Ser professor com tecnologias
CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Andréia Dalcin Universidade Federal do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Prof. Dr. Marco Aurélio Kalinke Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Marcus Vinicius Maltempi Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Prof. Dr. Orlando de Andrade Figueiredo Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Prof. Dr. Ricardo Scucuglia Rodrigues da Silva Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Profa. Dra. Virgínia Cardia Cardoso Universidade Federal do ABC
Rosa Monteiro Paulo Ingrid Cordeiro Firme Carolina Cordeiro Batista (Orgs.)
Ser professor com tecnologias sentidos e significados
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[email protected] Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD S481 Ser professor com tecnologias [recurso eletrônico] : sentidos e significados / Rosa Monteiro Paulo, Ingrid Cordeiro Firme, Carolina Cordeiro Batista (Orgs.). – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2018. 150 p. : ePUB. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7983-956-6 (Ebook) 1. Educação. 2. Tecnologias. 3. Ensino de Matemática. 4. Fenomenologia. I. Paulo, Rosa Monteiro. II. Firme, Ingrid Cordeiro. III. Batista, Carolina Cordeiro. IV. Título. 2018-685 CDD 372.7 CDU 371.214 Índice para catálogo sistemático: 1. Ensino de Matemática 372.7 2. Ensino de Matemática 371.214 Editora afiliada
Sumário Capa Falso-rosto Editora Rosto Copyright Apresentação Seção I Compreensões do ser-com-tecnologias Capítulo 1 Focando a constituição do conhecimento matemático que se dá no trabalho pedagógico que desenvolve atividades com tecnologias digitais Maurício Rosa e Maria Aparecida Viggiani Bicudo Capítulo 2 A quem interessar possa Luciane Ferreira Mocrosky, Fabiane Mondini e Nelem Orlovski Capítulo 3 Possibilidades do trabalho investigativo com A Geometria Dinâmica Jose Milton Lopes Pinheiro e Adlai Ralph Detoni Capítulo 4 Núcleo Pedagógico da Diretoria de Ensino de Guaratinguetá: criação, existência e atuação. José Flávio de Castro Fabrício Seção II Possibilidades de produção de conhecimento com tecnologias Produtos Notáveis – significados geométricos
José Mauro de Sousa, Judilce Fátima de Andrade Marques Siqueira e Vanessa de Oliveira Semelhança entre Figuras Planas: Homotetia Amélia Cristina de Amorim Camargo, César Augusto Sverberi Carvalho e Diana Vieira de Carvalho Triângulos: um caso especial de semelhança Hailton Rodrigues de Almeida, Lilian de Souza Batista e Rosana Aparecida Ávila de Carvalho Relações métricas nos triângulos retângulos Alexandro Cezar dos Santos, Aneti Mota França e Guilherme Eduardo Botelho Lima Prismas: uma forma de ocupar o espaço Ana Lúcia Ribeiro, Monique dos Santos e Rosangela Mara de Toledo Biazze Prismas: construindo e explorando formas no espaço Cristiano Natal Tonéis, Jorge Maurilio de Faria e José Antonio da Cruz Prismas: construindo e explorando formas no espaço Elisangela Pavanelo e Valery Cristiane Martins da Silva Siqueira Mascarini O movimento de ascensão: pirâmides e cones Anderson Luís Pereira, Cláudia Maria Christiano Canedo Motta e João Bosco da Silva Colofão
APRESENTAÇÃO Apresentar… isso é o que deve fazer uma apresentação. Parece óbvio. Mas o que significa apresentar? Segundo o dicionário da língua portuguesa,1 apresentar significa exibir, colocar à disposição, divulgar, fazer conhecer, expor. No entanto, se consideramos o dicionário de sinônimos, apresentar pode ser usado em uma frase (ou texto) com distintos significados. Se for usado com o significado de mostrar, visa expor ou exibir. Mas, se usado com o significado de manifestar, diz de um modo de pronunciar-se que por sua vez refere-se à emissão de uma opinião sobre um assunto com a intenção de cuidar. Esse significado nos chama a atenção e nos abre possibilidade de atualização do que intencionamos dizer nesta apresentação. Ou seja, ter o cuidado para poder dizer do que, neste livro, se objetiva e se expõe. Dizer de modo sensato, procurando expressar o entendimento de o que é dito, de como é dito e de por que é dito. Cuidado que, como Heidegger o entende, significa preocupação e dedicação, solicitude e ocupação. Um modo de o homem existir no mundo, atento ao que está por vir. Nesta apresentação há o cuidado para com o outro que nos abre ao seu modo de compreender, expresso no texto. Cuidado que se mostra como uma atitude de atenção ao outro. Mas, esse cuidado para com o outro expressa o meu próprio modo de ser, já que a condição de ser pessoa é ser-com os outros, agindo, “cuidando do outro em uma relação de reciprocidade [na qual] os outros são, para mim, outros; mas eu sou, igualmente, um outro para eles” (Carrilho2, 2010, p.112). O cuidado, desse modo, é o que, em toda a escrita deste livro, se mostra desde a sua organização estruturada em duas seções.
A primeira seção visa expor, em 4 capítulos, a compreensão da produção do conhecimento matemático com tecnologias, do sentido que para nós faz a formação de professores, das possibilidades que se abrem para ensinar e aprender matemática com tecnologias e da constituição dos espaços de formação docente nos quais o professor é produtor e aprendiz. O cuidado com o “o que” é dito acerca da produção do conhecimento matemático ao se trabalhar em sala de aula com as tecnologias digitais, é expresso no primeiro capítulo por Rosa e Bicudo, a partir da perspectiva fenomenológica. Esses autores expõem modos de compreensão do servivente, do mundo vida e do ser-com. Trazem clareza sobre a constituição do conhecimento que tem como primado a percepção, distinguindo-a do sentido de produção. Discutem a complexidade da constituição do conhecimento produzido pelo ser humano que ilumina a presença do outro, cossujeito com quem se convive procurando saber e fazer. Permitem-nos compreender que essa complexidade da produção de conhecimento, na perspectiva didáticopedagógica e no contexto da sala de aula, exige uma articulação do significado da matemática produzida num modo de fazer específico, por exemplo, com tecnologias. Expõe, mediante situações de pesquisas realizadas por eles e por integrantes de seu grupo, a compreensão do produzido e abrem possibilidades. Assim, o “o que” é dito traz enlaçado o “como”, o modo pelo qual compreendem as tecnologias para a produção do conhecimento matemático. No capítulo segundo, Mocrosky, Mondini e Orlovski explicitam o cuidado com o próprio sentido de formação, quando se dispõem a discutir o sentido da formação de professores para ensinar com tecnologias. As autoras convidamnos a pensar no sentido da formação, tomando-a como um movimento que é vivenciado pelo professor, atravessando-o. Logo, um movimento que lança, que pro-jeta, abrindo possibilidades para a constituição do seu modo de ser professor que não se submete a um modelo, pois é fluido e se modela; se organiza; se estrutura e, ao se estruturar, vai adquirindo forma, transformando-se. Com isso, faz sentido o que neste livro se apresenta e é explícito no capítulo 4, que inicia com a ideia da constituição de um grupo que deveria ter uma formação, mas que, no horizonte de abertura para o estar
com tecnologias, passa a ser em forma-ação; professores que criam espaços para que a tecnologia se abra à compreensão. O terceiro capítulo da primeira seção, de autoria de Pinheiro e Detoni, vai especificando o sentido de ser com tecnologias revelando o cuidado para com o “por que”. Ou seja, os autores abrem o significado das ações didáticas e epistemológicas das tecnologias para ensinar e aprender matemática expondo possibilidades de reflexão. Nesse capítulo pode-se compreender por que sercom tecnologias e não apenas usar tecnologias. Focando o movimento possibilitado pelo software de Geometria Dinâmica, como o GeoGebra utilizado pelos professores em forma-ação e trazidos na segunda seção deste livro, os autores discutem o sentido de pensar com tecnologias. Um pensar que, por exemplo, ao focar o movimento, já o revela em execução. Ou, como eles dizem, pensar o movimento já é estar realizando-o. Isso porque a possibilidade de movimento não é do software, mas do sujeito que percebe, compreende, imagina, arrasta e move, movendo-se de modo intencional. Sempre com o outro que compartilha, dialoga e provoca. Que se mostra interlocutor, instigador do meu dizer que expõe os modos pelos quais se articulam as compreensões e que, nesse articular, abre à constituição de conhecimento. O convite que fica nesse capítulo é para habitar esse espaço aberto pelas tecnologias. Um habitar que, tal qual é discutido no segundo capítulo, abre possibilidades para a produção de conhecimento. O capítulo 4 encerra essa seção e apresenta o Núcleo Pedagógico da Diretoria de Ensino, como órgão institucional com funções delimitadas por leis e portarias e como campo de atuação, em que desponta a formação do professor. Formação que possibilitou o espaço de ações para formar professores. Fechamos, desse modo, o “o que”, o “como” e o “por que”, abrindo a segunda seção com novos olhares para o “o que”, “como” e “por que”, agora visto da perspectiva do professor. A segunda seção está organizada em oito capítulos e, como na seção anterior, é permeada pelo mesmo fio condutor do cuidado. Ou seja, os professores, integrados aos espaços formativos, produzem e mostram “como” entendem os modos pelos quais é possível investigar conteúdos de matemática com tecnologias. Tomam como ponto de partida sua experiência
vivida em sala de aula, seu cuidado com a aprendizagem do aluno e apresentam situações que consideram relevantes para o contexto do ensino com tecnologias. O “por que” ser com tecnologias vai permeando as ações propostas e as discussões que são sugeridas. O “o que” é definido pela própria experiência vivida, uma vez que são professores com um currículo. Isso os faz eleger conteúdos que permeiam as ações do seu dia a dia e que se mostram a eles com possibilidades investigativas. Desse modo, vê-se, nessa seção, formas de se trabalhar com Produtos Notáveis, Homotetia, Semelhança de triângulos, Relações métricas no triângulo retângulo, Prismas e Pirâmides. Encerramos esta apresentação voltando ao significado tomado inicialmente, ou seja, o apresentar como uma possibilidade de manifestar, não apenas o que nos diferentes capítulos se irá encontrar, mas o que a constitui como obra: o cuidado para compreender o sentido de ser professor com tecnologias. Rosa Monteiro Paulo 1 O dicionário aqui utilizado é o Dicio: dicionário online de Português. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2017. 2 Carrilho, M. R. O cuidado como ser e o cuidado como agir. Ex aequo, n.21, 2010, p.107-114. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2017.
SEÇÃO I Compreensões do ser-com-tecnologias
Capítulo 1 Focando a constituição do conhecimento matemático que se dá no trabalho pedagógico que desenvolve atividades com tecnologias digitais Maurício Rosa3 Maria Aparecida Viggiani Bicudo4
Introduzindo a temática Neste capítulo nossa intenção é focar a produção do conhecimento matemático que, ao se trabalhar pedagogicamente atividades com tecnologia digitais, tem a possibilidade de ser realizada. Essa é uma questão complexa e já de imediato anunciamos aos nossos leitores que não traremos uma definição que diga o que é essa produção nem apresentaremos uma sequência de passos que garantam essa produção. Porém, buscaremos expor compreensões que foram se abrindo para nós na trajetória que percorremos investigando o modo pelo qual ao se estar junto às tecnologias digitais podemos produzir conhecimento matemático. Para tanto, abordaremos modos de compreender: a produção do conhecimento, de um ponto de vista fenomenológico; a produção do conhecimento matemático, assumindo a própria matemática vista como ciência e disciplina e como um fazer específico que constitui e que produz conhecimento; do que tratam as tecnologias digitais (TD), no sentido de modos possíveis de trabalhar-se com TD produzindo conhecimento junto a alunos.
Buscando compreender a produção do conhecimento do ponto de vista fenomenológico e a produção do conhecimento histórico-social presente ao mundo vida A constituição do conhecimento, como compreendida ao se estudar fenomenologia, primordialmente Edmund Husserl e Maurice Merleau-Ponty, é um movimento complexo. Abrange muitos atos intencionais da consciência e modos dos sentidos que fazem ao sujeito vivente5 serem entrelaçados e irem, aos poucos, constituindo uma forma que vai se presentificando à consciência, de maneira que o sujeito pode se dar conta disso que está compreendendo do mundo vida. mundo vida6 entendido como o mundo que aí está, onde somos com os outros, sujeitos encarnados, animais, natureza em geral e com a produção sociocultural que, historicamente, também o constitui. É um organismo vivo que se move e acontece com o próprio movimento da vida que também traz as ações dos sujeitos encarnados que expressam compreensões e as materializam em formas possíveis na simbiose potência, possibilidade enquanto força que pode fazer ser, ato, que dispara a força, colocando-a em movimento de ser, forma que imprime na matéria disponível um modo de aparecer e que só se realiza junto à matéria, que também se presentifica na forma, enquanto possibilidades de ser trabalhada. É o solo onde somos e nos movimentamos na temporalidade de nossas ações e na espacialidade que se expande como um horizonte de feitos materializados e de visões e compreensões realizadas. Portanto, mundo vida não é uma caixa que nos contém. É o onde somos, sendo ao realizar ações junto aos cossujeitos que conosco estão na materialidade espaçotemporal, portanto, histórica. Acima afirmamos que a constituição do conhecimento é um movimento complexo. Abramos um pouco o horizonte dessa complexidade na busca de compreendê-la. Como também afirmado, somos sujeitos encarnados no mundo vida, donde não podemos nos entender como um sujeito abstrato, apenas pensado como um intelecto capaz de criar projetos a serem executados segundo uma programação controlada por um pensar abstrato, como se o projeto fosse uma forma sem materialidade a ser impressa nas produções.
Somos sujeitos encarnados e nosso próprio pensar é encarnado, exige materialidade. Desde o momento de nossa geração, nos encontramos junto a, porém com um organismo que vai se definindo em sua singularidade, estando, entretanto, geneticamente com-o-outro junto ao mundo que o envolve e que ele também faz ser. Há um movimento uníssono de singularidade e de comunalidade, isto é, de modos de ser singular e modos de ser junto ao comum ou à comunidade. Sujeito-vivente, sujeito-encarnado, corpo-próprio7 são maneiras de dizer desse organismo singular, complexo, que nunca é sem a materialidade de seu corpo, carne e osso, nem do solo em que se encontra com os outros. Além disso, o modo de proceder fenomenológico sempre se preocupa com a constituição do fenômeno que está buscando compreender. No caso do corpo-vivente, ele também não é tomado como dado em si, de modo objetivo, porém Husserl em suas diferentes obras vai descrevendo o modo de ser dessa carnalidade, tomando como foco de análise o próprio corpo em sua maneira de estar vivo. De maneira mais focada, encontramos essa descrição em Ideas (Husserl, 2002). De imediato, o que se mostra é seu aspecto somático, cujas matéria e forma possibilitam sua visibilidade. Suas ações: respirar, mover-se em direção a…, revelam que vive. Ser vivente. Corpo-encarnado que sente e cujas sensações se revelam conectadas ao mundo objetual, e que são entendidas como o modo pelo qual o mundo nos chega. Entretanto, não cai prisioneiro, em sua exposição, das explicações do empirismo. Transcende, em suas análises, essa “camada” fortemente hylética e abrange a constituição dos valores, baseada no querer, evidenciando ações passíveis de liberdade, no sentido de que não ficam mais fortemente ligadas às objetualidades e sensações, mas permitem escolhas. (Bicudo, 2012, p.90)
Em Ideas, Husserl (2002) demora-se na descrição de vinculações entre sensações diferentes, como as provenientes do tato, do olfato, da audição, do paladar, da visão, da cinestesia e que se amalgamam no dinamismo do corpopróprio, possibilitando sínteses estéticas que nos dão unidades de objetos percebidos. Aparentemente é uma descrição que nos chega como simplória. Entretanto, sua complexidade se revela quando nos damos conta de que o corpo vivente se constitui de modo duplo: é coisa física, matéria, hylé, que permite objetivar suas “[…] qualidades […] mas também é ‘órgão’ que,
sensorialmente, sente tais sensações. Por exemplo, há a sensação proveniente da picada de um inseto na mão esquerda e o sentir a dor decorrente” (Husserl, 2002, p.91). Destacamos, então, unidades de objetos percebidos, indicando que essas unidades são constituídas e não dadas. Na medida em que a unidade do objeto vai sendo constituída na complexidade do corpo-vivente, o objeto já pode ser percebido como uma unidade diferenciada de outros com os quais está no mundo vida. A constituição8 do conhecimento, como compreendida pela fenomenologia, tem como primado a percepção, ato que pelo olhar intencional da consciência9 se estende ao focado nesse olhar e traz o percebido para os atos da consciência. Nesse movimento noema-noesis (ou perceber-percebido), o objeto intencional já se mostra como fenômeno, uma vez que é visto de uma perspectiva, a do corpo-próprio, e já é percebido e não constatado em sua objetividade. Intencional por ser visado na intencionalidade do ato. Isso quer dizer que o sujeito encarnado de modo atento e indagador dirige seu olhar a um foco, indagando do que se trata ou dirige sua ação a algo que percebe como imperante que faça. Como MerleauPonty afirma, meu corpo está onde há algo a fazer. No movimento perceber-percebido, a consciência se estende ao fenômeno e o traz como percebido para si, articulando mediante seus atos das esferas sensorial, psíquica e espiritual compreensões sobre ele. Para esclarecer do que se fala ao mencionar essas esferas, trazemos um excerto da tese de doutoramento de Silva (2017, p.25): A estrutura da pessoa humana expressada por Stein apresenta-se constituída por um entrelaçamento composto pelo corpo, psique e espírito, expressada pela palavra alemã Geisten. Ainda, sabemos que o corpo, a psique10 e o espírito se manifestam pelas vivências humanas, ou seja, não são separados delas, sendo, portanto, carnais. A interpretação fenomenológica sobre o corpo vivente abrange o espírito, pois, como salientado nas obras husserlianas, todos os seres humanos vivenciam experiências e delas podem se dar conta. Esta concepção se mostra importante, pois não trata o ser humano como um ser redutivo, como uma estrutura composta apenas pelo corpo ou pelo par corpo e psique, mas salienta a existência do espírito e o distingue da psique.
A esfera sensória, carnal, realiza atos concernentes ao sentir e perceber, a psíquica ao gostar, desejar, comparar e a espiritual aos atos que realizam ajuizamentos de melhor que, pior que, maior, menor etc. Essas esferas não são separadas, porém entrelaçadas na própria unidade do corpo-próprio. Os atos
duram, têm uma temporalidade, são dinâmicos e fazem acontecer. Entretanto, não são abstratos, mas se dão na materialidade carnal que, por sua vez, não é uma massa sem forma e sem direção. É um organismo vivo que, de modo intencional, sempre se dirige a algo buscando saber do que se trata ou para dar conta de uma solicitação, de algo a fazer. Não se dirige a esmo, porém visa um foco. Os atos do sujeito encarnado também não se exaurem em si, mas, para consumarem-se, necessitam ser articulados e expressos em uma materialidade apropriada à visibilidade do que está sendo constituído como conhecimento. Essa expressão se dá pela linguagem que, concomitantemente, organiza sensação, percepção, atos psíquicos e espirituais e comunica o compreendido. É desse modo a expressão do logos que reúne, organiza e se expõe na e pela linguagem. Até aqui expusemos a constituição do conhecimento enquanto um movimento que ocorre no corpo-próprio, organismo vivo que vivencia experiências. Entretanto, nessa constituição há mais: há a presença do outro, cossujeito que também sente, percebe, realiza atos psíquicos e espirituais e que se faz sentir em sua corporeidade. O cossujeito, sujeito com quem se está no mundo vida, também compreende e pode compreender o dito em uma linguagem articulada e expressa em sua materialidade. Responde ao compreendido mediante um movimento dialógico que se consuma em ações materializadas e que pela concordância entre sujeitos intencionais (pessoas) que vivem em uma comunidade e pela repetição disso sobre o que houve concordância, se torna objetivo, passível de ser retomado, repetido, compreendido, vivificado em atos sensoriais, psíquicos e espirituais. A objetividade do que assim se tornou objetivo não é uma objetividade dada, mas constituída por sujeitos em sua carnalidade, que convivem, que se colocam em movimento de saber, ou de fazer algo e que têm suas ações materializadas em produtos histórico-sócio-culturais. Note-se que esse movimento de constituição do conhecimento enlaçou a subjetividade de sujeitos, a intersubjetividade e a objetividade. Enlaçou também o movimento de produção histórico-sócio-cultural. Histórica por ter sido gerada na temporalidade de vivências e por ser lançada na espacialidade social e cultural, permanecendo como dada, como aí estando no mundo vida,
tornando-se presente no movimento de devir do sujeito e do próprio mundo vida. Para nós, articular essas ideias de constituição de conhecimento com a produção do conhecimento matemático que pode se dar no trabalho pedagógico com atividades que envolvem tecnologias digitais demanda um longo percurso. É uma articulação complexa. Em nossas pesquisas e naquelas de alunos que orientamos, temos exposto aspectos dessa articulação que compreendemos. Aqui, neste capítulo, que como tal é apenas um componente de um livro maior, focaremos a matemática produzida e entendida como ciência e como um fazer específico que constitui e que produz conhecimento; exporemos modos de compreenderem-se as TD e modos possíveis de trabalhar-se com essas tecnologias produzindo conhecimento junto ao aluno.
Buscando compreender a produção de conhecimento matemático Ao expressarmos que o movimento de produção do conhecimento enlaça a subjetividade do sujeito encarnado que já traz consigo a intersubjetividade constituindo objetividade materializada junto ao ato, à matéria e à forma que se entrelaçam, estamos afirmando que esse é o movimento de constituição do conhecimento produzido pelo ser humano no mundo. Desse modo, a própria matemática é assim produzida, tanto nas atividades realizadas pelo sujeito com os seus cossujeitos no mundo vida, como a teorização dessas atividades que ao se desenvolverem produzem a ciência matemática. A matemática entendida como ciência do mundo ocidental ou matemática acadêmica é, portanto, concebida por nós como uma construção do ser humano realizada mediante articulações de diferentes culturas, em que a intersubjetividade está presente como seu constitutivo. É reconhecida como disciplina em seu modo de ser objetivo, uma vez que se põe no mundo vida em materialidades que nos são visíveis e dadas como textos, como linguagem, como teorias passíveis de serem aplicadas, como conhecimento prático que
também se realiza junto à matéria e forma disponíveis à ação intencional do sujeito-encarnado. Esse modo de compreender a construção da matemática, em primeira instância, nos faz indagar a respeito dessa produção, tentando olhá-la da perspectiva do próprio entendimento de matemática. Conhecimento matemático: que conhecimento é esse que se produz? Que matemática estamos fazendo? Que sentidos percebemos nessa palavra? Olhando da perspectiva da matemática que se produz, entendemos com Bourdieu (1993) que ela se torna um “campo” visto como um espaço estruturado de posições cujas propriedades dependem das próprias posições nesse espaço. São posições políticas, sociais, culturais, religiosas… Vemos que o campo matemático coloca em jogo definições sobre o que é boa e má matemática, além de ser possível analisar como pesquisadores das áreas de matemática, matemática aplicada, educação matemática disputam espaços e reconhecimentos para si mesmos e suas produções, além de haver disputas comerciais para ver quais são os grandes e ou melhores produtores de livros didáticos sobre a temática. Compreendendo o entrelaçamento entre a subjetividade dos sujeitos de sujeitos viventes, a intersubjetividade e a objetividade do expresso e acordado intersubjetivamente, afirmamos que há a “Matemática” com letra maiúscula, aquela que pelo Formulário Ortográfico de 1943 – Oficial no Brasil, indicava em seu sexto artigo que se usava letra maiúscula “Nos nomes que designam artes, ciências ou disciplinas, bem como nos que sintetizam, em sentido elevado, as manifestações do engenho e do saber” (Portal da Língua Portuguesa, 2015, grifos nossos). Conforme Vanini (2015), por muito tempo ela foi defendida como soberana, denominada a matemática universitária, matemática ocidental, a qual é estruturalmente demonstrável e axiomática. De outra perspectiva compreendemos a defesa de outra matemática que não é a disciplinar, ainda que não desconsidere a sua importância. Trata-se de um fazer matemático que busca pelo sentido do que está sendo realizado. Esse modo de entendê-la tem levado a escrevê-la com letra minúscula, com a intenção de evidenciar que se está em um campo em que a relação de poder
estabelecida por aqueles que dominam a disciplina Matemática não está presente. É um modo de compreender a matemática e de escrevê-la com letra minúscula e que está em sintonia com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, oficializado em 2009 que traz na Base XIX – das minúsculas e maiúsculas – que as letras minúsculas são usadas nos nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas (opcionalmente, também com maiúscula): português (ou Português), matemática (ou Matemática); línguas e literaturas modernas (ou Línguas e Literaturas Modernas). (Portal da Língua Portuguesa, 2015, grifos nossos). Mais que uma letra maiúscula ou minúscula, o que se destaca aqui é a relação de poder em termos de domínio da verdade sobre: o que a matemática trata; o que é a matemática; qual matemática deve ser ensinada; se há uma única matemática; se a matemática que ensinamos deve ser a disciplinar, com conteúdos a serem ensinados, regras, fórmulas bem definidas e demonstradas. Na verdade, é um campo compreendido […] entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivar um filósofo com questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar neste campo (cada categoria de interesses implica indiferença em relação a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). (Bourdieu, 1983, p.120)
Sendo olhada dessa perspectiva, a produção do conhecimento matemático pode ser entendida a partir do reconhecimento desse “campo” de disputas, no qual as escolas filosóficas da Filosofia da Matemática se inserem. Como nos revela Dias (1999), entre as escolas, o Logicismo sustenta que as leis da Matemática são redutíveis às leis lógicas ou são derivadas da Lógica, enquanto precursora da exatidão. Possui Frege, Whitehead e Russell como grandes defensores. O Intuicionismo, que pressupõe a construção da matemática a partir da dos números naturais, defende essa construção como uma ideia intuitiva, não admitindo a matemática como uma teoria, um sistema de regras e afirmações, mas uma parte fundamental da atividade humana. Já o Formalismo, por sua vez, considera a Matemática como o estudo dos sistemas de axiomas acrescidos de leis lógicas. Essa escola é a que se entende,
atualmente, como “matemática acadêmica”. Logo, partimos da ideia de que a produção do conhecimento matemático depende dos pressupostos da escola filosófica à qual os sujeitos se identificam. No entanto, como Heidegger (2012, p.45), acreditamos que A ciência aparentemente mais rigorosa e de estrutura mais sólida, a matemática, encontra-se numa “crise de fundamentos”. A disputa entre formalismo e intuicionismo desenvolve-se visando a conquistar e assegurar um modo de acesso mais originário ao que deve constituir o objeto dessa ciência. (Heidegger, 2012, p.45)
Isso para nós perfaz em absoluto a própria produção de conhecimento matemático, pois, ao buscarmos identificar um modo de acesso mais originário ao objeto dessa ciência, desejamos entender a produção do conhecimento matemático frente a esse objeto intencional que já se mostra como fenômeno. Nesse viés, abre-se uma possibilidade, a qual se apresenta ao assumirmos a “matemática acadêmica” como a etnomatemática do grupo que defende o formalismo e focarmos na produção de conhecimento matemático que vai além dessa Matemática, mas que a assume como importante e não como soberana. A etnomatemática, em um primeiro momento, foi entendida como a matemática produzida por um determinado grupo cultural. Entretanto, ao se colocar a própria etnomatemática em suspensão, vislumbrou-se esta “[…] como posição e atitude de conhecimento que assume a realidade e as necessidades relacionadas a um panorama cultural e aos indivíduos que o compõem” (Miarka, 2011, p.406). Nessa perspectiva, tomando a “Matemática” (com maiúscula), entendida como a “matemática acadêmica” e detentora de poder (soberana), como uma atitude ou um posicionamento que assume a realidade e as necessidades relacionadas a um panorama cultural (eurocêntrico) e aos indivíduos que compõem um grupo que defende esse posicionamento (formalismo), podemos afirmar que Ela [a Matemática] pode ser encontrada na etnomatemática, no sentido de que a “Matemática Ocidental” é interna à etnomatemática, tomada esta, por sua vez, como um campo mais amplo, o que pode ser percebido na pesquisa de D’Ambrosio e de Barton. Para Knijnik, a etnomatemática é uma alternativa para a matemática (ou), ao tomar as práticas dos grupos culturais como jogos de linguagem que podem ser relacionados por meio de semelhanças de família, sem um núcleo uno como base para essa constituição. Para um terceiro grupo, formado por Gerdes e Sebastiani Ferreira, a matemática é algo abraçado à etnomatemática (e), ao conceber a matemática como um núcleo
sólido direcionador da prática do pesquisador desse campo. (Miarka; Bicudo, 2012, p.156-157, grifos dos autores)
Entendemos, então, que para compreendermos a produção do conhecimento matemático é preciso tratar a Matemática como etnomatemática, ou seja, como práticas sociais realizadas por um grupo cultural. Dentre essas práticas também estão as de teorizar, de categorizar e de axiomatizar. Entretanto, estão também as de intuir, de sentir, de expressar o compreendido subjetivamente. Assim, concordamos com Merleau-Ponty (2006), precisamos nos desprender do senso comum que nos leva a acreditar que o conhecimento matemático que devemos produzir é somente (ou mais importante) o que é estabelecido pela “matemática acadêmica”, pois, Quando penso no teorema de Pitágoras e o reconheço como verdadeiro, é claro que essa verdade não é momentânea. Contudo os progressos ulteriores do saber farão aparecer que não se trata ainda de uma evidência última, incondicionada, e que, se o teorema de Pitágoras e o sistema euclidiano passaram por constituir tais evidências, isso é a marca de uma certa época da cultura, que um novo desenvolvimento não deveria anular, sem dúvida, mas colocar no lugar de verdade parcial […]. (Merleau-Ponty, 1990, p.55, grifos nossos)
Isso, ao mesmo tempo que nos dá subsídio para defender a impossibilidade de ruptura total com a matemática ocidental, devido à nossa “familiaridade” com ela, também nos indica um caminho para recusar essa cumplicidade e assim ver brotar a produção de conhecimento matemático que necessitamos, isto é, afrouxando os fios intencionais que nos prendem às fixações conceituais desta matemática ocidental. A Matemática vista como ciência ocidental aí está, tem sua estrutura e é tomada como suporte lógico do campo da informática e das práticas científicas e tecnológicas ocidentais e orientais. Entretanto, o modo de estarmos no mundo vida em que a prática matemática é constantemente solicitada, bem como a familiaridade com o aparato tecnológico, faz com que presenciemos modos de proceder que não seguem rigidamente as regras e os conceitos dessa ciência. Atualmente, “vemos” a matemática ser produzida por um grupo cultural formado por pessoas imersas em uma cultura particular: a cibercultura (Lévy, 1999). Trata-se, portanto, de pessoas conectadas em grande parte a tecnologias digitais e a matemática realizada é produzida também com TD.
Do mesmo modo, por existir esta tribo conectada constituída por sujeitos viventes com suas vivências intencionais, que estão junto aos seus cossujeitos e que vão constituindo intersubjetivamente junto e na cibercultura aspectos particulares como vontade, linguagem, temporalidade, espacialidade e contexto, não buscamos estabelecer, nesse momento, se essa matemática é a “mesma” ou “outra matemática”, pois esse é um paradoxo que envolve indivisivelmente imanência e transcendência. Imanência, visto que as vivências estão presas às facticidades de uma etnomatemática entendida a partir de um grupo específico, cuja estrutura nos atravessa como seres que a estudaram, então, trazemo-la conosco, pois ela não pode ser completamente desenraizada, por mais que idealmente isso seja, em alguns casos, desejável. Transcendência porque a matemática é produzida pela cultura net em um contexto fluido – com o ciberespaço e com outras TD, que potencializam/ampliam a matemática que se faz nesse contexto (Rosa, 2008), abrindo horizontes que talvez possibilitem ver além daquilo que já se conheça. A cibercultura propicia a ideia de que a universalidade concebida como possibilidade de acesso a todos, mesmo que as relações de poder frente ao domínio da Matemática não sustentem isso muitas vezes, torne-se totalidade, no sentido de possibilidade de alcance a todos. Afirmamos isso, pois “Cada conexão suplementar acrescenta ainda mais heterogeneidade, novas fontes de informação, novas linhas de fuga, […] cada vez mais difícil de circunscrever, de fechar, de dominar” (Lévy, 1999, p.120). Ou seja, o caráter fluido das redes de computadores, aplicativos, dispositivos móveis etc. torna a produção do conhecimento matemático dinâmico e aberto à expansão, possibilitando que essa produção tenha a possibilidade de contato com a etnomatemática. Por exemplo, posso ter contato com a matemática produzida do outro lado do mundo, assumindo literalmente o sentido geográfico da expressão; com a matemática produzida por quaisquer tribos, diferentes da que pertencemos; além da própria matemática acadêmica, sem que haja um rigor exímio em seguir referenciais fixos e estanques em termos de criatividade e produção de conhecimento matemático.
A produção do conhecimento matemático também se encontra nas dimensões sensória e carnal, realiza atos concernentes ao sentir e perceber a matemática que se está produzindo; na psíquica ao gostar, desejar, comparar os conceitos matemáticos construídos em termos aritméticos, algébricos, geométricos e também práticos; na espiritual, com aos juízos expressos em proposições que dizem, por exemplo, das comparações pior que, maior, menor etc. Tais dimensões se entrelaçam em um movimento contínuo. Assim, a produção do conhecimento matemático tem sua temporalidade, torna-se dinâmica e é garantida pela materialidade carnal e pela materialidade de linguagens que se expressam no organismo vivo que, como já mencionado, de modo intencional, sempre se dirige a algo buscando saber do que se trata ou para dar conta de uma solicitação, de algo a fazer. As tecnologias digitais aí estão na materialidade disponível a nós na mundaneidade do mundo e atraem nossa visada, constituindo-se fenômenos a serem desvendados. De imediato, percebemos que começam a transformar o sentido da própria produção do conhecimento e, qualquer que seja esse transformar, assume a ideia de trans/forma/ação, pois “Trans significa ser e estar a caminho, uma movimentação para além de si mesmo, um lançar-se ao entre de uma movimentação” (Heidegger, 2012, p.18), enquanto sujeito que age intencionalmente voltado a algo. Focando as TD, então, buscamos compreendê-las e explicitar nossa compreensão. Esse é o movimento que fazemos a seguir neste texto.
Tecnologias Digitais: como compreendê-las? Ao tratarmos de como compreendemos as TD precisamos, antecipadamente, revelar de qual perspectiva as estamos olhando. Defendemos a construção de uma concepção de forma/ação-docente-comTecnologias-Digitais, denominada “Cyberformação com professores de matemática”. Essa concepção avança em termos teórico-filosóficos sobre entendimento do “ser” e do “mundo”. Também, em termos educacionais, particularmente, teoriza o trabalho com tecnologias digitais (TD) na atual
sociedade do conhecimento, focalizando aspectos, dimensões e possibilidades da Educação Matemática Online. Assim, Rosa (2015, p.77, grifos do autor) define “[…] Cyberformação com professores de matemática: a formação vista sob a dimensão específica (matemática), pedagógica e tecnológica que assume o uso de TD, particularmente, o ciberespaço em ambiente de EaD, sob a perspectiva do ser-com, pensar-com e saber-fazer-com-TD”. Essas ações estão no cerne dessa concepção de formação, a qual pode ser concebida com uma primeira iniciativa de inovação da prática docente no sentido de “não reprodução” de atividades já executadas com outros instrumentos (livros didáticos, materiais manipulativos, sequências didáticas, …) sob uma nova roupagem, aquela em que os recursos tecnológicos são utilizados somente para dar um novo colorido. Para nós, essa reprodução é denominada domesticação das tecnologias digitais (Silvestone, 2010) e a Cyberformação advoga pelo movimento contrário a isso. Ela compreende o trabalho em ambientes cibernéticos e todo o aparato tecnológico que a eles se vinculam e/ou produzem como fator proeminente dessa formação. Isto é, como meio, materialidade expressa com a qual se realiza o processo cognitivo a ele trazendo aspectos específicos à tecnologia os quais contribuem para injetar potência ou força a esse processo. Os computadores oferecem-nos maneiras incontáveis de mudança-de-forma. Usando software de “morfar”, nós podemos transformar faces tão alternadamente que um sorriso amplo de um adolescente funde-se a uma mulher velha de má aparência, como se sob um passe de mágica. Pondose sob um capacete de realidade virtual, nós interatuantes confinados à terra encontramos a nós mesmos transmutados em pássaros que voam bem alto. O computador captura processos, e consequentemente está sempre sugerindo-nos processos mesmo quando está apenas apresentando informações. Qualquer coisa que vemos no formato digital – palavras, números, imagens, imagens em movimento – nos torna mais plásticos, mais convidados à mudança. (Murray, 1997, p.154, tradução nossa)11
As ações realizadas junto ao computador trazem velozmente uma multiplicidade de aspectos, formas, mensagens, Essa multiplicidade é caracterizada pelos seus elementos, as singularidades; pelas suas relações, que são devires; pelos seus acontecimentos, que são hecceidades (individuações sem sujeito);12 seus espaços/tempos, que são espaços e tempos livres; seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua) e pelos vetores que as atravessam e que constituem territórios e graus de desterritorialização (Deleuze; Guattari, 2004). Trata-se de um movimento
dialético do “ser-com-TD” e que ao mesmo tempo que é uma multiplicidade, possui singularidades; mantém devires com o mundo; individualiza-se sem ser um sujeito fechado em si; seu espaço/tempo é livre; compõe-se sobre um plano de imanência que se apresenta como uma zona contínua; possui vetores que o atravessam de forma a territorializar-se e desterritorializar-se, fluxos que o atravessam em um movimento de vir-a-ser e de projetar-se como vários, como o intencionado. Ser-com-TD concebe a ideia desse “ser” que se manifesta com o mundo, com o seu entorno e as TD, então, se fazem no mundo, se tornam com o mundo. Ou seja, são possibilidades de o sujeito vivente se atualizar em materialidades como bits, avatares, imagens, sons, expondo-se. As TD, então, se tornam o meio pelo qual o “eu” se desvela ao mostrar-se. Desse modo, as TD no processo educacional que sempre se dá por diálogos, entendidos em uma variação grande de possibilidades de expor o logos à díade, são entendidas por nós como mídia, uma vez que mídia “é um vocábulo latino que em português significa meios, tendo sido importado para a nossa língua pelo inglês, com a acepção de meios de comunicação” (Wikipédia, 2007). Não obstante, tomamos o significado da palavra “meio” como visto no dicionário de filosofia Abbagnano (2007, p.657): MEIO2 (in. Means; fr. Moyen; ai. Mittek it. Mezzo). 1. Tudo o que possibilita alcançar um fim. Cumprir um objetivo ou realizar um projeto. Sobre a relação entre M. e fim. v. VALOR. 2. Ambiente, especialmente o biológico. Nesse sentido, essa palavra corresponde ao francês milieit, que começou a ser usada com esse significado em meados do século passado. (v. AM-BIKNTK)
As TD, como “meios”, não são entendidas como algo entre os extremos, mas algo que possibilita alcançar um fim, no caso, a produção do conhecimento matemático, ou mesmo como um ambiente propício a esse mesmo fim. Mais que isso, como para McLuhan (1996, p.7, tradução nossa), […] a mídia é a mensagem. Isso é meramente dizer que as consequências pessoais e sociais de qualquer mídia – ou seja, de qualquer extensão de nós mesmos – resulta da nova escala que é introduzida dentro de nossas relações por cada extensão de nós mesmos, ou por qualquer nova tecnologia.13
Logo, há uma ampliação da noção de mídia de forma a não se limitar aos meios de comunicação, pois para esse autor os meios são extensões de nós mesmos e isso vai além da comunicação. Também entendemos pelo discurso
do autor que, embora possam afirmar que a mensagem (o meio) é aquilo que a pessoa faz com a máquina, em vez da própria máquina, o importante é que “A reestruturação da associação e trabalho humanos foi moldada pela técnica de fragmentação que é a essência da tecnologia da máquina” (Mcluhan, 1996, p.8, tradução nossa).14 Isso, para nós, faz com que o autor entenda técnica como mensagem, ou seja, o meio (aquilo que levou a um fim) que possibilitou a alteração da performance humana, o que indicou a mudança. A presença das TD no contexto educacional se revela como uma materialidade com sua forma específica (mensagem/media), que, como toda materialidade, é enlaçada pela intencionalidade, quando o sujeito encarnado que busca compreender ou resolver algo que para ele está sendo solicitado. Nesse movimento, sujeito encarnado intencionalmente voltado a algo a fazer junto com as TD, junto a esse meio que é evocativo, no sentido de que “[…] é preciso também que eu inverta a relação natural entre o corpo e a circunvizinhança e que apareça uma produtividade humana através da espessura do ser” (Merleau-Ponty, 2006, p.162) é que vai se presentificando em sentidos e compreensões, possibilidades de organização do percebido e de expressar, de modo inteligível, o compreendido aos cossujeitos com quem está, o conhecimento vai se constituindo e se materializando em objetividades ao se estar junto ao meio, ao se estar junto à mídia, às TD. Desse modo, as TD não são entendidas como próteses, pois não substituirão o ser humano e nem parte deste. Próteses dentárias, ortopédicas etc. substituem ou repõem o que falta no ser humano. São seus complementos e não necessariamente estão envolvidas no ato de pensar. Da mesma forma, as TD na produção do conhecimento não são entendidas como ferramentas, pois elas não ocupam um papel de suplementação para o ser humano, como uma chave de fenda, por exemplo, que é usada para tornar o trabalho mais ágil, mais eficiente ou mais econômico. Ou seja, a mídia está presente no próprio pensar. Compreendendo as TD como presentes no movimento de produzir conhecimento, falamos do pensar-com-TD, de forma a se perceber com elas, assim como de produzir conhecimento nas relações com o mundo e com os outros. Para nós, então, esse pensar-com-TD está na “esfera do entre”, de modo que
[…] surge um outro: entre [as TD] e a nossa vida filosófica, em particular a nossa maneira de pensar acerca da natureza humana. Como estão situad[a]s na fronteira entre mente e não-mente, entre vida e não-vida, [as TD] estimulam a reflexão acerca da natureza da mente e da natureza da vida. Encorajam-nos a pensar sobre quem somos. […] Fazem-nos enfrentar uma provocação, pois mostram um novo espelho onde a mente está refletida como máquina. (Turkle, 1989, p.263)
A ideia de pensar-com-TD pode muitas vezes assustar. Pensar-com é um modo de ser-com. Isso, muitas vezes, gera a ideia de uma mistura transgressiva de biologia e tecnologia, o que assusta. No entanto, esse “sercom-TD”, ultrapassa a ideia de cyborg como soma de materialidades biomecânicas; vai além do estar com as mídias, vai além de possuí-las para nos auxiliar nas atividades cotidianas. Há hifens fenomenologicamente justificáveis entre o “ser”, o “com” e as “TD” porque […] não há essa separação, pois o sujeito é sempre já no mundo, por ser corpo-encarnado, intencionalmente, voltado ao que está a sua volta, solicitando por algo a ser feito. Por conseguinte, ligado, unido, ao que está à sua volta pelos sentidos do seu corpo-próprio, sendo com e nesse mundo. Sempre está voltado em direção ao que está a sua volta, solicitando sua atenção. Assim, esse organismo, corpo-vivente é, intencionalmente, unido ao mundo vida. (Bicudo, 2014, p.38)
Habitando essas ideias, assumimos a produção do conhecimento matemático com tecnologias digitais na perspectiva fenomenológica heideggeriana do ser-aí e/ou ser-aí-no-mundo-com (Heidegger, 2012).
A produção do conhecimento matemático com tecnologias digitais Em Rosa (2015) evidenciamos que a investigação sobre as TD e, em especial, o ciberespaço como espaço de fluxos (Castells, 2005), no que concerne à formação docente, veio sendo realizada, possibilitando o movimento de forma/ação de/com professores que atuam ou atuarão em ambientes cibernéticos. Não obstante, também o entendimento das conexões com a tecnologia mereceu espaço na perspectiva da formação com professores. Logo, a perspectiva heideggeriana do ser-aí e ser-aí-no-mundocom (Heidegger, 2012) contribuiu para a compreensão do trabalho com TD e, consequentemente, para a constituição do ser que designamos como ser-nomundo. Ou seja, o ser humano é e está no mundo e com o mundo se faz
sujeito. Ser-no-mundo não diz ser dentro do mundo, mas ser junto ao e no mundo e isso “na experiência de sendo em ser, de existir na dimensão infinita de ser, ou seja, de existir na abertura do a-ser” (Heidegger, 2012, p.27). Nessa perspectiva, assumimos que vivemos com o mundo e com todo o aparato que nele se encontra, sem dicotomizar, no sentido de não conceber a existência de um ser que pensa “sobre” o mundo, mas, a existência de um ser que pensa, age e vive “com” o mundo, com o que aí está, portanto, também com as tecnologias. Esse é um argumento que queremos destacar nesta seção. O entendimento do trabalho com tecnologias que não se caracteriza como uso pelo uso de TD, mas sob uma perspectiva que a concebe como partícipe da produção do conhecimento matemático. Essa visão vem de encontro ao entendimento empírico, assim explicitado por Heidegger: […] logo que “o fenômeno do conhecimento do mundo” se apreende em si mesmo, sempre recai em uma interpretação formal e “externa”. Um indicador disso é a suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como uma “relação de sujeito e objeto”, que se mostra tão “verdadeira” quanto vazia. Sujeito e objeto não coincidem com presença e mundo. (Heidegger, 2012, p.106)
Para nós, então, “[…] o conhecer em si mesmo se funda previamente num já-ser-junto-ao-mundo, no qual o ser da presença se constitui de modo essencial” (Heidegger, 2012, p.108). Isso significa que produzimos conhecimento com o mundo, com as tecnologias digitais que se encontram no mundo e não sobre o mundo, sozinhos de forma que essas tecnologias simplesmente nos auxiliem a pensar sobre algo. Para nós, esse mundo vivenciado é o mundo vida [que] mostra-se para nós como um “mundo” que tem “vida”. Esse sentido vale à medida que olhamos atentamente para o mundo e buscamos compreendê-lo com a sua força, impondo-se e tudo abarcando, ao modo de um caldo grosso que se vai alastrando, cobrindo o que aí está, ao mesmo tempo em que se engrossa e se nutre disso. É um mundo vivo e, portanto, mutante, temporalizado, especializado. Assim, o sentido para nós se faz como o mundo que é vida, e não vida que tem um mundo. Entendemos que vida não é um a priori do mundo, mas se faz e sustenta no e com o mundo. (Bicudo; Rosa, 2010, p.64)
Ao estar plugado ao ciberespaço e/ou às TD, intencionalmente voltado ao ensino e/ou à aprendizagem de matemática, a corporeidade do sujeito que écom pode assumir diferentes presentificações possibilitadas pelas tecnologias, o ser-on-off-line15 (que está no mundo cibernético e na realidade mundana ao
mesmo tempo, uma vez que se fazem mundo vida concomitantemente) se transforma frente às experiências vivenciadas e dos recursos tecnológicos disponibilizados no mundo cibernético. Desse modo, o corpo cognoscente (Merleau-Ponty, 2006) pode se presentificar como textos, imagens, sons digitalizados, avatares etc., cujas expressões ocorrem via tela informacional e alto-falantes da máquina. É nessa totalidade do corpo-próprio que percebemos a matemática, ou seja, pensamos, agimos e produzimos conhecimentos matemáticos, sendo esta corporeidade: eu-outro-mundo (Merleau-Ponty, 2006) cibernético. Ou seja, somos um corpo-próprio que, em sua totalidade, abrange o outro, que também se encontra plugado ao mundo, efetuando ações solicitadas pelo contexto em que está, que pode ser aquele do cibermundo. Daí termos um continuum de ações que abrangem também as da cognição matemática do ser-on-off-line. Como mencionado, isso quer dizer que o sujeito encarnado de modo atento e indagador dirige seu olhar a um foco, no caso, à matemática que está produzindo com as TD, indagando do que se trata ou dirige sua ação a algo que percebe como imperante que faça. Há um ser-no-mundo, mundo esse já compartilhado. Isto é, o “ser-no-mundo”, então, enquanto ocupação, já é tomado pelo mundo do qual se ocupa e, assim, conforme Heidegger (2012, p.175, grifos do autor), “À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado (N38). O ser-em é ser-com os outros. O serem-si intramundano desses outros é copresença”. Isso se articula ao que o próprio Heidegger busca em sua obra solucionar, quando se utiliza do termo Dasein, que é distinguir a vida fática do homem de um sentido de ser como algo simplesmente dado, ou seja, como substância, estrutura substancial e substantiva de subjetividade. Nesse sentido, aceitando a tradução de Dasein por presença ou como um ser-aí (aí entendido como abertura mundana) e substantivá-lo “[…] é uma necessidade inevitável, mas igualmente que toda a tentativa de agarrar o sentido da existência num sentido substancial não é capaz de desvencilhar-se da verbalidade temporalizante da vida da eksistência” (Heidegger, 2012, p.30, grifos nossos). Assim, o ser-com se move na temporalidade do ser, a qual é a própria des-substantivação de ser, é verbo,
é movimento, é intencionalidade. E, nesse sentido, “Pensar é traduzir-se, é fazer-se, isso significa fazer-se presença para o presente de ser” (Heidegger, 2012, p.31). O pensar é ato de conhecer, o qual só pode ser vivenciado no próprio exercício, não desligado, não desconectado, não desplugado do próprio mundo. Logo, […] o pensamento não é uma atividade abstrata, de um ser abstrato: é uma atividade que se dá de modo carnal, na carnalidade de um corpo encarnado de uma pessoa, que é sempre situada em seu modo de existir, indissoluvelmente sendo-com, portanto em movimento de tornar-se. (Coelho; Bicudo, 2014, p.86)
Não é, para nós, uma relação estabelecida de um sujeito sobre um objeto. Em específico, é uma relação de pensar-com-TD que permite a produção de conhecimento (inclusive matemático) “[…] nas relações com o mundo e com os outros” (Rosa, 2008, p.106), que abrangem as (trans)formações das ideias (também matemáticas) possíveis com os meios tecnológicos (computador, smartphone, tablet, software, vídeo etc.) que estão/são mundo. Dessa forma, o ser-com-TD, “[…] além de estar no mundo, cria um novo mundo, ou micromundo […]” (Rosa, 2008, p.118) em que há um lançar-se, necessariamente, o “plugar-se”, projetando-se ao meio tecnológico. Já o saber-fazer-com-TD “[…] é manifestado pelas ações intencionais efetuadas com o mundo, comigo mesmo e com os outros. Nesse sentido, ações desempenhadas na atividade, na construção de um produto, na prática” (Rosa, 2008, p.136). Ou seja, “saber-fazer-com” é a expressão cunhada para identificar o ato de agir com TD de forma que, ao fazer, me perceba fazendo e reflita sobre isso, de forma a produzir conhecimento ao mesmo tempo em que me construo como ser. Assim, agir com vontade e senso de realização na construção de um produto, em um micromundo específico, me faz estar-com e ser-com esse mundo particular, possibilitado pelas TD a partir de um pensar-com. Produzir é uma ação que evidencia muitas outras ações, entre elas, o projetar, o pensar, o ser, o próprio agir. Essas ações são realizadas, abertas umas às outras, orientadas pela intencionalidade. Movimento de se perceber no mundo, com o mundo, lançando-se à percepção. Isso, a nosso ver, possibilita a produção do conhecimento matemático com TD e este pode ser expresso na construção de outras coisas, ou seja, objetos, artefatos, ações,
situações, mundos, conceitos. Isto é, “[…] ao conhecer, a presença adquire um novo estado de ser, no tocante ao mundo já sempre descoberto. Esta nova possibilidade de ser pode desenvolver-se autonomamente, pode tornar-se uma tarefa e, como ciência, assumir a direção do ser-no-mundo” (Heidegger, 2012, p.109). Trazemos aqui o Construcionismo, teoria de aprendizagem que expõe a compreensão do matemático Seymour Papert na década de 1980 e que compartilha a ideia de que o desenvolvimento cognitivo é um processo ativo. Essa é uma filosofia proveniente de uma família de filosofias que, segundo esse autor (1994), nega a ideia que um bom caminho para a aprendizagem está no aperfeiçoamento da instrução, ou seja, em uma melhor comunicação no “passar” a informação. Para ele, o Construcionismo […] não coloca em dúvida o valor da instrução como tal. Isso seria tolo: mesmo a afirmativa (endossada, quando não originada, por Piaget) de que cada ato de ensino priva a criança de uma oportunidade para a descoberta, não é um imperativo categórico contra ensinar, mas um lembrete paradoxalmente expressado para mantê-la sob checagem. (Papert, 1994, p.124)
Desse modo, Papert (1994) afirma que a meta construcionista é fazer com que o processo de construção de conhecimento aconteça de forma que a aprendizagem se dê com o mínimo de instrução e indica que é uma grande mudança em relação ao ensino tradicional, pois se assemelha ao provérbio africano: “[…] se um homem tem fome, você pode dar-lhe um peixe, mas é melhor dar-lhe uma vara e ensiná-lo a pescar” (Papert, 1994, p.125). Assim, ele conceitua como sendo boas varas de pescar, neste tempo, os computadores, por exemplo, que viabilizam a criação de situações propícias à construção do conhecimento. No entanto, a partir das leituras realizadas sobre o Construcionismo, muitas vezes, houve grande confusão quanto à ideia de ser uma teoria na qual se defende que o homem pense sobre o objeto em vez de com o objeto. No caso, com o mundo. Embora tenha ocorrido certa dúvida, entendemos o “com-o-mundo” como algo forte e preponderante. Assim, o que é importante a se destacar no Construcionismo é a ação do estudante que é efetuada intencionalmente. Dessa forma, o que se mostra é o desenvolvimento de um mundo criado para determinados propósitos educacionais e que permitem o estudante atuar em com-junto com esse e, consequentemente, vivenciá-lo. Maltempi (2004, p.265) garante que
A ideia é criar um ambiente no qual o aluno esteja […] engajado em construir um artefato público e de interesse pessoal (head-in). Portanto, ao conceito de que se aprende melhor fazendo, o Construcionismo acrescenta: e melhor ainda quando se gosta, pensa e conversa sobre o que se faz.
O gostar, pensar e conversar são processos que podem ser destacados e que condicionam o que Papert (1994, p.127) chamou de construção “no mundo”. Essa construção possui sintonia com a criação de um produto que possa “[…] ser mostrado, discutido, examinado, sondado e admirado […], tornando-se, desse modo, menos uma doutrina puramente mentalista”. Mas que é percebida, dialogada, refletida, com processos que são expressos e socialmente compartilhados. Contudo, Ao se relacionar com o meio, [cada um] depara com situações em relação às quais age. O indivíduo interpreta para si próprio as atividades que desempenha e as experiências que vivencia. São estas interpretações que constituirão parte de sua estrutura, e não a experiência em si. (Bicudo, 1978, p.53)
Também segundo Bicudo (1978), a pessoa pode assumir o papel do outro, via linguagem, no momento que responde ao gesto do outro da mesma maneira que este último o faz. Esse mecanismo permite a entrada no campo de experiência da outra pessoa, refletindo sobre essa ação a ponto de voltar-se sobre si. Isso possibilita o desenvolvimento social do “Eu”, capaz de participar das relações estabelecidas no grupo ao qual pertence. Assim, segundo nossa compreensão da produção do conhecimento matemático com TD, tomamos que esse conhecimento é produzido não se concebendo matemática como um amontoado de informações apoiadas em regras rígidas e fechadas, muitas vezes caracterizadas por significados pressupostos e estáticos no processo de transmissão dessas informações (Silva, 1994), mas concebendo-a como […] uma matemática que se constitui a partir de uma geração net que carrega consigo, culturalmente, concepções e ideias próprias sobre visão geométrica (agora dinâmica); de cálculo imersivo, imaginativo e repleto de sons e imagens; de álgebra que fundamenta um sistema binário complexo e que dá suporte a todo esse aparato tecnológico; de estatística que transpassa gráficos, tabelas, problemas impregnados de luz, cor e movimento, os quais também revelam toda a plasticidade dessa matemática; assim como, de outras compreensões que não aquelas vistas quando o que se apresentava, na verdade, precisava era ser mostrado, transferido, transmitido. (Rosa; Vanini; Seidel, 2011, p.100)
Em vez de o professor ser um único vértice transmissor de informações e o estudante um receptor tentando transformá-lo em conhecimento, a cultura
cibernética permite ao estudante e ao professor experienciar situações com imagens, sons, movimentos finitos e velocidades infinitas, possibilitando diferentes formas para a compreensão do conceito, transformando a produção desse conhecimento a partir do ambiente em que ele é experienciado (Rosa, 2008).
Produção do conhecimento matemático que se dá no trabalho pedagógico que desenvolve atividades com tecnologias digitais Neste item, trazemos uma síntese aberta, pois sempre com possibilidade de ser modificada em virtude de outras compreensões que possam nos levar a ver um horizonte mais aberto em que a complexidade do tema aqui tratado se enreda. É uma síntese, pois reúne, ao modo de um resumo articulado, compreensões expostas na discussão que trouxemos neste texto. Entendemos que as tecnologias digitais estão presentes em nosso cotidiano – de pessoas que vivem em ambientes urbanos, seja em cidades ou não mundo vida, revelando-se em diferentes dimensões como: no trabalho, na produção de conhecimento científico, nas atividades de ensino e de aprendizagem, nos jogos, nas brincadeiras de crianças, de adultos e de pessoas já com idade mais avançada, nos afazeres cotidianos como atividades bancárias, de comércio etc. Na compreensão do senso comum e mesmo de estudiosos, as TD são vistas como recursos para fazer algo ou como ferramentas para serem usadas. Essa concepção também está presente em situações de ensino e aprendizagem quando as tratamos como utensílios que podem amenizar momentos enfadonhos em que a disciplina há que ser observada, prendendo a atenção e a disponibilidade para que o estudante faça o solicitado. São, nesse caso, vistas como separadas do modo de pensar do sujeito que aprende. Nós, diferentemente, compreendemos que somos sempre com o mundo e com os outros que neles estão, sujeitos encarnados, ou seja, sujeitos viventes, natureza, animais e produções humanas historicamente presentes na cultura. As TD são uma produção humana, histórica e culturalmente presente no
mundo vida. Sendo assim, somos com elas, também. Isso significa que elas se constituem materialidades e formas com as quais realizamos afazeres, respondendo a solicitações para as quais nos voltamos intencionalmente, disparando ações. Ou seja, para as quais dirigimo-nos de modo atento e preocupados com sua realização. Nesse movimento, a percepção das TD e dos modos pelos quais podem ser operacionalizadas é trazida para os atos de consciência que, pela busca incessante de sentido que o mundo faz e dos significados que podem ser expressos, vai articulando o sentido e compreendendo-as. Nessa articulação a própria linguagem lógica das TD se faz presente na organização da inteligibilidade e na expressão disso que está se revelando inteligível para o sujeito encarnado. Ao expressar o compreendido, expõe aos seus cossujeitos que também buscam pelo sentido do mundo. A compreensão entre os cossujeitos, a concordância quanto ao modo de expressá-la e a repetição disso que foi assim compreendido e expresso constitui a objetualidade ou objetividade do mundo vida. Mostra-se, desse modo, a produção do conhecimento. Esse movimento também ocorre quando as atividades de ensino e de aprendizagem tratam da Matemática e da matemática. As TD trazem modos de dizer dessa ciência, bem como viabilizam uma gama diferenciada de atividades expostas em formas e cores diferentes. A atitude assumida por aqueles profissionais que estão envolvidos com a proposta pedagógica de ensinar matemática com as TD os levam a propor questões que possam fazer convergir intencionalidades dos sujeitos presentes, promovendo exposições de raciocínios, modos de realizar atividades, modos de expressá-las, bem como promovendo o exercício de ouvir o outro e de compreendê-lo, para poder retomar o dito e avançar com a compreensão. Esse é o próprio processo de produção de conhecimento matemático com as TD.
Referências bibliográficas ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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