Thor Heyerdahl Expedição Da Kon-tiki (Pdf) (Rev)

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ÍNDICE I - Uma teoria 7 II - Nasce uma expedição 23 III - Para a América do Sul 53 IV - Através do Pacífico (I) 95 V - A meio do caminho 131 VI - Através do Pacífico (II) 175 VII - Para as ilhas dos mares do Sul 231 VIII - Entre polinésios 273

7 CAPÍTULO I -- Uma Teoria

Retrospecto - O velho de Fatuhiva - Vento e corrente - A procura de Tiki - Quem povoou a Polinésia? - O enigma dos mares do Sul - Teorias e jactos - A lenda de Kon-Tiki e da raça branca - Chega a guerra.

Não é impossível que, alguma vez, o leitor se encontrasse numa situação estranha. Ter-se-á metido nela, pouco a pouco, e da maneira mais natural, mas justamente quando se acha a meio caminho, admirase de repente e pergunta a si próprio corno foi que tudo aquilo se deu. Se, por exemplo, o leitor empreende uma viagem marítima numa jangada de madeira com um papagaio e cinco companheiros, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, acordará uma manhã em pleno mar, talvez um pouco mais descansado que de costume, e começará a pensar no caso. Numa manhã assim, sentei-me e pus-me a escrever num diário de bordo, humedecido pelo orvalho nocturno: «17 de Maio. Dia da Independência da Noruega. Mar grado. Vento de feição. Hoje sou eu o cozinheiro. Achei na coberta sete peixes voadores, uma lula no 8 telhado da cabina, e na improvisada cama de Torstein um peixe desconhecido...» Larguei o lápis, e o mesmo pensamento se me insinuou sorrateiramente no espírito: estranho 17 de Maio este! Realmente, estou a viver uma vida bem extravagante. Como foi que tudo isto principiou? Se me virava para a esquerda, rasgava-se-me à vista o vasto mar azul de ondas marulhosas, rolando ali pertinho na eterna perseguição de um horizonte inatingível. Se me voltava para a direita, via o interior de uma cabina de escassa claridade, na qual um homem barbado estava deitado de costas lendo Goethe, com os polegares dos pés descalços caprichosamente introduzidos nas ripas que formavam o teto baixo, de bambu, da desengonçada cabinazinha que nos servia de abrigo.

Bengt, disse, empurrando para o lado o papagaio verde que queria empoleirar-se no diário de bordo. Você é capaz de me dizer como foi que viemos parar aqui? Goethe desapareceu sob a barba ruiva. - A mim é que você pergunta? A ideia foi sua e parece-me grandiosa. Os polegares deslocaram-se para três ripas adiante e Bengt continuou a ler Goethe. Fora da cabina outros três homens trabalhavam no convés de bambu, sob um sol abrasador. Seminus, trigueiros, barbados, com riscas de sal pelas costas abaixo, a sua aparência era de quem nunca tivesse feito outra coisa senão atravessar o Pacífico em jangadas de madeira, rumo ao Oeste. Erik entrou pela abertura, rastejando, com o seu sextante e um maço de papéis. - Noventa e oito graus e quarenta e seis minutos 9 Oeste por oito graus e dois minutos Sul. Andámos bem ontem, rapazes! Pegou no meu lápis e traçou um minúsculo círculo num mapa pendurado na parede de bambu; esse minúsculo círculo vinha juntar-se a uma série de outros dezanove que descreviam uma curva, partindo do porto de Callao, na costa do Peru. Herman, Knut e Torstein, ansiosos, também se introduziram, rastejando, na cabina, para ver o novo circulozinho que nos punha a umas boas quarenta milhas marítimas mais perto das ilhas dos mares do Sul do que o último círculo da série. - Estão a ver, meninos? disse Herman com orgulho: isto significa que nos encontramos a 850 milhas marítimas da costa do Peru. - E que temos ainda 3.500 até alcançarmos as ilhas mais próximas, acrescentou Knut, cautelosamente. - E para falar com inteira exactidão, disse Tornstein, estamos a 4.877 metros acima do fundo do mar e a algumas toesas abaixo da lua. De modo que agora sabíamos exactamente onde estávamos, e eu podia prosseguir na minha especulação acerca do motivo de tudo aquilo. Para o papagaio a coisa era indiferente; o que ele queria era arrastar com o bico o diário de bordo. E o mar continuava tão vasto como antes, inalterável na sua cor azul escura, tendo como limite longínquo a fímbria do céu. Tudo começara talvez no inverno anterior, na secretaria de um museu nova-iorquino. Ou dez anos antes numa ilhota do arquipélago das

Marquesas, no meio do Pacífico, Talvez desembarcássemos agora na mesma ilha, a não ser que o vento Nordeste nos mandasse mais para o Sul, na direcção de Taiti e do grupo de Tuamotu. Eu podia ver em espírito, claramente, a pequena ilha, com 10 as suas denteadas montanhas de um vermelho ferrugento, a mata verde que se estendia por suas encostas abaixo em direcção ao mar, e as esguias palmeiras que pareciam sentinelas agitando; as palmas ao longo da praia. O nome da ilha era Fatuhiva, e não havia terra firme entre ela e nós no ponto onde navegávamos, e todavia achava-se distante milhares de milhas marítimas. Via o apertado vale de Ouia no sítio onde se abria rumo ao mar, e recordava-me muito bem de como nos sentávamos ali, na erma praia, e frequentemente, à noite, ficávamos a contemplar aquele mesmo mar interminável. Estava eu então na minha lua de mel e não, como agora, no meio de piratas barbados. Andávamos a coleccionar todas as espécies de seres vivos, imagens e outras relíquias de uma cultura morta. Lembro-me, em especial, de certa noite. O mundo civilizado parecia tão incompreensivelmente remoto e irreal. Tínhamos vivido na ilha um ano, e éramos os únicos brancos que ali existiam; havíamos espontaneamente abandonado as boas coisas da civilização e também as suas calamidades. Morávamos numa choupana que construíramos sobre estacas, debaixo das palmeiras e perto da praia, e comíamos aquilo que os bosques tropicais e o Oceano Pacífico tinham para nos oferecer. Em tão árdua e prática escola, adquiríramos experiência de muitos dos curiosos problemas do Pacífico. Creio que, tanto no corpo como no espírito, muitas vezes havíamos seguido as pegadas dos homens primitivos que tinham aportado àquelas ilhas, vindos de uma região desconhecida, e cuja posteridade polinésia governou soberanamente a ilha, até que chegaram homens da nossa raça com a Bíblia em uma das mãos e pólvora e aguardente na outra. 11 Naquela noite, então, estávamos sentados, como tantas vezes fazíamos, na praia enluarada, tendo à nossa frente o oceano. Bem

despertos e impregnados do ambiente que nos rodeava, não houve impressão que nos escapasse. Respirávamos, a plenos pulmões, o aroma de mata luxuriante e de água salobra e ouvíamos o vento fustigando a folhagem e o topo dos coqueiros. Em intervalos regulares, todos os outros ruídos eram superados pelos vagalhões que vinham rolando do mar e se arremessavam na direcção da terra até rebentarem nos pedregulhos da praia, formando círculos de branca espuma. Ouviase um rugido, um sussurro, um ribombo, no meio de milhares de pedras rutilantes, até que tudo outra vez se aquietava quando a água do mar se retirava em busca de novas forças com que repetir a investida contra a costa invencível. - Coisa curiosa, comentou Liv, não há vagalhões como este no outro lado da ilha. - É que, expliquei, este é o lado do vento, e as correntes marítimas dirigem-se para esta banda. "Continuávamos sentados a admirar o mar que não desistia de demonstrar que havia de vir até ali, encapelando-se sempre de Leste. Era o eterno vento Leste, o vento alísio, que havia encrespado a superfície do mar, subvertendo-o e arrojando-o para a frente, investindo para o horizonte, a Leste, e daí até às ilhas. Aqui o incoercível avanço do oceano vinha afinal quebrar-se de encontro às fragas e recifes, enquanto o vento Leste se erguia altaneiro por sobre matas, costas e montanhas e prosseguia, indómito, para Oeste, de ilha cm ilha, rumo ao Ocidente. Assim as ilhas e as ligeiras formações de nuvens tinham flutuado sobre o mesmo horizonte oriental desde a antemanhã dos tempos. Os primeiros homens que 12 haviam abordado a estas ilhas sabiam muito bem que era assim. Sabiam disso aves e insectos, e à vegetação das ilhas não escapava, de nenhum modo, esta circunstância. E nós também sabíamos que longe, lá abaixo do horizonte, na direcção de Leste, de onde as nuvens emergiam, estava localizado o litoral sul-americano. Separavam-nos dele 4.300 milhas marítimas, não havendo de permeio mais que céu e água.

Olhávamos para as nuvens em movimento e para a agitação do mar que a lua prateava, e escutávamos as palavras de um velho, seminu, acocorado diante de nós, enquanto a nossa vista se fixava no brilho mortiço de uma fogueira que se extinguia. - Tiki, disse tranquilamente o velho, era ao mesmo tempo deus e chefe. Foi Tiki quem trouxe os meus antepassados para estas ilhas onde agora vivemos. Antes, habitávamos uma grande região para lá do mar. Com um graveto mexeu nos tições para que se não apagassem. O ancião sentou-se e começou a cismar. Vivia os tempos passados aos quais se achava firmemente ligado. Tinha o culto de seus avós e das proezas destes, remontando até a época dos deuses. O seu maior desejo era reunir-se-lhes de novo. O velho Tei Tetua era o único sobrevivente de todas as extintas tribos da costa oriental de Fatuhiva. Ignorava a idade que tinha, mas a pele encarquilhada, coriácea, escura como a casca das árvores, dava-lhe a aparência de ter sido curtida, ao sol e ao vento, durante um século. Era certamente um dos poucos, naquelas ilhas, que ainda se lembravam das histórias lendárias do grande deus-chefe polinésico Tiki, filho do Sol, e que nelas acreditou. Quando, naquela noite, nos metemos na cama, na choupana apoiada sobre estacas, as histórias que o velho 13 Tei Tua nos contara, a respeito de Tiki e da antiga pátria dos ilhéus, além mar, ainda me povoavam o espírito, acompanhadas pelo soturno bramido da ressaca distante. Tudo aquilo soava como uma voz de tempos remotos e parecia ter qualquer coisa que dizer no silêncio da noite. Eu não conseguia conciliar o sono. Era como se o tempo não mais existisse e Tiki e seus marujos estivessem a fazer o seu primeiro desembarque lá em baixo, na praia, onde as ondas vinham quebrar-se. De repente, assaltou-me uma ideia. - Liv, disse, reparaste que as colossais representações de Tiki, em pedra, lá na selva, se parecem notavelmente com os gigantescos monólitos, relíquias de civilizações extintas da América do Sul? Liv não respondeu mas os vagalhões, bravios, rugiram • em sinal de aprovação. E, em seguida, acalmaram-se, enquanto eu pegava no sono.

Foi, talvez, assim que a coisa começou. Ou melhor uma série de factos que tiveram como resultado dar com seis de nós e um papagaio verde numa jangada por alturas da costa sul-americana. Recordo-me como espantei meu pai e assombrei minha mãe e os meus amigos quando, de regresso à Noruega, entreguei ao Museu Zoológico da Universidade os meus frascos de vidro com escaravelhos e peixes de Fatuhiva. Eu queria dizer adeus aos estudos de Zoologia e dedicarme aos povos primitivos. Haviam-me fascinado os mistérios ainda não decifrados dos mares do Sul. Devia haver uma solução racional para eles, e o meu objectivo precípuo era identificar o lendário herói Tiki. Nos anos que se seguiram, as vagas do mar e as ruínas da selva foram uma espécie de sonho remoto e irreal a 14 formar o fundo e o acompanhamento dos meus estudos acerca dos povos do Pacífico. Se é inútil procurar interpretar os pensamentos e as acções de um povo primitivo lendo livros e visitando museus, é igualmente inútil a um explorador do nosso tempo tentar atingir os horizontes que uma única estante de livros pode abranger. Obras científicas, diários da época das mais antigas explorações e intermináveis colecções existentes em museus da Europa e da América, ofereciam-me opulento material a utilizar na solução do enigma. Desde que a nossa raça alcançou as ilhas do Pacífico, depois do descobrimento da América, investigadores de todas as províncias do saber têm coligido um repositório quase inesgotável de informações a respeito dos habitantes dos mares do Sul e de todos os povos que vivem nas suas cercanias. Mas nunca existiu acordo quanto à origem desse isolado povo de ilhéus, ou quanto à razão pela qual esse tipo só é encontrado disperso por todas as ilhas solitárias da parte oriental do Pacífico. Quando os primeiros europeus se aventuraram afinal a atravessar o maior dos oceanos, descobriram com espanto que, exactamente no meio dele, existia uma porção de ilhotas montanhosas e de recifes de coral lisos, em geral segregadas uma das outras e do mundo por vastas áreas de mar. E cada uma destas ilhas já era habitada por povos que aí haviam aportado antes dos europeus. Era gente alta e esbelta que veio ao encontro deles, na praia, trazendo cães, porcos e aves domésticas.

De onde teriam vindo? Falavam uma língua que nenhum outro povo compreendia E os homens da nossa raça que, orgulhosamente, se intitulavam descobridores das ilhas, encontraram campos cultivados e aldeias com templos e choupanas em cada ilha habitada. Em algumas acharam até 15 velhas pirâmides, ruas calçadas e estátuas de pedra esculpidas da altura de uma casa europeia de quatro andares. Não havia maneira de atinar com o mistério. Que povo era aquele e de onde tinha vindo? Pode-se dizer, com segurança, que as respostas dadas a esses enigmas quase têm igualado, em número, as obras que deles trataram. Especialistas em diferentes ramos da Ciência apresentaram soluções diversas, as quais posteriormente foram postas de lado, perante argumentos lógicos oferecidos por sábios que encaram a questão por facetas diferentes. Houve quem, com vigor, reivindicasse para a Malaia, para a índia, para a China, para o Japão, para a Arábia, para o Egipto, para o Cáucaso, para a Atlântida, e até para a Alemanha e para a Noruega a glória de ter sido a pátria dos polinésios. Mas eis que surgia, de repente, uma dificuldade de carácter decisivo, que deitava abaixo todos os argumentos apresentados. E onde parou a Ciência principiou a imaginação. Os misteriosos monólitos da ilha de Páscoa e todas as outras relíquias de origem desconhecida existentes nessa ilha pouco visitada, que fica em completa solidão a meio caminho entre as ilhas mais próximas e a costa sul-americana, deu ensejo a todo o género de especulações. Muitos repararam que os achados da ilha de Páscoa faziam lembrar, de muitas maneiras, as relíquias das civilizações pré-históricas da América do Sul. Teria existido outrora uma língua de terra sobre o mar, posteriormente submergido? Não seria a ilha de Páscoa, e todas as demais ilhas do Mar do Sul que tinham monumentos da mesma espécie, restos que um continente submerso deixara em relevo na superfície do oceano? Tem sido esta, entre leigos, uma teoria popular e uma explicação plausível, mas os geólogos e outros investigadores 16

não lhe dão importância. Além de que os zoólogos provam facilmente, pelo estudo de insectos e caracóis das ilhas dos mares do Sul, que, durante toda a História da Humanidade, essas ilhas estiveram tão completamente isoladas umas das outras e dos continentes que as rodeiam como o estão hoje. Sabemos, portanto, com absoluta certeza, que a primitiva raça polinésica deve ter vindo em alguma época, espontaneamente ou não, ao sabor das águas ou com a força das velas de uma embarcação qualquer, até essas ilhas longínquas. E uma observação mais atenta dos habitantes dos mares do Sul revela que a vinda deles não pode datar de muitos e muitos séculos. Pois, se bem que os polinésios vivam dispersos sobre uma área de mar que tem quatro vezes o tamanho de toda a Europa, não lograram contudo produzir línguas diferentes nas diferentes ilhas. Há milhares de milhas marítimas de Havai, no Norte, à Nova Zelândia no Sul, de Samoa no Oeste à ilha de Páscoa no Leste, e no entanto todas estas tribos isoladas falam dialectos de uma língua comum a que demos o nome de polinésio. A escrita era desconhecida em todas as ilhas, existindo todavia algumas tabuinhas de madeira nas quais se viam hieróglifos incompreensíveis que os naturais conservaram na ilha de Páscoa, embora nem eles nem ninguém pudesse decifrá-los. Tinham, porém, escolas, e a sua disciplina mais importante era o estudo poético da História, pois História, na Polinésia, era o mesmo que Religião. Tinham o culto dos antepassados; veneravam os seus chefes mortos a partir da época de Tiki, sendo este tido como filho do Sol. Os homens instruídos eram capazes de citar de cor, a qualquer momento, os nomes de todos os chefes da ilha que habitavam, até o tempo em que começara a ser 17 povoada. E para auxiliar a memória usavam muitas vezes um complicado sistema de nós em cordéis retorcidos, como faziam os incas no Peru. Investigadores modernos recolheram todas estas genealogias locais nas diversas ilhas, e verificaram que concordam umas com outras, com espantosa justeza, tanto nos nomes como no número de gerações. Deste modo, atribuindo-se a uma geração polinésica uma média de vinte e cinco anos, descobriu-se que as ilhas dos mares do Sul não foram habitadas antes do ano 500 da era cristã, aproximadamente. Nova onda cultural com uma nova série de chefes

mostra que, bem mais tarde, outra leva de emigrantes chegou às mesmas ilhas mais ou menos em 1100. De onde podiam ter vindo essas levas tardias de emigrantes? Poucos investigadores parecem ter levado em conta o factor decisivo de que o povo que desembarcou nas ilhas em data tão tardia se achava na Idade da Pedra. Apesar da sua inteligência e da sua, a outros respeitos, assombrosa cultura, estes navegantes trouxeram consigo um certo tipo de machado de pedra e uma porção de outros instrumentos característicos da Idade da Pedra, e espalharam-nos por todas as ilhas em que se estabeleceram. Cumpre não esquecer que, a não ser um ou outro povo isolado e selvícola e certas raças atrasadas, não havia nenhuma civilização do mundo, com capacidade reprodutora, que ainda estivesse no nível da Idade da Pedra nos anos 500 ou 1100 da nossa era, excepto no Novo Mundo. Ali, até mesmo as mais elevadas civilizações indígenas desconheciam completamente o uso do ferro e empregavam machados e instrumentos de pecha do mesmo tipo dos que eram usados nas ilhas dos mares do Sul até a época das explorações. Estas numerosas civilizações indígenas eram, para as 18 bandas de Leste, as de parentesco mais chegado aos polinésios. Para o Oeste viviam apenas os povos primitivos, de tez preta, da Austrália e Melanésia, parentes afastados dos negros, e para além deles estava a Indonésia e a costa da Ásia, onde a Idade da Pedra pertencia a um passado mais remoto ainda talvez, do que em qualquer outro ponto do globo. Assim, não somente as minhas suspeitas mas também a minha atenção se afastaram cada vez mais do Velho Mundo, onde tantos haviam procurado e nenhum havia encontrado nada, como se voltaram para as civilizações indígenas da América, tanto as conhecidas como as desconhecidas, as quais ninguém até então tinha considerado E na costa Leste mais próxima, onde hoje a República sul-americana do Peru se estende do Pacífico até às montanhas, não havia falta de vestígios, uma vez que alguém os procurasse. Ali vivera outrora um povo desconhecido que fundara uma das mais estranhas civilizações do mundo, até que subitamente, há muito, esse povo desaparecera, como

que varrido da face da terra. Deixou após si enormes estátuas de pedra semelhantes a seres humanos, que faziam lembrar as de Pitcairn, as das ilhas Marquesas e da Páscoa, e imensas pirâmides construídas em degraus como as de Taiti e de Samoa. Extraiam das montanhas, com machados de pedra, blocos de pedra de tamanho descomunal e transportavam-nos pelo campo, quilo metros a fio. Depois punham-nos em pé ou colocavam uns em cima de outros para formar portões, paredões e terra plenos, exactamente como os vamos encontrar em algumas das ilhas do Pacífico. Os incas possuíam o seu grande império nessa região montanhosa quando os primeiros espanhóis chegaram ao Peru. Disseram aos recém-chegados que os colossais monumentos 19 abandonados lá no meio da paisagem tinham sido erigidos por uma raça de deuses brancos que ali haviam vivido antes deles. Esses arquitectos desaparecidos eram, segundo a descrição que deles faziam, mestres sábios, pacatos, oriundos do Norte, de onde tinham vindo ainda na aurora dos tempos e que ensinaram aos antepassados dos incas a arquitectura e a agricultura e também os bons costumes e as boas maneiras. Eram diferentes dos indígenas, tendo a pele branca e usando longas barbas; eram também mais altos que os incas. Afinal saíram do Peru tão subitamente como haviam chegado; os incas, por seu turno, assenhorearam-se do país, e os mestres brancos desapareceram para sempre da costa sul-americana e fugiram para Oeste, atravessando o Pacífico. Ora, aconteceu que, quando os europeus chegaram às ilhas do Pacífico, espantaram-se por ver que muitos dos nativos tinham a pele quase branca e eram barbados. Em muitas ilhas havia famílias inteiras notadas pela palidez da pele, com o cabelo variando entre o avermelhado e. o louro, olhos azul-cinzentos e rostos quase semíticos, de nariz aquilino. Por seu turno, os polinésios tinham pele bronzeada, cabelo muito preto e nariz chato e carnudo. Os de cabelo vermelho denominavam-se urukehu e diziam-se descendentes directos dos primeiros chefes das ilhas que eram deuses brancos, tais como Tangaroa, Kane e Tiki. Lendas em torno de brancos misteriosos, de que os ilhéus descendiam, eram correntes em toda a Polinésia. Quando

Roggeween descobriu a ilha de Páscoa, em 1772, notou com surpresa «homens brancos» entre os que se achavam na praia. E a gente da ilha de Páscoa podia enumerar, com exactidão, os seus antepassados de tez branca até o tempo de Tiki e do Hotu Matua, 20 quando singraram através do oceano, «vindos de uma terra montanhosa a Leste, requeimada pelo sol». Prosseguindo nas minhas pesquisas, encontrei surpreendentes vestígios na cultura, na mitologia e na língua do Peru, que me incitaram a aprofundar ainda mais, até identificar o lugar e a origem do deus tribal polinésio Tiki. E encontrei o que esperava. Lia eu as lendas incas do rei-sol Virakocha, que foi o chefe supremo do desaparecido povo branco do Peru, e eis que encontro o seguinte: «Virakocha é um nome inca (Ketchua) e por conseguinte de data bastante recente. O nome original de deus-sol Virakocha, que parece ter sido mais usado no Peru em tempos idos, era Kon-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki. Kon-Tiki era sumo sacerdote e rei--sol dos lendários «homens brancos», dos incas, que tinham deixado as enormes ruínas nas margens do lago Titicaca. Reza a lenda que KonTiki foi atacado por um chefe chamado Cari que veio ao vale Coquimbo. Numa batalha travada numa ilha do lago Titicaca, os misteriosos brancos barbados foram trucidados, mas Kon-Tiki e seus companheiros mais chegados escaparam e, mais tarde, aportaram à costa do Pacífico, de onde finalmente desapareceram sobre o mar para as bandas do ocidente.» Já eu não tinha dúvida de que o branco deus-chefe Sol-Tiki que, segundo os incas, havia sido pelos pais destes, expulso do Peru para o Pacífico, era idêntico ao branco deus-chefe Tiki, filho do Sol, a quem os habitantes de todas as ilhas orientais do Pacífico reconheciam como o primitivo fundador da sua raça. E os pormenores da vida de Sol-Tiki no Peru, com os antigos nomes de 21 lugares em redor do lago Titicaca, pululavam em lendas históricas entre os naturais das ilhas do Pacífico. Mas, por toda a Polinésia, encontrei indicações de que a pacífica raça de Kon-Tiki não logrou conservar as

ilhas só para si por muito tempo. Consoante essas indicações, barcaças guerreiras do tamanho dos navios dos vikings, e amarradas duas a duas, haviam transportado por mar indígenas do nordeste a Havai e, mais para o Sul, a todas as demais ilhas. Estes misturaram o seu sangue com o da raça de Kon-Tiki, trazendo nova civilização à ilha de regime monárquico. Foi este o segundo povo na Idade da Pedra que veio para a Polinésia, em 1100, ignorando a cerâmica, a existência dos metais, sem rodas nem tear nem qualquer cultivo de cereais. Sucedeu, pois, que eu estudava entalhaduras feitas na rocha, segundo o antigo estilo polinésico comum entre os indígenas do nordeste na Colúmbia Britânica, quando os alemães invadiram a Noruega. Direita, volver; esquerda, volver; meia volta, volver! Lavar escadas de quartel, engraxar botas, treino de rádio-transmissão, paraquedismo... e por fim um comboio de Murmansk a Finmark, onde o deus-guerra da técnica reinou, na ausência do deus-Sol, durante o escuro Inverno. Veio a Paz. E um dia a minha teoria ficou completa. Devia porém ir à América e pô-la à prova. 23 CAPÍTULO II -- Nasce uma Expedição Entre especialistas - O ponto decisivo - No «Lar do Marinheiro» - Último recurso - O Clube de Exploradores - A nova equipagem - Acho um companheiro - Um triunvirato - Um pintor e dois sabotadores - Para Washington - Conferência no Departamento da Guerra - Na intendência Geral com uma boa lista - Problemas monetários - Com diplomatas das Nações Unidas - Voamos para o Equador.

TAL fora o início da aventura, junto a uma fogueira numa ilha dos mares do Sul, onde um velho indígena, sentado no chão, nos narrou lendas e histórias da sua tribo. Anos mais tarde, achava-me, por minha vez, sentado em companhia de outro velho, então na escura Secretaria de um vasto museu de Nova-Iorque.

Ao nosso redor, em bem arrumados mostruários de vidro, viam-se fragmentos de objectos de cerâmica de um passado bem conhecido, vestígios que levavam às brumas da antiguidade. Nas paredes, estantes pejadas de livros. Alguns deles tinham sido escritos por um homem e Deus sabe se haviam sido lidos por dez! O velho, que lera todos aqueles livros e escrevera alguns deles, estava sentado à sua mesa de trabalho. Tinha cabelos brancos, e mostrava bom humor. Agora, porém, eu com certeza lhe pisara os 24 calos, pois, firmando-se, agitado, nos braços da cadeira, tinha o ar de quem se sentisse interrompido no melhor ponto de um jogo de paciência. - Não! exclamou. Nunca! O Pai Natal teria decerto o mesmo ar daquele velho, se alguém ousasse afirmar que, no ano seguinte, o Natal ia cair no dia de São João. - O senhor não tem razão. Está erradíssimo, repetiu, abanando a cabeça, indignado, como para afugentar dela uma ideia. - Mas o senhor ainda não leu os meus argumentos, insisti, fazendo com a cabeça um esperançoso movimento na direcção do manuscrito que estava em cima da mesa. - Argumentos! retorquiu. Não é possível tratar de problemas etnográficos como se fosse um romance policial! - Porque não? respondi. Baseei todas as minhas conclusões em observações próprias e em factos registados pela Ciência. - A tarefa da Ciência é a investigação pura e simples, disse, tranquilamente. Não é tentar provar isto ou aquilo. Cuidadosamente, afastou para um lado o manuscrito que não abrira, e inclinou-se sobre a mesa. - É bem verdade que a América do Sul foi a pátria de algumas das mais curiosas civilizações da antiguidade, e que não sabemos nem quem eram os seus representantes nem para onde foram quando os incas passaram a dominar ali. Uma coisa, porém, sabemos ao certo: é que nenhum povo da América do Sul se passou para as ilhas do Pacífico. Lançou-me um olhar inquiridor e continuou: - Sabe por quê? É simples. Porque não podiam chegar lá. Não dispunham de botes!

25 - Mas dispunham de jangadas, objectei, hesitante. Jangadas de madeira de balsa. O velho sorriu e insinuou sossegadamente: - Não me venha dizer que o senhor é capaz de tentar uma excursão, desde o Peru até as ilhas do Pacífico, numa jangada de madeira de balsa. Não pude responder a isto. Era já tarde. Ambos nos levantamos. Enquanto me acompanhava até à porta, o velho cientista bateu-me bondosamente no ombro e disse que se eu quisesse continuar aprofundar o caso, a única coisa que tinha a fazer era vir ter com ele. Mas no futuro devia especializar-me no estudo da Polinésia ou da América, e não misturar duas distintas áreas antropológicas. E voltou para a mesa de trabalho. - Esqueceu-se disto, disse, e devolveu-me o manuscrito. Olhei para o título: «Polinésia e América - Estudo de suas relações pré-históricas». Enfiei o manuscrito debaixo do braço e desci ruidosamente as escadas, confundindo-me logo com a multidão na rua. Naquela mesma noite, fui bater à porta de uma velha casa, num afastado recanto de Greenwich Village. Gostava de levar até ali os meus pequenos problemas quando sentia a vida um tanto enredada por causa deles. Um escanifrado homúnculo, de nariz comprido, abriu a porta uns milímetros, antes de escancará-la de par em par com um largo sorriso, e puxou-me para dentro. Levou-me direito a uma acanhada cozinha, onde me pôs a trabalhar carregando pratos e garfos, enquanto ele dobrava a dose da indefinível mas aromática mistura que estava a aquecer no fogareiro. - Fez bem em aparecer, disse. Que tal vai o projecto? - Mal, respondi. Ninguém quer ler o manuscrito. Encheu os pratos e pusemo-nos a comer. 26 - É isto, tornou ele; todas as pessoas que você procurou pensam que se trata de uma ideia passageira sua. Como sabe, aqui na América aparece gente com cada ideia extravagante!

- Mas não é só isso, volvi. - Sim, insistiu. Trata-se do seu modo de encarar o problema. É de especialistas toda aquela corja, e não acreditam num método de trabalho que se aprofunda em cada ramo especial, da botânica à arqueologia. Eles restringem o seu raio de acção a cavar fundo para obter mais amplos pormenores. A pesquisa moderna exige que cada especialidade científica fure o seu próprio buraco. Não é costume fazerse uma selecção daquilo que emerge das cavidades abertas e tentar pôr ordem no que se seleccionou. Ergueu-se e estendeu a mão para agarrar um ponderoso manuscrito. - Veja isto, disse. É o meu último trabalho sobre desenhos de pássaros em bordado rústico chinês. Gastei nisto sete anos, mas foi imediatamente aceite para publicação. O que hoje querem é obra especializada e em pormenor. Carl tinha razão. Resolver, porém, os problemas do Pacífico sem lançar luz sobre eles de todos os lados, parecia-me o mesmo que organizar um quebra-cabeças dando apenas uma parte dos dados. Levantámos a mesa, e eu ajudei-o a lavar e enxugar a louça. - E da Universidade de Chicago não veio nada de novo? - Não. - Mas que foi que disse hoje o seu velho amigo do museu? - Não mostrou interesse. Disse que uma vez que os 27 indígenas dispunham apenas de jangadas abertas, era descabido considerar a possibilidade de haverem sido eles os descobridores das ilhas do Pacífico. O homenzinho, de repente, pôs-se a enxugar com fúria o prato que tinha na mão. - Sim, adiantou, em boa verdade, a mim também me parece uma objecção de ordem prática à sua teoria. Olhei tristemente para o pequeno etnólogo que eu julgara ser um decidido aliado meu. - Mas não me vá compreender mal, apressou-se a acrescentar. Por um lado acho que você tem razão, mas por outro parece-me incompreensível. O meu trabalho sobre desenhos vem em apoio da sua teoria.

- Carl, volvi, estou tão certo que os indígenas cruzaram o Pacífico nas suas jangadas que ando com vontade de construir eu mesmo uma jangada como a deles e atravessar o mar para provar que isso é possível. - Você está louco! O meu amigo tomou aquilo como um gracejo e riu-se, não sem mostrar certo pavor diante de tal ideia. - Está louco! Uma jangada? O homem não sabia o que dizer e limitou-se a fitar-me com ar estranho, como se esperasse um sorriso para mostrar que eu estava gracejando. Não conseguiu o que esperava. Naquele momento, via eu que, na prática, ninguém aceitaria a minha teoria por causa da extensão de mar, aparentemente interminável, existente entre o Peru e a Polinésia, extensão essa que eu ia tentar vencer sem nenhum outro meio a não ser uma jangada pré-histórica. Carl continuou a olhar-me, incrédulo. - Vamos sair para beber um whisky, disse. Saímos e bebemos quatro. 28 A renda da minha casa vencia-se naquela semana. Ao mesmo tempo, uma carta do Banco da Noruega informava-me que já não poderia obter dólares. Haviam sido impostas restrições cambiais. Peguei na mala e tomei o metropolitano para Brooklyn. Aí, hospedei-me no Lar dos Marinheiros Noruegueses, onde a alimentação era boa e substanciosa e os preços condiziam com a minha bolsa. Arranjei um quarto pequeno no segundo ou terceiro andar, mas tomava as refeições juntamente com os marinheiros numa vasta sala de jantar situada no. andar térreo. Era um contínuo vaivém de marujos. Variavam no tipo, nas dimensões e na quantidade de doses que bebericavam, mas todos eles tinham uma coisa em comum: quando falavam acerca do mar, sabiam o que diziam. Fiquei conhecedor de que as ondas e o mar bravo não aumentavam com a profundidade do oceano ou com a distância da terra. Pelo contrário, as rajadas de vento eram muitas vezes mais traiçoeiras ao longo da costa do que no alto mar. E a água pouco profunda, o recuo das ondas, ou correntes oceânicas, encerradas em espaço estreito e muito próximo da terra eram capazes de provocar um mar mais picado do que costuma ser ao largo. Uma embarcação que se aguentava bem

perto do litoral podia aguentar-se igualmente bem longe da costa. Soube também, que, com mar grosso, os grandes navios estavam sujeitos a mergulhar na massa líquida de popa ou de proa, e toneladas de água podiam alagar a coberta da embarcação entortando tubos de aço como se fossem penas, ao passo que um pequeno bote no mesmo mar muitas vezes resistia galhardamente, porque podia achar espaço entre as linhas das ondas e bailar livremente sobre elas como uma gaivota. Houve homens que haviam 29 saído ilesos salvando-se em botes depois que as águas tinham feito soçobrar o navio que tripulavam. Mas de jangadas pouco entendiam. Jangada não era navio, não tinha quilha nem amurada. Era uma coisa a boiar cm que a gente, numa emergência, se salvava até que um barco qualquer, errante, nos apanhasse... Todavia, um deles mostrou grande respeito para com as jangadas no alto mar. Tinha flutuado numa à mercê das ondas e do vento, durante três semanas, quando um torpedo alemão pusera a pique o seu navio, em pleno Atlântico. - Entretanto, o senhor não pode governar uma jangada, acrescentou o meu informador. Ela joga para um lado e para o outro, para a frente e para trás, ao capricho do vento. Na biblioteca, fui desenterrar relatórios deixados pelos primeiros europeus que haviam atingido a costa do Pacífico, na América do Sul. Não faltavam esboços ou descrições das enormes jangadas de madeira de balsa dos indígenas. Tinham vela quadrada, quilha corrediça e um comprido remo de direcção à popa, podendo assim ser manobradas. Passei algumas semanas no Lar do Marinheiro. Não veio nenhuma resposta de Chicago ou de outras cidades às quais eu enviara cópias da minha teoria. Ninguém as tinha lido. Afinal, num sábado, tornei-me resoluto e encaminhei-me para o estabelecimento de um fornecedor de navios em Water Street. Ali fui cortesmente tratado de «capitão» ao adquirir um mapa de piloto do Pacífico. Com o mapa enrolado debaixo do braço, tomei o comboio para Ossining, onde nos fins de semana, costumava ser hóspede dum jovem casal norueguês que possuía uma aprazível vivenda no campo. O marido tinha sido comandante de

30 navio e, geria agora o escritório da Fred Olsen Line, em Nova Iorque. Após um. refrescante mergulho na piscina do casal, a vida de cidade ficou totalmente esquecida por alguns dias, e quando Ambjorg trouxe a bandeja com um «cocktail», sentamo-nos na relva ao sol quente. Não me pude conter mais, estendi o mapa no chão e perguntei a Wilhelm se achava que uma jangada podia levar vivos alguns homens do Peru às ilhas dos mares do Sul. Um tanto desconcertado, olhou para mim em vez de olhar para o mapa, mas no mesmo instante respondeu afirmativamente. O coração bateume com força, pois sabia que tudo quanto se referia a navegação era para Wilhelm não só coisa de ofício mas apaixonante. Inteirei-o, imediatamente, do que planeava. Com espanto meu, todavia, declarou simplesmente que aquilo era rematada loucura. - Mas não acaba você de dizer que acha possível, atalhei. - Não há dúvida, reconheceu. Mas as possibilidades de malogro são igualmente fortes. Você que nunca se viu em jangada, imagina-se de súbito a atravessar o Pacífico numa. A coisa talvez dê certo, talvez não. Os velhos indígenas do Peru possuíam a experiência de várias gerações. Pode ser que uma jangada tenha conseguido fazer a travessia dentre cada dez que foram para o fundo, ou - quem sabe? centenas e no decurso de séculos. Como você mesmo diz, os incas navegavam no mar alto com verdadeiras flotilhas das tais jangadas. Portanto, se acontecia alguma coisa, podiam ser recolhidos pela jangada que vinha atrás. Mas quem é que o vai recolher em pleno oceano? Ainda que leve consigo um aparelho de rádio para usá-lo num apuro, não cuide que vá ser fácil encontrar

31 uma jangadazinha entre as ondas a milhares de milhas da terra. Numa tempestade, pode ser cuspido da jangada e lançado ao fundo muito antes que consigam aproximar-se de você. É melhor esperar aqui até que alguém tenha tempo de ler o seu manuscrito. Insista com essa gente. - Não posso esperar mais; estou sem dinheiro.

- De qualquer maneira, como pretende organizar uma expedição, partindo da América do Sul, sem dinheiro? - É mais fácil despertar o interesse dos outros com uma expedição do que com um manuscrito que ninguém lê. - Mas que ganhará com isso? - Destruir um dos mais poderosos argumentos contra a teoria, sem falar na circunstância de que a Ciência irá prestar alguma atenção ao caso. - E se as coisas não derem certo? - Então não provarei nada. - E arruinará a sua teoria aos olhos de todos, não é verdade? - Pode ser, mas, apesar de tudo, conforme você mesmo disse, uma entre dez logrou êxito antes de nós. As crianças saíram para jogar croquet, e naquele dia não discutimos mais o assunto. No fim da semana seguinte, estava eu de volta a Ossining com o mapa debaixo do braço. E quando parti, havia uma comprida linha feita a lápis, desde a costa do Peru até as ilhas Tuamotu no Pacífico. O meu amigo comandante já havia perdido a esperança de me fazer desistir d ideia, e ficámos sentados horas a fio calculando a velocidade provável da jangada. - Noventa e sete dias. disse Wilhelm, mas lembre-se 32 que é apenas em condições teoricamente ideais, com bom vento em todo o percurso, e na hipótese de realmente portar-se a jangada como você supõe que se portará. Deve fatalmente reservar quatro meses para a viagem e ir aparelhado para muito mais. - Esplêndido! exclamei com optimismo. Vamos calcular um prazo folgado de quatro meses e fazê-la em noventa e sete dias. O meu tacanho aposento do Lar dos Marinheiros afigurou-se-me um salão confortável quando, de volta, à noite, me sentei na beira da cama com o mapa. Medi, a passadas, o aposento, no espaço existente entre a cama e a cómoda. Oh! a jangada seria bem mais espaçosa... Debrucei-me da janela para relancear os olhos pelo remoto céu estrelado da grande cidade, visível apenas numa nesga sobre a minha cabeça, imprensado como me achava entre paredes e muros. Se, a bordo da jangada, o espaço seria acanhado, em contrapartida haveria

suficiente amplitude para o firmamento cravejado de estrelas, por cima de nós. Próximo ao Central Park, está localizado um dos clubes mais selectos de Nova Iorque. Nele não existe mais do que uma placazinha de metal, impecavelmente brunida, cm que se lê «Clube de Exploradores», para dizer aos transeuntes que no interior daquela casa há qualquer coisa de menos banal. E, uma vez lá dentro, podia uma pessoa saltar de páraquedas num mundo estranho, a milhares de léguas das filas de automóveis de Nova Iorque, ladeados de arranha-céus. Quando a porta que dá para a grande cidade se fecha atrás de (piem penetrou naquele clube, envolve-o uma atmosfera de caçadas de leões, alpinismo e vida no Polo, tudo isto aliado à impressão de que nos achamos sentados no salão de confortável iate, 33 numa viagem em redor do Globo. Troféus relembrando caçadas de hipopótamos e de gamos, espingardas de caça grossa, colmilhos, tambores de guerra, lanças, tapetes da índia, ídolos, miniaturas de navios, bandeiras, fotografias e mapas rodeiam os membros do clube quando se reúnem para jantar ou para ouvir conferencistas que vêm de regiões distantes. Depois da minha viagem às ilhas Marquesas, fora eleito sócio efectivo do clube, e como sócio mais novo raramente perdia uma reunião se me encontrava na cidade. De modo que, quando, naquela ocasião, entrei no clube, numa noite chuvosa de Novembro, não fiquei pouco surpreendido ao encontrar o salão num estado que não era o habitual. Via-se, no centro, sobre o chão, uma jangada de borracha cheia de ar com rações e acessórios de um bote, enquanto que, mesas e paredes, estavam cobertas de pára-quedas, macacões de borracha, coletes salva-vidas e equipamento polar, juntamente com balões de água destilada e outros curiosos inventos. O coronel Haskin, recentemente eleito membro do clube, e que desempenhava funções no laboratório de equipamento do Comando de Material do Ar, ia fazer uma conferência e uma demonstração de alguns novos inventos militares que, no seu modo de ver, futuramente seriam de utilidade em expedições científicas, tanto no Norte como no Sul.

Finda a conferência, houve forte e alegre discussão. O conhecido explorador, dinamarquês, das regiões polares, Peter Freuchen, alto e corpulento, levantou-se com uma céptica sacudidela da enorme barba. Não tinha nenhuma fé naquelas invenções modernas. Contou que ele próprio, uma vez, numa de suas expedições à Groenlândia, usara um bote de borracha, e um saco-cama, em 34 vez de se utilizar de um kayak e de um iglu, o que quase lhe ia custando a vida. Primeiro estivera quase a morrer enregelado numa tempestade de neve, porque o fecho éclair do saco-cama gelara tanto que o explorador não podia introduzir-se nele. E depois, estando a pescar, o anzol espetou-se no bote que era de borracha cheio de ar, e perfurou-o, submergindo-se, debaixo dele, como se fosse um trapo. Freuchen e um seu amigo esquimó conseguiram chegar à praia, salvos, mas num kayak que os socorreu. Estava certo de que nenhum brilhante inventor moderno era capaz de, no silêncio do seu laboratório, cogitar qualquer coisa melhor do que aquilo que a experiência de milhares de anos tinha ensinado os esquimós a usar nas suas próprias regiões. A discussão terminou com um surpreendente oferecimento do coronel Haskin. Os sócios efectivos do clube podiam, nas suas próximas expedições, escolher à vontade qualquer dos novos inventos ali exibidos, com à condição única de, na volta, transmitirem ao seu laboratório a impressão recolhida a respeito de tais objectos. Era assunto decidido. Fui eu o último a deixar as dependências do clube naquela noite. Fiz questão de examinar, nos mínimos detalhes, todo aquele material novo em folha, que tão inopinadamente me cairá nas mãos e que estava à minha disposição. Era justamente o que eu precisava - o material com o qual trataríamos de salvar a vida se, contrariando a expectativa, a nossa jangada de madeira desse sinal que ia ceder e não tivéssemos nenhuma outra ali perto. Todo aquele material era ainda objecto dos meus pensamentos durante o almoço, no Lar do Marinheiro, ira manhã seguinte, quando um moço bem vestido e de conformação atlética, empunhando a sua bandeja, se 35

sentou na mesma mesa em que eu estava. Começámos a conversar, e pareceu-me que também não era embarcadiço, mas sim engenheiro de Trondheim, e que se achava na América para comprar acessórios de maquinaria e adquirir experiência na técnica de refrigeração. Não residia longe e vinha frequentemente comer ao Lar dos Marinheiros por causa dos bons pratos noruegueses que ali se serviam. Perguntou-me o que fazia e eu, em poucas palavras, pu-lo ao facto dos meus planos. Disse-lhe que, se até o fim da semana não obtivesse uma resposta definitiva a respeito do meu manuscrito, tomaria providências para organizar uma expedição em jangada. O meu companheiro de mesa falava pouco mas ouvia-me com grande interesse. Quatro dias depois, tornamos a encontrar-nos na mesma sala de refeições. - Então? Está ou não resolvido a empreender a sua excursão? indagou. - Estou, sim, respondi. Vou partir. - Quando? —O mais breve possível. Se me demorar muito por aqui, virão as grandes rajadas do Antárctico e nas ilhas também começará a quadra dos furacões. Devo partir do Peru dentro de poucos meses, porém preciso antes arranjar dinheiro e organizar tudo. - Quantos homens conta levar? - Pensei em seis; representa alguma companhia a bordo, além de ser o - número preciso para os quatro quartos de revezamento no governo da embarcação. O meu companheiro esteve uns momentos como que a ruminar uma ideia no seu íntimo e depois explodiu com ênfase: 36 - Que diabo! Eu gostaria de ir também! Poderia fazer medições e estabelecer provas técnicas. É claro que o amigo terá de amparar a sua experiência com cuidadosas medições dos ventos e das correntes. Lembre-se que vai cruzar vastos espaços de oceano virtualmente desconhecidos porque ficam fora das rotas dos navios. Uma expedição como a sua pode realizar interessantes investigações hidrográficas e meteorológicas. Eu faria bom uso da minha termodinâmica.

Acerca daquele homem que estava ali na minha frente eu nada sabia a não Ser que tinha um semblante bom e amigo, o que já era alguma coisa. - Pois muito bem, disse eu. Iremos juntos. O seu nome era Herman Watzinger; ambos - eu e ele - éramos marinheiros de primeira viagem. Alguns dias depois, levei Herman como meu hóspede ao Clube de Exploradores. Lá demos com o explorador do Pólo, Peter Freuchen. Possui Freuchen a apreciável qualidade de nunca desaparecer no meio da multidão. Grande como o colosso de Rodes e com uma barba respeitável, tem a aparência de um mensageiro que tivesse vindo do coração da tundra. Cerca-o uma atmosfera especial: é como se ele andasse a passear um urso pardo. Conduzimo-lo até um grande mapa, dependurado na parede, e falámoslhe do nosso plano de cruzar o Pacífico numa jangada índia. Arregalou uns olhos azuis de menino curioso e deu um sacão às barbas enquanto nos escutava. Depois bateu com a perna de pau no soalho e apertou o cinto alguns furos. - Com a breca, rapazes! Quem me dera poder ir com vocês! O velho desbravador da Groenlândia encheu as nossas canecas de cerveja e começou a falar-nos da sua crença 37 na existência de embarcações de povos primitivos e n; habilidade que teriam esses povos em viver a sua vida. adaptando-se à Natureza, tanto em terra como no mar. Ele próprio já viajara em jangada, descendo os grandes rios da Sibéria, e havia rebocado nativos em jangadas, à popa do seu navio, ao longo da costa do Ártico. E, enquanto falava, dava repelões na barba e dizia que certamente nos iríamos divertir a valer. Com o caloroso alento de Freuchen, o nosso plano ganhou tal ímpeto que deixou de ser segredo, pelo que foi logo divulgado pela Imprensa escandinava. Já na manhã seguinte, os repórteres foram bater com força à minha porta no Lar dos Marinheiros; e chamavam-me ao telefone. O resultado da conversa foi que, naquele mesmo dia à noite, eu e Herman estávamos a tocar à campainha / de uma casa situada num bairro elegante da cidade. Fomos recebidos por um guapo moço, de chinelas de pelica, que usava roupão de seda sobre um pijama azul.

Dava quase impressão de languidez e, tendo um lenço perfumado diante do nariz, desculpou-se, alegando estar constipado. Não obstante, sabíamos que aquele jovem se tornara famoso na América pelas suas façanhas como aviador, durante a guerra. Além do dono da casa, visivelmente calmo, estavam presentes dois jovens jornalistas, vibrantes de actividade e de ideias. Reconhecemos num deles um hábil correspondente. Enquanto era servido um bom whisky, o dono da casa explicou-nos o seu interesse pela nossa expedição. Ofereceu-se para conseguir o necessário capital se eu escrevesse artigos para os jornais e fizesse conferências, pelo país, no meu regresso. Por fim, chegámos a acordo e erguemos um brinde à auspiciosa colaboração entre os patrocinadores da expedição e os que nela iam tomar parte. Dali 38 por diante todos os nossos problemas económicos estariam resolvidos, uma vez que deles se encarregavam os nossos patrocinadores, o que nos tranquilizou bastante. Cumpria-nos, a mim e a Herman, tratar imediatamente de providenciar a tripulação e equipagem, construir uma jangada e fazer-nos ao largo antes que principiasse a época dos furacões. No dia seguinte, Herman apresentou a sua demissão, e pusemo-nos a trabalhar a sério. Eu já havia obtido do laboratório de pesquisas do Comando de Material do Ar a promessa de que atenderia todo e qualquer pedido meu por intermédio do Clube de Exploradores; disseram que uma expedição como a nossa estava admiravelmente indicada para pôr à prova o seu equipamento. Como começo era excelente. Agora as nossas tarefas mais importantes consistiam, primeiro que tudo, em encontrar quatro homens idóneos que se dispusessem a ir connosco na jangada, e arranjar provisões para a viagem. Um grupo de homens que deviam viajar juntos, a bordo de uma jangada, devia ser escolhido com cuidado. De contrário, haveria conflitos e outras complicações depois de um mês de isolamento no mar. Eu não queria marinheiros para dirigir a jangada; do manejo de uma jangada entendiam mais ou menos tanto quanto nós, e uma vez levada a bom termo a empresa, não desejava que viessem depois dizer

que o êxito era talvez devido ao facto de nós sermos melhores marujos do que os antigos construtores de jangadas do Peru. Contudo, precisávamos a bordo de um homem que soubesse usar um sextante e marcar a nossa derrota numa carta que servisse de base aos relatórios científicos. - Conheço um pintor, disse eu a Herman, sujeito espadaúdo que sabe tocar guitarra e é muito engraçado. 39 Estudou navegação e rodou pelo mundo, em navio, várias vezes, antes de voltar a viver em terra firme, empunhando os pincéis e uma paleta. Conhecemo-nos desde a adolescência e muitas vezes fizemos juntos excursões pelas montanhas da Noruega, acampando ao ar livre. Vou escrever-lhe e expor-lhe o assunto e tenho a certeza que aceitará. - Esse serve, disse Herman balouçando a cabeça em sinal de aprovação. Em seguida, precisamos de alguém que entenda de radiotransmissão. - Radiotransmissão? perguntei, horrorizado. Para que diabo vamos precisar disso numa jangada pré-histórica? Não será um objecto supérfluo? - De modo nenhum. Trata-se de uma precaução, sem nenhum efeito na sua teoria, desde que não mandemos nenhum SOS a pedir socorro. E teremos necessidade do aparelho para transmitir observações sobre o tempo e outras comunicações. Ao mesmo tempo, não poderemos receber avisos de próximos tufões, porquanto não há transmissões para aquela parte do oceano e, se as houvesse, de que nos serviriam numa jangada? Os argumentos do meu interlocutor pouco a pouco abafaram os meus protestos, pois eu formulara-os movido mais pela minha quezília a apertar botões e girar manivelas. - Está bem. Escreverei a Knut Haugland e a Torstein Raaby. - Conhece-os? - Conheço. Vi Knut, pela primeira vez, na Inglaterra, no ano 1944. Tinha sido condecorado pelos ingleses por ter tomado parte numa acção, em pára-quedas, que frustrou os esforços dos alemães para obter a bomba atómica; foi o radiotelegrafista na tremenda sabotagem verificada em Rjukan. Quando o conheci,

40 acabava de voltar de outra façanha na Noruega; a Gestapo apanhara-o com um aparelho radiorreceptor, no interior de uma chaminé, na Maternidade de Oslo. Os nazistas localizaram-no por meio de radiogoniómetro e o edifício foi cercado por soldados alemães com metralhadoras postadas defronte de cada porta do prédio. O chefe da Gestapo, Fehmer, encontrava-se em pessoa no pátio à espera que fizessem Knut descer. Mas o tiro saiu-lhe pela culatra. Fazendo «falar» a pistola, Knut foi abrindo caminho desde a trapeira até à cave e daí em direcção aos fundos do edifício, onde desapareceu pulando o muro do hospital, com uma saraivada de balas atrás de si. Encontrei-o num esconderijo instalado num vetusto castelo inglês; havia voltado, a fim de organizar uma cadeia secreta entre mais de cem estações transmissoras, na Noruega ocupada pelos alemães. Eu estava justamente concluindo o meu curso de paraquedismo e o nosso plano era saltarmos, juntos, no Nordmark, perto de Oslo. Mas justamente os russos marcharam para a região de Kirkenes, e um pequeno destacamento norueguês foi enviado da Escócia a Finmark para se encarregar das operações, recebendo essa missão, por assim dizer, de todo o Exército russo. Para lá fui enviado e aí conheci Torstein. Reinava então por aquelas bandas verdadeiro inverno ártico, e a aurora boreal bruxuleava no firmamento estrelado que se arqueava sobre nós, escuro como breu, dia e noite. Quando penetrámos nas pilhas de cinza da área abrasada de Finmark, roxos de frio e vestidos de peles, um tipo alegre de olhos azuis e cabelo louro espetado saiu de rojo de uma choupanazinha nas montanhas. Era Torstein Raaby. Primeiramente fugira para a Inglaterra, onde frequentou um curso de sabotagem e depois introduziu-se 41 clandestinamente na Noruega, nas proximidades de Tromsõ. Andara escondido com um aparelhozinho transmissor perto do couraçado Tirpitz e, durante dez meses, enviara comunicações diárias à Inglaterra acerca de tudo quanto se passava a bordo. Mandava as suas comunicações, à noite, ligando o transmissor secreto a uma antena receptora instalada por um oficial alemão. As suas regulares

comunicações guiaram os bombardeiros ingleses que afinal meteram a pique o Tirpitz. Torstein fugiu para a Suécia e de lá novamente para a Inglaterra, e foi então que saltou de pára-quedas com um novo aparelho receptor atrás das linhas alemãs, rumo aos ermos de Finmark. Quando os alemães se retiraram, percebeu que se achava perto das nossas linhas e saiu do seu esconderijo para nos ajudar com o pequeno receptor, visto que a nossa principal estação tinha sido destruída por uma mina. Sou capaz de apostar que tanto Knut como Torstein estão já fartos de andar à toa na pátria e teriam gosto em fazer uma viajata numa jangada de madeira. - Escreva-lhes indagando, alvitrou Herman. Então escrevi uma cartinha curta e despida de qualquer artifício a Erik, Knut e Torstein: «Vou atravessar o Pacífico numa jangada de madeira para provar a teoria de que as ilhas dos mares do Sul foram povoadas por gente vinda do Peru. Quer ir também? Não garanto nada, a não ser uma viagem gratuita ao Peru e de ida e volta às ilhas dos mares do Sul, durante a qual terá boas ocasiões para exercitar as suas habilidades técnicas. Responda sem perda de tempo.» Dias depois recebi o seguinte telegrama: «Irei. Torstein». Os outros dois também aceitaram. 42 Em busca do sexto membro do grupo, ora nos definhamos num homem, ora noutro, mas surgia sempre algum obstáculo. Entretanto, Herman e eu tivemos de atacar o problema das provisões de boca. Não era nossa intenção comer carne de lhama velho ou papas de kumara seca durante a nossa viagem, pois não íamos empreendê-la para fazer crer que já tínhamos também sido índios. A nossa intenção era pôr à prova o funcionamento e a qualidade da jangada inca, sua resistência no mar e seu porte, e ver se os elementos realmente a impeliriam através do mar até a Polinésia com a tripulação ainda a bordo. Os nossos precursores nativos certamente conseguiram viver de carne seca, de peixe e de papas de kumara seca a bordo, pois era principalmente disto que viviam em terra. E, na presente viagem. íamos procurar provar se podiam obter

peixe fresco e água de chuva ao cruzar o Oceano. Tinha ideia de estabelecer como regime alimentar simples rações de campanha, bem conhecidas nossas do tempo da guerra. Justamente por essa época, chegara um novo assistente do adido militar norueguês em Washington. Eu fora subcomandante da sua companhia em Finmark e sabia que se tratava de pessoa de intensa actividade que gostava de atacar e resolver, com energia, qualquer problema que lhe propusessem. Bjõrn Rõrholt pertencia a esse tipo de homens que se sentem mal quando, superada uma dificuldade, não enxergam logo outra à frente. Escrevi-lhe explicando a situação e pedi-lhe que usasse da sua habilidade para encontrar um homem que me pusesse em contacto com o serviço de reabastecimento do Exército americano. As possibilidade que tínhamos consistiam no facto do laboratório estar em experiências com novas rações de campanha que podíamos pôr à prova, 43 da mesma maneira que procederíamos relativamente ao material destinado ao laboratório da Força Aérea. Decorridos dois dias, Bjõrn telefonou-nos de Washington. Entrara em contacto coro o Departamento da Guerra americano, e lá queriam saber de que se tratava. Eu e Herman embarcámos para Washington no primeiro comboio. Fomos encontrar Bjõrn na sua sala do escritório do adido militar. - Creio que tudo correrá bem, disse. Amanhã seremos recebidos no Departamento da Guerra. Mas é necessário uma carta do coronel. O «coronel» era Otto Munthe-Kaas, adido militar norueguês. Mostrou-se acolhedor e ainda mais disposto a dar-nos uma boa carta de apresentação assim que soube o que pretendíamos. Quando, no dia seguinte pela manhã, voltámos para buscar o documento, levantou-se de repente e disse que seria melhor ir connosco pessoalmente. Partimos no carro do coronel a caminho do Pentágono, o maior edifício do mundo, onde se acha instalado aquele Departamento. O coronel e Bjõrn iam no banco da frente, envergando a melhor farda, enquanto que Herman e eu nos sentáramos atrás e, pelo pára-brisas, observávamos o gigantesco prédio que se erguia diante de nós. A ciclópica construção, com os seus trinta mil funcionários e quase

vinte e seis quilómetros de corredores, ia formar a moldura da nossa eminente «conferência da jangada» com militares de alta patente. Nunca, nem antes nem depois, a jangadazinha nos pareceu tão insignificante, a Herman e a mim. Depois de intermináveis caminhadas por corredores e escadas, chegámos à porta da Secção de Ligação Estrangeira e, imediatamente cercados por gente de uniformes 44 flamantes, vimo-nos sentados em redor de uma vasta mesa de mogno, presidida pelo próprio chefe da Secção. O severo e espadaúdo oficial de West Point, que se afigurava descomunal à cabeceira da mesa, teve no começo certa dificuldade em entender que relação podia haver entre o Departamento da Guerra americano e a nossa jangada de madeira, mas as sensatas palavras do coronel e o resultado favorável de um rápido exame colectivo feito pelos oficiais presentes puseram-no do nosso lado, e por isso leu, com interesse, a carta da secção de equipamento do Comando de Material do Ar. Em seguida levantou-se e deu ao seu Estado-Maior uma ordem lacónica no sentido de nos ajudar através dos canais competentes e, desejando-nos felicidades na empresa, saiu da sala. Fechada a porta, um jovem capitão segredou-me: - Aposto que vão obter o que desejam. Isto tem aspecto de operação militar, trazendo um pouco de variedade ao nosso ramerrão burocrático diário de tempo de paz; além disso, será uma boa oportunidade para se pôr à prova, metodicamente, o material. Imediatamente o oficial de ligação nos preparou um encontro com o coronel Lewis no laboratório experimental da Intendência Geral, e eu e Herman fomos levados até lá de automóvel. O coronel Lewis era um oficial afável, gigantesco e com jeito de desportista. Chamou imediatamente os homens encarregados de experiências nas diferentes secções. Todos se mostraram bem dispostos para connosco, sugerindo logo grande quantidade de material que gostariam de que experimentássemos devidamente. Excederam as nossas mais optimistas expectativas quando nos mencionaram um chorrilho de coisas de que poderíamos vir a precisar, desde rações de campanha ate pomadas

45 contra queimaduras de sol e sacos-cama à prova de salpicos. Em seguida, levaram-nos a diversas salas, para que fossemos examinando os objectos. Provámos rações especiais, acondicionadas em caprichosas vasilhas; experimentámos fósforos que se acendiam mesmo quando mergulhados em água, fogareiros «Primus», novos, e barricas de água, sacos de borracha e botas especiais, utensílios de cozinha e facas que flutuavam, e tudo quanto uma expedição podia necessitar. Olhei para Herman. Parecia um bom menino, muito esperançado, andando com uma tia rica por uma confeitaria cheia de bombons. O coronel ia à frente mostrando todas aquelas boas coisas e, depois de uma volta completa pelas secções, os oficiais do Estado-Maior tinham tomado nota dos diversos objectos de que iríamos precisar e respectivas quantidades. Pareceu-me haver ganho a batalha e o meu único desejo agora era correr para o hotel a fim de, comodamente deitado na minha cama, pensar com calma no que me cumpria fazer. Mas o amável coronel disse-me, de repente: - Bom, agora vamos ter com o «patrão», pois ele é quem resolverá se podemos dar-lhes estas coisas. Caiu-me o coração aos pés. Com que então tínhamos de gastar de novo o nosso latinório? E quem podia saber que espécie de homem era o «patrão»? Verificámos que o «patrão» era um pequeno oficial de modos muito sisudos. Lá de detrás da sua mesa de trabalho, ia-nos examinando com os seus penetrantes olhos azuis enquanto entravamos no escritório. Fez-nos sentar. - Que desejam esses cavalheiros? perguntou com alguma rispidez ao coronel Lewis, sem tirar os olhos dos meus. - Oh! pouca coisa, apressou-se Lewis a responder. 46 Em poucas palavras expôs a nossa projectada missão, enquanto o chefe escutava, pacientemente, sem fazer um gesto. -E que nos darão eles em troca? indagou, sem se mostrar impressionado.

- Ora, volveu Lewis em tom conciliatório, a nossa esperança é que talvez os expedicionários possam escrever relatórios sobre as novas provisões e sobre parte do material, nas árduas condições em que o irão usar. O carrancudo oficial recostou-se com pouco estudada lentidão, tendo os olhos ainda cravados nos meus. Enterrei-me no fundo da minha cadeira quando disse com frieza: - Eu nada vejo que possam dar-nos em troca. Um silêncio sepulcral pesou sobre o aposento. O coronel Lewis passou os dedos no colarinho, e nenhum de nós pronunciou uma palavra. - Mas, disse subitamente o chefe, e podia-se vislumbrar agora um certo brilho nos seus olhos, a coragem e o espírito de empreendimento também pesam na balança. Coronel Lewis, pode dar-lhes o que necessitam! Ainda me achava sentado, meio ébrio de prazer, no carro que nos reconduzia ao hotel, quando Herman, a meu lado, se pôs a cacarejar uns risinhos esquisitos. - Estás bêbado? perguntei inquieto. - Não, disse ele rindo abertamente, estive a calcular que as provisões que nos foram concedidas incluem 684 latas de abacaxi, a fruta da minha predilecção. Há centenas de coisas que fazer, e quase todas ao mesmo tempo, quando seis homens, uma jangada de madeira e a sua carga têm de reunir-se em determinado ponto da costa do Peru. Nós tínhamos três meses de prazo, 47 mas não dispúnhamos de nenhuma lâmpada de Aladino. Voámos para Nova-Iorque com uma apresentação fornecida pela Secção de Ligação e fomos procurar o professor Behre na Universidade de Colômbia. Era o chefe da Comissão de Pesquisas Geográficas do Departamento da Guerra, e a ele se devem as providências que permitiram a Herman ter finalmente todos os seus valiosos instrumentos e aparelhos destinados a medidas científicas. Daí voámos para Washington, a fim de nos encontrarmos com o almirante Glover, no Instituto Hidrográfico Naval. O velho lobo do mar,

homem de boa índole, chamou todos os seus oficiais e, apontando para o mapa do Pacífico pregado na parede, disse ao apresentarmos: - Estes moços desejam examinar os nossos mapas de correntes. Prestem-lhes auxílio. Quando tudo caminhava já, o coronel inglês Lumsden convocou uma reunião na Missão Militar Britânica de Washington, a fim de discutir os nossos futuros problemas e as possibilidades de bom êxito. Foram-nos dados conselhos proveitosos, ao mesmo tempo que recebíamos material inglês escolhido que nos foi remetido da Inglaterra, por avião, para ser experimentado na expedição em jangada. Um oficial-médico inglês era entusiástico advogado de um misterioso «pó tubarão». Deitavam-se algumas pitadas daquele pó na água, se um tubarão se fizesse muito atrevido, e o importuno desapareceria num instante. - Senhor doutor, disse-lhe eu cortesmente, podemos ter confiança neste pó? - Bem, disse o inglês, sorridente, é justamente isto que nós queremos averiguar! Quando o tempo é pouco e o aeroplano substitui o 48 comboio, ao passo que o automóvel substitui as pernas, a bolsa vai murchando como um herbário seco. Depois de termos gasto o dinheiro correspondente ao meu bilhete de ida e volta à Noruega, fomos bater à porta dos nossos amigos e patrocinadores de Nova-Iorque para estabelecermos o equilíbrio das nossas finanças. Aguardavam-nos problemas que nos surpreenderam e desalentaram. O agente financiador estava doente de cama, com febre, e os seus dois colegas não dispunham de poderes até que ele voltasse de novo à actividade. Mantinham com firmeza o nosso acordo económico, mas nada podiam fazer no momento. Pediram-nos que adiássemos tudo, pedido inútil, porquanto já não podíamos deter a marcha impetuosa dos acontecimentos. Não nos restava outra alternativa senão prosseguir e os nossos financiadores concordaram em dissolver os compromissos tomados, deixando-nos livres para agir com presteza e independência. E assim estávamos na rua, com as mãos nas algibeiras onde só havia cotão. - Dezembro, Janeiro, Fevereiro, disse Herman.

- E, em caso de necessidade, Março, acrescentei, mas então teremos simplesmente de partir. Tudo o mais podia parecer obscuro, mas uma coisa era muito clara. A nossa viagem tinha um objectivo, e não queríamos que nos confundissem com os acrobatas que rolam pelo Niágara abaixo em barris vazios ou se sentam nos nós de paus de bandeira durante dezassete dias. - Connosco não há processos de financiamento parecidos com os da goma de mascar ou da Coca-Cola, disse Herman. Neste ponto estávamos inteiramente de acordo. Podíamos arranjar «kroner» noruegueses. Isto, porém

49 não resolveria os problemas no nosso lado do Atlântico. Podíamos candidatarmos a um subsídio, mas dificilmente o conseguiríamos em troca de uma teoria contestada; afinal era exactamente por isso que íamos empreender uma expedição em jangada. Não tardámos a perceber que nem a Imprensa nem patrocinadores particulares ousavam aplicar dinheiro naquilo que eles próprios e todas as companhias de seguros consideravam uma viagem suicida; se, porém, voltássemos sãos e salvos, a coisa seria outra. As perspectivas eram tristonhas e, durante alguns dias, não víamos possibilidade de sair do apuro. Foi então que o coronel Munthe-Kaas surgiu novamente em cena. - Rapazes, disse-nos, vocês estão em maus lençóis. Para principiar eis aqui um cheque. Quando voltarem das ilhas dos mares do Sul, restituem-mo. O seu exemplo encontrou vários seguidores, e logo o empréstimo particular tomou tal vulto que nos dissipou as dificuldades sem ser preciso o auxílio de agentes ou de outros. Devíamos voar para a América do Sul e encetar a construção da jangada.

As antigas jangadas peruanas eram feitas de madeira de balsa que, quando seca, é mais leve que a cortiça. A balsa dá-se bem no Peru, mas somente além dos Andes. Assim, os navegadores da época dos incas subiram beirando a costa até o Equador, onde derribavam gigantescas balsas bem abaixo, na orla do Pacífico. Nós pretendíamos fazer o mesmo. Os problemas criados por uma viagem nos tempos de hoje são diferentes dos que existiam na época dos incas. Acham-se à nossa disposição automóveis e aeroplanos e agências de turismo, mas, para contrabalançar todas essas facilidades, temos também uma coisa chamada fronteiras, 50 com guardas de botões dourados que põem em dúvida o álibi do interessado em viajar, lhe remexem na bagagem e lhe assinalam o peso em formulários próprios, se é que tem sorte suficiente para o deixarem entrar. Foi o medo desses homens de botões dourados que nos aconselhou a não desembarcar na América do Sul com caixotes e malas cheias de objectos estranhos, descobrir-nos e pedir cortesmente em mau espanhol permissão para entrar no país e fazer-nos de vela numa jangada. Iríamos dar com os costados na prisão. - Não, disse Herman. Precisamos de uma apresentação oficial. Um dos nossos amigos do triunvirato desfeito era correspondente junto às Nações Unidas e levou-nos até lá de carro. Ficámos vivamente impressionados quando penetrámos no grande salão da Assembleia, onde estavam sentados, lado a lado, homens de todas as nações a escutar em silencio o fluxo verbal de um russo de cabelos pretos, postado em frente do descomunal mapa do mundo que ornava a parede do fundo. O correspondente nosso amigo tratou de, num moimento mais tranquilo, abeirar-se de um dos delegados do Peru e, em seguida, de um dos representantes do Equador, e trazê-los para um tête-à-tête. Refastelados em cómodo sofá de couro de uma antecâmara, escutaram avidamente o nosso plano de cruzar o mar em apoio da teoria de que homens de uma antiga civilização, oriundos do Peru, tinham sido os primeiros a alcançar as ilhas do Pacífico. Ambos prometeram informar

devidamente os seus Governos, assegurando-nos o seu amparo quando regressassem aos respectivos países. Trygve Lie, passando pela sala de espera, veio ter connosco ao saber que éramos patrícios seus, e alguém propôs que nos 51 acompanhasse na jangada. Mas para ele já havia bastantes vagalhões mesmo em terra. O dr. Benjamin Cohen, do Chile, secretário assistente das Nações Unidas, era um conhecido arqueólogo, e deu-nos uma carta para o Presidente do Peru, seu amigo pessoal. Encontrámos também no salão o embaixador norueguês, Wilhelm von Munthe af Morgenstierne, o qual, daí por diante, prestou à expedição valioso apoio. Comprámos, pois, dois bilhetes, e voámos para a América do Sul. Quando os quatro possantes motores começaram a roncar um após outro, afundámo-nos nas poltronas, bastante extenuados. Veio-nos um indefinível sentimento de alívio por sentir concluída a primeira parte do programa e pela convicção de que marchávamos, directamente, para a aventura. 53 CAPÍTULO III -- Para a América do Sul Desembarque no Equador - Problemas suscitados pela madeira de balsa - De avião para Quito - Desoladores e bandidos - Sobre os Andes em «jeep»- Nas brenhas - Em Quivedo - Derribando balsas - Descendo o Palenque em jangada - O sedutor porto naval - No Ministério da Marinha em Lima - Com o Presidente do Peru - Chega Danielssen - De regresso a Washington - Doze quilos de papel - O baptismo de fogo de Herman - Construção da jangada no porto naval - Advertências Antes da partida - O baptismo da «Kon-Tiki» - Adeus à América do Sul.

Ao atravessar o Equador, o aeroplano começou uma impetuosa descida através das nuvens de alvura de leite, que até então se estendiam por baixo de nós como um vastíssimo e deslumbrante lençol de neve sob o

sol abrasador. O vapor lanoso aderiu às janelas até se dissolver e ficar pendente sobre nós como nuvens. Apareceu então o telhado verde de uma mata, a ondular a nossos pés. Voávamos sobre a República sulamericana do Equador e desembarcámos no porto tropical de Guayaquil. Com os casacos da véspera, os coletes e capotes sobre o braço, saímos de rojo para uma atmosfera de estufa ao encontro de meridionais tagarelas em trajes dos 54 trópicos, e sentimos as nossas camisas pegadas às costas como papel molhado. Fomos envolvidos nos braços dos funcionários aduaneiros e da emigração e quase carregados até um carro que nos levou para o melhor hotel da cidade, o único que prestava. Quando chegámos, cada qual procurou a sua casa de banho, e espojou-se sob o duche de água fria. Estávamos no país onde cresce a balsa e íamos comprar madeira para fazer a jangada. Passámos o primeiro dia a estudar o sistema monetário e o pouco de espanhol suficiente para acharmos o caminho de volta ao hotel. No segundo dia, arriscamo-nos a sair e a alargar o nosso círculo de relações, e depois de Herman haver satisfeito o desejo que tinha desde a infância de tocar com a mão uma palmeira, ao passo que eu tomava barrigadas de salada de frutas, resolvemos ir adquirir a madeira de balsa. Infelizmente, a coisa era mais fácil de dizer que de fazer. Podíamos, é claro, comprar madeira de balsa em quantidade, mas não em toros inteiros como queríamos. Haviam já passado os dias em que as balsas eram acessíveis na costa. A última guerra pusera-lhes um fim; as árvores tinham sido derribadas aos milhares e embarcadas em navios para as fábricas de aeroplanos, por causa da extrema leveza da madeira. Informaram-nos que o único lugar onde havia enormes balsas era na mata, no interior do sertão. - Então temos de ir até lá e derribá-las nós mesmos, dissemos. - Impossível, responderam as autoridades. As chuvas começaram, e todas as estradas para a selva se acham intransitáveis por causa da água empossada e da lama.

55 Se querem madeira de balça, têm de voltar ao Equador daqui a seis meses; por essa altura, as chuvas cessaram e as estradas estarão enxutas. No embaraço em que estávamos, fomos procurar D. Gustavo Von Buchwald, o Rei da balsa no Equador, e Herman exibiu o seu esboço da jangada com as medidas da madeira que precisávamos. O descarnado reizinho da balsa pegou, pressurosamente, no telefone e pôs em campo os seus agentes. Estes encontraram pranchas e tábuas leves e vigas curtas, avulsas, em cada serraria, mas não conseguiram achar um único toro que servisse. Havia dois enormes toros, secos como palha, no próprio depósito de D. Gustavo, mas não nos levariam longe. Tornou-se evidente que a procura era inútil. - Um irmão meu tem uma vasta plantação de balsa, disse D. Gustavo. Chama-se Frederico e reside em Quivedo, pequena cidade do sertão. É capaz de lhes arranjar tudo o que os senhores precisam logo que pudermos entrar em contacto com ele depois das chuvas. Agora é inútil por causa do estado em que fica aquela zona do país na época das chuvas. Se D. Gustavo dizia que era inútil, todos os entendidos em balsa no Equador diriam o mesmo. De modo, que estávamos ali em Guayaquil sem madeira para a jangada e impossibilitados de ir às matas e cortar as árvores nós mesmos, a não ser meses depois, quando já fosse demasiado tarde. - O tempo é curto, disse Herman. - E nós precisamos arranjar balsa, insisti. A jangada tem que ficar igual ao modelo, pois, de contrário, o desastre será certo. Achámos no hotel um pequeno mapa escolar no qual as matas eram representadas em cor verde, as montanhas 56 em castanho e os lugares habitados tinham um círculo vermelho em redor. Por ele. vimos que a região das matas se estendia sem interrupção desde o Pacífico até ao sopé dos Andes altaneiros. Tive uma ideia. Era evidentemente impraticável no momento, partindo do litoral e atravessando a selva, atingir as balsas em Quivedo: mas sé pudéssemos chegar até as árvores partindo do sertão, penetrando

directamente no interior da selva, vindos das nuas montanhas nevadas da cordilheira dos Andes? Havia aqui uma possibilidade, a única que víamos à nossa frente. No aeródromo, estava um pequeno avião de carga, desejoso de nos transportar a Quito, capital daquele estranho país, na altura do planalto dos Andes, a 2.743 metros acima do nível do mar. Por entre caixotes e engradados, apercebemos, em fugitivo relance, matas verdes e rios espelhemos antes que as nuvens nos tolhessem qualquer visão do mundo. Quando conseguimos vará-las, as baixadas achavam-se encobertas por um oceano infindo de vapores em movimento, mas acima de nós encostas de montanhas secas e calvos penedos se erguiam do oceano de bruma, indo emparceirar com um céu azul e refulgente. O avião foi subindo pela encosta como se o fizesse num funicular invisível, e embora o próprio Equador estivesse ali à volta, por fim tínhamos de um lado e de outro cintilantes campos de neve. Em seguida, deslizámos entre morros e sobre um fértil planalto alpestre, revestido de verdura primaveril, e aí desembarcámos junto à mais singular das capitais do mundo. A maioria dos 150.000 habitantes de Quito são índios puros ou mestiços da montanha, pois era ali a capital de seus antepassados muito antes de Colombo e da nossa própria raça conhecerem a América. O traço característico 57 da cidade são os seus antigos mosteiros, repositórios de tesouros de arte de incalculável valor, e outros magníficos edifícios que datam do tempo dos espanhóis, sobrepondo-se airosos aos telhados das casas baixas dos indígenas, construídas de tijolo seco ao sol. Um labirinto de vielas vai serpenteando por entre as paredes de taipa, e vimo-las formigando de índios das montanhas, de casacos sarapintados de vermelho e enormes chapéus de fabricação caseira. Alguns iam para o mercado com burros de carga, enquanto outros estavam sentados, recurvos, ao longo das paredes de adobe, dormitando ao sol ardente. Vinham a seguir uns poucos automóveis levando aristocratas de origem espanhola vestidos à tropical, que corriam a meia velocidade, buzinando continuamente para, ao longo das ruelas que só davam uma

passagem, abrir caminho por entre crianças, burros e indígenas de pernas nuas. Ali, nas alturas daquele planalto, o ar era de uma transparência tão cristalina que as montanhas circundantes pareciam figurar no painel formado pela rua e contribuir para criar aquela atmosfera de um mundo tão diferente. O nosso amigo do avião de carga, Jorge, denominado «o aviador maluco», pertencia a uma das tradicionais famílias espanholas de Quito. Instalou-nos num hotel antiquado mas aprazível, e depois foi, ora connosco ora sozinho, procurar arranjar-nos transporte sobre as montanhas e no interior da selva até Quivedo. O nosso ponto de encontro à noite foi um velho café espanhol, e Jorge vinha cheio de más notícias; devíamos desistir completamente da ideia de ir a Quivedo. Não havia jeito de obter homens nem veículos que nos levassem até ao alto das montanhas e muito menos às selvas onde as chuvas já tinham começado e corria risco de ataque quem 58 ficasse atolado na lama. Ainda no ano anterior, um grupo de dez engenheiros americanos, que faziam pesquisas petrolíferas, foram encontrados mortos por setas envenenadas na parte oriental do Equador, onde havia ainda grande número de selvícolas que viviam inteiramente nus e caçavam com setas envenenadas. - Alguns são degoladores profissionais, disse Jorge com voz cavernosa, ao perceber que Herman, impassível, se servia de mais bife e vinho. - Pensam que exagero, prosseguiu em voz baixa. Mas, embora seja rigorosa/mente proibido, ainda há gente neste país que ganha a vida vendendo cabeças humanas. É impossível impedi-lo, de modo que até o dia de hoje os índios das matas cortam a cabeça de seus inimigos das tribos nómadas. Despedaçam o crânio e retiram tudo o que nele se contém e enchem de areia quente a pele vazia da cabeça, de maneira que esta se contrai toda até ficar reduzida a pouco mais que o tamanho da cabeça de um gato, sem perder a forma nem as feições. Estas cabeças minguadas de inimigos já foram, em tempos, valiosos troféus; actualmente não são mais que artigos raros do câmbio negro. Intermediários mestiços tratam de fazê-las chegar às mãos dos compradores da costa, os quais as vendem a turistas por preços fabulosos.

Jorge olhou para nós triunfante. Mal sabia ele que. naquele mesmo dia. eu e Herman tínhamos sido atraídos ao cubículo de um carregador, onde nos foram oferecidas duas dessas cabeças a 1.000 sucres cada uma. Hoje em dia muitas das tais cabeças não são mais do que cabeças de macacos, mas as duas que nos mostraram eram autênticas, de puros índios, e tão iguais a uma cabeça humana natural que os traços mais insignificantes estavam conservados. Pertenciam a um homem e a uma mulher e 59 eram ambas do tamanho de laranjas; a mulher fora até bonita, conquanto apenas as pestanas e os longos cabelos negros houvessem conservado o seu tamanho natural. Arrepiei-me diante de tal ideia, mas emiti dúvidas sobre se haveria degoladores desses a Oeste das montanhas. - Quem sabe? ciciou Jorge, hesitante. E que diria o senhor se o seu amigo desaparecesse e a cabeça dele, em miniatura, fosse posta à venda? Foi o que aconteceu uma vez a um amigo meu, acrescentou, encarando-me inflexivelmente. - Conte-nos como foi isso, disse Herman, mastigando o seu bife devagar e com o prazer visivelmente aguado. Pus cuidadosamente de lado o meu garfo e Jorge narrou a sua história. Há tempo, vivia ele com sua mulher num posto avançado da selva, pesquisando ouro e comprando todo o ouro de outros pesquisadores. O casal tinha, na ocasião, um amigo natural do lugar que trazia com regularidade o seu ouro e lhe comprava outros objectos. Um dia, esse amigo foi assassinado na floresta. Jorge seguiu a pista do criminoso e ameaçou matá-lo com um tiro. Ora, o assassino era dos tais suspeitos de vender cabeças humanas em ponto pequeno, e Jorge prometeu-lhe poupar a vida se lhe entregasse imediatamente a cabeça do assassinado. No mesmo momento, o indivíduo exibiu-a, agora do tamanho do punho de um homem. Jorge quase ficou fora de si ao rever o amigo, que era o mesmíssimo, a não ser que se reduzira àquele ponto. Muito emocionado, levou para casa a cabecinha e mostrou-a à mulher. Ao vê-la, esta desfaleceu, e Jorge teve de esconder o amigo dentro de uma mala. Mas havia tanta humidade na "mata que a cabeça

se cobriu de camadas de mofo, obrigando Jorge a tirá-la para fora de vez em quando e pô-la a secar ao sol. 60 Amarrava-a jeitosamente, pelos cabelos, num poste, e a mulher de Jorge desmaiava toda vez que a via. Um belo dia um ratinho conseguiu penetrar na mala e deixou o amigo muito maltratado. Jorge ficou penalizado e enterrou-o, com toda a formalidade, num buraco aberto ao ar livre. Pois, concluiu Jorge, tratava-se de um ser humano. - Jantar excelente, disse eu, para mudar de assunto. Quando voltávamos para casa no escuro, tive a desagradável impressão que o chapéu de Herman se lhe enterrara bem mais na cabeça, quase tapando as orelhas. Mas o que ele tinha feito era simplesmente baixar a aba para se proteger contra o frio da noite que vinha das montanhas. No dia seguinte, estávamos sentados com o nosso Cônsul Geral, Bryhn, e sua mulher, sob eucaliptos, na sua esplêndida casa de campo fora da cidade. Bryhn achava pouco provável que a nossa planejada excursão à selva equatoriana, em Quivedo, teria como resultado alguma transformação radical no tamanho dos nossos chapéus, mas. . Havia salteadores justamente naquelas regiões que pretendíamos visitar. Mostrou-nos recortes de jornais anunciando que, quando chegasse a estação seca, iam ser enviados soldados para acabar com os bandidos que infestavam os arredores de Quivedo. Visitar, em tal momento, esse lugar era rematada loucura, e nunca arranjaríamos guias ou transporte. Enquanto conversávamos, vimos passar na estrada, a toda a velocidade, um jeep do adido militar americano, e isso deu-nos uma ideia. Fomos à embaixada dos Estados Unidos, acompanhado pelo cônsul geral, e avistámo-nos com o próprio adido militar. Era um guapo moço, muito alegre, vestido de caqui e com botas, que nos perguntou, rindo, como é que nos

61 havíamos perdido naquelas altitudes andinas quando, segundo a Imprensa local. íamos empreender uma viagem marítima em jangada.

Explicámos que a madeira da jangada se achava ainda em pé nas florestas de Quivedo. E nós encontrávamo-nos ali, em pleno continente, sem poder atingi-la. Pedimos ao adido militar que nos emprestasse ou (1.°) um aeroplano e dois pára-quedas, ou (2.0) um jeep com um motorista que conhecesse a região. O adido militar ficou a princípio boquiaberto diante do nosso arrojo; depois abanou a cabeça, meio desanimado, e disse com um sorriso: - Pois bem, uma vez que não me dão uma terceira alternativa, prefiro a segunda. Na manhã seguinte, às cinco e um quarto, um jeep parou à porta do hotel e um capitão de Engenharia, equatoriano, pulou do veículo, declarando achar-se à nossa disposição. As ordens que tinha era levarnos a Quivedo, com lama ou sem ela. O jeep foi atulhado de tambores de gasolina, pois por lá não havia bombas nem vestígios de rodas de outros veículos ao longo da estrada que íamos tomar. O nosso novo amigo, capitão Agurto Aléxis Alvarez, estava armado até aos dentes, com facas e armas de fogo, por causa da., notícias que corriam a respeito dos bandidos. Nós tínhamos vindo àquele país pacificamente, de casaco e gravata, para comprar madeira a dinheiro à vista no litoral, e todo o nosso equipamento no jeep consistia num saco de conservas alimentícias, além duma máquina fotográfica em segunda mão adquirida à pressa e dois pares de calças de caqui, muito resistentes, um para cada um de nós. Além disso, o Cônsul Geral tinha-nos metido na cintura o seu enorme revólver «parabellum» com munições de sobra para exterminar tudo quanto se nos atravessasse 62 no raminho. O Jeep varou, zunindo, as ruazinhas vazias onde a lua brilhava com o seu pálido clarão espectral nas paredes caiadas, até que alcançámos o campo e corremos, com vertiginosa celeridade, por uma boa estrada arenosa em direcção ao Sul, através da montanha. Convinha-nos ir seguindo a cordilheira até a aldeia montanhesa de Latakunga, onde as casas, sem janela, dos índios, se amontoavam, a trouxe-mouxe, em redor de uma rústica igreja postada num largo em que se viam palmeiras. Aí desviámo-nos, tomando um trilho usado por mulas, que ondulava e ziguezagueava para Oeste, subindo mortos e atravessando vales já no coração dos Andes. Penetrámos num mundo

com que jamais havíamos sonhado. Era o próprio mundo montanhoso dos índios - a Leste do Sol e a Oeste a Lua - fora do tempo e além do espaço. Em todo o percurso não se nos deparou um carro, um veículo qualquer. O tráfego constava de cabreiros de tíbias à mostra, com os seus ponchos de cores vivas e alegres, tangendo manadas pouco ordeiras de imponentes lhamas de pernas duras. De quando em quando, famílias inteiras de índios vinham pela estrada. O marido geralmente ocupava a dianteira, montado numa mula, enquanto a sua mulherzinha trotava atrás, tendo na cabeça todos os chapéus que possuía, e o filhinho mais novo às costas, num saco. E durante o trajecto fiava lã com os dedos. Mulas e burros seguiam atrás, andando a passo, carregados de ramos, junco e louça de barro. Quanto mais nos adiantávamos, menos índios encontrávamos falando espanhol, e dentro em breve as possibilidades linguísticas de Agurfo foram tão inúteis quanto as nossas. Via-se um agrupamento de cabanas aqui e ali pelas montanhas; eram em número cada vez menor as de barro, sendo a maioria de taquara e de colmo. Tanto 63 as choças como a gente queimada do sol e de cara engelhada pareciam ter surdido da terra mesma, sob a acção escaldante do sol da montanha a bater de chapa nos rochedos dos Andes. Pertenciam ao penhasco, ao calhau, à pastagem do planalto tão naturalmente como a erva à montanha. Pobres cm posses e baixos na estatura, os índios da montanha tinham a fibra inquebrantável de animais bravios e a vivacidade infantil de um povo primitivo, e quanto menos sabiam falar, mais sabiam rir. Para onde quer que nos virássemos, encaravam connosco faces radiantes de dentaduras alvinitentes. Ninguém podia dizer que o homem branco tivesse perdido ou ganho um xelim naquelas regiões. Por ali não havia postes para afixar avisos ou anúncios nem directivas para o trânsito, e se uma latinha ou pedaço de papel fosse atirado à beira do caminho, imediatamente seria recolhido como objecto de uso doméstico. Seguindo o nosso percurso, fomos descendo encostas castigadas pelo sol e sem uma moita ou árvore até alcançarmos vales ermos e arenosos, onde só medravam cactos, para afinal subirmos em linha recta até atingir a eminência. Em volta do cume viam-se campos de

neve, e o vento frio era tão cortante que tivemos de afrouxar a marcha para não nos enregelarmos de todo, caindo aos pedaços. Metidos nas nossas camisas gélidas suspirávamos pelo ardor da selva. Durante longos trechos, tivemos de correr através de campos ladeados de altos morros, sobre pedras e cristas tapizadas de erva, em busca de qualquer coisa parecida com uma estrada. Ao atingirmos, porém, a muralha de Oeste, onde a cordilheira dos Andes cai impetuosamente para as baixadas, a senda que seguíamos era talhada como que em prateleiras na rocha viva, estando nós rodeados de penhascos e tremendos desfiladeiros. 64 A nossa confiança depositou-se toda no nosso amigo Agurto que, curvado sobre o volante de direcção, sempre achava meios e modos de se desviar dos precipícios. De súbito, sentimos à nossa frente violenta rabanada de vento; havíamos alcançado o ponto mais altaneiro da cadeia dos Andes, de onde a montanha descai abruptamente, numa série de despenhadeiros até à floresta virgem, numa voragem sem fundo, a 3.600 metros abaixo de nós. Mas foi-nos arrebatado da vista o espectáculo alucinante, pois mal havíamos chegado ao topo, espessos cúmulos de nuvens se interpuseram entre nós e a selva incomensurável, como se fossem vapores saídos de um caldeirão de bruxas. Agora, porém, o nosso caminho estendia-se sem empecilhos, em demanda das profundezas. E fomos descendo, descendo sempre, descrevendo temerárias curvas e voltas à beira de passos, fragas e arestas, enquanto o ar se fazia mais enevoado e mais morno e cada vez mais impregnado da carregada e asfixiante atmosfera de estufa que subia da mata lá em baixo. Neste ponto começou a chuva. Fina a princípio depois engrossou de tal maneira que tamborilava forte sobre o jeep, e logo, de um lado e de outro, corria pelas rochas abaixo uma água cor de chocolate. Também nós quase íamos escorrendo dali abaixo, arrancados dos planaltos secos da montanha à nossa retaguarda e indo parar num outro mundo, onde a madeira, a pedra e o barro daquele resvaladouro eram moles e ricos ao influxo do musgo e da relva. As folhas germinavam; em breve tornavam-se gigantescas, pendendo como umbelas verdes e gotejando sobre a ladeira do morro. Vieram depois os primeiros débeis postos

avançados das árvores da selva, ostentando pesadas franjas e enfeitadas com barbas de musgo e plantas trepadeiras. Por toda parte se ouvia 65 um cachoar de água, um patinar em poças. À proporção que os declives se tornavam mais suaves, a selva parecia uma gigantesca legião verde de vegetais que fossem tragando o pequeno jeep, enquanto este, na sua passagem pelos caminhos lamacentos e alagados, espadanava água em todas as direcções. Estávamos em plena selva. O ar era húmido e quente e todo embalsamado do cheiro da vegetação. A escuridão já havia baixado sobre a terra quando, num cabeço, alcançámos um agrupamento de choças com telhado de palmeira. Gotejando água morna, saímos do jeep para passarmos uma noite enxutos debaixo de telhado. O enxame de moscas que nos atacou na choça afogou-se na chuva do dia seguinte. Com o jeep cheio de bananas e de outras frutas do Sul, prosseguimos a nossa .marcha através da selva, descendo sempre, conquanto pensássemos ter, há muito, atingido o centro. A lama piorou, mas não nos deteve, e os bandidos mantinham-se a distância ignorada. O pequeno veículo só teve de fazer alto quando o caminho ficou interceptado por um largo rio de água barrenta que rolava pela selva abaixo. Parámos de todo, sem poder mover-nos ao longo da margem do rio. Numa clareira havia uma choupana onde índios mestiços estavam estendendo uma pele de jaguar na parede banhada de sol, enquanto cães e aves domésticas se espanejavam e patinhavam aqui e ali ou farejavam e debicavam nas sementes de cacau espalhadas no chão para secar ao sol. Quando o jeep chegou aos solavancos, o lugar reanimou-se, e as pessoas que falavam espanhol disseram que aquele era o rio Palenque e que Quivedo ficava do outro lado. Ponte não havia, e o rio levava forte corrente e era fundo, mas mostraram-se dispostos a transportar-nos e ao 66 jeep em jangada. O que eles chamavam jangada estava ali perto da margem. Uns curvos toros da grossura de braços e pernas, amarrados por fibras vegetais e bambus, formavam a frágil embarcação, que tinha

o dobro do comprimento e da largura do jeep. Com uma prancha debaixo de cada roda e com o credo na boca, empurrámos o jeep para cima dos toros, e se muitos deles estavam submersos debaixo da água barrenta, o facto é que nos aguentaram e ao jeep, e a quatro homens seminus cor de chocolate, que se fizeram ao largo valendo-se de duas compridas varas que manejavam. - Balsa? perguntámos ao mesmo tempo eu e Herman. - Balsa, respondeu com um meneio de cabeça um deles, aplicando nos toros um pontapé pouco respeitoso. Fomos colhidos pela correntes e rodopiámos, com ímpeto, rio abaixo, enquanto os homens empurravam com as suas varas, a intervalos certos, mantendo a jangada numa rota diagonal através da corrente, superando-a, e afinal, em água menos revolta, passando à outra margem. Foi este o nosso primeiro contacto com a madeira de balsa e a nossa primeira viagem numa jangada dessa madeira. Trouxemos a jangada para terra, deixando-a em segurança na margem alcançada, e metemo-nos triunfalmente no jeep a caminho de Quivedo. Duas filas de casas de madeira alcatroada, com urubus imóveis nos telhados de palmeira, formavam uma espécie de rua, e era isto o lugar, sem tirar nem pôr. Os habitantes largavam o que quer que estivessem carregando, e pretos e morenos, moços e velhos, apareciam em chusma às portas e janelas. Arremessou-se ao encontro do jeep aquela turba ameaçadora e tagarela. Subiram para ele, enfiaram-se debaixo dele, rodearam-no. Nós defendemos bravamente as nossas poucas posses, enquanto que Agurto, ao volante, realizava 67 manobras incríveis. De repente, o jeep teve um pneu furado e pareceu que se inclinava sobre um joelho. Havíamos chegado a Quivedo e tivemos de submeter-nos aos abraços de boas-vindas. A propriedade rural de D. Frederico ficava um tanto retirada do rio. Quando o jeep, aos solavancos, entrou no pátio, ao longo de uma vereda ladeada de mangueiras, trazendo como passageiros a mim e a Herman, além de Agurto que fazia de motorista, o magro velho, morador daqueles confins equatorianos, veio ligeiro ao nosso encontro com seu sobrinho Ângelo, rapazinho que lhe fazia companhia naquelas brenhas. Demos-lhe recados da parte de D. Gustavo, e daí a pouco lá ficou

solitário, no pátio, o nosso jeep, enquanto uma refrescante bátega tropical desabava sobre a selva. Realizou-se uma refeição festiva no palacete de D. Frederico; leitões e galinhas crepitavam no braseiro, enquanto tomávamos assento em torno de uma mesa repleta de frutas locais e expúnhamos o motivo da nossa vinda. A chuva caindo lá fora sobre a mata enviara para dentro, através das janelas de rede, um perfume de flores e de barro molhado. D. Frederico tornara-se espevitado como um rapaz. Sim, dizia ele, é claro que conhecia desde criança jangadas feitas de madeira de balsa. Há cinquenta anos, quando vivia perto do mar, os indígenas do Peru ainda costumavam viajar ao longo da costa em enormes jangadas de balsa para irem vender peixe a Guayaquil. Podiam trazer umas duas toneladas de peixe seco numa cabina de bambu instalada no centro da jangada, ou levavam a bordo mulheres, crianças, cães e galinhas. Agora, com as chuvas, não seria nada fácil achar dessas colossais balsas como as que eles usavam para suas jangadas, porquanto a água em charcos e a lama já haviam tornado 68 impossível chegar-se até à plantação de balsas na floresta, ainda mesmo a cavalo. Entretanto, faria o que estivesse ao seu alcance; podia ainda haver uma ou outra árvore na floresta perto do palacete, e nós não precisaríamos de muitas. Quase à boca da noite, a chuva estiou durante algum tempo, e fomos dar uma volta para ver as mangueiras que circundavam a casa. D. Frederico tinha também todas as qualidades imagináveis de orquídeas silvestres, pendentes dos ramos, servindo-lhes de vasos metades de cocos vazios. Essas plantas raras, diferentes das orquídeas comuns, exalavam admirável perfume, e Herman inclinara-se para poder aspirar melhor o perfume de uma delas, quando uma coisa parecida com uma comprida e fina enguia, cintilante, surgiu de entre as folhas acima de sua cabeça. Um golpe fulminante do chicote de Ângelo atirou no solo uma agitada cobra. Mais uns segundos e estava o réptil com o pescoço pregado à terra por meio de um pau em forquilha que, daí a pouco, lhe esmagou a cabeça. Mortal, disse Ângelo, exibindo duas recurvas presas com o veneno, para mostrar convincentemente o que queria dizer.

Agora parecia que enxergávamos serpentes venenosas emboscadas na folhagem e em toda a parte. Por isso, preferimos entrar cautelosamente era casa com o troféu de Ângelo pendendo inerte de uma vara. Herman sentou-se para tirar a pele ao ofídio, e D. Frederico começou a contar histórias fantásticas de cobras venenosas e de jibóias colossais. De repente, reparámos nas sombras de dois enormes escorpiões na parede, do tamanho de lagostas. Atiraram-se um contra o outro e com as suas tenazes empenharam-se numa luta de vida e de morte, virando 69 para cima a parte traseira e com o venenoso ferrão» da cauda, curvo e já pronto para o golpe fatal. Era um espectáculo horrível, e só depois de bulirmos um pouco com o candeeiro de azeite, vimos que este projectara uma sombra literalmente gigantesca de dois escorpiões ordinários, do tamanho de um dedo comum, que estavam lutando na extremidade da escrivaninha. - Deixem-nos, disse D. Frederico, rindo. Um há de matar o outro, e nós precisamos do sobrevivente na casa para afugentar as baratas. Basta ajustarem bem à cama o cortinado de rede e sacudirem a roupa antes de vesti-la, que não haverá nada. Já fui mordido muitas vezes por escorpiões e não morri, acrescentou o velho. Dormi bem, mas acordava pensando em bichos venenosos cada vez que um morcego guinchava com mais ruído ou uma lagartixa passava perto demais do meu travesseiro. No dia seguinte, levantámo-nos cedo para ir à pro-cura de balsas. - Convém sacudirmos as nossas roupas, disse Agurto, e ainda não acabara de falar quando um escorpião lhe caiu da manga da camisa, enfiando-se num abrir e fechar de olhos, numa frincha do soalho. Logo depois de nascer o sol, D. Frederico mandou os seus homens a cavalo, em todas as direcções, para procurarem balsas acessíveis, ao longo dos caminhos. Quanto a nós três, D. Frederico, Herman e eu, formámos o nosso grupo, e não tardámos a achar caminho para uma aberta onde havia uma árvore gigantesca, de cuja existência D. Frederico sabia. Sobressaía ela entre as que a rodeavam, tendo o seu tronco 0,94 m. de grossura. À moda polinésica baptizámos a árvore antes de tocar-lhe; demos-lhe o nome de Ku que era o de uma

divindade polinésica de origem americana. Em seguida, brandimos o machado 70 cravando-o no tronco da balsa até ecoarem pela floresta os nossos golpes. Mas cortar uma balsa seivosa era o mesmo que cortar cortiça com um machado sem gume; o instrumento não fazia mais que ricochetear, e ainda não tinha eu descarregado muitas machadadas quando Herman teve de render-me. O machado passou assim de uma mão para outra várias vezes, enquanto as lascas voavam e o suor pingava sob a canícula da selva. Indo já alto o dia, Ku permanecia de pé como um galo numa perna só, estremecendo aos nossos golpes; pouco depois cambaleou e tombou, com tremendo estalido, sobre as árvores vizinhas, arrastando na sua pesada queda enormes galhos e árvores menores. Tínhamos arrancado os ramos do tronco e íamos a tirar a casca em ziguezagues à maneira indígena, quando Herman, de repente, deixou cair o machado e deu um pulo para o ar, com uma mão agarrada à perna, como se estivesse a executar uma dança guerreira da Polinésia. Da sua calça caiu uma formiga brilhante do tamanho de um escorpião e com longo dardo da cauda. O crânio devia ser parecido com a tenaz de uma lagosta, pois foi quase impossível esmigalhá-lo no chão com o salto do calçado. - Um «kongo», explicou D. Frederico, contrariado. É bicho pior que o escorpião, mas não oferece perigo a um homem sadio. Herman sentiu-se magoado e um pouco enfraquecido durante vários dias, o que não o impediu de galopar connosco a cavalo pelos caminhos da selva, à procura de novas balsas gigantescas da floresta. De quando em quando, ouvíamos um rangido e um estalo seguido de tremendo baque, algures na mata virgem. D. Frederico balançava a cabeça com ar satisfeito. Aquilo queria dizer que seus índios mestiços haviam derrubado mais uma 71 gigantesca árvore para a jangada. Dentro de uma semana Ku tinha sido seguida por Kane, Kama, lio, Mauri, Ra, Rangi, Papa, Taranga, Kura, Kukara e Hiti, doze possantes balsas, todas baptizadas em honra de lendárias figuras da Polinésia, cujos nomes tinham sido, juntamente

com Tiki, levados do Peru através do mar. Os toros, gotejando seiva, eram arrastados através da selva primeiro por cavalos e, finalmente, pelo tractor do nosso anfitrião que os trazia até à margem do rio em frente ao palacete. Cheios de seiva, os toros de maneira nenhuma eram leves «corno cortiça. Pesavam certamente uma tonelada cada um, e não foi sem ansiedade que esperámos o momento em que os veríamos flutuar na água. Rolámo-los, um por um, até a beira do rio; ali amarrámos uma corda feita de sólidas trepadeiras à extremidade dos toros, para que não se fossem na corrente quando os fizéssemos entrar na água. Depois empurrámo-los, cada um por sua vez, pela margem abaixo, até dentro do rio. Foi um borrifar de água em todas as direcções. Rodopiaram e boiaram, quase tanto acima quanto abaixo da superfície da água, e se caminhávamos ao longo deles, permaneciam firmes. Ligámos as madeiras com cipó resistente que pendia do alto das árvores da selva, de modo que fizemos duas jangadas provisórias, uma rebocando a outra. Em seguida enchemo-las com todos os bambus e cipós de que poderíamos necessitar mais tarde, e eu e Herman saltámos para bordo com dois homens de uma misteriosa raça, com os quais não tínhamos linguagem comum. Quando cortámos as amarras, fomos colhidos pelo redemoinho das águas, e eis-nos rio abaixo, levados pela corrente com regular velocidade. A última coisa que pudemos ver por entre o chuvisco, ao contornarmos a primeira ponta de terra, foram os nossos excelentes amigos, de pé 72 defronte do palacete acenando-nos. Depois metemo-nos sob um pequeno abrigo feito de folhas de bananeira, deixando o governo da embarcação aos dois peritos trigueiros que se haviam postado um à proa e outro à popa, cada qual segurando um remo colossal. Com a maior calma mantinham a jangada no centro da corrente, e fomos bailando rio abaixo, no meio do torvelinho, entre árvores submersas e bancos de areia. Lá estava a selva como uma sólida muralha ao longo das margens, de um lado e de outro, e papagaios e outras aves de cores vivas saíam, voando, da espessa folhagem quando passávamos. Uma vez ou duas,

um jacaré atirou-se ao rio, tornando-se invisível na água lamacenta. Mas não tardou que víssemos um bicharoco bem mais notável. Era um iguano, ou lagarto gigante, do tamanho de um crocodilo, mas de goela enorme e dorso franjado. Cochilava na margem barrenta como se estivesse a dormir desde os tempos pré-históricos, e não se mexeu à nossa passagem. Os remadores fizeram sinais para que não atirássemos. Logo depois vimos um espécime menor, com cerca de 0,90 m.. Ia correndo por um grosso galho que pendia sobre a jangada. Correu apenas até se ver a salvo e então sentou-se, com a sua cor brilhante azul e verde e, aos passarmos, encarou-nos com olhos gélidos de cobra. Mais tarde passámos por um outeiro coberto de feto, em cujo topo estava deitado o maior iguano de todos. Parecia a silhueta de um dragão chinês com franjas, esculpido em pedra, imóvel ali contra o céu, de cabeça e peito erguido. Nem sequer voltou a cabeça ao descrevermos a curva debaixo do outeiro, desaparecendo na selva. Mais adiante, apercebemos fumos e passámos por diversas cabanas cobertas de palha que se achavam em clareiras 73 ao longo da margem. Nós, na jangada, éramos alvo da atenção de pessoas que estavam em terra e tinham ar sinistro, caldeamento pouco agradável de índio, negro e espanhol. As embarcações que usavam, grandes pirogas, estavam amarradas na margem. Tendo chegado a hora do repasto, rendemos os nossos amigos nos remos de direcção enquanto eles frigiam peixe sobre um pequeno fogareiro regulado com barro húmido. Também faziam parte do cardápio de bordo ovos, frango assado e frutas meridionais, enquanto os toros de madeira se transportavam a si próprios e a nós, a boa velocidade, através da selva e na direcção do mar. Que importância tinha agora que a água jorrasse em torno de nós? Quanto mais chovia, mais rápida era a corrente. Quando as trevas caíram sobre o rio, instalou-se na margem uma orquestra mortificante para os ouvidos. Rãs e sapos coaxavam, grilos cricrilavam e mosquitos zumbiam num arrastado coro de muitas vozes. De vez em quando, o grito agudo de um gato selvagem vibrava na escuridão, logo seguido de outro e ainda de outros, soltados por aves que o susto causado pelos animais noctívagos da selva punha em fuga.

Uma vez ou duas vimos o brilho de uma fogueira em choça longínqua e, de caminho, ouvíamos vozes humanas esganiçadas e ladrar de cães. Mas, na maior parte do tempo, sentíamo-nos sós com a orquestra da selva sob as estrelas, até que o sono e a chuva nos impeliram para dentro da cabana de folhas, onde fomos dormir com as pistolas nos coldres, prontos para qualquer eventualidade. Quanto mais descíamos o rio, mais numerosas se tornavam as choças e granjas, e logo principiaram a aparecer nas margens aldeias regulares. O transporte aqui era feito por pirogas, tocadas por longas varas, e de onde em 74 onde víamos uma pequena jangada de madeira de balsa, carregada de bananas verdes. No ponto de junção do rio Palenque com o Guayas, a água tinha subido tanto que o vapor de rodas navegava diligentemente entre Vinces e Guayaquil abaixo da costa. A fim de poupar tempo precioso, eu e Herman tomámos passagens a bordo do vapor de rodas e singra-mos através da região plana de população densa em direcção à costa. Os nossos amigos morenos deviam seguir, vogando rio abaixo sozinhos com a madeira. Em Guayaquil, Herman e eu separámo-nos. Ele ficou na foz do Guayas para deter os toros de balsa que vinham vogando. Daí tinha de levá-los, como carga, num vapor costeiro, ao Peru, onde ia dirigir a construção da jangada e fazer uma cópia fiel das vetustas embarcações indígenas. Quanto a mim, tomei o avião de carreira que se dirigia ao Sul, a Lima, capital do Peru, para procurar local adequado à construção da jangada. O aeroplano subiu a grande altura, ao longo da costa do Pacífico, tendo a um lado as desertas montanhas do Peru e do outro o cintilante oceano, muito longe, abaixo de nós. Era aqui que nos faríamos ao mar a bordo da jangada. Visto de tais eminências, o oceano afigurava-se infindo. Céu e mar confundiam-se num horizonte longínquo, indefinível, lá para as bandas do Ocidente, e eu não me podia livrar da ideia de que ainda para lá daquele horizonte muitas centenas de planícies oceânicas semelhantes se curvavam em torno de um quinto da terra, antes de haver algum outro continente, na Polinésia. Tentei lançar o meu pensamento para algumas semanas adiante, quando estaríamos

vogando numa insignificante jangada sobre aquele vastíssimo campo azul lá em baixo, mas depressa afugentei tal pensamento porquanto dava-me 75 a mesma desagradável impressão que sentiria cá no íntimo, se me visse forçado a saltar de pára-quedas. Ao descer em Lima, tomei o «eléctrico» que me conduziu ao porto de Callao, a fim de procurar um lugar onde pudéssemos construir a jangada. Vi, num relance, que o porto inteiro estava coalhado de navios, guindastes e armazéns, com barracões para uso da alfândega, escritórios portuários e quejandas repartições. E se alguma praia livre havia mais adiante, formigava de banhistas em tal quantidade que não faltariam curiosos que desmontassem a nossa pobre jangada assim que virássemos as costas. Callao era então o porto mais importante num país de sete milhões de habitantes, brancos e trigueiros. Os tempos tinham mudado no Peru ainda mais que no Equador para os construtores de jangadas, e só vi uma possibilidade - penetrar no interior dos altos muros de cimento em redor do porto naval, onde homens armados estavam montando guarda por trás do portão de ferro e dirigiam olhares ameaçadores e desconfiados a mim e a outras pessoas que, sem autorização, passavam por lá ociosamente. Se ao menos pudéssemos penetrar ali, estaríamos seguros. Havia travado conhecimento com o adido naval peruano em Washington e obtivera dele uma carta de recomendação. Dirigi-me, por isso, no dia seguinte, ao Ministério da Marinha, com a carta e solicitei audiência ao Ministro, D. Manuel Nieto. Recebia, pela manhã, na elegante sala de visitas Império do Ministério, refulgindo de espelhos e dourados. Passado algum tempo, chegou D. Manuel em uniforme de gala. Era um oficial baixo e atarracado, carrancudo como Napoleão, usando linguagem lacónica e cheia de franqueza. Perguntou-me de que se tratava e eu lhe disse qual era o meu intento. 76 Pedi permissão de construir uma jangada de madeira no estaleiro naval. - Caro jovem, disse o ministro, tamborilando inquieto com os dedos, o senhor errou a porta. Sentir-me-ia feliz se pudesse ajudá-lo, mas a

ordem tem de vir por inter-médio do Ministro das Relações Exteriores; não posso deixar estrangeiros penetrar na área naval e facultar-lhes o uso do estaleiro como se fosse uma coisa muito natural. Dirija-se por escrito ao Ministro e felicidades. Fiquei apreensivo a pensar em papéis circulando e desaparecendo em pastas ou gavetas. Felizes os tempos de Kon-Tiki quando não havia nenhuma dessas formalidades! Falar pessoalmente com o Ministro das Relações Exteriores não era coisa fácil. A Noruega não tinha delegação no Peru, não podendo, portanto, o nosso prestimoso Cônsul Geral, Bahr, levar-me senão até aos consultores do Ministério. Receei chegar a um ponto morto. A carta do dr. Cohen para o Presidente da República podia agora ser-me útil. E, por intermédio do seu ajudante de ordens, solicitei uma audiência a Sua Excelência D. José Bustamante y Rivero, Presidente do Peru. Um ou dois dias depois comunicaram-me que devia estar no Palácio às doze horas. Lima é uma cidade moderna com cerca de 500.000 habitantes, e achase esparramada numa verde planície, no sopé das montanhas desertas. Pela sua arquitectura e graça e também pelos jardins e granjas, é certamente uma das mais belas capitais do mundo - um pouco da Riviera moderna ou da Califórnia, salpicada aqui e ali da velha arquitectura espanhola. O palácio presidencial fica no centro da cidade e é fortemente guardado por sentinelas armadas que se vestem de cores alegres. 77 Uma audiência no Peru é coisa séria, e pouca gente terá visto o Presidente, a não ser na tela do cinema. Soldados com brilhantes bandoleiras escoltaram-me escada acima até o fim do longo corredor; aí o meu nome foi registado por três civis que me introduziram, por descomunal porta de carvalho, numa sala com uma comprida mesa e filas de cadeira. Recebeu-me um homem de branco que me fez sentar e sumiu-se. Um momento depois, abriu-se uma grande porta e fui introduzido numa sala muito mais bonita, onde um personagem imponente, em uniforme impecável, se adiantou ao meu encontro. «O Presidente», pensei eu, empertigando-me. Mas qual ! O homem de uniforme agaloado de ouro ofereceu-me uma antiga cadeira de espaldar alto e sumiu-se também. Haveria um minuto que me sentara na cadeira

quando mais outra porta se abriu e, com uma reverência, um criado me fez entrar num salão dotado de mobília dourada, e decorado com fino gosto. O sujeito desapareceu tão depressa como havia surgido, e eu fiquei calmamente sentado num sofá antigo e, de onde estava, via uma enfiada de salas vazias cujas portas se encontravam abertas. Havia tanto silêncio que pude ouvir alguém tossindo, moderadamente, em aposento distante do meu. Eis que se aproxima esse alguém de andar firme; pus-me imediatamente de pé e, hesitante, cumprimentei um imponente cavalheiro fardado. Mas qual! Este também não era o Presidente. Entendi, porém, suficientemente o que dizia, coligindo que o chefe de Estado me mandava saudações e estaria livre dentro em breve, quando terminasse o despacho colectivo com os Ministros. Dez minutos depois, outros passos também firmes quebraram novamente o silêncio, e dessa vez entrou um homem cheio de dragonas e galões dourados. Saltei vivamente 78 do sofá e fiz uma reverência profunda. O recém-chegado curvou-se ainda mais profundamente, foi-me levando através de diversas salas, e fez-me subir uma escada com espessa alcatifa. Depois deixou-me numa acanhada saleta em que havia uma cadeira de couro e um sofá. Aí entrou um homenzinho vestido de branco. Esperei resignadamente a ver onde pretendia levar-me. Mas não me levou a parte alguma. Saudou-me com afabilidade e continuou de pé. Desta vez, era o Presidente Bustamante Rivero. O Presidente pouca coisa mais sabia de inglês que eu de espanhol, de maneira que depois de nos termos cumprimentado e depois que ele, com um gesto, me fez sentar, o nosso vocabulário comum estava esgotado. Gesticulação e sinais valem alguma coisa, mas não obtêm para um interessado permissão para construir uma jangada num porto naval do Peru. A única coisa que percebi foi que o Presidente não entendia o que eu estava a dizer e ele próprio chegara à mesma conclusão ainda com maior clareza, porque, decorridos alguns instantes, desapareceu e voltou com o Ministro da Aeronáutica. O General Reveredo era um formidável atleta, trajando uniforme da Força Aérea com asas no peito. Falava um inglês esplêndido com sotaque americano.

Pedi desculpas pelo equívoco e disse que não era no aeródromo que eu estava a tentar pedir admissão, mas no porto naval. O general riu-se e explicou que só havia sido chamado como intérprete. A minha teoria foi sendo traduzida aos poucos para o Presidente que escutava com atenção e fazia atiladas perguntas. Por fim disse e Reveredo traduziu: - Se é possível que as ilhas do Pacífico tenham sido descobertas por intermédio do Peru, este país 79 está interessado nessa expedição. Diga pois o que pretende. Pedi que me concedesse um local onde pudéssemos construir a jangada dentro dos muros da área naval, acesso às oficinas navais, lugar para depósito de material e facilidades para introduzi-lo no país, uso da doca seca e do pessoal naval para nos ajudar no trabalho, e uma embarcação que nos rebocasse ao sairmos da costa para o alto mar. - Que pede ele? perguntou, ansiosamente, o Presidente, de maneira que até eu entendi. - Não muito, respondeu Reveredo, piscando-me um olho. E o Presidente, satisfeito, meneou a cabeça em sinal de aprovação. Antes de terminar a entrevista, Reveredo prometeu-me que o Ministro das Relações Exteriores receberia ordens directas do Presidente e que o Ministro da Marinha, Nieto, teria carta branca para nos prestar o auxílio que solicitássemos. - Deus vos guarde a todos! disse o general, rindo e meneando a cabeça. O ajudante de ordens entrou e escoltou-me até me entregar a um mensageiro que estava à espera. Naquele dia, os jornais de Lima publicaram uma nota acerca da expedição norueguesa em jangada que devia partir do Peru; ao mesmo tempo anunciaram que uma expedição científica sueco-finlandeza havia concluído os seus estudo entre os selvícolas das regiões amazónicas. Dois dos membros suecos da expedição ao Amazonas tinham subido o rio em canoa até o Peru e acabavam de chegar a Lima. Um deles era Bengt Danielssen, da Universidade de Upsala, que ia agora estudar os indígenas das montanhas do Peru. 80

8o Cortei a notícia e estava no meu quarto do hotel escrevendo para Herman a respeito do lugar para a construção da jangada, quando fui interrompido por uma pancada na porta. Entrou um tipo alto, queimado de sol, em trajes tropicais, e quando tirou o capacete branco, parecia que a barba inteiramente vermelha lhe tinha queimado o rosto e chamuscado o cabelo fino. Vinha do mato, mas o seu lugar era, evidentemente, num salão de conferências. «Bengt Danielssen», pensei. - Bengt Danielssen, disse o homem apresentando-se. «Ouviu falar na jangada», pensei, também, fazendo-o sentar. - Acabo de ouvir falar nos planos acerca da jangada... disse o cientista. E agora veio deitar por terra a teoria, porque é um etnólogo», voltei a pensar. - ...e vim para saber se me aceitam na expedição, acrescentou pacatamente. Interesso-me pela teoria da migração. Eu nada sabia a respeito do homem, a não ser que era um cientista que acabava de chegar das profundezas da selva. Se, porém, um taciturno sueco tinha ânimo de se abalançar a uma expedição em jangada com cinco noruegueses, era sinal que não se tratava de um niquento. E nem aquela barba imponente podia ocultar a sua índole pacata e o seu génio alegre. Bengt tornou-se o sexto membro da tripulação, pois o lugar estava ainda vago. E era o único que falava espanhol. Quando, alguns dias mais tarde, o avião de passageiros roncava rumo ao Norte, ao longo da costa, tornei a olhar com respeito para o interminável mar azul lá em baixo. Parecia suspenso a flutuar, solto, no próprio firmamento. Em breve, seríamos seis, amontoados como micróbios numa conchinha, lá onde a água era tanta que parecia alagar todo o longínquo horizonte ocidental. Tínhamos que vencer um mundo desolado, sem podermos dispor de mais que de alguns passos a separar-nos uns dos outros. Em todo o caso, por ora havia espaço bastante separando-nos e dando-nos

liberdade de acção. Herman estava no Equador esperando a madeira. Knut Haugland e Torstein Raaby acabavam de chegar a Nova Iorque».. por via aérea. Erik Hesselberg vinha de Oslo por mar, com destino ao Panamá. Eu estava a caminho de Washington em aeroplano, e Bengt achava-se num hotel de Lima pronto para a partida, apenas aguardando os outros. Desses indivíduos, não havia dois que se tivessem conhecido antes, e eram todos de tipos inteiramente diferentes. Assim, só depois de algumas semanas que passássemos juntos na jangada é que nos poderíamos cansar de ouvir as nossas respectivas histórias. Nenhuma nuvem carregada de baixa pressão nem qualquer tempestade oferecia maior ameaça para nós do que o perigo, sempre possível, de uma súbita bátega psicológica entre seis homens encerrados, juntos, durante meses, numa jangada a vogar. Em tais circunstâncias, uma boa pilhéria era muitas vezes tão útil quanto um salva-vidas. Em Washington havia ainda inverno rigoroso, com muito frio e neve. Quando voltei, estava-se cm Fevereiro. Bjõrn tomara a seu cargo o problema do rádio e havia interessado a Liga Americana de Radioamadores na recepção de comunicações vindas da jangada, e Knut e Torstein estavam atarefados em preparar a transmissão, que devia ser feita ora com transmissores de onda curta construídos especialmente para o nosso propósito, ora com aparelhos secretos de sabotagem usados durante a guerra. Havia mil coisas para preparar, grandes e miúdas, se quiséssemos levar a bom termo o que projectávamos fazer na viagem. E avultavam, nos nossos classificadores e arquivos, as pilhas de papel. Documentos militares e civis, brancos, amarelos e azuis, em inglês, francês e norueguês. Até mesmo uma excursão em jangada havia de custar à indústria de papel, numa época tão prática como a nossa, a metade de um pinheiro. Leis e regulamentos estavam continuamente a atar-nos as mãos, e era mister de cada vez ir desfazendo nó por nó. - Seria capaz de jurar que esta correspondência pesa aí seus nove quilos, disse um dia Knut em desespero, curvado sobre a máquina de escrever. - Doze, disse Torstein friamente. Já a pesei. Minha mãe deve ter tido uma ideia clara da situação

naqueles dias de dramáticos preparativos, ao escrever-mo: «A única coisa que eu queria era saber se vocês seis já estão a bordo da jangada». E eis que um dia chega de Lima um telegrama urgente. Colhido pela cauda de um vagalhão, Herman fora arrojado em terra, malferido, com uma grave deslocação do pescoço. Achava-se em tratamento num hospital de Lima. Imediatamente Torstein foi mandado de avião com Gerd Vold, a popular secretária londrina dos paraquedistas sabotadores noruegueses, durante a guerra, que na ocasião prestava serviço cm Washington. Acharam-no melhor; tinham-no suspendido de uma correia atada cm volta do pescoço durante meia hora, enquanto que os médicos lhe repunham na posição, destorcendo-o, o atlas do pescoço. A radiografia mostrou que o osso mais alto do pescoço de Herman se havia fracturado e tinha sofrido uma desarticulação completa. A esplêndida constituição física de Herman salvara-lhe a vida, e pouco depois o convalescente voltou, azul, verde, endurecido e reumático, ao estaleiro naval, onde ele próprio havia amontoado madeira de balsa e começado a obra. Teve de ficar entregue aos cuidados médicos durante várias semanas, sendo incerto se podia fazer a viagem connosco. Ele, pessoalmente, jamais duvidou disto nem um momento, a despeito do modo bastante rude com que, logo de início, o tratara o Pacífico. Então Erik chegou de Panamá pelo ar, enquanto eu e Knut chegávamos de Washington, achando-nos assim todos reunidos no ponto de partida, em Lima. No estaleiro naval estavam os enormes troncos de balsa da floresta de Quivedo. Era, realmente, um espectáculo patético. Toros redondos cortados há pouco, bambus amarelos, junco e folhas de bananeira jaziam por ali cm pilhas, constituindo o nosso material de construção, tudo isto rodeado de filas de ameaçadores submarinos e destroyers cinzentos. Seis setentrionais de tez clara e dois engajados navais de pele morena, que tinham sangue inca nas veias, brandiam machados e compridos machetes e puxavam cabos e nós. Elegantes oficiais da Marinha, trajando azul e dourado, passavam por ali em inspecção e encaravam com assombro aqueles pálidos estrangeiros e todo aquele material incongruente que, de súbito, havia aparecido no meio deles, no estaleiro oficial.

Pela primeira vez, em centenas de anos, estava a ser construída, na baía de Callao, uma jangada de madeira de balsa. Naquelas águas onde, segundo as lendas incas, os seus antepassados haviam aprendido com o desaparecido clã de Kon-Tiki a navegar em jangadas dessas, reza a História que os indígenas eram proibidos, por homens da nossa raça de fazer uso de semelhantes embarcações. Navegar numa jangada aberta podia custar vidas humanas. Os descendentes dos incas mudaram com os tempos; como nós, têm vincos nas calças e estão bem protegidos pelos canhões do seu poder naval. Balsa e bambus são coisas do passado; aqui também tudo marcha para a blindagem e o aço. O ultra-moderno estaleiro foi-nos de incalculável valia. Tendo Bengt como intérprete e Herman como construtor chefe, púnhamos e dispúnhamos das oficinas de carpinteiro e de veleiro, dispondo ainda de metade do espaço destinado à armazenagem do nosso material, e de uma pequena doca flutuante onde a madeira foi posta na água quando principiou a construção. Escolhemos nove dos mais grossos troncos e considerámo-los suficientes para formar a verdadeira jangada. Praticámos fundos sulcos na madeira para impedir que as cordas que, passando por eles, deviam amarrar toda a jangada, não escorregassem. Nem um único prego, cavilha ou cabo de arame foi usado em toda a construção. Os nove grandes troncos foram primeiro colocados lado a lado na água, de modo que pudessem cair livremente na sua posição natural, flutuante, antes de serem fortemente amarrados uns aos outros. O toro mais longo, de 13,70 m de comprimento, foi posto no centro e projectava-se bem além dos outros numa e na outra ponta. Toros, cada vez mais curtos dispuseram-se, simetricamente. .1 um e outro lado deste, de modo que os lados da jangada tinham 9 111 de comprimento, e a proa emergia como um arado grosseiro. À ré. a jangada tinha um corte transversal, mas os três troncos do centro projectavam-se e sustentavam um cepo curto e grosso de madeira de balsa que ficava cm posição oblíqua à embarcação e tinha toletes para o comprido remo de direcção. Depois que os nove troncos de balsa foram fortemente amarrados uns aos outros, com corda de cânhamo, de uma polegada e de um quarto de polegada de comprimentos diferentes, os toros finos de balsa foram

amarrados, de través, sobre aqueles, com intervalos de cerca de 0,90 m. A jangada agora estava completa, laboriosamente ligada com cordas de cerca de trezentos comprimentos diferentes, cada qual amarrada com nós firmíssimos. Sobre ela foi posta uma coberta feita de taquaras, amarradas à jangada na forma de sarrafos separados e cobertos com esteiras soltas de bambu trançado. No meio da jangada, mas perto da popa, erguemos uma pequena cabina aberta, feita de bambu, com paredes também, de bambu e telhado ainda de fasquias de bambu com folhas de bananeira que se encaixavam uma nas outras, como se fossem telhas, À frente da cabana levantámos dois mastros, um ao lado do outro. Eram de mangueiro, de uma dureza de ferro, inclinavam-se um para o outro e no topo estava amarrados em cruz. A enorme vela quadrada foi carregada numa verga feita de dois paus de bambu, atados para maior reforço e segurança. Os nove enormes toros de madeira, que nos deviam conduzir através do mar, afilavam-se ligeiramente nas extremidades, à moda indígena, para poderem deslizar com mais facilidade na água. Tábuas bem baixas, para protecção contra borrifos, foram ligadas à proa acima da superfície do mar. Em vários lugares onde existiam grandes fendas entre toros, introduzimos, ao todo, cinco sólidas pranchas de abeto, cujas pontas imergiam na água sob a jangada. Foram postas mais ou menos a esmo e penetraram um

86 metro e meio na água, tendo 25 mm de espessura e 0,60 m de largura. Ficavam seguras no respectivo lugar por meio de cunhas e cordas e serviam de pequeninas quilhas paralelas. Quilhas deste tipo eram usadas em todas as jangadas de madeira de balsa dos tempos dos incas, muito antes da época dos descobrimentos, e eram destinadas a evitar que as jangadas chatas de pau vogassem para qualquer lado à mercê do vento e das ondas. Não pusemos nenhuma grade ou protecção cm volta da jangada, mas tínhamos um toro de balsa, comprido e delgado, que de cada lado oferecia apoio aos pés. Toda a construção era cópia fiel das antigas embarcações do Peru e do Equador, com excepção dos guarda-borrifos. colocados na proa, que

posteriormente se verificou serem inteiramente desnecessários. Respeitadas as linhas gerais, podíamos, é claro, dispor as coisas a bordo como nos aprouvesse, desde que isso não tivesse influência na estrutura da embarcação. Sabíamos que aquela jangada ia ser todo o nosso mundo no tempo que se estendia à nossa frente, e que, consequentemente, o mínimo pormenor a bordo cresceria em dimensões e importância à medida que as semanas passassem. Por isso, fizemos a pequena coberta variar o mais possível. As lascas de bambu não tapavam toda a jangada, mas formavam um piso em frente da cabina de bambu e a estibordo dela, onde a parede era aberta. O costado de bombordo da cabana era uma espécie de pátio interior cheio de caixotes e utensílios domésticos, tudo convenientemente atado, com diminuto espaço livre para se poder andar. À frente, na proa, e à ré, até a parede traseira da cabina, os nove gigantescos troncos não tinham coberta alguma. Assim, quando saíamos da 87 cabina de bambu, passávamos dos bambus amarelos e do trançado de vime para os redondos toros cinzentos à popa, subindo daí até a carga amontoada do outro lado. Não eram muitos passos, mas o efeito psicológico da irregularidade oferecia-nos variação e compensava-nos da nossa limitada liberdade de movimento. No tope do mastro pusemos um estrado de madeira, não tanto para termos um posto de atalaia quando afinal chegássemos a terra, como para podermos marinhar por ele acima durante a viagem e ver o mar de outro ângulo. Quando a jangada, principiou a tomar forma, figurando entre os navios de guerra, dourada e fresca com os seus bambus e folhas verdes, o Ministro da Marinha veio pessoalmente examiná-la. Estávamos imensamente ufanos da nossa embarcação tal como ali se achava, pequena lembrança recente dos tempos dos incas entre aqueles formidáveis vasos de guerra. Porém o Ministro da Marinha ficou simplesmente horrorizado com o que viu. Fui chamado à repartição naval a fim de assinar um documento em que declarava a Marinha livre de qualquer responsabilidade por aquilo que havíamos construído nas suas oficinas, tendo ainda de declarar ao Capitão do Porto, também em papel por mim

firmado, que se saía de Callao com homens e carga a bordo, isso corria inteiramente por minha conta e risco. Depois, vários peritos navais e diplomatas estrangeiros tiveram acesso ao estaleiro para verem a jangada. Tão pouco se mostraram optimistas, e alguns dias depois o embaixador de uma das grandes potências mandou-me chamar. - Seus pais estão vivos? perguntou-me. E obtendo resposta afirmativa, encarou-me fixamente e disse com voz cavernosa e prenhe de mau agouro: 88 - Sua mãe e seu pai ficarão muito penalizados quando souberem de sua morte. Particularmente, pediu-me que desistisse da viagem enquanto ainda era tempo. Um almirante que havia examinado a jangada dissera-lhe que. vivos, não conseguiríamos fazer a travessia. Em primeiro lugar, estavam erradas as dimensões da jangada. Ela era tão pequena que soçobraria num mar picado, mas tinha o comprimento suficiente para ser levantada por duas linhas de ondas ao mesmo tempo, e com a jangada cheia de homens e de carga os frágeis toros de balça se partiriam com o esforço. E, o que era pior, o maior exportador de madeira de balsa do pais afirmara-lhe que os porosos troncos de balsa boiariam apenas um quarto d» distância através do oceano, antes de ficarem tão completamente encharcados que iriam ao fundo connosco. Os prognósticos não eram bons, mas como nos mostrámos teimosos, deram-nos de presente uma Bíblia para levarmos connosco na viagem. Bem lançadas as contas, pouco estímulo se podia auferir dos peritos que examinavam a jangada. Rajadas e talvez furacões arrebatar-nos-iam, destruindo a baixa e exposta embarcação que se veria desamparada e a bailar pelo oceano, à mercê do vento e das águas. Mesmo num mar normalmente agitado, ficaríamos, acto contínuo, encharcados de água salgada que acabaria arrancando-nos a pele das pernas e estragando tudo a bordo. E se fôssemos somar as opiniões dos diferentes peritos, cada um por sua vez, apontando uma falha vital na construção, não havia na jangada um comprimento de corda, um nó, uma medida, um pedaço de madeira que não nos fosse levar para o

fundo do mar. Foram feitas valiosas apostas em torno do número de dias que duraria a jangada, e um petulante adido 89 naval apostou todo o whisky que os membros da expedição poderiam beber no resto da vida se chegássemos vivos a uma ilha dos mares do Sul. Pior foi quando, tendo entrado no porto um navio norueguês, levámos ao estaleiro o capitão e um ou dois dos seus mais experimentados lobos do mar. Ficámos ansiosos por testemunhar as reacções práticas desses homens. E grande foi a nossa decepção quando todos opinaram que a tosca jangada, com aquela proa absurda, jamais obteria da vela qualquer ajuda, enquanto que o capitão sustentava que, se conseguíssemos manter-nos sobre a água, a embarcação gastaria um ano ou dois para atravessar a corrente de Humboldt. Olhando para as nossas amarras, o contramestre abanou a cabeça. Não havia a menor dúvida. Não passariam duas semanas sem que cada corda da nossa pobre embarcação se gastasse de todo, porque, uma vez dentro da água, os enormes toros se movimentariam sem cessar, esfregando-se uns nos outros. Se não usássemos cordas de arame ou correntes, podíamos arrumar as malas. Não era fácil enfrentar todos estes argumentos. Se um deles sequer fosse verdadeiro, as nossas possibilidades seriam inexistentes. Creio que várias vezes perguntei a mim mesmo o que estávamos a fazer. Eu não podia apreciar tais advertências, uma por uma, porque não era marinheiro. Tinha, porém, comigo um único trunfo de reserva, no qual estava baseada toda a viagem. No meu íntimo havia uma voz que sempre me segredava que uma civilização pré-histórica se espalhara do Peru, através do mar até as ilhas, numa época em que jangadas como a nossa eram a única embarcação naquele litoral. E tirava a conclusão geral de que se a madeira de balsa flutuara e as amarras haviam resistido para Kon-Tiki, 90 no ano 500 da nossa era, o mesmo havia de suceder connosco se fizéssemos da nossa jangada uma cópia exacta da dele. Bengt e Herman estavam completamente enfronhados na teoria, e enquanto os

peritos franziam o sobrolho, o rapazes conservavam-se tranquilos e divertiam-se em Lima. Uma noite, Torstein perguntou-me ansioso, se eu tinha a certeza de que as correntes oceânicas iam no rumo certo; Voltávamos do cinema, onde víramos Dorothy Lamour, com uma saia de palha, dançando a hula com outras jovens, entre palmeiras, numa ilha amena dos mares do Sul. - É para aí que devemos ir, disse Torstein. E terei muita pena se as correntes não andam no sentido que você diz. Aproximando-se o dia da nossa partida, dirigimo-nos ã Repartição de Passaportes a fim de obtermos permissão para deixar o país. Bengt achava-se à frente da fila como intérprete que era. - Qual é o seu nome? perguntou um funcionariozinho, cerimonioso, olhando desconfiado por cima dos óculos para a imensa barba de Bengt. - Bengt Emincrik Danielssen, respondeu o nosso amigo respeitosamente. O homem pôs na sua máquina de escrever um longo impresso. - Em que navio veio para o Peru? - Acontece, explicou Bengt, inclinando-se para o assustado homenzinho, que vão vim de navio, mas de canoa. Mudo de assombro, o funcionário olhou para Bengt e escreveu «canoa» num espaço aberto do impresso. - E em que navio vai sair do Peru? 91 - Acontece, repito, disse Bengt delicadamente, que não vou sair do Peru em navio, mas numa jangada. - Acredito, acredito! exclamou nervoso, o funcionário, rasgando o papel ao retirá-lo da máquina. Agradeço-lhe o obséquio de responder convenientemente às minhas perguntas! Alguns dias antes de nos fazermos à vela, provisões, água, o nosso material, enfim tudo foi depositado a bordo da jangada. Reunimos provisões para seis homens por quatro meses, na forma de sólidas caixinhas de papelão contendo rações militares. Herman teve a ideia de ferver asfalto e espalhá-lo, de modo a formar uma camada uniforme em volta de cada caixa separada. Depois esparzimos areia sobre elas para evitar que as caixinhas ficassem pegadas umas às outras, e dispusemo-

las lado a lado, sob a coberta de bambu, onde ocuparam o espaço entre as nove baixas vigas transversais que sustentavam a coberta. Numa fonte cristalina, jorrando de alta montanha, enchemos de água potável 56 latinhas, ao todo 250 galões. Aquelas também foram amarradas entre as vigas transversais, de maneira que a água do mar pudesse sempre borrifá-las. Sobre a coberta de bambu, amarrámos o resto do material e grandes cestos de vime cheios de fruta e coco. Knut e Torstein escolheram um canto da cabina de bambu para o rádio, e, no interior daquele recinto, em baixo, entre as vigas transversais, amarrámos oito caixotes. Dois foram reservados para instrumentos científicos e filmes; os outros seis distribuídos a cada um de nós, tendo cada homem sido inteirado de que poderia acarretar consigo coisas particulares que coubessem no seu caixote. Como Erik tivesse trazido vários rolos de papel de 92 desenho e uma guitarra, o seu caixote ficou tão cheio que teve de pôr parte das suas coisas no de Torstein. Depois quatro marinheiros trouxeram o caixote de Bengt. Continha só livros, mas teve artes de atulhá-lo - com 73 obras de sociologia e etnologia. Pusemos em cima dos caixotes esteiras de junco trançado e os nossos colchões de palha, e estávamos agora aparelhados para partir. Primeiramente, a jangada foi rebocada para fora da área naval e tocada a remos em volta da baía, durante algum tempo, para se verificar se a carga estava distribuída com equilíbrio. Em seguida levámo-la a navegar, para defronte do Iate Clube de Callao, onde convidados e outras pessoas interessadas assistiram à cerimónia do baptismo da embarcação na véspera da nossa partida. A 27 de Abril, foi hasteada a bandeira norueguesa, e ao longo da verga no tope do mastro tremulavam as bandeiras dos países estrangeiros que tinham dado à expedição apoio prático. O cais formigava de gente que queria assistir ao baptismo da estranha embarcação. Não só pela cor mas ainda pelos traços, via-se que muitas das pessoas presentes tinham remotos antepassados que haviam navegado ao longo da costa em jangadas de balsa. Mas havia também descendentes dos antigos espanhóis, chefiados por representantes da Armada e do Governo, além dos embaixadores dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França,

China, Argentina e Cuba, um antigo governador das colónias inglesas no Pacífico, os ministros da Suécia e da Bélgica, e os nossos amigos do pequeno núcleo norueguês, tendo à frente o Cônsul Geral, Bahr. Havia uma chusma de jornalistas e ouvia-se, a cada momento, o ruído característico das máquinas de cinema em acção. Faltava apenas uma banda de música bem barulhenta. De uma coisa todos tínhamos certeza, e era que, se a 93 jangada se despedaçasse fora da baía, preferiríamos remar para a Polinésia, ficando cada um de nós sobre um tronco, a passar pelo vexame de voltar ali outra vez. Gerd Vold, secretária da expedição, devia baptizar a jangada com leite de coco, quer para se manter a tradição da Idade da Pedra, quer porque, em consequência de um equívoco, o champanhe tinha sido posto no fundo do caixote particular de Torstein. Depois de terem os nossos amigos sido informados, em inglês e em espanhol, de que o nome que se ia dar à embarcação era o do grande precursor dos incas o Rei-Sol que havia desaparecido para as bandas do ocidente, atravessando o mar desde o Peru até a Polinésia há 1500 anos - Gerd Vold baptizou a jangada com o nome de Kon-Tiki. Esmigalhou com tanta força o coco rachado, contra a jangada, que o leite e a polpa foram atingir os cabelos dos que estavam reverentemente em redor. Em seguida, foi içada a verga de bambu e desenrolada a vela, tendo ao centro a cara barbada de Kon-Tiki, pintada em vermelho pelo artista Erik. Era uma cópia fiel da cabeça do Rei-Sol, esculpida em pedra vermelha sobre uma estátua nas ruínas da cidade de Tiahuanaco. - Ah! Olha o «Senor» Danielssen, exclamou encantado o mestre das nossas oficinas no estaleiro, ver na vela a cara barbada. Chamava a Bengt «Senor Kon-Tiki» havia dois meses, desde que lhe mostráramos a cara barbada de Kon-Tiki num pedaço de papel. Mas agora tinha, afinal, percebido que o verdadeiro nome do nosso companheiro era Danielssen. Antes de nos fazermos à vela, despedimo-nos do Presidente, e depois fomos fazer uma excursão pelas negras montanhas e fartarmo-nos de rochedos e pedras

antes de nos lançarmos ao oceano interminável. Enquanto trabalhávamos na jangada, perto da costa, estivéramos hospedados numa pensão situada num bosque de palmeiras fora de Lima, e íamos a Callao e de lá voltávamos num carro do Ministério da Aeronáutica, dirigido por um motorista particular que Gerd conseguira de empréstimo para a expedição. Pedimos pois ao motorista (pie nos levasse directamente às montanhas, penetrando no interior delas o mais que pudesse ser num dia; e assim corremos por estradas desertas beirando antigos canais de irrigação até chegarmos à alucinante altura de 3.657 metros acima do mastro da jangada. AH limitámo-nos a devorar, com os olhos, rochedos e picos e mato verde, e tratámos de nos saciar com a tranquila mole de montanhas da cadeia dos Andes que tínhamos diante de nós. Procurámos convencer-nos de que estávamos fartos de ver pedra e terra sólida e precisávamos fazer-nos de vela e ir conhecer o mar.

95 CAPÍTULO IV -- Através do Pacífico (I) Uma partida dramática - Levam-nos a reboque para o mar - O venta começa a soprar - A vida na corrente de Humboldt - O aeroplano que não nos encontrou - Os troncos absorvem água - Pau contra corda Comemos peixes-voadores - Um insólito companheiro de cama - O erro de um peixe-cobra - Olhos no mar - História de um fantasma do oceano - Ficamos conhecendo o maior peixe do mundo - Caça de tartaruga marinha.

HAVIA uma azáfama pouco comum no porto de Callao no dia em que a Kon-Tiki ia ser rebocada para o mar. O Ministro da Marinha dera ordens para que o rebocador naval Guardian Rios nos levasse a reboque até fora da barra e nos colocasse bem longe do movimento costeiro, lá num ponto distante, onde, em tempos passados, os índios costumavam pescar de bordo de suas jangadas. Os jornais haviam publicado a

notícia com cabeçalhos vermelhos e pretos, e desde as primeiras horas da manhã de 28 de Abril verdadeira multidão acudira ao cais. Nós, que devíamos estar reunidos a bordo, tínhamos tido, até à última hora, alguma providência que tomar. Por isso, quando desci ao cais, somente Herman lá estava 96 de guarda à jangada. Propositadamente, mandei parar o carro a boa distância e fiz todo o percurso ao longo do molhe para estirar bem as pernas pela derradeira vez. Por quanto tempo ninguém poderia dizer. Pulei para bordo da jangada, cujo aspecto era verdadeiramente caótico: cachos de bananas, cestos e sacos de fruta tinham sido atirados para ali, no último momento, devendo ser devidamente empilhados e amarrados assim que pudéssemos pensar um pouco em pôr as coisas em ordem. Herman, sentado, aguardava resignadamente, tendo sobre os joelhos uma gaiola com um papagaio verde, presente de despedida de uma pessoa amiga de Lima. - Fica aqui um minuto cuidando do papagaio, disse-me. Preciso ir a terra beber um último copo de cerveja. O rebocador não virá tão cedo... Mal Herman desapareceu entre a turba que fervilhava no cais, o povo pôs-se a apontar e a agitar-se. É que da banda indicada vinha, a toda a velocidade, o rebocador Guardian Rios. Lançou âncora muito para lá de uma ondulante floresta de mastros que interceptavam o caminho à KonTiki, e enviou uma espaçosa lancha a gasolina para nos rebocar dali, tirando-nos daquele labirinto de velas. A lancha vinha cheia de marinheiros, oficiais e operadores de cinema, e enquanto as ordens soavam e as câmaras cinematográficas entravam em acção com o seu ruído característico, uma sólida corda foi amarrada à proa da jangada. - Um momento, berrei, desesperado, do lugar onde me achava sentado, segurando o papagaio. Ainda é cedo, temos de esperar pelos outros los expedicionários, expliquei, apontando para a cidade. Mas ninguém entendeu. Os oficiais limitaram se a sorrir delicadamente, e foi dado o nó na nossa proa de

97 maneira realmente perfeita. Soltei a corda e lancei-a na água, reforçando o meu acto com toda a espécie de sinais e gestos. O

papagaio valeu-se da oportunidade oferecida por aquela barafunda para meter o bico fora da gaiola e virar a tramela da portinhola. Quando me voltei, estava já a dar, majestosa e prazenteiramente, o seu passeio pela coberta de bambu. Tentei agarrá-lo, mas ele berrou algo em espanhol e esvoaçou, alcançando os cachos de banana. Com um olho nos marujos, que procuravam lançar um cabo sobre a proa, encetei activa caça para apanhar o bicho. Voou aos gritos para dentro da cabina de bambu, onde o agarrei num canto, pegando-o por uma perna enquanto tentava voar sobre mim. Quando tornei a sair e depois de ter reposto na sua gaiola a minha presa que batia as asas, os marujos em terra tinham desatado as amarras da jangada, e achava-me a bailar, sem remédio, ao sabor de um vagalhão que investia incessantemente contra o molhe. Desesperado, agarrei num remo e debalde tentei evitar um violento baque ao ser a jangada atirada contra as grades de pau do cais. A lancha-automóvel largou, e com um puxão a Kon-Tiki iniciou a sua longa viagem. O meu único companheiro era um papagaio que falava espanhol e que, de olhos arregalados, olhava lugubremente lá do seu poleiro. Na praia, a multidão ovacionava agitando lenços, e os operadores de cinema, que se achavam na lancha, quase saltaram no mar, de ávidos que estavam por apanhar, em todos os seus pormenores, a dramática partida da expedição do Peru. Desesperado e só, achava-me eu em pé sobre a jangada procurando os meus companheiros perdidos, mas não vinha nenhum. Assim saímos para o Guardian Rios, que estava aparelhado para levantar ferro e partir. Num 98 abrir e fechar de olhos, trepei a escada de corda e fiz tamanho barulho a bordo que a partida foi retardada e mandaram um bote ao cais. Depois de algum tempo, voltou cheio de formosas senoritas, mas sem um único dos homens da Kon-Tiki que faltavam. Tudo isto estava muito bem, mas não resolvia os meus problemas, e enquanto a jangada ficava repleta de encantadoras senoritas, o bote voltou para dar nova busca a los expedicionários noruegos. Neste comenos, Erik e Bengt vinham vagarosamente em direcção ao cais, com os braços cheios de embrulhos, jornais e revistas. Encontraram a multidão de regresso a casa e foram finalmente detidos

junto à barreira policial por um delicado funcionário o qual lhe disse que nada mais havia para ver. Fazendo um vago gesto com o seu charuto, Bengt retorquiu que não tinha vindo ver nada; ia partir na jangada. - É inútil, disse benevolamente o guarda. A Kon-Tiki partiu há uma hora. - Isso não é possível, volveu Erik, mostrando um embrulho; aqui está a lanterna! - E aí está o piloto, disse Bengt. Eu sou o comissário. Foi-lhes franqueada a passagem, mas a jangada partira. Puseram-se a andar desesperadamente de um lado para outro ao longo do molhe, onde encontraram o resto do grupo, que também estava procurando ansiosamente a jangada desaparecida. Então avistaram o bote que se aproximava, e assim nos reunimos os seis. A água cachoava já em volta da jangada quando o Guardian Rios nos rebocou para o mar. Passava muito do meio-dia quando afinal partimos. O Guardian Rios não nos quis deixar ao largo enquanto não nos viu, na manhã seguinte, desembaraçados do movimento 99 costeiro. Assim que nos afastámos do molhe, encontrámos um pouco de mar de proa, e todos os pequenos botes que nos acompanhava voltaram um por um. Apenas alguns grandes iates foram connosco até a entrada da baía, a ver como lá iriam as coisas. A Kon-Tiki seguiu o reboque como um bode raivoso amarrado a uma corda, e deu marradas com a parte dianteira no mar, de modo que a água entrou a bordo invadindo-a. Isto não parecia muito animador, pois aquele era um mar calmo comparado com o que devíamos esperar. No meio da baía, o cabo de reboque quebrou, e a ponta dele que estava do nosso lado foi tranquilamente para o fundo, enquanto o rebocador continuava a sua marcha. Deitámo-nos à beira da jangada a ver se pescávamos a ponta submersa do cabo de reboque, enquanto os iates seguiam para a frente tentando fazer parar o rebocador. Alforrecas picantes e pegajosas, do tamanho de uma cuba de barrela, subiam e desciam com a água ao longo da jangada, cobrindo todas as cordas de uma espessa e escorregadia camada de gelatina. Quando a jangada timbrava para um lado, debruçávamo-nos o mais possível sobre a água até os nossos dedos tocarem o cabo viscoso. Quando a jangada rolava para o lado oposto, metíamos a cabeça bem dentro do mar, enquanto

as nossas costas eram banhadas pela água salgada e por elas escorregavam enormes alforrecas. Cuspíamos, praguejando, e arrancávamos dos cabelos fibras de alforreca, mas quando o rebocador voltou, a ponta do cabo já tinha sido fisgada, estando apta para o conserto. Quase prestes a lançá-la para bordo do rebocador, vogámos de repente sob a popa inclinada da embarcação, em risco de sermos esmagados contra ela pela pressão da água. Largámos tudo quando tínhamos nas mãos e tratámos de nos pôr I00 a salvo, agarrando em pontas de bambu e em remos antes que fosse tarde demais. Mas não atinávamos com uma manobra conveniente, porque quando estávamos no espaço formado por duas ondas, não conseguíamos atingir o teto de ferro que pairava sobre nós, e quando a água de novo se ergueu, o Guardian Rios inclinou totalmente a popa para dentro da água e ter-nos-ia esmagado, sem remédio, se a sucção nos arrastasse para o vórtice. Lá em cima, no convés do rebocador, houve uma correria e a grita era incessante; por fim, a hélice começou a girar justamente ao nosso lado, ajudando-nos, no derradeiro instante, a livrar-nos do ressalto de água sob o Guardian Rios. A proa da jangada recebera alguns golpes rudes fazendo-se um pouco recurva nos cabos de atracar, mas esse ligeiro defeito gradualmente se rectificou por si mesmo. - Quando uma coisa principia de uma maneira tão infernal, é sinal que terminará bem, disse Herman. Se ao menos parasse este reboque! Acabará reduzindo a jangada a pedaços. Mas o reboque continuou a noite toda com pouca velocidade e apenas com um ou dois pequenos embaraços. Os iates tinham-se despedido havia muito tempo, e o último farol desaparecera. Apenas passava por nós, nas trevas, uma ou outra luz de navio. Dividimos a noite em quartos de vigília para termos de olho o cabo de reboque, e todos fizemos uma boa soneca. Quando o dia seguinte começou a alvorecer, denso nevoeiro cobria a costa do Peru, enquanto tínhamos sobre nós, para as partes do Oeste, um brilhante céu azul. O mar estendia-se num longo e tranquilo marulho, coberto de pequenas cristas brancas, e roupas, toros e tudo aquilo em que púnhamos a mão surgia-nos ensopado de orvalho. Estava

101 quase glacial, e a água verde que nos cercava, assombrosamente fria para 12º Sul. Era a corrente de Humboldt que carreava do Antárctico as suas frias massas de água e as arrastava para o Norte, ao longo de toda a costa do Peru, até se desviarem para Oeste e ainda além, atravessando o oceano exactamente debaixo do Equador. Foi aqui que Pizarro, Zarate e outros antigos espanhóis deram, pela primeira vez, com as colossais jangadas à vela dos índios incas, as quais costumavam navegar 50 a 60 milhas marítimas para a pesca de atuns e dourados justamente na corrente de Humboldt. Durante o dia todo, havia ali um vento vindo da praia, mas à noite o vento que ia até à praia alcançava até o mesmo ponto, ajudando-os a voltar para casa se o desejassem. O rebocador permanecia perto, e tivemos o cuidado de pôr a jangada de capa, bem longe da proa daquele, enquanto lançávamos à água o nosso pequeno bote de borracha pouco cheio de ar. Ele boiava sobre as ondas como uma bola e bailava comigo, com Erik e Bengt, até que agarrámos a escada de corda do Guardian Rios e trepámos para bordo. Tendo Bengt como intérprete, puderam-nos mostrar bem no mapa a posição em que nos achávamos. Estávamos a 50 milhas da terra, numa direcção Noroeste a partir de Callao, e tínhamos de acender luzes nas primeiras noites para não sermos afundados por navios costeiros. No alto mar, não havia um único navio, pois não existia nenhuma rota marítima naquela parte do Pacífico. Despedimo-nos cerimoniosamente de todos e muitos olhares estranhos nos seguiram, quando descíamos para o pequeno bote, onde, aos cambaleios, nos fomos dirigindo entre as ondas até a Kon-Tiki. Então soltámos a corda e a jangada ficou de novo sozinha. Trinta e cinco 102 homens a bordo do Guardian Rios, de pé na amurada, acenaram com as mãos enquanto foi possível distinguir os contornos da embarcação. E seis homens sentados nos caixotes, a bordo da jangada, seguiram com os olhos o rebocador enquanto puderam vê-lo. Só depois que a negra coluna de fumo se desfez e sumiu no horizonte foi que abanámos à cabeça e olhámos uns para os outros.

- Adeus, adeus, disse Torstein. Agora, rapazes, é pôr a máquina a trabalhar! Rimo-nos e fomos ver o vento. Havia uma ligeira brisa que tinha virado de Sul para Sudeste. Içámos a verga de bambu com a enorme vela quadrada. Ficou um tanto frouxa, dando à cara de Kon-Tiki uma aparência rugosa, de descontentamento. - O velho não está a gostar, disse Erik. Quando era moço, as brisas corriam mais frescas. - A impressão que se tem é que vamos perdendo terreno, acrescentou Herman que, da proa, atirou ao mar um pedaço de madeira de balsa. - Um, dois, três... trinta e nove, quarenta, quarenta e um. O pedaço de balsa permanecia calmamente na água ao lado da jangada; não tinha ainda chegado a metade do caminho, ao longo da nossa embarcação. - Terá que ir tocando para a frente, disse Torstein com optimismo. - Espero que não iremos derivar à popa com a brisa nocturna, observou Bengt. Foi muito interessante a despedida em Callao, mas eu preferia não ter de receber as boas-vindas de novo. Já agora o pedaço de madeira alcançara a ponta da jangada. Soltámos um «hurrah» e começámos a pôr em ordem e a amarrar todas as coisas que, no último 103 momento, tinham sido atirado para bordo. Bengt instalou um fogareiro «Primus» no fundo de um caixote vazio, e daí a pouco estávamo-nos regalando com cacau quente e biscoitos e fazendo um buraco num coco fresco. As bananas ainda não se achavam bem maduras. - Numa coisa nós estamos bem servidos agora, comentou Erik, risonho. Andava de um lado para outro metido em amplas calças de pele de carneiro e abrigado debaixo de um imenso chapéu indiano, com o papagaio em cima do ombro. - Só há uma coisa de que não gosto, acrescentou. É dessas poucas conhecidas correntes cruzadas, que nos podem atirar sobre os rochedos, ao longo da costa, se permanecermos aqui desta maneira. Examinámos a possibilidade de usar o remo, mas preferimos esperar pelo vento.

E o vento veio. Soprava de Sueste, branda mas firmemente. Em breve a vela se enfunou e arqueou-se para a frente como um peito intumescido, com a cara de Kon-Tiki a rebentar de pugnacidade. E a Kon-Tiki principiou a mover-se. Demos novo «hurrah» e içámos escotas e cordas. O remo de direcção foi introduzido na água e a ordem do serviço de vigia começou a funcionar. Atirámos bolas de papel e cavacos ao mar, na proa, e ficámos à popa com os nossos relógios. - Um, dois, três... dezoito, dezanove... agora! Papel e lascas de madeira passavam pelo remo de direcção e logo ficavam como pérolas num fio, emergindo e desaparecendo no redemoinho das ondas à popa. íamos avançando metro a metro. A Kon-Tiki não sulcava as águas como uma lancha de corrida de bem proporcionada proa. Tosca e larga, pesada e sólida, seguia para a frente patinhando sossegadamente sobre as ondas. Não teve 104 pressa, mas uma vez que resolveu mexer-se, seguiu avante com indomável energia. No momento, a organização do governo da embarcação era o nosso maior problema. A jangada fora construída exactamente como a haviam descrito os espanhóis, mas não existia nenhuma pessoa viva no nosso tempo que nos pudesse ministrar um curso prático, avançado, de como governar uma jangada indígena. O problema tinha sido proficientemente discutido em terra pelos entendidos, mas com escassos resultados. Sabiam justamente o que nós sabíamos, isto é, muito pouco. À proporção que o vento Sueste aumentava em força, era necessário manter a jangada em tal marcha que a vela se enfunasse da parte de popa. Se a jangada virava um lado demais para o vento, a vela crescia de repente também para essa banda, batendo na carga, nos homens e na cabana de bambu, ao passo que a jangada inteira girava completamente, continuando no mesmo curso com a popa para a frente. A luta era árdua: enquanto três homens pelejavam com a vela, os outros três remavam com o comprido remo de governo para pôr na devida posição o bico de proa da jangada de madeira, afastando-o do vento. E logo que o conseguíamos, o piloto devia ter toda a atenção para que o mesmo facto não se repetisse daí a um minuto.

O remo de direcção, de 5,80 m de comprimento, ficava solto entre dois toletes sobre um enorme cepo à ré. Era o mesmo remo de direcção que os nossos amigos nativos tinham usado quando descemos, com a madeira, o rio Palenque, no Equador. O longo pau de mangueira tinha a resistência do aço, mas era tão pesado que iria para o fundo se caísse na água, A sua extremidade terminava numa grande pá de remo de abeto, amarrada com cordas. Era necessária toda a nossa força para manter firme esse 105 comprido remo de direcção quando era batido pelas ondas, e os nossos dedos cansavam-se de agarrá-lo com tanta veemência para girar o pau de tal modo que a pá do remo se conservasse recta sobre a água. Este último problema foi resolvido amarrando-se uma peça transversal no cabo do remo de direcção, de maneira que ficámos dispondo de uma espécie de alavanca para manejar. E, entretanto, o vento aumentou. À tardinha já o vento alísio soprava com toda a força. O resultado foi que o oceano se tornou agitado e roncador, enquanto as águas nos invadiam pela parte de trás. Foi então que percebemos, pela primeira vez, que o mar nos aguardava ali para investir connosco. A situação agora era séria, pois as nossas comunicações estavam cortadas. Ali, no largo oceano, as coisas só correriam bem se as qualidades da jangada de madeira de balsa fossem realmente boas. Sabíamos que dali em diante não teríamos vento que soprasse para a terra nem jeito de voltar atrás. Havíamos entrado nos domínios do legítimo vento alísio, e cada dia nos obrigaria a penetrar sempre mais no mar largo. A única coisa a fazer era seguir avante a todo o pano; se tentássemos voltar atrás, derivaríamos em alto mar e com a popa para a frente. Só havia uma alternativa: navegar ao sabor do vento com a proa voltada para o poente. Era essa, afinal, a meta da nossa viagem: acompanhar o Sol no seu curso, como supúnhamos que Kon-Tiki e os antigos adoradores do Astro-Rei deviam ter feito quando foram postos em fuga do Peru rumo ao mar. Notámos, entre triunfantes e aliviados, que a jangada resistiu, galhardamente, às primeira e ameaçadoras cristas de onda que vinham espumantes na nossa direcção. Ao timoneiro, porém, era impossível

manter firme o remo quando os marulhos avançavam para ele e erguiam o 106 remo dos toletes ou o arremessavam para um lado, imprimindo um rodopio ao timoneiro como se este fosse um pobre acrobata. Nem dois homens ao mesmo tempo conseguiam segurar o remo com firmeza quando os vagalhões se levantavam contra nós, indo quebrar-se atrás do piloto. Tivemos a ideia de passar uma corda desde a pá do remo até cada um dos lados da jangada, è mantendo com outras cordas o remo no seu lugar, entre os toletes, aquele passou a ter limitada liberdade de movimento e a desafiar o furor das águas. ..... Â medida que as cavidades entre as Ondas se tornaram acentuadas, já não havia dúvida de que havíamos entrado na parte mais vertiginosa da corrente de Humboldt. As águas, tal como se apresentavam, pertenciam a determinada corrente, não sendo simplesmente erguidas pelo vento. Em toda a extensão que nos cercava, a água era verde e fria; as recortadas montanhas do Peru tinham desaparecido atrás, no meio de densas massas de nuvens. Quando as trevas caíram sobre o oceano, iniciou-se o nosso primeiro duelo com os elementos. O mar ainda não nos inspirava confiança; era incerto se se mostraria amigo ou inimigo naquela intimidade que havia sido iniciativa nossa. Quando, já completamente envolvidos pelas trevas, ouvimos o motim generalizado do mar em torna de nós, subitamente abafado pelo silvo de uma vaga próxima, e vimos uma crista branca vir, como que às apalpadelas, no nosso rumo, ao nível do telhado da cabina, permanecemos na nossa posição de firmeza e inquietação, esperando sentir a massa de água despenhar-se sobre nós e sobre a jangada. Mas, de cada vez, era a mesma surpresa e o mesmo alívio. A Kon-Tiki calmamente meneava a popa para cima e erguia-se imperturbável, enquanto a massa de água lhe resvalava pelos 107 lados. Então abismávamo-nos de novo no espaço compreendido entre duas ondas, aguardando outro embate1. Muitas vezes os vagalhões vinham aos atropelos, dois ou três cm seguida, com uma longa série de ondas menores nos intervalos. Quando duas ondas grandes se seguiam

uma à outra, muito próximas, a segunda rebentava à ré, porque a primeira ainda estava maltratando no ar a nossa proa. Era, portanto, entre nós, lei invariável que os que se achavam de quarto tivessem cordas em volta da cintura, ficando uma das pontas atada à jangada. Pois não havia ali amuradas. A tarefa do piloto e ajudante era conservar panda a vela oferecendo a nossa popa ao mar e ao vento. Tínhamos amarrado a bússola de um bote velho a um caixote, à ré, de modo que Erik podia registar a nossa derrota e calcular a nossa posição e velocidade. No momento, não sabíamos bem onde nos achávamos, porque o céu estava coberto e o horizonte era um grande caos de vagalhões. Dois homens a um tempo faziam o quarto de direcção e, um ao lado do outro, tinham de consumir toda a sua energia na luta com o remo saltador, enquanto os outros tratavam de dormir um pouco no interior da cabana de bambu. Quando se avizinhava uma onda verdadeiramente grande, os homens do leme deixavam o governo às cordas e de um pulo agarravam-se a um forte bambu do telhado da cabina, enquanto as massas de água os acometiam em cheio por detrás, desaparecendo entre os troncos ou pelo lado da jangada. Então tinham de se atirar novamente ao remo antes que a jangada fizesse uma reviravolta e a vela ficasse batendo a esmo. Pois se as ondas penetrassem na jangada por determinado ângulo, facilmente invadiriam a Cabina de bambu. Quando entravam a bordo pela popa, imediatamente desapareciam entre os toros mais compridos 108 dos e quando muito e ainda assim raramente, alcançavam a parede da cabina. Os troncos redondos da parte posterior deixavam a água passar como por entre os dentes de um garfo. A vantagem de uma jangada era esta, evidentemente: quanto mais buracos, melhor; pelas fendas do chão da nossa embarcação a água saía, mas nunca entrava. Cerca da meia-noite, passou na direcção Norte uma luz de navio. Às três horas, passou outra no mesmo rumo. Acenámos com a nossa lampadazinha de parafina e fizemos repetidos sinais com um maçarico eléctrico, mas não nos viram, e as luzes passaram lentamente, sumindo-se na treva. Mal podiam adivinhar os que iam a bordo que uma real e viva jangada inca estava bem perto deles, arfando entre as ondas. E, do nosso lado, mal podíamos adivinhar, nós, tripulantes da

jangada, que esse era o último navio e o derradeiro vestígio de homens que veríamos até atingirmos a outra banda do oceano. Agarrámo-nos como moscas, dois a dois, no escuro, ao remo de direcção e sentimos a água fresca do mar caindo sobre os nossos cabelos enquanto o remo nos magoava até nos deixar extenuados, ficando as nossas mãos duras com o esforço de nele se apoiarem. Aqueles primeiros dias e noites foram uma boa escola; converteram marujos bisonhos em embarcadiços experimentados. Durante as primeiras vinte e quatro horas, cada homem, em ininterrupta sucessão, teve duas horas de leme e três de descanso. Dispusemos a escala de tal maneira que, a cada hora, um homem repousado rendesse um dos dois timoneiros que tivesse estado ao leme duas horas. Cada músculo do corpo era repuxado ao máximo, durante o quarto, para estar à altura de dirigir a embarcação. Quando nos sentíamos fatigados de empurrar o remo, mudávamos de lado e puxávamos; e quando braços e 109 peito nos doíam com a pressão, virávamos as costas, enquanto o remo quase nos convertia numa pasta insensibilizada, tanto na frente como atrás. Quando afinal o substituto chegava, arrastávamo-nos meio aturdidos, para dentro da cabina de bambu, ligávamos as pernas com uma corda e adormecíamos tendo pegada ao corpo a nossa roupa impregnada de sal, sem pensar em nos enfiarmos nos nossos sacoscama. Quase no mesmo instante verificava-se um brusco puxão na corda; três horas haviam decorrido, e tinha a gente de sair de novo para render um dos dois homens no remo da direcção. A noite seguinte foi ainda pior; o mar encapelou-se mais, em vez de se acalmar. Duas horas a fio de luta com o remo de direcção eram demasiado longas; um homem não prestava para muita coisa na segunda metade do seu quarto, e o mar levava-nos a melhor, atirandonos a um lado e a outro, enquanto a água invadia a embarcação. Então modificámos o quarto para uma hora ao leme e uma hora e meia de descanso. Assim as primeiras sessenta horas passaram-se em contínua luta com o pandemónio das ondas que investiam connosco, uma após outra, sem cessar. Ondas altas e ondas baixas, ondas de ponta e ondas redondas, ondas de través e ondas no topo de outras ondas. De nós quem mais sofreu foi Knut. Dispensámo-lo do quarto de governo, mas

em compensação teve de se sacrificar a Neptuno e curtiu silenciosas agonias num cauto da cabina. O papagaio estava sentado no seu poleiro, mal-humorado. e, dependurado pelo bico, batia as asas cada vez que a jangada dava um inesperado pinote e as ondas, vindo por detrás, invadiam a jangada até a parede. A Kon-Tiki não balouçava excessivamente Aguentava o mar com mais firme/a do que qualquer bote das mesmas dimensões, mas era impossível predizer 110 de que jeito a coberta se inclinaria na vez seguinte, e nunca aprendemos a arte de andar com facilidade pela jangada, porquanto ela jogava tanto quanto galeava. Na terceira noite, o mar aquietou-se um pouco, embora o vento ainda soprasse com força. Por volta das quatro horas, um inesperado perseguidor veio escachoando através da escuridão e deu em cheio na jangada antes que os timoneiros reparassem no que estava sucedendo. A vela bateu na cabina de bambu, ameaçando destroçar não somente a cabina mas a si própria. Todos os homens tiveram de correr à coberta e pôr em segurança a carga e alar escotas e estais na esperança de fazer a jangada volver à sua rota, de modo que a vela pudesse enfunar-se e curvar-se para diante pacificamente. A jangada, porém, não queria pôrse direita. Queria cair à ré e pronto! O único resultado de todo o nosso puxar e arrastar foi que dois homens quase caíram no mar, colhidos pela vela no escuro. O mar tinha-se evidentemente tornado mais calmo. Aturdidos e machucados, com as palmas das mãos esfoladas e olhos de sono, quase não prestávamos para nada. Era melhor economizar o que nos restava para o caso de nos desafiar o tempo para alguma prova ainda mais dura. Ninguém podia saber o que nos aguardava. Por isso, ferrámos a vela e enrolámo-la na verga de bambu. A Kon-Tiki ficou de través sobre as águas, portando-se como se fosse de cortiça. Tudo a bordo estava bem arrumado e nós arrastámo-nos para a pequena cabina de bambu, caímos num só monte, e dormimos como pedra em poço. Mal sabíamos que tínhamos pelejado no ponto de mais difícil direcção da viagem. Só depois de estarmos, há muito, no mar alto, é que descobrimos a simples e engenhosa

111 maneira com que os incas governavam uma jangada. Dormimos até dia alto e despertámos apenas quando o papagaio se pôs a assobiar e a chamar alguém indo de um lado para outro no seu poleiro. Lá fora o mar estava encarneirado, mas não tão bravo e confuso como na véspera. A primeira coisa que vimos foi que o sol batia na coberta de bambu amarelo dando ao oceano, em redor de nós, um aspecto lindo. Que importava que o mar rugisse e se encapelasse uma vez que nos deixasse em paz na jangada? Que importava que se erguesse à nossa frente se sabíamos que, num segundo, a jangada subiria ao topo e, semelhante a um cilindro compressor, alisaria a crista espumante, enquanto a poderosa e ameaçadora montanha de água apenas nos levantava no ar e rolava mugindo e gorgolejando sob os toros? Os velhos mestres vindos do Peru sabiam o que faziam quando rejeitavam uma casca oca que poderia ficar cheia de água, ou uma embarcação qualquer que não soubesse fazer face às ondas, uma por uma. Um cilindro compressor de cortiça, eis a que equivalia a jangada de madeira de balsa. Erik tomou a nossa posição ao meio-dia e verificou que, além da rota efectuada com o impulso da vela, tínhamos feito enorme desvio para o Norte, ao longo da costa. Estávamos ainda na corrente de Humboldt, exactamente a 100 milhas da terra. A grande questão era saber se escaparíamos dos traiçoeiros redemoinhos ao Sul das Galápagos. Isto podia ter consequências fatais, pois, uma vez lá, podíamos ser arrastados em todos os sentidos por fortes correntes oceânicas que se dirigiam à costa da América Central. Se, porém, as coisas corressem segundo os nossos cálculos, desviar-nos-íamos para Oeste, através do mar, com a corrente principal, antes de chegarmos ao ponto 112 Norte onde se achavam as ilhas Galápagos. O vento soprava ainda directamente de Sueste. Içámos a vela. virando a popa da jangada para mar mais picado, e continuámos nos nossos quartos de direcção. Knut já se restabelecera dos tormentos de enjoo e, juntamente com Torstein, trepara ao tope do mastro, onde ambos faziam experiências com misteriosas antenas do rádio que suspendiam tanto por balão como por papagaio. De repente, do canto da cabina onde se achava

instalado o rádio, um deles berrou que podia ouvir a estação naval de Lima chamar-nos. Disseram que o avião do embaixador americano havia partido da costa para nos dar um último adeus e ver o aspecto que apresentávamos no mar. Pouco depois obtivemos ligação directa com o rádio-operador do avião e então mantivemos uma conversa, que absolutamente não esperávamos, com a secretária da expedição, Gerd Vold, que viajava no mesmo aeroplano. Demos a nossa posição com toda a exactidão possível e durante horas enviámos sinais indicadores da direcção. E a voz. no éter tornava-se ora mais forte ora mais fraca, enquanto o ARMY-119 rodava perto ou longe e nos procurava. Mas não ouvimos o ronco dos motores e não vimos o aeroplano. Não era coisa fácil encontrar a pequena jangada na cavidade das ondas, e a nossa visão era estritamente limitada. Por fim, o avião teve de desistir e voltou à costa. Foi a última vez que alguém tentou sair em nossa busca. O mar andou revolto nos dias que se seguiram, mas as ondas vinham de Sueste, silvando, com intervalos iguais umas das outras, e o governo da jangada correu mais suave. Enfrentámos o mar e o vento da quadra de popa, de modo que o piloto estava menos exposto aos vagalhões e a jangada seguia com mais firmeza e sem 113 jogar tanto. Notámos, ansiosos, que o vento alísio de Sueste e a corrente de Humboldt estavam dia a dia mandando-nos para uma rota que nos conduziria às correntes contrárias em torno das ilhas Galápagos. E dirigíamo-nos para Noroeste com tanta rapidez que, naqueles dias, a nossa média diária era 55-60 milhas, com um máximo de 71. - Tudo bem nas Galápagos? perguntou Knut um dia, cautelosamente, olhando para o nosso mapa, onde estava marcado um fio de pérolas indicando as nossas posições, parecendo um dedo a apontar, sinistramente, para as malfadadas ilhas Galápagos. - Sei lá, disse eu. Contam que o inca Topas Yupanqui navegou do Equador às Galápagos pouco antes de Colombo, mas nem ele nem outro qualquer se fixou lá porque não .havia água. - Bem, bem, retrucou Knut. Então não queremos ir lá. Pelo menos, espero que não iremos.

Estávamos já tão habituados a ver a dança do oceano em torno de nós que não fizemos caso disto. Que importava se tivéssemos de bailar um pouco com mil toesas de água debaixo de nós, contanto que a jangada estivesse sempre no topo? Neste ponto foi que surgiu outra questão: quanto tempo, de acordo com os nossos cálculos e esperanças, nos podíamos conservar no topo? Era fácil de ver que os toros de balsa absorviam água. A viga transversal posterior era pior que as outras; nela podíamos afundar a ponta inteira do dedo, pois sentíamos a madeira encharcada e o barulho característico causado pela pressão no líquido. Sem dizer nada, parti um pedaço de madeira ensopada e atireio ao mar. Submergiu-se na superfície e lentamente desapareceu nas profundezas. Posteriormente, vi dois ou três companheiros fazerem exactamente 114 a mesma coisa, julgando que ninguém os observava no momento. Estavam a olhar, reverentes, para o pedaço de madeira, todo cercado de água, submergindo-se tranquilamente na água verde. Ao partirmos, havíamos marcado na jangada a linha de flutuação, mas no mar agitado era impossível averiguar o seu calado, porque se agora os toros se achavam acima da água, no momento seguinte estavam profundamente embebidos nela. Se, porém, enterrávamos uma faca na madeira, víamos com alegria que estava seca mais ou menos abaixo da superfície. Calculámos que se a água continuasse a penetrar na madeira na mesma proporção, a jangada flutuaria sob a superfície da água ao tempo em que esperávamos aproximar-nos da terra. Mas tínhamos esperança de que, mais no interior, a seiva operaria como agente impregnador, moderando a absorção. Houve, durante as primeiras semanas, outra ligeira ameaça pendente sobre os nossos espíritos. Eram as cordas. Durante o dia estávamos tão ocupados que pouco pensávamos no assunto, mas quando as trevas caíam e nos metíamos na cama sobre o chão da cabina, tínhamos mais tempo para pensar, sentir e escutar. Deitados nos nossos colchões de palha, podíamos sentir o entrançado sobre que jazíamos arfando ritmicamente com os toros de madeira. Além dos movimentos da própria jangada, todos os nove troncos se moviam reciprocamente. Quando um subia, outro descia com ligeira arfagem.

Não se moviam muito, mas o bastante para no darem a sensação de estarmos deitados sobre o dorso de um enorme animal a respirar e preferíamos alongarmo-nos sobre um toro no sentido longitudinal. As duas primeiras noites foram as piores, mas então estávamos muito cansados para nos preocuparmos com o caso. Mais tarde, as cordas incharam 115 um pouco com a água e conservaram mais quietos os nove troncos. Mas, apesar disto, não havia nunca a bordo uma superfície plana que se mantivesse perfeitamente quieta em relação às outras coisas. Como a base se movia para cima, para baixo e para o lado em cada junta, tudo o mais se movia com ela. A coberta de bambu, o duplo mastro, as quatro paredes trançadas da cabana e o telhado de taquara, com as folhas por cima, tudo estava amarrado com cordas e se torcia e levantava em direcções opostas. A coisa era quase imperceptível, mas suficientemente clara. Se um canto subia, o outro descia, e se uma metade do telhado trazia todas as suas ripas para a frente, a outra metade arrastava as suas ripas para trás. E se olhávamos para fora pela parede aberta, havia ainda mais movimento e mais vida, porque lá o céu movia-se mansamente num»círculo enquanto que o mar pulava alto na direcção dele. As cordas suportavam a pressão toda. Podíamos ouvidas a noite inteira gemendo e chiando, friccionando-se e rangendo. Era como um só coro de lamentações em redor de nós no escuro, tendo cada corda sua própria nota conforme a grossura e a tensão. Todas as manhãs procedíamos a um minucioso exame das cordas. íamos até ao ponto de nos dependurarmos, de cabeça na água, sobre a beira da jangada, enquanto dois homens nos seguravam com força pelos tornozelos, para ver se não havia novidade com as cordas que estavam no fundo da embarcação. A verdade é que as cordas aguentaram. Duas semanas, haviam dito os marujos. Depois, todas as cordas estariam gastas. Mas, a despeito de opiniões tão unânimes, não tínhamos até então encontrado o menor sinal de desgaste. Só depois de nos acharmos, há muito, no mar, demos com

116 a solução. É que a madeira de balsa era tão macia que as cordas penetravam lentamente na madeira e, em vez de serem gastas pelos troncos, eram por eles protegidas. Mais ou menos depois de uma semana, o mar tornou-se mais calmo, e notámos que a água tinha passado de verde a azul. Principiámos a mover-nos para Oeste-Noroeste em vez de Noroeste, e tomámos isto como o primeiro débil sinal de que havíamos saído da corrente costeira e tivemos alguma esperança de estarmos a ser levados para o mar alto. Logo no primeiro dia em que ficámos sós no mar, reparámos nuns peixes que rodeavam a jangada, mas estávamos muito atarefados com o governo da embarcação para pensarmos em pescaria. No segundo dia. deparou-se-nos. um cardume de sardinhas e, logo depois, um tubarão azul de 2,40 m veio rolar de barriga branca para cima, enquanto roçava na popa alagada da embarcação, onde Herman e Bengt estavam de pé e descalços dirigindo. Andou-nos rodeando por algum tempo, mas desapareceu quando, resolvidos a agir, pegámos no arpão. No dia seguinte fomos visitados por atuns, bonitos e dourados, e quando um grande peixe-voador caiu na jangada, empregámo-lo como isco e imediatamente puxámos para dentro dois grossos dourados, respectivamente de 9 kg e 16 kg cada um. Serviram-nos de alimento durante vários dias. No quarto de direcção, podíamos ver muitos peixes que nem conhecíamos, e um dia topámos com um cardume de porcos do mar que parecia não ter fim. Era uma quantidade imensa de dorsos negros a mexer-se, amontoados e muito unidos ao lado da jangada que, aqui e ali, surgiam por todo o mar, na maior distância que podíamos alcançar do topo do mastro. E quanto mais nos aproximávamos do Equador e nos distanciávamos da costa, 117 mais comuns se tornavam os peixes-voadores. Quando, por fim, penetrámos na água azul, onde o mar rolava majestosamente, brilhante de sol e manso, encrespado por lufadas de vento, vimo-los cintilar como uma chuva de projécteis, arrojando-se da água e voando em linha recta até que a sua força voadora se esgotasse. Então desapareciam abaixo da superfície.

Se, à noite, púnhamos do lado de fora a lampadazinha de parafina, os peixes-voadores eram atraídos pela luz e, grandes e pequenos, vinham cair sobre a jangada. Muitas vezes iam bater na cabina de bambu ou na vela e tombavam ao desamparo no convés. Incapazes de ganhar uma saída qualquer para a água, ficavam deitados onde caíam, a debater-se desesperadamente, como arenques de olhos grandes e de longas barbatanas peitorais. Acontecia algumas vezes ouvirmos um homem engrolando, raivoso, uma algaravia qualquer lá no convés, quando um frio peixe-voador surgia inesperadamente e, com o corpo em boa velocidade, lhe dava uma bofetada na casa. Vinham sempre bem rápidos e com o focinho para a frente. Quando apanhavam alguém em cheio na cara, deixavam-lha a arder. Mas o ofendido não tardava em perdoar o ataque gratuito, porque aquelas paragens marítimas, com todos os seus contras, não deixavam de ter encantos, brindando os que por ali vagueavam com deliciosos peixes que chegavam até pelo ar. Costumávamos frigi-los para o almoço, e não sabemos bem se por causa do peixe, do cozinheiro ou do nosso apetite, o certo é que, depois de escamados, faziam-nos lembrar trutazinhas fritas. A primeira obrigação do cozinheiro, ao levantar-se pela manhã, era sair para a coberta e recolher todo o peixe-voador que, no correr da noite, tivesse caído a bordo. Em geral, havia meia dúzia ou mais, e uma manhã 118 encontrámos sobre a jangada vinte e seis peixes-voadores gordos. Knut ficou bastante aborrecido porque certa vez, quando lidava com a frigideira, um peixe-voador foi bater-lhe na mão em vez de ir cair directamente na gordura quente. A nossa intimidade com o mar só foi verdadeiramente compreendida por Torstein quando uma manhã, ao acordar, encontrou uma sardinha no travesseiro. Havia tão pouco espaço na cabina que Torstein estava deitado com a cabeça na soleira da porta, e se alguém, ao sair de noite, sem querer lhe pisava -o rosto, mordia-o na perna. Pegou a sardinha pelo rabo e, de uma maneira inteligente, segredou-lhe que todas as sardinhas gozavam da sua simpatia. Conscienciosamente, encolhemos as pernas para que, na noite seguinte, Torstein tivesse mais espaço. Mas então, sucedeu qualquer coisa que fez com que Torstein fosse

procurar, para dormir, um lugar no alto de todos os trens de cozinha, no canto reservado ao rádio. Isto aconteceu algumas noites mais tarde. Estava escuro como breu, e Torstein havia colocado a lâmpada de parafina perto da cabeça. Por volta das quatro horas, acordou com a lâmpada revirada e uma coisa fria e húmida a roçar-lhe pelas orelhas. «Peixe-voador», pensou, tateando no escuro a ver se o agarrava para o atirar longe. Pegou assim numa coisa comprida e molhada que se agitava como uma cobra, mas largou-a ao perceber que as mãos lhe ardiam como se estivessem queimando. O visitante invisível enroscou-se e escapuliu-se, indo passar por cima de Herman, enquanto Torstein procurava acender a lâmpada. Herman também acordou assustado, e isto pondo-me igualmente desperto, lembrou-me o polvo que, 119 naquelas águas, surgia à noite. Depois que conseguimos acender a lâmpada, Herman, triunfante, estava sentado, segurando o pescoço de um peixe comprido e fino que se retorcia nas suas mãos como uma enguia. Tinha uns 93 centímetros de comprimento, era delgado como uma serpente, possuía feios olhos pretos e comprido focinho com uma voraz mandíbula cheia de dentes longos e agudos. Os dentes eram afiados como navalhas e podiam dobrar-se até o céu da boca para dar passagem ao que ele engolisse. Sob a pressão dos dedos de Herman, um peixe branco de olhos grandes, com cerca de 20 cm de comprimento, foi subitamente expelido do estômago e da boca do peixe rapace, sendo logo seguido de outro semelhante. Eram claramente duas «vítimas» que habitavam as grandes profundidades, e estavam bastante maltratados pelos dentes do peixe-cobra. A pele fina do peixecobra era de um azul violáceo nas costas e de um azul de, aço por baixo e foi-se descamando toda quando o agarrámos. Bengt também acordara afinal com o barulho, e assim aproximámos do nariz dele a lâmpada e o comprido peixe. Estremunhado, sentou-se no seu saco de dormir e proclamou, com solenidade: - Não, peixe assim não existe. E, virando-se pacatamente para o lado, tornou a adormecer. Bengt não andava muito longe da verdade. Mais tarde verificou-se que nós seis sentados, em redor da lâmpada, na cabina de bambu, fomos

os primeiros homens que vimos tal peixe vivo. Apenas o esqueleto de um peixe como esse tinha sido achado, algumas vezes, na costa tia América do Sul e nas ilhas Galápagos; os ictiólogos chamaram-lhe Gempylus ou cavalinha-serpente e supunham 120 que vivia no fundo do mar, a grande profundidade, porque ninguém jamais o vira vivo. Se, porém, vivia a grande profundidade, devia ser de dia, quando o sol lhe cegava os enormes olhos, porquanto, em noites escuras, o Gempylus andava bem à superfície do mar; nós na jangada tivemos experiência disso. Uma semana depois do raro peixe vir parar ao saco-cama de Torstein, tivemos outra visita. Eram também quatro horas da manhã e a lua nova tinha desaparecido, de maneira que estava escuro, mas as estrelas brilhavam no firmamento. A jangada ia sendo dirigida com facilidade, e quando o meu quarto terminou, dei uma volta pela beirada da embarcação para ver se tudo estava em ordem para o novo quarto. Trazia uma corda em volta da cintura, como o vigia sempre tinha, e, com a lâmpada de parafina na mão, andava cuidadosamente ao longo do tronco extremo para evitar o mastro. O tronco estava húmido e escorregadio, e fiquei furioso quando alguém agarrou, de surpresa, a corda atrás de mim e puxou por ela até eu quase perder o equilíbrio. Voltei-me enraivecido com a lanterna, mas não vi por ali nem viva alma. Senti novo puxão na corda e vi uma coisa brilhante deitada na coberta, a retorcer-se. Era um novo Gempylus, e desta vez enterrara os dentes na corda com tanta vontade que vários deles se quebraram antes que eu pudesse soltá-la. Provavelmente, o clarão da lanterna batera ao longo da corda branca, e o nosso visitante das profundezas do oceano tinha-a agarrado na esperança de, com um salto para cima, abocanhar mais um pitéu comprido e gostoso. Acabou os seus dias num frasco de formalina. O mar encerra muitas surpresas para quem tem o chão quase ao nível da superfície oceânica e vai vogando 121 devagar e sem fazer barulho. Um homem, dado ao desporto, que se embrenhe pelas matas, na volta pode dizer que não viu nada de

especial. Outro que se sentou num tronco de árvore e se dispôs a esperar, muitas vezes terá percebido, entre o estalido das folhas secas e o ramalhar da folhagem, uns olhos curiosos que espreitam cautelosamente. O mesmo se passa no mar. Nós geralmente sulcamos as ondas com máquinas roncadoras e vaivéns de êmbolos, com a água a espumar em roda das nossas proas. Depois regressamos e vimos dizer que não há nada que ver no alto mar. Não se passava dia sem que, enquanto íamos flutuando sobre a superfície do oceano, não fôssemos visitados por hóspedes curiosos que se debatiam e rabeavam em torno de nós, e alguns deles, tais como dourados e pilotos, se familiarizaram tanto connosco que acompanhavam a jangada através do mar e ficavam em torno de nós, dia e noite. Quando era já noite fechada e as estrelas cintilavam no escuro céu tropical, a fosforescência espraiava-se à nossa volta em competição com as estrelas, e cada plâncton resplandecente semelhava tão vividamente carvões redondos que nós, sem querer, encolhíamos as pernas nuas quando, arremessadas pela água, as refulgentes bolas vinham rolar aos nossos pés na popa da jangada. Quando as apanhávamos, víamos que eram camarõezinhos de certa espécie, notáveis pelo seu vivo fulgor. Em noites tais, até às vezes nos assustávamos, quando dois olhos redondos, rutilantes, subitamente surdiam do mar bem ao lado da jangada e nos fitavam com um hipnótico olhar imobilizado. Muitas vezes eram lulas enormes que apareciam e boiavam à flor da água, com seus diabólicos olhos verdes, brilhando no escuro como fósforos incandescentes. 122 Mas outras vezes eram os olhos rútilos de peixes dos abismos oceânicos que só de noite vinham à tona de água e se deixavam ficar a fitar, fascinados pela luz bruxuleando que caminhava diante deles. Em várias ocasiões, quando o mar estava calmo, a água escura que rodeava a jangada aparecia, de repente, coalhada de cabeças redondas de sessenta e noventa centímetros de diâmetro, que jaziam ali imóveis, fitando-nos com grandes olhos brilhantes. Em outras noites, bolas de luz de mais de noventa centímetros de diâmetro eram visíveis dentro da

água, fulgindo em intervalos regulares como luzes eléctricas acesas durante um momento. Pouco a pouco, fomo-nos acostumando a ter esses animais submarinos debaixo do soalho, mas apesar disso surpreendíamo-nos cada vez que aparecia um novo espécime. Por volta das duas horas de uma noite nublada, em que o homem do leme tinha dificuldade de distinguir a água escura do céu negro, divisou uma luz frouxa na água que, lentamente, tomou a forma de um grande animal. Era impossível dizer se se tratava de plâncton a brilhar-lhe em cima do corpo ou se o próprio animal tinha superfície fosforescente, mas o bruxuleio dentro da água dava ao estranho ser contornos obscuros e vagos. Ora se apresentava arredondado, ora oval ou triangular, e, de repente, separou-se em duas partes que nadavam para um lado e para outro debaixo da jangada, uma independente da outra. Finalmente havia três destes grandes fantasmas fulgentes a vagar em círculos lentos por baixo de nós. Eram verdadeiros monstros, porquanto só as partes visíveis tinham uns nove metros de comprimento, e rapidamente nos reunimos todos no convés para acompanhar, de perto, aquela dança fantástica, que foi continuando, horas a fio, seguindo a derrota da jangada. 123 Misteriosos e calados, os nossos refulgentes companheiros conservavam uma boa rota abaixo da superfície, as mais das vezes do lado de estibordo, onde estava a luz, mas frequentemente bem debaixo da jangada ou surgindo no costado de bombordo. A luz frouxa que se via sobre os seus dorsos mostrava serem aqueles animais maiores que elefantes. Mas não eram baleias porque nunca vinham à tona para respirar. Seriam gigantescas arraias que mudavam de forma quando se voltavam sobre o lado? Não davam nenhuma importância ao facto de baixarmos a luz até a superfície da água para atraí-los ao alto, a fim de vermos que espécie de animais eram. E, como todos os duendes e fantasmas que se prezam, sumiram-se nos abismos com os primeiros alvores da manhã. Nunca tivemos cabal explicação da visita nocturna dos três monstros luminosos, a não ser que a solução tenha sido dada por outra visita que recebemos, dia e meio mais tarde, em pleno esplendor meridiano. Estávamos a 24 de Maio e vogávamos num mar calmo, exactamente a

95o Oeste por 7° Sul. Era quase meio-dia e acabávamos de deitar à água as tripas de dois grandes dourados que tínhamos pescado de manhã cedo. Eu dava um refrescante mergulho junto à proa, deitado na água, com os olhos bem atentos na extensão que me rodeava e preso à ponta de uma corda, quando avistei um grosso peixe pardo, de 1,80 m de comprimento, que vinha fendendo na minha direcção a água cristalina do mar. De um pulo veloz, galguei a beira da jangada e senteime no sol quente, a olhar para o peixe que passava tranquilamente, quando ouvi um formidável berro de Knut, que estava sentado à ré por detrás da cabina de bambu. Gritou «Tubarão!» até a voz rematar numa falsete, e como quase diariamente víamos, sem tamanho estardalhaço, 124 tubarões nadando ao lado da jangada, compreendemos que aquele devia ser um novo espécime e reunimo-nos todos na popa para auxiliar Knut. Este estivera ali de cócoras, a lavar um calção na corrente, e levantando os olhos por um momento, cravou-os directamente na carantonha maior e mais horrenda que qualquer de nós já tinha visto em dias de sua vida. Era a cabeça de um verdadeiro monstro marinho, tão descomunal e horroroso que o próprio Neptuno, surdindo com o seu tridente dos abismos do oceano, não nos faria impressão maior. A cabeça era larga e chata como a de uma rã, com dois olhinhos de cada lado e uma mandíbula de sapo, de 1,20 m ou 1,50 m de largura, e com longas franjas a penderem-lhe dos cantos da boca. Atrás da cabeça, estendia-se um enorme corpo terminando em comprido e fino rabo com uma pontuda barbatana caudal erecta, a provar que aquele monstro marinho não era nenhuma espécie de baleia. Debaixo da água, o corpo parecia escuro, mas tanto a cabeça como o corpo eram profusamente cobertos de pequenas malhas brancas. O monstro vinha com perfeita calma, nadando preguiçosamente atrás de nós da parte da popa. Arreganhava os dentes como um cão de fila e zurzia brandamente com a cauda. A grande e redonda barbatana dorsal ressaía claramente da água, o mesmo acontecendo algumas vezes com a barbatana caudal, e quando o animal se achava no espaço formado por duas ondas, a água escorria-lhe pelo vasto dorso como se estivesse a lavar um recife submerso. Em frente às imensas mandíbulas, nadava uma verdadeira

chusma de pilotos zebrados, formando como que um leque, e grandes remoras e outros parasitas, firmemente agarrados ao corpanzil, viajavam com ele pela água dentro, de modo que aquilo parecia uma curiosa 125 colecção zoológica apinhada ao redor de urna coisa que se assemelhava a um rochedo flutuante. Um dourado de uns 11 kg, ligado a seis dos nossos maiores anzóis, estava dependurado por detrás da jangada para servir de engodo a tubarões, e um cardume de pilotos passou por ali como uma bala, cheirou o dourado sem tocar-lhe, e depois correu de volta a seu senhor e mestre, o Rei do Mar. Como se fora um monstro mecânico, pôs o seu maquinismo a funcionar e avizinhou-se calmamente do dourado que ali estava, qual misérrima ninharia, diante de suas mandíbulas. Tratámos de puxar o dourado para dentro, e o monstro marinho foi-o seguindo lentamente até um lado da jangada. Não abriu a boca, mas apenas deixou o dourado bater contra ela, como se não valesse a pena escancarar a porta para tão insignificante migalha. Quando o gigante chegou muito perto da jangada, raspou o dorso no pesado remo de direcção, que no momento se erguia fora da água, dando-nos isto ampla oportunidade para examinarmos o monstro bem de perto, tão de perto que cuidei havermos todos enlouquecido, pois quase estourámos de tanto rir, soltando, ao mesmo tempo, em altos berros exclamações de legítimo estupor ante o espectáculo fantástico que presenciávamos. O próprio Walt Disney, com toda a força de sua imaginação, não poderia criar um monstro marinho „ mais horripilante do que aquele que, assim tão subitamente, estava ali com as suas terríveis mandíbulas ao lado da nossa jangada. O monstro era um tubarão-gigante, o maior tubarão e o maior peixe hoje conhecido no mundo. É extremamente raro, mas espécimes dispersos são observados aqui e ali nos mares tropicais. O tubarão-gigante tem, em média, 15 m de comprimento, e, segundo os zoólogos, pesa 126 15 toneladas. Dizem que os grandes espécimes podem atingir 20 m de comprimento, e certa cria que foi arpoada, tinha um fígado que pesava

272 kg e uma série de três mil dentes em cada uma das imensas mandíbulas. O monstro era tão grande que, quando começou a nadar descrevendo círculos cm redor de nós e sob a jangada, a sua cabeça podia ser vista de um lado enquanto a cauda inteira avultava do outro. E pareceu tão grotesco, inerte e bronco, quando visto bem de perto e de frente, que não pudemos deixar de nos rir às gargalhadas, embora compreendêssemos que, se nos atacasse, tinha na cauda força suficiente para reduzir a pedaços tanto os toros de balsa como as cordas. Repetidas vezes descreveu círculos cada vez menores sob a jangada, enquanto nós o que fizemos foi ficar aguardando o que podia acontecer. Ao sair na outra banda, deslizou amavelmente sob o remo de direcção e ergueu-o no ar, ao passo que a pá do remo resvalou por todo o dorso do animal. Estávamos reunidos na jangada com arpões portáteis, prontos para agir, mas pareciam palitos em relação ao descomunal peixe com que tínhamos de lidar. Não havia indício de que o tubarão-gigante pensasse em nos deixar; fazia círculos e mais círculos e seguia-nos como um cão fiel, perto da jangada. Nenhum de nós poderia imaginar que em dias de sua vida fosse ter uma experiência como aquela; a aventura toda, com o monstro marinho a nadar ora atrás da jangada, ora debaixo dela, pareceu-nos tão fora do natural que realmente não nos animávamos a tomá-la a sério. Na verdade, não haveria nem uma hora que o tubarão-gigante fazia os seus giros em torno de nós, mas a visita ia-nos parecendo ter a duração de um dia inteiro. Afinal aquilo afigurou-se demasiado irritante para Erik, 127 que estava de pé a um canto da jangada com um arpão de 2,40 m. E esporeado por gritos imprudentes, levantou o arpão acima da cabeça. Quando o tubarão-gigante veio deslizando vagarosamente na direcção dele e a larga cabeça surgiu bem debaixo do canto da jangada, Erik, com toda a sua força gigantesca, arremessou por entre as pernas o arpão que foi cravar-se profundamente na cartilaginosa cabeça do tubarão-gigante. Decorreram uns dois segundos antes que o gigante percebesse cabalmente do que se tratava. Então, repentinamente, o plácido lorpa transformou-se numa montanha de músculos de aço.

Ouvimos o ruído de um sibilo quando a linha do arpão passou violentamente sobre a beira da jangada, e vimos um cascatear de água quando o monstro ergueu alto a cabeça para logo depois mergulhar nos abismos. Os três homens que se achavam mais perto foram atirados por ali de pernas para o ar, e dois deles ficaram esfolados e queimados pela linha quando ela fendia o ar. A linha grossa, com força suficiente para amarrar um bote, ficou segura no lado da jangada, mas partiu-se no mesmo momento como pedaço de cordel, e uns segundos depois um arpão quebrado surgiu à tona da água a mais de 180 m de distância. Um cardume de assustados pilotos passou, como um raio, pela água, cm desesperadora tentativa de seguir o rasto de seu antigo senhor e mestre, e ficámos longo tempo à espera de que o monstro voltasse como um submarino furioso; mas nunca mais vimos nenhum vestígio do tubarão-gigante. Estávamos agora na corrente equatorial do Sul, movendo-nos em direcção ocidental, a 400 milhas das Galápagos. Já não havia perigo de se vogar para as correntes das Galápagos, e o único contacto que tivemos com esse arquipélago foram umas enormes tartarugas marítimas 128 que vindo, sem dúvida, das ilhas, se haviam extraviado no alto mar. Um dia vimos uma descomunal tartaruga marítima deitada, com uma grande perna acima da superfície da água. Quando a onda se ergueu, divisámos uma frouxa claridade verde, azul e dourada na água sob a tartaruga, e verificámos que se achava empenhada numa luta de vida e de morte com dourados. A peleja era evidentemente desigual: uns doze ou quinze dourados de cabeça grande e de brilhante colorido atacavam o pescoço e as pernas da tartaruga, a quem tentavam vencer pela fadiga, porquanto o animal não podia ficar deitado dias seguidos com a cabeça e os pés encerrados no interior da concha. Quando a tartaruga avistou a jangada, mergulhou e dirigiu-se para o nosso lado, perseguida pelos cintilantes peixes. Avizinhou-se bastante da beira da jangada e já fazia menção de querer trepar na madeira quando nos viu lá, de pé. Sé tivéssemos mais prática, podíamos, sem dificuldade, tê-la apanhado com cordas enquanto a colossal casca remava, pacatamente, ao longo da nossa embarcação. Em vez, porém,

de aproveitarmos a oportunidade, passámo-la a olhar para o animal, e quando fomos atirar o laço, já a gigantesca tartaruga tinha ultrapassado a nossa proa. Lançámos à água o nosso botezinho de borracha, e Herman, Bengt e Torstein partiram em perseguição da tartaruga marítima na redonda casquinha de noz, não muito maior do que aquilo que ia nadando à frente deles. Como despenseiro que era, Bengt viu em espírito uma enfiada de pratos de carne e a mais deliciosa das sopas de tartaruga. Mas quanto mais rapidamente remavam, mais depressa a tartaruga deslizava pela água pouco abaixo da superfície, e não se achavam eles a muito mais de noventa metros da jangada quando, de repente, a tartaruga desapareceu sem deixar vestígio. Tinham, em todo 129 caso, praticado uma boa acção. Pois, quando o botezinho amarelo de borracha vinha de regresso, dançando sobre a água, seguia-o uma luzidia chusma de dourados. Rodearam a nova tartaruga, e os mais atrevidos deram dentadas nas pás dos remos que mergulhavam na água como nadadeiras; entretanto, a pacífica tartaruga escapou ilesa dos seus ignóbeis perseguidores.

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CAPITULO V -- A Meio do Caminho A vida e as experiências de cada dia - Agua potável para quem viaja em jangada - A batata e a cabaça revelam um segredo - Cocos e caranguejos - Johannes - Navegando através de sopa de peixe Plâncton - Fosforescência comestível - As nossas relações com as baleias - Formigas e bernaclas - Peixes amigos - O dourado corno companheiro - Pescando tubarões - A «Kon-Tiki» transformada em monstro marinho - Os pilotos e remoras deixam-nos por causa dos tubarões - Lulas voadoras - Visitantes desconhecidas - O cesto de imersão - Com atum e o bonito no seu próprio elemento - O falso escolho - A quilha corrediça - Uni enigma - A metade do caminho

DECORRERAM semanas. Não vimos sinal algum nem de navio nem de qualquer outra coisa que vogasse, para nos mostrar que havia mais gente no Mundo. O oceano inteiro pertencia-nos e, com todas as portas do horizonte abertas, uma paz real e a verdadeira liberdade desceram do firmamento sobre nós. Era como se o gosto fresco de sal que havia no ar e a imensa pureza azul que nos rodeava nos tivessem lavado o corpo e purificado a alma. A nós, sobre aquela jangada, os grandes problemas do homem civilizado afiguravam-se falsos e ilusórios, meros produtos pervertidos do 132 espírito humano. Só os elementos se revestiam de importância. E os elementos pareciam não fazer caso da pequena jangada. Ou talvez a estivessem aceitando como um objecto natural que não quebrava a harmonia do mar, mas que se adaptava à corrente e ao oceano como a ave e o peixe. Em vez de se mostrarem um inimigo temível, investindo connosco a espumar, os elementos haviam-se tornado num amigo fiel que, com firmeza e segurança, nos ajudava a avançar. Enquanto o vento e as ondas empurravam e impeliam, a corrente oceânica permanecia debaixo de nós e puxava-nos sempre para o rumo da nossa meta. Se um. bote cruzasse connosco no oceano, num dia comum, encontrarnos-ia balouçando, sossegadamente, para cima e para baixo sobre um mar imenso, coberto de ondazinhas de crista branca, enquanto os ventos alísios mantinham virada na direcção da Polinésia a vela alaranjada. Os que iam a bordo teriam visto, à popa da jangada, um homem barbado, moreno e sem roupa, ou desesperadamente a braços com um longo remo de direcção, enquanto arrastava com violência uma"corda emaranhada, ou estando calmo o tempo, sentado num caixote a cochilar no sol quente, e com os dedos dos pés mantendo em posição cómoda o remo de governo. Se o homem não fosse Bengt, este seria visto deitado de barriga para baixo na porta da cabina, com um dos seus setenta e três livros de

sociologia. Bengt tinha ainda sido nomeado despenseiro de bordo, sendo responsável pela fixação das rações diárias. Herman podia ser encontrado em diferentes lugares, a qualquer hora do dia: no tope do mastro com instrumentos meteorológicos; debaixo da jangada com uns óculos de mergulhador, a examinar 133 uma quilha corrediça; ou à sirga no botezinho de borracha, ocupado com balões e curiosos aparelhos de medir. Ele era o nosso chefe técnico e responsável pelas observações meteorológicas e hidrográficas. Knut e Torstein estavam sempre às voltas com as suas baterias húmidas e secas, os seus ferros de soldar e os seus circuitos. Todo o treino que adquirira durante a guerra era exigido para, com os borrifos de espuma e com o orvalho, manter em funcionamento a pequena estação de rádio 30 centímetros acima da superfície da água. Todas as noites se revezavam para enviar ao éter as nossas informações e observações sobre o tempo. Radioamadores captavam-nas e transmitiam-nas ao Instituto Meteorológico de Washington e a outros destinos. Erik, geralmente sentado, consertava velas e enlaçava pontas de cordas, ou entalhava em madeira e desenhava homens barbados e peixes extravagantes. E, ao meio-dia, diariamente, pegava no sextante e trepava a um caixote para olhar para o sol e verificar o que havíamos progredido desde a véspera. Quanto a mim, tinha bastante que fazer com o diário de bordo, a colecção de plâncton, a pesca e as fotografias. Cada homem tinha a sua esfera de responsabilidade e nenhum se intrometia no trabalho alheio. As ocupações piores, como cozinhar e montar guarda ao remo de direcção, eram divididas igualmente entre todos. Cada um tinha de ali ficar duas horas por dia e duas horas por noite. E o serviço de cozinha era distribuído de acordo com uma escala renovada diariamente. Havia poucas leis e regulamentos a bordo, os quais eram reduzidos mais ou menos ao seguinte: o vigia nocturno devia ter uma corda em volta da cintura; a corda salva-vidas tinha um lugar certo; todas as refeições deviam ser feitas fora da cabina; o 134

W.C. situava-se exclusivamente na mais afastada extremidade dos toros, à ré. Se era necessário tomar alguma decisão importante a bordo, reuníamo-nos em assembleia, discutíamos o assunto e decidíamos o que havia a fazer. Um dia ordinário, a bordo da Kon-Tiki, começava com a obrigação, que incumbia ao último vigia nocturno, de infundir um pouco de vida no cozinheiro, sacudindo-o; este, estremunhado, arrastava-se para o convés húmido de orvalho, onde já batia o sol da manhã, e punha-se a recolher os peixes voadores que havia. Em vez de comei os peixes crus, conforme a receita tanto polinésica como peruana, fritávamo-los sobre o fogãozinho «Primus» colocado no fundo do caixote, solidamente amarrado ao convés, do lado externo da porta da cabina. Este caixote era a nossa cozinha. Nele, cm geral, havia abrigo contra os ventos alísios de Sueste que, por via de regra, sopravam do lado oposto ao da nossa cozinha. Somente quando o vento e o mar atiçavam, de modo exagerado, a chama do «Primus», é que esta pegava fogo ao caixote de madeira. Certa vez, o cozinheiro adormeceu e o caixote ficou convertido num braseiro que se comunicou à parede da cabina de bambu. Mas o fogo foi depressa extinto quando o fumo se introduziu na choça, porque, afinal, a bordo da Kon-Tiki não tínhamos de ir muito longe para buscar água. Raramente o cheiro de peixe fritei lograva acordar os roncadores do interior da cabina de bambu e, assim, quase sempre o cozinheiro tinha de espicaçá-los com um garfo ou de cantar o «É hora do rancho», de uma maneira tão desafinada, que ninguém podia suportar o berreiro por muito tempo. Se, ao longo da jangada, não se viam barbatanas de tubarão, o dia principiava 135 com um ligeiro mergulho no Pacífico, seguido da primeira refeição, feita ao ar livre na beira da jangada. A alimentação a bordo não era passível de crítica. A cozinha estava dividida entre duas experiências, uma dedicada à dieta do século XX, outra à do século v, o de Kon-Tiki. Torstein e Bengt foram escolhidos para a primeira dieta e restringiram o seu regime alimentício aos pacotinhos de provisões especiais que havíamos metido num buraco, entre os troncos e a coberta de bambu. Na verdade, peixe e outra

comida marítima nunca tinham sido o seu forte. Passadas poucas semanas, desamarrámos as correias que prendiam a coberta de bambu e tirámos para fora mantimentos frescos, que atámos, solidamente, em frente à cabina. A espessa camada de asfalto por fora do papelão provou ser resistente, ao passo que as latas hermeticamente fechadas que ficaram soltas ao lado dele, estavam estragadas pela penetração da água do mar que constantemente banhava as nossas provisões. Na sua primitiva travessia, Kon-Tiki não tinha asfalto nem latas hermeticamente fechadas; todavia, não lutou com sérios problemas alimentares. Aliás, naquela época, as provisões de boca consistiam naquilo que os homens levavam consigo de terra e no que, durante a viagem, iam apanhando. Pode-se presumir que, quando Kon-Tiki navegou da costa do Peru após a sua derrota junto ao lago Titicaca, teve dois intuitos. Como representante espiritual do Sol, entre gente inteiramente dedicada ao culto desse astro, é muito provável que se aventurasse a enfrentar o oceano para seguir o próprio Sol na sua viagem, com a esperança de achar uma nova região mais pacífica. Outra possibilidade que se lhe oferecia era dirigir as suas jangadas para a costa da América do Sul, com a ideia de desembocar bem acima e fundar novo 136 reino fora do alcance de seus perseguidores. Uma vez livre da perigosa costa, repleta de penedias, e das tribos inimigas ao longo da praia, teria, como se deu connosco, ficado à mercê dos ventos alísios de Sueste e da corrente de Humboldt e, portanto, à discrição dos elementos, pelo que acabou por cair exactamente no mesmo grande semi-círculo rumo ao Poente. Fossem quais fossem os planos desses adoradores do Sol, ao fugirem de sua pátria, certamente se proveram de mantimentos para a viagem. Carne seca, peixe e batata doce constituíam a parte mais importante de seu primitivo regime alimentar. Quando os navegantes em jangada, daqueles tempos, se fizeram ao mar, ao longo da erma costa do Peru, dispunham de amplo abastecimento de água a bordo. Em vez de vasilhas de barro, geralmente usavam enormes cabaças que resistiam aos golpes e choques, embora ainda mais próprias ao uso em jangada fossem as grossas hastes de gigantescos bambus; furavam todos os

nós e introduziam a água por um buraquinho no fundo, que vedavam com um batoque ou com breu ou resina. Trinta ou quarenta dessas grossas hastes de bambu podiam ser amarradas ao longo da jangada sob a coberta, onde ficavam à sombra e se conservavam frias - a uns s6° e na corrente equatorial - graças à água fresca do mar que as estava sempre banhando. Um depósito dessa espécie continha duas vezes a quantidade de água que nós usámos em toda a nossa viagem, e podia ser levada quantidade ainda maior, simplesmente amarrando mais hastes de bambu na água, por baixo da jangada, onde, além de não ocuparem espaço, nada pesavam. Verificámos que, passados dois meses, a água doce começou a alterarse e a ter mau gosto. Mas, nessa altura, 137 já deixáramos bem para trás a primeira área do oceano onde há pouca chuva, e chegáramos a regiões nas quais grandes chuvas equilibram a provisão de água. Distribuíamos, diariamente, para cada homem, um bom litro de água, e raro era o dia cm que a dose se esgotava. Ainda mesmo que os nossos predecessores tivessem partido de terra sem provisões adequadas, enquanto vogavam pelo mar ter-se-iam arranjado com a corrente Humboldt, na qual há peixe em abundância. Não se passou um dia em toda a nossa viagem sem que surgissem peixes em redor da jangada que eram facilmente apanhados. Mal houve um dia sem que ao menos peixes-voadores viessem, espontaneamente, cair a bordo. Sucedeu até que grandes bonitos, comida deliciosa, subiam à jangada com as massas de água que entravam pela popa, e ficavam a rabear na embarcação quando a água escorrera já por entre os toros como num crivo. Morrer de fome era impossível. Os antigos indígenas conheciam bem o expediente de que, durante a guerra, se valeram muitos náufragos - mascar peixe cru, extraindo assim o suco que tem a propriedade de matar a sede. Pode-se também obter o suco torcendo pedaços de peixe num pano. Se o peixe é grande, torna-se coisa bastante simples fazer-lhe buracos ao lado, que logo se enchem de uma exsudação oriunda de suas glândulas linfáticas. O gosto não é bom se a pessoa tem coisa melhor para beber, mas a percentagem de sal é tão baixa que se mata bem a sede.

A necessidade de beber água ficava grandemente reduzida se nos banhávamos regularmente e permanecíamos deitados, com o corpo húmido, na cabina sombreada. Se algum tubarão fendia, majestosamente, a água, cm torno de nós, impedindo-nos de dar um bom mergulho 138 do lado da embarcação, o recurso era ficar deitado sobre os toros, na parte posterior da jangada, com os dedos das mãos e dos pés fortemente agarrados às cordas. Então, com intervalo de segundos, acariciavam-nos brandamente as cristalinas águas do Pacífico. Quando está calor e somos atormentados pela sede, em geral supõe-se que o organismo necessita de água, e isso gera o abuso na dose ordinária de líquido, sem nenhum benefício para a saúde. Nos trópicos, em dias realmente quentes, pode-se fazer descer à vontade, água pela garganta abaixo até senti-la no fundo da boca, e ter-se-á sede na mesma. É que então o corpo não precisa de líquido mas de sal. É curioso, mas é verdade. As rações especiais que tínhamos a bordo incluíam pastilhas de sal que deviam ser tomadas com regularidade, em dias excessivamente quentes, porque a transpiração faz diminuir o sal do organismo. Passámos dias assim, em que a calmaria era completa e o sol dardejava impiedoso sobre a jangada. A nossa dose de água podia ser bebida toda de uma vez, a ponto de nos pesar no estômago, mas a nossa goela continuava a pedir muito mais. Em tais ocasiões, adicionávamos à nossa ração de água doce 20 a 40 por cento da salgadíssima água do mar, e com surpresa verificávamos que essa água salobra nos mitigava a sede. Muito tempo depois, sentíamos ainda na boca o sabor da água do mar, mas nunca nos fez mal. Por outro lado, notámos considerável aumento da nossa ração de água. Uma manhã, quando nos sentávamos para tomar a primeira refeição, uma onda inesperada borrifou todo o nosso caldo, ensinando-nos gratuitamente que o gosto da aveia disfarçava, em grande parte, o enjoativo sabor da água do mar. 139 Os antigos polinésios haviam conservado algumas tradições curiosas, segundo as quais os seus antepassados, quando velejavam pelo mar

dentro, tinham consigo folhas de uma certa planta que mascavam, e fazia desaparecer a sede. Outra virtude dessa planta era que, em caso de necessidade, podiam beber água salgada sem sentir enjoo. Plantas destas não medravam nas ilhas dos mares do Sul; deviam, pois, ser originárias da terra de seus avós. Os historiadores polinésios insistiam tão obstinadamente nestas afirmações que investigadores modernos, estudando o assunto, chegaram à conclusão de que a única planta conhecida com tal efeito era a coca, que só existia no Peru. E, no Peru pré-histórico, essa mesma coca, que contém cocaína, era geralmente usada tanto pelos incas como pelos seus desaparecidos precursores, como se prova por descobertas em túmulos pré-incas. Nas fatigantes excursões pelas montanhas e nas viagens marítimas, levavam consigo grande quantidade dessas folhas e mascavam-nas dias a eito para afastar a sensação de sede e de cansaço. E passado pouco tempo o mascar folhas de coca até torna o indivíduo apto a beber água do mar com alguma imunidade. Nós não experimentámos folhas de coca a bordo da Kon-Tiki, mas tínhamos na sua parte dianteira grandes cestos de vime cheios de outras plantas que deixaram impressão mais funda nas ilhas dos mares do Sul. Os cestos estavam amarrados a sotavento da parede da cabina e, com o correr do tempo, rebentos amarelos e folhas verdes foram brotando e saindo do interior do cabaz. Parecia haver a bordo da jangada um pequeno jardim tropical. Quando os primeiros europeus chegaram às ilhas do Pacífico, encontraram grandes plantações de batata doce na ilha de Páscoa, em Hawai e na Nova Zelândia, 140 sendo essa batata cultivada também nas outras ilhas, ruas somente dentro da área polinésica. Desconheciam-na inteiramente na parte do Mundo que ficava no extremo Oeste. A batata doce era uma das plantas mais cultivadas naquelas ilhas remotas, cujos habitantes viviam principalmente de peixe. Muitas lendas polinésicas têm a batata como tema. Segundo a tradição, fora trazida pelo próprio Tiki quando, com sua mulher Pani, veio da pátria de seus avós, onde a batata doce constituía um alimento importante. Rezam lendas da Nova Zelândia que a batata doce foi transportada por mar em embarcações que não eras canoas, mas formadas por «paus atados com cordas».

Ora, como se sabe, é a América o único lugar do Mundo onde havia batata antes de ali desembarcarem europeus. E a batata doce que Tiki trouxe consigo para as ilhas, Ipomoea batatas, é exactamente a mesma que os índios cultivaram no Peru desde os tempos mais remotos. A batata doce, seca, era a mais importante provisão de viagem, tanto para os navegadores, da Polinésia como para os naturais do velho Peru. Nas ilhas dos mares do Sul, a batata só se dá bem se for cuidadosamente cultivada e, como não tolera a água salgada, é ocioso explicar a sua intensa distribuição por aquelas ilhas dispersas, afirmando que pode ter sido transportada, através de 4.000 milhas marítimas, pelas correntes oceânicas do Peru. Esta tentativa de explicação de um ponto tão obscuro é bastante inútil, visto que os filólogos demonstraram que, em todas as ilhas dos mares do Sul, espalhadas numa área tão vasta, o nome da batata doce é kumara, e que kumara é justamente a denominação que a batata doce tinha entre os antigos indígenas do Peru. O nome acompanhou a batata através do oceano. 141 Outra planta, bem importante, cultivada na Polinésia, e que tínhamos connosco a bordo da Kon-Tiki, era a cabaça, Lagenaria vulgaris. Tão importante quanto é certo que o próprio fruto era a casca, que os polinésios secavam ao fogo e usavam para guardar água. Esta típica planta de horta, a qual, por sua vez, também não podia pro-pagar-se sem trato, atravessando sozinha o oceano, era possuída pelos antigos polinésios em comum com os primitivos povos do Peru. Estas cabaças, convertidas em vasilhas de água, têm sido encontradas em túmulos préhistóricos do deserto, na costa do Peru, e eram usadas por aquele povo de pescadores, séculos antes dos primeiros homens chegarem às ilhas do Pacífico. Kimi, nome que os polinésios dão à cabaça, é ainda empregado entre os índios da América Central, onde a civilização do Peru tem suas raízes mais profundas. Além de algumas frutas meridionais que comemos dentro de poucas semanas e antes que apodrecessem, tivemos a bordo uma terceira planta que, ao lado da batata doce, desempenha importantíssimo papel na História do Pacifico: o coco. Levámos duzentos cocos que deram bom trabalho aos nossos dentes e nos ministraram bebidas refrescantes. Várias nozes da índia logo principiaram a brotar, e ao fim

de dez semanas de estarmos no mar, tínhamos meia dúzia de coqueirinhos de 30 centímetros que já haviam aberto os seus renovos e formavam vasta folhagem verde. O coco medrava antes do tempo de Colombo, tanto no istmo de Panamá como na América do Sul. Escreve o cronista Oviedo que havia coqueiro em grande número, ao longo da costa peruana do Pacífico, quando os espanhóis chegaram. Por essa época já ele existia, há muito, em todas as ilhas do Pacífico. O» botânicos ainda não sabem ao certo em que direcção se 142 espalhou pelo Pacífico. Mas uma coisa se sabe de certeza: é que nem sequer o coco, com a sua famosa casca, pode expandir-se através do oceano sem o auxílio do homem. Os cocos que tínhamos em cestos, no convés, permaneceram comestíveis e aptos para a germinação durante todo o percurso para a Polinésia. Havíamos, porém, posto cerca de metade entre as provisões especiais abaixo do convés, com as ondas a banhá-los incessantemente. Todos, sem excepção, ficaram estragados pela água salgada. E nenhum coco pode boiar no oceano com maior rapidez do que a que é atingida por uma jangada de madeira de balsa, com o vento a impeli-la por trás. Foram os olhos do coco que absorveram água e o amoleceram, ocasionando a invasão do líquido salgado. Às vezes, em dias aprazíveis e em pleno oceano azul, passávamos perto de uma pena branca de ave, que boiava. Não era para admirar pois encontrámos, a milhares de milhas do continente mais próximo, procelárias separadas do bando a que pertenciam e ainda outras aves marítimas que podem dormir no mar. Ao aproximar-nos da peninha, víamos dois ou três passageiros a seu bordo, singrando comodamente diante do vento. Quando a Kon-Tiki ia a passar, qual outro Golias, os passageiros, notavam que era uma embarcação mais rápida e mais espaçosa; por isso corriam de lado, a todo o pano, sobre a superfície, e dali subiam para a Kon-Tiki, deixando a pena a velejai; sozinha. E assim a Kon-Tiki cm breve principiou a encher-se de clandestinos. Eram pequenos caranguejos marítimos. Do tamanho de uma unha, e uma vez ou outra bem maiores do que isso, transformavam-se em petiscos para os gigantes de bordo se nos dávamos, ao trabalho de apanhá-los. Os

pequenos caranguejos são os polícias da superfície do mar, e não hesitam 143 em cuidar de si quando bispam qualquer coisa comestível. Se, um dia, o cozinheiro não reparava num peixe-voador caído entre os troncos, no dia seguinte este estava coberto por oito ou dez caranguejinhos. Sentados sobre o peixe e servindo-se com as suas tenazes. Na maioria das vezes, quando nos aproximávamos, fugiam espavoridos e escondiam-se. Todavia à ré, num buraquinho junto do cepo de direcção, morava um caranguejo muito manso, que recebeu o nome de Johannes. Além do papagaio, que era a diversão de todos, o caranguejo Johannes também fazia parte da nossa comunidade no convés. Se o homem do leme, governando sentado a embarcação num dia de sol, de costas para a cabina, não tinha a companhia de Johannes, sentia-se extremamente só naquela imensidão. Ao passo que os outros caranguejinhos corriam furtivamente, aqui e acolá, e roubavam como baratas num bote comum, Johannes escarrapachavase com os olhos arregalados, esperando a mudança de quarto. Todo aquele que vinha para a sua hora de vigia, trazia um pedacinho de biscoito ou um pouco de peixe para Johannes, e bastava que nos curvássemos sobre o buraco para imediatamente aparecer e estender as patas. Recebia as migalhas dos nossos dedos com as suas tenazes e corria a enfiar-se no buraco, instalando-se perto da porta e trincando o manjar como um estudante a atafulhar na boca uma gulodice qualquer. Os caranguejos cosiam-se, como moscas, aos cocos encharcados que estouravam com a fermentação, ou agarravam plânctones trazidos a bordo pelas ondas. E estes, os mais diminutos organismos do oceano, eram boa comida até para nós, quando finalmente aprendemos a apanhar, de uma vez, os suficientes para um prato decente. 144 Claro que deve existir alimento bem nutritivo nestes plânctones, animálculos quase invisíveis que, cm número infinito, se movcm.com as correntes oceânicas. Os peixes e as aves marítimas que não comem plânctones vivem, em todo caso, de outros peixes e animais marinhos que ingerem, pouco importando o tamanho destes. Plâncton é um termo

geral com que se designam os milhares de espécies de microrganismos visíveis e invisíveis que vogam quase à superfície do mar. Alguns são plantas (fítoplâncton), enquanto que outros são ovos de peixe e minúsculos seres vivos (zooplâncton). O plâncton animal vive de plâncton vegetal e este último vive de amoníaco, nitritos e nitratos formados de plâncton de animal morto. E enquanto vivem reciprocamente uns dos outros, todos formam alimento para tudo que se move sobre o mar e dentro do mar. O que não podem oferecer em tamanho oferecem em número. Em águas de muito plâncton existem milhares no conteúdo de um. Mais de uma vez tem acontecido pessoas morrerem de fome no mar porque não acharam nenhum peixe suficientemente grande para ser colhido com um espeto, numa rede ou num anzol. Em tais casos, sucede frequentemente que essas pessoas estiveram afinal a navegar numa ralíssima sopa de peixe cru. Se, além de anzóis e redes, dispusessem de um utensílio para coar a sopa em que estavam sentadas, teriam achado uma base nutritiva - plâncton. Talvez que um dia os homens pensem em fazer a colheita de plâncton do mar na mesma escala em que uma vez. há muito tempo, tiveram a ideia de fazer a colheita de trigo em terra. Também, apenas um grão de trigo para nada serve, mas em grande quantidade torna-se alimento. O Dr. A. D. Bajkov, biólogo que se preocupa com as condições da vida oceânica, deu-nos essa ideia e mandou

145 connosco uma rede de pesca adaptada aos seres que íamos "apanhar. Era uma rede de seda com cerca de 450 malhas por «5 centímetros quadrados. Costurada em forma de funil, com uma boca circular por trás de um aro de ferro, tendo de lado a lado 45 centímetros, foi posta a reboque no fim da jangada. Tal como se dá com qualquer outra, esta pescaria variava com o tempo e o lugar. As pescas diminuíram à medida que o mar ficava mais quente no extremo Oeste, e os melhores resultados eram obtidos à noite, visto que muitas espécies pareciam procurar maior profundidade quando o sol brilhava. Se não tivéssemos outra maneira de passar o tempo a bordo da jangada, haveria bastante distracção em nos pormos de bruços, com o nariz na rede de plâncton. Não por causa do cheiro, que era mau. Nem por ser coisa de apetite, pois aquilo dava ideia de uma confusão horrível. Mas porque, se estendíamos os plânctones sobre uma tábua e examinávamos, a olho nu, cada um daqueles entezinhos separadamente, tínhamos diante de nós formas fantásticas e infinita variedade de cores. A maioria deles eram crustáceos (copépodes) parecidos com camarão, ou ovos de peixe boiando desirmanados, mas havia também larvas de peixe e mariscos, curiosos caranguejos em mistura, do mais vário colorido, medusas, e uma interminável variedade de serezinhos que podiam ter sido tirados da Fantasia de Walt Disney. Alguns pareciam duendes rendados, a flutuar no ambiente, recortados de papel celofane, enquanto que outros semelhavam minúsculos passarinhos de bico vermelho com uma casca grossa em vez de penas. A Natureza é fértil em extravagantes invenções no mundo dos plânctones; aqui um artista surrealista teria de confessar-se vencido. 146 No ponto em que a corrente de Humboldt vira do Oeste para o Sul do Equador, podíamos, ao cabo de algumas horas, tirar do saco vários quilos de sopa de plâncton. Os plânctones apresentavam-se amontoados, tomo numa torta, em camadas de vário colorido, pardo, vermelho, cinzento e verde, conforme os diferentes campos de plâncton pelos quais tínhamos passado. De noite, quando havia fosforescência

em redor, era como se içássemos para bordo um saco de jóias faiscantes. Quando, porém, o trazíamos para mais perto, o tesouro dos piratas transformava-se em milhões de minúsculos camarõezinhos cintilantes e de larvas de peixe fosforescentes que, no escuro, brilhavam como um monte de brasas. E quando os passávamos para um balde, a massa confusa e viscosa escorria como uma tisana mágica composta de pirilampos. A nossa pesca nocturna parecia tão desagradável, de perto, quanto havia sido bonita a distância. E se cheirava mal, em compensação tinha bom sabor se a pessoa se animava a meter pela boca dentro uma colhei daquela fosforescência. Se o que se ingeria era uma mistura de muitos camarõezinhos anões, tinha gosto de massa de camarão, lagosta ou caranguejo. E se, mais frequentemente, eram ovos de peixe do fundo do mar, o gosto era de caviar e, de vez em quando, de ostra. Os plânctones vegetais não comestíveis eram ou tão pequenos que se escapuliam com a água, pelas malhas da rede, ou tão grandes que podíamos pegá-los com os dedos. O busílis era quando apareciam no prato celenterados, parecendo geleia ou balões de vidro, e medusas de quase meia polegada de comprimento. Aqueles e estas eram amargos e tinham de ser atirados fora. A não ser isso, podia-se comer tudo, tal como era, ou cozido em água doce como caldo, de sopa. Os gostos variam. Dois homens a bordo achavam o 147 plâncton delicioso, dois outros, achavam-no bem bom, e os dois restantes contentavam-se em vê-lo. Do ponto de vista nutritivo, os plânctones são mais ou menos comparáveis aos mariscos maiores, e, convenientemente preparados e com bom tempero, podem ser um prato de primeira para quantos apreciam comida marítima. Que estes pequenos organismos contêm bastantes calorias foi provado pela baleia azul, que é o maior animal do mundo e se alimenta de plâncton. O nosso método de captura, com a redezinha que muitas vezes foi mastigada por peixes famintos, pareceu-nos bastante primitivo quando, sentados na jangada, vimos passar uma baleia que atirava ao alto jorros de água, coando assim os plânctones através da sua barba de celulóide. E um belo dia perdemos a rede no mar.

- Por que é que vocês, comedores de plâncton, não fazem como ela? disseram-nos, com desdém, Torstein e Bengt, os abstinentes, apontando para uma baleia que fazia repuxo. É só encherem a boca e soprarem a água, para fora, pelo bigode! De bote, vira baleias, a distância, e vira-as também empalhadas em museus, mas nunca tivera pela gigantesca carcassa o interesse ou a simpatia que, em geral, despertam animais de sangue quente propriamente ditos, por exemplo um cavalo ou um elefante. À luz da biologia, aceitara, naturalmente, a baleia como um legítimo mamífero, mas na sua essência ela era, para mim e para todos os efeitos, um grande peixe frio. Tive impressão diferente quando as enormes baleias se dirigiam, com ímpeto, para o nosso lado, parando quase ao pé da jangada. Um dia em que, sentados, como de costume, na beira da jangada, tomávamos a nossa refeição, tão perto da água que bastava inclinar-nos para trás para lavarmos 148 as nossas canecas, assustámo-nos quando, de repente, uma coisa atrás de nós soprou com força, como um cavalo a nadar, e uma colossal baleia surgiu e fixou-nos de tão próximo que vimos um brilho, como de sapato engraxado, através do seu espiráculo abaixo. Era tão insólito ouvir ruído de fôlego em alto mar, onde todos os seres vivos se agitam silenciosamente sem pulmões e abrindo e fechando as suas brânquias, que nós, na verdade, tivemos um cálido sentimento de família, em relação à nossa velha parenta afastada, a baleia, que, como nós, «viera parar tão longe, no meio do oceano. Em vez do frio tubarãogigante, com aparência de sapo, que nem ao menos tinha o bom senso de pôr de fora o focinho para respirar um pouco de ar puro, deparavase-nos ali a visita de uma coisa que fazia pensar num hipopótamo de jardim zoológico, bem nutrido e jovial, e que respirou (isto me deu agradável impressão) profundamente, antes de imergir, de novo, no mar, e desaparecer. Fomos muitas vezes visitados por baleias. Na maioria dos casos eram pequenos porcos do mar e baleias guarnecidas de dentes que, em cardumes, se movimentavam alegremente em volta de nós, à flor da água, mas de quando em quando surgiam também imensos cachalotes e outras gigantescas baleias, que vinham sós ou em reduzidos

cardumes. Às vezes passavam como navios no horizonte, expelindo de quando em quando, para o ar, um esguicho de água, mas outras vezes vinham directamente para 6 nosso lado. Preparámo-nos para perigoso choque certa ocasião em que uma incomensurável baleia, alterando a sua rota, se encaminhou para a jangada com esse propósito. À medida que se aproximava, podíamos ouvir-lhe o sopro e o bufido, pesado e longo, cada vez que a cabeça vinha à tona de água. Era um animal terrestre, 149 descomunal, paquidérmico e gingão, que penosamente cortava as ondas, tão diferente de um peixe quanto um morcego é diferente de um pássaro. Encaminhou-se directamente para o nosso bombordo, onde nos achávamos reunidos na beira da jangada, enquanto um de nós, sentado na ponta do mastro, gritava que estava a ver mais sete ou oito dirigindo-se para nós. A larga testa, de um preto retinto, da primeira baleia, estava a menos de dois metros da jangada quando mergulhou, e então vimos o enorme dorso azul escuro deslizar, calmamente, quase sob os nossos pés. Permaneceu aí algum tempo, escura e imóvel, e retivemos a respiração ao olharmos, em baixo, o gigantesco dorso arqueado de um mamífero bem mais comprido que a jangada inteira. Depois, mergulhou vagarosamente na água azulada e desapareceu da nossa vista. Entretanto, o resto do grupo acercava-se da jangada mas não nos deu atenção. As baleias que, abusando da sua força gigantesca, com uma rabanada puseram a pique barcos baleeiros, provavelmente foram atacadas antes. Durante a manhã toda, tivemo-las bufando e resfolegando em torno de nós, nos lugares mais inesperados, sem que sequer empurrassem a jangada ou o remo de governo. Divertiram-se muito saltando, livremente, entre as ondas, ao sol. Mas pelo meio-dia, todo o cardume mergulhou como a um sinal dado, e desapareceu de vez. Debaixo da jangada não víamos apenas baleias. Se levantávamos a esteira sobre que dormíamos, enxergávamos pelas fendas entre os toros e em baixo a água azul e cristalina. Se ali ficávamos algum tempo, víamos também uma barbatana peitoral ou caudal passar aos

saracoteios, e de vez em quando um peixe inteiro. Se as frinchas fossem alguns centímetros mais largas, podíamos 150 ficar comodamente deitados na cama com uma linha e pescar por baixo, dos nossos colchões. Os peixes que mais atracção sentiam pela jangada eram os dourados e os pilotos. Desde o momento em que os primeiros dourados se reuniram a nós, na altura de Callao, não houve dia, durante toda a viagem, em que não tivéssemos grandes dourados rebolando-se em redor da jangada. Não sabemos o que os atraía. Talvez que existisse, para eles, uma atracção mágica cm poder nadar à sombra, com um telhado móvel por cima, ou havia comida na nossa horta de algas e bernaclas que pendiam, como festões, de todos os toros e do remo de governo Começou com uma fina camada de verde macio, e daí a poucos ramos verdes de alga marinha desenvolveram-se com rapidez incrível, de maneira que a Kon-Tiki tinha o aspecto de um deus marinho barbado, enquanto ia aos ziguezagues por entre as ondas. E o interior das algas verdes era o sítio favorito de miúdas petingas e dos nossos clandestinos, os caranguejos. Houve um tempo em que as formigas principiaram a dominar a bordo. Já tinha havido formiguinhas pretas em alguns troncos, e quando nos fizemos ao mar e a humidade começou a penetrar na madeira, as formigas entravam nos sacos de dormir e deles saíam às chusmas. Em toda parte havia formigas, que nos mordiam e atormentavam tanto que chegámos a pensar que nos expulsariam para fora da jangada. Mas, pouco a pouco, à proporção que a humidade se fazia sentir mais em alto mar, perceberam que aquele não era o seu elemento, e somente alguns espécimes isolados resistiram até alcançarmos a outra banda. Davam-se bem na jangada, além dos caranguejos, bernaclas de 25 a 37 milímetros de comprimento. Cresciam às centenas, especialmente a sotavento da jangada, 151 e com a mesma rapidez com que as antigas iam para a panela, novas larvas lançavam raízes e cresciam. As bernaclas tinham sabor delicado. Para falar verdade, nunca vimos os dourados comendo na «horta», mas

estavam constantemente virando para cima a faiscante barriga e nadando sol) os troncos. O dourado, peixe tropical de colorido brilhante, tem ordinariamente de um metro a 1,37 m de comprimento, e possui os lados muito achatados e a cabeça e o pescoço desproporcionadamente altos. Içámos, para bordo, um que tinha 1,42 m de comprimento e uma cabeça de 33 centímetros de altura. A cor do dourado é magnífica. Na água apresenta um brilho azul e verde como o de uma mosca varejeira com uma cintilação de barbatanas amarelo-douradas. Ao trazê-lo, porém, para bordo, observávamos às vezes um fenómeno estranho. Quando estava para morrer, mudava aos poucos de cor, tornando-se de um cinzento prateado com manchas pretas e finalmente adquirindo um branco prateado perfeitamente uniforme. Isto durava quatro ou cinco minutos, depois, lentamente, voltavam as antigas cores. Mesmo na água, o dourado de vez em quando mudava de cor como camaleão, e não raro víamos uma «nova espécie» de peixe cor de cobre brilhante, que, depois de mais estudado, verificávamos ser o nosso velho companheiro, o dourado. A testa alta dava-lhe a aparência de um buldogue achatado do lado, e sempre a testa cortava a superfície da água quando o peixe rapinante partia, como um torpedo, atrás de um cardume fugitivo de peixesvoadores. Quando estava de bom humor, o dourado virava-se sobre o seu lado plano, ia para a frente com grande velocidade, depois dava um pulo para o ar e caía em cheio como um bolo chato; ao bater na superfície, ouvia-se um forte estalo 152 e elevava-se uma coluna de água. Ainda bem não caíra na água, armava outro salto e mais outro, e assim prosseguia fendendo as ondas. Mas, quando eslava com os seus azeites, por exemplo quando o arrastávamos em peso para dentro da jangada, então mordia. Torstein andou roxeando algum tempo, com o dedo grande do pé enrolado num trapo, porque por descuido, o deixara ir parar dentro da boca de um dourado, que aproveitou a oportunidade para fechar as mandíbulas e mastigar com um pouco mais de força que de costume. Quando regressámos à pátria, ouvimos dizer que os dourados atacam e comem os banhistas. Isto para nós não foi muito lisonjeiro, visto que sempre

tínhamos tomado banho no meio deles, sem que mostrassem interesse especial. Mas eram formidáveis animais de rapina, pois nos seus estômagos encontrámos tanto lulas como peixes-voadores inteiros. Os peixes-voadores eram a comida predilecta dos dourados. Se qualquer coisa patinhava na superfície da água. estes atiravam-se cegamente, na esperança de que fosse um peixe-voador. Quando, em certa hora modorrenta da manhã, saíamos da cabana piscando os olhos e ainda tontos de sono, não era raro acontecer que, ao mergulharmos uma escova de dentes no mar, acordássemos de verdade dando um pulo para trás. K que um dourado de 14 kg, saindo como uma flecha de sob a jangada, viera cheirai a escova decepcionado. E quando estávamos sossegadamente a almoçar, sentados na beira da jangada, mais de uma vez sucedeu que um dourado pulasse para rima e desse um daqueles vigorosos tombos de lado, espadanando água sobre as nossas costas e dentro da nossa comida. Um dia, durante o jantar, Torstein tornou real a mais incrível das histórias de pescadores. De repente, largou 153 o garfo no chão e pôs a mão no mar, e antes que pudéssemos saber de que se tratava, a água pareceu ferver e um enorme dourado surgiu entre nós, a debater-se terrivelmente. Torstein havia agarrado a ponta superior diurna linha de pesca que ia deslizando pela corrente e na outra ponta estava pendurado um dourado, completamente atónito, que dias antes quebrara a linha com que Erik estava a pescar. Não havia um dia em que não tivéssemos seis ou sete dourados a acompanhar-nos, descrevendo círculos em redor da jangada. Se, em certos dias, apareciam apenas dois ou três, em compensação, no dia seguinte, podiam surgir uns trinta ou quarenta. Em geral, se queríamos peixe fresco para o jantar era suficiente avisar o cozinheiro com vinte minutos de antecedência. Ele amarrava então uma linha numa curta vara de bambu e punha no anzol metade de um peixe-voador. No mesmo instante, estava lá um dourado, sulcando a superfície com a cabeça, ao mesmo tempo que perseguia o anzol, e tendo mais dois ou três nas suas águas. É um peixe divertido e, quando apanhado de fresco, tem uma carne sólida e deliciosa, misto de bacalhau e de

salmão. Durava dois dias, e era quanto necessitávamos, pois peixe havia bastante no mar. Travámos relações com os peixes-pilotos de outra maneira. Os tubarões traziam-nos e deixavam-nos para que os adoptássemos, depois da morte dos próprios tubarões. Não decorrera ainda muito tempo que estávamos no mar quando o primeiro tubarão nos visitou. Depois as visitas tornaram-se uma ocorrência quase quotidiana. Às vezes o terrível peixe vinha a nadar até perto da jangada, apenas para examiná-la ligeiramente, e dali continuava a sua caça de presa, após ter dado uma ou duas rodadas em 154 torno de nós. As mais das vezes, porém, ia na nossa esteira, logo atrás do remo de direcção, ali permanecendo sem tugir nem mugir, passando furtivamente de estibordo para bombordo e, uma vez ou outra, dando uma rabanada mansa para acompanhar melhor o plácido avanço da jangada. O corpo azul-cinzento do tubarão sempre parecia um tanto pardo à luz do sol e logo abaixo da superfície da água. Movia-se para baixo e para cima com as ondas, de modo que a nadadeira dorsal ressaía sempre como uma ameaça. Se o mar estava encapelado, as ondas eram capazes de erguer o peixe bem acima do nosso nível, e nós tínhamos uma vista directa, lateral, do tubarão como se encerrado numa redoma de vidro, quando nadava no nosso rumo, com porte majestoso, e precedido da sua embaraçosa escolta de pilotinhos, bem à frente das suas mandíbulas. Por alguns segundos, parecia que não só o tubarão mas também os seus raiados companheiros iriam entrar a bordo, mas a jangada inclinava-se, graciosamente, para Sotavento, erguia-se sobre a crista das ondas e baixava do outro lado. Na realidade, tínhamos grande respeito aos tubarões em atenção à sua fama e à sua aparência assustadora. Havia uma força indomável naquele corpo aerodinâmico, que apenas constava de um grande feixe de músculos de aço, e na tremenda voracidade daquela vasta cabeça chata, com os olhinhos verdes de gato e as imensas mandíbulas capazes de engolir bolas de futebol. Quando o timoneiro gritava «tubarão a estibordo» ou «tubarão a bombordo», costumávamos sair à procura de arpões e fateixas, e postar-nos ao longo da beira da jangada. Geralmente o peixe deslizava em volta de nós com a

barbatana dorsal rente aos toros da embarcação. E o nosso respeito pelo animal subiu quando víamos as fateixas vergar como esparguetes 155 ao baterem contra o arnês de lixa das costas do peixe, ao passo que as pontas das lanças dos arpões portáteis se rompiam no aceso da batalha. O que resultava de termos atingido a pele do tubarão, a sua cartilagem ou os seus músculos, era tão somente uma luta febril, durante a qual a água fervia ao redor de nós até que o peixe lograva soltar-se e lá se ia embora, enquanto um pouco de óleo ficava a boiar e se espalhava sobre a superfície. Para salvar a ponta do nosso último arpão, amarrámos, num feixe, os nossos maiores anzóis e escondemo-los no interior da carcassa de um dourado. Atirámos ao mar o isco com infinitas precauções, depois de havermos amarrado muitas linhas de aço em certa parte do parapeito da jangada. O tubarão aproximou-se, confiado e vagaroso, e ao mesmo tempo que levantava o focinho acima da água, abriu de golpe as grandes mandíbulas em forma de crescente e fez resvalar por elas dentro o dourado inteiro, que lá ficou. Houve uma batalha durante a qual o peixe vergastava a água espumante, mas nós segurávamos a corda com muita firmeza, e a custo arrastámos o rebelde até os toros posteriores, onde ficou à espera do que podia vir e apenas abriu a boca como para nos intimidar com as filas paralelas de uns dentes que pareciam serrotes. Então aproveitámos de uma onda mais forte para fazer o tubarão deslizar, suspendendo-o péla extremidade mais baixa dos toros, escorregadia por causa das algas, e depois de laçar com uma corda a barbatana caudal, puxamo-lo facilmente para bordo. Estava tudo terminado. Na cartilagem do primeiro tubarão achámos a ponta do nosso arpão, e a princípio pensámos que isto fora a causa do relativamente escasso espírito de luta do animal. Mas depois pescámos vários tubarões pelo mesmo método, e de cada vez o processo se realizava com igual facilidade. 156 Ainda que soubesse que podia recalcitrar e resistir, e certamente era terrível nos seus movimentos, tornava-se inerte e manso e nunca

empregou a sua gigantesca força, uma vez que tratávamos de segurar com firmeza a corda, sem deixar ao peixe a vantagem de uma polegada no arrastão. Os tubarões que trouxemos para bordo mediam em geral 1,80 m a 3 m, e havia-os azuis e pardos. Estes últimos tinham uma pele por fora da massa dos músculos através da qual não conseguíamos fazer passar uma faca afiada, a não ser que forçássemos extraordinariamente a lâmina, e ainda assim, muitas vezes em vão. A pele do ventre era tão impenetrável como a das costas, e as cinco fossas branquiais de cada lado, atrás da cabeça, eram os únicos pontos vulneráveis. Quando arrastávamos um tubarão para dentro da jangada, geralmente vinham pegadas ao seu corpo rémoras negras e escorregadias. Por meio de um disco oval sugador, localizado no alto da cabeça lisa, ficavam tão fixas que não conseguíamos soltá-las, puxando-as pelo rabo. No entanto, elas podiam despegar-se e, dum salto, agarrar-se, no mesmo momento, a um outro lugar. Se se cansavam de estar penduradas num tubarão, sem que o seu antigo «cabide» desse sinal de querer voltar para o oceano, formavam um pulo e sumiam-se entre as frinchas da jangada para dali sair, nadando, à cata de outro tubarão. E se a rémora não acha um tubarão, agarra-se provisoriamente à pele de outro peixe. A rémora é, em geral, uma coisa que varia do comprimento de um dedo a um pé. Tentámos o velho expediente dos indígenas, por eles algumas vezes empregado quando apanham uma rémora viva. Atam uma linha na cauda da rémora e deixam-na ir nadando. Então a rémora trata de se colar ao primeiro peixe que vê e com tanta força se agarra a ele que um 157 pescador feliz pode colher a rémora e com ela o outro peixe. Nós não tivemos sorte. Cada vez que soltávamos uma rémora com uma linha atada no rabo, ela partia como uma bala agarrava-se firmemente a um dos troncos da jangada, na crença de haver encontrado um mais respeitável tubarão. E lá se deixava ficar, por maior força que empregássemos puxando a linha. Pouco a pouco, fomos adquirindo uma porção dessas remorazinhas que se penduravam e ficavam teimosamente a balançar no meio das conchas no lado da jangada, fazendo connosco a travessia do Pacífico.

Mas a rémora é estúpida e feia e nunca se tornou um peixinho agradável como o seu vivaz companheiro, o piloto. O piloto é um peixe zebrado, tendo a forma de um charuto, que nada com rapidez num cardume à frente do focinho do tubarão. Recebeu este nome porque era crença que servia de guia no mar ao seu peticego amigo, o tubarão. Na realidade, o piloto simplesmente acompanha o tubarão, e se procede com independência é apenas porque enxerga alimento dentro do seu raio visual. O piloto acompanha o seu senhor e mestre até o último segundo. Como, porém, não tem, como a rémora, a faculdade de pegarse à pele do gigante, fica completamente desnorteado quando o seu velho mestre de repente desaparece no ar e não amarica. Então anda aflito, a nadar para aqui e para acolá, procurando. Reparámos que sempre voltava e se saracoteava ao longo da popa da jangada, onde o tubarão desaparecera na direcção do céu, por nós arrastado para dentro da embarcação. Mas como a tempo passava e o tubarão não descia, tinha de procurar nos arredores outro senhor e mestre. E nenhum se achava mais à mão que a própria Kon-Tiki. Se nos debruçávamos do lado da embarcação, com a 158 cabeça quase a tocar a água cristalina, a jangada afigurava-se-nos a barriga de um monstro marinho, tendo por cauda o remo de direcção e por tostas barbatanas as quilhas corrediças. E entre elas todos os pilotos adoptivos nadavam lado a lado, sem reparar na cabeça humana ali pendente, com excepção de um ou dois deles que, de um pulo. se colocavam de banda e erguiam um pouco o focinho, mas daí a pouco iam de volta retomar, imperturbáveis, o seu lugar entre os ávidos nadadores. Os nossos pilotos patrulhavam em dois destacamentos: a maior parte deles nadava entre as quilhas móveis, enquanto os outros formavam graciosamente um leque logo à frente da proa. De vez em quando, afastavam-se, impetuosamente, da jangada, para abocanhar qualquer coisinha comestível pela qual passávamos, e após as refeições, quando lavávamos a nossa louça na água do mar, era como se tivéssemos esvaziado entre as migalhas uma caixa de charutos cheia de pilotos zebrados. Não deixavam de examinar uma única migalha e, a menos que fosse alimento vegetal, ia imediatamente para a barriga deles. Os

estranhos peixinhos acolhiam-se à nossa protecção com uma confiança tão infantil que nós, como o tubarão, nutríamos para com eles sentimentos quase paternais. Ficaram sendo os benjamins da Kon-Tiki e a bordo da nossa jangada era defeso pescar um piloto. Contávamos, no nosso séquito, pilotos que, com certeza, estavam na infância, pois mal tinham «5 milímetros, ao passo que a maior parte media uns 15 centímetros. Quando o tubarão-gigante, depois que o arpão de Erik lhe varou o crânio, se precipitou nos abismos como um bólido, alguns dos seus antigos pilotos, perdendo o rumo, vieram ter com o vencedor; esses tinham exactamente 60 centímetros. Após uma série contínua de vitórias, 159 a Kon-Tiki em breve possuía um séquito de quarenta a cinquenta pilotos, e muitos deles gostaram tanto do nosso tranquilo avanço e das nossas sobras diárias, que nos foram acompanhando por milhares de milhas. Mas, às vezes, alguns não eram fiéis. Achando-me um dia ao remo de governo, notei, de repente, que o mar fervia para as parte do Sul, e vi um imenso cardume de dourados sulcando as águas como se fossem torpedos de prata. Não vinham como de costume, nadando comodamente de lado, mas desenvolviam uma velocidade tal que mais pareciam cortar os ares do que as águas. As ondas glaucas estavam convertidas em branca espuma com a agitação frenética dos fugitivos, e atrás deles vinha um dorso negro singrando numa rota em ziguezagues, qual bote de corrida. Os desesperados peixes ora apareciam sobre a superfície, ora se sumiam abaixo dela, quase rente à jangada; aí mergulharam, enquanto uns cem se: juntaram densamente em cardume e tomaram o rumo Leste, de modo que o mar à popa era uma resplandecente massa de cores. O dorso brilhante, que vinha atrás deles, ergueu-se a meio sobre a superfície, mergulhou em graciosa curva sob a jangada e arremessou-se à ré como um torpedo após o cardume de dourados. Era, nada mais nada menos, que um descomunal tubarão que parecia ter pouco mais de seis metros de comprimento. Quando o monstro desapareceu, grande número dos nossos pilotos também se fora com ele. Tinham encontrado um herói marinho mais airoso que os seduziu.

O animal marítimo contra quem os entendidos, insistentemente, nos puseram de sobreaviso, foi o polvo, porque podia penetrar na jangada. Na Sociedade Geográfica Nacional, de Washington, mostraram-nos relatórios e fotografias dramáticas, tiradas com magnésio, de certa 160 área da corrente de Humboldt onde polvos monstruosos tinham o seu lugar preferido e, à noite, surgiam à superfície. Eram tão vorazes que se um deles se agarrava a um pedaço de carne preso no anzol, outro vinha e punha-se a comer o seu companheiro capturado. Tinham tentáculos capazes de por termo à vida de um enorme tubarão e de deixar feias marcas em grandes baleias, e um bico terrível, como o de uma águia, oculto entre os tentáculos. Lembraram-nos que ficavam a flutuar no escuro com olhos fosforescentes e que dispunham de braços de comprimento suficiente para apalpar qualquer pequeno recanto da jangada, se não lhes apetecesse vir directamente para bordo. Não nos sorria absolutamente a perspectiva de sentir uns braços frios em volta do pescoço, arrastando-nos à noite para fora do nosso saco-cama, e havíamo-nos munido de macetes parecidos com um sabre, tendo cada qual o seu, no caso de acordarmos com uns tentáculos a apalpar-nos ou fazendo menção de nos abraçar. Ao partirmos, nada nos pareceu mais desagradável, sobretudo por que no Peru pessoas versadas em assuntos marítimos bateram na mesma tecla e mostraram-nos no mapa onde ficava a área pior, justamente na corrente de Humboldt. Durante muito tempo não vimos nenhum sinal de lula, tanto a bordo como no mar. Mas uma manhã tivemos o primeiro aviso de que elas deviam estar naquelas águas. Quando o sol nasceu, achámos a bordo uma cria de polvo, na forma de um animalzinho do tamanho de um gato. Tinha subido para a jangada durante a noite, sem auxílio, e jazia morta, com os braços enrolados no bambu, em frente à porta da cabana. Um líquido grosso e preto, semelhante a tinta, estava espalhado sobre a coberta de bambu, formando uma poça cm redor da lula. 161 Escrevemos mais de uma página no diário de navegação com tinta de siba, semelhante à tinta da China, e depois atirámos à água a cria para regalo dos dourados.

Vimos neste incidente de somenos o anúncio de visitas nocturnas de maior importância. Se a lulazinha pudera trepar a bordo, o seu faminto pai ou mãe poderia a fortiori fazer o mesmo. No entanto, o incidente que se seguiu deixou-nos completamente às tontas. Uma manhã encontrámos uma lulazinha no cume do telhado de folhas de palmeira. Isto embaraçou-nos bastante. Ela não podia ter trepado para ali, visto que as únicas marcas de tinta estavam espalhadas num círculo em redor do animalzinho, no meio do telhado. Tampouco a teria deixado cair alguma ave marítima porque estava completamente intacta, sem vestígios de bico. Chegámos à conclusão de que fora arrojado ao telhado por um vagalhão, mas nenhum dos que tinham feito quarto durante a noite se recordava de qualquer importante alteração no mar. E à proporção que as noites foram passando, achávamos regularmente a bordo mais lulazinhas, a menor das quais tinha o tamanho de um dedo médio. Daí a pouco tornou-se coisa corriqueira encontrar pela manhã alguma pequena lula, ou até duas, entre os peixes-voadores no convés, ainda quando o mar tinha estado calmo durante a noite. E eram crias da pior espécie, com oito compridos braços cobertos de discos sugadores e dois ainda mais compridos, tendo na ponta ganchos em forma de espinho. Lulas maiores, porém, nunca fizeram menção de querer aparecer a bordo. Numa noite tenebrosa, vimos o brilho de olhos fosforescentes vogando à flor de água, e uma única ocasião observámos que o mar fervia em borbotões, enquanto uma coisa semelhante a uma grande roda subiu e girou no ar, produzindo verdadeira debandada 162 entre os dourados que se puseram a rodopiar no espaço. Mas o motivo pelo qual os animais grandes nunca apareciam a bordo, quando os menores era assíduos visitantes nocturnos, continuava sendo um enigma o qual não achámos explicação senão dois meses (sessenta dias ricos em experiência) depois de termos saído da mal afamada zona dos polvos. Lulas novas continuaram a chegar a bordo. Numa manhã de sol, todos nós vimos um cintilante cardume de qualquer coisa que pulava fora da água e voava pelo ar como se fosse grossos pingos de chuva, enquanto o mar era um fervedouro de dourados a perseguir a chusma. A princípio

tomámos a coisa por um cardume de peixes-voadores, pois já tínhamos visto três diferentes espécies deles a bordo. Quando, porém, chegaram mais perto e alguns deles navegavam sobre a jangada a uma altura de um metro e vinte a um metro e meio, um veio bater de chapa no peito de Bengt para dali estatelar-se no chão. Era uma lula pequena. O nosso espanto foi grande. Quando a pusemos num balde de lona continuou a erguer-se e a dar saltos para a superfície, mas não desenvolvia no baldezinho velocidade bastante para emergir da água com mais da metade do corpo. É facto conhecido que a lula nada, geralmente, segundo o princípio do avião de jacto. Expele, com grande força, água do mar através de um tubo fechado, existente no lado do corpo, podendo assim saltar para trás com movimento velocíssimo; e com todos os seus tentáculos dependurados na parte posterior da cabeça e aí agrupados sobre ela, torna-se aerodinâmica como um peixe. Tem, nos lados, dois refegos de pele, redondos e carnudos, ordinariamente usados para regular os movimentos ao nadar. Mas com isto ficou provado que lulas novas, indefesas, que são o alimento preferido de 163 muitos peixes grandes, podem escapar dos seus inimigos indo para o ar como fazem os peixes-voadores. Tinham convertido em realidade o princípio do avião de jacto muito antes que o génio do homem originasse essa ideia. Expelem a água do mar através de si mesmas até adquirirem uma celeridade incrível, e então dirigem a sua rota a um ângulo da superfície desdobrando os tais refegos de pele como se fossem asas. Como os peixes-voadores, fazem um voo de planador sobre as ondas até à distância que a sua velocidade as pode levar. Depois disto, quando começámos realmente a prestar atenção, vimo-las muitas vezes movendo-se por uns 40 ou 50 metros, sozinhas ou em número de duas ou três. Todos os zoólogos com quem conversámos sobre o assunto mostraram-se surpresos com o facto das lulas poderem «planar», o que era uma novidade para eles. Como hóspede de indígenas do Pacífico, muitas vezes comi lulas; têm um gosto misto de lagosta e borracha. Mas, a bordo da Kon-Tiki, as lulas vinham em último lugar na nossa lista de pratos. Se as recebíamos de mão beijada no convés, trocávamo-las por qualquer outra coisa. Fazíamos a troca atirando à água um anzol com a lula nele espetado e

tornando a puxá-lo para dentro com um grande peixe a debater-se na ponta. Até o atum e o bonito gostavam de lulas novas. Ora aqueles eram iguaria que vinha em primeiro lugar na nossa lista. Mas, vogando sobre a superfície do mar, não eram só conhecidos nossos que encontrávamos. O diário de bordo contém apontamentos como estes: 11/5. Hoje um enorme animal marinho surdiu duas vezes à tona, ao lado da jangada, enquanto ceávamos, sentados na beira da mesma. 164 Fez um terrível barulho na água e desapareceu. Não temos ideia do que fosse. 6/6. Herman viu um grosso peixe de cor escura, com corpo largo e branco, cauda delgada e aguilhões. Pulou várias vezes, fora da água, do lado de estibordo. 16/6. Um curioso peixe foi avistado a bombordo, quase à proa. Comprimento: 1,80 m; largura máxima: 30 centímetros; focinho comprido, pardo e fino, grande barbatana dorsal perto da cabeça e uma menor no meio das costas, pesada barbatana caudal falciforme. Mantinha-se perto da superfície e nadava às vezes, retorcendo o corpo como uma enguia. Mergulhou quando eu e Herman saímos no botezinho de borracha com um arpão portátil. Tornou a subir mais tarde, mas mergulhou definitivamente e desapareceu. 17/6. Erik estava sentado na ponta do mastro, às 12 horas, quando viu trinta ou quarenta peixes compridos, finos e pardos, da mesma espécie que o de ontem. Vinham com grande velocidade do lado esquerdo da embarcação e desapareceram à ré, como uma grande sombra escura e chata no mar. 18/6. Knut observou um animal ofióide, fino, de sessenta a noventa centímetros, que ora se punha teso ora se achatava na água, abaixo da superfície, e que mergulhou retorcendo-se como uma serpente. Em várias ocasiões, deslizámos ao lado de uma grande massa escura que permanecia imóvel sob a superfície da água como um recife oculto, do tamanho do soalho de um quarto. Era provavelmente a arraia gigante, de má reputação, mas não se mexia, e nós nunca chegámos bastante perto para poder distinguir-lhe claramente a forma.

Com tal companhia na água, o tempo nunca passava 165 devagar. Pior era quando tínhamos de dar um mergulho para examinar as cordas na parte inferior da jangada. Um dia, uma das quilhas corrediças soltou-se e foi resvalando para baixo da jangada até que a colheram as cordas, sem nós termos jeito de detê-la. Herman e Knut eram os melhores mergulhadores. Duas vezes Herman nadou por baixo da embarcação, ficando lá no meio de dourados e pilotos, a puxar pela prancha. Acabava ele de subir pela segunda vez e estava sentado na beira da jangada para tomar fôlego, quando um tubarão de 2,40 m foi descoberto a não mais de 3 metros de suas pernas, movendo-se resolutamente para cima, depois de tomar impulso das profundezas rumo à ponta dos dedos dos pés de Herman. Talvez tenhamos sido injustos com o tubarão, mas desconfiámos de suas tenções e embebermos-lhe no crânio um arpão. O peixe ressentiu-se e houve um tremendo espadanar de água, e em consequência disto o tubarão desapareceu, deixando sobre a superfície um lençol de óleo, enquanto que a quilha corrediça continuava enredada debaixo da embarcação. Então Erik teve a ideia de fazer um cesto de imersão. Não dispúnhamos de muita matéria-prima, porém tínhamos bambus e cordas e um velho cesto de pau, no qual havíamos guardado cocos. Aumentámos o cesto na parte superior com bambus e corda trançada, e depois, metidos no cesto, deixávamos que nos descessem ao lado da jangada. As atractivas pernas estavam agora escondidas no cesto, e embora a corda trançada da parte superior do açafate tivesse apenas efeito psicológico, tanto sobre nós como sobre os peixes, sempre podíamos, em dado moimento, encolher-nos dentro do cabaz se qualquer coisa, com intenções hostis nos acontecesse, e fazer com que os outros do convés nos puxassem para fora da água. 166 Este cesto de imersão não foi apenas útil; aos poucos tornou-se para os que íamos a bordo um objecto de distracção. Deu-nos excelente oportunidade para estudar o aquário flutuante que tínhamos sob o soalho.

Quando o mar estava de leite, entrávamos no cesto um por um e deixávamos que nos imergissem na água enquanto nos durava o fôlego. No elemento líquido havia uma corrente de luz sem sombra, curiosamente transfigurada. Logo que os nossos olhos estavam debaixo da superfície, a luz já não parecia ter uma direcção particular, como no nosso mundo acima da água. A retracção da luz vinha tanto de baixo como de cima; o sol não mais brilhava, estava presente em toda a parte. Se levantávamos os olhos para o fundo da jangada, víamo-la profusamente iluminada, com os nove enormes troncos e a malha das cordas enlaçadas boiando numa luz mágica, e com um festão tremeluzente de algas virentes rodeando a embarcação toda, e todo o comprimento do remo de direcção. Os pilotos nadavam em boa ordem, cada qual em seu lugar, parecendo zebras em pele de peixe, enquanto grandes dourados faziam os seus círculos com movimentos inquietos, vigilantes, na ânsia de achar presa. Aqui e ali, a luz batia na seivosa madeira vermelha de uma quilha corrediça que ressaía na parte inferior por uma frincha. Na madeira achavam-se perfeitamente instaladas pacíficas colónias de bernaclas, cujas franjadas guelras amarelas se moviam com ritmo, como que acenando para o oxigénio e para a comida. Se alguém se aproximava demasiado, fechavam apressadamente as suas conchas vermelhas de orlas amarelas, e assim se mantinham de portas fechadas até passar o perigo. A luz, lá em baixo, era maravilhosamente clara e branda para nós, acostumados ao sol tropical no convés. Mesmo quando olhávamos 167 para baixo, para as profundezas insondáveis do oceano onde a noite é eterna, parecia-nos um ameno azul claro por causa dos raios do sol que vinham de volta. Com espanto nosso, víamos peixes nas profundezas do azul claro e límpido, quando, afinal, nos achávamos apenas pouco abaixo da superfície. Seriam talvez os peixes chamados bonitos, havendo ainda outras espécies que nadavam em tal profundidade que não os podíamos reconhecer. Às vezes faziam parte de imensos cardumes, e vinha-nos, frequentemente, vontade de saber se toda a corrente oceânica estava cheia de peixes, ou se aqueles que revoluteavam nos abismos se haviam reunido de propósito, sob a KonTiki, para nos fazer companhia por alguns dias.

O que mais apreciávamos era um mergulho à superfície quando os grandes atuns, de nadadeiras douradas, nos visitavam. De quando em quando, vinham até à jangada em cardumes, mas as mais das vezes apareciam juntos uns dois ou três que nadavam, em volta de nós, em tranquilos círculos, dias a fio, a não ser que conseguíssemos atraí-los ao anzol. Vistos da jangada, apenas pareciam grandes e pesados peixes escuros, sem nenhum adorno fora do comum, mas se chegávamos até junto deles, no seu próprio elemento, espontaneamente mudavam de cor e de forma. A transformação era tão assombrosa que várias vezes tínhamos de subir e orientar-nos de novo para saber-se era o mesmo peixe para o qual estávamos a olhar através da água. Aqueles peixes não nos davam a mínima atenção; imperturbáveis, continuavam as suas imponentes manobras; mas agora tinham adquirido maravilhosa elegância de forma, como jamais tínhamos visto em nenhum outro peixe, e a sua cor tornara-se metálica, com uns toques de violeta pálido. Possantes torpedos de prata e aço resplandecentes, de proporções perfeitas 168 e forma aerodinâmica, bastava-lhes mover levemente uma ou duas barbatanas para pôr os seus 68 kg a 82 kgs a deslizar na água com consumada graça. Quanto mais íntimo se fazia o nosso contacto com o mar e com tudo o que aí tinha o seu habitat, menos estranho se nos tornava, e mais à vontade também nos íamos ali sentindo. Aprendemos assim a respeitar os velhos povos primitivos que viviam na maior intimidade com o Pacífico, e por isso o conheciam de um ponto de vista completamente diferente do nosso. Talvez tenhamos, calculado a quantidade de sal que contém e dado nomes latinos aos dourados e aos atuns. Isto eles não fizeram, é certo. Contudo, não duvido que a ideia que tinham do mar corresponda melhor à verdade do que á nossa. Não havia, neste ponto do oceano onde estávamos, muitos marcos fixos. Ondas e peixes, sol e estrelas vinham e iam. Não se supunha existir nenhuma espécie de terra nas 4.300 milhas marítimas que separavam do Peru as ilhas dos mares do Sul. Ficámos, pois, muito surpreendidos quando, ao aproximar-nos de 100o Oeste, descobrimos que o mapa do Pacífico que tínhamos à vista assinalava a existência de

um recife na rota que íamos seguindo. Era marcado com um pequeno círculo, e como o mapa havia sido editado no mesmo ano, procurámos a referência em «Instruções Náuticas para a América do Sul». Eis o que lemos: «Em 1906 e novamente em 1926 foi assinalada a existência de cachopos a cerca de 600 milhas a Sudoeste das ilhas Galápagos, na latitude de 6°42'S., e na longitude de 9g°43'W. Em 1927, um vapor passou a uma milha a Oeste desta posição, mas não observou ressaca, e em 1934 outro vapor passou a uma milha na direcção Sul e não viu indício algum de escolhos. Em 1935 o navio-motor 169 Cowrie não obteve fundo a 160 toesas nesta posição». De acordo com os mapas, o lugar era claramente considerado como perigoso para a navegação, e como um navio de grande calado, aproximando-se demasiado de um baixio, corre maior risco do que nós correríamos com uma jangada, deliberámos dirigir a nossa derrota para o ponto marcado no mapa e ver o que encontraríamos. O recife estava assinalado um pouco mais para o Norte do que o ponto para o qual parecia que nos estávamos a dirigir; por isso, pusemos o remo de governo a estibordo e orientámos a vela quadrada de maneira que a proa apontasse mais ou menos para o Norte, ficando nós com o mar e o vento do lado de estibordo. Ora, aconteceu que as águas do Pacífico borrifaram os nossos sacos-cama um pouco mais que de costume, acrescendo que, ao mesmo tempo, o ar começou a refrescar consideravelmente. Verificámos, porém, com satisfação, que a Kon-Tiki podia, com segurança e firmeza, ser manobrada num ângulo muito aberto dentro do vento visto que este ainda se achava na nossa quadra. Mas, pelo contrário, a vela virava e dava-nos um trabalhão para pôr a jangada novamente na rota. Durante dois dias e duas noites, dirigimos a embarcação para Noroeste. O mar estava encapelado e não se podia prever como ficaria quando o vento alísio entrou a oscilar entre Sueste e Leste, mas sentíamo-nos levantar e daí a pouco descer ao sabor de todas as ondas que investiam connosco. Mantínhamos constante atalaia na ponta do mastro e, quando cavalgávamos as cristas das vagas, o horizonte dilatava-se. As ondas atingiam 1,80 m acima do nível do telhado da cabina de bambu, e se dois tremendos vagalhões se arremessavam juntos, erguiam-se ainda mais alto no combate

170 e, com um sibilo, atiravam ao ar uma coluna de água que podia espalhar-se nas mais diferentes direcções. Quando veio a noite, improvisámos, em frente à porta da cabina, uma barricada feita com caixotes de mantimentos, e nem assim o nosso repouso foi dos melhores. Mal acabávamos de pegar no sono, ouviu-se o primeiro estalo na parede de bambu, e enquanto mil esguichos de água penetravam por entre as frestas, uma torrente espumante se arrojou sobre as provisões e logo sobre nós. - Telefonem para o canalizador, ouvi alguém dizer com voz de sono, enquanto tratávamos de erguer-nos para dar passagem à água que alagava o chão. O canalizador não veio, e naquela noite tomámos bastante banho sem sair da cama. Até um enorme dourado, sem querer, entrou a bordo durante o quarto de Herman. No dia seguinte, o mar estava menos conturbado por ter o vento alísio resolvido soprar de Leste durante algum tempo. Revezámo-nos, no tope do mastro, pois agora esperávamos poder chegar pela tarde ao ponto para o qual estávamos com a proa voltada. Reparámos que, nesse dia, havia no mar mais vida que de costume. Talvez fosse por causa da tenção que lhe prestávamos que era maior. Depois do meio-dia, vimos um enorme espadarte que se aproximava da jangada junto à superfície. As duas pontudas barbatanas que ressaíam da água estavam a 1,80 m uma da outra, e o esporão parecia tão comprido quanto o corpo. O peixe descreveu uma curva bem perto do homem do leme e sumiu-se por detrás das cristas das ondas. Quando tomávamos a nossa refeição meridiana um tanto húmida e salgada, um vagalhão sibilante ergueu bem junto do nosso nariz uma grande tartaruga marítima com cabeça, concha e patas. Depois aquela onda deu lugar a duas outras, e a tartaruga foi-se tão subitamente como 171 tinha aparecido. Também desta vez vimos as brilhantes barrigas verdeesbranquiçadas dos dourados, de roldão pela água, por baixo do animal couraçado. Aquela área era extremamente rica em diminutos peixesvoadores, de 25 milímetros, que iam passando em grandes cardumes e

muitas vezes caíam a bordo. Notámos também a presença de uma ou outra skua (gaivota rapineira) e éramos visitados com regularidade por gaivotas, aves que sobrevoavam a jangada, de rabos bifurcados como gigantescas andorinhas. Acredita-se que as gaivotas sejam indício de terra próxima, o que fez aumentar o optimismo a bordo. - Talvez haja por aí, de qualquer forma, um escolho ou algum banco de areia, pensaram alguns. E os mais optimistas disseram: calculem se achamos uma ilhota virente e relvosa... Quem pode saber isso ao certo quando tão pouca gente andou por aqui antes de nós? Então teremos descoberto uma nova terra: a ilha de Kon-Tiki! A partir do meio dia, Erik não fazia outra coisa senão trepar ao caixote da cozinha e, de pé, piscando muito, olhar pelo sextante. Às 6,20 da tarde informou que a nossa posição era 6°42' Sul de latitude por 99°42' Oeste de longitude. Estávamos a uma milha marítima a Leste do recife assinalado no mapa. A verga de bambu foi baixada e a vela enrolada na coberta. Devia haver vento a Leste que nos conduzisse lentamente ao lugar marcado. Quando o sol velozmente descambou no mar, surgiu a lua cheia que, com todo o seu resplendor, iluminou a superfície do oceano, em ondulações pretas e prateadas de um horizonte a outro. Do tope do mastro, a visibilidade era boa. Víamos marulhos em todas parte, numa verdadeira série, mas não ressaca regular que pudesse denotar a existência de escolho ou baixio. Ninguém quis ir deitar-se; estavam todos atentos e dois ou três homens

172 subiram imediatamente ao mastro. E como nos achávamos no centro da área marcada, íamos sempre fazendo sondagens. Todos os prumos de chumbo que tínhamos a bordo foram atados à ponta de uma corda de seda de 54 fios e de mais de 500 toesas de comprimento, e embora a corda ficasse um tanto torta por causa da deriva da jangada, em todo caso o chumbo encontrava-se a uma profundidade de cerca de 400 toesas. E a verdade é que não havia fundo, nem a Leste do lugar, nem no centro, nem a Oeste dele. Demos um último olhar pela superfície do oceano e depois de termos a certeza de que a área se achava devidamente inspeccionada, estando livre de baixios de qualquer espécie, fizemo-nos de vela e colocámos o remo no seu lugar habitual,

de modo que tínhamos de novo o vento e o mar na nossa quadra de bombordo. E assim seguiu a jangada na sua derrota natural e livre. O vaivém das ondas continuava como antes, entre os toros abertos à ré. Podíamos agora comer e dormir enxutos, ainda mesmo recrudescendo, como por vários dias sucedeu, a fúria das ondas, enquanto os ventos alísios vacilavam de Este para Sueste. Nessa curta excursão, rumo ao falso escolho, aprendemos muita coisa «cerca da eficiência das quilhas corrediças, e quando, posteriormente, no decorrer da viagem, Herman e Knut mergulharam juntos debaixo da jangada e salvaram a quinta quilha corrediça, ficámos sabendo ainda mais particularidades a respeito dessas curiosas pranchas, uma coisa que ninguém mais entendeu desde que os índios abandonaram este esquecido desporto. Que a tábua fizesse o trabalho de uma quilha, permitindo à jangada mover-se num ângulo com o vento, era coisa da navegação ordinária. Quando, porém, os antigos espanhóis declararam que os índios em grande parte 173 «dirigiam» as suas jangadas de balsa, no mar, com «certas quilhas corrediças que introduziam nas fendas entre os toros de pau», isto parecia incompreensível tanto para nós como para todos que se haviam ocupado do problema. Como a quilha corrediça ficava segura simplesmente numa frincha estreita, não podia ser virada para o lado e servir de leme. Descobrimos o segredo da seguinte maneira: o vento havia-se firmado e o mar estava calmo novamente, de forma que a Kon-Tiki vinha, há dias, mantendo uma rota firme, sem precisarmos bulir no remo de governo que estava amarrado. Introduzimos numa frincha posterior a quilha corrediça recuperada, e no mesmo instante a Kon-Tiki alterou o curso vários graus de Oeste para Noroeste, prosseguindo com firmeza e tranquilamente na sua nova derrota. Se tornávamos a puxar para cima essa quilha, a jangada voltava ao curso primitivo. Se, porém, a puxávamos para cima só até o meio, a jangada voltava, apenas até meio, à marcha anterior. Com o simples erguer e baixar da quilha corrediça podíamos operar mudanças de curso e mantê-las sem bulir no remo de direcção. Era este o engenhoso sistema dos incas. Tinham inventado um sistema simples de balanças, mediante o qual a pressão

do vento na vela fazia do mastro o ponto fixo. Os dois braços eram respectivamente a jangada anterior e a posterior ao mastro. Se a superfície da quilha corrediça atrás era mais pesada, a proa girava livremente com o vento, mas se era mais pesada a superfície da quilha corrediça à frente, a popa rodava com o vento. As quilhas corrediças, que se acham mais próximas do mastro, têm naturalmente menos eficiência por causa da relação entre braço e força. Se o vento estava de popa, as quilhas corrediças deixavam de ser eficientes, e então 174 era impossível conservar firme a jangada sem continuamente pôr a trabalhar o remo de direcção. Se a jangada permanecia assim em todo o seu comprimento, era um pouco comprida demais para sulcar as águas livremente. E como a porta da cabina e o lugar onde tomávamos as refeições ficavam a estibordo, afrontávamos as ondas sempre na nossa quadra de bombordo. Certamente podíamos ter continuado a nossa viagem incumbindo o timoneiro ora de empurrar uma quilha corrediça por uma fenda abaixo, ora puxá-la para cima, em vez de puxar para o lado as cordas do remo de direcção, mas já estávamos tão acostumados a este que fixámos para as quilhas corrediças uma direcção geral e preferimos governar com o remo. Navegávamos havia já quarenta e cinco dias; tínhamos avançado do 78o grau de longitude ao 108o e achávamo-nos exactamente na metade do caminho para as primeiras ilhas. Havia mais de 2.000 milhas marítimas entre nós e a América do Sul a Leste, e igual distância à Polinésia a Oeste. A terra mais próxima, em qualquer direcção, eram as ilhas Galápagos a Lés-nordeste e a ilha de Páscoa ao Sul, ambas a mais de 500 milhas marítimas no oceano infindável. Não tínhamos visto um único navio e nunca vimos nenhum, porque estávamos fora das rotas de todo o tráfego marítimo ordinário no Pacífico. Mas, na realidade, não sentíamos essas enormes distâncias, pois, enquanto nos movíamos, o horizonte, sem que disso nos apercebêssemos, ia deslizando connosco, e o nosso mundo flutuante permanecia estático, um círculo arremessado à abóbada celeste, tendo por centro a própria jangada, ao passo que lá no alto, noite após noite, as mesmas estrelas brilhavam sobre nós.

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CAPÍTULO VI -- Através do Pacífico (II) Uma estranha embarcação - No botezinho - Progresso sem empecilhos - Ausência de balizas - No alto mar, numa cabina de bambu - Na longitude da ilha de Páscoa - O mistério da ilha de Páscoa - Os gigantes de pedra - Cabeleiras de pedra vermelha - Os «orelhas compridas» Tiki constrói uma ponte - Sugestivos nomes de lugares - Apanhando tubarões com as nossas mãos - O papagaio - LI 2B está a chamar Dirigindo a embarcação pelas estrelas - Três golpes de mar - Uma tempestade - Banho de sangue no mar, banho de sangue a bordo Homem ao mar - Outra tempestade - A Kon-Tiki» desconjunta-se Mensageiros da Polinésia. QUANDO o mar se achava menos revolto, metíamo-nos frequentemente, no botezinho de borracha para tirar fotografias. Não me posso esquecer da primeira vez que o mar estava tão manso que dois dos meus companheiros tiveram vontade de pôr na água aquela coisinha em forma de balão para ir dar uma volta. Ainda bem não tinham saído da jangada quando, depois de largar os reminhos, se sentaram e se puseram a rir às gargalhadas. E enquanto o marulho os levantava e eles desapareciam e tornavam a aparecer entre as ondas, riam tão alto, cada vez que nos avistavam, que as suas risadas 176 estrugiam sobre o desolado Pacífico. Nós olhávamos em derredor trocando mudamente impressões e nada víamos de cómico, a não ser as nossas caras barbadas e hirsutas; como naquela altura, os dois tripulantes do botezinho já deviam estar habituados com elas, principiámos vagamente a desconfiar que de súbito tivessem enlouquecido. Golpe de sol, talvez. Foi com dificuldade que os dois companheiros puderam de novo subir para bordo da Kon-Tiki, a rir

como uns perdidos. De boca aberta e com lágrimas nos olhos, pediramnos que fôssemos nós mesmos ver. Eu e outro pulámos para dentro do balouçante botezinho de borracha e fomos, desde logo, colhidos por uma onda que nos ergueu até à crista. Daí a um instante sentávamo-nos, de um baque, e dávamos também boas risadas. Tivemos de voltar para a jangada o mais depressa possível, a fim de acalmarmos os dois últimos que ainda não haviam saído, pois cuidaram que todos nós estávamos doidos varridos. O que causava aquela impressão, tão ridiculamente absurda, éramos nós próprios e a nossa soberba embarcação, a primeira vez que víamos o pitoresco conjunto a distância. É que ainda não tínhamos tido tal vista exterior em alto mar. Os toros de madeira desapareciam atrás de qualquer mareta, e quando conseguíamos ver alguma coisa, era a cabina baixa com a larga porta e o cerdoso telhado de folhas que emergia de entre as ondas. A jangada assemelhava-se a um velho depósito de feno norueguês que estivesse a boiar, ao desamparo, no meio do oceano, um palheiro fora de prumo e cheio de indivíduos barbudos e tisnados de sol. Se algum banhista tivesse vindo atrás de nós a nadar, pelo mar em fora, teríamos sentido a mesma vontade de rir. Qualquer onda 177 um pouco maior rolava até o meio da cabina e dava a impressão de que invadiria tudo, sem resistência, pela larga abertura da porta diante da qual se achavam os barbaças boquiabertos. Mas, de repente, a pobre jangada tornava a surgir sobre a superfície, e os vagabundos lá estavam, tão enxutos, hirsutos e intactos como antes. Se vinha a passar algum vagalhão de mais respeito, dir-se-ia que cabina, vela e o mastro inteiro iam ser tragados pela montanha de água, mas era mais que certo estarem novamente ali, no mesmo momento, com os seus vagabundos. A aparência da jangada era má, e não podíamos compreender como até ali as coisas tinham corrido tão bem, a bordo da estrambótica embarcação. De outra vez que fomos dar umas remadas fora, para rirmos um pouco de nós mesmos, quase nos aconteceu um desastre. O vento e o mar estavam mais impetuosos do que supúnhamos, e a Kon-Tiki ia abrindo

caminho sobre as vagas com muito mais celeridade do que julgávamos. Por isso, tivemos de remar no mar alto para salvar as nossas vidas, envidando esforços para alcançarmos a ingovernável jangada que não podia parar e esperar e provavelmente não podia virar-se e voltar atrás. Mesmo depois que os tripulantes da Kon-Tiki amainaram a vela, o vento maltratou tanto a cabina de bambu que a jangada de madeira de balsa derivou para Oeste, e eis-nos a acompanhá-la de rota batida no gigante botezinho de borracha, com os seus insignificantes remos de brinquedo. Havia um único pensamento na cabeça de cada homem - nós não podíamos ficar separados. Foram horríveis aqueles minutos passados no mar, até que nos foi dado de novo alcançar a fugitiva jangada e arrastarmo-nos para junto dos companheiros. Desse dia em diante, foi expressamente proibido sair 178 no botezinho de borracha sem primeiro se amarrar à proa uma linha comprida, de modo que os que ficavam a bordo pudessem, sendo necessário, puxá-lo para dentro. Por isso nunca mais nos afastámos muito da jangada, excepto quando o vento era brando e o Pacífico fazia jus ao nome. Mas só tivemos essas condições quando a jangada se achava a meio caminho da Polinésia e o oceano, dominando tudo, se arqueava em redor do globo, em todos os rumos dos ventos. Então pudemos, com segurança, deixar a Kon-Tiki e dar uma remadas pelo espaço azul entre o céu e o mar. Quando víamos os contornos da nossa embarcação irem minguando sempre com a distância, e a grande vela reduzir-se afinal a um vago quadrado negro no horizonte, invadianos, às vezes, o sentimento da solidão. O mar curvava-se debaixo de nós num azul infindo como o céu por cima, e onde os dois se encontravam todo o azul confluía, confundindo-se. Quase nos sentíamos suspensos no espaço; todo o nosso mundo era vazio e azul; não havia nele nenhum ponto fixo, a não ser o sol tropical, dourado e quente, que nos queimava o pescoço. Então a vela distante da solitária jangada atraía-nos a si como um ponto magnético no horizonte. Voltávamos, metíamo-nos a bordo e percebíamos estar de novo no nosso mundo, a bordo, sim, mas em solo firme e seguro. E no interior da cabina de bambu encontrávamos sombra, sentíamos o cheiro de bambu e de folhas murchas de palmeira. A pureza azul do sol lá de fora

era-nos agora servida em larga escala, através da parede aberta da cabana. Assim, estávamos habituados aquilo e achávamos bom por algum tempo, até que o azul vasto e límpido nos tentava de novo a sair. É de assinalar aqui o efeito psicológico que a mísera cabina de bambu exercia no nosso espírito. 179 Media 2,40 m por 4,20, e para diminuir a pressão do vento e do mar era de construção tão baixa que não podíamos ficar em pé sem dar com a cabeça no tecto. As paredes e a coberta eram feitas de fortes hastes de bambu amarradas e tapadas por uma sebe de varas também de bambu. Os paus que formavam a parede, verdes e amarelos, com a rendada folhagem pendente do tecto, descansavam mais a vista do que uma parede branca de cabina, e embora a parede de bambu do lado de estibordo fosse aberta em um terço do seu comprimento, e o telhado e paredes deixassem entrar o sói e o luar, aquele cochicho primitivo dava uma sensação de segurança maior do que, em idênticas circunstâncias, o dariam compartimentos de navios pintados de branco e com as portinholas fechadas. Tentámos achar uma explicação para esse facto curioso e chegámos ao seguinte resultado: a nossa consciência não podia jamais ter associado a uma viagem marítima uma morada de bambu coberta de folhas de palmeira. Não havia harmonia natural entre o oceano imenso e a choça de palmas exposta às correntes de vento e flutuando entre as ondas. Portanto, ou a choça teria de parecer inteiramente deslocada no meio das ondas, ou estas teriam de parecer inteiramente deslocadas em redor daquela. Enquanto permanecíamos a bordo, a choça de bambu e seu cheiro de selva eram perfeita realidade, e as ondas agitadas afiguravam-se meio imaginárias. Mas, do botezinho de borracha, ondas e choça trocavam os -papéis. A circunstância de que os toros de madeira de balsa sulcavam sempre o oceano como uma gaivota, e, num golpe de mar a bordo, deixavam a água escoar-se pela parte posterior, dava-nos confiança inabalável na parte seca do centro da jangada onde estava a cabana. Quanto mais durava a viagem, mais seguros nos sentíamos na nossa 180

aconchegada toca, e olhávamos para as ondas de cristas brancas que passavam a bailar pela nossa porta como se fossem um impressionante espectáculo cinematográfico de que estávamos completamente a salvo. Embora a esburacada parede se encontrasse apenas a um metro e meio da desprotegida beira da jangada e somente a quarenta e cinco centímetros acima da linha de flutuação, contudo, uma vez que, curvando-nos, transpúnhamos a porta e penetrávamos na nossa choupana, tínhamos a impressão de que nos achávamos a muitas milhas do mar e de que ocupávamos uma moradia nas selvas, muito afastada dos perigos do oceano. Ali nos deitávamos de costas e ficávamos a olhar para o curioso telhado, retorcido como ramos ao vento, e apreciávamos o cheiro agreste de madeira tosca, de bambus e de palmas secas. Às vezes também saíamos no pequeno bote de borracha para ver que tal éramos à noite. De todos os lados erguiam-se os paredões negros das ondas, e miríades de cintilantes estrelas tropicais provocavam um frouxo reflexo dos plânctones na água. O mundo era simples: estrelas na escuridão. Se o ano em que estávamos era 1947 d.c. ou 1947 a.c, tornava-se subitamente coisa sem importância. Estávamos vivos, e sentíamo-lo em plena intensidade. Compreendíamos que a vida também fora cheia para os homens que existiram antes da idade da técnica, mais cheia até e mais rica a muitos respeitos do que a vida do homem moderno. O tempo e a evolução, de certo modo, cessavam de existir; tudo o que era real e tudo o que oferecia importância era o mesmo hoje que sempre tinha sido e que sempre seria; nós estávamos, por assim dizer, engolidos pela medida comum absoluta da História, escuridão intérmina e ininterrupta sob um cardume de estrelas. Na nossa frente, nas trevas, a Kon-Tiki 181 erguia-se de entre as vagas para de novo mergulhar por detrás de negras massas de água, que se elevavam como torreões entre ela e nós. À claridade do luar havia uma singular atmosfera em volta da jangada. Sólidos toros de pau franjados de algas, o negríssimo contorno quadrado de uma vela que fazia lembrar a dos velhos vikings, uma cerdosa choupana de bambu com a luz amarela de uma lâmpada de parafina na parte posterior - aquele conjunto trazia à mente antes a

representação de um conto de fadas do que a pura realidade. De vez em quando, a jangada desaparecia, completamente oculta pelas ondas negras; depois tornava a levantar-se e recortava-se em silhueta, contra as estrelas, enquanto a água faiscante escorria dos troncos. Quando observávamos a atmosfera que se espraiava sobre a solitária jangada, podíamos ver, em espírito, toda a flotilha de embarcações similares, dispersas em forma de leque, para lá do horizonte, a fim de aumentar as probabilidades de achar terra, em que os primeiros homens empreenderam a travessia desse mar. O inca Tupak Yupanqui, que submetera ao seu domínio o Peru e o Equador, atravessou o oceano com uma armada de vários milhares de homens em jangadas de madeira de balsa, pouco antes da chegada dos espanhóis, em busca de ilhas que constava existirem no Pacífico. Encontrou duas ilhas que alguns pensam terem sido as Galápagos, e depois de oito meses de ausência, ele e os seus numerosos remadores, dificilmente conseguiram voltar ao Equador. Kon-Tiki e os que o seguiam tinham certamente navegado em formação idêntica, algumas centenas de anos antes, mas depois de terem descoberto as ilhas polinésias, não tinham motivo para tentar a viagem de regresso. 182 Quando de novo saltávamos para bordo da jangada, muitas vezes sentávamo-nos em círculo, rodeando a lâmpada de parafina sobre a coberta de bambu e conversávamos acerca dos navegadores do Peru que tinham tido as mesmas experiências 1500 anos antes de nós. A lâmpada projectava na vela sombras colossais de homens barbados, e nós pensávamos nos homens brancos, também barbados, do Peru, a quem podíamos seguir na mitologia e na arquitectura, desde o México até a América Central e, penetrando na área Noroeste da América do Sul, até o Peru; aqui essa misteriosa civilização desaparecia como que ao golpe de uma vara mágica, antes da chegada dos incas, e reaprecia quase que de súbito nas ilhas solitárias do Ocidente de onde agora nos estávamos a aproximar. Seriam os mestres errantes homens de uma primitiva raça civilizada de além do Atlântico, que em tempos passados, da mesma maneira simples, tinham vindo com a corrente oceânica ocidental e os ventos alísios, das ilhas Canárias até ao golfo do México? Era esta realmente uma distância bem mais curta do que a que

estávamos vencendo, e nós já não acreditávamos no mar como factor completamente isolante. Muitos investigadores sustentaram, com razões de peso, que as grandes civilizações indígenas, dos aztecas do México aos incas do Peru, foram inspiradas por súbitos impulsos vindo de além-mar a Leste, enquanto os indígenas da América são em geral povos asiáticos, caçadores e pescadores, que, vindo da Sibéria, no decurso de 20.000 anos ou mais, foram-se infiltrando na América. É, por certo, circunstância digna de nota a não existência de nenhum vestígio de desenvolvimento gradual nas altas civilizações, que outrora se estenderam do México ao Peru. Quanto mais fundo cavam os arqueólogos, mais alta é a cultura, até ser atingido um ponto definido a 183 que as antigas civilizações nitidamente se elevaram, sem qualquer base, por entre as culturas primitivas. E as civilizações ergueram-se no ponto em que entra a corrente do Atlântico, no meio das regiões desertas e selváticas da América Central e Meridional, e não nas regiões mais temperadas em que as civilizações, tanto nos tempos antigos como nos modernos, tiveram condições mais fáceis para o seu desenvolvimento. £ o que também se observa nas ilhas dos mares do Sul. A mais próxima do Peru, a ilha de Páscoa, é aquela que ostenta os vestígios mais fundos de civilização, embora a insignificante ilhota seja seca e estéril, e de todas as ilhas do Pacífico a mais afastada da Ásia. Quando completámos metade da nossa viagem, tínhamos vencido a distância que vai do Peru à ilha de Páscoa, tendo diante de nós, ao Sul, a ilha lendária. Havíamos deixado o continente num pomo qualquer do meio do litoral peruano, para arremedar a partida de uma jangada antiga. Se tivéssemos saído da terra firme mais para o Sul, mais perto das ruínas de Tiahuanaco, a cidade de Kon-Tiki, teríamos o mesmo vento, mas uma corrente mais fraca, que nos conduziria na direcção da ilha de Páscoa. Quando passámos 110° Oeste, estávamos dentro da área oceânica da Polinésia, tanto quanto a ilha de Páscoa polinésia estava agora mais próxima do Peru que nós. Achávamo-nos no nível do primeiro posto avançado das ilhas dos mares do Sul, o centro da mais antiga civilização insulana. E quando, à noite, o nosso guia brilhante baixava

do céu e desaparecia no Poente com todo o seu espectro solar, o brando sopro dos ventos alísios dava vida às histórias do estranho mistério da ilha de Páscoa. Enquanto o céu nocturno abafava qualquer concepção 184 de tempo, as cabeças dos gigantes barbados eram de novo projectadas na vela. Mas para o Sul, na ilha de Páscoa, estavam em pé cabeças de gigantes ainda maiores, talhadas em pedra, de barbas pontudas e feições de homens brancos, meditando sobre o arcano dos séculos. Assim estavam elas quando os primeiros europeus descobriram a ilha em 1722, e assim estavam vinte e duas gerações polinésias antes, quando os habitantes actuais desembarcaram das suas canoas e exterminaram todos os homens adultos que encontraram entre os misteriosos povos civilizados da ilha. Desde então as gigantescas cabeças de pedra da ilha de Páscoa tem figurado entre os primeiros símbolos dos mistérios insolúveis da antiguidade. Espalhadas pelas encostas daquela ilha sem árvore, as descomunais figuras ergueram-se para o céu, colossos de pedra esplendidamente esculpidos em forma humana, e ali instalados como um bloco único da altura de uma casa comum de três ou quatro andares. Como tinham podido os homens daquele tempo aperfeiçoar, transportar e erigir tão gigantescos colossos de pedra? Como se o problema não fosse suficientemente grande, tinham conseguido equilibrar mais um gigantesco bloco de pedra vermelha, qual colossal cabeleira, no alto de várias das cabeças, a cerca de onze metros acima do solo. Que significava tudo isto e que espécie de ciência mecânica possuíam os desaparecidos arquitectos que conheciam a fundo problemas suficientemente grandes para os engenheiros da actualidade? Se reunirmos os dados de que dispomos, talvez não seja afinal insolúvel o mistério da ilha de Páscoa, desde que vejamos, no fundo do quadro, uns homens em jangada vindos do Peru. A velha civilização deixou nesta ilha traços que a patina do tempo não logrou apagar. 185

A ilha de Páscoa é constituída pelo cume de um antigo vulcão extinto. Estradas calçadas, feitas pelos habitantes civilizados de outrora, levam a desembarcadouros em bom estado existentes na costa e mostram que a profundidade da água, em torno da ilha, era exactamente a mesma que é hoje. Não se trata de restos de um continente submerso, mas de uma desolada ilhota, hoje tão pequena e solitária como quando era o centro cultural do Pacífico. No centro dessa ilha em forma de cunha, está a extinta cratera do vulcão e, em baixo, fica a surpreendente pedreira e oficina dos escultores. Lá está ela exactamente como a deixaram os velhos artistas e arquitectos há centenas de anos, ao fugirem à pressa para a parte oriental da ilha, onde, segundo a tradição, o povo recentemente chegado à ilha matou todos os homens adultos que a habitavam. E a súbita interrupção do trabalho dos artistas dá uma ideia clara do que era um dia comum de trabalho na cratera da ilha de Páscoa. Os machados de pedra dos escultores, de uma rijeza de pederneira, jaziam por ali na oficina e mostram que esse povo civilizado não conhecia o ferro, como o não conheciam os escultores de Kon-Tiki quando, perseguidos, fugiram do Peru, deixando espalhados pelo planalto dos Andes gigantescas estátuas de pedra semelhantes. Em ambos os lugares pode ser encontrada a pedreira onde o lendário povo branco, barbado, cortava no flanco da montanha os blocos de pedra de nove ou doze metros de comprimento, servindo-se de machados de uma pedra ainda mais dura. E em ambos os lugares, os gigantescos blocos, pesando várias toneladas, eram transportados por muitos quilómetros sobre solo áspero antes de serem postos em pé como enormes figuras humanas, ou erguidos uns por cima de outros para formar misteriosas plataformas e muralhas. 186 Muitas estátuas descomunais, não concluídas, estão ainda onde foram começadas, no interior da cratera da ilha de Páscoa, e mostram como o trabalho era executado nas suas diferentes fases. A maior figura humana, que estava quase terminada quando os construtores foram obrigados a fugir, tinha pouco mais de vinte metros de comprimento; posta em posição erecta, quando completada, a cabeça desse colosso de pedra ficaria à altura de um prédio de oito andares. Cada figura

distinta era feita com a pedra tirada de um único bloco, e os recantos de trabalho ocupados pelos escultores, em redor da figura de pedra deitada, evidenciam que não eram muitos os homens a trabalhar, ao mesmo tempo, em cada estátua. Deitadas de costas, com os braços curvos e as mãos colocadas sobre o estômago, tal qual os colossos de pedra do Peru, as estátuas da ilha de Páscoa eram completadas nos mínimos detalhes antes de serem removidas da oficina e transportadas aos seus destinos, nos diferentes lugares da ilha. Na última fase, no interior da pedreira, o gigante era amarrado à rocha apenas por uma estreita aresta debaixo das costas; depois, também a aresta era desfeita, passando o colosso a ser apoiado por pedras. Grandes quantidades destas estátuas eram arrastadas para o fundo da cratera e aí postas na vertente. Mas uma boa parte dos maiores desses colossos eram transportados para cima c, sobre a parede da cratera e, por muitos quilómetros, arrastados sobre terreno difícil antes de serem colocados numa plataforma de pedra e de receberem, sobre a cabeça, mais uma pedra descomunal de lava vermelha. Esse transporte já de si parece uni mistério, mas não se pode contestar que se tenha dado nem que os arquitectos desaparecidos do Peru tivessem deixado nas montanhas andinas colossos de pedra de igual tamanho. 187 demonstrando que eram também peritos nessa especialidade. Embora os monólitos sejam maiores e mais numerosos na ilha de Páscoa, a mesma desaparecida civilização erigiu gigantescas estátuas semelhantes, em forma humana, em muitas das outras ilhas do Pacífico mais próximas da América, e em toda a parte os monólitos eram trazidos de pedreiras distantes para o lugar do templo. Nas Marquesas ouvi lendas sobre o modo pelo qual as gigantescas pedras eram manobradas, e como essas lendas correspondiam, exactamente, às histórias dos naturais a respeito do transporte dos pilares de pedra ao imenso portal de Tongatabu, pode-se conjecturar que o mesmo povo empregava igual método com as colunas, na ilha de Páscoa. O trabalho dos escultores na cavidade consumia longo tempo, mas exigia apenas alguns artistas. O transporte de cada estátua pronta era feito com mais rapidez, mas, por outro lado, requeria maior quantidade de homens. A pequena ilha de Páscoa era rica de peixe e inteiramente

cultivada, existindo grandes plantações de batata doce do Peru. Opinam os entendidos que a ilha, na sua época de esplendor, pode ler tido uma população de sete ou oito mil almas. Uns mil homens eram mais que suficientes para puxar as descomunais estátuas para cima da parede íngreme da cratera, ao passo que bastava quinhentos homens para as arrastar para a frente, através da ilha. Com filaça e fibras vegetais trançavam cabos sólidos e duráveis e, usando formas de pau, a multidão arrastava o colosso de pedra sobre troncos e pedras tornadas escorregadias com raízes de taro. É um facto assaz conhecido que, na fabricação de cordas e cabos, eram mestres os antigos povos civilizados das ilhas dos mares do Sul e mais ainda do Peru, onde os primeiros europeus acharam pontes pênseis de mais de noventa metros de comprimento 188 lançadas sobre torrentes e desfiladeiros por meio de cabos trançados, tão grossos como a cintura de um homem. Quando o colosso de pedra chegava ao lugar escolhido e ia ser posto em pé, surgia outro problema. A multidão construía, provisoriamente, um plano inclinado de pedra e areia, e puxava o gigante para cima pelo lado menos íngreme, com as pernas para a frente. Quando a estátua chegava ao alto, passava rapidamente sobre uma quina aguda e escorregava dali para baixo, de modo que a parte inferior se encaixava numa cavidade anteriormente preparada. Com o plano inclinado completo ainda lá estava, roçando na parte posterior da cabeça do gigante, rolavam para cima mais um cilindro de pedra e punham-no no alto da cabeça, antes de ser removido todo o plano inclinado. Planos inclinados, prontos de antemão como este, encontraram-se em vários lugares da ilha de Páscoa, aguardando figuras colossais que nunca vieram. A técnica era admirável, mas de modo algum misteriosa se deixarmos de subestimar a inteligência dos homens de outras épocas, e o tempo e o material humano de que dispunham. Mas por que faziam eles tais estátuas? E por que era necessário ir directamente dali a outra pedreira, que ficava a mais de seis quilómetros da oficina da cratera para achar uma qualidade especial de pedra vermelha afim de pôr sobre a cabeça da estátua? Tanto na América do Sul como nas ilhas Marquesas, muitas vezes a estátua inteira era dessa

pedra vermelha, e faziam grandes caminhadas para obtê-la. Os toucados vermelhos era um traço característico das pessoas de posição tanto na Polinésia como no Peru. Vejamos primeiro o que representavam as estátuas. Quando os primeiros europeus visitaram a ilha, viram 189 misteriosos «homens brancos» na praia, e, em contraste com o que é usual entre povos desta espécie, encontraram homens com longas barbas esvoaçantes, descendentes das mulheres e crianças pertencentes à primeira raça da ilha, que haviam sido poupados pelos invasores. Os próprios indígenas declararam que alguns de seus antepassados tinham sido brancos, ao passo que outros eram morenos. De acordo com as suas conjecturas, estes últimos haviam imigrado de alguma parte da Polinésia vinte e duas gerações antes, enquanto que os primeiros tinham vindo do Leste em grandes navios, nada menos que cinquenta e sete gerações antes (isto é, aproximadamente 400-500 d.c). Aos representantes da raça oriunda de Leste foi dado o nome de «orelhas compridas)», porque aumentavam as orelhas artificialmente pendurando pesos nos lóbulos, de modo que estes chegavam a baixar até os ombros. Eram os misteriosos «orelhas compridas» que foram mortos quando os «orelhas curtas» chegaram à ilha, e todas as figuras de pedra da ilha de Páscoa tinham orelhas grandes que davam até os ombros, como as tinham os próprios escultores. Ora, as lendas incas do Peru dizem que o Rei-Sol Kon-Tiki governava um povo branco, barbado, ao qual os incas davam o nome de «orelhas grandes», por haverem aumentado artificialmente as orelhas que desciam até os ombros. Acentuavam os incas que tinham sido os «orelhas grandes» de Kon-Tiki que erigiram as abandonadas estátuas gigantescas nas montanhas andinas, antes de serem exterminados ou expulsos pelos próprios incas na batalha travada numa ilha junto do lago Titicaca. Em suma, os brancos «orelhas grandes» desapareceram do Peru dirigindo-se para Oeste com ampla experiência de trabalho em colossais estátuas de pedra, e os brancos 190

«orelhas compridas» de Tiki chegaram à ilha de Páscoa vindos de Leste, hábeis precisamente na mesma arte que logo continuaram com inteira perfeição, de modo que na pequena ilha de Páscoa não se pode achar o menor vestígio de qualquer desenvolvimento anterior conduzindo às obras-primas existentes na ilha. Há, frequentemente, maior semelhança entre as grandes estátuas de pedra do Peru e as de certas ilhas dos mares do Sul que entre os monólitos das diversas ilhas dos mares do Sul, comparados uns com os outros. Nas ilhas Marquesas e em Taiti, essas estátuas eram conhecidas pelo nome genérico de Tiki, e representavam antepassados de renome na história das ilhas que, depois de sua morte, haviam sido contados entre os deuses. E está aí, sem dúvida, a explicação dos curiosos gorros vermelhos das estátuas da ilha de Páscoa. Como ficou dito, existiram, em todas as ilhas da Polinésia, indivíduos esparsos e famílias inteiras de cabelo avermelhado e pele clara, e os próprios ilhéus declaram que eram justamente estes os descendentes do primeiro povo branco das ilhas. Havia, em algumas dessas ilhas, festas religiosas, cujos participantes pintavam de branco a tez e de vermelho o cabelo para se parecerem com seus avós. Em cerimónias anuais, realizadas na ilha de Páscoa, a figura principal da festa rapava a cabeça para poder pintá-la de vermelho. E os colossais gorros de pedra vermelha, postos sobre as gigantescas estátuas da ilha de Páscoa, eram talhados na forma típica dos penteados locais; tinham, no alto um nó, exactamente como os homens amarravam o cabelo com um pequeno nó tradicional no meio da cabeça. As estátuas da ilha de Páscoa possuíam orelhas compridas porque como disse também as tinham os próprios escultores. Haviam escolhido, especialmente, 191 pedras vermelhas para servirem de cabeleiras, porque os escultores também tinham cabelo avermelhado. Essas estátuas ostentavam ainda o queixo pontudo e saliente porque os escultores deixavam crescer a barba. Apresentavam a fisionomia típica da raça branca, com nariz recto e pequeno e lábios finos, porque os escultores não pertenciam à raça malaia. E quando as estátuas possuíam cabeças enormes e pernas miúdas, com mãos colocadas sobre o estômago, é que era justamente

desse modo que o povo do Peru costumava fazer estátuas gigantescas. O único ornato das figuras da ilha de Páscoa é um cinto que era sempre talhado em volta do estômago da estátua. O mesmo cinto simbólico se vê em todas as estátuas das antigas ruínas de Kon-Tiki, perto do lago Titicaca. É o lendário emblema do deus-sol, o cinto do arco-íris. Conforme um mito corrente em Mangareva, o deus-sol tirara o arco-íris, que era o seu cinto mágico, e por ele descera do céu até Mangareva, a fim de povoar a ilha com os seus filhos de pele branca. Outrora, o sol era considerado como o mais antigo antepassado em todas aquelas ilhas, bem corno no Peru. Costumávamos sentar-nos no convés, sob o céu estrelado, e recordar a estranha história da ilha de Páscoa, muito embora a nossa jangada nos estivesse a levar directamente para o coração da Polinésia, de maneira que dessa ilha longínqua nada veríamos, a não ser o seu nome no mapa. Mas a ilha de Páscoa tem tantos traços do Oriente que até o seu nome pode servir de indicador. No mapa aparece esse nome «ilha de Páscoa» porque um holandês a «descobriu» num domingo de Páscoa. E nós esquecemo-nos que os próprios naturais, que já lá viviam, tinham para a sua terra nomes mais instrutivos e mais significativos. Esta ilha tem nada menos que três nomes em polinésio. 192 Um deles é Te-Pito-te-Henua, que significa «umbigo das ilhas». Este nome poético coloca, claramente, a ilha de Páscoa numa posição especial em relação às outra» ilhas situadas mais para o Oeste, sendo, consoante os próprios polinésios, a mais antiga designação da ilha de Páscoa. Na banda ocidental da ilha, próximo ao tradicional lugar de desembarque dos primeiros «orelhas compridas», há uma esfera de pedra cuidadosamente feita com ferramenta, a que deram a designação de «umbigo de ouro», sendo por sua vez considerado o umbigo da própria ilha de Páscoa. Quando os poéticos antepassado» polinésios cinzelaram o umbigo da ilha na costa oriental e escolheram a ilha mais vizinha do Peru como o umbigo de suas miríades de ilhas situadas mais para o Oeste, esse facto revestiu-se de um significado simbólico. E quando sabemos que a tradição polinésica se refere ao descobrimento das ilhas como o seu «nascimento», com isto nitidamente se sugere

que, dentre os demais lugares, a ilha de Páscoa era considerada como o símbolo do nascimento das outras ilhas e o traço de união com a mãe-pátria original. O segundo nome da ilha de Páscoa é Rapa-nui e significa «Grande Rapa», enquanto que Rapa-iti ou «Pequena Rapa» é outra ilha do mesmo tamanho, sita a grande distância a Oeste da ilha de Páscoa. Ora, é prática natural de todos os povos chamarem à sua primeira pátria, por exemplo, Grande Rapa, ao passo que a seguinte é chamada Nova Rapa ou Pequena Rapa, ainda que os lugares sejam do mesmo tamanho. E na Pequena Rapa o» nativos sustentam a tradição, muito ortodoxa, de que o» primeiros habitantes da ilha vieram da Grande Rapa, a ilha de Páscoa, a Leste, mais perto da América. Isto é alusão directa a uma primitiva emigração do Oriente.

193 O terceiro e último nome desta ilha-chave é Mata-Kitc-Rani e quer dizer «o olho (que) olha (para) o céu». A primeira vista, isto causa alguma hesitação, pois a ilha de Páscoa, relativamente baixa, não olha para o céu mais que as outras elevadas ilhas montanhosas, por exemplo Taiti, as Marquesas ou Hawai. Mas Rani tinha para os polinésios duplo significado. Era também a pátria de origem de seus avós, a terra santa do deus-sol, o montanhoso reino abandonado de Tiki. E é muito expressivo o facto de terem eles dado precisamente ao posto avançado que é a ilha de Páscoa, dentre os milhares de ilhas do oceano, o nome de olho que olha para o céu. Mais notável é ainda a circunstância de que o nome afim Mata-Rani, que cm polinésio significa «o olho do céu», é um velho nome local do Peru, o de um lugar na costa peruana do Pacífico, defronte da ilha de Páscoa, e logo abaixo da vetusta cidade em ruínas de Kon-Tiki, nos Andes. A ilha de Páscoa, sozinha, dava-nos assunto de sobra para conversa enquanto estávamos sentados no convés sob o céu estrelado, sentindonos participantes de toda a aventura pré-histórica. Quase nos vinha a impressão de que não fizéramos outra coisa, desde os tempos de Tiki, senão correr o mar sob o sol e as estrelas em busca de terra. Já não tínhamos o mesmo respeito às ondas e ao oceano. Conhecíamo-los e conhecíamos as suas relações com os que iam na jangada. O próprio tubarão passara à categoria de episódio corriqueiro; conhecíamo-lo e conhecíamos as suas relações usuais. Não pensávamos mais no arpão portátil e nem sequer nos afastávamos da beira da jangada se um tubarão dela se aproximava. Pelo contrário, o mais comum era tentarmos agarrar-lhe a barbatana dorsal quando roçava, imperturbável, 194 pelos toros da embarcação. Com o tempo, veio até a desenvolver-se um agradável desporto - pescar tubarão sem linha. Principiámos muito modestamente. Apanhávamos, com a maior facilidade, mais dourados do que era preciso para o consumo. Para manter uma forma popular de diversão sem ter de desperdiçar comida, descobrimos um cómico sistema de pescar sem anzol, para mútuo

entretenimento nosso e dos dourados. Atávamos, num cordel, peixesvoadores sem préstimo e fazíamo-los deslizar sobre a superfície da água. Os dourados acorriam logo e abocanhavam o peixe. Então nós puxávamos, cada qual em sua direcção, e tínhamos um bom espectáculo, pois se um dourado soltava a presa, vinha outro em seu lugar. Divertíamo-nos e por fim os dourados ficavam com os peixes. Então começámos a fazer o mesmo jogo com os tubarões. Púnhamos um pedaço de peixe na ponta de uma corda ou, amiúde, um saco com restos do jantar, que pendurávamos numa linha. Em vez de se virar de costas, o tubarão empurrava o focinho acima da água e vinha nadando, com as mandíbulas escancaradas, para engolir o engodo. Não podíamos deixar de puxar pela corda justamente no momento em que o tubarão ia de novo fechar as mandíbulas, e o peixe, enganado, continuava a nadai com uma expressão de indizível toleima e paciência, e tornava a abrir as mandíbulas para abocanhar as sobras que lhe escapavam de cada vez que tentava engoli-las. O final da manobra era vir o peixe até os toros e pular como um cão pedinte, atraído pela isca que balançava num saco pouco acima de seu focinho. Era como se estivéssemos num jardim zoológico dando comida a um hipopótamo de boca aberta, e um dia, pelos fins de Julho, depois 195 de passarmos três meses a bordo da jangada, a seguinte nota deu entrada no diário: «(Estabelecemos amizade com o tubarão que hoje nos acompanhou. Ao jantar alimentámo-lo com sobejos que atirávamos directamente para dentro das suas mandíbulas abertas. Quando vai a nadar ao nosso lado, faz lembrar um pouco um cão meio feroz, meio bonachão e amigo. Não se pode negar que os tubarões parecem bastante agradáveis enquanto não se cai dentro das suas mandíbulas. Pelo menos, achamos divertido tê-los em redor de nós, excepto quando estamos a tomar banho.» Um dia, uma vara de bambu, com um saco de comida para tubarões amarrado num cordel, estava na beira da jangada, pronta para ser utilizada, quando um golpe de mar a arrebatou violentamente. A vara de bambu ainda boiava a mais de cem metros da parte posterior da jangada, quando de repente ficou em pé na água e precipitadamente

veio vindo, sozinha, atrás da jangada, como se tivesse intenção de voltar espontaneamente para o seu antigo lugar. Quando a cana de pescar se aproximou, balouçando, para mais perto de nós, vimos um tubarão de três metros nadando logo abaixo dela, enquanto que a vara de bambu ressaía fora das ondas como um periscópio. O peixe engolira o saco de comida sem trincar a linha. Pouco depois a cana de pescar alcançou-nos e, sossegadamente, passou por nós e desapareceu mais além. Se é verdade que, pouco a pouco, passámos a olhar para o tubarão com olhos bem diferentes, jamais desapareceu o respeito que nos infundiam aquelas cinco ou seis carreiras de dentes afiados como navalhas, sempre de emboscada no interior das colossais mandíbulas. Um dia, Input, sem querer, nadou em companhia de um tubarão. A ninguém era permitido nadar longe da 196 jangada, quer em atenção à sua marcha, quer por causa dos tubarões. Um dia, porém, que tudo estava calmo, e depois de termos arrastado para bordo os tubarões que nos vinham a acompanhar, houve permissão para se dar um rápido mergulho no mar. Input atirara-se para dentro de água e só bem longe tornou aparecer à superfície. .No instante em que ia empreender a volta, vimos do mastro uma sombra maior do que ele vir a subir atrás do banhista, mas bem mais no fundo. Demos aviso com voz forte, porém com a devida prudência a fim de não criar o pânico, e Input soergueu-se e nadou em direcção ao lado da jangada. Mas a sombra lá em baixo era de um nadador ainda melhor, que irrompeu do fundo e quase ia bater Input. Chegaram à jangada ao mesmo tempo. Enquanto Input trepava para bordo, um tubarão de 1,80 m deslizou pouco abaixo de seu estômago e deteve-se ao lado da jangada. Demos-lhe uma apetitosa cabeça de dourado em agradecimento por não ter abocanhado o nosso companheiro. Geralmente o que excita a voracidade dos tubarões é mais o cheiro do que a vista. Para os pôr à prova, sentávamo-nos com as pernas na água, e eles nadavam na nossa direcção até se acharem mais ou menos a meio metro da jangada, e daí pacificamente voltavam, de novo, as caudas para nós. Se, porém, a água apresentava manchas de sangue, poucas que fossem, o que se verificava quando tínhamos

estado a preparar peixe, as nadadeiras dos tubarões movimentavam-se, e eles, vindo de longe, reuniam-se ali como moscas varejeiras. Se atirávamos fora tripas de tubarão, atiravam-se às cegas a esse manjar e como que tomados de frenesi. Devoravam, avidamente, o fígado de um seu semelhante, e se então púnhamos um pé na água, dirigiam-se para ele que nem foguetes, chegando a ferrar 197 os dentes nos toros onde o pé tinha estado. Existem tubarões e tubarões, porque esse peixe é verdadeiro joguete das suas emoções. A derradeira fase das nossas relações com tubarões consistiu em começar a puxá-los pelo rabo. Puxar a cauda dos animais passa por ser uma forma inferior de desporto, mas isto dizem os que não experimentaram fazê-lo com a de um tubarão. Porque era esta, na verdade, uma activa forma de desporto. Para segurar um tubarão pelo rabo, primeiro tínhamos de entretê-lo com um bom pitéu. Mostrava-se então pronto a pôr a cabeça fora da água para recebê-lo. Em geral, a comida era-lhe servida dentro dum saco balouçante, pois dar-lha directamente da mão não é muito divertido. Se uma pessoa alimenta cães ou ursos mansos na mão, eles metem os dentes na carne e vão-na rasgando aos poucos ou, quando o conseguem, arrebatam-na toda para si. Se, porém, segurarmos um grande dourado a boa distância da cabeça do tubarão, este ergue-se e dá um estalo com as mandíbulas, e, sem se ter percebido nenhum arranco, lá se foi de repente metade do dourado, e o pescador fica sentado e com um rabo na mão. Não fora sem dificuldade que havíamos cortado em dois pedaços o dourado, mas num segundo, o tubarão, movendo rapidamente para os lados os dentes triangulares que parecem serrotes, tinha imperceptivelmente triturado a espinha dorsal e o resto como uma máquina de fazer linguiça. Quando o tubarão tranquilamente se virava para de novo descer, meneava o rabo acima da superfície e era fácil agarrá-lo. Pegar na pele do peixe era o mesmo que passar a mão sobre lixa, e dentro da ponta superior de sua cauda havia um entalhe que parecia bem a propósito. Se se colocava ali a mão 198

com firmeza, o peixe estava seguro. Tinha-se então de dar um sacão antes que ele voltasse a si, e puxar com força para os troncos a maior parte possível da cauda agarrada. Durante um ou dois segundos, o animal parecia nada haver entendido, mas de súbito começava a saracotear-se e debater-se sem grande energia com a parte dianteira do corpo, pois que sem o auxílio da cauda o tubarão não consegue fazer muito. As outras barbatanas servem apenas para equilíbrio e direcção. Após algumas desesperadas sacudidelas, durante as quais tínhamos de segurar a cauda com toda a firmeza, o surpreso tubarão tornava-se abatido e apático, e principiava a afundar-se na direcção da cabeça, até que ficava totalmente paralisado. Quando o prisioneiro se aquietava e, todo hirto, estava como que a aguardar os acontecimentos, era a hora de o puxarmos para dentro, com toda a nossa força. Raramente levantávamos para fora da água mais da metade do pesado peixe, porque ele despertava e incumbia-se do resto. Com violentos repelões maneava a cabeça para os lados e na direcção dos toros, e então cumpria-nos puxar com toda a energia e sair do caminho com a maior rapidez, se tínhamos amor às nossas pernas. Pois, nesse momento, o tubarão não era para gracejos. Debatendo-se e dando grandes saltos, zurzia a parede de bambu com a cauda que parecia um martelo. Agora o peixe não poupava os seus músculos de ferro. As imensas mandíbulas estavam escancaradas, e as fileiras de dentes procuravam morder no ar qualquer coisa que lhes estivesse ao alcance Podia acontecer que o saracoteio terminasse com a queda mais ou menos involuntária do peixe na água e seu desaparecimento definitivo após tão vergonhosa humilhação, mas as mais das vezes arrojava-se ao acaso, sobre os mesmos 199 toros traseiros, até que passávamos um nó corredio em volta da raiz da sua cauda, ou até que deixasse para sempre de exibir aqueles seus dentes diabólicos. Grande era o desassossego do papagaio quando tínhamos um tubarão no convés. Saía, correndo, da cabana de bambu e marinhava pela parede com febril rapidez até achar um posto de observação, bom e seguro, no telhado de folhas de palmeira, e lá pousado punha-se a abanar a cabeça ou esvoaçava, daqui para ali, ao longo da cumeeira,

gritando e muito excitado. Desde o princípio, tornara-se excelente marinheiro, sempre a transbordar bom humor e riso. Já nos habituáramos a contar sete tripulantes na jangada, nós seis e o papagaio verde. O caranguejo Johannes teve afinal de resignar-se a ser considerado um mero apêndice de sangue frio. À noite, o papagaio enfiava-se na sua gaiola sob o telhado da cabina, mas de dia andava imponente por todo o convés ou dependurava-se nos patarrazes e nos estais, realizando admiráveis, exercícios de acrobacia. No começo tínhamos esticadores nos estais do mastro, porém gastaram-se as cordas pelo que os substituímos por nós corredios comuns. Quando os estais se afrouxavam com o sol e o vento, todos os homens tinham de entrar em acção e bracear a verga, de modo que os mastros de mangueiro, pesados como ferro, não batessem um no outro, acabando por cortar as cordas até caírem. E enquanto puxávamos, no momento mais crítico, o papagaio punha-se a gritar com a sua voz de cana rachada: «Puxa! puxa! oh, oh, ah, ah, ah!» E se nos fazia rir, ele mesmo se sacudia de tanto rir da sua própria comicidade e descrevia círculos sobre os estais. A princípio, o papagaio implicava com os nossos dois entendidos de rádio. Certa ocasião, estavam eles no seu canto, muito entretidos com os seus fios e auscultadores, 200 talvez em contacto com um radioamador de Oklahoma. De repente os auscultadores emudeceram e Torstein e Knut não logravam obter um som sequer, por mais que afagassem os fios e torcessem os botões. O papagaio estivera ocupado em dar bicadas no fio da antena. Isto era bastante comum, sobretudo nos primeiros dias, quando o fio da antena se esticava para cima, amarrado a um balão. Mas um dia o bicho adoeceu gravemente. Viveu tristonho, sem tocar em comida durante dois dias, enquanto que, no meio do seu estrado, cintilavam pedacinhos de fio dourado de antena. Nessa ocasião, os encarregados do rádio arrependeram-se das pragas rogadas e o papagaio arrependeu-se da sua maldade, Torstein e Knut passaram a ser os seus maiores amigos e a ave palradora não quis mais dormir em outro lugar que não fosse o canto do rádio. Quando o papagaio veio para a jangada, a sua língua materna era o espanhol, e Bengt afirmou que o bicho dera para falar

espanhol com sotaque norueguês, muito antes de se pôr a papaguear as pragas favoritas que Torstein proferia em norueguês de lei. Durante dois meses, o papagaio deliciou-nos com o seu humorismo e as suas cores brilhantes, até que um golpe de mar invadiu a embarcação pela popa enquanto a ave, vinda da ponta do mastro, descia pelo estai. Quando averiguámos que o papagaio havia sido levado pelo vagalhão, era demasiado tarde. Não o vimos mais. E a KonTiki não podia fazer meia volta nem parar; se qualquer coisa caía da jangada no mar, era impossível voltar para reavê-la. Inúmeras experiências o tinham demonstrado. Na primeira noite, a perda do papagaio exerceu um efeito depressivo sobre o nosso espírito; sabíamos que nos sucederia precisamente a mesma coisa se, num solitário serviço de vigia nocturna, caíssemos ao mar. 201 Adoptámos regulamentos de segurança ainda mais rigorosos, pusemos em vigor novos parapeitos para o quarto da noite, e procurámos amedrontar-nos uns aos outros desfazendo a crença de que, como tudo havia corrido bem nos dois primeiros meses, estávamos perfeitamente garantidos. Um passo em falso, um movimento irreflectido, podia-nos enviar, até mesmo em pleno dia, ao lugar para onde tinha ido o papagaio verde. Várias vezes observáramos as grandes cascas brancas de ovos de siba a boiar, como ovos de avestruz ou crânios brancos, na água azul. Numa única ocasião, topámos uma lula remexendo por baixo de uma dessas cascas. Vimos as bolas, alvas como neve, flutuando perto de nós, e a princípio cuidámos que seria coisa fácil dar uma remadas no botezinho e apanhá-las. Pensámos a mesma coisa de outra vez em que a corda da rede de plâncton se partiu, ficando a rede de pano, sozinha, a flutuar na nossa esteira. Lançámos à água o botezinho, munido de uma corda para as remadas de volta. Ficámos, porém, surpreendidos ao ver que o vento e o mar conservavam o bote a distância, e que a linha proveniente da Kon-Tiki tinha tão violenta acção de freio na água, que não conseguiríamos jamais voltar, remando, ao ponto de onde havíamos saído. Podíamos chegar a alguns metros daquilo que queríamos recolher, mas nessa ocasião a linha inteira estava na água e

a Kon-Tiki arrastava-nos para Oeste. «O que no mar cai no mar fica» era a lição que, aos poucos, se gravara indelevelmente na nossa consciência. Se quiséssemos ir até o fim tínhamos de agarrar-nos bem até que a proa da Kon-Tiki tocasse em terra na outra banda. O papagaio deixou um lugar vazio no canto do rádio, mas quando, no dia seguinte, o sol tropical brilhou sobre o Pacífico, a tristeza foi de pouca duração. Nos dias que 202 se seguiram arrastámos, para bordo, vários tubarões e constantemente achávamos na barriga do peixe, entre cabeças de atuns e outras curiosidades, bicos pretos e curvos de papagaios. Mas, depois de mais detido exame, verificávamos sempre que os bicos pretos pertenciam a síbas digeridas. Os dois encarregados do rádio tinham tido um trabalho insano no seu canto desde o primeiro momento em que vieram para bordo. Já no primeiro dia, na corrente de Humboldt, a água salgada começou a escorrer das baterias; por isso tiveram de revestir de lona o sensível canto do rádio para salvar o que, no mar grosso, pudesse ser salvo. Em seguida, veio o problema da instalação de uma antena suficientemente longa na pequena jangada. Tentaram suspender a antena com uma pandorga, mas corri a primeira lufada forte a pandorga mergulhou numa crista de onda e desapareceu. Experimentaram depois levantá-la com um balão, mas o sol dos trópicos queimou-o, fazendo-lhe buracos, de modo que o balão murchou e caiu no mar. Finalmente, houve o caso com o papagaio. Além disso, estivemos duas semanas na corrente de Humboldt antes de sairmos de uma zona morta dos Andes, na qual a onda curta era muda e sem vida como o ar numa caixa de sabão vazia. Mas eis que, certa noite, irrompeu de repente a onda curta, e o prefixo de chamada de Torstein foi ouvido por um amador casual de Los Angeles que estava a mexer no seu transmissor para pôr-se em contacto com outro amador na Suécia. O homem perguntou que espécie de aparelho era o nosso, e tendo recebido resposta satisfatória, indagou de Torstein quem era e onde vivia. Quando soube que a morada de Torstein era uma cabina de bambu, numa jangada a navegar no Pacífico,

203 houve vários ruídos esquisitos até que Torstein deu informações mais minuciosas. Depois que o amador de Los Angeles se acalmou, dissenos que o seu nome era Hal e o de sua mulher Anna, que era sueco, de nascimento, e que levaria ao conhecimento de nossa famílias que estávamos vivos e íamos bem. Naquela noite, achámos estranho pensar que um homem totalmente desconhecido, obscuro operador de um cinema da populosa Los Angeles, era a única pessoa no Mundo, além de nós, que sabia onde estávamos e que passávamos bem. Daquela data em diante, Hal, de seu verdadeiro nome Harold Kempel, e o seu amigo Frank Cuevas, revezavam-se cada noite à espera de ouvir sinais da jangada, e Herman recebeu telegramas de agradecimento do chefe do Serviço de Meteorologia dos Estados Unidos pelas suas duas informações diárias, dadas em. código, sobre uma área a respeito da qual poucas informações havia e nenhuma estatística. Posteriormente Knut e Torstein estabeleceram ligação com outros radioamadores quase todas as noites, e estes transmitiam saudações à Noruega por intermédio de um adepto de rádio chamado Egil Berg, de Notodden. Apenas durante alguns dias, no meio do oceano, penetrou muita água salgada no canto do rádio, e a estação deixou de funcionar totalmente. Os dois encarregados daquele difícil trabalho andavam dia e noite às voltas com parafusos e ferros de soldar, e todos os radioamadores distantes deram como findos os dias da jangada. Mas eis que, uma noite, o prefixo LI2B se fez ouvir no ar, e num instante o canto do rádio zumbia como um vespeiro por terem várias centenas de radioamadores da América batido nas suas teclas simultaneamente, respondendo à chamada. Na realidade, tínhamos sempre a impressão de 204 nos sentarmos num vespeiro se, casualmente, invadíamos o domínio dos técnicos do rádio. Era húmido, devido à água salgada que se ia entranhando no madeiramento, e conquanto houvesse um pedaço de borracha bruta sobre o toro de madeira de balsa onde o operador se sentava, apanhávamos choques eléctricos tanto na parte traseira como na ponta dos dedos se tocávamos no manipulador Morse. E se um de nós, profanos, tentava bifar um lápis no canto do rádio que tinha de

tudo, ou os cabelos se lhe eriçavam na cabeça, ou tirava faíscas do toco de lápis. Somente Torstein, Knut e o papagaio eram capazes de se saracotear ilesos por aquele recanto, e nós pusemos um papelão como marca bem visível da zona de perigo para os outros quatro. Uma noite, a deshoras, Knut bulia no aparelho à luz da lâmpada quando, de repente puxou-me a perna e disse-me que estivera falando com um homem que morava nas cercanias de Oslo e se chamava Christian Amundsen. Isto chegava a ser um record para um amador, pois que o pequeno transmissor de ondas curtas, a bordo da jangada, com os seus 13.990 kc por segundo, não emitia mais do que 6 watts, tendo mais ou menos a mesma força de um maçarico eléctrico. Estávamos a 2 de Agosto e navegáramos já mais de 60 graus em redor da terra, de modo que Oslo encontrava-se no extremo oposto do Globo. O Rei Haakon fazia 75 anos no dia seguinte, e nós enviámos-lhe uma mensagem de congratulações directamente da jangada; e no dia 4 Christian fez-se ouvir de novo mandando-nos a resposta do Rei que nos desejava felicidade e pleno êxito na nossa viagem. Lembra-nos de outro episódio que é um contraste na vida da jangada. Tínhamos duas máquinas fotográficas a bordo e Erik trazia consigo um embrulho de material 205 para revelar fotografias na viagem, de modo que tirássemos novos instantâneos de coisas que não haviam saído bem. Depois da visita do tubarão-gigante, não pôde mais conter-se, e uma noite misturou as substâncias químicas com água, de acordo com as instruções, e revelou dois filmes. Os negativos pareciam fotografias tiradas de muito longe; não eram mais que manchas obscuras e enrugadas. O filme ficou estragado. Telegrafámos aos que costumavam ter contacto connosco, pedindo-lhes conselhos, e a nossa mensagem foi apanhada por um radioamador de Hollywood; este telefonou para um laboratório, e pouco depois falava-nos advertindo que o nosso revelador estava demasiado quente; se não queríamos que o negativo se enrugasse, não devíamos usar água acima de 60o. Agradecemos-lhe o conselho e informámos que a mais baixa temperatura que nos cercava era a da própria corrente oceânica, mais ou menos 80o. Ora Herman era engenheiro de frigoríficos, e eu disse-

lhe por gracejo, que fizesse a temperatura da água baixar a 60o. Herman pediu permissão para se utilizar da garrafinha de ácido carbónico pertencente ao pequeno bote de borracha, já cheio de ar, e depois de umas ligeirezas de mãos numa caldeira coberta com um saco-cama e um colete de lã, de repente surgiu neve na barba do engenheiro, e ele apareceu com um enorme pedaço de gelo na caldeira. Erik tornou a revelar e, desta vez, com esplêndidos resultados. Mas embora as misteriosas palavras levadas através do ar pela onda curta fossem um luxo desconhecido nas remotas eras de Kon-Tiki, as ondas do oceano por baixo de nós eram as mesmas de outrora, e levavam a jangada 206 de madeira de balsa constantemente para Oeste, como faziam há 1500 anos. Depois que entrámos na área mais próxima das ilhas dos mares do Sul, o tempo tornou-se um pouco mais inconstante, com aguaceiros esparsos, e o vento alísio mudou de direcção. Tinha soprado invariavelmente de Sueste até nos acharmos já bem avançados na corrente equatorial; depois virara cada vez mais para Leste. Alcançámos a nossa posição mais setentrional a 10 de Junho, com a latitude 6o 19' Sul. Estávamos tão perto do Equador que se tinha a impressão de que íamos navegar até mesmo acima das ilhas mais setentrionais do grupo das Marquesas, e sumir-nos completamente no mar sem achar terra. Mas então o vento alísio rodopiou para mais longe, de Este para Nordeste, e, numa curva, impeliu-nos para a latitude do mundo das ilhas. Acontecia, amiúde, que o vento e o mar permaneciam inalteráveis dias seguidos, e já não sabíamos então a quem tocava o quarto de direcção, menos à noite, quando o quarto de vigia ficava sozinho no convés. Pois se o mar e o vento estavam firmes, o remo de governo ficava bem amarrado e a vela da Kon-Tiki permanecia enfunada sem nos causar nenhuma preocupação. Então o vigia nocturno podia sentar-se calmamente na porta da cabina e ficar a olhar para as estrelas. Se, porém, as constelações mudavam de posição no firmamento,

impunham que o vigia saísse e fosse ver se era o remo de governo ou o vento que se tinha desviado do rumo. Quase não se acredita em como era fácil governar a embarcação pelas estrelas, quando lhes havíamos observado o curso através da abóbada celeste, semanas a fio. De resto à noite não havia muita coisa para ver. À medida que as noites se sucediam, sabíamos onde se podia 207 esperar observar as diferentes constelações, e quando nos íamos avizinhando do Equador, a Ursa Maior ergueu-se tão clara do horizonte ao Norte, que estávamos a ver a hora em que divisaríamos a estrela polar, a qual aparece quando se vem do Sul e se atravessa o Equador. Mas quando o vento alísio de Nordeste começou a soprar, a Ursa Maior desapareceu de novo. Os antigos polinésios eram grandes navegadores. Orientavam-se, de dia, pelo sol, e de noite pelas estrelas. Sabiam que a terra é redonda e tinham nomes para conceitos abstrusos como o de Equador e de trópicos do Norte e do Sul. Em Hawai, entalhavam mapas do oceano na casca de cabaças redondas, e em algumas outras ilhas faziam mapas minuciosos de ramos trançados, a que eram amarradas conchas para marcar as ilhas, ao passo que os rebentos indicavam correntes particulares. Os polinésios conheciam cinco planetas, a que davam o nome de estrelas errantes, e distinguiam-nos das estrelas fixas, para as quais tinham cerca de duzentos nomes diversos. Um bom navegante da Polinésia antiga sabia perfeitamente em que parte do céu as diversas estrelas surgiam e onde estariam em diferentes horas da noite e em diferentes épocas do ano. Sabiam ainda que as estrelas tinham o seu ponto de culminação sobre as diversas ilhas, e havia casos em que uma ilha ostentava o nome da estrela que tinha a sua culminação sobre ela noites e noites a fio, em anos e anos seguidos. Além de se aperceberem do céu estrelado ser como que uma gigantesca bússola cintilante, a revolutear de Este para Oeste, compreendiam que as diferentes estrelas que se achavam exactamente sobre as suas cabeças lhes mostravam sempre a que distância estavam para o Norte ou para o Sul. Quando os polinésios exploraram e construíram

208 o seu actual domínio, que é toda a parte do mar que está mais próxima da América, mantiveram tráfico entre algumas das ilhas durante muitas gerações. Rezam tradições históricas que, quando os chefes de Taiti visitaram Hawai, sita a mais de 2.000 milhas marítimas para o Norte e vários graus para o Oeste, o timoneiro dirigia primeiro a embarcação para o Norte, guiando-se pelo sol e pelas estrelas, até que as estrelas que tinha acima da cabeça lhe dissessem que estava na latitude de Hawai. Então fazia um ângulo recto e dirigia a embarcação para Oeste até se achar tão perto que as aves e as nuvens lhe anunciavam onde ficava o grupo de ilhas. Onde haviam os polinésios obtido os seus vastos conhecimentos astronómicos, e o seu calendário, que era calculado com espantosa perfeição? Não certamente de povos da Melanésia ou da Malaia, a Oeste. Mas a mesma antiga raça civilizada que desaparecera, os «homens brancos e barbados» que tinham ensinado aos aztecas, aos maias e aos incas a sua assombrosa cultura na América, produzira um calendário curiosamente semelhante e idênticos conhecimentos astronómicos, com os quais, naqueles tempos, a Europa não podia competir. Na Polinésia, como no Peru, o ano civil tinha sido disposto de tal maneira que principiava exactamente no dia do ano em que a constelação das Plêiades aparecia, pela primeira vez, acima do horizonte, e em ambas as zonas essa constelação era considerada padroeira da Agricultura. No Peru, onde o continente descai aos poucos para o Pacífico, encontram-se hoje, na areia deserta, as ruínas de um observatório astronómico de grande antiguidade, relíquia do mesmo misterioso povo civilizado que esculpiu colossos de pedra, ergueu pirâmides, cultivou a batata 209 doce e a cabaça, e que começava o ano com o aparecimento das Plêiades. Kon-Tiki conhecia as estrelas quando se fez de vela pelo Pacífico. A 2 de Julho, o vigia nocturno não pôde mais continuar sentado a estudar o firmamento. Tivemos um vento forte e mar banzeiro, depois

de vários dias de ligeira brisa de Nordeste. Sendo já noite avançada, surgiu-nos luar brilhante e vento muito fresco. Medíamos a nossa velocidade, contando os segundos que gastávamos para passar por uma lasca de madeira atirada para a frente a um dos lados da jangada, e averiguámos que estávamos a estabelecer um record de velocidade. Ao passo que a nossa velocidade média era de doze a dezoito «lascas de madeira», segundo a gíria corrente a bordo, descíamos agora, durante algum tempo, a «seis lascas de madeira», e a forforescência remoinhava numa esteira regular por detrás da jangada. Quatro homens roncavam na cabina de bambu enquanto Torstein, sentado, fazia característicos ruídos com o manipulador Morse e eu me achava no quarto de direcção. Pouco antes da meia-noite, avistei uma vaga bastante estranha que arrebentava atrás de nós, abarcando todo o conjunto do meu conturbado raio visual, e por trás dela podia ver, aqui e ali, as cristas espumantes de mais dois vagalhões, colossais como o primeiro, em cujo encalço vinham bem perto. Dei um grito de advertência quando a primeira vaga surgiu como um longo paredão que nos acossava à luz. da lua, e torci a jangada pondo-a cm posição para o que desse e viesse. Quando o primeiro vagalhão nos atingiu, a jangada levantou para o lado a popa e passou por cima cio dorso da onda que acabava de quebrar, de modo que silvava e fervia ao longo de toda a crista. Cavalgávamos aquele 210 caldeirão de espuma que se escoava de um e outro lado da jangada, ao mesmo tempo que, por baixo de nós, o mar escachoava furibundo. A proa ergueu-se por fim enquanto a onda passava, e nós resvalámos para o abismo cavado entre as vagas, inclinando-se para ele primeiro a popa. Imediatamente depois, veio outra muralha de água e empinou-se, enquanto éramos novamente levantados ao ar e claras massas de água estrugiam sobre nós à ré. A embarcação foi atirada de lado sobre as ondas, tornando-se impossível fazê-la voltar, com suficiente presteza, à posição natural. Seguiu-se novo vagalhão que surgiu da espuma como uma parede fulgente, que se desfez ao despenhar-se sobre nós. Vendo tal massa de água impendente e já a cair, agarrei-me firmemente a um bambu que repontava do telhado da cabana, e ali retive a respiração ao

perceber que a jangada estava a ser arrojada para o alto e que tudo em redor de mim dançava num vórtice espumante. Num segundo, nós e a Kon-Tiki estávamos de novo por cima da água, a deslizar suavemente do outro lado, pelo dorso de uma onda. Pouco a pouco o mar normalizou-se. As três grandes muralhas de água prosseguiram em seu ímpeto à nossa frente, e atrás de nós a lua cheia batia numa fieira de cocos a boiar entre as ondas. A última vaga desferira violento golpe na cabina, de modo que Torstein foi atirado de pernas para o ar no canto do rádio e os outros acordaram amedrontados com o barulho, enquanto a água esguichava entre os toros e invadia a parede. No lado esquerdo da coberta da proa, o caniçado de bambu apresentava uma brecha semelhante a uma pequena cratera, e o cesto de imersão achava-se completamente achatado, mas tudo o mais estava como antes. Nunca pudemos explicar, com segurança, de onde tinham 211 vindo os três vagalhões, a menos que proviessem de perturbações do fundo do mar, (pie não são raras naquelas paragens. Dois dias mais tarde tivemos a nossa primeira tempestade. Começou com a paralisação completa dos ventos alísios e depois de as alvas e leves nuvens desses mesmos ventos, que se amontoavam sobre as nossas cabeças lá do azul, serem invadidas por um espesso montão de nuvens vindas do Sul e que se detiveram sobre o horizonte. Seguiramse fortes rajadas provenientes das mais diversas direcções e impossibilitando qualquer paralisação da parte do quarto de governo. Se conseguíamos virar rapidamente a nossa popa para a nova direcção do vento, de maneira que a vela ficasse copada, com a mesma rapidez nos salteavam as lufadas oriundas de outras bandas, desfazendo o bojo à vela e pondo-a a girar e a dar vergastadas, com evidente perigo tanto para a tripulação como para a carga. Mas o vento, de repente, começou a soprar directamente do lado de onde vinha o mau tempo, e enquanto as nuvens negras se acastelavam sobre nós. a brisa foi aumentando tanto que, dentro em pouco, era furacão e temporal. Num instante, as ondas que marulhavam em volta de nós foram atiradas a mais de quatro metros de altura, enquanto algumas cristas de vagas sibilavam a seis ou sete metros acima do covão formado pela

água, de sorte que ficavam ao nível da ponta do nosso mastro quando nós mesmos nos engolfávamos no boqueirão. Todos os homens tiveram de movimentar-se no convés e, por assim dizei, multiplicar-se, enquanto o vento sacudia a cabina de bambu e zunia e uivava no cordame. Para proteger o canto, do rádio, estendemos a lona sobre a parede dos fundos e no lado esquerdo da cabina. 212 Toda a carga solta foi amarrada com firmeza e a vela arreada e atada em torno da verga de bambu. Encapotando-se o céu, o mar fez-se escuro e sinistro, e em todas as direcções viam-se cristas brancas de ondas que rebentavam. Havia longas faixas de espuma do lado do vento, na raiz do dorso de grandes vagas, e em qualquer parte onde os espinhaços das ondas haviam quebrado e se submergiam, massas verdes, como se fossem chagas abertas no oceano, ficavam a espumar, por muito tempo, na água azul escura. Ao rebentarem, as cristas desmanchavam, caindo sobre o mar uma chuva de salpicos salgados. Quando a chuva tropical se desfazia em cima de nós, em aguaceiros horizontais, e açoitava a superfície do mar, invisível ao nosso derredor, a água que nos escorria dos cabelos e da barba tinha gosto a salobro, enquanto andávamos pelo convés cambaleando e fazendo arco com o corpo, nus e enregelados, cuidando de que tudo a bordo estivesse em ordem para enfrentar a procela. Quando o temporal se armou no horizonte e depois pairou sobre nós, pela primeira vez, podia-se ler nos nossos olhares a ansiedade e a inquietação. Mas quando realmente desabava e a Kon-Tiki vencia com facilidade e até com entusiasmo tudo quanto se lhe punha no caminho, o temporal tornou-se uma excitante forma de desporto, e todos nos deleitávamos com a fúria que borbulhava em redor de nós e que a jangada de madeira de balsa superava tão airosamente, mantendo-se sempre sobranceira no topo das ondas, leve como cortiça, enquanto que todo o potencial da água escachoava sempre alguns centímetros por baixo. O mar tinha muita coisa em comum com as montanhas num tempo destes. Era como se saíssemos para um ermo durante uma tempestade, galgando os mais elevados planaltos nus e cinzentos das montanhas. Conquanto nos

213 achássemos no coração dos trópicos, quando a jangada deslizava para cima e para baixo sobre a espumante vastidão do oceano, sempre imaginávamos estar a descer por um monte abaixo, entre massas de neve e rochedos. Com um tempo destes, o piloto devia ter lume no olho. Quando as ondas mais a pique passavam debaixo da metade dianteira da jangada, os toros de trás erguiam-se para fora da água, mas no momento seguinte tornavam a mergulhar para subir pela nova crista. De cada vez, as ondas vinham tão perto uma da outra que a que estava mais atrás nos alcançava enquanto a primeira ainda suspendia no ar a proa; então os sólidos lençóis de água desabavam sobre o piloto em catadupa terrífica, mas no instante seguinte a popa ia para cima e a cachoeira desaparecia como que através dos dentes de um garfo. Calculámos que, num mar calmo ordinário, onde em geral decorriam sete segundos entre as ondas mais altas, haviam entrado pela popa, em vinte e quatro horas, duzentas toneladas de água, o que nós mal notámos, porque a água assim como penetrava tranquilamente ao redor das pernas nuas do piloto, assim tranquilamente se escoava por entre os toros. Mas, numa tempestade forte. mais de dez mil toneladas de água entravam a bordo pela popa no decurso de vinte e quatro horas, visto que massas de água variando de alguns galões a duas ou três jardas cúbicas, e às vezes muito mais, penetravam na embarcação de cinco em cinco segundos. A torrente algumas vezes irrompia a bordo com violento fragor, e o timoneiro via-se com água até a cintura e tinha a impressão de estar a lutar com a corrente num rio caudaloso. A jangada parecia tremer por um momento, mas depois a carga cruel que a oprimia à ré tornava a despenhar-se no mar em grandes cascatas. 214 Herman ficou cá fora durante esse terrível tempo, medindo a violência das rajadas de vento que duraram vinte e quatro horas; depois pouco a pouco foram-se transformando num brisa forte com aguaceiros intermitentes, que contribuíam para manter agitado o mar em redor de nós enquanto íamos aos cambaleios rumo ao Ocidente, com vento favorável à derrota. Para obter medidas precisas do vento, no meio das

ondas altíssimas, Herman, sempre que era possível, tinha de subir ao oscilante tope do mastro, único lugar que lhe facilitava as operações. Quando os elementos se acalmaram, foi a vez de se enfurecerem os grandes peixes que nos rodeavam. A água, em volta da jangada, estava cheia de tubarões, atuns, dourados e alguns aturdidos «bonitos», todos a agitar-se sob a madeira da embarcação e nas ondas mais próximas dela. Era uma incessante luta de vida e de morte; os dorsos de grandes peixes arqueavam-se sobre a água e partiam como rojões, um no encalço do outro, aos pares, enquanto que a água em redor da jangada repetidas vezes se tingia de sangue grosso. Os combatentes eram sobretudo atuns e dourados, estes vinham em grandes cardumes que se moviam com muito mais presteza e vigilância que de costume. Os atuns eram os atacantes; frequentemente um peixe de 70 a 90 quilos pulava para o ar, segurando na boca a cabeça ensanguentada de um dourado. Mas se alguns dourados tinham atuns a persegui-los bem de perto, o cardume de dourados propriamente dito não cedia terreno, conquanto houvesse vários que apresentavam profundos golpes no pescoço. De vez em quando, os tubarões também pareciam apoderados de uma raiva cega, e nós víamo-los em luta com atuns enormes, que encontravam no tubarão um inimigo superior. Não era possível avistar um único pacato pilotinho. 215 Ou tinham sido devorados pelos furibundos atuns, ou haviam-se escondido nas frinchas por baixo da jangada, ou fugiam para longe do campo de batalha. Não ousávamos pôr as nossas cabeças dentro da água para ver. Senti um desagradável empurrão (e depois não pude deixar de rir do meu completo desnorteamento) quando me achava na parte posterior da jangada obedecendo a uma imperiosa exigência da Natureza. Estávamos acostumados a um regular marulho quando nos achávamos no W. O, mas afigurou-se-me contrário a todas as probabilidades razoáveis receber à popa, como de maneira totalmente inesperada recebi, um violento golpe desfechado por qualquer coisa grande, fria e pesadona que me dava marradas, como se fosse uma cabeça de tubarão no mar. Já eu fazia menção de subir ao estai do mastro, com a sensação de ter um tubarão pendurado no posterior, quando me passou

o susto. Herman que, curvado sobre o remo de direcção, ria às bandeiras despregadas, pôde informar-me que um atum colossal pespegara de lado uma bicota na minha nudez com os seus setenta e tanto quilos de carne fria. Posteriormente, quando Herman e depois Torstein estavam de quarto, o mesmo peixe tentou saltar para bordo com as ondas rebentando de popa, e duas vezes o enorme animal esteve quase a subir pela ponta dos toros, mas logo descaía de novo para o mar antes que conseguíssemos segurar aquele corpo escorregadio. Depois disto, um robusto e desnorteado «bonito» veio directamente parar a bordo, trazido por um vagalhão, e com ele e mais um atum apanhado na véspera, deliberámos pescar, a fim de pôr ordem no caos sangrento que fervia em redor de nós. Diz o nosso diário: «Um tubarão de 1,80 m foi colhido no anzol e depois 2l6 puxado para bordo. Logo que o anzol de novo desceu à água, foi engolido por um tubarão de 2,40 m, que igualmente puxámos para bordo. Lançado o anzol pela terceira vez ao mar, pescámos outro tubarão de 1,80 m e já o tínhamos puxado para a beira da jangada quando se soltou e se submergiu. Tendo ido imediatamente, de novo, para a água o anzol, chegou-se um tubarão de 2,40 m que nos deu que fazer. Já tínhamos a cabeça sobre os toros quando todas as quatro linhas de aço foram cortadas e o peixe sumiu-se no abismo. Atirado ainda uma vez o anzol à água, foi arrastado para bordo um tubarão de 2 metros. No momento era perigoso ficar de pé a pescar, sobre os resvaladiços troncos posteriores, porquanto os três tubarões continuavam a lançar para o alto as cabeças querendo morder, muito tempo depois que pensávamos que tinham morrido. Arrastámos, os tubarões pela cauda amontoando-os na coberta da proa, e logo depois ficou preso no anzol um grande atum, o qual nos deu mais que fazer que qualquer tubarão, antes de o termos a bordo. Era tão gordo e pesado que nenhum de nós pôde erguê-lo pela cauda. O mar continuava cheio de furiosos dorsos de peixes. Foi pescado mais um tubarão, mas, justamente ao dar entrada a bordo, arrebentou tudo e foi-se. Mas logo conseguimos trazer para dentro da jangada outro

tubarão de 1,80 m, outro de 1,50 m, outro ainda de 1,80 m e finalmente um de pouco mais de 2 metros». Em qualquer ponto do convés por onde andássemos, víamos grandes tubarões deitados no caminho, a dar convulsivamente com o rabo no chão ou vergastando a cabina de bambu enquanto procuravam atirar bocadas para os lados. Já cansados e exaustos quando principiámos. a pescar depois das noites tempestuosas, ficámos completamente 217 zonzos quando, ao aproximar-nos deles, quisemos determinar quais os tubarões que estavam mortos de todo, quais os que ainda se debatiam em convulsões, e quais os que estavam bem vivos e de emboscada, com os seus olhos verdes de gato. Depois de termos, espalhados ao redor de nós por todas as bandas, nove grandes tubarões, estávamos tão cansados de arrastar linhas pesadas e de pelejar com peixes tão rebeldes, que afinal desistimos, após cinco horas de labuta. No dia seguinte, havia menos dourados e atuns mas ainda muitos tubarões. Começámos de novo a pescá-los e a puxá-los para dentro, mas parámos ao percebermos que todo o sangue fresco de tubarão que corria para fora da jangada só servia para atrair ainda mais tubarões. Deitámos ao mar todos os tubarões mortos e lavámos bem o convés." As esteiras de bambu foram dilaceradas por presas de tubarões e pelos seus ásperos corpos escamosos; atirámos ao mar as mais ensanguentadas e mais rasgadas e substituímo-las por esteiras novas, feitas de bambu amarelo, de que tínhamos várias, fortemente amarradas na coberta de proa. Quando, naquelas noites, nos íamos deitar, víamos em espírito, escancaradas, mandíbulas vorazes e sangue de tubarões. E as nossas narinas estavam impregnadas de cheiro de carne de tubarão. Nós comíamos tubarão; tirando-se o amoníaco das postas do peixe, o que se conseguia pondo-as na água salgada durante vinte e quatro horas, tinha gosto parecido com o de uma espécie de bacalhau pequeno que se chama «gado». Mas o bonito e o atum eram infinitamente melhores. Numa noite daquelas, pela primeira vez, ouvi um dos companheiros dizer que havia de ser agradável cada qual poder espreguiçar-se à vontade sobre a relva verde

218 de uma ilha cheia de coqueiros; folgaria de ver alguma outra coisa que não fosse peixe frio e mar grosso. O tempo tornara-se inteiramente calmo, de novo, mas nunca mais foi constante e tal que se pudesse contar com ele como antes se dava. Violentas e inesperadas rajadas de vento traziam consigo, de vez em quando, fortes pancadas de chuva que bendizíamos, porque grande parte da nossa provisão de água tinha principiado a estragar-se, apresentando gosto de malcheirosa água de brejo. Quando a chuva caía com mais força, apanhávamos água do telhado da cabina e ficávamos nus no convés, para nos dar ao luxo de tirar, com água doce, o sal entranhado nos nossos corpos. Os pilotos agitavam-se novamente nos lugares de costume, mas não podíamos dizer se eram os antigos que haviam voltado depois do banho de sangue, ou se eram novos perseguidores que tinham aparecido no ardor da batalha. No dia 21 de Julho, de súbito, o vento cessou novamente. A calmaria era absoluta, e pela experiência anterior sabíamos o que isto podia significar. Passado algum tempo, depois de algumas violentas lufadas de Este, Oeste e Sul, o vento declinou e uma brisa soprou do Sul, onde nuvens pretas e ameaçadoras tornaram a acumular-se no horizonte. Herman estava fora com o seu anemómetro, medindo já quinze metros e mais por segundo, quando de repente o saco-cama de Torstein caiu no mar. E o que aconteceu nos poucos segundos seguintes levou muito menos do que se gasta para narrar. Herman tentou agarrar o saco que se ia, deu um passo em falso e caiu também na água. Ouvimos um débil grito pedindo socorro no meio do motim das ondas, e vimos a cabeça de Herman e um braço a acenar, e ainda um 219 vago objecto de cor verde rodopiando ria água perto dele. Fazia esforços hercúleos para voltar à jangada através das vagas que o levantavam, afastando-o do lado esquerdo da embarcação. Torstein, que estava ao remo de governo à popa, e eu à proa, fomos os primeiros a avistá-lo e ficámos gelados de medo. «Homem ao mar!» berrámos com quanta força tínhamos, ao mesmo tempo que corríamos a agarrar

o salva-vidas mais próximo. Os outros não tinham ouvido o grito de Herman por causa do barulho do mar, mas num instante houve uma lufa-lufa no convés. Herman era excelente nadador, e conquanto percebêssemos imediatamente que a sua vida corria perigo, tínhamos muita esperança de vê-lo, com umas braçadas, alcançar a beira da embarcação antes que fosse tarde demais. Torstein, que se achava mais próximo, agarrou a caixa de bambu em volta da qual estava a linha que usávamos para o bote, pois encontravase ao seu alcance. Foi a única vez em toda a viagem que se lançou mão daquela linha. Tudo sucedeu em poucos segundos. Herman estava agora no nível da popa da jangada, mas a poucos metros de distância, e a sua derradeira esperança era dar umas braçadas até a pá do remo de governo e pendurar-se nela. Tendo-lhe escapado a ponta dos toros, quis ver se agarrava a pá do remo, mas esta resvalou-lhe também. E lá estava ele, justamente onde a experiência havia demonstrado que o que caía não voltava. Enquanto Bengt e eu lançávamos o botezinho à água, Knut e Erik atiravam o cinto salva-vidas. Ostentando uma linha comprida, esse cinto estava à mão, pendurado no canto do telhado da cabina. Após alguns malogrados lanços, Herman achava-se já bem afastado do remo de direcção, nadando desesperadamente para acompanhar a jangada, enquanto a distância 220 aumentava com cada rajada de vento. Percebeu que, dali por diante, a brecha tenderia a aumentar, mas pôs uma ligeira esperança no botezinho que agora estava na água. Se não fosse a linha que funcionava como uma espécie de freio, talvez teria sido possível dirigir a embarcaçãozinha de borracha ao encontro do nadador, mas se o bote conseguiria, ou não, voltar à Kon-Tiki, era outra questão. Contudo, três homens num bote de borracha tinham alguma possibilidade; um homem no mar é que não tinha nenhuma. Nisto, eis que vemos Knut erguer-se num ímpeto e mergulhar de cabeça no oceano. Tinha numa das mãos o cinto salva-vidas e lá se foi nadando com a outra. Cada vez que a cabeça de Herman aparecia sobre o dorso de uma onda, não se via a de Knut, e cada vez que Knut aparecia num certo ponto, ali não estava Herman. Mas. de repente, vimos as duas cabeças ao mesmo tempo; os dois homens nadavam um

para o outro e ambos aferravam o cinto salva-vidas. Knut fez sinal com o braço, e como entrementes o bote de borracha tivesse sido puxado para bordo, nós quatro agarrámos a linha do cinto salva-vidas e puxámos a todo o puxar, com os olhos cravados no grande objecto escuro que se podia ver logo atrás dos dois homens. Esse mesmo misterioso animal que estava na água ia empurrando um grande triângulo preto-esverdeado acima das cristas das ondas, e quase que deu um empurrão em Knut quando este se dirigia ao encontro de Herman. Somente este sabia então que o triângulo não pertencia a um tubarão ou a qualquer outro monstro marinho. Era a extremidade cheia de ar do saco-cama impermeável de Torstein. Mas o saco não ficou a flutuar muito tempo depois que puxámos para bordo, sãos e salvos, os dois homens. Seja o que for que 221 tenha arrastado para o fundo o saco perdeu uma presa bem melhor. Antes o saco que eu, disse Torstein e pegou no remo de governo onde o tinha largado. Mas, naquela noite, não houve outros comentários tão alegres. Muito tempo depois, ainda sentíamos um frio terrível a correr-nos pelos nervos e ossos. Entretanto, os nossos arrepios misturavam-se com um cálido sentimento de gratidão por estarmos de novo, todos seis, a bordo. Naquele dia tivemos muita coisa agradável para dizer a Knut, a Herman e até a nós mesmos. Não houve, porém, muito tempo para reflectir no que já havia sucedido, porque enquanto o céu se toldava por cima de nossas cabeças, as lufadas de vento recrudesciam, e, antes de cair a noite, nova tempestade pairava sobre nós. Afinal resolvemos pendurar o cinto salva-vidas atrás da jangada numa linha comprida, de modo que tivéssemos alguma coisa para a qual pudéssemos apelar se um de nós tornasse a cair na água durante uma borrasca. Em seguida ficou totalmente escuro em volta de nós, enquanto a noite caía encobrindo a jangada e o mar, e atirados para aqui e para ali no meio das trevas, apenas ouvíamos a ventania esfuziando nos mastros e patarrazes, enquanto as rabanadas investiam com tanta fúria contra a cabina de bambu, que pensámos que seria cuspida à água. Mas a nossa choça era coberta de lona e estava solidamente amarrada com cabos.

Percebemos que a Kon-Tiki servia de joguete às vagas espumantes, enquanto os toros se moviam para cima e para baixo com a oscilação das ondas como as chaves de um instrumento. Espantava-nos ver que catadupas de água não esguichavam pelas largas fisgas do soalho; apenas funcionavam 222 como uni fole regular através do qual o ar húmido corria para cima e para baixo. Durante cinco dias completos o tempo oscilou entre temporal desfeito e ventania moderada; o mar cavava-se formando amplos vales cheios de vapor, proveniente de espumantes ondas azul-cinzentas que pareciam estar com os dorsos achatados sob a pressão do vento. Então, no quinto dia, os céus rasgaram-se deixando ver uma nesga azul, e o negro manto tristonho das nuvens cedeu lugar ao firmamento azulado, enquanto a tempestade ia amainando. Havíamos atravessado o mau tempo com o remo de direcção partido e a vela rasgada, ao passo que as quilhas corrediças, tendo-se soltado, ficavam batendo nos toros como alavancas de unha, porque todas as cordas que as tinham presas debaixo da água estavam completamente gastas. Mas nós e a carga íamos sem novidade. Depois das duas tempestades, a Kon-Tiki tinha as juntas bem enfraquecidas. O esforço despendido em galgar ondas a pique havia estirado todas as cordas, e os troncos, no seu trabalho contínuo, tinham feito as cordas roer a balsa. Agradecemos à Providência termos seguido a prescrição dos incas e não havermos usado cabos de arame, que teriam, durante a tempestade, serrado a jangada toda. transformando-a em madeira própria para fazer fósforos. E se de começo tivéssemos empregado madeira de balsa demasiado seca e apta para flutuar, há muito que a jangada, saturada de água, teria ido connosco para o fundo. Foi a seiva existente nos troncos novos que serviu de impregnação, impedindo que a água filtrasse para o interior através da porosa madeira de balsa. Mas agora as cordas tinham-se tornado tão frouxas que era perigoso deixar o pé escorregar entre dois toros, pois podia ser esmagado quando estes violentamente colidiam. À frente

223 e atrás, no espaço do convés onde não havia bambu, tínhamos de ceder aos joelhos quando estávamos de pé e conservávamos os pés muito abertos sobre dois toros ao mesmo tempo. Na parte posterior, os toros eram escorregadios como cascas de banana devido ao alastramento da alga marinha, e embora tivéssemos feito uma senda regular através da verdura, por entre a qual geralmente andávamos, e houvéssemos posto no chão uma prancha para que o piloto ficasse de pé sobre ela, não era fácil aguentar erecto um golpe de mar que investisse com a jangada. E no lado de bombordo, um dos nove toros gigantescos batia, dia e noite, na travessa, com uma pancada seca e monótona. Dos cabos que amarravam no tope os dois mastros inclinados, vinham também novos e temíveis rangidos, pois as carlingas dos mastros eram independentes uma da outra, uma vez que descansavam sobre dois toros diferentes. Trancamos e amarrámos o remo de governo com compridas achas de mangueiro, madeira duríssima, e tendo Erik e Bengt como fabricantes de velas, em breve Kon-Tiki levantou novamente a cabeça e encheu o peito com um bojo pando em direcção à Polinésia, enquanto o remo de direcção bailava atrás, em ondas que o bom tempo tornara tranquilas e suaves. Mas as quilhas corrediças nunca mais ficaram sendo o que tinham sido; não suportavam com a antiga desenvoltura o embate da água, porque tinham dado de si e pendiam soltas e balouçantes sob a jangada. Era inútil tentar examinar as cordas na parte inferior, porquanto se achavam totalmente cobertas de algas do mar. Ao erguer toda a coberta de bambu, encontrámos quebradas apenas três das cordas principais; tinham-se entortado muito e sido bastante apertadas pela carga, o que acabou por desgastá-las. Era evidente que os 224 toros tinham absorvido grande quantidade de água, mas esse excesso de peso foi mais ou menos compensado pelo gradual aligeiramento da carga. Estava esgotada a maior parte das nossas provisões e o abastecimento de água potável, bem como as baterias secas dos operadores de rádio. Todavia, depois da última tempestade, era claro que devíamos boiar e resistir durante a curta distância que nos separava das ilhas à nossa

frente. E eis que surgia agora novo problema: como iria terminar a viagem? A Kon-Tiki devia continuar inexoravelmente a sua derrota para Oeste até dar com a proa num sólido rochedo ou em algum outro objecto fixo que lhe detivesse o movimento. A viagem só terminaria quando todos os homens houvessem desembarcado, sãos e salvos, em alguma das numerosas ilhas polinésias que? tínhamos diante de nós. Depois de termos arrostado a última tempestade, era bastante incerto onde iria acabar a jangada. Estávamos a igual distância das ilhas Marquesas e do grupo Tuamotu, e numa posição tal que era perfeitamente possível passarmos entre os dois grupos de ilhas sem, nem de longe, lobrigar qualquer delas. Do grupo das Marquesas, a ilha mais próxima ficava a 300 milhas marítimas a Noroeste, e no grupo Tuamotu a mais próxima ficava a 300 milhas marítimas a Sudoeste, ao passo que corrente e vento eram incertos, com o rumo geral para Oeste e para a vasta brecha oceânica entre os dois grupos de ilhas. A ilha que ficava mais próxima do Noroeste não era outra senão Fatuhiva, a ilhota montanhosa e coberta de matas onde eu havia morado numa cabana construída sobre estacas na praia, e onde ouvira as vívidas histórias que o velho me contava do herói Tiki. Se a Kon-Tiki singrasse para aquela mesma praia, encontraria 225 muitos conhecidos, menos, provavelmente, o velho narrador de histórias. Ele já devia ter partido há muito, na esperança de encontrar de novo o Tiki verdadeiro. Se a jangada dirigisse o seu curso para aquelas serranias do grupo das Marquesas, as poucas ilhas desse grupo estavam muito separadas umas das outras, e ali o mar bramia indómito, quebrando em fragas escarpadas. Nesses lugares devíamos ficar de alcateia, ao dirigirmos a jangada para a boca dos poucos vales que sempre iam terminar numa estreita faixa de praia. Se, pelo contrário, ela tomasse o rumo dos recifes de coral do grupo Tuamotu, lá as inúmeras ilhas ficavam bem juntas e cobrindo vasto espaço do oceano. Mas esse grupo de ilhas é também conhecido como o Baixo Arquipélago ou Arquipélago Perigoso, porque é todo formado de pólipos de coral e consta de traiçoeiros escolhos submersos e atóis cobertos de palmeiras que se erguem somente a dois ou três metros

acima da superfície do mar. Perigosos recifes anulares ali se levantavam em redor de cada atol, como que a protegê-lo, constituindo uma ameaça à navegação em toda aquela área. Mas ainda que os atóis de Tuamotu fossem formados por pólipos de coral, enquanto que as ilhas Marquesas são restos de vulcões extintos, ambos os grupos são habitados pela mesma raça polinésia, e as famílias reais de ambos consideram Tiki como seu primeiro antepassado. Pouco antes de 3 de Julho, quando estávamos ainda a 1.000 milhas marítimas da Polinésia, a própria Natureza se incumbiu de nos dizer, como o dissera aos viajantes de jangada vindos do Peru, que realmente havia terra em certo ponto do oceano, à nossa frente. Enquanto nos achávamos a umas mil milhas da costa do Peru, vimos pequenos bandos de 226 fragatas. Essas aves desapareceram mais ou menos a 100º Oeste, e depois disto só vimos procelárias que têm sua morada no mar. Mas no dia 3 de Julho as fragatas reapareceram, a 125o Oeste, e a partir daquela data reduzidos bandos dessas aves podiam ser vistos frequentemente, já nas alturas, já sobre as cristas das ondas, onde pescavam peixes-voadores, que saltavam ao ar fugindo dos dourados. Como essas aves não vinham da América atrás de nós, a sua moradia devia ficar noutra região à nossa frente. A 16 de Julho a Natureza traiu-se ainda com maior evidência. Nesse dia puxámos para bordo um tubarão de 2,70 m que expeliu do estômago uma grande astéria não digerida que decerto trouxera de alguma costa até aquele ponto do oceano. E, no dia seguinte, tivemos a primeira visita certa, vinda directamente das ilhas da Polinésia. Foi uma festa a bordo quando dois grandes sulas-patolas foram avistados acima do horizonte para as bandas do Oeste e logo depois passaram sobre o nosso mastro, em voo baixo. Com uma envergadura de metro e meio descreveram vários círculos em torno de nós, depois dobraram as asas e instalaram-se no mar, ao nosso lado. Uns dourados compareceram imediatamente no local e, curiosos, rebolavam-se em volta dos grandes pássaro» que nadavam, mas nem estes atacaram aqueles, nem aqueles se meteram com estes. Foram eles os primeiros

mensageiros vivos que nos vieram dar as boas-vindas da Polinésia. À noite não voltaram, preferindo descansar no mar, e depois da meianoite ainda os ouvimos voar em redor do mastro soltando gritos roucos. Os peixes-voadores que agora vinham para bordo eram de outra espécie e muito maiores; eu já tinha verificado 227 isto nas minhas excursões piscatórias com os naturais, ao longo da costa de Fatuhiva. Por três dias e três noites, fomos no rumo de Fatuhiva, mas então sobreveio forte vento Nordeste que nos pôs na direcção dos atóis de Tuamotu. Os ventos agora tinham-nos afastado da verdadeira corrente equatorial do Sul, e as correntes oceânicas já não inspiravam confiança. Um dia estavam num lugar, no dia seguinte haviam desaparecido. As correntes podiam correr como rios invisíveis ramificando-se por todo o mar. Se a corrente era rápida, em geral havia mais marulho, e a temperatura da água ordinariamente baixava um grau. Sabíamos, diariamente, a direcção e a força da corrente pela diferença entre a posição calculada por Erik e a por ele medida. À entrada da Polinésia, o vento deu ordem de passar, transferindo-nos para um ramo fraco da corrente que nos assustou bastante por dirigir a sua marcha para o Antárctico. O vento não parou completamente (isto nunca se deu em toda a viagem); se era fraco, içávamos todo o pano que tínhamos, a fim de recolher o pouco vento que havia. Não houve dia em que recuássemos para a América, e a nossa menor distância em vinte e quatro horas foi de 9 milhas marítimas, ao passo que a nossa derrota média na viagem era em geral de 42 milhas e meia em vinte e quatro horas. O vento alísio, afinal, não teve ânimo de nos decepcionar já na última hora. Compareceu de novo no seu posto e imprimiu alguns empurrões na mísera embarcação que se preparava para fazer a sua entrada numa nova e estranha parte do Mundo. Em cada dia que passava, maiores bandos de aves marítimas vinham e descreviam círculos ao redor de nós, sem destino e em todas as direcções. Uma tarde, quando 228

já o sol ia sumir-se no oceano, percebemos claramente que as aves tinham recebido violento ímpeto. Voavam, tomando o rumo de Oeste, sem prestar atenção nem a nós nem aos peixes-voadores. E do alto do mastro podíamos observar que assim como vinham, voavam todas na mesma direcção. Talvez que lá da sua altura estivessem vendo alguma coisa que nós não víamos. Talvez voassem por instinto. Em todo caso, voavam com um plano, dirigindo-se à ilha mais próxima, ao seu lugar de origem. Torcemos o remo de governo e dirigimos o nosso curso exactamente para o lado em que as aves tinham desaparecido. Ainda depois de já estar escuro, ouvimos os gritos de aves retardatárias, voando entre nós e o céu estrelado, e na mesma direcção que estávamos agora a seguir. Era uma noite maravilhosa; a lua apresentava-se quase cheia, pela terceira vez, no decurso da viagem da Kon-Tiki. No dia seguinte, havia ainda mais pássaros por cima de nós, mas não precisávamos esperar por eles para, à noite, sabermos de novo o caminho. Desta vez descobríramos uma curiosa nuvem estacionária acima do horizonte. As outras nuvens eram como que vaporosos flocos de lã que se elevavam do Sul e atravessavam a abóbada celeste com o vento alísio até desaparecerem sobre o horizonte, a Oeste. Foi assim que eu viera a conhecer as nuvens que se moviam com o vento alísio sobre Fatuhiva, e assim as tínhamos visto sobre nós, noite e dia, a bordo da Kon-Tiki. Mas a solitária nuvem no horizonte, para as bandas do Sudoeste, não se mexia; apenas se levantava como uma coluna de fumo imóvel enquanto passavam as nuvens que iam com o vento alísio. Cumulunimbus é o nome latino que se dá a tais nuvens. Os polinésios não sabiam isto, mas sabiam que debaixo de tais nuvens havia terra. 229 É que, quando o sol tropical torra a areia ardente, cria-se uma corrente de ar morno que se ergue e faz o seu conteúdo de vapor condensar-se nas camadas mais frias do ar. Fomos em direcção à nuvem até desaparecer com o sol. O vento estava firme c, com o remo de governo bem amarrado, a Kon-Tiki foi seguindo sozinha a sua rota, como tantas vezes fazia quando o tempo era belo. O que agora competia ao piloto era sentar-se o mais tempo

possível na prancha junto ao tope do mastro, que reluzia com o uso, e prestar atenção a qualquer indício de terra. Durante toda aquela noite houve uma ensurdecedora bulha de pássaros por cima da jangada. E a Lua estava quase cheia. 231 CAPÍTULO VII -- Para as Ilhas dos Mares do Sul Primeira vista de terra - Desviamo-nos de Pukapuka - Dia de festa ao longo do recife de Angatau - Nos umbrais do céu - Os primeiros indígenas - A «Kon-Tiki» conquista uma nova tripulação - Knut em licença na praia - Uma batalha quase perdida - Outra vez no mar - Em águas perigosas - De Takume a Raroia - Vogando em direcção ao sorvedouro do inferno - À mercê das ondas - Naufrágio - Encalhe no recife de coral - Achamos uma ilha deserta.

Na noite de 29 para 30 de Julho, nova e estranha atmosfera pairava sobre a Kon-Tiki. Era talvez o alarido ensurdecedor das aves marítimas sobre nós, como para mostrar que, breve, teríamos novidades. A algazarra das aves era vibrante e terrestre, depois do surdo rangido de cordas sem vida, única coisa que ouvíramos além do estridor do mar, nos três meses decorridos. E a lua parecia maior e mais redonda do que nunca, a boiar lá no alto, em volta do nosso posto de observação instalado na ponta do mastro. Na nossa imaginação, a lua reflectia topos de palmeiras e romances maravilhosos; ela não brilhava, com uma luz tão amarela, sobre os frios peixes do mar. 232 Às seis horas, Bengt desceu da ponta do mastro, acordou Herman e deitou-se. Quando Herman marinhou pelo mastro rangedor e oscilante, o dia começava a raiar. Dez minutos depois tornava a descer pela escada de corda e puxava-me pela perna. - Saia e venha ver a sua ilha!

Tinha o rosto radiante. Pus-me em pé de um salto, no que fui imitado por Bengt que ainda não pegara no sono. Um atrás do outro, amontoámo-nos no lugar mais alto que pudemos atingir, no ponto onde os mastros se cruzavam. Muitas aves esvoaçavam em redor de nós, e um pálido véu roxo-azulado, estendido sobre o firmamento, reflectia-se no mar, como derradeira lembrança da noite que se despedia. Mas sobre o horizonte, a Leste, começara a espalhar-se um frouxo clarão avermelhado, que longe, a Sueste, formava aos poucos um fundo purpurino para uma débil sombra, como se fosse uma linha traçada por lápis azul quase à superfície do mar. Terra! Uma ilha! Devorámo-la avidamente com os olhos e acordámos os outros que, estremunhados, saíram de roldão e olharam para todos os lados como se pensassem que a proa da jangada já ia abicar numa praia. Barulhentas aves marinhas formavam uma ponte, através do céu, na direcção da ilha distante, que se recortava vivamente no horizonte, à medida que o fundo se dilatava e tomava a cor do ouro com a aproximação do sol e a plena luz do dia. O nosso primeiro pensamento foi que a ilha não estava onde devia estar. E como ela não podia ter mudado de lugar, a jangada é que, durante a noite, devia ter sido colhida numa corrente que se dirigia para o Norte. Bastava lançarmos os olhos sobre o mar para logo percebermos, pela direcção das ondas, que as trevas 233 nos tinham feito perder a oportunidade. Na nossa posição actual, o vento não nos permitia colocar a jangada no rumo da ilha. A região que ficava em redor do arquipélago de Tuomotu estava cheia de fortes correntes oceânicas locais que se ramificavam em vários sentidos quando se encaminhavam para terra e muitas delas mudavam de rumo ao encontrarem poderosas correntes de marés, dirigindo-se para dentro e para fora sobre escolhos e lagoas. Procurámos virar o remo de governo, embora soubéssemos muito bem que era inútil. Às seis e meia, o sol emergiu do mar e subiu directamente, como acontece nos trópicos. A ilha ficava distante algumas milhas marítimas e, de longe, parecia uma faixa de floresta que se estendia pelo horizonte além. As árvores apinhavam-se por detrás de uma estreita praia clara, situada tão baixo que, a intervalos regulares,

as ondas a ocultavam. De acordo com as posições de Erik, era Pukapuka, primeiro posto avançado do grupo Tuamotu. As «Instruções Náuticas para as Ilhas do Pacífico. Ano de 1940», os nossos dois mapas diferentes e as observações de Erik davam quatro posições diferentes para essas ilhas, mas como não havia outras ilhas em toda aquela redondeza, não podia restar dúvida quanto à identidade da que estávamos a avistar. Não se verificaram manifestações extravagantes a bordo. Depois de se orientar a vela, formámos um grupo silencioso junto ao tope do mastro ou ficámos de pé no convés, com os olhos fitos na terra que subitamente surdira no meio do oceano, infindável e avassalador. Até que enfim tínhamos uma prova visível de que realmente nos havíamos mexido durante todos aqueles meses; não estivéramos apenas a cambalear de um lado para outro 234 no centro do mesmo eterno horizonte circular. Tínhamos a impressão de que a ilha era móvel e que, de repente, havia entrado na esfera do oceano azul e vazio em cujo centro estava a nossa residência permanente, como se ela viesse a vogar lentamente para o nosso domínio, em direcção ao horizonte oriental. Todos nos sentimos cheios de uma satisfação plena e tranquila por havermos, de facto, alcançado a Polinésia, mas a essa satisfação vinha misturar-se ligeiro e momentâneo desencantamento pela irremediável submissão de apenas ver a ilha, que permanecia como uma miragem, enquanto continuávamos o nosso eterno cruzeiro para Oeste. Pouco depois do nascer do sol, espessa nuvem negra de fumo se ergueu acima das copas" das árvores, à esquerda do centro da ilha. Acompanhámo-la com os olhos e pensámos que os habitantes se estavam a levantar e a preparar a sua primeira refeição. Não nos passou pela ideia então que os postos locais de observação nos tinham visto e que com aquele fumo nos enviavam sinais, convidando-nos a desembarcar. Por volta das sete horas, percebemos um fraco cheiro de pau de borao queimado que nos fez cócegas nas narinas, impregnadas de sal. O cheiro despertou em mim imediatamente fugitivas lembranças de fogueira na praia de Fatuhiva. Meia hora depois sentimos cheiro de madeira recentemente cortada e de mata. A ilha agora começara a

diminuir e a ficar à nossa retaguarda, de modo que recebíamos dela ligeiros sopros de aragem. Durante uns quinze minutos, eu e Herman, agarrados à ponta do mastro, deixámos o cheiro quente de folhagem e verdura coar-se pelas nossas narinas. Aquilo era a Polinésia, aquele rico cheiro de terra seca após noventa e três dias de água salgada e no meio das ondas. Bengt já ressonava no seu saco-cama. Erik e Torstein 235 estavam na cabina deitados de costas, meditando, e Knut corria para dentro e para fora, aspirava o cheiro de folhagem e escrevia no seu diário. As oito e meia, Puka-puka afundou-se no mar atrás de nós, mas até às onze horas pudemos ver, trepados no mastro, uma esgarçada lista azul acima do horizonte, a Leste. Depois, também isto desapareceu, e uma nuvem alta, elevando-se quase imóvel para o céu, era o único indício que se tinha da situação de Puka-puka. As aves igualmente desapareceram. Ficavam de preferência no lado em que o vento soprava para a ilha, e assim teriam o vento consigo quando, à noite, voltassem para casa, com o papo cheio. Os dourados também tinham diminuído sensivelmente, e havia outra vez um ou outro piloto debaixo da jangada. Naquela noite, Bengt disse que suspirava por uma mesa e uma cadeira, pois estava cansado de ficar deitado ora de costas, ora de bruços, enquanto lia. Por outro lado, folgava de que não tivéssemos podido desembarcar, porquanto tinha ainda três livros para ler. A Torstein assaltou de repente, o desejo de comer uma maçã, e quanto a mim acordei durante a noite por ter sentido nitidamente um delicioso cheiro de bife com cebolas. Mas sabem o que era? Apenas uma camisa suja. Na manhã do dia seguinte, descobrimos duas novas nuvens que se erguiam como o vapor de duas locomotivas abaixo do horizonte. O mapa esclareceu-nos que os nomes das ilhas de coral de onde as nuvens subiam eram Fangahina e Angatau. A nuvem que se librava sobre esta última era a mais favorável para nós enquanto havia vento, por isso rumámos para lá a nossa derrota, amarrámos solidamente o remo, e gozámos a maravilhosa paz e liberdade do Pacífico. Tão bela era a vida, num dia

236 bonito passado sob a coberta de bambu da Kon-Tiki, que fomos a sorver todas as impressões, na certeza de que a viagem se achava quase no seu termo, fosse qual fosse a sorte que nos aguardava. Três dias e três noites dirigimos o rumo, sem perder de vista a nuvem que pairava sobre Angatau; o tempo estava magnífico, somente o remo regulava a nossa marcha, e a corrente não nos pregava partidas. Na quarta manhã, Torstein rendeu Herman, depois do quarto das 4 às 6, recebendo deste a comunicação de que lhe parecera ter visto, à claridade do luar, os contornos de uma ilha baixa. Quando, pouco depois, o sol surgiu, Torstein meteu a cabeça pela porta da cabina e gritou: - Terra à vista! Precipitámo-nos para o convés, e o que vimos fez-nos içar todas as nossas bandeiras. Primeiro a norueguesa à popa, depois a da França na ponta do mastro porque estávamos a rumar para uma colónia francesa. Daí a pouco toda a colecção de bandeiras da jangada tremulava aos frescos ventos alísios, a bandeira americana, a inglesa, a peruana e a sueca, além da bandeira do Clube de Exploradores, de modo que a bordo não havia dúvida de que, agora, a Kon-Tiki estava empavesada. Desta vez, a posição da ilha era ideal, ficando justamente na nossa rota e um pouco mais afastada de nós do que estivera Pukapuka quando, quatro dias antes, surdira ao nascer do sol. Quando o astro se ergueu no céu, por detrás de nós, pudemos ver um clarão verde que se elevava na direcção do sol brumoso sobre a ilha. Era o reflexo da tranquila lagoa verde no interior do recife circunvizinho. Alguns dos atóis baixos lançavam ao alto miragens dessa espécie por vários milhares de metros, de modo que mostravam a sua posição aos primitivos navegantes muitos 237 dias antes que a própria ilha se tornasse visível acima do horizonte. Às dez horas, tomámos o remo de governo; cabia-nos agora decidir para que parte da ilha rumaríamos. Já podíamos distinguir, separadamente umas das outras, as árvores, brilhando ao sol, que serviam de fundo de quadro à vasta folhagem.

Sabíamos que entre nós e a ilha havia um perigoso cachopo submerso, que se achava de emboscada contra o quer que se aproximasse da inocente ilha. Esse escolho ficava logo abaixo do profundo marulho das ondas da parte Leste, e como as imensa» massas de água perdiam o equilíbrio por cima do cachopo, oscilavam no ar e submergiam-se, reboando e fremindo, sobre o recife de coral a pique. Muitas embarcações foram colhidas na temível sucção contra os recifes submersos do grupo Tuamotu e fizeram-se em pedaços no embate com o coral. Do mar nada víamos dessa insidiosa armadilha. íamos navegando no sentido das ondas, e apenas apercebêramos o dorso curvo e brilhante de onda e mais onda a desaparecer no rumo da ilha. Tanto o recife quanto toda a sarabanda espumante dos génios do Mal que se desfazia sobre ele ficavam ocultos por detrás de séries e mais séries de largos dorsos de ondas espalhadas à nossa frente. Mas ao longo de ambas as extremidades da ilha, onde víamos o contorno da praia, tanto ao Norte como ao Sul, percebemos que a algumas centenas de metros de terra o mar era uma branca massa fervente que subia a grande, altura. Regulámos a nossa marcha de modo que tocássemos de leve a parte externa do boqueirão sinistro, à altura da ponta meridional da ilha, e esperávamos, ao chegar lá, poder navegar ao longo do atol até que ou rodeássemos a ponta do lado de Sotavento ou que, em todo caso, 238 tocássemos antes de por lá passarmos, um lugar tão pouco fundo que conseguíssemos deter a nossa derrota com uma âncora provisória e aguardar a mudança de vento que nos pusesse a Sotavento da ilha. Por volta do meio-dia, pudemos ver pelo binóculo que a vegetação da praia consistia em coqueiros novos e verdes, cujas copas se confundiam com a sebe ondulante formada pela luxuriante vegetação do primeiro plano. Defronte deles, a praia cintilante estava juncada de bom número de grandes blocos de coral. O único sinal de vida eram uns pássaros brancos voando sobre os penachos dos coqueiros. Às duas horas achávamo-nos tão perto que começámos a navegar ao longo da ilha, quase costeando o desconcertante recife. À medida que nos avizinhávamos, ouvíamos o quebrar das vagas, como uma cascata constante, de encontro ao escolho, e em breve elas soavam como um

comboio rápido quê corresse paralelo â nós, a umas centenas de metros do nosso lado de estibordo. Agora também podíamos ver o alvo borrifo que, de vez em quando, era atirado ao ar por detrás dos encaracolados dorsos das ondas já dentro da nossa área, onde o «comboio» roncava sempre. Dois homens ao mesmo tempo faziam girar o remo de direcção; postavam-se atrás da cabina de bambu e por isso nada enxergavam à sua frente. Erik, como piloto, estava em pé sobre o caixote da cozinha e transmitia indicações aos dois homens junto do pesado remo de governo. O nosso plano era ficarmos o mais próximo possível do perigoso recife, uma vez que não corrêssemos risco. Da ponta do mastro observávamos, com atenção contínua, procurando uma brecha ou abertura no recife por onde pudéssemos tentar a passagem da jangada. A corrente 239 levou-nos agora ao longo da extensão toda do recife, e não mais nos enganava. As quilhas corrediças permitiam dirigirmos a embarcação num ângulo de cerca de 20º em relação ao vento, em ambos os lados, e o vento soprava ao longo do recife. Enquanto Erik dirigia a nossa marcha e descrevia as suas curvas o mais perto possível do recife, sem se descuidar do perigo da sucção, eu e Herman metemo-nos no botezinho de borracha, a cuja ponta estava atada uma corda. Quando a jangada se encontrava na parte interior, seguimos rebocados e chegámos tão perto do recife que pudemos ver, de relance, a muralha de água verde clara que se despenhava afastando-se de nós, e ainda como, ao recuarem os vagalhões numa espécie de sucção de si mesmos, o recife se desnudava, lembrando uma barricada desfeita de minério de ferro oxidado. Quanto podia alcançar a vista ao longo da costa, não havia brecha nem passagem. Por isso, Erik orientou a vela apertando as escotas de bombordo e afrouxando as de estibordo, e os timoneiros acompanharam-no com o remo de governo, de modo que a Kon-Tiki tornou a virar para fora o bico da proa e escapou da zona de perigo até ao seu próximo impulso para dentro. Cada vez que a Kon-Tiki dirigia a dianteira para o recife e outra vez se desviava, nós que íamos a reboque no botezinho ficávamos com o

coração aos pulos, pois aproximávamo-nos tanto que sentíamos o embate das ondas tornar-se cada vez mais intenso, enquanto elas mais se enfureciam e mais alto se elevavam. E em cada uma dessas vezes convencíamo-nos que Erik tinha avançado demais e que já não havia esperança de novamente tirar para fora a Kon-Tiki, pondo-a a coberto dos vagalhões que nos impeliam para o diabólico recife vermelho. Erik, 240 porém, sempre se saía galhardamente na sua manobra, e de novo a Kon-Tiki se safava ilesa para o mar largo, desembaraçando-se das garras da sucção. E íamos, durante todo aquele tempo, deslizando ao longo da ilha, tão perto que víamos nitidamente a praia. Contudo a sua celestial formosura era-nos inacessível por causa do abismo espumante que se interpunha entre ela e nós. . Às três horas, o coqueiral da praia abriu-se e pela larga brecha vimos uma lagoa verde e cristalina. Mas o recife circundante lá estava, compacto como nunca, mordiscando sinistramente a espuma com os seus dentes de um vermelho sanguíneo. Passagem não havia e o coqueiral tornou a fechar-se enquanto, penosamente, prosseguíamos o nosso curso, costeando a ilha e com o vento por detrás de nós. Depois o coqueiral tornou-se cada vez mais ralo, permitindo-nos ver o interior da ilha de coral. Esta consistia numa lindíssima lagoa de água salgada, qual imenso poço silencioso, rodeado de coqueiros oscilantes e de claras praias de banho. A sedutora ilha de coqueiros verdes formava um largo e macio anel de areia em torno da hospitaleira lagoa, e um segundo anel cintava a ilha toda - a espada de um vermelho ferrugento que defendia os portões do céu. Passámos o dia inteiro ziguezagueando ao longo da ilha de Angatau, tendo muito próximo de nós a sua beleza, logo fora da porta da cabina. O sol batia em todas as palmeiras, e no interior da ilha tudo era paraíso e alegria. Como as nossas manobras se tornaram, aos poucos, uma questão de rotina, Erik foi buscar a guitarra e, de pé, no convés, tendo na cabeça um enorme chapeleirão peruano, pôs-se a tocar e a cantar canções sentimentais dos mares do Sul, enquanto Bengt servia um excelente jantar na beira da jangada. Abrimos um velho coco do Peru e bebemos

241 em homenagem às frutas frescas que, lá longe, pendiam nas árvores. Aquele ambiente - a paz que reinava sobre o verde coqueiral profundamente arraigado no solo e brilhando na nossa direcção, a paz que respiravam aqueles pássaros brancos adejando sobre a copa dos coqueiros, a paz que se evolava da lagoa espelhenta e da macia areia da praia, a malignidade do recife vermelho, o canhoncio e o rufo de tambores no ar - tudo, enfim, fazia extraordinária impressão em nós que vínhamos do mar, uma impressão que nunca mais se nos varrerá da memória. Não havia dúvida que havíamos agora alcançado a outra banda; nunca veríamos uma ilha dos mares do Sul mais genuína do que aquela. Desembarcássemos ou não, o facto é que atingíramos a Polinésia: a imensidão do mar ficava atrás de nós para todo o sempre. Aconteceu que aquele dia festivo, à altura de Angatau, era o nonagésimo sétimo que passávamos a bordo. Por notável coincidência, eram em número de noventa e sete os dias que, em Nova Iorque, tínhamos calculado como o tempo mínimo absoluto, no qual, em condições teoricamente ideais, poderíamos chegar às mais próximas ilhas da Polinésia. Mais ou menos às cinco horas, passámos por duas choças de telhado de palma construídas entre as árvores da praia. Não se via fumo nem qualquer sinal de vida. Às cinco e meia, dirigimos de Aovo a proa para o recife; estávamos perto da extremidade ocidental da ilha e devíamos dar uma derradeira olhadela em redor, na esperança de encontrarmos uma passagem. O sol estava, então de tal modo baixo, que nos cegava quando olhávamos para a frente, mas vimos um pequeno arco-íris no céu, onde o mar rebentava no recife, a umas centenas de metros para lá da última ponta da ilha. Esta ficava agora à nossa 242 frente como uma silhueta. E na praia, mais para dentro, lobrigámos um monte de imóveis manchas pretas. De repente, uma delas caminhou vagarosamente para a água. ao passo que outras se dirigiram, a toda a pressa, para a fímbria do bosque. Era gente ! Mareámos a jangada ao longo do recife, o mais próximo que nos foi possível aventurar-nos. O vento cessara de todo, de modo que

percebemos que nos achávamos quase a Sotavento da ilha. Vimos então que lançavam à água uma canoa e duas pessoas pularam para dentro e começaram a remar no outro lado do recife. Lá, num ponto longínquo, viraram para fora a vante do bote, que foi atirado ao alto pelas ondas quando atravessou, como uma bala, a passagem do recife, vindo directo para o nosso lado. Portanto a abertura do recife era ali; ali estava a nossa única esperança. Agora também podíamos ver a aldeia colocada entre os fustes dos coqueiros. Mas as sombras já se estavam a alongar. Os dois homens na canoa acenaram com a mão. Nós também acenámos ansiosos, e eles aumentaram a velocidade. Era uma canoa polinésia, e dois vultos trigueiros, vestindo camisas de malha, remavam, de frente para nós. Surgiriam agora as dificuldades para nos entendermos. Somente eu, a bordo, me recordava de umas poucas palavras do dialecto das Marquesas, aprendidas na minha estadia em Fatuhiva, mas o polinésio é uma língua difícil de reter na memória, por falta de prática nos países setentrionais. Sentimos, pois, algum alívio quando a canoa se encostou com estrondo ao lado da jangada e os dois homens saltaram para bordo, porque um deles, todo risonho, estendeu a sua mão morena, dizendo em inglês: 243 - Boa noite! - Boa noite, respondi espantado. Fala inglês? O homem arreganhou os dentes e meneou a cabeça. - Boa noite, repetiu. Boa noite. Seu vocabulário inglês não ia além dessas duas palavras, e ainda assim levava vantagem ao seu modesto amigo que se conservava atrás, também sorridente, e impressionado com o saber do companheiro. - Angatau? perguntei, indicando a ilha. - Hangatau, disse o homem balanceando a cabeça num sinal afirmativo. Erik também cabeceou ufano. O indígena tinha razão, estávamos onde o sol lhe dissera que estávamos. - Maimai hee iuta, arrisquei eu. De acordo com os meus conhecimentos adquiridos em Fatuhiva, isto significaria aproximadamente «queremos ir para terra».

Ambos indicaram a passagem invisível do recife, e pusemos o remo a funcionar, resolvidos a fazer uma tentativa. Neste momento, boas rajadas de vento vieram do interior da ilha. Uma nuvenzinha de chuva pairava sobre a lagoa. O vento ameaçava afastarnos do recife, e percebemos que a Kon-Tiki não correspondia ao remo de governo num ângulo suficientemente largo para poder atingir a boca da abertura do recife. Tentámos achar fundo, mas a corda da ancora não tinha comprimento suficiente. Tivemos então de recorrer aos remos, e com toda a presteza, antes que o vento ganhasse preponderância. Rapidamente, colhemos a vela e cada um de nós foi buscar o seu remo grande. Eu quis dar mais um remo a cada um dos dois nativos, que estavam a deliciar-se com cigarros que lhes oferecêramos. 244 Limitaram-se a abanar energicamente a cabeça, indicaram a derrota e mostraram-se perturbados. Fiz sinais de que devíamos todos empunhar o remo e repeti as palavras «queremos ir para terra». Então o mais espevitado dos dois inclinou-se, fez com a mão direito no ar o movimento de quem acciona uma manivela, e disse: - Brrrrrrr...! Não havia dúvida alguma que queria que puséssemos a máquina a funcionar. Pensavam que estavam no convés de um bote carregado. Conduzimo-los à parte traseira da jangada e fizemo-los apalpar sob os toros para lhes mostrar que não tínhamos hélice. Ficaram assombrados, deitaram fora o cigarro e precipitaram-se para o lado da jangada, onde nos sentámos, quatro homens em cada toro exterior, mergulhando na água os nossos remos. Ao mesmo tempo, o sol engolfou-se no mar atrás da ponta e as lufadas de vento, vindas do interior da ilha, refrescaram. Parecia que não nos arredávamos um milímetro do lugar. Os naturais mostraram-se amedrontados, tornaram a pular para a canoa e desapareceram. Escurecia, e nós estávamos sós, mais uma. vez, remando desesperadamente para não sermos de novo arrastados para o mar. Quando as trevas se estenderam sobre a ilha, quatro canoas saíram gingando de detrás do recife, e daí a pouco havia uma multidão de polinésios a bordo, todos querendo cumprimentar-nos e receber cigarros. Com esses homens a bordo, que conheciam bem o local, não

havia perigo; não nos deixariam decerto ir outra vez para o mar largo e não nos perderiam de vista; de modo que naquela noite estaríamos em terra ! Mais que depressa, amarrámos cordas da popa de todas as canoas à proa da Kon-Tiki, e as quatro sólidas canoas estenderam-se em forma de leque, como uma parelha 245 de cães, à frente da jangada. Knut pulou para o botezinho e achou um lugar, como cão de tiro, entre as canoas, e nós, munidos de remos, postámo-nos nos dois toros exteriores da Kon-Tiki. E assim se iniciou, pela primeira vez, uma luta contra o vento Leste, que tinha estado tanto tempo às nossas costas. Fazia já, então, completamente escuro, até que a lua se mostrou, e corria um vento fresco. Em terra, os habitantes da aldeia, tendo reunido mato seco, acenderam uma grande fogueira para nos mostrar a direcção da passagem através do recife. O ribombo que dele vinha rodeávamos, na escuridão, como incessante e ensurdecedora catadupa, e a princípio o barulho tornou-se cada vez maior. Não podíamos ver as canoas que nos puxavam à frente, mas ouvíamos as respectivas tripulações cantando entusiásticos cantos de guerra em polinésio, com toda a força dos seus pulmões. Sabíamos que Knut ia com eles porque, toda vez que a música polinésia se interrompia, ouvíamos a voz solitária do nosso companheiro cantando canções populares norueguesas, no meio do coro dos polinésios. Para completar o caos, nós a bordo da jangada encetámos uma cantiga gaiata, e tanto os homens brancos como os morenos ofegavam junto aos seus remos, ao mesmo tempo que riam e cantavam. Estávamos de muito bom humor. E não era para menos, pois, após noventa e sete dias de viagem, chegáramos à Polinésia. Naquela noite ia haver uma festa na aldeia. Os indígenas ovacionavam e berravam. Realizava-se um desembarque em Angatau apenas uma vez por ano, quando vinha de Taiti a escuna de copra buscar caroços de coco secos. Assim, naquela noite, ia realmente haver em terra uma festa em redor do fogo. 246

Mas o vento enfurecido soprava obstinadamente. Mourejámos até que cada membro do corpo nos doía. Persistimos. Contudo, a fogueira nem por isso chegava mais perto de nós, ao passo que o fragor que vinha do recife era o mesmo que antes. Pouco a pouco, as cantigas foram cessando. Tudo ficou quieto. E a única coisa que os homens podiam fazer era remar. A fogueira continuava no mesmo ponto, apenas as labaredas bailavam para cima e para baixo enquanto nós caíamos e nos levantávamos com as ondas. Decorreram três horas, e eram então nove da noite. íamos paulatinamente perdendo terreno. Estávamos cansados. Fizemos compreender aos indígenas que necessitávamos mais auxílio de terra. Explicaram-nos que havia muita gente em terra, mas que em toda a ilha só dispunham daquelas quatro canoas. Nesse momento, apesar da escuridão, Knut apareceu com o botezinho. Tivera uma ideia: iria, no bote de borracha buscar mais gente. Em caso de necessidade, cinco ou seis homens podiam apinhar-se na embarcaçãozinha. Era arriscar muito. Knut não conhecia o lugar; jamais atinaria com a abertura do recife de coral naquela escuridão absoluta. Então propôs levar consigo o chefe dos nativos, que lhe podia mostrar o caminho. Tampouco esse plano me inspirava confiança, pois que o indígena não tinha experiência de manobrar um canhestro botezinho de borracha através da estreita e perigosa passagem. Todavia, pedi a Knut que fosse buscar o chefe, o qual estava sentado a remar no escuro à nossa frente, para ouvirmos o que pensava da situação. Era evidente que já não conseguíamos impedir que a corrente nos levasse para trás. O nosso companheiro desapareceu, no escuro à procura do chefe. Passado algum tempo, como Knut não voltasse 247 com o chefe, gritámos por ele, mas não recebemos outra resposta senão umas guinadas de riso dos polinésios que iam à frente. Knut sumira-se nas trevas. Nesse momento percebemos o que tinha acontecido. No meio de toda aquela bulha e barafunda, Knut baralhara o que havia sido combinado e rumara para a praia com o chefe. Podíamos berrar à vontade, que onde Knut agora estava todos os

outros sons eram abafados pelo motim que estrondeava em toda a extensão da barreira. Imediatamente um de nós pegou numa lâmpada Morse, subiu ao tope do mastro e fez os sinais convencionais indicando a Knut que voltasse. Mas ninguém voltou. Com o afastamento de dois homens e um, incessantemente, a fazer sinais na ponta do mastro, o nosso recuo aumentou, e todos estávamos realmente cansados. Deitámos marcas na água e vimos que íamos, lenta mas seguramente, andando de revés. A fogueira diminuía e o barulho dos vagalhões era menor. E quanto mais nos afastávamos do lado de Sotavento do coqueiral, mais intenso era o domínio que sobre nós exercia o eterno vento Leste. Agora íamos sabendo disto novamente; agora era quase como tinha sido em alto mar. Aos poucos, percebíamos que toda a esperança se fora. Estávamos a ser levados para o mar largo. Não devíamos, porém, largar os remos ou afrouxar. Urgia deter o recuo, todas as nossas forças, até que Knut estivesse novamente são e salvo a bordo. Passaram-se cinco minutos, dez, meia hora. A fogueira minguava cada vez mais; de vez em quando, até desaparecia totalmente quando resvalávamos para a voragem cavada entre duas ondas, A arrebentação no recife tornou-se um murmúrio distante. Agora a lua surgia; 248 víamos o clarão do seu disco por trás dos cimos dos coqueiros, mas o céu parecia enevoado e quase encoberto. Percebemos que os naturais diziam qualquer coisa, trocando ideias. De repente, notámos que uma das canoas tinha soltado o cabo no mar e desaparecido. Os homens das outras três canoas estavam fatigados e amedrontados e não remavam com a energia anterior. A Kon-Tiki descaía para o alto mar. Daí a pouco, as três cordas restantes afrouxaram-se e as três canoas bateram com força no costado da jangada. Um dos indígenas pulou para bordo e disse tranquilamente com um movimento de cabeça: - luta. (Para terra). Olhava ansiosamente para a fogueira, que agora desaparecia durante muito tempo de cada vez, e apenas clareava de quando em quando

como uma fagulha. Estávamos a derivar rapidamente. A arrebentação cessara; somente o mar rugia como de costume, e todas as cordas da jangada estalavam e rangiam. Oferecemos mais cigarros aos indígenas que partiam e eu rabisquei à pressa duas linhas que deviam entregar a Knut caso o encontrassem. Eis o que lhe dizia: «Traga consigo dois indígenas numa canoa, com o botezinho a reboque. Não volte sozinho no nosso bote de borracha». Confiávamos em que os prestativos ilhéus trouxessem Knut numa canoa, dado que julgassem prudente fazer-se ao mar. Se o considerassem desaconselhável, seria loucura Knut meter-se no oceano dentro do nosso botezinho, na esperança de alcançar a fugitiva jangada. Os homens guardaram o bilhete, saltaram dentro das canoas e desapareceram nas trevas. A última coisa que ouvimos foi a voz aguda do nosso primeiro amigo que gritou no escuro: 249 - Boa noite! Houve um murmúrio de apreciação da parte dos linguistas menos consumados, e depois tudo ficou em silêncio, tão despido de sons vindos do exterior como quando nos achávamos a duas mil milhas do continente mais próximo. Era inútil fazermos força com os remos em alto mar, incessantemente acossados pelo vento, mas continuámos com os sinais luminosos do tope do mastro. Já não ousávamos enviar o sinal de «voltar»; apenas mandávamos com regularidade um clarão. A escuridão era completa. A lua somente se mostrava, de vez em quando através de fisgas entre a massa das nuvens. Devia ser a nuvem de Angatau agora liberando-se sobre nós. Às dez horas, perdemos toda a esperança de tornar a ver Knut. Sentámo-nos em silêncio na borda da jangada e trincámos alguns biscoitos, enquanto nos revezávamos nos sinais com a luz postada no alto do mastro, que parecia apenas uma sombra nua, sem a grande vela da Kon-Tiki. Resolvemos continuar toda a noite a fazer sinais com a lâmpada, enquanto não soubéssemos onde Knut estava. Não queríamos acreditar que tivesse sido tragado pelas ondas. Knut sempre havia de

desembarcar vivo e em pé, por mais bravo que estivesse o • mar; estava vivo, sim, estava. O diabo era achar-se entre os polinésios numa longínqua ilha do Pacífico. Péssima perspectiva. Depois de uma viagem tão longa, a única coisa que fizéramos tinha sido desembarcar, às pressas, um homem numa remota ilha dos mares do Sul e partir de novo. Mal tinham os primeiros polinésios chegado a bordo, sorridentes, e houve mister de saírem depressa para não serem colhidos na impetuosa e irresistível investida 250 da Kon-Tiki para Oeste. Era uma situação absurda. E, naquela noite, as cordas rangiam de uma maneira tão horrível I Nenhum de nós queria dormir. Olhei para o relógio. Dez e meia. Bengt preparava-se para descer da ponta do mastro balouçante. Ia ser substituído. De repente, tivemos um sobressalto. Ouvimos vozes claramente no mar, saindo das trevas da noite. E era outra vez conversa de polinésios. Berrámos, em plena escuridão nocturna, com toda a força de nossos pulmões. Responderam aos nossos gritos e... no meio das vozes distinguia-se a de Knut! Ficámos loucos de contentamento; a nossa fadiga desapareceu; a nuvem borrascosa dissipara-se. Que importância tinha afastarmo-nos de Angatau? Havia outras ilhas no oceano. Agora os nove toros de balsa, tão desejosos de viajar, podiam vogar onde quisessem, uma vez que estivéssemos todos seis, de novo. juntos, a bordo. Três canoas emergiram das trevas, passando por cima das ondas, e Knut foi o primeiro a pôr os pés dentro dá querida Kon-Tiki, seguido de seis homens morenos. O tempo era pouco para explicações; tínhamos de dar alguns presentes aos indígenas que deviam logo empreender a sua arriscada viagem de volta à ilha. Sem ver luz nem terra, sem uma estrela sequer que os guiasse, tinham de achar a rota, remando contra o vento e o mar, até avistarem o clarão da fogueira. Recompensámo-los generosamente com mantimentos, cigarros e outros brindes, e cada um deles, à despedida, nos deu um cordial aperto de mão. Mostravam-se visivelmente preocupados connosco; apontaram para Oeste, indicando que estávamos no rumo de perigosos parcéis. O chefe

tinha os olhos rasos de água e osculou-me, carinhosamente, no queixo, o que me 251 fez agradecer à Providência estar eu bastante barbado. Depois, transferiram-se para as canoas e ficámos sós na jangada. Deixámo-la avir-se como costumava e pusemo-nos a escutar a história de Knut. O nosso companheiro dirigira-se, com a melhor das intenções, a terra, no botezinho, tendo a bordo o chefe indígena. Este, sentado e empunhando os remozinhos, manobrava na direcção da abertura do recife, quando Knut foi surpreendido com os sinais luminosos da KonTiki chamando-o de volta. Fez, por sua vez, sinais ao remador para virar, mas o indígena recusou-se a obedecer. Então Knut pegou nos remos mas o chefe arrancou-lhos das mãos e, com o recife a atroar ali perto, era inútil travar luta. Estavam justamente à entrada do recife, entraram por ele dentro e de repente viram-se erguidos à altura de um sólido bloco de coral, abicando daí na própria ilha. Uma multidão indígena agarrou o botezinho, arrastou-o para a praia, e quando Knut deu fé, estava sozinho sob coqueiros e cercado de uma verdadeira mole de gente, pairando descompassadamente numa algaravia desconhecida. Homens morenos, de pernas nuas, mulheres e crianças de todas as idades aglomeraram-se em torno dele a apalpar o pano de que era feita a camisa e as calças que trazia. Os indígenas usavam roupas europeias, caindo em farrapos, mas não havia homens brancos na ilha. Knut agarrou alguns dos indivíduos mais fortes e por sinais deu-lhe a entender que deviam ir com ele no botezinho. Então aproximou-se um homem enorme e gordo, de andar bamboleante, que Knut presumiu ser o chefe porque tinha na cabeça um velho quépi de uniforme e falava em voz alta e autoritária. Todos abriram caminho para que ele passasse. Knut explicou em norueguês e 252 depois em inglês que precisava de homens e linha de voltar à jangada antes que os outros se fossem. A cara do chefe abriu-se num sorriso largo, mas nada entendeu, e Knut, apesar de seus mais veementes protestos, foi arrastado para a aldeia pela turba que gritava. Lá o

receberam cães e porcos e formosas jovens dos mares do Sul que transportavam frutas frescas. Era evidente que aquela gente estava resolvida a tornar a estada de Knut ali a mais amena possível, mar, o nosso companheiro não se deixou seduzir; o seu pensamento voou tristonho para a jangada que ia a desaparecer rumo ao Oeste. A intenção dos indígenas do povoado era óbvia. Necessitavam muito da nossa companhia e sabiam que os navios dos brancos estavam cheios de coisas boas. Se pudessem reter Knut ali, nós e a extravagante embarcação certamente também viríamos. Nenhum navio iria abandonar um barco em ilha tão remota como Angatau. Após algumas curiosas experiências, Knut libertou-se daquela gente e dirigiu-se, a toda a pressa, para o botezinho, rodeado de admiradores de ambos os sexos. A sua fala e os seus gestos internacionais não podiam deixar de ser compreendidos; perceberam que Knut devia e queria voltar, no meio da noite, para a estranha embarcação, a qual estava com tanta pressa que tinha de seguir imediatamente. Então os habitantes tentaram um expediente; deram a entender por sinais que estávamos a desembarcar na outra ponta da ilha, Durante alguns minutos, Knut ficou atarantado, mas depois ouviram-se gritos do lado da praia, onde as mulheres e crianças estavam a alimentar a fogueira vacilante. As três canoas tinham regressado e os homens trouxeram o bilhete para Knut. Este viu-se embaraçado. Por um lado recomendavam-lhe que não se 253 metesse ao mar só, mas como se os indígenas se negavam terminantemente a acompanhá-lo? Verificou-se terrível e ruidosa discussão entre os indígenas. Os que tinham estado no mar e visto a jangada perceberam, claramente, que era quase inútil reter Knut na esperança de atrair o resto a terra. O fim de tudo aquilo foi que as promessas e ameaças de Knut induziram as tripulações de três canoas a acompanhá-lo na perseguição da Kon-Tiki. E fizeram-se ao mar na noite tropical com o botezinho a reboque, enquanto os ilhéus, de pé e imóveis perto da fogueira a extinguir-se, viam o seu recente amigo louro desaparecer com a mesma rapidez com que viera. Knut e os seus companheiros distinguiam os frouxos sinais da lâmpada emitidos da jangada, bem longe, no mar, quando as ondas levantavam

as embarcações. As compridas e frágeis canoas polinésias, enrijecidas por pontudos flutuadores laterais, cortam a água como facas, mas o percurso afigurou-se uma eternidade para Knut até sentir, novamente, debaixo dos pés, os toros grossos e redondos da Kon-Tiki. - Divertiu-se muito em terra? perguntou Torstein com inveja. - Oh, você devia ver as dançarinas de hula!, disse Knut para espicaçálo. Amainámos a vela, recolhemos o remo, entrámos os seis na cabina de bambu e dormimos como os seixos da praia de Angatau. Três dias singrámos pelo mar sem ver terra. Estávamos a vogar directamente para os negregados recifes de Takume e de Raroia que, juntos, bloqueavam 40 a 50 milhas de mar à nossa frente. Fizemos desesperados esforços 254 para evitá-los, mareando para Norte desses perigosos escolhos, e tudo parecia correr bem até que, uma noite, o homem que estava de quarto entrou precipitadamente na cabina e impeliu-nos para fora. O vento havia mudado. Estávamos a ir directamente para o recife de Takume. Começara a chover e a visibilidade era nula. O recife não devia estar longe. No meio da noite celebrámos um conselho de guerra. Tratava-se agora de salvar a vida. Já não era possível .passar pelo lado Norte. Urgia tentar a passagem pelo lado Sul. Aprestámos a vela, pusemos o remo na água e começámos uma arriscada navegação, tendo o incerto vento Norte por detrás de nós. Se o vento Leste voltasse antes de termos passado diante das cinquenta milhas de recifes, seríamos arrojados no meio dos vagalhões, ficando à mercê deles. Combinámos o que se devia lazer se o naufrágio estivesse iminente. Permaneceríamos, a todo o custo, a bordo da Kon-Tiki. Não treparíamos ao mastro, do qual seríamos derrubados como fruta podre, mas agarrar-nos-íamos, fortemente, aos estais do mastro, se as ondas nos acometessem. Deixámos solto, no convés, o botezinho de borracha, amarrámos nele um transmissor radiotelefónico impermeável, pequena quantidade de provisões, garrafas de água e apetrechos de medicina. As ondas arrastariam para a terra todas estas coisas independentemente de nós, se conseguíssemos passar por cima do

escolho, salvos, mas com as mãos vazias. À popa da Kon-Tiki amarrámos uma corda comprida, com um flutuador que também seria lançado à terra, de maneira que poderíamos tentar arrastar toda a jangada no caso dela dar em seco no recife. E assim nos metemos na cama excepto o piloto. Enquanto o vento Norte soprou, deslizámos 255 morosamente mas com segurança ao longo da fachada dos recifes de coral que lá estavam de emboscada abaixo do horizonte. Mas eis que um dia, mais para a tarde, o vento cessou e, ao voltar, soprava para Leste. Segundo a posição de Erik, estávamos já tão longe que agora tínhamos alguma esperança de evitar a ponta meridional extrema do recife de Raroia. Tentaríamos contorná-la e pôr-nos a coberto, antes de irmos dar a outros recifes situados para lá daquele. Ao pôr-se o sol, fazia cem dias que estávamos no mar. Alta noite acordei sobressaltado e inquieto. Havia qualquer coisa desusada no movimento das ondas. O balouço da Kon-Tiki estava ligeiramente diferente do que, em geral, era em tais condições. Havíamo-nos tornado sensíveis às mudanças no ritmo dos troncos. Pensei logo em sucção de uma costa que se aproximava, e ora me achava no convés, ora subia ao mastro. Não se via mais que o mar. Mas não pude conciliar um sono tranquilo. O tempo escoava-se. Ao amanhecer, pouco antes das seis, Torstein desceu depressa do topo do mastro. Tinha visto, muito ao longe, uma linha de ilhotas cobertas de coqueiros. Antes de mais nada, virámos o remo para o Sul o mais possível. O que Torstein vira devia ser as pequenas ilhas do coral que estavam espalhadas, como pérolas num fio, por detrás do recife de Raroia. Devíamos ter sido apanhados por uma corrente que ia para o Norte. Às sete e meia, ilhotas cobertas de coqueiros apareceram, em fila, ao longo do horizonte, para as bandas do Oeste. A que se achava mais para o Sul ficava, mais ou menos, defronte da nossa proa, e daí havia ilhas e grupos de coqueiros ao longo do horizonte, no nosso lado de estibordo, até desaparecerem como pontos ao Norte. 256

As mais próximas achavam-se a quatro ou cinco milhas de distância. Pelo exame a que havíamos procedido da ponta do mastro, vimos que, embora a nossa proa apontasse para a última das ilhas da série, a nossa deriva para o lado era tão grande que não estávamos a avançar na direcção para a qual a proa apontava. íamos a ser impelidos, diagonalmente, para o cachopo. Com quilhas corrediças firmes ainda teríamos alguma esperança de afastar-nos dele. Mas os tubarões seguiam-nos de perto, sendo portanto impossível mergulhar por baixo da jangada e amarrar, com calabres, as quilhas soltas. Percebemos que agora só dispúnhamos de mais algumas horas a bordo da Kon-Tiki, as quais deviam ser empregadas nos preparativos para o nosso inevitável naufrágio no recife de coral. Cada homem ficou ciente do que tinha de fazer quando o momento chegasse; cada um de nós sabia onde se situava a sua limitada esfera de responsabilidade, de maneira que não nos víssemos aos atropelos e a pisar nos calos uns dos outros quando chegasse a, hora em que cada segundo valia a vida. Â medida que o vento nos empurrava para a zona perigosa, a Kon-Tiki zimbrava e arfava. Não havia dúvida de que estava ali o torvelinho das ondas formado pelo recife, e enquanto algumas avançavam, outras eram atiradas para trás depois de colidirem, inutilmente, com a parede circunvizinha íamos ainda a todo o pano na esperança de, mesmo naquele momento, passar de largo. À proporção que nos aproximávamos, meio de lado, vimos do mastro como toda a enfiada de ilhotas cobertas de coqueiros estava ligada a um recife de coral, uma parte acima da água, outra debaixo dela, que fazia de dique onde o mar espumava

257 e saltava a grande altura. O atol de Raroia é de forma oval, tendo vinte e cinco milhas de diâmetro, sem contar os vizinhos recifes de Takume. No seu maior comprimento a face lateral olha o mar para Leste,

precisamente a área onde íamos penetrando a trancos e barrancos. O recife propriamente dito, que corre numa só linha de horizonte a horizonte, não tem nada adiante de si apenas por algumas centenas de metros, e atrás dele estão umas ilhotas idílicas como que numa fieira em volta da plácida lagoa interior. Assaltou-nos uma impressão estranha ao vermos o Pacífico azul, implacavelmente revolvido e arremessado ao ar em toda a extensão de horizonte, diante de nós. Eu sabia o que nos esperava; tinha visitado, antes, o grupo Tuamotu, e vira de terra, o imenso espectáculo da ressaca do oceano a rebentar sobre o recife. Novos recifes e ilhas continuavam, pouco a pouco, a aparecer ao Sul. Devíamos estar à altura do centro da parede de coral. A bordo da Kon-Tiki faziam-se todos os preparativos para o fim da viagem. Tudo que era de valor foi transportado para o interior da cabina e fortemente amarrado. Documentos e papéis metidos dentro de sacos impermeáveis, junto com filmes e outras coisas que sofreriam, se fossem mergulhadas no mar. Cobriu-se de lona toda a cabina de bambu e atámos fortes cordas em torno dela. Quando demos por perdida toda a esperança, abrimos a coberta de bambu e cortámos com machetes, as cordas que mantinham em baixo as quilhas corrediças. Não foi coisa fácil puxar para cima aquelas quilhas, porque estavam totalmente cobertas de bernaclas. Com as quilhas corrediças em cima, o calado da nossa embarcação não era maior que o fundo dos toros de madeira e podíamos assim ser varridos pelas ondas sobre o recife. Sem quilhas 258 corrediças e com a vela arreada, a jangada ficou completamente oblíqua, estando de todo em todo à mercê do vento e do mar. Amarrámos o nosso cabo mais comprido à âncora que fabricáramos e ligámo-la firmemente ao degrau do mastro no lado esquerdo, de maneira que .a Kon-Tiki entraria na ressaca primeiro pela popa, quando a âncora fosse arremessada à água. A âncora consistia numas latas de água, vazias, que havíamos atulhado com baterias de rádio usadas e outras coisas para fazer peso, ressaindo delas sólidos paus de mangueiro, postos de través. A ordem número um, em primeiro e último lugar, era: permanecer na jangada. Acontecesse o que acontecesse, devíamos ficar a bordo e

deixar que os nove grandes troncos aguentassem a pressão do recife. Quanto a nós, tínhamos bastante que fazer resistindo à massa de água. Se saltássemos para o mar, tornar-nos-íamos vítimas, indefesas, da sucção que ora nos tragaria, ora nos arrojaria sobre os agudos corais. A jangada de borracha cairia de borco sobre as ondas escarpadas, ou carregada com o nosso peso despedaçar-se-ia contra o escolho. Mas os toros de madeira seriam lançados a terra mais cedo ou mais tarde e nós com eles, uma vez que nos agarrássemos bem aos mesmos. Em seguida, houve ordem para que todos, que nada traziam nos pés havia cem dias, se calçassem e para que tivessem à mão o cinto salvavidas. Todavia, os últimos objectos mencionados não eram de grande valor, porque se um homem caísse no mar, morreria não afogado mas à força de receber pancadas. Também tivemos tempo de meter nos bolsos os nossos passaportes e os poucos dólares que nos restavam. Mas o que nos preocupava não era falta de tempo. 259 Foram horas de dolorosa expectativa as que decorreram enquanto vogávamos ao Deus dará, levados fatalmente para o recife. A bordo o sossego era notável; entrávamos na cabina ou dela saíamos para o convés de bambu, calados ou lacónicos, e íamos executando as tarefas que nos cumpriam. Os nossos semblantes sérios mostravam que nenhum de nós tinha dúvidas sobre o que nos aguardava, e a ausência de nervosismo provava que havíamos todos, pouco a pouco, adquirido inabalável confiança na jangada. Se conseguira fazer a travessia do mar, tinha também de levar-nos vivos para terra. No interior da cabina, havia uma completa barafunda de caixinhas de mantimentos e de carga amarrada. Com dificuldade, Torstein tinha achado o seu lugar no canto do rádio, onde conseguira pôr a funcionar o transmissor de ondas curtas. Estávamos agora a mais de 4.000 milhas marítimas da nossa velha base de Callao, onde a Escola de Guerra Naval do Peru havia mantido contacto regular connosco, e ainda mais longe de Hal e de Frank e dos outros radioamadores dos Estados Unidos. Quis, entretanto, o acaso que, na véspera, entrássemos em contacto com um competente radioamador que tinha o seu aparelho em Rarotonga, nas ilhas Cook. Durante todo o tempo em que vogávamos

rumo ao recife, Torstein, sentado, ia batendo na sua tecla e chamando Rarotonga. No diário de bordo da Kon-Tiki lê-se: 8.15: Estamo-nos, lentamente, a avizinhar de terra. Podemos agora, com os olhos desarmados, distinguir as palmeiras do interior, no lado de estibordo. 8.45: O vento tomou direcção ainda mais desfavorável para nós; por isso, não temos nenhuma esperança de passar de largo. Não há nervosismo a bordo, 260 mas preparativos febris no convés. Vê-se qualquer coisa no recife, diante de nós, parecendo os restos de uma embarcação de vela, mas pode ser que seja apenas uma pilha de madeira para lá levada. 9.45: O vento está-nos a conduzir directamente para a penúltima ilha que enxergamos por detrás do recife. Agora podemos ver, claramente, o coral inteiro; tem a aparência de uma parede pintada de vermelho e branco, que emerge da água formando uma faixa em frente a todas as ilhas. Ao longo do recife, a ressaca de alva espuma sobe a elevada altura. Bengt está a servir-nos uma boa refeição quente, a derradeira antes da grande façanha! O que lá está junto ao recife é um barco naufragado. Vogamos agora tão perto que podemos abarcar, com a vista, a espelhenta lagoa atrás do recife, e podemos ver os contornos das demais ilhas, no outro lado da lagoa. Depois que isto foi escrito, o ronco sinistro da ressaca avizinhou-se de novo; esse ronco vinha do interior do recife e enchia o ar como os rufos trémulos de um tambor, anunciando o último acto da Kon-Tiki. 9.50: Estamos perto agora. Vogamos ao longo do recife. A distância que nos separa não chega a cem metros. Torstein está a tentar falar com o homem de Rarotonga. Agora é preciso guardar o diário. Reina o bom humor; o aspecto é tenebroso, mas havemos de vencer! Alguns minutos depois, a âncora caiu na água e atingiu o fundo, de modo que a Kon-Tiki rodou e virou a popa para o lado da rebentação. Segurou-nos assim por alguns minutos preciosos, enquanto Torstein continuava

261 a martelar desesperadamente na chave. Apanhara agora Rarotonga. Os vagalhões bramiam no ar e a água subia e se despenhava com fúria. Todos se atarefavam no convés, e Torstein conseguira transmitir o seu recado. Disse que íamos na direcção do recife de Raroia. Pediu a Rarotonga que estivessem atentos. Se guardássemos silêncio por mais de trinta e seis horas, Rarotonga devia comunicar à embaixada norueguesa em Washington. As últimas palavras de Torstein foram: «Estamos a menos de cinquenta metros. Já vamos. Adeus». Depois fechou a estação, Knut guardou os papéis, e ambos se arrastaram para fora com a necessária presteza, a fim de se juntarem a nós, pois tornara-se evidente que a âncora estava a dar de si. O mar estava cada vez mais revolto, com profundas voragens entre onda e onda, e sentíamos o balanço aumentar cada vez mais. Novamente foi dada a ordem em altos brados: «Ficar na jangada; a carga pouco importa, firmes! Estávamos agora tão perto da catadupa interior que já nem ouvíamos o incessante estrondo que atroava na extensão toda do recife. Ouvíamos apenas um estridor distinto cada vez que o vagalhão mais próximo quebrava nas rochas. Todos os homens estavam a postos, aferrando cada um a corda que julgava mais segura. Somente Erik, no último momento, penetrou na cabina; havia uma parte do programa que ainda não executara: não encontrara os sapatos! Ninguém ficou na parte posterior da embarcação, porque ali se daria o primeiro embate do recife. Tampouco ofereciam segurança os dois firmes estais que corriam do tope do mastro até à popa, porquanto se o mastro caísse, ficariam pendurados entre o mar e o cachopo. Herman, 262 Bengt e Torstein tinham trepado sobre uns caixotes que estavam amarrados em frente à parede da cabina, e enquanto Herman se firmava nos patarrazes, que partiam do cavalete do telhado da cabina, os outros dois seguravam-se às cordas da ponta do mastro por meio dos quais, em outros tempos, a vela era colhida. Eu e Knut escolhemos o estai, que ia da proa ao alto do mastro, porque se mastro, cabina e tudo mais caísse no mar, pensávamos que o cabo, vindo de proa, ainda

assim continuaria sobre a jangada, achando-nos então, como nos achávamos, com a frente para as ondas. Quando percebemos que estávamos em poder das ondas, cortámos a amarra da âncora e partimos. Uma vaga ergueu-se bem por baixo de nós, e sentimos que a Kon-Tiki se "suspendia no ar. O grande momento chegara; estávamos a passar em velocidade máxima por cima do dorso de uma onda, enquanto a nossa desconjuntada, embarcação rangia e estalava sob os nossos pés. A excitação fez ferver o sangue de cada um. Lembro-me que, à falta de inspiração melhor, acenei com o braço e berrei «Hurrah», com toda a força de meus pulmões; isto, sem fazer mal algum, não deixou de incutir uma certa animação. Os outros pensaram certamente que eu enlouquecera, mas todos se mostraram radiantes e sorriram entusiasmados. Fomos andando para a frente, tendo as ondas a acossar-nos por detrás; aquilo era o baptismo de fogo da Kon-Tiki; tudo havia de correr bem. Mas o nosso entusiasmo foi de curta duração. Nova onda se ergueu por detrás de nós como se fosse uma cristalina e refulgente parede verde; ao baixarmos, veio rolando no nosso encalço e, no mesmo instante em que vi aquela coluna líquida por cima de mim, senti um golpe violento e vi-me submerso num dilúvio de água. Percebi 263 a sucção rodear-me o corpo todo com tamanha violência que me foi preciso o esforço de cada músculo e só tinha uma ideia fixa - resistir, resistir sempre! Penso que em situação de tal desespero os braços serão arrancados antes que o cérebro consinta em soltá-los, sendo evidente, como é, o resultado. Depois percebi que a formidável massa de água prosseguia na sua marcha, desprendendo do meu corpo a sua garra infernal. Uma vez varrida toda a montanha líquida, com ensurdecedor ribombo e estrépito, vi novamente Knut dependurando-se a meu lado e tão encolhido que parecia uma bola. Vista detrás, a grande onda era quase lisa e cinzenta; avançando arrojou-se por cima da cumeeira do telhado da cabina que ressaltava da água. Lá estavam dependurados os outros três companheiros, comprimidos contra o telhado enquanto a água passava por cima deles. Ainda nos achávamos a bordo.

Num instante, reforcei a minha -posição de segurança, com as pernas e os braços agarrados ao forte cabo. Knut deixou-se cair e, com um salto de tigre, reuniu-se aos outros em cima dos caixotes, no ponto onda a cabina tinha a sua maior resistência. Diziam coisas confortadoras, mas vi logo nova parede verde levantar-se e dirigir-se para nós com estrondo. Soltei um berro de aviso e fiz-me tão pequeno e rijo quanto pude, no meu lugar. Num momento, de novo o inferno se despenhava sobre nós e a Kon-Tiki desapareceu completamente sob a massa líquida. O mar despejava toda a sua veemência sobre o mísero fardo do corpo humano. A segunda vaga precipitou-se sobre nós, o mesmo fazendo uma terceira. Então ouvi um grito triunfante de Knut, que estava dependurado na escada de corda: - A jangada aguenta! 264 Com o ímpeto de três vagalhões, somente o duplo mastro e a cabina tinham vergado um pouco. Sentíamos mais uma sensação de triunfo sobre os elementos, e o júbilo da vitória deu-nos novo vigor. Em seguida, vi que avançava nova onda, mais sobranceira que as precedentes, e dei outro berro de advertência aos outros, enquanto que, com a maior presteza, subi o mais que pude para o estai ao qual me aferrei com força. Depois desapareci, de lado, no meio da parede verde que desabava sobre nós; os outros, que estavam atrás e mais retirados e me viram desaparecer primeiro, calcularam a altura da massa de água nuns oito metros, enquanto que a crista espumante passava a uns cinco metros acima da parte da parede cristalina em que eu me sumira. Então a grande onda alcançou-os, e todos tivemos um único pensamento resistir, resistir e não ceder! Desta vez devíamos ter atingido o recife. Senti apenas a tensão do estai, que parecia dobrar-se e afrouxar com intermitências. Mas se os embates vinham de cima ou de baixo não podia dizê-lo, pendurado onde estava. A submersão não durou mais que segundos, mas exigiu maior vigor do que o que os nossos corpos em geral oferecem. Há mais energia no mecanismo humano do que a que existe apenas nos músculos. Resolvi que, se tivesse de morrer, morreria naquela posição, como um nó no estai. O vagalhão foi rugindo adiante, e depois que

passou, deixou patente um espectáculo contristador. A Kon-Tiki estava inteiramente mudada, como se a houvesse tangido uma vara mágica; em poucos segundos, a nossa aprazível moradia achava-se reduzida a um estado miserando. Só vi um homem a bordo além de mim. Estava deitado de través sobre a cumeeira do telhado da cabina, com o rosto para baixo, os braços estendidos de um lado e 265 de outro, achando-se a própria cabina achatada como uma casa feita de papelão, pendendo para a popa e para o lado de estibordo. O vulto imóvel era Herman. Não havia outro sinal de vida, enquanto a possante coluna de água estrondeava ali perto, tendo atravessado o recife. O mastro feito de madeira dura, do lado de estibordo, estava quebrado como se fosse um pau de fósforo, e a parte superior, ao cair, havia-se despedaçado contra o telhado da cabina, de maneira que o mastro e os seus acessórios pendiam em ângulo baixo sobre o recife, do lado de estibordo. À ré, o cepo de direcção estava todo torcido e a travessa quebrada, ao passo que o remo de governo se achava em pedaços. Os guarda-borrifos tinham-se partido como caixas de charuto, e todo o convés se achava desfeito e convertido numa pasta, como se fosse papel, molhado, contra a parede dianteira da cabina, o mesmo acontecendo com os caixotes, as latas, a lona e o resto da carga. Por toda a parte, viam-se varas de bambu e pedaços de corda, e a impressão geral era de completo caos. Um arrepio de medo perpassou pelo meu corpo. Que me valia não ter cedido? Se eu perdia um só homem que fosse, ao penetrar na área perigosa, tudo estaria arruinado, e no momento, passada a última refrega, só se via uma figura humana. Naquele instante, a forma corcovada de Torstein apareceu do lado de fora da jangada. Parecia um macaco dependurado nos cabos da ponta do mastro e conseguiu alcançar os toros e foi andando, de rojo, até perto dos destroços que se achavam defronte da cabina. Herman voltou então a cabeça e, para me estimular, esboçou Um sorriso amarelo, mas não se mexeu. Dei um berro, na esperança de localizar os outros, e ouvi a voz calma de Bengt gritar que todos os homens se encontravam a bordo. Deitados, estavam agarrados às

266 cordas por detrás da emaranhada barreira que o sólido trançado da coberta de bambu havia formado. Tudo isto se deu no decurso de alguns segundos, enquanto a Kon-Tiki estava a ser arrastada para fora da zona perigosa pelas águas impetuosas que vinham detrás. Novo vagalhão veio a rolar sobre ela. Pela última vez, gritei «resistir!» com toda a minha força e no meio daquele estrondo, e foi tudo quanto eu próprio pude fazer; mantive-me firme, desaparecendo na massa de água que desabava sobre nós naqueles dois ou três infindáveis segundos. Aquilo para mim foi suficiente. Vi as extremidades dos toros bater e chocar-se contra um degrau pontudo do recife de coral sem o transporem. Depois o vórtice das águas novamente nos fez recuar. Vi também os dois homens estendidos, de través, sobre o cavalete do telhado da cabina, mas nenhum de nós agora sorria. Por detrás do caos de bambu ouvi uma voz calma gritar: - Isto assim não vai! Senti-me igualmente desalentado. À medida que a ponta do mastro se afundava cada vez mais longe, para o lado de estibordo, vime dependurado numa frágil corda fora da jangada. Veio a onda seguinte. Depois que se foi, eu estava extenuado e o meu único pensamento era alcançar os toros e postar-me atrás da barricada. Depois que o turbilhão de água se retirou, vi pela primeira vez, bem a descoberto e atrás de nós, o escarpado recife vermelho, e avistei Torstein de pé e curvado sobre o rútilos corais vermelhos, segurando-se às pontas de um monte de cordas do mastro. Knut, também de pé na parte posterior, estava a ponto de dar um pulo. Gritei que devíamos todos permanecer sobre os toros, e Torstein, que tinha caído no mar com a pressão da água, tornou a saltar à tona como um gato. 267 Mais duas ou três ondas rolaram sobre nós com força menor, e o que sucedeu depois não me lembro, excepto que a água espumava ao entrar e ao sair e que eu mesmo me afundava cada vez mais na direcção do recife vermelho, sobre o qual íamos a ser içados. Depois, somente vinham a rodopiar cristas de espuma cheias de borrifos salinos. Logrei abrir caminho para a jangada, na qual todos nos

dirigimos para a extremidade posterior dos troncos, que mais se elevava no sentido do recife. No mesmo momento, Knut agachou-se e deu um salto para o recife com o cabo que ficara livre à popa. Enquanto o turbilhão se desfazia, andou a vau uns vinte e tantos metros, chegando ileso à ponta do cabo quando a onda seguinte se encaminhou, espumante, na sua direcção, esmoreceu e se escoou do recife plano como uma corrente caudalosa. Naquele momento, Erik saiu de rojo da cabina tombada, tendo os sapatos nos pés. Se todos tivéssemos seguido o seu exemplo, escaparíamos com menos dificuldade. Como a cabina não fora cuspida ao mar pela violência das ondas, tendo apenas cedido completamente ao peso da lona, Erik permaneceu calmamente estendido entre a carga, ouvindo o fragor das águas que desabavam por cima dele, enquanto as abaladas paredes de bambu se inclinavam cada vez mais. Com a queda do mastro, Bengt sofrera ligeira contusão, mas conseguiu arrastar-se para debaixo da desmoronada cabina, ficando ao lado de Erik. Todos nós devíamos ter-nos estendido lá, se tivéssemos antes percebido quão firmemente as inúmeras amarras e escotas de bambu trançado se aferrariam aos toros principais com a pressão da água. Erik achava-se agora em pé e a postos sobre os toros traseiros, e depois que o vagalhão recuou, também deu um 268 pulo para o recife. Em seguida, foi a vez de Herman e depois a de Bengt. Cada vez que a jangada recebia novo impulso para o interior da zona do recife, e quando chegou a minha vez e a de Torstein, já a embarcação se aproximara tanto do escolho que não havia mais nenhum motivo para abandoná-la. Todos os homens se aprestaram para os trabalhos de salvamento. Achávamo-nos, agora, a pouco menos de vinte metros do fatídico degrau que conduzia ao recife, e era ali e para lá dele que os vagalhões se sucediam encapelados um após outro. Os pólipos de coral tinham tido o cuidado de fazer o atol tão elevado que somente o cimo das vagas podia, ao passar, salpicar-nos com uns borrifos de água salgada que, depois, se entranhavam na piscosa lagoa. Era ali dentro o verdadeiro mundo do coral, onde havia uma real orgia das mais estranhas formas e cores.

A boa distância, no interior do recife, os outros acharam a jangada de borracha, a vogar e completamente invadida pela água. Esvaziaram-na e puxaram-na para junto da embarcação arruinada, e carregámo-la completamente com o material mais necessário, como o aparelho de rádio, provisões e garrafas de água. Arrastámos tudo isto, através do recife, amontoando aquela preciosa carga no alto de enorme bloco de coral que estava, solitário, no lado de dentro do recife, como um grande meteorito. Depois, voltámos à embarcação inutilizada, em busca de mais coisas. Nunca podíamos saber de que seria capaz o mar quando as correntes de marés começassem a funcionar em redor de nós. Na água, pouco funda, do interior do recife, vimos qualquer coisa que faiscava ao sol. Fomos até lá patinhando para apanhá-la è com espanto verificámos que se tratava de latas vazias. Não era bem isso que esperávamos 269 encontrar, e ainda mais admirados ficámos quando vimos que se tratava de latas recentemente abertas e nas quais se lia «abacaxi» nos mesmos caracteres das novas rações de campanha que estávamos a experimentar para o Departamento de Guerra. Eram realmente duas das nossas latas de abacaxi atiradas ao mar depois da última refeição, a bordo da Kon-Tiki. Tínhamo-las seguido bem de perto até ao recife. Estávamos agora alcandorados com agudos e ásperos blocos de coral e sobre esse fundo irregular andávamos a vau, com água ora até o tornozelo, ora até a cintura, conforme os canais existentes no recife. Anémonas e corais davam-lhe a aparência de um jardim cravado na rocha em que houvesse muito musgo e cactos e plantas fósseis, vermelhas, verdes, amarelas e brancas. Não havia cor que ali não estivesse representada, ou em corais ou em algas, ou em conchas e lesmas do mar e em peixes fantásticos que por toda a parte rabeavam. Nos canais mais profundos, pequenos tubarões de pouco mais de um metro aproximavam-se sorrateiramente, de nós na água límpida. Bastava-nos, porém, dar uma palmada na água para fazê-los voltar e conservar-se a distância. No ponto em que encalháramos só havia, em torno de nós, poças de água e charcos de coral, e um pouco mais longe a serena lagoa azul. A maré esmorecia e nós víamos constantemente novos corais surdindo da

água em volta de nós, enquanto que a ressaca, bramindo sem cessar, ao longo do recife, baixava, por assim dizer, um andar. O que aconteceria ali no estreito cachopo quando a maré principiasse de novo a correr, era incerto. Tínhamos de ir-nos embora. O recife estendia-se como uma parede de fortaleza meio submersa, acima para o Norte e abaixo para o Sul. 270 No extremo Sul estava uma ilha comprida, toda coberta de coqueiros. E logo acima de nós, ao Norte, a uns 500 ou 600 metros mais ou menos, ficava outra ilha de coqueiros, mas consideravelmente menor. Achavase no interior do recife, com os cimos das palmeiras erguendo-se para o céu e com as praias de areia alvíssima estendendo-se até se perderem na plácida lagoa. A ilha toda parecia um verde açafate de flores, um pedacinho onde se concentrara o Paraíso. Foi essa a ilha que escolhemos. A meu lado, Herman, muito barbudo, mostrava-se radiante. Não disse uma palavra, apenas estendeu a mão e riu tranquilamente. A Kon-Tiki permanecia a distância, no recife, recebendo o esguicho das ondas. Era uma embarcação naufragada, mas era-o com muita honra. Tudo o que estivera por cima do convés achava-se esfacelado, mas os nove troncos de macieira de balsa da floresta de Quivedo, no Equador, estavam intactos. Tinham-nos salvo a vida. A carga que o mar tomara para si fora pouca, e nenhuma da que havíamos depositado dentro da cabina. Nós é que tínhamos despojado a jangada de tudo quanto representava valor real e que se achava agora, em segurança, no cume da grande rocha castigada pelo sol, no interior do recife. Desde que saltara da jangada, dera por falta de todos os peixes pilotos que cirandavam defronte da nossa vante. Agora os grandes toros de balsa estavam no recife, metidos na água quinze centímetros, e lesmas pardas do mar retorciam-se debaixo da proa. Os pilotos tinham-se ido embora e os dourados também. Apenas alguns peixes desconhecidos, chatos, com uns desenhos de plumagem de pavão e rabos de forma esquisita, se rebolavam, curiosos, entre os toros. Tínhamos chegado a um novo mundo. 271

Johannes havia saído do seu buraco. Com certeza achara ali outro esconderijo. Relanceei um último olhar pela embarcação naufragada e vi um coqueirinho novo num cesto amachucado. Fui andando a vau até a ilha com o coco na mão. A certa distância de mim lobriguei Knut, também satisfeito, dirigindo-se para terra, e transportando sob o braço uma miniatura da jangada que fizera, com muito trabalho, durante a viagem. Pouco depois passámos por Bengt. Era um excelente despenseiro. Com um galo na testa e água salgada a gotejar da barba, vinha curvado, arrastando um caixote que oscilava diante dele cada vez que, lá fora, os vagalhões enviavam uma corrente para o interior da lagoa. Com orgulho, levantou a tampa. Era o caixote da cozinha, e dentro dele iam o «Primus» e demais utensílios em boa ordem. Nunca esquecerei a vadeação, através do recife, em demanda da ilha paradisíaca, que se fazia maior à medida que vinha ao nosso encontro. Quando alcancei a praia cheia de sol, tirei os sapatos e pus os pés, nus, sobre a areia quente e seca. Causou-me um prazer intenso ver cada vestígio deixado por mim na arenosa praia virgem . que ia dar aos troncos dos coqueiros. Não tardou que me achasse debaixo deles e fui assim andando na direcção do centro da insignificante ilhota. Cocos verdes pendiam dos ramos e algumas moitas densas encobriam flores alvíssimas de perfume tão suave e sedutor que quase me sentia desfalecer. No interior da ilha, duas andorinhas do mar, mansíssimas, voavam quase sobre os meus ombros. Eram tão brancas e leves como farrapos de nuvens. Pequenos lagartos passavam rápidos quase debaixo de meus pés, e os habitantes mais importantes da ilha eram grandes bernardos eremitas, vermelho cor de sangue, 272 que andavam pesadamente em todas as direcções, tendo aderentes à sua parte traseira conchas de caracóis roubadas. Sentia-me verdadeiramente esmagado. Cai de joelhos e enterrei os dedos na areia quente e seca. A viagem estava terminada. E todos vivos, felizmente. Tínhamos encalhado numa ilhota inabitada dos mares do Sul. E que ilha Torstein chegou, atirou ao chão um saco, deitou-se ao comprido, e pôs-se a olhar para os coqueiros e para os pássaros brancos, leves como penugem, que giravam em silêncio pouco acima de nós. Logo depois

nos estirávamos todos seis. Herman sempre lépido, subiu a um coqueiro baixo e atirou ao solo como se fossem ovos, dez cocos verdes. Cortámo-los no alto como se fossem ovos, tão macios eram, e entornámos pela garganta abaixo a bebida mais deliciosa e refrescante do Mundo - o leite doce e frio de um coco novo e sem semente. Lá fora, no recife, ressoava o rufo monótono dos tambores da guarda aos portões do Paraíso. - O Purgatório era um pouquinho húmido, disse Bengt, mas o Céu é mais ou menos como eu o imaginava. Espreguiçámo-nos à vontade, no chão, e sorrimos para as nuvens brancas de vento alísio dirigindo-se para Oeste acima dos coqueiros. Nós agora já não as seguíamos, inevitavelmente; achávamo-nos numa ilha fixa, imóvel, realmente na Polinésia. E enquanto, ali deitados, nos estirávamos, lá fora os vagalhões troavam como um comboio, num vaivém ininterrupto, ao longo do horizonte. Sim. Bengt tinha razão; aquilo era o Céu. 273 CAPÍTULO VIII -- Entre Polinésios Laivos de Robinson - Medo de que nos socorram - Tudo bem, «KonTiki»! - Mais restos de naufrágio - Ilhas desabitadas - Luta com enguias marítimas - Os indígenas encontram-nos - Fantasmas no recife - Um mensageiro é enviado ao chefe - O chefe visita-nos - A Kon-Tiki» é reconhecida - Maré cheia - Cruzeiro terrestre da nossa embarcação Somente quatro na ilha - Os indígenas vêm buscar-nos - Recepção na aldeia - Antepassados da hula» - Medicina por via aérea - Tornamo-nos pessoas régias - Outro naufrágio - A «Tamara» salva a «Maoae» - Para Taiti - Encontro no cais - Hospedagem principesca - Seis coroas.

nossa pequena ilha estava desabitada. Ficámos logo a conhecer cada grupo de coqueiros e cada praia, pois a ilha não tinha nem duzentos metros de diâmetro. O ponto mais elevado ficava a pouco mais de um metro e meio acima da lagoa.

Sobre as nossas cabeças, da grimpa dos coqueiros, pendiam grandes cachos de coco verde, cuja casca grossa isolava do sol tropical o seu conteúdo de leite frio de coco, de maneira que, nas primeiras semanas, não sentiríamos sede. Havia também cocos maduros, grande quantidade de bernardos eremitas, e na lagoa toda a casta 274 de peixes. Quanto a isto, portanto, não tínhamos nenhuma preocupação. No lado Norte da ilha, encontrámos os restos de uma velha cruz de pau sem pintura, meio enterrada na areia de coral. Daqui enxergava-se para as bandas do Norte, ao longo do recife, o barco naufragado que só tínhamos visto mais de perto ao aproximar-nos do lugar onde encalháramos. Ainda mais para o Norte lobrigámos, numa bruma azulada, as frondes dos coqueiros de outra ilhota. Bem mais próxima estava a ilha do lado meridional, na qual o arvoredo era muito cerrado. Tão pouco descobríamos ali qualquer sinal de vida, mas no momento tínhamos outras coisas em que pensar. Com um enorme chapéu de palha, na cabeça, lá vinha coxeando o nosso «Robinson» Hesselberg, com os braços cheios de buliçosos bernardos eremitas. Knut acendeu um pouco de madeira seca, e pouco depois tínhamos caranguejos e leite de coco com café para a sobremesa. - Bem bom aqui em terra, hein, companheiros, disse Knut, encantado. Enquanto falava, tropeçou e entornou meia chaleira de água a ferver nos pés descalços de Bengt. Estávamos todos poucos firmes no primeiro dia que passávamos em terra, depois de 101 dias a bordo da jangada, e não era raro começarmos de repente, a cambalear por entre os troncos dos coqueiros porque tínhamos fincado um pé no chão para resistirmos a uma onda que não vinha. Quando Bengt nos entregou os respectivos utensílios de mesa, a fisionomia de Erik alargou-se num sorriso. Lembro-me que, depois da última refeição a bordo, eu inclinara-me sobre a beira da jangada e pusera-me a lavar, como de costume, os utensílios de que me havia servido, enquanto Erik relanceava um olhar pela embarcação 275

dizendo: «Acho que a gente hoje nem precisa preocupar -se em lavar isto». Todavia, encontrou as suas coisas no caixote da cozinha, tão limpas quanto as minhas. Findo o repasto e depois de descansarmos uni pouco, estirados no chão, pusemo-nos em actividade para arrumar convenientemente o aparelho de rádio; não podíamos perder tempo, porque se Torstein e Knut não conseguissem comunicar-se com o homem de Rarotonga, este teria de transmitir a notícia do nosso triste fim. Quase todo o material radiotelefónico já estava em teria, e, entre as coisas que boiavam no recife, Bengt achou um caixote sobre o qual pôs as mãos. Deu um pulo para o ar por motivo de um choque eléctrico; não havia dúvida que o conteúdo pertencia à secção de Rádio. E enquanto os operadores desatarraxavam, encaixavam e reuniam, nós fomos armar a barraca. Entre os salvados, encontrámos a pesada vela, completamente encharcada, e arrastámo-la para a praia. Estendemo-la entre os dois grande coqueiros, numa pequena abertura que dava para a lagoa, e escorámos as outras duas extremidades com paus de bambu que a água trouxera da embarcação varada. Densa sebe forrada pelo matagal como que unia as duas partes da vela, fechando-a, de modo que tínhamos um telhado e três paredes, e além disso uma vista clara da brilhante lagoa, enquanto que um suave perfume de flores nos enchia as narinas. Era bom estar ali. Todos ríamos tranquilos, gozando aquele conforto; cada um de nós fez a sua cama com folhas de coqueiro, arrancando ramos de coral que emergiam da areia. Antes de cair a noite, tivemos um descanso bem aprazível, e sobre nossas cabeças estava a imensa cara barbada do velho e bom Kon-Tiki. Não intumescia agora o peito, tendo a enfuná-lo por detrás o vento 276 Leste. Permanecia imóvel, deitado de costas, a olhar para as estrelas que lá do alto piscavam sobre a Polinésia. Sobre os matos que nos cingiam estavam estendidas bandeiras e sacos de dormir, tudo muito molhado, e outros objectos empapados achavam-se sobre a areia a secar. Mais um dia passado, nessa ilha exposta ao sol, e tudo estaria completamente enxuto. Os próprios homens do Rádio tiveram de cruzar os braços até que, no dia seguinte, o sol secasse o interior de seu

aparelho. Retirámos das moitas e dos galhos os sacos-cama e deitámonos, disputando jactanciosamente para saber quem tinha o saco mais enxuto. Bengt ganhou, pois o dele não fazia ruído quando se mexia. Céus! Como era bom poder dormir! Quando acordámos, no dia seguinte, ao nascer do sol, a vela estava encurvada e cheia de água de chuva, pura como cristal. Bengt recolheua e depois desceu até a lagoa, conseguindo trazer para terra alguns peixes interessantes que atraíra a uns canais abertos na areia. Nessa noite, Herman sentira dores no pescoço e nas costas, lugares onde se magoara antes da partida de Lima, e a Erik voltou o seu lumbago que havia desaparecido. De resto, da nossa excursão pelo recife tínhamo-nos saído bastante bem, apenas com arranhões e ligeiros ferimentos, excepto Bengt que recebera um golpe na testa com a queda, ficando-lhe uma leve contusão. Quanto a mim, tinha as pernas e os braços moídos e com equimoses causadas pela pressão das cordas. Mas nenhum de nós se achava em tão ruim estado que não lhe apetecesse Um ágil mergulho na límpida lagoa antes do almoço. Era uma lagoa imensa. Mais para longe, era azul e encrespada pelo vento alísio, e tão larga que mal podíamos lobrigar os altos de uma fila de ilhas 277 azuis perdidas na bruma, que serviam de marco à curva do atol, no outro lado. Aqui, porém, a Sotavento das ilhas, o vento alísio sussurrava brandamente nas frondes rendadas dos coqueiros, fazendo-as bulir e oscilar, enquanto a lagoa parecia um espelho imóvel lá em baixo, a reflectir todo o encanto das árvores. A água fortemente salina era tão pura e clara que corais, de cores alegres e a menos de três metros de profundidade, pareciam tão próximos da superfície que podíamos cortar os pés neles ao nadar. E na água havia lindas variedades de peixes coloridos. Era um mundo maravilhoso e divertido. A água fria e refrescante e o ar agradavelmente quente e seco devido ao sol. Tínhamos porém, de voltar depressa para terra; Rarotonga irradiaria notícias alarmantes se, até o fim do dia, nada se transmitisse da jangada.

Bobinas e peças do rádio estavam estendidas ao sol tropical sobre lajes de coral bem enxutas, e Torstein e Knut aparafusavam e encaixavam. Passou-se o dia todo, e o ambiente foi-se tornando cada vez mais electrizante. Deixámos de lado todas as outras tarefas e agrupámo-nos em torno dos encarregados do Rádio esperando ser-lhes úteis de qualquer maneira. Devíamos estar no ar antes das 10 da noite. Então expiraria o limite de 36 horas, e o radioamador de Rarotonga faria apelos no sentido de serem trazidos socorros por avião. Veio o meio-dia, passou-se o meio-dia, o sol pôs-se. Quem dera que o homem de Rarotonga se contivesse um pouco! Sete horas, oito, nove. A tensão dos ânimos era insuportável. No transmissor nenhum sinal de vida, mas o receptor, um NC-173, principiou a animar-se lá num ponto, no fundo da escala, onde ouvimos música muito ao longe. Não porém no comprimento de onda de amador. Ia-se, contudo, chegando a um resultado qualquer, 278 talvez animador; seria provavelmente uma bobina húmida que secava na parte interna por uma das pontas. O transmissor estava ainda completamente inactivo; de todos os lados, curtos circuitos e faíscas. Faltava menos de uma hora e não progredíamos. Abandonou-se o transmissor, e tornou-se a experimentar um transitozinho de sabotagem do tempo da guerra. Antes, já o tínhamos feito, várias vezes, no decurso do dia, mas sem resultado. Talvez agora estivesse um pouco mais seco. Todas as baterias se achavam completamente estragadas, e obtínhamos força accionando, com manivela, um pequeno acumulador de mão. Era, pesado, e quatro de nós, leigos em matéria de Rádio, revezámo-nos o dia todo a rodar aquela coisa infernal. As trinta e seis horas em breve estariam no fim. Recordo-me que alguém dizia baixinho «mais sete minutos», «cinco minutos mais», e depois disso ninguém voltou a olhar o relógio. O transmissor continuava mudo como sempre, mas o receptor «cuspia» para o comprimento de onda do lado direito. De súbito, houve uma crepitação na frequência do homem de Rarotonga, donde inferimos que se achava em activo contacto com a estação telegráfica de Taiti. Pouco depois, apanhámos o seguinte fragmento de mensagem enviada de Rarotonga: «...nenhum avião deste lado de Samoa. Tenho a plena certeza...»

Depois o mesmo silêncio de antes. O nervosismo chegava ao auge. Que se passaria lá longe? Já teriam começado a mandar aeroplanos de socorro? Não havia dúvida de que, naquele momento, se cruzavam no ar, em todas as direcções, mensagens de que nós éramos o objecto. Os dois operadores trabalhavam febrilmente. O suor escorria-lhes do rosto como escorria do nosso pois rodávamos 279 a manivela. A força principiou lentamente a comunicar-se à antena do transmissor, e Torstein, entusiasmado, apontou para uma flecha que oscilava para cima vagarosamente, sobre uma escala, quando calcou o manipulador telegráfico. Agora a coisa vinha! Girávamos vertiginosamente a manivela enquanto Torstein chamava Rarotonga. Ninguém nos ouvia. Mais uma vez. Agora o receptor tornara a despertar, porém Rarotonga não nos ouvia. Chamámos Hal e Frank em Los Angeles e a Escola Naval de Lima, mas ninguém nos ouvia. Então Torstein transmitiu uma mensagem CQ, isto é, chamou todas as estações do Mundo que nos pudessem ouvir no nosso comprimento de onda de amador. Isto valeu alguma coisa. Agora uma voz fraca no ar começou a chamarnos lentamente. Chamámos de novo e dissemos que estávamos a ouvir. Então a voz vagarosa disse no ar: - Meu nome é Paulo. Moro no Colorado. Qual é o seu nome e onde mora? Era um radioamador. Torstein bateu na tecla enquanto rodávamos a manivela, e respondeu: - Isto é a Kon-Tiki; estamos encalhados numa ilha deserta do Pacífico. Paulo não quis acreditar nessa informação. Pensou que era algum radioamador da rua próxima que queria divertir-se com ele, e não voltou ao ar. Desesperados, arrepelámos os cabelos. Ali nos achávamos, sentados, à sombra dos coqueiros e debaixo do céu estrelado, numa ilha deserta, e ninguém queria acreditar no que dizíamos. Torstein não desanimou; tornou a bater na chave transmitindo incessantemente «tudo bem, tudo bem, tudo bem». Tínhamos de impedir a qualquer custo que toda 280

aquela aparelhagem de salvamento atravessasse o Pacífico por nossa causa. Ouvimos então, um tanto frouxamente, no receptor: - Se tudo está bem, para que preocupar-se? Depois fez-se silêncio no ar. E acabou-se. Vieram-nos ímpetos - tão desesperados nos achávamos - de dar um pulo e trepar a uma daquelas árvores e de uma sacudidela deitar abaixo todos os cocos, e sabe Deus o que não teríamos feito se tanto Rarotonga como o bom Hal, de repente, não nos tivessem ouvido. Hal chorou de alegria, disse-nos, ao ouvir novamente LI a B. Toda aquela trapalhada cessou como por encanto; achávamo-nos outra vez sós e em paz na nossa ilha dos mares do Sul, e, esfalfados, deitámo-nos nas nossas camas de folhas de coqueiro. O dia seguinte correu tranquilo, e gozámos a vida à perna solta. Uns tomavam banho, outros pescavam ou foram dar uma batida rio recife à cata de curiosos animais marítimos, enquanto que outros mais activos fizeram uma limpeza em regra no acampamento, tornando aprazível os seus arredores. Num ponto que dava directamente para a Kon-Tiki, cavámos um buraco na orla das árvores, forrámo-lo com folhas e nele plantámos um belo coco do Peru. Ao lado, levantámos um montão de corais, bem defronte do lugar onde a Kon-Tiki dera em seco. A jangada fora empurrada pela força das águas um pouco mais para o interior, durante a noite, e estava quase seca dentro de umas poças, e espremida entre um grupo de enormes blocos de coral que se atravessavam no recife. Depois de um bom banho de sol na areia quente, Erik e Herman achavam-se de novo em excelentes condições, e estavam ansiosos por ir, ao Sul, contornando 281 o recife, na esperança de alcançar a grande ilha que lá ficava. Prevenios mais contra as enguias do que contra os tubarões, e cada um meteu no cinto o seu comprido machete. O recife de coral é o lugar predilecto de temíveis enguias de dentes compridos e venenosos que podem facilmente decepar a perna de um homem. Enroscam-se para o ataque com rapidez fulminante e são o terror dos naturais, que não têm medo de nadar perto de um tubarão.

Os dois conseguiram vadear longos trechos do recife para as bandas do Sul, mas num ou noutro trecho tiveram de pular ou de atravessar a nado. Alcançaram ilesos a grande ilha e foram a vau para a terra. A ilha, comprida e estreita e coberta de coqueirais, estendia-se mais para o Sul entre praias banhadas de sol e abrigadas pelo recife. Continuaram a sua excursão até chegarem à extremidade meridional. Daí o recife, coberto de branca espuma, estendia-se para o Sul até outras ilhas distantes. Acharam o restos de um enorme navio que ali dera à praia: tinha quatro mastros e jazia na praia partido em dois pedaços. Era um velho navio à vela, espanhol, que tinha vindo carregado de barras de ferro, e essas, todas enferrujadas, estavam dispersas ao longo do recife. Voltaram pelo outro lado da ilha, mas não viram na areia um vestígio sequer. No regresso através do recife, iam, a cada passo, perturbando o sossego de curiosos peixes e procuravam apanhar alguns deles quando, subitamente, se viram atacados por nada menos de oito grandes enguias. Aperceberam-nas quando vinham na água clara e pularam para cima de um enorme bloco de coral, em redor do qual as enguias se agitavam. Os viscosos animais eram da grossura da barriga da perna de um homem e tinham malhas verdes 282 e pretas como as das serpentes peçonhentas, com a cabeça pequena, olhos malignos de cobra e dentes de vinte e cinco milímetros de comprimento e pontudos como sove-las. Brandindo os seus machetes na direcção das cabecinhas rabinas que se dirigiam contra eles, os dois homens cortaram uma e feriram outra. O sangue espalhado na água atraiu um cardume de tubarõezinhos azuis que atacaram a enguia morta e a ferida, enquanto Erik. e Herman conseguiam pular para outro bloco de coral e fugir. No mesmo dia, ia eu a vau para a ilha quando uma coisa, num movimento rapidíssimo, se agarrou ao meu tornozelo, apertando-o dos dois lados. Era uma siba. Não grande, mas causava horror a pressão daqueles braços frios no pé e ver-se a gente obrigada a trocar olhares com aqueles olhinhos perversos, metidos no saco vermeIho-azulado que formava o corpo. Sacudi com força o pé em todas as direcções, mas a lula, que teria pouco mais de meio metro de comprimento, não o

largava. Fui-me arrastando aos pulos e sacudidelas para a praia, com o nojento mostrengo pendurado no pé. Só quando cheguei à orla da areia seca me soltou, metendo-se lentamente na água rasa, com os braços estendidos e os olhos voltados para a praia, como se mostrasse disposta a novo ataque, caso eu desejasse. Atirei-lhe uns pedaços de coral e desapareceu. As nossas aventuras no recife tornavam simplesmente adorável a existência naquela ilha paradisíaca. Mas não podíamos ficar ali a vida inteira e era preciso pensar no modo de voltar ao mundo exterior. Passada uma semana, a Kon-Tiki dera com os costados no centro do recife onde encalhou de vez. Os enormes troncos haviam partido grandes lajes de coral ao forçarem caminho para a lagoa, mas agora a jangada de madeira estava imóvel, 283 e de nada valia empurrá-la ou tentar arrastá-la. Se ao menos conseguíssemos puxá-la até a lagoa, sempre poderíamos ajustar o mastro e pôr a embarcação sinistrada em condições de navegar com o vento que perpassasse pela lagoa amiga, e ver o que havia do outro lado. Se alguma das ilhas era habitada, devia ser a que ficava ao longo do horizonte, a Oeste, onde o atol tinha a frente para o lado de Sotavento. Os dias passaram. Eis que certa manhã uns companheiros vieram correndo dizer que tinham visto uma vela branca na lagoa. Por entre os fustes dos coqueiros, podíamos lobrigar uma diminuta mancha muito branca, a contrastar com o azul cor de opala da lagoa. Era evidentemente uma vela próxima da terra, do outro lado. Pudemos ver que estava a fazer um bordo. Pouco depois apareceu outra. À medida que o tempo passava, foram crescendo de tamanho e aproximando-se. Vinham na nossa direcção. Içámos a bandeira francesa num coqueiro e acenámos com a nossa bandeira norueguesa espetada num pau. Uma das velas estava agora tão perto que pudemos ver que pertencia a uma canoa polinésia. Dois vultos morenos achavam-se, de pé, a bordo olhando para nós. Acenámos-lhes. Abanaram a mão e marearam directamente para os baixios. - Ia ora na, saudámo-los em polinésio.

- ta ora na, responderam em coro, e ura saltou para fora e arrastou a sua canoa atrás de si enquanto atravessava a vau os baixos arenosos, vindo no nosso rumo. Os dois tinham roupas de homens brancos, mas corpos de homens morenos. Traziam as pernas nuas, possuíam boa conformação física e usavam chapéus de palha de 284 fabricação caseira para se protegerem do sol. Desembarcaram e aproximaram-se de nós meio vacilantes, mas quando lhes sorrimos e lhes apertámos as mãos, puseram-se risonhos mostrando filas de dentes alvíssimos que diziam mais que palavras. A nossa saudação polinésica tinha espantado e estimulado os canoeiros da mesma maneira que nós nos havíamos enganado quando os seus parentes de Angatau gritaram «boa noite», e começaram a desfiar uma longa história em polinésio até perceberam que estavam a perder tempo e feitio. Então nada mais disseram e limitaram-se a rir, amavelmente, apontando para a outra canoa que se aproximava. Nesta, havia três homens e quando vieram para terra e nos saudaram, pareceu-nos que um deles conhecia um pouco de francês. Ficámos a saber da existência de uma aldeia nativa numa das ilhas situadas à beira da lagoa, e dela tinham os polinésios visto a nossa fogueira várias noites antes. Como só havia uma passagem, através do recife de Raroia, até ao círculo de ilhas que rodeavam a lagoa, e como essa passagem se estendia para além da vila, ninguém podia aproximar-se das ilhas que ficavam no interior do recife sem ser visto pelos habitantes. Por isso, os velhos do lugar tinham chegado à conclusão de que a luz que viam no recife, a Leste, não podia ser obra de homens, e devia ser algo de sobrenatural. Isto amortecera neles todo o desejo de atravessar a lagoa e ir ver. Mas eis que parte de um caixote viera boiando pela lagoa e nele estavam pintados uns sinais. Dois dos nativos, que tinham estado em Taiti e aprendido alfabeto, decifraram a inscrição e leram Tiki, em grandes letras negras, na tábua do caixote. Então não houve mais dúvida de que havia espíritos no recife, porquanto Tiki, todos eles o 285

sabiam, era o fundador da sua raça, morto havia muito tempo. Mas depois veio a boiar pela lagoa uma porção de coisas, pão enlatado, cigarros, coco e um caixote contendo um sapato velho. Então compreenderam que tinha havido um naufrágio no lado Leste do recife, e o chefe mandara duas canoas para procurar os sobreviventes cujo fogo tinham visto na ilha. A instâncias dos outros, o homem moreno que falava francês perguntou por que razão a tábua do caixote que viera pela lagoa trazia a palavra «Tiki». Explicámos que Kon-Tiki estava escrito em todo o nosso material e que esse era o nome da embarcação na qual tínhamos vindo. Os nossos novos amigos mostraram-se assombrados ao saberem que todos os tripulantes se haviam salvo quando a embarcação varara, e que aquela almanjarra chata que se achava lá no recife era, sem tirar nem pôr, a embarcação que nos trouxera até ali. Queriam transportarnos a todos, imediatamente, para dentro das canoas e levar-nos para a aldeia. Agradecemos-lhe e recusámos, pois era nosso desejo permanecer ali até safarmos a Kon-Tiki. Olharam horrorizados para o incrível calhambeque encalhado no recife; não era possível que pensássemos em pôr aquela ruína de madeira novamente a navegar! Por fim, o nosso interlocutor disse, enfaticamente, que tínhamos de ir com eles; o chefe dera-lhes ordem expressa de não voltarem sem nós. Então deliberámos destacar um dos nossos para ir com os naturais, na qualidade de enviado junto ao chefe, e depois voltar com as necessárias informações a respeito da outra ilha. Não deixaríamos a jangada ficar no recife, e não podíamos abandonar todo o material na nossa pequena ilha. Bengt seguiu com os indígenas. As suas 286 canoas foram puxadas para a água e, pouco depois, desapareceram a Oeste com bom vento. No dia seguinte, o horizonte enxameava de velas brancas. Parecia que os indígenas tinham vindo buscar-nos com toda a sua frota. O comboio fez um bordo no nosso rumo, e quando chegou perto, vimos o nosso bom amigo Bengt acenando com o chapéu na primeira canoa, cercado de figuras morenas. Disse-nos, aos berros, que o chefe em pessoa estava com ele, e por isso formámos respeitosamente na praia enquanto vinham a vau ao nosso encontro.

Bengt apresentou-nos ao chefe com grande cerimónia. O nome do chefe, informou, era Tepiuraiarii Teriifaatau, mas que entenderia também se lhe chamássemos, simplesmente, Teka. O chefe Teka era um polinésio alto e esbelto, de olhos vivos e inteligentes. Importante personagem, descendente da antiga estirpe real de Taiti, era chefe das ilhas Raroia e Takume. Em Taiti, havia frequentado a escola, falava francês e sabia ler e escrever. Disse-me que a capital da Noruega era Cristiânia e perguntou-me se eu conhecia Bing Crosby. "Acrescentou que apenas três navios estrangeiros tinham aportado em Raroia nos últimos dez anos, mas que a aldeia era visitada várias vezes no ano pela escuna de copra vinda de Taiti, trazendo mercadoria e levando caroço de coco. Há semanas que estavam à espera da escuna, de maneira que chegaria a qualquer momento. Bengt disse, em resumidas palavras, que em Raroia não havia escola, nem Rádio, nem homens brancos, mas que os 120 habitantes do lugar tinham feito tudo para estarmos lá à vontade e que nos haviam preparado uma grande recepção. O primeiro pedido do chefe foi ver o bote que nos 287 trouxera, vivos, a terra. Vadeámos o trajecto até a Kon-Tiki, seguidos de uma fila de indígenas. Quando chegámos perto, estacaram e romperam em exclamações de espanto, falando todos ao mesmo tempo, numa grazinada. Agora podíamos ver perfeitamente os toros da Kon-Tiki, e um dos indígenas gritou: - Não é um bote, é um pae-pae! - Pae-pae! repetiram todos em coro. Foram patejando à desfilada através do recife e subiram à Kon-Tiki. Esquadrinharam todos os cantos como meninos curiosos, apalparam os toros, o trançado de bambu e as cordas. O chefe mostrava o mesmo entusiasmo que os demais; ao voltar, repetiu com jeito de quem indaga alguma coisa: - A Tiki não é um bote, é um pae-pae. Pae-pae em polinésio quer dizer «jangada» e «plataforma», e na ilha de Páscoa é também o termo usado para designar as canoas do lugar. Disse-nos o chefe que esses pae-paes já não existiam, mas que as pessoas mais idosas da povoação sabiam de antigas tradições a

respeito deles. Todos competiam em admiração diante dos grandes toros de balsa, mas torceram o nariz ao referirem-se às cordas. Cordas assim não duravam muitos meses na água salgada e ao sol. Mostraram-nos, com orgulho, os cabos das suas canoas; tinham-nos fabricado de fibra trancada de coco, e essas cordas conservavam-se boas no mar, durante cinco anos. Quando fizemos, a vau, o percurso de regresso à nossa pequena ilha, recebeu o nome de Fenua Kon-Tiki, ou seja, a ilha de Kon-Tiki. Este era um nome que todos podíamos pronunciar, mas os nossos amigos morenos suaram tentando pronunciar os nossos curtos nomes de baptismo, nórdicos. Gostaram muito quando lhes disse 288 que podiam chamar-me Terai Mateata, porque o grande chefe de Taiti me dera esse nome ao adoptar-me como seu «filho» a primeira vez que estive por aquelas bandas. Os indígenas trouxeram das canoas galinhas, ovos e fruta-pão, enquanto outros fisgavam grandes peixes na lagoa com arpões trifurcados, e foi-nos oferecido um banquete ao ar livre. Tivemos de narrar todas as nossas aventuras no oceano a bordo do pae-pae, e quiseram que lhes repetíssemos, várias vezes, o caso do tubarãogigante. E cada vez que chegávamos ao ponto da história em que Erik embebera o arpão no crânio do monstro, rompiam em gritos de entusiasmo. Reconheciam imediatamente cada peixe de que lhes mostrávamos os desenhos, dizendo prontamente os seus nomes em polinésio. Mas nunca tinham visto o tubarão-gigante ou o Gempylus, ou sequer ouvido falar neles. À noite ligámos o Rádio, o que causou imenso prazer a toda a assembleia. Apreciaram muito música de igreja até que, com espanto nosso, apanhámos da América a verdadeira música de hula. Então os mais espevitados começaram a saracotear-se com. os braços curvados sobre a cabeça, e, daí a pouco, o grupo todo movia os quadris dançando a hula-hula ao compasso da música. Depois reunimo-nos todos em redor de uma fogueira na praia. Foi uma coisa divertida não só para os naturais mas também para nós.

Quando despertámos, na manhã seguinte, já estavam de pé frigindo peixes que acabavam de pescar, enquanto seis cocos recentemente abertos se encontravam à nossa para matar a sede matinal. Naquele dia, o recife atroava mais que de costume; o vento recrudescera, e a rebentação subia a grande altura por detrás do barco naufragado. 289 - Hoje, a Tiki virá para dentro, disse o chefe, apontando para os restos da jangada. Vamos ter praia mar. Pelas onze horas, a água começou a correr na nossa frente em direcção à lagoa. Esta principiou a encher-se como uma imensa bacia, e a água elevava-se em redor da ilha. Mais tarde, iniciou-se, vindo do mar, o verdadeiro afluxo. À proporção que as ondas se avolumavam, o recife submergia-se abaixo da superfície do mar. As massas de água rolavam para a frente em toda a extensão da ilha. Arrancavam enormes blocos de coral e cavavam .grandes bancos de areia que desapareciam como farelo diante do vento, enquanto que outros se formavam. Bambus, soltos, da embarcação naufragada, passavam por nós boiando, e a Kon-Tiki começou a mover-se. Tudo que se achava ao longo da praia teve de ser transportado para o interior da ilha para não ir com a maré. Dentro em pouco, somente eram visíveis as pedras mais altas do recife, tendo-se sumido codas as praias que rodeavam a ilha, enquanto a água corria invadindo o mato da nossa ilhota plana. Era coisa de meter medo. Parecia que o oceano se preparava para nos tragar. A Kon-Tiki vinha rodando e vogou até se deter junto a outros blocos de coral. Os indígenas atiraram-se à água e nadaram e vadearam, vencendo os redemoinhos, até que, indo de um baixio a outro, alcançaram a jangada. Knut e Erik seguiram-nos. Os cabos lá estavam prontos, a bordo da jangada, e quando ela passou pelos últimos blocos de coral e se livrou do recife, os naturais saltaram de bordo e procuraram detê-la. Não conheciam a Kon-Tiki e a sua incoercível tendência para rumar em direcção a Oeste; de modo que foram inelutavelmente rebocados com ela, ao passo que, daí a pouco, a jangada atravessava com 290

grande velocidade o recife e penetrava na lagoa. Viu-se ligeiramente embaraçada ao atingir água mais tranquila e parecia que olhava em torno estudando as suas novas, possibilidades. Antes de começar a mover-se outra vez e depois que descobrira a saída pela lagoa, já os indígenas tinham conseguido enrolar num coqueiro em terra à extremidade do cabo. E ali ficou a Kon-Tiki, bem amarrada na lagoa. A embarcação que anda em terra e na água, transposta a barreira, tinha penetrado na lagoa. no interior de Raroia. Com entusiásticos gritos de guerra, a que servia de estribilho «ke-ke-tehuru-huru», arrastámos a Kon-Tiki unindo os nossos esforços, para a praia da ilha do seu próprio nome. A maré atingiu 1,20 m acima do nível normal da água. Chegámos a pensar que a ilha toda ia desaparecer. As ondas açoitadas pelo vento vinham quebrar-se na lagoa, e grande parte do nosso material não cabia nas. canoas estreitas e molhadas. Os indígenas tiveram de voltar apressadamente à aldeia, e Bengt e Herman foram com eles para ver um menino que estava lá à morte com um abcesso na cabeça. E nós tínhamos penicilina. No dia seguinte, estávamos os quatro sós na ilha de Kon-Tiki. O vento Leste soprava com tanta violência que os indígenas não puderam atravessar a lagoa, pois esta era toda marchetada de pontudas formações coralinas e de parcéis. A maré, que havia cedido um pouco, afluiu de novo com ferocidade, formando como que degraus impetuosos. No outro dia voltara a bonança. Podíamos agora mergulhar debaixo da Kon-Tiki, certificando-nos de que os nove toros se achavam intactos, apesar do recife lhes ter desbastado o fundo uma ou duas polegadas. O cordame 291 estava tão embebido nos seus sulcos que apenas quatro das numerosas cordas tinham sido cortadas pelos corais. Começámos a fazer uma limpeza a bordo. A nossa soberba embarcação ficou com melhor aparência depois de se ter posto um pouco de ordem no convés, de se desmanchar a cabina que parecia uma concertina, e de se reparar o mastro e pô-lo no seu lugar.

No decorrer do dia, as velas tornaram a aparecer no horizonte; os indígenas vinham buscar-nos e ao resto da carga. Acompanhavam-nos Herman e Bengt, que nos disseram que os habitantes da aldeia tinham preparado lá grandes festejos. Ao chegarmos à outra ilha, não devíamos deixar as canoas até que o chefe nos dissesse que podíamos fazê-lo. Pouco a pouco, sulcámos a lagoa, que aqui tinha mais de onze quilómetros de largura. Soprava uma fresca brisa. Foi com verdadeiro pesar que vimos os coqueiros familiares da ilha de Kon-Tiki acenar-nos adeus com as suas frondes, ao mesmo tempo que se iam tornando numa coisa indistinta, na pequena ilha, que já se confundia com as outras ao longo do recife a Leste. Mas adiante de nós, vinham avultando ilhas maiores. E, numa delas, vimos um quebra-mar e fumo a sair das choças entre os coqueiros. A aldeia parecia morta; não se topava viva alma. Que aconteceria? Na praia, por detrás de um molhe formado por blocos de coral, estavam de pé dois vultos solitários, um magro e alto, outro robusto e gordo como uma pipa. Ao aportarmos, saudámos os dois. Eram o chefe Teka e o vice-chefe Tupuhoe. Ganhou-nos logo o coração o sorriso afável e franco de Tupuhoe. Teka era homem de inteligência lúcida e um diplomata, mas Tupuhoe tinha uma índole de criança, tanta sinceridade, um sentido 292 de humor e uma força primitiva tão intensa como raramente se encontram num só indivíduo. Com a sua corpulência e as suas feições régias realizava exactamente o (que um chefe polinésio devia ser. Tupuhoe cia, dc lacto, o verdadeiro chefe da ilha, mas Teka havia paulatinamente conquistado a posição suprema porque subia lalar francês e contar e escrever, de modo que os aldeões não eram enganados quando a escuna vinha de Taiti para buscar copia. Teka explicou que tínhamos de marchar juntos até ao templo da aldeia, e depois que todos haviam chegado a terra, partimos para aquele local em cerimonioso cortejo, precedidos de Herman com a bandeira a tremular na lança de um arpão, vindo cu depois ladeado dos dois chefes.

A aldeia ostentava sinais evidentes do seu comércio de copra com Taiti; tanto as tábuas como o ferro ondulado tinham vindo na escuna. Enquanto algumas choças eram construídas num pitoresco estilo antiquado, com varas e folhas de palmeira trançadas, outras eram feitas de um modo tosco com pregos e tábuas como pequenos «bungalows» tropicais. Uma grande casa de tábuas e que estava solitária entre os coqueiros, era o novo templo da aldeia; ali deviam ficar os seis brancos. Entrámos, com a bandeira, por uma portinha dos fundos, e saímos pela frente, postando-nos numa larga série de degraus, diante da fachada. Defronte de nós, na praça, achava-se toda a gente da aldeia que tinha podido acorrer ao local andando ou arrastando-se - mulheres e crianças, velhos e moços. Estavam todos profundamente sérios; até os nossos alegres amigos da ilha de Kon-Tiki formavam entre os demais e não davam mostras de nos reconhecerem. 293 Quando aparecemos, parando sobre os degraus, toda aquela gente abriu a boca simultaneamente e começou a cantar ...a Marselhesa! Teka, que sabia a letra, tirava o canto que ia bastante bem, apesar de algumas velhas se atrapalharem um pouco nas notas altas. Tinham-se exercitado bastante para isso. As bandeiras francesa e norueguesa foram hasteadas em frente aos degraus, e com isto terminou a recepção oficial dada pelo chefe Teka. Retirou-se então, tranquilamente, para segundo plano, e o robusto Tupuhoe passou rápido para a frente, tornando-se mestre de cerimónias. A um sinal seu, a assembleia inteira entoou novo cântico. Desta vez foi melhor, pois a toada era deles e bem assim as palavras, ditas na sua própria língua, além de que sabiam a hula como ninguém. Tão encantadora era a melodia na sua tocante simplicidade, que sentimos um arrepio na espinha lembrando-nos do estrondo dos mares do Sul, tão conhecido nosso. Alguns tiravam o canto e todo o coro entrava em perfeito ritmo; apesar de haver variações na melodia, as palavras eram as mesmas: «Bom dia, Terai Mateata, e os vossos homens, que viestes através do mar num pae-pae até nós em Raroia; sim, bom dia. Oxalá fiqueis muito tempo entre nós, constando-nos as vossas aventuras, e contando-vos nós as nossas, de modo a que estejamos sempre juntos, ainda quando partirdes para uma terra longínqua. Bom dia».

Tivemos de pedir-lhe que repetissem o cântico, e aquela boa gente, sentindo-se menos constrangida, cantou ainda com mais alma. Em seguida, Tupuhoe solicitou-me que dissesse algumas palavras ao povo, a respeito do motivo que nos fizera atravessar o mar num pae-pae; estavam todos esperando por isso. Eu falaria francês e Teka traduziria aos poucos. 294 Achava-me diante de um povo sem cultura mas muito inteligente e que contava com a minha palavra. Disse-lhes que já tinha estado antes com patrícios deles nas ilhas dos mares do Sul, e que ouvira falar do seu primeiro chefe Tiki, que trouxera os seus antepassados para as ilhas, vindo de um país misterioso, cujas paragens ninguém mais sabia. Mas numa terra distante chamada Peru, acrescentei, havia reinado outrora um chefe poderoso cujo nome era Tiki. O povo chamou-lhe Kon-Tiki ou Sol-Tiki, porque se dizia descendente do Sol. Tiki e muitos dos seus seguidores tinham por fim desaparecido de seu país em grandes paepaes; por isso, pensámos que era o mesmo Tiki que tinha vindo para aquelas ilhas. Como ninguém quisesse acreditar que um pae-pae podia fazer a viagem através do mar, havíamos partido de Peru num pae-pae e ali estávamos, por isso era certo que a façanha podia ser realizada. Quando o pequeno discurso foi traduzido por Teka, Tupuhoe inflamouse e pulou para a frente da assembleia como que tomado de um arroubo. Foi falando na sua língua, atirava os braços para o alto, apontava para o céu e para nós, e no seu dilúvio verbal repetia continuamente a palavra Tiki. Falava tão depressa que era impossível seguir o fio do que dizia, mas a assembleia em peso bebia-lhe as palavras e estava visivelmente electrizada. Teka, pelo contrário, deu mostras de muito embaraçado quando teve de traduzir. Tupuhoe dissera que seu pai e seu avô e os pais destes tinham falado de Tiki e haviam dito que Tiki fora o seu primeiro chefe e que agora se encontrava no Céu. Mas eis que vieram os brancos e insinuaram que as tradições de seus antepassados eram mentiras. Tiki nunca existira. No céu não estava, pois lá estava Jeová. 295

Tiki era um deus pagão e por isso não deviam continuar a crer nele. Mas agora nós seis tínhamos atravessado o mar num pae-pae. Éramos nós os primeiros brancos que reconheciam que os seus antepassados haviam falado a verdade. Tiki vivera, tinha sido real, mas agora estava morto e achava-se no céu. Apavorado com a ideia de estar a estragar o trabalho dos missionários, dei um passo à frente para explicar que Tiki tinha existido, isto era absolutamente certo, e que agora estava morto. Mas se hoje ele estava no céu ou no inferno só Jeová sabia, porque Jeová estava no Céu ao passo que Tiki havia sido um homem mortal, um grande chefe como Teka e Tupuhoe, talvez ainda maior. Isto provocou grande contentamento entre aqueles homens morenos, e os sinais de aprovação que faziam com a cabeça e os murmúrios que se ouviam mostravam, claramente, que a explicação cairá em bom terreno. Tiki existira, isto era o principal. Se agora estava no Inferno, pior para ele; pelo contrário, insinuou Tupuhoe, isto talvez até aumentasse as probabilidades de o tornar a ver. Três velhos adiantaram-se e quiseram cumprimentar-nos. Não havia dúvida que eram eles que tinham conservado viva, entre a população, a memória de Tiki, e o chefe disse-nos que um daqueles velhos sabia uma quantidade enorme de lendas e baladas históricas do tempo de seus antepassados. Perguntei ao ancião se, entre as suas lembranças, existia alguma coisa referente à direcção de onde Tiki tinha vindo. Não. Nenhum dos velhos se recordava de ter ouvido falar nisso. Mas, depois de demorada e cuidadosa reflexão, o mais idoso dos três disse que Tiki tinha um parente próximo que se chamava Maui, e na balada de Maui dizia-se que viera das ilhas de Pura, e a palavra pura queria dizer a parte do Céu onde o Sol 296 nasce. Se Maui tinha vindo de Pura. disse o velho, sem dúvida Tiki viera do mesmo lugar, e nós seis tínhamos vindo dc Pura no pae-pae. Isto era coisa certa. Expliquei aos homens morenos que, numa ilha solitária chamada Mangareva, perto da ilha de Páscoa, a população nunca se utilizara dc canoas, continuando a fazer uso até agora dc enormes pae-paes, no mar. Isso os velhos, não sabiam, mas sabiam que seus avós também

tinham usado grandes pac-paes, mas estes, pouco a pouco, haviam sido postos de lado, e agora deles só restava o nome e a tradição. Em época muito afastada, exclamou o mais idoso, eram conhecidos por rongo-rongo, mas essa palavra não existia mais na língua indígena. Entretanto, o rongo-rongo é mencionado nas mais antigas lendas. Este nome era interessante, porquanto Rongo - pronunciado Lobo em certas ilhas - era como se chamava um dos mais conhecidos heróis lendários dos polinésios. Descreviam-no até como homem branco e de cabelos louros. Quando o capitão Cook chegou, pela primeira vez, a Hawai, foi recebido de braços abertos pelos ilhéus, porque pensaram que ele era o seu parente branco Rongo que, depois de várias gerações, tinha voltado da pátria de seus antepassados no seu colossal navio de vela. E na ilha de Páscoa a palavra rongo-rongo era a designação usada para os misteriosos hieróglifos cujo segredo se perdera com os últimos «orelhas compridas» que sabiam escrever. Ao passo que os velhos queriam discutir a respeito de Tiki e do rongorongo, os moços preferiam ouvir falar no tubarão-gigante e na viagem através do mar. Mas a comida estava à espera e Teka cansara-se já de servir de intérprete. Nesse momento, a aldeia inteira teve permissão de chegar-se e cumprimentar cada um de nós. Os homens 297 diziam em voz baixa «ia-ora-na» e quase nos arrancavam a mão da articulação, enquanto que as moças vinham saracoteando-se e, um tanto tímidas, saudavam-nos graciosamente, e as velhas chalravam e cacarejavam apontando para as nossas barbas e para a cor da nossa pele. Todos os rostos respiravam amizade, por isso não tinha a mínima importância a enorme balbúrdia linguística que ali reinava. Se diziam em polinésio qualquer coisa para nós incompreensível, pagávamos-lhes na mesma moeda em norueguês, e todos nos divertíamos com o caso. A primeira palavra vernácula que aprendemos foi a equivalente a «gostar», e quando queríamos apontar para uma coisa de que gostávamos, com a certeza de obtê-la imediatamente, era muito simples. Se se torcia o nariz quando se dizia «gostar», isso queria dizer que se «não gostava», e nessa base pudemos ir longe.

Depois que ficámos a conhecer os 127 habitantes da aldeia, foi posta uma longa mesa para os dois chefes e para nós seis, e as jovens aldeãs trouxeram pratos deliciosos. Enquanto algumas arrumavam a mesa, outras penduravam grinaldas de flores em volta de nosso pescoço, e coroas menores eram colocadas em torno de nossa cabeça. As flores exalavam um lânguido perfume e eram um refrigério no calor que fazia. E assim teve começo uma festa de boas-vindas que só terminou quando deixámos a ilhas semanas depois. Arregalámos os olhos e veio-nos água à boca, pois as mesas estavam cobertas de leitões assados, galinhas, patos assados, lagostas frescas, peixadas polinésias, fruta-pão, mamão e leite de coco. E enquanto nos atirávamos àquelas iguarias, a multidão distraía-nos cantando canções próprias para a dança da hula, enquanto moçoilas dançavam em redor da mesa. Os meninos riam e divertiam-se à nossa custa, e não 298 era para menos, pois cada um de nós parecia mais ridículo que o vizinho, a comer como uns esfaimados, com umas barbas respeitáveis e com grinaldas de flores na cabeça. Os dois chefes gozavam a vida com igual desenvoltura. Depois do repasto, houve dança de hula em grande escala. A aldeia queria fazer uma exibição dc danças populares locais. Enquanto Teka. Tupuhoe e nós seis nos sentávamos junto à orquestra, dois tocadores de guitarra adiantaram-se, puseram-se de cócoras e começaram a tocar, lá a seu modo, genuínas melodias dos mares do Sul. Duas filas de dançarinos e dançarinas, com saias farfalhantes de folhas de coqueiro em volta dos quadris, vinham deslizando e saracoteando-se por entre os espectadores que estavam de cócoras, formando um círculo, e cantavam. Dirigia o canto, com entusiasmo e vivacidade, uma gorda uahine, a quem os dentes agudos de um tubarão haviam arrebatado um braço. No começo, os dançarinos mostraram-se um tanto teatrais e pareciam nervosos, mas quando viram que os homens brancos do pae-pae não desgostavam das danças populares de seus avós, o baile foi-se tornando cada vez mais animado. Algumas pessoas de mais idade vieram-se juntar aos primeiros; aquelas tinham um ritmo esplêndido e sabiam danças que certamente não estavam mais em

voga. E enquanto o Sol descambava no Pacífico, as danças que estavam a ser executadas, sob os coqueiros, iam em entusiasmo crescente, tornando-se cada vez mais espontâneo o aplauso dos espectadores. Tinham-se esquecido que nós, que os observávamos, éramos seis estrangeiros; consideravam-nos como seis dos seus, a distraírem-se com eles. O repertório era inesgotável; um número fascinante era seguido de outro. Finalmente, vários moços agacharam-se, 299 em apertado círculo, diante de nós e, a um sinal de Tupuhoe, principiaram a marcar compasso ritmicamente no solo com as palmas das mãos. Primeiro devagar, depois mais depressa, tornando-se o ritmo cada vez mais perfeito quando um tamborileiro, de repente, se associou aos primeiros e os acompanhou, batendo vertiginosamente com duas baquetas num bloco de madeira oca e muito seca, que emitiam som forte e agudo. Quando o ritmo atingiu o grau de animação que se desejava, começou o canto e, de súbito, pulou para dentro do círculo uma dançarina de hula que trazia, em volta do pescoço, uma grinalda de flores, tendo também flores debaixo das orelhas. Dançava ao compasso da música e ostentava os pés descalços e dobrados os joelhos, meneando airosamente os quadris e curvando os braços acima da cabeça em legítimo estilo polinésio. Dançava magnificamente, e dentro em pouco toda a assembleia marcava compasso com as mãos. Outra jovem pulou para o círculo e depois ainda uma terceira. Moviamse com incrível agilidade em ritmo perfeito, resvalando uma em torno da outra como se fossem graciosas sombras. O soturno bater das mãos no chão, o canto e o alegre tambor de pau aumentaram-lhes o entusiasmo, fazendo-as rodopiar numa vertigem, atingindo a dança uma animação incrível, ao mesmo tempo que os espectadores gritavam e batiam as palmas em ritmo impecável. Era essa a vida nos mares do Sul tal como a haviam conhecido os dias de antanho. As estrelas tremeluziam e os ramos balouçavam-se. A noite corria branda e parecia interminável, cheia de aromas e de cri-cris de grilos. Supure estava radiante e bateu-me no ombro. - Maitai? perguntou, - Sim, maitai, respondi.

- Maitai? perguntou a todos os outros. 300 - Maitai, responderam todos com entusiasmo que, bem se via, não era fingido. - Maitai, repetiu Tupuhoe, meneando afirmativamente a cabeça e apontando para si próprio; também ele, naquele momento, estava a divertir-se. A festa estava de facto muito boa, até mesmo no conceito de Teka; era a primeira vez que homens brancos tinham presenciado as suas danças em Raroia, explicou. Cada vez mais depressa, num crescendo constante, iam os rufos dos tambores, o bater das mãos, os cantos e os bailados. De repente, uma das dançarinas deteve os seus movimentos em torno do círculo e permaneceu no mesmo lugar, executando uma dança em terrífico rodopio, com os braços estendidos para Herman. Por detrás da barba, o nosso companheiro escondia uma risota; não sabia absolutamente como interpretar aquilo. - Não se faça rogar, cochichei-lhe, você que é tão bom camarada e sabe dançar tão bem! E com imenso gozo da multidão, Herman pulou para dentro da roda e, meio agachado, empreendeu os difíceis meneios da hula. O júbilo já não conhecia limites. Pouco depois, Bengt e Torstein também aderiram à dança, esforçando-se, até o suor lhes escorrer do rosto, para seguir o rodopio que não cessava nunca, finalmente o tambor sozinho ficou batendo com uma espécie de longo zumbido, e as três verdadeiras dançarinas de hula puseram-se a tremer como folhas de faia, deixandose cair, no final da execução, momento em que os rufos surdos do tambor emudeceram abruptamente. A noite agora era nossa. O entusiasmo não esmorecia. O número seguinte do programa foi a dança do pássaro, uma das cerimónias mais antigas de Raroia. Homens e mulheres, em duas filas, pulavam para a frente 301 numa dança rítmica, imitando bandos de pássaros conduzidos por um director de bailados. Este tinha o título de chefe dos pássaros e executava curiosas manobras sem realmente tomar parte na dança.

Acabada esta, Tupuhoe explicou que fora executada em honra da jangada e que agora seria repetida, porém o regente do bailado ia ser substituído por mim. Como me pareceu que a principal tarefa do regente consistia em dar berros selvagens e saltar girando sobre as ancas, sacudindo o traseiro e mexendo com as mãos por cima da cabeça, firmei bem a minha grinalda de flores e penetrei na arena. Enquanto macaqueava a meu modo a tal quadrilha, vi o velho Tupuhoe rir tanto que quase caiu do seu banquinho, e a música afrouxou um pouco porque os cantores e os músicos seguiram o exemplo de Tupuhoe. Todos agora queriam dançar, jovens e velhos, e logo estavam de novo a postos o tamborileiro e os que davam palmadas na terra, iniciando o primeiro movimento de uma fogosa hula-hula. Saltaram as dançarinas para dentro do círculo e puseram-se a bailar com uma desenvoltura sempre crescente, sendo nós, pouco depois, convidados a tomar parte no rodopio, enquanto mais gente vinha, a bater com os pés e a piruetar com admirável presteza. Mas não havia quem induzisse Erik a mexer-se. As correntes de ar e a humidade a bordo da jangada tinham feito voltar o seu desaparecido lumbago, e lá estava ele sentado, como um velho patrão de barco, teso e barbado, tirando baforadas do seu cachimbo. Não se deixava seduzir pelas dançarinas de hula que procuravam atraí-lo para a arena. Vestia umas calças largas dc pele de carneiro, que usara nas noites gélidas passadas na corrente de Humboldt, e sentado ali sob os coqueiros, com a barba 302 crescida, o corpo nu até a cintura e as bombachas de carneiro, parecia uma imagem viva de Robinson Crusoe. Lindas mocinhas sucediam-se à sua volta procurando insinuar-se mas em vão. Fumava sisudamente o seu cachimbo, com a coroa de flores no cabelo intenso. Então uma matrona bem fornida de carnes e de músculos rijos entrou na arena, executou com mais ou menos graça alguns passos de hula, e depois marchou deliberadamente para Erik. Este assustou-se, mas a amazona mostrou-lhe o seu melhor sorriso, agarrou-o resolutamente pelo braço, arrancando-o do tamborete em que estava sentado. O cómico par de bombachas de Erik tinha a lã de carneiro para dentro e o carnaz para o lado de fora, havendo na parte posterior das tais calças

um rasgão, de modo que ressaía para fora um pedaço branco de lã à guisa de coto de rabo, como o de um coelho. Erik acompanhou-a com relutância e entrou na roda mancando, com o cachimbo numa das mãos e apertando com a outra o lugar onde lumbago lhe doía. Quando procurava dar o salto do estilo, teve de largar as calças para amparar a coroa que ameaçava cair, e então, com a coroa de banda, teve de segurar de novo as calças que estavam a descer, naturalmente, com o seu próprio peso. Não era menos desopilante o espectáculo que oferecia a robusta dama dançando a hula com o volume da sua corpulência, de modo que ríamos até chorar pelas barbas abaixo. Pouco depois, todos os outros que se achavam na roda pararam, e estrepitosas gargalhadas ressoaram pelo coqueiral enquanto Erik, dançarino de hula, e o peso-pesado feminino rodopiavam guapamente pela arena. Por fim até os dois tiveram de parar, porque tanto os músicos como os cantores, não mais aguentando a cena, se torciam de riso. A festa continuou até ser já dia claro; então concederam-nos 303 licença para uma pequena pausa, depois de termos novamente cumprimentado cada um dos 127 aldeões. Durante a nossa permanência na ilha, todas as manhãs e todas as noites apertávamos a mão de cada um deles. Percorrendo as choças da povoação recolheram seis leitos que foram colocados, lado a lado, ao longo da parede do templo, e neles dormimos em fila como se anõezinhos da história de fadas, com grinaldas de flores balsâmicas a coroarem-nos a cabeça. No dia seguinte, o menino de seis anos que tinha um abcesso na cabeça parecia ter piorado. A temperatura era elevadíssima e o tumor do tamanho do punho de uma pessoa adulta, latejava dolorosamente. Teka declarou que tinham perdido dessa maneira várias crianças e que se não tivéssemos nenhum jeito de medicar o doentinho, este não teria muitos dias de vida. Trazíamos connosco alguns frascos de penicilina preparada .em pastilhas, mas não sabíamos a dose que uma criança podia suportar. Se o menino morresse com o nosso tratamento, isso podia-nos acarretar consequências bem sérias. Knut e Torstein instalaram, de novo, o Rádio, suspendendo uma antena entre os coqueiros mais altos. À noite comunicaram com os nossos

invisíveis amigos Hal e Frank, comodamente sentados nos seus aposentos em Los Angeles. Frank chamou um médico ao telefone, e com o manipulador Morse demos por sinais todos os sintomas do pequeno enfermo e uma lista do que trazíamos na nossa farmácia portátil. Frank transmitiu a resposta do médico, e naquela noite fomos à choupana onde o pequeno Haumata se agitava no ardor da febre, tendo a metade da aldeia a chorar e a fazer barulho em redor dele. 304 A Herman e Knut coube o papel de médicos, enquanto os outros tinham bastante que fazer para conservar fora da cabana os aldeões. A mãe fez-se histérica quando chegámos com uma faca afiada e pedimos água a ferver. Rapou-se o cabelo do doentinho e o abcesso foi aberto. O pus esguichou quase até o teto, e vários nativos, numa fúria, quiseram forçar a entrada, tendo de ser postos para fora. Não foi coisa fácil. Esvurmado o abcesso e convenientemente esterilizado, a cabeça toda foi enfaixada e começámos a cura com a penicilina. Durante dois dias e duas noites fazia-se o tratamento do menino de quatro em quatro horas, enquanto a febre ia no auge e o abcesso era conservado aberto. E cada noite consultava-se o médico de Los Angeles. Então a temperatura do menino baixou de repente, o pus foi substituído por plasma que se foi deixando cicatrizar, e o menino estava todo satisfeito, querendo ver ilustrações do estranho mundo do homem branco onde havia automóveis e vacas e casas com vários andares. Uma semana depois, Haumata brincava na praia com as outras crianças, tendo a cabeça envolvida numa grande atadura, que pouco depois teve licença de tirar. Tendo-nos saído bem este caso, não tivemos mãos a medir com as doenças que surgiam na aldeia. Por toda a parte havia dores de dentes e embaraços gástricos, e tanto moços como velhos tinham o seu furúnculo em algum lugar. Mandávamos os pacientes ao Dr. Knut e ao Dr. Herman, que receitavam dietas e esvaziaram a nossa caixa de remédios, tantas pílulas e unguentos dela saíram. Alguns ficaram curados e ninguém piorou, e quando a farmácia ficou inteiramente vazia, fizemos papa de coco e de farinha de aveia, que se revelou um remédio de primeira ordem para mulheres histéricas.

305 Não havia muitos dias que estávamos no meio dos nossos admiradores morenos, quando os festejos culminaram numa nova cerimónia. íamos ser adoptados como cidadãos de Raroia e receber nomes polinésicos. Eu mesmo não me chamaria mais Terai Mateata; podia chamar-me assim em Taiti, mas não ali, entre eles. Seis tamboretes foram colocados para nós, no centro da praça, e a vila toda saiu cedo para arranjar bons lugares na roda que se ia formar. Teka sentou-se solenemente no meio deles; era chefe, mas não quando se tratava de antigas cerimónias locais. Então Tupuhoe assumiu a presidência. Todos se sentaram, pondo-se à espera, em silêncio e profundamente sérios, enquanto o enorme e gordo Tupuhoe se aproximava com imponência e devagar, com a sua nodosa e sólida bengala. Estava cônscio da solenidade do momento, e os olhos de todos se fixaram nele quando chegou, imerso em reflexão, tomando o seu lugar defronte de nós seis. Ele era o chefe nato, actor e orador brilhante. Voltou-se para os cantores principais, para os tamborileiros e regentes da dança, apontou alternativamente para eles com a sua nodosa bengala e deu-lhes ordens, breves, em tom baixo e comedido. Depois tornou a virar-se para nós e, de súbito, arregalou os seus grandes olhos, de maneira que o globo ocular, volumoso e branco, teve o mesmo brilho dos dentes, na expressiva face acobreada. Ergueu a bengala nodosa e as palavras rebentaram-lhe dos lábios como contas de um fio que se partiu, recitando antigos rituais que ninguém entendia, a não ser a gente de mais idade, pois que eram expressos num dialecto há muito esquecido. Depois disse-nos, tendo Teka como intérprete, que Tikaroa era o nome do primeiro rei que se estabelecera 306 na ilha, e que havia reinado nesse mesmo atol, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, até ao Céu acima das cabeças dos homens. Enquanto todo o coro cantava a velha balada do rei Tikaroa, Tupuhoe pôs a sua mão enorme sobre o meu peito e, voltando-se para a assistência, proclamou que me nomeava Varoa Tikaroa, isto é, Espírito de Tikaroa.

Acabado o canto, foi a vez de Herman e de Bengt. Colocando a grande mão morena sobre o peito de um e depois sobre o do outro, deu-lhes os nomes, respectivamente, de Tupuhoe-Itetahua e Topakino. Estes eram os nomes de dois antigos heróis que haviam lutado com um monstro marinho, matando-o à entrada do recife de Raroia. O tamborileiro executou alguns rufos enérgicos, e dois homens robustos pularam para a frente com tangas cheias de nós e comprida lança em cada mão. Iniciaram uma marcha de passo rápido, erguendo os joelhos à altura do peito, apontando a lança para o alto e virando a cabeça de um lado para outro. A novo toque do tambor deram um salto para o ar e, em ritmo perfeito, começaram uma batalha ritual no mais puro estilo de ballet. Foi tudo executado com a maior rapidez, representando o combate dos heróis com o monstro marinho. Depois veio o baptismo de Torstein, acompanhado da mesma cerimónia e canto; foi chamado Maroake, do nome de um rei antigo da actual povoação, e Erik e Knut receberam os nomes de Tane-Matarau e Tefaunui, de dois navegadores e heróis do passado. A longa e monótona recitação que acompanhava a imposição de nomes era feita com grande velocidade e num jorro contínuo de palavras, cuja incrível rapidez tinha o intuito não só de impressionar mas de divertir. 307 Estava terminada a cerimónia. Havia outra vez chefes brancos e barbados entre o povo polinésico de Raroia. Duas filas de dançarinos e dançarinas adiantaram-se, com saias de palha trançada, tendo na cabeça, postas de banda, coroas feitas de esparto. À medida que dançavam, aproximavam-se de nós, transferindo as coroas das próprias cabeças para as nossas. Em redor das nossas cinturas, puseram barulhentas saias de palha, e as festividades continuaram. Uma noite, os enflorados radiotelegrafistas entraram em contacto com o radioamador de Rarotonga, que lhes transmitiu uma mensagem de Taiti. Era do governador das colónias francesas do Pacífico enviando-nos cordiais boas-vindas. De acordo com instruções recebidas de Paris, mandara a escuna Tâmara buscar-nos a Taiti, para não termos de esperar pela chegada incerta da escuna da copra. Taiti era o ponto central das colónias francesas e a única ilha que mantinha contacto com o Mundo em geral.

Teríamos de ir por Taiti para apanharmos o navio regular que nos levaria à nossa pátria. Em Raroia, as festas continuaram. Uma noite ouviram-se gritos estranhos partidos do mar, e os vigias desceram do alto dos coqueiros e informaram que havia uma embarcação parada à entrada da lagoa. Atravessámos correndo o coqueiral rumo à praia, do lado de Sotavento. Aí olhámos, pelo mar, para a direcção oposta àquela de que tínhamos vindo. A rebentação era muito menor dessa banda que ficava ao abrigo de todo o atol e do recife. Logo fora da entrada da lagoa enxergámos as luzes de uma embarcação. Como era fartamente iluminada, vimos os contornos de uma escuna bem larga, de dois 308 mastros. Seria o navio do governador que vinha buscar-nos? Por que não entrava? Os indígenas estavam visivelmente aflitos. Agora nós também víamos a causa. A escuna levava grande inclinação, ameaçando virar. Encalhara num invisível recife de coral sob a superfície. Torstein agarrou uma luz e estabeleceu a comunicação por sinais: - Quel bateau? - Maoae, foi a resposta. A Maoae era a escuna que fazia o percurso entre as ilhas. Estava a caminho de Raroia para buscar copra. O capitão e a tripulação eram polinésios e conheciam os recifes da entrada. Mas, no escuro. a corrente revelara-se traiçoeira. Por felicidade, a embarcação achava-se a Sotavento da ilha e o tempo estava calmo, porém a corrente fora da lagoa era de qualquer maneira bastante perigosa. A inclinação da Maoae acentuava-se cada vez mais, e a tripulação dirigiu-se ao bote. Amarraram fortes cabos aos topos dos mastros. Esses cabos foram depois presos em volta de troncos de coqueiros para impedir que a escuna se virasse. A tripulação, munida de outros cabos, postou-se próximo à abertura do recife, no seu bote, com a esperança de desencalhar a Maoae quando a corrente da maré se escoasse da lagoa. A população da aldeia lançou à água todas as suas canoas e começou a pôr a salvo a carga. Havia a bordo noventa toneladas de copra

valiosa. Sacos e mais sacos foram transportados da escuna oscilante para terra firme. Com a maré alta, a Maoae estava ainda varada, rolando e batendo contra os corais, até que principiou a meter água. Quando o dia raiou, achava-se no recife, em posição pior do que antes. A tripulação nada podia fazer; 309 era inútil tentar puxar do recife as 150 toneladas da escuna com o seu bote e as canoas. Se continuasse a bater onde se achava, acabaria espatifando-se, e se o tempo mudasse, seria levantada pela sucção, sofrendo perda total na ressaca que castigava o atol. A Maoae não tinha Rádio, mas nós tínhamos. Ao mesmo tempo, era impossível obter de Taiti uma embarcação de socorro antes que a Maoae tivesse tempo suficiente para se livrar do naufrágio. Mas, pela segunda vez naquele mês, foi arrebatada ao recife de Raroia a sua presa. Cerca das doze horas do mesmo dia, a escuna Tâmara surgiu no horizonte para o lado de Oeste. Tinha sido enviada para nos receber em Raroia, e não foi pequeno o espanto de sua tripulação ao ver, em vez de uma jangada, os dois mastros de uma grande escuna debatendo-se desesperadamente no recife. A bordo da Tâmara achava-se o administrador francês dos grupos Tuamotu e Tubuai, Frederico Ahnne, a quem o Governo mandara de Taiti com a embarcação ao nosso encontro. Vinha também a bordo um operador de cinema francês e um telegrafista também francês, mas o capitão e a tripulação eram polinésios. Frederico Ahnne nascera em Taiti, sendo filho de pais franceses, e era um esplêndido marinheiro. Assumiu o comando da embarcação com o consentimento do capitão taitiano, que muito folgou de se ver livre de responsabilidade naquelas águas perigosas. Enquanto a Tâmara evitava um sem-número de recifes submersos e de redemoinhos, cabos possantes foram estendidos entre as duas escunas, e Frederico Ahnne começou as suas hábeis e perigosas evoluções, ao passo que a maré ameaçava arrastar ambas as embarcações para o mesmo banco de coral. 310

Na maré alta, a Maoae safou-se do recife, e a Tâmara rebocou-a para o largo. Agora, porém, a água entrava a frouxo pelo casco da Maoae, tendo de. ser puxada, a toda a pressa, até os baixios da lagoa. Três dias permaneceu a Maoae à altura da aldeia quase a soçobrar, com todas as bombas trabalhando dia e noite. Os melhores mergulhadores, entre os nossos amigos da ilha, mergulharam munidos de chapas de chumbo e de pregos e taparam os principais rombos, de modo que a Maoae pôde ser escoltada pela Tâmara até o estaleiro de Taiti, com as bombas a funcionar. Quando a Maoae ficou em condições de ser comboiada, Ahnne manobrou a Tâmara entre os baixios de coral nas lagoas e ao longo da ilha Kon-Tiki. A jangada foi posta a reboque, e então o comandante dirigiu a sua rota de regresso à abertura, com a Kon-Tiki a reboque e a Maoae atrás e tão perto que a tripulação podia ser retirada da mesma se, no mar, os rombos oferecessem perigo. Muito triste foi o nosso adeus a Raroia. Todos quantos podiam caminhar ou arrastar-se estavam no molhe, tocando e cantando as nossas canções favoritas enquanto o bote do navio nos levava para a Tâmara. No centro, destacava-se o espadaúdo Tupuhoe, segurando pela mão o pequeno Haumata. O pequeno chorava, e pelas faces do poderoso chefe as lágrimas também corriam. No quebrantar não havia ninguém de olhos enxutos, mas continuaram a cantar e a tocar incessantemente, até muito depois que a rebentação do recife abafou todos os demais sons em nossos ouvidos. Aquelas pessoas sinceras e fiéis que estavam, em pé, sobre o molhe, cantando, perdiam seis amigos. Nós silenciosos, de pé e encostados ao parapeito da Tâmara, até os 311 coqueiros encobrirem o molhe e desaparecerem eles próprios no mar, perdíamos 127. Ainda nos soava aos ouvidos da alma a música estranha: «...contando-nos as vossas aventuras e contando-vos nós as nossas, de modo que estejamos sempre juntos, ainda quando partirdes para uma terra longínqua. Bom dia.» Quatro dias depois, Taiti surdiu do oceano. Não como um fio de pérolas com frondes de coqueiros, mas como denteadas montanhas azuis

arremessando-se ao céu, com farrapos de nuvens que pareciam festões a engrinaldar os picos. Enquanto pouco a pouco nos aproximávamos, as montanhas azuis revelavam aos nossos olhos umas encostas verdes. Com o verde a sobrepor-se ao verde, a luxuriante vegetação do Sul ondulava, estendendo-se sobre morros e fragas de um vermelho ferrugento, até se abismarem em profundos barrancos e vales que pareciam correr para o oceano. E, quando a costa ficou mais próxima de nós, vimos esguios coqueiros muito juntos em toda a extensão dos vales e ao longo de toda a costa por trás de uma praia maravilhosa. Taiti foi constituída por antigos vulcões. Agora estão extintos, e os pólipos de coral estenderam o seu recife protector em volta da ilha para que o mar não a carcomesse. Uma manhã, bem cedo, metemos a dianteira da escuna por uma abertura no recife e entrámos no porto de Papeete. Diante de nós, estavam agulhas de torres de igreja e telhados vermelhos meio escondidos pela folhagem de árvores gigantescas e de grimpas de coqueiros. Papeete é a capital de Taiti, a única cidade da Oceânia francesa. É uma cidade de diversões, sede do Governo e centro de todo o tráfico do Pacífico oriental. 3I2 Quando entrámos no porto, a população de Taiti esperava-nos numa pinha tão densa de gente que parecia uma garrida parede humana. Em Taiti, as notícias espalham-se como o vento, e o pae-pae que tinha vindo da América era uma coisa que todos queriam ver. À Kon-Tiki coube o lugar de honra ao longo do passeio da praia; o prefeito de Papeete deu-nos as boas-vindas, e uma menina polinésia brindou-nos com uma enorme roda de flores silvestres de Taiti, em nome da sociedade polinésia. Em seguida, algumas jovens adiantaramse e cingiram-nos o pescoço com grinaldas brancas e flores odoríferas, em sinal da boa acolhida que nos fazia Taiti, a pérola dos mares do Sul. Havia um semblante especial que eu ansiosamente procurava no meio daquela multidão, o do meu velho pai adoptivo em Taiti, Teriieroo, chefe supremo dos dezassete chefes nativos da ilha. Ele não faltou. Grande e corpulento e cheio da mesma vivacidade de outros tempos, emergiu da turba gritando «Terai Mateatal» e transbordando alegria em todo o largo

rosto. Fizera-se velho, mas era a mesma impressionante figura de chefe. - Você chega tarde, disse sorrindo, mas traz uma boa nova. O seu paepae acarretou verdadeiramente céu azul (terai mateata) a Taiti, pois agora sabemos de onde nossos pais vieram. Houve recepção no palácio do Governo e uma festa na Prefeitura, tendo nós recebido inúmeros convites de todos os recantos da hospitaleira ilha. Como outrora, o chefe Teriieroo deu uma grande festa em sua casa, no vale Papeno, que eu tão bem conhecia, e como Raroia não era Taiti, houve nova cerimónia durante a qual foram outorgados outros nomes àqueles que ainda não tinham recebido nenhum. 313 Foram dias de completa despreocupação, passados ao sol e ao ar livre. Tomávamos banho na lagoa subíamos às montanhas e dançávamos a hula na relva, debaixo dos coqueiros. Mas esses dias passaram e tornaram-se semanas. Parecia que as semanas se tornariam meses antes que chegasse um navio que nos levasse, à pátria, onde nos esperavam deveres indeclináveis. Veio então uma mensagem da Noruega comunicando-nos que Lars Christensen tinha dado ordem ao navio Thor I para ir, da Samoa a Taiti, buscar a expedição e conduzi-la à América. Uma manhã, bem cedo, o grande vapor norueguês entrou no porto de Papeete, e a Kon-Tiki foi rebocada, por uma embarcação naval francesa, para o lado da sua gigantesca patrícia que, estendendo para fora um braço colossal de ferro, ergueu a sua pequena companheira até e convés. Fortes apitos da sirene ecoaram pela ilha coberta de coqueiros. Gente branca e morena aglomerava-se no cais de Papeete, penetrando de roldão pelo navio dentro com dádivas de despedida e coroas de flores. Nós estávamos de pé, junto ao parapeito, esticando o pescoço como girafas para livrar os nossos queixos da pilha sempre crescente de flores. - Se desejam voltar a Taiti, gritou o chefe Teriieroo, quando o apito ressoou sobre a ilha pela derradeira vez, devem atirar uma coroa para dentro da lagoa, quando o barco partirl

Soltaram os cabos, as máquinas roncaram e com o rodar da hélice a água fez-se verde quando, deslizando de lado, nos distanciámos do cais. Dentro em pouco, os telhados vermelhos desapareciam por trás dos coqueiros e estes iam-se perdendo na voragem 314 azul das montanhas que se engolfavam como sombras no Pacífico. As ondas quebravam-se no oceano. Já não nos era dado, abaixando-nos um pouco, atingi-las. Nuvens brancas formadas pelos ventos alísios corriam pelo céu. Não viajaríamos mais da maneira antiga. Agora podíamos desafiar a Natureza. Viajávamos em direcção ao século que se achava distante, muito distante. Mas nós no convés, de pé, ao lado dos grandes toros de balsa, estávamos todos vivos. E na lagoa de Taiti seis coroas brancas boiavam solitárias, para um lado e para outro, ao sabor das maretas da praia.

FIM
Thor Heyerdahl Expedição Da Kon-tiki (Pdf) (Rev)

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