — Caco (segundo uma pedra gravada antiga) ...................................... 247 Fig. 547 — Hércules recebe os agradecimentos dos habitantes do monte Aventino (segundo uma medalha antiga) .................................................. 249 Fig. 548 — Hércules e Onfale (segundo um grupo antigo) ................................. 251 Fig. 549 — Hércules e Onfale (segundo um baixo-relevo antigo) ....................... 252 Fig. 550 — Hércules fiando (segundo um mosaico antigo) ................................ 253 Fig. 551 — Hércules vencido por Cupido (segundo uma pedra gravada antiga) . 254 Fig. 552 — Cupidos erguendo a maça de Hércules (segundo uma pedra gravada antiga) ......................................... 254 Fig. 553 — Hércules penteado por Onfale (pedra gravada antiga) ..................... 255 Fig. 554 — Hércules e os cercopes .................................................................... 255 Fig. 555 — Hércules e Aquelous (segundo uma pedra gravada antiga)............... 256 Fig. 556 — Hércules e Aquelous (segundo uma pintura de vaso) ...................... 256 Fig. 557 — Hércules apresenta a Júpiter a cornucópia de Aquelous (segundo um vaso pintado) ........................................................ 257 Fig. 558 — Nesso e Dejanira (segundo um quadro de Rubens) .......................... 258 Fig. 559 — Rapto de Dejanira (segundo um espelho etrusco) ............................ 258 Fig. 560 — Dejanira chama Hércules em auxílio (segundo uma pintura de vaso) ................................................. 259 Fig. 561 — Rapto de Dejanira pelo centauro Nesso (segundo um quadro de Guido Reni, museu do Louvre) .................................. 260 Fig. 562 — Hércules e Iole (segundo uma pedra gravada antiga) ....................... 261 Fig. 563 — Hércules em repouso (segundo uma estátua antiga) ....................... 262 Fig. 564 — Morte de Hércules (segundo um quadro de Guido Reni, museu do Louvre).............. 263 Fig. 565 — União de Hércules com Hebe (segundo um espelho etrusco) ........... 264 Fig. 566 — Morte e apoteose de Hércules (segundo uma pintura de vaso) ......... 265
Fig. 567 — Hércules Farnese (segundo uma estátua antiga) ............................. 266 Fig. 568 — Hércules montado num porco (segundo uma pedra gravada do museu de Florença) ................ 267 Fig. 569 — Teseu (segundo uma moeda antiga) ................................................ 269 Fig. 570 — Teseu erguendo a pedra (segundo um baixo-relevo antigo)............... 270 Fig. 571 — Sínis e Teseu (segundo uma pintura de vaso) ................................. 271 Fig. 572 — Teseu matando o bandido Sínis (segundo uma pintura de vaso) ..... 272 Fig. 573 — Morte de Procusto (segundo uma pintura de vaso) .......................... 274 Fig. 574 — Egeu retira a taça envenenada destinada a seu filho Teseu (segundo um fragmento antigo) ................................................. 275 Fig. 575 — O Minotauro conduz as jovens (baixo-relevo do vaso de Orsay) ....... 275 Fig. 576 — O touro de Maratona (segundo uma pintura de vaso) ...................... 276 Fig. 577 — O Minotauro. O Labirinto (segundo uma moeda antiga)................... 278 Fig. 578 — Teseu matando o Minotauro (segundo uma pintura de vaso) .......... 278 Fig. 579 — Ariadne abandonada na ilha de Naxos (segundo uma pintura antiga descoberta em Pompéia) ..................................... 279 Fig. 580 — Agradecimentos a Teseu (segundo uma pintura antiga) .................. 281 Fig. 581 — Teseu (segundo uma estátua antiga) ............................................... 282 Fig. 582 — Teseu combate as amazonas (segundo uma pintura de vaso) .......... 283
ÍNDICE CAPITULO VI — Cupido Nascimento de Cupido ..................................................................................... 9 Educação de Cupido ........................................................................................ 10 Tipo e atributos de Cupido .............................................................................. 15 Esaco .............................................................................................................. 22 Pico e Circe ..................................................................................................... 23 O cabelo de Niso .............................................................................................. 24 CAPITULO VII — Psique Beleza de Psique .............................................................................................. 27 Ciúme de Vênus .............................................................................................. 29 O oráculo de Apolo .......................................................................................... 29 Psique raptada por Zéfiro ................................................................................ 30 O palácio de Psique ......................................................................................... 32 As irmãs de Psique .......................................................................................... 35 A gota de azeite ............................................................................................... 36 Cólera de Vênus .............................................................................................. 38 As núpcias de Psique ....................................................................................... 40 A alma humana ............................................................................................... 44
LIVRO VI - MERCÚRIO E VESTA CAPITULO I — Mercúrio Tipo e atributos de Mercúrio ............................................................................ 49 Mercúrio, inventor da lira ................................................................................ 55 Mercúrio, deus dos ladrões .............................................................................. 57 Mercúrio, deus do comércio ............................................................................. 61 Mercúrio, deus dos ginásios ............................................................................ 62 Mercúrio pedagogo .......................................................................................... 64 Mercúrio crióforo ............................................................................................. 65 Mercúrio, guarda das estradas ........................................................................ 66 Mercúrio, deus da eloqüência .......................................................................... 66 Mercúrio, mensageiro dos deuses .................................................................... 69 Mercúrio, condutor das almas ......................................................................... 71 Queixas de Mercúrio ....................................................................................... 74 CAPITULO II — Pã, Deus da Arcádia Nascimento de Pã ............................................................................................ 76 Cupido, vencedor de Pã ................................................................................... 78 Pã e Syrinx ...................................................................................................... 79 Pítis metamorfoseada em pinheiro ................................................................... 82 Pã e a ninfa Eco .............................................................................................. 83 Pã, filho de Mercúrio ....................................................................................... 83 Pã, divindade pastoril ...................................................................................... 84 Pã, deus universal ........................................................................................... 85
CAPITULO III — Vesta Tipo e atributos de Vesta ................................................................................. 86 O altar doméstico ............................................................................................ 89 A chegada da noiva ......................................................................................... 90 As vestais romanas .......................................................................................... 91 Os lares domésticos ......................................................................................... 93 Os gênios ........................................................................................................ 94
LIVRO VII - BACO E O SEU CORTEJO CAPITULO I — Tipo e Atributos de Baco Baco oriental ................................................................................................... 99 Baco tebano .................................................................................................... 104 A vinha, a hera e o tirso .................................................................................. 107 O cisto e a serpente báquica ............................................................................ 108 Os animais báquicos ....................................................................................... 108 Baco inspirador ............................................................................................... 113 Baco, inventor do teatro .................................................................................. 115 A taça mística .................................................................................................. 116 As festas de Baco ............................................................................................ 117 CAPITULO II — Sileno O pai nutridor de Baco .................................................................................... 125 Sileno e as jovens ............................................................................................ 128 Embriaguez de Sileno ...................................................................................... 131 CAPITULO III — Bacantes e Sátiros As bacantes e as mênades ............................................................................... 133 Os pis e os sátiros ........................................................................................... 136 Os Faunos ....................................................................................................... 147 CAPITULO IV — Os Centauros Os centauros primitivos .................................................................................. 151 Baco e os centauros ........................................................................................ 154 Hércules e os centauros .................................................................................. 155 Rapto de Hipodâmia ........................................................................................ 156 CAPITULO V — O Nascimento de Baco Cadmo e o oráculo ........................................................................................... 161 Os companheiros de Cadmo ............................................................................ 162 O dragão de Marte ........................................................................................... 163 Núpcias de Cadmo e Harmonia ....................................................................... 164 Júpiter e Semeie .............................................................................................. 165 A coxa de Júpiter ............................................................................................ 166 A nutriz de Baco .............................................................................................. 170 Ino e Palemon .................................................................................................. 173
CAPITULO VI — Educação de Baco Baco na corte de Cibele ................................................................................... 177 A infância de Baco .......................................................................................... 178 Baco e Ampelos ............................................................................................... 181 CAPITULO VII — A Lenda Heróica de Baco A conquista da índia ........................................................................................ 183 Baco em Tebas ................................................................................................ 187 Os marujos de Acetes ...................................................................................... 188 Penteu dilacerado pelas bacantes .................................................................... 190 Cadmo metamorfoseado em serpente ............................................................... 191 As filhas de Mínias Baco e Licurgo ................................................................................................. 194 Baco e Perseu .................................................................................................. 195 Baco e Erígone ................................................................................................ 196 CAPITULO VIII — Baco Místico Baco em Naxos ................................................................................................ 199 Baco e Ariadne ................................................................................................ 201 Baco e Prosérpina ............................................................................................ 203 Semele reconduzida dos infernos ..................................................................... 207
LIVRO VIII - HÉRCULES E TESEU CAPITULO I — Infância de Hércules Júpiter e Alcmena ........................................................................................... 211 O ciúme de Juno ............................................................................................. 213 O leite de Juno ................................................................................................ 213 Hércules sufoca duas serpentes ...................................................................... 214 Hércules entre o Vício e a Virtude .................................................................... 215 A morte de Anfitrião ........................................................................................ 217 Demência de Hércules ..................................................................................... 219 CAPITULO II — Os Doze Trabalhos de Hércules O leão de Neméia ............................................................................................. 221 A hidra de Lerna .............................................................................................. 222 A corça de chifres de ouro ............................................................................... 224 O javali de Erimanto ........................................................................................ 225 As estrebarias de Augias ................................................................................. 225 As aves do lago Estínfale ................................................................................. 226 A rainha das amazonas ................................................................................... 227 Os cavalos de Diomedes .................................................................................. 228 Os bois de Gerião ............................................................................................ 229 O touro de Creta .............................................................................................. 232 As maçãs de ouro das Hespérides .................................................................... 232 A descida aos infernos ..................................................................................... 237
CAPÍTULO III — Outros Feitos e Apoteose de Hércules Hércules e Telefo ............................................................................................. 241 Hércules e Busíris ........................................................................................... 243 Os pigmeus ..................................................................................................... 243 Hércules e Anteu ............................................................................................. 245 As colunas de Hércules ................................................................................... 246 Hércules e Caco ............................................................................................... 247 Hércules e Onfale ............................................................................................ 248 Os cercopes ..................................................................................................... 250 Hércules e Aquelous ........................................................................................ 251 Rapto de Dejanira ............................................................................................ 257 A fogueira de Hércules ..................................................................................... 259 Apoteose de Hércules ...................................................................................... 262 CAPITULO IV — Teseu A infância de Teseu ......................................................................................... 268 A pedra levantada ........................................................................................... 269 A túnica rastejante .......................................................................................... 270 A árvore de Sínis ............................................................................................. 271 O leito de Procusto e o rochedo de Cirão .......................................................... 272 A taça envenenada .......................................................................................... 273 O touro de Maratona ....................................................................................... 274 Teseu e o Minotauro ........................................................................................ 276 Ariadne abandonada ....................................................................................... 277 A morte de Egeu .............................................................................................. 280 Teseu combate as amazonas ........................................................................... 283 Teseu e Piritus ................................................................................................ 283 Teseu nos infernos .......................................................................................... 284 Morte de Teseu ................................................................................................ 285
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