1,243 Pages • 692,744 Words • PDF • 34.7 MB
Uploaded at 2021-10-19 02:17
This document was submitted by our user and they confirm that they have the consent to share it. Assuming that you are writer or own the copyright of this document, report to us by using this DMCA report button.
TEOLOGIA SISTEMÁTICA uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual
üm
V ID A N O V A
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ferreira, Franklin Teologia sistemática : uma análise histórica, bíblica, e apologética para o contexto atual / Franklin Ferreira e Alan Myatt. —São Paulo : Vida Nova, 2007. Bibliografia. ISBN 978-85-275-0316-7 1. Bíblia - Teologia 2. Teologia dogmática I. Myatt, Alan II. Título.
07-7077
CDD-230.046
índices para catálogo sistemático: I. Teologia sistemática : Cristianismo
230.046
uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual Franklin Ferreira Alan Myatt Revisão Técnica Márcio L. R edondo
Um
VIDA NOVA
Copyright ©2007 Edições Vida Nova
l.a edição: 2007 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por S o c ie d a d e R e l ig io s a E d iç õ e s V
id a
N
ova,
Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte. ISBN 978-85-275-0316-7 Impresso no BrasilIPrinted in Brazil
C o o r d e n a ç ã o E d it o r ia l
Marisa K. A. de Siqueira Lopes R e v is ã o
Noemi Lucília L.S. Ferreira (capítulos 16, 17, 20, 21 e 22) Marilene Ferreira (capítulos de 1 a 15, 18, 19, 23 e 24) R e v is ã o
de provas
Ubevaldo G. Sampaio C oordenação
de
P rodução
Sérgio Siqueira Moura D
ia g r a m a ç ã o e
C a pa
OM Designers Gráficos | Osiris C. R. Rodrigues
DEDICATÓRIA s nossas esposas Marilene e Kathy, nossas parceiras na graça de Cristo Jesus, e que, como John Wintrop escreveu, são o “principal de todos os confortos abaixo da esperança de salvação”, e às nossas filhas, Beatriz e Carrie, dom e bênção de Deus para nós, desde cedo educadas na esperança da vida eterna. Elas suportaram muitas horas de ausência, por terem acreditado neste trabalho. Dedica mos essa obra a elas, reconhecendo que, sem elas, não seria possível nem iniciá-la, muito menos completá-la.
A
A TRINDADE U m a oração puritana TRÊS EM UM, UM EM TRÊS, DEUS DA MINHA SALVAÇÃO, Pai celestial, Filho bendito, Espírito etemal, Eu te adoro como único Ser, única Essência, único Deus em três Pessoas distintas, Çor trazeres pecadores ao teu conhecimento e ao teu reino. O Pai, tu me amaste e enviaste Jesus para me redimir; Ó Jesus, tu me amaste e assumiste a minha natureza, derramaste teu sangue para lavar meus pecados, consumaste justiça para cobrir a minha iniqüidade; Ó Santo Espírito, tu me amaste e entraste em meu coração, lá implantaste a vida eterna, revelaste-me as glórias de Jesus. Três pessoas e um só Deus, bendigo-te e louvo-te, por amor tão imerecido, tão indizível, tão maravilhoso, tão poderoso para salvar os perdidos e elevá-los à glória. Ó Pai, rendo-te graças, pois em plenitude de graça Tu me deste a Jesus, para ser dele ovelha, jóia, porção; Ó Jesus, rendo-te graças, pois em plenitude de graça Tu me aceitaste, me esposaste, prendeste-me a ti; Ó Espírito Santo, rendo-te graças, pois em plenitude de graça apresentaste-me Jesus por minha salvação, implantaste a fé dentro de mim, subjugaste meu coração contumaz, fizeste-me um com Ele para sempre. O Pai, tu estás entronizado para ouvir as minhas orações, Ó Jesus, tuas mãos estão estendidas para receber as minhas petições, Ó Espírito Santo, tu estás pronto a me socorrer em minhas fraquezas, a mostrar a minha necessidade, a me suprir de palavras, a orar dentro de mim, a me fortalecer de sorte que eu não desanime de suplicar. O trino Deus que comandas o universo, tu me ordenaste pedir por essas coisas concernentes ao teu reino e à minha alma. Faz-me viver e orar como alguém batizado em teu tríplice Nome.
1 Extraído de Arthur Bennett (ed.), The Valley o f Vision-, a collection o f Puritan prayers & devotions (Edinburgh: Banner o f Truth, 2003), p. 3. Tradução de Marcos Vasconcelos.
SUMÁRIO Agradecimentos.............................................................................................................................................XI Abreviaturas..................................................................................................................................................xui A presentações..............................................................................................................................................XV Prefácio.......................................................................................................................................................... XIX Introdução..................................................................................................................................................... XXI
P A R T E I........................................................................................................................................................... 1 INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ Capítulo 1 - A CONSTRUÇÃO DA COSMO VISÃO CRISTÃ......................................................3 Capítulo 2 - A METODOLOGIA TEOLÓGICA................................................................................31
PARTE 2 ......................................................................................................................................................... 51 A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS Capítulo 3 - A REVELAÇÃO GERAL.................................................................................................53 Capítulo 4 - A PALAVRA DE D E U S...................................................................................................86
PARTE 3 ....................................................................................................................................................... 153 A DOUTRINA DE DEUS Capítulo 5 - A TRINDADE S A N T A ................................................................................................... 155 Capítulo 6 - OS ATRIBUTOS DE D E U S...........................................................................................198 Capítulo 7 - DEUS PAI............................................................................................................................ 229 Capítulo 8 - A CRIA ÇÃO ....................................................................................................................... 251 Capítulo 9 - A PROVIDÊNCIA DE D E U S........................................................................................295 Capítulo 10 - ANJOS E D EM Ô NIO S................................................................................................. 349
PARTE 4 ........................................................................................................................................................ 383 A DOUTRINA DA HUMANIDADE E DO PECADO Capítulo 1 1 - 0 SER H U M A N O ............................................................................................................385 Capítulo 1 2 - A DOUTRINA DO PECADO...................................................................................... 423
PARTE 5 .........................................................................................................................................................481 A DOUTRINA DA PESSOA E OBRA DE CRISTO Capítulo 1 3 - A PESSOA DE JESUS CRISTO..................................................................................483 Capítulo 14 - A OBRA DE CRISTO NO ESTADO DE HUM ILHAÇÃO................................542 Capítulo 15 - A EXPIAÇÃO................................................................................................................... 579 Capítulo 16 - A RESSURREIÇÃO DE JESUS CRISTO................................................................628
PARTE 6 ........................................................................................................................................................ es? A DOUTRINA DA PESSOA E OBRA DO ESPÍRITO SANTO Capítulo 17 - A PESSOA DO ESPÍRITO SANTO ...........................................................................660 Capítulo 18 - A UNIÃO COM CRISTO E A DOUTRINA D A ELEIÇÃO.............................. 703 Capítulo 1 9 - 0 INÍCIO DA VIDA CRISTÃ..................................................................................... 760 Capítulo 20 - A VIDA CRISTÃ: A OBRA DO ESPÍRITO SANTO N A SANTIFICAÇÃO E N A PERSEVERANÇA...................................................837
PARTE 7 ........................................................................................................................................................ 913 A DOUTRINA DA IGREJA Capítulo 21 - A COMUNHÃO CRISTÃ............................................................................................. 915
PARTE 8 ....................................................................................................................................................... 1011 A DOUTRINA DAS ÚLTIMAS COISAS Capítulo 2 2 - 0 REINO DE D E U S...................................................................................................... 1013 Capítulo 23 - A MORTE E A ETERNIDADE................................................................................. 1046 Capítulo 24 - A VOLTA DE CRISTO E O MILÊNIO...................................................................1094
Bibliografia geral....................................................................................................................................... 1174 índice de textos bíblicos...........................................................................................................................1205
AGRADECIMENTOS ostaríamos de agradecer a preciosos amigos que gentilmente se dispuseram a ler partes deste livro, oferecendo valiosas sugestões e reparos: Augustus Nicodemus Lopes, Daniel Lewis Deeds, Felipe Sabino de Araújo Neto, Fernando Almeida, F. Solano Portela, George Camargo dos Santos, Gilson Carlos de Souza Santos, Israel Belo de Azevedo, J. Scott Horrell, Hermisten Maia Pereira da Costa, Heber Carlos de Campos, Lucas Soares Ferreira, Mauro Fernando Meister, Norma Braga, Peggy Smith Fonseca, Russell Philip Shedd e Tiago José dos Santos Filho. Também queremos agradecer a João Soares Fonseca, que ajudou na revisão da apostila original que acabou se transformando na presente obra. Também precisamos destacar Márcio Loureiro Redondo, que nos sugeriu diversas revisões neste material e, por isso, o texto final ficou bem melhor devido ao seu trabalho. Agradecemos o paciente trabalho de revisão desta obra, realizado por Marilene do Amaral Silva Ferreira, Noemi Lucília Lopes Soares Ferreira e Ubevaldo G. Sampaio. Devemos dizer que eles não são responsáveis por eventuais imprecisões ou erros presentes aqui, mas reconhecemos sua valiosa contribuição em toda esta obra. Agradecemos também a Hevânia de Oliveira Ribeiro, bibliotecária do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil.
G
Alan agradece aos seus colegas da Missão Batista do Brasil por todo apoio em seu ministério no Brasil, e pela paciência em conceder tempo para trabalhar neste projeto em meio a muitas outras responsabilidades, ajudando-o com orações, conversas e encorajamento. O espaço não permite que os nomes de todos sejam mencionados, mas eles sabem quem são. Ele também agradece a Deus pela Centennial Community Church (agora, Waterstone Community Church), em Littleton, Colorado, que apoiou a ele e sua família em todo o tempo em que permaneceram no Brasil, desde o ano de 1995; a Mile High Baptist Association e a Applewood Baptist Church, Colorado, por terem providenciado para a família a casa dos missionários, durante o período sabático passado lá, entre 2004 e 2005, quando boa parte desta obra foi escrita; e a Faith Baptist Church, em Carver, Massachusetts, por hospedá-los durante o ano de 2007, quando da revisão desta obra. Franklin agradece o apoio e as orações de duas diferentes comunidades nas quais teve o privi légio de servir nas equipes pastorais: a Primeira Igreja Batista do Cosme Velho, durante o período de 2004 a 2007, e a Igreja Presbiteriana da Barra da Tijuca, durante o período de 2000 a 2006, ambas no Rio de Janeiro; assim como agradece o apoio e a bondosa recepção da Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos, São Paulo, da qual atualmente é membro. Ele estende sua gra tidão a Paulo Augusto de Macedo e a Beatriz Aparecida de Macedo, pela amizade e cuidado.
XII
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
Agradecemos o apoio, a permissão e o estímulo para usarmos materiais de várias editoras evangélicas brasileiras. Por isso, estendemos nossa gratidão a William “Bill” Barcley, da Editora PES; Richard Denham, da Editora Fiel; Cláudio Marra, da Editora Cultura Cristã; Silvia Justino, da Editora Mundo Cristão e Solange Mônaco, da Editora Vida. Agradecemos de forma especial a três preciosos editores, que desde o início nos ajudaram muito, com seu talento e paciência: Luiz A. T. Sayão, Aldo Menezes e Marisa K. A. de Siqueira Lopes, assim como a Robinson Malkomes, membro do conselho editorial da Editora Vida Nova. Agradecemos também aos membros da diretoria de Edições Vida Nova, que desde o início apoiaram este projeto: Kenneth Lee Davis, Richard Julius Sturz Jr. e Steven Boyd Nash. Também queremos agradecer a Gordon Lewis, Bruce Demarest, R. K. McGregor Wright e John Samuel Hammett, mentores, professores e amigos que nos legaram não só o fazer e ensinar teologia, mas o mais importante, a paixão pela fé cristã. E, por último, mas não menos importante, queremos agradecer aos nossos pais, Francisco (in memoriam) e Aldemira Ferreira e Paul e Louise Myatt, que, desde a infância, nos ensinaram “as sagradas letras” (2Tm 3.15). O que somos hoje, em grande parte, é devido ao testemunho deles.
ABREVIATURAS ARC
Bíblia Almeida Revista e Corrigida
BAG
A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature
BDB
Enhanced Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon
CD
Church Dogmatics
CWSDNT
The Complete Word Study Dictionary: New Testament
DBLH
Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Hebrew (Old Testament)
DBLG
Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Greek (New Testament)
DITAT
Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento
DITNT
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
EDNT
Exegetical Dictionary of the New Testament
EHTIC
Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã
NBC
New Bible Commentary; 21 st Century Edition
NBD
New Bible Dictionary
NIDOTT
New International Dictionary of Old Testement Theology & Exegesis
NVI
Bíblia Nova Versão Internacional
ST
Suma Teológica
TDNT
Theological Dictionary of the New Testament
TDOT
Theological Dictionary of the Old Testament
APRESENTAÇÕES teologia sistemática que o leitor tem em mãos é diferente de todas as demais disponíveis no mercado brasileiro de hoje. Em primeiro lugar, pela nacionalidade de seus autores. Um deles é brasileiro e o outro, americano. Esclareço que não acredito em “teologia brasileira”. Aliás, não acredito que teologias sejam irreversivelmente determinadas pela nacionalidade dos seus autores e nem pelo local onde foram escritas. Todavia, embora eu creia que o ambiente vivencial não determine irrevogavelmente a compreensão final que alguém tenha da revelação de Deus, com certeza o fato de Franklin Ferreira ser brasileiro - embora cidadão americano - contribuirá para que a sistematização, o estudo bíblico e a aplicação que compõem cada capítulo sejam sensíveis ao nosso contexto. O fato de que Alan Myatt e Franklin Ferreira conseguiram escrever juntos uma teologia sistemática reflete nossa crença que a teologia consegue freqüentemente extrapolar os ambientes vivenciais, os regionalismos e se apresentar como fruto de fatores transcendentes que lhe dão unidade e coerência.
A
Em segundo lugar, os autores são batistas reformados, Essa combinação certamente soará estranha nos ouvidos de muitos evangélicos que geralmente associam a Reforma protestante com os presbiterianos e episcopais. Todavia, os batistas reformados remontam aos primórdios da denominação e sempre se constituíram numa força poderosa entre os batistas, quer pelo número, quer pela pujança teológica. Os autores estão entre eles e sua obra reflete a teologia reformada e as convicções batistas. Todavia, esse último ponto não impediu Myatt e Ferreira de exporem as posições divergentes abraçadas por outras tradições reformadas e mesmo cristãs. Essa sistemática, portanto, é de corte reformado e viés batista, aberta todavia aos pontos comuns que os reformados compartilham. Em terceiro lugar, pela maneira como foi estruturada. Geralmente as teologias sistemáticas, particularmente as reformadas, sofrem a acusação de serem teóricas demais, desconectadas das questões práticas que ocupam a vida da igreja e dos cristãos comuns. A presente teologia resolveu mostrar a cada capítulo as implicações práticas de cada um dos principais pontos da sistemática, após discutir as questões apologéticas envolvidas em cada um destes pontos. Em quarto lugar, pela preocupação exegética, nem sempre presente em teologias sistemáticas. Por definição, a teologia sistemática se preocupa em analisar os textos bíblicos sistematicamente dentro de categorias temáticas, encaixando cada passagem da Bíblia na gaveta correspondente. Por exemplo, os textos da Bíblia que falam da divindade de Cristo não
XVI
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
....................................................................................................................................................................................... são analisados em seu contexto canônico, histórico e literário, mas à luz dos demais textos que tratam do mesmo assunto, fazendo com que freqüentemente sejam removidos de seu contexto original. Para evitar essa armadilha, os autores incluíram em cada capítulo um estudo bíblico das passagens mais importantes relacionadas ao tema em apreço. O resultado final é o que quase poderíamos chamar de uma teologia bíblico-sistemática. É por esses motivos que me sinto honrado e satisfeito em poder apresentar a magna opus de Myatt e Ferreira ao público evangélico brasileiro, sempre carente, especialmente nos dias de hoje, de uma visão sistemática clara, bíblica e prática das coisas concernentes a Deus e ao seu Reino. São Paulo, maio de 2007 Rev. Augustus Nicodemus Lopes, Ph.D.
elaboração de uma teologia sistemática é tarefa sobremodo hercúlea. A sistematização dos ensinamentos cristãos, encontrados nas Escrituras Sagradas, deve necessariamente passar pelo rigor metodológico, pelo respeito ao texto sagrado e pela contextualização relevante. Além disso, um empreendimento teológico sistemático sério terá de prestar cuidadosa atenção à história e à filosofia. Os contornos da história do pensamento e dos movimentos religiosos devem ser contemplados pelos que ousam elaborar um edifício teológico sistemático.
A
A obra de Alan Myatt e Franklin Ferreira é antes de tudo uma obra corajosa e notável. É preciso destacar que tal esforço surge numa realidade pós-modema contemporânea que é fundamentalmente anti-sistemática. A pulverização fragmentária do pensamento pósexistencialista, aliada ao obscurantismo e superficialismo contemporâneos, têm perversamente sugerido que a sistematização doutrinária é tarefa inútil e desnecessária. Ademais, talvez não seja exagero afirmar que, pelo menos na realidade nacional, a teologia sistemática está em crise. E a verdade é que o quadro deve ser visto ainda como menos promissor, quando observamos que muitos insights teológicos contemporâneos mostram-se mais devedores a enfoques filosóficos contemporâneos do que às bases teológicas da Reforma Protestante. Diante de tal realidade, podemos afirmar que uma teologia sistemática clássica, protestante, evangélica e atual é raridade, principalmente, quando se verifica que a obra é originalmente escrita em português. Um exame responsável da obra mostrará que os autores deram a devida atenção à metodologia e ao rigor científico indispensável. A organização da obra parte da doutrina da revelação, depois concentra o enfoque na doutrina de Deus, prosseguindo para a discussão sobre os temas da antropologia e hamartiologia. Depois, encontraremos os capítulos destinados à cristologia, à pneumatologia, à eclesiologia e à escatologia. Não será difícil observar que a obra teológica apresenta uma estrutura clássica. A leitura mostrará que os autores trabalham com uma perspectiva nitidamente evangélica. O pressuposto claro é que o texto bíblico merece uma hermenêutica de afirmação. Além desse aspecto inequívoco, a obra se mostrará alinhada com um enfoque reformado. O leitor perceberá que os autores interagem intensamente com os teólogos protestantes clássicos, como Lutero e Calvino. A herança patrística da teologia propriamente dita e da cristologia clássica e a soteriologia e bibliologia reformadas também serão percebidas.
X V III
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
■..........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
No entanto, a obra é certamente surpreendente. A verdade é que se poderia esperar que uma teologia clássica de perfil reformado fosse repetitiva e redundante em relação às demais obras já existentes. Isso simplesmente não é verdade. Em primeiro lugar, a obra surpreende por sua contemporaneidade. A religiosidade brasileira foi levada em conta, tanto no aspecto teológico como popular. A interação com enfoques teológicos contemporâneos marca boa presença nesta obra acadêmica. Em segundo lugar, merece menção que a obra é feita a duas mãos, por um teólogo estrangeiro e por um teólogo brasileiro. Tal parceria é singular e prolífica. A interação aprofundada da discussão teológica no ambiente anglo-saxão e da teologia evangélica no ambiente brasileiro é extremamente saudável e necessária. Finalmente, saudamos com entusiasmo e grandes expectativas a Teologia Sistemática de Alan Myatt e Franklin Ferreira. Nossa esperança é que esta obra contribua de modo positivo e promissor para o incipiente pensamento teológico brasileiro. São Paulo, julho de 2007 Luiz Sayão
PREFÁCIO ive muita satisfação em ler algumas páginas dos teólogos e professores Franklin Ferreira e Alan Myatt. Não tenho a mínima dúvida de que a publicação desta obra será um marco na história do evangelho no Brasil. Não há outro tomo que eu conheça desta qualidade, escrito dentro do contexto do Brasil com a atualidade, abrangência, profundidade e segurança desta obra.
T
Qual seria a justificativa para gastar inúmeras horas lendo, pesquisando e escrevendo uma teologia sistemática? Sugiro vários motivos legítimos para escrever e ler uma obra como esta. Acredito que os autores tiveram todos estes propósitos em mente (e muitos outros)! Primeiro, para alcançar um conhecimento mais amplo de Deus e de seus atos e planos eternos. Segundo, para conhecer a Bíblia, não apenas em seu contexto original, mas na situação e ambiente em que vivemos hoje, em meio a este continente do hemisfério sul. Uma teologia interpreta os ensinamentos bíblicos para os tempos atuais, analisando e avaliando os conceitos que recebemos através da Bíblia, da história da Igreja e da tradição de nossa denominação. Terceiro, ler uma teologia nos ajuda a apreciar muito mais a gloriosa realidade da salvação que temos recebido por meio de Jesus Cristo. Quarto, para poder distinguir entre ensinamentos certos e errados, fato que é de grande valor. A teologia que vale a pena ler e digerir argumenta em prol da verdade, com uma visão histórica, eclesiástica, filosófica e ética. Como podemos confiar em líderes que fazem pronunciamentos doutrinários sem ter ponderado sobre suas origens e segurança bíblica? Quinto, porque ler uma teologia que nos convida a buscar a santidade com mais zelo e odiar o pecado com mais intensidade é algo que não deve jamais ser desprezado. Sexto, por ser uma apresentação piedosa e humilde das verdades doutrinárias, que deve nos incentivar a adorar em espírito e verdade. Jesus disse à mulher samaritana que Deus procura verdadeiros adoradores. Uma teologia sistemática deve nos ensinar a adorar com o coração e a vida. Sétimo, porque, como teologia sistemática, tem o alvo de preparar seus leitores para combater eficazmente heresias e desvios doutrinários, além de outras práticas reprováveis.
XX
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
■ ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
Creio que esta Teologia Sistemática em particular supre todas essas finalidades que o leitor esperaria. Esta obra é bem extensa. Ninguém vai lê-la duma só vez e nem deve tentar. Sua organização em seções e tópicos facilitará quem deseja se aprofundar numa área do pensamento cristão. Ainda, pelo fato de ser uma obra completa e abrangente, poderá servir também de referência. O pregador ou professor da EBD terá alegria e prazer em encontrar nela estudos sobre questões de muita importância para todos os que têm sede de conhecer mais e crescer em maturidade. Espero que estas poucas palavras sirvam de incentivo para, pelo menos, saborear meia dúzia de páginas e deliciar-se com o proveito recebido. A Deus toda a glória! Russell Shedd, Ph.D.
INTRODUÇÃO w
E
com alegria que apresentamos ao povo brasileiro esta nova obra de teologia sistemática, fruto de trabalho e reflexão de muitos anos. Os autores sempre costumam explicar a razão de terem escrito sua obra e acreditamos que o leitor merece saber isso, especialmente antes de assumir o compromisso de ler um livro do tamanho deste. Uma vez que já existem várias teologias sistemáticas em português, vale a pena justificar o lançamento de mais uma obra desse tipo no mercado. Na verdade, nós nos dispusemos a escrever outra teologia sistemática porque, mesmo com a existência de boas obras no campo da teologia, cremos que a situação atual e as oportunidades oferecidas pelo novo milênio necessitam de uma nova abordagem do assunto, a partir de uma ótica firmemente enraizada no contexto cultural do Brasil. Apesar do grande crescimento das igrejas “evangélicas” nos últimos anos, existem boas indicações de que é cedo demais para celebrar a evangelização da América Latina. O que de fato existe é uma confusão geral sobre as doutrinas básicas, inclusive quanto a questões essenciais para a salvação ou mesmo relacionadas a importantes doutrinas como a da justificação somente pela fé. Essa confusão teológica é generalizada na cultura brasileira e as igrejas evangélicas não estão isentas. O rápido crescimento de certos movimentos e modismos religiosos é bem típico da vida movimentada da pós-modernidade, o que deixa pouco tempo adequado para a reflexão que uma fé madura exige. A grande maioria das igrejas, inclusive entre as denominações históricas, abandonou há muito tempo a prática de catequizar sistematicamente os novos convertidos, enquanto a prática da teologia tem seguido modismos acadêmicos que pouca relevância tem para o povo que o teólogo deve servir. As teologias sistemáticas disponíveis no mercado, muitas delas excelentes, são, no entanto, tipicamente traduções de obras estrangeiras, sobretudo da América do Norte. A despeito de suas qualidades, essas obras não lidam com o contexto social e cultural do povo brasileiro. Portanto, há muito tempo acreditamos na necessidade de uma nova teologia sistemática que aborde os grandes temas da doutrina, tão essenciais para a saúde da igreja evangélica e o avanço do reino de Deus. Como professores e pastores, sentimos a falta de tal obra que servirá para orientar e ensinar o povo no contexto dos desafios e questões importantes para a cultura brasileira, nesse mundo globalizado do início do terceiro milênio. Cremos com convicção que o teólogo existe para servir o povo comum das igrejas. Se o seu trabalho não servir para ajudar este povo a conhecer ao Senhor mais profundamente e experimentar uma vida de santidade e intimidade com Deus, então sua teologia não passa de uma grande farsa, a despeito de quaisquer
X X II
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
* ..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... .
prêmios acadêmicos que ele possa ganhar. Se a teologia não levar o povo a se aproximar mais de Deus, será melhor que o teólogo procure outra coisa com que se ocupar e deixe de perder seu tempo fazendo um trabalho que é inútil. Contudo, nada disso significa que a teologia deva ser superficial ou excessivamente facilitada. Pelo contrário, a teologia certamente tem de enfrentar e tratar com o pensamento mais complexo que o mundo oferece. Mas mesmo assim, não deve jamais perder de vista seu alvo espiritual e eminentemente prático. Assim, era nosso sonho colocar no contexto contemporâneo uma obra que dispensasse um tratamento bíblico, histórico e apologético dos importantes temas doutrinários, que sempre serviram como a essência do alimento espiritual ministrado ao povo de Deus, à sua igreja. Não ousamos afirmar que esta obra tenha alcançado plenamente tal aspiração, mas cremos que é um começo. Esperamos que este livro possa, pelo menos, preencher uma lacuna no diálogo teológico brasileiro, e que abra as portas para muitas conversas frutíferas nos próximos anos. Esperamos também que a obra seja útil para professores e alunos de teologia, nas faculdades e seminários teológicos, como um texto introdutório e de referência. Além de tudo, é nosso desejo ainda que ela possa contribuir para um renascimento do estudo da teologia no contexto das igrejas, ajudando pastores, líderes de estudos bíblicos e professores de EBD na preparação de sermões e aulas, servindo também ao povo, como apoio no seu estudo pessoal da Palavra de Deus. Se esta obra conseguir de certa forma contribuir nestes sentidos, já nos sentiremos imensamente satisfeitos. Procuramos, ao longo desta introdução, destacar três pontos que consideramos relevantes para a obra, a saber, as questões da confessionalidade, do método e do contexto. Sobre cada uma delas discorreremos brevemente a seguir.
Confessionalidade “A Bíblia é a Palavra de Deus para o homem; o credo é a resposta do homem para Deus”.1 Assim Philip Schaff começa sua monumental obra sobre as confissões de fé da igreja cristã. Desde o seu início, o cristianismo confessou sua fé de forma lógica e objetiva, através de credos, confissões e catecismos, e isto cedo se refletiu na anuência ao Credo dos Apóstolos, ao Credo de Nicéia, à Definição de Calcedônia e ao Credo de Atanásio. A expressão “credo” vem do latim, credo, “creio”, sendo reservada “às declarações da igreja primitiva que os cristãos em todos os tempos e lugares têm reconhecido”.2 As principais funções dos credos, desde o princípio, foram oferecer ao candidato ao batismo um modo claro de expor sua fé, servir como roteiro para instrução na doutrina cristã, além de ser usado na liturgia cristã, geralmente depois da leitura das Escrituras, como uma afirmação da fé congregacional.3 Um ponto de destaque é que esses credos têm forte ênfase cristológica. No entanto, com a reforma protestante, surgiram muitas novas confissões de fé, que eram uma declaração formal das crenças cristãs. Estas surgiram por várias razões, dentre as quais, o fato de alguns teólogos e ministros ou comunidades inteiras terem abraçado os ensinos ....................................................................................................................................................................................... 'Philip Schaff, The Creeds o f Christendom. v. 2, p. 3. 2Mark Noll, “Confissões de fé”. In: Walter Elwell (ed.), Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, p. 336. 3G. W. Bromiley, “Credo, credos”. In: Walter Elwell (ed.), EHTIC, p. 365-367.
INTRODUÇÃO
X X III
reformados, necessitando confessar e expor sua fé e estabelecer as diferenças entre a tradição católica e os grupos alcançados pela reforma. As principais funções destas confissões são expostas por Mark Noll: Declarações autorizadas da fé cristã entesouravam as novas idéias dos teólogos, sem abandonar formas que também pudessem fornecer instrução regular para os fiéis mais humildes. Erguiam um estandarte em redor do qual uma comunidade local podia cerrar fileiras, tomando claras as diferenças com os oponentes. Tomavam possível uma reunificação da fé e da prática, visando à unidade e, ao mesmo tempo, estabeleciam uma norma para disciplinar os desregrados.4 Como este mesmo autor destaca, essas confissões surgidas por causa da reforma refletem a etapa de desenvolvimento doutrinal do grupo para o qual foram escritas, também diferindo entre si conforme as circunstâncias teológicas que as trouxeram à existência. Por isso se pode notar que existem diferenças entre uma confissão que, por exemplo, surgiu com o apoio de uma comunidade inteira, e outra que representava o protesto de uma minoria pressionada. Estas situações históricas explicam muitas das ênfases desses documentos, ainda que no estudo comparado dos mesmos fique evidente um forte núcleo teológico comum.5 E o valor dessas confissões se evidencia no fato de que estimulam a clareza de crença e a franqueza no debate teológico. Além disso, o próprio Novo Testamento contém trechos de confissões formais de fé, oferecendo o modelo bíblico para o uso continuado das confissões por parte dos cristãos.6 Os catecismos, também muito usados nesse período, são manuais de instrução nas doutrinas cristãs, normalmente estruturados na forma de perguntas e respostas.7 Cumpre mencionar que o alvo dos catecismos não se limitava a se decorar os enunciados cristãos. Mas, tendo como pano de fundo o trivium, o alvo era levar o aluno a ler e compreender estes enunciados. Neste ponto, precisamos tratar de uma aparente dificuldade. Existe atualmente uma tendência de rejeitar qualquer formulação doutrinária mais elaborada. Todavia, ao analisarmos a história, veremos que essa tendência não se confirma. Os batistas, por exemplo, ao longo da 4Mark Noll, “Confissões de fé”, p. 336-337. 5Mark Noll, “Confissões de fé”, p. 338-339. Apesar de algumas significativas diferenças teológicas e de trazer, evidentemente, um testemunho que, em alguns casos, está condicionado pelo tempo e pela cultura, pode-se perceber a existência de um espantoso núcleo comum entre a grande maioria das confissões originadas na Reforma. Pode-se mencionar, exemplo, a ênfase trinitária e cristológica; a suficiência e a supremacia das Escrituras; a afirmação da total corrupção da natureza humana; o testemunho de que a morte de Cristo na cruz é o único meio de propiciação para o pecado do homem; a justificação pela graça por meio da fé; a necessidade da conversão do coração, como uma nova criação operada pelo Espírito Santo e a ligação inseparável entre verdadeira fé e santidade pessoal. 6Cf. Mark Noll, “Confissões de fé”, p. 340, para alguns trechos do Novo Testamento onde se presume um resumo formal da fé: “o padrão da doutrina” (Rm 6.17); “o que pregamos” (ICo 1.21); “as tradições” (ICo 11.2); “o evangelho” (IC o 15.1-8); “a palavra” (G16.6); “a verdade” (2Ts 2.13); “tradições” (2Ts 3.6); “confessamos” (lTm 3.16); “a palavra certa” (Tt 1.9); “a doutrina de Cristo” (2Jo 9-10). Voltaremos a este assunto no capítulo 1. 7D. F. Wright, “Catecismos”. In: Walter Elwell (ed.), EHTIC, p. 249. Na igreja primitiva, a catequese era muito usada para proteger a integridade doutrinária e a disciplina da igreja, e geralmente compunha-se de exposições do Credo Apostólico e da Oração Dominical. Cirilo de Jerusalém, Ambrósio, Crisóstomo, Agostinho e Gregório de Nissa escreveram preleções catequéticas. Na Idade Média, houve um declínio do catecumenato, por causa da institucionalização generalizada do batismo infantil, mas se preservou um ensino popular, como se vê nos escritos de Alcuíno de York e Jean Gerson. Somente na Reforma protestante a igreja retomou ao uso dos catecismos, como na época dos pais da igreja.
X X IV
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
história da igreja, afirmaram suas crenças, por meio de várias confissões de fé. Podemos perceber isto numa rápida consulta às duas obras clássicas sobre as confissões de fé batistas. McGlothlin menciona que entre os batistas gerais (arminianos) ingleses foram preparadas sete confissões de fé e três outras sem título; já os batistas particulares (calvinistas) redigiram quatro confissões de fé, e são mencionadas outras quatro confissões escritas por pastores, para suas igrejas. Entre os batistas particulares americanos, são mencionadas duas. Também são mencionadas outras três confissões, de grupos alemães, franceses e suíços. John Smyth, o iniciador do movimento batista geral, na Holanda, escreveu pelo menos três confissões de fé, entre 1609 e 1612. Outros batistas mencionados que escreveram confissões de fé foram John Clarke, John Bunyan, Benjamin Keach, John Gill e Charles Spurgeon.8 Já Lumpkin menciona trinta e nove confissões de fé e doze outros textos menores.9 Portanto, longe de ser uma tradição avessa às declarações formais de fé, os batistas claramente se inserem na tradição confessional cristã. Aqui, devemos mencionar outro fator histórico importante: a grande interação ocorrida durante a elaboração das confissões de diferentes tradições. Vejamos, por exemplo, a Confissão de Fé de 1689. Numa assembléia geral realizada em Londres, que reuniu “ministros e mensageiros de mais de cem igrejas batistas da Inglaterra e Gales” em 1689, os batistas adotaram formalmente a confissão de 1677, que veio a ser conhecida como Confissão de Fé de 1689, e se tomou uma das mais importantes e influentes confissões de fé batistas.10 Este documento recebeu influência da Primeira Confissão de Fé de Londres, de 1644, “uma confissão de fé de sete congregações ou igrejas de Cristo em Londres, que comumente são chamadas (injustamente) anabatistas”, como se lê em sua introdução. Mas o documento que a influenciou decisivamente foi a Confissão de Fé de Westminster, preparada por puritanos de persuasão presbiteriana em 1647.11 Ela também refletiu a influência da Declaração de Savoy sobre Fé e Ordem, preparada em 1658, pelos puritanos congregacionalistas.12Por isso, pode-se ler na declaração introdutória da Confissão de 1689: Para deixar claro nosso consenso com relação a ambos [presbiterianos e congregacionais], em todos os artigos fundamentais da religião cristã (...): e também para convencer a todos de que não temos a mais remota intenção de estorvar a religião com novas palavras, mas antes buscamos prontamente aquiescer quanto à forma daquelas já tidas como idôneas, e que têm sido, de acordo com a Sagrada Escritura, usadas por outros antes de nós; declaramos aqui, diante de Deus, dos anjos e dos homens, nossa mais sincera concordância quanto a elas e quanto à salutar doutrina protestante que elas, em tão clara concordância e evidência com as Escrituras, têm defendido: é verdade que, em certos trechos, algumas coisas foram acrescentadas, outras omitidas, e umas poucas alteradas; mas são alterações de uma natureza tal que não levantam a menor dúvida, acusação ou suspeita de inconsistência da fé professada por qualquer dos nossos irmãos em seu favor.
8Cf. W. J. McGlothlin, Baptist confessions o f faith. 9Cf. William L. Lumpkin, Baptist confessions o f faith. 10Cf. especialmente Gilson Carlos de Souza Santos, A Confissão de Fé Batista de 1689, em: http:// www.crbb.org.br/gilson4.pdf, acessado em 18.05.2007. A Confissão de Fé Batista de 1689 foi de fato concluída em 1677, mas foi publicamente adotada somente em 1689, por ocasião da restauração da tolerância religiosa entre as igrejas protestantes, promovida pela Revolução Gloriosa. "Para uma introdução à história e aos principais temas da Confissão de Fé de Westminster, cf. John L. Carson e David W. Hall (eds.), To glorify and enjoy God', a commemoration o f the Westminster Assembly. I2Cf. extratos deste texto em Henry Bettenson, Documentos da igreja cristã, p. 347-349.
INTRODUÇÃO
XXV
Seguindo Georg Calixtus, um importante teólogo luterano do século xvu, devemos fazer aqui uma distinção importante. Como ficará evidente no capítulo 3, cremos que tudo o que está na Escritura foi revelado por Deus, mas reconhecemos que nem tudo é igualmente vital. O fundamental e absolutamente necessário para nossa fé, aquilo que naquele mesmo século Richard Baxter chamou de “cristianismo puro e simples”, são aqueles temas que se referem à nossa salvação, como as doutrinas afirmadas nos grandes credos da igreja primitiva, a inspiração e autoridade da Escritura, o pecado original, a salvação pela graça por meio da fé somente e a santificação. Outros temas, tais como aspectos da doutrina da igreja ou o milênio, são igualmente importantes, pois fazem parte da revelação, porém não são temas fundamentais para nossa salvação. Em outras palavras, devemos fazer uma distinção entre heresia e erro. A heresia é uma negação do que é essencial para a salvação, tema este que nos distingue como evangélicos. Já o erro é uma negação de algum aspecto da verdade revelada que não é essencial para a salvação. Por isso, a heresia e o erro devem ser evitados, no entanto, somente a heresia deve ser considerada um obstáculo intransponível para a comunhão.13 Em função dessas ênfases, James Petigru Boyce, um dos principais teólogos da tradição batista, e um dos fundadores do The Southern Baptist Theological Seminary, em Louisville, Kentucky, nos Estados Unidos, espelhou a catolicidade dos antigos batistas ao chamar a Confissão de Fé de Westminster como “nossa confissão”.14 Neste mesmo espírito de catolicidade e confissão escrevemos esta obra em interação com os credos, confissões de fé e catecismos preparados pela cristandade, alguns deles já mencionados nesta introdução. Como deve ficar evidente, não somente a fé cristã é confessional, como também a própria tradição a que pertencemos, a tradição batista, como já mencionamos acima. Precisamos enfatizar que esses credos e confissões não estão acima da Bíblia. Concordamos integralmente com o testemunho presente na Fórmula de Concórdia'. “Cremos, ensinamos e confessamos que somente os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e norma segundo a qual devem ser ajuizadas e julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres”. Por outro lado, a Fórmula de Concórdia assim resume a relação destes vários documentos com a Escritura: “Não são juizes, como o é a Sagrada Escritura, porém apenas testemunho e exposição da fé, que mostram como em cada tempo a Sagrada Escritura foi entendida e explicada na igreja de Deus, no respeitante a artigos controvertidos, pelos que então viviam, e ensinamentos contrários a ela rejeitados e condenados”, e todos os credos, confissões e “outros escritos dos antigos ou dos novos mestres” da igreja, “não devem ser equiparados à Escritura Sagrada, porém todos lhe devem ser completamente subordinados”.15 Vivemos hoje numa época anticonfessional, marcada pelo existencialismo relativista, pela rejeição de qualquer autoridade e pelo isolamento histórico. Por isso, precisamos deixar claro que uma ênfase confessional não significa uma ênfase sobre a “ortodoxia morta”, algo como a insistência em algum tipo de pureza doutrinária à custa de uma fé pessoal, passional e
13Cf. Justo L. Gonzales, Uma história ilustrada do cristianismo', a era dos dogmas e das dúvidas, v. 9, p. 111-113 e Earle E. Caims, O cristianismo através dos séculos, p. 288-291. 14James Petigru Boyce, A bstract o f systematic theology, capítulo XXVIII, edição on-line disponível em http: //www.founders.org/library/boycel/toc.html, acessado em 22.05.2007. 15“Fórmula de Concórdia”. In: Livro de Concórdia, p. 499-501.
XXVI
TEO LO G IA SISTEM ÁTICA
............................................................................................................................................................................................................ *
experimental. Nosso alvo é promover uma “ortodoxia viva”, uma fé que seja tanto experimental quanto baseada na verdade, que enfatize tanto os afetos quanto o intelecto. Por isso, seguindo a compreensão da Fórmula de Concórdia quanto à correta relação entre a Escritura e as confissões de fé, afirmamos: “A questão real não é, como às vezes pretendida, entre a Palavra de Deus e o credo humano, mas entre a fé investigada e provada da corporação coletiva do povo de Deus e o juízo individual e a sabedoria isolada, sem assistência, daquele que repudia os credos”.16 Por isso, compreendemos que estes antigos documentos são a sabedoria acumulada pela igreja cristã, sendo um resumo daquilo de mais importante que se encontra nas Escrituras. Neste sentido, as confissões de fé contribuem para nos dar um senso de continuidade histórica.17 Em nossa época a expressão evangélico está rapidamente perdendo todo seu significado. Aliás, precisa ser dito que aqueles que abominam confessar a fé, por conta de uma suposta liberdade de consciência ou de pesquisa, na verdade desprezam a precisão confessional. Por isso a necessidade de redescobrir o que é ser evangélico à luz da confessionalidade cristã. Esta obra, então, é escrita no mesmo espírito do sermão que Dietrich Bonhoeffer proferiu em julho de 1933, na Dreifaltigkeitskirche, em Berlim: “[A igreja] não nos será tomada — seu nome é decisão, seu nome é o discernimento dos espíritos... Venha... você que foi abandonado, você que perdeu a Igreja; retomemos às Sagradas Escrituras, busquemos juntos a Igreja... Pois aqueles momentos, quando a compreensão humana se desintegra, podem muito bem ser uma grande oportunidade de edificação... Igreja, permaneça igreja!... confesse, confesse, confesse”.18
Método Uma palavra deve ser dada sobre a composição desta obra. Originalmente ela nasceu como uma apostila, preparada para uso dos alunos de teologia sistemática do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, no Rio de Janeiro, tendo sido usada no período de 1996 a 1999, nas aulas ministradas por Alan. A seguir, foi revisada e expandida por Franklin, no período de 1999 a 2000, quando ele assumiu a disciplina, durante o período sabático de Alan. Posteriormente, continuamos a fazer revisões, cada um contribuindo com as matérias relevantes nos vários tópicos. Cedo no desenvolvimento da obra, tomamos a decisão de adaptar o método desenvolvido por Bruce Demarest e Gordon Lewis, que consideraremos em detalhes no capítulo 2. Para que respondesse de forma adequada ao contexto atual do Brasil, percebemos que a obra deveria responder às questões religiosas, históricas, apologéticas e práticas, indo além da mera sistematização do ensino bíblico. Como será explicado em nosso tratamento da metodologia teológica, cremos que o conteúdo da teologia sistemática deve incluir respostas aos problemas levantados pela situação cultural atual em nosso país. Assim, encontramos no método integrativo as ferramentas necessárias para esta tarefa. Por isso somos muito gratos a Demarest e Lewis, mas também a todos os outros grandes teólogos evangélicos que vieram antes de nós, pois, para lembrar da famosa frase do teólogo medieval Pierre de Blois, somos anões olhando ■................................................................................•'.................................................................................... 16A. A. Hodge, Confissão de F é de Westminster comentada, p. 22. 17R. P. Martin, “Introduction: the legitimacy and use o f confessions”. In: Samuel E. Waldron, A modern exposition ofthe 1689 Baptist Confession ofFaith, p. 20. 18Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer, p. 228.
por sobre os gigantes do passado. Precisamos confessar nossa dependência destes antigos escritores. Em nenhum momento almejamos originalidade, mas sim testemunhar que as doutrinas evangélicas têm poder e relevância para o contexto do Brasil, ao mesmo tempo em que almejamos demonstrar nossa unidade na fé com estes irmãos do passado e do presente. Em alguma medida, a preparação da obra e as divisões das tarefas para a sua preparação refletem, ainda que não exclusivamente, nossas áreas de interesse. Alan assumiu a responsabilidade pelas seções relacionadas com as seitas e religiões, as exposições bíblicas do Antigo Testamento e do Novo Testamento e a parte apologética. Franklin assumiu as seções histórica, sistemática e pastoral. No entanto, a natureza de nosso trabalho em conjunto envolveu conversas e o compartilhamento de idéias sobre cada área de pesquisa. Ambos fizemos contribuições, sugestões e revisões no trabalho do outro, de modo que a obra toda não é apenas a união de dois trabalhos independentes, mas, sim, uma colaboração total. Assim, a obra deve ser lida como uma unidade consistente. Um outro ponto que deve ser realçado está relacionado a algo dito pelo famoso professor da Universidade Livre de Amsterdan, G. C. Berkouwer, que certa vez afirmou: “Senhores, todos os grandes teólogos começam e terminam a sua obra com uma doxologia!”19 O que Berkouwer disse pode ser facilmente confirmado ao se estudar as vidas de escritores cristãos tão diferentes quanto Ireneu, Atanásio, Agostinho, Anselmo, Martinho Lutero, João Caivino, Richard Baxter, Jonathan Edwards e Dietrich Bonhoeffer. Por isso, conscientemente nos inserimos nesta tradição. Queremos fazer teologia na presença de Deus, para a glória de Deus e a edificação de seu povo. Por isso, cada unidade começa com orações retiradas de uma coletânea chamada Orações do Povo de Cristo.20 E, na medida do possível, encerramos o estudo dos vários temas da teologia cristã com a citação de hinos clássicos.
Contexto Um dos nossos principais alvos nesta obra foi preparar uma teologia contextualizada, mas que também esteja enraizada na tradição ortodoxa evangélica. Fazer uma teologia sensível à cultura brasileira não é uma tarefa simples, já que a cultura do Brasil manifesta uma complexa diversidade especialmente na área religiosa. O Brasil é uma mistura de raças, tradições e religiões, que se refletem na tendência do povo brasileiro em adaptar as religiões e ensinos, que vêm de diversas fontes, à sua realidade e propósitos. Não precisamos nos basear na afirmação de antropólogos para confirmar a tendência sincretista comum na religiosidade popular. Isto é um fato óbvio. E uma teologia que busque responder às necessidades e preocupações dos brasileiros não pode ignorar essa realidade. Todavia, devemos notar que, devido a esta diversidade de crenças e práticas religiosas no Brasil, não tentamos nem acreditamos que seja possível fazer algo como uma “teologia * brasileira”. E difícil saber exatamente o que isto poderia significar. Uma teologia que pretendesse ser única para o Brasil acabaria por ser uma teologia desvinculada da tradição histórica da teologia 19Citado por R. C. Sproul, Como viver e agradar a Deus, p. 204. 20Cf. Lindolfo Weingãrtner (org.), Orações do povo de Cristo; coletânea de orações de 20 séculos.
XXV III
TEOLOGIA SISTEMÁTICA
■-.................................................................................................. .................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. ....
e filosofia ocidental. Isto seria pouco desejável, já que as verdades e normas da doutrina cristã são atemporais e supraculturais. A propósito, uma marca do liberalismo teológico é a insistência de que neste sentido a teologia é relativa. Qual seria, então, a fonte de tal teologia? Se fosse construída a partir da fenomenologia da religião popular, não seria possível falar de uma teologia brasileira, mas sim de muitas teologias, conforme a grande diversidade de crenças, culturas e práticas que aqui existem. A única maneira de construir uma teologia baseada somente nesta diversidade seria privilegiando uma tradição ou aspecto cultural mais do que os outros. Mas isto seria cair no mesmo suposto erro que os liberais acusam os teólogos evangélicos de cometer. Só que, no caso dos liberais, eles não têm a Bíblia como referencial para estabelecer as normas teológicas, já que acreditam que ela não é a Palavra de Deus inspirada e inerrante. Por isso dependem tanto de filosofias ou ideologias políticas oriundas da Europa, e que estão sujeitas a mudanças e diferentes nuanças a cada geração, forçando-os a rever, de tempos em tempos, suas bases teológicas. Por outro lado, seria igualmente errado tratar a teologia como se fosse um sistema de abstrações platônicas, sem contato com a realidade do dia-a-dia das pessoas. Cremos firmemente que uma teologia adequada para a situação atual tem de lidar com os problemas e questões específicas da cultura onde tal teologia é elaborada. Neste sentido, é nossa esperança que esta obra consiga falar à realidade sociocultural brasileira e, assim, ser uma teologia evangélica voltada para o contexto brasileiro. E por isso que a teologia sistemática deve ser reescrita a cada geração e para cada cultura. Lidar somente com questões que ninguém mais está pensando e, ao mesmo tempo, ignorar as preocupações predominantes entre o povo, é uma maneira de tomar a teologia irrelevante e pouco útil. Em tudo, a teologia sistemática deve mostrar o elo entre as doutrinas cristãs imutáveis e o mundo que está sempre em transformação. E onde encontrar novas perguntas que exijam novas soluções e aplicações, ela não deve ter medo de proceder com confiança de que a Palavra de Deus oferecerá uma resposta veraz e suficiente. Isto, pelo menos, foi nosso alvo. Agora, cabe aos leitores julgar até que ponto conseguimos tal intento. Assim, resolvemos incluir em nosso trabalho um estudo comparativo de várias religiões e movimentos comuns entre o povo brasileiro, além de incluir algumas das mais conhecidas seitas e religiões. Embora o espaço disponível não permita um estudo completo e aprofundado, tentamos esboçar os pontos essenciais em relação a cada doutrina estudada, oferecendo-lhes uma resposta no estudo apologético. Isto deve dar ao leitor informações adequadas para uma reflexão inicial. As fontes nas notas apontam para recursos que o leitor pode aproveitar para começar sua própria pesquisa. Também incluímos no estudo histórico uma amostra de movimentos e teólogos importantes na história do cristianismo. Escolhemos figuras e movimentos que representam as idéias mais importantes para entender o desenvolvimento das doutrinas e as opções que existem na interpretação do ensino bíblico acerca de cada questão. O leitor notará que enfatizamos os pais da igreja antiga e a teologia da reforma. Essas duas épocas representam períodos-chave da história da igreja, quando questões críticas para a doutrina ortodoxa e evangélica, especialmente sobre Deus e nossa salvação, foram debatidas e, por isso, ainda são muito relevantes hoje. Além disso, demos atenção especial a alguns teólogos do século xx cujas idéias, de modo geral, atualmente têm sido consideradas como ultrapassadas no discurso teológico acadêmico das sociedades profissionais teológicas, no mundo anglo-saxão. Porém, consideramos necessário mencioná-los, devido ao lugar de proeminência que ainda é atribuído a estes teólogos em muitas escolas teológicas brasileiras, ainda influenciadas pelas teologias liberais européias dos dois últimos séculos.
X X IX
INTRODUÇÃO
Conclusão Finalmente, reafirmamos nosso compromisso com a noção de que a teologia deve ser prática e devocional. A paixão do povo brasileiro é evidente em seu jeito festivo de celebrar sua fé. A popularidade das práticas sincretistas pode ser atribuída ao desejo do povo de encontrar soluções concretas para os problemas e desafios da vida. Nenhuma teologia que queira falar ao contexto brasileiro pode omitir esta realidade. Isto vem de encontro ao nosso entendimento do propósito da teologia. O propósito da teologia sistemática consiste em ajudar o povo a encontrar o Deus verdadeiro e a salvação que ele oferece. Ela existe para edificar o povo que freqüenta as igrejas, semana após semana, levando-os a conhecer a Deus mais profundamente e a encontrar os meios bíblicos para se ter uma vida mais santa e mais alegre. A teologia não é um exercício intelectual que existe para satisfazer nossa curiosidade. Também não é apenas uma tarefa para teólogos e pastores. A tarefa de fazer teologia pertence a todo povo de Deus, e assim deve ser feita, estudada e ensinada. Qualquer teologia que não tenha este foco, que não exista para levar os cristãos a conhecer mais a Deus e aprofundar sua comunhão com Ele e com seu povo, é pura perda de tempo. O resultado final do estudo da teologia deve ser o de produzir no fiel amor e santidade voltados para o Deus Trino. A verdadeira teologia cristã existe para alcançar aquele santo alvo, afirmado na primeira pergunta do Catecismo Menor de Westminster. “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre”. Parece-nos apropriado encerrar esta introdução citando alguns textos bíblicos: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no infemo tanto a alma como o corpo. Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. Não temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais. Portanto, todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus” (Mt 10.28-33). “Tendo, pois, a Jesus, Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb 4.14-16). “Guardemos firmes a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel” (Hb 10.23). “Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos” (Ap 5.13). In omnibus glorifecetur Deus Alan Myatt Franklin Ferreira
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ Rei e Senhor, Deus, que tiveste misericórdia de mim, Rei todo-poderoso e compassivo, todos os teus eleitos precisam de ti, assim como os ramos precisam da videira, como o olho precisa da luz. Sem a videira, os galhos murcham e quando falta a luz, tudo escurece. Assim te invoco em humildade, ó todo-poderoso, gracioso, glorioso triúno Deus. Monge Gottschalk, 805-868 Dá-me, Senhor, um coração vigilante que não se deixe desviar de ti por nenhum pensamento leviano, um coração reto que não aceite ser seduzido por instintos perversos, um coração livre que não se deixe dominar por nenhum poder maligno. Dá-me, Senhor, sensatez para te conhecer, sabedoria para te achar. Faze com que minha vida inteira seja do teu agrado. Tomás de Aquino, 1225-1274
esde os dias dos apóstolos, o estudo da teologia foi um elemento essencial na vida da igreja cristã. Paulo, João e os demais autores do Novo Testamento foram os primeiros teólogos cristãos. Os pais da igreja primitiva seguiram seus passos, expondo e ensinando as doutrinas bíblicas para alimentar as almas dos fiéis e evangelizar o mundo não-cristão. Logo no início, muitos desafios surgiram, tais como as heresias e seitas, que ameaçavam a jovem igreja. Muitas vezes novas perguntas surgiam, conduzindo o desenvolvimento doutrinário além dos enunciados simples do Novo Testamento. As passagens mais complexas das Escrituras precisaram ser interpretadas e explicadas, para a edificação dos santos e para a defesa da fé. O crescimento da fé e da igreja necessitava do contínuo crescimento da teologia.
D
2
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Para elaborar a teologia, os pais da igreja tomaram emprestado, às vezes, a linguagem da cultura ao seu redor. A filosofia grega foi empregada por muitos para desenvolver categorias qiie poderiam ajudar a entender os conceitos teológicos implícitos na Bíblia. As vezes isso foi útil, mas sempre havia o risco de introduzir idéias não-cristãs na teologia cristã. Muitas controvérsias surgiram. E sempre no cerne do problema estava a questão de como os teólogos chegaram às suas conclusões. Afinal, como é que se faz a teologia? Através dos séculos houve um desenvolvimento de métodos e estilos de se fazer teologia. Na igreja antiga, especialmente em Alexandria, se desenvolveu o método alegórico para interpretação das Escrituras, buscando significados ocultos, escondidos por trás da linguagem literal dos textos bíblicos. A tendência de se empregar métodos e pressupostos da filosofia grega chegou a seu ápice no escolasticismo, especialmente com Tomás de Aquino. O aristotelismo se tornou a estrutura sobre a qual a teologia cristã foi construída. O edifício da teologia católica romana até hoje é construído sobre esta base. Os reformadores voltaram à antiga ênfase na exegese das Escrituras, levando a sério o significado literal no contexto histórico. O alvo era recuperar a intenção do autor original. As divisões entre o protestantismo e o catolicismo têm muito a ver com os diversos métodos empregados na construção da teologia. A situação nos dias de hoje não mudou. O espiritismo e as seitas chegam às suas doutrinas erradas por meio de métodos errados. Interpretações espúrias da Bíblia, de modo geral, são resultado de métodos equivocados. Portanto, antes de começar o estudo de doutrinas específicas, é essencial tratar a questão do método teológico e determinar como é que o estudo teológico irá ocorrer. Na teologia sistemática esta é a questão dos prolegomena, ou seja, o prólogo do estudo. Então, nessa primeira unidade serão tratadas questões básicas para definir o campo de nosso estudo e o método que será empregado. Queremos examinar a natureza da cosmovisão cristã e as ferramentas que podemos utilizar para desenvolvê-la.
C A P ÍTU L0 1
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ em anos atrás, o início do século xx alimentou a expectativa de muitos, especialmente no mundo das, letras e da política, de que a tendência à secularização levaria a humanidade a um novo mundo, livre de superstição e da crença em deuses e construído sobre o alicerce da razão. A fé, vista como prática irracional, seria deixada para trás com a chegada da raça humana à maturidade. Para os positivistas, humanistas e ateus, a promessa de modernidade era a utopia que estava para chegar. Alcançando esse novo patamar, a religião seria abandonada, bem como os valores ultrapassados da fé tradicional, e uma época de irmandade e igualdade seria iniciada, abrindo a porta para que um verdadeiro paraíso fosse inaugurado na Terra. Alguns nem aguardaram o desdobramento natural do processo. Seja pela revolução, seja pelo ativismo político, os crédulos da nova ordem fizeram de tudo para acelerar o processo. Na Rússia, Alemanha, China e outros lugares a religião da humanidade foi sendo escrita com o sangue do povo. Em outras nações, leis foram criadas para marginalizar cada vez mais a influência da fé na vida pública. Se os profetas e arquitetos da ordem secular pudessem ver o fruto do seu trabalho no mundo de hoje, teriam uma grande decepção. O sonho da modernidade jaz nos escombros do que chamam de pós-modernidade. As utopias não deram certo. As experiências políticas não resolveram as dificuldades ao afastar a influência tradicional da fé. Na verdade, o século xx terminou como o mais sangrento na história da raça humana. As profecias dos sociólogos e filósofos acerca da morte da religião provaram estar erradas. A religião voltou a ser uma força mundial. Quanto mais foi perseguida, mais a religião cresceu. Agora, os grandes conflitos mundiais estão emaranhados em disputas religiosas cujas origens remontam há séculos. O otimismo da filosofia secular foi desmascarado como arrogância. As certezas da modernidade foram todas relativizadas, deixando a elite intelectual sem referencial para discernir entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. De fato, a única certeza da pós-modernidade é que o projeto da modernidade foi um fracasso.
C
4
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Para muitos, a situação pós-moderna é uma ocasião de desespero. Mas é exatamente nos momentos históricos que se mostram mais difíceis que a fé cristã se levanta, trazendo nova esperança. E, nestes momentos, a tarefa teológica se toma crítica para proclamar e defender a fé, e para nortear o povo de Deus na travessia dos campos de batalha que permanecem à frente. Nosso desafio é fazer uma teologia que coloque toda a riqueza da fé evangélica histórica, desde a igreja antiga até a atual, em contato com os problemas de um mundo pós-moderno e globalizado, trazendo luz, vida e esperança para um povo cuja existência carece do significado que somente se encontra no Senhor. Antes de começar, devemos indagar um pouco mais sobre a situação contemporânea. Como os eruditos do século xix conseguiram errar tão redondamente em seus pronunciamentos sobre o futuro glorioso do século xx? Por que não enxergaram o que muitos, incluindo os sociólogos, estão dizendo hoje: que a filosofia secular não é adequada para construir uma cultura e uma civilização coerente? Por que não entenderam o que agora é óbvio: que o ser humano é um ser incuravelmente religioso? Cremos que um dos motivos para tal engano foi a miopia dos fundadores das ciências sociais e de seus discípulos. Eles olharam para os dados tomando como referência as culturas secularizadas da Europa e, depois, dos Estados Unidos. Cegos pela ideologia do humanismo secular, interpretaram o futuro segundo seus desejos. Assim, a ideologia da secularização inevitável se tornou um dogma projetado posteriormente sobre o mundo todo. Em pouco tempo a teoria se tornou o padrão oficial das universidades e da política radical. Mesmo em países onde a realidade social era outra, o dogma da secularização prevaleceu. Entretanto, o problema reside no fato de a teoria, que talvez fosse própria para a realidade da Europa, não era nem sequer próxima da realidade de lugares como o Oriente Médio ou a América Latina, onde a secularização nunca chegou com a mesma força que por lá. A religião sempre fez parte da estrutura da vida dessas regiões e foi pouco perturbada pelos ventos europeus e norte-americanos. Enquanto os eruditos do norte ficaram chocados com a implosão da modernidade e com o ressurgimento da religião como força mundial, os observadores do resto do mundo viram esse fenômeno como algo perfeitamente normal. A história do fracasso da visão da modernidade revela que agora, mais do que nunca, é preciso uma teologia contextualizada que esteja enraizada na realidade da América Latina e mais especificamente do Brasil. Por outro lado, a teologia não pode cair na mesma miopia dos eruditos do passado. Ela tem que olhar para o mundo global também. Assim, é preciso uma teologia que lance a luz da sabedoria das Escrituras e da tradição cristã sobre os problemas e questões pertinentes à realidade do povo de Deus no Brasil e no mundo, Essa teologia deve oferecer respostas que levem as pessoas a um relacionamento mais profundo com Deus. Sem dúvida, tal projeto teológico poderia ocupar toda uma vida. Nesta obra, nosso alvo é mais limitado. Este livro se propõe a ser introdutório sem, contudo, ser superficial.
A doutrina e a cosmovisão cristã O mundo pós-modemo é caracterizado por uma tendência ao irracionalismo e ao misticismo. Embora isso não seja nada estranho para o pensamento popular, a pós-modemidade representa uma mudança radical. Sob sua influência, muitos dos eruditos da filosofia e das ciências sociais, e até muitos teólogos, abandonaram a esperança de uma visão racional e coerente da vida, capaz de abranger toda a realidade. Na falta de um padrão absoluto de conhecimento, o
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
5
relativismo tomou-se a norma tanto no mundo acadêmico quanto na cultura popular. Ouvese muito a afirmação de que é arrogância dizer que só existe uma religião verdadeira e só um caminho certo para conhecer a Deus. Tal atitude é considerada “intolerante” e, sendo assim, não pode ser aceita. Mas o relativismo é muito limitado em sua capacidade de ajudar o homem na vida prática. O mundo de hoje enfrenta crises e dificuldades que exigem respostas coerentes. Tais respostas somente podem ser encontradas à luz de um padrão moral que seja nítido. Contudo, segundo os que foram influenciados pela pós-modemidade, não existe tal lei. As pessoas têm suas próprias verdades e todas essas verdades são igualmente válidas. E se todas são válidas relativamente, nenhuma é válida absolutamente. O homem de hoje, então, se encontra num mundo em que coexistem várias cosmovisões, as quais ele aceita para dar sentido à vida. Ainda que esteja preso a uma filosofia irracional, o homem sempre está em busca de um caminho para explicar, entender e dar ordem ao seu mundo. Todos têm uma filosofia de vida, uma cosmovisão, que pode ser o espiritismo, o catolicismo, o humanismo ou mesmo uma filosofia eclética que mescle várias idéias e conceitos contraditórios. Porém, nada disso resolve o problema da situação existencial que a humanidade enfrenta no século xxi. Será que o pluralismo é adequado para construir e sustentar uma cultura, uma civilização? Ou para isso é preciso uma visão unificada da realidade? / E cunoso notar como o contexto atual é bastante parecido com o do mundo do primeiro século, ao qual chegou a mensagem de Cristo, pois também era um mundo pluralista, onde havia muitas cosmovisões em competição pelos corações das pessoas. Neste meio, a proclamação do evangelho de Jesus Cristo ofereceu um desafio total. E tal evangelho legou ao mundo antigo uma cosmovisão íntegra e coerente, adequada para lidar com todas as áreas da vida. No entanto, a mensagem do evangelho não é apenas abrangente, mas também exclusiva: exige que as cosmovisões dos descrentes sejam derrotadas e que a cosmovisão da Bíblia seja construída em seu lugar. Cada centímetro da criação pertence a Cristo e isso inclui todos os pensamentos dos homens. Jesus não aceita nada menos do que a submissão completa. A teologia sistemática é uma parte essencial da tarefa de construir uma cosmovisão cristã. Embora essa cosmovisão contenha mais do que normalmente é considerado na disciplina de teologia sistemática, sem uma teologia sistemática não é possível ter uma cosmovisão cristã. A teologia sistemática nos ajuda a responder às perguntas de nossa época, às filosofias do mundo e aos problemas que o ser humano tem enfrentado constantemente. E nos ajuda a fazer isso de maneira plena, racional e adequada para que possamos viver uma vida autêntica. Portanto, vamos começar nosso estudo da teologia sistemática com uma definição e um esboço do conceito de cosmovisão. 0 que significa “ cosm ovisão” ? A cosmovisão é um modo de ver o mundo! É a interpretação que fazemos da realidade derradeira. E o sistema de pressupostos que usamos para organizar e interpretar nossa experiência da vida. E literalmente nossa visão do cosmos.1
‘Para a história do conceito da cosmovisão (no original alemão Weltanschauung, traduzido em inglês como worldview), recomendamos a leitura de Rodolfo Amorim Carlos de Souza, “Cosmovisão: evolução do conceito e aplicação cristã.” In: Cláudio Antônio Cardoso Leite, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho e Maurício José Silva Cunha (org.), Cosmovisão cristã e transformação-, espiritualidade, razão e ordem social, p. 39-55.
6
t PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUD O DA T EO LO G IA CRISTÃ
a................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. -a
Segundo James W. Sire, uma cosmovisão “é um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que sustentamos (consciente ou inconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a formação básica do nosso mundo”.2 Nós podemos representar a noção de cosmovisão através do seguinte gráfico:3
Estrutura de uma cosmovisão
/ Axiomas \
1. Pressupostos /
2. Lógica ou raciocínio /
3. Dados
/
4. Conclusões /
Razão
\
Fatos
\
C 1...C 2 ...C 3 ...C 4 .. Cosmovisão
\ \
t t t t E 1 . . . E 2 ... E 3 ... E 4 ... 0 mar da experiência —
A cosmovisão é como uma pirâmide construída de cima para baixo. Sendo assim, o ápice determina toda a estrutura da parte inferior. No ápice estão os pressupostos, os axiomas principais, que são o ponto de partida para tudo que vem depois. Pressupostos são as proposições básicas, tomadas como a verdade, sem prova anterior, que formam a base para determinar todas as demais proposições que fazem parte da interpretação de mundo daquela cosmovisão. É importante entender que os pressupostos não são resultado de argumentos anteriores. Se fossem, eles seriam conclusões e não pressupostos. Os pressupostos são aquelas “verdades” consideradas tão óbvias, que ninguém ousa duvidar delas. A função dos pressupostos de uma cosmovisão equipara-se às regras de um jogo. As regras de futebol determinam o que é e o que não é permitido em campo. Trazem os princípios básicos que definem o que o jogo é. Os pressupostos na cosmovisão determinam o que é possível ou não. Por exemplo, a pessoa que parte do axioma de que Deus não existe jamais poderia aceitar a hipótese de que acontecem milagres. Ela não aceita a ressurreição de Cristo porque os mortos, num mundo onde Deus não existe, não voltam à vida. Assim, ao se defrontar com um milagre, ela tentará criar uma explicação plausível para evitar a conclusão de que houve
2James W. Sire, O universo ao lado, p.21. 3Agradecemos a R. K. McGregor Wright por compartilhar conosco esse desenho, que foi sugerido originalmente por Edith Schaeffer, durante uma discussão da qual ele participou quando estudou no L’Abri. Ao descrever o papel dos pressupostos numa cosmovisão, Edith Schaeffer disse: “Os pressupostos são como o ápice de uma pirâmide que é construída de cima para baixo. Se o ápice for deslocado ou modificado, toda a parte inferior da pirâmide também se modificará. Tal é a função dos pressupostos de uma cosmovisão. A menor alteração dos pressupostos afetará todo o resto. Portanto, as crenças e proposições defendidas por determinada cosmovisão são sempre fruto de seus pressupostos iniciais”.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
7
milagre. Ou se não puder negar as evidências, ela dirá que aconteceu algo extraordinário, mas que com mais informações encontraremos uma explicação natural para isso. Portanto, é fundamental que, ao analisar qualquer cosmovisão, os pressupostos sejam identificados e avaliados. Isso é essencial, porque nem sempre são óbvias as idéias que controlam as conclusões presentes na estrutura de uma cosmovisão. De fato, não seria exagero dizer que a maioria das pessoas não tem consciência de seus próprios pressupostos e, por isso, são controladas por idéias que nunca chegaram a entender. O resultado é que as pessoas fundamentam a sua interpretação da vida sobre um alicerce equivocado, sem ter a menor noção de que há algo errado. Devido à importância desse assunto, trataremos adiante, com mais detalhes, dos pressupostos cristãos. A segunda parte de qualquer cosmovisão é a lógica, ou seja, o processo de raciocínio aplicado aos pressupostos para se chegar às conclusões. Pressupostos não podem produzir conclusões sem a aplicação da razão. Portanto, toda cosmovisão tem a sua lógica. Assim, a noção de lógica é freqüentemente citada para justificar ou refutar as conclusões. Normalmente quando uma pessoa diz que isso ou aquilo não é lógico, quer dizer apenas que a coisa não faz sentido para ela. Mas a lógica em si não é uma questão de algo fazer sentido ou não. Algo que “faz sentido” pode ser muito errado, e algo que é certo pode parecer sem sentido. Na verdade, a lógica é um sistema formal de regras para raciocínio que tem como fundamento três “princípios (ou leis) do pensamento”: o princípio da identidade, o princípio da contradição e o princípio do terceiro excluído. O Princípio da Identidade afirma que se qualquer enunciado é verdadeiro, então ele é ver dadeiro. O Princípio da Contradição afirma que nenhum enunciado pode ser verdadeiro e falso. O Princípio do Terceiro Excluído afirma que um enunciado ou é verdadeiro ou é falso.* O princípio da identidade diz que uma coisa é o que ela é. Se A=B então B pode ser substituído por A. O princípio da contradição diz que qualquer enunciado que afirma e nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, no mesmo sentido, é necessariamente falso. Havendo dois enunciados contraditórios, ambos não podem ser verdadeiros nem falsos. Necessariamente um é verdadeiro, e o outro é falso. Duas proposições são contraditórias se uma delas for a negação da outra, isto é, se não puderam ambas ser verdadeiras e não puderam ser ambas falsas. É claro que duas proposições categóricas de forma típica que têm o mesmo sujeito e o mesmo predicado, mas que diferem em quantidade e qualidade são contraditórias.5 O princípio do terceiro excluído diz que não existe meio-termo entre a verdade e a falsidade de um enunciado. Ou Deus existe ou ele não existe. Ou uma mulher está grávida ou não. Na avaliação de cosmovisões, a presença de uma contradição é um forte sinal de que o argumento é inválido e a conclusão falsa. Se os pressupostos levam a conclusões contraditórias, isso é prova de que um deles também é falso.
4Irving M. Copi, Introdução à lógica, p. 256. Outros livros usam a expressão “meio-excluído”. Cf. também Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, Introdução à filosofia-, uma perspectiva cristã, p. 45-55 e J. P. Moreland e William Lane Craig, Filosofia e cosmovisão cristã, p. 46-94. 5Irving M. Copi, Introdução à lógica, p. 146.
8
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Uma cosmovisão não pode ser completa sem lidar com os dados empíricos deste mundo, ou seja, com os fatos da experiência. Enfim, cosmovisão é a visão de algo que existe, e esse algo são os fatos que estão diante da pessoa. Ninguém pode enxergar os eventos e realidades concretas do mundo apenas como uma série de eventos desconectados. A coerência de uma cosmovisão depende de sua capacidade de explicar os dados e relacioná-los uns aos outros. Se os dados da vida não fazem parte de um sistema que faça sentido, as pessoas procuram por alternativas. Finalmente, a cosmovisão é composta de conclusões: as interpretações do mundo que a pessoa faz. As conclusões são abrangentes, tocam em todas as áreas da vida e da experiência humana. Isso é necessário porque o ser humano tem que abranger tudo o que faça parte da sua experiência dentro de uma cosmovisão. A pessoa enfrenta a experiência como um grande mar, povoado pelo desconhecido, repleto de mistério, um mar poderoso, fascinante e assustador. A cosmovisão é uma maneira de colocar tudo isso numa perspectiva segundo a qual a pessoa possa construir a sua vida com um sentido de segurança e paz. A s provas da verdade O esboço da estrutura de uma cosmovisão sugere quatro maneiras para a verificação da veracidade de qualquer das proposições individuais que a integram. A primeira prova é a suficiência dos pressupostos. A conclusão de um argumento não é melhor do que os seus pressupostos. Pressupostos errados geram conclusões igualmente equivocadas. Para examinar os pressupostos, várias questões devem ser levantadas. Qual é o ponto de referência final para a interpretação do mundo, segundo uma determinada cosmovisão? Os pressupostos básicos apresentados são suficientes para a interpretação do universo? Ou existem eventos e fatos que os pressupostos não podem explicar? Uma cosmovisão que deixe perguntas e fatos importantes sem respostas razoáveis não é digna de muita confiança. As leis da lógica são fundamentais para a segunda prova. A existência de uma contradição é evidência de um erro, que surge ou da aplicação da lógica ou em função da presença de pressupostos incompatíveis. A presença de uma contradição em qualquer cosmovisão é uma indicação de que tal cosmovisão é errada, pois o que é uma contradição lógica não pode ser verdadeiro. A terceira prova visa a capacidade da cosmovisão de lidar com a evidência empírica. Ela ajusta-se aos fatos? É consistente com a experiência externa? Uma cosmovisão que tenha de ignorar fatos significativos apresenta sérios problemas. Aquilo que não esteja de acordo com os fatos corretamente interpretados não pode ser verdadeiro. A última prova é a questão da viabilidade existencial. Quais são as conseqüências práticas da cosmovisão analisada? E possível viver sem hipocrisia e construir uma civilização segundo essa cosmovisão? Uma filosofia que não possa ser vivida com autenticidade não pode ser verdadeira. O s elem entos de uma cosm ovisão Uma cosmovisão é uma interpretação do universo. A palavra universo é utilizada aqui de propósito, para mostrar que uma cosmovisão significa uma interpretação abrangente. Uma cosmovisão completa tem algo a dizer sobre tudo, ou, pelo menos, oferece uma estrutura para a interpretação de tudo que existe à nossa volta. Se surgirem novas informações que a cosmovisão não consiga explicar, isso é um sinal de suas limitações. Evidentemente, a idéia de cosmovisão abrange todas as áreas de experiência humana. No estudo da filosofia e da teologia,
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
9
são quatro as áreas de reflexão que lidam com a experiência humana. No desenvolvimento de uma cosmovisão é preciso considerar todas estas áreas, das quais trataremos a seguir. A primeira é a teoria do conhecimento, a epistemologia, que é o ponto de partida. Seria impossível construir uma cosmovisão sem um método para distinguir entre o verdadeiro e o falso. A epistemologia responde a questão: como é que nós conhecemos o que é verdadeiro? Será que é por meio da razão e da lógica (racionalismo); da ciência e da experiência dos sentidos (empirismo); da intuição (misticismo); ou da revelação? Será que o conhecimento existe ou não há conhecimento (ceticismo)? A verdade é absoluta ou relativa? Tudo isso se encaixa no campo da epistemologia. Dentro da teologia, a epistemologia é relevante para a discussão da natureza da revelação da Bíblia e de sua interpretação. Uma vez que tenhamos um método para a interpretação do mundo, precisamos entender o que é o mundo. Isso se faz através da teoria da existência, conhecida como ontologia ou metafísica, que é a segunda área de reflexão. Neste campo de reflexão, encontram-se questões do tipo: qual é a natureza do universo? Será que é espiritual (panteísmo); material (materialismo); ou uma combinação de ambos? Como explicar a unidade e a diversidade do universo? Qual é a natureza de Deus e do homem? O mundo espiritual existe ou não? Depois de propor uma teoria sobre a natureza das coisas, toda cosmovisão enfrenta o problema de avaliar e determinar o que deve ser feito com este universo. Isso implica uma teoria do valor, que é nossa terceira área de reflexão. O que devo valorizar? O que é o sumo bem? E isso, por sua vez, requer outras duas teorias: a teoria da ação, ou a ética\ e a teoria da beleza, ou a estética. Como as pessoas devem se comportar? Como distinguir entre o bem e o mal? Para a teologia, a questão é: qual é a aplicação correta da doutrina na vida do cristão? Há uma pergunta que é feita por todo ser humano: “Qual o propósito da vida?”. Toda cosmovisão implica uma teoria do propósito ou alvo da existência, a chamada teleologia, que por sua vez compõe a quarta área de reflexão. Qual é o propósito da vida e da criação? Por que estamos aqui neste universo? O que é a história? A história é cíclica ou segue um percurso linear em direção a um fim? O universo existe por acaso ou foi planejado? Qual é o nosso lugar neste plano? Dentro da teologia, a doutrina da escatologia é relevante para esta questão. Fica bem claro que, quando respondermos a essas perguntas, teremos uma série de proposições. Uma cosmovisão consiste em várias idéias, proposições, enunciados (ou seja, doutrinas), que declaram os conceitos-chave de um sistema. Por conseqüência, para elaborar uma cosmovisão, é preciso falar em doutrina. Neste sentido a teologia sistemática, que expõe e elabora as doutrinas da fé, é uma parte essencial do desenvolvimento de uma cosmovisão cristã integral. Portanto, é impossível pensar com uma mente cristã sem fazer teologia.6 Observe a seguir um resumo das principais cosmovisões presentes na cultura ocidental:
6Precisamos afirmar nosso débito para com Abraham Kuyper, para quem o cristianismo verdadeiro é mais do que um relacionamento com Jesus, que se expressa em piedade pessoal, freqüência à igreja, estudo da Bíblia e obras de caridade. É mais do que acreditar em um sistema de doutrinas. Em seu entendimento, o cristianismo genuíno é uma maneira de ver e compreender toda a realidade. É um sistema de vida, uma cosmovisão. Baseada na Escritura, a cosmovisão cristã pode ser resumida em quatro conceitos: a criação do universo e da vida; a queda no pecado, arruinando a boa criação de Deus; a obra de Deus em Cristo para a redenção de pecadores e nosso chamado para aplicar esses princípios a todas as áreas da vida, criando uma nova cultura, antecipando a restauração de toda a criação. A cosmovisão cristã provê uma forma coerente de viver no mundo - abarcando todas as esferas da criação: da política à educação, passando pelo culto, vida em família, artes e ciência. Cf. Abraham Kuyper, Calvinismo, Charles Colson e Nancy Pearcey, E agora, como viveremos? e Franklin Ferreira, Gigantes da fé\ espiritualidade e teologia na história da igreja, p. 281-291.
[ PA R TE 1 ]
10
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
C o s m o v is õ e s b á sic a s: três paradigmas fundamentais do pensamento humano 7 10 P ER G U N T A S P R IN C IP A IS D A V ID A
A T E ÍS M O :
P A N T E ÍS M O :
T E ÍS M O :
Deus não cxisic
Deus c infinito e impessoal
Deus é intinilo e pessoal
1 . Po r que algo existe em v e z do nada?
Algo sempre existiu. O universo é produto do tempo, espaço, energia e acaso.
Tudo que existe é Deus. A unidade absoluta que é Deus se particularizou no universo.
Um Deus pessoal criou tudo que existe do nada; sua existência é distinta da sua criação finita.
2 . Po r que o hom em existe?
0 homem é apenas um produto do acaso num universo fechado.
0 homem é particularização divina, como todo o mundo finito.
O homem é criação especial, distinto de toda criação não pessoal.
3. Qual é a base da dignidade hum ana?
Ontologicamente, nada; relativamente, o mais elevado da evolução.
Nada; a distinção e singularidade do homem afastam-se de Dens.
Feito à imagem de Deus, o homem existe para relacionamento pessoal com o Criador.
4 . Qual é a base da personalidade, o fato de que o hom em pensa, escolhe e tem emoções?
Ontologicamente, nada; relativamente: a) formação genética; b) condicionamento social.
A personalidade é ilusão: o homem deve renunciar sua personalidade.
0 fato de que o próprio Deus é pessoal: ele pensa, escolhe e sente emoções.
5. Qual é a base da racionalidade e lógica?
Ontologicamente nada; no tim, não existe. Relativamente: a) linguagem; b) formação genética.
A racionalidade é apenas ilusão. A realidade final (Deus) é aracional.
Enquanto a racionalidade divina transcende a humana, Deus por sua própria natureza é racional.
6. Qual é a base dos sentim entos m orais, i.é ., a consciência?
0 condicionamento social.
No sentido final, a consciência moral é ilusão.
Embora caída e condicionada, a consciência moral reflete a imagem de Deus.
7 . Qual o fundam ento da ética, m oral e valores?
Relativismo: a) social (humanismo, democracia ou o estado); b) individual.
Ontologicamente, nada. Relativamente, as leis do carma.
O caráter moral de Deus, revelado na Bíblia.
8. P o r que existe o mal no universo?
a) 0 mal físico é parte da criação. b) O mal moral é relativo à percepção social ou individual.
Como tudo é Deus, não existe o mal; as leis do carma são finalmente arbitrárias.
a) 0 mal moral vem do livre-arbítrio de seres finitos (Lúcifer, Adão etc); b) O mal físico é conseqüência e juízo disso.
9. Qual é a base da alegria, prazer e estética do hom em ?
A formação genética e o condicionamento social.
a) A iluminação e unidade de Deus. b) O prazer individual é contra Deus/unidade.
Como imagem de Deus, o homem possui senso inato de estética, alegria e prazer; etc.
1 0 . Q ual é o lugar do indivíduo no universo? (0 p roblem a da unidade e diversidade do universo)
a) Tudo é unidade; o homem não tem lugar; determinismo. b) Tudo é diversidade, acaso, absurdo; o homem não tem significado.
Só pode haver unidade final; toda a diversidade - incluindo o homem é ilusão.
Deus como Trindade incorpora unidade e diversidade; assim, o indivíduo tem seu lugar na unidade do universo.
7J. Scott Horrell, “Uma cosmovisao trinitariana.” In: Vox Scripturae, v.4, n .l, p. 73-74.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
11
Estas cosmovisões, resumidas de acordo com a tabela apresentada, serão desdobradas no estudo histórico-comparativo, nos capítulos subseqüentes. A s funções da cosm ovisão Como afirma Hiebert, “os pressupostos em uma cultura oferecem às pessoas um modo mais ou menos coerente de olhar o mundo”.8 Ele destaca as seguintes funções de uma cosmovisão: Em primeiro lugar, como Hiebert destaca, “nossa cosmovisão nos dá fundamentos cognitivos sobre os quais construir nossos sistemas de explicação, fornecendo uma justificativa racional para crença nesses sistemas”. Como visto anteriormente, se aceitarmos determinados pressupostos, nossas crenças e escolhas morais passam a fazer sentido, dentro da estrutura maior de uma determinada cosmovisão. Logo, uma cosmovisão “nos oferece um modelo ou mapa da realidade, estruturando nossas percepções da realidade”. Em segundo lugar, “nossa cosmovisão nos dá segurança emocional”. Diante dos perigos presentes ao nosso redor, tais como crises políticas, corrupção, violência desenfreada, e incertezas quanto ao futuro, “as pessoas se voltam para suas crenças culturais mais profundas em busca de conforto emocional e segurança”. Portanto, como Hiebert enfatiza, “não é surpresa que os pressupostos da cosmovisão fiquem mais evidentes em nascimentos, casamentos, funerais e outros rituais que as pessoas utilizam para reconhecer e renovar a ordem na vida e na natureza”. Por gerar uma convicção profunda, uma cosmovisão pode ajudar pessoas a enfrentar a morte por meio do martírio, por exemplo, se estas acreditarem que há um objetivo para tal sacrifício — como pode ser evidenciado, por exemplo, pelo comportamento de alguns soldados no campo de batalha. Portanto, “nossa cosmovisão fortalece nossas crenças fundamentais com um reforço emocional para que elas não sejam facilmente destruídas”. Em terceiro lugar, “nossa visão de mundo legitima nossas normas culturais mais profundas, utilizadas para avaliar nossas experiências e escolher modos de agir”. Uma cosmovisão nos oferece conceitos de justiça e de pecado e de como lidar com este. Também dirige nossas escolhas morais, servindo não só como um mapa da realidade, mas também como um guia que orienta nossa vida. Em quarto lugar, nossa cosmovisão integra nossa cultura. Como Hiebert destaca, “ela organiza nossas idéias, nossos sentimentos e valores em um único planejamento geral. Assim, nos mostra o início de uma visão unificada da realidade, reforçada por emoções e convicções profundas”. Em quinto lugar, nossa cosmovisão monitora as mudanças ocorridas em determinada cultura. Em todo o tempo seremos confrontados por novas idéias e comportamentos, oriundos de dentro ou de fora da sociedade. Tais idéias e comportamentos podem trazer pressupostos que vão se chocar com a nossa atual maneira de pensar. Nesses momentos, segundo Hiebert, “nossa cosmovisão nos ajuda a selecionar aquelas idéias que se ajustam à nossa cultura e a rejeitar as que não o fazem. Ela também nos ajuda a reinterpretar aqueles pressupostos adotados, a fim de que se ajustem ao nosso padrão cultural geral”. Por isto, uma cosmovisão costuma “manter velhos costumes de ser e oferece estabilidade nas culturas durante longos períodos de tempo”. Em função disso, as cosmovisões são resistentes à mudança. No entanto, as mudanças ocor rerão, pois nenhuma cosmovisão está completamente integrada e sempre possui contradições
8Resumido de Paul G. Hiebert, O evangelho e a diversidade das culturas', um guia de antropologia missionária, p. 48-49.
12
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
internas. Além disto, quando adotamos novas idéias, estas podem desafiar nossos pressupostos fundamentais. Embora todos nós possamos conviver com algum nível de incoerência, quando as contradições internas se tornam muito grandes, procuramos maneiras de reduzir essa tensão. Nesse caso, o que fazemos normalmente é mudar ou abandonar alguns de nossos pressupostos. O resultado será uma transformação gradual da cosmovisão, da qual talvez nem nós mesmos tenhamos consciência imediata. No entanto, algumas vezes, as contradições são tantas que nossa cosmovisão não atende mais às nossas necessidades básicas. Se uma visão mais adequada não nos for apresentada, podemos rejeitar a velha cosmovisão e adotar uma nova. Estas mudanças de cosmovisão estão no âmago do que os cristãos chamam de conversão. Afirmamos que existe na Escritura uma cosmovisão e que esta é verdadeira em todas as suas partes. Não obstante, as tentativas humanas de compreender e expressar a verdade sempre têm limitações. Além disso, nem tudo sobre o universo é revelado na Bíblia. Por isso, a teologia sistemática sempre tem que buscar entender melhor a revelação divina e o universo que Deus criou.
Pressuposições, o credo e a cosmovisão cristã Sistem as apologéticos e a epistem ologia cristã Já que neste livro trataremos da apologética, que é a defesa da fé, devemos mencionar algo sobre a questão da metodologia apologética, que está ligada à questão da epistemologia. Um de nossos alvos nesta obra é avaliar as várias cosmovisões que estão competindo pela lealdade do povo. Mas para fazer isso precisamos de um fundamento para o conhecimento. Como posso conhecer a verdade? Qualquer sistema de apologética é um sistema de epistemologia, embora seja mais que isso também. E é mais que isso porque, por estar a serviço da teologia sistemática, tem como alvo a comunicação da cosmovisão cristã. E para que essa comunicação seja possível, é preciso um ponto de contato com o não-cristão. Portanto, qualquer sistema de apologética, para ser completo, deve ter pelo menos as seguintes partes: um ponto de partida lógico; um ponto de contato com o descrente, ou seja, um terreno comum; as provas da verdade; o papel do raciocínio e o fundamento da fé em Deus, Cristo e a Bíblia. O significado destes aspectos de um sistema apologético deve ficar claro ao explicarmos as metodologias abaixo.9 Existe um extenso debate sobre qual seria a metodologia adequada para a defesa da fé. As propostas existentes podem ser resumidas dentro de dois grupos principais.10 Uma primeira metodologia é a apologética evidencialista, que recebeu profunda influência do realismo escocês. Este grupo assume a postura de que a melhor maneira de se comprovar a existência de Deus e a veracidade da Bíblia é apelar para a evidência histórica. Eles apontam para a evidência da ressurreição de Jesus, por exemplo, como a prova de que ele é Deus. O evidencialismo é caracterizado pela tendência de se afirmar que a verdade do cristianismo
9A análise dos sistemas de apologética em suas partes, considerando o ponto de partida lógico, o terreno comum, a prova da verdade, o papel do raciocínio e o fundamento da fé, foi desenvolvido por Gordon Lewis em Testing Christianity ’s truth claims. 10Nancy Pearcy, Verdade absoluta-, libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural, p. 349-351.
■
A CO NSTRUÇÃO DA COSM OVISÃO CRISTÃ
13
pode ser demonstrada como algo altamente provável. Os evidencialistas começam a partir do empirismo, e sua abordagem pode ser assim resumida: a) Ponto de partida lógico: O empirismo começa a partir do dado empírico para construir uma cosmovisão. Pressupõe que existe uma correspondência entre a realidade exterior e as percepções interiores na mente humana e que os cinco sentidos são confiáveis. Outros pressupostos incluem a unidade da experiência, a regularidade das leis da natureza e a causalidade. É óbvio que o evidencialismo não depende apenas dos fatos, mas também de alguns pressupostos metafísicos, embora nem todos os empiristas admitam isso. b) Terreno comum: Os evidencialistas dizem que aquilo que temos em comum com os nãocristãos são os fatos. “Um fato é um fato”, eles dizem. Pressupõem que os fatos são os mesmos para todo mundo, e que têm o mesmo significado. Alguns evidencialistas admitem que temos em comum com os descrentes as formas lógicas do raciocínio humano. c) Prova da verdade: Algo é verdadeiro se for consistente com os fatos. Por isso os evidencialistas dão muita ênfase aos dados históricos, como a ressurreição de Jesus. Para eles, a evidência exige um veredicto — daí, o título dos livros de Josh McDowell.11 d) O papel do raciocínio: Os evidencialistas dependem da lógica indutiva. Eles tentam raciocinar partindo dos dados (a ordem no universo, a ressurreição) para os princípios metafísicos (a existência de Deus, a divindade de Cristo). e) A base da fé: Segundo os evidencialistas, a certeza absoluta é algo impossível. O melhor que se pode esperar é um alto grau de probabilidade. Eles dizem que entre as várias cosmovisões possíveis, o cristianismo é o mais provável, e por isto deve ser aceito. Quais são, então, os problemas do evidencialismo? Os evidencialistas insistem que a apologética não pode começar a partir do pressuposto do Deus da Bíblia. A epistemologia evidencialista, então, começa no mesmo lugar que a epistemologia do descrente. Ambas pressupõem que o universo pode ser interpretado pela mente humana sem referência a Deus. Os princípios para interpretar o mundo existem no próprio mundo. Contudo, se o descrente pode descobrir a verdade e interpretar o universo sem Deus, então por que ele precisa de Deus? E como é que o evidencialista sabe que existe uma correspondência entre as percepções da sua mente e o mundo exterior? A não ser que ele possa resolver os problemas inerentes à epistemologia do empirismo, não poderá comprovar a possibilidade do conhecimento. E sem uma base de conhecimento não é possível comprovar a existência de Deus. Nossa avaliação, portanto, é que o evidencialismo pode ser muito útil, contanto que seja inserido num arcabouço de pressupostos suficientes para sustentá-lo. Somente o evidencialismo não basta para comprovar o cristianismo. Uma segunda metodologia é o pressuposicionalismo.12 Os principais defensores desta posição são Cornelius Van Til e John Frame. Eles discordam do evidencialismo, afirmando que os apóstolos não pregaram que a veracidade da Palavra de Deus era apenas provável,
nCf. Evidência que exige um veredito, v. 1 e Evidência que exige um veredito, v. 2. 12Para uma introdução ao pressuposicionalismo, cf. Greg L. Bahnsen, Van Tils apologetic: readings and analysis; John M. Frame, Apologetics to the glory o f G od: an introduction; John M. Frame, Cornelius van Til: an analysis of his though; Richard L. Pratt Jr., Every thought captive', a study manual for the defense of Christian truth e Cornelius Van Til, The defense o f thefaith. Cf. também William Edgar, Razões do coração: reconquistando a persuasão cristã, e as várias obras de Francis Schaeffer, em especial O Deus que intervém, A morte da razão, O Deus que se revela e Como viveremos?
14
[ P A R TE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
mas atacaram a própria estrutura do pensamento dos pecadores. Assim, este grupo procura expor os pressupostos dos incrédulos e demonstrar sua insuficiência. Através da destruição dos alicerces do pensamento pagão, os ídolos do coração são derrubados e o Evangelho é apresentado como a única esperança. a) Ponto de partida lógico: Os pressuposicionalistas começam onde a Bíblia começa, com o pressuposto do Deus trino da Bíblia e a inerrância das Escrituras. b) Terreno comum: O ponto de contato com o descrente é o fato de que ele é criado por Deus, feito à sua imagem e vive no mundo que Deus criou. Não existe terreno comum entre o sistema (epistemologia) do descrente e do cristão, porque a interpretação do mundo feita pelo descrente pressupõe que Deus não existe. Porém, o descrente não é consistente com os seus próprios pressupostos. Ele aceita várias verdades que tomou emprestadas do sistema cristão. Podemos aproveitar este terreno comum para dialogar com eles. Por exemplo, os humanistas aceitam o relativismo ético e negam que existam absolutos morais. No entanto, quando alguém os rouba, eles insistem que roubar é errado. c) Prova da verdade: As reivindicações da Bíblia são auto-autenticadas. Em última análise, a prova da verdade do sistema cristão é que, se não fosse verdadeiro, não existiria verdade. Os pressupostos da cosmovisão cristã são necessários para qualquer afirmação. d) O papel do raciocínio: O cristão pode se colocar no lugar do não-cristão para lhe mostrar os resultados do seu sistema não-cristão. O cristão usa a razão para desconstruir a cosmovisão do não- cristão e revelar os seus absurdos e problemas. Além disso, o cristão mostra que a Bíblia contém uma cosmovisão que é suficiente para resolver os problemas da epistemologia, da ética, da ontologia e da teleologia. e) A base da fé: Em última análise, a Palavra e a autoridade de Deus são as bases da fé cristã. Os pressuposicionalistas dizem que a veracidade da fé cristã é absoluta. C o m p a ra ç ã o entre a p o lo g é tica tra d ic io n a l e p re ssu p o sicio n a l : Assunto
Tradicionalism o consistente
Pressuposicionalism o
A existência de Deus
É somente “possível”, embora “altamente provável”.
E ontologicamente e “racionalmente” necessária.
0 conselho de Deus
Não é a “causa” última, toda-inclusiva, de tudo o que acontece.
É a “causa” última, toda inclusiva, de tudo o que acontece.
A revelação de Deus: necessidade
A revelação natural pode ser entendida “por conta própria”.
Mesmo no paraíso, o homem tinha que interpretar a revelação geral (natural) nos termos das obrigações colocadas sobre ele, por Deus, através da revelação especial.
A revelação de Deus: clareza
A revelação natural e especial são incertas, a ponto de o homem poder somente dizer que a existência de Deus é “provável” .
A revelação natural e especial são claras a ponto de o homem poder se assegurar da existência de Deus.
nTabela baseada em Cornelius Van Til, “My credo.” In: E. R. Greehan (ed.),Jerusalem and Athens, p. 3-21, disponível em http://www.monergismo.com/textos/apologetica/apologetica_comparacao.htm, acessado em 27.02. 2007.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
15
A revelação de Deus: suficiência
Permite uma realidade última de “possibilidade”, a partir da qual podem vir alguns “fatos” completamente novos para Deus e para o homem. Tais “fatos” não deveriam ser interpretados e explicados nos termos da revelação geral ou especial de Deus.
Não há uma realidade de “possibilidade”.
A revelação de D eus: autoridade
É secundária à autoridade da razão e da experiência. O homem a identifica e reconhece sua “autoridade” somente nos termos de sua própria autoridade.
A Palavra de Deus é auto-testificadora e disto é derivada sua autoridade. As Escrituras identificam a si mesmas.
A criação do hom em à im agem de Deus
É comprometida pelo pensamento de que a existência e o conhecimento do homem são independentes da existência e do conhecimento de Deus.
E sustentada, pois o homem deve “pensar os pensamentos de Deus depois dos seus”.
A relação pactuai de Deus com o hom em
Sustenta o entendimento de que a ação representativa de Adão não é absolutamente determinante do futuro.
Sustenta o entendimento de que a ação representativa de Adão é absolutamente determinante do futuro.
A corrupção da hum anidade
Não entende que a depravação ética do homem (se é que há alguma) se estenda a toda sua vida, até mesmo aos seus pensamentos e atitudes.
Entende que a depravação ética do homem estende-se ao todo de sua vida, até mesmo aos seus pensamentos e atitudes.
A graça de Deus
Sustenta que o homem deve, ele mesmo, renovar o seu entendimento, pelo “uso devido da razão”.
É o pré-requisito necessário para “renovar o entendimento”.
Neste livro usaremos uma metodologia pressuposicional, chamada “apologética através da cosmovisão”. Isso quer dizer que iremos afirmar um argumento a favor do cristianismo e atacar o sistema dos incrédulos através de uma comparação entre ambos. Afirmaremos que a Bíblia tem que ser pressuposta como a Palavra de Deus sem erro, se o ser humano pretende chegar ao conhecimento da verdade, e não reduzir toda a sua vida a um caos epistemológico. Como aprendemos nas obras de Francis Schaeffer, nossa abordagem sobre o assunto terá muito em comum com o pressuposicionalismo, embora também usemos as contribuições dos evidencialistas.14 A fé buscando com preensão Neste contexto, devemos mencionar as contribuições de Anselmo de Cantuária, em suas formulações da prova da existência de Deus, conhecidas como argumento ontológico. Ele obteve esse argumento numa experiência de iluminação, quando cantava no ofício vespertino com os demais monges em Bec, em 1076.15 Estes monges lhe pediram que fornecesse uma explicação das crenças básicas da fé cristã, e ele estava contemplando a existência de Deus, meditando sobre o motivo por que o salmista diz no Salmo 14: “Diz o insensato no seu coração:
14Francis Schaeffer propôs um método híbrido, quando mostrou como os elementos evidencialistaepressuposicionalista podem trabalhar em conjunto na evangelização. Cf. Nancy Pearcy, Verdade absoluta, p. 349, 351-355. 15Cf. Roger Olson, História da teologia cristã, p. 323-332.
16
I PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Não há Deus”. Anselmo quis entender por que o ateísmo era irracional. E estava curioso para saber se seria possível desenvolver uma prova lógica e irrefutável da existência de Deus que não dependesse das Escrituras.16 Essa meditação deu origem a dois livros, Monológio e Proslógio, escritos em 1076 e 1078.17 Os monges sugeriram um método de investigação ao qual Anselmo procurou se manter fiel: sem apelar para as Escrituras ou para outros autores cristãos, ele deveria fornecer uma defesa das verdades da fé marcada por simplicidade e clareza lógica. As duas obras são escritas em forma de oração dirigida a Deus. Com elas, Anselmo deixou claro que não estava em dúvidas nem buscava entendimento para poder crer em Deus. Ele escreveu no Proslógio: Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem a fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas, ela está tão apagada em minha mente por causa dos vícios, tão embaciada pela névoa dos pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a fizeste, caso tu não a renoves e a reformes. Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco compreender para crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreender.18 O método teológico de Anselmo era uma tentativa de colocar a razão a serviço da revelação para fortalecer a fé: crer para poder compreender (Credo ut intelligam). Anselmo ofereceu pelo menos duas versões diferentes da explicação da existência de Deus. A primeira acha-se em Monológio — que é, na realidade, um argumento indutivo do efeito para a causa, que é Deus. Ele começa perguntando: “[Deve-se acreditar] que existe um ser único pelo qual, somente, são boas todas as coisas que são boas, ou ao contrário, algumas delas são boas por um motivo e, outras, por outro motivo?”19 Ele busca sustentar que a existência de Deus é necessária por causa dos diferentes graus de bondade na criação: “Sendo, portanto, certo de todas as coisas, quando comparadas entre si, apresentam-se boas no mesmo grau ou em grau diferente, é necessário que elas sejam boas por um ‘algo’ que é o mesmo em todas, embora às vezes pareçam sê-lo umas por um motivo e, outras, por outro”.20 Em seu entendimento, sem um padrão objetivo e perfeito de bondade, não haveria como distinguir entre o que é melhor e o que é pior. Ele afirmou que o “único bem supremo só será, portanto, aquele que é soberanamente bom por si”.21 Logo, é ao soberano bem que se deve atribuir maior grandeza. Ele então conclui que “o que é soberanamente bom também é soberanamente grande”.22 Somente crendo “[em] alguma coisa
16Santo Anselmo, Monológio, Prólogo: “Alguns irmãos de hábito pediram-me muitas vezes e com insistência para transcrever, sob forma de meditação, umas idéias que lhe havia comunicado em conversação familiar, acerca da essência divina e outras questões conexas com esse assunto. (...) estabeleceram o método seguinte: sem, absolutamente, recorrer, em nada, à autoridade das Sagradas Escrituras, tudo aquilo que fosse exposto ficasse demonstrado pelo encadeamento lógico da razão, empregando argumentos simples, com um estilo acessível, para que se tornasse evidente pela própria clareza da verdade.” 17Cf. Santo Anselmo, Monológio, Proslógio, A verdade, O gramático; e Pedro Abelardo, Lógica p ara principiantes e A história das minhas calamidades. {Os pensadores). 18Santo Anselmo, Proslógio, I. 1‘'Santo Anselmo, Monológio, I. 20Santo Anselmo, Monológio, I. 21Santo Anselmo, Monológio, I. “ Santo Anselmo, Monológio, I.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
17
que é soberanamente grande, vale dizer, sumamente superior a todas as outras que existem”, os seres humanos podem ser capazes de discernir e acreditar de fato em diferentes graus de bondade na criação.23 Sem um padrão objetivo e perfeito de bondade, não haveria como distinguir entre o que é melhor e o que é pior: “Tudo o que é útil e honesto, se realmente é bom, é bom por aquilo pelo qual é bom tudo o que é bom”.24 Anselmo partiu do pressuposto que as pessoas são capazes de distinguir o bem maior do menor. E essas afirmações não poderiam ser objetivas se Deus não existisse. Daí ele afirmar que exista uma natureza “que é boa e grande por si, que é o que é por si, e pela qual existe a bondade e a grandeza e tudo o que há; e ela é o bem supremo, a grandeza suprema, o ser soberano ou subsistente, isto é, o ser por excelência entre todos os seres”.25 Somente um ser como se acredita que Deus seja poderia fornecer um padrão de bondade. Anselmo não ficou satisfeito com sua versão do argumento ontológico da existência de Deus. Por isso, em Proslógio — que é um argumento dedutivo da existência de Deus — ele apresentou uma segunda versão que se estabeleceu como o argumento definitivo. Anselmo começa, em oração, com a afirmação: “Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior”.26 Esta confissão sustenta todo o argumento de Anselmo. Se não concordarmos que Deus, cuja existência Anselmo está tentando demonstrar, pode ser considerado “o ser do qual não se pode pensar nada maior”,27 o argumento falhará. Como Roger Olson nota, esta não é uma descrição detalhada de Deus, mas, no mínimo, a palavra “Deus” deve incluir esta definição. Anselmo queria provar que existir na realidade além do entendimento é melhor do que existir apenas na mente, como um pensamento: O insipiente [insensato] há de convir igualmente que existe na sua inteligência “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência. Mas “o ser acima do qual não se é possível pensar nada maior” não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse somente na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, “o ser do qual não é possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tomar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, “o ser do qual não se pode pensar nada maior” existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade.28 Anselmo explicou a questão central do argumento: se Deus é tão grande que não se pode conceber nada maior, então não se pode dizer que ele não existe, pois “aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente”.29 Se alguém puder conceber um ser maior do que qualquer outro que possa ser concebido, então terá de admitir que esse ser realmente existe; caso contrário, poderia
23Santo Anselmo, Monológio, I. 24Santo Anselmo, Monológio, I. 25Santo Anselmo, Monológio, III. 26Santo Anselmo, Proslógio, II. 27Santo Anselmo, Proslógio, IV. 2SSanto Anselmo, Proslógio, II. 29Santo Anselmo, Proslógio, II.
18
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
conceber um outro ser ainda maior e que existisse de fato. Portanto, quem nega a existência de Deus é um tolo, porque está tentando negar o próprio ser acima do qual não é possível pensar nada de maior, que necessariamente existe e cuja existência está contida em sua definição. O que acabamos de dizer é tão verdadeiro que nem é possível sequer pensar que Deus não existe. Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, não seria “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, o que é ilógico.30 Anselmo concluiu: “Existe, portanto, verdadeiramente ‘o ser do qual não se é possível pensar nada maior’; e existe de tal forma que nem sequer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu”.31 Ele estava preocupado em demonstrar que o Deus que criou toda a realidade, inclusive a mente humana, tornou impossível negar sua existência sem abandonar a lógica. Ao final do argumento, Anselmo declarou: “Então, por que o insipiente [tolo] disse em seu coração: ‘Não existe Deus’, quando é tão evidente à razão humana que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio”.32 Como Olson destaca, para Anselmo, a lógica, em seu melhor uso, aponta para Deus, sendo um sinal de transcendência, um vínculo entre os nossos pensamentos e os de Deus. No fim, segundo Anselmo, o tolo, ao negar a existência de Deus, assume uma posição irracional e ilógica. Ele conclui: Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por ter-me permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão, aquilo em que, antes, acreditava pelo dom da fé que me deste. Assim, agora, encontro-me na condição em que, ainda que não quisesse crer na tua existência, seria obrigado a admitir racionalmente que tu existes.33 O argumento ontológico tem sido debatido por filósofos e teólogos através dos séculos, e não cabe aqui seguir o curso desse debate. No entanto, vale ressaltar que no século xx, Karl Barth argumentou, num importante estudo sobre a obra de Anselmo, que a intenção deste não era comprovar a existência de Deus somente através da razão, sem qualquer apelo à experiência e à Escritura. Seu argumento visava demonstrar que, usando da racionalidade, não podemos negar o Deus vivo, uma vez que saibamos quem ele é — o ser mais perfeito que existe. O objetivo desse exercício não era descobrir provas racionais e objetivas para o que acreditamos pela fé. O alvo é entender em profundidade a natureza dessa experiência.34 O que precisa ser destacado é que o método teológico de Anselmo era uma tentativa de colocar a lógica a serviço da revelação para fortalecer a fé. Como notamos acima, tratava-se de crer para poder compreender. Esta abordagem à fé cristã foi
30Santo Anselmo, Proslógio, III. 31Santo Anselmo, Proslógio, III. 32Santo Anselmo, Proslógio, III. 33Santo Anselmo, Proslógio, III. 34Cf. Karl Barth, Fé em busca de compreensão; fides quaerens inielecctum.
■
A CO NSTR UÇÃO DA COSM OVISÃO CRISTÃ
19
compartilhada pelos reformadores, pelos puritanos e pela tradição evangélica até os dias atuais. Foi uma de suas principais contribuições para a história da teologia cristã e será o pressuposto controlador que seguiremos nesta obra. 0 Credo dos Apóstolos com o pressuposto cristão É necessário considerarmos com um pouco mais de atenção o conteúdo da fé que busca compreensão. Desde cedo, a igreja cristã afirmou o conteúdo do “cristianismo puro e simples”, as afirmações mais básicas e distintivas da fé cristã, no assim chamado Credo dos Apóstolos. Este documento surgiu, em grande medida, como resposta à exigência que as Escrituras fazem aos cristãos para que confessem sua fé de forma clara e simples. No que se refere ao Antigo Testamento, Gerhard Von Rad chamou nossa atenção para a importância das confissões de fé na história de Israel.35 Em textos como Êxodo 15.1-18, Deuteronômio 26.5-9 e Josué 24.2-13, os filhos de Israel celebraram o que o Senhor tinha feito por eles. Semelhantemente numerosos salmos enfatizam a ação de Deus (por exemplo, o Salmo 136) e exortam o cristão a “proclamar a bondade do S enhor ” (S I 40.9-10; 89.1-2; 96.1-10; 145.1-7). No Novo Testamento encontramos, freqüentemente, as palavras “confessar” (Ô|1oXoybo.) [,homologeõ]) e “confissão” (ófXoXoyía [homologia]). Como pode ser visto, a confissão de fé é um ato comunitário (2Co 9.13), mas, além disso, é requerido um ato individual de cada fiel: o ato de confessar a Jesus (Mt 10.32-33; Rm 10.9-10). Isto é algo que deve ser feito corajosamente, contudo pode ter um custo elevado (Jo 9.22; 12.42). Enfatiza-se que essa confissão começa com os lábios, mas tem que ser demonstrada ativamente (Tt 1.16). O cristão deve manter firme sua confissão para evitar se afastar da fé em meio ao sofrimento (Hb 3.1,12-13; 4.14; 10.23). Como vimos, segundo Anselmo, a genuína tarefa teológica “esforça-se, com fé, para entender e, com entendimento, para crer”. Mas, onde encontramos o conteúdo que esta fé busca compreender? Desde cedo, os cristãos resumiram este conteúdo da fé no Credo dos Apóstolos. Então, a expressão latina credo (creio) é “uma fórmula fixa que sumaria os artigos essenciais da religião cristã e que goza de sanção eclesiástica”, havendo indicações claras de que, já no Novo Testamento, aparecem fragmentos de credos, estabelecidos no contexto da pregação da igreja, em sua adoração e em sua defesa contra o paganismo.36 Podemos ver no Novo Testamento credos cristológicos, com uma única cláusula, em ICoríntios 15.3-4, Romanos 1.3, 8.34, Filipenses 2.5-11, ITimóteo 3.16, 2Timóteo 2.8,
35Ainda que destacasse o caráter confessional do Antigo Testamento, deve ser salientado que Von Rad “não somente negou qualquer fundamento histórico genuíno para a confissão de fé que Israel tinha em Javé, como também mudou o objeto do estudo teológico de uma focalizaçâo sobre a Palavra de Deus para os conceitos religiosos do povo de Deus. Para Von Rad, não havia a necessidade de fundamentar o querigma da crença em qualquer realidade objetiva, ou qualquer história como evento. (...) O Antigo Testamento não possuía qualquer eixo central ou continuidade de um plano divino; pelo contrário, continha uma narrativa de como o povo lia religiosamente a sua própria história, sua tentativa de tornar reais e apresentar eventos e narrativas mais antigos”. O objeto e enfoque da teologia do Antigo Testamento “foi mudado da história como evento e da Palavra como revelação para uma abordagem tipo história-da-religião [Religionsgeschichte]”. Cf. Walter C. Kaiser, Jr., Teologia do Antigo Testamento, p. 6-7. Isto, a despeito de Von Rad, como ele afirma no final de sua Teologia do Antigo Testamento, entender que o Antigo Testamento tem que ser interpretado a partir de Cristo, e que necessitamos do Antigo Testamento para compreender a Cristo. 36M. E. Oserhaven, “Regra de fé.” In: Walter A. Elwell (ed.), op.cit., v. 3, p. 260. Cf. também R. P. Martin “Credo.” In: J. D. Douglas (ed.), O novo dicionário da Bíblia, v.I, p. 342-343.
20
[ PA R TE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
IPedro 3.18ss e 1João 4.2, 15; fórmulas binitárias, em ICoríntios 8.6 (que pode ser uma versão cristianizada do credo judaico conhecido como Shema, baseado em Deuteronômio 6.4ss), ITimóteo 2.5ss; 6.13 e 2Timóteo 4.1; e fórmulas trinitárias, em ICoríntios 12.4ss, 2Coríntios 1.21 ss, 2Coríntios 13.13, IPedro 1.2, Mateus 28.19 e em lJoão 5.7ss, passagem esta que não se encontra nos manuscritos mais reconhecidos do Novo Testamento.37 A forma integral do que conhecemos hoje como Credo dos Apóstolos teve sua origem em torno dos séculos v a vn, na Gália. Entretanto, partes dele se acham nos escritos cristãos que datam do segundo século. Na tabela abaixo temos o texto final do credo, quais pressupostos cristãos são deduzidos dele e como influenciam a interpretação bíblica: Credo Apostólico
Pressupostos cristãos
Influência sobre a leitura da Bíblia
Creio em Deus, o Pai onipotente, Criador do Céu e da Terra.
a. Deus é um ser infinito e pessoal, trino, que criou o homem à sua imagem, para se relacionar com ele. b. Deus criou todas as coisas ex nihilo, e toda a criação é boa. c. Deus ama aquilo que criou. d. A ética é revelada, sua base não está no homem, mas em Deus.
a. O cristianismo é centrado em Deus; ênfase na soberania de Deus. A fé buscando entendimento. b. Espiritualidade integral e culto integral. Toda a criação é boa. c. Intimidade, não religiosidade. Sem que haja mérito em nós, Deus nos 1’ez seus filhos. Isso coloca todos os cristãos em igualdade, exigindo humildade e amor para com o próximo em Cristo.
E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, no terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu aos céus, está sentado à destra de Deus, o Pai onipotente, donde há de vir para julgar os vivos e os mortos.
a. Jesus é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. b. Sua humilhação e exaltação ocorreram em nossa história. c. Tanto a cruz quanto a ressurreição são elementos centrais da fé cristã.
a. O sacrifício de Jesus é único e perfeito, capaz de aplacar a ira de Deus ante o pecado. b. Os seres humanos foram criados bons, mas por causa da queda, a imagem de Deus tornouse danificada: por meio da obra de Jesus Cristo, Deus redime seu povo eleito.
Creio no Espírito Santo, na santa igreja católica [cristã], na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém.
a. A igreja é uma comunidade mantida e sustentada pelo Espírito Santo. b. Para cada pessoa, a morte é a porta tanto para a vida com Deus e seu povo, como para a eterna separação do único que pode preencher nossas aspirações mais profundas. c. Ressurreição: homem integral d. Esperança escatológica
a. Por causa da queda, o homem não é mais o que foi um dia. Só pelo Espírito Santo, a imagem de Deus no pecador pode ser restaurada. b. Somos chamados para viver em comunidade. c. A ressurreição exclui a reencamação: a morte não é o fim; ela representa uma porta para a eternidade: com Deus ou sem Deus. d. A história é linear, uma seqüência significativa de eventos que ocorrem para o cumprimento dos propósitos de Deus para a criação: a volta em glória de Cristo.
37Para o uso de credos e confissões no culto na igreja primitiva, cf. Ralph P. Martin, op.cit., p. 63-75.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
21
O credo afirma claramente o caráter trino de Deus, a encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo, sua morte, ressurreição e ascensão, a igreja como criação do Espírito Santo, o perdão dos pecados, a ressurreição do corpo e a vida eterna.38 Os pais da igreja tinham consciência da futilidade de argumentar com os hereges com base somente nas Escrituras, cujo significado eles podiam torcer — como de fato freqüentemente torciam. Por isso eles apelaram ao credo, não só como resumo dos temas centrais da Escritura, mas como conteúdo mais básico dos pressupostos cristãos, que tinha sido preservado intacto na igreja desde os dias dos apóstolos. Neste caso, não se trata de subordinar as Escrituras à tradição, mas oferecer uma declaração sucinta dos pressupostos, sobre a qual não poderia haver debate algum. Então, ainda que sejam as Escrituras que dêem forma ao credo, serão os temas básicos deste documento que irão controlar nosso estudo das Escrituras.
A teologia sistemática O que é a teologia sistemática? Esta pergunta é o assunto deste livro. A teologia sistemática é uma elaboração da cosmovisão cristã baseada na Bíblia. Nem todos os aspectos da cosmovisão cristã serão desenvolvidos neste livro, mas os temas principais sim. Como disciplina a teologia sistemática tem recebido ao longo da história diversos nomes, tais como: Summa Theologica (Tomás de Aquino), Loci Communes (Felipe Melanchthon), Loci Theologici (Martin Chemnitz), Medulla Theologica (William Ames), Loci Communes Theologici (Johann Gerhard), “Doutrina Cristã” (William Conner), “Dogmática da Igreja” (Karl Barth), “Dogmática Reformada” (Herman Bavinck e Herman Hoeksema), “Teologia Dogmática” (Lukas Reinhard), “Dogmática Cristã” (Cari Braaten e Robert Jenson), “Religião Cristã” (João Calvino), “Teologia Sagrada” (Abraham Kuyper) e “Teologia Cristã” (Millard Erickson). Todavia, a designação teologia sistemática tem prevalecido (Charles Hodge; A. A. Hodge; Louis Berkhof, Paul Tillich) e será por nós empregada.39 No contexto da fé cristã, a teologia não é o estudo de Deus como algo abstrato, mas é o estudo do Deus pessoal revelado na Bíblia. Necessariamente isso inclui tudo o que é revelado sobre Deus, suas obras e relações com as criaturas.40 O estudo da teologia é diferente do estudo da religião. O estudo da religião inclui todas as religiões mundiais e seitas, e usa várias metodologias: sociologia, antropologia, história, psicologia, etc. A teologia é mais especializada, sendo ela o estudo das doutrinas ou temas que os adeptos de uma determinada religião crêem. Existem vários tipos de teologia, cada um com a sua própria metodologia. A teologia sistemática depende das pesquisas e dos resultados das outras áreas e sua metodologia requer
38A s principais funções do credo eram ser uma confissão de fé para candidatos ao batismo, um esboço de um ensino catequético, um guarda contra as heresias e confirmação no culto. As igrejas da Reforma do século xvi prestaram testemunho a este documento antigo, ao acrescentarem-no às suas confissões e catecismos e ao usaremno em seus cultos. 39Cf. Cari E. Braaten, “Prolegômenos à dogmática cristã.” In: C. Braaten e Robert W. Jenson (eds), Dogmática cristã, v. I, p. 49-62. Cf. Hermisten Maia Pereira da Costa, Teologia sistem ática; prolegômena, p. 68-79. 40Cf. Hermisten Maia Pereira da Costa, Teologia sistemática-, prolegômena, p. 71: “Mesmo permanecendo no sentido etimológico, a concepção não é unívoca. Isto porque podemos conceber a teologia como Deus falando de si mesmo (o conhecimento que Deus tem de si mesmo) ou o homem falando de Deus (o conhecimento que temos a respeito de Deus); ambas as interpretações são possíveis”.
22
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
a capacidade de aproveitá-los. Portanto, antes de definir a teologia sistemática, precisamos olhar as demais áreas da teologia. Estas áreas podem ser definidas em três contextos:
Ao abordar o contexto histórico, o teólogo emprega o método da teologia histórica, ou seja, o estudo das doutrinas durante os séculos. Este método é um ponto de partida importante porque em dois mil anos um grande número das possibilidades foi examinado. Pelo estudo da formulação das doutrinas e do pensamento de teólogos importantes podemos aprender quais são as perguntas importantes a serem abordadas. O contexto bíblico é elaborado através de teologia bíblica.41 A Bíblia é a fonte maior da teologia sistemática e é sempre a autoridade final. A Bíblia deve ser estudada para verificarmos qual é a posição verdadeira entre as escolhas possíveis. A Bíblia terá a resposta certa. As ferramentas de hermenêutica, as línguas originais, etc. devem ser usadas para chegarmos às conclusões corretas. O teólogo sistemático depende do fruto do trabalho dos especialistas do Antigo e do Novo Testamento. O contexto atual pode ser estudado de várias maneiras; todas as que forem úteis para o teólogo. A teologia filosófica lida com a questão de Deus a partir da ótica da filosofia. Nesta área não estamos interessados em construir uma teologia filosófica como o fazem os liberais. Eles tratam a teologia sistemática como se fosse somente mais um sistema metafísico a ser discutido. A teologia sistemática pode ser apenas mais uma filosofia, tal como o existencialismo, o humanismo, etc. Nosso interesse na teologia filosófica está nas perguntas que a filosofia contemporânea levanta. Queremos responder a essas perguntas, a partir da fé cristã histórica, mas sempre com um alvo prático. O contexto atual também exige que o teólogo esteja familiarizado com disciplinas tais como sociologia, psicologia e antropologia. Essas disciplinas são ferramentas para ajudar na
41George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento, p. 38, traz a seguinte definição de teologia bíblica: “A teologia bíblica é a disciplina que estrutura a mensagem dos livros da Bíblia em seu ambiente formativo histórico. A teologia bíblica é primariamente uma disciplina descritiva, cuja abrangência não busca primeiramente o significado final dos ensinos da Bíblia ou sua relevância para os dias atuais, uma tarefa que cabe à teologia sistemática. A tarefa da teologia bíblica é expor a teologia encontrada na Bíblia em seu contexto histórico, com seus principais termos, categorias e formas de pensamento. O propósito óbvio da Bíblia é contar a história a respeito de Deus e de seus atos na história para a salvação da humanidade.”
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
23
interpretação e compreensão da sociedade e na identificação das necessidades das pessoas. Queremos formular nossa teologia numa linguagem pertinente aos problemas e às necessidades atuais. O pastor precisa estar consciente da cultura ao seu redor, para que não responda perguntas que ninguém está fazendo e não pregue uma mensagem irrelevante. Assim, ele poderá elaborar com êxito uma teologia prática, que é a aplicação dos resultados da teologia sistemática à vida atual. Esta teologia prática abrange a homilética, o aconselhamento pastoral, a educação religiosa e outras disciplinas relevantes. Existe uma relação lógica entre esses três contextos na metodologia da teologia sistemática como é tradicionalmente apresentada. Embora esta seja uma boa maneira de expressar logicamente os resultados do estudo da teologia sistemática, devemos ter em mente que ela é feita num processo de interação constante entre esses três contextos, e não isoladamente. Definições de teologia sistem ática À luz deste processo, podemos agora definir a teologia sistemática. Charles Hodge escreveu: E importante que o teólogo conheça seu lugar. Ele não é senhor da situação. Ele não pode construir um sistema teológico com vistas a adequar sua fantasia, mais do que o astrônomo não pode ajustar o mecanismo dos céus segundo sua própria vontade. Como os fatos da astronomia se organizam em determinada ordem, e não admitirão nenhuma outra, assim se passa com os fatos da teologia. Teologia, portanto, é a exposição dos fatos da Escritura em sua ordem própria e relação, com os princípios ou verdades gerais envolvidos nos próprios fatos, os quais complementam e se harmonizam como um todo.42 Herman Bavinck apresenta a seguinte definição: “A teologia é a ciência que extrai o conhecimento de Deus de sua revelação, que estuda e pensa sobre ela sob a orientação do Espírito Santo e então, tenta descrevê-la de forma a honrar a Deus.”43 Bruce Demarest escreve: A teologia sistemática, portanto, começa com a revelação divina na sua totalidade, aplica a mente iluminada pelo Espírito para compreender a revelação, extrai os ensinamentos das Escrituras através de uma exegese histórico-gramatical, respeita provisoriamente o desenvolvimento da doutrina na igreja, coloca os resultados em ordem num conjunto coerente, e aplica os resultados a todo campo do esforço humano.44 Wayne Grudem afirma: “Teologia sistemática é qualquer estudo que responda à pergunta ‘O que a Bíblia como um todo nos ensina hoje?’ acerca de qualquer tópico.”45 Recentemente Robert Reymond ofereceu a seguinte definição: Como a própria palavra sugere, “teologia” (...) em seu sentido mais amplo fala de um discurso intelectual ou racional (“debatido”) acerca de Deus ou de coisas divinas.
42Charles Hodge, Teologia sistemática, p. 14. 43Herman Bavinck, Teologia sistemática, p. 32. ‘’'Bruce A. Demarest, “Teologia sistemática.” In: Walter A. Elwell (ed), Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã, v. 3, p. 515. 45Wayne Grudem, Teologia sistemática, p. 1.
24
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Por “teologia sistemática” (...) eu recorro à disciplina que responde à questão: “O que nos ensina a Bíblia sobre um determinado tópico?” Colocado de forma mais técnica, teologia sistemática é aquele estudo metodológico da Bíblia que vê as Escrituras Sagradas como um todo, uma revelação completa, diferentemente de disciplinas como a teologia do Antigo Testamento, a teologia do Novo Testamento e a teologia bíblica que abordam as Escrituras por partes, como uma revelação desdobrada. Assim, o teólogo sistemático, enquanto vendo as Escrituras como uma revelação completa, busca entender integralmente o plano, propósito e intenção didática da mente divina revelada nas Escrituras Sagradas, e organizar aquele plano, propósito e intenção didática de forma coerente e bem organizada como artigos da fé cristã.46 A definição de John Hammett é muito boa porque expressa os vários elementos da tarefa da teologia sistemática: Teologia sistemática é aquela disciplina que tenta dar uma exposição coerente das doutrinas da fé cristã, baseada principalmente nas Escrituras, falando às perguntas e questões da cultura e época em que ela existe, com aplicação à vida pessoal do teólogo e outros.47 Há alguns aspectos im portantes nesta definição: 1. A teologia sistemática deve oferecer uma exposição coerente: a tarefa da teologia sistemática é construir um sistema. A teologia sistemática trata das doutrinas da Bíblia, através do exame do que a Bíblia inteira diz sobre aquela doutrina. Também mostra como as doutrinas da Bíblia se relacionam logicamente. Então, a partir dos dados da Bíblia, uma cosmovisão é construída e comunicada. Esta cosmovisão abrange todas as áreas da vida que são tocadas pela própria Bíblia. Neste sentido, a teologia sistemática é uma teologia abrangente. 2. Baseada nas Escrituras: a teologia sistemática procura ser abrangente, mas não vai além do que está dito na Bíblia. Pretende evitar a especulação, a não ser que o próprio teólogo admita que ele está fazendo especulação. Porém, o teólogo precisa evitar a tentação de atribuir às suas próprias especulações uma autoridade igual à Bíblia. 3. A teologia sistemática sempre tem um alvo prático: embora precise tratar com questões abstratas e complicadas, o teólogo deve sempre mostrar a diferença que as suas conclusões fazem na vida cotidiana. Uma vez perguntaram a Francis Schaeffer o que ele faria se, de repente, surgisse evidência conclusiva de que a fé cristã fosse falsa. Ele respondeu que ainda assim seria um teólogo, porque é o melhor jogo que existe.48 É claro que, no seu ministério, Schaeffer não tratou a teologia como se fosse um jogo. Ele fez uma ironia com a teologia liberal. Mas a verdade é que, infelizmente, muitas pessoas tratam a teologia como se fosse um jogo, embora essa atitude seja uma perversão do propósito da teologia cristã. A teologia não é um jogo. Ela existe para que possamos conhecer, obedecer e amar a Deus melhor. Aquele que acha que pode ser um teólogo teórico, protegido na academia, distante do povo, está redondamente enganado. Quem não faz teologia tendo em mente as necessidades do povo nos bancos da igreja não é um teólogo cristão de verdade. O fato de que quase todos os teólogos de maior influência na história da igreja também eram pastores é revelador. ■
46Robert Reymond, A new systematic theology o f the Christian faith, p. xxv-xxvi. 47John S. Hammett, Apostila p a ra os alunos de teologia sistemática, p. 1-2. 48Essa história foi contada a um dos autores por R. K. McGregor Wrighl, que estudou com Schaeffer em L’Abri, em 1969.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
25
Mas alguém poderia perguntar: Por que as Escrituras têm que ser estudadas sistematicamente? Por que devemos tentar relacioná-las e harmonizá-las? Charles Hodge oferece algumas respostas: [1] Tal é a constituição da mente humana que ela não consegue empreender a sistematização e conciliação dos fatos que ela própria admite ser verdadeiros. Em nenhuma esfera do conhecimento os homens têm ficado satisfeitos com a posse de uma massa de fatos indigestos. E dos estudiosos da Bíblia tampouco se pode esperar que fiquem satisfeitos. Portanto, existe uma necessidade para construir sistemas teológicos. Disso a história da Igreja oferece abundante prova. Em todas as épocas, e entre todas as denominações, tem se produzido tais sistemas. [2] Tem sido obtido, portanto, conhecimento de um tipo muito mais elevado do que por mero acúmulo de fatos isolados. Por exemplo, uma coisa é saber que os oceanos, os continentes, as ilhas, as montanhas e os rios existem na face da terra; outra muito mais elevada é conhecer as causas que têm determinado a distribuição de terra e água na superfície de nosso globo; a configuração da terra; os efeitos dessa configuração sobre o clima, sobre as espécies de plantas e animais, sobre o comércio, a civilização e o destino das nações. É identificando essas causas que a geografia emergiu de uma coleção de fatos para uma ciência altamente importante e elevada. De igual modo, sem o conhecimento das leis de atração e movimento, a astronomia seria uma confusão e ininteligível coleção de fatos. O que é verdadeiro em relação a outras ciências é verdadeiro em relação à teologia. Não podemos saber o que Deus revelou em sua Palavra a menos que entendamos, pelo menos numa medida plausível, a relação em que as verdades dispersas nela compreendidas mantém umas com as outras. Solucionar o problema concernente à pessoa de Cristo, isto é, ajustar e produzir um arranjo harmonioso de todos os fatos que a Bíblia ensina sobre esse tema, custou à Igreja séculos de estudo e controvérsia. [3] Não temos escolha nessa matéria. Se desempenharmos nosso dever como mestres e defensores da verdade, devemos envidar esforços em trazer todos os fatos da revelação a uma ordem sistemática e a uma relação mútua. Somente assim podemos satisfatoriamente exibir suas verdades, defendê-las das objeções ou apresentá-las para que se disseminem, na plenitude de sua força, na mente dos homens. [4] Essa evidentemente é a vontade de Deus. Ele não ensina astronomia nem química aos homens, mas lhes fornece os fatos dos quais essas ciências são construídas. Tampouco ele nos ensina teologia sistemática, mas nos exibe na Bíblia verdades que, apropriadamente entendidas e organizadas, constituem a ciência da teologia. Como os fatos da natureza se acham todos relacionados e determinados pelas leis físicas, da mesma forma os fatos da Bíblia se acham todos relacionados e determinados pela natureza de Deus e de suas criaturas. E como ele quer que os homens estudem suas obras e descubram sua portentosa relação orgânica e harmoniosa combinação, assim sua vontade é que estudemos sua Palavra, e aprendamos que, como os astros, suas verdades não são pontos isolados, mas sistemas, ciclos e epiciclos, numa infindável harmonia e grandeza. Além de tudo isso, embora as Escrituras não contenham um sistema de teologia como um todo, temos nas Epístolas do Novo Testamento porções desse sistema a ser elaborado por nossas mãos. Elas são nossa autoridade e guia.49 Assim, a teologia sistemática é uma reflexão interpretativa e sistematizada da Palavra, tendo como meta a compreensão e sistematização de toda a doutrina cristã, sendo, portanto, uma disciplina normativa que assume um compromisso primário com Deus e com a sua verdade revelada.
49Charles Hodge, Teologia sistemática, p. 1-2.
26
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
A importância da teologia sistemática 0 A atitude antiintelectual, característica da pós-modemidade, apresenta um desafio a qualquer tentativa de desenvolver uma cosmovisão abrangente e completa. Por vezes as pessoas criadas na cultura pós-modema questionam a necessidade de construir sistemas teóricos como a teologia sistemática, por causa do seu pragmatismo. Por isso vários teólogos, em anos recentes, têm escrito justificativas para a tarefa da teologia sistemática.51 Uma vez que o propósito da teologia é trabalhar com a verdade de Deus, o cristão nem deve precisar de outra justificativa além dessa. Mas a realidade é que muitos cristãos, influenciados pela cultura secular, não entendem a necessidade da teologia. Portanto, queremos examinar algumas das razões mais importantes por que a igreja deve apoiar o trabalho teológico e aproveitar os seus resultados. Deve ficar claro agora que a teologia é absolutamente essencial na vida do cristão, para que ele possa ter uma cosmovisão correta e viver a sua vida de maneira a agradar a Deus. Por que a doutrina é importante? Em primeiro lugar, o próprio Jesus disse que a salvação depende de se ter a doutrina correta sobre a sua pessoa. João 8.24 diz: “Por isso, eu vos disse que morrereis em vossos pecados; porque, se não crerdes que eu sou, morrereis nos vossos pecados”. Quem nega a divindade de Cristo não pode ser salvo. É claro que a salvação não é apenas questão de doutrina correta, mas a doutrina correta sobre os pontos básicos da fé cristã é essencial. Paulo também disse: “Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja anátema” (G 11.9). Ele estava tratando da doutrina da justificação pela graça por meio da fé, sobre a qual deu uma exposição muito mais detalhada em sua Epístola aos Romanos. Essa doutrina é que define a natureza da salvação em Jesus Cristo. Ela é a linha que divide a fé verdadeira das crenças das seitas e religiões não-cristãs. É ela que também estabelece a divisão entre a fé da Reforma e a fé da igreja católica. A importância de se crer corretamente nesta doutrina não pode ser subestimada na pregação e na vida de nossas igrejas. A eternidade das pessoas está em jogo. Por isso a teologia é essencial. É ela que esclarece o ensino bíblico sobre este e outros assuntos de grande relevância para a nossa fé. Em segundo lugar, é preciso combater a idéia equivocada de alguns pastores, os quais acreditam que, uma vez que saíram do seminário, não mais precisam estudar teologia, e muito menos incluir a teologia sistemática em sua pregação e ensino na igreja. O pressuposto de que o cristão simples não está interessado em teologia é bem comum entre os pastores. Dizem que é preciso pregar sermões práticos e pertinentes (como se a teologia que surge da Palavra de Deus não fosse prática ou pertinente) em vez de sermões teóricos. Mas toda prática é a prática de alguma teoria, e se ignorarmos a teoria, com certeza nossa prática vai ser errada. Faríamos bem em prestar atenção ao que Karl Barth escreveu: Não existe ser humano que, de forma consciente, inconsciente ou subconsciente, não tenha o seu Deus ou os seus deuses, como sendo objeto de sua ambição ou de sua confiança mais sublime, como sendo base de seu comprometimento mais profundo. Em decorrência deste fato, qualquer ser humano é teólogo. Não há nem religião, nem filosofia, nem cosmovisão que, seja profunda ou superficial, não se relacione com alguma divindade, interpretada ou circunscrita desta ou daquela forma, e que, portanto, não tenha aspectos de teologia.52 ■
50A discussão aqui segue em linhas gerais a exposição encontrada em Hermisten Maia Pereira da Costa, Teologia sistem ática; prolegômena, p. 82-107. 51Cf. por exemplo Gordon Clark, In defense o f theology e Alberto F. Róldan, P ara que serve a teologia? 52Karl Barth, Introdução à teologia evangélica, p. 9.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
27
O fato é um só: todos os cristãos já são teólogos. Portanto, só nos resta fazer uma única pergunta: será que são teólogos bons ou ruins? No pensamento popular existe a idéia de que há uma distinção entre a cabeça, como se esta fosse a sede do intelecto, e o coração, como se este fosse a sede das emoções. Costuma-se dizer que a fé verdadeira é algo relacionado ao coração e não apenas à cabeça. Muitas pessoas, inclusive muitos evangélicos, acreditam que fé é irracional, que é oposta ao conhecimento. A fé é vista como se fosse algo centrado somente nas emoções. Contudo, a Bíblia não apóia tal interpretação. A Bíblia não faz essa distinção entre a cabeça e o coração. Fé na Bíblia é algo racional. A fé não é alicerçada nas emoções. Na Escritura, o coração é usado como metáfora para a sede da vida espiritual e intelectual do ser humano, para a natureza íntima da pessoa. O coração significa a pessoa em sua totalidade (SI 22.26,27; 73.26; 84.2,3). É a sede da reverência e da adoração (ISm 12.24; Jr 32.40). O coração também é a sede das emoções, seja de alegria (Dt 28.47) ou de dor (Jr 4.19), da tranqüilidade (Pv 14.30) e da raiva (Dt 19.6). No entanto, é ainda a sede do entendimento e do conhecimento, e dos poderes racionais (lR s 3.12; 4.29), bem como de fantasias e visões (Jr 14.14). Por outro lado, a insensatez (Pv 10.20-21) e os maus pensamentos também operam no coração. A vontade tem sua origem no coração, como também a intenção bem ponderada (lR s 8.17) e a decisão que está pronta a ser colocada em ação (Êx 36.2). Os pensamentos maus vêm do coração (Mc 7.21, Mt 15.19); desejos vergonhosos habitam no coração (Rm 1.24); o coração é desobediente e impenitente (Rm 2.5, 2Co 3.14-15); duro e infiel (Hb 3.12); embotado e escurecido (Rm 1.21, Ef 4.18). Os gentios não têm desculpas diante de Deus, porque têm no coração o conhecimento daquilo que é justo e reto aos seus olhos (Rm 2.15). O coração dos fiéis se inclina em fidelidade à lei de Deus (Is 51.7) e o dos ímpios é endurecido e está longe dele (Is 29.13). O pecado marca, domina e estraga não somente os aspectos físicos do homem natural, não somente seu pensar, desejar e sentir, mas também a fonte desses, a parte mais íntima da existência humana, seu coração. Se o coração for escravizado pelo pecado, a totalidade da vida está em escravidão. Somente Deus pode revelar as coisas escondidas do coração do homem (ICo 4.5), examinálas (Rm 8.27) e testá-las (lT s 2.4). É no coração que acontece a conversão a Deus (SI 51.10, 17; J12.12). Porque a corrupção brota do coração é que Deus começa ali sua obra de renovação (ICo 2.9, At 16.14, 2Co 4.6). Quando o Espírito faz sua moradia no coração, o homem já não é escravo do pecado, mas sim, um filho e herdeiro de Deus (G14.6-7).53 Por isto, um comportamento modificado começa no coração: se quisermos que as pessoas venham a conhecer a graça, devemos levá-las a ir além de reduzir o seu comportamento a leis rígidas. Isto é uma tentativa de manipular seu comportamento, sem mudar o coração. Esta tentativa de mudança moralista não durará, pois está baseada em abordagens emocionais ou superficiais. Então, devemos, por exemplo, levá-las a amar o próximo mais do que a si mesmas, para que busquem a graça. Apenas arrependimento e fé em Cristo podem mudar o comportamento, pois nisto o próprio coração é mudado. A teologia sistemática não é uma disciplina simplesmente teórica, menos ainda especulativa e abstrata; pelo contrário, tem uma relação direta com a vida daqueles que a estudam. Ela é,
S3Resumido de T. Sorg, “Coração.” In: Colin Brown e Lothar Coenen (eds.), Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, v. 1, p.504-508.
28
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
portanto, uma disciplina ao mesmo tempo teórica e prática. A profundidade do conhecimento dos ensinos da Palavra deve guardar uma proporção direta com a nossa vida cristã. Neste caso, uma boa teologia oferece-nos subsídios para que possamos conhecer mais de Deus, que deve ser o nosso objetivo principal, através de sua revelação especial nas Escrituras. A dissociação entre teologia e vida é algo estranho à fé cristã e, conseqüentemente, à igreja de Cristo. Em terceiro lugar, a teologia sistemática é importante, pois guia, sinaliza e orienta o pregador na elaboração do seu sermão. Como Barth escreveu: “Os dogmas são como bóias, postes indicadores, que assinalam a boa direção. Não é preciso fazer uma exposição dos dogmas nem expor seu conteúdo teológico, senão deixar-se guiar por eles.”54 A Palavra de Deus é um todo orgânico que se harmoniza. Todavia, esta compreensão só será possível através de seu estudo sistemático. O estudo da teologia sistemática — aliado obviamente à leitura e meditação das Escrituras — ajuda-nos neste processo de conhecimento global das Escrituras. Por isso, o pregador terá melhores condições de entender o texto que servirá de base para o seu sermão, recorrendo à exegese, à história bíblica e à teologia bíblica e sistemática. Em quarto lugar, é nossa responsabilidade anunciar “todo o desígnio de Deus”, nada ocultando ou omitindo na evangelização de pecadores. Conseqüentemente, o evangelho da graça deve ser proclamado a todos os homens e ao homem todo. E a teologia sistemática auxilia-nos nesta tarefa, fornecendo uma perspectiva abrangente do ensino bíblico a respeito de Deus e de sua glória, bem como da natureza humana, de suas reais necessidades e sobre como Deus, em sua misericórdia, pode satisfazê-las. A história da igreja tem ricos exemplos de grandes evangelistas e missionários que foram teólogos capazes. Em quinto lugar, a teologia sistemática tem também um compromisso com a elaboração, preservação e proclamação das doutrinas cristãs. Por isso, ela deve esforçar-se por preservar o ensino de todo desígnio de Deus (At 20.27) conforme revelado nas Escrituras. Portanto, devemos lembrar que o pregador “com toda modéstia e seriedade, deve trabalhar e lutar para apresentar corretamente a Palavra, sabendo perfeitamente que o ensino correto (recte docere) só pode ser realizado pelo Espírito Santo”.55 Neste sentido, a teologia sistemática pode ajudar a resgatar a pureza dos ensinamentos bíblicos, e igualmente enriquecer a igreja espiritualmente com os ensinamentos da Palavra, os quais cabem a ela mesma — teologia sistemática — organizar. É ainda importante lembrar que “onde a teologia sistemática é menosprezada, abundam numerosas seitas e falsos cultos”.56 Diante desta situação, qual deve ser a postura do pastor? Qual é a responsabilidade do ministro cristão? Segundo a Escritura, a tarefa principal do pastor é ensinar. Isso quer dizer ensinar a Palavra de Deus de forma expositiva e sistemática. Vejamos a instrução bíblica sobre a responsabilidade dos presbíteros e dos diáconos. Em ITimóteo 3.9 vemos que os diáconos devem agir de tal forma que estejam “conservando o mistério da fé...”. Portanto, não podem ter um conhecimento superficial da doutrina. De acordo com 2Timóteo 2.15, o ministro deve “procurar apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” . Em Tito 1.9 encontramos o seguinte: “Apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para conservar os que o contradizem”. Paulo nos instrui: “Tu, porém, fala o que convém à sã doutrina” (Tt 2.1). Hammett diz: 54Karl Barth, A proclamação do evangelho, p. 56. 55Karl Barth, A proclamação do evangelho, p. 33. 56Bruce A. Demarest, “Teologia Sistemática.” In: Walter A. Eiwell (ed.), e h tic , v. 3, p. 516.
A CONSTRUÇÃO DA COSMOVISÃO CRISTÃ
29
Um problema que o teólogo encontra é que a Bíblia não é sistemática. Ela foi escrita com um propósito prático, respondendo às necessidades e problemas de cada época. Às vezes, temos perguntas que não existiam na época da Bíblia, ou não têm respostas na Bíblia. Por exemplo, os gregos gostariam de fazer as perguntas especulativas e analíticas: “O que é bom?” [ou] “O que é verdade?” Os romanos eram engenheiros e gostariam de fazer a pergunta: “Como fiinciona?” Mas a Bíblia não foi escrita para satisfazer nossa curiosidade intelectual, e geralmente, não responde às perguntas especulativas e à pergunta “como”? A pergunta característica dos hebreus é: “Qual é o propósito?” [ou] “O que se faz com isto?” Perguntas práticas são as perguntas que a Bíblia responde. A Bíblia não nos conta tudo que queremos saber, mas tudo que precisamos saber.57 Para obedecer ao que Paulo disse, é preciso estudar e ensinar nas igrejas a teologia sistemática. Em outras palavras, o pastor que não ensina a teologia de forma sistemática na igreja na qual desempenha seu ministério está desobedecendo ao Senhor. Ele está negando ao povo de Deus aquilo que é necessário para o crescimento espiritual. Um dia tal pastor terá de responder a Deus por isso. Viver a vida cristã sem as doutrinas cristãs é como jogar futebol sem a bola: é simplesmente impossível! Romanos 12.1-2 nos mostra que a mente tem que ser renovada pela Palavra. O cristão precisa de doutrina para continuar na fé (lT m 4.16). E sem doutrina verdadeira, a vida espiritual do cristão pode ser destruída (lT m 6.3-5; Tt 1.11). E, para conseguir a doutrina correta, a teologia sistemática é necessária. Em conclusão, o estudo teológico deve ser produzido num ambiente de devoção e adoração. Bavinck disse: O temor de Deus deve ser o elemento que inspira e anima a investigação teológica. Isso deve marcar a cadência da ciência. O teólogo é uma pessoa que se esforça para falar sobre Deus porque ele fala fora de Deus e por meio de Deus. Professar a teologia é fazer um trabalho santo. É realizar uma ministração sacerdotal na casa do Senhor. Isso é por si mesmo um serviço de culto, uma consagração da mente e do coração em honra ao Seu nome.58 Como um padrão, todos os grandes teólogos da igreja cristã — Ireneu de Lyon, Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesaréia, Agostinho de Hipona, Anselmo de Cantuária, Tomás de Aquino, Martinho Lutero, João Calvino, Jonathan Edwards e John Wesley — ainda que discordassem entre si em alguns aspectos não essenciais da fé cristã, começaram e terminaram suas obras com adoração e louvor. Vemos, portanto, que os teólogos devem meditar, escrever e ensinar para a glória de Deus. E somente para a glória de Deus.
Bibliografia para aprofundamento B arth,
Karl. Introdução à teologia evangélica. São Leopoldo, Sinodal, 1996.
Heber Carlos de. “O pluralismo do pós-modernismo.” In: Fides Reformata,v.2 n .l, Jan./Jun. 1997. p. 5-28.
C a m po s,
57John S. Hammett, A postila p a ra os alunos de teologia sistemática, p. 2. 58Citado por Henry Zylstra, no prefácio à obra de Herman Bavinck, Teologia sistemática, p. 9.
30 [ PARTE 1 ] INTRODUÇÃO AO ES TU D O DA TEO LO G IA CRISTÃ *............................................................................................................................................................................................................................
E r ic k s o n ,
Millard. Introdução à teologia sistemática. São Paulo, Vida Nova, 1997. p. 15-20.
Davi Charles. “Fides et seiender, indo além da discussão de ‘fatos’” In: Fides Reformata, v.2, n.2, Jul./dez. 1997. p. 129-146.
G o m es,
___________________ . “A suposta morte da epistemologia e o colapso do fundacionalismo clássico” In: Fides Reformata, v.5, n.2, Jul./Dez. 2000. p. 115-142. Stanley J. Pós-modemismo', um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo, Vida Nova, 1997.
G renz,
G rudem ,
Wayne. Teologia sistemática. São Paulo, Vida Nova, 1999.
H odge,
A. A. Esboços de teologia. São Paulo, PES, 2001.
H odge,
Charles. Teologia sistemática. São Paulo, Hagnos, 2001.
p.
p.
1-19.
11-29. p.
14-25.
J. Scott. “Sete argumentos contra o estudo da teologia.” In: Vox Scripturae, v.8, n. 1, Jul. 1998. p. 51-60.
H orrell,
Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica', uma introdução à teologia cristã. São Paulo, Shedd Publicações, 2005. p. 175-312.
M cgrath,
S ir e , James W.
O universo ao lado\ a vida examinada - um catálogo elementar de cosmovisões. São Paulo, Hagnos, 2004.
Richard Julius. “A conceituação da teologia”. In: Vox Scripturae, v.8, n.l, Jul. 1998. p. 35-49.
S tu rz,
Helmuth. Recomendações aos jovens teólogos e pastores. São Paulo, Sepal e Recife, Sete, 1990.
T h ie l ik e ,
CAPÍTULO 2
A METODOLOGIA TEOLÓGICA ntes de falarmos sobre a metodologia que empregaremos nesta obra, será proveitoso entender as várias maneiras como os teólogos têm organizado os dados da revelação. Os métodos empregados podem ser divididos pelo menos em cinco:1 Em primeiro, os escritos adhoc e as atuais “contribuições monográficas”. Os primeiros pais da igreja não escreveram teologias sistemáticas como as conhecemos. Por causa das tensões e pressões em que viviam, esses homens se dedicaram aos escritos ad hoc, escritos de ocasião, muitas vezes para responder a algum desafio específico do tempo em que viviam. Podem ser mencionados, como exemplo, as obras de Atanásio de Alexandria, de Agostinho de Hipona — especialmente seus tratados sobre a Trindade, o livre-arbítrio e a predestinação — os escritos de Basílio de Cesaréia sobre o Espírito Santo e os textos trinitários de Gregório de Nissa, Gregório Nazianzo e Boécio. No tempo da Reforma protestante, Martinho Lutero também escreveu tratados que se encaixam nessa categoria, abordando assuntos como o sacerdócio de todos os crentes, os sacramentos, as responsabilidades do governo civil e a predestinação, entre outros. Nos séculos xvi e xvn, os puritanos, ainda que tenham preparado uma das mais importantes confissões de fé da história — a Confissão de Fé de Westminster— também fizeram várias contribuições desse tipo, especialmente na aplicação das doutrinas cristãs aos diversos aspectos da vida. Os escritos de Jacobus Arminius, no século xvu também se encaixam aqui. E no século xvin, Jonathan Edwards, que nunca escreveu uma teologia sistemática, destacou-se com várias contribuições a essa disciplina, especialmente sobre os temas da espiritualidade cristã, predestinação e graça, Trindade, escatologia e avivamento. Os sermões de John Wesley também podem ser arrolados nessa categoria. Em fins do século xix, há a contribuição de B. B. Warfield, que ofereceu várias contribuições bíblicas, históricas e teológicas sobre os vários tópicos dessa disciplina. No século xx, Dietrich
A
‘Cf. Brace A. Demarest, “Teologia sistemática”. In: Walter A. Elwell (ed.), e h tic , v. 3, p. 516-517.
32
[ P A R TE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Bonhoeffer e Jürgen Moltmann fizeram suas chamadas “contribuições monográficas”. Bonhoeffer escreveu tratados sobre eclesiologia, ética e cristologia. Moltmann escreveu sobre temas como Trindade, cristologia, a pessoa do Espírito Santo, criação e escatologia. Em segundo lugar, temos o método que consistia em organizar os temas teológicos de acordo com o Credo dos Apóstolos, como fizeram Tomás de Aquino e João Calvino, entre outros. A estrutura trinitária do credo oferecia o esboço fundamental para esses teólogos organizarem os dados básicos da revelação. Um problema que ocorre é que nem sempre dados particulares se ajustam aos tópicos principais do credo, surgindo daí a dificuldade: onde colocar doutrinas importantes, mas que não foram abordadas diretamente nesse antigo documento confessional? Em terceiro, temos a concentração cristológica, método próprio de Karl Barth. Ele procurou relacionar os dados com a revelação que Deus fez de si mesmo em Cristo, a Palavra encarnada. As grandes doutrinas do evangelho — como a Trindade, a dupla natureza de Cristo, a expiação, a eleição e a graça — foram sempre tratadas à luz da encarnação do Verbo. Será útil comparar os métodos teológicos de Calvino e Barth, para acentuar as distinções: Jo ã o Calvino
Karl Barth
Em sua Carta ao Rei Francisco /, João Calvino diz: “Quando inicialmente, lancei mão da pena para escrever esta obra, meu principal objetivo, ó Mui Preclaro rei, era o de escrever algo que, depois, pudesse ser apresentado diante de tua majestade. Meu objetivo não era o de apenas ensinar certos rudimentos em função dos quais fossem instruídos, na verdadeira piedade, todos quantos são tocados por algum zelo de religião. Resolvi fazer este trabalho principalmente, por amor aos nossos compatriotas franceses, muitos dos quais eu via famintos e sedentos de Cristo, e a muito poucos, porém, eu via imbuídos devidamente de conhecimento sequer modesto a respeito dele. O próprio livro, composto de forma de ensinar simples e até chã, mostra que foi esta a intenção proposta”.
Em seu ensaio autobiográfico, How my mind has changed, Karl Barth diz: “Também aqui - e principalmente aqui - havia muita coisa a ser refrescada, repensada e descrita de um modo novo, sempre atentando, com a maior fidelidade e agilidade possível, para o testemunho do N ovo e do Antigo Testamento, bem com o dando lugar mais aberto possível tanto à tradição mais antiga quanto à mais recente. (...) Mais do que essa espécie de atenção [“ensaios, escritos, teses e livros inteiros a ela dedicados”] que sem dúvida também merece ser estimada a seu modo, alegra-me ouvir repetidas vezes que a Kirchliche Dogmatik é lida e estudada em muitas casas pastorais, sendo assim aproveitada (e por que não, ocasionalmente apenas como obra de consulta!?) no trabalho de pregação, ensino e poimênica, achando assim indiretamente seu caminho também para dentro da comunidade de um modo geral.”
0 eshoço de As Instituías ou Tratado da Religião Cristã nos mostra um resumo de sua teologia, que seguia o padrão do “Credo dos A póstolos” (J. P. W iles, Ensino sobre o cristianismo - uma edição
0 esboço da D ie Kirchliche Dogmatik nos mostra um resumo de sua teologia, que seguia o padrão da “concentração cristológica” (Geoffrey W. Bromiley,
abreviada de As instituías da religião cristã): Volume 1: “0 conhecimento de Deus, o Criador” - o conhecim ento de Deus, Escrituras, Trindade, criação e providência. Volume 2: “O conhecimento de Deus, o Redentor” - a queda, o pecado humano, a lei, o AT e o NT, Cristo, o mediador, sua pessoa (profeta, sacerdote e rei) e obra (expiação). Volume 3: “0 modo pelo qual recebemos a graça de Cristo, seus benefícios e efeitos” - fé e regeneração, arrependimento, vida cristã, justificação, oração, predestinação e ressurreição final. Volume 4: “Os m eios externos pelos quais Deus convida-nos à sociedade de Cristo” - Igreja, sacramentos e governo civil.
An iníroducíion io íhe theology o f K arl Barth): Volume 1: “A doutrina da Palavra de D eus” - A Palavra de Deus e a dogmática, a revelação de Deus (o Deus trino, a encarnação e a obra do Espírito), as Santas Escrituras e a proclamação da Igreja. Volume 2: “A doutrina de D eus” - 0 conhecimento de Deus, a realidade de Deus, a eleição de Deus e o mandamento de Deus. Volume 3: “A doutrina da criação” - Criação, a criatura, o Criador e sua criatura e a ética da criação. Volume 4: “A doutrina da reconciliação” - Os problemas da doutrina da reconciliação, o Filho de Deus, o Filho do Hom em e o Deus-Homem. Ele planejava encerrar o volume 4 com um capítulo sobre a “ética da reconciliação” (esse, juntamente com um texto sobre “o batismo com o o fundamento da vida cristã”, foi publicado com o um fragmento intitulado
The Christian Life).
A METODOLOGIA TEOLÓGICA
Na verdade, as Instituías (que era “uma chave abrindo caminho para todos os filhos de Deus num entendimento bom e correto das Escrituras Sagradas”) foi a primeira teologia bíblica da história da Igreja, e, na verdade, uma introdução que precisava ser completada e até mesmo estendida por seus outros escritos. Eles são divididos em: comentários (entre eles Salmos [em quatro volumes], Daniel [em dois volumes], Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, As Pastorais e Hebreus), sermões, folhetos e tratados polêmicos contra reformadores radicais e católicos, e cartas e escritos litúrgicos e catequéticos para instruir o povo na “escola de fé” (entre eles Instrução na Fé).
33
Entre seus outros escritos estão incluídos sermões, obras exegéticas (entre elas seu comentário à Carta aos Romanos), obras históricas (por exemplo, seu ensaio sobre a teologia de Anselmo, Fé em busca de compreensão), ensaios (um dos mais importantes é Introdução à teologia evangélica) e cartas.
É mais difícil, nesses dois esquemas, tratar à altura a totalidade da matéria que perfaz a teologia sistemática, embora o primeiro desses métodos seja preferível ao segundo, por permitir organizar de modo mais fácil e consistente os vários temas teológicos, ainda que com lacunas. Algumas das soluções propostas pelo terceiro método acabam parecendo forçadas ou artificiais.2 Esses primeiros escritores tomaram Deus como o ponto de partida, e assim construíram uma teologia “de cima”. Essa abordagem reconhece que Deus é o objeto do estudo teológico; começamos nosso estudo sobre Deus onde ele mesmo graciosamente se revela de forma final, nas Escrituras Sagradas. Em quarto, temos o método “de baixo para cima”. Em fins do século xviu e começo do século xix, exercendo forte influência sobre esta disciplina até meados do século xx, outro tipo de abordagem acabou por surgir, especialmente na Europa, como resultado do impacto do racionalismo, iluminismo e cientificismo. Teólogos tão diferentes como Friedrich Schleiermacher, Rudolf Bultmann, Paul Tillich e os chamados teólogos da libertação, partiram do homem e sua situação existencial e assim construíram uma teologia “de baixo para cima”. Essa abordagem marcou uma total mudança na metodologia teológica, que pode ser vista primeiro na obra de Schleiermacher, especialmente no papel que a doutrina da Trindade ocupa em sua teologia. Seguindo os passos de Immanuel Kant, Schleiermacher abandonou a tentativa de fundamentar a teologia em proposições fixas acerca dos atributos e atos de Deus. Deus, em si, foi entendido como o totalmente oculto na dimensão do númeno, que Kant postulara como o lugar de todo conceito não empírico. Seguindo Kant, Deus não estaria ao alcance do estudo por parte do homem e também não seria capaz de se revelar por meio de proposições na Bíblia. Assim, para Schleiermacher a teologia passou a ser o estudo da experiência religiosa do homem e não o estudo de Deus.3 Ele entendeu a essência dessa experiência como o sentido de dependência absoluta. Porém, outros teólogos liberais, que o sucederam, interpretaram a essência da religião de outras maneiras, embora a experiência continuou sendo o referencial da metodologia. Para Rudolf Bultmann, a teologia deveria começar com uma nova interpretação da Escritura, guiada pela filosofia existencial. Segundo Bultmann, o homem do século xx não pode mais aceitar os milagres como aparecem nas Escrituras — o homem moderno não pode mais crer na ressurreição corporal, em anjos, demônios, céu e inferno. Somente com as perguntas e perspectivas da filosofia existencialista pode-se construir uma teologia que usa as Escrituras 2Um exemplo seria o entendimento barthiano da doutrina da eleição, que consideraremos no capítulo 18. 3Schleiermacher ofereceu a famosa definição de Deus: “Deus é o Ser ou a Pessoa que provoca ou causa este sentido de dependência absoluta.”
34
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
de forma aceitável.4 Segundo o entendimento de Paul Tillich, o perigo da teologia está em se tornar irrelevante para os problemas e questões contemporâneos. Por isso ele afirmou que a teologia deveria começar com uma análise da situação humana. As perguntas surgirão dessa análise, e nossa teologia deve responder a essas perguntas. Esse é o método da correlação, porque relacionamos as preocupações e perguntas da sociedade, conforme sugeridas pela filosofia, com as respostas que vêm da teologia.5 Outro modelo de teologia que começa “de baixo para dma” é o da teologia da libertação. Os principais teóricos dessa teologia são o peruano Gustavo Gutierrez e o uruguaio Juan Luis Segundo. No Brasil, destacam-se Rubem Alves, Hugo Assmann, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Carlos Meister e Frei Betto. Para Gutiérrez, a teologia começa a partir da situação histórica, particularmente do ponto de vista do pobre.6 Um corolário dessa afirmação é a noção de que verdades preposicionais são estéreis. Por outro lado, a verdade teológica muda com as circunstâncias variáveis da história. No contexto de opressão aos pobres, presente na América Latina, a teologia precisa focalizar as promessas de libertação das Escrituras. Para Gutiérrez, a teologia, acima de tudo, deve estar ancorada na história. Ele diz que toda história, da criação até o presente, é a história de Deus realizando o processo de salvação universal. Toda história é sagrada e revela o plano redentor de Deus e a realização do seu Reino. Conseqüentemente, toda a teologia é escatológica. O Reino de Deus é um projeto histórico que é levado a cabo quando os pobres agem para criar um mundo de justiça para todos.7 A realidade histórica fundamental da pobreza, com a qual Gutiérrez está preocupado, é analisada a partir da teoria dialética de Karl Marx. Os teólogos de libertação vêem a realidade em termos de uma luta de classes e, por conseqüência, entendem que a raiz da opressão na América Latina está no sistema capitalista internacional. Conseqüentemente, a realização do Reino está acontecendo em meio à luta por uma revolução socialista. Só deste modo os homens podem se tornar “artesãos de seu próprio destino”.8 A vinda do Reino representa a construção de uma sociedade justa e isso é entendido em termos socialistas. A pergunta básica para a teologia da liberação é a seguinte: quem é Deus para um continente imerso na pobreza como a América Latina? Como Deus se revela ao oprimido? O que significa ser cristão num mundo de fome? A resposta se dá por meio de três mediações: A mediação sócio-analítica olha para o lado do mundo do oprimido. Procura entender por que o oprimido é oprimido. A mediação hermenêutica olha para o lado do mundo de Deus. Procura ver qual é o plano divino em relação ao pobre. A mediação prática, por sua vez, olha para o lado da ação e tenta descobrir as linhas operacionais para superar a opressão de acordo com o plano de Deus.9 A mediação sócio-analítica acontece a partir da perspectiva dialética. Embora neguem ser marxistas, os irmãos Boff insistem que a análise marxista é a única a permitir que o pobre seja visto como tal por causa da opressão. Essa dialética entende a pobreza como fruto de um sistema
4Cf. Bengt Hâgglund, História da teologia, p. 351-355. 5John S. Hammett, A postila p a ra os alunos de teologia sistemática, p. 2-3. Cf. também Bengt Hâgglund, História da teologia, p. 348-351. 6Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação, p. 80. 7Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação, p. 37. 8Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação, p. 41. 9Leonardo B off e Clodovis Boff, Como fa zer teologia da libertação, p. 40.
A M ETO D O LO G IA TEO LÓ G IC A 35 *............................................................................................................................................................................................................................
econômico que explora os trabalhadores.10A mediação hermenêutica se vale das contribuições da crítica sócio-analítica. Ao entender as causas de opressão, a hermenêutica busca usar a Escritura e a tradição cristã para responder à situação de opressão. Assim, conquanto não reivindiquem que o tema da libertação do oprimido seja, em si mesmo, o único ou mais importante tema na Bíblia, o elegem como o tema mais importante e pertinente para o pobre e para o oprimido.11 Para a teologia da libertação, a fé cristã tem obrigação de lutar pela justiça. Esta teologia revela sua preferência pelas narrativas bíblicas mais pertinentes a seus propósitos. Assim, recebem ênfase o Êxodo, com sua história de libertação divina; os profetas, com suas denúncias da injustiça contra os pobres; os Evangelhos, com sua descrição da centralidade da pessoa de Jesus e a mensagem de libertação do Reino; bem como Atos e Apocalipse. Os dois últimos descrevem, respectivamente, o ideal da comunidade cristã e a luta simbólica do povo de Deus contra as forças do mal na história.12 Poderíamos descrever melhor a mediação hermenêutica como o ponto no qual a reflexão teológica formal acontece. A experiência do pobre é interpretada do ponto de vista da revelação e então relacionada à doutrina social da igreja. A doutrina social da igreja é descrita pelos irmãos Boff como uma construção abstrata, que não está relacionada com a situação concreta do terceiro mundo. Essa é uma das tarefas da teologia da libertação. Os irmãos Boff tentam demonstrar que a teologia da liberação é consistente com a doutrina social da igreja católica, como ensinada no último século. O resultado da mediação hermenêutica é o chamado à ação. A história bíblica apresenta um Deus que trabalha na vida do seu povo para uma real libertação histórica. Isto conduz diretamente à terceira mediação: a práxis. A mediação prática está relacionada a uma ação concreta para produzir mudança social. A ação visa trazer justiça, conversão, renovação da igreja e a transformação da sociedade.13Neste nível, o trabalho dos sacerdotes e leigos é considerado muito importante, porque entram em contato com situações específicas, que necessitam de mudança. A mediação prática determina que tipo de mudança é viável e desenvolve estratégias para produzila. A não-violência é preferida, mas a possibilidade do uso da força não é descartada.14 Esses novos e multifacetados movimentos teológicos, que começam com a situação existencial do homem, tiveram e ainda têm sérias implicações para a construção da teologia cristã, e, na medida do possível, avaliaremos algumas implicações dessa metodologia. Em último lugar, temos a abordagem preferida especialmente nos últimos duzentos anos, com sua ênfase numa ordem lógica, também começando “de cima”, com o Deus que se revela. Essa ênfase é comum a teólogos de diferentes tradições evangélicas, e também de entendimentos doutrinários diferentes. E pode ser vista nas obras de Francis Turrentin, John Dagg, Charles Hodge, A. A. Hodge, Herman Bavinck, Louis Berkhof, A. H. Strong, E. H. Bancroft, H. C. Thiessen, Emil Brunner, Wolfhart Pannenberg, Millard Erickson, Stanley Horton e Bruce Milne, entre outros, que organizam os dados a partir de Deus e de sua revelação, passando pelo homem e sua queda, a obra redentora de Deus em Cristo, a obra do Espírito e a vida em comunidade e, finalmente, concluindo com a consumação e o estado eterno. Os principais tópicos teológicos desse método são agrupados assim:
“ Leonardo B off e “Leonardo B off e 12Leonardo B off e 13Leonardo B off e 14Leonardo B off e
Clodovis Clodovis Clodovis Clodovis Clodovis
Boff, Boff, Boff, Boff, Boff,
Como fa zer Como fa ze r Como fa ze r Como fa zer Como fa zer
teologia da teologia da teologia da teologia da teologia da
libertação, p. libertação, p. libertação, p. libertação, p. libertação, p.
42-44. 52. 52-54, 57. 60. 61-62.
36
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
[ 1] Teologia propriamente dita: compreendendo a existência, os atributos e a personalidade triúna de Deus, juntamente com os seus propósitos eternos e os atos temporais de criação e providência. [2] Antropologia (a doutrina do homem): compreendendo a criação e a natureza do homem, seu estado original, queda e conseqüente ruína moral. Isto abrange a psicologia bíblica e a doutrina bíblica sobre o pecado, sua natureza, origem e modo de propagação. [3] Soteriologia (a doutrina da salvação): que inclui o plano, a execução e a aplicação, e os efeitos gloriosos da salvação dos homens. Isso abrange a Cristologia (a doutrina sobre Cristo): a encarnação, a constituição da Pessoa de Cristo, sua vida, morte e ressurreição, juntamente com a obra própria do Espírito Santo, os meios de graça, a Palavra de Deus e os sacramentos. [4] Ética cristã: abrangendo os princípios, regras, motivos e auxílios dos deveres humanos revelados na Bíblia, como são determinados: (a) pelas relações naturais que o homem tem como homem com seus semelhantes, e (b) suas relações sobrenaturais como homem remido. [5] Escatologia (a ciência das últimas coisas): compreendendo a morte, o estado intermediário da alma, o segundo advento, a ressurreição, o juízo geral, o céu e o inferno. [6] Eclesiologia (a ciência da igreja): incluindo a determinação científica de tudo quanto as Escrituras ensinam a respeito da Igreja invisível, em seu estado temporal e no eterno; a idéia da Igreja: sua verdadeira definição, sua constituição e organização, seus oficiais e suas funções. A comparação e crítica de todas as modificações da organização eclesiástica que tenham existido, juntamente com sua gênese, sua história e seus efeitos práticos.15 A tabela abaixo ilustra outra forma de mostrar essa ordem lógica em que a teologia sistemática é organizada:16
15A. A. Hodge, Esboços de teologia, p. 22-23. 16Fred H. Klooster, “How reformed theologians ‘do theology’ in today’s world”. In: John D. Woodbridge e Thomas Edward McComiskey (ed.), Doing theology in today’s world; essays in honor of Kenneth S. Kantzer, p. 243.
A METODOLOGIA TEOLÓGICA
37
Neste livro, seguiremos essa ordem lógica descrita acima, combinando-a com a metodologia integrativa de Gordon Lewis e Bruce Demarest, que veremos adiante, ainda nesse capítulo.
Analogia Como já vimos, assim como em qualquer disciplina, os pressupostos do pesquisador são determinantes na construção da metodologia, o que determina em grande parte os resultados. É importante, então, entender o significado dos pressupostos filosóficos por trás das metodologias empregadas na construção da teologia. Tomás de Aquino e João Calvino concordavam em vários tópicos vitais da teologia cristã. Mas uma questão os separou irremediavelmente: a analogia entis e a analogia fidei. Essa questão é fundamental para entender a diferença entre a metodologia católica romana e a evangélica, desde que ambas são herdeiras de Tomás de Aquino e Calvino. O sacramentalismo da igreja católica romana e o biblicismo dos reformadores estão vinculados às suas diferentes abordagens metodológicas. A na log ia entis Para o teólogo católico Steven Bevens, “a essência do catolicismo é a analogia entis, ou analogia do ser (ente)”. Este conceito é mais importante que o papado — ou mesmo Maria — na vida devocional, porque “o princípio pelo qual o catolicismo se mantém firme ou cai por terra é, mais precisamente, a convicção de que o mundo, o ser humano e a experiência humana no mundo são uma vantagem e não algo negativo, que a realidade finita, de qualquer tipo, tem a capacidade de ser algo diáfano, de significado infinito e portador da revelação de Deus”.17Bevans cita Richard McBrien: “O visível, tangível, o finito, o histórico — todos esses são verdadeiros ou potenciais portadores da presença divina. De fato, é somente dentro e através dessas realidades materiais que podemos encontrar até mesmo o Deus invisível”.18 Bevans continua: Ao entender esse princípio sacramental fundamental, a pessoa vai longe na direção de entender o catolicismo tanto como um fenômeno social quanto como um ponto de partida para fazer teologia. É por causa do sacramentalismo que o catolicismo valoriza a adoração que atrai todos os sentidos; e é por causa da mesma cosmovisão sacramental que os católicos podem tirar proveito da devoção à Maria, e também de um ativismo para a paz mundial ou pelo direito à vida.19 O que significa a analogia do ser, que é tão vital na filosofia escolástica e, portanto, na teologia católica? Em primeiro lugar é preciso entender que ela é alicerçada na filosofia aristotélica, que Tomás de Aquino empregou para construir e defender sua teologia. Para avaliar o resultado disso, é preciso revelar os pressupostos deste entendimento filosófico. Segundo os filósofos católicos, o ponto de partida da filosofia escolástica é o princípio de inteligibilidade. Disse Henri Renard: “Esse princípio afirma que o ente, o real, é o objeto do
"Stephen Bevans, “Reaching for fidelity: Roman Catholic theology today”. In: John D. Woodbridge e Thomas Edward McComiskey (ed.), D oing theology in to d a y’s world-, essays in honor o f Kenneth S. Kantzer, p. 321. 18Richard McBrien. Catholicism, v. 2, p. 1180, apud: Bevans, p. 322. 19Bevans, p. 321.
38
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
intelecto, e, portanto, o intelecto pode conhecer o ser”. Ele não oferece uma prova, porque “é tão óbvio que nem pode ser demonstrado”.20 O conhecimento do ente começa com os sentidos: “A experiência dos sentidos é o primeiro princípio do conhecimento humano”.210 ser humano é capaz de conhecer o ser por natureza. Tudo o que existe faz parte do ente, de modo que o ente é uno, embora as coisas existam como seres individuais. A unidade do ser é vista no fato de a palavra “ser” funcionar como um substantivo verbal e significar o real, tudo o que existe. Tudo o que existe faz parte, ou melhor, participa do ser.22 Portanto, existe uma continuidade do ser entre Deus e as demais coisas na criação. Tudo tem sua existência a partir de um só princípio de ser.23 Para evitar o monismo absoluto, que desembocaria em panteísmo, Tomás de Aquino adotou a distinção aristotélica entre forma e matéria, ou seja, ato e potência (a capacidade de realizar). O ser não é um uno abstrato. “Há unidade no ser, visto que, para Aquino, somente uma coisa é o Ser (Deus); tudo o mais tem ser com potenciais diferentes”.24Se não fosse assim, segundo Aristóteles, as coisas não poderiam mudar ou existir como indivíduos. Mas elas mudam e as coisas individuais que existem no mundo são obviamente distintas umas das outras. Como pode ser assim se todo ser é um? Segundo Tomás de Aquino, é porque o ser é composto dos dois princípios, ato e potência. Uma estátua feita de mármore já é uma estátua. Quanto à essência de “estátua”, ela está em ato. Mas quando ela era apenas uma pedra de mármore, a estátua só existia em potência. O processo de “tomar-se”, que observamos no mundo, é possível porque as coisas são compostas de ambos, potência e ato. Uma coisa está em ato, na medida em que sua potência é realizada. Ato, então, corresponde à essência da coisa. Deus é o único Ser cuja existência é igual à sua essência, portanto, ele é ato puro. “Deus é a pura realidade; cada outro ser tem potencialidade no seu ser. Logo, a realidade de cada ser finito é análoga à realidade de Deus, visto que tem realidade e ele é realidade”.25 O que significa essa relação análoga? Segundo o escolasticismo, é a única maneira de entender a relação entre Deus e o mundo, e o nosso conhecimento de Deus, desde que nem a relação unívoca nem a equívoca servem. A relação unívoca implica identidade. Linguagem unívoca aplica o mesmo vocábulo a várias coisas no mesmo sentido. Isso pode ser feito ao se descrever a criação, mas para falar de Deus, não. Fazer isso colocaria Deus no mundo, como se fosse um de nós.26 Mas Deus é totalmente outro. Ele não pode ser conhecido na sua essência, mas sim no sentido negativo. Podemos dizer mais sobre o que Deus não é do que sobre o que ele é. Por outro lado, a linguagem equívoca emprega um só vocábulo para descrever duas realidades essencialmente diferentes, como no caso de chamar tanto um animal quanto um modelo de carro pelo mesmo nome.27 O escolasticismo disse que a linguagem sobre Deus não pode ser equívoca porque se fosse assim, o conhecimento de Deus não seria possível.28
20Henri Renard, The philosophy o f being, p. 8. 21George P. Kluberstanz e Maurice R. Holloway, Being and God', an introduction to the philosophy o f being and to natural theology, p. 54. 22George P. Kluberstanz e Maurice R. Holloway, Being and God; an introduction to the philosophy of being and to natural theology, p. 46. 23R. J. Rushdoony, The one an d the Many, p. 196. 24Norman L. Geisler e Paul D . Feinberg, Introdução à filosofia; uma perspectiva cristã, p. 136. 25Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã, p. 136. 26Clodovis Boff, Teoria do método teológico, p. 300. 27Clodovis Boff, Teoria do método teológico, p. 307. 28Henri Renard, The philosophy o f being, p. 93.
A M ETODOLOGIA TEOLÓGICA
39
Ao dizer que Deus é amor, estamos apontando para uma verdade, não para um misticismo semântico vazio. Então, a analogia do ser é entendida como um meio-termo entre o unívoco e o equívoco. Reale e Antiseri explicam da seguinte forma a analogia do ser: À medida em que participam do ser de Deus, as criaturas em parte se assemelham a ele, mas em parte não. Não há identidade entre Deus e as criaturas, mas também não há equivocidade, pois sua imagem está refletida no mundo. Assim, há entre Deus e as criaturas uma relação de semelhança e dessemelhança ou, ainda, uma relação de analogia, no sentido de que aquilo que se fala das criaturas pode se falar de Deus, mas não do mesmo modo nem com a mesma intensidade. O fundamento metafísico da analogia está no fato de que causando a causa transmite-se a si mesma, de certo modo. A semelhança não é uma qualidade adicional, mas sim coessencial à natureza do efeito, do qual nada mais é do que o sinal externo. Quem recorda as implicações de ser e suas propriedades não se surpreenderá diante da observação de que o mundo é sacro, porque sua relação de dependência a Deus está escrita no seu próprio ser.29 Assim, fica claro que tanto o sacramentalismo quanto a teologia natural do catolicismo partem da idéia da analogia do ser. Nesse esquema, as coisas físicas podem levar o fiel ao contato com o divino, tanto no louvor como no pensamento. Mas como devemos avaliar isso? Primeiro, é interessante reparar que, implícito na analogia do ser, está a noção de que Deus e as demais coisas existem como pano de fundo de um princípio de ser que, em geral, abrange ambos, o ser da criação e o ser de Deus. Falaremos mais sobre isso ao tratarmos da doutrina de Deus, mas devemos compreender que se pode entender a analogia do ser como uma negação sutil da distinção entre o Criador e a criatura. Ela reflete a tendência da filosofia grega de tornar o ser de Deus correlativo ao ser da criação, fazendo com que haja uma continuidade fundamental entre o ser da criação e o ser de Deus. Assim, para o escolasticismo, a razão do homem é capaz de compreender a Deus e chegar até ele através do seu próprio desempenho. O coração do homem é capaz de experimentar o divino através das coisas criadas, que servem como canais da graça de Deus. Entende também que certos homens são capazes de funcionar como mediadores entre Deus e os demais. É importante reconhecer que teólogos católicos, como Tomás de Aquino, querem manter a distinção entre Deus e a criação. Eles não acreditam que a criação seja uma emanação do ser de Deus, mas afirmam a doutrina da criação ex nihilo. Não obstante, o sincretismo que Tomás de Aquino fez entre a filosofia aristotélica e a Bíblia comprometeu a cosmovisão cristã com elementos significativos do pensamento não-cristão. As implicações para o método teológico são importantes. A revelação de Deus nas Escrituras se torna apenas uma fonte do conhecimento de Deus. A mediação da graça salvadora ao homem através da criação abre a porta para a atribuição de autoridade ao magistério da igreja que é igualado às Escrituras. A mente do homem não precisa da correção da Bíblia para discernir Deus de modo claro na criação. A partir desse pressuposto, várias doutrinas do catolicismo fluem naturalmente.
29Giovanni Reale e Dario Antiseri, H istória da filosofia, v. 1, p. 561.
40
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Além de tudo, a noção da analogia do ser não explica a cognoscibilidade de Deus. Por exemplo, é difícil entender o que a frase “Deus é amor” significa se, em algum ponto, não houver uma identidade de significado entre a palavra “amor”, quando aplicada a Deus e à nossa experiência. Qualquer analogia, para que seja compreensível, deve ter um ponto de contato unívoco. Ao dizer que o amor de Deus é análogo ao amor de um pai humano, estamos dizendo, é claro, que são semelhantes, mas não iguais. Se a analogia não tiver nenhum ponto de contato através do qual a palavra tenha o mesmo sentido em referência às duas realidades, é difícil entender como a descrição daquilo que conhecemos poderia lançar luz sobre aquilo que é desconhecido. Em qual sentido nós poderíamos dizer que o amor de Deus é semelhante ao amor do homem, se não houver sentido algum em que o significado seja o mesmo? O resultado do método de Tomás de Aquino significa que, de um lado, Deus é completamente acessível ao homem pela teologia natural — uma vez que há uma continuidade de ser entre os dois — e, por outro lado, Deus é completamente desconhecido e inacessível, porque é ato puro. O ser de Deus é igual à sua essência. Mas, desde que a essência de Deus é incompreensível, logicamente não deve ser possível conhecer nem a essência nem o ser de Deus. Em outras palavras, há uma contradição na analogia de ser que acabará desembocando no ceticismo. Podemos falar de forma negativa sobre o que Deus não é, mas nossas afirmações positivas se tornam, no final, vazias. Deus se toma totalmente inefável e misterioso.30 Fica claro que, se nós pretendemos chegar ao conhecimento de Deus, é preciso encontrar um outro caminho. Analog ia fidei A outra abordagem, a analogia da fé (analogia fidei), “recusa-se a especular sobre a exata natureza da linguagem teológica e, em vez disso, concentra-se nos princípios gerais que parecem informar a natureza da linguagem teológica”.31 Barth buscou demonstrar porque este é o método mais adequado para interpretar corretamente a Palavra de Deus: Nós sabemos ou acreditamos saber o que significam “ser”, “espírito”, “soberania”, “criação”, “redenção”... quando utilizamos esses termos para descrever a criatura. Sabemos também, ou pelo menos acreditamos saber, o que estamos afirmando quando, no domínio da criatura, dizemos “olho”, “orelha”, “boca”, “amor”... Mas todas essas palavras têm o mesmo significado quando as atribuímos a Deus? Obviamente não podemos afirmar isso; nem a verdade do nosso conhecimento pode ser buscada numa semelhança desse tipo entre o nosso conhecimento e aquele que é conhecido. Uma igualdade dessa espécie significaria que Deus cessou de ser Deus e tomou-se uma simples criatura, ou então que o homem tomou-se Deus... Mas então devemos falar duma diversidade de conteúdo e significado quando atribuímos uma descrição à criatura por um lado e a Deus por outro? Quando atribuímos a Deus espírito, soberania, olhos, orelha e boca, estamos entendendo algo diverso de quando usamos essas mesmas palavras em relação às criaturas? Devemos estar atentos àquilo que queremos afirmar se dissermos que sim a isso. Podemos estar movidos por um exagerado respeito pelo conhecimento de Deus, o qual, porém, não funciona em seu louvor, mas arrasta à sua negação. Com efeito, uma tal diversidade significa necessariamente que não conhecemos Deus; porque, se o conhecemos, devemos conhecê-lo com os meios ■
30Cf. Boff, p. 297-326. Cf. também Gordon Clark, Thales to dewey, p. 276-278 e John Frame, Cornelius Vem Til, an analysis of his thought, p. 89-95. 31Alister McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica, p. 308.
A METODOLOGIA TEOLÓGICA
41
que foram colocados à nossa disposição; caso contrário, não o conhecemos de maneira alguma. O fato de que o conhecemos quer dizer que, com os nossos conceitos, as nossas palavras e visões, nós não descrevemos algo absolutamente diverso dele, mas que com esses meios - os únicos à nossa disposição - descrevemos e significamos o próprio Deus. Caso contrário, supondo uma completa diversidade, sem qualquer relação, não pode existir nem mesmo o problema do nosso conhecimento de Deus. Em tal caso, toda Revelação deve ser considerada como exclusivamente negativa, como uma relação de exclusão mútua. E por isso não se poderia falar de nenhuma comunhão entre “cognoscente” e conhecido. A Revelação divina seria só um esconder-se, não podendo ser concebida como Revelação. [...] Nessa perplexidade, a teologia das épocas passadas aceitava o conceito de analogia para descrever a comunhão em questão. Com esse termo, tanto a falsa tese da igualdade como a falsa tese da diversidade eram atacadas e destruídas, mas os elementos de verdade contidos em cada uma delas eram evidenciados. Ao invés de igualdade e disparidade, “analogia” significa semelhança, isto é, correspondência e acordo parcial (isto é, de maneira a limitar tanto a igualdade como a disparidade entre dois ou mais seres diversos). E um termo pesado, dado o seu uso em teologia natural, e por isso necessita de algumas clarificações. Mas, nesse ponto, é inevitável. Para Barth, só a revelação pode fornecer ao homem conhecimentos análogos de Deus: À pergunta de como chegamos a conhecer Deus por meio do nosso pensamento e da nossa linguagem, devemos responder que, sozinhos, nós nunca podemos chegar a conhecê-lo. Ao contrário, isso só acontece quando a graça da revelação de Deus nos alcança, a nós e aos instrumentos do nosso pensar e do nosso falar, adotando-nos a nós e a eles, perdoando, salvando e protegendo a nós e a eles. Só nos é concedido e permitido utilizar, e numa utilização bem sucedida, os instrumentos colocados à nossa disposição. Não somos nós que criamos esse êxito e tampouco os nossos meios, mas sim a graça da revelação de Deus. Barth sempre esteve profundamente convencido de que só se pode assegurar a realidade do homem e do seu conhecimento resguardando a realidade de Deus e da revelação. No entanto, percebeu também que uma ênfase exagerada no elemento divino acaba por desembocar numa ameaça ao elemento humano: A possibilidade do conhecimento de Deus funda-se antes de mais nada em Deus, na medida em que ele mesmo é a verdade: em sua Palavra, por meio do Espírito Santo, ele se dá ao homem para ser conhecido como a verdade. Mas essa possibilidade também se encontra no homem, na medida em que este, através do Espírito Santo, torna-se o objeto da benevolência divina e, toma-se partícipe da verdade de Deus. Deus criou a linguagem humana para si, isto é, para que o homem a utilize, antes de mais nada, para falar dele: Quando Deus, na revelação, nos autoriza e ordena fazer uso de nossas visões, conceitos e palavras, ele não faz algo, por assim dizer, inapropriado, como se, para serem aplicados a ele, as nossas visões, conceitos e palavras devessem ser alienados do seu sentido e uso próprio e original. Não, o que ele faz é retomar algo que originariamente pertencia exatamente a ele... As criaturas, que são justamente o objeto de nossas visões, conceitos e palavras, são efetivamente criadas por ele. E também o nosso pensamento e a nossa
42
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
linguagem, precisamente na sua aptidão a exprimir esse objeto, são criados por ele... Nossas palavras não são nossa propriedade, mas dele. E, dispondo delas como de sua propriedade, ele as coloca à nossa disposição... Por exemplo, as palavras “pai” e “filho” não são primeira e propriamente verdadeiras no nosso pensamento e em nossa linguagem... De um modo oculto e incompreensível para nós, mas na prioridade incontestável que o Criador tem sobre a criatura, o próprio Deus é o Pai e o Filho. Já que Deus é o criador da linguagem e a criou, antes de mais nada, para o seu próprio uso, ele permanece sempre senhor de sua palavra: ele não está preso a ela, mas sim ela a ele.32 Por isto, só podemos falar com segurança de Deus a partir da própria revelação de Deus, revelação que ele faz de si mesmo, nas Escrituras. Então, ao afirmarmos o princípio da analogia fidei, reconhecemos nosso débito com as percepções de João Calvino, considerado o maior exegeta da Reforma, e que legou um conjunto de princípios que ainda hoje guiam a fé evangélica na interpretação das Escrituras.33 O pressuposto que controla sua interpretação: a Escritura é a Palavra de Deus inspirada, revelada em linguagem humana e confirmada ao crente pelo testemunho interno do Espírito Santo. A capacidade de reconhecer a Escritura como a Palavra de Deus não depende de provas, mas é um dom gratuito do próprio Deus: “A Palavra nunca terá crédito nos corações humanos até que seja confirmada pelo testemunho interno do Espírito”.34 A função principal das Escrituras é revelar o que precisamos saber sobre Deus e nós mesmos: “Tudo o mais que pesa sobre nós e que devemos buscar é nada sabermos senão o que o Senhor quis revelar à sua igreja. Eis o limite de nosso conhecimento”.35 Ao meditar sobre as formas humanas da Escritura, Calvino usou o conceito de acomodação: “O Espírito Santo propositadamente acomoda ao nosso entendimento os modelos de oração registrados na Escritura”.36 Deus desce ao nosso nível, “adapta-se à nossa capacidade ao comunicar-se conosco”.37 “Nas Escrituras, Deus balbucia a nós, fala-nos como uma ama fala a um bebê”.38 Por isso Calvino afirmava que a linguagem da Escritura é, com freqüência, crua, e não refinada — o “ensino rude e humilde do evangelho”. Outra figura que ele costuma empregar consiste em retratar a Bíblia como óculos divinos para os que são espiritualmente míopes. Assim, a verdadeira teologia é uma reverente reflexão sobre a revelação de Deus na Escritura, revelação esta que é suficiente, mas não exaustiva: “Que essa seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a mais”.39
32Cf. Karl Barth CD, II/l §27, apud: Battista Mondin, Os grandes teólogos do século vinte', os teólogos protestantes e ortodoxos, v. 2, p. 31-33. 33Cf.Alderi Souza de Matos, Calvino, o exegeta da Reforma', Jack B. Rogers, “Autoridade e interpretação da Bíblia na tradição reformada”, apud: Donald McKim (ed.), Grandes temas da tradição reformada, p. 35-49 e Walter C. Kaiser Jr. e Moisés Silva, Introdução à hermenêutica bíblica, p. 242-261. 34João Calvino, As instituías 1.7.4. 35João Calvino, 2Coríntios, p. 242-43. 36Joâo Calvino, O livro dos Salmos, v. 1, p. 265. 37João Calvino, As instituías 1.8.1. 38João Calvino, As instiíuías 1.13.1. 39João Calvino, Romanos, p. 340.
A M ETODOLOGIA TEOLÓGICA
43
.................................................................................................................................................................................................................................... As condições básicas da exegese para Calvino são a clareza e a brevidade, a busca do sentido simples do texto: “Não aprecio as interpretações que são mais engenhosas do que sadias”.40 Calvino ensinou que o maior dever do intérprete é tomar compreensível o sentido do autor que se está explicando, pois “não há nada que considere mais importante do que a edificação da igreja”. Ele defende que cada texto tem um, e somente um sentido, que é aquele pretendido pelo autor canônico: “O genuíno significado da Escritura é único, natural e simples”.41 Esse sentido pode ser percebido pela busca do sentido literal da passagem. Mas também esclareceu que há passagens que são nitidamente figurativas e ou simbólicas, e essas devem ser interpretadas segundo parece ser a intenção do autor. Isso envolvia a investigação das circunstâncias e a cultura além dos diversos estilos literários de cada escritor bíblico: “Existem muitas afirmações na Escritura cujo sentido depende de seu contexto”. Para Calvino, “a primeira tarefa do intérprete é deixar o autor dizer o que ele diz, ao invés de atribuir-lhe o que achamos que deveria dizer”. Por outro lado, ao usar o método históricogramatical, Calvino rejeitou um literalismo estreito (que ele chamava de “agarrar sílabas”), porque esse levaria ao legalismo. Por outro lado, rompeu com a interpretação alegórica (segundo ele, “o erro mais desastroso”) usada especialmente pela igreja medieval.42 O alvo da Escritura é encaminhar as pessoas a Jesus Cristo, em quem está a salvação. Por isso Calvino argumentou que existe uma relação de continuidade e descontinuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Cristo é revelado e a graça do Espírito Santo é oferecida tanto no Antigo quanto no Novo Testamento; porém de uma forma mais clara e plena nesse último. A diferença é em administratio, mas não em substantia.43 Outro princípio segue a esse: a Escritura é sua própria intérprete, por isso os textos menos claros da Escritura devem ser interpretados à luz dos textos mais claros, sempre conferindo textos paralelos que tratam do mesmo assunto.44 Calvino cria que a autoridade da Escritura se firmava no testemunho do Espírito, mas usou livremente as melhores ferramentas de pesquisa erudita de sua época. Também valorizou imensamente os antigos autores cristãos. Enquanto Agostinho era seu mentor teológico, João Crisóstomo era seu mentor exegético. Assim resumiu o princípio que o guiava: Os homens que se alimentaram das artes liberais, ou pelo menos as experimentaram, são capazes de, com sua ajuda, penetrar em lugares mais profundos e secretos da sabedoria divina. (...) Mas se é vontade do Senhor que sejamos auxiliados pela física, dialética, matemática e outras disciplinas tais, por meio do trabalho e do ministério dos descrentes, façamos uso dessa assistência. Pois se negligenciarmos a dádiva das artes, oferecida gratuitamente por Deus, devemos sofrer a justa punição por nossa indolência.45 O que o guiava era sua convicção de que o Espírito de Deus é a fonte de toda verdade: “Visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto que todas as coisas procedem
40João Calvino, lC oríntios, p. 472. 41João Calvino, Gálatas, p. 140. 42João Calvino, As instituías IV .17.14; 4.17.23. 43Alister McGrath, A vida de João Calvino, p. 186-189. ^Cf. especialmente João Calvino, Romanos, p. 442-443 e A s instituías IV. 17.32. 45João Calvino, As instituías 1.5.2; 2.2.16.
44
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ES TUD O DA T EO LO G IA CRISTÃ
■.................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................-a
de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma?”46 Em outro lugar: “Se reputamos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade mesma, onde quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus”.47 Em sua prática hermenêutica, Calvino integrou teologia e exegese. McGrath diz: Ainda que considere a teologia como “um eco do texto bíblico”, esta não representa, estritamente falando, um comentário sobre o texto, mas uma estrutura de interpretação através da qual o texto pudesse ser compreendido. (...) Os comentários podem esclarecer aspectos particulares dos textos bíblicos; as Institutas fornecem a estrutura através da qual a essência da proclamação bíblica pode ser percebida e compreendida.48 Exegese, teologia e pregação estão intimamente relacionadas em Calvino. A exegese é logicamente a primeira; a teologia representa a estrutura dentro da qual a exegese é interpretada; e a pregação é a aplicação da exegese e da teologia à vida diária. Moisés Silva sugere que tanto sua interpretação bíblica quanto sua teologia são excelentes por estarem relacionadas entre si. Nesse sentido, é particularmente importante o conceito da majestade de Deus em Calvino. A reverência e a admiração de Calvino diante da glória e poder de Deus sobre toda a criação permeiam sua teologia. Como conseqüência, na prática exegética, a doutrina da soberania de Deus tomou Calvino particularmente sensível à ação de Deus na história da redenção.49 Por fim, a interpretação das Escrituras deveria ser feita sob a dependência do Espírito Santo. O Espírito age de três formas em relação à Escritura. Em primeiro lugar, inspirando os autores, colocando no coração deles aquilo que pretendia fosse registrado para o futuro e, principalmente, impedindo que, ao registrar essas verdades, fossem inseridos erros provenientes da falibilidade do homem; em segundo lugar, preservando através dos séculos a sua Palavra pura, para benefício e instrução da igreja, impedindo graciosamente que a verdade fosse distorcida ou omitida. E, finalmente, agindo hoje sobre os pregadores, iluminando suas mentes para que compreendam corretamente o significado e as várias aplicações dos textos, para a edificação do povo de Deus. A fé e a interpretação das Escrituras caminham juntas. Para Calvino, é impossível fazer uma adequada interpretação e pregação da Palavra sem depender do Espírito Santo.50
Mistério, paradoxo e contradição Precisamos ter em mente algumas importantes distinções ao fazer teologia. Devemos distinguir as categorias de mistério, paradoxo e contradição.51 Essas distinções serão muito úteis, quando nos defrontarmos com doutrinas como a Trindade, as duas naturezas de Cristo e a predestinação. ..................................................................................................................................................................................................................................... 46João Calvino, As pastorais, p. 318. 47João Calvino, A s institutas II.2.15. 48Alister McGrath, A vida de João Calvino, p. 173. 49Walter C. Kaiser Jr. e Moisés Silva, Introdução à hermenêutica bíblica, p. 252. 50Cf. Norman L. Geisler (org.), A inerrância da Bíblia, p. 399-422, 461-496 e Augustus Nicodemus Lopes, Calvino: o teólogo do Espírito Santo, p.24. 51A discussão aqui segue em linhas gerais as percepções de R. C. Sproul, Verdades essenciais da f é cristã; doutrinas básicas em linguagem simples e prática, v. 1, p. 13-15.
A METODOLOGIA TEOLÓGICA
45
..................................................................................................................................................................................................................................... Sproul afirma que a influência de vários movimentos em nossa cultura, tais como as religiões orientais e a filosofia irracional “têm provocado uma crise no entendimento”. Para ele, “uma nova forma de misticismo tem surgido, a qual exalta o absurdo como a marca registrada da verdade religiosa”. Ele ainda sugere que a irracionalidade fundamenta-se na confusão do pensamento moderno que se opõe a Deus, que se revela nas Escrituras, o Autor de toda a verdade, “o qual não é de forma alguma o autor de confusão”. Tristemente, a fé evangélica tem se mostrado vulnerável aos vários movimentos filosóficos que surgem em nossa cultura, que enfatizam a irracionalidade como uma virtude espiritual, justamente porque a irracionalidade admite que “existem muitos paradoxos e mistérios na própria Bíblia”, lembra Sproul. Mas a irracionalidade é fatal tanto para a fé cristã como para qualquer outra esfera do conhecimento, completa o autor. Sproul lembra que “existem linhas que distinguem mistério, paradoxo e a contradição” e que “embora sejam tênues, essas linhas divisórias são cruciais e é importante que aprendamos a distingui-las”. Ele entende que “quando tentamos perscrutar as profundezas de Deus, somos facilmente confundidos”, pois nenhum mortal pode compreender a Deus exaustivamente. A Bíblia revela coisas sobre Deus que sabemos serem verdadeiras, a despeito da nossa incapacidade de entendê-las totalmente. Não temos um ponto de referência humano para entender, por exemplo, um ser que é três em termos de pessoa, mas um só em essência (a Trindade), ou um ser que é uma pessoa com duas naturezas distintas, humana e divina (a pessoa de Cristo). Essas verdades, tão certas, como são, são ‘elevadas’ demais para podermos compreendê-las.52 Estamos, então, diante de um mistério. Mistério pode ser definido como “um segredo tem porário, o qual, uma vez revelado, é conhecido e compreendido — e não é mais um segredo”. De forma especial, no Novo Testamento, mistério “significa um segredo que está sendo revelado ou mesmo que foi revelado, que é também divino em seu escopo, e que só pode ser revelado por Deus aos homens por meio de seu Espírito”.53 Em outras palavras, sempre que a palavra aparece no Novo Testamento ela denota revelação ou proclamação, ou seja, mistério é aquilo que é revelado. Essa palavra se relaciona com a história da redenção (Ef 3.9), encontra seu cumprimento na história, em Cristo (G14.4), é espiritual em sua percepção (Ef 3.5) e escatológica em seu resultado (ICo 15.51).54 Então, como nos exemplos citados acima, acerca da Trindade e da pessoa de Cristo, estamos diante de um mistério. Por hora, recebemos luz que vem das Escrituras para confessar a Deus como trino, e a seu Filho como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Mas outros detalhes e aspectos dessas verdades ainda permanecem encobertos. Deus está envolto em mistério, “na luz inacessível” (lTm 6.13-16). A palavra “paradoxo” vem de uma raiz grega que significa “parecer” ou “aparentar”. Sproul lembra que o filósofo reformado Gordon Clark definiu paradoxo como “uma cãibra entre as orelhas”. Segundo Sproul, o comentário de Clark destaca que, muitas vezes, o chamado paradoxo nada mais é do que fruto da preguiça mental, que não busca resolver as aparentes contradições presentes naquilo que consideramos ou estudamos. Mas devemos reconhecer seu papel legítimo e sua função. ■
52R. C. Sproul, Verdades essenciais da f é cristã, p. 13. 53G. Finkenrath, “Segredo”. In: Colin Brown e Lothar Coenen (eds.), d i t a t , v. 4, p.391-393. 54S. S. Smalley, “Mistério”. In: J. D. Douglas (ed.), n d b , p. 1056-1057.
46
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Paradoxos são difíceis de entender porque à primeira vista parecem contradições, mas quando são sujeitos a um exame mais detalhado, freqüentemente pode-se encontrar soluções para resolvê-los. Sproul fornece e comenta alguns exemplos. Jesus disse que “quem perde a vida por minha causa achá-la-á” (Mt 10.39).55 Ele comenta: “aparentemente, isso soa (...) como uma contradição. O que Jesus queria dizer, contudo, é que se alguém perde sua vida em um sentido, irá encontrá-la em outro sentido. Já que a perda e a salvação têm sentidos diferentes, não há contradição”. Para Sproul, então, o termo paradoxo não deve ser interpretado de forma errônea como sendo sinônimo de contradição. Alguns dicionários, atualmente, trazem essa palavra como um significado secundário desse termo. Mas, propriamente entendido, uma contradição é uma afirmação que viola a lei da contradição: A não pode ser A e não-A ao mesmo tempo e no mesmo contexto. Quer dizer, algo não pode ser o que é e não ser o que é ao mesmo tempo e no mesmo contexto. Essa é a mais fundamental de todas as leis da lógica. Sproul continua: Ninguém pode entender uma contradição, porque uma contradição é inerentemente incompreensível. Nem mesmo Deus pode entender contradições; entretanto, certamente ele pode reconhecê-las pelo que são - falsidades. A palavra “contradição” vem do latim “falar contra”. (...) Para Deus, falar em contradições seria ser intelectualmente anormal, falar com uma língua bipartida. Até mesmo insinuar que o Autor da verdade poderia cair em contradição seria um grande insulto e uma blasfêmia irresponsável. A contradição é a arma do mentiroso - o pai da mentira, que despreza a verdade.56 Existe uma relação entre mistério e contradição que pode nos levar a confundir ambos. Não entendemos os mistérios. Não podemos entender as contradições. O ponto de contato entre ambos os conceitos é seu caráter aparentemente ininteligível. Os mistérios podem não ser claros para nós agora simplesmente porque nos falta a informação ou a perspectiva para entendê-los. A Escritura promete que no céu teremos mais luz sobre os mistérios que agora não podemos entender. Mais luz pode resolver os atuais mistérios. Não existe, entretanto, luz suficiente nem no céu nem na Terra para resolver uma óbvia contradição.57 Assim, buscaremos constantemente usar essas distinções, quando estivermos formulando as principais doutrinas cristãs.
Metodologia integrativa Uma das marcas da pós-modemidade é a facilidade para se conseguir informações sobre qualquer campo do saber. Por isso os teólogos estão descobrindo que o rápido crescimento do ■............................................................ ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... ...
55Outros exemplos de paradoxos nos evangelhos são: Lc 6.20-23 e Mt 5.1-12; Lc 6.24-26 e Mt 5.44; Mt 7.13, Lc 13.24, Mt 11.30, Mt 16.25, Mc 8.35 e Lc 9.24; Mt 18.4, Mc 10.15, Mt 20.26-27, Mc 9.35, Mc 10.43-44 e Lc 22.26-27; Lc 9.48, Mc 10.29-30, Lc 18.29-30, Mc 12.43 e Lc 21.1-4. Ver também Lc 14.12-14, Lc 15.7, Jo 3.3, Jo 3.4-8, Jo 4.14, Jo 4.15; Jo 8.45, Jo 10.17, Jo 11.25, At 20.35, Ap 2.10 e Ap 3.17. 56R. C. Sproul, Verdades essenciais da f é cristã, v. 1, p. 14. 57R. C. Sproul, Verdades essenciais da f é cristã, v. 1, p. 14-15.
A METODOLOGIA TEOLÓGICA
47
conhecimento significa que fazer teologia é cada vez mais uma tarefa interdisciplinar. Para responder às questões relevantes de nossa época, então, o teólogo deve ter as ferramentas intelectuais necessárias para entender o mundo de hoje. Além de fazer a exegese das Escrituras, precisa buscar compreender o mundo. Além das tradicionais disciplinas filosóficas e bíblicas, o teólogo precisa de conhecimento da história, sociologia, psicologia e até das ciências exatas. Obviamente, não pode ser um profundo conhecedor em todas essas áreas, mas um conhecimento básico é imprescindível. Por isso, um método teológico que combina várias disciplinas é necessário. O método integrativo coloca a teologia no contexto atual por meio do uso de pesquisas de qualquer disciplina, desde que seja pertinente à questão que está sendo discutida. Gordon Lewis e Bruce Demarest desenvolveram essa metodologia58 que enfatiza a ordem lógica, mas tenta integrar as várias disciplinas relevantes para se estudar e formular as doutrinas da fé cristã coerentemente. Passando por seis etapas, o método da teologia integrativa trabalha com as doutrinas para chegar a conclusões racionais e práticas. O propósito aqui é adaptar o método integrativo ao nosso contexto, com base no pressuposto da analogia fidei. Nesse modelo as doutrinas não são formuladas a partir de pressupostos nãobíblicos, mas por um processo de análise de várias opções à luz da consistência lógica, do apoio dos fatos empíricos e da viabilidade existencial de cada conclusão. Mas no fim, tudo depende do pressuposto da revelação verbal e plenária de Deus na Escritura, que é a fonte e a referência final para determinar nossa teologia. A ssim , trabalharem os segundo as seguintes seis etapas: 1. Definição do problema: define-se um problema ou uma questão a ser estudada. As doutrinas são derivadas das perguntas últimas (Qual é a natureza de Deus? Da vida após a morte? Da salvação?, etc.) em relação aos problemas e perguntas práticas da vida e da cultura contemporânea (Como é que posso conhecer a Deus? Espiritismo? Catolicismo? Será que Deus pode me curar? Posso ter segurança da minha salvação?, etc.). 2. Estudo histórico e comparativo: por meio do estudo da teologia histórica, o método coloca à disposição do leitor as várias opções desenvolvidas na vida da igreja. Além disso, o pluralismo de hoje exige um tratamento das religiões, seitas e filosofias significativas no contexto social em que estamos inseridos. Por isso, várias teorias de fora do âmbito da fé cristã serão estudadas em cada capítulo. Essas doutrinas dão ao aluno oportunidade de interagir com opiniões diferentes de sua própria tradição. O alvo é incluir os movimentos e cosmovisões que não apenas são interessantes academicamente, mas também social e culturalmente relevantes. Uma vez que as limitações de espaço não permitem que toda e qualquer idéia seja tratada, algumas opções foram priorizadas. Quanto à história da igreja, nossa intenção é incluir uma amostra das idéias mais importantes no desenvolvimento de cada doutrina. Em todos os casos, outras poderiam ser mencionadas, mas o alvo é apresentar as correntes principais. Em relação às idéias não-cristãs, o propósito é tratar as cosmovisões importantes no mundo contemporâneo, com referência especial ao contexto brasileiro. Assim, o naturalismo filosófico, que até hoje mantém sua hegemonia no mundo acadêmico, é enfatizado. As religiões que são mais influentes no mundo, e especialmente no Brasil, como o catolicismo romano, o islamismo e outras, são discutidas em cada
58Cf., em especial, Gordon Lewis e Bruce Demarest, Integrative theology, p. 21-58.
48
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA TEOLOGIA CRISTÃ
capítulo, onde isso é pertinente ao assunto. Religiões populares, como espiritismo e candomblé, não podem ser omitidas. Finalmente, incluímos as doutrinas de seitas não-cristãs, especialmente os Mórmons e as Testemunhas de Jeová, devido à sua presença no Brasil. O alvo não é apenas examinar e refutar conclusões diferentes de sua tradição, mas levar o leitor a reexaminar cada opção à luz das Escrituras, para realmente ver qual é a melhor. Cada posição histórica deve ser levada a sério e testada pela Escritura. 3. Estudo bíblico: o teste das várias opções é feito segundo um estudo dos dados bíblicos. Todas as ferramentas da teologia bíblica devem ser empregadas, para que as conclusões estejam fundamentadas na exegese dos textos bíblicos relevantes. Isso inclui o estudo do texto na língua original, no seu contexto cultural, histórico e bíblico. Devemos enfatizar também que um pressuposto importante em nosso estudo bíblico é que encaramos com seriedade a diversidade de gêneros literários presentes na Escritura.59 Cada capítulo desse livro inclui um tratamento da doutrina da forma como esta aparece progressivamente no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Cremos que Deus se revelou progressivamente. A revelação, como a temos nas Escrituras, não foi “dada de uma única vez, da mesma forma, numa mesma época e às mesmas pessoas”. Portanto, “devemos ler o texto bíblico comparando as suas diferentes partes, considerando que as mesmas têm uma unidade básica, mas que existe desenvolvimento dentro delas”. Também afirmamos o caráter histórico-redentivo das Escrituras: “A Bíblia deve ser lida como o registro dos atos redentores de Deus na história. Esses atos foram interpretados e registrados por escritores inspirados por Deus. Portanto, a Bíblia deve ser lida, não como um manual de ciências, astronomia, geografia ou física, mas como um livro teológico”.60 Embora um estudo exaustivo de todos os textos não seja possível num trabalho de tais proporções, esta obra visa descobrir o ensino bíblico essencial de cada doutrina estudada. Em nosso estudo bíblico, seguiremos aqui o chamado método misto, como defendido originalmente por Grant Osborne61 e modificado por Mauro Meister.62 Ele busca combinar os
59Nosso estudo bíblico pressupõe as contribuições hermenêuticas de Gleason L. Archer Jr., Merece confiança o Antigo Testamento?-, Gordon D. Fee e Douglas Stuart, Entendes o que lês?; Jakob van Bruggen, Para ler a Bíblia', Louis Berkhof, Princípios de interpretação bíblica', Walter C. Kaiser Jr. e Moisés Silva, Introdução à hermenêutica bíblica', David S. Dockery, Hermenêutica contemporânea à luz da igreja prim itiva e Roy B. Zuck, A interpretação bíblica. Também recomendamos enfaticamente Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e seus intérpretes. Esta obra analisa as principais etapas da história da interpretação das Escrituras, cobrindo desde a interpretação bíblica no Antigo Testamento até as interpretações pós-modemas, ligadas a Michel de Foucault, Hans-Georg Gadamer, Jacques Derrida e Paul Ricouer. De igual forma, recomendamos a importante obra de Kevin Vanhoozer, H á um significado neste texto? Interpretação bíblica; os enfoques contemporâneos. “ Ambas as definições são encontradas em Mauro Fernando Meister, Tarcízio Carvalho e Augustus Nicodemus Lopes, Princípios de interpretação da Bíblia, passim. Em nosso estudo bíblico, dependemos, em grande medida, das importantes contribuições de teólogos bíblicos como Richard L. Pratt it., Ele nos deu histórias', Gerard Van Groningen, Criação e consumação, v. 1; Gerard Van Groningen, Criação e consumação, v. 2; Gerard Van Groningen, Revelação messiânica no Antigo Testamento', Walter C. Kaiser Jr., Teologia do Antigo Testamento', O. Palmer Robertson, O Cristo dos pactos; O. Palmer Robertson, O Israel de Deus-, Paul R. House, Teologia do Antigo Testamento; Jakob van Bruggen, Cristo na terra', George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento; F. F. Brace, Paulo', o apóstolo da graça; Leon Morris, Teologia do Novo Testamento-, Herman Ridderbos, A teologia do apóstolo Paulo', Donald Guthrie, New Testament theology e Geerhardus Vos, Biblical theology-, Old and New Testament. 61G. R. Osborne, “Teologia do Novo Testamento”, In: Walter A. Eiwell (ed.), EHTIC, v. 3, p. 500-507 e também G. R. Osborne, Hermeneutical spiral. 62Cf. Mauro Fernando Meister, Teologia do pacto, p. 25-28.
A M ETODOLOGIA TEOLÓGICA
49
.................................................................................................................................................................................................................................. . vários elementos positivos dos diferentes métodos de teologia bíblica.63 Como Meister escreve: “A combinação dos pontos positivos e o uso do texto bíblico como guia, com pressupostos claros, pode eliminar várias de suas dificuldades”. Os pontos principais do método misto são: 1. Os dados na construção teológica devem refletir o pensamento individual de um autor, assim como o gênero literário que é utilizado (sabedoria, o pensamento de Marcos ou Mateus, ou Rute). 2. Devemos trabalhar com a forma canônica final dos documentos (para evitar a recons trução especulativa) e buscar o inter-relacionamento dos temas teológicos entre autores e livros da Bíblia. 3. Começar com o pensamento das obras e autores individualmente e depois traçar os temas, à medida que eles emergem naturalmente desses escritos e depois verificar os aspectos de unidade. 4. Descobrir os temas individuais e depois a sua unidade dinâmica e os aspectos múltiplos que os unem. 5. Trabalhar com o pressuposto de que os autores individuais conheciam, em certa medida, o pensamento de autores anteriores a eles, assim como aspectos do pensamento de seus contemporâneos. 6. Trabalhar com ambos os Testamentos, enfatizando tanto sua unidade como a diversidade. Aceitamos como verdadeiras as perspectivas dos autores bíblicos, porém, não deixaremos de lado a abordagem descritiva, que considera de maneira relevante o aspecto histórico e o desenvolvimento da revelação na história. 4. Estudo sistemático: depois de examinar os dados bíblicos, a metodologia integrativa faz uma formulação sistemática, para expor e esclarecer a doutrina. Os vários aspectos da doutrina, derivados do ensino bíblico, são relacionados uns com os outros de maneira coerente e consistente. As conclusões lógicas das doutrinas também são deduzidas nesta etapa. 5. Estudo apologético: depois de formular a doutrina, a metodologia integrativa quer defender a sua conclusão, contrapondo-se a outras posições. Essa defesa deve levar em consideração as idéias contraditórias que vêm da teologia, filosofia e ciência, as seitas heréticas etc. A interação apologética mostra, então, a superioridade da doutrina formulada frente às demais doutrinas contemporâneas, definidas no estudo histórico. O pastor, com certeza, tem interesse em conhecer as idéias de maior influência na cultura que sua congregação enfrentará.64 6. Aplicação prática na vida e no ministério: o alvo da metodologia integrativa é tocar a vida do povo, trazendo-o para um relacionamento mais profundo com Deus e respondendo às questões e preocupações levantadas no início do estudo. Entendemos que a teologia cristã é prática, no sentido de guiar os cristãos a viverem para a glória de Deus. Sendo assim, entendemos que a tarefa da teologia sistemática é utilizar as contribuições das várias esferas do saber teológico: a teologia bíblica, a teologia histórica e a apologética, buscando aplicar os resultados da teologia sistemática à pregação, ao ensino, ao aconselhamento e à ética, buscando construir uma explicação coerente da fé cristã.
630 s diferentes métodos são: sintético (ou temático), analítico, crítica da tradição, cristológico e confessional. 64No capítulo anterior foi abordado o método apologético que será seguido nesta obra em nosso debate sobre o pressuposicionalismo.
50
[ PARTE 1 ]
INTRODUÇÃO AO ESTUDO D A T EO LO G IA CRISTÃ
....................................................................................................................................................................................................................................
Bibliografia para aprofundamento Colin. Filosofia e f é cristã; um esboço histórico desde São Paulo, Vida Nova, 2. ed., 2007.
B row n,
a
Idade Média até o presente.
D. A. Teologia bíblica ou teologia sistemática? Unidade e diversidade no Novo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 2001.
C arson,
E r ic k s o n ,
Millard J. Introdução à teologia sistemática. São Paulo, Vida Nova, 1997. p. 20-37.
H odge,
A. A. Esboços de teologia. São Paulo, PES, 2001.
H odge,
Charles. Teologia sistemática. São Paulo, Hagnos, 2001.
p.
11-29. p.
1-13.
D. M. Lloyd. Grandes doutrinas da Bíblia; Deus o Pai, Deus o Filho. São Paulo, PES, 1997. p. 9-21.
J ones,
Alister. Teologia sistemática, histórica efilosófica', uma introdução à teologia cristã. São Paulo, Shedd Publicações, 2005. p. 175-312.
M cgrath,
R. C. Verdades essenciais da fé cristã', doutrinas básicas em linguagem simples e prática. V. 1, São Paulo, Cultura Cristã, 1999. p. 13-15.
Sproul,
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS Misericordioso Deus, Pai celeste, já que tua Palavra é uma vela e uma lâmpada, que está aí para iluminar o nosso caminho, pedimos-te que por Cristo, a verdadeira luz, queiras abrir e iluminar a nossa mente, e assim possamos compreender a tua Palavra em sua clareza e pureza. Ulrich Zwinglio, 1484-1530 Eterno Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, concede-nos tua graça para que pesquisemos diligentemente as Sagradas Escrituras, que nelas busquemos e achemos a Jesus Cristo e que por ele tenhamos a vida eterna. Martinho Lutero, 1483-1546
ntes de investigar a natureza da realidade (ontologia) na construção de uma cosmovisão, é preciso estabelecer a possibilidade do conhecimento (epistemologia).1 Provavelmente essa seja a necessidade mais crítica na teologia hoje, pois a tendência do pensamento liberal e secular é de que o conhecimento racional esteja limitado ao mundo empírico. Segundo essa tendência, o mundo metafísico, com o qual a teologia tradicional lida, está além do alcance de uma descrição proposicional. É assim que muitos chegam à conclusão de que todas as religiões são fundamentalmente iguais. Todas são apenas tentativas humanas e especulativas de descrever o que não pode ser descrito.
A
................................................................................................................................................................. . 'Cf. especialmente Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, Introdução àfilosofia; uma perspectiva cristã, p. 67-92 e J. P. Moreland William Lane Craig, Filosofia e cosmovisão cristã, p.197-217.
52
[P A R TE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
Nesse ponto, o pastor e teólogo evangélico enfrenta algumas dúvidas legítimas. Uma época que questiona a possibilidade de conhecimento objetivo merece respostas sérias, ao enfrentar as reivindicações exclusivistas da fé cristã, pois atrás da questão da revelação de Deus, está a questão mais abrangente, acerca do alicerce de qualquer conhecimento. Como o conhecimento de algo é possível? A história da filosofia, desde o século xvm, descortina uma jornada em direção ao irracionalismo, que leva até o ceticismo do pós-modemismo atual. Filosofias irracionais, tais como o existencialismo e o misticismo oriental, são populares hoje, pois a comunidade intelectual abandonou a possibilidade de alcançar uma base segura, sobre a qual o edifício de conhecimento possa ser construído.2Mesmo os que colocam sua fé na ciência não ousam ir além de declarações de um conhecimento relativo e limitado, que carece de certezas. Nesse clima intelectual, que palavra o teólogo pode oferecer? Se o conhecimento em si é sempre relativo, segue-se que Deus não pode ser conhecido também. É exatamente essa uma das afirmações principais do ateísmo e do agnosticismo. Para o ateísmo isto significa que o conceito de Deus é irracional e sem significado. Por definição, tal ser não pode existir. O agnosticismo não nega abertamente que ele existe, mas os seus adeptos imaginam que, mesmo se existisse, eles estariam livres de qualquer responsabilidade de responder a Deus. Acreditam eles que, uma vez que não existe certeza de conhecimento, também não existe certeza sobre Deus, e a pessoa não pode prestar contas por algo que não é claramente verdadeiro. Mas será que é de fato assim? Essa é a dúvida que a doutrina da revelação de Deus busca responder. Se Deus existe, de que modo é possível conhecê-lo? Existem três possibilidades: 1) O ser humano pode começar a partir de sua própria mente e do mundo ao seu redor, e alcançar o conhecimento de Deus. Deus é assim conhecido por meio da criação. Essa forma de conhecimento de Deus é chamada revelação geral ou revelação universal, porque está disponível a todos os povos; 2) O ser humano pode conhecer plenamente a Deus somente por uma revelação especial, porque vem através de eventos, pessoas e livros que Deus usou para se comunicar com povos específicos; 3) Existe a possibilidade também de ambos os métodos de revelação serem caminhos para conhecer a Deus. Nos próximos dois capítulos será abordada a questão da revelação de Deus. O capítulo 3 lidará com a revelação geral e a questão da teologia natural. No capítulo 4 será estudada a revelação especial, com atenção maior à questão da doutrina da Escritura, a saber, a natureza da Bíblia.
2Este processo é descrito muito bem pelo historiador C. Gregg Singer na obra From rationalism to irrationality, The decline of the western mind from the renaissance to the present. Segundo Singer, não foi por acaso que a filosofia do iluminismo desembocou em niilismo e ceticismo. O pressuposto da autonomia do conhecimento humano em face da revelação de Deus já contém as sementes da destruição de toda possibilidade de conhecimento racional.
C A P ÍT U LO 3
A REVELAÇÃO GERAL Definição do problema
E
m seu estudo sobre a natureza da religião, Mircea Eliade, especialista em história das religiões, argumenta que para o homem religioso a criação nunca é apenas “natural”; está repleta de valor religioso. Isso porque “o mundo está impregnado com as qualidades do sagrado”. Os deuses do homem religioso “manifestaram as modalidades diferentes do sagrado na própria estrutura do mundo e do fenômeno cósmico”.3 A forma de entender a relação entre o divino e a criação pode variar nos detalhes. Mas dúvidas quanto ao fato da existência de uma revelação divina na criação não foram levadas a sério até a era moderna, e isso somente nas sociedades ocidentais secularizadas. A dessacralização da criação é um acontecimento recente na história do ser humano. Na sua experiência do dia-a-dia, as pessoas enfrentam algo no mundo natural que as leva a pensar no transcendente. A questão é: qual a natureza dessa revelação? A questão da natureza da revelação divina na criação é importante, porque é a partir dessa percepção que muitas das religiões têm sido construídas. Mas a diversidade das interpretações dessa revelação coloca em dúvida a suficiência do conhecimento assim derivado. As interpretações que diferentes culturas têm feito do sagrado são de deuses diferentes, com diferentes exigências e diferentes relações com a criação e o ser humano. Será que é possível chegar à verdade sobre Deus por meio da criação? Tal conhecimento é adequado para atender às necessidades das pessoas? É possível encontrar a salvação na revelação geral? Responderemos a essas indagações com um estudo das várias opções à luz do ensino bíblico.
3Mircea Eliade, The sacred and the profane', the nature of religion, p. 116.
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
Estudo histórico e comparativo A s religiões antigas, o anim ism o e as religiões afro-brasileiras A idéia de que a criação revela o divino é muita antiga na consciência da raça humana. A tendência de sacralizar a criação foi muito forte nas cosmo visões da maioria das culturas. As religiões antigas mostram uma tendência comum de identificar a própria criação com o divino, criando deuses a partir das várias forças naturais. Essa tendência continua até hoje, mesmo nas sociedades seculares e desenvolvidas. Movimentos como a Nova Era são um sinal disso. Embora existisse na prática das religiões tradicionais uma distinção entre o sagrado e o profano, às vezes a imanência das forças divinas tomava essa distinção obscura. Podem ser percebidas duas maneiras pelas quais o divino era visto na criação, tanto nas religiões tribais dos povos primitivos quanto nas religiões antigas das sociedades mais desenvolvidas. Primeiro, o divino era entendido como uma força ou energia que permeava todas as coisas. Os antropólogos adotaram a palavra “mana”, do idioma da Melanésia, para descrever essa força, que é vista como um poder oculto que existe em todas as coisas. É a “presença de uma poderosa, mas silenciosa força nas coisas”. Mana é capaz de ser transmitida das coisas para as pessoas e vice-versa. E uma forma de energia que pode dar poderes extraordinários às pessoas que conseguem obtê-la.4 Nesse sentido, Eliade disse que não é correto entender mana como uma força impessoal, porque não funciona fora do contexto dos eventos e pessoas nas quais está operando.5 Mas ela não está automaticamente presente nas pessoas também. Para obter a energia oculta nas coisas, as religiões desenvolveram vários sistemas de ritos e magia. A segunda maneira que as religiões antigas entenderam o divino na criação foi pela identificação dos deuses com a própria criação. As religiões antigas interpretavam vários aspectos da criação como deuses e as forças da criação como as atividades dos deuses. Assim, encontramos exemplos na religião dos antigos egípcios adorando o sol, dos babilônios adorando a lua, dos gregos adorando o mar etc.6 E importante entender que não é a natureza física em si que é o objeto de culto, mas sim a criação permeada pela presença do divino. Ao estudar uma variedade de religiões, é possível dizer que quase toda a criação tem sido objeto de louvor durante a história da raça humana.7 O que podemos observar em nossa descrição dessas religiões é a idéia de dois tipos de poderes sagrados na criação: a força ou energia que permeia todas as coisas e a existência de seres espirituais. A distinção entre a força ou energia e as pessoas não é sempre óbvia. Existe uma interação íntima entre os dois. Animismo é o nome empregado para descrever as religiões tradicionais que trabalham com essas entidades. Van Rheenen nos oferece a seguinte definição: “[animismo é] a crença que entidades pessoais espirituais e forças pessoais espirituais têm poder sobre os negócios humanos e, consequentemente, que os seres humanos devem descobrir quais forças os influenciam, para que eles possam determinar a ação futura e, freqüentemente, manipular seus poderes”.8 4John B. Noss, M an's religions, p. 14. 5Mircea Eliade, Patterns in comparative religion, p. 23. 6Mircea Eliade, Patterns in comparative religion, p. 138-144,158. 7Cf. John B. Noss, p. 20-21. sGailyn Van Rheenen, Communicating Christ in animistic contexts, p. 20.
O alvo do animismo é a manipulação dos poderes. Isso pode ser feito para conseguir sucesso na vida, amaldiçoar os inimigos, prever o futuro, curar doenças ou descobrir a fonte de calamidades e os problemas da vida. Através de métodos de adivinhação, como astrologia ou a interpretação de augúrios, a tentativa é feita para discernir a vontade dos espíritos e influenciá-los.9 As religiões populares do Brasil sofreram forte influência do animismo, como é evidente no chamado “baixo espiritismo”, ou seja, as religiões de origem africana. A mitologia africana, que está por trás das religiões de candomblé e umbanda, tem um forte vínculo entre os vários orixás e as forças da criação. Os orixás são divindades, ou espíritos, que são intermediários entre o deus supremo, Olorum, e as pessoas. Olorum, o criador, é visto como um ser tão transcendente que não tem contato com o mundo comum dos homens. As pessoas devem tratar com os espíritos, os orixás.10 Os orixás existem numa hierarquia e têm funções diferentes em relação à terra. Oxalá, por exemplo, está afiliado com a água e o ar e Ododúa com a terra.11 Iemanjá, uma das divindades mais cultuadas no Brasil, é conhecida como a Rainha do Mar.12 Segundo o candomblé, existem três forças na criação que são essenciais para manter a harmonia que existe entre todas as coisas. Essas forças são Iwá, a força do ser que possibilita a existência, o Axé, que é a força da dinâmica e realização, e Abá, que dá objetivo e direção ao Axé. O papel dos orixás é mediar as forças aos seres humanos. Assim, esses poderiam manter o equilíbrio entre o mundo visível dos homens e o mundo invisível dos orixás, por meio das atividades religiosas.13 Entre as três forças, o Axé recebe a maior atenção porque é necessário para manter esse equilíbrio. Ele é parecido com a noção de mana, embora não seja exatamente igual. A obtenção de Axé dos Orixás é o objetivo principal do contato humano com eles, da busca humana da religião. O Axé é entendido como força, como energia que tudo traspassa, tudo movimenta, tudo dinamiza, tudo possibilita. Não somente a existência em si é possibilitada pelo Axé, mas sim o seu desabrochar, o seu vir a ser.14 E tudo isso acontece no contexto da criação. Uma discussão completa do candomblé está além do propósito dessa obra, mas mesmo essa visão simples deve ser adequada para entendermos o vínculo entre a criação e o conceito do sagrado. Devemos notar o fato de que a influência das religiões africanas no desenvolvimento do folclore que faz parte do catolicismo popular tem sido significativa, durante toda a história do Brasil. Isso demonstra que a noção de revelação geral é importante para entender a consciência religiosa do Brasil e fazer uma avaliação correta dela. 0 cristianism o prim itivo Na teologia cristã, a revelação geral inclui o que é revelado sobre Deus por meio da criação, da história e da lei moral no coração humano. Entre os teólogos cristãos existem perspectivas divergentes sobre a extensão e a natureza da revelação geral.15 ■
9Gailyn Van Rheenen, Communicating Christ ln animistic contexts, p. 177. 10Volney J. Berkenbrock, A experiência dos orixás', um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé, p. 222. "Raimundo Cintra, Candomblé e umbanda', o desafio brasileiro, p. 49. 12Raimundo Cintra, Candomblé e umbanda', o desafio brasileiro, p. 59-60. 13Volney J. Berkenbrock, A experiência dos orixás', um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé, p. 187-188. 14Volney J. Berkenbrock, A experiência dos orixás; um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé, p. 259. 15Somos devedores, especialmente aqui, das várias percepções presentes na trilogia já clássica de Francis Schaeffer: A morte da razão, O Deus que intervém e O Deus que se revela.
56
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA R EV ELAÇ ÃO DE DEUS
■
Os pais da igreja foram os primeiros a tentar esboçar uma explicação satisfatória para a doutrina da revelação. Em seus aspectos essenciais, propunham como solução que Cristo seria o pensamento ou a mente do Pai, e que, como manifesto na criação e na revelação, ele seria a extrapolação ou expressão desse intelecto. Recorriam à figura do Logos, ou Palavra, que era conhecida pelo judaísmo posterior e também pelo estoicismo, e que se tomou popular com Filo de Alexandria. O Evangelho de João (1.1-4) afirma que no princípio a Palavra estava com Deus e se fez carne em Cristo. Justino, um famoso apologista cristão do século n, aproximavase mais do pensamento de Filo, no sentido de que o Logos era um poder intermediário entre o Deus transcendente e a criação, e que era uma operação de Deus. Para Justino, o Logos era o agente de Deus na criação e o meio pelo qual a mente apreende Deus. A Razão, ou Logos Spermátikos, unia os homens a Deus e dava-lhes conhecimento dele. Antes da vinda de Cristo, os homens tinham facetas fragmentadas da verdade,16 sementes do Logos', seguindo-se daí, tais pagãos eram, em certo sentido, cristãos antes do cristianismo.17 Então, a verdade encontrada em filósofos como Homero, Sócrates e Platão derivava da revelação do Logos. Deve-se acrescentar que alguns destes primeiros pais supunham que alguns sábios da Grécia tinham visitado o Egito, mantendo contato com os escritos dos profetas de Israel.18 Fica claro que, no pensamento de Justino, como também no de outros pais da igreja, a filosofia grega foi por vezes emprestada para sustentar os argumentos a favor da fé cristã. Mas, no pensa mento de Agostinho de Hipona, a tendência em direção a esse sincretismo foi vencida e a fé na revelação de Deus estabelecida como o fundamento do conhecimento de Deus. Ele escreveu: Não existe escada alguma entre as realidades humanas e as coisas divinas, de modo que o homem por seu próprio esforço pudesse se elevar da vida terrestre. Eis porque a inefável misericórdia de Deus vem ajudar a cada homem em particular e ao conjunto do gênero humano, para lembrá-los da sua primeira e perfeita natureza, mediante a dispensação da divina Providência.19 Na opinião de Agostinho, o conhecimento de Deus é inseparável do espírito humano. Ele refutou o ceticismo, apontando para o fato óbvio de que existem verdades inegáveis e necessárias, como o fato de sete mais três ser igual a dez, e para o fato de nossa própria existência. Essas verdades não são fabricadas pela mente humana, mas são descobertas. Certamente não negarás que existe uma verdade imutável, contendo todas as coisas imutavelmente verdadeiras, que não poderás dizer que são tuas ou minhas ou de qualquer outro homem. Por algum milagre, uma luz inefável e universal está, por assim dizer, presente de modo manifesto e igual para todos. Mas quem poderá dizer que o que está ao alcance de todos que pensam e compreendem pertence, na realidade, à natureza de qualquer indivíduo? Pois é bom lembrar o que acabamos de dizer sobre os sentidos do corpo. Ou seja, que o que todos percebemos com nossos olhos ou ouvidos, como as cores e os sons, não pertencem aos olhos ou aos ouvidos individuais, mas estão ao alcance de todos. Da mesma forma, não poderás dizer que aquelas coisas que todos apreendemos, com nossos espíritos
16Justino, I Apologia 32.8; II Apologia (7)8.1; 10.2; 13.3, p. 48, 98, 100, 104. 17ld., ibid. 46.3, p. 61-2. 18Cf. Justo L. Gonzalez, História do pensamento cristão, v. 1, p. 95-117 e Roger Olson, História da teologia cristã, p. 57-60. 19Santo Agostinho, A verdadeira religião, p 19.
A REVELAÇÃO GERAL
individuais, tenham qualquer relação com essas mentes individuais. Pois não se pode dizer que o que os olhos de duas pessoas vêem ao mesmo tempo pertença aos olhos de qualquer dos dois, mas consiste de fato de alguma terceira coisa que atraiu o olhar de ambos.20 Assim, existem verdades superiores à razão humana. Embora essa razão seja algo excelente, a verdade é superior. Não é o ato de reflexão que cria as verdades. Ele somente as constata. Portanto, antes de serem constatadas, elas já permaneciam em si, e uma vez constatadas essas verdades se renovam.21 Portanto, a verdade deve ser identificada com Deus. Logo, Deus existe.22 Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão.23 Agostinho também mencionou outras provas da existência de Deus, como a ordem do universo que mostra evidência de propósito e planejamento e o fato de quase toda a raça humana admitir sua existência. Não obstante, o propósito dos argumentos não foi comprovar a existência de Deus a partir da criação, como os escolásticos fariam depois. Ele estava mais interessado em demonstrar que o homem que não aceita a realidade de Deus é rebelde à revelação clara na criação. Apesar da clareza da revelação de Deus, segundo Agostinho, o pecado leva o homem a se colocar contra ela. As pessoas não aceitam a revelação de Deus na criação. Assim, a revelação geral não desemboca em salvação.24 Um resultado importante do desenvolvimento da teologia cristã durante o período patrístico foi a “desdivinização” do mundo. A ordem social e religiosa das sociedades do mundo antigo dependia da “unidade contínua dos deuses e homem, do divino e o humano, e a unidade de todo ser”.25 Panteísmo e animismo estavam implícitos nessa visão e, por isso nunca entrou na mente dos povos antigos a noção de uma separação entre a ordem civil e a ordem religiosa. Mas a doutrina bíblica da criação fez uma distinção absoluta entre o ser de Deus e a criação. A formulação do concílio de Calcedônia, a doutrina da unidade da natureza divina e da natureza humana, refletiu essa distinção na única pessoa de Cristo. Assim o divino foi separado da criação no desenvolvimento da teologia cristã. 0 escolasticism o e a teologia católica Mesmo com a separação entre Deus e o mundo que a teologia cristã derivou da Bíblia, a tentação de empregar filosofia não-cristã a serviço da fé permaneceu forte. Essa tendência filosófica chegou a seu ápice na teologia natural de Tomás de Aquino. Até hoje o tomismo é
20Santo Agostinho, O livre arbítrio, I.12. 21Santo Agostinho, A verdadeira religião, 73. “ Gordon Clarke, Thales to Dewey, p. 225-227. 23Santo Agostinho, A verdadeira religião, 72. 24Bruce A. Demarest, General Revelation-, historical views and contemporary issues, p 28-29. 25R. J. Rushdoony, The One and the Many, studies in the philosophy o f order and ultimacy, p. 124.
58
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA R EV ELAÇ ÃO DE DEUS
a-................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................. ..
fundamental na teologia da igreja católica romana.26 A teologia natural é usada para comprovar a existência de Deus e descobrir algo sobre seus atributos, a partir dos fatos e evidências observados na criação. Ela não apela à revelação especial, mas somente à revelação geral na criação. Começa com crenças acerca do mundo consideradas comuns e aceitas por todas as pessoas, sejam cristãs ou não, e, partindo daí, constrói argumentos para chegar a Deus. Segundo a teologia natural, todos os fatos da criação e da história são um terreno comum entre todas as pessoas. A existência de Deus é a conclusão de argumentos lógicos que dependem desses dados. Por ser fundamentada na criação e na lógica, essa teologia não mostra um quadro completo de Deus. Segundo ela, Deus pode ser descoberto assim, mas o conhecimento de doutrinas como a Trindade e a redenção depende da revelação bíblica. Por trás do projeto de Tomás de Aquino estão mais dois pressupostos importantes. Primeiro, ele acreditava que a racionalidade da mente humana é capaz de construir uma teologia natural, mesmo após a queda. Assim, a capacidade do ser humano de enxergar e entender a revelação de Deus na criação não sofreu prejuízo por causa de pecado.27 Além disso, sob a influência de Aristóteles, ele empregou a noção da analogia do ser (analogia entis), que foi tratada no capítulo 2. A distinção entre o conhecimento de Deus por meio da criação e o conhecimento de Deus pela Bíblia foi desenvolvida profundamente no pensamento de Tomás de Aquino. Ele formulou as doutrinas da natureza e da graça (que seriam duas realidades), dos dois conhecimentos (o natural e o revelado) e dos dois métodos para conhecei e sabei (a razão e a fé).
No nível inferior, o ser humano pode obter um conhecimento básico de Deus pelo estudo da natureza e dos argumentos filosóficos. Tomás usou o método indutivo e racional para deduzir que o Deus infinito e poderoso existe. Ele elaborou “cinco caminhos”, ou provas, da existência de Deus, e sustentava que a partir da revelação natural, o homem pode chegar a entender certas verdades de Deus e até mesmo comprová-las filosoficamente: Primeiro caminho (o caminho da mutação): o mundo não é estático. Nele, tudo o que se move é movido por outro ser. Por sua vez, esse outro ser, para que se mova, também necessita ser movido por um outro. E assim, sucessivamente. Portanto, se não houvesse um “Primeiro Motor” cairíamos num processo indefinido. Logo, precisamos de um Primeiro Ser movente que não seja movido por nenhum outro (primum movens quod in nullo moveatur). Com base em Romanos 1.20, ele afirmava que este “Primeiro Motor” é Deus. 26Muitos teólogos e filósofos não-católicos aceitam a teologia natural também. Entre os evangélicos, alguns são C. S. Lewis, Norman L. Geisler, R. C. Sproul e John H. Gerstner. Cf. por exemplo R.C. Sproul, John H. Gerstner e Arthur W. Lindsley, Classical apologetics: a rational defense o f the Christian faith and a critique o f pressuposicional apologetics. 27Cf. Justo L. Gonzalez, História do pensamento cristão, v. 2, p. 247-272 e Roger E. Olson, História da teologia cristã, p. 344-348.
A REVELAÇÃO GERAL
59
................................................................................................................................................................................................................................... .
Segundo caminho (o caminho da causalidade eficiente): todas as coisas existentes no mundo não possuem em si mesmas a causa eficiente de suas existências e devem ser consideradas como efeitos de alguma coisa. Logo, é necessário admitir a existência de uma Primeira Causa eficiente, responsável pela sucessão de efeitos. Essa Primeira Causa é Deus. Terceiro caminho (o caminho da contingência): todo ser contingente do mesmo modo que existe pode deixar de existir. Ora, se todas as coisas que existem podem deixar de ser, então, alguma vez, nada existiu. Mas, se assim fosse, também agora nada existiria, pois aquilo que não existe somente começa a existir em função de algo que já existia. É preciso admitir-se, então, que há um “Ser” que sempre existiu, um “Ser” absolutamente necessário, que não tenha fora de si a causa da existência, mas pelo contrário, que seja a causa da necessidade de todos os seres contingentes. Esse “Ser Necessário” é Deus. Quarto caminho (o caminho dos graus de perfeição): pode-se afirmar a existência de graus diversos de perfeição em relação à qualidade de todas as coisas existentes. Assim, afirmamos que tal ser é melhor que outro, mais belo, ou mais poderoso ou mais verdadeiro. Ora, se algo possui em maior ou menor grau determinada qualidade positiva, isso nos faz supor que deve existir um ser que detém o máximo desta qualidade, ao nível da perfeição. Devemos admitir, então, que existe um ser com o máximo de bondade, de beleza, de poder, de verdade, sendo, portanto um “Ser Perfeito”. Esse “Ser Perfeito” é Deus. Quinto caminho (o caminho do finalismo): tudo o que existe na criação cumpre uma função, um objetivo, uma finalidade, semelhante à flecha lançada pelo arqueiro — há uma ordem na criação. Devemos admitir, então, que existe algum ser inteligente, que dirige tudo o que faz parte da criação para que cumpra seu objetivo. Esse “Ser Ordenador” é Deus.28 A analogia de “ser” foi empregada por Tomás de Aquino para fazer as pontes entre fenômenos observados na criação e a necessidade de Deus, que é a causa deles. Os argumentos são compostos de silogismos lógicos, mas suas premissas dependem de uma epistemologia empirista. Usando os cinco sentidos, o ser humano é capaz de observar e perceber corretamente os atributos e relações entre o que existe na criação. Os fatos ou dados são iguais para todos. A razão humana não precisa de Deus como referencial para iniciar o processo de interpretação do mundo. Ela dá início a esse processo e, ao seguir os sentidos e as leis da lógica corretamente, inevitavelmente chega a Deus. Para ver como isso funciona consideraremos o argumento cosmológico, assim desenvolvido: (1) Todo efeito, pela sua própria natureza, precisa de uma causa. (2) Todo ser contingente é um efeito. (3) Logo, todo ser contingente é causado. (4) Segue-se, portanto, que a causa de todo ser contingente não é contingente, mas, sim, necessária (ou seja: Deus).29 A premissa (1) é verdadeira por definição, mas a premissa (2) depende da validade da observação da existência de causalidade no mundo físico. Para Tomás de Aquino a verdade dessa suposição era óbvia. Ele acreditava que os fatos, nos quais alicerçava os argumentos, não poderiam ser negados por qualquer pessoa racional e razoável. O ser da criação é análogo ao Ser de Deus. Portanto, as coisas básicas sobre Deus podem ser descobertas por quem o buscar 280 leitor encontrará uma boa discussão dos argumentos de Tomás de Aquino em Giovanni Reale e Dario Antiseri, H istória da filosofia, v. 1, p. 562-566. 29Norman L. Geisler e Paul D. Feinberg, Introdução àfilosofia-, uma perspectiva cristã, p. 231.
60
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA R EV ELAÇ ÃO DE DEUS
■ ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... *
na criação. Entretanto, o conhecimento das coisas pertencentes à salvação é revelado somente por meio da Escritura e da tradição cristã interpretada pela igreja. Esses assuntos fazem parte do domínio da graça. Para ser salva, uma pessoa precisaria submeter-se à autoridade da igreja. A tradição evangélica A compreensão de Martinho Lutero foi influenciada fortemente por Agostinho. Ele rejeitou a teologia natural da igreja católica e reconheceu a revelação geral na forma de um conhecimento inato da existência de Deus, que todo ser humano tem, e do qual ninguém pode fugir. A lei moral de Deus está escrita no coração das criaturas, de forma que todos têm um testemunho do que é certo e errado. Em seu comentário sobre Romanos 1, Lutero afirmou que todos são responsáveis diante de Deus, pois Deus se revela claramente na criação. Lutero escreveu: É necessário, nas passagens seguintes [Rm 1.18-32], entender que a censura se refere a todos os povos e a toda a massa perdida do gênero humano. Pois este é o objetivo do apóstolo: revelar Cristo como o salvador de todos, não somente dos romanos e dos judeus que viviam em Roma. (...) O fato de que ele fala a respeito do conhecimento natural fica manifesto a partir daquilo que ele acrescenta mais abaixo, sobre o modo como Deus se manifestou a eles, a saber, que “os seus atributos invisíveis são percebidos claramente desde o começo do mundo, através de suas obras” [1.20] (isto é: são naturalmente conhecidos a partir dos efeitos), ou seja: desde o início do mundo sempre foi assim que “os seus atributos invisíveis” são percebidos. Afirma isso para que ninguém venha sofismar que somente em nosso tempo Deus pode ser objeto de conhecimento. Deus podia, e ainda pode, ser conhecido desde o começo do mundo e por todo o sempre. (...) Que a noção de Deus - como diz aqui [o apóstolo] - tenha sido manifestada claramente a todos, mas principalmente aos idólatras, de modo que possam ser convencidos, sem recorrer a desculpas, de que conheceram os atributos invisíveis de Deus, sua própria divindade, bem como sua eternidade e seu poder, prova-se a partir do fato de que todos que constituíram ídolos e os veneraram, também os chamaram de deuses ou de deus. (...) Erraram, porém, quando não conservaram essa divindade pura e não a adoraram nesta mesma condição, mas a submeteram a seus desejos e anseios, ajustando-a aos mesmos. Cada qual queria ver a divindade naquilo que lhe agradava e, assim, transformaram a verdade de Deus em mentira. (...) Por essa mesma razão, também, agora, há muitos que, como vemos e ouvimos, são entregues ao seu próprio e condenável modo de pensar.30 Mesmo assim, Lutero manteve a afirmação de que a razão natural é corrompida e incapaz de tirar conclusões corretas dessa revelação. Na teologia natural, a razão usurpa o lugar da fé. Seu resultado é um conhecimento abstrato e impessoal. Em vez de chegar a Deus, ela agarra um sonho fabricado pelo diabo. Por outro lado, a cruz de Cristo significa o fim de toda especulação sobre a natureza invisível de Deus.31 30Martinho Lutero, “A epístola do bem-aventurado apóstolo Paulo aos Romanos” em Martinho Lutero-, obras selecionadas, v. 8: Interpretação bíblica - princípios, p. 261-263. 31Bruce A. Demarest, General Revelation', historical views and contemporary issues, p. 44-49. Cf. também Timothy George, Teologia dos reformadores, p. 59-60. Para Lutero, quando a razão ultrapassa seus limites — ou seja, tenta julgar e discernir os assuntos da sociedade e do governo humano — e passa a investigar e discutir assuntos teológicos, a razão toma-se insuficiente. Quando isto acontece, no entendimento do reformador, a razão se torna a “besta”, “o inimigo de Deus”, “a prostituta do Diabo”. Para Lutero, os homens não têm capacidade de julgar a Escritura. Eles precisam ouvir, confiar e deixar que a Escritura os julgue.
A REVELAÇÃO GERAL
61
Na teologia de João Calvino também houve um retorno ao posicionamento de Agostinho. Em vez de uma teologia natural, Calvino enfatizou os efeitos do pecado na capacidade do ser humano de perceber a Deus por meio da criação. Não que tenha negado a realidade da revelação geral de Deus. Muito pelo contrário. Calvino ensinou que Deus é nitidamente revelado na criação e conhecido por todo ser humano. Visto que no conhecimento de Deus está posta a finalidade última da vida bem-aventurada, para que a ninguém fosse obstruído o acesso à felicidade, não só implantou Deus na mente humana essa semente de religião a que nos temos referido, mas ainda de tal modo se revelou em toda a obra da criação do mundo, e cada dia nitidamente se manifesta, que eles não podem abrir os olhos sem se verem forçados a contemplá-lo. Por certo que sua essência transcende a compreensão, de sorte que sua plena divindade escapa totalmente aos sentidos humanos. Entretanto, em todas as suas obras, uma a uma, imprimiu marcas inconfundíveis de sua glória, e na verdade tão claras e notórias, que por mais brutais e obtusos que sejam, tolhida lhes é a alegação de ignorância.32 No começo do primeiro livro das Instituías da religião cristã, ele afirma que o conhecimento de Deus é inato na consciência do homem. Que existe na mente humana, e na verdade por disposição natural, certo senso da divindade, consideramos como além de qualquer dúvida. Ora, para que ninguém se refugiasse no pretexto de ignorância, Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina realidade, da qual, renovando constantemente a lembrança, de quando em quando instila novas gotas, de sorte que, como todos à uma reconhecem que Deus existe e é seu Criador, são por seu próprio testemunho condenados, já que não só não lhe rendem o culto devido, mas ainda não consagram a vida à sua vontade.33 Para se conhecer, é preciso que o homem conheça a Deus, e para conhecer a Deus o homem deve se conhecer. Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro origina.34 A realidade de Deus é uma intuição natural, portanto, de todo ser humano. Além da revelação interior, Calvino reconheceu uma revelação exterior na criação, que mostra a glória de Deus. A criação é um espelho que reflete a sabedoria e bondade de Deus. Sua beleza e funcionamento preciso mostram as perfeições do seu Criador. Portanto, é preciso confessar que nas obras de Deus, uma a uma, de modo especial, porém em sua totalidade, estão estampados, como que em painéis, os poderes operativos de Deus, mercê dos quais seu conhecimento, e daí a verdadeira e plena felicidade, é 32João Calvino, As instituías 1.5.1. 33João Calvino, As instituías 1.3.1. 34João Calvino, As insiiluias 1.1.1.
62
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
convidado e atraído todo o gênero humano. E ainda que as virtudes de Deus estejam retratadas ao vivo e se mostrem em todo o mundo, só entendemos ao que elas tendem, quanto valem e para que servem, quando penetramos em nós mesmos e consideramos os caminhos e modos em que o Senhor descerra para nós sua vida, sabedoria e virtude, e exerce em nós sua justiça, bondade e clemência.35 Infelizmente, o conhecimento de Deus que vem ao homem pela criação é ineficaz por causa do pecado. Concordando com Lutero, Calvino criticou as tentativas de construir uma teologia natural. Como foi visto no capítulo anterior, não há no pensamento de Calvino nenhum sinal da analogia do ser. Ele rompeu com a tradição católica e negou sua tendência de divinizar o mundo.36 As especulações filosóficas, sem a luz da Bíblia, são sempre deturpadas e não levam o homem ao conhecimento correto de Deus, segundo Calvino.37 Isso não ocorre pelo fato de a revelação ser obscura. Ela é clara. Mas a culpa é do homem que reprime a revelação de Deus. Somente com a luz das Escrituras e a iluminação do Espírito Santo isso pode ser vencido.3® Portanto, ainda que esse fulgor, que aos olhos de todos se projeta no céu e na terra, mais que suficientemente despoje de todo fundamento a ingratidão dos homens, serve também para envolver o gênero humano na mesma incriminação. Deus a todos, sem exceção, exibe sua divina majestade debuxada nas criaturas, contudo, é necessário adicionar outro e melhor recurso que nos dirija retamente ao próprio Criador do universo. Portanto, Deus não acrescenta em vão a luz de sua Palavra para que a salvação se fizesse conhecida. E considerou dignos deste privilégio aqueles a quem quis atrair para mais perto e mais íntimo.39 A Confissão de La Rochelle (artigo 2)40 resume o pensamento reformado: Foi Deus quem se fez conhecer ao homem. Primeiramente, por suas obras, tanto pela Criação como pela conservação e maneira como Ele a conduz. Também, e mais claramente ainda, pela Palavra, a qual foi primeiramente revelada verbalmente e em seguida escrita nos livros que nós chamamos Santa Escritura. Esta declaração é ampliada na Confissão Belga (artigo 2), que afirmou que o conhecimento de Deus é recebido de duas formas; Nós O conhecemos por dois meios. Primeiro: pela criação, manutenção e governo do mundo inteiro, visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar “os atributos invisíveis de Deus”, isto é, “o seu eterno poder e a sua divindade”, como diz o apóstolo Paulo (Romanos 1.20). Todos estes atributos são suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis.
35João Calvino, A s instituías 1.5.10. 36Cf. João Calvino, As instituías 1.5.6. 37Cf. João Calvino, As instituías 1.5.9. J8Bruce A. Demarest, General Revelation: Historical Views and Contemporary Issues, p. 51-58. “'João Calvino, As instiiufas 1.6.1. 40Confissão de f é das igrejas reformadas da França, denominada Confissão de f é de La Rochelle, disponível em http://www.monergismo.com/textos/credos/Confissao_Franca_Rochelle.pdf, acessado em 05.03.2007.
63
A REVELAÇÃO GERAL
Segundo: D eu s se fe z conhecer, ainda m ais clara e plenam ente, por sua sagrada e divina Palavra, isto é, tanto quanto nos é n ecessário nesta vida, para sua glória e para a salvação dos que L he pertencem .
Podemos sintetizar os dois temas presentes nessas confissões em dois pontos. Em primeiro lugar, pode-se conhecer a Deus por intermédio da natureza e por intermédio das Escrituras. Em segundo lugar, “a segunda forma é mais clara e mais completa do que a primeira”.41 A posição dos reformadores, então, e de importante parcela da tradição evangélica, pode ser resumtda da seguinte forma: mediante uma iluminação que atinge todos as homens, cada pessoa percebe claramente a existência, o poder e a justiça de Deus. Entretanto, nenhuma delas louva e serve a Deus, por causa do pecado que reina no coração humano. Aliás, todos sabem que Deus existe e reconhecem que ele é o Criador, o Rei soberano, perfeito, infinito e o juiz do mundo. Existe “terreno comum” entre o descrente e o crente, porque todos têm em comum esse conhecimento de Deus. Conhecimento que pode ser usado como base para evangelizar o não-crente e para a apologética. Essa revelação não é suficiente para salvar porque não revela o evangelho, mas é suficiente para condenar justamente todos os homens. Por outro lado, tem sido travado entre os cristãos intenso debate, no decorrer da história da igreja, sobre o destino dos povos que não foram evangelizados. Esse debate se tornou mais intenso nos últimos três séculos, especialmente entre os teólogos evangélicos. No quadro abaixo, podemos ver as diversas posições afirmadas no debate. P o n to s de vis ta sobre o destin o dos n ã o -e v a n g e liza d o s 42 Restritivism o
--------------------------------- 1 O portunidade Inclusivism o universal antes da morte
1 Perseverança divina ou evangelism o post-m ortem
Universalism o
Definição: Deus não provê salvação para aqueles que não ouvem acerca de Jesus e, conseqüentemente, não crêem nele antes da morte.
Definição: Todas as pessoas recebem uma oportunidade de serem salvas porque Deus lhes envia o evangelho (m esm o por anjos ou sonhos) ou no m omento da morte ou pelo conhecim ento intermediário.
Definição: Os nãoevangelizados podem vir a ser salvos, se responderem a D eus em fé, baseados na revelação que possuem.
Definição: Os nãoevangelizados recebem uma oportunidade de crer em Jesus depois da morte.
Definição: Todas as pessoas serão, na verdade, salvas por Jesus. Ninguém é condenado eternamente.
Textos-chaves: João 14.6 A tos 4.12 lJoão 5.11-12
Textos-chaves: Daniel 2 Atos 8
Textos-chaves: João 12.32 Atos 10.43 1Tim óteo 4.10
Textos-chaves: João 3.18 1Pedro 3.18-4,6
Textos-chaves: Romanos 5.18 lCoríntios 15.22-28 lJoão 2.2
j
continua
41Alister McGrath, Teologia sistemática, histórica efilosófica, p. 257-258. Ele escreve: “Essa estrutura básica é de grande importância para a criação da tradição dos ‘dois livros’ da teologia reformada, em especial na Inglaterra, que considerava a natureza e as Escrituras com o duas fontes complementares para o nosso conhecim ento de D eus”. 42John Sanders (org.), E aqueles que nunca ouviram? Três pontos de vista sobre o destino dos não-evangelizados, p. 24.
64
[ PA R TE 2 ]
Representantes: A gostinho João Calvino Jonathan Edwards Cari Henry R. C. Sproul Ronald Nash
Representantes: Tom ás de Aquino Jacobus Arminius John Henry N ewm an Oliver B usw ell Jr. Norman Geisler Robert Lightner
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
Representantes: Justino Mártir John W esley C. S. L ew is Clark Pinnock Wolfhart Pannenberg John Sanders
Representantes: Clem ente de Alexandria George M acDonald Donald B loesch George Lindbeck Stephen D avis Gabriel Fackre
Representantes: Origenes F. E. Schleiermacher G. C. Berkouwer W illiam Barclay Jacques Ellul Karl Barth
Todos os representantes m encionados concordam que Je s u s é o único salvador.
Deve-se mencionar que alguns teólogos reformados contemporâneos, como Cornelius van Til, Gerg Bahnsen e Gordon Clark, afirmam que existe a revelação geral, mas o descrente não consegue aprender sobre Deus por meio dela, porque o ser humano reprime e rejeita essa revelação. Por causa do pecado, o homem sempre faz uma interpretação errada da revelação geral, por isso esses teólogos negam a possibilidade de construir uma teologia natural. A revelação é clara, mas os olhos dos homens são cegos. Estes detestam a Deus e tentam evitar enfrentar e submeter-se a ele. Interpretam o mundo natural pressupondo que o Deus da Bíblia não existe, e por isso a interpretação é sempre errada. Não existe terreno comum entre o crente e o não-crente na epistemologia, segundo esses teólogos reformados. O não-crente tem um real conhecimento de Deus, mas rejeita e reprime esse conhecimento e acaba sem qualquer conhecimento de Deus. 0 llum inism o Nos séculos xvii e xvm, a tendência a favor de uma teologia que pregava a autonomia da razão humana, dispensando qualquer dependência da revelação bíblica, a qual já estava presente na teologia natural de Tomás de Aquino, realizou-se plenamente no pensamento iluminista. Nele, a epistemologia segue duas correntes distintas, a do racionalismo e a do empirismo. Segundo o racionalismo, todo conhecimento encontra sua base em argumentos lógicos fundamentados em suposições indubitáveis. Os racionalistas do lluminismo foram René Descartes, Gottfried Wilhelm Leibnitz e Baruc Spinoza. O empirismo localiza o início de todo conhecimento nos cinco sentidos. A experiência com os dados empíricos do mundo é a base de conhecimento. Os empiristas principais do lluminismo eram John Locke, George Berkeley e David Hume. René Descartes fundamentou o conhecimento de Deus na capacidade racional do homem. Ele criou uma nova versão do argumento ontológico, afirmando que a idéia de um Deus perfeito e infinito nunca poderia ter sido gerada por um ser humano finito e imperfeito. Tal idéia só poderia ser explicada como o efeito de uma causa adequada, a saber, o próprio Deus. Portanto a existência de Deus é necessária para explicar a noção de Deus.43 A idéia de Deus, no caso, é resultado de uma intuição imediata. Ela não é derivada da observação empírica, uma vez que essa não é confiável. O argumento de Descartes tem sérias falhas, que, no fim, ofereceram uma abertura para os empiristas minarem todo seu projeto. Primeiro, o racionalismo poderia funcionar muito bem ao gerar verdades abstratas sobre sistemas como geometria e lógica simbólica. Porém, para 43Bruce A. Demarest, General revelation', historical view s and contemporary issues, p. 77. Cf. também Franklin Ferreira, Gigantes da f é , p. 197-206, para as críticas de Pascal a Descartes.
A REVELAÇÃO GERAL
65
................................................................................................................................................................ . colocar silogismos lógicos em contato com o mundo real é preciso uma fonte de dados ou fatos empíricos para dar conteúdo aos silogismos. O exemplo clássico é: 1) Sócrates é homem, 2) Todo homem é mortal, 3) Logo, Sócrates é mortal. O silogismo tem a forma lógica: 1) a é b, 2) todo b é c, 3) portanto, a é c. Embora a forma simbólica seja válida, o silogismo a respeito de Sócrates somente é verdadeiro se os enunciados 1 e 2, que são as premissas do argumento, forem verdadeiros. Mas não existe nenhum processo puramente lógico para averiguar isso. Só uma investigação empírica serve. Então, o racionalismo puro não pode demonstrar verdades sobre o mundo concreto, porque ele não tem como entrar em contato com esse mundo. Descartes tentou resolver esse problema, fundamentando seus pressupostos em idéias claras e distintas que são indubitáveis, por serem conhecidas pela intuição. Seu método era duvidar de tudo que pudesse ser duvidado até chegar nessas idéias básicas. Mas isso apenas o conduziu a um segundo erro. Para colocar a lógica em contato com a realidade, ele criou vários pressupostos sem justificativa. O argumento ontológico de Descartes depende da suposição de que a causalidade existe. Mas esse pressuposto não está além da dúvida, como David Hume mostraria depois, e nem o pressuposto do famoso cogito de Descartes — “penso, logo existo” — é indubitável como ele acreditava. Novamente, Hume teria algo a dizer sobre isso. A fraqueza fatal do argumento ontológico de Descartes está em começar com o fato de ele ter uma idéia de Deus. Na verdade, é a idéia de Deus que aprendeu da igreja, dos seus pais e da sua tradição. Não é uma idéia que surgiu do nada ou da lógica pura. O fato de ter a idéia depende, pelo menos em parte, da compreensão empírica da idéia. Depois do fracasso do racionalismo, deu-se preferência à filosofia do empirismo. Empiristas como David Hume entenderam que a razão significa conhecimento através dos sentidos. Uma vez que o método empírico se mostrou tão útil nas ciências naturais, deveria servir para averiguar as verdades da filosofia e religião também. Enquanto alguns teólogos, como William Paley, continuaram a empregar os argumentos da teologia natural, a demolição mais sistemática dessa teologia foi executada por Hume, em meados do século xvm. Segundo Hume, o argumento cosmológico não é válido por ser um salto na conclusão, algo que as premissas não permitem. “Não é correto deduzir um efeito maior que a causa em estudo”, disse Hume. O efeito em questão, o universo, mostra um grande número de defeitos, como furacões e doenças. Portanto, se há um motor imóvel, este não pode ser um Deus perfeito, mas apenas uma força que deve ter as mesmas imperfeições. Além disso, a dedução de que a ordem no universo exige a existência de uma mente organizadora não pode ser comprovada a partir da experiência. Nós sabemos que a existência de um relógio exige a existência do relojoeiro, porque em nossa experiência sempre vemos que é o relojoeiro quem fabrica o relógio. Mas ninguém ainda teve a experiência da origem do universo. Como é, então, que poderemos dizer que uma mente organizadora é necessária, quando isso nunca foi observado? Talvez universos pertençam a uma categoria de existência que não precise de organizadores. Esses argumentos já são difíceis para a teologia natural, mas a situação agravou-se. Ao analisar a natureza da experiência empírica, descobrimos que a experiência dos sentidos é sempre uma experiência da mente da pessoa. Toda percepção dos eventos e objetos no mundo
66
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
são eventos na mente. Posso crer que estou vendo o copo na mesa, mas a experiência dos sentidos quanto à cor e à forma dele integra uma série de eventos mentais, que acontecem somente na minha mente. Da mesma forma, a nossa percepção de causas entre dois eventos é reduzida apenas à seqüência de eventos. Ninguém, na verdade, tem visto uma causa. Toda evidência do mundo fundamentada nos sentidos é, no fim, limitada ao conteúdo da mente. Ela não revela nada acerca dos objetos em si. A força do argumento de Hume fica clara quando é aplicada à analise da mente em si. Ao analisar sua própria mente, Hume disse que o ego, o “eu”, que encontra, é sempre uma série de percepções. É impossível se achar em qualquer momento sem uma percepção e penetrar atrás dela para chegar numa substância que unifique a pessoa. A mente é composta de muitas percepções, uma após a outra — e só isso! Ou seja, ao contrário de Descartes, nem o ato de pensar consegue comprovar sua própria existência. O resultado do empirismo foi o ceticismo.44 Ao enfrentar o ceticismo de Hume, Immanuel Kant tentou resgatar o conhecimento através de uma mudança radical na epistemologia. Até então, o conhecimento era visto como a concordância da mente com a realidade exterior. Kant aceitou a conclusão de Hume, de que baseado no racionalismo ou no empirismo tal concordância seria impossível. Para resolver essa situação, fez uma inversão entre os papéis da mente e da realidade, ou seja, determinou que deve ser a realidade que precisa se conformar à mente. A mente, segundo Kant, é ativa na construção de conhecimento. Espaço, tempo e causalidade se tomaram categorias da mente, as quais ela impõe às percepções para formar o conhecimento. E claro que, nesse esquema, as coisas em si não podem ser conhecidas, mas segundo Kant, isso não nega a validade do conhecimento que a mente constrói. Uma implicação importante da teoria de Kant é que o conhecimento é limitado a fenômenos empíricos. Somente aquilo que pode ser percebido é o objeto do conhecimento. As coisas que estão além da compreensão das percepções não o são. Isso inclui não apenas as coisas em si no mundo físico, mas também tudo que tenha relação com o divino. As coisas que estão além das percepções fazem parte do númeno. Assim, Deus não poderia ser conhecido a partir do mundo físico e a teologia natural seria impossível. Também seria impossível qualquer tipo de revelação de Deus, seja natural, seja sobrenatural. A teoria de Kant não implica que ele pretendeu abandonar a crença em Deus. Mas Deus somente foi preservado como um postulado necessário para fundamentar a ética. Deus, em Kant, tomou-se uma abstração impessoal. A epistemologia de Kant aumentou ainda mais a separação entre a fé e a razão, colocando todo o conhecimento de Deus num nível superior, o númeno, enquanto o conhecimento do universo físico ficou num nível inferior, o dos fenômenos.
44Para uma discussão mais completa dos problemas de racionalismo e empirismo, cf.Gordon Clark, Three types o f religious philosophy.
A REVELAÇÃO GERAL
67
■-.........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
Depois de Kant, portanto, a fé foi vista não somente como algo diferente da razão e da racionalidade, mas também como contrária. Nada pode ser conhecido de Deus através do raciocínio porque Deus existe no númeno, domínio que não pode ser conhecido nem pela lógica, nem pelo método empírico, mas somente através da intuição.45 O pensamento de Kant abriu a porta para a vitória do naturalismo filosófico na filosofia e ciência dos séculos xix e xx. Ele também se tornou o padrão para a reconstrução da teologia pelos teólogos liberais e neo-ortodoxos, que visavam acomodar a teologia ao naturalismo.46 Uma vez que Deus foi banido ao mundo do númeno, além do alcance do raciocínio do homem, não demorou muito para o homem decidir que Deus nem era mais necessário numa cosmovisão racional. Daí, a sua existência passou a ser negada por muitos pensadores do século xix, como Ludwig Feuerbach, Sigmund Freud e Karl Marx. A partir do pressuposto de que não existe um Deus transcendente, os teólogos liberais afirmaram que a única maneira de conhecer a Deus é mediante o estudo da criação e do próprio ser humano. As observações da ciência corrigem as opiniões e as superstições da Bíblia e das religiões primitivas. Portanto, a teologia deve ser construída a partir de dados da sociologia, psicologia e outras disciplinas em conjunto com a razão humana. Aquilo que não convêm à razão não pode ser aceito por um homem racional. A teologia liberal Apesar de sua luta para salvar o conhecimento do ceticismo de Hume, Kant fracassou. O irracionalismo começou a se manifestar na teologia, uma vez que Deus foi banido do mundo racional, o mundo do fenômeno. No século xviu, Friedrich Schleiermacher afirmou que a essência da fé cristã é o sentido de dependência absoluta do divino. Assim, ele pôs tanta ênfase na experiência que acabou por negar a importância do conhecimento do conteúdo racional das doutrinas e da teologia. Durante o século xix, os teólogos liberais continuaram a desenvolver essa idéia. Eles colocaram o aspecto religioso do ser humano inteiramente no mundo numenal, dizendo que Deus poderia ser conhecido misticamente. Portanto, segundo os liberais, o que não pode ser conhecido racionalmente pode ser representado mediante símbolos religiosos. Todas as religiões são tentativas de entender e expressar esse mistério que é, no fim, inefável. Toda teologia é uma construção de mundos simbólicos para enfrentar essa realidade. Uma vez que Deus está oculto no númeno, todas as religiões são sistemas de símbolos igualmente válidos para “conhecer” esse Deus. O conhecimento de Deus é uma experiência mística, irracional e inexprimível. Hoje, essa mesma linha de pensamento é defendida por vários teólogos, como por exemplo John Hick, que acreditam em uma espécie de pluralismo, ou seja, a idéia de que todas as religiões são iguais na sua capacidade de levar o homem até Deus.47 A partir desse ponto, a teologia liberal pressupôs que Deus se encontra totalmente imanente no mundo.48 Essa teologia revelou uma forte tendência para o panteísmo, e apoiou a teologia natural como o único método para se conhecer a Deus. Mesmo assim, esse conhecimento não é racional. E simplesmente uma representação simbólica daquilo que é incognoscível. Os * ............................................................................................................................................................................................................ .
4SPara mais detalhes sobre Kant, cf. a discussão de Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da filosofia, v. 2, capítulo. 23. 46Stanley J. Grenz e Roger E. Olson, A teologia do século 20, especialmente p. 26-34. 470 posicionamento de Hick foi articulado em vários livros e artigos, entre eles: John Hick e Paul F. Knitter, The myth o f Christian uniqueness', toward a pluralistic theology of religions e John Hick, An interpretation o f religion-, human responses to the transcendent. 48Cf. Stanley J. Grenz e Roger E. Olson, Teologia do século 20, p. 25-71.
68
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
liberais reduziram a Bíblia a um livro natural e falível, escrito por homens, que fala de suas experiências com o misterium tremendum. Segundo eles, uma vez que todas as religiões são iguais, todos serão salvos — seja lá o que for a salvação. 0 naturalism o filosófico O ateísmo é uma expressão do naturalismo filosófico, que pode ser resumido nas palavras de Cari Sagan: “O cosmos é tudo o que existe, que existia ou que existirá”.49 Tudo que existe no mundo é resultado de forças naturais, das “leis” da natureza e do acaso. A teoria de Darwin, com suas modificações (o neodarwinismo), explica a origem da variedade de vida que existe hoje. A criação não revela nada sobre qualquer ser divino e, assim, a existência de Deus é negada por falta de evidência. O que é revelado na criação é que não há um planejador que criou o universo. Segundo os naturalistas, a criação é o projeto de um “relojoeiro cego”, ou seja, de forças impessoais e sem propósito.50 Citam vários exemplos de “erros” que não deveriam existir se a natureza fosse planejada, como o polegar do Panda e órgãos que evidentemente não são necessários.51 A partir desses exemplos, defendem a conclusão que Deus não existe e nem é necessário. A neo-ortodoxia Karl Barth, o fundador da assim chamada teologia neo-ortodoxa, reagindo à teologia liberal, não só negou totalmente a possibilidade de uma teologia natural, como também que Deus seja revelado na criação.52 Para Barth, não existe revelação geral, apenas a revelação de Deus na Palavra, Jesus Cristo. Mas apesar de estar reagindo aos liberais, Barth aceitou a posição de Kant quanto à existência de uma divisão entre o mundo numenal e o mundo fenomênico. Só que Barth disse que Deus é totalmente transcendente, permanecendo oculto no númeno. Deus, para Barth, é o totalmente outro. Deus só pode ser conhecido quando encontra o homem ou se revela graciosamente a ele, mas essa revelação não acontece pela racionalidade ou pelos eventos históricos. Para Barth, não existe analogia entis (que parte do ser das coisas, postulada por Emil Brunner e a teologia de Tomás de Aquino), mas somente a analogia fidei (que tem a revelação como ponto de partida), que é compreendida a partir da revelação da graça de Cristo. 0 Concílio Vaticano II Durante o Concílio Vaticano II o liberalismo conseguiu mudar centenas de anos de ensino da igreja católica. Os teólogos ali reunidos aceitaram os pressupostos kantianos e refizeram a teologia da igreja. Conquanto afirmem que o cristianismo é a mais perfeita revelação de Jesus e que a igreja católica é a mais perfeita expressão do cristianismo, os documentos do Vaticano II admitem que os adeptos sinceros de outras confissões podem ser salvos por meio de Cristo, incluindo até mesmo os ateus. Estes, algumas vezes, são chamados de cristãos anônimos. O papel da igreja é reunir todos os povos. A revelação geral, na teologia do Vaticano II, é suficiente para salvar as pessoas que não são católicas.
49Carl Sagan, Cosmos. 50Richard Dawkins, The blind Watchmaker. 5ISteven Jay Gould, The panda’s thumb-, more reflections on natural history. 52Emil Brunner e Karl Barth, Natural theology: “Nature and grace” by Brunner and the Reply “No!” by Barth.
A REVELAÇÃO GERAL
69
..................................................................................................................................................................................................................................... Um outro desenvolvimento dessa teologia é a teologia da libertação. Como vimos anterior mente, mediante uma análise marxista da sociedade, os teólogos da libertação dizem que Deus é conhecido por meio da luta dos oprimidos contra as elites, os poderosos e as estruturas injustas da sociedade capitalista. O conhecimento de Deus não é algo isolado do mundo real, quer se esteja falando do racionalismo do teólogo na faculdade, ou do místico no mosteiro. O conhecimento de Deus não pode ser separado dapráxis. Deus é revelado na luta dos pobres. Nesta luta podemos entender o coração de Deus, que ama os pobres. O plano de Deus é construir um mundo justo, ou seja, o reino de Deus, que é interpretado como uma sociedade socialista.53 As várias interpretações da revelação de Deus podem ser avaliadas à luz da Bíblia, para resolver a questão da revelação de Deus na criação.
Estudo bíblico Antigo Testam ento Deve-se notar que em lugar algum a Bíblia ocupa-se em comprovar a existência de Deus. Assim, a primeira declaração que encontramos é simplesmente: “No princípio, criou Deus...” (Gn 1.1). O versículo continua com a proclamação do fato da criação. É como se a existência de Deus, como criador, fosse tão óbvia, que não é preciso justificativa alguma. Tal é a natureza da criação que deve haver um criador. A continuação de Gênesis 1 mostra que tudo que existe tem a sua estrutura e essência por causa do plano e da vontade de Deus. A criação é o que é por ser a expressão do desejo e prazer de Deus. E tudo que foi feito é bom, segundo a sabedoria de Deus. Uma implicação disso é que a criação necessariamente reflete o caráter do Criador. E a natureza daquilo que é criado a revelar algo sobre a pessoa que o criou. Várias outras passagens do Antigo Testamento confirmam essa observação. Contra a tendência universal das religiões primitivas de deificar a criação, Gênesis 1 apresenta um quadro totalmente diferente. Os vários aspectos da criação, como o mar, o céu, as estrelas, são apresentados como criações inanimadas que servem aos propósitos de Deus. Não são seres vivos e muito menos divinos. Não têm poder de determinar o que será o futuro e não merecem o temor, nem o louvor do homem. A criação dos animais também aponta sua inferioridade a Deus. Os animais não são objeto de louvor. A criação revela a glória de Deus, mas não deve jamais ser confundida com o divino. Deus é distinto da criação. O ápice da criação acontece com a criação do ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). O homem e a mulher são igualmente criados à imagem de Deus. O Criador os coloca sobre a criação para exercer domínio e cuidado. As capacidades e características de pessoalidade que o ser humano tem servem para revelar a natureza pessoal do próprio Criador. Deus tem racionalidade e capacidade de se comunicar, como os demais seres pessoais. Pelo menos alguns atributos de Deus são evidentes na natureza do ser humano. Um aspecto de suma importância da criação é sua cognoscibilidade. Deus criou a mente racional do homem e a própria criação de tal maneira que a estrutura de uma se conforma à outra. Em outras palavras, a criação é cognoscível porque há correspondência entre a mente
53Cf. em especial Gustavo Gutiérrez, Teologia da libertação e Leonardo B off e Clodovis Boff, Como fa zer teologia da libertação.
70
[P A R TE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
e o mundo que existe. Isso é demonstrado, por exemplo, na atividade de Adão em nomear os animais (Gn 2.19-21). Esse primeiro exercício de classificação científica mostra que a observação da criação oferece conhecimento. Portanto, a revelação de Deus na criação também deve ser cognoscível. O discurso de Eliú, em Jó 36 e 37, revela um conceito de Deus que vincula os fenômenos da criação à glória de Deus. Deus é reconhecido como soberano sobre as forças da criação, forças como a chuva (36.27), o trovão e os relâmpagos (36.29-30). É o soberano sobre as nações e é quem providencia sua alimentação (36.31). Também todos os fenômenos do clima, do qual depende a vida do ser humano e dos animais, estão completamente sob o controle do Deus soberano. Ele faz todas essas coisas funcionarem segundo seu propósito: “ora para castigar os homens, ora para regar a sua terra e lhes mostrar o seu amor”. O que nos interessa nesse texto é que as forças da criação não representam seres divinos, como afirmam as religiões animistas. Elas são apenas elementos do mundo que Deus criou, que ele controla e que revelam o próprio Criador. Para o homem do mundo antigo, as forças da criação eram fontes de admiração, temor e até terror. Diante delas, ele parecia pequeno e fraco. No discurso de Jó 38, o Senhor revela que essas forças esmagadoramente mais poderosas do que o homem estão completamente em suas mãos. Elas foram feitas e colocadas cada uma no seu lugar por Deus e todas obedecem a ele. O Senhor perguntou a Jó: “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?” (v. 4). A implicação é que se a criação é assim tão mais poderosa do que o homem, quanto mais ainda é o Senhor que a criou e controla. O poder e grandeza da criação, manifestados no mar, nas estrelas, nas chuvas, no trovão, nas enchentes, nos relâmpagos, nas nuvens, na neve e nos animais, revelam o poder e a grandeza do Deus soberano, que tudo fez. O salmista concorda com essa interpretação da criação no Salmo 8: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabelecestes, que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites?” (v. 3-4). Ao lado da imensidade da criação, o homem parece pequeno e sem significado. Porém, o Deus que criou todas as coisas colocou o ser humano sobre elas, e isso revela a majestade e a glória do nome do Senhor. O Salmo 19 coloca a revelação de Deus na criação ao lado de sua revelação na lei, como duas fontes complementares de conhecimento de Deus. No primeiro versículo o assunto é a glória O ilD [kabôd]) de Deus. K abôd significa glória, honra, esplendor e todo respeito que é devido a uma pessoa de status. A idéia de riqueza e a manifestação de poder também fazem parte do significado bíblico da palavra.54 Essa glória é declarada e proclamada (HDD [sãpar - contar, proclamar]) ou contada pelos céus, enquanto o firmamento anuncia ("DD [nãgad relatar, contar informação55]) as obras das suas mãos. O salmista usou dois particípios para dar o sentido de uma ação contínua. O céu e o firmamento são os mesmos que foram criados por Deus no princípio. A glória de Deus é colocada em paralelo com essas obras, como se fossem iguais. Onde existem as obras de Deus, a sua glória é contada e mostrada a quem estiver observando. E desde que os céus e o firmamento existem em todo lugar, não há lugar onde a glória de Deus não seja revelada continuamente. Em princípio, o versículo 3 parece dizer que as palavras da revelação não são ouvidas. Não obstante, uma interpretação consistente com o contexto indica, que da mesma maneira que as
54J. Swanson, “T Ü 3 ”, Dictionary o f biblical languages with semantic domains; hebrew (Old Testament), d b l h , electronic ed., verbete 3883. 551}3, J. Swanson, d b l h , verbete 5583.
A REVELAÇÃO GERAL
71
■ ...................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... ..
palavras existem para serem ouvidas, o que os céus falam sobre Deus é, com certeza, ouvido. A implicação é que todas as pessoas percebem a revelação universal. O versículo 3 diz que não há fala ou palavra que não seja ouvida. Calvino comentou que os céus têm uma língua comum que é entendida por todos os homens, para ensinar sobre a glória de Deus. O texto diz, portanto, que a criação revela a glória de Deus e que essa revelação é percebida.56 Os profetas do Antigo Testamento não deixaram de falar da revelação de Deus na criação. Em Isaías 6.3 os serafins declaram que “toda a terra está cheia da sua glória”. Isso significa, como disse o salmista, que não há lugar no mundo onde a criatura possa fugir da revelação de Deus. N ovo Testam ento Na sua pregação aos gentios, Paulo costumava apelar à revelação geral como ponto de contato entre os gentios e a mensagem do evangelho. Atos 14.17 registra que ele disse que Deus não deixou os gentios “sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-lhes do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo-lhes o coração de fartura e de alegria”. A natureza bondosa de Deus é revelada pelo processo natural de plantar e ceifar. Não é por acaso que o sustento do homem é providenciado na criação. Conforme Atos 17.26-27, Paulo declarou que Deus ordenou os tempos e os lugares das pessoas que habitam na terra. Isso revela a soberania de Deus acerca da história. O versículo 27 conclui com a idéia de que Deus se revelou por meio da história, para que os povos pudessem conhecê-lo. Naturalmente isso significa que Deus pode ser conhecido por meio dessa revelação. Os dois textos de Atos mostram que os atributos do amor e da soberania são evidentes na criação. A discussão mais profunda da revelação geral no Novo Testamento acontece em Romanos. Aqui, o propósito de Paulo é demonstrar que tanto o gentio quanto o judeu têm conhecimento adequado de Deus para não ter desculpa por seu pecado. Em Romanos 1.18-28 vários atributos de Deus são revelados. Revelar é áTTOKaÀÚTTTW [apokalyptõ], que descreve em vários textos do Novo Testamento a manifestação de algo que era desconhecido antes. As coisas assim reveladas fazem parte do conhecimento daqueles que receberam a revelação. Aliás, é dito pelo apóstolo que os atributos invisíveis de Deus são “vistos claramente” (vooúpeva KaGopccTat [nooumena kathoratai]). O significado das palavras traz consigo a idéia de ser entendido sem ambigüidade. Algo que é claro pode ser percebido e entendido. Os atributos de Deus assim revelados são a sua eternidade, o seu poder e a natureza divina. A criação mostra que Deus não é apenas um ser qualquer, mas sim o próprio Criador, distinto da criação. Já que Romanos 1.19-20 é, no Novo Testamento, uma das principais passagens que tratam da “revelação geral” de Deus, talvez seja melhor explicar brevemente em que a revelação “geral” difere da revelação “especial”. A auto-revelação de Deus através “das coisas criadas” tem quatro características básicas. Primeiro, ela é “universal” ou “geral” porque se destina a todo mundo e em todos os lugares. Nisso ela se opõe à “especial”, que é dada a pessoas específicas em lugares específicos, através de Cristo e dos autores bíblicos. Em segundo lugar, ela é “natural” porque se deu através da ordem natural. Nisso ela se opõe à “sobrenatural”, que envolve a encarnação do Filho e a inspiração das Escrituras. Em terceiro lugar, ela é “contínua”, pois vem desde a criação do mundo e continua dia 56Outros Salmos mostram vários atributos de Deus que são revelados mediante a revelação geral. Encontramos no Salmo 29.4 o poder e majestade de Deus; no Salmo 93.1, 4 a soberania e poder de Deus e no Salmo 104.24 a sabedoria de Deus novamente.
72
t PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
após dia, noite após noite [SI 19.2], ao contrário da “final”, que é completa em Cristo e nas Escrituras. E, finalmente, ela é “criacional”, revelando a glória de Deus através da criação, no que se opõe à revelação “salvadora”, que manifesta a graça de Deus em Cristo.57 Não obstante, a reação do homem à revelação geral não é o que se esperava. Sua capacidade de entendimento é prejudicada radicalmente pelo pecado. A revelação é suprimida pelo homem por causa de sua injustiça (áStxía [adikia - falta de justiça, iniqüidade]). Ela é clara, mas o ser humano deliberadamente se recusa a enxergar o que está tão óbvio diante dele. Portanto, o homem é entregue às conseqüências de sua rebeldia. O coração é obscurecido e cegado diante da revelação que o condena. No versículo 21, Paulo usou a palavra licrraióto (mataioõ - desvanecer, tornar-se fútil), que quer dizer tomar-se sem valor, vão, inútil. Essa palavra descreve o raciocínio dos descrentes. Além disso, ele diz que os seus corações se tomaram obscurecidos e insensatos, o que implica falta de entendimento. O apóstolo está dizendo que o resultado do pensamento humano que nega a Deus é a incapacidade de entender a verdade. Todo sistema fundamentado na negação de Deus termina em destruição de todo conhecimento verdadeiro. Deus os entregou aos frutos do seu pecado. Assim, Deus deixou os pecadores sofrerem as conseqüências de seus pecados: uma vida depravada. Uma vez que Deus é revelado claramente, o pecador merece ser punido. Não tem desculpa. Os resultados da revelação geral são a ira de Deus e a morte do pecador. A revelação geral é suficiente para o ser humano conhecer que deve servir a Deus. Mas não o faz e por isso é condenado. O argumento de Paulo continua em Romanos 2.14,15 onde ele mostra que a revelação de Deus está também na natureza do ser humano. O fato de que existam homens que não têm a Lei de Moisés, mas vivem como se a tivessem, segundo a lei da consciência, significa que a lei de Deus é revelada na criação e no coração do homem. “Firma-se o princípio de que os homens são julgados segundo a luz que tiveram, não segundo a luz que não tiveram”.58 Como visto anteriormente, a palavra “coração” (KapSta [kardia]) significa o local dos pensamentos e não um sentido subjetivo das emoções. Deus escreveu (ypdcfxi) [graphõ], palavra também relacionada ao processo da revelação na Bíblia) na mente do ser humano as proposições da lei que revelam a ordem moral do universo, assim indicando que o Deus Criador existe.59
Estudo sistemático Através dos séculos, a grande maioria dos seres humanos creu em algum tipo de realidade transcendente. O sagrado é um elemento tão comum na história das culturas humanas que é difícil encontrar sequer uma cultura que foi construída sem tal crença. As tentativas marxistas de edificar uma sociedade ateísta, no século xx, fracassaram. A União Soviética não existe mais e na China a igreja cristã cresceu fortemente, mesmo sob o comunismo. O impulso 57John R. W. Stott, Romanos, p. 79-80. 58F. F. Bruce, Romanos - Introdução e comentário, p. 74. 59Alguns comentaristas acreditam que Paulo está falando aqui de gentios crentes, no contexto do cumprimento da profecia de Jeremias 31.31-34. Moo (p. 151) e Schreiner (p. 121) rejeitam essa conclusão, lembrando que o contexto apóia melhor a interpretação de que os gentios, apesar de não ter a Lei de Moisés, “tomam-se lei para si mesmos”. O ponto do argumento é mostrar que todas as pessoas, sejam judeus ou gentios, não têm desculpa diante de Deus por seus pecados. Cf. Douglas Moo, The Epistle to the Romans e Thomas R. Schreiner, Romans.
A REVELAÇÃO GERAL
73
................................................................................................................................................................................................................................... . religioso no ser humano é tão forte que alguns estudiosos sugeriram que o homo sapiens deve ser chamado homo religiosus. Parece que, para onde quer que ele olhe, seja no mundo físico, seja no mundo interior da mente, vê evidência do divino. A razão disto é óbvia, segundo a Bíblia. A criação é permeada com a presença e a revelação de Deus. Nossa exegese das Escrituras mostra que Deus é revelado no mundo físico (SI 19.1-6; Rm 1.18ss), na lei moral presente no coração do homem (Rm 2.14-15) e na história (At 17.2627). A complexidade do mundo, com suas leis, ordem e beleza, revela os atributos invisíveis de Deus. O invisível é visto através do visível. A racionalidade suprema e absoluta de Deus é revelada na ordem racional da criação. Assim, a eternidade, a divindade, o poder, a sabedoria e a glória de Deus são revelados (SI 29.4; 93.1,4; 104.24; Rm 1.20). A regularidade das estações, as chuvas e o sol, permitindo assim o cultivo e a colheita, são evidências do cuidado de Deus pelo homem. Na história dos povos, o amor, a soberania e a justiça de Deus são assim revelados (At 14.17; At 17.26; Rm 1.22). As necessidades das criaturas vivas são satisfeitas pelos recursos que a criação tem. O relacionamento de equilíbrio entre o meio-ambiente e a vida mostra a sabedoria do Criador e seu amor pela criação. A possibilidade de uma vida e uma sociedade sem caos e anarquia depende da concordância entre as pessoas sobre o que é certo e errado, sobre o que é o bem e o mal. A possibilidade de manter uma sociedade estável só existe por causa da presença de um sentido ético, inato, no coração do ser humano. O compromisso natural que as pessoas têm com noções de justiça e amor vai além de simples egoísmo. O ser humano, ao se conhecer, descobre algo dentro de si que exige que ele acredite em justiça. Até as pessoas mais cruéis agem assim, quando seus direitos ou os dos seus queridos são violados. A melhor explicação para isso é que a lei moral está impressa na mente do homem. No coração, a lei e o caráter justo de Deus são revelados, de modo que o homem sabe o que é certo e errado (Rm 2.14-15). Por causa da revelação de Deus na criação, o conhecimento da criação pelo homem é possível. A criação e a mente humana são racionais, e a racionalidade de uma corresponde à outra. Assim, Adão foi capaz de interpretar o mundo corretamente, quando classificou os animais (Gn 2.19). As categorias da mente do homem foram criadas por Deus de modo adequado a conseguir conhecimento verídico da criação. Isso significa que a revelação de Deus é uma revelação clara e adequada para cumprir seu propósito. O propósito da revelação de Deus na criação é que as pessoas busquem a Deus e, talvez, o encontrem (At 17.27). Portanto, ela atinge todos os povos, em todo lugar (SI 19.3; Rm 1.18-32). Apesar do fato de o pecado trazer maldição e imperfeições na criação (Gn 3.17-19; Rm 8.20), as pessoas têm conhecimento verdadeiro de Deus. Mas por que os povos louvam deuses na forma de ídolos mudos, animais e elementos da criação? Nosso estudo mostrou que as estrelas, a lua e o sol não são divinos (Gn 1). O sagrado é visto por meio da criação, mas não faz parte dela. Mesmo assim, esses povos fazem questão de divinizá-la. Eles conhecem a Deus na criação, mas não tiram a conclusão correta sobre o Senhor Deus. A exposição de Romanos 1 mostra que a razão por trás da incapacidade do ser humano para interpretar a revelação geral corretamente está na sua natureza pecaminosa. Os homens “detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). Ou, como sugerido por Bruce, “em sua impiedade estão sufocando a verdade [de Deus]”.60 Por causa de sua rebeldia contra Deus, o homem não quer encontrar o Deus verdadeiro. Portanto, quando o encontra, reprime o conhecimento; deturpa
60F. F. Bruce, Romanos, p. 69.
74
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
a revelação geral e fabrica um ídolo à imagem da criatura. O homem age assim de propósito, e por isso é indesculpável. Ele conhece a Deus, reprime esse conhecimento, fabrica uma divindade inexistente, e depois engana a si mesmo, ao crer que a ficção que criou é o único deus verdadeiro. Isso é o que acontece, sem exceção, quando os povos não-cristãos encontram a revelação geral de Deus na criação. As religiões pagãs sempre distorcem a natureza do Deus revelado por meio da revelação geral. Elas interpretam esta revelação de modo a evitar o Deus pessoal e soberano. Preferem louvar a criatura em vez do Criador (Rm 1.21-25). Portanto, a teologia natural do descrente tem uma tendência ao panteísmo, à divinização do ser humano e à salvação pelo misticismo ou pelas boas obras. O resultado é que tais homens são condenados (Rm 3.10-11). Seu objetivo [de Paulo] é instruir-nos sobre onde a salvação deve ser buscada. Ele garante que só podemos obtê-la por meio do evangelho, mas visto que a carne não se humilhará voluntariamente ao ponto de atribuir louvor da salvação exclusivamente à graça divina, o apóstolo mostra que o mundo todo é culpado de morte eterna.61 Além disso, a revelação geral não fala sobre o que é necessário para se receber o perdão e a salvação. Para ser salvo é necessário confessar a Cristo (Rm 10.9). Mas Cristo não é revelado na revelação geral. Ela apenas mostra o pecado ao pecador que não recebeu a revelação especial. A salvação pelas boas obras, conforme a Lei e a revelação geral, requer uma vida perfeita e sem pecado para que uma pessoa se salve. Tiago disse, entretanto, que apenas um pecado é suficiente para condenar o pecador (Tg 2.10). Portanto, sem a revelação de Jesus Cristo, ninguém pode viver pela luz que tem, porque essa luz é a luz das boas obras. Podemos resumir a doutrina da revelação geral da seguinte forma: Deus já falou a todas as pessoas. Mesmo aqueles que nunca ouviram o evangelho têm a revelação de Deus no mundo e na natureza humana. Essa revelação toma os homens indesculpáveis. Deus não condenará pessoas porque rejeitam o evangelho que nunca ouviram, mas porque deliberadamente ignoram a verdade que vêem no mundo e porque quebram a lei moral dentro de seus corações. Graficamente, essa doutrina pode ser representada assim:
Revelação 1 T Clara
—-► Interpretação 1 ▼ Distorcida
— ►
Condenação
A Bíblia não dá esperança de que alguém possa ser salvo somente pela revelação geral. A lei expõe o pecado do homem, mas não faz nada para curá-lo. Então, os judeus, como também os gentios, têm de se confessar moralmente falidos. Se existe alguma esperança para qualquer dos dois grupos, terá de ser achada na misericórdia de Deus, e não em alguma reivindicação que os homens ou as nações possam fazer-lhe. Em vista do fato do pecado universal, o caminho para a aceitação por parte de Deus em razão de nossas obras de justiça está fechado - e o aviso é perfeitamente claro: ‘Nesta direção não há nenhuma estrada’.62 61João Calvino, Romanos, p. 61-62. 62F. F. Bruce, Romanos, p. 80.
A REVELAÇÃO GERAL
75
Por isto, a obra missionária é de vital importância porque, sem o testemunho do evangelho, o pecador só tem a revelação geral, que não é suficiente para sua salvação.
Estudo apologético Nosso tratamento das alternativas apresentadas na interpretação da revelação geral deve ser guiado por dois fatos: sua realidade e clareza e a incapacidade do homem de interpretá-la de modo correto sem a luz da revelação especial. De um lado, podemos ficar animados ao descobrir que a grande maioria dos povos não é ateu e ao conversar sobre Deus e o transcendente, não é preciso convencer a maior parte das pessoas de que Deus existe. Por natureza, elas já são convencidas. Por outro lado, é preciso não ficar animado demais. As pessoas acreditam em algo, mas não é no Deus que se revelou na Bíblia. O pecado leva o homem a moldar o divino à imagem da criatura. Isso fica evidente ao analisar as religiões não-cristãs. 0 anim ism o e as religiões afro-brasileiras É óbvio que o retrato dado pela Bíblia da relação entre Deus e a criação é bastante diferente do modelo proposto nas religiões influenciadas pelo animismo. Existe uma diferença tremenda entre a idéia bíblica da revelação de Deus (pessoal, eterno e transcendente) e as noções da própria criação divinizada em si. Portanto a teologia natural, sem a luz da Bíblia, é questio nável. Conforme o ensino de Romanos 1.25, o homem sem a luz das Escrituras sempre cai no erro de confundir a criação com o Criador. A mente caída sempre produz uma interpretação errada da criação. Em termos que deveriam soar escandalosos aos ouvidos do mundo antigo, o autor do livro de Gênesis lança um ataque frontal contra os conceitos de divindade comuns naquela época. Em vez de serem objetos dignos de louvor e temor, os céus, as estrelas, o sol, a lua, os animais e demais objetos da criação são descritos como apenas objetos criados. Eles não têm sinal algum de poder divino — mana — no seu ser. Pelo contrário, apontam para o poder e a divindade superior do Criador, que é totalmente distinto da criação. Além disso, o ser humano é descrito como o ápice da criação. De forma alguma deve se colocar sob as forças da criação e dos animais para venerá-los e servi-los. A luz do ensino bíblico, então, é preciso rejeitar a postura das religiões alicerçadas no animismo. Primeiro, a tendência ao panteísmo tem de ser repudiada. A criação não é permeada por uma força divina e espiritual. Quaisquer forças que existam na criação foram criadas por Deus e não tomam parte em sua natureza. As forças Iwá, Axé e Abá, do candomblé, simplesmente não existem segundo a cosmovisão bíblica. Portanto, as técnicas de manipulação dessas forças, que fazem parte das práticas de feitiçaria, são tentativas fúteis de influenciar poderes que não existem. A Bíblia, ao proibir a veneração dos elementos da criação, também nega que representem a habitação e domínio de deuses ou outros seres espirituais. Mesmo entidades espirituais que existem são criaturas de Deus, tal como o ser humano, e não devem ser objetos de devoção ou temor. Os rituais de devoção a Iemanjá, realizados todo dia primeiro de janeiro no Brasil, são uma perda de tempo e, pior, um ato de idolatria e rebelião contra o Criador verdadeiro. Iemanjá, de fato, não existe no conceito bíblico. O mar é apenas um aspecto material e inanimado do mundo que o único Deus criou. O cristão não deve ter medo dessas forças e deuses do
76
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
animismo porque não existem.63 A doutrina cristã de revelação geral se opõe a qualquer tipo de sincretismo entre a cosmovisão bíblica e o candomblé, umbanda e outras manifestações do espiritismo nas religiões populares. A Bíblia condena essas coisas totalmente (2Rs 17.17; 21.6; G1 5.20; Ap 9.21). Pela mesma razão, práticas de adivinhação são condenadas na Bíblia. Visto que a uniformidade da criação fala ao homem da soberania de Deus, os adeptos da astrologia confundem esta ação do Deus transcendente com a criação. Eles crêem que os planetas e estrelas são soberanos e que podem determinar o destino das pessoas. Mas essa prática é condenada na Bíblia (Lv 19.26; Dt 18.10). Aqueles que colocam sua fé nas estrelas mostram que não têm fé em Deus. 0 escolasticism o e a teologia natural A tentativa de Tomás de Aquino de construir uma teologia natural a partir da razão humana, sem a luz da revelação geral, também comete o erro de não levar a sério os efeitos do pecado no raciocínio do homem. Esses efeitos podem ser vistos em dois aspectos: o Deus que se encontra na teologia natural não é o que se revela na Bíblia, e os argumentos da teologia natural carecem de validade lógica formal. David Hume apontou para o primeiro defeito. Voltando ao argumento cosmológico, mostrou que não podemos deduzir uma causa maior que o seu efeito. Ao chegar à conclusão de que a existência de um universo contingente depende de um ser não contingente, na melhor das hipóteses podemos concluir que esse ser é adequado para produzir um universo com os defeitos que encontramos neste. Ou seja, não podemos concluir que foi Deus que causou o universo, mas sim uma criatura finita (assim como o universo) e imperfeita. Se a lógica do argumento fosse válida, a conclusão correta seria que o mundo foi criado por um ser que não é Deus. Mas não é isso o que a teologia natural busca. Entretanto, os argumentos não são válidos porque, primeiro, dependem da validade da epistemologia do empirismo. O pressuposto tomista, de que o ser é cognoscível, somente pode ser sustentado no contexto de uma cosmovisão cristã. Esse pressuposto inclui a idéia de que deve existir uma correspondência entre o conteúdo da mente e o mundo exterior. Porém, somente o pressuposto de que o mundo e a mente humana foram criados por um Deus racional pode garantir que haja uma correspondência entre as percepções da mente e o mundo. Se o argumento começar sem essa base, não existe defesa contra as críticas de Hume. Não obstante, o empirismo exige que todo conhecimento venha por meio da percepção dos sentidos, e por isso não permite que o raciocínio comece com esse pressuposto. No empirismo presente na teologia natural, o conhecimento dos sentidos tem de ser estabelecido antes do conhecimento de Deus. O problema, então, é que para comprovar a existência de Deus, a teologia natural precisa começar com Deus. Mas um argumento que começa com a conclusão é circular e, assim, inválido. Em segundo, os argumentos não são válidos porque a teologia natural precisa demonstrar que a relação entre causa e efeito é válida, a regressão infinita não é possível e que o universo é um efeito. Se não estabelecer esses três pontos, o argumento de que o movimento exige um motor imóvel não tem força. A partir do empirismo, não existe um método para chegar a essas
63Os autores não estão negando a possibilidade da existência de poderes demoníacos por trás dos deuses do animismo. Este assunto será tratado no capitulo 10, no contexto do estudo sobre os anjos e Satanás.
A REVELAÇÃO GERAL
77
................................................................................................................................................................. conclusões. Ninguém observa o universo todo para poder dizer que ele é um efeito. Ninguém pode observar todas as regressões para saber se é possível ou não uma regressão infinita. O fato de não podermos imaginar tal coisa não significa que seja impossível. A teologia natural não é o caminho correto para fundamentar uma cosmovisão cristã. Os problemas da teologia natural não significam que devemos entregar o terreno aos ateus. Muito pelo contrário, esses problemas são igualmente problemas para qualquer epistemologia não-cristã. Kant percebeu isso, mas fracassou em sua tentativa de salvar o conhecimento do ceticismo. Pelo contrário, quando fez de todo o conhecimento uma função de categorias da mente humana o tornou relativo e subjetivo. O vínculo entre a mente e as coisas na criação foi destruído. Também foi destruída a possibilidade do conhecimento de Deus. Por isso, qualquer ciência ou teologia construída nessas bases resultará em ceticismo, ao ser levada à sua conclusão lógica. Isso se torna muito claro ao observar o desenvolvimento da teologia liberal influenciada pela epistemologia kantiana. A teologia liberal O ceticismo implícito na teologia liberal é evidente em seu misticismo e universalismo. Por exemplo, John Hick, aceita a noção de Kant de que “Deus”, o “sagrado”, o “divino” — ou seja qual for o nome dado ao transcendente — está além do alcance do conhecimento racional e proposicional, oculto no númeno. Segundo Hick, a revelação geral e as conclusões da teologia natural são ambíguas.64: “O Último (na terminologia budista, o Dharmakaya) é o vazio de tudo que a mente humana projeta na atividade de percepção”.65 Portanto, nada pode ser dito literalmente sobre ele. Todas as doutrinas e afirmações das religiões são nada mais que símbolos que os homens empregam para descrever a sua experiência do transcendente. Com a evolução da sociedade, os símbolos devem evoluir também. Por isso os liberais acreditam que as doutrinas da fé têm de ser constantemente atualizadas. A ortodoxia de ontem é ultrapassada e não serve para hoje.66 O transcendente, que Hick chama “o Real”, é uma realidade completamente desconhecida; pode ser objeto de experiências místicas, mas não de conhecimento racional. O resultado disso é que todas as religiões se tomam virtualmente iguais. Hick considera isso uma vantagem, porque acredita que o conceito da exclusividade da fé cristã é uma postura arrogante, de uma mente fechada. Ele não deixa de mostrar seu desdém para com a teologia ortodoxa. Acusa teólogos conservadores de estarem sacrificando o intelecto.67 No entendimento de Hick, apesar de manter doutrinas que se contradizem umas às outras, todas as religiões são válidas porque servem igualmente como sistemas de símbolos que permitem que as pessoas falem sobre suas experiências religiosas. Assim, todas igualmente levam as pessoas a um encontro com o sagrado. A salvação, segundo ele, vem por todas as religiões, mesmo que
64Cf. os livros de Hick apud, na nota 48. “ Dennis L. Okholm e Timothy R. Phillips (orgs.), More than one way?; four views on salvation in a pluralistic world, p. 91. 66Essa é uma postura clássica da teologia liberal. É uma opinião parecida com a de Friedrich Schleiermacher, o pai da teologia liberal, que fez distinção entre as doutrinas (a casca da religião que deve mudar com o tempo) e o cerne (a experiência inefável do transcendente). Assim, Schleiermacher negou o sobrenatural e as doutrinas ortodoxas da encarnação e expiação. Cf. Stanley J. Grenz e Roger E. Olson, Teologia do século 20, p. 43-57. 67Dennis L. Okholm e Timothy R. Phillips (orgs.), More than one way?; four views on salvation in a pluralistic world, p. 90.
78
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
ninguém saiba exatamente o que o símbolo “salvação” significa. Mas, se todas as religiões são corretas, todas são erradas também. Ou seja, num universo onde cosmovisões contraditórias são igualmente verdadeiras, o conceito de verdade se tornará sem significado. De fato, o universalismo de Hick, longe de ser um sinal de mente aberta a todas as religiões, é uma postura arrogante e fechada que unilateralmente declara que todas as religiões são falsas, e que coloca sua própria religião no lugar delas, como se essa fosse a única verdade. Quando os liberais dizem que todas as doutrinas das religiões são apenas símbolos do transcendente escondido no númeno, estão no mesmo momento declarando que pelo menos sua visão do transcendente é literalmente verdadeira. Isso é nada menos que uma outra doutrina religiosa, substituindo as outras. Eles estão dizendo que Deus está, literalmente, oculto no númeno e que quem diz que ele não está no númeno, está enganado. Ou será que esse enunciado é apenas um símbolo? Vamos examinar a lógica dessa declaração. Cada vez que alguém diz: “x é um símbolo”, a pergunta natural é: “x é um símbolo de quê?” A única resposta que não cai no irracionalismo é que existe algo literal que é simbolizado por x. Se não há uma referência literal que seja o objeto do símbolo, então o símbolo não significa nada. Portanto, falar dele é falar em nada. Se o liberal diz que x é um símbolo do transcendente escondido no númeno, sobre o qual não podemos conhecer nada, existem então somente duas opções. Ou ele está dizendo que conhece pelo menos uma coisa literal, sobre a qual nada pode ser conhecido literalmente, ou está falando sobre absolutamente nada. No primeiro caso, o liberal é irracional por estar se contradizendo. No segundo, é irracional por estar falando sobre nada como se fosse algo real. De qualquer modo o liberalismo teológico é irracional, caindo naquilo que Schaeffer chamou de “misticismo semântico”. Na nova teologia, é feito o uso de determinadas palavras religiosas que possuem uma conotação de personalidade e significado para aqueles que as ouvem. Uma comunicação real não é estabelecida de verdade, mas uma ilu são de comunicação é dada através do emprego de palavras ricas em conotação. Expressar a inexprimível experiência religiosa em palavras com conotação religiosa cria uma ilusão de comunicação. (...) Quando a nova teologia usa estas palavras, sem uma definição, é dada uma ilusão de significado que é útil para fazer surgir motivações profundas. (...) Uma ilu são d e co m u n ica çã o e co n teú d o é dada de forma que, quando uma palavra é usada deste modo deliberadamente indefinido, o ouvinte ‘pensa’ que sabe o que ela significa. (...) P a r a a n o va teo lo g ia , a u tilid a d e d e um sím b o lo tem re la çã o d ire ta com su a o b scu rid a d e . (...) [Só que a nova teologia] não é nada mais do que um salto em um indefinível, irracional e semântico misticismo. (...) Toda nova teologia e misticismo são nada mais do que uma fé contrária à racionalidade, destituída de conteúdo e incapaz de uma comunicação substancial.68 Uma motivação forte por trás do universalismo da teologia liberal é o desejo de fugir das implicações da ortodoxia. Hick recua horrorizado ante a idéia de que as pessoas que nunca ouviram falar de lesus estão condenadas ao inferno. Segundo ele, um Deus que condenaria tais pessoas é um tirano que não merece o nosso louvor.69 Essa conclusão não deve nos surpreender. Se a revelação geral é ambígua, como o liberalismo diz, então não seria justo se pessoas fossem
68Francis Schaeffer, O Deus que intervém, p. 92-95, 98. 69Dennis L. Okholm e Timothy R. Phillips (orgs.), More than one way?; four views on salvation in a pluralistic world, p. 249-250.
A REVELAÇÃO GERAL
79
condenadas por não aceitá-la. Seria culpa de Deus não ter feito uma revelação mais clara. Mas nós vimos em nosso estudo bíblico que a revelação geral é clara. Mesmo as pessoas que nunca ouviram falar de Jesus sabem que o pecado contra Deus é errado e condenável. O liberal não considera o fato de que as pessoas são condenadas porque merecem a condenação. Elas não são condenadas porque rejeitam a Cristo, alguém de quem nunca ouviram falar, mas porque rejeitaram a revelação geral de Deus que é nítida e vista por todos. 0 naturalism o Diante da falência da teologia liberal, o naturalismo seria outra opção. Muitos pensadores concluíram que, se nada pode ser dito sobre Deus, então o conceito de Deus deve ser irrelevante. Nas palavras do Marquês Pierre Simon de La Place, cientista do século xvni, não há necessidade da hipótese de Deus. O mundo natural da matéria é suficientemente adequado para explicar tudo. Será que a negação de Deus é adequada para construir uma cosmovisão racional? Primeiro, o naturalismo, até hoje, não ofereceu uma resposta viável ao dilema epistemológico levantado por Hume. Os ateus tipicamente são empiristas. Mas eles ainda não explicaram como é que as percepções dos sentidos se tornam idéias abstratas. Não mostraram como é que, num universo que evoluiu por acaso, as percepções correspondem ao mundo exterior e, assim, nos dão conhecimento sobre o mundo que é verdadeiro. De fato, Alvin Plantinga produziu um argumento ainda não refutado: se a mente humana é resultado de uma evolução movida pelo acaso, bem como da seleção natural, então não há base para crer que podemos conhecer o que é a verdade. Qualquer capacidade cognitiva que seja resultado do acaso e da seleção natural, segundo o neodarwinismo, tem como seu alvo a sobrevivência do organismo ou da espécie. Mas se isso for verdade, não é provável que a função da mente seja produzir crenças verdadeiras. Se a função da mente não consistir em criar crenças verdadeiras, não podemos asseverar que qualquer crença, inclusive a crença na teoria da evolução, seja verdadeira.70 Fica muito claro que, ao negar a revelação geral de Deus na criação, o naturalismo acaba destruindo a base de qualquer conhecimento. O resultado é o irracionalismo e o ceticismo. É interessante entender que essa conclusão não é apenas uma crítica de teístas contra o ateísmo. O irracionalismo da filosofia pós-modema é de fato o resultado natural disso. A pós-modemidade nega a possibilidade de qualquer meta-narrativa ou grande teoria que abranja tudo.71 Segundo os pensadores pós-modemos, como Richard Rorty e Michel Foucault, a procura de uma verdade universal e absoluta deve ser abandonada. Foucault afirma que a verdade é construída e controlada por motivações de poder e dominação. Atrás da reivindicação de conhecer a verdade está o desejo de ter hegemonia sobre os outros.72 Obviamente, seria possível perguntar a Rorty se seu relativismo é verdadeiro para toda realidade. Se disser sim, então em vez de estar negando que haja uma meta-narrativa válida, está
70Cf. o argumento detalhado de Alvin Plantinga, Naturalism defeated, disponível em http://www.calvin.edu/ academic/philosophy/virtual_library/articles/plantinga_alvin/naturalism_defeated.pdf, acessado em 04.04.2004; Alvin Plantinga, “Objeção reformada à teologia natural”. In; Donald K. McKim (ed.), Grandes temas da tradição reformada, p. 50-70 e principalmente Alvin Plantinga, Warrant and proper function. Um argumento semelhante foi desenvolvido em C. S. Lewis. Milagres; um estudo preliminar e defendido novamente por Victor Reppert, C. S. Lewis s Dangerous idea. 71Cf. Jean-François Lyotard, The postmodern condition; a report on knowledge, p. xxiv. 72Cf. Richard Rorty, A filosofia e o espelho da natureza e Michel Foucault, A arqueologia do saber.
80
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA R EV ELAÇ ÃO DE DEUS
■
apenas propondo uma que é diferente. Também poderíamos perguntar a Foucault (se ainda fosse vivo) se sua teoria realmente descreve a história do conhecimento, ou se é apenas a tentativa dele de estabelecer hegemonia ideológica sobre os outros. O fato é: uma vez que a possibilidade de conhecer a verdade é negada pelos pós-modemistas, não resta razão para crer em suas teorias. O irracionalismo pós-modemo é igual ao homem que, quando estava podando uma árvore no quintal, serrou o próprio galho em que estava assentado. A queda foi inevitável. No final da década de 1980, um grupo de cientistas e filósofos respondeu ao naturalismo, asseverando que existe forte evidência na criação de que ela foi planejada. O argumento, que se tomou proeminente na virada do século xxi, é chamado de Design Inteligente ( d i ) . Embora o argumento seja semelhante ao antigo argumento cosmológico, não é necessariamente um novo passo na teologia natural. Por isto, enquanto alguns dos seus proponentes entendem o d i como parte de uma nova teologia natural, outros são mais cautelosos em sua interpretação. O d i não é promovido como uma prova da existência de Deus, mas sim como evidência da incapacidade do naturalismo de explicar o mundo. O cerne do argumento do d i está alicerçado na descoberta de que, no fundamento dos sistemas vivos, existe uma vasta quantidade de informação. O d n a , por exemplo, é um portador de informação complexa que determina a estrutura do organismo do qual ele faz parte. A estrutura do d n a funciona como as letras do alfabeto e as palavras de um idioma. O problema é explicar como o dna poderia ter evoluído sem a direção de uma inteligência. Segundo o d i , isso seria impossível. Para entender o argumento é preciso ver que a estrutura física do d n a não é suficiente para explicar a presença da informação que ela contém. Por exemplo, o livro de J. R. R. Tolkien, O Hobbit, foi lançado originalmente em inglês e depois traduzido para o português. A informação contida na edição brasileira e na edição inglesa é igual, embora a estrutura física das letras e palavras impressas nas páginas seja diferente. Assim, duas pessoas, que não entendam o sistema de símbolos do outro idioma, podem conhecer a mesma história sobre as aventuras de Bilbo e seus companheiros. Os símbolos portadores da história são bem diferentes, mas a informação não é. Sua função não é a mesma da estrutura física onde está gravada. Ela não é uma entidade física, mas sim uma realidade que existe na mente das pessoas. Estruturas físicas são apenas símbolos que representam a informação. Os proponentes do DI perguntam, então: num universo naturalista, de onde vieram as informações necessárias para produzir o que William Dembski chama “complexidade específica”? Segundo Dembski, a busca por vida extraterrestre (como no filme Contato) demonstra que a complexidade específica é um conceito científico. Os cientistas examinam o ruído que vem do espaço, que evidencia a repetição de um padrão de sinais que contêm informação, e a presença dessa informação é aceita como evidência de uma fonte de vida inteligente. O d i pergunta: será que é coerente insistir que a presença de informação é evidência de inteligência numa circunstância, mas não em outra?73 A reação dos naturalistas contra o d i é vigorosa. Mas até agora suas respostas não são convincentes. Wemer Lowenstein, por exemplo, gastou 366 páginas construindo uma teoria, para explicar como a informação que se encontra no d n a das células vivas na terra chegou
73Sobre o Design Inteligente cf. William A. Dembski, Intelligent design; the bridge between science and theology e William A. Dembski e James M. Kushiner (eds.), Signs o f intelligence.
A REVELAÇÃO GERAL
81
................................................................................................................................................................ . até elas através da evolução. Ele começa com o Big Bang e conclui que toda a informação necessária para a organização do universo e da vida deveria já estar presente. A fonte da informação, então, deve existir antes, mas a ciência não é capaz de penetrar antes desse tempo. Em outras palavras, em 366 páginas de discussão ele não tem a mínima idéia de onde veio a informação que viabiliza e sustenta a estrutura do universo.74 E duvidamos que outros naturalistas conseguirão ter mais sucesso na tentativa de resolver o mistério. A verdade é que o naturalismo fracassou na sua tentativa de construir uma cosmovisão racional sem Deus.75 A teologia neo-ortodoxa A teologia de Karl Barth representa uma tentativa de corrigir os fracassos da teologia liberal, mas sem voltar à ortodoxia. Como nota Westphall, a crítica de Barth à teologia natural é procedente à medida “que as culturas e religiões são idealizadas” como se tivessem elementos soteriológicos. Como será abordado no capítulo 12, todas as culturas e religiões estão debaixo da escravidão do pecado e, por isto, elas são pródigas em fabricar opressões e maldades. Portanto, seguindo a crítica de Barth, devemos tomar o cuidado de não colocar a revelação de Deus no mesmo nível da história, das ideologias, das religiões e das culturas, como fizeram, por exemplo, os ideólogos nazistas na Alemanha, em meados da década de 40, e os teólogos da libertação, com o uso do marxismo, em meados da década de 70. Como Westphall conclui, “a identificação pura e simples da [ideologia,] história ou religião com a revelação cria patologias irreversíveis no seio da Igreja de Cristo”.76 Por outro lado, encontramos em Barth uma redução cristológica aplicada à antropologia: Há algumas semelhanças entre alguns postulados teológicos de Barth com as posições marcionitas. Para Marcião, Deus é aquele ser que não tem analogia no mundo, como também não poderia haver revelação de Deus na natureza. Entre outras questões, haveria semelhanças no que diz respeito à analogia exclusiva da graça e de Cristo, o monismo cristológico. Podemos concluir que Jesus Cristo não é a única revelação de Deus, mas ele é a única revelação de Deus para a salvação.77 Portanto, em oposição a Barth, devemos dizer que Deus realmente se revela na criação de uma forma clara. Só que, em oposição a Tomás de Aquino, observamos que os cinco argumentos fundamentados na criação são insuficientes para comunicar a mensagem salvadora, e que, por isto, os pecadores precisam da revelação especial salvadora da Bíblia, para corrigir suas interpretações erradas. Concluímos, assim, que a posição dos reformadores é a melhor representação do ensino das Escrituras.
74Werner R. Lowenstein, The touchstone o f life; molecular information, cell communication and the foundations of life, p. 25. 75A questão que investiga se o di é ciência, teologia ou filosofia está sendo debatida com vigor, não apenas pelos adeptos do naturalismo. Vários cientistas e filósofos evangélicos, e outros teístas, também debatem a natureza científica do di . A questão principal é se o di é capaz de gerar um programa rigoroso de pesquisa científica. O di pode fazer predições empíricas que poderiam ser testadas? O di é uma disciplina e um movimento ainda recente. Seu sucesso ou não, como uma disciplina da ciência, em nossa opinião, será visto futuramente. Mas, independente do resultado, os problemas que o di levantou sobre o naturalismo são significativos. 76Euler R. Westphall, A revelação exclusiva numa religiosidade pluralista. Vox Scripturae, v.6, n .l, p. 141. 77Euler R. Westphall, A revelação exclusiva numa religiosidade pluralista. Vox Scripturae, v.6, n .l, p. 134.
82
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
A necessidade de m issões aos povos não-alcançados Em nosso estudo sistemático fizemos a afirmação de que a revelação geral não é suficiente para levar os perdidos ã salvação. Historicamente, esta posição motivou a expansão missionária mundial, pois a única esperança dos povos não-alcançados era a pregação do evangelho. Isto foi uma marca essencial da fé evangélica desde a reforma protestante. Não obstante, alguns evangélicos no fim do século xx começaram a sugerir a possibilidade da salvação dos que nunca ouviram o evangelho. À medida que ficou óbvio que ainda existiam bilhões de pessoas que ainda não ouviram o evangelho, esta é uma questão natural. O que acontecerá com tais pessoas? E justo que elas caminhem para a perdição, sem ter ao menos uma chance de receberem a salvação em Cristo? Alguns teólogos evangélicos estão afirmando que sim. Existe entre estes várias noções sobre como isto pode acontecer, já abordadas anteriormente. O motivo por trás de tal mudança na teologia evangélica é, principalmente, o sentimento de que não é justo que algumas pessoas tenham uma oportunidade, que outras não têm, de responder e receber a salvação. Como é que uma pessoa pode ser castigada por não receber um Salvador, de cujo nome ela nunca ouviu falar? Já respondemos aos argumentos dos liberais a favor de pluralismo. O que podemos dizer em resposta aos evangélicos neste ponto? Primeiro, devemos notar que a resposta completa a este problema depende dos resultados de nosso estudo de várias outras doutrinas. As doutrinas da queda, da eleição e da justificação são importantes. Ao estudar a doutrina da queda veremos que o pecador não é capaz de responder à luz da revelação geral de uma maneira positiva. A doutrina de eleição nos mostra que Deus ordena meios adequados para salvar todo o seu povo eleito. A pregação do evangelho é o meio ordenado. A doutrina da justificação elimina qualquer possibilidade de receber a salvação através das obras, e ensina que a fé que salva deve estar voltada para alguém capaz de salvar, a saber, o Senhor Jesus Cristo. O efeito cumulativo dessas doutrinas nos leva à conclusão de que é preciso mesmo ouvir a mensagem do evangelho para poder ser salvo. Isto deve se tornar mais claro à medida que avançar na leitura desse livro. Neste momento, portanto, nós queremos limitar a nossa resposta a alguns versículos que colocam em xeque qualquer possibilidade de salvação dos povos que ainda não ouviram o evangelho. A noção da eventual salvação das pessoas através da revelação geral pressupõe que, de alguma maneira, elas respondem e aceitam o que conhecem sobre Deus. De acordo com essa visão, pelo menos algumas pessoas estão procurando a Deus sinceramente, mesmo na ignorância do evangelho. A isto respondemos com a avaliação de Paulo. Citando vários trechos do Antigo Testamento, ele escreveu em Romanos 3.10-18: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos.
A REVELAÇÃO GERAL
83
O efeito deste “lúgubre quadro bíblico” é devastador. Nas Escrituras, a humanidade toda peca no seu caráter (Rm 3.10-12) e na sua conduta (Rm 3.13-17).78 À luz dessa declaração, parece que mesmo se Deus abrisse a possibilidade da salvação de pessoas que não ouviram a pregação do evangelho de Cristo, ainda não seria suficiente para salvar os pecadores. Preci samos perguntar, então: qual a vantagem em abrir uma porta se ninguém quer entrar? O fato é que, em seu estado decaído, não existem pessoas que busquem a Deus sinceramente. As pessoas, segundo o apóstolo, “detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). A postura natural do homem é fugir o mais rápido possível do som da voz de Deus na revelação geral. As pessoas fabricam falsos deuses, à imagem do homem, para evitar e não encontrar o Deus verdadeiro. E por isso que estão condenadas, e não por rejeitarem uma mensagem que ainda não ouviram. E essa condenação é totalmente justa e merecida. É a incapacidade do ser humano em responder corretamente à revelação de Deus que ditou a necessidade de uma intervenção mais radical. “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” e “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo,” dizem os apóstolos (At 4.12; Rm 10.13). O que não existe é algum texto que afirme que alguém que não invoque o nome do Senhor possa ser salvo por meio de um outro caminho. Para receber a salvação é preciso certas informações que corrijam as deturpações feitas na interpretação da revelação geral. O pecador precisa saber a identidade do Salvador e o meio através do qual pode receber o benefício da obra do Salvador. Em Romanos 10.14-15, Paulo ressalta o problema com nitidez: Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! Se é preciso ter fé em Cristo para ser salvo, a indagação de Paulo é natural. É uma questão retórica que antecipa uma resposta negativa. Porém, se fosse possível a salvação dos que nunca ouviram o evangelho, a pergunta não faria o menor sentido. Seria razoável responder algo como “crendo sinceramente na sua própria religião, ou vivendo consistente com a luz da revelação na natureza”, mas Paulo não admite essas opções. Nas Escrituras, a resposta correta do dilema era ir e pregar, para diminuir o número daqueles que não ouviram. Justiça significa receber o que é merecido. São os cristãos que recebem o que não merecem, pois todas as pessoas merecem a condenação. O perdido não tem base alguma para reclamar. Mas acreditamos que isto não é o fim da história. O mandado de levar o evangelho para os povos não-alcançados deve ser uma prioridade muito importante na vida da igreja. Atualmente temos mais recursos e oportunidades do que em qualquer outra época da história. Acreditamos que, entre os povos não-alcançados, Deus deve ter muitos dos seus eleitos, pessoas que ele vai
78John R. W. Stott, Romanos, p. 114: “Esta é a doutrina bíblica da ‘depravação total’, que, segundo eu suspeito, só tem coragem de contestar quem tem sobre ela uma concepção errônea. Afinal ela nunca quis dizer que o ser humano é o mais depravado possível. Tal noção é evidentemente absurda e falsa, e basta olharmos ao nosso redor, no nosso dia-a-dia para contradizê-la. (...)... a ‘totalidade’ da nossa corrupção tem a ver com a sua extensão (pois ela estraga e distorce todas as partes da nossa natureza humana), ao seu nível de ação (pois corrompe em absoluto cada parte de nosso ser). Como sintetizou o Dr. J. I. Packer, por um lado ‘ninguém é tão mau quanto poderia ser’, enquanto que, por outro, ‘nenhum de nossos atos é tão bom quanto deveria ser’”.
84
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
salvar através da pregação. Isto nos dá confiança de que o trabalho missionário terá sucesso. Em vez de inventar teorias especulativas, sem qualquer base bíblica, quem estiver de fato preocupado com o destino dos que não ouviram as boas novas de Jesus deve aproveitar as oportunidades para apoiar e se envolver na tarefa missionária.79
Aplicação prática Ao contemplarmos a beleza e a força da criação, somos remetidos à grandeza, poder, soberania, propósito e inteligência de Deus. Diante desse belo quadro, devemos render toda adoração, louvor e glória ao Deus criador, como somos conclamados pelo hino:80 1. Oh, vinde adorar o excelso e bom Deus, Senhor soberano da terra e dos céus, que reina supremo, envolto na luz, e que se revela em Cristo Jesus! 2. Nos astros do céu, na terra e no mar, a glória divina podeis contemplar. A gota de orvalho, o fruto e a flor proclamam constantes o seu grande autor. 3. A Deus, nosso Pai, ao Filho de amor, ao Santo Espírito, o Consolador, com vozes erguidas, em todo lugar, ao Deus trino e santo, oh, vinde adorar! Por causa da revelação geral de Deus, especialmente na criação, os cristãos devem se envolver na pesquisa científica, mostrando a grandeza e a glória de Deus na criação. Crendo na revelação geral de Deus na criação, assim como na sua revelação especial na Bíblia, os reformadores e os puritanos abraçaram totalmente o estudo científico do mundo físico. Os grandes avanços científicos se iniciaram na Sociedade Real de Londres, da qual, durante algum tempo, Isaac Newton fez parte. Douglas Kelly disse: Um bom número dos membros da Sociedade Real de Londres era composto de membros da grande Assembléia de Westminster na década de 1640 e alguns dos professores de matemática e geometria que estavam vivos naquela época, também haviam participado desta grande Assembléia. A doutrina da glória de Deus na criação, que eles sustentavam, foi o que tomou possível à ciência moderna avançar de forma tremenda.81 Kelly não está querendo dizer que toda a ciência dos séculos xvi e xvu era dominada pelos puritanos. Mas, por outro lado, um percentual surpreendente dos feitos científicos dessa época está enraizado nesse movimento.82 79Cf. especialmente Millard J. Erickson, “Os salvos: muitos ou poucos”. Vox Scripturae, v.6, n .l, p. 97-113. 80Joan Laurie Sutton (org.), Hinário p a ra o culto cristão. “Oh, Vinde adorar!”, letra de Henry Maxwell Wright e David William Hodges e música de William Rnapp. !1Douglas Kelly, “O legado puritano”. In: Jornal Os Puritanos 2/3, p. 18. 82J. Hooykaas, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 175-193. Se de fato os reformadores e puritanos foram responsáveis pela ascensão da ciência moderna é uma questão de grande debate, mas que eram favoráveis ao movimento é indiscutível.
85
A REVELAÇÃO GERAL
■ ............................... ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
Mais ainda, os cristãos devem buscar uma educação completa, que não inclua apenas o conhe cimento religioso. Por exemplo, quando os puritanos fundaram nos Estados Unidos o Harvard College, em 1636, tinham como alvo que os estudantes que estavam se preparando para o ministério da Palavra não apenas aprendessem a estudar a Bíblia no seu idioma original e a conhecer teologia, mas que também estudassem matemática, astronomia, física, botânica, química, filosofia, poesia, história e medicina. Ainda hoje, na tradição reformada, espera-se que os ministros tenham uma educação universitária, além do preparo teológico no seminário — e não somente uma educação teológica, como ocorre em algumas tradições pietistas. O alvo dessa educação abrangente é preparar a pessoa para fazer bem tudo que venha a ser chamada a fazer na vida, tomando-a um bom amigo, colega, esposo ou pai, influenciando outras pessoas e sendo um membro produtivo da sociedade. Por causa do entendimento bíblico da revelação geral, os objetivos da educação se tornam abrangentes, incluindo tanto a piedade como o conhecimento, tanto o buscar se alegrar em Deus como se preparar para fazer bem todas as coisas no dia-a-dia.83 Também se deve destacar que a revelação universal pode servir como ponto de contato na evangelização dos não-crentes. Eles já sabem que Deus existe e que devem adorá-lo. Mas devemos reconhecer que ainda temos que argumentar contra as caricaturas que os não-crentes fazem de Deus e da criação. Portanto, a partir da doutrina da revelação geral, temos o mandado de Deus para usar toda a força e recursos para ir ao mundo inteiro e pregar o evangelho a todas as culturas, concentrando vidas e recursos em lugares que não têm ainda o testemunho evangélico.
Bibliografia para aprofundamento John. Deus e cosmos', um conceito cristão do tempo, do espaço e do universo. São Paulo, PES, 2003.
B
yl,
C
a l v in o ,
E
r ic k s o n ,
H
o y k a a s,
João. As Instituías ou Tratado da Religião Cristã, ed. latina de 1559. São Paulo, Cultura Cristã, 2006. 1.1-5.
J o h n so n ,
Millard J. Inírodução à íeologia sistemática. São Paulo, Vida Nova, 1997. p. 41-53. R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília, UnB, 1988.
Phillip E. As perguntas certas. São Paulo, Cultura Cristã, 2005.
________________ . Como derroíar o evolucionismo. São Paulo, Cultura Cristã, 2000. M
, Alister. Teologia sisíemáiica, histórica e filosófica', uma introdução cristã. São Paulo, Shedd Publicações, 2005. p. 245-267.
cG rath
à
teologia
________________ . Fundamentos do diálogo entre ciência e religião. São Paulo, Loyola, 2005. M
il n e ,
Bruce. Estudando as doutrinas da Bíblia. São Paulo,
abu,
1987.
p.
19-24.
J. I. Os vocábulos de Deus. São José dos Campos, Fiel, 1994. p. 15-25.
P
acker,
P
earcey,
Nancy e Thaxton, Charles B. A alma da ciência', fé cristã e filosofia natural. São Paulo, Cultura Cristã, 2005.
83Como será visto no capítulo 17, o que está por trás deste pensamento é a doutrina da graça comum, que afirma que Deus dota todas as pessoas, crentes e incrédulos igualmente, com a capacidade para a verdade, bondade e beleza.
CAPÍTULO 4
A PALAVRA DE DEUS Definição do problema e a revelação universal não traz conhecimento suficiente de Deus para salvar uma pessoa, como será possível conhecer a salvação que Deus graciosamente nos concede? A revelação especial é a revelação sobrenatural de Deus, através da qual o pecador toma conhecimento de como Deus resgata pecadores, por meio de Jesus Cristo, para sua glória. Quais são os meios da revelação especial? Como vemos a Escritura? Ela é uma produção humana, ou é a graciosa revelação de Deus aos pecadores? Estas questões são de alta importância na época pós-modema. Para o homem pós-modemo, a possibilidade da existência e comunicação da verdade absoluta é algo questionável. Isto não é apenas um problema limitado aos corredores dos departamentos de filosofia e literatura nas grandes universidades. A mídia popular, inclusive filmes, músicas e TV, apresentam um mundo no qual as pessoas podem criar sua própria verdade, pois a mente humana se tomou a referência final para a interpretação do mundo. A verdade não é mais algo fixo, à qual o pensamento deve se conformar. A comunicação não é concebida como algo que ocorre principalmente por meio de idéias racionais, transmitidas através de enunciados. As imagens, em vez das palavras, são o meio de comunicação do século xxi. E essas imagens são efêmeras, aparecem na tela durante uns poucos segundos, antes de serem substituídas por algo mais interessante, enquanto as pessoas navegam com rapidez de um site para outro na internet. O impacto da comunicação na mídia atual não mais se baseia na solidez de palavras que são escritas uma vez para sempre, mas sim em textos e imagens rápidos, colocados em blogs ou manipulados pelas produções de TV e cinema. O alvo é criar uma experiência e manipular o comportamento das pessoas, seja por motivos políticos ou comerciais. O resultado é a fragmentação da realidade na percepção dos consumidores. Diante desse quadro, qual é o lugar das Escrituras neste contexto pós-modemo? É possível que tal expressão de verdade esteja ultrapassada? Será que as pessoas do século xxi ainda são capazes de ouvir uma palavra objetiva e absoluta? Será que elas ainda precisam de tal revelação, ou isso é algo que só servia para as épocas pré-tecnológicas? Neste capítulo, queremos investigar
S
a natureza da revelação especial de Deus. Indagaremos sobre a possibilidade de ouvir de Deus algo que transcenda os modismos da cultura popular e dos filósofos do irracionalismo. Queremos saber se existe uma orientação divina, algo que ainda possa nos guiar, enquanto navegamos pelos mares da incerteza e da confusão que encontramos na vida. Onde e como Deus nos tem falado? Buscando responder a estas dúvidas, veremos neste capítulo a natureza da revelação especial e o que a Bíblia fala sobre essa revelação.
Estudo histórico e comparativo A s religiões não-cristãs 0 anim ism o e o espiritism o O conceito de revelação nas religiões animistas é vinculado com a crença de que tudo é divino. Nesse sentido, a distinção entre a revelação geral e especial poderia ser vista como algo artificial, porque a distinção entre o natural e o sobrenatural não é clara nestes movimentos. Mesmo assim, existe a distinção entre o sagrado e o profano, e podemos encontrar nela o local da revelação do sobrenatural. Existe um paralelo entre o animismo e o teísmo. O animismo e o espiritismo propõem um tipo de conhecimento do sagrado que não é percebido por todos, mas somente por pessoas dotadas de capacidades ou ofícios especiais. Tais pessoas são privilegiadas por possuírem técnicas e poderes que as capacitam a se comunicar com espíritos de mortos ou de seres divinos. Também têm o poder de ler sinais que servem para revelar informações ocultas, sejam do passado, presente ou futuro. Em relação ao conhecimento oculto, nas religiões tradicionais encontramos o xamã e o adivinho. O xamã é uma pessoa que assume o papel de intermediário entre os espíritos e a comunidade. Muitas vezes tem vínculo com um espírito tutelar que lhe dá acesso aos demais espíritos. Ele pode adivinhar, curar doenças e cuidar das almas dos vivos e dos mortos.1 O adivinho, cujo dom muitas vezes é hereditário, é a pessoa na comunidade que é reconhecida por sua capacidade de ler os sinais que revelam a vontade dos deuses ou os eventos ocultos e futuros. Ele, às vezes, emprega objetos, como as vísceras de animais, números, ossos ou a leitura de estrelas e outros corpos celestes. Essa pessoa pode também praticar curas e outras obras de magia.2 As religiões animistas podem ainda incluir indivíduos que atuem como sacerdotes. Não é sempre clara a distinção entre sacerdote, xamã e adivinho, já que a mesma pessoa poderia atuar em todas essas capacidades, segundo algumas tradições. Já que as religiões afro-brasileiras contêm elementos de animismo, nelas existem pessoas que têm papéis equivalentes ao xamã, adivinho e sacerdote. O que interessa é a presença de pessoas reconhecidas como portadoras de poderes especiais para a comunicação com os espíritos. Elas atuam como intermediárias entre o povo e o divino, e também como guardiãs da tradição sagrada e, muitas vezes secreta, da religião. No candomblé e na umbanda, o pai-de-santo e a mãe-de-santo têm um papel especial na liderança dos terreiros, os centros de culto, e na mediação entre o povo e os espíritos. Eles são os responsáveis pelo treinamento e iniciação dos cavalos, as pessoas que recebem ou que ‘Albert Samuel, As religiões hoje, p. 59. 2Ibid.
88
[P A R TE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
são possuídas pelos espíritos. Nos cultos, os orixás ou os espíritos dos antepassados, descem para se manifestar nos corpos dos cavalos e, assim, comunicam-se com o povo. Embora o candomblé e a umbanda sejam religiões distintas — o candomblé sendo mais parecido com a religião africana e a umbanda sendo mais sincretista — a diferença prática, quanto à questão de comunicações com os espíritos, não é muito importante. Em ambos os casos, a questão é a possessão de uma classe de pessoas iniciadas, que servem como canais para a comunicação com os espíritos de divindade do além.3 Esse fenômeno é bastante semelhante à prática da canalização na religião popular que, às vezes, é conhecida como a “Nova Era”. O adepto entra num estado mediúnico e se toma o canal, através do qual um ou mais espíritos falam. As “revelações” podem ser orais ou escritas. Existem vários livros que foram escritos assim e, às vezes, o espírito até recebe crédito como autor da obra.4 A Nova Era é descendente do espiritismo do século xix, que brotou na Europa e nos Estados Unidos. Esse chegou ao Brasil pelos ensinos de Allan Kardec, e se tomou uma religião popular entre a classe média e alta. Mesmo com as diferenças de estilo e técnica, os princípios do espiritismo kardecista são parecidos com os do chamado baixo espiritismo, em que são contados o candomblé e a umbanda, e também com a Nova Era. No kardecismo, médiuns são pessoas que, supostamente, têm a capacidade de se comunicar com os espíritos dos mortos. Fazem o serviço ao entrar em contato com os espíritos em sessões especiais, cujo propósito é chamá-los do além, para receber comunicação. Uma característica comum entre as variedades de espiritismo e ocultismo é a relação entre os mediadores dos espíritos e o povo. Essa relação pode ser mais bem caracterizada como uma relação entre clientes e terapeutas. O médium, cavalo, pai-de-santo, etc presta o serviço de entrar em contato com os espíritos em favor do cliente, e às vezes é pago por esse serviço. Isso influencia muito o tipo de “revelação” que é recebida por esses métodos. Tipicamente, as informações são banais e de interesse particular, voltadas apenas para a pessoa. Elas buscam conselho sobre como resolver problemas pessoais ou familiares. São raras as revelações sobre cosmologia ou as grandes questões do significado do universo, embora tais revelações existam nos escritos dos fundadores ou líderes dos movimentos.5 Uma outra característica comum entre essas religiões é a tendência de reinterpretar a Bíblia para levá-la a refletir os ensinos ocultistas. 0 islam ism o O islamismo se iguala ao mormonismo em sua negação da veracidade da Bíblia. Apologetas muçulmanos aplicam as conclusões mais céticas da alta crítica da Bíblia para destruir a confiança na sua transmissão. Fazem isso porque não querem negar a verdade da mensagem de Jesus, mas negar que a fé cristã é a religião que Jesus pregou.6 Em vez de crerem que Jesus Cristo é a revelação plena de Deus, acreditam que a revelação final fõi dada a Maomé.
3Cf. Patricia Birman, O que é umbanda, e Raimundo Cintra, Candomblé e umbanda; o desafio brasileiro. Cf. também Volney J. Berkenbrock, A experiência dos orixás; um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. 4Para um exemplo mais antigo, veja a obra de Francisco Cândido Xavier, A caminho da luz, que foi supostamente ditada pelo espírito Emmanuel. Outros exemplos contemporâneos podem ser encontrados com facilidade na internet, como no site da revista AMALUZ, http://www.amaluz.com.br/arquivo/2000/90_l.htm, acessado em 28. 02. 2007. 5Berkenbrock, op.cit., p. 157. 6Ulfat Aziz-Uz-Samad, A comparative study o f Christianity and Islam, p. 2-14.
A PALAVRA DE DEUS
89
..................................................................................................................................................................................................................................... Segundo a tradição, em 610, Maomé recebeu a primeira revelação do anjo Gabriel, quando tinha 40 anos. A partir de então e até sua morte, recebeu uma série de revelações, supostamente desse anjo. Essas revelações não eram escritas, como os livros bíblicos, mas eram dadas na forma de visões, durante estados de êxtase. As revelações orais eram decoradas e porções eram escritas pelos companheiros de Maomé; mas foi apenas depois de sua morte que o material foi compilado na forma de um livro. Segundo a fé muçulmana, o Alcorão é literalmente a voz de Deus. Seu texto foi preservado perfeitamente, sem corrupção. Para eles, essa revelação é final.7 A s seitas Uma doutrina comum nas seitas é que a revelação especial ainda está em processo. As seitas podem até aceitar a Bíblia, mas dizem que ela precisa ser suplementada (como os mórmons com o Livro de Mórmon) ou novamente traduzida (como para a seita Testemunhas de Jeová). Além disso, as seitas normalmente têm um líder (como o profeta Joseph Smith, entre os mórmons) ou uma organização (como a Torre de Vigia da seita Testemunhas de Jeová) que recebe novas revelações e serve como intérprete oficial das doutrinas já recebidas. Dessa forma, as seitas mudam a mensagem da Bíblia, ao introduzir novas doutrinas com as suas novas revelações. Fazem isso enquanto afirmam que são elas, e somente elas, que guardam as verdades da Bíblia. Algumas seitas carismáticas pregam que recebem revelações especiais mediante o dom de profecia e de línguas. Algumas delas, embora nem todas, conferem muita autoridade a essas revelações. Segundo os mórmons (A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias), Joseph Smith, o primeiro profeta e fundador da igreja, recebeu uma série de revelações de um anjo, chamado Moroni. Esse anjo revelou que todas as religiões na terra estavam corrompidas, assim como seus ministros. Cabia a ele, então, restaurar a verdadeira religião. Para cumprir isso, foi-lhe entregue um livro escrito em lâminas de ouro, em “egípcio reformado”. Esse livro supostamente continha a história de um grupo de israelitas que emigraram para as Américas e estabeleceram ali uma grande civilização. Cristo os visitou depois da ressurreição para revelar o evangelho, que foi registrado nesse livro. Assim, foi dada a Smith a tarefa de traduzir o livro para o inglês e restaurar o evangelho. A tradução foi feita por meio de magia. Smith olhava duas pedras, o urim e o tumim, dentro de um chapéu, e a tradução aparecia, palavra por palavra, na sua frente. Além do Livro de Mórmon, como profeta, Smith recebeu várias outras revelações, inclusive a instituição da poligamia.8 Ele também comprou alguns manuscritos egípcios antigos e publicou uma tradução, contando a história de Abraão no Egito.9 Os líderes sucessores de Smith continuam usando o título de profeta e reivindicam poder e a autoridade de trazer novas revelações em nome de Deus. Um dos profetas recentes ficou famoso por ter dito: “Quando o profeta fala, o pensar já foi feito por você”. Também declarou que o profeta fala em nome de Deus em tudo, que ele não pode errar e ainda que o profeta vivo pode dar novas revelações que contradigam revelações anteriores.10 Em outras palavras: ninguém tem o direito de questionar ■......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... ..
7Ulfat Aziz-Uz-Samad, A comparative study o f Christianity and Islam, p. 14-17. 8Quando o govemo dos Estados Unidos estava pronto para enviar o exército para o território de Utah, para aplicar a lei contra poligamia, felizmente ocorreu mais uma revelação súbita de Deus ao então profeta, dizendo que a poligamia não era mais permitida. 9Sobre as revelações de Smith, cf. James E. Talmage, Articles offaith, p. 7-14. 10Ezra Taft Benson, “Fourteen Fundamentais In Following the Prophets”. Palestra proferida em 26 de fevereiro de 1980, disponível em http://www.utlm.org/onlinebooks/followingthebrethren.htm, acessado em 16.04. 2004.
90
[ PARTE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
o ensino do profeta. Quando o profeta fala oficialmente em nome de Deus, os mórmons acreditam que a sua palavra é igual à de Deus. Os mórmons acreditam que as novas revelações eram necessárias porque a verdadeira religião de Jesus foi perdida. Segundo eles, a Bíblia foi corrompida. Então, dizem que aceitam a Bíblia, mas que ela não chegou aos dias de hoje na forma original. Foi modificada, e muitos ensinos do evangelho foram esquecidos. Portanto, o alicerce do mormonismo é um ataque frontal à veracidade da Bíblia.11
A revelação especial na história do cristianism o Os pais da igreja Na igreja antiga encontramos o desenvolvimento da teologia, muitas vezes em resposta às heresias dos gnósticos e de outras seitas. É interessante ver que em toda controvérsia sobre doutrina, os pais da igreja se submeteram aos livros bíblicos como a autoridade final. Eles apelaram à tradição entregue pelos apóstolos, encontrada nos livros que hoje compõem o Novo Testamento. Também receberam o Antigo Testamento como a Palavra de Deus. Para eles, a natureza das Escrituras como inspiradas por Deus garantia sua veracidade plena. Creram na Escritura como infalível e, portanto, incapaz de qualquer erro. A doutrina da inerrância da Escritura era a doutrina da igreja primitiva. Alguns poucos exemplos bastam para provar este ponto. Justino de Roma apresentava citações do Novo Testamento como autoritárias, usando a expressão “está escrito”, e chamava os quatro evangelhos de “memórias dos apóstolos”.12 Ele também mencionou Atos e muitas das epístolas paulinas. Disse ainda que um dos salmos de Davi (SI 71) foi “ditado pelo Espírito”, e jamais ousou pensar que as Escrituras se contradiriam.13 Ireneu de Lion, assim como todos os demais pais da igreja, considerava as “Escrituras do Senhor”14 como inspiradas.15 Foi o primeiro escritor a falar sem rodeios de um “Novo”
"Bruce R. McConkie, Mormon doctrine, p. 82-83. Reconhecemos que o livro de Bruce R. McConkie não tem o peso da autoridade oficial dos Santos dos Últimos Dias. Ainda assim, McConkie era considerado um dos 12 apóstolos da Igreja, e o livro é um resumo ainda confiável do que a Igreja tem ensinado e do que geralmente é crido. Embora alguns apologistas dos mórmons aleguem que o livro de McConkie esteja ultrapassado e não represente o ensino atual da Igreja dos Santos dos Últimos Dias, acreditamos que a nossa observação permanece válida, tanto para hoje como para quando o livro foi lançado há 40 anos. Um resumo do ensino atual da Igreja dos Santos dos Últimos Dias apóia essa avaliação. C f os artigos nos sites oficiais da Igreja, http://lds.org e http: //www.mormon.org/, acessados em 09.03.2007. Portanto, iremos nos basear na obra Mormon doctrine para ilustrar a teologia do mormonismo, mas também usaremos outras obras primárias e secundárias para expor o seu ensino. Sobre a corrupção do texto da Bíblia, veja Robert J. Matthews, “A Bible! A Bible!” em Ensign, Jan. 1987,22, disponível em http://library.lds.Org/nxt/gateway.dll/Magazines/Ensign/l 987.htm/ensign%20january%201987.htm/ a%20bible%20a%20bible.htm?fn=document-frameset.htm$f=templates$3.0, acessado em 09.03. 2007. 12Cf. IA pologia 66; 67; D iálogo com Trijao 103; 106. 13Apologia 34.1; 65.2. l4Adversus Haereses 11.35,4. lsPara Ireneu, até mesmo a tradução da Septuaginta foi inspirada por Deus. Cf. Adversus Haereses 111.21,2. Depois de mencionar que os setenta anciãos judeus fizeram as traduções do Antigo Testamento separadamente, por ordem de Ptolomeu, e que as traduções eram exatamente iguais, ele diz: “Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas como verdadeiramente divinas, porque todos, do início ao fim, exprimiram as mesmas coisas com as mesmas palavras, de forma que também os pagãos presentes reconheceram que as Escrituras foram traduzidas sob a inspiração de Deus.”
A PALAVRA DE DEUS
91
................................................................................................................................................................. Testamento em paralelo com o Antigo.16 Depois de sua época, houve um reconhecimento universal do caráter plenamente canônico dos escritos especificamente cristãos, e se tomou popular chamá-los de “Novo Testamento”, um título que remonta ao fato de Paulo ter designado as Escrituras judaicas de “antiga aliança” (2Co 3.14). Agostinho de Hipona escreveu, em diferentes oportunidades: As Escrituras Sagradas, absolutamente verídicas.17 [Deus] instituiu também a Escritura chamada canônica e investida da mais alta autoridade. Nela acreditamos a respeito de tudo o que convém não ignorar e que somos incapazes de conhecer por nós mesmos.18 Aprendi a reverenciar unicamente àqueles livros a que chamo de canônicos. Creio, portanto, com muita firmeza, que nenhum dos autores desses livros cometeu qualquer tipo de erro em seus escritos.19 [Não nos cabe formular juízos] a respeito da tua Escritura, ainda que contenha passagens obscuras, porque a ela submetemos a inteligência, e temos como justo e verdadeiro até mesmo o que permanece velado à nossa compreensão.20 Senhor, por acaso não será verdadeira a tua Escritura, ditada que foi por ti, que és verdadeiro, ou melhor, que és a própria Verdade?21 O que a minha Escritura diz, eu digo.22 Os hagiógrafos são os “dedos de Deus”.23 O Espírito de Deus fala, mas por meio dos homens.24 Estes livros são obra dos dedos de Deus. Foram compostos por inspiração do Espírito Santo aos santos.25 Todo aquele que nas Escrituras entende de modo diferente ao do autor sagrado engana-se, em meio mesmo da verdade, visto que as Escrituras não mentem.26 A fé cambaleará se a autoridade das Escrituras vacilar.27 16Adversus Haereses IV.9,1. 17A cidade de Deus 11.6. ISA cidade de Deus 11.3. '"Epist. 82.1,3. 20Confissões 13.33. 21Confissões 13.44. 22Confissões 13.44. 2}Comentário aos Salmos 8.7. cidade de D eus 18.43. lsComentário aos Salmos 8.8. 26A doutrina cristã 1 .3 6 ,41a. ^A doutrina cristã 1 .3 7 ,41b.
92
[P A R T E 2 ]
A DOUTRINA DA R EV ELAÇ ÃO DE DEUS
............................................................................................................................................................................................................ *
Vários outros cristãos antigos compartilhavam a mesma opinião. Para eles, a Escritura significava a voz de Deus, e assim, não poderia conter erros, seja sobre questões de fé ou de qualquer outro assunto.28 Uma das formas de a igreja dessa época enfrentar a heresia dos gnósticos é ilustrada pelo exemplo de Ireneu. Ele recorreu ao Antigo e ao Novo Testamento, afirmando contato direto com as fontes apostólicas, contra as reivindicações gnósticas quanto à autoridade de suas próprias tradições secretas e esotéricas. Após afirmar que os gnósticos ensinavam uma teoria “que nem os profetas pregaram, nem o Senhor ensinou, nem os apóstolos transmitiram”, pela qual gabavamse de “ter conhecimentos melhores e mais abundantes do que os outros”, disse também que eles acrescentavam “às suas palavras outras dignas de fé, como as do Senhor ou os oráculos dos profetas ou as palavras dos apóstolos”, para que as suas fantasias não se apresentassem sem fundamento. Eles descuidavam da ordem e do texto das Escrituras, distorcendo todo o ensinamento apostólico a respeito do Senhor Jesus. Ireneu mencionou a famosa analogia do mosaico de um rei que é transformado num mosaico de raposa, na qual era simplesmente dito que aquela era a autêntica imagem do rei feita por um hábil artista. Ele afirmou que os gnósticos faziam o mesmo, costurando “fábulas de velhinhas e tomando daqui e dali palavras, sentenças e parábolas, procuram adaptar as palavras de Deus às suas fábulas”. Mas, nas palavras de Ireneu, quem possui a indefectível Regra da verdade [ou regra de fé] aprendida no batismo, reconhecerá os nomes, as expressões, as parábolas que são das Escrituras, mas não a teoria blasfema deles. Reconhecerá as pedras do mosaico, mas na figura da raposa não verá a imagem do rei. Recolocando cada uma das palavras no seu lugar, ajustadas ao corpo da verdade, desvendará e mostrará a inconsistência das suas fantasias.29 Ireneu tinha consciência da futilidade de argumentar com os hereges com base somente nas Escrituras, cujo significado podiam torcer — como freqüentemente torciam. Então, ele apelou à regra de fé que tinha sido preservada intacta na igreja, desde os dias dos apóstolos. Como vimos no capítulo 2, não se tratava de subordinar as Escrituras à tradição, mas de oferecer uma declaração de fé resumida a respeito da qual não poderia haver debate algum. Essa tradição era firmada no próprio Cristo, como revelado nas Escrituras, que era a fonte derradeira da doutrina cristã, por meio de quem o Pai fora revelado. No entanto, ele confiara essa revelação aos apóstolos, e era apenas por intermédio deles que esse conhecimento podia ser obtido: Não foi, portanto, por ninguém mais que tivemos conhecimento da economia da nossa salvação, mas somente por aqueles pelos quais nos chegou o Evangelho, que eles primeiro pregaram e, depois, pela vontade de Deus, transmitiram nas Escrituras, para que fosse para nós fundamento e coluna da nossa fé.30 Essa tradição (ou regra da verdade) era encontrada no que os apóstolos haviam confiado oralmente à igreja, onde ela vinha sendo transmitida de geração a geração. Ao contrário da suposta tradição secreta dos gnósticos, esse testemunho era totalmente público e aberto. A tradição, conquanto fosse algo distinto da Escritura, era, por outro lado, um simples resumo
28Para um estudo histórico sobre o conceito de inerrância, cf. John Gerstner, “A doutrina da igreja sobre a inspiração bíblica”. In: James Montgomery Boice (ed.), O alicerce da autoridade bíblica, p. 25-68 e John Woodbridge, B iblical authority, a critique of the Rogers/McKim proposal, p. 31-46. 29Adversus Haereses 1.8,1; 9,4. }0Adversus Haereses 1.1,1.
A PALAVRA DE DEUS
93
da mensagem nela contida. Esse sumário, flexível no enunciado, mas fixo no conteúdo, estabelecia o verdadeiro sentido da mensagem apostólica, sem ambigüidade alguma. Essa tradição era preservada, em conformidade com a revelação original, pela sucessão ininterrupta dos bispos nas grandes igrejas, remontando diretamente aos apóstolos. Em resposta à pergunta se Ireneu teria subordinado as Escrituras à tradição, J. N. D. Kelly escreveu: Uma análise cuidadosa de seu Adversus Haereses revela que, conquanto o apelo gnóstico à sua suposta tradição secreta tenham-no levado a enfatizar a superioridade da tradição pública da igreja, sua verdadeira defesa da ortodoxia baseava-se nas Escrituras. Aliás, em sua maneira de ver, a própria tradição era confirmada pelas Escrituras. (...) O âmago do ensino de Ireneu era, na verdade, que as Escrituras e a tradição não-escrita da igreja são idênticas em conteúdo, sendo ambas veículos da revelação. Se a tradição, conforme transmitida no ‘cânon’, é um guia mais fidedigno, não é porque ela abranja verdades diferentes daquelas reveladas nas Escrituras, mas porque o verdadeiro sentido da mensagem apostólica está ali exposto sem ambigüidade nenhuma.31 Em síntese, o que os apóstolos inicialmente proclamavam, mediante a palavra falada, mais tarde foi depositado em documentos escritos. O Novo Testamento, então, era a formulação escrita da tradição apostólica. Os livros eram recebidos não apenas pelo costume da igreja, mas por sua apostolicidade — por terem sido escritos pelos apóstolos ou pelos auxiliares destes. A própria tradição era, então, confirmada pelas Escrituras, que eram o “fundamento e coluna da nossa fé”.32 O principal problema enfrentado pela igreja nos primeiros séculos da era cristã foi a questão do cânon.33 Eles não receberam dos apóstolos uma lista de livros inspirados. O reconhecimento dos livros do Novo Testamento foi um processo lento e gradual. A idéia de que o gnosticismo, o marcionismo34 e o montanismo obrigaram a igreja a fixar o cânon do Novo Testamento é errônea. Concordamos com F. F. Bruce, que afirma que não foi a igreja quem definiu o cânon, mas sim a própria inspiração dos livros que garantiu sua inclusão nele. Uma coisa precisa ser afirmada com toda ênfase: os livros do Novo Testamento não se fizeram possuídos de autoridade para a Igreja pelo fato de virem a ser formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja os incluiu no Cânon porque já os havia por divinamente inspirados, reconhecendo-lhes o valor inato e a autoridade apostólica, direta ou indireta.35
31J.N.D. Kelly, Doutrinas centrais da f é cristã, p. 28. 32Adversus Haereses III. Intr.,1; 1,1. Cf. Livro IV.26,5; 32,1; Livro V.20, 2 e J.N.D. Kelly, op.cit., p. 26-28. Para um estudo detalhado sobre a regra de fé de Ireneu, cf. J.N.D. Kelly, Early christian creeds, p. 76-82. As confissões de fé de Ireneu estão espalhadas por suas duas obras, com um claro padrão trinitário: Epidexis 3; 6; 7; 100. Livro 1V .337; 1.10,1; 111.1,2; 111.4,2; 111.16,6. 33Merril C. Tenney, O Novo Testamento; sua origem e análise, p. 427: “A palavra ‘cânon’ deriva do grego Kanõn [xavuSv], que significa ‘cana’, portanto uma vara ou barra, que, por serem utilizadas em medições, passaram a significar metaforicamente um padrão. Em gramática, significava uma regra; em cronologia, uma tabela de datas; e em literatura uma lista de obras que podiam ser corretamente atribuídas a determinado autor”. 34Merril C. Tenney, op.cit., p. 436: “A organização arbitrária de um cânon por Marcion mostrou: Io-q u e os livros que aceitou deviam ser considerados como indisputavelmente autênticos; e 2o - que aqueles que rejeitara eram aceitos como canônicos pelos cristãos em geral.” 35F. F. Bruce, Merece confiança o Novo Testamento?, p. 36.
94
[ PA R TE 2 ]
A DOUTRINA DA REVELAÇÃO DE DEUS
O testemunho dos pais da igreja mostra que os livros do Antigo e do Novo Testamento eram reconhecidos como Escritura pela maior parte da igreja, desde os dias dos apóstolos. Pedro afirmou que as cartas de Paulo eram Escritura (2Pe 3.15-16). Paulo também afirmou que o Evangelho de Lucas era Escritura (lTm 5.17). Policarpo, Clemente e Justino de Roma, no século seguinte, aceitavam os livros do Antigo e do Novo Testamento como Escritura. A igreja antig a recon hece o N o v o T e s ta m e n to 3 (todas as datas são aproxim adas) 200 d.C.
100 d.C. Diferentes partes do Novo Testamento foram escritas até esse tempo, mas não foram coletadas e definidas como “Escrituras”. Antigos escritores cristãos (Policarpo e Inácio, por exemplo) citaram os Evangelhos e as Epístolas de Paulo, além de outros escritos cristãos e fontes orais. As Epístolas de Paulo foram coletadas até o fim do primeiro século. Mateus, Marcos e Lucas foram reunidos perto de 150 d.C.
250 d.C.
300 d.C.
Novo Testamento usado na Igreja de Roma (o “ Cânon Muratoriano” ):
Novo Testamento usado por Orígenes:
Novo Testamento usado por Eusébio:
Quatro evangelhos Atos Epístolas de Paulo: Romanos 1 e 2Coríntios Gálatas Elésios Filipenses Colossenses 1 e 2Tessalonicenses 1 e 2Timóteo Tito Filemon
Quatro evangelhos Atos Epístolas de Paulo: Romanos 1 e 2Coríntios Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 e 2Tessalonicenses 1 e 2Timóteo Tito Filemon
Quatro evangelhos Atos Epístolas de Paulo: Romanos 1 e 2Coríntios Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 e 2Tessalonicenses 1 e 2Timóteo Tito Filemon
1Pedro Uoão
1Pedro Uoão
Apocalipse de João
Apocalipse de João (autoria em dúvida)
Disputados: Hebreus Tiago
Disputados, mas bem conhecidos: Tiago 2Pedro 2 e 3João Judas
Para uso reservado, não no culto público: O Pastor de Hermas
Novo Testamento reconhecido no Ocidente pelo Concílio de Cartago:
Tiago 1 e 2João Judas Apocalipse de João Apocalipse de Pedro Sabedoria de Salomão
400 d.C.
2 e 3João Judas O Pastor de Hermas Epístola de Bamabé Didaquê Evangelho aos Hebreus
Excluídos: O Pastor de Hermas Epístola de Barnabé Evangelho aos Hebreus Apocalipse de Pedro Atos de Pedro Didaquê
3