Trilogia do Elfo Negro #02 - Exilio - R. a. Salvatore

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FICHA TÉCNICA

TÍTULO: Exílio AUTORIA: R. A. Salvatore EDITOR: Luís Corte Real Esta edição © 2015 Ediçõe s Saída de Emergê ncia Título srcinal Book II of the Dark Elf Trilogy © 1990 TSR, Inc. Publicado srcinalmente nos EUA por TSR, Inc., 1990 TRADUÇÃO: Mário Matos REVISÃO: Sofia Dias DESIGN DA CAPA: Saída de Emergência ILUSTRAÇÃO DA CAPA: Todd Lockwood 1.ª EDIÇÃO: Março, 2015 ISBN: 978-989-637-754-0 EDIÇÕES SAÍDA DE EMERGÊNCIA R. Adelino Mend es n.º 152, Quinta do Choupal, 2765-082 S. Pedro do Estoril, Portugal TEL E FAX: 214 583 770 WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM ©2004 Wizards of the Coast, Inc. All rights reserved Licensing by Hasbro

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MAPA A CAVERNA DOS ILLITHID

PRELÚDIO

O monstro arrastava-se pelos silenciosos corredores do Subescuro, com as suas oito pernas escamosas roçando ocasionalmente pela rocha. Não se encolhia com os seus próprios ruídos retumbantes, sem recear o rumor revelador. Nem fugia em busca de protecção, antevendo o assalto de outro predador. Porque até mesmo nos perigos do Subescuro esta criatura só conhecia a segurança, confiante na sua capacidade para derrotar qualquer inimigo. O seu hálito fedia a veneno mortal, os gumes afiados das suas garras cavavam profundas feridas na rocha e as filas de dentes semelhantes a lanças que se alinhavam na mandíbula letal eram capazes de rasgar as mais fortes couraças. Mas o pior de tudo era o olhar do monstro, o olhar de um basilisco, que era capaz de transmutar em pedra sólida qualquer coisa viva em que assentasse. Esta criatura, enorme e terrível, estava entre as maiores do seu género. Não sabia o que era o medo. O caçador viu o basilisco a passar, tal como já antes o vira nesse mesmo dia. O monstro de oito pernas era aqui um intruso, invadindo o domínio do caçador. Vira o basilisco matar vários dos seus rothe — as pequenas criaturas semelhantes a vacas que forneciam a sua mesa — com o hálito venenoso, e o resto da manada fugira cegamente pelos túneis intermináveis, possivelmente para não mais voltar. O caçador estava zangado. Observava agora o monstro a avançar pela passagem estreita, precisamente o caminho que o caçador suspeitara que ele tomaria. Desembainhou as armas, ganhando confiança, como sempre, assim que sentiu como eram equilibradas. O caçador possuía-as desde a infância, e mesmo passadas quase décadas deà uso constante, quase não mostravam quaisquer sinais de desgaste. Agora, seriam três de novo postas prova. O caçador voltou a embainhar as armas e esperou pelo som que o haveria de fazer entrar e acção. Um uivo gutural fez o basilisco parar. O monstro espreitou para a frente, curioso, embora os seus olhos fracos pouco conseguissem perceber para além de um ou dois metros. O uivo ouviu-se de novo e o basilisco agachou-se, à espera que o adversário, a sua próxima vítima, saltasse para a sua frente para morrer. Bem mais atrás, o caçador saiu do seu esconderijo, correndo com uma rapidez quase impossível pelas pequenas brechas e saliências das paredes do corredor. Com a sua capa mágica, o piwafwi, estava invisível e indistinguível da pedra; e, com os seus movimentos ágeis e bem treinados, não fazia um único ruído. Chegou impossivelmente silencioso, e impossivelmente depressa. O uivo ouviu-se de novo, vindo de diante do basilisco, mas não estava mais próximo. O monstro impaciente avançou, ansioso por começar a matança. Quando o basilisco passou por debaixo de uma arcada baixa, um globo impenetrável de escuridão absoluta envolveu-lhe a cabeça e o monstro parou subitamente e deu um passo para trás, tal como o caçador já sabia que faria. O caçador caiu-lhe então em cima. Saltou da parede da passagem, executando três acçõe

diferentes antes mesmo de atingir o objectivo. Primeiro, lançou um feitiço simples que contornou a cabeça do basilisco com chamas púrpura e azuis brilhantes. Depois, puxou o capuz para tapar a cara, porque não precisava dos olhos em combate e, contra um basilisco, um olhar a direito só o poderia derrotar. Finalmente, puxando as cimitarras mortíferas, aterrou sobre as costas do monstro e trepou usando as escamas para chegar à cabeça. O basilisco reagiu assim que as chamas dançantes lhe contornaram a cabeça. Não queimavam, ma o contorno que desenhavam fazia dele um alvo fácil. O basilisco virou-se para trás, mas antes que a cabeça tivesse girado metade do percurso, a primeira cimitarra já lhe tinha mergulhado num dos olhos. A criatura recuou e sacudiu-se, tentando chegar ao atacante. Expelia vapores letais e sacudia a cabeça em todas as direcções. O caçador foi mais rápido. Manteve-se atrás da mandíbula, longe do alcance mortal. A segunda cimitarra encontrou o outro olho do monstro, e depois o caçador libertou toda a sua fúria. O basilisco era o intruso; tinha morto os seus rothe! Golpe após golpe furioso abateu-se sobre cabeça couraçada do basilisco, arrancando escamas e mergulhando em busca de carne por baixo delas. O basilisco percebeu o perigo que corria, mas mesmo assim acreditava que venceria. Sempre vencera. Se ao menos conseguisse apontar o hálito venenoso ao caçador furioso. O segundo adversário, um adversário felino que rugia, caiu então sobre o basilisco, atirando-se sem medo contra a mandíbula cujos contornos estavam bem delineados pelos fogos mágicos. O grande felino agarrou-se sem dar qualquer importância aos vapores tóxicos, pois era um animal mágico, imune a tais ataques. Garras de pantera cavaram linhas profundas nas gengivas do basilisco, deixando o monstro beber do seu próprio sangue. Por detrás da enorme cabeça, o caçador investiu uma e outra vez, cem vezes, e ainda mais. Selvaticamente, cruelmente, as cimitarras abatiam-se contra a armadura de escamas, rasgando a carne e penetrando o crânio, abatendo o basilisco até à escuridão da morte. Muito depois de o monstro já estar caído e imóvel é que o golpear das cimitarras ensanguentadas abrandou. O caçador retirou o capuz e inspeccionou a pilha desfeita de massa pegajosa aos seus pés e as nódoas quentes de sangue nas espadas. Ergueu as cimitarras a escorrer sangue no ar e proclamou a vitória com um grito de exultação primevo. Era o caçador, e esta era a sua casa! Depois de despejar toda a raiva nesse grito, porém, o caçador olhou para o companheiro e ficou envergonhado. Os olhos enormes da pantera julgavam-no, ainda que a pantera o não fizesse. O felino era o único elo do caçador com o passado, com uma existência civilizada que o caçador em tempos conhecera. — Vem, Guenhwyvar — murmurou enquanto embainhava de novo as cimitarras. Deliciou-se co o som destas palavras enquanto as pronunciava. Era a única voz que ouvira em mais de uma década. Mas, cada vez que agora falava, as palavras pareciam ainda mais estranhas e chegavam-lhe co dificuldade. Perderia essa capacidade, também, como perdera quase todos os outros aspectos da sua anterior

existência? Isso era coisa que o caçador receava muito, porque sem a sua voz não poderia convocar a pantera. Então ficaria verdadeiramente só. Pelos longos corredores do Subescuro seguiram o caçador e o seu felino, sem fazer um ruído, se fazer mexer uma pedra. Juntos, tinham aprendido a conhecer os perigos deste mundo de sussurros. Juntos tinham aprendido a sobreviver. Apesar desta vitória, contudo, o caçador não sorria, nesse dia. Não temia inimigos, mas já não tinha a certeza se a sua coragem vinha da confiança ou se vinha da apatia que sentia em viver. Talvez a sobrevivência não bastasse.

Lembro-me vivamente do dia em que me afastei da cidade onde nasci, da cidade da minha gente. Todo o Subescuro estava diante de mim — uma vida de aventura e de excitação, cheia de possibilidades que me enchiam o coração. Mais do que isso, porém, deixei Menzoberranzan com a crença de que poderia agora viver a minha vida de acordo com os meus princípios. Tinha Guenhwyvar ao meu lado, e as minhas cimitarras à cintura. O meu futuro, cabia-me a mim decidi-lo. Mas aquele jovem Drizzt Do’Urden que década se afastava Menzoberranzan nesse dia fatídico, aindadrow, malo entrado na décima quarta de de vida, não podia imaginar a verdade do tempo, de como a sua passagem parece tornar-se mais lenta quando os momentos não são partilhados com outros. Na minha exuberante juventude, olhava com expectativa para vários séculos de vida que tinha pela frente. Como se medem séculos, quando uma simples hora parece um dia, e um único dia parece um ano? Para além das cidades do Subescuro, há comida para aqueles que sabem como encontrála, e segurança para os que sabem esconder-se. Mais do que qualquer outra coisa, no entanto, para além das cidades fervilhantes do Subescuro, há a solidão. Enquanto me tornava uma criatura dos túneis vazios, a sobrevivência tornava-se mais fácil e mais difícil ao mesmo tempo. Ganhei a destreza física e a experiência necessárias para continuar a viver. Conseguia derrotar praticamente tudo o que se aventurasse nos meus domínios, e aqueles poucos monstros que não conseguia derrotar, conseguia certamente fugir ou esconder-me deles. Não demorei muito, porém, a descobrir um inimigo mortal que não poderia derrotar, nem de que poderia fugir. Seguia-me para onde quer que fosse — na verdade, quanto mais longe eu fugia, mais ele me cercava. O meu inimigo era a solidão, o interminável, incessante silêncio dos corredores mudos. Olhando agora para isso, tantos anos passados, dou comigo espantado e boquiaberto perante as mudanças que sofri sob uma tal existência. A própria identidade de todo o ser pensante é definida pela linguagem, pela comunicação entre esse ser e os que o rodeiam. Sem esse elo, estava perdido. Quando deixei Menzoberranzan, decidi que a minha vida seria baseada em princípios, com a minha força a aderir a crenças inquebrantáveis. No entanto, após apenas alguns meses sozinho no Subescuro, o único objectivo da minha sobrevivência era a minha sobrevivência. Tornara-me uma criatura de instintos, calculista e manhosa, mas não pensante, não usando a minha mente para nada mais do que dirigir a próxima morte. Guenhwyvar salvou-me, creio. O mesmo companheiro que me arrancara a uma morte certa sob as garras de inúmeros monstros salvou-me de uma morte pelo vazio — menos

dramática, talvez, mas não menos fatal. Dei comigo a viver para esses momentos em que o felino podia andar ao meu lado, quando tinha outra criatura viva para ouvir as minhas palavras, por muito fatigadas que se tivessem tornado. Para além de qualquer outro valor, Guenhwyvar tornou-se o meu relógio, pois sabia que o felino só podia vir do seu Plano Astral durante meio-dia, dia sim, dia não. Só depois de as minhas provações terem terminado me apercebi de como esse um quarto do meu tempo tinha sido realmente crítico. Sem Guenhwyvar, não teria encontrado a determinação para prosseguir, nunca teria mantido a força para sobreviver. Mesmo quando Guenhwyvar estava ao meu lado, dava comigo a ficar cada vez mais ambivalente em relação a lutar. Começara secretamente a esperar que uma qualquer criatura do Subescuro se mostrasse mais forte do que eu. Poderia a dor de uma presa ou de uma garra ser maior do que a do vazio e do silêncio? Penso que não. — Drizzt Do’Urden

A Matrona Malice Do’Urden remexeu-se inquieta no trono de pedra da pequena e escura antecâmar da grande capela da Casa Do’Urden. Para os elfos negros, que mediam a passagem do tempo e décadas, este era um dia para ser marcado nos anais da casa de Malice: o décimo aniversário do conflito em aberto entre a família Do’Urden e a Casa Hun’ett. A Matrona Malice, que nunca perdi uma celebração, tinha um presente especial preparado para os seus inimigos. Briza Do’Urden, a filha mais velha de Malice, uma grande e forte fêmea drow, andava para trás para diante na antecâmara, impaciente, o que não era invulgar nela. — Jádedeveria ter acabado, por esta altura — resmungou, enquanto dava um banco três pernas. Este rebolou e virou-se, rasgando um pedaço de estofo de pontapé musgo. num pequeno — Paciência, minha filha — respondeu Malice, um pouco em tom de reprimenda, embor partilhasse dos sentimentos de Briza. — Jarlaxle é cauteloso. Briza virou costas perante a menção desse ultrajante mercenário, e dirigiu-se às portas de pedra ricamente trabalhadas. Malice não deixou de perceber o significado das acções da filha. — Não aprovas Jarlaxle e o seu bando — comentou sem emoção a Matrona Mãe. — São uns vadios sem casa — rosnou Briza em resposta, mas ainda sem se virar para a mãe. Não há lugar em Menzoberranzan para vadios sem casa. Perturbam a ordem natural da noss sociedade. E são machos! — Servem-nos bem — lembrou-lhe Malice. Briza quis argumentar com o custo extremo de contratar mercenários, mas, sensatamente, manteve a boca fechada. Ela e Malice andavam em oposição continuamente, praticamente desde o início d guerra Do’Urden – Hun’ett. — Sem os Bregan D’aerthe, não poderíamos tomar nenhuma atitude contra os nossos inimigos prosseguiu Malice. — Usar os mercenários, os vadios sem casa, como lhes chamas, permite-no fazer a guerra sem implicar a nossa Casa como perpetradora. — Então, porque não despachar o assunto? — perguntou Briza, regressando rapidamente par unto do trono. — Matamos uns quantos soldados Hun’ett, eles matam uns quantos dos nossos. entretanto, ambas as casas continuam a recrutar substitutos! Assim, nunca acaba! Os únicos vencedores deste conflito são os mercenários de Bregan D’aerthe… E seja lá qual for o bando que Matrona SiNafay Hun’ett tiver contratado… E que se andam a alimentar dos cofres de ambas a Casas! — Olha o tom, minha filha — rugiu Malice, num irado aviso. — Estás a falar com uma Matron Mãe. Briza virou costas de novo. — Devíamos ter atacado a Casa Hun’ett imediatamente, na noite em Zaknafein foi sacrificado atreveu-se a resmungar. — Esqueces as acções do teu irmão mais novo nessa noite — respondeu Malice sem se alterar.

Mas a Matrona Mãe estava enganada. Nem que vivesse outros mil anos, Briza nunca esqueceria a acções de Drizzt na noite em que renegara a família. Treinado por Zaknafein, o amante favorito de Malice e considerado o melhor mestre de armas de toda a Menzoberranzan, Drizzt atingira um níve de destreza no combate que estava muito para além do normal entre os drow. Mas Zak dera também a Drizzt as atitudes perturbadoras e blasfemas que Lolth, a divindade da Rainha Aranha dos elfo negros, não poderia tolerar. Por fim, os modos sacrílegos de Drizzt tinham provocado a ira de Lolth, e a Rainha Aranha, por sua vez, exigira a sua morte. A Matrona Malice, impressionada pelo potencial de Drizzt como guerreiro, agira entã ousadamente em favor de Drizzt e oferecera a Lolth o coração de Zaknafein, para a compensar pelo pecados do filho. Perdoara a Drizzt na esperança de que este emendasse os seus comportamentos e viesse a substituir o mestre de armas deposto. Em troca, no entanto, o ingrato Drizzt traíra-os a todos e fugira para o Subescuro; um gesto que nã só deixava a Casa Do’Urden despojada do seu único potencial mestre de armas, mas que també colocava a Matrona Malice e o resto da Casa Do’Urden longe do favor de Lolth. No desastroso fina de todos os seus esforços, a Casa Do’Urden perdera o seu excelente mestre de armas, o favor d Lolth e o seu potencial novo mestre de armas. Não fora um dia bom. Felizmente, a Casa Hun’ett sofrera desaires semelhantes nesse mesmo dia, perdendo ambos o seus magos numa tentativa falhada de matar Drizzt. Com ambas as casas enfraquecidas e caídas e desgraça junto de Lolth, a guerra esperada transformara-se numa série calculada de raides dissimulados. Briza nunca esqueceria. Uma pancada na porta da antecâmara fez Briza e a mãe estremecerem, acordando-as das sua memórias desses tempos fatídicos. A porta abriu-se e Dinin, o Rapaz Mais Velho da Casa, entrou. — Saudações, Matrona Mãe — disse Dinin, com os modos adequados e fazendo uma profund vénia. Queria que as suas notícias fossem uma surpresa, mas o sorriso que acabou por se lhe abrir no rosto revelou tudo. — Jarlaxle regressou! — murmurou Malice, radiante. Dinin virou-se para a porta aberta e o mercenário, que esperava pacientemente no corredor, entrou com ar decidido. Briza, sempre espantada com os maneirismos invulgares do mercenário, abanou a cabeça enquanto Jarlaxle passava por ela. Quase todos os elfos negros de Menzoberranzan s vestiam de uma forma discreta e prática, com vestes adornadas pelos símbolos da Rainha Aranha ou com cotas de malha leves sob as pregas dos seus mantos mágicos de camuflagem, ospiwafwi. Jarlaxle, arrogante e espalhafatoso, seguia poucos dos costumes dos habitantes de Menzoberranzan. Estava longe um da norma sociedade drow e exibia diferenças desafiadoramente. Não trajava manto,danem uma veste longa, mas essas uma capa curta eabertamente, brilhante que exibia todas as cores do espectro, tanto à luz como ao espectro infravermelho dos olhos sensíveis ao calor. A magia daquela capa só podia ser calculada, mas os que estavam mais próximos do chefe dos mercenários diziam que era de facto muito valiosa. A capa de Jarlaxle não cobria os braços e era tão curta que o estômago magro e fortemente musculado ficava bem à vista de todos. Usava uma pala sobre um olho, ainda que os observadores

mais atentos percebessem que era ornamental, pois mudava-a frequentemente de um olho para o outro. — Minha cara Briza — disse Jarlaxle por cima do ombro, notando o interesse desdenhoso da alt sacerdotisa pela sua chegada. Girou sobre os calcanhares e fez uma vénia, fazendo rodopiar o chapéu de abas largas — outra singularidade, ainda mais invulgar porque o chapéu era adornado por penas monstruosas de uma diatryma, uma ave gigantesca do Subescuro. Briza suspirou e virou costas perante a visão da cabeça inclinada do mercenário. Os elfos dro usavam o cabelo branco e espesso como sinal da sua posição e afiliação à Casa. Jarlaxle, o vadio, não usava cabelo nenhum e, do ângulo de visão de Briza, a cabeça rapada parecia uma bola de ónix polido. Jarlaxle riu-se em silêncio perante a desaprovação continuada da filha mais velha da Cas Do’Urden e voltou-se de novo para a Matrona Malice, com as suas muitas jóias a tilintar e com a botas duras e brilhantes a ressoar a cada passo. Briza notou isso também, pois sabia que aquelas botas, e aquelas jóias, só pareciam fazer barulho quando Jarlaxle queria que o fizessem. — Está feito? — perguntou a Matrona Malice, antes que o mercenário pudesse sequer iniciar saudação devida. — Minha cara Matrona Malice — respondeu Jarlaxle com um suspiro condoído, sabendo qu podia deixar de lado as formalidades, tendo em conta as grandes novidades que trazia. — Duvidaste de mim? Fico evidentemente ferido no meu coração. Malice desceu do trono, com os punhos cerrados em sinal de vitória. — Dipree Hun’ett está morto! — proclamou. — A primeira vítima nobre da guerra! — Esqueces Masoj Hun’ett — notou Briza. — Chacinado por Drizzt há dez anos. E Zaknafei Do’Urden — teve de acrescentar, contra o que mandaria o bom senso —, morto pelas tuas próprias mãos. — Zaknafein não era nobre por nascimento — desdenhou Malice para a sua impertinente filha. Mas as palavras de Briza tinham-na, mesmo assim, espicaçado. Malice decidira sacrifica Zaknafein no lugar de Drizzt, contra as recomendações de Briza. Jarlaxle pigarreou, para aliviar a tensão. O mercenário sabia que tinha de terminar os seu assuntos e sair da Casa Do’Urden o mais depressa possível. Sabia bem — embora os Do’Urden nã o soubessem — que a hora marcada estava a aproximar-se. — Há ainda o assunto do meu pagamento — relembrou a Malice. — Dinin tratará disso — respondeu Malice com um gesto da mão, sem desviar os olhos do olha fixo e pernicioso da filha. — Com a vossa licença, então — disse Jarlaxle, acenando para o Rapaz Mais Velho. Antes que o mercenário desse o primeiro passo em direcção à porta, Vierna, a segunda filha de Malice, entrou de rompante na sala, com o rosto a brilhar fortemente no espectro infravermelho, acalorada por uma óbvia exaltação. — Raios… — murmurou Jarlaxle. — Que se passa? — perguntou a Matrona Malice. — A Casa Hun’ett — gritou Vierna. — Há soldados no nosso complexo! Estamos a ser atacados!

No pátio, para lá do complexo das cavernas, quase quinhentos soldados da Casa Hun’ett — uns bon cem mais do que os que a Casa Hun’ett supostamente deveria ter — seguiam na esteira de raios de luz que tinham escancarado os portões de adamantite da Casa Do’Urden. Os trezentos e cinquent soldados da Casa Do’Urden acorreram dos aglomerados de estalagmites que serviam de sua casernas, para conter o ataque. Em inferioridade numérica, mas treinados por Zaknafein, os soldados Do’Urden formaram e posições defensivas ordenadas, protegendo os seus magos e sacerdotisas, para que estes pudessem lançar os seus encantamentos. Um contingente inteiro de soldados da Casa Hun’ett, fortalecido por encantamentos voadores rodopiou pela parede da caverna que abrigava os aposentos nobres da Casa Do’Urden. Pequeno arcos de mão dispararam e fizeram reduzir-se as fileiras da força voadora com dardos mortíferos, envenenados. A surpresa dos invasores voadores, porém, fora conseguida, e as tropas Do’Urden depressa se viram colocadas numa posição precária. — Hun’ett não tem o favor de Lolth! — gritou Malice. — Não se atreveriam a atacar abertamente! Estremeceu perante o som de um retumbante raio, e depois outro, e depois ainda outro. — Ah, sim? — lançou-lhe Briza. Malice fez um olhar ameaçador à filha, mas não teve tempo para prosseguir a discussão. O método normal de ataque por uma casa drow implicava um assalto por soldados combinado com uma barragem mental pelas sacerdotisas mais elevadas da Casa atacante. Malice, porém, não senti nenhum ataque mental, o que lhe dizia, sem margem para dúvidas, que era de facto a Casa Hun’et que estava à sua porta. As sacerdotisas Hun’ett, tendo perdido o favor da Rainha Aranha, não podiam, usar os tinham seus poderes LolthAranha, para lançar um ataque mental. Malice e aparentemente, as filhas, que também perdidoconferidos o favor dapor Rainha não teriam tido quaisque esperanças de derrotar um tal ataque. — Porque se atreveriam a atacar? — interrogou-se Malice em voz alta. Briza compreendeu o raciocínio da mãe. — São ousados, de facto — respondeu. — Esperar que os seus soldados sozinhos possa eliminar todos os membros da nossa Casa… Toda a gente que estava na sala, todo o drow de Menzoberranzan conhecia os castigos brutais e absolutos que seriam exercidos contra qualquer Casa que falhasse na tentativa de erradicar outra Casa. Estes ataques não eram mal vistos, mas ser apanhado a fazê-los era decididamente punido. Rizzen, o actual patrono da Casa Do’Urden, entrou então na antecâmara, com uma expressã sombria. — Estamos em desvantagem numérica e mal posicionados — disse. — A nossa derrota será rápida, receio bem. Malice nunca aceitaria essa notícia. Agrediu Rizzen com um golpe que o fez deslizar pelo chão até ao meio da sala; depois, virou-se para Jarlaxle: — Tens de chamar o teu bando! — gritou Malice para o mercenário. — Matrona… — gaguejou Jarlaxle, obviamente confundido. — Bregan D’aerthe é um grup

secreto. Não nos imiscuímos em guerras abertas. Fazê-lo levar-nos-ia a incorrer na ira do Conselh Governante! — Pagar-te-ei o que desejares — prometeu a desesperada Matrona Mãe. — Mas o custo… — Tudo o que desejares! — repetiu Malice. — Uma tal acção… — recomeçou Jarlaxle. Mais uma vez, Malice não o deixou terminar o argumento. — Salva a minha Casa, mercenário — rosnou. — Os teus ganhos serão enormes; mas aviso-te: o teus custos se falhares serão ainda maiores! Jarlaxle não gostava de ser ameaçado, especialmente por uma matrona mãe caída em desgraça, cujo mundo estava prestes a desabar à sua volta. Mas aos ouvidos do mercenário, a doce palavra «ganhos» tinha mil vezes mais peso do que uma ameaça. Após dez anos consecutivos de recompensas exorbitantes obtidas com o conflito Do’Urden – Hun’ett, Jarlaxle não duvidava da intenção d Malice, nem da sua capacidade para pagar o prometido, tal como também não tinha dúvidas de que este acordo se mostraria mais lucrativo do que o acordo que tinha firmado com a Matrona SiNafa Hun’ett, pouco antes, nessa mesma semana. — Como queiras — disse Jarlaxle para a Matrona Malice, com uma vénia e um rodopiar d vistoso chapéu. — Verei o que posso fazer. Uma piscadela de olho para Dinin fez o Rapaz Mais Velho seguir o mercenário enquanto este saí da sala. Quando os dois saíram para a varanda que dava para o pátio do complexo Do’Urden, viram que situação era ainda mais desesperada do que Rizzen descrevera. Os soldados da Casa Do’Urden os que restavam vivos — estavam encurralados dentro e em volta de um dos grandes aglomerados de estalagmites que serviam de apoio ao portão frontal. Um dos soldados voadores Hun’ett saltou para a varanda assim que viu um nobre Do’Urden, ma Dinin despachou-o com uma única e estonteante rotina de ataque. — Muito bem — comentou Jarlaxle, fazendo um aceno de aprovação para Dinin. Avançou para dar uma palmada de elogio no ombro do Rapaz Mais Velho, mas Dinin esgueirou-se. — Temos outros assuntos — lembrou secamente a Jarlaxle. — Chama as tuas tropas, e be depressa. Receio bem que a Casa Hun’ett ganhe o dia. — Mantém-te sereno, meu amigo — riu-se Jarlaxle. Puxou de um pequeno apito que trazia ao pescoço e soprou. Dinin não ouviu nenhum som, porque o instrumento estava magicamente afinado exclusivamente para os ouvidos dos membros do clã Bregan D’aerthe. O Rapaz Mais Velho Do’Urden observou com espanto enquanto Jarlaxle soprava calmamente um cadência específica, e depois viu com ainda maior espanto mais de uma centena de soldados Hun’et a voltarem-se contra os seus camaradas. Os Bregan D’aerthe só deviam fidelidade a Bregan D’aerthe. — Não nos podiam atacar — dizia Malice teimosamente, andando para trás e para diante n

antecâmara. — A Rainha Aranha não os ajudaria numa tal aventura. — Estão a vencer sem a ajuda da Rainha Aranha — relembrou-lhe Rizzen, encolhendo-s prudentemente no canto mais afastado da sala, enquanto dizia essas palavras indesejadas. — Disseste que eles nunca atacariam! — rosnou Briza para a mãe. — Precisamente enquanto no explicavas a nós por que razão não os podíamos atacar a eles! Briza recordava-se bem dessa discussão, pois fora ela quem sugerira um ataque frontal à Cas Hun’ett. Malice ralhara-lhe asperamente e publicamente por isso, e agora Briza queria devolver-lh a humilhação. A voz dela escorria sarcasmo enquanto apontava cada palavra à mãe: — Será que a Matrona Malice Do’Urden se enganou? A resposta de Malice veio sob a forma de um olhar que mostrava algo entre a raiva e o terror. Briza devolveu o olhar sem ambiguidade e subitamente a Matrona Mãe da Casa Do’Urden já não s sentia tão invencível e segura dos seus actos. Começou a avançar nervosamente, um momento mais tarde, quando Maya, a mais nova das filhas Do’Urden, entrou na sala. — Romperam as defesas e entraram na casa! — gritou Briza, presumindo o pior. Agarrou o seu chicote de cabeças de serpente. — E ainda nem sequer preparámos a nossa defesa! — Não! — corrigiu Maya rapidamente. — Nenhum inimigo passou da varanda. A batalha virou-se agora contra os Hun’ett! — Como eu bem sabia que haveria de ser — observou Malice, recompondo-se e falando claramente para Briza. — Louca é a Casa que avança sem o favor de Lolth! Apesar desta proclamação, porém, Malice calculou que algo mais do que o julgamento da Rainh Aranha tinha entrado em jogo no pátio. O seu raciocínio levou-a inevitavelmente a Jarlaxle e ao se bando de mercenários pouco dignos de confiança. Jarlaxle saltou da varanda e, usando as suas capacidades inatas de drow, levitou até ao chão da caverna. Não vendo nenhuma necessidade de se envolver pessoalmente numa batalha que estava obviamente sob controlo, Dinin descontraiu-se e ficou a ver o mercenário, avaliando tudo o que acabara de transpirar. Jarlaxle tinha jogado com ambos os lados, lançando-os um contra o outro, e mais uma vez o mercenário e o seu bando eram os únicos verdadeiros vencedores. Os Brega D’aerthe eram inegavelmente sem escrúpulos, mas tinha de admitir que eram também inegavelmente eficazes. Dinin descobriu que gostava daquele renegado. — A acusação foi devidamente entregue à Matrona Baenre? — perguntou Malice a Briza quando luz de Narbondel, a estalagmite magicamente iluminada que servia de relógio de Menzoberranzan, começou a subir pela pedra, marcando a alvorada de um novo dia. — A Casa reinante já esperava a visita — respondeu Briza com um esgar. — Toda a cidade fala do ataque e de como a Casa Do’Urden repeliu os invasores da Casa Hun’ett. Malice tentou futilmente esconder o sorriso vaidoso. Apreciava a atenção e a glória que sabia que seria concedida à sua Casa. — O Conselho Governante será reunido hoje mesmo — prosseguiu Briza. — Sem dúvida par grande pesar da Matrona SiNafay Hun’ett e dos seus filhos condenados.

Malice acenou em concordância. Eliminar uma casa rival em Menzoberranzan era perfeitament aceitável entre os drow. Mas falhar na tentativa, deixar nem que fosse uma única testemunha de sangue nobre viva para fazer uma acusação, srcinava o julgamento do Conselho Governante, concitando uma ira que trazia a destruição absoluta no seu encalço. Viraram-se ambas para a porta ornamentada quando ouviram bater. — Foste convocada, Matrona — disse Rizzen, entrando. — A Matrona Baenre mandou um disc para te levar. Malice e Briza trocaram olhares cheios de esperanças, mas nervosos. Quando o castigo caíss sobre a Casa Hun’ett, a Casa Do’Urden subiria para o oitavo lugar na hierarquia da cidade, um posição muito desejável. Só as matronas mães das primeiras oito casas tinham direito a um lugar no Conselho Governante da cidade. — Já? — perguntou Briza para a mãe. Malice limitou-se a encolher os ombros em resposta e seguiu Rizzen para fora da sala e até varanda da casa. Rizzen ofereceu-lhe uma mão para ajudar, que ela teimosa e imediatamente afastou com um gesto seco. Com o orgulho bem visível em cada movimento, Malice passou por cima d varanda e flutuou até ao pátio, onde a maioria dos soldados que lhe restavam estava reunida. O disco flutuante, brilhando a azul, com as insígnias da Casa Baenre, pairava logo à saída dos portões de adamantite do complexo da Casa Do’Urden. Malice caminhou orgulhosamente por entre a pequena multidão reunida; os elfos negros tropeçavam uns nos outros, tentando sair do caminho de Malice. Este era o dia dela, decidira, o di em que conseguiria obter o seu lugar no Conselho Governante, posição que tanto merecia. — Matrona Mãe, acompanhar-te-ei pela cidade — ofereceu-se Dinin, que estava ao portão. — Ficarás aqui com o resto da família — corrigiu-o Malice. — A convocatória foi apenas para mim. — Como podes saber? — interrogou Dinin, mas percebendo que tinha ultrapassado os seus limite de posição assim que as palavras lhe saíram da boca. Quando Malice virou o seu olhar de censura para ele, já Dinin tinha desaparecido por entre multidão de soldados. — Haja respeito — resmungou Malice em surdina, instruindo os soldados que estavam mais perto para retirarem uma secção do portão fechado. Com um olhar final e vitorioso aos seus súbditos, Malice saiu e sentou-se no disco flutuante. Não era a primeira vez que Malice aceitava um tal convite da Matrona Baenre, e por isso nã ficou minimamente surpreendida quando várias sacerdotisas saíram das sombras para rodearem o discorealmente flutuante numa guarda protectora. última vez ao quechamá-la. Malice fizera viagem fora às Malic cegas, sem compreender as intençõesA de Baenre Destaesta vez, no entanto, cruzou os braços desafiadoramente e deixou que os mirones curiosos a vissem em todo o esplendor da sua vitória. Malice aceitou os olhares orgulhosamente, sentindo-se claramente superior. Mesmo quando o disco chegou à fabulosa vedação semelhante a uma teia da Casa Baenre, com os seus mil guardas marchar e com as suas estruturas enormes de estalagmites e estalactites, o orgulho de Malice não

diminuiu. Era agora do Conselho Governante, ou seria daí a pouco; já não tinha de se sentir intimidada e parte nenhuma da cidade. Ou, pelo menos, assim pensava. — A tua presença é exigida na capela — disse-lhe uma das sacerdotisas Baenre quando o disco parou junto às escadas serpenteantes de um dos grandes edifícios abobadados. Malice desceu do disco e começou a subir os degraus polidos. Assim que entrou, reparou numa figura sentada numa das cadeiras junto ao altar central elevado. A drow que estava sentada, e que era a única outra pessoa visível na capela, aparentemente não tinha notado que Malice entrara. Estav sentada confortavelmente, bem recostada, observando a grande imagem no topo da cúpula, enquanto esta mudava de formas, parecendo primeiro uma aranha gigante e depois uma bela fêmea drow. Enquanto se aproximava, Malice reconheceu as vestes de uma matrona mãe, e presumiu, como desde que entrara, que se tratava da Matrona Baenre, a mais poderosa personagem de toda Menzoberranzan, à sua espera. Malice seguiu até aos degraus do altar, surgindo por detrás da drow sentada. Sem esperar por um convite, avançou ousadamente, passando para a frente da outra matrona mãe, para a saudar. Não foi, porém, a forma envelhecida e emaciada da Matrona Baenre que Malice encontrou n centro da capela Baenre. A matrona mãe sentada não era mais velha do que os anos normais dos drow, nem tão enrugada e seca como um cadáver. Na verdade, esta drow não era sequer mais velha do que Malice, e era bastante pequena. Malice reconheceu-a bem demais. — SiNafay! — gritou, quase caindo. — Malice… — respondeu a outra, calmamente. Mil possibilidades perturbantes passaram pela cabeça de Malice. SiNafay Hun’ett deveria esta encolhida em terror na sua casa condenada, à espera da aniquilação da sua família. E no entanto, ali estava sentada confortavelmente, nos aposentos mais exclusivos da família mais importante de Menzoberranzan! — O teu lugar não é aqui! — protestou Malice, com os punhos magros cerrados ao lado do corpo. Considerou as possibilidades de atacar a rival ali mesmo, de esganar SiNafay com as suas própria mãos. — Mantém-te calma, Malice — respondeu descontraidamente SiNafay. — Estou aqui a convite d Matrona Baenre, tal como tu. A menção da Matrona Baenre e o relembrar do sítio onde estavam acalmaram consideravelmente Malice. Uma pessoa não podia agir como lhe apetecesse na capela da Casa Baenre! Malice avanço para o lado oposto do altar e sentou-se, sem que o seu olhar deixasse por um momento o rosto sorridente de SiNafay Hun’ett. Após alguns minutos intermináveis de silêncio, Malice teve de dizer o que lhe ia na mente. — Foi a Casa Hun’ett que atacou a minha família na última escuridão de Narbondel — disse. Tenho muitas testemunhas desse facto. Não pode haver quaisquer dúvidas! — Nenhumas — respondeu SiNafay, com a sua concordância a apanhar Malice de surpresa. — Admites os teus actos? — espantou-se Malice.

— Assim é — disse SiNafay. — Nunca o neguei. — E, no entanto, vives — rosnou Malice. — As leis de Menzoberranzan exigem justiça contra ti a tua Casa. — Justiça? — SiNafay riu-se perante essa ideia absurda. A justiça nunca fora mais do que um mera fachada e um meio de manter a aparência de ordem na caótica Menzoberranzan. — Agi conforme a Rainha Aranha me exigiu. — Se a Rainha Aranha tivesse aprovado os teus métodos, terias saído vitoriosa — raciocino Malice. — Não é assim — interrompeu outra voz. Malice e SiNafay voltaram-se no momento em que a Matrona Baenre apareceu magicamente sentada confortavelmente na cadeira mais afastada do altar. Malice quis gritar para a ressequida matrona mãe, tanto por espiar a conversa delas, como por aparentemente refutar as suas pretensões contra SiNafay. Mas Malice conseguira sobreviver ao perigos de Menzoberranzan durante quinhentos anos, em primeiro lugar, porque compreendia os perigos de irritar alguém como a Matrona Baenre. — Proclamo os meus direitos de acusação contra a Casa Hun’ett — disse calmamente. — Concedidos — respondeu a Matrona Baenre. — Tal como disseste, e como SiNafay concordou, não restam quaisquer dúvidas. Malice virou-se triunfante para SiNafay, mas a matrona mãe da Casa Hun’ett continuo descontraída e despreocupada. — Mas então porque está ela aqui? — gritou Malice, com um tom à beira de uma violênci explosiva. — SiNafay é uma marginal. É… — Ninguém pôs em causa as tuas palavras — interrompeu a Matrona Baenre. — A Casa Hun’et atacou e falhou. As penalidades para um tal acto são bem conhecidas e assentes, e o Conselho Governante reunir-se-á hoje mesmo para garantir que a justiça seja feita. — Então, porque está SiNafay aqui? — perguntou Malice. — Duvidas da sabedoria do meu ataque? — perguntou SiNafay a Malice, tentando conter um gargalhadinha. — Foste derrotada — relembrou-lhe Malice secamente. — Só isso deveria bastar-te par resposta. — Foi Lolth que exigiu o ataque — disse a Matrona Baenre. — Porque foi então a Casa Hun’ett derrotada? — perguntou teimosamente Malice. — Se a Rainh Aranha… — Eu Baenre, não dissenum quetom a Rainha Aranha tivesse dado a sua bênção à Casa Hun’ett — interrompeu Matrona vagamente irado. Malice remexeu-se na cadeira, lembrando-se do seu lugar e dos seus apuros. — Só disse que Lolth exigiu o ataque — prosseguiu a Matrona Baenre. — Durante dez anos, tod a Menzoberranzan teve de sofrer o espectáculo da vossa guerra privada. A intriga e a excitação já se perderam há muito tempo, deixem que vos garanta a ambas. O assunto tinha de ser decidido. — E foi — declarou Malice, levantando-se da cadeira. — A Casa Do’Urden mostrou-se vitoriosa

e exijo os direitos de acusação contra SiNafay Hun’ett e a sua família! — Senta-te, Malice — disse SiNafay. — Há aqui mais em jogo do que os teus simples direitos d acusação. Malice olhou para a Matrona Baenre, em busca de confirmação, muito embora, tendo em conta presente situação, não pudesse duvidar das palavras de SiNafay. — Está feito — disse-lhe a Matrona Baenre. — A Casa Do’Urden venceu, e a Casa Hun’e desaparecerá. Malice deixou-se cair de novo na cadeira, sorrindo trocista para SiNafay. Mesmo assim, matrona mãe da Casa Hun’ett não parecia minimamente preocupada. — Assistirei à destruição da tua Casa com grande prazer — garantiu Malice à rival. Depois voltou-se para a Matrona Baenre: — Quando será exercido o castigo? — Já foi feito — respondeu a Matrona Baenre misteriosamente. — Mas SiNafay está viva! — gritou Malice. — Não — corrigiu a velha matrona mãe. — Vive aquela que em tempos foi SiNafay Hun’ett. Agora Malice começava a compreender. A Casa Baenre sempre fora oportunista. Seria que Matrona Baenre estava a roubar as sacerdotisas da Casa Hun’ett para as acrescentar às sua próprias? — Vais tu dar-lhe guarida? — atreveu-se Malice a perguntar. — Não — respondeu calmamente a Matrona Baenre. — Essa tarefa compete-te a ti. Os olhos de Malice arregalaram-se. De todos os muitos deveres que já recebera nos seus dia como alta sacerdotisa de Lolth, não conseguiria recordar-se de nenhum tão intragável. — Mas ela é minha inimiga! E pedes-me que lhe dê guarida? — É tua filha — respondeu secamente a Matrona Baenre. Depois, o tom da voz tornou-se mai suave e um sorriso seco abriu-se-lhe nos lábios. — A tua filha mais velha, que regressou de viagens a Ched Nasad ou outra cidade qualquer da nossa gente. — Porque estás a fazer isto? — perguntou Malice. — É uma coisa sem precedentes! — Isso não é completamente verdade — respondeu a Matrona Baenre. Os dedos tamborilaram sua frente enquanto se recostava, mergulhando nos pensamentos, relembrando algumas das estranhas consequências da interminável fiada de batalhas dentro da cidade drow. — À primeira vista, as tuas observações estão correctas — continuou a explicar a Malice. — Ma decerto és sensata o suficiente para saber que muitas coisas ocorrem por detrás das aparências em Menzoberranzan. A Casa Hun’ett deve ser destruída, e isso não se pode alterar; e todos os nobres d Casa Hun’ett terão de ser chacinados. Afinal de contas, é a única coisa civilizada que se pode faze — fez uma pausa por um momento, para se assegurar de que Malice compreenderia plenamente o significado da sua afirmação seguinte: — Pelo menos, têm de parecer ter sido chacinados. — E tu tratarás disso? — perguntou Malice. — Já tratei — tranquilizou-a a Matrona Baenre. — Mas com que finalidade? — Quando a Casa Hun’ett iniciou o seu ataque contra ti, invocaste a Rainha Aranha nas tuas lutas — perguntou a Matrona Baenre directamente. A perguntou intrigou Malice, e a resposta esperad

perturbou-a mais do que um pouco. — E quando a Casa Hun’ett foi repelida — prosseguiu a Matron Baenre friamente —, deste louvores à Rainha Aranha? Invocaste alguma aia de Lolth no teu moment de vitória, Malice Do’Urden? — Estou aqui a ser julgada? — gritou Malice. — Sabes a resposta, Matrona Baenre — Olhou par SiNafay desconfortavelmente enquanto respondia, receando estar a deixar escapar algum informação valiosa: — Estás ciente da minha situação relativamente à Rainha Aranha. Não me atrev a convocar uma yochlol até ter tido algum sinal de ter recuperado o favor de Lolth. — E não viste nenhum sinal — notou SiNafay. — Nenhum, a não ser a derrota da minha rival — rosnou-lhe Malice de volta. — Isso não foi nenhum sinal da Rainha Aranha — garantiu a Matrona Baenre a ambas. — Lolt não se envolveu nas vossas lutas. Apenas exigiu que acabassem! — E está satisfeita com o resultado? — perguntou directamente Malice. — Isso ainda está por saber — retorquiu a Matrona Baenre. — Há muitos anos, Lolth deixou clar que deseja que a Matrona Malice se sente no Conselho Governante. A partir da próxima luz d Narbondel, assim será. O queixo de Malice ergueu-se com orgulho. — Mas vê se entendes o teu dilema — repreendeu-a a Matrona Baenre, erguendo-se na cadeira Malice encolheu-se imediatamente. — Perdeste mais de metade dos teus soldados — explicou Matrona Baenre. — E não tens uma grande família a rodear-te e a apoiar-te. Governas a oitava Cas da cidade, e no entanto toda a gente sabe que não estás nos favores da Rainha Aranha. Quanto tempo crês que a Casa Do’Urden poderá manter a sua posição? O teu lugar no Conselho Governante está e perigo, antes mesmo de o assumires! Malice não poderia refutar a lógica da velha matrona mãe. Ambas conheciam bem os costumes de Menzoberranzan. Com a Casa Do’Urden tão obviamente diminuída, qualquer outra Casa menor e breve tiraria partido da oportunidade para melhorar a sua posição. O ataque da Casa Hun’ett nã seria o último combate travado no complexo Do’Urden. — Por isso, entrego-te SiNafay Hun’ett… Shi’nayne Do’Urden… Uma nova filha, uma nova alt sacerdotisa — disse a Matrona Baenre. Depois, voltou-se para SiNafay, para prosseguir explicação, mas Malice deu consigo subitamente distraída por uma voz que a chamava nos seus pensamentos, numa mensagem telepática. — Mantém-na apenas enquanto precisares dela, Malice Do’Urden — dizia a mensagem. Malice olhou em volta, tentando perceber a srcem da mensagem. Numa anterior visita à Casa Baenr conhecera o leitor de mentes da Matrona, um animal telepático. A criatura não estava à vista, mas a Matrona Baenre também não estivera à vista quando Malice entrara na capela. Malice olhou e volta, observando as cadeiras em redor do altar, uma a uma, mas as peças de mobiliário de pedra não mostravam sinais de quaisquer ocupantes. Uma segunda mensagem telepática não lhe deixou dúvidas:

— Saberás quando for o momento certo. — …e os restantes cinquenta soldados da Casa Hun’ett — estava agora a Matrona Baenre a dizer — Concordas, Matrona Malice?

Malice olhou para SiNafay, com uma expressão que tanto podia ser de aceitação, como de ironi maldosa. — Concordo — respondeu. — Vai, então, Shi’nayne Do’Urden — instruiu a Matrona Baenre a SiNafay. — Reúne os teu soldados restantes no pátio. Os meus magos vos farão chegar à Casa Do’Urden em segredo. SiNafay lançou um olhar desconfiado na direcção de Malice, e depois saiu da grande capela. — Compreendo — disse Malice à sua anfitriã assim que SiNafay saiu. — Não compreendes coisa nenhuma — gritou-lhe a Matrona Baenre em resposta, subitament irada. — Fiz por ti tudo o que posso, Malice Do’Urden! Era desejo de Lolth que tivesses assento n Conselho Governante, e tratei de que, com grande custo pessoal meu, assim seja! Malice soube então, para além de qualquer dúvida, que a Casa Baenre tinha incitado a Cas Hun’ett à acção. Até que ponto chegaria a influência da Matrona Baenre? — interrogou-se Malice Talvez a envelhecida Matrona Mãe também tivesse previsto, e possivelmente disposto, as acções de Jarlaxle e dos soldados de Bregan D’aerthe, que tinham sido o factor decisivo da batalha. Tinha de descobrir a verdade sobre essa possibilidade, prometeu a si mesma. Jarlaxle tinha metido os seus gananciosos dedos bem fundo na sua bolsa. — Mas basta — prosseguiu a Matrona Baenre. — Agora, estás entregue a ti própria. Ainda nã recuperaste o favor de Lolth, e essa é a única maneira de tu e a Casa Do’Urden sobreviverem! O punho de Malice apertou o braço da cadeira com tanta força que quase esperou ouvir a pedra estalar sob os dedos. Tinha esperado, com a derrota da Casa Hun’ett, pôr os gestos blasfemos do filho mais novo para trás. — Sabes o que precisa de ser feito — disse a Matrona Baenre. — Corrige o erro, Malice Avancei por ti. Não tolerarei mais falhas! — As disposições foram-nos explicadas, Matrona Mãe — disse Dinin a Malice quando est regressou ao portão de adamantite da Casa Do’Urden. Dinin seguiu Malice através do complexo depois levitou ao lado dela até à varanda exterior dos aposentos nobres da casa. — Toda a família está reunida na antecâmara — prosseguiu Dinin. — Mesmo o membro mais recente — acrescentou com uma piscadela de olho. Malice não respondeu à fraca tentativa de humor do filho. Empurrou Dinin para o lado secamente e avançou de modo brusco pelo corredor central, mandando a porta da antecâmara abrir-se com uma única e poderosa palavra. A família afastou-se do seu caminho enquanto passava em direcção ao trono, no outro extremo da mesa em forma de aranha. Esperavam uma longa reunião, para serem informados da nova situação com que se deparavam e dos desafios que teriam de vencer. Em vez disso, receberam uma breve visão da ira que ardia dentro de Matrona Malice. Olhou fixamente para cada um deles, deixando que cada um ficasse a saber, par além de quaisquer dúvidas, que não aceitaria nada menos do que o que ia exigir. Com a voz a soar como se tivesse a boca cheia de pedras, rosnou: — Encontrem Drizzt e tragam-mo! Briza ia começar a protestar, mas Malice lançou-lhe um olhar tão completamente gélido e

ameaçador que as palavras lhe fugiram da boca. A filha mais velha, teimosa como a mãe e sempre pronta para uma discussão, desviou os olhos. E mais ninguém na sala, ainda que todos partilhasse das preocupações de Briza, fez qualquer menção de querer argumentar. Malice deixou-os então a tratar de lidar com os pormenores de como haveriam de cumprir essa tarefa. Os pormenores não importavam muito a Malice. O único papel que esperava desempenhar em tudo aquilo era o de cravar o punhal cerimonial no peito do filho mais novo.

Drizzt sacudiu o cansaço e obrigou-se a pôr-se de pé. Os esforços da batalha da noite anterior contra o basilisco e os esforços de mergulhar completamente naquele estado primitivo tão necessário para a sobrevivência, tinham-no deixado completamente esgotado. No entanto, Drizzt sabia que não se podia dar ao luxo de repousar mais; a sua manada de rothe, a sua fonte segura de comida, tinha-se espalhado pelo labirinto de túneis e tinha de ser reunida de novo. Drizzt observou rapidamente a pequena e discreta caverna que lhe servia de lar, assegurando-se de que tudo estava como devia estar. Os olhos detiveram-se sobre a estatueta de ónix de uma pantera. Ficou presa de um profundo anseio por ter ali e agora a companhia de Guenhwyvar. Na su emboscada ao basilisco, Drizzt mantivera a pantera a seu lado durante um longo período — quase toda a noite — e Guenhwyvar teria agora de descansar no seu Plano Astral. Mais do que um di inteiro teria de passar até que Drizzt pudesse convocar de novo uma Guenhwyvar já recuperada; e tentar usar a estatueta antes disso, a não ser nalguma situação desesperada, seria tolice. Com u encolher de ombros resignado, meteu a estatueta no bolso e tentou em vão afastar a sensação de solidão. Depois de uma rápida inspecção da barricada de pedra que bloqueava a entrada para o corredor principal, Drizzt passou para o túnel mais pequeno ao fundo da caverna. Notou os arranhões na pedr unto ao túnel, os entalhes que fizera para marcar a passagem dos dias. Fez mais um, distraidamente, mas deu-se conta de que não tinha importância. Quantas vezes se tinha esquecido de fazer o entalhe? Quantos dias teriam passado por ele sem se dar conta, entre as centenas de entalhes da rocha? De alguma forma, agora parecia já não importar. Dia e noite eram apenas uma e mesma coisa, e todos os dias eram apenas um, na vida do caçador. Drizzt meteu-se no túnel e rastejou por muitos minutos em direcção à fraca luz do outro extremo. Embora a presença de luz, que era resultado de u tipo de fungo invulgar, fosse normalmente desconfortável para os olhos de um elfo negro, Drizzt sentia uma sincera sensação de segurança enquanto rastejava pelo túnel até à câmara maior. O chão estava partido em dois níveis, com o mais baixo coberto de musgo e atravessado por u pequeno riacho, e sendo o mais elevado um terreno de altos cogumelos. Drizzt dirigiu-se ao terreno dos cogumelos, embora não fosse geralmente lá bem recebido. Sabia que os micónides, a gente dos fungos, que era uma estranha mistura de humanóides e cogumelos, o observava ansiosamente. O basilisco fora até ali nas suas primeiras viagens pela região e os micónides tinham sofrido grandes perdas. Agora, estavam sem dúvida assustados e eram perigosos, mas Drizzt suspeitava de que saberiam que tinha sido ele aembainhadas matar o monstro. micónides não eram seresa estúpidos; desde quetambém Drizzt mantivesse as armas e não Os fizesse movimentos bruscos, gente dos fungos aceitaria provavelmente a sua passagem pelos campos de cogumelos bem tratados. A parede até à parte superior tinha mais de três metros de altura e era lisa, mas Drizzt subiu-a co tanta facilidade e rapidez como se tivesse degraus bem marcados. Um grupo de micónides pairou à sua volta enquanto chegava ao topo, alguns com apenas metade da altura dele, mas a maioria com o dobro da sua altura. Drizzt cruzou os braços sobre o peito, num sinal de paz comummente aceite no

mundo do Subescuro. As gentes dos fungos consideravam a aparência de Drizzt nojenta — tão nojenta como ele o considerava a eles —, mas tinham compreendido de facto que Drizzt tinha destruído o basilisco. Durante muitos anos, os micónides tinham vivido lado a lado com o drow renegado, cada u protegendo a câmara cheia de vida que servia de mútuo santuário. Um oásis como este local, co plantas comestíveis, um riacho cheio de peixe e uma manada de rothe não era vulgar nas cavernas duras e vazias do Subescuro, e predadores que vagueavam pelos túneis mais exteriores acabava sempre por encontrar caminho para lá. Então, só restava à gente dos fungos, e a Drizzt, defender o seu domínio. O maior dos micónides avançou para ficar diante do elfo negro. Drizzt não se mexeu, compreendendo a importância de estabelecer uma aceitação entre ele próprio e o novo rei da colónia de gente dos fungos. Mesmo assim, Drizzt retesou os músculos, preparando-se para saltar para o lado se as coisas não corressem conforme esperava. O micónide cuspiu uma nuvem de esporos. Drizzt estudou-os durante a fracção de segundo que demoraram a cair sobre ele, sabendo que os micónides maduros podiam emitir muitos tipos diferentes de esporos, alguns dos quais muito perigosos. Mas Drizzt reconheceu o tom desta nuve em particular e aceitou-a sem reservas. — Rei morto. Eu rei — chegaram-lhe os pensamentos do micónide através da ligação telepática inspirada pela nuvem de esporos. — Tu és rei — respondeu Drizzt mentalmente. Como desejava que aquela gente fungóide falasse em voz alta! — Tudo como antes? — Fundo para elfo negro, terreno de cogumelos para micónides — respondeu o homem-fungo. Concordaram. — Cogumelos para micónides! — pensou de novo o homem-fungo, desta vez com ênfase. Drizzt desceu em silêncio. Cumprira a sua missão com o fungóide; nem ele, nem o rei tinha qualquer desejo de prosseguir o encontro. Partindo em passos rápidos, Drizzt saltou por cima do riacho e saltitou pelo musgo espesso. câmara era mais longa do que larga e prosseguia por muitos metros, fazendo uma ligeira curva antes de se chegar à saída maior que dava para o labirinto serpenteante dos túneis do Subescuro. Depoi dessa curva, Drizzt olhou de novo para a destruição provocada pelo basilisco. Havia por ali vário rothe semi-devorados — Drizzt teria de se desfazer daqueles corpos antes que o fedor atraísse mais visitantes indesejados — e outros rothe mantinham-se perfeitamente imóveis, petrificados pela visão do temido monstro. Directamente em frente à saída da câmara estava o anterior rei micónide, u gigante três metros agora não passava de uma estátua ornamental. Drizztdefez uma pausae meio, para oque observar. Nunca soubera o nome do fungóide, nem nunca lhe dissera o seu, mas pensava que o rei tinha sido seu aliado, pelo menos, ou talvez mesmo seu amigo. Tinham vivido lado a lado durante vários anos, ainda que raramente se tivessem encontrado, e ambos tinham beneficiado de um pouco mais de segurança devido à presença do outro. Mesmo assim, Drizzt não sentia remorsos perante a visão daquele aliado petrificado. No Subescuro, só os mais forte sobreviviam, e desta vez fora o rei micónide a não ser suficientemente forte.

Na selva do Subescuro, o falhanço não permitia nenhuma segunda oportunidade. De novo nos túneis, Drizzt sentiu a raiva a crescer. Recebeu-a de braços abertos, concentrando o pensamentos na carnificina dentro do seu domínio e aceitando a raiva como um aliado naquela selva. Passou por uma série de túneis e virou para um onde tinha colocado o seu encantamento de escuridão na noite anterior, e onde Guenhwyvar se acoitara, pronta a saltar sobre o basilisco. O encantamento de Drizzt desaparecera já há muito e, usando a sua infravisão, conseguia perceber várias formas que brilhavam de calor a rastejar por cima do monte de despojos arrefecidos que sabia serem o monstro morto. A visão daquela coisa só fez aumentar a raiva do caçador. Instintivamente, agarrou o punho de uma das cimitarras. Como se se mexesse por vontade própria, a arma saiu da bainha quando Drizzt passou pela cabeça do monstro morto, embatendo nojentamente contra os miolos expostos. Vários ratos cegos das cavernas fugiram ao ouvir o som, e Drizzt, mai uma vez sem pensar, deu um golpe com a segunda espada, cravando-a num dos ratos contra a parede. Sem sequer abrandar o passo, apanhou o rato e meteu-o na bolsa. Encontrar os rothe poderia ser u processo entediante, e o caçador precisaria de comer. Durante o resto desse dia e metade do seguinte, o caçador distanciou-se dos seus domínios. Aquele rato das cavernas não era uma refeição particularmente agradável, mas sustentava-o, permitindo-lhe prosseguir e sobreviver. Para o caçador do Subescuro, nada mais importava. Nesse segundo dia de expedição, o caçador soube que se estava a aproximar de um grupo dos seus animais extraviados. Convocou Guenhwyvar para o seu lado e, com a ajuda da pantera, não teve grandes dificuldades em encontrar os rothe. Esperara que toda a manada ainda se mantivesse unida, mas apenas encontrou meia dúzia de animais nas redondezas. Mas seis já eram melhor do que nada, e Drizzt mandou Guenhwyvar avançar, levando a manada de rothe de regresso à caverna de musgo. Marcou um passo brutal, sabendo que a tarefa seria muito mais fácil e segura tendo Guenhwyvar ao seu lado. Quando a pantera se cansou e teve de regressar ao seu Plano Astral, já os rothe estava confortavelmente a pastar junto do riacho tão familiar. O drow partiu de novo imediatamente, desta vez levando dois ratos mortos para o caminho. Convocou de novo Guenhwyvar assim que pôde e dispensou-a quando tinha de o fazer, e depois outra vez, enquanto os dias iam passando sem mais nenhum sinal. Mas o caçador não desistiu da sua busca. Os rothe assustados conseguiam cobrir uma porção incrível de terreno, e no labirinto de túneis serpenteantes e de cavernas enormes o caçador sabia que muitos mais dias poderiam passar antes de conseguir apanhar os animais. Drizzt encontrava comida onde podia, abatendo um morcego com o lançamento perfeito de u punhal — depois mão-cheia de seixos ou deixando pedregulho sobre de as lançar costasuma de um caranguejo gigantepara do confundir Subescuro.o animal Por fim,—cansou-se da cair buscaume ansiava pela segurança da sua pequena caverna. Duvidando de que os rothe, a correr às cegas, pudessem ter sobrevivido tão longe nos túneis, tão longe de água e alimento, aceitou a perda da sua manada e decidiu regressar a casa por um caminho que o levaria de regresso à região da caverna de musgo por uma direcção diferente. Só se encontrasse rastos claros da sua manada perdida se desviaria desse percurso, decidiu. Mas,

quando fazia uma curva a meio caminho de casa, um som estranho chamou-lhe a atenção. Pressionou as mãos contra a pedra, sentindo as vibrações subtis, ritmadas. A pouca distância, qualquer coisa batia na pedra em rápida sucessão. Um martelar ritmado. O caçador desembainhou as cimitarras e avançou à cautela, usando as vibrações contínuas para o guiarem pelas passagens em ziguezague. A luz bruxuleante de um fogo fê-lo atirar-se para o chão, encolhendo-se; mas não fugiu, atraído pela ideia de haver um ser inteligente por perto. Muito provavelmente, esse estranho viria a provar ser uma ameaça, mas talvez, esperava Drizzt no fundo, pudesse ser algo mais do que isso. Depois, Drizzt viu-os; dois estavam a bater na pedra com picaretas trabalhadas, outro recolhia a pedras num carrinho de mão, e dois outros montavam guarda. O caçador soube imediatamente que mais guardas haveriam de estar por ali; provavelmente, teria penetrado nas defesas deles sem sequer se ter dado conta. Drizzt convocou uma das capacidades da sua herança e deslizou lentamente no ar, conduzindo a sua levitação com as mãos contra a pedra. Felizmente, o túnel era alto naquele ponto, e por isso o caçador pôde observar as criaturas mineiras em relativa segurança. Eram mais baixas do que Drizzt e não tinham cabelo; tinham torsos atarracados e musculados, perfeitamente adaptados à mineração, que era sua vocação. Drizzt já encontrara aquela raça antes e aprendera muito sobre ela durante os seus anos na Academia, em Menzoberranzan. Eram gnomos da profundezas, svirfnebli, os mais odiados inimigos dos drow em todo o Subescuro. Certa vez, muito tempo atrás, Drizzt liderara uma patrulha em combate contra um grupo de svirfnebli e derrotara pessoalmente um elementar de terra que o líder dos gnomos das profundezas convocara. Drizzt recordava agora esse momento e, como todas as memórias da sua existência, esses pensamentos doíam-lhe. Fora capturado pelos gnomos das profundezas, duramente amarrado e mantido prisioneiro numa sala secreta. Os svirfnebli não o tinham tratado mal, embora suspeitasse — e o tivessem explicado a Drizzt — que talvez tivessem de acabar por matá-lo. O líder do grupo prometera a Drizzt tanta misericórdia quanto a situação permitisse. Os companheiros de Drizzt, porém, liderados por Dinin, o seu próprio irmão, tinham atacado grupo de gnomos sem mostrar qualquer tipo de misericórdia. Drizzt conseguira convencer o irmão a poupar a vida do líder dos svirfnebli, mas Dinin, mostrando a típica crueldade dos drow, mandara cortar as mãos ao gnomo antes de o libertar para fugir para a sua terra. Drizzt estremeceu com estas recordações sombrias e obrigou-se a concentrar-se de novo na situação que tinha diante de si. Os gnomos das profundezas podiam ser adversários formidáveis, lembrou a si mesmo, e não era provável que recebessem de braços abertos um elfo negro no meio das suas actividades. Tinha de se manter alerta. Os mineiros tinham, aparentemente, encontrado um filão precioso, porque começaram a falar e tom muito excitado. Drizzt deliciou-se com o som daquelas palavras, ainda que não percebesse nada daquela estranha linguagem de gnomos. Um sorriso que não era inspirado pela vitória em combate surgiu no rosto de Drizzt, pela primeira vez em anos, enquanto os svirfnebli tagarelavam acerca das pedras, lançando grandes pedaços de rocha para os carrinhos de mão e chamando os companheiros que estavam por perto para virem juntar-se a toda aquela festa. Tal como Drizzt suspeitara, havia mais de uma dúzia de svirfnebli, que começaram a aparecer de todas as direcções.

Drizzt encontrou uma saliência elevada na rocha e daí observou os mineiros quando o seu encantamento de levitação expirou. Quando finalmente os carrinhos de mão ficaram cheios, os gnomos das profundezas formaram uma coluna e começaram a fazer-se ao caminho. Drizzt sabia que a atitude mais sensata nesse momento seria deixá-los ir, e depois regressar a casa. Mas, contra a lógica simples que orientava a sua sobrevivência, Drizzt descobriu que não er capaz de tão facilmente deixar para trás o som de vozes. Desceu pela parede alta e seguiu a caravana dos svirfnebli, interrogando-se aonde iria parar. Durante muitos dias, Drizzt seguiu os svirfnebli. Resistiu à tentação de convocar Guenhwyvar sabendo que a pantera bem podia gozar de um descanso mais prolongado, e estando ele próprio satisfeito com a companhia, por muito distante que estivesse, da tagarelice dos gnomos das profundezas. Todos os instintos avisavam o caçador contra o prosseguimento das suas acções, mas, pela primeira vez em muito tempo, Drizzt dominou os instintos do seu ser mais primitivo. Precisav de ouvir as vozes dos gnomos mais do que precisava das simples necessidades de sobrevivência. Os corredores tornaram-se mais trabalhados, menos naturais, à sua volta, e Drizzt percebeu que se estava a aproximar da terra dos svirfnebli. Mais uma vez, os perigos potenciais espreitavam-no, e mais uma vez ele os afastou como secundários. Estugou o passo e ficou com a caravana à vista, suspeitando de que os svirfnebli teriam armadilhas engenhosas montadas. Os gnomos das profundezas mediam cada passo que davam, nesta altura, tendo o cuidado de evitar certas áreas. Drizzt imitava-lhes imediatamente os movimentos e meneava a cabeça quando via uma pedra solta aqui ou um fio de uma armadilha ali. Depois, escondeu-se atrás de vegetação quando ouviu o som das vozes de outros mineiros que se juntavam aos primeiros. O grupo de mineiros chegara a uma longa e ampla escadaria, que subia entre duas paredes de pedra absolutamente lisa e sem rachas. Ao lado da escada havia uma abertura onde os carrinhos de mão mal cabiam, e Drizzt observou com sincera admiração enquanto os mineiros das profundezas metiam os carrinhos por estes orifícios e os ligavam com uma corrente uns aos outros. Uma série de batimentos na pedra enviou o sinal para um operador invisível e a corrente chiou, puxando o primeiro carrinho pelo orifício. Um após outro, os carrinhos desapareceram, e o bando de svirfnebli foi-se desfazendo, à medida que os gnomos subiam as escadas, libertos dos seus fardos. Quando os dois gnomos que restavam ergueram o último carrinho e o prenderam à corrente, dando o sinal na pedra, Drizzt arriscou tudo, por desespero. Esperou que os gnomos das profundeza virassem costas e correu para o carrinho, apanhando-o precisamente quando este começava a desaparecer dentro do orifício do túnel. Drizzt percebeu o alcance da sua tolice quando o último gnomo das profundezas, ainda aparentemente sem se aperceber da sua presença, recolocou uma pedra noAfundo da passagem, bloqueando qualquer de retirada. corrente foi puxada e o carrinho rolou hipótese num ângulo tão inclinado quanto o da escada lá fora. Drizzt não conseguia ver nada à sua frente, porque o carrinho de mão, concebido para caber ali à usta, ocupava toda a largura e altura do túnel. Notou então que o carrinho tinha pequenas rodas de lado, também, para ajudar a passagem. Sabia tão bem estar na presença de tanta inteligência de novo… Mas Drizzt não podia ignorar os perigos à sua volta. Os svirfnebli não aceitariam bem u elfo drow intruso; era provável que o interpelassem com armas, e não com perguntas.

Ao fim de vários minutos, a passagem nivelou e alargou-se. Estava ali apenas um svirfnebli, fazendo rodar sem esforço a manivela que puxava a corrente que trazia os carrinhos. Concentrado no seu labor, o gnomo das profundezas não reparou na forma escura de Drizzt, saltando de trás do último carrinho e deslizando silenciosamente pela porta lateral da sala. Drizzt ouviu vozes assim que abriu a porta. No entanto, prosseguiu em frente, sem ter mais nenhu sítio para onde ir, e deitou-se de barriga para baixo numa saliência estreita. Os gnomos das profundezas, guardas e mineiros, estavam por baixo dele, conversando no patamar de uma larga escadaria. Havia agora ali um grande número deles, com os mineiros a contar as histórias da sua descoberta feliz. Mais atrás no patamar, para lá de duas imensas portas de pedra parcialmente abertas e assentes em gonzos metálicos, Drizzt conseguia entrever a cidade svirfnebli. O drow só conseguia ver um fracção do local, e mesmo isso não muito bem, devido à posição da saliência, mas calculou que a caverna para lá daquelas portas maciças não seria nem de perto tão grande como a que albergava Menzoberranzan. Drizzt queria entrar ali! Queria saltar e correr por aquelas portas, entregar-se aos gnomos e a fosse qual fosse o julgamento que pudessem fazer. Talvez o aceitassem, talvez vissem Drizzt Do’Urden como aquilo que era realmente. Os svirfnebli no patamar, rindo e tagarelando, dirigiram-se para a cidade. Drizzt tinha de ir agora, tinha de saltar e segui-los para lá das portas enormes. Mas o caçador, o ser que tinha sobrevivido uma década nos selváticos mundos do Subescuro, não se conseguia mexer daquela saliência. O caçador, o ser que tinha derrotado o basilisco e inúmeros outros monstros daquele mundo perigoso, não podia entregar-se assim apenas com a esperança de um tratamento misericordioso e civilizado. O caçador não compreendia tais conceitos. As maciças portas de pedra fecharam-se — e aquele momento de luz trémula no coração de Drizz morreu — com um retumbante estrondo. Após um longo e atormentado momento, Drizzt Do’Urden rebolou para fora da saliência e cai sobre o patamar ao cimo das escadas. A visão turvou-se-lhe subitamente enquanto descia pelo caminho que se afastava da vida palpitante por detrás daquelas portas, e foi apenas o seu instinto primitivo de caçador que sentiu a presença de ainda mais guardas svirfnebli. O caçador saltou agilmente por cima dos espantados gnomos das profundezas e apressou-se para a liberdade oferecida pelas passagens abertas do selvagem Subescuro. Quando já tinha deixado bem para trás a cidade dos svirfnebli, Drizzt meteu a mão no bolso e retirou de lá a estatueta, para chamar o seu único companheiro. Um momento depois, porém, voltou a guardá-la, convocar na o felino, punindo-se pelaposto sua fraqueza detormento, antes. Se de tivesse mais forte recusando-se quando estavaa agachado saliência, poderia ter fim ao seu uma sido forma ou de outra. Os instintos do caçador tentavam ganhar o controlo de Drizzt enquanto abria caminho até à passagens que o levariam de regresso à caverna de musgo. Enquanto o Subescuro e a pressão do perigo indesmentível continuavam a cercá-lo, esses instintos primitivos, em alerta, assumiram o comando, negando mais pensamentos e distracções sobre os svirfnebli e a sua cidade.

Esses instintos primitivos eram a salvação e a condenação de Drizzt Do’Urden.

— Quantas semanas já passaram? — gesticulou Dinin para Briza, no código gestual silencioso do drow. — Há quantas semanas andamos à caça nestes túneis, em busca do nosso renegado irmão? A expressão de Dinin revelava sarcasmo enquanto estes pensamentos lhe corriam pela mente. Briza fez um esgar de desdém e não lhe respondeu. Era uma alta sacerdotisa de Lolth e fora a filh mais velha, a quem competia um lugar elevado em honras no seio da família. Nunca, antes, teria sido enviada numa tal perseguição. Mas agora, por uma qualquer razão inexplicável, SiNafay Hun’et untara-se à família, relegando Briza para uma posição inferior. — Cinco? — prosseguiu Dinin, com a ira a crescer a cada movimento brusco dos dedos magros. — Seis? Há quanto tempo, irmã? — insistiu. — Há quanto tempo está SiNaf… Shi’nayne… sentad ao lado da Matrona Malice? O chicote com cabeças de serpente soltou-se do cinturão de Briza, e apontou-o iradamente para o irmão. Dinin, percebendo que tinha ido longe demais nas suas insistências sarcásticas, puxou defensivamente da espada e tentou esquivar-se. O golpe de Briza foi mais rápido, derrotando facilmente a tentativa desajeitada de Dinin de ripostar, e três das seis cabeças de serpente firmaramse fortemente no peito e no ombro do Rapaz Mais Velho Do’Urden. Uma dor fria espalhou-se pel corpo de Dinin, deixando apenas uma dormência inapelável na sua esteira. O braço da espada caiu e Dinin começou a inclinar-se para a frente. A mão forte de Briza avançou num ápice e agarrou-o pelo pescoço enquanto caía, levantando-o com facilidade do chão. Depois, olhando em volta para os outros cinco membros do grupo de busca, para se assegurar de que ninguém dava um passo a favor de Dinin, Briza atirou o irmão estonteado secamente contra a parede de pedra. A alta sacerdotisa debruçou-se pesadamente sobre Dinin, com uma mão a pressionar fortemente contra a garganta. — Um macho sensato mediria os seus gestos com mais cuidado — escarneceu Briza em voz alta, embora ela e os outros tivessem sido explicitamente advertidos pela Matrona Malice de que não deveriam comunicar por nenhum outro meio senão a linguagem gestual, assim que estivessem para lá dos limites de Menzoberranzan. Dinin levou bastante tempo a compreender completamente o estado em que estava. Enquanto dormência se desvanecia, percebeu que não conseguia respirar e que, embora a sua mão ainda empunhasse a espada, Briza, que pesava uns bons quilos mais do que ele, a tinha bem presa ao seu lado. Ainda mais perturbante era ver que a mão livre da irmã ainda empunhava o temido chicote de cabeças serpente. chicotes malévolo instrumento não precisava de muitodeespaço paraAo sercontrário usado. Asdos cabeças de normais, serpente aquele animadas conseguiam encolher-se e depois saltar em curtas distâncias, como uma extensão da vontade de quem as comandava. — A Matrona Malice não questionaria a tua morte — murmurou Briza secamente. — Os filho machos só lhe têm dado problemas! Dinin olhou para lá da sua esmagadora captora, para os soldados comuns da patrulha. — Testemunhas? — riu-se Briza, adivinhando-lhe os pensamentos. — Pensas mesmo que se

atreveriam a falar contra uma alta sacerdotisa, por causa de um simples macho? — Os olhos de Briz semicerraram-se e encostou a cara à de Dinin. — Um simples cadáver de macho? — Riu-se outr vez e largou Dinin subitamente. Este caiu de joelhos, tentando desesperadamente recuperar um ritmo de respiração normal. — Venham — gesticulou Briza no código silencioso para o resto da patrulha. — Sinto que o meu irmão mais novo não está nesta área. Regressaremos à cidade para nos reabastecermos. Dinin observou as costas da irmã enquanto ela fazia os preparativos para a partida. Nada mai desejava do que enfiar a espada entre os ombros dela. Mas Dinin era demasiado esperto para tenta uma tal acção. Briza era alta sacerdotisa da Rainha Aranha desde havia mais de três séculos e estav agora no favor de Lolth, ainda que a Matrona Malice e o resto da Casa Do’Urden não estivesse Mesmo que a sua malévola deusa não estivesse a olhar por ela, Briza era um inimigo formidável, hábil no uso dos encantamentos e com aquele cruel chicote sempre perto das mãos. — Minha irmã — chamou-a Dinin quando ela se começou a afastar. Briza virou-se para ele, surpreendida por ele se atrever a dirigir-lhe a palavra em voz alta. — Aceita as minhas desculpas — disse Dinin. Fez sinal aos outros soldados para seguirem, e depois voltou a usar o código gestual, para que os soldados comuns não percebessem o resto da conversa com Briza. — Não me agrada adição de SiNafay Hun’ett à família — explicou. Os lábios de Briza curvaram-se num dos seus sorrisos tipicamente ambíguos; Dinin não podia ter certeza se ela estava a concordar com ele ou a troçar dele. — Pensas-te suficientemente sensato para questionares as razões da Matrona Malice? perguntaram os dedos dela. — Não! — responderam enfaticamente os dedos de Dinin. — A Matrona Malice faz o que tem d fazer, como sempre, para o bem da Casa Do’Urden. Mas não confio naquela Hun’ett. SiNafay viu sua casa ser esmagada até ficar feita em pedaços de rocha fumegantes por ordem do Conselho Governante. Todos os seus preciosos filhos foram chacinados; e a maioria dos comuns também. Poderá ela ser verdadeiramente leal à Casa Do’Urden depois de uma tal perda? — Macho tonto — gesticulou Briza em resposta. — As sacerdotisas percebem que a lealdade só é devida a Lolth. A casa de SiNafay já não existe, e por isso SiNafay já não existe. Agora é Shi’nayn Do’Urden, e por ordem da Rainha Aranha aceitará completamente todas as responsabilidades qu vêm com esse nome. — Não confio nela — teimou Dinin. — Nem me agrada ver as minhas irmãs, as verdadeira Do’Urden, a serem rebaixadas na hierarquia para haver lugar para ela. Shi’nayne deveria ter sid colocada abaixo de Maya, ou alojada entre os comuns. Briza lançou-lhe um ar de desprezo, concordasse inteiramente. — A posição de Shi’nayne na famíliaembora não te diz respeito. A Casa Do’Urden está mais forte com adição de mais uma alta sacerdotisa. Isso é tudo o que deve importar a um macho, e nada mais! Dinin acenou em concordância com a lógica dela e, sensatamente, embainhou a espada antes de voltar a levantar-se. Briza também recolocou o chicote no cinturão, mas continuou a vigiar o seu volúvel irmão pelo canto do olho. Agora, Dinin teria mais cuidado quando estivesse perto de Briza. Sabia que a sua sobrevivênci

dependeria da capacidade para acompanhar a irmã, porque Malice continuaria a enviar Briza nesta patrulhas de busca com ele. Briza era a mais forte das filhas Do’Urden, com as maiore possibilidades de encontrar e capturar Drizzt. E Dinin, tendo sido líder de patrulhas da cidad durante mais de uma década, era o mais familiarizado, de entre os da Casa, com os túneis para lá de Menzoberranzan. Dinin encolheu os ombros, resignado com a sua triste sorte, e seguiu a irmã de volta aos túneis que iam dar à cidade. Uma breve paragem, de não mais do que um dia, e estariam de regresso às patrulhas, de novo à caça do seu perigoso e esquivo irmão, que Dinin, na verdade, não tinha a menor vontade de encontrar. A cabeça de Guenhwyvar virou-se subitamente e a grande pantera ficou perfeitamente imóvel, co uma pata no ar e pronta a entrar em acção. — Também ouviste… — murmurou Drizzt, chegando-se para bem perto do felino. — Vem, meu amigo. Vamos ver que novo inimigo entrou no nosso domínio. Partiram a toda a velocidade, juntos, igualmente silenciosos, percorrendo corredores que conheciam bem. Drizzt parou de súbito, e Guenhwyvar fez o mesmo, ao ouvir um eco de u restolhar. Um ruído feito por uma bota, soube Drizzt, e não por qualquer monstro natural do Subescuro. Drizzt apontou para uma pilha de pedras que dava para uma caverna ampla e com vário níveis de ambos os lados. Guenhwyvar conduziu-o para lá, onde poderiam encontrar um melhor ponto de observação. A patrulha drow apareceu à vista apenas alguns momentos mais tarde; era um grupo de sete, embora estivessem demasiado afastados para que Drizzt pudesse discernir quaisquer pormenores. Ficou espantado por os ter ouvido com tanta facilidade, porque se recordava daqueles tempos e que tomara a dianteira em patrulhas como aquela. Como se sentira só nessas alturas, na dianteira de mais de uma dúzia de elfos negros, porque não emitiam nem um suspiro, com os seus movimentos bem treinados e mantendo-se tão bem nas sombras que nem os olhos bem treinados de Drizzt os conseguiam discernir. E no entanto, este caçador que Drizzt se tornara, este seu ser primitivo, instintivo, dera facilmente com este grupo. Briza parou subitamente e fechou os olhos, concentrando-se nas emanações do seu encantamento de localização. — O que é? — perguntaram os dedos de Dinin quando ela voltou a olhar para ele. A expressão surpreendida e obviamente excitada dela revelavam muito. — Drizzt? — deixou escapar Dinin e voz—alta, quase — nãogritaram-lhe conseguindo Silêncio! asacreditar. mãos de Briza. Olhava em volta, para sondar tudo o que a rodeava. Depois, fez sinal à patrulha para a seguir até às sombras da parede da imensa caverna. Briza acenou então em confirmação para Dinin, confiante de que a missão ficaria finalmente concluída. — Consegues ter a certeza de que é Drizzt? — perguntaram os dedos de Dinin. Na sua excitação mal conseguia manter os movimentos dos dedos suficientemente precisos para transmitir os seus

pensamentos. — Talvez seja algum salteador… — Sabemos que o nosso irmão vive… — gesticulou rapidamente Briza. — A Matrona Malice j não estaria fora do favor de Lolth se fosse de outra forma. E se Drizzt vive, podemos presumir qu está na posse do objecto! O súbito movimento de dissimulação da patrulha apanhou Drizzt de surpresa. O grupo não poderia d forma alguma tê-lo visto sob a protecção das rochas salientes, e manteve a confiança no silêncio das suas passadas e das de Guenhwyvar. E, no entanto, sentia-se convencido de que a patrulha estava a esconder-se dele. Havia algo de errado em todo este encontro. Os elfos negros eram raros em local tão distante de Menzoberranzan. Talvez não fosse mais do que a paranóia necessária para sobreviver na selva do Subescuro, disse Drizzt a si mesmo. Mesmo assim, suspeitava de que não fora apenas acaso a trazer aquele grupo até aos seus domínios. — Vai, Guenhwyvar — sussurrou para o felino. — Observa os nossos visitantes e regressa para unto de mim. A pantera apressou-se a percorrer as sombras que rodeavam a caverna. Drizzt enterrou-se ainda mais no cascalho, ficou à escuta e esperou. Guenhwyvar regressou para junto dele um minuto mais tarde, embora a Drizzt parecesse te passado uma eternidade. — Conhece-los? — perguntou Drizzt. O felino raspou uma garra na pedra. — Da nossa antiga patrulha? — interrogou Drizzt em voz alta. — Os mesmos guerreiros com que tu e eu caminhámos em tempos? Guenhwyvar parecia ter a Drizzt, certeza pensando e não fez ter movimentos — São Hun’ett, então não — disse resolvido odefinitivos. enigma. A Casa Hun’ett tinha por fim vindo à sua procura para exercer a retribuição pelas mortes de Alto e de Masoj, os dois magos Hun’ett que tinham morrido a tentar matar Drizzt. Ou talvez os Hun’et tivessem vindo à procura de Guenhwyvar, o artefacto mágico que Masoj em tempos possuíra. Quando Drizzt parou por um momento as suas cogitações, para estudar a reacção de Guenhwyvar, percebeu que as suas hipóteses estavam erradas. A pantera afastara-se dele um passo e parecia agitada com o seu fluxo de suposições. — Mas então, quem? — perguntou Drizzt. Guenhwyvar ergueu-se sobre as patas traseiras e apoiou-se nos ombros de Drizzt, com uma grande pata a tocar na bolsa de trazer ao pescoço de Drizzt. Sem compreender, Drizzt retirou a bolsa e despejou o conteúdo na mão, revelando algumas moedas de ouro, uma pequena pedra preciosa e o emblema da sua Casa, um símbolo prateado gravado com as iniciais de Daermon N’a’shezbaernon, Casa Do’Urden. Drizzt percebeu de repente o que Guenhwyvar estava a indicar-lhe. — A minha família — murmurou. Guenhwyvar afastou-se um pouco dele e mais uma vez raspou uma garra excitadamente na pedra. Mil recordações inundaram Drizzt nesse momento, mas todas elas, boas e más, o levava inexoravelmente a apenas uma possibilidade: a Matrona Malice não esquecera, nem perdoara a

acções dele naquele fatídico dia. Drizzt abandonara-a a ela e aos usos da Rainha Aranha, e conheci bem esses usos para perceber que as suas acções não tinham deixado a mãe em boa posição. Voltou a olhar para a penumbra da grande caverna. — Vem — gesticulou para Guenhwyvar, e correu pelos túneis. A decisão de deixar Menzoberranzan fora dolorosa e cheia de incertezas, e agora não tinha nenhuma vontade de encontrar a família e reacender todas essas dúvidas e receios. Ele e Guenhwyvar correram durante mais de uma hora, entrando por passagens secretas e atravessando as secções mais confusas dos túneis daquela área. Drizzt conhecia toda aquela região ao pormenor e sentia-se seguro de que poderia deixar a patrulha bem para trás com pouco esforço. Mas quando por fim fez uma pausa para recuperar o fôlego, Drizzt sentiu — e só teve de olha para Guenhwyvar para confirmar as suas suspeitas — que a patrulha continuava no seu encalço, talvez até mais perto do que antes. Percebeu então que estava ser magicamente seguido; não poderia haver outra explicação. — Mas como? — perguntou para a pantera. — Já pouco tenho a ver com o drow que conhecera como irmão, em aparência ou pensamentos. Que poderão estar a sentir que seja suficientemente familiar para ser captado pelos seus encantamentos mágicos? Drizzt observou-se a si mesmo rapidamente, e os olhos pousaram-lhe logo nas espadas ricamente trabalhadas. As cimitarras eram, de facto, singulares, mas também a maioria das armas drow de Menzoberranzan o eram. E estas lâminas em particular nem sequer tinham sido temperadas na Cas Do’Urden e não eram de nenhum estilo preferido pela família de Drizzt. Seria então o manto? interrogou-se. O piwafwi era distintivo de uma Casa, exibindo os padrões bordados singulares de cada família. Mas o piwafwi de Drizzt tinha já sido rasgado e puído para além de qualquer reconhecimento e era-lhe difícil acreditar que um encantamento de localização conseguisse identificá-lo como pertencente à Casa Do’Urden. — Pertencente à Casa Do’Urden — murmurou Drizzt. Olhou para Guenhwyvar e subitament assentiu com a cabeça; já sabia a resposta. Voltou a retirar a bolsa do pescoço e tirou de lá a insígnia, o emblema de Daermon N’a’shezbaernon. Criado por magia, possuía a sua própria magia, um encantamento que era distinto em cada Casa. Só um nobre da Casa Do’Urden usaria um ta emblema. Drizzt pensou por um momento, e depois voltou a colocar o emblema na bolsa, e pôs esta ao pescoço de Guenhwyvar. — É altura de a presa se transformar no caçador — ronronou para o grande felino. — Ele sabe que está a ser seguido — gesticularam as mãos de Dinin para Briza. Briza não deu confirmação a esta afirmação com nenhuma resposta. Era claro que Drizzt sabia d perseguição; era óbvio que estava a tentar escapar-lhes. Manteve-se despreocupada. O emblema d Casa Do’Urden de Drizzt continuava a ser um farol bem visível nos seus pensamentos magicament ampliados.

Briza parou, no entanto, quando o grupo chegou a uma bifurcação na passagem. O sinal vinha de l da bifurcação, mas não apontava concretamente para nenhum dos lados. — Para a esquerda — Briza fez sinal a três dos soldados comuns; depois: — Para a direita — fez sinal de que ela e Dinin manteriam as suas posições para servirem como reservas de ambos os grupos. Bem acima da patrulha que se dividia, pairando nas sombras do tecto coberto de estalactites, Drizzt sorria com a sua astúcia. A patrulha podia ter conseguido manter-lhe o rasto, mas não teria qualquer hipótese de acompanhar os passos de Guenhwyvar. O plano tinha sido executado e completado com perfeição, pois Drizzt apenas queria levar patrulha até se afastar muito dos seus domínios e se cansar da busca sem esperança. Mas enquanto pairava ali em cima, olhando para baixo, para o irmão e para a irmã mais velha, deu consigo a desejar algo mais. Passaram alguns momentos e Drizzt teve a certeza de que os soldados enviados j estavam a uma boa distância. Desembainhou as cimitarras, pensando então que um encontro com os seus irmãos poderia não ser assim tão mau, afinal de contas. — Está a afastar-se cada vez mais — disse Briza para Dinin, sem recear o som da sua própri voz, uma vez que sentia que o irmão renegado estava distante daquela posição. — E a grande velocidade. — Drizzt sempre foi muito hábil no Subescuro — respondeu Dinin, acenando com a cabeça. Há-de ser uma presa difícil de apanhar. Briza fez uma expressão de desdém. — Há-de cansar-se muito antes de os meus encantamentos expirarem. Haveremos de dar com ele sem fôlego, enfiado num buraco escuro. Mas a arrogância de Briza transformou-se numa expressão de espanto um segundo mais tarde, quando uma forma escura caiu mesmo entre ela e Dinin. Também Dinin quase nem teve tempo de expressar choque perante tudo aquilo. Viu Drizzt por uma fracção de segundo, e depois os olhos semicerraram-se, seguindo o arco de uma cimitarra que se abatia. Dinin caiu pesadamente, com a pedra lisa do chão a pressionar-lhe fortemente contra a cara, sensação de que já não poderia dar-se conta. Ao mesmo tempo que uma mão fazia o seu trabalho sobre Dinin, a outra mão disparou a ponta de uma cimitarra para a garganta de Briza, com a intenção de a forçar a render-se. Briza não ficou tão surpreendida como Dinin, porém, e mantinha sempre uma mão junto do chicote de serpentes. Esquivou-se do ataque de Drizzt, saltando para trás, e seis cabeças de serpente saltaram no ar, encolhidas e em busca de uma aberta. Drizzt girou para ficar de frente para ela,darodopiando as cimitarras emchicotes; padrões defensivos para completamente manter as víboras à distância. Recordava-se mordida daqueles temidos como todos os machos drow, aprendera-a muitas vezes durante a infância. — Irmão Drizzt — disse Briza em voz bem alta, esperando que a patrulha a ouvisse e percebess o chamamento. — Baixa as tuas armas. Não tem de ser assim. O som de palavras familiares, de palavras drow, esmagou Drizzt. Como era bom ouvi-las de novo, recordar que era mais do que um caçador obstinado; que a sua vida era mais do que apenas

sobrevivência. — Baixa as armas — repetiu Briza, com mais firmeza. — Por… Porque estás aqui? — gaguejou-lhe Drizzt. — Por tua causa, evidentemente, meu irmão — respondeu Briza, com demasiada gentileza. — guerra com a Casa Hun’ett terminou finalmente. É tempo de regressares a casa. Uma parte de Drizzt queria acreditar nela, queria esquecer aqueles factos da vida dos drow que o tinham forçado a abandonar a cidade onde nascera. Uma parte de Drizzt queria deixar cair a cimitarras na pedra e regressar ao abrigo — e à companhia — da sua vida anterior. O sorriso de Briza era tão convidativo. Briza percebeu que a determinação dele começava a enfraquecer. — Vem para casa, querido Drizzt — ronronou, com as palavras a transmitir um encantamento mágico menor. — És necessário lá. És agora o mestre de armas da Casa Do’Urden. A súbita mudança de expressão de Drizzt disse a Briza que tinha cometido um erro. Zaknafein, mentor e maior amigo de Drizzt, fora o mestre de armas da Casa Do’Urden, e fora sacrificado Rainha Aranha. Drizzt nunca esqueceria esse facto. Na verdade, Drizzt lembrou-se de muito mais do que dos confortos do lar, nesse momento. Lembrou-se ainda mais claramente dos males da sua vida passada, da maldade que os seus princípios simplesmente não poderiam tolerar. — Não devias ter vindo — disse Drizzt, com a voz a soar como um uivo. — Nunca mais deves vi para estes lados! — Querido irmão — respondeu Briza, mais para ganhar tempo do que para corrigir o erro óbvio. Manteve-se imóvel, com o rosto fixado naquele seu sorriso ambíguo. Drizzt olhou para além dos lábios de Briza, que eram grossos e cheios, pelos padrões drow. A sacerdotisa não dizia nenhuma palavra, mas Drizzt conseguia ver bem que a boca dela se estava a mexer por detrás daquele sorriso gelado. Um encantamento! Briza sempre fora hábil no uso desse tipo de dissimulação. — Vai para casa! — gritou-lhe Drizzt. E lançou o ataque. Briza desviou-se do golpe com facilidade, porque este não era tinha intenção de a ferir, mas apenas de a fazer parar o encantamento. — Maldito sejas, renegado Drizzt — gritou, abandonando toda a amizade fingida. — Baixa as tua armas imediatamente, ou morres! O chicote de cabeças de serpente surgiu numa ameaça clara. Drizzt afastou os pés. Havia fogo a brilhar nos seus olhos cor de alfazema enquanto o caçador que havia dentro dele começava a erguer-se para responder ao desafio. Briza hesitou, abalada pela súbita ferocidade que estava a crescer no irmão. Aquilo não era u guerreiro drow vulgar que tinha diante de si — e não tinha dúvidas disso. Drizzt tornara-se algo mais do que isso, algo mais formidável. Mas Briza era uma alta sacerdotisa de Lolth, próxima do topo da hierarquia drow. Não se deixari intimidar por um simples macho.

— Rende-te! — exigiu. Drizzt não conseguia sequer decifrar as palavras dela, porque o caçador que estava diante de Briza já não era Drizzt Do’Urden. O selvagem e primitivo guerreiro que as recordações de Zaknafei tinham invocado era imune a palavras e mentiras. O braço de Briza estendeu-se e as seis cabeças de víbora do chicote rodopiaram, contorcendo-se e enrolando-se de sua própria vontade para conseguirem o melhor ângulo de ataque. As cimitarras do caçador responderam num borrão de movimentos impossíveis de discernir. Briza não conseguia seguir os movimentos rápidos como raios e, quando a rotina de ataque terminou, viu que apenas uma das cabeças de serpente tinha conseguido atingir o alvo, e que agora só cinco cabeças permaneciam agarradas ao chicote. Agora numa raiva que quase igualava a do seu oponente, Briza carregou, agitando a sua arm danificada. Serpentes e cimitarras, e magros membros de drow, envolveram-se num bailado mortal. Uma cabeça mordeu a perna do caçador, enviando uma onda de dor fria a correr-lhe pelas veias. Uma cimitarra derrotou outro ataque traiçoeiro, abrindo uma cabeça ao meio, mesmo entre as presas. Outra cabeça mordeu o caçador. Outra que caiu no chão de pedra. Os contendores separaram-se, medindo-se. A respiração de Briza era difícil, depois daqueles furiosos minutos, mas o peito do caçador movia-se com facilidade e ritmado. Briza não fora atingida, mas o caçador recebera dois golpes. Mas o caçador aprendera havia muito a ignorar a dor. Mantinha-se pronto para continuar, e Briza, com o seu chicote agora só com três cabeças de serpente, avançou teimosamente para ele. Hesitou por uma fracção de segundo quando reparou em Dinin, ainda caído no chão, mas aparentemente a recobrar os sentidos. Poderia o irmão vir em seu auxílio? Dinin remexeu-se e tentou levantar-se, ma descobriu que não tinha forças nas pernas para se erguer. — Maldito! — rugiu Briza, com o seu veneno dirigido a Dinin, ou a Drizzt — não importava Invocando o poder da divindade da Rainha Aranha, a alta sacerdotisa de Lolth atacou com toda a su força. Três cabeças de serpente caíram no chão após um único golpe cruzado das cimitarras do caçador. — Maldito! — gritou Briza de novo, desta vez claramente para Drizzt. Tirou a maça do cinto lançou um golpe feroz à cabeça do irmão. Cimitarras cruzadas contiveram o golpe desajeitado muito antes que a maça encontrasse o alvo, e um pé do caçador subiu e pontapeou uma vez, duas vezes, e depois três, no rosto de Briza, antes de regressar ao chão. Briza cambaleou para trás, com sangue nos olhos e a escorrer-lhe do nariz. Percebia a forma do irmão por ente o calor enevoado do seu próprio sangue e lançou um golpe desesperado, em arco largo. O caçador colocou uma cimitarra em posição de defesa contra a maça, voltando a lâmina de forma a que a mão de Briza corresse ao longo do gume cruel ao mesmo tempo que a maça passava longe do alvo. Briza gritou de dor e deixou cair a arma. A maça caiu no chão, ao lado de dois dedos. Dinin estava agora de pé, por detrás de Drizzt, com a espada na mão. Usando toda a sua disciplina,

Briza manteve os olhos fixos em Drizzt, sem desviar a atenção dele. Se o conseguisse distrair pel tempo suficiente… O caçador pressentiu o perigo e girou para atacar Dinin. Tudo o que Dinin conseguiu ver nos olhos cor de alfazema do irmão foi a sua própria morte. Deitou a espada para o chão e cruzou os braços diante do peito, em sinal de rendição. O caçado lançou uma ordem num uivo quase ininteligível, mas Dinin percebeu o sentido suficientemente bem, e correu o mais depressa que as suas pernas lhe permitiram. Briza começou a mover-se lentamente, tentando seguir Dinin, mas uma lâmina de cimitarra barroulhe o caminho, pousando-lhe debaixo do queixo e forçando-a a deitar a cabeça tanto para trás que a única coisa que conseguia agora ver era o tecto. A dor ardia nos membros do caçador, dor infligida por ela e pelo seu malévolo chicote. Agora, o caçador pretendia acabar com a dor e com a ameaça. Aquele era o seu domínio! Briza murmurou uma prece final a Lolth enquanto sentia o gume afiado como uma lâmina começar o corte. Mas então, num instante enevoado e negro, viu-se livre. Olhou para baixo e vi Drizzt pregado ao chão por uma enorme pantera negra. Sem perder tempo a fazer perguntas, Briz correu pelo túnel atrás de Dinin. O caçador desembaraçou-se de Guenhwyvar e saltou para se pôr de pé. — Guenhwyvar! — gritou, afastando a pantera. — Apanha-a! Mata-a… Guenhwyvar respondeu sentando-se e soltando um enorme bocejo. Com um movimento preguiçoso, a pantera levou uma pata até ao fio da bolsa de trazer ao pescoço e cortou-o, deixando cair a bolsa no chão. O caçador ardia de raiva. — Que estás a fazer? — gritou, apanhando a bolsa. Teria Guenhwyvar tomado partido contra ele? Deu um passo atrás, colocando as cimitarras de forma hesitante entre ele e a pantera. Guenhwyvar não se mexeu, ficou apenas ali a olhar para ele. Pouco depois, o clique de um arco disse a Drizzt o absurdo absoluto da sua linha de raciocínio. dardo disparado tê-lo-ia encontrado, sem dúvida, mas Guenhwyvar saltou subitamente e interceptouo no ar. O veneno drow não fazia nenhum efeito num felino mágico. Três guerreiros drow apareceram de um dos lados da bifurcação, e outros dois do outro lado. Todos os pensamentos de vingança contra Briza desapareceram então de Drizzt, e seguiu Guenhwyvar numa correria pelas serpenteantes passagens. Sem a orientação da alta sacerdotisa e d sua magia, os guerreiros comuns nem sequer tentaram segui-los. Muito tempo depois, Drizzt e Guenhwyvar viraram para outra passagem e pararam de correr, escuta de quaisquer sons de perseguição. — Vem — instruiu Drizzt, e começou a caminhar lentamente, convicto de que a ameaça de Dinin e Briza tinha sido eficazmente repelida. Mais uma vez, Guenhwyvar sentou-se. Drizzt olhou com curiosidade para a pantera. — Disse-te para vires — rugiu. Guenhwyvar fixou nele um olhar que encheu o drow renegado de culpa. Depois, o felino levantouse e avançou lentamente para junto do seu amo.

Drizzt acenou com a cabeça, pensando que Guenhwyvar ia obedecer-lhe. Virou costas e começo de novo a caminhar, mas a pantera começou a andar em círculos em volta dele, impedindo-o de avançar. Guenhwyvar continuou a andar em círculos e lentamente a névoa reveladora começou a aparecer. — Que estás a fazer? — perguntou Drizzt. Guenhwyvar não parou. — Não te dei autorização par ires — voltou a gritar, inutilmente. Guenhwyvar desaparecera. Era uma longa caminhada de regresso à caverna de Drizzt. Aquela última imagem de Guenhwyva seguia-o a cada passo, com os olhos enormes do felino como que cravados nas suas costas. Guenhwyvar censurara-o, percebeu para além de qualquer dúvida. Na sua raiva cega, Drizzt quas matara a própria irmã; e tê-la-ia certamente massacrado, se Guenhwyvar não tivesse saltado sobre ele. Por fim, Drizzt rastejou para o pequeno cubículo na rocha que era o seu quarto. As suas cogitações acompanharam-no. Uma década antes, Drizzt matara Masoj Hun’ett, e ness ocasião jurara que nunca mais voltaria a matar um drow. Para Drizzt, a palavra era o âmago dos seus princípios, desses mesmos princípios que o tinham forçado a desistir de tanta coisa. Drizzt teria certamente traído a sua palavra nesse dia, se não fossem as acções de Guenhwyvar. Seria assim tão melhor, então, do que aqueles elfos negros que deixara para trás? Drizzt vencera claramente o recontro com os irmãos e estava confiante em que poderia continuar a esconder-se de Briza — e de todos os outros inimigos que a Matrona Malice enviasse à sua procura Mas, ali sozinho naquela caverna, percebeu uma coisa que o perturbava muito: que não podia esconder-se de si mesmo.

Drizzt não pensou mais nas suas acções enquanto tratava das rotinas diárias, ao longo dos dias seguintes. Haveria de sobreviver, sabia disso. O caçador não aceitaria outra coisa. Mas o preço cad vez mais alto dessa sobrevivência fazia soar uma nota profunda e dissonante no coração de Drizz Do’Urden. Ainda que os constantes rituais do dia afastassem a dor, Drizzt dava consigo desprotegido ao fi do dia. O encontro com os irmãos perseguia-o, mantinha-se nos seus pensamentos tão vivamente como se voltasse a acontecer tudo a cada noite que passava. Inevitavelmente, acordava aterrado e só, esmagado dosque seusnenhuma sonhos.destreza Compreendia e saber aumentava sua sensação depelos estarmonstros indefeso — com as—armas, por isso mais só espantosa que afosse, poderia derrotá-los. Drizzt não receava que a mãe continuasse a procurar capturá-lo e puni-lo, embora soubesse que ela o faria, sem qualquer dúvida. Este era o seu mundo, muito diferente das avenidas serpenteantes de Menzoberranzan, com usos que os drow que viviam na cidade não conseguiam perceber. Ali no mundo selvagem, Drizzt tinha confiança que conseguiria sobreviver contra qualquer inimigo que a Matrona Malice enviasse atrás dele. Drizzt também conseguiu libertar-se da esmagadora culpa das suas acções contra Briza. Racionalizou que tinham sido os irmãos que o tinham forçado àquele perigoso encontro, e que fora Briza, ao tentar lançar um encantamento, quem iniciara o combate. Mesmo assim, percebeu que haveria de gastar muitos dias a encontrar as respostas às perguntas que as suas acções tinham suscitado relativamente à natureza do seu carácter. Ter-se-ia tornado o selvagem e impiedoso caçador por causa das duras condições que lhe tinham sido impostas? Ou seria este caçador uma expressão do ser que Drizzt sempre fora? Não era perguntas a que conseguisse responder com facilidade, mas, nesta altura, eram as que mais o preocupavam. O que Drizzt não conseguia esquecer acerca do encontro com os irmãos era o som das vozes deles, a melodia das palavras faladas que conseguia compreender e responder. Em todas as suas recordações desses breves momentos com Briza e Dinin, eram as palavras, e não os golpes, que mai se destacavam. Drizzt agarrava-se a elas desesperadamente, ouvindo-as uma e outra vez na sua mente e receando o dia em que se desvanecessem. Então, ainda que se lembrasse delas, já não as ouviria. Ficaria sozinho outra vez. Drizzt tirou a estatueta de ónix do bolso pela primeira vez desde que Guenhwyvar lhe fugira. Colocou-a sobre a pedra à sua frente e olhou para os entalhes na parede para perceber quanto tempo tinha passado desde a última vez que convocara a pantera. Apercebeu-se imediatamente da futilidade dessa atitude. Quando fizera o último entalhe na parede? E para que serviam aqueles entalhes, de qualquer forma? Como poderia ter a certeza da sua contagem, mesmo que fizesse uma marca regularmente após cada um dos seus períodos de sono?

— O tempo é qualquer coisa daquele outro mundo — murmurou, com um tom de lamentação. Levantou o punhal em direcção à parede, num gesto de negação das suas próprias palavras. — Que importa? — perguntou retoricamente, deixando cair o punhal no chão. O tilintar metálico quando o punhal atingiu o chão enviou-lhe um arrepio pela espinha, como se fosse um sino a assinalar a sua rendição. A respiração tornou-se-lhe difícil. O suor formava-lhe gotas nas sobrancelhas negras e sentia as mãos subitamente frias. A toda a sua volta, as paredes da caverna, a pedra que o tinha abrigado durante anos contra os perigos sempre presentes do Subescuro, tudo agora parecia oprimi-lo. Imaginava rostos à espreita nas fendas das paredes e nas formas das rochas. Esses rostos troçava dele e riam-se, menosprezando o seu teimoso orgulho. Virou-se para fugir, mas tropeçou numa pedra e caiu no chão. Esfolou um joelho e fez mais um buraco no seu já esfarrapado piwafwi. Drizzt pouco se importou com o joelho ou com o manto, quando olhou para trás, para a pedra que o fizera cair; porque outro facto o assolou, deixando-o confuso. O caçador tropeçara. Pela primeira vez em mais de uma década, o caçador tropeçara. — Guenhwyvar! — gritou Drizzt freneticamente. — Vem ter comigo! Oh, por favor, minha Guenhwyvar! Não sabia se a pantera responderia. Afinal, depois da última despedida pouco amistosa, Drizz não podia ter a certeza de que Guenhwyvar voltasse alguma vez a caminhar ao seu lado. Caminho pesadamente até à estatueta, com cada centímetro a parecer-lhe uma luta cansativa contra a fraqueza do desespero. Mas a névoa rodopiante estava agora a aparecer. A pantera não abandonaria o seu amo, não manteria rancores para com o drow que tinha sido seu amigo. Drizzt descontraiu-se enquanto a névoa tomava forma, usando essa visão para bloquear as malévolas alucinações das pedras. Depressa Guenhwyvar ficou sentada ao lado dele, lambendo descontraidamente uma grande pata. Drizzt olhou longamente os enormes olhos da pantera e não viu neles nenhuma censura. Era apenas Guenhwyvar, sua amiga e sua salvação. Drizzt flectiu as pernas, saltou para chegar ao felino e agarrou-lhe o pescoço musculoso num forte e desesperado abraço. Guenhwyvar aceitou o abraço sem responder, soltando-se apenas o suficiente para continuar a lamber a pata. Se o felino, na sua inteligência de outro mundo, compreendia a importância daquele abraço, não deu disso quaisquer sinais visíveis. A inquietação marcou os dias seguintes de Drizzt. Manteve-se sempre em movimento, percorrendo o túneis em volta do seu santuário. A Matrona Malice andava atrás dele, lembrava a si mesmo constantemente. Não se podia dar ao luxo de ter quaisquer pontos fracos nas suas defesas. Bem no fundo de si mesmo, para lá de quaisquer racionalizações, Drizzt sabia a verdade acerc dos seus movimentos. Podia dar a si mesmo a desculpa de andar a patrulhar, mas, na verdade, fugira. Fugira das vozes e dos rostos nas paredes da sua pequena caverna. Fugira de Drizzt Do’Urden, estava de regresso ao caçador. Gradualmente, os seus percursos começaram a tornar-se mais longos, muitas vezes deixando-o

afastado da caverna durante vários dias seguidos. Secretamente, ansiava por um encontro com u inimigo poderoso. Precisava de uma recordação tangível da necessidade dessa existência primitiva, de uma batalha contra um qualquer monstro horrendo que o colocasse num modo de sobrevivência puramente instintiva. O que Drizzt encontrou, em vez disso, certo dia, foi uma vibração de um distante bater num parede, o bater ritmado, comedido, de uma picareta de mineiro. Drizzt encostou-se à parede e considerou cuidadosamente o seu movimento seguinte. Sabia aonde o som o levaria: estava nos mesmos túneis por onde vagueara quando fora à procura dos seus rothe tresmalhados, os mesmos túneis onde tinha encontrado o grupo de mineiros svirfnebli, algumas semanas antes. Nessa altura, Drizzt não conseguiria admiti-lo, mas não podia ser simple coincidência ter calhado encontrar-se de novo naquela região. O seu subconsciente tinha-o trazido ali para ouvir o bater das picaretas dos svirfnebli e, mais especialmente, para ouvir o riso e a tagarelice das vozes dos gnomos das profundezas. Agora, Drizzt estava verdadeiramente dividido, encostado pesadamente contra a parede. Sabia qu espiar os mineiros svirfnebli só lhe traria mais tormentos, que ao ouvir aquelas vozes se tornaria ainda mais vulnerável à dor da solidão. Os gnomos das profundezas regressariam decerto à sua cidade, e Drizzt seria mais uma vez deixado ali sozinho e vazio. Mas tinha vindo para ouvir o martelar, e agora este vibrava na pedra, chamando-o com uma força demasiado forte para ignorar. O bom senso lutava contra a ânsia que o impelia para aquele som, mas tinha tomado já uma decisão, mal dera os primeiros passos naquela região. Censurou-se pela sua tolice, abanando a cabeça em negação. Apesar dos seus pensamentos conscientes, as pernas moviamse, levando-o na direcção do som ritmado das picaretas. Os instintos sempre em alerta do caçador debatiam-se contra a aproximação aos mineiros, ao mesmo tempo que Drizzt olhava para baixo, de uma saliência elevada, para o grupo de svirfnebli. Mas não se foi embora. Durante vários dias, tanto quanto conseguia medi-los, manteve-se n vizinhança dos gnomos das profundezas mineiros, apanhando pedaços das conversas deles onde quer que pudesse, observando-os a trabalhar e a divertir-se. Quando chegou o dia inevitável de os mineiros partirem, Drizzt compreendeu a profundidade d sua tolice. Fora fraco ao vir perto dos gnomos das profundezas; negara a brutal verdade da sua existência. Agora, teria de regressar para o seu escuro e vazio buraco, ainda mais só devido às recordações dos últimos dias. Os carrinhos de mão dos gnomos deslizaram até desaparecerem pelos túneis que levavam à cidade dos svirfnebli. Drizzt deu os primeiros passos de regresso ao seu santuário, a caverna de musgo co o riacho e com o terreno de cogumelos tratado pelos micónides. Em todos os séculos de vida que ainda tinha para viver, Drizzt não voltaria a olhar para aquele lugar. Mais tarde, não se conseguiria recordar de que direcção tinha tomado; não fora uma decisão consciente. Algo o chamara — talvez o persistente restolhar dos carrinhos carregados de pedras preciosas — e só quando Drizzt ouviu o bater das grandes portas exteriores de Blingdenstone percebeu o que queria fazer.

— Guenhwyvar! — sussurrou para a estatueta, estremecendo perante o volume perturbante da sua própria voz. Mas os guardas svirfnebli da grande escadaria estavam entretidos nas suas conversas e Drizz estava seguro. A névoa cinzenta rodopiou em redor da estatueta e Guenhwyvar respondeu ao chamamento do seu amo. As orelhas do grande felino baixaram-se e a pantera farejou em redor cautelosamente, tentando tomar conhecimento do local que não lhe era familiar. Drizzt respirou fundo e forçou as palavras a saírem-lhe da boca: — Queria despedir-me de ti, minha amiga — sussurrou. As orelhas de Guenhwyvar empinaram-se, e as pupilas dos olhos amarelos e brilhantes do felino abriram-se e estreitaram-se de novo enquanto estudavam rapidamente Drizzt. — No caso de… — prosseguiu Drizzt. — Não posso mais viver aqui fora, Guenhwyvar. Recei estar a perder tudo o que dá sentido à vida. Receio estar a perder-me de mim próprio — olhou rapidamente por cima do ombro, para a escada que subia para Blingdenstone. — E isso é-me mai precioso do que a vida. Consegues compreender isso, Guenhwyvar? Preciso de mais, de mais do qu a simples sobrevivência. Preciso de uma vida definida por algo mais do que os instintos selvagens da criatura em que me transformei. Recostou-se contra a parede de pedra. As suas palavras soavam tão lógicas e simples… Ma sabia que cada degrau daquela escada até à cidade dos gnomos das profundezas seria um teste à sua coragem e às suas convicções. Lembrava-se do dia em que tinha estado ali, junto às portas enormes de Blingdenstone. Por muito que quisesse, Drizzt não fora capaz de se decidir a seguir os gnomos Fora completamente apanhado por uma paralisia bem real que o imobilizara e retivera quando pensara em correr pelas portas abertas até à cidade dos gnomos. — Raramente me julgaste, minha amiga — disse Drizzt para a pantera. — E de todas as vezes qu o fizeste, fizeste-o com justiça. Consegues perceber-me, Guenhwyvar? Nos próximos momentos poderemos perder-nos um do outro para sempre. Consegues compreender por que tenho de fazer isto? Guenhwyvar moveu-se para se pôr ao lado de Drizzt, e empurrou a sua enorme cabeça de felino contra as costelas dele. — Minha amiga — murmurou Drizzt para o ouvido do felino. — Volta agora para trás, antes que eu perca a coragem. Regressa ao teu lar e mantém a esperança de que nos voltemos a encontrar. Guenhwyvar virou costas obedientemente e avançou para a estatueta. A transição pareceu a Drizzt, desta vez, demasiado rápida; e depois apenas restou a estatueta. Drizzt apanhou-a e olhou para ela. Voltou a avaliar dotrazido que tinha pelacorreu frente. levado pelas mesmas subconscientes queo orisco tinham até ali, paraDepois, a escadaria e começou a subir.necessidades Acima dele, as conversas dos gnomos pararam; aparentemente, os guardas tinham sentido que alguém ou alguma coisa se aproximava. Mas a surpresa dos guardas svirfnebli não diminuiu quando um elfo drow chegou ao cimo da escada e avançou para o patamar diante das portas da sua cidade. Drizzt cruzou os braços sobre o peito, um gesto indefeso que os elfos drow interpretavam como

sinal de paz. Só podia esperar que os svirfnebli estivessem familiarizados com esse gesto, porque só a sua presença já deixara os guardas completamente nervosos. Tropeçavam uns nos outros, correndo pelo pequeno patamar, uns acorrendo a proteger as portas da cidade, outros rodeando Drizzt com um círculo de armas apontadas, e outros ainda descendo alguns degraus da escada para tentar perceber se o elfo negro seria apenas o primeiro de um grupo inteiro de combate drow. Um svirfnebli, líder do contingente de guardas e aparentemente em busca de uma qualquer explicação, gritou uma série de perguntas a Drizzt. Drizzt encolheu os ombros, desolado, e a mei dúzia de gnomos à sua volta saltaram para trás cautelosamente assim que o viram mexer-se. O svirfnebli falou de novo, mais alto agora, e agitou a ponta bem afiada da sua lança de ferro na direcção de Drizzt. Drizzt não conseguia compreender nada, nem responder naquela língu desconhecida. Muito lentamente e bem à vista, deslizou uma mão pelo estômago até à fivela do cinturão. O líde dos gnomos das profundezas agarrou com força a arma enquanto vigiava cada movimento do elfo negro. Um gesto do pulso de Drizzt soltou a fivela do cinturão, e as cimitarras caíram com estrondo no chão de pedra. Os svirfnebli saltaram em uníssono, e depois recompuseram-se rapidamente e avançaram para ele. A uma única palavra do líder do grupo, dois dos guardas baixaram as armas e começaram uma busca minuciosa, e não totalmente delicada, do intruso. Drizzt encolheu-se quando encontraram o punhal que mantivera na bota. Considerou-se estúpido por se ter esquecido daquela arma e por não a ter revelado abertamente desde logo. Um momento mais tarde, quando um dos svirfnebli meteu uma mão no bolso mais fundo do

iwafwi de Drizzt e retirou de lá a estatueta de ónix, Drizzt encolheu-se ainda mais.

Instintivamente, tentou agarrar a estatueta, com uma expressão de súplica no rosto. Recebeu como resposta um empurrão do lado rombo de uma lança nas costas. Os gnomos da profundezas não eram uma raça malévola, mas não tinham nenhum apreço pelos elfos negros. Os svirfnebli tinham sobrevivido durante séculos incontáveis no Subescuro com poucos aliados, mas com muitos inimigos, e os elfos negros estavam sempre entre os primeiros destes últimos. Desde a fundação da velha cidade de Blingdenstone, a maioria dos muitos svirfnebli que tinham sido mortos lá fora tinha sucumbido às armas dos drow. Os gnomos das profundezas ataram as mãos de Drizzt atrás das costas e quatro dos guarda mantiveram as armas encostadas a ele, prontos a enterrá-las ao menor gesto ameaçador de Drizzt. O restantes guardas regressaram da sua busca nas escadas, reportando que não havia mais nenhum elfo negro à vista nas vizinhanças. O líder continuou desconfiado, porém, e colocou guardas em várias posições estratégicas, e depois dirigiu-se aos dois gnomos das profundezas que esperavam às portas da cidade. As portas enormes abriram-se e Drizzt foi conduzido para elas. Só podia esperar, nesse momento de receio e de excitação, que tivesse deixado o caçador lá fora na selva do Subescuro.

Sem pressa de se apresentar diante da sua ultrajada mãe, Dinin vagueou lentamente até à antecâmara da capela da Casa Do’Urden. A Matrona Malice mandara-o chamar, e não poderia negar-se comparecer. Encontrou Vierna e Maya no corredor junto às portas ornamentadas, também hesitantes. — De que se trata? — perguntou Dinin às irmãs no código gestual silencioso. — A Matrona Malice tem estado todo o dia com Briza e com Shi’nayne — explicaram as mãos d Vierna. — A planear mais uma expedição em busca de Drizzt — gesticulou Dinin desconsoladamente, não apreciando a ideia não de que seria, sem dúvida, incluído nesses planos. do irmão. As duas fêmeas deixaram de perceber a expressão de desprezo — Foi mesmo assim tão terrível? — perguntou Maya. — Briza pouco disse sobre isso. — Os dedos que perdeu e o chicote arruinado revelam muito — acrescentou Vierna, com u sorriso amargo a atravessar-lhe o rosto enquanto andava. Vierna, como qualquer outro filho da Casa Do’Urden, pouco amor tinha pela irmã mais velha. Não houve nenhum sorriso de concordância no rosto de Dinin enquanto recordava o seu encontro com Drizzt. — Vocês foram testemunhas das proezas do nosso irmão com as armas enquanto ele vivia connosco — responderam as mãos de Dinin. — A destreza dele aumentou dez vezes durante estes seus anos fora da cidade. — Mas como estava ele? — perguntou Vierna, obviamente intrigada pela capacidade de Drizz para sobreviver. Desde o regresso da patrulha com o relato de que Drizzt estava ainda vivo, Vierna esperara e segredo poder voltar a ver o irmão mais novo. Partilhavam o mesmo pai, segundo se dizia, e Vierna tinha mais simpatia por Drizzt do que seria sensato admitir, dados os sentimentos de Malice por ele. Notando a expressão excitada dela, e lembrando-se da sua própria humilhação às mãos de Drizzt, Dinin lançou um olhar de desaprovação para Vierna. — Não temas, querida irmã — disseram rapidamente as mãos de Dinin. — Se Malice te mandar ti lá para fora desta vez, como suspeito que fará, verás tanto Drizzt quanto desejares, e mais ainda! Dinin bateu com as mãos, para dar ênfase, quando acabou, e passou por entre as duas fêmeas e pelas portas da antecâmara. — O vosso irmão esqueceu-se de como se bate a uma porta — disse a Matrona Malice para Briz e Shi’nayne, que estavam uma de cada lado dela. Rizzen, ajoelhando-se diante do trono, olhou por cima do ombro para ver Dinin. — Não te dei autorização para levantares os olhos! — gritou Malice para o patrono. Bateu com punho fechado no braço do trono e Rizzen rojou-se no chão imediatamente, receoso. As palavras seguintes de Malice carregavam em si a força de um encantamento. — Rasteja! — mandou. E Rizzen rastejou até aos pés dela. Malice estendeu uma mão ao macho, ao

mesmo tempo que olhava directamente para Dinin. O Rapaz Mais Velho percebeu o objectivo d mãe. — Beija! — disse para Rizzen, que imediatamente começou a cobrir de beijos a mão estendida. — Levanta-te! — mandou por fim. Rizzen ainda ia a meio do gesto de se levantar quando a matrona lhe assestou um murro em cheio na cara, fazendo-o cair como um trapo no chão de pedra. — Se te mexeres, mato-te — prometeu Malice. E Rizzen ali ficou, completamente imóvel, se duvidar minimamente da palavra dela. Dinin sabia que aquele espectáculo era mais para ele do que para Rizzen. Malice, sem pestanejar, continuava a olhar para ele. — Desiludiste-me — disse por fim. Dinin aceitou a acusação sem contestar, sem sequer se atrever a respirar até Malice se virar bruscamente para Briza. — E tu também! — gritou Malice. — Seis guerreiros drow treinados ao teu lado, e tu, uma alt sacerdotisa, não foste capaz de me trazer Drizzt! Briza abria e fechava com força os dedos enfraquecidos que Malice lhe tinha magicamente devolvido à mão. — Sete contra um — prosseguiu Malice — e voltam para aqui a contar histórias de horror! — Hei de apanhá-lo, Matrona Mãe — prometeu Maya, enquanto ocupava o seu lugar ao lado d Shi’nayne. Malice olhou para Vierna, mas a segunda filha era mais relutante em fazer tão grande afirmações. — Falas com ousadia — disse Dinin para Maya. Imediatamente a careta de incredulidade d Malice se virou para ele, num aviso claro de que não estava em posição de falar. Mas Briza completou prontamente o pensamento de Dinin: — Demasiada ousadia — rosnou. A careta de Malice assestou nela imediatamente, mas Briza er uma alta sacerdotisa nos favores da Rainha Aranha, e também estava no seu direito de falar. — Nada sabes do nosso jovem irmão — prosseguiu Briza, falando tanto para Maya como para Malice. — É apenas um macho — retorquiu Maya. — Eu teria… — Tu terias sido esquartejada! — gritou-lhe Briza. — Guarda as tuas palavras tontas e as tua promessas ocas, irmã mais nova. Lá fora, nos túneis para lá de Menzoberranzan, Drizzt matar-te-i sem qualquer dificuldade. Malice escutava atentamente. Já ouvira por várias vezes o relato de Briza acerca do encontro, sabia o suficiente acerca da coragem da filha mais velha para perceber que Briza não estava a falar falsamente. Maya recuou do confronto, não querendo criar nenhuma briga com Briza. — Serias capaz de o derrotar — perguntou Malice a Briza —, agora que já percebes melho aquilo que ele se tornou? Em resposta, Briza mexeu a mão ferida de novo. Levaria várias semanas até que recuperasse o us total dos dedos cortados. — Ou tu? — perguntou Malice, desta vez a Dinin, interpretando o gesto de Briza como um resposta conclusiva.

Dinin respondeu com rodeios, sem saber como responder a esta mãe tão inconstante. A verdade poderia deixá-lo em maus lençóis com Malice, mas uma mentira enviá-lo-ia de regresso aos túneis, contra o seu irmão. — Fala-me com franqueza! — rugiu Malice. — Desejas uma nova caçada a Drizzt, para podere recuperar a minha consideração? — Eu… — Dinin gaguejou, e depois baixou os olhos, defensivamente. Malice colocara u encantamento de detecção na resposta dele, e Dinin percebeu-o. — Não… — responde simplesmente. — Mesmo com o custo de perder a tua consideração, Matrona Mãe, não desejo ir d novo atrás de Drizzt. Maya e Vierna — e até mesmo Shi’nayne — ficaram espantadas com a resposta honesta, pensando que nada poderia ser pior do que a ira de uma Matrona Mãe. Briza, contudo, fez um sinal d assentimento, pois também ela já vira mais de Drizzt do que gostaria. Malice não deixou escapar o significado do gesto da filha. — Com o teu perdão, Matrona Mãe — prosseguiu Dinin, tentando desesperadamente cura quaisquer sentimentos negativos que tivesse suscitado —, vi Drizzt em combate. E ele derrotou-me com demasiada facilidade, de uma forma que creio que nenhum outro inimigo seria capaz. Derrotou Briza lealmente, e eu nunca a tinha visto ser derrotada! Não desejo perseguir de novo o meu irmão, pois receio que o resultado só te traria mais ira e mais sarilhos para a Casa Do’Urden. — Tens medo? — perguntou Malice desdenhosamente. Dinin assentiu. — E sei que apenas te poderia desapontar mais uma vez, Matrona Mãe. Nos túneis a que cham sua casa, Drizzt está para além das minhas capacidades. Não posso ter qualquer esperança de o vencer. — Não posso aceitar uma tal cobardia num macho — disse Malice friamente. Dinin, sem alternativa, aceitou o insulto estoicamente. — Mas tu és uma alta sacerdotisa de Lolth! — desafiou Malice para Briza. — Certamente u macho renegado não estará para além dos poderes que a Rainha Aranha te conferiu! — Escuta as palavras de Dinin, minha matrona — respondeu Briza. — Lolth está contigo! — gritou-lhe Shi’nayne. — Mas Drizzt está para além da Rainha Aranha — retorquiu Briza. — Lamento que Dinin esteja falar a verdade… por todos nós. Não conseguiremos apanhar Drizzt lá fora. A selva do Subescuro é o seu domínio, onde nós somos apenas estranhos. — Então, que haveremos de fazer? — resmungou Maya. Malicee recostou-se e aventuraria apoiou o queixo pontiagudoa irnaatrás mão.deIncitara Dinin ambicios sob grand pressão, mesmo assimnoeletrono não se voluntariamente Drizzt. Briza, e poderosa, e com o favor de Lolth do seu lado, mesmo que a Casa Do’Urden e a Matrona Malic não o tivessem, regressara sem o seu apreciado chicote e sem dedos de uma mão. — Jarlaxle e o seu bando de renegados? — propôs Vierna, vendo o dilema da mãe. — Os Brega D’aerthe têm-nos sido valiosos ao longo de muitos anos. — O líder dos mercenários não concordará — respondeu Malice, pois tentara contratar o

mercenário para esse fim anos antes. — Cada membro de Bregan D’aerthe segue as decisões d Jarlaxle, e nem toda a riqueza que possuímos o tentaria. Suspeito que Jarlaxle esteja sob orden estritas da Matrona Baenre. Drizzt é problema nosso e fomos encarregados pela Rainha Aranha d corrigir esse problema. — Se assim mandares, irei — avançou Dinin. — Apenas receio desapontar-te mais uma vez, Matrona Mãe. Não temo as espadas de Drizzt, ou a própria morte ao teu serviço. Dinin lera suficientemente bem a negra disposição da mãe para saber que ela não tinha qualquer intenção de o mandar de novo atrás de Drizzt, e achou sensato mostrar-se tão generoso, quando isso nada lhe custaria. — Agradeço-te, meu filho — Malice olhou para ele com benevolência. Dinin teve de sufocar u sorriso quando percebeu que todas as suas irmãs estavam a olhar fixamente para ele. — Agora, deixa-nos — prosseguiu Malice, em tom condescendente, arruinando o momento de triunfo de Dinin. — Temos assuntos a tratar que não dizem respeito a machos. Dinin fez uma profunda vénia e deslizou para a porta. As irmãs notaram a facilidade com que Malice lhe retirara o jeito orgulhoso do andar. — Recordar-me-ei das tuas palavras — disse Malice secamente, apreciando o jogo de forças e o aplauso silencioso. Dinin fez uma pausa, com a mão pousada no puxador da porta ornamentada. — Um dia, provar-me-ás a tua lealdade, sem dúvida. Todas as cinco altas sacerdotisas se riram nas costas de Dinin enquanto este se apressava a sair da sala. No chão, Rizzen deu consigo num dilema assaz perigoso. Malice mandara Dinin embora, dizendo essencialmente, que os machos não tinham permissão para permanecer na sala. No entanto, Malice ainda não lhe dera permissão para se mexer. Apoiou os pés e as mãos firmemente no chão, pronto a saltar dali num ápice. — Ainda aqui estás? — guinchou Malice para Rizzen. O macho deu um salto em direcção à porta — Pára! — gritou-lhe Malice, de novo com as palavras reforçadas por um encantamento mágico. Rizzen estacou imediatamente, contra o que mandaria o bom senso e incapaz de resistir ao encantamento da Matrona Malice. — Não te dei permissão para te mexeres! — gritou Malice atrás dele. — Mas… — começou Rizzen a protestar. — Agarrem-no! — ordenou Malice às duas filhas mais novas. Vierna e Maya correram par Rizzen e agarraram-no bruscamente. — Ponham-no numa masmorra — instruiu-as Malice. Mantenham-no vivo. Precisaremos dele mais tarde. Vierna e Maya arrastaram o macho a tremer para fora da sala. Rizzen não se atreveu a oferece qualquer resistência. — Tens um plano — disse Shi’nayne para Malice. Enquanto fora SiNafay, matrona mãe da Cas Hun’ett, a nova Do’Urden aprendera a ver propósito em cada acção. Conhecia os deveres de um matrona mãe suficientemente bem e compreendeu que a súbita agressividade para com Rizzen, que na verdade nada tinha feito de errado, era mais uma intenção calculada do que verdadeiro ultraje. — Concordo com a tua avaliação — disse Malice para Briza. — Drizzt está para além de nós.

— Mas, segundo as palavras da própria Matrona Baenre, não podemos falhar — lembrou Briza mãe. — O teu lugar no Conselho Governante deve ser fortalecido a qualquer preço. — Não falharemos — disse Shi’nayne a Briza, continuando a olhar para Malice. Outro olhar fri passou pelo rosto de Malice enquanto Shi’nayne prosseguia: — Em dez anos de batalhas contra Casa Do’Urden — disse — aprendi a conhecer os métodos da Matrona Malice. A vossa mã encontrará maneira de apanhar Drizzt — fez uma pausa, notando o sorriso cada vez mais aberto da mãe. — Ou, se calhar, já encontrou uma maneira… — Veremos — ronronou Malice, com a arrogância a crescer com o voto de confiança da antiga rival. — Veremos. Mais de duzentos comuns da Casa Do’Urden apinhavam-se na grande capela, trocando excitadament rumores sobre os eventos que aí vinham. Os comuns raramente tinham acesso a este local sagrado, a não ser nas altas festividades de Lolth ou nas orações comuns antes de uma batalha. No entanto, não havia entre eles nenhuma expectativa de uma guerra, e também não era nenhuma data festiva no calendário drow . Dinin Do’Urden, também ansioso e excitado, circulava por entre a multidão, acomodando os elfo negros em filas de assentos que rodeavam o altar central. Sendo apenas um macho, Dinin não tomari parte na cerimónia que ocorreria no altar, e a Matrona Malice nada lhe dissera dos seus planos. A partir das instruções que lhe dera, porém, Dinin ficara a saber que os resultados dos acontecimentos deste dia se mostrariam críticos para o futuro da família. Era o líder dos cânticos; mover-se-ia continuamente por toda a assembleia, liderando os comuns nos versículos adequados em louvor da Rainha Aranha. Dinin já antes este papel, masa desta Malice avisara-o de que se um única voz fosse desempenhara chamada incorrectamente, vida vez delea Matrona estaria condenada. E outro facto ainda perturbava o Rapaz Mais Velho da Casa Do’Urden. Era normalmente acompanhado nos seus devere na capela pelo outro macho da casa, o actual companheiro de Malice. Rizzen não fora mais visto desde aquele dia em que a família se reunira na antecâmara. Dinin suspeitava de que o reinado de Rizzen em breve chegaria a um estrepitoso fim. Não era segredo que a Matrona Malice já ante oferecera companheiros a Lolth. Quando todos os comuns já estavam sentados, luzes vermelhas mágicas começaram a brilhar suavemente por toda a sala. A iluminação foi aumentando gradualmente, permitindo que os olhos dos elfos negros reunidos fizessem suavemente a transição do espectro infravermelho para o reino da luz. Vapores enevoados deslizavam por debaixo dos assentos, lambiam o chão e erguiam-se em plumas ondeantes. Dinin liderou a multidão num sussurro grave, que era o chamamento da Matrona Malice. Malice apareceu no alto do tecto abobadado da sala, com os braços abertos e as pregas do vestido negro com as insígnias em forma de aranha a adejar numa brisa encantada. Desceu lentamente, fazendo círculos completos para apreciar a reunião — e para os deixar observar o esplendor que era a sua Matrona Mãe. Quando Malice pousou no altar central, Briza e Shi’nayne apareceram no tecto, flutuando e descida de forma similar. Pousaram e tomaram os seus lugares, Briza junto a uma arca coberta por

um pano ao lado da mesa sacrificial em forma de aranha, e Shi’nayne por trás da Matrona Malice. Malice bateu as palmas e o chamamento parou abruptamente. Oito braseiros que rodeavam o alta ganharam vida com fragor, com as chamas menos dolorosas para os sensíveis olhos dos drow devido à névoa avermelhada. — Entrem, minhas filhas! — gritou Malice. E todas as cabeças se voltaram para as porta principais da capela. Maya e Vierna entraram, com Rizzen, cambaleante e aparentemente drogado, apoiado entre elas e um caixão a flutuar no ar atrás delas. Dinin, entre os outros, pensou que aquela era uma estranha disposição. Podia presumir, calculou, que Rizzen ia ser sacrificado, mas nunca tinha ouvido falar de se trazer um caixão para a cerimónia. As filhas mais novas Do’Urden avançaram até ao altar central e amarraram rapidamente Rizzen mesa sacrificial. Shi’nayne interceptou o caixão flutuante e conduziu-o até uma posição mais para o lado, em frente a Briza. — Chamai a aia! — gritou Malice, e Dinin imediatamente liderou a multidão no cântico adequado Os braseiros aumentaram de força; Malice e as outras altas sacerdotisas incitavam a multidão co gritos ampliados de palavras-chave do cântico de invocação. Um súbito vento apareceu de parte nenhuma, segundo parecia, e sacudiu a névoa numa dança frenética. As chamas dos oito braseiros disparavam em linhas altas por cima do centro da plataforma circular. Depois, os braseiros sopraram uma única vez numa explosão de fogo em uníssono, lançando as últimas chamas ao som da invocação, e por fim ficaram a arder lentamente enquanto as linhas de fogo rolavam juntas numa única bola e se tornavam um singular pilar de chamas. Os comuns estavam pasmados, mas continuaram os seus cânticos enquanto o pilar de fogo rodava, passando por todas as cores do espectro, arrefecendo gradualmente até as chamas desaparecerem. No lugar delas estava agora uma criatura tentacular, mais alta do que um elfo drow e parecida com uma vela meio derretida, com traços faciais alongados. Toda a multidão reconheceu aquele ente, embora poucos comuns tivessem realmente visto um antes disto. A não ser talvez em ilustrações dos livros sacerdotais. Todos os presentes perceberam então a importância desta reunião, nesse momento, porque nenhum drow poderia deixar de perceber o significado da presença de uma yochlol, de uma aia pessoal de Lolth. — Saudações, Aia — disse Malice bem alto. — Abençoada é Daermon N’a’shezbaernon pela tu presença. A yochlol observou a reunião durante um bom tempo, surpreendida por a Casa Do’Urden ter feit uma tal convocação. A Matrona Malice não estava nos favores de Lolth. Apenas as altas sacerdotisas sentiram a pergunta telepática:

— Porque te atreveste a convocar-me? — Para emendar os nossos erros! — gritou Malice bem alto, levando toda a reunião a u momento de tensão. — Para recuperar o favor da nossa Senhora, o favor que é o único objectivo d nossa existência! Malice olhou intensamente para Dinin, e este começou o cântico adequado, o cântico mais elevado de louvor à Rainha Aranha.

— Estou agradada com a tua exibição, Matrona Malice — chegaram os pensamentos da yochlol, desta vez dirigidos apenas a Malice. — Mas sabes bem que esta reunião nada faz para te ajudar

nas tuas penas! — Isto é apenas o começo — respondeu Malice mentalmente, confiando em que a aia poderia lerlhe todos os pensamentos. A matrona reconfortou-se com esse conhecimento, pois tinha fé em que os seus desejos de reconquistar o favor de Lolth eram sinceros. — O meu filho mais novo desagradou

à Rainha Aranha. Tem de pagar pelos seus actos. As outras altas sacerdotisas, excluídas da conversa telepática, uniram-se ao cântico a Lolth. — Drizzt Do’Urden vive — relembrou a yochlol a Malice. — E não está sob tua custódia. — Isso em breve será corrigido — prometeu Malice. — Que queres de mim? — Zin-carla! — gritou Malice bem alto. A yochlol ondulou para trás, momentaneamente espantada pela ousadia do pedido. Malice manteve-se firme, determinada a que o seu plano não falhasse. À sua volta, as outras sacerdotisas sustiveram a respiração, compreendendo completamente que o momento de triunfo ou de desastre recairia sobre todos eles. — É a nossa mais alta dádiva — responderam os pensamentos da aia —,raramente oferecida

sequer a matronas no favor da Rainha Aranha. E tu, que não agradaste a Lolth, atreves-te a pedi Zin-carla? — Está certo e é adequado — respondeu Malice. Depois, em voz alta, precisando do apoio d família, gritou: — Que o meu filho mais novo saiba a loucura dos seus modos e o poder dos inimigos que fez. Que o meu filho veja a horrível glória de Lolth revelada, para que caia de joelhos e implore o perdão! — Malice mudou depois de novo para a comunicação telepática: — Só então o espírito-

espectro lhe enterrará a espada no coração!

Os olhos da yochlol ficaram inexpressivos enquanto a criatura se voltava para si mesma, procurando orientação no seu plano de existência. Muitos minutos — minutos agonizantes para a Matrona Malice e para todos os que ali estavam reunidos em silêncio — passaram antes que o pensamentos da yochlol regressassem. — Tens o cadáver? Malice fez sinal a Maya e Vierna, e estas correram para o caixão e retiraram a tampa de pedra. Dinin percebeu então que o caixão não tinha sido trazido para Rizzen, mas estava já ocupado. U cadáver animado rastejou para fora do caixão e cambaleou até ao lado de Malice. Estava fortemente decomposto e muitos dos seus traços já tinham sido completamente corroídos pela decadência, mas Dinin e muitos dos mestre outrosdenaarmas. grande capela reconheceram-no imediatamente: era Zaknafei Do’Urden, o lendário — Zin-carla — perguntou a yochlol — para que o mestre de armas que ofereceste à Rainha

ranha possa corrigir os erros do teu filho mais novo? — É apropriado — respondeu Malice. Sentiu que a yochlol estava agradada, tal como esperara. Zaknafein, o tutor de Drizzt, ajudara a inspirar as atitudes blasfemas que tinham levado à ruína do se filho. Lolth, a rainha do caos, apreciava ironias, e ter esse mesmo Zaknafein a servir de executo

agradar-lhe-ia inevitavelmente. — Zin-carla exige grande sacrifício — chegou a exigência da yochlol. A criatura olhou para a mesa em forma de aranha, onde Rizzen estava deitado, sem consciência do que o rodeava. A yochlol pareceu franzir o sobrolho, se era que tais criaturas podiam fazer isso, perante a visão de tão desgraçado sacrifício. Depois, voltou-se de novo para a Matrona Malice e leu-lhe os pensamentos — Continua, então — incitou, subitamente muito interessada. Malice ergueu os braços, iniciando mais um cântico a Lolth. Fez sinal a Shi’nayne, que avanço para a arca ao lado de Briza e de lá retirou o punhal sacrificial, a mais preciosa posse da Cas Do’Urden. Briza estremeceu quando viu a sua mais recente «irmã» a manejar aquele objecto, cuj punho era o corpo de uma aranha com oito pernas em forma de lâminas a apontar para baixo. Durante séculos, competira a Briza enterrar o punhal cerimonial nos corações das oferendas à Rainha Aranha. Shi’nayne fez um sorriso de troça para a filha mais velha enquanto se afastava, sentindo a ira de Briza. Reuniu-se a Malice junto à mesa, ao lado de Rizzen, e colocou o punhal por cima do coraçã do patrono condenado. Malice agarrou-lhe as mãos, para a fazer parar. — Desta vez, terei de ser eu a fazê-lo — explicou, para espanto de Shi’nayne, que por cima do ombro viu Briza a devolver-lhe o sorriso trocista dez vezes ampliado. Malice esperou até que o cântico terminasse e a assembleia ficasse em completo silêncio, para depois começar ela própria o cântico adequado. — Takken bres duis bres — começou, com ambas as mãos empunhando o instrumento mortal. Um momento mais tarde, o cântico de Malice aproximava-se do fim e o punhal foi erguido be alto. Toda a casa ficou em tensão, esperando o momento de êxtase, a selvática oferenda à malévola Rainha Aranha. O punhal desceu, mas Malice virou-o bruscamente para o lado e cravou-o no coração de Shi’nayne, Matrona SiNafay Hun’ett, a sua mais odiada rival. — Não! — arquejou SiNafay. Mas estava feito. Oito pernas em forma de lâmina tinham-lhe trespassado o coração. SiNafa tentava falar, para mandar um feitiço de cura a si mesma, ou uma maldição a Malice, mas apenas sangue lhe saía da boca. Arquejando nos últimos sopros de vida, caiu por cima de Rizzen. Toda a casa irrompeu em gritos de choque e alegria enquanto Malice retirava o punhal de SiNafa Hun’ett, juntamente com o seu coração. — Ardiloso! — gritou Briza por cima do tumulto, pois nem ela soubera dos planos da Matron Malice. Mais uma vez, era ela a filha mais velha da Casa Do’Urden, recuperando a posição de honr por que tanto ansiava. — Ardiloso! — ecoou a yochlol no pensamento de Malice. — Fica sabendo que ficámos

agradadas! Por detrás daquela cena sangrenta, o cadáver animado caiu como um trapo no chão. Malice olho para a aia e compreendeu. — Ponham Zaknafein na mesa, depressa! — instruiu às filhas mais novas. Estas trataram logo de o fazer, afastando Rizzen e SiNafay e colocando o corpo de Zaknafein n

lugar. Também Briza entrou em acção, alinhando cuidadosamente os muitos potes de unguentos que tinham sido exaustivamente preparados para este evento. A reputação da Matrona Malice como a mais hábil fazedora de poções da cidade seria decerto posta à prova nesta tentativa. Malice olhou para a yochlol. — Zin-carla? — perguntou em voz alta. — Não recuperaste o favor de Lolth! — chegou-lhe a resposta telepática, tão poderosa que Malice caiu de joelhos. Agarrou a cabeça, pensando que esta iria explodir com a pressão crescente. Gradualmente, a pressão aliviou. — Mas agradaste à Rainha Aranha neste dia, Malice Do’Urde — explicou a yochlol. — E fica acordado que os teus planos para o teu sacrílego filho são

adequados. É-te concedido zin-carla, mas fica sabendo que é a tua última oportunidade, Matrona alice Do’Urden! Os teus maiores receios não chegam nem de longe à verdade das consequências se falhares! A yochlol desapareceu numa explosão de uma bola de fogo que fez estremecer a capela da Casa Do’Urden. Os que ali estavam reunidos entraram num frenesim ainda maior perante o poder cru d malévola divindade, e Dinin liderou-os de novo num cântico de louvor a Lolth. — Dez semanas! — foi o grito final da aia, numa voz tão poderosa que os drow comuns tapara os ouvidos e se atiraram para o chão, encolhidos. E assim, durante dez semanas, durante setenta ciclos de Narbondel, o relógio diário de Menzoberranzan, toda a Casa Do’Urden se reuniu na grande capela, com Dinin e Rizzen a liderar o comuns nos cânticos de louvor à Rainha Aranha, enquanto Malice e as filhas trabalhavam sobre o corpo de Zaknafein com poções mágicas e combinações de encantamentos poderosos. A animação de um cadáver era um encantamento simples para uma sacerdotisa, mas o zin-carla ia muito para além desse feito. O espírito-espectro, como seria chamado o resultado morto-vivo da operação, era um zombie imbuído das capacidades da sua anterior vida e controlado pela matrona mãe designada por Lolth. Era o mais precioso dos dons de Lolth, raramente pedido e ainda mai raramente concedido, pois o zin-carla — o regresso do espírito ao corpo — era de facto uma prática arriscada. Apenas através da pura força de vontade das sacerdotisas encantatórias as desejadas capacidades do ser morto-vivo eram mantidas separadas das indesejadas memórias e emoções. O limiar da consciência e do controlo era uma linha ténue por onde caminhar, mesmo tendo em conta a disciplina mental exigida a uma alta sacerdotisa. Além disso, Lolth apenas concedia zin-carla para a execução de determinadas tarefas específicas, e fugir a essa linha de disciplina resultaria inevitavelmente em falhanço. E Lolth não era misericordiosa para quem falhava.

Blingdenstone era diferente de tudo o que Drizzt já vira. Quando os guardas svirfnebli o empurrara pelas imensas portas de pedra, esperava uma visão não muito diferente da de Menzoberranzan, embora a uma escala menor. As suas expectativas não poderiam estar mais longe da verdade. Enquanto Menzoberranzan se espraiava numa única e enorme caverna, Blingdenstone era compost por uma série de câmaras interligadas por túneis baixos. A maior caverna do complexo, logo a seguir às portas de ferro, era a primeira secção onde Drizzt entrara. A guarda da cidade estava ali alojada, e a câmara fora concebida e moldada apenas para a defesa. Dezenas de patamares e o dobro desse número de escadas subiam e desciam, de forma que embora um atacante pudesse estar a apenas três metros de um defensor, poderia ter de subir vários níveis e descer outros tantos para chegar suficientemente perto para o atacar. Paredes baixas de pedras empilhadas e perfeitamente encaixadas definiam as ruas e corriam em volta de paredes mais altas que poderiam manter um exército invasor empatado durante um tempo dolorosamente longo nas secções expostas da câmara. Grupos numerosos de svirfnebli corriam entre os seus postos para confirmar o rumor de que u elfo drow tinha sido trazido para dentro de portas. Espreitavam Drizzt de cada cornija, e este não podia ter a certeza se as expressões deles mostravam curiosidade ou ultraje. Fosse qual fosse o caso, os gnomos das profundezas estavam certamente preparados contra tudo o que ele pudesse tentar; cada um deles trazia dardos ou grandes arcos, armados e prontos. Os svirfnebli levaram Drizzt pela câmara, subindo tantas escadas quantas depois desciam, sempre dentro das ruas delineadas e sempre ao alcance de vários outros guardas gnomos nas proximidades. O caminho fazia uma curva e descia, e depois subia rapidamente e voltava a cruzar-se várias vezes consigo mesmo, e a única forma de Drizzt manter a orientação era observando o tecto, que era visível mesmo dos níveis mais baixos da câmara. O drow sorriu para dentro, mas não se atreveu a sorrir verdadeiramente perante o pensamento de que mesmo que não houvesse ali guardas gnomos, um exército invasor passaria provavelmente muitas horas a tentar encontrar o caminho pelo meio daquela única câmara. Ao fim de um longo e estreito corredor, onde os gnomos das profundezas tinham de avançar em fila única e Drizzt tinha de se encolher a cada passo, o grupo entrou na cidade. Mais larga, mas não tão longa como a câmara anterior, também esta era disposta em muitos níveis, embora menos. Dezenas de entradas para cavernas enchiam as paredes de todos os lados, e havia fogos a arder e vários pontos, o que era uma visão rara no Subescuro, porque o combustível não era fácil de encontrar. Blingdenstone era iluminada e quente, pelos padrões do Subescuro, mas nada desconfortável. Drizzt sentiu-se à vontade, apesar da óbvia situação difícil em que estava, enquanto observava os svirfnebli ocupados com as suas rotinas diárias a toda a volta. Olhares curiosos recaíam sobre ele, mas não se demoravam; porque os gnomos das profundezas de Blingdenstone eram uma gente industriosa que não tinha tempo para ficar ociosamente a olhar. Mais uma vez, Drizzt foi levado por caminhos claramente definidos. Estes, na cidade, não eram tão

serpenteantes e difíceis como os da caverna de entrada. Aqui, os caminhos seguiam suavemente e a direito, e todos, aparentemente, davam para um grande edifício de pedra central. O líder do grupo que escoltava Drizzt apressou-se a avançar para falar com dois guardas que ostentavam picaretas, nessa estrutura central. Um dos guardas correu para dentro, enquanto o outro mantinha a porta de metal aberta para deixar entrar o prisioneiro e a sua escolta. Movendo-se co urgência pela primeira vez desde que tinham entrado na cidade, os svirfnebli empurraram Drizzt por uma série de corredores com esquinas apertadas que terminavam numa câmara circular com não mais de dois metros e meio de diâmetro e com um tecto desconfortavelmente baixo. A sala estava vazia, a não ser por uma única cadeira de pedra. Assim que foi colocado nela, Drizzt percebeu a sua finalidade. Havia algemas de aço embutidas na cadeira, e foi acorrentado firmemente em cada extremidade do corpo. Os svirfnebli não eram demasiado delicados, mas quando Drizzt fez um esga por causa da corrente que lhe rodeava o peito ter subido e o ter apertado, um dos gnomos das profundezas rapidamente a soltou e voltou a colocar, com firmeza, mas com suavidade. Deixaram Drizzt sozinho na sala escura e vazia. A porta de pedra fechou-se com um estrondo final e Drizzt não conseguia ouvir nem um som vindo de fora. As horas passaram. Drizzt flectiu os músculos, procurando alguma folga nas correntes bem apertadas. Uma mão esticou-se e remexeu-se, apenas para provocar uma dor de aço a cortar no pulso. Estava agora a reverter para o caçador, de novo, agindo para sobreviver e desejando apenas escapar. — Não! — gritou. Contraiu todos os músculos e obrigou-os a regressar ao seu controlo racional. O caçador tinha conseguido conquistar assim tanto espaço? Drizzt viera até ali de sua vontade e, até aqui, o encontro correra bem melhor do que esperara. Não era o momento para atitudes desesperadas, mas seria o caçador suficientemente forte para se impor até mesmo às decisões racionais de Drizzt? Não teve tempo para responder a estas perguntas, porque um segundo mais tarde a porta de pedra abriu-se com estrondo e um grupo de sete svirfnebli anciãos — a avaliar pelo número extraordinário de rugas que lhes riscavam os rostos — entrou e dispôs-se em volta da cadeira de pedra. Drizz percebeu a aparente importância deste grupo, pois enquanto os guardas usavam vestes coçadas de couro com fios de mithral, estes gnomos das profundezas usavam vestes de materiais finos. Afadigavam-se à sua volta, inspeccionando-o atentamente e tagarelando na sua língua indecifrável. Um svirfnebli pegou no emblema da casa de Drizzt, que tinha sido tirado da bolsa de trazer ao pescoço, e disse: — Menzoberranzan? Drizzt desejoso abanou a de cabeça em concordância, tantodequanto o colarcom de ferro quecaptores. tinha noOs pescoço permitia, entabular qualquer espécie comunicação os seus gnomoslho das profundezas, no entanto, tinham outras intenções. Voltaram a dedicar-se às suas conversas privadas — e agora muito mais excitadas. Assim continuaram por vários minutos, e Drizzt conseguia perceber pelas inflexões das voze deles que um par de svirfnebli estava menos do que entusiasmado por ter como prisioneiro um elfo negro da cidade dos seus mais próximos e mais odiados inimigos. Pelo tom irado da discussão,

Drizzt quase esperou que um deles se voltasse a qualquer momento e lhe cortasse a garganta. Não foi o que aconteceu, claro. Os gnomos das profundezas não eram criaturas cruéis ne intempestivas. Um dos do grupo virou de facto costas aos outros e avançou para olhar para Drizz directamente. Perguntou-lhe, indesmentivelmente na língua dos drow, embora com hesitações: — Pelas pedras, elfo negro! Porque vieste aqui? Drizzt não sabia como responder a esta simples pergunta. Como poderia começar sequer explicar os seus anos de solidão no Subescuro? Ou a decisão de abandonar o seu malévolo povo e viver em concordância com os seus princípios? — Amigo — respondeu simplesmente, e depois remexeu-se desconfortavelmente, achando a resposta absurda e desadequada. No entanto, o svirfnebli, aparentemente, não pensou assim. Coçou o queixo sem pêlos e considero esta resposta profundamente. — Tu… Tu vieste até nós de Menzoberranzan? — perguntou, com o nariz de águia a franzir-se a cada palavra. — Assim é — respondeu Drizzt, ganhando confiança. O gnomo das profundezas inclinou a cabeça, esperando que Drizzt desenvolvesse a ideia. — Deixei Menzoberranzan há muitos anos — tentou Drizzt explicar. Os seus olhos fixaram-se n vazio enquanto recordava a vida que tinha abandonado. — Nunca foi o meu lar. — Ah, estás a mentir, elfo negro! — guinchou o svirfnebli, exibindo o emblema da Casa Do’Urde e não percebendo as conotações privadas das palavras de Drizzt. — Vivi muitos anos na cidade dos drow — respondeu rapidamente. — Sou Drizzt Do’Urden, e tempos Segundo Rapaz da Casa Do’Urden — olhou para o emblema que o svirfnebli tinha na mão estampado com a insígnia da sua família, e explicou: — Daermon N’a’shezbaernon. O gnomo das profundezas voltou-se para os seus companheiros, que começaram todos a falar ao mesmo tempo. Um deles gesticulou de modo excitado, aparentemente reconhecendo o antigo nome da casa do drow, o que surpreendeu Drizzt. O gnomo das profundezas que tinha estado a interrogá-lo tamborilou com os dedos sobre os lábios, fazendo uns pequenos sons irritantes enquanto considerava a direcção a tomar no interrogatório. — A Casa Do’Urden continua a existir — notou casualmente, observando a reacção de Drizzt Como este não respondeu imediatamente, o gnomo das profundezas atirou-lhe subitamente, com to acusador: — Não és nenhum vadio! Como podia o svirfnebli saber isso? — interrogou-se Drizzt. — Sou um renegado por opção… — começou a explicar. — Ah, elfo negro — respondeu o gnomo das profundezas, de novo calmamente. — Estás aqui por opção, nisso pelo menos posso acreditar. Mas um renegado? Pelas pedras, elfo negro! — o rosto do gnomo contorceu-se súbita e ameaçadoramente. — És um espião! Depois, subitamente, o gnomo das profundezas acalmou-se de novo e descontraiu-se, assumindo uma pose mais confortável. Drizzt observou-o cuidadosamente. Seria este gnomo das profundezas adepto destas abrupta mudanças de atitude, destinadas a apanhar um prisioneiro em falso? Ou seria esta imprevisibilidade

uma característica desta raça? Drizzt debateu-se com este problema por um momento, tentando recordar o seu único anterior encontro com gnomos das profundezas. Mas nessa altura o seu interrogador enfiou a mão num bolso muito fundo das suas vestes e mostrou uma estatueta familiar. — Diz-me, e fala-me a verdade desta vez, elfo negro, e poupa-te a muitas tormentas. O que é isto? — perguntou calmamente. Drizzt sentiu os músculos retesarem-se de novo. O caçador queria convocar Guenhwyvar, traze até ali a pantera, para que esta desfizesse aqueles velhos svirfnebli enrugados. Um deles podia ter as chaves das correntes que o aprisionavam — e então estaria livre… Sacudiu estes pensamentos da cabeça e afastou o caçador dos seus pensamentos. Sabia como a su situação era desesperada e soubera-o desde o momentos em que decidira ir a Blingdenstone. Se o svirfnebli realmente acreditassem que era um espião, decerto o executariam. Ainda que não estivessem seguros das suas intenções, atrever-se-iam a mantê-lo vivo? — Foi uma tolice vir aqui — murmurou Drizzt, percebendo o dilema em que se colocara e em que colocara os gnomos das profundezas. O caçador tentou voltar a controlar os seus pensamentos. Bastaria uma palavra para que a pantera aparecesse. — Não! — gritou Drizzt pela segunda vez nesse dia, afastando esse lado mais negro de si mesmo. Os gnomos das profundezas saltaram para trás, receando que o elfo negro estivesse a lançar u feitiço. Um dardo cravou-se no peito de Drizzt, libertando uma pequena nuvem de gás ao embater. Drizzt desfaleceu à medida que o gás lhe penetrava as narinas. Ouviu os svirfnebli agitados à su volta, discutindo o seu destino na sua língua incompreensível. Viu a forma de um deles, apenas uma sombra, a aproximar-se e a agarrar-lhe os dedos, analisando-lhe as mãos em busca de algum componente mágico. Quando os pensamentos e a visão de Drizzt finalmente clarearam, tudo estava como antes. estatueta de ónix estava diante dos seus olhos. — O que é isto? — perguntou o mesmo gnomo das profundezas mais uma vez, mas agora com mais insistência. — Um companheiro — murmurou Drizzt. — O meu único amigo. Drizzt pensou intensamente sobre as suas próximas acções por um longo momento. Não poderi realmente recriminar os svirfnebli se o matassem, e Guenhwyvar deveria ser mais do que uma estatueta a adornar a lareira de um qualquer gnomo das profundezas desconhecedor do que ali estava. — Chama-se Guenhwyvar — explicou ao gnomo das profundezas. — Convoca-se uma pantera ela vem, e é um aliado e um amigo. Mantém-na em segurança, pois é preciosa e muito poderosa. O svirfnebli olhou para a estatueta e depois de novo para Drizzt, com curiosidade e cautela. Entregou a estatueta a um dos seus companheiros e mandou-o embora com ela, sem confiar no drow. Se este tivesse falado verdade, e o gnomo das profundezas não duvidava de que o fizera, Drizz acabara de lhe revelar o segredo de um artigo mágico muito valioso. O que era ainda mais espantoso era que, se Drizzt tinha falado a verdade, podia ter acabado de desistir da sua única hipótese de escapar. Este svirfnebli tinha vivido já quase dois séculos e conhecia tão bem os usos dos drow como todos os da sua raça. Quando um elfo negro agia de forma inesperada, como este acabara de fazer, isso deixava os svirfnebli profundamente perturbados. Os elfos negros eram cruéis e

malévolos por natureza e por reputação merecida, e quando um drow se enquadrava nesse padrão podia ser tratado com eficiência e sem remorsos. Mas o que poderiam os gnomos das profundezas fazer com um drow que mostrava pelo menos algum rasto de moral? Os svirfnebli regressaram às suas conversas privadas, ignorando Drizzt por completo. Depois saíram, à excepção do único que conseguia falar a língua dos elfos. — O que vão fazer? — atreveu-se Drizzt a perguntar. — O julgamento compete apenas ao rei — respondeu o gnomo das profundezas sobriamente. — Ele decidirá da tua sorte durante vários dias, provavelmente, baseando-se nas observações do seu conselho consultivo, do grupo que acabaste de conhecer — o gnomo das profundezas fez uma vénia profunda, e depois olhou bem nos olhos de Drizzt enquanto se levantava de novo e dizia secamente: — Suspeito, elfo negro, que serás executado. Drizzt assentiu com a cabeça, resignado à lógica que pediria a sua execução. — Mas eu acredito que és diferente, elfo negro — prosseguiu o gnomo das profundezas. — Suspeito, também, de que recomendarei leniência, ou pelo menos misericórdia na execução. Com um rápido encolher dos ombros fortes, o svirfnebli virou costas e dirigiu-se para a porta. O tom das palavras do gnomo das profundezas soou familiar a Drizzt. Outro svirfnebli falara-lh de forma semelhante, com palavras muito parecidas, muitos anos antes. — Espera — chamou Drizzt. O svirfnebli parou e virou-se, e Drizzt debateu-se com os seus pensamentos, tentando lembrar-se do nome do gnomo das profundezas que salvara nessa ocasião. — Um gnomo das profundezas… — disse Drizzt. — Da tua cidade, creio. Sim… Teria de ser… — Conheces alguém do meu povo, elfo negro? — perguntou o svirfnebli, regressando para junto da cadeira de pedra. — Diz-me o nome dele. — Não sei — respondeu Drizzt. — Eu era membro de um grupo de patrulha, há muitos anos, talvez há uma década. Combatemos contra um grupo de svirfnebli que se tinha aproximado da nossa região — estremeceu ao ver a expressão carrancuda do gnomo das profundezas, mas prosseguiu, sabendo que o único sobrevivente svirfnebli dessa luta poderia ser a sua única esperança. — Só um gnomo das profundezas sobreviveu, creio eu, e regressou a Blingdenstone. — E como se chamava esse sobrevivente? — exigiu saber o gnomo das profundezas irritadamente, com os braços cruzados firmemente sobre o peito e com a bota pesada a bater no chão de pedra. — Não me lembro — admitiu Drizzt. — Porque me contas isso? — resmungou o gnomo. — Pensei que fosses diferente dos… — Perdeu ambas as mãos na batalha — prosseguiu Drizzt, teimosamente. — Por favor… Deve saber quem é. — Belwar? — respondeu o svirfnebli imediatamente. O nome reacendeu ainda mais recordaçõe em Drizzt. — Belwar Dissengulp — quase gritou Drizzt. — Então está vivo! É capaz de se lembrar… — Nunca esquecerá esse dia malfadado, elfo negro! — declarou o gnomo das profundezas entredentes, com um tom claramente irritado na voz. — Ninguém em Blingdenstone esquecerá jamai esse dia!

— Chama-o! Chama Belwar Dissengulp! — pediu Drizzt. O gnomo das profundezas saiu da sala, abanando a cabeça perante as contínuas surpresas do elfo negro. A porta de pedra bateu com força, deixando Drizzt sozinho para contemplar a sua própria mortalidade e para pôr de parte as esperanças que não se atrevia a manter. — Pensaste que te deixaria escapar? — dizia Malice a Rizzen quando Dinin entrou na antecâmara d capela. — Foi apenas uma artimanha para manter afastadas as suspeitas de SiNafay. — Obrigado, Matrona Mãe — respondeu Rizzen com sincero alívio. Fazendo vénias a cada passo recuou do trono de Malice. Malice olhou em volta, para a família reunida. — As nossas semanas de esforços terminaram — proclamou. — Zin-carla está terminado! Dinin esfregou as mãos com ansiedade. Apenas as fêmeas da família tinham visto o resultado do seu trabalho. A um sinal de Malice, Vierna dirigiu-se a uma cortina de um dos lados da sala e puxoua. Ali estava Zaknafein, o mestre de armas, já não como um cadáver decomposto, mas mostrando uma vitalidade que apenas possuíra em vida. Dinin balançou-se nos calcanhares enquanto o mestre de armas avançava para ficar frente à Matrona Malice. — Tão elegante como sempre foste, meu caro Zaknafein! — ronronou Malice ao espírito-espectro A coisa morta-viva não deu qualquer resposta. — E mais obediente — acrescentou Briza, suscitando gargalhadinhas de todas as fêmeas. — Isto… Ele… Ele é que irá apanhar Drizzt? — atreveu-se Dinin a perguntar, embor compreendesse bem queestavam não estava em posição de falar.pelo espectáculo de Zaknafein para castigar o Malice e as restantes demasiado absorvidas deslize do Rapaz Mais Velho. — Zaknafein exercerá o castigo que o teu irmão tão profundamente merece — prometeu Malice, com os olhos a brilhar perante tal ideia. — Mas esperem — disse depois, friamente, desviando o olhar do espírito-espectro para Rizzen. — Ele está demasiado bonito para inspirar medo no me imprudente filho. Os restantes trocaram olhares de interrogação, indagando-se se Malice estava a tentar aplaca ainda mais Rizzen pelo tormento por que o fizera passar. — Vem, meu marido — disse Malice para Rizzen. — Pega na tua espada e marca o rosto do te rival morto. Saber-te-á bem, e inspirará o terror em Drizzt quando olhar para o seu antigo mentor! Rizzen moveu-se hesitantemente, ao princípio, e depois ganhou confiança à medida que se aproximava do espírito-espectro. Zaknafein manteve-se perfeitamente imóvel, sem respirar ou pestanejar, aparentemente inconsciente dos acontecimentos à sua volta. Rizzen levou a mão à espada, olhando para Malice uma vez mais, para obter a confirmação. Malice fez sinal que sim. Com um esgar, Rizzen puxou a espada da bainha e lançou-a para a car de Zaknafein. Mas a espada nem chegou perto.

Mais depressa do que algum deles conseguisse perceber, o espírito-espectro explodiu em acção. Duas espadas saíram e golpearam, rodopiando e atacando com perfeita precisão. A espada saltou das mãos de Rizzen e, antes que o condenado patrono da Casa Do’Urden pudesse proferir uma únic palavra, uma das espadas de Zaknafein atravessou-lhe a garganta, enquanto a outra lhe mergulhava no coração. Rizzen estava morto antes de cair no chão, mas o espírito-espectro não terminara ainda com ele. As armas de Zaknafein continuaram o ataque, retalhando Rizzen uma dúzia de vezes até Malice satisfeita com a exibição, o mandar parar. — Aquele maçava-me — explicou Malice perante os olhares incrédulos dos filhos. — Já tenho outro patrono seleccionado de entre os comuns. Não fora, porém, a morte de Rizzen a inspirar as expressões de espanto nos rostos dos filhos de Malice; não se ralavam nada com os parceiros que a mãe escolhia para patronos da casa, que era sempre posições temporárias. Fora a rapidez e destreza do espírito-espectro que lhes tirara o fôlego. — Tão bom como em vida — notou Dinin. — Melhor ainda! — respondeu Malice. — Zaknafein é tudo o que foi como guerreiro, e agora destreza em combate é a única coisa que domina todos os seus pensamentos. Não verá nada que o distraia do seu rumo escolhido. Olhem bem para ele, meus filhos. Zin-carla, a dádiva de Lolth virou-se para Dinin e sorriu malevolamente. — Não me aproximarei dessa coisa — murmurou Dinin, pensando que a sua macabra mãe pudesse desejar uma segunda exibição. Malice riu-se dele. — Não tenhas medo, Rapaz Mais Velho. Não tenho motivos para te fazer mal. Dinin não ficou nada aliviado por estas palavras. Malice não precisava de motivos; o corpo retalhado de Rizzen mostrava isso demasiado claramente. — Conduzirás o espírito-espectro para o exterior — disse Malice. — Para o exterior? — perguntou Dinin, hesitante. — Sim, para a região onde encontraste o teu irmão — explicou Malice. — Devo ficar ao lado dessa coisa? — tartamudeou Dinin. — Leva-o para lá e deixa-o — respondeu Malice. — Zaknafein conhece a sua presa. Foi imbuíd de encantamentos para o ajudarem na sua caça. Ao lado de Malice, Briza parecia preocupada. — Que foi? — perguntou-lhe Malice, vendo-a franzir o sobrolho. — Não duvido dos poderes do espírito-espectro, nem da magia de que o impregnaste — começou Briza, hesitante, sabendo que Malice não aceitaria discordâncias relativamente a esta matéria tão importante. — Ainda receias o teu irmão mais novo? — perguntou-lhe Malice. Briza não soube como responder. — Refreia os teus medos, por muito válidos que penses que sejam — disse Malice calmamente. — Todos vós. Zaknafein é uma dádiva da nossa rainha. Nada no Subescuro o poderá parar! — Olho depois para o monstro morto-vivo. — Não me falharás, pois não, meu mestre de armas?

Zaknafein manteve-se impassível, com as espadas ensanguentadas de novo embainhadas, as mãos ao lado do corpo e os olhos fixos. Parecia uma estátua, sem sequer respirar. Não vivo. Mas quem quer que pensasse que Zaknafein não estava animado só precisava de olhar para os seu pés, para o monte disforme e mutilado de carne que fora antes o patrono da Casa Do’Urden.

Amizade: esta palavra acaba por significar muitas coisas diferentes entre as várias raças e culturas dos Reinos do Subescuro e da superfície. Em Menzoberranzan, a amizade nasce geralmente do proveito mútuo. Enquanto ambas as partes beneficiarem da união, esta mantém-se segura. Mas a lealdade não é um atributo da vida drow, e assim que um amigo acredita que ganhará mais sem o outro, a união — e muito provavelmente a vida do outro — chegará a um rápido fim. Tive poucos amigos na minha vida, e se viver mil anos suspeito que isso continuará sempre a ser verdade. Não há muito a lamentar nesse facto, no entanto, pois aqueles que me chamaram seu amigo foram pessoas de grande carácter e enriqueceram a minha existência, deram-lhe valor. Primeiro, houve Zaknafein, meu pai e meu mentor, que me mostrou que não estava só e que não estava errado em manter as minhas crenças. Zaknafein salvou-me, tanto da espada, como da religião caótica, fanática e malévola que amaldiçoa o meu povo. Sim, apesar disso estava perdido quando um gnomo das profundezas sem mãos entrou na minha vida, um svirfnebli que eu tinha salvado da morte certa, muitos anos antes, pela espada impiedosa do meu irmão Dinin. O meu gesto foi-me pago por inteiro, pois quando me reencontrei com esse svirfnebli, desta vez estando eu à mercê do seu povo, eu teria sido morto — e verdadeiramente teria preferido a morte — se não fosse Belwar Dissengulp. O meu em Blingdenstone, a cidade dos gnomos profundezas, foieum curto na tempo proporção dos meus anos… Lembro-me bem dadas cidade de Belwar do período seu povo,tãoe sempre o recordarei. A sociedade deles foi a primeira que vim a conhecer baseada na força da comunidade, e não na paranóia do individualismo egoísta. Juntos, os gnomos das profundezas sobrevivem contra os perigos do hostil Subescuro, labutam interminavelmente na mineração das pedras, e jogam jogos que são difíceis de distinguir de qualquer outro aspecto das suas vidas. Maiores são, de facto, os prazeres que se partilham. — Drizzt Do’Urden

Os nossos agradecimentos por teres vindo, Muito Honrado Guarda-Tocas — disse um dos gnomo das profundezas reunidos fora da pequena sala que guardava o prisioneiro drow. O grupo inteiro de anciãos svirfnebli fez uma vénia profunda à aproximação do guarda-tocas. Belwar Dissengulp encolheu-se perante a graciosa saudação. Nunca se dera bem com todas a honrarias que o seu povo lhe atribuíra desde aquele desastroso dia, havia mais de uma década, em que os elfos drow tinham descoberto o grupo de mineiros nos corredores a leste de Blingdenstone, perto de Menzoberranzan. Horrivelmente mutilado e quase morto devido à perda de sangue, Belwa arrastara-se até Blingdenstone, como único sobrevivente dessa expedição. Os svirfnebli reunidos afastaram-se para deixar passar Belwar, dando-lhe uma visão clara da sala e do drow. Aos prisioneiros acorrentados à cadeira, a sala parecia sólida, de pedra simples, sem nenhuma outra abertura a não ser a pesada porta de pedra com gonzos metálicos. Havia, no entanto, uma única janela na sala, encoberta por ilusões de visão e de som, que permitia aos svirfnebli ver o prisioneiro a todo o momento. Belwar estudou o prisioneiro por vários minutos. — É um drow — murmurou o guarda-tocas na sua voz possante, soando um pouco perturbado. Belwar ainda não conseguia compreender por que razão tinha sido chamado. — Tem a aparência de qualquer outro drow. — O prisioneiro afirma que te conheceu no Subescuro — disse um ancião svirfnebli a Belwar. voz era quase apenas um sussurro e o olhar pousou-lhe no chão enquanto completava a frase: — Naquele dia de grande perda. Belwar estremeceu de novo ao ouvir a menção desse dia. Quantas vezes teria ainda de o reviver? — Pode ser que assim tenha sido — disse Belwar com um encolher de ombros. — Não consig distinguir muito as aparências entre elfos drow, nem tenho grande vontade de o fazer! — Concordo — disse o outro. — São todos parecidos. Enquanto o gnomo das profundezas falava, Drizzt virou a cara para o lado e ficou bem de frente para eles, embora não pudesse ver nem ouvir nada para lá da pedra de ilusão. — Talvez te consigas lembrar do nome dele, Guarda-Tocas — propôs outro svirfnebli. E fez uma pausa, vendo o súbito interesse de Belwar pelo drow. A câmara circular não era iluminada e, em tais condições, os olhos de uma criatura que via no espectro infravermelho claramente. Normalmente, olhos como pontos de luz vermelha, mas isso brilhavam não acontecia com Drizzt Do’Urden. esses Mesmo no apareciam espectro infravermelho, o seus olhos de drow apareciam claramente como cor de alfazema. Belwar lembrava-se desses olhos. — Magga cammara! — murmurou Belwar. — Drizzt… — disse em resposta ao outro gnomo. — Sempre o conheces! — exclamaram vários dos outros gnomos das profundezas em uníssono. Belwar ergueu os cotos dos braços sem mãos, um deles coberto com a cabeça de mithral de uma

picareta, o outro com a cabeça de um martelo. — Este drow, este Drizzt — gaguejou, tentando explicar — Responsável pelo meu estado! Foi ele! Alguns dos outros murmuraram preces pelo drow condenado, pensando que o guarda-tocas estava irado com essa recordação. — Então, a decisão do rei Schnicktick mantém-se — disse um deles. — O drow deve se executado imediatamente. — Mas ele, este Drizzt, salvou-me a vida — interrompeu Belwar bem alto. Os outros, incrédulos viraram-se para ele. — Nunca foi decisão de Drizzt que as minhas mãos fossem decepadas prosseguiu o guarda-tocas. — Foi proposta dele que me fosse permitido regressar a Blingdenstone… Para servir de exemplo, disse este Drizzt, mas percebi, no mesmo momento em que disse essa palavras, que as dizia apenas para aplacar os seus cruéis companheiros. A verdade por detrás dessas palavras sei-a eu, e essa verdade era misericórdia! Uma hora mais tarde, um único conselheiro svirfnebli, aquele que já tinha falado com Drizzt antes, foi ter com o prisioneiro. — Foi decidido pelo rei que devias ser executado — disse o gnomo das profundezas secamente, enquanto se aproximava da cadeira de pedra. — Compreendo — disse Drizzt tão calmamente quanto pôde. — Não oferecerei nenhum resistência ao vosso veredicto — e olhou para as correntes que o prendiam. — Não que pudesse fazê-lo, de qualquer forma… O svirfnebli parou e observou aquele imprevisível prisioneiro, acreditando completamente na sinceridade de Drizzt. Antes que ele continuasse, e querendo explicar os eventos desse dia, Drizz completou os seus pensamentos: — Só posso pedir um favor — disse. O svirfnebli deixou-o terminar, curioso acerca do invulgar raciocínio do drow. — A pantera… — prosseguiu Drizzt. — Verás que Guenhwyvar é um companheiro valioso e um amigo precioso, na verdade. Quando eu já cá não estiver, tens de te assegurar de que a pantera seja dada a um amo merecedor; talvez Belwar Dissengulp. Promete-m isso, bom gnomo, imploro-te. O svirfnebli abanou a cabeça calva, não para negar o pedido de Drizzt, mas simplesmente incrédulo. — O rei, com grande remorso, simplesmente não podia permitir os riscos de te manter vivo — disse sombriamente. E a boca do gnomo das profundezas transformou-se num sorriso enquanto acrescentava rapidamente: — Mas a situação alterou-se! Drizzt inclinou a cabeça, mal se atrevendo a ter quaisquer esperanças. — O guarda-tocas lembra-se de ti, aelfo afirmou o svirfnebli. —deOteMuito Honrad Guarda-Tocas Belwar Dissengulp falou teu negro favor e— aceitará a responsabilidade acolher! — Então… Não vou morrer? — Só se te matares… Drizzt mal conseguia pronunciar as palavras. — E ser-me-á permitido viver entre a tua gente? Em Blingdenstone? — Isso está para se ver — respondeu o svirfnebli. — Belwar Dissengulp falou por ti, e isso é um

grande coisa. Irás viver com ele. Se essa situação se manterá ou será alterada… Deixou a questão pairar ali, dando um encolher de ombros indeciso. Depois da sua libertação, a caminhada pelas cavernas de Blingdenstone foi um verdadeiro exercício de esperança para o confuso drow. Via cada vista da cidade dos gnomos das profundezas como um contraste com Menzoberranzan. Os elfos negros tinham transformado a grande caverna d sua cidade em obras de arte inegavelmente belas. A cidade dos gnomos das profundezas também era bela, mas as suas características continuavam a ser os traços naturais da pedra. Enquanto os drow tinham tratado a caverna como sua, afeiçoando-a aos seus projectos e gostos, os svirfnebli tinham-se adaptado ao desenho natural do seu complexo. Menzoberranzan tinha uma vastidão, com um tecto a perder de vista, de que Blingdenstone não poderia sequer aproximar-se. A cidade dos drow era uma série de castelos individuais de famílias, cada um deles uma fortaleza fechada e uma casa em si mesma. Na cidade dos gnomos das profundezas havia uma sensação geral de um lar, como se o complexo inteiro para lá das gigantescas portas de pedra fosse uma estrutura única, um abrigo comunitário dos perigos sempre presentes do Subescuro. Os ângulos da cidade svirfnebli também eram diferentes. Tal como as características daquela raça diminuta, as edificações e níveis de Blingdenstone eram arredondados, suaves e graciosamente recurvados. Inversamente, Menzoberranzan era um lugar anguloso, tão afiado como a ponta de um estalactite, um lugar de becos e terraços de vigilância. Drizzt considerou as duas cidades como distintivas das raças que albergavam, agudas ou suaves como os traços — e os corações, atrevia-se a imaginar — dos seus respectivos habitantes. Anichada num canto remoto de uma das câmaras mais exteriores ficava a casa de Belwar, uma pequena estrutura de pedra construída em volta da abertura de uma gruta ainda mais pequena. Ao contrário da maioria dos lares de fachada aberta dos svirfnebli, a casa de Belwar tinha uma porta da frente. Um dos cinco guardas que escoltavam Drizzt bateu à porta com a ponta da sua maça. — Saudações, Muito Honrado Guarda-Tocas! — chamou. — Por ordem do rei Schnicktick, vimo entregar-te o drow! Drizzt reparou no tom de voz respeitoso do guarda. Temera pela sorte de Belwar naquele dia, mais de uma década antes, e interrogara-se se o facto de Dinin lhe ter decepado as mãos não teria sido mais cruel do que simplesmente matar a pobre criatura. Os aleijados não se davam bem no selvático Subescuro. A porta de pedra abriu-se e Belwar saudou os visitantes. O seu olhar recaiu imediatamente e Drizzt, numa troca de olhares igual à que tinham partilhado dez anos antes, quando se tinha separado pela última vez. Drizzt viu uma expressão sombria nos olhos do guarda-tocas, mas o orgulho galhardo mantinha-se, ainda que um pouco desvanecido. Drizzt não queria olhar para a mutilação de Belwar; demasiada memórias desagradáveis estavam ligadas a esse gesto de havia tanto tempo. Mas, inevitavelmente, o olhar do drow desceu do tronco forte de Belwar até às pontas dos seus braços, que estavam caídos ao longo do corpo.

Esquecendo os receios, os olhos de Drizzt abriram-se em espanto quando olhou para as «mãos» de Belwar. Do lado direito, maravilhosamente adaptado ao coto do braço, havia a cabeça de um martelo feito de mithral e ornado com runas intricadas e fabulosas, e gravações de um elementar de terra e de outras criaturas que Drizzt desconhecia. O apêndice esquerdo de Belwar não era menos espectacular. Aí, o gnomo das profundezas exibia uma picareta de duas pontas, também de mithral e igualmente trabalhada com runas e gravações, entre as quais se destacava um dragão a voar sobre a superfície plana da parte mais larga da ferramenta. Drizzt não conseguia sentir a magia das mãos de Belwar, mas percebeu que muitos outros svirfnebli, tanto artesãos como magos, tinham desempenhado um papel no aperfeiçoar daqueles artefactos. — São muito úteis — notou Belwar depois de deixar que Drizzt apreciasse as suas mãos d mithral por uns momentos. — Maravilhosas — murmurou Drizzt em resposta, e estava a pensar em mais do que o martelo e picareta. As próprias mãos eram, de facto, maravilhosas, mas as implicações de terem sido feitas eram-no ainda mais para Drizzt. Se um elfo negro, e especialmente um macho, tivesse rastejado de regresso a Menzoberranzan num tal estado de desgraça, teria sido rejeitado e expulso pela sua família, para vaguear como um renegado sem esperança até um escravo qualquer, ou outro drow, lhe pôr finalmente fim à miséria. Não havia lugar para fraquezas evidentes na cultura drow. Aqui, obviamente, os svirfnebli tinham aceitado Belwar e tinham tratado dele da melhor maneira que podiam. Drizzt voltou educadamente a olhar para os olhos do guarda-tocas. — Lembravas-te de mim — disse. — Receei… — Mais tarde falaremos, Drizzt Do’Urden — interrompeu Belwar. Usando a língua dos svirfnebli que Drizzt não compreendia, o guarda-tocas disse para os guardas: — Se os vossos assuntos estão tratados, por favor, ide-vos. — Estamos às tuas ordens, Muito Honrado Guarda-Tocas — respondeu um dos guardas. E Drizz notou o leve encolher de Belwar ao ouvir aquele título. — O rei mandou-nos como escolta e guarda, para permanecermos ao teu lado até a verdade do drow ser revelada. — Ide-vos então — respondeu Belwar, com a sua voz profunda a crescer em óbvia irritação. Olhou directamente para Drizzt enquanto terminava: — Já conheço a verdade deste drow. Não corr nenhum perigo. — Perdoa-me, Muito Honrado… — Estais dispensados — disse bruscamente Belwar, vendo que o guarda pretendia argumentar. — Ide. Falei a favor dele. Está ao meu cuidado, e não tenho receio dele. Osdentro, guardase depois svirfnebli fizeram uma vénia afastaram-se lentamente. Belwar levou Drizz para fê-lo virar-se para lhe profunda fazer notare que dois dos guardas tinham cautelosamente assumido posições de vigia em estruturas próximas. — Preocupam-se demasiado com a minha saúde — notou secamente na língua drow. — Devias estar agradecido por tantos cuidados — respondeu Drizzt. — Não sou ingrato! — respondeu imediatamente Belwar, com um acesso de ira a chegar-lhe ao rosto.

Drizzt leu a verdade por detrás daquelas palavras. Belwar não era ingrato, isso era verdade, mas o guarda-tocas não acreditava que merecesse tanta atenção. Drizzt manteve as suspeitas para consigo, não querendo embaraçar mais o orgulhoso svirfnebli. O interior da casa de Belwar estava parcamente mobilado com uma mesa de pedra e um único banco, várias prateleiras de potes e jarros, e uma lareira com uma grelha metálica para cozinhar. Para lá da entrada tosca para a sala do fundo, o quarto dentro da pequena gruta, eram os aposentos de dormir do gnomo das profundezas, vazio a não ser por uma rede pendurada de parede a parede. Outra rede, acabada de adquirir para Drizzt, estava caída no chão, e um colete de couro ornado a mithral estava pendurado na parede de trás, com uma pilha de sacas e bolsas debaixo dele. — Na sala de entrada a penduraremos — disse Belwar, apontando com a mão de martelo para a segunda rede. Drizzt fez menção de apanhar o objecto, mas Belwar deteve-o com a mão de picareta e fê-lo virarse. — Mais tarde — explicou o svirfnebli. — Primeiro, tens de me contar por que razão vieste estudou as roupas esfarrapadas de Drizzt e o rosto magro e sujo do drow. Era óbvio que o drow tinha andado na selva do Subescuro por muito tempo. — E tens de me dizer também de onde vieste. Drizzt deixou-se cair no chão de pedra e encostou as costas à parede. — Vim, porque não tinha mais para onde ir — respondeu com sinceridade. — Há quanto tempo estás fora da tua cidade, Drizzt Do’Urden? — perguntou Belwar co suavidade. Mesmo nos tons mais suaves, a voz sólida e profunda do gnomo soava com a clareza de um sino bem afinado. Drizzt maravilhou-se com a amplitude emotiva da voz e com a forma como conseguia transmitir compaixão sincera ou inspirar medo, apenas com subtis alterações de volume. Encolheu os ombros e deixou a cabeça cair para trás, de forma que o seu olhar se fixasse no tecto. — Anos… Perdi conta ao tempo — olhou de novo para o svirfnebli. — O tempo pouco significado tem nos caminhos do Subescuro. A avaliar pela aparência esfarrapada do drow, Belwar não podia duvidar da verdade das suas palavras, mas ficou, mesmo assim, surpreendido. Foi até à mesa no centro da sala e sentou-se no banco. Belwar vira Drizzt em batalha, e vira-o derrotar um elementar de terra — o que não era u feito de menosprezar! Mas se Drizzt estava de facto a falar verdade, se tinha sobrevivido sozinho n selva do Subescuro durante anos, então o respeito do guarda-tocas por ele teria de ser ainda maior. — Das tuas aventuras tens de me contar, Drizzt Do’Urden — convidou Belwar. — Quero sabe tudo sobre ti, para que possa compreender melhor os teus propósitos ao vir aqui à cidade dos teus inimigos de raça. fez uma longa pausa, como por oonde começar. Confiava em Belwa —Drizzt que outra escolha tinha? —,interrogando-se mas não tinha sobre a certeza deeque svirfnebli pudesse compreender minimamente o dilema que o tinha forçado a deixar a segurança de Menzoberranzan. Poderia Belwar, vivendo numa comunidade de tanta e tão óbvia camaradagem e cooperação, compreender a tragédia que era Menzoberranzan? Drizzt duvidou disso — mas, mais uma vez, que escolha tinha? Contou calmamente a Belwar a história da última década da sua vida; sobre a guerra iminente entre a Casa Do’Urden e a Casa Hun’ett, sobre o seu encontro com Masoj e Alton, altura em qu

ganhara Guenhwyvar; contou o sacrifício de Zaknafein, seu mentor, seu pai e seu amigo; e contou a decisão subsequente de abandonar os seus semelhantes e a sua divindade malévola, a Rainha Aranha. Belwar percebeu que Drizzt estava a falar da negra deusa a que os svirfnebli chamavam Lolth, ma deixou calmamente passar o regionalismo. Se Belwar tinha algumas suspeitas de não ter realmente percebido as intenções verdadeiras de Drizzt naquele dia em que se tinham encontrado muitos anos antes, o guarda-tocas depressa se convenceu de que as suas suspeitas acerca deste drow tinham sido correctas. Belwar deu consigo a estremecer e a comover-se enquanto Drizzt contava a sua vida no Subescuro, o seu encontro com o basilisco e a batalha contra o irmão e a irmã. Antes de Drizzt sequer mencionar a sua razão para procurar os svirfnebli — a agonia da su solidão e o medo de estar a perder a identidade na selvajaria necessária para sobreviver lá fora — Belwar já tinha adivinhado tudo. Quando Drizzt chegou aos dias finais da sua vida no exterior d Blingdenstone, escolheu cuidadosamente as palavras. Ainda não conseguia lidar completamente co os seus sentimentos e receios sobre quem realmente era, e não estava pronto para revelar os seus pensamentos, por muito que confiasse no novo companheiro. O guarda-tocas ficou sentado em silêncio, apenas a olhar para Drizzt, quando o drow acabou a su história. Belwar compreendia a dor de recontar tudo aquilo. Não sondou por mais informação, ne pediu pormenores sobre as angústias que Drizzt não tinha partilhado abertamente. — Magga cammara… — murmurou sobriamente o gnomo das profundezas. Drizzt inclinou a cabeça. — Pelas pedras! — explicou Belwar. — Magga cammara. — Pelas pedras, realmente — concordou Drizzt. E seguiu-se um longo e desconfortável silêncio. — Uma bela história, sem dúvida — disse Belwar calmamente. Deu uma palmadinha no ombro d Drizzt, e depois foi ao quarto-gruta buscar a segunda rede. Antes que Drizzt se tivesse seque levantado para o ajudar, Belwar já tinha instalado a rede, pendurando-a em dois ganchos das paredes. — Dorme em paz, Drizzt Do’Urden — disse Belwar, enquanto se voltava para se retirar. — Nã tens inimigos aqui. Não há monstros à espreita para lá da minha porta de pedra. Depois, Belwar desapareceu no outro aposento e Drizzt foi deixado sozinho com o remoinh indecifrável dos seus pensamentos e emoções. Continuava desconfortável, mas, seguramente, com as esperanças renovadas.

Drizzt olhou lá para fora através da porta aberta de Belwar, observando as rotinas diárias da cidade svirfnebli, tal como fizera todos os dias durante as últimas semanas. Sentia como se a sua vida estivesse num limbo, como se tudo tivesse sido posto em suspensão. Não vira nem ouvira falar de Guenhwyvar desde que viera para casa de Belwar, nem tinha quaisquer esperanças de recuperar o seu piwafwi ou as suas armas e escudo, pelo menos não tão depressa. Aceitava tudo isso estoicamente, pensando que ele e Guenhwyvar estavam melhor do que alguma vez tinham estado e muitos anos, e confiante em que os svirfnebli não fariam mal à estatueta ou a qualquer uma das suas posses. O drow e observou, deixando acontecimentos seguirem o seu curso devido. Belwar tinha sentou-se saído, nesse dia — era uma dasosraras ocasiões em que o guarda-tocas saía de sua casa. Apesar do facto de o gnomo das profundezas e Drizzt raramente conversarem — Belwar não era do tipo de falar simplesmente para ouvir a sua própria voz — Drizzt descobriu que sentia a falta do guarda-tocas. A amizade entre eles crescera, mesmo que a substância das suas conversas não o tivesse feito. Um grupo de jovens svirfnebli passou por ali e gritou algumas palavras rápidas ao drow. Isto já tinha acontecido muitas outras vezes, particularmente nos primeiros dias depois de Drizzt ter entrado na cidade. Nessas anteriores ocasiões, tinha ficado a interrogar-se se teria sido saudado ou insultado. Desta vez, porém, compreendeu o significado basicamente amistoso das palavras, pois Belwar tinh dedicado algum tempo a instruí-lo sobre as bases da língua dos svirfnebli. O guarda-tocas regressou horas mais tarde, para dar com Drizzt sentado no banco de pedra, a ver o mundo a passar à sua porta. — Diz-me, elfo negro — pediu o gnomo das profundezas na sua voz melódica e calorosa —, que vês tu quando olhas para nós? Somos assim tão estranhos aos vossos costumes? — Vejo esperança — respondeu Drizzt. — E vejo desespero. Belwar compreendeu. Sabia que a sociedade svirfnebli estava mais de acordo com os princípio do drow, mas que ver a agitação de Blingdenstone à distância apenas conseguia evocar memórias dolorosas neste seu novo amigo. — Reuni-me com o rei Schnicktick, hoje — disse o guarda-tocas. — Em boa verdade te digo qu ele está muito interessado em ti. — Curioso deverá ser a palavra mais adequada — respondeu Drizzt. Mas sorriu enquanto falava e Belwar indagou-se quanta dor estaria escondida por detrás daquele sorriso. O guarda-tocas encetou uma breve vénia de desculpas, rendendo-se à crua sinceridade do drow. — Curioso, então, se assim preferes. Deves saber que não és tal como nos habituámos a ver o elfos negros. Peço-te que não te sintas ofendido. — Nada — respondeu honestamente Drizzt. — Tu e a tua gente deram-me mais do que alguma ve me atreveria a esperar. Se tivesse sido morto naquele primeiro dia nesta cidade, teria aceitado o meu destino sem culpar por isso os svirfnebli.

Belwar seguiu o olhar fixo de Drizzt para fora da gruta, até ao grupo de jovens reunidos lá fora. — Devias ir ter com eles — propôs Belwar. Drizzt olhou para ele, surpreendido. Durante todo o tempo que tinha passado em casa de Belwar, o gnomo das profundezas nunca tinha sugerido nada assim. Presumira que deveria continuar como hóspede de Belwar, e que este tinha sido pessoalmente incumbido de lhe vigiar os movimentos. Belwar acenou na direcção da porta, reiterando silenciosamente a sugestão. Drizzt voltou a olha lá para fora. Do outro lado, o grupo de jovens svirfnebli, uns doze, tinha começado um desafio de lançar pedras bastante volumosas para a efígie de um basilisco, uma estátua em tamanho real feita de pedra e velhas cotas de malha. Os svirfnebli eram altamente hábeis nas artes mágicas de ilusão, e u desses ilusionistas tinha colocado encantamentos menores sobre a estátua, para suavizar os pontos mais toscos e fazer a efígie parecer ainda mais fiel ao real. — Elfo negro, alguma vez terás de sair — argumentou Belwar. — Por quanto tempo acharás tu a paredes nuas da minha casa interessantes? — A ti, servem-te — respondeu Drizzt, um pouco mais agrestemente do que pretendera. Belwar assentiu e rodou lentamente para observar a sala. — É verdade que sim — respondeu calmamente, e Drizzt conseguiu ver claramente o grande pesa do svirfnebli. Quando Belwar se voltou novamente para ele, o seu rosto redondo tinha uma expressão inequivocamente resignada. —Magga cammara, elfo negro. Que essa seja a tua lição. — Porquê? — perguntou Drizzt. — Por que razão Belwar Dissengulp, o Muito Honrado Guarda Tocas — Belwar encolheu-se mais uma vez ao ouvir o título — se mantém sempre recolhido nas sombras da sua casa? O queixo de Belwar ergueu-se e os olhos negros semicerraram-se. — Sai — respondeu num lamento profundo. — Jovem és, elfo negro, e o mundo está diante de ti. Velho estou. Os meus dias já lá vão há muito. — Não tão velho assim — começou Drizzt a protestar, determinado desta vez a pressionar o guarda-tocas a revelar o que era que tanto o perturbava. Mas Belwar simplesmente virou costas e foi silenciosamente para o seu quarto, fechando atrás de si a cortina que tinha pendurado a fazer de porta. Drizzt abanou a cabeça e bateu com o punho na palma da outra mão, frustrado. Belwar tinha feito tanto por ele, primeiro salvando-o do julgamento do rei svirfnebli, depois sendo seu amigo ao longo das últimas semanas e ensinando-lhe a língua svirfnebli e os usos dos gnomos das profundezas… Drizzt não pudera retribuir-lhe esse favor, embora visse claramente que Belwar carregava u qualquer pesado fardo. Quis correr e abrir a cortina, ir ter com o guarda-tocas e obrigá-lo a falar e a revelar os seusainda sombrios pensamentos. No entanto, não se atreveria a ser tão ousado com o novo amigo. Encontraria a chave para dor do guarda-tocas a seu tempo, supôs. Mas, por agora, tinha o seu próprio dilema para vencer. Belwar tinha-lhe dado permissão para sair para Blingdenstone! Drizzt olhou de novo para o grupo lá fora. Três deles estavam perfeitamente imóveis diante da efígie, como se se tivessem transformado em pedra. Curioso, Drizzt aproximou-se da porta e depois, antes que se apercebesse do que estava a fazer, estava lá fora e a aproximar-se dos jovens gnomos

das profundezas. O jogo parou assim que o drow se aproximou, com os svirfnebli mais interessados em conhecer o elfo negro sobre quem tinham ouvido tantos rumores durante semanas. Correram a rodeá-lo, sussurrando cheios de curiosidade. Drizzt sentiu os músculos a contraírem-se involuntariamente enquanto os svirfnebli andavam à sua volta. Os instintos primitivos do caçador sentiam uma vulnerabilidade que não podia ser tolerada. Drizzt debateu-se com força para sublimar o seu alter-ego , relembrando firmemente e silenciosamente a si mesmo que os svirfnebli não eram seus inimigos. — Saudações, amigo drow de Belwar Dissengulp — avançou um dos jovens svirfnebli. — So Seldig, ao teu serviço, e destinado a ser um mineiro expedicionário daqui a três anos. Drizzt demorou um longo momento a perceber os rápidos padrões de fala dos gnomos das profundezas. Compreendeu, porém, o significado da futura ocupação de Seldig, pois Belwar tinha-lhe dito que os mineiros expedicionários, os svirfnebli que saíam para o Subescuro em busca de pedras preciosas, estavam entre os gnomos das profundezas mais respeitados de toda a cidade. — Saudações, Seldig — respondeu por fim Drizzt. — Sou Drizzt Do’Urden. Sem saber bem o que fazer depois, cruzou os braços sobre o peito. Para os elfos negros, esse er um gesto de paz, embora não tivesse a certeza de que esse gesto fosse universalmente entendido dessa mesma forma em todo o Subescuro. Os svirfnebli olharam uns para os outros, devolveram o gesto e depois sorriram em uníssono ao ouvir o suspiro de alívio de Drizzt. — Estiveste no Subescuro, segundo se diz — continuou Seldig, fazendo sinal a Drizzt para seguir até à área onde tinham estado a jogar. — Estive, por muitos anos — respondeu Drizzt, começando a caminhar ao lado do jove svirfnebli. O caçador dentro do drow ficou pouco à vontade com a proximidade dos gnomos das profundezas que o seguiam, mas controlou completamente a sua paranóia instintiva. Quando o grupo chegou junto do basilisco fingido, Seldig sentou-se numa pedra e pediu a Drizzt que lhes contasse uma ou duas das suas aventuras. Drizzt hesitou, duvidando que o seu domínio da língua svirfnebli fosse suficiente para uma tal tarefa, mas Seldig e os outros pressionavam-no. Por fim, assentiu e pôs-se de pé. Passou um momento a pensar, tentando recordar alguma história que pudesse interessar aos jovens. O seu olhar percorreu inconscientemente a caverna, em busca de uma pista. Acabou por recair e ficar fixo na efígie do basilisco. — Basillisco — explicou Seldig. — Eu sei — respondeu Drizzt. — Já encontrei uma dessas criaturas. Voltou a virar-se para o grupo e ficou surpreendido pelas expressões deles. Seldig e todos os seus companheiros tinham-se inclinado para a frente, com as bocas muito abertas numa mistura de expectativa, terror e excitação. — Elfo negro! Viste um basilisco? — perguntou um deles, incrédulo. — Um basilisco a sério, vivo? Drizzt sorriu enquanto começava a perceber o espanto deles. Os svirfnebli, ao contrário dos elfo

negros, protegiam os membros mais jovens da sua comunidade. Embora estes gnomos das profundezas fossem provavelmente tão velhos como ele, raramente teriam saído de Blingdenstone, se era que alguma vez o tinham feito. Com a idade deles, os elfos drow já teriam passado anos a patrulhar os corredores para lá de Menzoberranzan. O facto de Drizzt reconhecer o basilisco nã seria, então, tão estranho para outros elfos, embora os formidáveis monstros raramente fossem vistos, mesmo no Subescuro. — Disseste que os basiliscos não eram reais! — gritou um dos svirfnebli para outro, empurrandoo com um ombro. — Nuca disse isso! — protestou o outro, devolvendo o empurrão. — O meu tio viu um, certa vez — avançou outro. — O que o teu tio viu foram arranhões numa parede! — riu-se Seldig. — Eram os rastos de u basilisco, segundo ele próprio disse. O sorriso de Drizzt abriu-se mais. Os basiliscos eram criaturas mágicas, mais vulgares noutro planos de existência. Embora os drow, e especialmente as altas sacerdotisas, muitas vezes abrissem os portais para os outros planos, esses monstros estavam obviamente para além da norma na vida dos svirfnebli. Poucos eram os gnomos das profundezas que alguma vez tinham visto um basilisco. Menos ainda, sem dúvida, seriam os gnomos das profundezas que alguma vez tinham regressado para contar o que tinham visto! — Se o teu tio tivesse seguido os rastos e encontrado o monstro — continuou Seldig —, estari agora feito uma estátua de pedra num caminho qualquer! E desde já te digo que as pedras não conta tais histórias! O gnomo das profundezas que estava a ser refutado olhou em volta, à procura de apoio. — Drizzt Do’Urden viu um! — protestou. — E não me parece que seja uma estátua de pedra! Todos os olhos se viraram para Drizzt outra vez. — Viste mesmo um deles, elfo negro? — perguntou Seldig. — Responde apenas a verdade, peçote. — Vi um — respondeu Drizzt. — E escapaste dele antes que ele pudesse devolver o olhar? — perguntou Seldig, numa pergunt que tanto ele como os outros consideraram apenas retórica. — Escapar? — Drizzt repetiu a palavra do gnomo, incerto do significado preciso. — Escapar… hum… fugir… — explicou Seldig. Depois, olhou para outro dos svirfnebli, qu prontamente fingiu uma expressão de horror e depois cambaleou e se afastou alguns passos, como se estivesse a ser perseguido. Os outros gnomos das profundezas aplaudiram a exibição e Drizzt juntouse ao riso deles. — Fugiste do basilisco antes que ele pudesse devolver-te o olhar… — raciocinou Seldig. Drizz encolheu os ombros, um pouco embaraçado, e Seldig adivinhou que ele estava a esconder alguma coisa. — Não fugiste? — Não podia… escapar — explicou Drizzt. — O basilisco tinha invadido o meu refúgio e tinh morto muitos dos meus rothe. Refúgios… — fez uma pausa, à procura da palavra svirfnebli correcta. — Santuários… — acabou por explicar — não são coisa que abunde na selva do Subescuro. Quand

se encontra e toma um deles, tem de ser defendido a todo o custo. — Lutaste contra ele? — veio um grito anónimo da última fila dos jovens svirfnebli. — Com pedras lançadas à distância? — perguntou Seldig. — Esse é o método mai recomendado… Drizzt olhou para a pilha de rochas que os gnomos das profundezas tinham estado a atirar à efígie, e depois olhou para a sua própria constituição magra. — Os meus braços nem sequer conseguiriam pegar numa dessas pedras — riu-se. — Então, como? — perguntou Seldig. — Tens de nos contar. Drizzt tinha agora a sua história para contar. Fez uma pausa por uns momentos, ordenando os pensamentos. Percebeu que o seu domínio limitado da língua dos svirfnebli não lhe permitiria contar uma história muito complexa, por isso decidiu ilustrar as suas palavras. Encontrou dois paus que os svirfnebli tinham trazido consigo e explicou que seriam as suas cimitarras; depois, examinou a construção da efígie, para se assegurar de que aguentaria com o seu peso. Os jovens gnomos das profundezas rodearam-no ansiosamente enquanto preparava a situação, explicando o encantamento de escuridão — e colocando mesmo um atrás da cabeça do basilisco — e a posição de Guenhwyvar, seu companheiro felino. Os svirfnebli sentaram-se, apoiando-se nas mãos e inclinando-se para a frente, murmurando a cada palavra dele. A efígie pareceu ganhar vida nas suas mentes, tornando-se um monstro terrível, com Drizzt, este estranho no mundo deles, espreitando na sombra por trás. O drama foi-se desenrolando e chegou o momento de Drizzt mostrar os seus movimentos no combate. Ouviu as exclamações em uníssono dos svirfnebli enquanto saltava agilmente para as costas do basilisco, colocando cuidadosamente os pés até lhe atingir a cabeça. Drizzt deixou-se levar pelo entusiasmo e isso apenas fez que as suas memórias se tornassem mais vivas. Tornou-se tudo muito real. Os gnomos das profundezas aproximaram-se mais, antecipando uma exibição estonteante de destreza com as armas deste drow notável que tinha vindo até eles do Subescuro. Depois, aconteceu algo terrível. Num momento era Drizzt, o actor a entreter os seus novos amigos com uma história de coragem e armas. No momento seguinte, enquanto o drow erguia um dos paus para golpear o monstro fingido, já não era Drizzt. Era o caçador quem estava em cima do basilisco, tal como tinha sido naquele dia no túneis fora da caverna de musgo. Os paus picavam os olhos do monstro; depois abatiam-se em golpes brutais na cabeça de pedra. Os svirfnebli recuaram, alguns com medo, outros simplesmente por precaução. O caçador atacav e a pedra lascava-se e rachava. A pedra que fazia de cabeça do monstro partiu-se e caiu, com o elfo negro caindo atrás dela. O caçador rebolou com destreza, pôs-se de pé novamente e voltou a atacar, golpeando furiosamente com as espadas de pau. As armas de madeira partiram-se e as mãos de Drizzt sangravam, mas ele — o caçador — não desistia. Mãos fortes de gnomo agarraram o drow pelos braços, tentando acalmá-lo. O caçador voltou-se contra os novos adversários. Eram mais fortes do que ele, e dois deles agarravam-no firmemente, mas uns poucos movimentos ágeis do elfo desequilibraram os svirfnebli. O caçador pontapeava-os

nos joelhos e depois ajoelhou-se ele próprio, rodando enquanto o fazia e lançando os dois svirfnebli ao chão. O caçador estava de pé outra vez, com as cimitarras partidas em posição, enquanto um único adversário avançava para ele. Belwar não mostrava medo nenhum e estendia os braços à sua frente, na defensiva. — Drizzt! — chamou repetidamente. — Drizzt Do’Urden! O caçador olhou para o martelo e picareta do svirfnebli, e a visão daquelas mãos de mithral reavivou-lhe memórias mais apaziguadoras. Subitamente, era de novo Drizzt. Confuso envergonhado, deixou cair as armas de madeira e olhou para as mãos arranhadas. Belwar apanhou o drow quando este desfalecia, segurou-o nos braços e levou-o de volta para casa. Sonhos inquietos invadiram o sono de Drizzt, memórias do Subescuro e daquele seu outro eu a qu não conseguia fugir. — Como poderei explicar? — perguntou a Belwar quando o guarda-tocas o encontrou sentado mesa de pedra, mais tarde nessa noite. — Como poderei sequer pedir desculpa? — Não precisas de o fazer — disse-lhe Belwar. Drizzt olhou para ele, incrédulo. — Não compreendes — começou a dizer, interrogando-se como poderia fazer o svirfnebli compreender a profundidade do que se apossara dele. — Muitos anos viveste no Subescuro — disse Belwar. — Sobrevivendo onde poucos teria conseguido. — Mas será que sobrevivi mesmo? — interrogou-se Drizzt em voz alta. A mão de martelo de Belwar bateu suavemente no ombro de Drizzt, e o guarda-tocas sentou-se mesa, ao lado dele. Ali ficaram durante o resto da noite. Drizzt não disse mais nada, e Belwar não o pressionou. O guarda-tocas sabia qual era o seu papel nessa noite: ser um apoio silencioso. Nenhum deles sabia quantas horas tinham passado quando a voz de Seldig se ouviu do outro lado da porta: — Vem, Drizzt Do’Urden — chamou o jovem svirfnebli. — Anda contar-nos mais histórias do Subescuro. Drizzt olhou para Belwar com curiosidade, interrogando-se se aquele pedido seria parte de alguma partida maliciosa ou de alguma piada sarcástica. O sorriso deli cado de Belwar afastou essas ideias. — Magga cammara, elfo negro — riu-se o gnomo das profundezas. — Não te deixarão ficar aqui escondido. — Manda-os embora — insistiu Drizzt. — Estás assim tão disposto a render-te? — contrapôs Belwar, com um tom de censura a transparecer claramente na sua voz normalmente calma. — Tu, que sobreviveste na selva do Subescuro? — É demasiado perigoso — explicou Drizzt desesperadamente, procurando as palavras. — Nã

consigo controlar… Não me consigo livrar de… — Vai com eles, elfo negro — disse Belwar. — Serão mais cautelosos desta vez. — Este… Este monstro… Segue-me — tentou explicar Drizzt. — Talvez por uns tempos — respondeu descontraidamente o guarda-tocas. — Magga cammara, Drizzt Do’Urden! Cinco semanas não é muito tempo, sobretudo comparado com as provações qu tiveste de suportar ao longo dos últimos dez anos. Recuperarás a tua liberdade desse… monstro — os olhos cor de alfazema de Drizzt encontraram apenas sinceridade nos olhos cinzentos-escuros de Belwar Dissengulp. — Mas apenas se a procurares — concluiu o guarda-tocas. — Vem cá para fora, Drizzt Do’Urden! — chamou Seldig mais uma vez, do outro lado da porta d pedra. Desta vez, e de todas as vezes nos dias seguintes, Drizzt, e apenas Drizzt, saiu e respondeu chamada. O rei micónide observou o elfo negro a atravessar o nível mais baixo da caverna, o nível coberto de musgo. Não era o mesmo drow que tinha partido, o fungóide sabia disso, mas Drizzt, um aliado, for o único contacto anterior que o rei já tivera com elfos negros. Esquecendo o perigo, o gigante de três metros desceu para interceptar este estranho. O espírito-espectro de Zaknafein não tentou sequer fugir ou esconder-se enquanto o homemcogumelo se aproximava. As espadas de Zaknafein estavam confortavelmente seguras nas suas mãos. O rei micónide soprou uma nuvem de esporos, procurando uma conversa telepática com o recémchegado. Mas os monstros mortos-vivos existiam em dois planos diferentes, e as suas mentes eram imunes a tais tentativas. O corpo material de Zaknafein estava diante do micónide, mas a mente do espíritoespectro estava muito longe dali, ligada à sua forma corpórea pela vontade da Matrona Malice. espírito-espectro percorreu os últimos metros até ao seu adversário. O micónide soprou uma segunda nuvem, desta vez de esporos destinados a pacificar um oponente, mas esta nuvem foi igualmente inútil. O espírito-espectro avançou sem hesitar e o gigante ergueu os seus poderosos braços para o abater. Zaknafein bloqueou o gesto com rápidos golpes das suas espadas afiadas, cortando as mãos ao micónide. Demasiado rápidas para serem seguidas, as armas do espírito-espectro retalharam o torso do rei micónide e abriram feridas profundas que fizeram o fungóide recuar e cair no chão. Do nível superior, dezenas de micónides mais velhos e mais fortes acorreram a salvar o rei. O espírito-espectro viu-os avançar, mas não recuou. Zaknafein terminou o assunto com o gigante e depois virou-se calmamente para enfrentar o novo assalto. Os homens-fungos avançaram, soprando os seus diversos esporos. Zaknafein ignorou as nuvens de esporos, pois nenhuma delas o afectaria. Concentrou-se nos braços dos opositores. Os micónide carregavam contra ele de todos os lados. E todos morriam à sua volta. Tinham cuidado da sua caverna durante séculos, vivendo em paz isolados. Mas quando o espíritoespectro saiu do túnel que dava para a agora abandonada pequena caverna que em tempos fora o

refúgio de Drizzt, a sua fúria não toleraria a mais leve sugestão de paz. Zaknafein correu pela parede da caverna de musgo, arrasando tudo à sua passagem. Os cogumelos gigantes caíam como árvores abatidas. Mais abaixo, a pequena manada de rothe, nervosos por natureza, lançou-se numa correria desenfreada, fugindo pelos túneis para o Subescuro exterior. Os poucos homens-fungos que restavam, tendo testemunhado a força do elfo negro, fugiam do seu caminho. Mas os micónides não eram criaturas rápidas, e Zaknafein abateu-os sem descanso. O reinado dos micónides sobre aquela caverna, e a plantação de cogumelos que tinham tratado durante tanto tempo, chegaram a um súbito e definitivo fim.

A patrulha de svirfnebli avançou cautelosamente pelas esquinas do túnel serpenteante, com os martelos e picaretas em prontidão. Os gnomos das profundezas não estavam longe de Blingdenstone — estavam a menos de um dia de distância —, mas tinham assumido as suas formações de combate bem treinadas, geralmente reservadas para o Subescuro profundo. O túnel tresandava a morte. O gnomo das profundezas que ia à frente, sabendo que tinha havido carnificina pouco mais adiante, espreitou por cima de um rochedo. — Duendes! — gritaram os seus sentidos para os companheiros, numa voz clara na empatia racial dos svirfnebli. Quando os perigos do Subescuro se aproximavam dos gnomos das profundezas, estes raramente falavam em voz alta, passando para um elo comum de empatia que conseguia transmitir pensamentos básicos. Os outros svirfnebli agarraram as armas com força e começaram a decifrar um plano de batalha por entre a excitada nuvem de comunicações telepáticas. O chefe, que ainda era o único que tinha espreitado por cima do rochedo, fê-los parar com uma ideia que se sobrepôs às outras. — Duendes mortos! Os outros seguiram-no, passando pelo rochedo, para depararem com a cena macabra. Um grande número de duendes estava ali espalhado; retalhados e mutilados. — Drow… — murmurou um dos svirfnebli, depois de ver a precisão das feridas e a óbvia facilidade com que as lâminas tinham retalhado as criaturas. Entre as raças do Subescuro, apenas o drow possuíam lâminas tão finas e tão malévolas. — Demasiado perto — respondeu outro gnomo das profundezas empaticamente, batendo no ombro do companheiro. — Estes estão mortos há um dia ou mais — disse outro, em voz alta, refutando a cautela do companheiro. — Os elfos negros não ficariam aqui à espera. Não é assim que se portam. — Mas também não é típico deles chacinarem bandos de duendes — respondeu o que tinha insistido na comunicação silenciosa. — Não quando podem fazer prisioneiros! — Só fariam prisioneiros se quisessem regressar directamente a Menzoberranzan — notou o primeiro. E virou-se para o chefe. — Guarda-Tocas Krieger, temos de regressar imediatamente a Blingdenstone e relatar esta carnificina! — Parco relatório seria esse — respondeu Krieger. — Duendes mortos nos túneis? Não é um visão assim tão invulgar. — Mas este não é o primeiro sinal de actividade drow na região — notou o outro. O guarda-toca não podia negar a verdade das palavras do companheiro, nem a sensatez da sugestão. Duas outras patrulhas tinham regressado a Blingdenstone recentemente com relatos de monstros mortos — muito provavelmente abatidos por elfos drow — jazendo nos corredores do Subescuro. — E olhem — continuou o outro svirfnebli, dobrando-se para apanhar um bolsa de um dos

duendes. Abriu-a para mostrar um punhado de moedas de prata. — Que elfo negro estaria tão impaciente ao ponto de deixar para trás um tal saque? — Poderemos ter a certeza de que isto é obra dos drow? — perguntou Krieger, embora ele próprio não duvidasse desse facto. — Talvez outra criatura tenha vindo ao nosso domínio. Ou possivelmente algum inimigo menor, duende ou orc, terá encontrado armas drow. — Drow! — responderam os pensamentos dos outros imediatamente. — Os golpes foram limpos e precisos — disse um deles. — E não vejo nada que indique quaisquer ferimentos a não ser os dos duendes. Quem, senão os elfos negros poderia matar de forma tão eficiente? O guarda-tocas Krieger afastou-se um pouco mais pela passagem, procurando na pedra por um qualquer pista para este mistério. Os gnomos das profundezas possuíam uma afinidade com a pedra que ia para além da maioria das outras criaturas. Os duendes tinham sido mortos por armas, e não pelas mãos com garras de monstros, mas estas paredes de pedra nada diziam ao guarda-tocas. Todas as mortes tinham sido confinadas a uma pequena área, mostrando que os infelizes duendes não tinham tido tempo sequer para fugir. Que vinte duendes tivessem sido abatidos tão rapidamente implicava uma patrulha drow de dimensão razoável, e mesmo que só tivesse havido uma mão-cheia de elfos negros, um deles, pelo menos, teria pilhado os corpos. — Para onde havemos de ir, guarda-tocas? — perguntou um dos gnomos das profundezas atrás de Krieger. — Para a frente para procurarmos o filão que foi reportado, ou de regresso a Blingdenstone para relatar isto? Krieger era um velho svirfnebli confiante que pensava conhecer todos os truques do Subescuro. Não gostava de mistérios, mas esta cena tinha-o deixado a coçar a cabeça, sem uma única pista. — Para trás — transmitiu aos outros, regressando ao modo empático silencioso. Não teve objecções dos outros; os gnomos das profundezas tinham sempre o máximo cuidado e evitar encontrar elfos drow, sempre que possível. A patrulha mudou rapidamente para uma formação defensiva e começou o caminho de regresso a casa. Levitando mais ao lado, na sombra das estalactites do tecto alto, o espírito-espectro de Zaknafei Do’Urden observou a progressão deles e seguiu atentamente o caminho que levavam. O rei Schnicktick inclinou-se para a frente no seu trono de pedra e avaliou cuidadosamente a palavras do guarda-tocas. Os conselheiros de Schnicktick, sentados à sua volta, estavam igualmente nervosos e curiosos, pois este relato apenas vinha confirmar os dois relatos anteriores de potencial actividade drow nos túneis a leste. — Porque haveria Menzoberranzan de se aproximar das nossas fronteiras? — perguntou um do conselheiros quando Krieger terminou. — Os nossos agentes não fizeram nenhuma menção a qualquer intenção de guerra. Certamente teríamos tido alguma indicação se o Conselho Governante d Menzoberranzan estivesse a planear algo tão dramático. — Sim — concordou o rei Schnicktick, para calar a tagarelice nervosa que se erguera depois da palavras sombrias do conselheiro. — A todos vós, lembro que não sabemos se os perpetradores

destas mortes relatadas foram elfos negros. — Com o teu perdão, meu rei — começou Krieger, hesitante. — Sim, guarda-tocas — respondeu imediatamente Schnicktick, acenando lentamente com uma mão gorda diante da cara para impedir quaisquer protestos. — Estás muito seguro das tuas observações. E conheço-te suficientemente bem para confiar na tua avaliação. Mas até que esta patrulha drow sej vista, no entanto, não presumirei nada. — Então, podemos pelo menos concordar que algo perigoso invadiu a nossa região leste — declarou outro conselheiro. — Sim — respondeu o rei svirfnebli. — Temos de tratar de descobrir a verdade desta matéria. Os túneis de leste ficam, assim sendo, vedados a quaisquer expedições mineiras — e o rei acenou de novo com as mãos, para acalmar os murmúrios que se seguiram. — Sei que vários filões prometedores foram relatados nessa área; lá chegaremos, assim que pudermos. Mas, por agora, as regiões leste, nordeste e sudeste ficam declaradas exclusivas de patrulhas de guerra. As patrulhas serão duplicadas, quer em número de grupos, quer na dimensão de cada um deles, e o seu raio de acção será ampliado para cobrir toda a região dentro de três dias de marcha de Blingdenstone. Este mistério tem de ser resolvido rapidamente. — E os nossos agentes na cidade drow? — perguntou um conselheiro. — Não deveríamo contactá-los? Schnicktick estendeu as mãos. — Mantende-vos calmos — explicou. — Manteremos os ouvidos bem abertos, mas não informemos os nossos inimigos de que suspeitamos dos seus movimentos. O rei svirfnebli não precisou de explicar a preocupação de que os seus agentes e Menzoberranzan poderiam não ser inteiramente fiáveis. Os informadores poderiam facilmente aceita pedras preciosas dos svirfnebli em troca de informações menores, mas se os poderes de Menzoberranzan estavam a planear algo de mais drástico relativamente a Blingdenstone, os agente muito provavelmente começariam a fazer jogo duplo contra os gnomos das profundezas. — Se ouvirmos algum relato invulgar vindo de Menzoberranzan — prosseguiu o rei —, ou se descobrirmos que os intrusos são de facto elfos drow, então aumentaremos a actividade da nossa rede de informadores. Até lá, que as patrulhas descubram o máximo que puderem. O rei dissolveu depois o conselho, preferindo ficar só no seu trono para avaliar estas notícias sombrias. Antes, nessa mesma semana, Schnicktick ouvira falar do ataque selvático de Drizzt à efígie do basilisco. Ultimamente, ao que parecia, o rei Schnicktick andava a ouvir falar demasiadas vezes de façanha dos elfos negros. As patrulhas de reconhecimento dos svirfnebli avançaram mais para os túneis de leste. Mesmo o grupos que nada descobriam regressavam a Blingdenstone cheios de suspeitas, pois tinham sentido no Subescuro uma calma que ia para além do normal. Nenhum svirfnebli tinha sido ferido até agora, mas nenhum deles parecia muito entusiasmado por partir nas patrulhas. Havia algo de malévolo nos túneis, sabiam-no instintivamente; algo que matava sem fazer perguntas e sem misericórdia.

Uma patrulha encontrou a caverna coberta de musgo que em tempos fora o refúgio de Drizzt. O re Schnicktick ficou desolado quando soube que os pacíficos micónides e os seus bem tratados campos de cogumelos tinham sido arrasados. No entanto, apesar das intermináveis horas que os svirfnebli já tinham passado a patrulhar os túneis, nem um único inimigo tinha sido encontrado. Continuaram a presumir que elfos negros, sempre tão discretos e brutais, estavam implicados em tudo aquilo. — E agora temos um elfo drow a viver na nossa cidade — lembrou um conselheiro ao rei durante uma das sessões diárias do conselho. — Causou algum problema? — perguntou Schnicktick. — Coisa menor — respondeu o conselheiro. — E Belwar Dissengulp, o Muito Honrado Guarda Tocas, intercede por ele e mantém-no em sua casa como convidado, não como prisioneiro. O guardatocas Dissengulp não aceita guardas perto do drow. — Mantenham o drow sob vigilância — disse o rei após um momento de avaliação. — Mas distância. Se é um amigo, como Mestre Dissengulp obviamente acredita, não deve sofrer a noss intromissão. — E quanto às patrulhas? — perguntou outro conselheiro, que era o representante da caverna de entrada que albergava a guarda da cidade. — Os meus soldados estão cada vez mais inquietos. Nad mais viram do que alguns sinais de batalha, nada mais ouviram a não ser o som das suas próprias botas cansadas a arrastar-se. — Temos de estar em alerta — lembrou-lhe o rei Schnicktick. — Se os elfos negros estiverem a reunir… — Não estão — respondeu com firmeza o conselheiro. — Não encontrámos nenhum acampamento, nem nenhum vestígio de acampamento. Esta patrulha de Menzoberranzan, se é que é uma patrulha, ataca e depois retira para algum refúgio que não conseguimos localizar, possivelmente magicamente inspirado. — E se os elfos negros realmente quisessem atacar Blingdenstone — disse outro —, deixaria para trás tantos sinais da sua actividade? O primeiro massacre, os duendes encontrados pela expedição do guarda-tocas Krieger, deu-se há quase uma semana, e a tragédia dos micónides foi algum tempo antes dessa. Nunca ouvi falar de elfos negros a vaguear junto de uma cidade inimiga e a deixar sinais como os duendes chacinados, durante dias antes de executarem o ataque. O rei tinha andado a pensar seguindo estas mesmas linhas desde havia algum tempo. Quando acordava, todos os dias, encontrava Blingdenstone intacta, e a ameaça de uma guerra co Menzoberranzan parecia cada vez mais distante. Mas, embora Schnicktick se reconfortasse por ve pensamentos semelhantes seutúneis conselheiro, ignorar as cenas sinistras quepor os ali, seus soldados tinham encontradononos de leste. não Algo,podia e provavelmente algo drow, andava e demasiado perto para o seu gosto. — Vamos presumir que Menzoberranzan não está a planear fazer guerra contra nós nesta altura — propôs Schnicktick. — Então, porque há elfos drow tão perto da nossa porta? Porque haveriam elfo drow de vir assolar os túneis a leste de Blingdenstone, tão longe de sua casa? — Expansão? — respondeu outro conselheiro.

— Salteadores renegados? — perguntou outro. Nenhuma dessas possibilidades parecia muito provável. Depois, um terceiro conselheiro avanço uma sugestão tão simples que apanhou os outros desprevenidos. — Andam à procura de alguma coisa. O rei dos svirfnebli pousou pesadamente o queixo vincado nas mãos, pensando que acabara de ouvir uma possível solução para o quebra-cabeças e sentindo-se tonto por não ter pensado nisso antes. — Mas de quê? — perguntou um dos conselheiros, obviamente a sentir o mesmo. — Os elfo negros raramente fazem mineração; e não o fazem muito bem, quando tentam, devo acrescentar… E não viriam tão longe de Menzoberranzan à procura de minerais preciosos. Do que poderiam os elfo negros andar à procura, tão perto de Blingdenstone? — De algo que tenham perdido — respondeu o rei. E imediatamente os seus pensamentos se concentraram no drow que tinha vindo viver entre o seu povo. Parecia ser uma coincidência demasiado grande para ser ignorada. — Ou de alguém — acrescentou Schnicktick. E os outros nã deixaram de perceber a ideia. — Talvez devêssemos convidar o nosso visitante drow para se sentar connosco no Conselho? — Não — respondeu o rei. — Mas talvez a nossa vigilância à distância desse Drizzt não sej suficiente. Mandem ordens a Belwar Dissengulp de que o drow deve ser vigiado a todo o tempo. Firble — disse para o conselheiro que estava mais perto dele —, uma vez que concluímos razoavelmente que não há nenhuma guerra iminente com os elfos negros, põe a rede de espiões em acção. Obtém mais informações de Menzoberranzan, e depressa. Não me agrada a ideia de ter elfo negros a vaguear junto à minha porta. Estraga muito a vizinhança. O conselheiro Firble, chefe da segurança secreta de Blingdenstone, fez um aceno de concordância embora não tivesse ficado agradado com o pedido. A informação de Menzoberranzan não era obtida facilmente, e grande parte das vezes revelava-se falsa. Firble não gostava de lidar com ninguém que pudesse levar-lhe a melhor, e contava os elfos negros entre os primeiros da sua lista dos que menos lhe agradavam. O espírito-espectro observou enquanto mais um grupo de patrulha svirfnebli avançava pelo túnel serpenteante. A sabedoria táctica do ser que em tempos fora o melhor mestre de armas de Menzoberranzan mantivera o monstro morto-vivo e a sua ansiosa espada quietos durante os últimos dias. Zaknafein não compreendia completamente o significado do número cada vez maior de patrulhas svirfnebli, mas sentia que a sua missão seria posta em perigo se atacasse algum deles. No mínimo, um ataque a um inimigo tão organizado faria soar alarmes em todos os corredores, alarmes esses que o fugidio Drizzt ouviria, decerto. O espírito-espectro tinha também vencido a sua ânsia de atacar outras coisas vivas e nada deixara às patrulhas svirfnebli para encontrar nos últimos dias, evitando propositadamente conflitos com as muitas criaturas da região. A vontade malévola de Matrona Malice Do’Urden seguia cada moviment de Zaknafein, abatendo-se incansavelmente sobre cada pensamento dele, instando-o a agir por uma grande vingança. Cada morte que Zaknafein provocava saciava essa vontade insidiosa por algu

tempo, mas a sabedoria táctica da coisa morta-viva sobrepunha-se a esse chamamento selvagem. O leve tremeluzir que restava daquilo que fora o raciocínio de Zaknafein sabia que só reencontraria a paz da morte quando Drizzt Do’Urden se lhe reunisse no seu sono eterno. O espírito-espectro manteve as espadas embainhadas enquanto observava os gnomos das profundezas a passar. Depois, enquanto outro grupo de svirfnebli cansados fazia o caminho de regresso ao oeste, outro tremeluzir de cognição agitou-se no interior do espírito-espectro. Se estes gnomos das profundezas eram tão proeminentes nesta região, parecia provável que Drizzt Do’Urden os tivesse encontrado. Desta vez, Zaknafein não deixou os gnomos das profundezas saírem do seu raio de visão. Flutuo desde o esconderijo do tecto cheio de estalactites e pôs-se atrás da patrulha, seguindo-a. O nome de Blingdenstone surgiu à beira do seu alcance consciente, numa recordação de uma vida anterior. «Blingdenstone», tentou o espírito-espectro dizer em voz alta. Era a primeira palavra que o monstro morto-vivo da Matrona Malice tentava pronunciar. Mas o nome saiu como apenas um ronco gutural.

Drizzt saiu com Seldig e os seus novos amigos muitas vezes durante os dias seguintes. Os joven gnomos das profundezas, aconselhados por Belwar, passaram o seu tempo com o elfo drow em jogos calmos e sem o pressionar; não mais o instaram a reencenar batalhas excitantes que tivesse tido no exterior, no Subescuro. Durante as primeiras vezes que Drizzt saiu, Belwar observava-o da sua porta. O guarda-toca confiava em Drizzt, mas também compreendia as provações por que o drow tinha passado. Uma vid de selvajaria e brutalidade como aquela que Drizzt tinha vivido não poderia ser tão facilmente deitada para trás. Depressa, porém, se tornou aparente a Belwar, e a todos os outros que observavam Drizzt, que o drow se tinha adaptado a um ritmo confortável com os jovens gnomos das profundezas e não era uma ameaça para nenhum dos svirfnebli de Blingdenstone. Até o rei Schnicktick, preocupado com o acontecimentos para lá das fronteiras da cidade, acabou por concordar que Drizzt merecia confiança. — Tens um visitante — disse Belwar para Drizzt uma manhã. Drizzt seguiu o guarda-tocas até porta de pedra, pensando que Seldig tivesse vindo chamá-lo mais cedo nesse dia. Quando Belwa abriu a porta, porém, Drizzt quase cambaleou com a surpresa, porque não era nenhum svirfnebli que o visitava na estrutura de pedra. Era, em vez disso, uma enorme e negra forma de felino. — Guenhwyvar! — gritou Drizzt, acocorando-se para receber a pantera que entrava a correr. Guenhwyvar fê-lo cair, sacudindo-o com uma grande patada, brincando. Quando por fim Drizzt conseguiu sair de debaixo da pantera e sentar-se, Belwar foi ter com ele entregou-lhe a estatueta de ónix. — Certamente o conselheiro que estava encarregue de examinar a pantera teve pena de se separar dela — disse o guarda-tocas. — Mas Guenhwyvar é teu amigo, o primeiro de todos e o mai importante. Drizzt não conseguiu encontrar palavras para responder. Mesmo antes do regresso da pantera, os gnomos das profundezas tinham-no tratado melhor do que ele merecia, ou pelo menos assim pensava. Que agora lhe devolvessem algo tão magicamente poderoso, mostrando-lhe uma tão absoluta confiança, tocava-o profundamente. — Quando quiseres, podes ir à Casa Centro, o edifício onde estiveste detido quando vieste te connosco — prosseguiu Belwar — para recolheres as tuas armas e pertences. Drizzt ficou um pouco hesitante perante essa ideia, lembrando-se do incidente com o basilisco fingido. Que prejuízos poderia ter provocado nesse dia se tivesse estado armado, não com paus, mas com as refinadas cimitarras drow? — Mantê-las-emos aqui, e ficarão seguras — disse Belwar, compreendendo a súbita preocupação do amigo. — Se precisares delas, aqui estarão. — Estou em dívida para contigo — respondeu Drizzt. — Em dívida para com Blingdenston inteira.

— Não consideramos que a amizade seja uma dívida — respondeu o guarda-tocas com uma piscadela de olho. Deixou Drizzt e Guenhwyvar e regressou ao seu quarto, permitindo aos dois amigos um reencontr em privado. Seldig e os outros jovens gnomos das profundezas tiveram uma surpresa enorme nesse dia, quando Drizzt foi ter com eles, com Guenhwyvar ao lado. Ao ver o felino a brincar com os svirfnebli, Drizz não podia deixar de se recordar daquele dia trágico, uma década antes, em que Masoj usara Guenhwyvar para perseguir o último dos mineiros em fuga de Belwar. Aparentemente, Guenhwyva tinha apagado essa memória horrível por completo, porque a pantera e os jovens gnomos das profundezas andaram o dia todo em brincadeiras. Drizzt só desejava poder, também ele, apagar tão facilmente os erros do passado. — Muito Honrado Guarda-Tocas — chegou a chamada uns dias depois, enquanto Belwar e Drizz estavam a desfrutar da sua refeição matinal. Belwar parou e ficou perfeitamente imóvel, e Drizzt não pôde deixar de reparar na inesperad expressão de dor que atravessou as feições largas do anfitrião. Drizzt acabara por conhecer muito bem o svirfnebli, e quando o nariz longo de águia de Belwar se franzia de uma determinada maneira, isso assinalava inevitavelmente alguma perturbação do guarda-tocas. — O rei reabriu os túneis de leste — prosseguiu a voz. — Há rumores de um grosso filão de minério a apenas um dia de marcha. Seria uma honra para a minha expedição se Belwar Dissengul arranjasse maneira de nos acompanhar. Um sorriso de esperança abriu-se no rosto de Drizzt, não por quaisquer ideias que tivesse de se aventurar reparou Belwar parecia demasiado reservado, numa comunidade svirfnebli lá quefora, era,mas peloporque contrário, muitoque aberta. — É o guarda-tocas Brickers — explicou Belwar a Drizzt sombriamente, não partilhand minimamente do entusiasmo do drow. — Um daqueles que vêm bater-me à porta antes de cada expedição, pedindo-me que os acompanhe nas suas expedições. — E tu nunca vais… — concluiu Drizzt. Belwar encolheu os ombros. — É um pedido de cortesia, nada mais — respondeu Belwar, com o nariz a retorcer-se e os dentes a ranger. — Não te consideras digno de caminhar ao lado deles… — acrescentou Drizzt, com um tom que destilava sarcasmo. Finalmente, pensou, tinha descoberto a fonte da frustração do amigo. Mais uma vez, Belwar encolheu os ombros. Drizzt instigou-o: — Já te vi trabalhar com as tuas mãos de mithral — disse. — Não serias um fardo para nenhu grupo! Na verdade, serias um bom complemento! Consideras-te assim tão depressa um diminuído, quando todos os que te rodeiam não consideram? Belwar bateu com força com a sua mão de martelo na mesa, abrindo uma racha considerável na pedra. — Consigo cortar pedra mais depressa do que eles todos juntos! — gritou o guarda-tocas

ferozmente. — E se viessem monstros atacar-nos… — rodopiou a mão de picareta no ar de forma ameaçadora, e Drizzt não duvidou de que o corpulento gnomo das profundezas seria capaz de usar com destreza o instrumento. — Tem um bom dia, Muito Honrado Guarda-Tocas — ouviu-se o grito final do outro lado da porta. — Como sempre, respeitamos a tua decisão, mas, como sempre, lamentaremos a tua ausência. Drizzt ficou a olhar fixamente, com curiosidade, para Belwar. — Porquê, então? — acabou por perguntar. — Se és tão competente como todos concordam, incluindo tu, porque ficas para trás? Sei bem o gosto que os svirfnebli têm nestas expedições, e mesmo assim não pareces interessado. Nem nunca falas das tuas aventuras fora de Blingdenstone. É minha presença que te retém em casa? Estás obrigado a manter-me sob vigilância? — Não — respondeu Belwar, com a sua voz profunda a ecoar por várias vezes nos ouvidos aguçados de Drizzt. — Foi-te permitido reaveres as tuas armas, elfo negro. Não duvides da noss confiança em ti. — Mas… — começou Drizzt. Mas parou imediatamente, percebendo subitamente a verdad acerca da relutância do gnomo das profundezas. — A batalha… — disse suavemente, quase num tom de desculpa. — Aquele dia malvado, há mais de uma década — O nariz de Belwar pareceu enrolarse e o gnomo das profundezas virou costas bruscamente. — Culpas-te pela perda dos teus companheiros! — continuou Drizzt, aumentando o volume da voz à medida que ganhava confiança no seu raciocínio. Mesmo assim, o drow quase não conseguia acreditar nas suas próprias palavras, enquanto as dizia. Mas quando Belwar se virou de novo para ele tinha os olhos húmidos e Drizzt soube que a palavras tinham acertado no alvo. Drizzt passou uma mão pela cabeleira espessa e branca, sem saber bem como reagir ao dilema pessoal de Belwar. Fora ele quem liderara pessoalmente a patrulha drow contra o grupo de mineiros svirfnebli, e sabia que nenhuma culpa pelo desastre poderia ser atribuída a nenhum dos gnomos das profundezas. No entanto, como poderia explicar isso a Belwar? — Lembro-me bem desse dia fatídico — começou Drizzt, hesitante. — Vivamente o lembro, como se esse momento de maldade tivesse ficado congelado nos meus pensamentos, para nunca mais de lá sair. — Não mais do que nos meus — murmurou o guarda-tocas. Drizzt acenou com a cabeça, concordando: — Mas de igual forma, pelo menos, porque dou comigo apanhado na mesma teia de culpa que te mantém a ti preso. Belwar olhou para ele com curiosidade, sem realmente o perceber. — Fui eu quem liderou a patrulha drow — explicou Drizzt. — Fui eu que encontrei o vosso grupo acreditando, erradamente, que fossem salteadores com intenção de se aproximarem de Menzoberranzan. — Se não fosses tu, outro teria sido — respondeu Belwar. — Mas nenhum os poderia ter conduzido até ali tão bem como eu — disse Drizzt. — Lá fora, n selva do Subescuro, eu estava em casa. Aquele era o meu domínio.

Belwar estava a escutar cada palavra de Drizzt, tal como este esperara. — E fui eu quem derrotou o elementar de terra — prosseguiu Drizzt, falando com naturalidade, sem mostrar vaidade. — Se não fosse a minha presença, a batalha teria sido equilibrada. Muito svirfnebli teriam sobrevivido para regressar a Blingdenstone. Belwar não conseguiu esconder um sorriso. Havia alguma verdade nas palavras de Drizzt, porqu ele fora de facto um factor preponderante no sucesso do ataque dos drow. Mas Belwar considerou a tentativa do amigo de lhe aliviar a culpa um pouco distante da verdade. — Não sei como podes culpar-te a ti mesmo — disse Drizzt, agora sorrindo e esperando que a su descontracção desse alguma porção de conforto ao amigo. — Com Drizzt Do’Urden ao comando d um grupo drow, nunca tiveste qualquer hipótese! — Magga cammara! É um assunto demasiado doloroso para se fazerem brincadeiras — respondeu Belwar, embora soltando uma pequena gargalhada involuntária enquanto dizia estas palavras. — Concordo — disse Drizzt, num tom subitamente sério. — Mas menosprezar a tragédia com um piada não é mais ridículo do que viver mergulhado em culpa por um incidente sem culpados. Ou melhor… — corrigiu-se rapidamente Drizzt — Em que a culpa recai sobre Menzoberranzan e os seus habitantes. Foram os costumes dos drow que causaram a tragédia. Foi a malvada existência que vivem todos os dias que condenou a tua expedição de mineiros pacíficos. — Um guarda-tocas está encarregado da responsabilidade pelo seu grupo — retorquiu Belwar. — Só um guarda-tocas pode dirigir uma expedição. Tem, por isso, de aceitar a responsabilidade pela sua decisão. — Decidiste conduzir os teus gnomos das profundezas para perto de Menzoberranzan? perguntou Drizzt. — Sim. — De tua livre vontade? — pressionou Drizzt. Acreditava já conhecer suficientemente o costumes dos svirfnebli para saber que a maioria, se não mesmo todas, das suas decisões importantes eram resolvidas democraticamente. — Sem uma palavra de Belwar Dissengulp, o grupo de mineiro nunca teria ido para aquela região? — Sabíamos do filão — explicou Belwar. — Um rico filão de minério. Foi decidido pel conselho que deveríamos correr o risco de ir até perto de Menzoberranzan. Eu chefiei o grupo nomeado para ir. — E se não tivesses sido tu, outro teria sido — notou Drizzt, copiando as palavras de Belwar d pouco antes. Um guarda-tocas tem de aceitar a responsabili… — começou Belwar, com o olhar a desviar-se de — Drizzt. — Eles não te culpam — disse Drizzt, seguindo o olhar vazio de Belwar até à porta de pedra. Honram-te e preocupam-se contigo! — Têm piedade de mim! — rosnou Belwar. — E precisas da piedade deles? — gritou Drizzt em resposta. — És menos do que eles? És u aleijado indefeso?

— Nunca fui tal coisa! — Então vai com eles! — gritou-lhe Drizzt. — Vai ver se realmente têm pena de ti. Não acredito nisso, mas se os teus preconceitos se provarem verdadeiros, se a tua gente realmente tem pena do «Muito Honrado Guarda-Tocas», então mostra-lhe a verdade sobre Belwar Dissengulp! Se os teu companheiros não sentem por ti piedade, nem te culpam de nada, então não ponhas sobre os teus ombros o fardo de nenhuma delas! Belwar ficou a olhar para o amigo durante um longo momento, mas não respondeu. — Todos os mineiros que te acompanhavam sabiam o risco de se aventurarem tão perto de Menzoberranzan — lembrou-lhe Drizzt, com um sorriso a abrir-se-lhe no rosto. — Nenhum deles incluindo tu, sabia que Drizzt Do’Urden iria liderar os drow contra ti. Se soubessem, certament teriam ficado em casa! — Magga cammara! — resmungou Belwar. Abanou a cabeça, incrédulo, tanto por causa da atitude brincalhona de Drizzt quanto pelo facto de, pela primeira vez em mais de uma década, se sentir realmente melhor com as suas trágicas recordações. Levantou-se da mesa de pedra, fez u sorriso para Drizzt e dirigiu-se ao seu quarto. — Aonde vais? — perguntou Drizzt. — Descansar — respondeu o guarda-tocas. — Os acontecimentos deste dia já me cansaram. — A expedição mineira vai partir sem ti. Belwar regressou à sala e lançou um olhar de incredulidade a Drizzt. O drow esperaria realment que ele deitasse tão facilmente para trás tantos anos de culpa, e simplesmente partisse aos pulos de alegria com os mineiros? — Pensei sempre que Belwar Dissengulp tinha mais coragem… — disse-lhe Drizzt. A expressão de desprezo que perpassou pelo rosto do guarda-tocas foi genuína, e Drizzt percebeu que tinha encontrado um ponto fraco na armadura de auto-comiseração de Belwar. — Atrevidamente falas — rosnou Belwar com uma careta. — Atrevidamente para um cobarde — respondeu Drizzt. O svirfnebli com as mãos de mithral retesou-se, com a respiração a vir em grandes ondas ao peito densamente musculado. — Se não gostas desse título, então lança-o fora! — gritou-lhe Drizzt na cara. — Vai com os mineiros. Mostralhes o verdadeiro Belwar Dissengulp, e aprende por ti próprio! Belwar juntou as mãos de mithral. — Vai lá para fora, então, e traz as tuas armas! — ordenou Belwar. Drizzt hesitou. Teria acabado de ser desafiado? Teria ido demasiado longe na sua tentativa de sacudir o guarda-tocas das grilhetas da culpa que o atormentava? — Pegatunas tuas armas, mineiros, também vens!Drizzt Do’Urden! — rosnou Belwar de novo. — Porque se eu vou com o Radiante, Drizzt apertou a cabeça do gnomo das profundezas entre as suas longas e esguias mãos e bateu com a testa suavemente na testa de Belwar, ambos trocando olhares de profunda admiração e afecto. Num instante, Drizzt apressou-se a procurar as suas armas, a sua cota de malha, o seupiwafwi e as suas cimitarras. Belwar bateu com uma mão na testa, incrédulo, quase desmaiando com o impacto, e viu Drizzt sai

de casa numa correria. Haveria de ser uma viagem bem interessante. O guarda-tocas Brickers aceitou prontamente Belwar e Drizzt, embora tivesse dado a Belwar u olhar de interrogação nas costas de Drizzt, inquirindo sobre a respeitabilidade do drow. Nem o desconfiado guarda-tocas poderia, no entanto, negar o valor de ter um elfo negro como aliado, lá fora na selva do Subescuro, particularmente tendo em conta os rumores de actividade drow nos túneis de leste, se fossem verdade. Mas a patrulha não viu nenhuma actividade, nem nenhuma carnificina, enquanto avançava para a região mencionada pelos batedores. Os rumores de um filão de minério não eram minimamente exagerados, e os vinte e cinco mineiros da expedição começaram a trabalhar com um empenho que estava para além de tudo o que Drizzt jamais vira. Drizzt ficou especialmente contente por Belwar, porque o martelo e a picareta do guarda-tocas cortavam a pedra com uma precisão e uma força que deixavam todos os outros para trás. Não tardou muito para Belwar perceber que os seu companheiros não tinham pena dele, de forma alguma. Era um membro da expedição — um membro de honra e não um fardo — que enchia carrinhos de mão com mais minério do que qualquer um dos seus companheiros. Ao longo dos dias que passavam nos túneis serpenteantes, Drizzt e Guenhwyvar, quando o felino estava disponível, mantinham uma vigilância apertada em redor do campo. No primeiro dia de mineração, o guarda-tocas Brickers atribuiu um terceiro companheiro de guarda a Drizzt e Guenhwyvar, e Drizzt suspeitou correctamente de que este novo companheiro svirfnebli tinha sido nomeado tanto para vigiar os perigos exteriores, como para o vigiar a ele. Enquanto o tempo ia passando, porém, e a tropa de gnomos das profundezas se ia habituando ao seu companheiro de pele de ébano, foi permitido a Drizzt vaguear por onde quisesse. Foi uma viagem sem contratempos e lucrativa, tal como os svirfnebli gostavam, e depressa encheram os carrinhos de minerais preciosos, sem terem encontrado um único monstro. Dando palmadas nas costas uns aos outros — com Belwar a tomar a precaução de não bater com demasiada força — reuniram o equipamento, puseram os carrinhos em fila e partiram para casa, numa viagem que lhes levaria dois dias, com o fardo dos carrinhos pesados com a carga. Após apenas algumas horas de marcha, um dos batedores mais à frente da caravana regressou para trás, com uma expressão sombria. — O que é? — perguntou o guarda-tocas Brickers, suspeitando de que a boa sorte se tinh acabado. — Uma tribo de duendes — respondeu o batedor svirfnebli. — Pelo menos dois grupos. Montaram acampamento numa pequena câmara mais adiante, a oeste e numa passagem em subida. O guarda-tocas Brickers bateu com um punho num dos carrinhos. Não duvidava de que os seu mineiros pudessem dar conta do bando de duendes, mas não queria sarilhos. Com os pesados carrinhos a arrastarem-se ruidosamente, evitar os duendes não seria tarefa fácil. — Passem palavra para trás para ficarmos parados e em silêncio — decidiu por fim. — Se um luta tiver de haver, que sejam os duendes a vir ter connosco.

— Qual é o problema? — perguntou Drizzt a Belwar, quando este chegou ao fim da caravana. Drizzt tinha estado de vigia à retaguarda desde que a expedição desmontara o acampamento. — Um bando de duendes — respondeu Belwar. — Brickers diz para ficarmos quietos e esperarmos que passem por nós. — E se não passarem? — teve de perguntar Drizzt. Belwar bateu com uma mão na outra. — São apenas duendes — murmurou sinistramente —, mas eu, e todos os meus, preferiríamos que o caminho estivesse desimpedido. Agradou a Drizzt saber que os seus companheiros não estavam ansiosos por lutar, nem mesmo contra um inimigo que sabiam que poderiam derrotar facilmente. Se Drizzt estivesse a viajar com u grupo drow, provavelmente toda a tribo de duendes estaria já morta por essa altura. — Vem comigo — disse Drizzt a Belwar. — Preciso que ajudes o guarda-tocas Brickers entender-me. Tenho um plano, mas receio que o meu domínio limitado da tua língua não me permita explicar as subtilezas. Belwar prendeu Drizzt com a mão de picareta, fazendo o magro drow rodar mais abruptamente do que pretendera. — Não desejamos conflitos — explicou. — É melhor que os duendes sigam o seu caminho. — Não desejo nenhuma luta — garantiu-lhe Drizzt com uma piscadela de olho. Satisfeito, o gnomo das profundezas pôs-se em marcha atrás dele. Brickers sorriu largamente quando Belwar lhe traduziu os planos de Drizzt. — Valerá bem a pena ver as expressões nas caras dos duendes! — riu-se Brickers para Drizzt. — Terei muito prazer em te acompanhar eu próprio! — É melhor deixares isso comigo — disse Belwar. — Conheço as línguas do duendes e do drow, e tu tens responsabilidades aqui, caso as coisas não corram como esperamos. — Também eu conheço a língua dos duendes — respondeu Brickers. — E consigo perceber o nosso companheiro elfo negro suficientemente bem. Quanto aos meus deveres com a caravana, não são tão grandes como pensas, porque há outro guarda-tocas a acompanhar-nos hoje. — Mas um que não via a selva do Subescuro há muitos anos — relembrou-lhe Belwar. — Ah, mas este guarda-tocas era o melhor da sua arte — retorquiu Brickers. — A caravana fica sob teu comando, guarda-tocas Belwar. Prefiro ir ao encontro dos duendes com o drow. Drizzt compreendeu o suficiente das palavras trocadas para perceber as intenções de Brickers. Antes que Belwar pudesse argumentar, pôs-lhe uma mão no ombro e disse: — Se os duendes não se deixarem enganar e precisarmos de ti, vê se vens depressa e em força. Depois, Brickers retirou as armas e o equipamento levou-o diante. Belwar para os outros cautelosamente, sem saber como eles eseDrizzt sentiriam compara aquela decisão. O voltou-s primeiro olhar de relance para os mineiros da caravana disse-lhe que estavam todos firmemente a seu lado, com cada um à espera e pronto para executar as suas ordens. O guarda-tocas Brickers não ficou minimamente desapontado com as expressões dos rosto angulosos e dentados dos duendes quando ele e Drizzt foram ao seu encontro. Um duende lançou u guincho e ergueu uma lança para a disparar, mas Drizzt, usando as suas capacidades mágicas inatas,

fez cair um globo de escuridão sobre a cabeça dele, cegando-o completamente. A lança saiu disparada na mesma, mas Drizzt sacou de uma cimitarra e partiu-a em duas em pleno voo. Brickers, que, com as mãos atadas, fingia ser um prisioneiro nesta farsa, ficou de boca aberta co a velocidade e a facilidade com que o drow tinha acabado com a lança. O svirfnebli olhou depois para o bando de duendes e viu que estes tinham ficado igualmente impressionados. — Mais um passo e eles morrem — prometeu Drizzt na língua dos duendes, que era um linguagem de sons guturais e guinchos alternados. Brickers só percebeu um momento mais tarde, quando ouviu uma correria de botas e um guincho vindo de trás. O gnomo das profundezas virou-se e viu dois duendes, perseguidos pelas chamas púrpura do fogo feérico do drow, a correr para longe dali o mais depressa que os seus pés macios lhes permitiam. Mais uma vez, o svirfnebli olhou para Drizzt com admiração. Como tinha ele percebido que havi duendes sorrateiros atrás deles? Brickers não sabia, evidentemente, do caçador, do outro eu de Drizzt Do’Urden que dava a est drow uma vantagem decisiva em encontros como este. Nem podia saber que nesse momento Drizz estava empenhado noutra luta, desta vez para controlar esse perigoso alter-ego. Drizzt olhou para a cimitarra que tinha na mão e voltou a olhar para o grande grupo de duendes. Pelo menos umas três dezenas deles estavam em prontidão, e o caçador incitava Drizzt a atacar, a dizimar com estrépito os monstros cobardes e a mandá-los a voar por cada saída daquela sala. U único olhar para o companheiro svirfnebli, no entanto, lembrou a Drizzt o seu plano ao ir ali e permitiu-lhe afastar o caçador. — Quem é o chefe? — perguntou num gutural tom de duende. O chefe dos duendes não estava muito desejoso de se destacar diante de um elfo drow, mas uma dúzia dos seus subordinados, mostrando bem a típica coragem e lealdade dos duendes, recuou sobre os calcanhares e apontou os dedos gordos na direcção dele. Sem outra alternativa, o chefe dos duendes encheu o peito de ar, endireitou os ombros ossudos e avançou em direcção ao drow. — Bruck! — apresentou-se, batendo com um punho do peito. — Porque estão aqui? — perguntou Drizzt, rindo-se perante o gesto do outro. Bruck simplesmente não sabia como responder a esta pergunta. Nunca antes o duende pensara e pedir permissão para os movimentos da sua tribo. — Esta região pertence aos drow! — rosnou Drizzt. — O vosso lugar não é aqui! — Cidade drow muitos dias — queixou-se Bruck, apontando por cima da cabeça de Drizzt — n direcção errada para Menzoberranzan, notou o elfo, mas deixou passar o erro. — Aqui terra svirfnebli. — Por agora… — respondeu Drizzt, espicaçando Brickers com a ponta da cimitarra. — Mas minha gente decidiu proclamar esta região como sua! — Uma pequena centelha brilhou nos olhos cor de alfazema de Drizzt e um sorriso sobranceiro abriu-se-lhe no rosto. — Bruck e a sua tribo de duendes pretendem opor-se a isso? Bruck estendeu as mãos de dedos longos num gesto de desespero. — Vão-se! — exigiu Drizzt. — Não precisamos de escravos neste momento, nem queremos que

som revelador de uma batalha ecoe pelos túneis! Considera-te sortudo, Bruck. A tua tribo permanecerá livre e viva… por esta vez! Bruck virou-se para os outros, em busca de alguma ajuda. Apenas um elfo drow estava ali contra eles, e eles eram mais de três dezenas de duendes armados. As probabilidades eram boas, se não mesmo esmagadoras. — Vão-se! — exigiu Drizzt, apontando a cimitarra para uma passagem lateral. — Corram até qu os vossos pés já não possam convosco! O chefe duende pousou desafiadoramente os polegares no pedaço de corda que lhe servia de cinto. Uma cacofonia de ruídos ecoou a toda a volta da pequena sala nesse momento, mostrando o ritmo de um bater intencional na pedra. Bruck e os outros duendes olharam em volta nervosamente e Drizz não desperdiçou a oportunidade. — Atreves-te a desafiar-nos? — gritou o drow, fazendo Bruck ficar rodeado pelas chamas púrpura. — Que seja então o imbecil Bruck o primeiro a morrer! Antes que Drizzt acabasse sequer a frase, o chefe dos duendes já tinha desaparecido, correndo toda a velocidade pela passagem que lhe tinha apontado. Justificando a fuga como uma questão de lealdade para com o chefe, todo o bando de duendes foi atrás dele. O mais apressado até passou à frente de Bruck. Uns momentos mais tarde, Belwar e os outros svirfnebli apareceram em todas as passagens. — Pensei que precisassem de alguma ajuda — explicou o guarda-tocas com as mãos de mithral, batendo com o martelo na pedra. — Perfeitos foram o teu sentido de oportunidade e o teu juízo, Muito Honrado Guarda-Tocas disse Brickers para o seu par quando conseguiu parar de rir. — Tão perfeitos como seria de esperar de Belwar Dissengulp. Pouco depois, a caravana dos svirfnebli recomeçou a marcha, com todo o grupo exultante e excitado com os acontecimentos dos últimos dias. Os gnomos das profundezas consideravam-se muito inteligentes pela forma como tinham evitado sarilhos. A alegria transformou-se numa festa total quando chegaram a Blingdenstone — e os svirfnebli, embora fossem normalmente uma gente séria e dedicada ao trabalho, sabiam fazer festas melhor do que ninguém nos Reinos. Drizzt Do’Urden, apesar de todas as suas diferenças físicas em relação aos svirfnebli, sentia-s mais à vontade ali do que alguma vez se sentira nas quatro décadas da sua vida. E nunca mais Belwar Dissengulp se encolheu quando outro svirfnebli lhe chamava «Muit Honrado Guarda-Tocas». O espírito-espectro estava confuso. Quando Zaknafein começara a acreditar que a sua presa estav com os svirfnebli, os encantamentos mágicos que Malice lhe tinha lançado sentiram a presença de Drizzt nos túneis. Felizmente para Drizzt e os mineiros svirfnebli, o espírito-espectro estav demasiado longe quando sentira o rasto. Zaknafein percorrera o caminho de regresso aos túneis, evitando as patrulhas dos gnomos das profundezas. Cada encontro potencial que evitava mostrava ser um esforço enorme para Zaknafein, pois a Matrona Malice, no seu trono em Menzoberranzan, estav cada vez mais impaciente e agitada.

Malice queria sentir o sabor do sangue, mas Zaknafein manteve o objectivo. Contudo, depois subitamente, o rasto desaparecera. Bruck suspirou bem alto quando outro elfo negro solitário apareceu no seu acampamento no dia seguinte. Ninguém ergueu uma lança e nenhum duende tentou aparecer por detrás deste elfo. — Viemos embora, como nos foi mandado! — queixou-se Bruck, avançando para a frente do grupo antes mesmo de ser chamado. O chefe dos duendes já sabia, desta vez, que os seus súbditos o nomeariam, de qualquer forma. Se o espírito-espectro compreendia sequer as palavras do duende, não mostrou de forma alguma. Zaknafein continuou a andar em frente para o chefe dos duendes, com as espadas nas mãos. — Mas nós… — começou Bruck. Mas as suas restantes palavras saíram como golfadas de sangue Zaknafein retirou a espada da garganta do duende e carregou sobre os restantes. Os duendes espalharam-se em todas as direcções. Uns poucos, encurralados entre o drow irado e a parede de pedra, ergueram as toscas lanças para se defenderem. O espírito-espectro passou por entre elas, destroçando armas e membros a cada golpe. Um duende conseguiu fazer passar a lança por entre as espadas rodopiantes, com a ponta a mergulhar profundamente na anca de Zaknafein. O monstro morto-vivo nem sequer hesitou. Virou-se para o duende e atingiu-o com uma série de golpes rápidos como relâmpagos e perfeitamente apontados das suas armas. No fim, quinze duendes estavam mortos na sala e a tribo estava espalhada por todas as passagens da área. O espírito-espectro, coberto de sangue dos seus inimigos, saiu da sala pela passagem oposta àquela por onde tinha entrado, prosseguindo a sua busca frustrada do fugidio Drizzt Do’Urden. Em Menzoberranzan, na antecâmara da capela da Casa Do’Urden, a Matrona Malice descansav completamente esgotada e momentaneamente saciada. Sentira cada morte que Zaknafein provocara, sentira uma explosão de êxtase cada vez que o espírito-espectro mergulhara a espada em mais uma vítima. Malice afastou as frustrações e a impaciência, com a confiança renovada pelos prazeres da cruel chacina de Zaknafein. Como seria grande o êxtase de Malice quando o espírito-espectro finalment encontrasse o seu traiçoeiro filho!

O conselheiro Firble de Blingdenstone avançou hesitantemente para a pequena caverna, o local de encontro designado. Um exército de svirfnebli, incluindo vários gnomos das profundezas encantadores que seguravam pedras que podiam convocar elementares de terra aliados, deslocaramse para posições defensivas ao longo dos corredores a oeste da sala. Apesar disso, Firble não estava à vontade. Olhava para o fundo do túnel de leste, única outra entrada para a sala, interrogando-se que informação o seu agente teria para ele e preocupando-se com quanto lhe iria custar. Então, o drow entrou confiantemente, com a suas botas altas pretas a bater sonoramente na pedra. O olhar doalidrow dardejou rapidamente pela sala, para encontros se assegurar que Firble era oaté único svirfnebli presente — como era habitual nos seus — de e depois avançou ao conselheiro dos gnomos das profundezas e fez uma vénia. — Saudações, pequeno amigo com uma grande bolsa — disse o drow com uma gargalhada. O se domínio da língua dos svirfnebli, com as inflexões e pausas perfeitas de um gnomo das profundezas que tivesse vivido um século em Blingdenstone, espantavam sempre Firble. — Podias ter um pouco mais de cuidado — retorquiu Firble, olhando em volta mais uma vez, ansiosamente. — Ora… — respondeu o drow, batendo com os tacões das botas. — Tens um exército de guerreiros gnomos das profundezas atrás de ti, e eu… Bom, digamos apenas que também estou be protegido. — Desse facto não duvido, Jarlaxle — respondeu Firble. — Mesmo assim, preferia que os nosso assuntos permanecessem tão privados e secretos quanto possível. — Todos os negócios com Bregan D’aerthe são privados, meu caro Firble — respondeu Jarlaxle fazendo de novo uma vénia profunda, rodopiando o grande chapéu de plumas num arco longo e gracioso. — Basta disso — disse Firble. — Despachemos o nosso assunto, para que possa regressar minha casa. — Pergunta, então — disse Jarlaxle. — Tem havido algum aumento de actividade drow perto de Blingdenstone… — explicou o gnomos das profundezas. — Ah, tem? — perguntou Jarlaxle, parecendo surpreendido. Mas o sorriso trocista do drow revelava as suas verdadeiras emoções. Seria um lucro fácil par Jarlaxle, pois a mesma matrona que em Menzoberranzan recentemente o tinha contratado estava se dúvida ligada às preocupações de Blingdenstone. Jarlaxle gostava de coincidências que lhe fazia chegar rendimentos fáceis. Firble conhecia bem demais a manha da surpresa fingida. — Tem — disse firmemente. — E queres saber porquê — concluiu Jarlaxle, ainda mantendo a fachada de ignorância.

— Parece o mais prudente, do nosso ponto de vista — resmungou o conselheiro, cansado dos ogos de Jarlaxle. Firble sabia sem quaisquer dúvidas que Jarlaxle estava ciente da actividade drow perto de Blingdenstone, e do propósito por detrás dela. Jarlaxle era um renegado sem Casa, o que er normalmente uma posição pouco saudável no mundo dos elfos negros. E no entanto este mercenário hábil sobrevivia — e vivia cada vez melhor — na sua posição de renegado. No meio de tudo aquilo, a maior vantagem de Jarlaxle eram os seus conhecimentos — conhecimentos de cada movimento e Menzoberranzan e nas regiões em redor da cidade. — De quanto tempo precisarás? — perguntou Firble. — O meu rei deseja acabar este assunto mais depressa possível. — Tens o meu pagamento? — perguntou o drow, estendendo uma mão. — Serás pago quando me trouxeres a informação — protestou Firble. — Sempre foi esse o noss acordo. — Assim é — concordou Jarlaxle. — Desta vez, porém, não preciso de tempo para reunir informação que queres. Se tens as minhas pedras preciosas, podemos despachar o assunto agora mesmo. Firble pegou numa bolsa de pedras preciosas que trazia à cintura e atirou-a para o drow. — Cinquenta ágatas, finamente lapidadas — disse com um suspiro, sempre desagradado com o preço. Tinha esperado poder evitar usar Jarlaxle desta vez; como qualquer outro svirfnebli, Firble não se separava de tais somas com facilidade. Jarlaxle olhou rapidamente para dentro da bolsa, e depois enfiou-a num bolso. — Descansa, pequeno gnomo das profundezas — começou —, porque os poderes que governa Menzoberranzan não planeiam nenhuma acção contra a vossa cidade. Apenas uma Casa drow te interesses na região, nada mais. — Porquê? — perguntou Firble ao fim de um longo momento. O svirfnebli detestava ter d perguntar, sabendo a consequência inevitável. Jarlaxle estendeu a mão. Mais dez ágatas finamente lapidadas lhe foram entregues. — A Casa procura por um dos seus — explicou Jarlaxle. — Um renegado cujas acções puseram família em desfavor junto da Rainha Aranha. Mais uma vez, passaram alguns momentos que pareciam intermináveis. Firble podia facilmente calcular a identidade do drow perseguido, mas o rei Schnicktick teria um acesso de cólera se não se assegurasse da verdade. Pegou em mais dez pedras preciosas. queN’a’shezbaernon Casa — disse. — respondeu Jarlaxle, deixando cair casualmente as pedras no — Diz-me Daermon bolso. Firble cruzou os braços sobre o peito e fez um ar de desprezo. O drow sem escrúpulos tinha-o enganado mais uma vez. — Não é o nome ancestral que quero! — rugiu o conselheiro, puxando contrariado de mais dez pedras.

— Francamente, Firble… — troçou Jarlaxle. — Tens de aprender a ser mais específico nas tua perguntas. Esses erros custam-te realmente caro. — Diz o nome da Casa em termos que eu possa entender — instruiu Firble. — E o nome d renegado. Nada mais te pagarei hoje, Jarlaxle. Jarlaxle ergueu uma mão e sorriu para calar o gnomo das profundezas. — De acordo — riu-se, mais do que satisfeito com o seu ganho. — A Casa Do’Urden, Oitav Casa de Menzoberranzan, procura o seu Segundo Rapaz — o mercenário notou uma centelha d reconhecimento na expressão de Firble. Poderia este pequeno encontro dar-lhe alguma informação que poderia transformar em mais rendimentos saídos dos cofres da Casa Do’Urden? — Drizzt é nome dele — prosseguiu o drow, estudando cuidadosamente as reacções do svirfnebli. Matreiro, acrescentou: — Informação sobre o seu paradeiro valeria um bom rendimento em Menzoberranzan. Firble olhou fixamente para o atrevido drow durante um longo momento. Teria deixado escapar demasiado, quando a identidade do procurado fora revelada? Se Jarlaxle tinha adivinhado que Drizz estava na cidade do gnomos das profundezas, as implicações poderiam ser sinistras. Agora, Firble estava em apuros. Deveria admitir o erro e tentar corrigi-lo? Mas quanto custaria comprar promessa de silêncio de Jarlaxle? E, por muito grande que fosse o pagamento, poderia Firbl realmente confiar naquele mercenário sem escrúpulos? — O nosso assunto está terminado — anunciou Firble, decidindo confiar que Jarlaxle nã adivinhara o suficiente para negociar com a Casa Do’Urden. O conselheiro girou sobre o calcanhares e começou a dirigir-se para a saída da sala. Jarlaxle aplaudiu secretamente a decisão de Firble. Sempre acreditara que o conselheiro svirfnebli era um adversário digno de respeito, e também não ficou desapontado desta vez. Firble revelara pouca informação; demasiado pouca para poder levar à Matrona Malice; e se o gnomo da profundezas tinha mais para dar, a sua decisão de acabar abruptamente com a reunião tinha sido sensata. Apesar das diferenças raciais, Jarlaxle tinha de admitir que até gostava de Firble. — Pequeno gnomo — chamou a pequena figura que se afastava. — Ofereço-te um aviso. Firble virou-se, com a mão defensivamente pousada na bolsa de pedras preciosas. — É gratuito — disse Jarlaxle com uma gargalhada e abanando a cabeça calva. Mas depois a car do mercenário ficou muito séria, até sombria. — Se souberes de Drizzt Do’Urden — prosseguiu mercenário —, afasta-te dele. A própria Lolth encarregou a Matrona Malice Do’Urden de mata Drizzt, e Malice fará tudo o que tiver de ser feito para cumprir essa tarefa. E mesmo que Malic falhe, outros continuarão a busca, sabendo que a morte do Do’Urden dará grande prazer à Rainh Aranha. Está condenado, Firble, e condenado igualmente estará quem for suficientemente tolo par estar ladodesnecessário dele. — do Aviso — respondeu Firble, tentando manter uma expressão calma. — Porque ninguém em Blingdenstone sabe desse renegado ou se rala com isso. E também ninguém e Blingdenstone, garanto-te, deseja encontrar os favores da divindade Rainha Aranha dos elfos negros! Jarlaxle sorriu cumplicemente perante a dissimulação do svirfnebli. — Claro — respondeu. E rodopiou o grande chapéu mais uma vez, fazendo mais uma vénia. Firble parou por um momento para considerar as palavras e a vénia de Jarlaxle, indagando-se

mais uma vez se deveria tentar comprar o silêncio do mercenário. Antes que chegasse a qualquer conclusão, porém, já Jarlaxle desaparecera, batendo as suas bota rijas com força a cada passo. O pobre Firble foi deixado na dúvida. Mas não precisava de se preocupar. Jarlaxle gostava de facto do pequeno Firble, admitiu o mercenário para si mesmo enquanto partia; e não divulgaria as suas suspeitas sobre o paradeiro de Drizzt à Matrona Malice. A não ser, evidentemente, que a oferta fosse demasiado tentadora. Firble ficou parado a olhar para a sala vazia durante vários minutos, indagando-se, preocupado. Para Drizzt, os dias tinham sido preenchidos com amizade e divertimento. Era uma espécie de heró unto dos mineiros svirfnebli que tinham ido para os túneis com ele, e a história da sua engenhosa artimanha contra os duendes crescia a cada vez que era contada. Drizzt e Belwar saíam agor frequentemente e, sempre que entravam numa taberna ou casa de diversão, eram recebidos com vivas e ofertas de comida e bebida. Ambos os amigos estavam gratos um pelo outro, pois juntos tinham encontrado o seu lugar e a sua paz. O guarda-tocas Brickers e Belwar já estavam a planear outra expedição mineira. A maior taref era reduzir a lista de voluntários, porque svirfnebli de todos os cantos da cidade os tinham contactado, desejosos de viajar ao lado do elfo negro e dos muito honrados guarda-tocas. Quando bateram forte e persistentemente à porta de Belwar certa manhã, tanto ele como Drizz pensaram que seriam mais recrutas à procura de um lugar na expedição. Ficaram muito surpreendidos quando viram a guarda da cidade à sua espera, convocando Drizzt, sob a ameaça de uma dúzia de lanças, para uma audiência com o rei. Belwar pareceu pouco preocupado. — Mera precaução — assegurou a Drizzt, afastando o prato do pequeno-almoço. Foi à pared buscar a capa, e se Drizzt, concentrado nas lanças, tivesse reparado nos movimentos inseguros e nervosos do amigo, não teria decerto ficado nada tranquilizado. A viagem pela cidade dos gnomos das profundezas foi rápida, com os guardas ansiosos a incitar o drow e o guarda-tocas. Belwar continuou a menosprezar o assunto como uma «precaução» a cada passo, e na verdade fez um bom trabalho de manter um certo tom de calma na sua voz profunda. Mas Drizzt não tinha ilusões quando entrou na sala do rei. Toda a sua vida fora preenchida com finais estrepitosos para começos promissores. O rei Schnicktick estava sentado no seu trono de pedra, parecendo desconfortável, com o conselheiros igualmente pouco à vontade à sua volta. Não gostava deste encargo que tinha recaído sobre os seus ombros — os svirfnebli consideravam-se amigos leais —, mas, tendo em conta as revelações do conselheiro Firble, a ameaça a Blingdenstone não podia ser ignorada. Especialmente quando se tratava de elfos negros. Drizzt e Belwar avançaram até ficar diante do rei. Drizzt estava curioso, mas pronto para aceitar que quer que dali saísse; mas Belwar estava à beira de uma explosão de ira. — Os meus agradecimentos pela vossa pronta vinda — saudou o rei Schnicktick. Depoi pigarreou e olhou em volta para os conselheiros, em busca de apoio.

— As lanças têm o efeito de manter uma pessoa em movimento — rosnou Belwar sarcasticamente. O rei svirfnebli pigarreou de novo, claramente desconfortável, e mexeu-se na cadeira. — A minha guarda por vezes entusiasma-se, com efeito — desculpou-se. — Por favor não se ofendam. — Não me ofendeste — garantiu Drizzt. — O tempo passado na nossa cidade foi-te agradável? — perguntou Schnicktick, conseguindo fazer um pálido sorriso. Drizzt assentiu com a cabeça. — A tua gente tem sido generosa para além de tudo o que eu poderia alguma vez esperar — respondeu. — E tu demonstraste ser um amigo merecedor, Drizzt Do’Urden — disse Schnicktick. — A nossas vidas foram verdadeiramente enriquecidas pela tua presença. Drizzt fez uma profunda vénia, cheio de gratidão pelas palavras amáveis do rei svirfnebli. Ma Belwar semicerrou os seus olhos cinzentos-escuros e franziu o nariz de águia, começando a perceber aonde o rei iria chegar. — Infelizmente — começou o rei, olhando em volta suplicante para os conselheiros, e não directamente para Drizzt —, surgiu-nos uma situação… — Magga cammara! — rugiu Belwar, fazendo estremecer todos os que estavam na sala. — Não! O rei Schnicktick e Drizzt olharam para o guarda-tocas incrédulos. — Querem mandá-lo embora — disparou Belwar acusadoramente para Schnicktick. — Belwar! — começou Drizzt a protestar. — Muito Honrado Guarda-Tocas — disse o rei svirfnebli com severidade —, não está autorizado a interromper. Se o voltares a fazer, serei forçado a mandar-te sair da sala. — Então, é verdade — resmungou Belwar em voz baixa. E afastou o olhar. Drizzt olhava para um e para o outro, confuso com a finalidade de toda aquela reunião. — Ouviste falar das suspeitas de actividade drow nos túneis junto à nossa fronteira leste? — perguntou o rei a Drizzt. Drizzt assentiu. — Soubemos qual o propósito dessa actividade — explicou Schnicktick. A pausa que o rei fez enquanto olhava mais uma vez para os seus conselheiros provocou arrepios em Drizzt. Sabia se quaisquer dúvidas o que aí vinha, mas as palavras magoavam-no profundamente, de qualquer forma. — Tu, Drizzt Do’Urden, és o motivo dessa actividade. — A minha mãe procura-me… — respondeu calmamente Drizzt. — Mas nãomãe te encontrará! — rugiu desafio fores dirigido a Schnicktick, como das desconhecida do seu novo amigo.Belwar, — Nãonum enquanto umtanto convidado dos gnomos profundezas de Blingdenstone! — Belwar, espera! — ralhou o rei Schnicktick. Voltou a olhar para Drizzt e o rosto suavizou-selhe. — Por favor, amigo Drizzt, compreende que não posso arriscar uma guerra co Menzoberranzan! — Compreendo, claro — garantiu-lhe Drizzt com sinceridade. — Vou recolher as minhas coisas.

— Não! — protestou Belwar, correndo para o trono. — Somos svirfnebli. Não abandonamos o nossos amigos diante do perigo! — o guarda-tocas correu de conselheiro para conselheiro, exigindo ustiça. — Drizzt Do’Urden só nos demonstrou amizade, e querem expulsá-lo?Magga cammara! Se as nossas lealdades são tão frágeis, seremos melhores do que os drow de Menzoberranzan? — Basta, Muito Honrado Guarda-Tocas! — chamou o rei Schnicktick, num tom que nem mesmo teimoso Belwar poderia ignorar. — A nossa decisão não foi fácil de tomar, mas é a nossa decisão final! Não colocarei Blingdenstone em perigo por causa de um elfo negro, por mais que este se tenh mostrado amigo — e acenou para Drizzt: — Lamento mesmo muito. — Não precisas — respondeu Drizzt. — Apenas fazes o que tens de fazer, como eu fiz nesse dia, há muito tempo, em que decidi abandonar o meu povo. Essa decisão tomei-a sozinho, e nunca pedi aprovação ou ajuda para isso. Tu, bom rei svirfnebli, e a tua gente deram-me de volta muito que eu tinha perdido. Acredita que não tenho nenhum desejo de chamar a ira de Menzoberranzan contra Blingdenstone. Nunca me perdoaria se tivesse alguma responsabilidade numa tal tragédia. Sairei d vossa cidade dentro de uma hora. E ao partir apenas posso oferecer a minha gratidão. O rei svirfnebli sentiu-se tocado por estas palavras, mas a sua posição não se alterou. Fez sinal aos guardas para acompanharem Drizzt, que aceitou a escolta armada com um suspiro de resignação. Olhou para Belwar, que estava de pé, tolhido, entre os conselheiros, e depois saiu dos aposentos do rei. Uma centena de gnomos das profundezas, e especialmente o guarda-tocas Brickers e os outro mineiros da única expedição que Drizzt tinha acompanhado, vieram despedir-se de Drizzt enquanto este saía pelas enormes portas de pedra de Blingdenstone. Notoriamente ausente estava Belwa Dissengulp; Drizzt pelas não mais vira o guarda-tocas desde que do conselho rei. Mesmo assime estava agradecido despedidas destes svirfnebli. As saíra palavras amáveisdoreconfortavam-no davam-lhe forças de que sabia que iria precisar nas provações dos anos que se seguiriam. De todas as memórias que Drizzt levaria consigo de Blingdenstone, quis guardar muito especialmente esta palavras que lhe diziam, agora que partia. No entanto, enquanto se afastava do grupo de gnomos das profundezas, cruzando o pequeno patamar e descendo as escadas, apenas ouviu o eco retumbante das enormes portas a fechar-se atrás de si. Drizzt estremeceu quando olhou para os túneis da selva do Subescuro, interrogando-se como poderia sobreviver às provações, desta vez. Blingdenstone fora a sua salvação do caçador; quanto tempo demoraria até que o seu lado mais negro reaparecesse e lhe roubasse a identidade? Mas que escolha tinha? Deixar Menzoberranzan fora decisão sua, e a decisão certa. Agora, porém conhecendo melhor as consequências da sua escolha, Drizzt interrogava-se sobre a sua determinação. Se tivesse oportunidade para fazer tudo de novo, encontraria forças para abandonar a vida entre os seus? Esperava que sim. Um restolhar mais ao lado chamou-lhe a atenção. Agachou-se e desembainhou as cimitarras, pensando que os agentes de Malice Do’Urden estivessem à sua espera, já prevendo que acabasse po ser expulso de Blingdenstone. Uma sombra moveu-se pouco depois, mas o que apareceu a Drizzt nã

foi nenhum assassino drow. — Belwar! — gritou aliviado. — receava que não viesses despedir-te de mim! — E não o farei — respondeu o svirfnebli. Drizzt estudou o guarda-tocas, reparando na trouxa bem cheia que o gnomos das profundezas carregava. — Não, Belwar, não posso permitir… — Não me lembro de te ter pedido a tua permissão — interrompeu o gnomo das profundezas. — Tenho andado à espera de encontrar algumas emoções na minha vida. Achei que bem podia aventurar-me cá fora e ver o que o mundo mais amplo tem para mostrar. — Não é tão amplo como poderias esperar — respondeu Drizzt sombriamente. — Tens a tua gente, Belwar. Aceitam-te e cuidam de ti. Isso é um bem mais precioso do que podes imaginar. — De acordo — respondeu o guarda-tocas. — E tu, Drizzt Do’Urden, tens o teu amigo, que t aceita e cuida de ti. E que fica ao teu lado. Agora vamos meter-nos nesta aventura, ou vamos ficar aqui à espera que essa tua malvada mãe venha apanhar-nos e abater-nos? — Não fazes a mínima ideia dos perigos — avisou-o Drizzt. Mas Belwar pôde perceber que a determinação do elfo já começava a ceder. Bateu as mãos de mithral uma contra a outra. — E tu, elfo negro, nem imaginas as formas como eu lido com esses perigos! Não te vou deixa andar por aí a vaguear sozinho nesta selva. Entende isso como um facto,magga cammara, para podermos prosseguir sem mais demoras. Drizzt encolheu os ombros, resignado, olhou mais uma vez para a teimosa determinação estampada claramente no rosto de Belwar, e começou a avançar pelo túnel, com o gnomo das profundezas ao lado. Desta vez, pelo menos, Drizzt tinha um companheiro com quem falar, uma arma contra as intrusões do caçador. Meteu uma mão num bolso e sentiu a estatueta de Guenhwyvar. Talvez, atreveu-se a esperar, os três conseguissem ter alguma hipótese de encontrar algo mais do que simples sobrevivência no Subescuro. Durante muito tempo depois, Drizzt interrogou-se se teria agido de forma egoísta ao ceder tão facilmente a Belwar. Qualquer culpabilidade que sentisse, no entanto, não se comparava com a profunda sensação de alívio que experimentava sempre que olhava para o lado, para a cabeça calva e balouçante do muito honrado guarda-tocas Belwar.

Viver ou sobreviver? Até à segunda estadia lá fora, na selva do Subescuro, depois da minha permanência em Blingdenstone, nunca teria podido compreender o significado de uma pergunta tão simples. Quando saí de Menzoberranzan, pensava que a sobrevivência bastava; pensava que podia refugiar-me em mim próprio, nos meus princípios, e ficar satisfeito por ter seguido a única via que tinha diante de mim. A alternativa era a sinistra realidade de Menzoberranzan e a aceitação dos usos malévolos que guiavam o meu povo. Se isso era a vida, acreditei que a simples sobrevivência seria muito preferível a isso. E no entanto, essa «simples sobrevivência» quase me matara. Pior, quase me roubara tudo o que considerava precioso. Os svirfnebli de Blingdenstone mostraram-me uma via diferente. A sociedade svirfnebli, estruturada e assente em valores comunitários e na união, mostrou ser tudo aquilo que eu sempre desejara que Menzoberranzan fosse. Os svirfnebli faziam muito mais do que simplesmente sobreviver. Viviam e riam e trabalhavam, e os ganhos que obtinham eram partilhados por todos, tal como era partilhada a dor das perdas que inevitavelmente sofriam no hostil mundo abaixo da superfície. A alegria multiplica-se quando é partilhada entre amigos, mas a tristeza diminui a cada divisão. Assim é a vida. E assim, quando saí de Blingdenstone, de regresso às câmaras vazias e solitárias do Subescuro, caminhava com esperança. Ao meu lado ia Belwar, meu novo amigo, e no meu bolso ia a estatueta mágica que podia convocar Guenhwyvar, minha amiga comprovada. Na minha breve estadia junto dos gnomos das profundezas, vira a vida como sempre esperara que fosse — não podia voltar à simples sobrevivência. Com os meus amigos ao meu lado, atrevi-me a acreditar que não teria de o fazer. — Drizzt Do’Urden

— Preparaste-a? — perguntou Drizzt a Belwar quando o guarda-tocas regressou para junto dele n passagem estreita. — O buraco para o fogo está aberto — respondeu Belwar, batendo com as suas mãos de mithral uma na outra, mas sem fazer muito barulho. — E deixei a esteira de dormir adicional a um canto. Raspei com as botas por toda a parte e pus a tua bolsa de trazer ao pescoço num local onde poderá ser facilmente encontrada. Até deixei algumas moedas de prata debaixo do cobertor; calculo que não venha a precisar delas tão depressa, de qualquer maneira… Belwar conseguiunão darseuma gargalhadinha, mas, apesar tomvalores. despreocupado, Drizzt percebe bem que o svirfnebli separava assim tão facilmente dosdoseus — Um belo embuste — comentou Drizzt, para desviar o ferrão do preço. — E tu, elfo negro? — perguntou Belwar. — Viste ou ouviste alguma coisa? — Nada — respondeu Drizzt. Apontou para um corredor lateral. — Mandei Guenhwyvar fazer u circuito amplo. Se houver alguém por perto, em breve o saberemos. Belwar assentiu com a cabeça. — Bom plano — comentou. — Montar o falso acampamento tão longe de Blingdenstone dever manter a tua quezilenta mãe longe da minha gente. — E talvez leve a minha família a acreditar que ainda estou na região e planeio ficar por aqui — acrescentou Drizzt esperançoso. — Já pensaste no nosso destino? — Um lado é tão bom como o outro — disse Belwar, abrindo os braços. — Não há cidades, a não ser as nossas, por perto. Pelo menos, que eu conheça. — Para oeste, então — propôs Drizzt. — Rodeando Blingdenstone e para o meio da selva, n direcção oposta a Menzoberranzan. — Um percurso sensato, parece-me — concordou o guarda-tocas. Belwar fechou os olhos e sintonizou os seus pensamentos com as emanações da pedra. Como muitas raças do Subescuro, o gnomos das profundezas possuíam a capacidade para reconhecer variações magnéticas na rocha, o que lhes permitia avaliar a direcção tão exactamente como um habitante da superfície poderia fazer seguindo o curso do Sol. Um momento mais tarde, Belwar acenou e apontou para o túnel adequado. — Oeste — disse. — E rapidamente. Quanto maior a distância que puseres entre ti e essa tua mãe mais seguros estaremos. Parou para observar Drizzt por um momento, interrogando-se se poderia estar a imiscuir-se demasiado na intimidade do amigo com a pergunta seguinte. — O que foi? — perguntou Drizzt, percebendo a apreensão de Belwar. Belwar decidiu arriscar, para ver até que ponto ele e Drizzt se tinham tornado íntimos. — Quando soubeste pela primeira vez que eras a razão para a actividade drow nos túneis de leste — começou o gnomo das profundezas, sem rodeios —, pareceste fraquejar um pouco, se me faço entender. São a tua família, elfo negro… São assim tão terríveis?

O riso de Drizzt deixou Belwar aliviado, e disse-lhe que não tinha ido demasiado longe. — Vem — disse Drizzt, vendo Guenhwyvar a regressar da sua patrulha. — Se o embuste do acampamento está completo, demos então os primeiros passos na nossa nova vida. A jornada será decerto suficiente para te contar as minhas histórias sobre a minha família e a minha terra. — Espera — disse Belwar. Meteu a mão num bolso e retirou de lá um pequeno cofre. — U presente do rei Schnicktick… — explicou enquanto abria a tampa e de lá retirava uma pregadeira brilhante, cuja suave luz iluminou a área em volta. Drizzt olhou para o guarda-tocas, incrédulo. — Isso fará de ti um belo alvo — notou. Belwar corrigiu-o. — Fará de nós ambos belos alvos — disse com um esgar de troça. — Mas não receies, elfo negro; esta luz manterá mais inimigos à distância do que aqueles que atrairá. Não tenho grande prazer e andar a tropeçar em calhaus e fendas no chão! — Quanto tempo brilhará? — perguntou Drizzt. E Belwar deduziu pelo tom da pergunta que drow esperava que a luz se apagasse em breve. — O feitiço é para sempre — retorquiu o svirfnebli com um sorriso. — A não ser que algum mago ou sacerdote o contrarie. Pára de te preocupar. Que criaturas do Subescuro avançariam de bo vontade para uma área iluminada? Drizzt encolheu os ombros e confiou na experiência do guarda-tocas. — Muito bem — disse por fim, abanando a sua cabeleira branca em sinal de desistência. — Partamos então. — A caminho e às histórias — respondeu Belwar, acertando o passo com Drizzt, com as suas pernas curtas e fortes a esforçar-se por acompanhar a passada longa e graciosa do elfo. Caminharam por muitas horas, pararam para comer, e depois caminharam mais. Por vezes, Belwa usava a sua jóia iluminadora; outras vezes, os dois amigos caminhavam na escuridão, dependendo se havia ou não algum perigo pressentido na área. Guenhwyvar estava sempre por perto, mas raramente à vista, com a pantera a levar a sua tarefa de vigilância da zona a sério. Durante uma semana inteira, os companheiros só paravam quando a fadiga ou a fome os forçava a fazer uma pausa na caminhada, pois estavam ambos ansiosos por se afastar o mais possível de Blingdenstone — e de quem perseguia Drizzt. Mesmo assim, mais uma semana passaria antes que o companheiros entrassem em túneis que Belwar não conhecia. O gnomo das profundezas fora guardatocas durante quase cinquenta anos, e liderara muitas das expedições mineiras mais longas. — Este local é-me familiar — notava Belwar muitas vezes quando entravam numa caverna. Rendeu um carrinhode cheio ferro — dizia.ouvira Ou defalar. mithral, ou de uma quantidade outro minerais preciosos quedeDrizzt nunca E, embora as grande extensas histórias de dessas expedições mineiras do guarda-tocas corressem todas basicamente na mesma direcção — de quantas maneiras pode um gnomo das profundezas britar pedra? —, Drizzt escutava sempre atentamente, saboreando cada palavra. Conhecia a alternativa. Quanto à sua parte de contar histórias, Drizzt contava as aventuras na Academia de

Menzoberranzan e as suas muitas recordações afectuosas de Zaknafein e da sala de treino. Mostrou Belwar o golpe duplo por baixo e como o pupilo tinha descoberto a forma de contrariar um ataque, para surpresa e desgosto do seu mentor. Drizzt mostrou ao gnomo das profundezas as combinações intricadas de expressão facial e de gestos do código silencioso dos drow, e acarinhou por um breve momento a ideia de ensinar a Belwar essa linguagem. O gnomo das profundezas começo imediatamente a rir-se alto e bom som. Os seus olhos escuros olharam com incredulidade para Drizzt, e dirigiu o olhar do drow para as extremidades dos braços. Com um martelo e uma picareta servirem de mãos, o svirfnebli dificilmente poderia conseguir gestos suficientes para que o esforço valesse a pena. Mesmo assim, sensibilizou-o que Drizzt se tivesse oferecido para lhe ensinar o código silencioso. O absurdo de tudo aquilo deu a ambos oportunidade para uma boa gargalhada. Guenhwyvar e o gnomo das profundezas também se tornaram amigos durante essas duas primeiras semanas de caminhada. Muitas vezes, Belwar caía num sono profundo, para depois ser acordado pela sensação de dormência das pernas, adormecidas sob o peso de trezentos quilos de pantera. Belwar resmungava sempre e sacudia Guenhwyvar com a mão de martelo — e isso tornara-se u ogo entre os dois —, mas não se importava verdadeiramente com a proximidade da pantera. Na verdade, a presença de Guenhwyvar fazia que o sono — que deixava sempre uma pessoa muito vulnerável naquela selva do Subescuro — viesse com muito mais facilidade. — Percebes isto? — murmurou Drizzt para Guenhwyvar um dia. Mais ao lado, Guenhwyva dormia profundamente, deitada de costas na pedra, usando um grande calhau como almofada. Drizz abanou a cabeça, em admiração, por um longo momento, enquanto observava a pequena figura. Começava a suspeitar de que os gnomos das profundezas levavam a sua afinidade com a terra u pouco longe demais. — Vai-te a ele — sugeriu ao felino. Guenhwyvar deslizou e foi estender-se em cima das pernas do guarda-tocas. Drizzt afastou-se par uma das entradas de um túnel para observar a cena. Poucos minutos depois, Belwar acordou, resmungando. — Magga cammara, pantera! — resmungou. — Porque tens tu de te deitar sempre em cima de mim, em vez de ao meu lado? Guenhwyvar remexeu-se ligeiramente, mas apenas soltou um profundo suspiro em resposta. — Magga cammara, gato! — rugiu Belwar de novo. Remexeu os pés freneticamente, tentando futilmente manter o sangue a circular nas pernas e esquecer as picadas que já começava a sentir. — Sai de cima! O guarda-tocas apoiou-se num cotovelo e lançou a mão de martelo contra o quadril da pantera. Guenhwyvar saltou para longe, fingindo fugir, mais depressa do que Belwar esperava. Mas assi que o guarda-tocas se descontraiu, a pantera fez meia volta e saltou para cima dele, tapando-o por completo e pregando-o ao chão. Após alguns momentos a debater-se, Belwar conseguiu fazer a cara aparecer por debaixo do peito de Guenhwyvar. — Sai de cima de mim, ou sofrerás as consequências! — rugiu o gnomo das profundezas, no que era obviamente uma ameaça oca. Guenhwyvar remexeu-se, pondo-se um pouco mais confortável na

sua posição. — Elfo negro! — chamou Belwar tão alto quanto se atreveu. — Elfo negro, tira-me daqui a tu pantera. Elfo negro! — Saudações — respondeu Drizzt, aparecendo à entrada do túnel como se tivesse acabado de chegar. — Estão os dois outra vez na brincadeira? Pensei que tinha terminado o turno de sentinela. — Sim, já passou a tua vez — respondeu Belwar, mas as suas palavras eram abafadas pela pelagem espessa e negra de Guenhwyvar, enquanto este se remexia de novo em cima dele. Mas Drizzt ainda conseguia ver o longo nariz aguçado de Belwar enrugando-se de irritação. — Ah, não, não! — disse Drizzt. Não estou nada cansado. Longe de mim pensar em interromper a vossas brincadeiras. Sei que ambos adoram isso. E, passando por eles, deu a Guenhwyvar uma festa na cabeça e uma piscadela de olho cúmplice. — Elfo negro! — resmungou Belwar enquanto Drizzt se afastava. Mas o drow continuou caminho e Guenhwyvar, com a bênção de Drizzt, depressa adormeceu profundamente. Drizzt agachou-se e ficou muito quieto, dando tempo aos olhos para mudarem da infravisão — ver o calor dos objectos no espectro infravermelho — para a visão normal do reino da luz. Mesmo antes de a transformação estar completa, Drizzt conseguiu perceber que as suas suposições estava correctas. Para lá de uma arcada natural muito baixa, havia um brilho vermelho. O drow manteve posição, decidindo esperar que Belwar chegasse perto dele antes de sair para investigar. U momento mais tarde, o brilho mais fraco da jóia encantada do gnomo das profundezas apareceu à vista. — Apaga isso — sussurrou Drizzt, e o brilho da jóia desapareceu. Belwar rastejou pelo túnel para se aproximar do companheiro. Também ele via agora o brilho vermelho para lá da arcada e compreendeu a cautela do amigo. — Podes convocar a pantera? — perguntou Belwar muito baixo. Drizzt abanou a cabeça. — A magia de Guenhwyvar está limitada a períodos de tempo. Andar nos planos materiais cansaa. A pantera precisa de descansar. — Podemos voltar para trás pelo mesmo caminho — sugeriu Belwar. — Talvez haja outro túnel que dê a volta. — São sete ou oito quilómetros — respondeu Drizzt, considerando a extensão de passagens que tinham deixado para trás. — É demasiado. — Então, vamos ver o que há aí à frente — concluiu o guarda-tocas, avançando ousadamente. Drizzt gostou da atitude simples de Belwar e depressa se lhe juntou. Para lá da arcada, onde Drizzt quase tinha de andar de cócoras, encontraram uma caverna ampla e alta, com o chão coberto de algo semelhante a musgo que emitia aquela luz vermelha. Drizzt ficou boquiaberto, sem entender, mas Belwar reconheceu facilmente o que era. — Baruchies! — disse o guarda-tocas, com a palavra a transformar-se numa gargalhada. Virou-se para Drizzt e, não vendo nenhuma reacção ao seu sorriso, explicou: — Cuspidores púrpura, elfo negro. Há décadas que não via uma porção disto. São uma visão bastante rara hoje em dia, sabes…

Drizzt, ainda sem compreender, sacudiu a tensão dos músculos, encolheu os ombros, e depois avançou. A mão de martelo de Belwar prendeu-lhe um braço e o possante gnomo das profundezas fêlo rodar bruscamente. — Cuspidores púrpura — disse o guarda-tocas de novo, sublinhando vincadamente a primeira palavra. — Magga cammara, elfo negro, como te aguentaste tu tantos anos? Belwar virou-se para o lado e bateu com a mão de martelo na parede, fazendo saltar uma lasca de pedra. Apanhou a lasca com a parte plana da mão picareta e atirou-a para um dos lados da caverna. A pedra bateu nos fungos que brilhavam a vermelho com um baque suave, e depois uma nuvem de fumo e de esporos explodiu no ar. — Cuspo — explicou Belwar — que te sufoca até à morte com os esporos! Se planeias passar po aqui, é melhor andares com muita leveza, meu tonto amigo! Drizzt cofiou os caracóis brancos e avaliou a situação complicada. Não tinha vontade nenhuma de andar para trás vários quilómetros pelo mesmo túnel, mas também não planeava avançar por aquele campo de morte vermelha. Ficou parado sob a arcada e olhou em volta, em busca de uma solução. Várias pedras, configurando uma possível passagem, seguiam acima dos baruchies, e para lá delas havia um trilho de pedra limpa com cerca de três metros de largura e correndo perpendicularmente à arcada. — Poderemos passar — disse a Belwar. — Há um caminho livre. — Há sempre, num campo de baruchies — respondeu o guarda-tocas, num sussurro. Os ouvidos de Drizzt apanharam o comentário. — Que queres dizer? — perguntou, saltando agilmente para a primeira das pedras elevadas. — Que há um grubber por perto — explicou Belwar. — Ou houve. — Um grubber? — Drizzt saltou prudentemente para trás, para se pôr de novo ao lado do guardatocas. — Uma grande lagarta — explicou o gnomo. — Os grubbers adoram baruchies. São a única cois que os cuspidores púrpura parecem não conseguir incomodar. — Grande, como? — Qual é a largura do trilho? — perguntou Belwar. — Uns três metros, talvez — respondeu Drizzt, saltando de novo para a primeira pedra, para ver o trilho outra vez. Belwar considerou esta resposta por algum tempo. — Uma boa passagem para um grande grubber. Dois, no máximo. Drizzt saltou de novo para junto do guarda-tocas, lançando um olhar cauteloso por cima do ombro. Uma com bela uma lagarta —pequena comentou. — Mas boca — explicou Belwar. — Os grubbers só comem musgo e bolores… E baruchies, se os conseguem encontrar. Criaturas pacíficas, bem vistas as coisas. Pela terceira vez, Drizzt saltou para a pedra. — Há mais alguma coisa que eu deva saber, antes de continuar? — perguntou exasperado. Belwar abanou a cabeça. Drizzt foi à frente pelas pedras, e depressa os dois companheiros estavam no meio do trilho co

três metros de largura. Este atravessava a caverna e terminava nas entradas para uma passagem de cada lado. Drizzt apontou para ambos os lados, interrogando-se que direcção preferiria Belwar. O gnomo das profundezas dirigiu-se para a esquerda, mas depois parou abruptamente e espreitou para diante. Drizzt compreendeu a hesitação de Belwar, pois também ele sentira a vibração da pedra debaixo dos pés. — Grubber — disse Belwar. — Fica quieto e observa, meu amigo. São uma coisa digna de se ver. Drizzt sorriu e agachou-se, ansioso pelo espectáculo. Quando ouviu um rápido restolhar atrás de si, porém, começou a suspeitar de que algo não estava certo. — Onde… — ia Drizzt começar a perguntar, quando se virou e viu Belwar a correr para a outr saída. Drizzt parou de falar subitamente quando uma explosão que soava como o desabar de uma caverna surgiu do outro lado, do lado que estivera a observar. — Uma bela visão! — ouviu Belwar a dizer, e não pôde negar a verdade das palavras do gnomo das profundezas quando o grubber apareceu. Era enorme — maior do que o basilisco que Drizzt tinh morto — e parecia uma minhoca gigante e pálida, com a diferença de uma imensidão de pequenos pés que se moviam sob o corpo maciço. Drizzt viu que Belwar não tinha mentido, porque a coisa não tinha uma boca que se visse, nem mãos ou armas aparentes. Mas o gigante vinha direito a ele com ar vingativo, e não lhe agradava a ideia de um elfo negro esborrachado de uma ponta da caverna até à outra. Puxou as cimitarras, mas depois percebeu o absurdo da ideia. Onde haveria de atingir aquel coisa para a fazer abrandar? Abrindo as mãos num gesto de desistência, girou nos calcanhares e correu atrás de Belwar. O chão estremecia tão violentamente sob os pés de Drizzt, que se interrogou se não cairia para o lado para ser atacado pelos baruchies. Mas depois viu a entrada do túnel mesmo à sua frente e conseguiu ver uma pequena passagem lateral, demasiado pequena para o grubber, logo à saída da caverna dos baruchies. Saltou para a frente, deu os últimos passos largos, e depois virou rapidamente para o pequeno túnel, mergulhando numa cambalhota para amortecer o balanço que levava. Mesmo assim, embateu violentamente contra a parede; depois, o grubber abateu-se contra a entrada, atrás dele, esmagando-se contra ela e fazendo cair pequenas lascas de pedra por todo o lado. Quando a poeira finalmente assentou, o grubber continuava à entrada da passagem, soltando u resmungo baixo como um zumbido e, de vez em quando, batendo com a cabeça contra a pedra. Belwar estava apenas um metro mais à frente de Drizzt, com os braços cruzados sobre o peito e u sorriso de satisfação na cara. — Criaturas pacíficas? — perguntou-lhe Drizzt, erguendo-se e sacudindo a poeira. — São, pois — respondeu Belwar com um aceno. — Só que os grubbers adoram mesmo o baruchies e não gostam nada de os partilhar! — Quase fizeste que fosse esmagado! — rosnou-lhe Drizzt. Belwar acenou de novo com a cabeça. — Pois lembra-te, elfo negro, que da próxima vez que instigares a tua pantera a dormir em cima de mim, hei-de fazer bem pior! Drizzt teve de se esforçar para esconder o sorriso. O coração ainda lhe batia com força sob

influência da adrenalina, mas não sentia nenhuma raiva contra o seu companheiro. Relembrou-se de encontros que tinha tido apenas alguns meses antes, quando estava sozinho naquela selva. Como seria diferente a vida sem Belwar Dissengulp a seu lado! Como era agora muito mais agradável! Olho por cima do ombro para o irado e teimoso grubber. E como era tudo agora muito mais interessante! — Anda — prosseguiu o svirfnebli com ar sobranceiro, começando a andar pela passagem. — Só estamos a deixar o grubber ainda mais irritado, ao ficar aqui à vista dele. A passagem estreitava e fazia uma curva apertada apenas alguns metros mais à frente. Depois da curva, os companheiros encontraram ainda mais sarilhos, porque o corredor terminava numa parede de pedra lisa. Belwar avançou para a examinar e foi a vez de Drizzt cruzar os braços e regozijar-se. — Puseste-nos numa situação delicada, meu amigo — disse o drow. — Um grubber zangado atrás, e nós metidos num corredor sem saída. Encostando o ouvido à pedra, Belwar fez um gesto de desprezo com a mão de martelo. — Apenas uma pequena inconveniência — garantiu-lhe o gnomo das profundezas. — Há outro túnel do outro lado; a pouco mais de meio metro. — Meio metro de rocha — lembrou-lhe Drizzt. Mas Belwar não pareceu nada preocupado. — Um dia — respondeu. — Talvez dois. Estendeu os braços e começou um cântico em voz baixa, demasiado baixa para que Drizzt o ouvisse claramente, embora percebesse que estava empenhado num encantamento qualquer. — Bivrip! — gritou Belwar. Nada aconteceu. O guarda-tocas voltou-se para Drizzt e não parecia nada perturbado. — Um dia — exclamou de novo. — Que fizeste? — perguntou-lhe Drizzt. — Pus um pequeno encantamento nas minhas mãos, — respondeu o gnomo das profundezas. Vendo que Drizzt não estava a percebê-lo, Belwar girou sobre os calcanhares e bateu com a mão de martelo na parede. Uma explosão de chispas iluminou a pequena passagem, cegando Drizzt. Quando os olho do drow se conseguiram ajustar aos continuados batimentos e picaretadas de Belwar, viu que o svirfnebli já tinha desbastado vários centímetros de pedra, transformada numa poeira fina aos seus pés. — Magga cammara, elfo negro! — gritou Belwar com uma piscadela de olho. — Não me diga que pensavas que a minha gente se dava a tanto trabalho para me fabricar estas mãos tão refinadas sem também lhes pôr um pouco de magia, pois não? Drizzt foi para o outro lado da passagem e sentou-se. — És sempre cheio de surpresas, meu pequeno amigo — respondeu em tom de rendição. — Pois sou! — rugiu Belwar, continuando a bater na rocha e lançando lascas por toda a parte. Estavam fora do corredor fechado daí a um dia, tal como Belwar tinha prometido, e puseram-se de novo a caminho, viajando agora — segundo os cálculos do svirfnebli — em direcção a norte. A sorte tinha-os acompanhado até aqui, e ambos sabiam disso, pois tinham passado duas semanas na selva do

Subescuro e não tinham encontrado nada mais hostil do que um grubber a proteger os seus baruchies. Uns dias mais tarde, essa sorte mudou. — Convoca a pantera — pediu Belwar a Drizzt enquanto se agachavam no túnel amplo por ond tinham estado a avançar. Drizzt não contestou a sensatez do pedido do guarda-tocas; também não lhe agradava o brilho esverdeado que havia mais à frente. Um momento depois, a névoa negra rodopiou e começou a ganhar forma, e Guenhwyvar estava ao lado deles. — Eu vou à frente — disse Drizzt. — Vocês sigam-me juntos, vinte passos mais atrás. Belwar assentiu com a cabeça e Drizzt virou costas e começou a avançar. Quase já estava à esper daquele movimento, quando a mão picareta do gnomo das profundezas o prendeu e o fez virar-se de novo. — Tem cuidado — disse Belwar. Drizzt apenas sorriu em resposta, tocado pela sinceridade da voz do amigo e pensando outra vez em como era muito melhor ter um companheiro ao seu lado. Depois, sacudiu os pensamentos e avançou, deixando que os instintos e a experiência o conduzissem. Descobriu que o brilho emanava de um buraco no chão do corredor. Para lá dele, o corredor continuava, mas fazia uma curva apertada, quase voltando para trás. Drizzt caiu sobre a barriga e espreitou para o buraco. Outra passagem, cerca de três metros mais abaixo, corria perpendicularmente àquela onde se encontrava, abrindo pouco à frente para o que parecia ser uma grande caverna. — O que é? — sussurrou Belwar, aparecendo por trás dele. — Outro corredor para uma caverna — respondeu Drizzt. — O brilho vem de lá. Levantou cabeça e olhou para a escuridão do corredor superior. — O nosso túnel continua — disse. — Podemos seguir adiante. Belwar olhou para a passagem por onde tinham vindo, notando a curva apertada. — Vira para trás — concluiu. — E muito provavelmente vem dar àquela passagem lateral por onde passámos ainda há pouco. O gnomo das profundezas deitou-se no chão e espreitou para o buraco. — O que poderá provocar um brilho assim? — perguntou-lhe Drizzt, calculando sem dificuldade que a curiosidade de Belwar seria tão grande como a sua. — Outra forma de musgo? — Nenhuma que eu conheça — respondeu Belwar. — Vamos descobrir? Belwar sorriu-lhe, e depois prendeu a mão picareta à borda do buraco e deixou-se cair para o túnel inferior. Drizzt e Guenhwyvar seguiram-no em silêncio; depois, o drow, com as cimitarras desembainhadas, seguiu à frente em direcção ao brilho. Foram dar a uma câmara alta e ampla, com o tecto demasiado alto para conseguirem vê-lo e u lago de um líquido que brilhava verde e cheirava mal, borbulhando e soltando silvos, uns seis metros mais abaixo. Dezenas de pequenas passagens estreitas interligadas, que iam dos poucos centímetros até uns três metros, percorriam aquele vale, a maioria delas dando para saídas que davam para ainda mais corredores. — Magga cammara! — murmurou o espantado svirfnebli. Drizzt partilhou esse pensamento. — Parece que o chão foi rebentado — notou Drizzt quando conseguiu recuperar a voz.

— Derretido — respondeu Belwar, calculando a natureza do líquido. Arrancou um pedaço de rocha e, tocando ao de leve em Drizzt para lhe chamar a atenção, lançou-o para o lago. O líquido fe um silvo agudo, como se tivesse ficado irado com o gesto, e desfez o pedaço de pedra antes mesmo que este mergulhasse e desaparecesse da vista. — Ácido — explicou Belwar. Drizzt olhou para ele com curiosidade. Sabia o que eram ácidos desde os seus tempos de treino com os magos de Sorcere na Academia. Os magos confeccionavam frequentemente esses líquidos vi para os usarem nas suas experiências mágicas, mas nunca lhe ocorrera que um ácido surgisse assim naturalmente, ou em tão grandes quantidades. — Obra de um mago qualquer, suponho — disse Belwar. — Uma experiência que fugiu ao controlo. Provavelmente estará aqui há uma centena de anos, corroendo o chão, descendo centímetro a centímetro. — Mas o que resta do chão parece suficientemente seguro — observou Drizzt, apontando para a passagens laterais. — E temos muitos túneis por onde escolher. — Então, escolhamos já — disse Belwar. — Não gosto deste local. Estamos expostos à luz, e nã me agradaria ter de correr por essas passagens estreitas… E com um lago de ácido ao meu lado! Drizzt concordou e deu um passo com cautela na passagem, mas Guenhwyvar passou-lhe à frente rapidamente. Drizzt compreendeu a lógica da pantera e concordou de bom grado com ela. — A pantera guiar-nos-á — explicou a Belwar. — É mais pesada e suficientemente rápida para saltar para longe se uma secção começar a abater. O guarda-tocas não estava completamente de acordo. — E se Guenhwyvar não conseguir fugir para um ponto seguro? — perguntou, sinceramente preocupado. — O que fará o ácido a uma criatura mágica? Drizzt não tinha a certeza da resposta. — Guenhwyvar há-de ficar em segurança — calculou, puxando da estatueta de ónix do bolso. — Tenho o portal para o plano da pantera. Guenhwyvar já estava uma dúzia de passos mais à frente, nessa altura. A passagem parecia suficientemente sólida, e Drizzt dispôs-se a segui-la. — Magga cammara, oxalá tenhas razão — ouviu Belwar a resmungar atrás de si enquanto dava os primeiros passos para fora da saliência. A sala era enorme, com centenas de metros de largura até à saída mais próxima. Os companheiros aproximaram-se do ponto intermédio — e Guenhwyvar até já o tinha passado — quando ouviram u estranho som de um cântico. Pararam e olharam em volta, à procura da srcem do som. Uma criatura com umuma aspecto estranho saiubico de uma das numerosas passagens laterais. Era bípede tinha a pele negra, com cabeça com um que parecia de pássaro e um tronco de homem, seme penas nem asas. Ambos os poderosos braços terminavam em garras ameaçadoras e recurvadas, e as pernas terminavam em pés com três dedos. Outra criatura apareceu por detrás da primeira, e depois outra. — Família tua? — perguntou Belwar a Drizzt, pois as criaturas pareciam de facto uma estranh mistura de um elfo negro com um pássaro.

— Não creio — respondeu Drizzt. — Nunca na minha vida ouvi falar de tais criaturas. — Desgraça! Desgraça! — chegava-lhes o cântico contínuo. Os amigos olharam em volta, par verem mais daqueles homens-pássaro a sair de outras passagens. Eram corbies, uma antiga raça mais comum nos extremos sul do Subescuro — embora raros até mesmo lá — e quase desconhecida nesta parte do mundo. Os corbies nunca tinham sido grande preocupação para ninguém no Subescuro, poi os métodos dos homens-pássaro eram grosseiros e eram em pequeno número. Para um grupo de aventureiros de passagem, no entanto, um bando de corbies selvagens significava de facto sarilhos. — Também eu nunca encontrei tais criaturas — concordou Belwar. — Mas não creio que estejam agradados com a nossa presença. O cântico transformou-se numa série de guinchos horríveis enquanto os corbies começavam a dispersar para os trilhos, primeiro andando, mas depois lançando-se ocasionalmente em breves corridas, com uma ansiedade obviamente crescente. — Estás enganado, meu pequeno amigo — notou Drizzt. — Creio que estão bastante agradado por verem o jantar ser-lhes servido. Belwar olhou em volta, impotente. Quase todos os caminhos de fuga estavam já cortados, e não poderiam esperar sair sem lutar. — Elfo negro, consigo lembrar-me de pelo menos uns mil locais onde preferiria lutar — disse o guarda-tocas com um encolher de ombros resignado, e estremecendo quando olhou de novo para o lago de ácido. Respirando fundo para se acalmar, Belwar começou o seu ritual para encantar as mãos mágicas. — Mexe-te enquanto cantas — instruiu Drizzt, fazendo-o avançar. — Vamos para perto de uma saída antes que a luta comece. Um grupo de corbies aproximou-se rapidamente para um dos lados dos amigos, mas Guenhwyvar, com um salto poderoso que atravessou dois trilhos, cortou-lhes o caminho. — Bivrip! — gritou Belwar, completando o encantamento e virando-se para a batalha iminente. — Guenhwyvar pode dar conta daquele grupo — garantiu-lhe Drizzt, apressando o passo e direcção à parede mais próxima. Belwar compreendeu o raciocínio do drow: outro grupo de inimigos tinha saído da passagem para onde se estavam a dirigir. O balanço do salto de Guenhwyvar levou a pantera mesmo para o meio do grupo de corbies, fazendo cair dois deles do trilho. Os homens-pássaro guincharam horrivelmente enquanto caíam para a morte, mas os restantes companheiros não pareceram nada afectados pela perda. Babando-se e cantando «Desgraça! Desgraça!» avançaram para Guenhwyvar com as garras afiadas. A pantera tinha as suas próprias e formidáveis armas. Cada gesto de uma grande pata arrancava a vida a um corby ou do trilho o lago corbies de ácido. Mas, enquanto o felino continuava arrasar as fileiras dosmandava-o homens-pássaro, os para destemidos continuavam a retaliar, e mais alguns a acorriam, ansiosos por entrar na batalha. Um segundo grupo avançou da direcção oposta e rodeou Guenhwyvar. Belwar colocou-se numa secção estreita do trilho e deixou a fila de corbies avançar para ele. Drizzt, seguindo um caminho paralelo ao longo do trilho, a uns três metros do amigo, fez a mesma coisa,

desembainhando as cimitarras com alguma relutância. O drow conseguia sentir os instintos do caçador a acumular-se dentro de si enquanto a batalha se aproximava, e resistiu-lhes com toda a sua força de vontade. Era Drizzt Do’Urden, e já não o caçador, e enfrentaria os inimigos em complet controlo de cada movimento. Depois, os corbies caíram sobre ele, debatendo-se, guinchando os seus cânticos tresloucados. Drizzt pouco mais fez do que defender-se, nesses primeiros segundos, com as cimitarras a trabalhar maravilhosamente para deflectir cada tentativa de ataque. As espadas rodopiavam e assobiavam, mas o drow, recusando soltar o caçador dentro de si, pouco avançou na sua luta. Ao fim de vários minutos, ainda estava a enfrentar o primeiro corby que o tinha atacado. Belwar não estava a ser tão reservado. Um após outro, os corbies corriam para o pequeno svirfnebli, apenas para serem estacados subitamente pela explosiva mão martelo do guarda-tocas. O choque eléctrico e a força bruta do golpe matavam quase sempre o corby antes que desse mais um passo, mas Belwar nunca esperava para saber. A seguir a cada golpe do martelo, a mão picareta do gnomo das profundezas rodopiava num arco, varrendo a última vítima do trilho. O svirfnebli tinha já abatido meia dúzia de homens-pássaro antes que tivesse oportunidade de olhar para Drizzt. Percebeu de imediato a luta interior com que o drow se debatia. — Magga cammara! — gritou Belwar. — Combate-os, elfo negro, e luta para vencer! Não te mostrarão piedade! Não pode haver tréguas! Mata-os… Retalha-os! Ou certamente te matarão a ti! Drizzt mal conseguiu ouvir as palavras de Belwar. Lágrimas enchiam-lhe os olhos cor de alfazema, embora mesmo nessa visão turva o ritmo quase mágico das espadas não abrandasse. Apanhou o seu oponente em desequilíbrio e inverteu o sentido de um golpe, atacando o homempássaro na cabeça com o punho da cimitarra. O corby caiu como uma pedra e rebolou. Teria caído da saliência de pedra, mas Drizzt deu um passo em frente e segurou-o. Belwar abanou a cabeça e abateu outro adversário. O corby deu um salto para trás, com o peito fumegar devido ao impacto da mão de martelo encantada. Olhou para Belwar com incredulidade, mas não emitiu um único som, nem fez qualquer movimento enquanto a picareta o agarrava por um ombro e o atirava para o lago de ácido. Guenhwyvar espantava os atacantes famintos. Enquanto os corbies se acercavam da pantera pela costas, pensando que a presa estava a jeito, Guenhwyvar agachou-se e saltou. O felino voou por cim da luz esverdeada como se tivesse asas, aterrando noutra saliência a uns bons seis metros de distância. Escorregando pela pedra lisa, Guenhwyvar conseguiu parar mesmo antes de cair pela beira da saliência para o lago de ácido. Os corbies olharam em volta espantados por um momento, e depois aumentaram os guinchos e uivos e começaram a persegui-la por um dos trilhos. Um único corby, perto de onde Guenhwyvar tinha aterrado, correu ferozmente para a batalha contra o felino. Os dentes de Guenhwyvar encontraram-lhe o pescoço num ápice e arrancaram-lhe vida. Mas enquanto a pantera estava ocupada nisto, a armadilha diabólica dos corbies mostrou outra reviravolta. Do alto do tecto da caverna, um corby viu finalmente uma vítima em posição. O homem-

pássaro enrolou os braços em volta do pesado rochedo que tinha ao lado e empurrou-o, deixando-se cair com a pedra. No último segundo, Guenhwyvar viu a rocha a cair e fugiu do seu caminho. O corby, no seu êxtase suicida, não se importou. O homem-pássaro abateu-se na passagem, com o peso do rochedo a estilhaçar a estreita ponte. A grande pantera tentou saltar para fora dali de novo, mas a pedra por baixo dela desintegrou-se antes que pudesse fazê-lo. Com as garras a arranhar futilmente a ponte que se desfazia, Guenhwyvar seguiu o corby e o seu rochedo para dentro do lago de ácido. Ouvindo os ruídos de alegria dos corbies atrás de si, Belwar girou mesmo a tempo de ve Guenhwyvar a cair. Drizzt, demasiado ocupado nesse momento — pois outro corby avançava para ele enquanto o anterior começava a recuperar os sentidos, entre as suas pernas — não viu a queda. Mas o drow não precisava de ver. A estatueta no seu bolso aqueceu subitamente, com plumas de fumo agoirentas a subir pelo manto piwafwi. Drizzt pôde calcular com bastante facilidade o que acontecera à sua querida Guenhwyvar. Os olhos do drow semicerraram-se, com o súbito fogo que neles ardia a secar-lhes as lágrimas. Recebeu o caçador de braços abertos. Os corbies lutavam furiosamente. A mais alta honra das suas existências era morrer em batalha. E os que estavam mais perto de Drizzt depressa perceberam que esse seu momento de glória tinha chegado. O drow lançou ambas as cimitarras para diante, e cada uma delas enfiou-se num olho do corby à sua frente. O caçador retirou as lâminas, fê-las girar nas mãos e mergulhou-as no homem-pássaro que tinha aos pés. Fê-las subir imediatamente e voltou a fazê-las mergulhar, sentindo uma sinistra satisfação com o som do seu corte suave. Depois, o drow mergulhou de cabeça para os corbies à sua frente, com as espadas a cortar e todos os ângulos possíveis. Atingido uma dúzia de vezes antes sequer de conseguir lançar um único ataque, o primeiro corb á estava morto antes de cair no chão. Depois, o segundo; depois, o terceiro. Drizzt encurralou-o numa secção mais larga do trilho. Vieram contra ele aos três de cada vez. E morreram aos seus pés aos três de cada vez. — Apanha-os, elfo negro! — resmungou Belwar, vendo o amigo a explodir em acção. O corby que avançava para o gnomo das profundezas virou a cabeça para ver o que tinha chamado a atenção de Belwar. Quando se virou de novo, encontrou a mão martelo do gnomo das profundezas a embater-lhe em cheio na cara. Pedaços do bico voaram em todas as direcções, e aquele desgraçado corby foi o primeiro da sua espécie a voar em vários milénios de evolução. A sua curta viagem pelo ar afastou os companheiros do gnomo das profundezas, e aterrou de costas, a muitos metros de Belwar. O enraivecido gnomo das profundezas tinha de acabar com ele. Correu, fazendo cair da passage o único corby que conseguira regressar para o interceptar. Quando chegou por fim junto da sua vítima sem bico, enterrou-lhe a mão picareta no peito. Com esse único braço musculado, o guarda-tocas ergueu o corby morto bem no ar e lançou um uivo horripilante. Os outros corbies hesitaram. Belwar olhou para Drizzt e ficou boquiaberto.

Um bando de corbies apinhava-se na secção mais larga da passagem onde o drow estava colocado. Outra dúzia jazia morta aos pés de Drizzt, com o sangue a escorrer da saliência e a pinga no lago de ácido num gotejar ritmado que soltava silvos. Mas não era a diferença numérica que Belwar receava; com os seus movimentos precisos e golpes bem calculados, Drizzt estav inegavelmente a ganhar. Bem acima do drow, porém, outro corby suicida e a sua rocha escolhida mergulharam. Belwar acreditou que a vida de Drizzt iria chegar ao fim com um estrondo. Mas o caçador sentiu o perigo. Um corby avançou para ele, mas, num relâmpago das cimitarras de Drizzt, ambos os braços do homem-pássaro saltaram dos ombros. No mesmo movimento estonteante, Drizzt enfiou as cimitarra ensanguentadas nas bainhas e saltou para a beira da plataforma. Agarrou-se à saliência e saltou para unto de Belwar mesmo no momento em que o corby suicida se abatia com a sua rocha, lançando a plataforma e um bom número dos seus pares para o lago de ácido. Belwar lançou o seu troféu sem bico para os corbies que tinha à frente e caiu de joelhos, estendendo a mão picareta para tentar ajudar o amigo. Drizzt agarrou a mão de Belwar e bateu com cara na pedra, mas conseguiu suster-se. O salto rasgara, porém, o piwafwi do drow, e Belwar viu impotente a estatueta de ónix a rebolar e a cair para o ácido. Drizzt apanhou-a entre os pés. Belwar quase riu perante a futilidade e desespero daquela situação toda. Olhou por cima do ombro para ver os corbies a retomar o avanço. — Elfo negro, foi sem dúvida divertido — disse o svirfnebli resignadamente para Drizzt. Mas resposta do drow calou o desânimo do gnomo das profundezas tão depressa como lhe fez desaparecer todo o sangue do rosto. — Balança-me! — rugiu Drizzt tão poderosamente que Belwar obedeceu antes mesmo de percebe o que estava a fazer. Drizzt rolou e voltou de um salto para a passagem, e quando saltou para a pedra cada músculo do seu corpo retesou-se violentamente para ajudar a dar-lhe impulso. Rebolou a direito pelo fundo da passagem, esbracejando e agarrando-se com braços e pernas para ganhar posição logo atrás do gnomo das profundezas agachado. Quando Belwar percebeu finalmente o que Drizzt tinha feito e pensou virar-se para trás, Drizzt já tinha as cimitarras desembainhadas e estava a retalhar a cara do primeiro corby a aproximar-se. — Segura nisto — pediu Drizzt ao amigo, atirando a estatueta para Belwar com a ponta do pé Belwar apanhou entre os braços e empurrou-a para Drizzt um bolso. Depois, odevastando gnomo da profundezas recuoua eestatueta ficou a ver, guardando a retaguarda, enquanto abria caminho, tudo, para a saída mais próxima. Cinco minutos mais tarde, para completo espanto de Belwar, estavam a correr livremente por u túnel escuro, com os guinchos frustrados de «Desgraça! Desgraça!» cada vez mais abafados atrá deles.

— Basta! Basta! — disse ofegante o guarda-tocas para Drizzt, tentando fazer o companheiro abrandar. — Magga cammara, elfo negro. Já os deixámos bem para trás. Drizzt virou-se para o guarda-tocas, com as cimitarras nas mãos e com um fogo irado ainda ardendo nos olhos cor de alfazema. Belwar recuou rápida e cautelosamente. — Calma, meu amigo — disse suavemente o svirfnebli. Mas, apesar disso, as mãos de mithral do gnomo das profundezas puseram-se defensivamente à sua frente. — A ameaça acabou. Drizzt respirou fundo para se acalmar e, depois, percebendo que ainda não tinha embainhado as cimitarras, guardou-as. — Estás bem? — perguntou Belwar, voltando a pôr-se ao lado dele. Sangue manchava a cara do drow, do lado que tinha embatido contra a pedra da passagem. Drizzt fez que sim. — Foi a luta — tentou explicar em vão. — A excitação. Tive de deixar sair… — Não precisas de explicar — atalhou Belwar. — Portaste-te bem, elfo negro. Melhor que bem Se não fossem as tuas acções, todos nós os três teríamos seguramente perecido ali. — Regressou — murmurou Drizzt, procurando as palavras que pudessem explicar. — Aquele meu lado mais negro. Pensei que tivesse desaparecido. — E desapareceu — disse o guarda-tocas. — Não — contrariou Drizzt. — Esse animal cruel que me tornei possuiu-me completamente contr aqueles homens-pássaro. Foi ele que guiou as minhas espadas, selvaticamente e sem piedade. — Quem guiou as tuas espadas foste tu — garantiu-lhe Belwar. — Mas a ira… — respondeu Drizzt. — A ira demente. Tudo o que queria fazer era apenas matálos e retalhá-los. — Se isso fosse verdade, ainda lá estaríamos — argumentou o svirfnebli. — Graças às tua acções, escapámos. Ainda lá estão muitos homens-pássaro para matar, mas fizeste-nos sair da caverna. Ira? Talvez, mas certamente não ira cega. Fizeste o que tinhas de fazer, e fizeste-o bem, elfo negro. Melhor do que alguém que eu já tenha visto. Não peças desculpa por isso, nem a mim, nem a ti mesmo! Drizzt encostou-se à parede para apreciar as palavras. Sentia-se reconfortado pelo raciocínio do gnomo das profundezas e agradecido pelo esforço. Mesmo assim, porém, o fogo ardente da raiva que sentira quando Guenhwyvar caíra no lago de ácido assombrava-o, com uma emoção tão avassaladora que ainda não conseguia lidar com ela. Interrogou-se se alguma vez conseguiria. Apesar da sua perturbação, contudo, Drizzt sentia-se reconfortado pela presença do amigo svirfnebli. Relembrou outros encontros ao longo dos últimos anos, batalhas que tinha sido forçado a combater sozinho. Então, como agora, o caçador tinha acordado dentro dele, dera-lhe força e guiaralhe os golpes mortíferos das cimitarras. Mas havia uma diferença, desta vez, que Drizzt não podi

negar. Antes, quando estava sozinho, o caçador não partia tão depressa. Agora, com Belwar a seu lado, Drizzt recuperara logo o controlo. Sacudiu a longa cabeleira branca, tentando afastar quaisquer resquícios que ainda permanecesse do caçador. Achou-se tolo pela forma como tinha iniciado o combate com os homens-pássaro, a bater apenas com o lado largo das cimitarras. Ele e Belwar ainda estariam na caverna, se o seu lado instintivo não tivesse emergido, se não tivesse dado pela queda de Guenhwyvar. Olhou para Belwar subitamente, lembrando-se do que lhe inspirara aquela raiva. — A estatueta! — gritou. — Tens a estatueta? Belwar vasculhou o bolso. — Magga cammara! — exclamou, com a voz profunda à beira do pânico. — Estará a pantera ferida? Que efeitos terá o ácido em Guenhwyvar? Poderá a pantera ter-se escapado para o seu Plan Astral? Drizzt pegou na estatueta e examinou-a nas mãos a tremer, consolando-se com o facto de esta não estar danificada. Acreditava que devia esperar antes de convocar Guenhwyvar; se a pantera tivesse ficado ferida, decerto se curaria melhor no seu próprio plano de existência. Mas Drizzt não poderi esperar para saber do destino de Guenhwyvar. Colocou a estatueta no chão, aos seus pés, e chamou suavemente por Guenhwyvar. O drow e o svirfnebli suspiraram profundamente ao mesmo tempo quando a névoa começou a rodopiar em volta da estatueta de ónix. Belwar pegou na sua jóia encantada para observar melhor o felino. Uma visão terrível esperava-os. Obedientemente, fielmente, Guenhwyvar respondeu à chamada d Drizzt, mas assim que este viu a pantera, soube que devia ter deixado Guenhwyvar em paz para que pudesse recuperar das suas feridas. O manto de pelo negro de Guenhwyvar estava chamuscado e mostrava mais manchas de pele queimada do que pelagem. Músculos antes elegantes pendiam agora rasgados e inchados dos ossos, e um dos olhos da pantera mantinha-se fechado e terrivelmente ferido. Guenhwyvar cambaleou, tentando pôr-se ao lado de Drizzt. Mas este foi ter com a pantera, caind de joelhos e dando um suave abraço ao enorme pescoço do felino. — Guenhwyvar! — murmurou. — Curar-se-á? — perguntou Belwar em voz baixa, quase soletrando cada palavra. Drizzt abanou a cabeça, sem saber o que responder. Na verdade, sabia muito pouco acerca da pantera, a não ser as suas capacidades enquanto companheira de luta. Já a vira ferida outras vezes, mas nunca com gravidade. Agora, só podia esperar que as suas propriedades mágicas, extraplanares, permitissem a Guenhwyvar recuperar completamente. — Volta para tua casa — disse Drizzt. — Descansa e recupera, meu amigo. Chamar-te-ei daqui a uns dias. — Talvez possamos dar alguma ajuda agora — propôs Belwar. Drizzt sabia como era fútil a oferta. — Guenhwyvar curar-se-á melhor em descanso — explicou enquanto o felino se dissipava de novo na névoa. — Nada podemos fazer a Guenhwyvar que passe com ele para o outro plano. Esta

aqui no nosso mundo sobrecarrega as forças dele. Cada minuto cobra o seu preço. Guenhwyvar desapareceu e apenas ficou a estatueta. Drizzt apanhou-a e observou-a por um longo momento antes de conseguir metê-la de novo no bolso. Uma espada fez voar a esteira de dormir pelo ar, e depois rodopiou e cortou juntamente com a sua gémea até a esteira não ser mais do que um farrapo desfeito. Zaknafein olhou para as moedas de prata caídas no chão. Era um embuste tão óbvio… Mas o acampamento, e a perspectiva de Drizzt l regressar, tinham mantido Zaknafein por ali durante vários dias! Drizzt Do’Urden desaparecera, e dera-se a bastante trabalho para anunciar a sua partida d Blingdenstone. O espírito-espectro fez uma pausa para avaliar este novo pedaço de informação, e necessidade de pensar, de contactar o ser racional que Zaknafein fora em mais do que um nível instintivo, trouxe o inevitável conflito entre esta animação morta-viva e o espírito que estava mantido prisioneiro. Na antecâmara da capela, a Matrona Malice Do’Urden sentiu a luta interior da sua criatura. No zin carla, o controlo do espírito-espectro mantinha-se responsabilidade da Matrona Mãe que a Rainh Aranha tivesse agraciado com a dádiva. Malice tinha de trabalhar arduamente na sua tarefa, tinha de cuspir uma série de cânticos e encantamentos para se insinuar entre os processos mentais do espíritoespectro e as emoções e a alma de Zaknafein Do’Urden. O espírito-espectro sacudiu-se ao sentir a intrusão da poderosa vontade da Matrona Malice. Nã havia contestação possível; em apenas um segundo, o espírito-espectro estava a estudar de novo a pequena câmara que Drizzt e um outro ser, provavelmente um gnomo das profundezas, tinham disfarçado de acampamento. Tinham desaparecido dali já há semanas, decerto, e afastavam-se certamente de Blingdenstone a toda a velocidade. Provavelmente, raciocinou o espírito-espectro, afastando-se também de Menzoberranzan. Zaknafein saiu da câmara para o túnel principal. Farejou para um lado, para leste, na direcção de Menzoberranzan, e depois agachou-se e farejou de novo. Os encantamentos de localização que Malice tinha imbuído nele não conseguiam cobrir distâncias tão grandes, mas as minúsculas sensações que o espírito-espectro recebeu da inspecção apenas vieram confirmar as suas suspeitas. Drizzt fora para oeste. Zaknafein avançou pelo túnel, sem qualquer sinal de coxear devido ao golpe de lança de duende que recebera, um ferimento que teria sido mutilador para qualquer mortal. Estava mais de uma semana atrás de Drizzt, talvez duas, mas não estava preocupado. A sua presa teria de dormir, teria de descansar e de comer. A presa era de carne, e era mortal — e fraca. — Que tipo de ser é? — perguntou Drizzt a Belwar num sussurro, enquanto observavam a curios figura bípede a encher baldes num riacho. Toda aquela área de túneis estava magicamente iluminada, mas Drizzt e Belwar sentiam-se seguros o suficiente nas sombras de uma formação rochosa a pouco metros da figura envolta num manto. — É um homem — respondeu Belwar. — Um humano, da superfície.

— Está muito longe de casa — notou Drizzt. — E no entanto parece sentir-se confortável nesta paragens. Não pensei que um habitante da superfície pudesse sobreviver no Subescuro. Isso va contra os ensinamentos que recebi na Academia de Menzoberranzan. — Provavelmente é um feiticeiro — calculou Belwar. — Isso explicaria a luz nesta região. explicaria a razão de ele estar aqui. Drizzt olhou para o svirfnebli com curiosidade. — Os feiticeiros são uma gente estranha — explicou o guarda-tocas, como se essa verdade fosse evidente. — E os feiticeiros humanos mais ainda do que quaisquer outros, segundo ouvi dizer. Os magos drow praticam pelo poder. Os feiticeiros svirfnebli praticam as artes para conhecer melhor a pedra. Mas os feiticeiros humanos — prosseguiu o gnomo das profundezas, com um óbvio desdém na voz — Magga cammara, elfo negro! Os feiticeiros humanos são um caso à parte! — Porque praticam os feiticeiros humanos, sequer, as artes da magia? — perguntou Drizzt. Belwar abanou a cabeça. — Não creio que nenhum estudioso tenha ainda encontrado a razão — respondeu com sinceridade. — Uma raça estranha e imprevisível, os humanos; e é melhor deixá-los em paz. — Já conheceste algum? — Uns quantos — Belwar encolheu os ombros, como se a recordação não fosse agradável. Comerciantes da superfície. Coisas feias, arrogantes. O mundo todo é só deles, segundo pensam. A voz retumbante do svirfnebli soou um pouco mais forte do que Belwar pretendia, e a figura co o manto junto ao riacho virou a cabeça na direcção dos dois amigos. — Saiam lá daí, seus roedores! — chamou o humano, numa linguagem que os amigos não conseguiam entender. O feiticeiro repetiu a ordem noutra língua, e depois em drow, e depois em mais duas línguas desconhecidas, e depois em svirfnebli. Prosseguiu assim durante vários minutos, com Drizzt e Belwar a olharem um para o outro, incrédulos. — É um homem instruído — sussurrou Drizzt para o gnomo das profundezas. — Ratos, provavelmente — resmungou o homem para si mesmo. Olhou em volta, procurando alguma maneira de fazer aparecer quem tinha feito barulho e se mantinha fora da sua vista, pensando que essas criaturas poderiam proporcionar-lhe uma refeição. — Vamos ver se é amigo ou inimigo — sussurrou Drizzt, preparando-se para sair do esconderijo. Belwar fê-lo parar e olhou-o com relutância: mas depois, sem nada mais a que recorrer senão os seus instintos, encolheu os ombros e deixou-o seguir. — Saudações, humano que estás tão longe de casa — disse Drizzt na sua língua nativa, saindo de trásOsdaolhos rocha.do humano abriram-se histericamente e puxou bruscamente as barbas brancas. — Não és nenhum maldito rato! — guinchou na língua drow, com alguma dificuldade, mas de forma compreensível. — Não — disse Drizzt. Olhou para trás, para Belwar, que avançava para se lhe reunir. — Ladrões! — gritou o humano. — Vieram para me roubar, não é? — Não — respondeu Drizzt.

— Vão-se embora! — gritou o humano, sacudindo as mãos como um camponês faria para espantar as galinhas. — Vão-se! Saiam daqui, já! Drizzt e Belwar trocaram olhares de curiosidade. — Não — disse Drizzt pela terceira vez. — Isto é a minha casa, estúpido elfo negro! — exclamou o humano. — Convidei-te para vire aqui? Mandei-te alguma carta a convidar-te para vires a minha casa? Ou talvez tu e o teu pequeno amigo simplesmente consideraram vosso dever dar-me as boas-vindas à vizinhança? — Cuidado, drow — sussurrou Belwar enquanto o humano continuava a falar ininterruptamente. — É um feiticeiro, sem dúvida alguma, e não muito sensato, mesmo pelos padrões humanos. — Ou talvez o drow e o gnomo das profundezas tenham medo de mim? — troçou o humano, mais para si mesmo do que para os intrusos. — Sim, claro. Já ouviram que eu, Brister Fendlestick, decid aventurar-me pelos corredores do Subescuro, e uniram forças para se protegerem de mim! Sim, sim, parece-me bem claro, e bem miserável! — Já lutei contra feiticeiros antes — respondeu Drizzt a Belwar. — Esperemos que possamo resolver isto sem sarilhos. O que quer que aconteça, no entanto, fica sabendo que não tenho nenhuma vontade de regressar pelo caminho por onde viemos — Belwar assentiu sombriamente enquanto Drizzt se virava para o humano. — Talvez possamos simplesmente convencê-lo a deixar-nos passar — murmurou. O humano tremia, à beira de uma explosão. — Muito bem! — gritou subitamente. — Então não se vão embora! Drizzt percebeu o seu erro ao pensar que poderia falar com este humano. O drow começou avançar, decidido a aproximar-se dele antes que o feiticeiro pudesse lançar algum ataque. Mas o humano tinha aprendido a sobreviver no Subescuro, e tinhas as suas defesas preparada antes mesmo que Drizzt e Belwar tivessem aparecido por detrás das rochas. Agitou as mãos e proferiu uma única palavra que os companheiros não conseguiram compreender. Um anel que tinha num dedo brilhou intensamente e largou uma pequena bola de fogo para o ar, entre ele e os intrusos. — Bem-vindos a minha casa, então! — gritou o feiticeiro triunfantemente. — Brinquem com isto! — estalou os dedos e desapareceu. Drizzt e Belwar conseguiram sentir a energia explosiva que se reunia em volta da bola brilhante. — Corre! — gritou o guarda-tocas, virando-se para fugir. Em Blingdenstone, a maior parte d magia era de ilusão, concebida para defesa. Mas em Menzoberranzan, onde Drizzt tinha aprendid magia, os encantamentos eram decididamente ofensivos. Drizzt conhecia o ataque do feiticeiro, e sabia que, naqueles longos e estreitos corredores, a fuga não seria uma opção. — Não —mesmo gritou,naedirecção agarrou da as bola costas do casaco de couro puxando gnomoe das profundezas brilhante. Belwar sabia de queBelwar, devia confiar emoDrizzt, po isso virou-se e correu ao lado do amigo. O guarda-tocas percebeu o plano do drow assim que os seus olhos se conseguiram desviar do espectáculo da bola brilhante. Drizzt ia direito ao riacho. Os amigos mergulharam de cabeça na água, embatendo e arranhando-se nas pedras, mesmo quando a bola explodia. Um momento mais tarde, ergueram-se da água fumegante, com plumas de fumo a subir das costas

das suas roupas, que não tinham ficado submersas. Tossiam e arquejavam, porque as chamas tinham sugado momentaneamente o ar da câmara, e o calor residual das pedras ainda a brilhar era intenso. — Humanos! — resmungou Belwar sombriamente. Saiu da água e sacudiu-se vigorosamente Drizzt saiu atrás dele e não conseguiu esconder o riso. O gnomo das profundezas, no entanto, não via graça nenhuma na situação. — O feiticeiro — lembrou a Drizzt. Drizzt agachou-se e olhou nervosamente em volta. Partira dali imediatamente. — Casa! — proclamou Belwar uns dias mais tarde. Os dois amigos olhavam para baixo, a partir d uma saliência elevada, para uma caverna alta e ampla que abrigava um lago subterrâneo. Atrás deles estava uma gruta com três salas e uma única entrada estreita, fácil de defender. Drizzt subiu os cerca de três metros para se reunir ao amigo no topo da saliência mais elevada. — Possivelmente — concordou. — Se bem que tenhamos deixado o feiticeiro apenas a pouco dias de caminho daqui. — Esquece o humano — desdenhou Belwar, olhando para a marca de queimadura do seu precioso casaco. — Não me agrada muito ter um lago tão grande a apenas alguns metros da nossa porta — prosseguiu Drizzt. — Está cheio de peixe! — argumentou o guarda-tocas. — E de musgos e plantas que nos manterão os estômagos reconfortados, e água que parece limpa o suficiente! — Mas um oásis destes atrairá decerto visitantes — raciocinou Drizzt. — Aqui, pouco descanso encontraríamos, receio bem. Belwar olhou para baixo, para a parede lisa até ao chão da grande caverna. — Isso nunca será problema — disse com um sorriso de desdém. — Os maiores não conseguirão chegar aqui, e os mais pequenos… Bem, já vimos como cortam as tuas lâminas, e tu já viste a força das minhas mãos. Com os pequenos, eu não me preocuparia! Drizzt gostava da confiança do svirfnebli, e tinha de concordar que ainda não tinham encontrado nenhum outro lugar tão adequado como este para se instalarem. Água, que era difícil de encontrar e, na maior parte das vezes, imprópria para beber, era um bem precioso no seco Subescuro. Com o lago e a vegetação em volta dele, Belwar e ele nunca teriam de se afastar muito para encontrar uma refeição. Drizzt ia concordar, mas depois um movimento junto da água chamou a atenção de ambos. — E caranguejos! — disse o svirfnebli, não tendo obviamente a mesma reacção perante aquela visão que o drow. — Magga cammara, elfo negro! Caranguejos! Das melhores refeições que pode encontrar! Era de facto um caranguejo que tinha saído da água, um monstro gigantesco de doze pernas, co pinças que podiam cortar um humano — ou um gnomo das profundezas — em dois. Drizzt olhou para Belwar, incrédulo. — Refeição? — perguntou. O sorriso de Belwar abriu-se até lhe fazer franzir o nariz, enquanto batia as mãos de metal uma n

outra. Comeram carne de caranguejo nessa noite, e no dia seguinte, e no outro, e no outro, e Drizz depressa ficou bastante disposto a acreditar que a caverna com as três salas junto do lago subterrâneo serviria de bom lar. O espírito-espectro fez uma pausa para avaliar o campo que brilhava a vermelho. Em vida, Zaknafei Do’Urden teria evitado um caminho assim, respeitando os perigos inerentes de salas que brilhava em vermelho e musgos luminosos. Mas para o espírito-espectro o trilho era bem evidente; Drizz passara por ali. O espírito-espectro avançou, ignorando os sopros nocivos de esporos mortais que subiam a cada passo que dava, esporos sufocantes que enchiam os pulmões de criaturas infelizes. Mas Zaknafein não respirava. Depois chegou o rumor do grubber a acorrer para proteger os seus domínios. Zaknafein agachou-se numa posição defensiva, com os sentidos da criatura que em tempos fora a pressentirem o perigo. O grubber deslizou para o campo brilhante de musgo, mas não viu nenhum intruso para afastar. Mesmo assim, avançou, pensando que uma refeição de baruchies poderia não ser má ideia nesse momento. Quando o grubber chegou ao meio da sala, o espírito-espectro deixou que o seu encantamento de levitação se desfizesse. Aterrou nas costas do monstro. O grubber sacudiu-se e correu pela sala, mas o equilíbrio de Zaknafein não se abalou. As costas do grubber eram espessas e duras, capazes de repelir tudo, menos as melhores armas, que eram as que Zaknafein possuía. — Que foi aquilo? — perguntou Belwar um dia, parando de trabalhar na nova porta que bloquearia entrada da gruta. Junto ao lago, Drizzt parecia também ter ouvido o barulho, pois largara o capacete que estava a usar para apanhar água e puxara das cimitarras. Levantou uma mão para mandar calar o guarda-tocas, e depois subiu de regresso à gruta para uma conversa em voz baixa. O som, um som forte de garras a bater, ouviu-se de novo. — Conheces este ruído? — perguntou Belwar. Drizzt assentiu. — Horrores de garras — respondeu. — Possuem o melhor ouvido de todo o Subescuro. Drizzt manteve para consigo as recordações do seu único encontro com um destes monstros. Ocorrera durante uma patrulha de exercício, com Drizzt a liderar a sua turma da Academia pelo túneis no exterior de Menzoberranzan. A patrulha dera com um grupo de criaturas gigantes, bípedes, com exosqueletos tão duros como placas de armadura metálica e com poderosos bicos e garras. A patrulha drow, sobretudo devido às capacidades de Drizzt,tinha vencera dia, masplaneado do que Drizz mais se lembrava era da sua convicção de que o encontro sido nesse um exercício pelos mestres da Academia, e que tinham sacrificado uma criança drow inocente aos horrores de garras, apenas para dar mais realismo à coisa. — Vamos à procura deles — disse Drizzt calmamente, mas com um ar sombrio. Belwar parou para recuperar o fôlego quando viu o perigoso brilho nos olhos de alfazema do drow. — Os horrores de garras são rivais perigosos — explicou Drizzt, notando a hesitação do gnomo

das profundezas. — Não podemos deixar que andem à solta aqui por perto. Seguindo os ruídos das garras a bater, Drizzt não teve grande dificuldade em se aproximar dos monstro. Escolheu silenciosamente o melhor caminho por detrás de uma curva final, com Belwar bem perto dele. Numa secção mais ampla do corredor estava um único horror de garras, batendo com as pesadas garras ritmicamente contra a pedra, tal como um mineiro svirfnebli poderia usar a sua picareta. Drizzt susteve Belwar, indicando-lhe que poderia despachar aquele monstro rapidamente se conseguisse aproximar-se sorrateiramente, sem ser detectado. Belwar concordou, mas manteve-se preparado para se unir a ele à primeira oportunidade ou necessidade. O horror de garras, obviamente distraído e enraivecido no seu jogo contra a parede de pedra, não ouviu nem viu a aproximação do furtivo drow. Drizzt apareceu mesmo ao lado do monstro, procurando a maneira mais fácil e mais rápida de o abater. Viu apenas uma abertura no exosqueleto, uma brecha entre a placa do peito da criatura e o seu largo pescoço. Enfiar ali uma lâmina, porém, poderia ser um pouco complicado, porque o horror de garras tinha quase três metros de altura. Mas o caçador encontrou a solução. Avançou com força e rapidez contra os joelhos do monstro, embatendo com os ombros e espetando-lhe as espadas nas virilhas. As pernas do monstro de garras abateram-se, e este caiu sobre o drow. Ágil como um gato, Drizzt rebolou para longe e saltou depois para cima do monstro caído, com ambas as armas apontadas à brecha na armadura. Poderia ter acabado com o horror de garras ali mesmo; as suas cimitarras poderiam facilmente ter passado pelas defesas ósseas. Mas Drizzt viu algo — terror? — no rosto do monstro, algo n expressão da criatura que não devia ali estar. Forçou o caçador a parar, assumiu o controlo das espadas e hesitou por apenas um segundo — o suficiente para que o horror de garras, para absoluto espanto de Drizzt, dissesse em língua drow: — Por favor… não… me… mates!

As cimitarras afastaram-se lentamente do pescoço do horror de garras. — Não… sou… o que… pareço…. — tentou o monstro explicar no seu discurso entrecortado. A cada palavra que dizia, o horror de garras parecia ficar mais à vontade com a língua. — Sou… pech. — Pech? — riu-se Belwar, avançando para junto de Drizzt. O svirfnebli olhou para o monstr encurralado com compreensível confusão. — És um bocado grande demais para um pech — notou. Drizzt desviou os olhos do monstro para olhar para Belwar, procurando alguma explicação. Nunc ouvira aquela palavra. — Filhos das pedras —objectivo explicou-lhe —a Estranhas criaturinhas. Duras como rocha vivendo sem nenhum outro senãoBelwar. trabalhar pedra. — Até parecem svirfnebli — respondeu Drizzt. Belwar fez uma pausa para avaliar se tinha acabado de ser elogiado ou insultado. Incapaz de se decidir, o guarda-tocas prosseguiu, com alguma desconfiança: — Não há muitos pech por aí, e menos ainda com a aparência deste aqui! — lançou um olhar de suspeita ao horror de garras e depois fez um olhar para Drizzt que disse a este para manter as cimitarras em prontidão. — Pech… Já não… — tartamudeou o horror de garras, com evidente pesar na voz gutural. — J não pech… — Como te chamas? — perguntou Drizzt, esperando encontrar alguma pista para a verdade. O horror de garras pensou por um longo momento, e depois abanou a cabeça, impotente. — Já não pech… — disse de novo, virando intencionalmente a cara com o bico para o lado, para deixar bem à vista a brecha no exosqueleto, convidando Drizzt a dar-lhe o golpe final. — Não te consegues lembrar do teu nome? — perguntou Drizzt, sem grande vontade de matar criatura. O horror de garras nem se moveu, nem respondeu. Drizzt olhou para Belwar, em busca de conselho, mas o guarda-tocas apenas encolheu os ombros, impotente. — Que aconteceu? — instou Drizzt. — Tens de me dizer o que te aconteceu! — Feit…. Feiticeiro… Mau feiticeiro… Com alguma instrução sobre os usos da magia e das práticas sem escrúpulos que os seus praticantes muitas vezes seguiam, Drizzt começou a compreender as possibilidades e começou a acreditar naquela estranha criatura. — Um mago transformou-te? — perguntou, já calculando a resposta. Ele e Belwar trocava olhares espantados. — Já ouvi falar de tais magias. — E eu também — concordou o guarda-tocas. — Magga cammara, elfo negro. Já vi os feiticeiros de Blingdenstone usarem magias assim quando precisamos de nos infiltrar em… O gnomo das profundezas calou-se subitamente, lembrando-se das srcens do elfo a quem se estava a dirigir.

— Em Menzoberranzan… — terminou Drizzt, rindo. Belwar pigarreou, um pouco embaraçado, e virou-se de novo para o monstro. — Foste em tempos um pech — disse, precisando de ouvir toda a explicação dita num único pensamento claro. — E um feiticeiro qualquer transformou-te num horror de garras. — Verdade — respondeu o monstro. — Já não pech. — Onde estão os teus companheiros? — perguntou o svirfnebli. — Se aquilo que ouvi dizer da tu gente é verdade, os pech não costumam viajar sozinhos. — Moooortos… — disse o monstro. — Mau feit…. — Feiticeiro humano? — sugeriu Drizzt. O grande bico do monstro acenou agitadamente em concordância: — Sim. Ho… Homem! — E o feiticeiro depois abandonou-te à tua sorte como horror de garras — disse Belwar. Ele e Drizzt olharam longamente um para o outro, e depois o drow afastou-se, permitindo que o horror de garras se levantasse. — Quem me dera… que… me… matassem — disse então o monstro, sentando-se. Olhava para a mãos em forma de garras com óbvio nojo. — A pedra, a pedra… Perdida para mim. Belwar ergueu as suas próprias mãos artificiais em resposta. — Também eu em tempos pensei o mesmo — disse. — Estás vivo, e já não estás só. Vem connosco para o lago, onde poderemos falar mais um pouco. O horror de garras concordou imediatamente e começou, com grande esforço, a erguer o corpo maciço de um quarto de tonelada do chão. Entre os sons de raspar e bater do exosqueleto da criatura, Belwar sussurrou prudentemente para Drizzt: — Mantém as cimitarras a jeito! O horror de garras pôs-se finalmente de pé, erguendo-se nos seus imponentes três metros de altura, e o drow não argumentou contra a lógica de Belwar. Durante muitas horas, o horror de garras contou as suas aventuras aos dois amigos. Tão espantos como a história era a crescente habituação do monstro ao uso da linguagem. Este facto, e as descrições que fazia da sua anterior existência — uma vida passada a bater e a afeiçoar a pedra com uma reverência quase sagrada — mais convenceram Belwar e Drizzt da verdade daquela históri bizarra. — Sabe bem, falar de novo, ainda que esta língua não seja a minha — disse a criatura ao fim de algum tempo. — Parece que encontrei de novo uma parte do que antes fui. Com as suas próprias experiências semelhantes tão vivas ainda na mente, Drizzt compreendia be esses sentimentos. — Há quanto tempo estás assim? — perguntou Belwar. O horror de garras encolheu os ombros, com o peito amplo e os ombros largos a fazer barulho a cada movimento. — Semanas, meses… — disse. — Não me consigo lembrar. O tempo perdeu o sentido para mim. Drizzt pôs a cara nas mãos e deixou escapar um profundo suspiro, de completa empatia e simpatia com a infeliz criatura. Também ele se sentira só e perdido na selva do Subescuro. Também ele sabia

a sinistra verdade de um tal destino. Belwar deu uma pancadinha com a mão de martelo no ombro do drow. — E para onde te diriges agora? — perguntou o gnomo das profundezas ao horror de garras. — Ou de onde vens? — Em busca do feiti… — respondeu o horror de garras, encalhando impotente nessa última palavra, como se a simples menção do malévolo feiticeiro lhe causasse uma dor profunda. — Mas já perdi tanto… Encontrá-lo-ia facilmente, se ainda fosse um pech. As pedras dir-me-iam onde procurar. Mas agora já não posso falar com elas muitas vezes — e o monstro levantou-se. — Vou-me embora — disse com determinação. — Vocês não estão seguros comigo por perto. — Ficas aqui — disse Drizzt subitamente e com um tom de autoridade que não podia ser negado. — Não consigo controlar… — tentou explicar o horror de garras. — Não precisas de te preocupar — disse Belwar. E apontou para a porta no topo da saliência de um lado da caverna. — A nossa casa é ali em cima, e tem uma porta demasiado pequena para que consigas passar. Aqui junto ao lago deves descansar, até todos decidirmos o melhor a fazer. O horror de garras estava exausto, e o raciocínio do svirfnebli parecia suficientemente sólido. O monstro deixou-se cair pesadamente na pedra e enroscou-se o máximo que o seu corpo enorme lhe permitia. Drizzt e Belwar começaram a afastar-se, olhando para trás, para o novo companheiro, cada passo. — Clacker — disse Belwar subitamente, fazendo parar Drizzt ao seu lado. Com grande esforço, horror de garras rebolou e virou-se para ele, para observá-lo, compreendendo que o gnomo das profundezas tinha dito a palavra na sua direcção. — Será assim que te chamaremos, se não tiveres objecções — explicou o svirfnebli à criatura e a Drizzt. — Clacker! — Um nome adequado — notou Drizzt. — É um bom nome — concordou o horror de garras; mas interiormente, a criatura desejou poder lembrar-se do seu nome pech, o nome que rebolava como um pedregulho redondo numa passagem em declive e dizia preces às pedras em cada sílaba gutural. — Alargaremos a porta — disse Drizzt quando ele e Belwar estavam dentro da gruta. — Para qu Clacker possa entrar e descansar junto de nós, em segurança. — Não, elfo negro — contrapôs o svirfnebli. — Não faremos isso. — Ele não fica em segurança ali fora, junto da água — respondeu Drizzt. — Monstros acabarã por encontrá-lo. — Está seguro o suficiente! — rosnou Belwar. — Que monstro atacaria voluntariamente um horro de garras? — Belwar compreendia as preocupações sinceras do drow, mas compreendia também o perigo que havia na sugestão dele. — Já vi feitiços destes — disse sombriamente o svirfnebli. — São chamados polimorfos. As mudanças do corpo vêm de imediato, mas a mudança da mente pode demorar algum tempo. — Que estás a dizer? — a voz de Drizzt quase revelava pânico. — Clacker ainda é um pech — respondeu Belwar —, embora preso no corpo de um horror de garras. Mas em breve, receio bem, Clacker já não será um pech. Tornar-se-á um horror de garras, de corpo e de espírito, e por muito amigáveis que possamos ser, acabará por nos ver apenas como mais

uma refeição. Drizzt ia começar a argumentar, mas Belwar calou-o com um pensamento sombrio: — Terias algum prazer em matá-lo, elfo negro? Drizzt virou a cara. — A história dele é-me familiar. — Não tanto como julgas — respondeu Belwar. — Também eu andei perdido — lembrou Drizzt ao guarda-tocas. — Assim pensas — respondeu Belwar. — Mas aquilo que era essencialmente Drizzt Do’Urde manteve-se dentro de ti, meu amigo. Eras aquilo que tinhas de ser, aquilo que a situação à tua volta te forçava a ser. Este caso é diferente. Não apenas no corpo, mas na sua própria essência, Clacke tornar-se-á um horror de garras. Os seus pensamentos serão os pensamentos de um horror de garras e… Magga cammara, não te devolverá a tua clemência quando fores tu a estar por terra. Drizzt não se deixou convencer, embora não pudesse refutar a lógica simples do gnomo das profundezas. Seguiu para a sala da esquerda da gruta, a que lhe servia de quarto, e deitou-se na rede. — Pobre de ti, Drizzt Do’Urden — murmurou Belwar enquanto observava os movimento abatidos do drow, carregados de pesar. — E pobre do nosso condenado amigo pech. O guarda-tocas foi para o seu quarto e subiu para a rede, sentindo-se muito mal com toda aquela situação, mas determinado a manter-se frio e prático, por muito que custasse. Porque Belwa compreendia que Drizzt sentia uma afinidade com a desgraçada criatura, um laço potencialmente fatal, forjado na empatia pela perda de Clacker do seu eu. Mais tarde, nessa noite, um Drizzt excitado abanou o svirfnebli no seu sono. — Temos de ajudá-lo — sussurrou bruscamente Drizzt. Belwar limpou a cara com um braço e tentou orientar-se. O sono não fora sossegado, cheio de sonhos em que tinha gritado Bivrip! numa voz impossivelmente alta, e em que depois tinha arrancado a vida do seu novo companheiro. — Temos de o ajudar! — disse Drizzt de novo, ainda com mais convicção. Belwar pôde perceber, pela aparência excitada do amigo, que Drizzt não tinha dormido ainda em toda a noite. — Não sou nenhum mago! — disse o guarda-tocas. — Nem os… — Então, encontraremos um — rugiu Drizzt. Vamos encontrar o humano que amaldiçoou Clacker e forçá-lo a reverter o encantamento! Vimo-lo junto ao riacho há poucos dias. Não pode andar assi tão longe! — Um feiticeiro capaz de tais magias não se mostrará adversário fácil — respondeu rapidamente Belwar. — Esqueceste assim tão depressa a bola de fogo? — olhou para a parede, para onde estava pendurado o casaco de couro chamuscado, como para se convencer a si mesmo. — O feiticeiro está para além das nossas forças, receio — murmurou. Mas Drizzt conseguiu perceber a falta de convicção na expressão do guarda-tocas enquanto dizia essas palavras. — És assim tão rápido a condenar Clacker? — perguntou Drizzt secamente. Um grande sorris começou a desenhar-se-lhe na cara quando viu o svirfnebli a ceder. — Será este o mesmo Belwar Dissengulp que recebeu um drow perdido? Esse Muito Honrado Guarda-Tocas que não perdeu esperança num elfo negro que toda a gente considerava perigoso e para além de qualquer ajuda?

— Vai dormir, elfo negro — retorquiu Belwar, afastando Drizzt com a mão de martelo. — Sábio conselho, meu amigo — disse Drizzt. — E tu, dorme bem. Podemos ter um long caminho à nossa frente. — Magga cammara… — suspirou o taciturno svirfnebli, mantendo teimosamente a sua fachada de rude sentido prático. Virou costas a Drizzt e depressa estava a ressonar. Drizzt notou que os roncos de Belwar soavam agora como vindos de um profundo e abençoado sono. Clacker batia contra a parede com as mãos de garra, batucando sem parar na pedra. — Outra vez, não… — murmurou um Belwar espantado para Drizzt. — Não aqui! Drizzt correu pelo corredor, aproximando-se dos sons monocórdicos. — Clacker! — chamou suavemente quando o horror de garras ficou à sua vista. O horror de garras virou-se para enfrentar o drow que se aproximava, com as mãos de garras be abertas e prontas, e um crescente silvo a soprar pelo grande bico. Um momento depois, Clacke percebeu o que estava a fazer e parou subitamente. — Porque tens tu de continuar a fazer esse alarido? — perguntou Drizzt, tentando fingir, até para si mesmo, que não vira a pose de combate de Clacker. — Estamos no exterior, meu amigo. Esses ruídos chamam visitantes. A grande cabeça do monstro abateu-se. — Não devias ter vindo ter comigo — disse Clacker. — Não consigo… Demasiadas coisa acontecerão, que eu não consigo controlar… Drizzt aproximou-se e pousou uma mão reconfortante no cotovelo ossudo de Clacker. — A estava culpa foi minha — disse drow, compreendendo que ele. o horror de garras queria dizer. Clacker a desculpar-se por seo ter virado perigosamenteo para — Não devíamos ter partido em direcções diferentes — continuou Drizzt. — E eu não devia ter me aproximado de ti tão rapidamente e sem aviso. Ficaremos todos juntos, a partir de agora, ainda que a nossa busca se possa prolongar por isso, e Belwar e eu ajudar-te-emos a manteres-te controlado. O rosto com bico de Clacker iluminou-se. — Mas é que sabe tão bem bater na pedra — afirmou. Bateu com uma pesada garra na pedra, como que para avivar uma recordação. A voz e o olhar afastaram-se como se pensasse numa vida passada, na vida que o feiticeiro lhe roubara. Todos os dias do pech tinham sido passados a bater na pedra, a afeiçoar a pedra, a falar com a preciosa pedra. — Voltarás a ser pech — prometeu Drizzt. Belwar, aproximando-se pelo túnel, ouviu as palavras do drow, mas não tinha assim tanta certeza. Andavam pelos túneis havia mais de uma semana e não tinham encontrado nenhum sinal do feiticeiro. O guarda-tocas reconfortou-se um pouco com a ideia de Clacker parecer estar a recuperar uma parte de si mesmo do seu estado monstruoso, de parecer estar a recuperar um pouco da sua personalidade pech. Belwar vira a mesma transformação em Drizzt apenas algumas semanas antes, e por baixo da barreiras de sobrevivência do caçador que Drizzt se tornara, Belwar encontrara o seu melhor amigo.

Mas o guarda-tocas tomou a precaução de não presumir que os mesmos resultados surgiriam no caso de Clacker. O estado do horror de garras era resultado de magia poderosa, e nenhuma quantidade de amizade poderia inverter o trabalho do encantamento do mago. Ao encontrar Drizzt e Belwar, Clacker tinha recebido uma temporária — e apenas temporária — libertação de um destino miserável e incontornável. Avançaram pelos túneis do Subescuro por vários dias mais, sem qualquer resultado. A personalidade de Clacker continuou a não se deteriorar, mas até Drizzt, que deixara a gruta junto do lago tão cheio de esperanças, começou a sentir o peso da dura realidade. Depois, precisamente quando Drizzt e Belwar tinham começado a discutir sobre o regresso a casa o grupo foi dar a uma caverna razoavelmente grande, cheia de cascalho de um recente abatimento do tecto. — Ele esteve aqui! — gritou Clacker. Pegou num enorme calhau e atirou-o sem esforço contra um parede distante, onde este se desfez em mais cascalho. — Esteve aqui! O horror de garras corria pela caverna, desfazendo pedras e atirando rochas enormes com u raiva cada vez mais explosiva. — Como podes saber isso? — perguntou Belwar, tentando conter a ira do gigantesco amigo. Clacker apontou para o tecto. — Foi ele que fez isto! O feiti… Ele fez isto! Drizzt e Belwar trocaram olhares preocupados. O tecto da caverna, que estava a uns quatro metro de altura, estava chamuscado e mostrava sinais de uma explosão, e no centro havia um enorme buraco que ia até ao dobro da altura anterior do tecto. Se fora magia a provocar danos tão extensos, era magia poderosa, sem dúvida! — O feiticeiro fez isto? — repetiu Belwar. Lançou a Drizzt o seu ar muito prático qu aperfeiçoara, mais uma vez. — A torre dele! — respondeu Clacker, e correu pela sala para tentar perceber por que saída fora o feiticeiro. Agora, Drizzt e Belwar estavam completamente perdidos, e Clacker, quando finalmente parou par olhar para eles, percebeu a confusão em que estavam. — O feiti… — O feiticeiro — concluiu Belwar, impaciente. Clacker não se ofendeu, e até aprovou a ajuda. — O feiticeiro tem uma torre — tentou explicar o excitado horror de garras. — Uma grande torre de metal que leva com ele e que instala onde lhe dá jeito — Clacker olhou para o tecto desfeito. — Mesmo nem sempre caiba — no perguntou sítio. — Eleque anda com uma torre? Belwar, franzindo muito o nariz longo. Clacker fez que sim entusiasticamente, mas depois não perdeu tempo a explicar mais, pois dera com o rasto do feiticeiro, uma clara pegada de uma bota num pedaço de musgo à entrada de um dos corredores. Drizzt e Belwar tiveram de se contentar com a explicação incompleta do amigo, porque perseguição estava de novo em marcha. Drizzt assumiu a dianteira, usando toda destreza que

aprendera na Academia drow e desenvolvera durante a sua década sozinho no Subescuro. Belwar, com a sua compreensão inata do Subescuro e com a sua jóia magicamente iluminada, mantinha a orientação, e Clacker, naqueles momentos em que se sentia mais completamente de regresso ao seu anterior eu, pedia também orientação às pedras. Os três passaram por outra caverna com o tecto estourado, e por outra que mostrava sinais evidentes da presença da torre, embora o tecto desta fosse suficientemente alto para a acomodar. Uns dias mais tarde, os três companheiros viraram para uma caverna alta e larga, e ao longe, junto a um riacho, estava a casa do feiticeiro. Mais uma vez, Drizzt e Belwar olharam um para o outro desanimados, porque a torre tinha uns bons nove metros de altura e seis de largura, com paredes metálicas lisas a troçar de quaisquer planos que pudessem ter. Seguiram por caminhos separados, cautelosos, até à estrutura, e ficaram ainda mais espantados por verem que as paredes da torre eram de adamantite pura, que era o metal mais duro do mundo. Só viram uma única porta, pequena e cujos contornos mal se notavam na perfeição da construção da torre. Não precisaram de a testar para saber que era segura contra visitantes indesejados. — O feiti… Ele está lá dentro! — rosnou Clacker, passando as garras pela porta, desesperado. — Então, terá de sair — raciocinou Drizzt. — E quando o fizer, estaremos à espera dele. O plano não satisfazia o pech. Com um rugido profundo que ressoou por toda região, Clacke atirou o corpo enorme contra a porta da torre, e depois saltou para trás e voltou a investir. A porta não se mexeu um milímetro com as pancadas, e depressa se tornou óbvio ao gnomo das profundezas e ao drow que o corpo de Clacker perderia certamente aquela batalha. Drizzt tentou em vão acalmar o amigo gigante, enquanto Belwar se afastava para um lado e começava a entoar um cântico já conhecido. Por fim, Clacker deixou-se abater, soluçando de exaustão, de dor e de raiva impotente. Então, Belwar, com as mãos de mithral a soltar faíscas sempre que se tocavam, avançou. — Afastem-se! — exigiu o guarda-tocas. — Já vim de demasiado longe para ser detido por uma simples porta! Pôs-se em frente à porta e bateu com a mão de martelo encantada com toda a força. Um relâmpago estonteante de faíscas azuis disparou em todas as direcções. Os braços musculados do gnomo das profundezas trabalhavam furiosamente, raspando e batendo, mas quando se acabou a sua energia, a porta da torre apenas mostrava pequenos arranhões e queimaduras superficiais. Belwar bateu as mãos uma na outra, desgostado, inundando-se em faíscas inofensivas, e Clacke concordou plenamente com os seus sentimentos de frustração. Drizzt, porém, estava mais zangado e preocupado do que os amigos. Não só a torre do feiticeiro os tinha detido, como o feiticeiro que lá estava dentro sabia agora da presença deles, sem dúvida. Drizzt movimentou-se em volta da estrutura cautelosamente, notando as muitas seteiras que havia nela. Agachando-se debaixo de uma delas, ouviu um cântico muito baixo, e embora não conseguisse entender as palavras do feiticeiro, conseguia perceber suficientemente a intenção do humano. — Corram! — gritou para os companheiros. E então, em completo desespero, agarrou numa pedr que estava perto e atirou-a para a abertura da seteira. A sorte estava do seu lado, porque o feiticeiro tinha acabado o encantamento precisamente quando a pedra embateu na abertura. Um raio disparou

para fora, partiu a pedra e fez voar Drizzt, mas reflectiu-se e foi bater de volta na torre. — Maldição! Maldição — ouviu-se um guincho vindo de dentro da torre. — Detesto quando ist acontece! Belwar e Clacker apressaram-se a ajudar o amigo caído. O drow estava apenas estonteado, e j estava de pé e em prontidão antes que chegassem perto dele. — Ah, vais pagar por isto, e bem caro! Ah isso vais! — ouviu-se gritar de dentro da torre. — Fujam! — gritou o guarda-tocas. E até o irado horror de garras concordou plenamente. Ma assim que Belwar olhou para os olhos de alfazema do drow, percebeu que o amigo não ia fugir. Também Clacker recuou um passo ao ver o fogo que se acumulava nos olhos de Drizzt Do’Urden. — Magga cammara, elfo negro! Não podemos entrar — relembrou o gnomo das profundezas a Drizzt. Drizzt tirou a estatueta de ónix do bolso e pô-la junto à seteira, bloqueando-a com o corpo. — Já veremos — rugiu. Depois, chamou Guenhwyvar. A névoa negra rodopiou e só encontrou um caminho aberto junto da estatueta. — Vou matar-vos a todos! — gritou o feiticeiro escondido. O som que veio a seguir de dentro da torre foi um rugido de pantera, e depois de novo a voz do feiticeiro: — Mas posso estar enganado! — Abre a porta! — gritou Drizzt. — Abre, pela tua vida, malévolo feiticeiro! — Nunca! Guenhwyvar rugiu outra vez. Depois, o feiticeiro deu um grito e a porta abriu-se completamente. Drizzt tomou a dianteira. Entraram numa sala circular, que era o nível mais baixo da torre. Uma escada de ferro subia ao centro até um alçapão, que era a rota de fuga que o feiticeiro tentara. Mas não conseguira completamente, e estava pendurado de pernas para o ar na parte de trás da escada, com uma perna presa pelo joelho num degrau. Guenhwyvar, parecendo completamente curada das feridas do lago de ácido e parecendo de novo a mais magnífica das panteras, estava encavalitada do outro lado da escada, mordiscando descontraidamente o pé e o tornozelo do feiticeiro. — Façam favor de entrar! — gritou o feiticeiro, abrindo muito os braços, e depois fechando-os de novo para puxar as vestes penduradas, afastando-as da cara. Plumas de fumo subiam dos restos esfarrapados do manto, chamuscado pelo raio que lançara antes. — Sou Brister Fendlestick! Bem-vindos à minha casa! Belwar manteve Clacker à porta, sustendo o perigoso amigo com a mão de martelo, enquanto Drizzt subia para tratar do prisioneiro. O drow fez uma pausa suficientemente longa para olhar para o seu querido companheiro felino, pois não tinha voltado a chamar Guenhwyvar desde aquele dia e que tinha mandado a pantera de volta para se curar. — Falas drow — notou Drizzt, agarrando o feiticeiro pelo colarinho e pondo-o de pé co agilidade. Olhou para o homem desconfiadamente; nunca vira um humano antes daquele encontro unto ao riacho. Até aqui, o drow não estava muito impressionado. — Muitas línguas conheço! — respondeu o feiticeiro, sacudindo-se. E depois, como se a su

afirmação tivesse uma qualquer grande importância, acrescentou: — Sou Brister Fendlestick! — E contas com pech entre as línguas que falas? — rosnou Belwar da porta. — Pech? — respondeu o feiticeiro, cuspindo a palavra com evidente nojo. — Pech — rugiu Drizzt, enfatizando a resposta com a colocação súbita de uma cimitarra be perto do pescoço do mago. Clacker deu um passo em frente, fazendo o svirfnebli deslizar co facilidade pelo chão liso. — O meu grande amigo foi em tempos um pech — explicou Drizzt. — Mas isso deves já tu saber. — Pech — cuspiu o feiticeiro. — Coisinhas inúteis, sempre no meio do caminho. Clacker deu mais um grande passo em frente. — Despacha lá isso, elfo — resmungou Belwar, empurrando futilmente o grande horror de garras. — Devolve-lhe a identidade! — exigiu Drizzt. — Torna o nosso amigo um pech de novo. E isso bem depressa. — Bah! — rosnou o mago. — Está bem melhor assim! — respondeu o imprevisível humano. Porque haveria alguém de querer permanecer pech? A respiração de Clacker aproximava-se audivelmente. A força pura do terceiro passo que deu fez Belwar deslizar para longe. — Agora, mago! — avisou Drizzt. Da escada, a pantera soltou um longo e faminto rugido. — Oh, está bem, está bem! — resmungou o feiticeiro, erguendo as mãos em sinal de desagrado. — Maldito pech! Pegou num enorme livro que trazia num bolso demasiado pequeno para o conter. Drizzt e Belwa sorriram um para o outro, pensando que a vitória estava a um passo. Mas então o feiticeiro cometeu um erro fatal. — Devia tê-lo morto quando matei os outros — murmurou em surdina, demasiado baixo para que mesmo Drizzt, que estava ao lado dele, o ouvisse. Mas os horrores de garras tinham o ouvido mais apurado de todas as criaturas do Subescuro. Uma pancada da enorme garra de Clacker fez Belwar voar pela sala. Drizzt, que se virara ao ouvi os passos pesados, foi atirado para o lado pelo ímpeto do gigante que avançava, com as cimitarras a voarem-lhe das mãos. E o feiticeiro, aquele tonto feiticeiro, amorteceu o impacto de Clacker com escada de ferro; um impacto tão forte que a escada se torceu e mandou Guenhwyvar a voar para o outro lado. Se o golpe inicial e esmagador do corpo de duzentos e cinquenta quilos do horror de garras tinha morto o feiticeiro era uma questão meramente académica quando Belwar e Drizzt recuperaram o suficiente para chamar o amigo. As garras e o bico de Clacker batiam e rasgavam sem parar, arrasando tudo. De vez em quando via-se uma pequena explosão e uma nuvem de fumo, quando mais um dos muitos artefactos mágicos que o feiticeiro trazia se quebrava. E quando o horror de garras satisfez a sua raiva e olhou em volta para os dois companheiros, que o rodeavam em posição de combate, o monte de carne desfeita aos seus pés já não era reconhecível. Belwar começou por fazer notar que o feiticeiro tinha concordado mudar de novo Clacker, mas não havia nada a fazer. Clacker caiu de joelhos e escondeu a cara entre as garras, mal conseguindo

acreditar no que acabara de fazer. — Saiamos daqui — disse Drizzt, embainhando as espadas. — Revistemos isto — sugeriu Belwar, pensando que poderia haver ali escondidos alguns tesouros maravilhosos. Mas Drizzt não seria capaz de ficar ali nem mais um segundo. Vira demasiado de si mesmo na raiva incontida do seu gigantesco companheiro, e o cheiro daquele farrapo ensanguentado enchia-o de frustração e de receios que não conseguia tolerar. Com Guenhwyvar atrás dele, saiu da torre. Belwar avançou e ajudou Clacker a pôr-se de pé, e depois guiou o gigante, que tremia, para for da estrutura. Mas, teimosamente prático, o guarda-tocas obrigou os companheiros a esperar por ele enquanto voltava a entrar na torre, à procura de artefactos que os pudessem ajudar, ou da palavra mágica que lhes permitisse levar a torre consigo. Contudo, ou o feiticeiro era um homem pobre — do que Belwar duvidava — ou tinha os seus tesouros cuidadosamente escondidos, possivelmente nalgum outro plano de existência, pois o svirfnebli nada encontrou a não ser uma simples borracha de água e um par de botas usadas. Se a maravilhosa torre de adamantite tinha uma palavra mágica, teria ido para a cova com o feiticeiro. A viagem tornou-se uma viagem silenciosa, com cada um absorto nas suas preocupações, remorsos e recordações privados. Drizzt e Belwar não precisavam de falar do seu mais premente receio. Na discussões com Clacker, tinham ambos aprendido o suficiente acerca da normalmente pacífica raça dos pech para saberem que a explosão assassina de Clacker estava muito longe da criatura que e tempos fora. Mas, tinham de admitir o gnomo das profundezas e o drow, as acções de Clacker não estava muito longe das da criatura em que estava rapidamente a transformar-se.

— O que sabes? — perguntou a Matrona Malice a Jarlaxle, que caminhava ao seu lado pel complexo da Casa Do’Urden. Malice não seria normalmente tão familiar com o infame mercenário mas estava preocupada e impaciente. As movimentações dentro da hierarquia das famílias reinantes de Menzoberranzan, de que ouvira falar, não auguravam nada de bom para a Casa Do’Urden. — O que sei? — repetiu Jarlaxle, fingindo surpresa. Malice fez-lhe um esgar de desagrado, tal como Briza, que caminhava do outro lado do intempestivo mercenário. Jarlaxle pigarreou, embora mais uma gargalhada. podiamais dar poderosas a Malice de o pormenores dos rumores; não parecesse era tão tonto que fosse trair asNãocasas Menzoberranzan. Mas podia satisfazer Malice com uma simples afirmação cuja lógica só confirmav aquilo que ela já tinha presumido. — Zin-carla, o espírito-espectro, está ser usado há já muito tempo. Malice esforçou-se por manter a respiração pausada e discreta. Sabia que Jarlaxle sabia mais d que dizia, e o facto de o mercenário calculista ter tão friamente dito o óbvio disse-lhe que os seus receios se justificavam. O espírito-espectro de Zaknafein andava, de facto, há procura de Drizz havia já bastante tempo. Malice não precisava de ser lembrada de que a Rainha Aranha não er conhecida por ser paciente. — Tens mais alguma coisa a dizer-me? — perguntou. Jarlaxle encolheu os ombros, desinteressado. — Então, sai da minha casa — rosnou a Matrona Mãe. Jarlaxle hesitou por um momento, interrogando-se se deveria exigir pagamento pela pouca informação que tinha dado. Depois, mergulhou numa das suas bem conhecidas vénias profundas e virou-se para o portão. Depressa teria o seu pagamento. Na antecâmara de capela da casa, uma hora mais tarde, a Matrona Malice descansava no trono deixava os pensamentos deslizar até aos túneis serpenteantes do Subescuro selvagem. A sua telepatia com o espírito-espectro era limitada, geralmente não passando de emoções fortes, e nada mais. Mas dessas lutas interiores de Zaknafein, que fora pai de Drizzt e seu maior amigo quando vivo, e agor seu mais letal inimigo, Malice conseguia perceber os progressos do espírito-espectro. As ansiedades provocadas pela luta interior de Zaknafein aumentavam sempre inevitavelmente quando o espíritoespectro se aproximava mais de Drizzt. Agora, após o encontro perturbante com Jarlaxle, Malice tinha de saber dos progressos d Zaknafein. Pouco depois, os seus esforços tiveram sucesso. — A Matrona Malice insiste que o espírito-espectro foi para oeste, para lá da cidade dos svirfnebli — explicou Jarlaxle à Matrona Baenre. O mercenário dirigira-se imediatamente, da Casa Do’Urden, para o jardim de cogumelos d

extremo sul de Menzoberranzan, onde estava alojada a maior das famílias drow. — O espírito-espectro mantém-se na pista — murmurou a Matrona Baenre, mais para si do qu para o informador. — Isso é bom. — Mas a Matrona Malice acredita que Drizzt terá um avanço de muitos dias, até mesmo d semanas — prosseguiu Jarlaxle. — E ela disse-te isso? — perguntou a Matrona Baenre, incrédula, espantada por Malice revela informações tão prejudiciais. — Algumas informações podem ser recolhidas sem serem precisas palavras — respondeu o mercenário manhosamente. — O tom da Matrona Malice implicou muita coisa que ela não gostari que eu soubesse. A Matrona Baenre assentiu e fechou os olhos enrugados, cansada por toda aquela experiência. Desempenhara um papel em colocar a Matrona Malice no Conselho Governante, mas agora apena podia ficar sentada à espera para ver se Malice lá permaneceria. — Temos de confiar na Matrona Malice — disse por fim. Do outro lado da sala, oposto a Jarlaxle e à Matrona Baenre, El-viddinvelp, o leitor de mentes qu acompanhava a Matrona, desviou os pensamentos daquela conversa. O mercenário drow relatara que Drizzt tinha ido para oeste, para bem longe de Blingdenstone, e essas notícias tinham um importância potencial que não poderia ser ignorada. O leitor de mentes projectou os seus pensamentos para bem longe, para oeste, e lançou um aviso claro para corredores que não estavam tão vazios quanto poderia parecer. Zaknafein soube, assim que olhou para o lago quieto, que finalmente recuperara a sua presa. Baixouse e avançou cautelosamente pelos recantos ao longo da parede da ampla caverna. Depois, encontrou a porta artificial e a gruta por detrás dela. Velhos sentimentos agitaram-se dentro do espírito-espectro, sentimentos de familiaridade que em tempos tivera com Drizzt. Porém, novas e selvagens emoções rapidamente se sobrepuseram, assi que a Matrona Malice entrou na mente de Zaknafein com uma fúria selvática. O espírito-espectr entrou de rompante pela porta, de espadas desembainhadas, e vasculhou a gruta. Um cobertor voou e caiu depois em farrapos, com as espadas de Zaknafein a cortarem uma dúzia de vezes. Quando o acesso de raiva se dissipou, o monstro da Matrona Malice agachou-se para examinar situação. Drizzt não estava em casa. Bastaram alguns curtos momentos para o espírito-espectro caçador determinar que Drizzt e u companheiro, ou talvez mesmo dois, tinham partido da caverna poucos dias antes. Os instintos tácticos de Zaknafein disseram-lhe para ficar à espera, porque este não era decerto uma acampamento fingido, como o outro às portas da cidade dos gnomos das profundezas. Certamente a presa de Zaknafein pretenderia regressar. O espírito-espectro sentiu que a Matrona Malice, no seu trono na cidade drow, não admitiria mai atrasos. O tempo começava a escassear-lhe — os perigosos rumores cresciam a cada dia que passava — e os receios e a impaciência de Malice custar-lhe-iam caro, desta vez.

Apenas algumas horas depois de Malice ter guiado o espírito-espectro pelos túneis para perseguir o filho renegado, Drizzt, Belwar e Clacker regressaram à caverna por um caminho diferente. Drizzt pressentiu imediatamente que algo estava errado. Desembainhou as cimitarras e correu pel saliência, saltando para a porta da gruta antes que Belwar e Clacker pudessem sequer perguntar o que se passava. Quando chegaram à gruta, perceberam a razão do alarme de Drizzt. O lugar estava destruído, co os cobertores e as redes desfeitos, louça e caixas que tinham sido guardadas com comida esmagadas e partidas, e atiradas por todo o lado. Clacker, que não cabia dentro da gruta, afastou-se da porta e espreitou para baixo, para se assegurar de que nenhum inimigo estava à espreita nos recantos mais afastados da caverna. — Magga cammara! — rugiu Belwar. — Que monstro fez isto? Drizzt segurou num cobertor e apontou para os cortes perfeitos no tecido. Belwar não deixou de perceber o que o drow queria dizer. — Espadas — disse o guarda-tocas sombriamente. — Espadas aguçadas e finamente trabalhadas. — Espadas de um drow — terminou Drizzt. — Longe estamos de Menzoberranzan — lembrou-lhe Belwar. — Longe na selva do Subescuro para além da vista dos da tua espécie. Drizzt sabia que não podia concordar com essa presunção. Durante a maior parte da sua jove vida, testemunhara o fanatismo que orientava as vidas das sacerdotisas de Lolth. O próprio Drizz fizera uma viagem de muitos quilómetros, num raide até à superfície dos Reinos, sem outro propósito que não fosse dar à Rainha Aranha o doce sabor do sangue dos elfos da superfície. — Não subestimes a Matrona Malice — disse sombriamente. — Se é de facto a tua mãe que nos veio visitar — rosnou Belwar, batendo as mãos uma na outra —, vai encontrar mais do que estava à espera. Estaremos à espera dela — prometeu o svirfnebli. — Os três. — Não subestimes a Matrona Malice — repetiu Drizzt. — Este encontro não foi coincidência, e Matrona Malice estará preparada para tudo o que tivermos para lhe dar. — Não podes saber isso ao certo — argumentou Belwar; mas quando o guarda-tocas reconheceu o sincero terror nos olhos de alfazema do amigo, toda a convicção se lhe desvaneceu da voz. Reuniram os poucos artefactos que ainda restavam e partiram daí a pouco, de novo seguindo para oeste, para porem ainda mais distância entre eles e Menzoberranzan. Clacker assumiu a dianteira, pois poucos monstros se colocariam de boa vontade no caminho de um horror de garras. Belwar seguia no meio, como sólida âncora do grupo, e Drizzt deslizav silenciosamente bem calculara mais atrás, a protecção dos amigos os agentes mãetinha os apanhassem. Belwar queassumindo poderiam ter um bom avanço sobre se quem quer quedalhes destruído a casa. Se os perpetradores tinham partido em busca deles a partir da gruta, seguindo os rastos até à torre do feiticeiro morto, muitos dias se passariam antes que o inimigo regressasse à caverna do lago. Drizzt não tinha assim tanta certeza de que o pensamento do guarda-tocas estivesse correcto. Conhecia demasiado bem a mãe.

Ao fim de vários dias intermináveis, o grupo chegou a uma região de chão irregular, paredes rudes e tectos cheios de estalactites que pendiam sobre eles como monstros prontos a atacar. Cerraram fileiras, precisando do conforto do companheirismo. Apesar das atenções que isso poderia despertar, Belwar pegou na sua jóia magicamente iluminada e pregou-a ao casaco de couro. Mesmo co iluminação, as sombras lançadas pelas rochas de bicos aguçados apenas prometiam perigos. Esta região parecia mais silenciosa do que a calma habitual do Subescuro. Raramente os viajante do mundo subterrâneo dos Reinos ouviam os sons de outras criaturas, mas aqui o silêncio parecia ainda mais profundo, como se toda a vida tivesse subitamente sido de alguma forma afastada do local. Os pesados passos de Clacker e o raspar das botas de Belwar ecoavam enervantemente na muitas faces da pedra. Belwar foi o primeiro a sentir o perigo que se aproximava. Subtis vibrações na pedra avisaram o svirfnebli e os amigos de que não estavam sós. Fez Clacker parar com a mão de picareta, e depoi olhou para Drizzt, para ver se o drow partilhava da sua sensação de desconforto. Drizzt apontou para o tecto e depois levitou para a escuridão, procurando um local para uma emboscada entre as muitas estalactites. Desembainhou uma das cimitarras enquanto subia e pôs a outra mão sobre a estatueta de ónix que tinha no bolso. Belwar e Clacker instalaram-se atrás de um cume de pedra, com o gnomo das profundezas mastigar o refrão que encantaria as suas mãos de mithral. Ambos se sentiam melhor por saberem que o guerreiro drow estava por cima deles, a olhar por eles. Mas Drizzt não fora o único a calcular que as estalactites eram um bom local para emboscar. Assim que entrou na camada de pedras irregulares, afiadas como lanças, o drow percebeu que não estava só. Uma forma, pouco maior do que Drizzt, mas obviamente humanóide, deslizou em volta de um estalactite próxima. Drizzt empurrou um pé contra a pedra, para se lançar atrás da figura, desembainhando a outra cimitarra ao mesmo tempo. Percebeu o perigo em que estava um momento mais tarde, porque a cabeça do inimigo parecia um polvo com quatro tentáculos. Drizzt nunca tinha realmente visto uma daquelas criaturas antes, mas sabia o que era: um illithid, um leitor de mentes, o mais malévolo e mais temido monstro do Subescuro. O leitor de mentes atacou primeiro, antes mesmo que Drizzt se aproximasse o suficiente para o te ao alcance reduzido das cimitarras. Os tentáculos do monstro agitavam-se e contorciam-se, e depois… flupe! Um cone de energia mental abateu-se sobre Drizzt. O drow lutou contra a escuridã que chegava com toda a sua força de vontade. Tentou concentrar-se no alvo, tentou aplicar a sua fúria, mas o illithid atacou de novo. Outro leitor de mentes apareceu e disparou a sua força estonteante Drizzt, de lado. Belwar e contra Clacker não conseguiam ver nada do recontro, porque Drizzt estava acima do raio d alcance da jóia iluminada do gnomo das profundezas. Ambos sentiam que algo estava a passar-se lá em cima, porém, e o guarda-tocas arriscou um chamamento em voz alta pelo amigo. — Drizzt? A resposta só veio um momento depois, quando duas cimitarras caíram no chão com estrondo. Belwar e Clacker correram para as armas, espantados, e depois recuaram. À frente deles, o ar tremi

e reluzia, como se uma porta invisível para outro plano de existência se estivesse a abrir. Um illithid avançou, aparecendo mesmo diante dos surpreendidos amigos e lançando o seu choque mental antes que qualquer um deles tivesse sequer tempo para gritar. Belwar rebolou e caiu no chão, mas Clacker, cuja mente já estava em conflito entre o horror de garras e o pech, não foi afectado tão fortemente. O leitor de mentes disparou de novo a sua força, mas o horror de garras avançou mesmo pelo meio do cone estonteante e esmagou o illithid com um único golpe da enorme mão em forma de garra. Clacker olhou em volta e depois para cima. Outros leitores de mentes desciam do tecto, dois dele segurando Drizzt pelos tornozelos. Mais portas invisíveis se abriram. Num instante, explosão apó explosão de força mental abateu-se sobre Clacker de todos os lados, e a defesa da sua dupla personalidade rapidamente começou a ceder. O desespero e o ultraje crescente tomaram conta das acções de Clacker. Nesse momento, Clacker era apenas um horror de garras, agindo com raiva instintiva e com ferocidade da raça do monstro. Mas até mesmo a carapaça dura de um horror de garras não conseguia ser defesa contra os ataques contínuos dos leitores de mentes. Clacker correu para os dois que seguravam Drizzt. A escuridão apanhou-o a meio do caminho. Estava de joelhos na pedra — sabia pelo menos isso. Clacker rastejou ainda, recusando render-se, recusando abandonar a raiva pura. Depois, ficou caído no chão, sem pensar mais em Drizzt, Belwar ou na raiva. Havia apenas a escuridão.

Muitas vezes na minha vida me senti impotente. É talvez a dor mais aguda que uma pessoa pode experimentar, fundada na frustração e na raiva sem alvo. O morder da ponta de uma espada no braço de um soldado em combate não se compara com a angústia que um prisioneiro sente quando ouve o estalar do chicote. Mesmo que o chicote não se abata sobre o corpo do desgraçado prisioneiro, decerto retalha profundamente a sua alma. Todos nós somos prisioneiros, numa altura ou noutra das nossas vidas; prisioneiros de nós mesmos e das expectativas daqueles que nos rodeiam. É um fardo que toda a gente suporta, que toda a gente despreza, e de que poucos aprendem a fugir. Considero-me afortunado, nesse aspecto, pois a minha vida seguiu por um caminho razoavelmente recto de crescimento. Começando em Menzoberranzan, sob o escrutínio impiedoso das malévolas sacerdotisas da Rainha Aranha, suponho que a minha situação só poderia mesmo melhorar. Na minha teimosa juventude, acreditava que podia ficar sozinho, que era suficientemente forte para conquistar os meus inimigos pela espada e pelos princípios. A arrogância convenceu-me de que por pura determinação poderia vencer a própria impotência. Teimoso e tonto jovem, tenho de admitir, porque quando olho agora para esses anos, vejo bem claramente que raramente estive sozinho e raramente tive de estar sozinho. Houve sempre amigos, verdadeiros e caros, que me davam apoio mesmo quando julgava não precisar dele, e mesmo quando não me apercebia de que mo estavam a dar. Zaknafein, Belwar, Clacker, Mooshie, Bruenor, Regis, Catti-brie, Wulfgar e, claro, Guenhwyvar, a minha querida Guenhwyvar. Estes foram os companheiros que justificaram os meus princípios, que me deram as forças para prosseguir contra qualquer inimigo, real ou imaginado. Esses foram os companheiros que lutaram contra a impotência, a raiva e a frustração. Esses foram os amigos que me deram a minha vida. — Drizzt Do’Urden

Clacker olhou para o extremo mais distante da longa e estreita caverna, para a estrutura de muitas torres que servia de castelo da comunidade illithid. Embora a sua visão fosse fraca, o horror de garras conseguia distinguir as formas atarracadas correndo pelo castelo de pedra e conseguia ouvir claramente o martelar das suas ferramentas. Eram escravos, sabia Clacker — duergar, duendes, gnomos das profundezas e várias outras raças que não conhecia — ao serviço dos seus senhores illithid, com as suas aptidões para o trabalho da pedra, ajudando a continuar a melhorar o desenho da enorme pilha de pedra a que os leitores de mentes chamavam sua casa. Talvez Belwar, tão obviamente adequado para esse trabalho, já estivesse a trabalhar no enorme edifício. Os pensamentos passaram pela mente de Clacker e logo foram esquecidos, substituídos pelo instintos menos profundos do horror de garras. Os ataques estonteantes dos leitores de mentes tinha reduzido a resistência mental de Clacker, e o encantamento polimorfo do feiticeiro tinha conquistado mais uma parte dele, de tal forma que nem se conseguia aperceber do lapso. Agora, as suas identidades irmãs batiam-se em igualdade, deixando o pobre Clacker num estado de total confusão. Se conseguisse compreender o seu dilema e se soubesse do destino dos seus amigos, talvez se tivesse considerado afortunado. Os leitores de mentes suspeitavam de que houvesse algo mais em Clacker do que o horror de garras lhes dava a entender. A sobrevivência da comunidade illithid baseava-se no conhecimento e, ao ler os pensamentos, e embora não conseguissem penetrar na confusão que era a mente de Clacker, viam claramente que o trabalho mental que estava a ocorrer dentro daquele exosqueleto era decididamente diferente do que seria de esperar de um simples monstro do Subescuro. Os leitores de mentes não eram senhores tolos e sabiam, também, os perigos de tentar decifrar e controlar um monstro de um quarto de tonelada, armado e couraçado. Clacker era simplesmente demasiado perigoso e imprevisível para ser mantido por perto. Na sociedade esclavagista dos illithid, no entanto, havia sempre lugar para todos. Clacker estava de pé numa ilha de rocha, sobre uma laje de pedra com talvez cinquenta metros de diâmetro e rodeada por um fosso largo e fundo. Com ele estava um sortido de várias outras criaturas, incluindo uma pequena manada de rothe e vários duergar abatidos que obviamente tinham passado demasiado tempo sob a influência dos illithid, que lhes derretera os cérebros. Os anões cinzentos estavam sentados ou de pé, com rostos inexpressivos, a olhar fixamente para o nada, e à espera, como Clacker depressa acabou por perceber, que fosse a sua vez de irem parar à mesa do jantar dos seus cruéis senhores. Clacker andava para trás e para diante dentro do perímetro da ilha, à procura de alguma via de fuga, se bem que a sua parte pech reconhecesse a futilidade disso. Só uma única ponte atravessava o fosso, uma coisa mágica e mecânica que recolhia firmemente para dentro da outra margem do fosso, quando não estava a ser usada.

Um grupo de leitores de mentes com um único escravo ogre aproximou-se da alavanca que controlava a ponte. Imediatamente Clacker foi assaltado pelas sugestões telepáticas deles. Um únic curso de acção conseguia manter-se acima da confusão dos seus pensamentos, e nesse momento soube a sua finalidade ali naquela ilha. Devia ser o pastor do rebanho dos leitores de mentes. Queriam um anão cinzento e um rothe, e o escravo-pastor pôs-se imediatamente a trabalhar. Nenhuma das vítimas ofereceu resistência. Clacker torceu com eficiência o pescoço do anão cinzento e depois, não tão eficientemente, esmagou o crânio do rothe. Sentiu que os illithid tinha ficado agradados com as suas acções, e essa ideia despertou algumas emoções curiosas nele, sendo a satisfação a mais premente. Segurando as duas criaturas, Clacker foi até à beira para ficar em frente ao grupo de illithids. Um illithid puxou a alavanca da ponte, que lhe ficava à altura da cintura. Clacker notou que acção da alavanca era no sentido oposto ao seu: um facto importante, ainda que o horror de garras não compreendesse exactamente porquê, nesse momento. A ponte de pedra e metal sacudiu-se e rangeu, e saiu da encosta em frente a Clacker. Deslizou em direcção à ilha até se fixar fortemente na pedra aos pés de Clacker. — Vem até mim — chegou-lhe a ordem de um dos illithid. Clacker poderia ter conseguido resistir à ordem, se visse alguma utilidade nisso. Avançou para a ponte, que rangeu bastante com o seu peso. — Alto! Deixa os mortos — chegou-lhe outra sugestão quando já estava a meio caminho. — Larga os mortos! — gritou a voz telepática outra vez. —E volta para a tua ilha. Clacker considerou as alternativas. A raiva do horror de garras crescia dentro dele, e os seus pensamentos que ainda eram pech, enraivecidos pela perda dos amigos, estavam em acordo total. Uns poucos passos levá-lo-iam até aos inimigos. A uma ordem dos leitores de mentes, o ogre avançou até à beira da ponte. Era um pouco mais alto do que Clacker, e quase tão largo como ele, mas estava desarmado e não o conseguiria parar. Mais ao lado do guarda, porém, Clacker avistou uma defesa mais séria. O illithid que tinha puxado alavanca para activar a ponte estava ainda junto dela, com uma mão, que era um curioso apêndice de quatro dedos, a agarrar e a soltar a alavanca. Clacker não conseguiria atravessar o que restava ainda da ponte, e passar pelo ogre, antes que a ponte fosse recolhida debaixo dos seus pés, fazendo-o mergulhar nas profundezas do abismo. Relutantemente, o horror de garras deixou os mortos na ponte e voltou para trás, para a sua ilha de pedra. O ogre avançou imediatamente e recolheu o rothe e o anão cinzento mortos para os seus senhores. O illithid empurrou então a alavanca e, num piscar de olhos, a ponte mágica recolheu de novo, deixando Clacker mais uma vez illithid. isolado Um na ilha. — Come — instruiu um dos infeliz rothe vagueava perto de Clacker quando a orde lhe chegou à mente. Distraidamente, deixou cair uma garra pesada na cabeça do rothe. Enquanto os illithid partiam, Clacker sentou-se a comer, regozijando-se com o sabor da carne e do sangue. O seu lado de horror de garras tinha completamente vencido durante esse festim carnívoro, mas cada vez que Clacker olhava para o outro lado do fosso, para o fundo da caverna e para o castelo illithid, uma pequena voz pech dentro dele fazia ecoar uma preocupação com um svirfnebli e

um drow. De todos os escravos recentemente capturados nos túneis do exterior do castelo dos illithid, Belwa era o mais desejado. Para além da curiosidade das suas mãos de mithral, Belwar estav perfeitamente adequado para dois dos deveres mais desejados de um escravo illithid: trabalhar a pedra e lutar na arena dos gladiadores. O leilão de escravos dos illithid entrou em ebulição quando o gnomo das profundezas foi empurrado para a frente. Lances de ouro e artigos mágicos, encantamentos privativos e grossos volumes de sabedoria foram oferecidos com displicência. No fim, o guarda-tocas foi vendido a u grupo de três leitores de mentes, os três que tinham liderado o grupo que os capturara. Belwar, evidentemente, não tinha nenhum conhecimento da transacção: antes que esta tivesse terminado, o gnomo das profundezas foi empurrado para um túnel escuro e estreito e colocado numa pequena sala sem nada de notável. Pouco tempo depois, três vozes ecoaram na sua mente, três vozes telepáticas únicas que o gnomo das profundezas compreendia e que nunca esqueceria: as vozes dos seus novos senhores. Uma portinhola de aço abriu-se diante de Belwar, revelando uma sala circular bem iluminada, com paredes altas e filas de assentos acima delas. — Vem para fora — pediu um dos seus senhores, e o guarda-tocas, desejando completamente e apenas servir o seu senhor, não hesitou. Quando saiu da pequena passagem, viu que várias dezenas de leitores de mentes se tinham reunido por todo o lado, nos assentos de pedra. Aquelas estranhas mãos de quatro dedos dos illithid apontavam para baixo, para ele, de todas as direcções, todas diante de rostos inexpressivos, todos iguais e semelhantes a polvos. Seguindo a ligação telepática, porém, Belwar não teve dificuldade em encontrar o seu amo no meio da multidão, atarefado a discutir probabilidades e apostas com um pequeno grupo. Do outro lado, uma portinhola semelhante abriu-se e um grande ogre saiu. Os olhos da criatur dirigiram-se imediatamente para a multidão, procurando o seu próprio senhor, o centro de interesse da sua existência. — Este malévolo ogre ameaçou-me, meu bravo campeão svirfnebli — chegou-lhe o encorajamento telepático pouco depois, após todas as discussões terem acalmado. — Destrói-o por

mim! Belwar não precisava de mais incentivo do que este, e o ogre também não, pois tinha recebido uma mensagem semelhante do seu amo. Os gladiadores lançaram-se um contra o outro furiosamente, mas enquanto o ogre era jovem e bastante estúpido, Belwar era um manhoso velho veterano. Estaco no último momento e rebolou para o lado. O ogre, tentando desesperadamente acertar-lhe no final do seu ataque, desequilibrou-se por u momento. Foi demasiado tempo. A mão de martelo de Belwar embateu no joelho do ogre com um estalido que ecoou com tanta força como um raio lançado por mago. O ogre caiu para a frente, quase dando uma cambalhota, e Belwar dirigiu a picareta para o traseiro carnudo do monstro. Enquanto o monstro gigante se

desequilibrava para um lado, Belwar atirou-se-lhe aos pés, fazendo-o cair na pedra. O guarda-tocas estava de pé num ápice, saltando para cima do gigante caído e correndo para a cabeça dele. O ogre recuperou suficientemente depressa para apanhar o svirfnebli pelos colarinhos, mas mesmo quando começava a sacudir o seu irritante pequeno oponente, Belwar cravou-lhe a picareta bem fundo no peito. Uivando de raiva e de dor, o estúpido ogre continuou o movimento de atirar Belwar para longe. A ponta aguçada da picareta manteve-se presa e, com o ímpeto do gnomo das profundezas, abriu um rasgão profundo no peito do ogre. O ogre rebolou e sacudiu-se, libertando-se finalmente da cruel mão de mithral. Um joelho enorme apanhou Belwar mesmo no peito, lançando-o contra a pedra, vários metros mais adiante. O guarda-tocas voltou a pôr-se de pé após alguns passos cambaleantes, estonteado e a latejar, mas ainda nada desejando mais do que agradar ao seu senhor. Ouviu os aplausos silenciosos e os gritos telepáticos de todos os illithid da sala, mas u chamamento apenas lhe chegava por entre todo o ruído mental com clareza absoluta: — Mata-o! — ordenava o amo de Belwar. Belwar não hesitou. Ainda caído de costas, o ogre agarrou-se ao peito, tentando em vão impedir que o sangue se lhe esvaísse. Os ferimentos que já tinha sofrido mostrar-se-iam provavelmente fatais, mas Belwar estava longe de estar satisfeito. Esta coisa desgraçada tinha ameaçado o seu amo! guarda-tocas carregou a direito para a cabeça do ogre, com a mão martelo à frente. Três golpes rápidos amoleceram o crânio do monstro, e depois a picareta mergulhou para o golpe fatal. O ogre condenado sacudiu-se violentamente nos últimos espasmos de vida, mas Belwar não senti piedade. Tinha agradado ao seu amo; nada mais no mundo importava ao guarda-tocas nesse momento. Lá em cima, nos assentos, o orgulhoso dono do campeão svirfnebli recebia os seus resultados de apostas em ouro e garrafas de poções. Contente por ter agido bem ao escolher este escravo, o illithid olhou para Belwar, que ainda estava a retalhar e golpear o cadáver. Embora apreciasse ver os seu campeão a divertir-se com aquela selvajaria, o illithid mandou-lhe rapidamente uma mensagem a dizer que parasse. O ogre morto, afinal de contas, também fazia parte da aposta. Não valia a pena estragar o jantar. No centro do castelo illithid ficava uma grande torre, uma estalagmite gigantesca esvaziada e esculpida para abrigar os membros mais importantes da estranha comunidade. O interior da gigantesca estrutura estava repleto de varandas e escadarias em espiral, com cada nível a acolher vários leitores de mentes. Mas era a câmara inferior, sem adornos e circular, que guardava o ser mais importante de todos, o cérebro central. Com três metros de diâmetro, este monte de carne pulsante e sem ossos ligava a comunidade de leitores de mentes numa simbiose telepática. O cérebro central era o somatório de todo o seu conhecimento, o olho mental que guardava as câmaras exteriores e que ouvira os gritos de aviso do illithid da cidade dos drow, muitos quilómetros a leste. Para os illithids desta comunidade, o cérebro central era o coordenador de toda a existência e quase o seu deus. Assim, apenas muito poucos dos escravos tinham permissão para entrar nesta torre especial; apenas os cativos que tivessem dedos sensíveis e delicados, que pudessem massajar a coisa-deus illithid e acalmá-la com escovas macias

e fluidos quentes. Drizzt Do’Urden estava neste grupo. O drow ajoelhou-se na ampla passagem que rodeava a sala, estendendo o braço para acariciar a massa amorfa, sentindo vivamente os seus prazeres e desprazeres. Quando o cérebro ficava perturbado, Drizzt sentia as picadas agudas e a tensão nos tecidos sulcados de veias. Massajav então mais insistentemente, trazendo o seu amado senhor de novo à serenidade. Quando o cérebro estava agradado, Drizzt sentia-se agradado. Nada mais no mundo importava; drow renegado encontrara a sua finalidade na vida. Drizzt Do’Urden chegara ao lar. — Uma captura muito lucrativa, aquele — disse o leitor de mentes na sua voz aquosa, do outro mundo. A criatura mostrava as poções que tinha ganho na arena. Os outros dois illithids agitaram as mãos de quatro dedos, indicando a sua concordância. — Campeão da arena — sublinhou um deles telepaticamente. — E equipado para cavar — acrescentou o terceiro em voz alta. Uma ideia passou-lhe pela mente, e por isso pelas mentes dos outros. — Talvez para esculpir? Os três illithids olharam para o lado mais afastado da sala, onde o trabalho já tinha começado nu novo pequeno nicho. O primeiro illithid agitou os dedos e gorgolejou: — A seu tempo, o svirfnebli será posto a trabalhar em tarefas menores. Agora, temos de ganhar mais poções, mais ouro! Foi uma captura bem lucrativa! — Tal como todos os que foram apanhados nessa emboscada — disse o segundo. — O horror de garras trata do rebanho — explicou o terceiro. — E o drow trata do cérebro — gorgolejou o primeiro. — Reparei nele quando subia para o nossos aposentos. Esse há-de revelar-se um massagista eficiente, para prazer do cérebro e para benefício de todos nós. — E há isto — disse o segundo, com um dos tentáculos a saltar para chamar a atenção do terceiro, que mostrou uma estatueta de ónix. — Mágica? — interrogou-se o primeiro. — Assim é — respondeu o segundo mentalmente. — Ligada ao Plano Astral. Uma entidad

edra, creio. — Já a convocaste? — perguntou o primeiro em voz alta. Juntos, os outros illithids uniram as mãos, que era o sinal illithid para «não». — Pode ser algum inimigo perigoso — explicou o terceiro. — Achámos prudente observar o animal no seu próprio plano, antes de o convocar. — Decisão sensata — concordou o primeiro. — Quando partirão? — De imediato — disse o segundo. — Vens connosco? O primeiro illithid uniu as mãos, e depois mostrou uma garrafa de poção. — Há lucros a fazer — explicou. Os outros dois sacudiram os dedos excitadamente. Depois, enquanto o companheiro se retirav para outra sala para contabilizar os ganhos, sentaram-se confortavelmente em cadeiras estofadas e

prepararam-se para a viagem. Flutuaram juntos, deixando os corpos em descanso nas cadeiras. Ascenderam pelo elo da estatueta ao Plano Astral, visível para eles no seu estado astral como um delicado fio prateado. Estavam agor para lá da caverna dos seus companheiros, para lá das pedras e dos ruídos do Plano Material, flutuando para a vasta serenidade do mundo astral. Também aqui não havia nenhuma estrutura sólida — em termos do mundo material —, sendo a matéria definida em termos de graduações de luz. Os illithids afastaram-se do fio prateado da estatueta quando se aproximaram do fim da ascensão astral. Surgiriam num plano próximo da entidade da grande pantera, mas não tão perto que a fizesse aperceber-se da sua presença. Os illithids não eram, normalmente, visitas bem recebidas, sendo desprezados por quase todas as criaturas de todos os planos por onde viajavam. Chegaram completamente ao seu estado astral sem quaisquer incidentes e tiveram pouca dificuldade em localizar a entidade representada pela estatueta. Guenhwyvar corria por uma floresta de luz estelar em perseguição da entidade do gamo, continuando o ciclo infinito. O gamo, não menos magnífico do que a pantera, saltava e voava e perfeito equilíbrio e com uma graça indesmentível. O gamo e Guenhwyvar tinham desempenhado estes papéis um milhão de vezes, e fá-lo-iam outro milhão de milhões mais. Esta era a ordem e a harmonia que governava a existência da pantera e que derradeiramente governava os planos de todo o universo. Algumas criaturas, porém, como os habitantes dos planos inferiores e como os leitores de mentes que agora observavam a pantera de longe, não conseguiam aceitar a simples perfeição desta harmonia e não conseguiam reconhecer a beleza daquela caçada eterna. Enquanto observavam a maravilhosa pantera a actuar na peça que era a sua vida, os illithids pensavam apenas em como poderiam usar o felino para sua maior vantagem.

Belwar estudou cuidadosamente o seu mais recente adversário, sentindo alguma familiaridade com a aparência do animal couraçado. Teria sido amigo de alguma criatura daquelas antes? — interrogouse. Quaisquer dúvidas que o svirfnebli tivesse, no entanto, não conseguiam penetrar na sua consciência profunda, pois o senhor illithid de Belwar continuava a sua insidiosa cadeia de ilusões telepáticas. — Mata-o, meu bravo campeão — pedia o illithid, debruçado do assento lá no alto. — É teu

inimigo, podes ter a certeza; e far-me-á mal se não o matares! O horror de garras, muito maior do que o amigo perdido de Belwar, carregou contra o svirfnebli, sem reservas sobre a ideia de fazer dele o seu jantar. Belwar dobrou as pernas musculosas e esperou pelo momento certo. Quando o horror de garras se atirava sobre ele, com as mãos de garras bem esticadas para evitar que fugisse pelos lados, saltou em frente, com a mão de martelo a abrir caminho directamente até ao peito do monstro. Rachas abriramse por todo o exosqueleto do horror de garras, com a força bruta do golpe, e o monstro cambaleou enquanto prosseguia em frente. O salto de Belwar inverteu o sentido rapidamente, pois o peso e o balanço do horror de garra eram muito maior do que o dele. Sentiu o ombro deslocar-se e também ele quase desmaiou com a súbita dor agonizante. Mais uma vez, os chamamentos do senhor illithid de Belwar se sobrepusera aos seus pensamentos, e mesmo à dor. Os gladiadores caíram ambos numa pilha, com Belwar enterrado debaixo do volume enorme do horror de garras. O tamanho desajeitado do monstro impedia-o de estender os braços para o guardatocas, mas tinha outras armas. Um bico perverso mergulhou na direcção de Belwar. O gnomo da profundezas conseguiu colocar a mão de picareta no seu caminho, mas mesmo assim a gigantesca cabeça do horror de garras avançava, torcendo-lhe o braço. O bico esfaimado mordia e rodopiava a um escasso centímetro da cara do guarda-tocas. Pelos assentos da grande arena, os illithids saltavam e cantavam excitadamente, quer no modo telepático, quer com as suas vozes gorgolejantes, aquosas. Havia dedos a sacudir-se, em oposição a mãos que se uniam firmemente, enquanto os leitores de mentes tentavam prematuramente recolher as suas apostas. O amo de Belwar, receando a perda do seu campeão, chamou o amo do horror de garras. — Desistes? — perguntou, tentando que os seus pensamentos parecessem confiantes. O de outro illithid virou ficar costasa ver. sobranceiramente e fechou os tentáculos receptores de telepatia. O amo Belwar só podia O horror de garras não se conseguia aproximar mais; o braço do svirfnebli estava preso contra a pedra pelo cotovelo, com a picareta de mithral a manter afastado o mortífero bico do monstro. O horror de garras mudou para uma táctica diferente, erguendo a cabeça e libertando a mão de Belwar num súbito movimento. A intuição de guerreiro de Belwar salvou-o nesse mesmo momento, porque o horror de garras

inverteu o movimento de repente e o bico mortal mergulhou de regresso ao mesmo local. A reacção normal e esperada de defesa seria a de um gesto largo para afastar a cabeça do monstro para o lado com a mão de picareta. O horror de garras já esperava esse contra-golpe, e Belwar já esperava que ele o previsse. O gnomo das profundezas lançou o braço à frente, mas encurtou-lhe o alcance, para que a picareta passasse bem por baixo do bico do horror de garras. O monstro, entretanto, acreditando que Belwa estava a tentar acertar-lhe, parou o golpe exactamente como tinha planeado. Só que a picareta de mithral inverteu o sentido muito mais depressa do que o monstro esperara. As costas da mão de Belwar apanharam o horror de garras mesmo por detrás do bico, e puxou-lhe a cabeça para o lado. Depois, ignorando a dor intensa do ombro ferido, Belwar dobrou o outro braço pelo cotovelo e desferiu um murro. Não havia muita força por detrás do murro, mas nesse momento o horror de garras fugiu à picareta e abriu o bico para morder a cara exposta do gnomo das profundezas. Mesmo a tempo de apanhar com um martelo de mithral, em vez da cara de Belwar. A mão de Belwar penetrou fundo na boca do monstro, fazendo o bico abrir mais do que deveria abrir-se. O monstro sacudia-se selvaticamente, tentando libertar-se, com cada súbito espasmo a enviar ondas de dor pelo braço ferido do guarda-tocas. Belwar respondeu com fúria igual, golpeando uma e outra vez a cabeça do monstro com a mão livre. O sangue começou a escorrer pelo bico gigante enquanto a picareta se cravava cada vez mais fundo. — Desistes? — gritava agora na sua voz aquosa o amo de Belwar para o amo do horror de garras. A pergunta era, porém, mais uma vez prematura, porque lá em baixo, na arena, o horror de garras couraçado estava longe de derrotado. Usou uma outra arma: o simples peso. O monstro avançou co o peito contra o gnomo das profundezas caído, tentando simplesmente esmagá-lo até o matar. — Desistes tu? — respondeu o amo do horror de garras, vendo a inesperada mudança dos acontecimentos. A picareta de Belwar apanhou um olho do horror de garras, e o monstro uivou de dor. Os illithids saltavam e apontavam, agitando os dedos e apertando e desapertando as mãos. Ambos os senhores dos dois gladiadores compreendiam o quanto tinham a perder. Se permitisse que a luta continuasse, algum dos oponentes ficaria em condições de voltar a combater? — Talvez devêssemos considerar isto um empate? — propôs o amo de Belwar telepaticamente. O outro illithid concordou. Ambos os senhores mandaram mensagens telepáticas aos seus campeões. Foram precisos vário instantes para acalmar o fogo da raiva e acabar com a luta, mas por fim as sugestões telepáticas dos illithids sobrepuseram-se aos instintos selvagens de sobrevivência dos gladiadores. Subitamente, tanto o gnomo das profundezas como o horror de garras sentiram afinidade um pelo outro, e quando o horror de garras se ergueu estendeu uma garra ao svirfnebli para o ajudar a levantar-se. Pouco depois, Belwar estava sentado no único banco de pedra da sua pequena cela vazia, logo entrada do túnel da arena circular. O braço de martelo do guarda-tocas estava completamente dormente e uma mancha púrpura com mau aspecto cobria-lhe o ombro esquerdo por completo. Muitos dias passariam antes que Belwar pudesse competir de novo na arena, e preocupava-o

profundamente não poder agradar ao seu senhor tão depressa. O illithid veio inspeccionar os danos. Tinha poções que poderiam ajudar a curar as feridas, mas, mesmo com ajudas mágicas, Belwar precisava obviamente de tempo para recuperar. O leitor de mentes tinha, porém, outros usos a dar ao svirfnebli. Havia um nicho nos seus aposentos privados que precisava de ser acabado. — Vem — disse o illithid a Belwar. E o guarda-tocas pôs-se de pé num salto e correu para fora, mantendo-se respeitosamente um passo atrás do senhor. Um drow ajoelhado chamou a atenção de Belwar enquanto o leitor de mentes o levava pelo nível inferior da torre central. Que sorte tinha aquele elfo negro por poder tocar e dar prazer ao cérebro central da comunidade! Mas Belwar não pensou depois mais nesse assunto, enquanto subia para o terceiro nível da estrutura e para o conjunto de salas que os seus três senhores partilhavam. Os outros dois illithids estavam sentados nas suas cadeiras, imóveis e aparentemente sem vida. O amo de Belwar deu pouca atenção a esse espectáculo; sabia que os companheiros estavam longe dali, nas suas viagens astrais, e que os seus seres corpóreos estavam em segurança ali. O leitor de mentes fez, no entanto, um pausa para se interrogar, apenas por um momento, como se estariam a dar os seus companheiros no plano distante. Como todos os illithid, o amo de Belwar gostava das viagen astrais, mas o pragmatismo, um traço definidamente illithid, manteve os pensamentos da criatura dedicados ao assunto que tinha em mãos. Tinha feito um grande investimento ao comprar Belwar, e era um investimento que não estava disposto a perder. O leitor de mentes levou Belwar para uma sala ao fundo e sentou-o numa mesa de pedra sem nad de especial. Depois, subitamente, o illithid bombardeou-o com sugestões e perguntas telepáticas, sondando-o ao mesmo tempo que lhe endireitava rudemente o ombro ferido e aplicava ligaduras. Os leitores de mentes conseguiam invadir os pensamentos de uma criatura ao primeiro contacto, mas podiam passar semanas, até meses, até que um illithid dominasse completamente um escravo. Cada encontro quebrava mais um pouco da resistência natural do escravo às insinuações mentais do illithid, revelava mais das suas memórias e emoções. O amo de Belwar estava determinado a saber tudo acerca deste curioso svirfnebli, acerca das sua estranhas mãos trabalhadas e acerca da invulgar companhia que trazia consigo. Desta vez, durante a troca telepática, o illithid concentrou-se nas mãos de mithral, porque sentia que Belwar não estava a usá-las até ao limite das suas capacidades. Os pensamentos do illithid sondaram e penetraram, e pouco tempo depois encontraram um recanto da mente de Belwar e apreenderam um curioso cântico. — Bivrip? — interrogou o illithid. Por simples reflexo, o svirfnebli bateu as mãos uma na outra, e depois fez um esgar de dor devido ao choque do embate. Os dedos e os tentáculos do illithid sacudiram-se agitados. Tinha dado com qualquer coisa importante, sabia disso, qualquer coisa que poderia tornar o seu campeão ainda mais forte. Se o illithid permitisse ao svirfnebli recordar-se do cântico, porém, estaria a devolver-lhe uma parte de si mesmo, uma memória consciente dos seus dias antes da escravatura. O illithid deu a Belwar mais uma poção curativa, e depois olhou em volta para inspeccionar a suas posses. Se Belwar continuasse como gladiador, teria de enfrentar de novo o horror de garras na

arena; pelas regras illithid, um novo combate era sempre exigido depois de um empate. O amo de Belwar duvidava de que o svirfnebli conseguisse sobreviver a mais uma batalha contra o campeão couraçado do seu rival. A não ser que… Dinin Do’Urden espicaçou o lagarto que montava pela região das casas menores de Menzoberranzan que era a secção mais congestionada da cidade. Mantinha o capuz dopiwafwi puxado bem sobre a cara e não usava nenhuma insígnia reveladora de que era um nobre de uma Casa reinante. O segredo era aliado de Dinin, quer contra os olhos atentos daquela secção perigosa da cidade, quer contra os olhares de desaprovação da mãe e da irmã. Dinin já sobrevivera o tempo suficiente para compreender os perigos da complacência. Vivia num estado que se aproximava da paranóia; nunca sabia quando Malice e Briza podiam estar a observá-lo. Um grupo de bugbears saltou para o caminho do lagarto de Dinin. A fúria apossou-se do orgulhoso Rapaz Mais Velho da Casa Do’Urden, perante os modos insolentes dos escravos. A mão dirigiu-se lhe instintivamente para o chicote que trazia no cinturão. Mas, sensatamente, conteve a raiva, lembrando a si mesmo as consequências possíveis de se revelar. Fez mais uma curva apertada e desceu por uma série de aglomerados de estalagmites interligados. — Então, encontraste-me — ouviu uma voz familiar dizer atrás dele, e mais ao lado. Surpreendido e receoso, Dinin fez parar a montada e ficou imóvel na sela. Sabia que uma dúzia d pequenos arcos de mão — pelo menos — estava apontada para ele. Lentamente, virou a cabeça para observar a aproximação de Jarlaxle. Aqui, nas sombras, o mercenário parecia muito diferente do drow excessivamente delicado e obediente que Dinin conhecera na Casa Do’Urden. Ou talvez fosse apenas a visão de dois guardas drow de espada erguidas que se postavam de cada lado de Jarlaxle e a própria percepção de Dinin de que não tinha Matrona Malice ali por perto para o proteger. — Uma pessoa deve pedir permissão antes de entrar em casa de outra — disse Jarlaxle calmamente, mas com um tom definidamente ameaçador. — É uma questão de simples cortesia. — Estou na rua — lembrou-lhe Dinin. O sorriso de Jarlaxle negou-lhe essa lógica. — É o meu lar. Dinin recordou-se da sua posição, e o pensamento inspirou-lhe alguma coragem. — Deverá então um nobre de uma Casa reinante pedir permissão a Jarlaxle antes de sair do portã da sua Casa? — rosnou o Rapaz Mais Velho. — E a Matrona Baenre? Não deveria entrar nas casa menores de Menzoberranzan sem a devida permissão das respectivas Matronas? Deverá a Matron Baenre pedir também permissão a Jarlaxle, o renegado sem casa? Dinin apercebeu-se de que poderia estar a levar o insulto um pouco demasiado longe, mas o seu orgulho exigia-lhe estas palavras. Jarlaxle descontraiu-se visivelmente e o sorriso que lhe aflorou ao rosto quase pareceu sincero. — Então, encontraste-me — disse de novo, desta vez mergulhando na sua habitual vénia profunda.

— Diz ao que vens e despachemos isto. Dinin cruzou os braços sobre o peito, com uma atitude beligerante, ganhando confiança nas aparentes concessões do mercenário. — Tens assim tanta certeza de que andava à tua procura? Jarlaxle trocou um sorriso com os guardas. Gargalhadinhas vindas de soldados escondidos na sombras da ruela fizeram Dinin perder uma boa parte da confiança. — Diz ao que vens, Rapaz Mais Velho — disse Jarlaxle mais secamente. — E despachemos isso. Dinin estava mais do que disposto a acabar com o encontro o mais depressa possível. — Preciso de informação relativa ao zin-carla — disse sem rodeios. — O espírito-espectro de Zaknafein caminha pelo Subescuro há já muitos dias. Talvez demasiados? Os olhos de Jarlaxle semicerraram-se enquanto seguia a linha de pensamento de Dinin. — Foi a Matrona Malice que te mandou até mim? — declarou, tanto quanto perguntou. Dinin abanou a cabeça e Jarlaxle não duvidou da sua sinceridade. — És tão sensato como destro com a espada — comentou o mercenário com generosidade, fazendo mais uma vénia, que parecia de alguma forma ambígua ali no mundo escuro de Jarlaxle. — Vim por minha própria iniciativa — disse Dinin com firmeza. — Tenho de encontrar algumas respostas. — Estás com medo, Rapaz Mais Velho? — Apenas preocupado — respondeu Dinin com sinceridade, ignorando o tom de desafio do mercenário. — Nunca cometo o erro de subestimar os meus inimigos, nem os meus aliados. Jarlaxle lançou-lhe um olhar confundido. — Sei o que o meu irmão se tornou — explicou Dinin. — E sei quem Zaknafein foi em tempos. — Zaknafein é agora um espírito-espectro — respondeu Jarlaxle. — Sob o controlo da Matron Malice. — Muitos dias — disse Dinin muito baixo, acreditando que as implicações das suas palavra falariam suficientemente alto. — A tua mãe pediu o zin-carla — retorquiu Jarlaxle, um pouco secamente. — É a maior dádiva de Lolth, só concedida para que a Rainha Aranha seja agradada, em troca. A Matrona Malice sabia risco que corria quando pediu o zin-carla. Decerto compreendes, Rapaz Mais Velho, que o espíritos-espectros são dados para se completar uma tarefa específica. — E quais são as consequências de se falhar? — perguntou Dinin sem rodeios, igualando a atitude de desconforto de Jarlaxle. O olhar de incredulidade do mercenário foi toda a resposta de que Dini precisava. — Quanto tempo tem Zaknafein? — perguntou. Jarlaxle encolheu os ombros, sem se comprometer, e respondeu com uma pergunta: — Quem pode imaginar os planos de Lolth? — perguntou. — A Rainha Aranha pode ser paciente; se o ganho for suficientemente grande para justificar a espera… Será tanto assim o valor de Drizzt? — o mercenário encolheu os ombros mais uma vez. — Isso compete a Lolth, e só a Lolth, decidir. Dinin estudou Jarlaxle por um longo momento, até ter a certeza de que o mercenário nada mai tinha para lhe oferecer. Depois, virou-se para trás, para montar de novo no lagarto, e pôs o capuz do iwafwi para a frente, para lhe cobrir a cara. Quando já estava montado de novo, voltou-se, pensando

fazer um comentário final; mas o mercenário e os seus guardas já não estavam em parte alguma onde os pudesse ver. — Bivrip! — gritou Belwar, completando o encantamento. O guarda-tocas bateu de novo com as mãos uma contra a outra, e desta vez não pestanejou sequer, porque a dor não foi tão intensa. Saltaram faíscas quando as mãos de mithral se uniram, e o amo de Belwar bateu as suas mãos de quatro dedos em absoluto êxtase. O illithid tinha simplesmente de ver o seu gladiador em acção, e já. Olhou em busca de um alvo e deparou com o nicho ainda só parcialmente aberto. Um conjunto de instruções telepáticas jorrou para a mente do guarda-tocas enquanto o illithid projectava imagens mentais do desenho e da profundidade que queria para o nicho. Belwar avançou logo. Incerto sobre a força que teria no ombro magoado, que era o que guiava mão martelo, avançou primeiro com a picareta. A pedra explodiu em poeira sob o golpe da mão encantada, e o illithid enviou uma clara mensagem de contentamento que inundou os pensamentos de Belwar. Nem mesmo a couraça de um horror de garras resistiria a um tal golpe! O amo de Belwar reforçou as instruções que tinha dado ao gnomo das profundezas, e depois foi para uma sala ao lado, para estudar. Deixado entregue ao seu trabalho, tão semelhante a todas as outras tarefas que tinha desempenhado durante o século da sua vida, Belwar deu consigo a interrogar-se. Nada em especial passava pelos poucos pensamentos coerentes do guarda-tocas; a necessidade de agradar ao seu amo illithid permanecia como a principal orientação dos seus movimentos. Mas pela primeira vez desde a sua captura, Belwar interrogava-se. Identidade? Finalidade? O cântico encantatório das suas mãos de mithral voltou a passar-lhe pela mente, tornando-se u ponto focal na determinação inconsciente de perceber a nuvem difusa e insinuante dos seus captores. «Bivrip? », murmurou de novo, com a palavra a desencadear uma recordação mais recente, uma imagem de um elfo drow, ajoelhado a massajar a coisa-deus da comunidade illithid. — Drizzt? — murmurou em surdina Belwar. Mas o nome foi logo esquecido com o embate seguinte da mão de picareta, obliterado pelo desejo constante do svirfnebli de agradar ao amo. O trabalho estava perfeito. Um monte de carne ondulou sob uma mão cor de ébano e uma onda de ansiedade inundou Drizzt, lançada pelo cérebro central da comunidade illithid. A única resposta emocional do drow foi de tristeza, pois não suportava ver o cérebro em aflição. Os dedos magros trabalharam, massajando-o; Drizzt depoisporque numa ataça quente suavidadeansiosas por cima carne. Depois,pegou ficou feliz, carnedeseágua amaciou sobe odespejou-a seu toque, com e as emoções do da cérebro foram substituídas por uma sugestão vaga de gratidão. Por detrás do drow ajoelhado, do outro lado do amplo corredor, dois illithid observaram tudo e acenaram as cabeças, em aprovação. Os elfos drow sempre se tinham mostrado muito hábeis nesta tarefa, e este último cativo era um dos melhores de sempre. Os illithid agitaram os dedos entusiasticamente perante as implicações daquele pensamento

partilhado. O cérebro central detectara outro intruso drow nas redes illithid que eram os túneis para além da longa e estreita caverna — mais um escravo para massajar e acalmar. Assim pensava o cérebro. Quatro illithid saíram da caverna, guiados pelas imagens lançadas pelo cérebro central. Um único drow tinha entrado nos seus domínios: uma captura fácil para quatro illithid. Assim pensavam os leitores de mentes.

O espírito-espectro escolhia o caminho silencioso por entre os corredores serpenteantes e desolados, avançando com o passo ligeiro e treinado de um guerreiro drow veterano. Mas os leitores de mentes, guiados pelo cérebro central, previram perfeitamente o percurso de Zaknafein e estavam à espera dele. Quando Zaknafein chegou perto da mesma laje de pedra onde Belwar e Drizzt tinham sid capturados, um illithid saltou para a sua frente e —flupe! — lançou a sua energia entorpecedora. A essa distância tão próxima, poucas criaturas poderiam ter resistido a um golpe tão forte, mas Zaknafein umaa outro coisa plano não-viva, um ser que era ser deste mundo. proximidade de Zaknafein, era ligada de existência, nãonão podia medida em Apassos. Imune adataismente ataques, as espadas do espírito-espectro avançaram a direito, atingindo o espantado illithid, em cheio, em cada olho leitoso e sem pupilas. Os três outros leitores de mentes flutuaram desde o tecto, lançando os seus raios estonteantes enquanto desciam. Com as espadas empunhadas, Zaknafein esperou por eles confiante, mas o leitores de mentes continuaram a descer. Nunca antes os seus ataques mentais tinham falhado; não podiam acreditar que os seus cones de energia incapacitante lhes falhassem desta vez. Flupe! Os illithid dispararam mais uma dezena de vezes, mas o espírito-espectro parecia não dar por nada. Os illithid começavam a ficar preocupados, e tentaram penetrar nos pensamentos de Zaknafein para compreenderem como tinha ele conseguido evitar os efeitos dos ataques. O que encontraram foi uma barreira que ia para além das suas capacidades de penetração, uma barreira que transcendia o seu presente plano de existência. Tinham testemunhado o jogo das espadas de Zaknafein contra o desafortunado companheiro e não tinham nenhuma intenção de entrar em combate próximo contra aquele drow hábil. Telepaticamente, concordaram rapidamente em mudar de direcção. Mas já tinham descido demasiado. Zaknafein não se importava nada com os illithid, e teria prosseguido o seu caminho pacatamente. No entanto, para desgraça dos illithid, os instintos do espírito-espectro, e o conhecimento de Zaknafein, de uma vida passada, acerca dos leitores de mentes, levaram-no a uma simples conclusão: se Drizzt tinha viajado por aqui — e Zaknafein sabia que tinha — o mais provável era ter encontrado os leitores de mentes. Um ser não-vivo podia derrotá-los, mas um drow mortal, até mesmo Drizzt, ver-se-ia em grande desvantagem. Zaknafein embainhou uma das espadas e saltou para a laje de pedra. Num segundo salto rápido, o espírito-espectro agarrou um dos illithid que fugiam por um tornozelo. Flupe! A criatura contra-atacou de novo, mas era apenas uma coisa condenada, com poucas defesas contra a espada de Zaknafein. Com uma força incrível, o espírito-espectro saltou a direito para cima, com a espada a abrir caminho. O illithid tentou inutilmente afastar a espada, mas não conseguiu desviar a pontaria do espírito-espectro. A espada de Zaknafein retalhou a barriga do leitor

de mentes e atingiu-lhe o coração e os pulmões. Tossindo e engasgando-se com aquele ferimento enorme, o illithid só pôde olhar indefeso enquanto Zaknafein assentava de novo os pés e desferia novo golpe contra o seu peito. O illithi moribundo caiu para longe e foi bater na parede lateral, e depois ficou grotescamente a pairar no ar, mesmo depois de morto, com o sangue a escorrer para o chão, mais abaixo. O salto de Zaknafein mandou-o de encontro ao illithid flutuante seguinte, e o balanço do salto levou ambos contra o último do grupo. Havia braços a agitar-se e tentáculos a serpentear ansiosamente, procurando conseguir agarrar alguma parte do drow. Mas a espada era mais letal e, um momento depois, o espírito-espectro libertou-se das suas duas últimas vítimas, usou a sua própria levitação inata e regressou ao chão de pedra com suavidade. Zaknafein afastou-se dali calmamente, deixando três illithid pairando no ar, mortos, enquanto durassem os seus encantamentos de levitação, e um quarto morto no chão. O espírito-espectro nem se deu ao trabalho de limpar o sangue das espadas; sabia que muito e breve haveria mais matança. Os dois leitores de mentes continuaram a observar a entidade da pantera. Não o sabiam, ma Guenhwyvar estava consciente da sua presença. No plano astral, onde os sentidos materiais como o odor e o sabor não tinham nenhum significado, a pantera usava outros sentidos. Aqui, Guenhwyvar caçava com um sentido que traduzia as emanações de energia em claras imagens mentais, e a pantera conseguia rapidamente distinguir entre a aura de um gamo e a de um coelho, sem nunca chegar sequer a ver as criaturas. Os illithid não eram uma presença assim tão invulgar no Plano Astral, e Guenhwyvar reconheceu as emanações deles. A pantera ainda não decidira se a presença deles seria mera coincidência ou se estaria de alguma forma ligada ao facto de Drizzt não a chamar desde havia vários dias. O evidente interesse do leitores de mentes por Guenhwyvar sugeria a segunda hipótese, o que era uma ideia muito perturbadora para a pantera. Mesmo assim, Guenhwyvar não queria dar o primeiro passo contra um inimigo tão poderoso. pantera prosseguiu as suas rotinas diárias, mantendo um olho de vigia naqueles espectadores indesejados. Guenhwyvar notou a alteração das emanações dos leitores de mentes quando estes começaram a descer rapidamente para o Plano Material. A pantera não podia esperar mais. Saltando por entre as estrelas, Guenhwyvar carregou sobre os leitores de mentes. Ocupados no seus esforços para iniciarem a viagem de regressou, os illithid não reagiram senão quando já era tarde demais. A pantera mergulhou para debaixo de um deles, agarrando a linha prateada com as presas. O pescoço de Guenhwyvar agitou-se e a linha prateada partiu-se. O indefeso illithid flutuo para longe, e era agora um náufrago no Plano Astral. O outro leitor de mentes, mais preocupado com salvar-se a si próprio, ignorou as súplicas frenéticas do companheiro e prosseguiu a descida até ao túnel planar. Guenhwyvar seguiu-o. Da sua pequena ilha de pedra, Clacker viu a agitação crescente por toda a longa e estreita caverna. Os illithid corriam por todo o lado, comandando telepaticamente aos escravos que assumisse

posições de defesa. Batedores saíram por todas as passagens, enquanto outros leitores de mentes flutuavam bem alto, para manter uma visão geral de toda a situação. Clacker percebeu que uma crise qualquer se tinha abatido sobre a comunidade, e um único pensamento lógico abriu caminho por entre os pensamentos básicos do horror de garras: se os leitores de mentes estavam preocupados com um qualquer novo inimigo, essa poderia ser a sua oportunidade para fugir. Com uma nova capacidade de concentração dos seus pensamentos, o lado pech de Clacker encontrou uma base sólida. O seu maior problema seria o abismo, pois decerto não conseguiria saltar por cima dele. Pensou que poderia lançar um anão ou um rothe a essa distância, mas isso dificilmente ajudaria à sua própria fuga. O olhar de Clacker recaiu então na alavanca da ponte, e depois regressou aos seus companheiro da ilha de pedra. A ponte estava recolhida; a enorme alavanca estava inclinada na direcção da ilha. Um projéctil bem apontado poderia empurrá-la para trás. Clacker bateu as suas enormes garras um contra a outra — um gesto que lhe fazia lembrar Belwar — e ergueu um anão cinzento bem no ar. A infeliz criatura voou em direcção à alavanca, mas não chegou até lá, caindo em vez disso no abismo, para a morte. Clacker bateu com um pé, irado, e virou-se em busca de outro projéctil. Não fazia ideia de como chegaria até Drizzt e Belwar, e nesse momento não parou para se preocupar com eles. O se problema, nesse momento, era sair daquela ilha-prisão. Desta vez, foi um jovem rothe que foi lançado pelos ares. Não houve subtileza, nem dissimulação, na entrada de Zaknafein. Sem qualquer receio dos leitores de mentes e dos seus métodos de ataque primários, o espírito-espectro entrou a direito pela caverna longa estreita, em campo aberto. Um grupo de três illithid desceu até ele imediatamente, largando os seuse raios estonteantes. Mais uma vez, o espírito-espectro passou por entre a energia mental sem sequer pestanejar, e os três illithid encontraram o mesmo destino que os quatro que tinham enfrentado Zaknafein nos túneis. Depois, vieram os escravos. Desejando apenas agradar aos seus senhores, duendes, anõe cinzentos, orcs e até mesmo alguns ogres carregaram contra o invasor drow. Alguns brandiam armas, mas a maioria apenas tinhas as mãos e os dentes, esperando esmagar o drow solitário apenas pela vantagem do número. As espadas e os pés de Zaknafein eram demasiado rápidos para essas tácticas tão elementares. espírito-espectro dançava e retalhava, disparando numa direcção e depois invertendo o sentido subitamente e decepando os seus perseguidores mais próximos. Mais atrás do centro da acção, os illithid formavam as suas próprias linhas defensivas, reavaliando a sensatez das suas tácticas. Os tentáculos agitavam-se freneticamente enquanto as comunicações mentais se cruzavam, tentando perceber esta reviravolta inesperada. Não confiava nos escravos o suficiente para lhes darem armas, mas à medida que escravo atrás de escravo caía no chão de pedra, agarrado a feridas mortais, os leitores de mentes acabaram por lamentar as perdas cada vez mais elevadas. Mesmo assim, pensavam que acabariam por vencer. Por detrás deles, mais grupos de escravos estavam a ser reunidos para serem lançados para a batalha. O invasor solitário

teria de acabar por se cansar, os seus passos tornar-se-iam mais lentos e então toda a horda o atacaria. Os leitores de mentes não podiam saber a verdade acerca de Zaknafein. Não podiam saber que er uma coisa não-viva, uma coisa magicamente animada que não se cansaria e não abrandaria. Belwar e o seu amo viram os espasmos de um dos corpos illithid, sinal evidente de que o espírito que o possuía estava a regressar da viagem astral. Belwar não compreendia as implicações dos movimentos convulsivos, mas percebeu que o amo estava contente e, por sua vez, ficou contente também. Mas o amo de Belwar estava também um pouco preocupado por apenas um dos seus companheiro estar de regresso, pois os apelos do cérebro central eram da maior prioridade e não podiam ser ignorados. O leitor de mentes observou enquanto os espasmos do companheiro se transformavam num padrão, e depois ficou ainda mais confuso, porque uma névoa negra começou a surgir em volta do corpo. No mesmo instante em que o illithid regressava ao Plano Material, o amo de Belwar partilho telepaticamente a sua dor e horror. Antes que o amo de Belwar pudesse sequer começar a reagir, Guenhwyvar materializou-se em cima do corpo sentado do illithid, retalhando-o. Belwar ficou imóvel enquanto um relampejo de reconhecimento o atravessava. — Bivrip? — murmurou. E depois: — Drizzt? E a imagem do drow ajoelhado veio-lhe à mente. — Mata-o, meu bravo campeão! Mata-o! — implorava o amo de Belwar; mas já era demasiado tarde para o infeliz companheiro do illithid. O leitor de mentes sentado debatia-se freneticamente; os tentáculos agitavam-se e agarravam-se ao felino, na tentativa de chegar ao cérebro de Guenhwyvar. O felino varreu tudo à volta com uma patada poderosa, com um único golpe que arrancou a cabeça do illithid dos ombros. Belwar, com as mãos ainda encantadas do trabalho que tinha estado a fazer, avançou lentamente para a pantera, com os passos hesitantes, não por medo, mas por confusão. O guarda-tocas virou-se para o amo e perguntou: — Guenhwyvar? O leitor de mentes soube que tinha dado demasiado de volta ao svirfnebli. A recordação do encantamento inspirara outras memórias perigosas no escravo. Belwar já não era de confiança. Guenhwyvar pressentiu a intenção do illithid e saltou de cima do leitor de mentes morto apenas u instante antes de a criatura restante comandar imperiosamente Belwar. Guenhwyvar acertou no guarda-tocas em cheio, fazendo-o estender-se ao comprido no chão. Músculos felinos retesaram-se e amorteceram quando a pantera aterrou, fazendo-a cair no ângulo preciso para a saída da sala. Flupe! O ataque do leitor de mentes paralisou Belwar enquanto este cambaleava, mas a profund confusão do svirfnebli e a sua crescente raiva contiveram o ataque insidioso. Por esse momento singular, Belwar ficou livre, e rodou para se pôr de pé, vendo o illithid como a criatura malévola e desgraçada que era realmente.

— Foge, Guenhwyvar! — gritou o guarda-tocas. E o felino não precisava de outro incentivo Como ser astral, Guenhwyvar compreendia muito sobre a sociedade illithid e conhecia a chave par qualquer batalha contra um antro de tais criaturas. A pantera saltou contra a porta com todo o seu peso, irrompendo na varanda, bem acima da câmara que guardava o cérebro central. O amo de Belwar, receando pela sua coisa-deus, tentou segui-la, mas a força do gnomo das profundezas regressara, quadruplicada pela raiva, e o braço ferido não sentia agora dor enquanto se abatia contra a carne esponjosa da cabeça do illithid. Faíscas saltaram e queimaram a cara do illithid, e a criatura embateu contra a parede, com os olhos leitosos, sem pupilas, a olhar para Belwar, incrédulos. Depois escorregou pela parede, lentamente, até ao chão, e até à escuridão da morte. Doze metros mais abaixo da sala, o drow ajoelhado sentia o medo e o ultraje do seu reverenciado amo, e olhou para cima precisamente quando a pantera negra saltava no ar. Completamente enfeitiçado pelo cérebro central, Drizzt não reconheceu Guenhwyvar como a sua antiga companheir e melhor amiga; nesse momento, apenas viu uma ameaça ao ser que mais amava. Mas Drizzt e o outros escravos massagistas apenas podiam observar, impotentes, enquanto a poderosa pantera, de dentes arreganhados e garras bem abertas, mergulhava no meio da massa bulbosa de carne e veias que regulava a comunidade illithid.

Aproximadamente cento e vinte illithid viviam dentro e em redor do castelo de pedra da caverna longa e estreita, e cada um deles sentiu a mesma dor de cabeça penetrante quando Guenhwyvar mergulhou sobre o cérebro central da comunidade. Guenhwyvar retalhou a massa de carne indefesa, com as grandes garras a rasgar e a abrir caminho por entre aquela papa. O cérebro central enviava emoções de puro horror, tentando inspirar os seus servos. Compreendendo que não viria ajuda em breve, passou então a tentar implorar à pantera. No entanto, a ferocidade primitiva de Guenhwyvar não permitia intrusões mentais. A pantera atacava e estava mergulhada papa de sangue e carneencontrar desfeita. maneira de chegar Drizztselvaticamente gritava ultrajado e corria por toda anuma passagem à volta, tentando até à pantera invasora. Sentia fortemente a angústia do seu amo, e implorava que alguém — que quer que fosse — fizesse alguma coisa. Outros escravos saltavam e gritavam, e havia leitores de mentes a correr por toda a parte, frenéticos, mas Guenhwyvar estava bem no meio da enorme massa, para lá do alcance de quaisquer armas que os leitores de mentes pudessem tentar usar. Uns momentos mais tarde, Drizzt parou de saltar e de gritar. Interrogou-se quem era e onde estava, e o que diabo poderia ser aquela massa nojenta e enorme à sua frente. Olhou em volta pelo corredor circular e percebeu expressões semelhantes nos rostos de vários duergar, de outro elfo negro, de dois duendes e de um bugbear alto e cheio de horríveis cicatrizes. Os leitores de mentes continuavam a correr por todo o lado, à procura de algum ângulo de ataque à pantera, que era a ameaça principal, e não prestavam nenhuma atenção aos escravos confundidos. Guenhwyvar apareceu subitamente por entre os montes de cérebro desfeito. O felino surgiu apena por um momento, e depois desapareceu de novo no meio daquela massa nojenta. Vários leitores de mentes dispararam os seus raios mentais para o alvo fugidio, mas Guenhwyvar desapareceu da sua linha de visão demasiado depressa para que os cones de energia a atingissem — mas não suficientemente depressa para que Drizzt não a vislumbrasse. — Guenhwyvar? — gritou o drow enquanto uma multiplicidade de pensamentos lhe acorriam à cabeça. A última coisa de que se lembrava era de estar a flutuar entre as estalactites num corredor, onde havia umas figuras sinistras à espreita. Um illithid aproximou-se do drow, demasiado atento ao que se passava dentro do cérebro para perceber que o elfo negro já não era um escravo. Drizzt não tinha outras armas a não ser o seu próprio corpo, mas nesse momento de pura raiva isso não lhe importava. Saltou no ar mesmo por trás do monstro, que não suspeitou de nada, e pontapeou-o na nuca. O illithid cambaleou para a frente e direcção ao cérebro central e escorregou pelas dobras que pareciam de borracha da massa disforme por várias vezes antes de se conseguir segurar. Por todo o corredor lateral, os escravos começavam a aperceber-se da sua liberdade. Os anõe cinzentos reuniram-se imediatamente num bando e abateram dois illithid numa corrida desenfreada, esmurrando e pisando com as botas pesadas as criaturas.

Flupe! Um raio de energia veio de um lado e Drizzt virou-se para ver o outro elfo negro esquivar-se ao ataque. Um leitor de mentes correu para o drow e agarrou-o num abraço apertado. Quatro tentáculos agarraram-se à cara do drow, firmando-se e depois cavando em direcção ao cérebro. Drizzt quis ir socorrer o drow, mas um segundo illithid avançou e interpôs-se, apontando.Flupe! Drizzt esquivou-se para o lado quando o segundo ataque ocorreu. Levantou-se e começou a correr, tentando aumentar a distância entre ele e o illithid. O grito do outro drow fê-lo parar por um instante, e olhou por cima do ombro. Linhas protuberantes, grotescas, atravessavam a cara do drow, uma cara contorcida por mais angústia do que Drizzt jamais vira. Drizzt viu a cabeça do illithid a sacudir-se, e os tentáculos, enterrados debaixo da pele do drow e avançando até ao seu cérebro, pulsavam e inchavam. O drow condenado gritou de novo, uma última vez, e depois caiu inerte nos braços do illithid, enquanto a criatura terminava a sua sinistra tarefa. O bugbear com as cicatrizes salvou Drizzt, por causalidade, de um destino semelhante. Na su corrida, a criatura de três metros de altura atravessou-se mesmo entre Drizzt e o illithid que o perseguia, mesmo no momento em que este disparava de novo. O ataque deixou o bugbear estonteado durante o tempo necessário para o illithid se aproximar. Enquanto o leitor de mentes avançava para a sua vítima supostamente indefesa, o bugbear rodou um braço e deitou-o ao chão. Mais leitores de mentes acorreram às varandas que davam para a câmara circular. Drizzt não fazia ideia de onde poderiam estar os seus amigos, ou de como poderia escapar, mas a única porta que avistou para lá do corredor circular parecia ser a única escapatória. Correu a direito para lá, mas a porta abriu-se de repente antes que lá chegasse. Se o interior do castelo de pedra era um tumulto de confusão, o exterior era o caos completo. Agora, não havia escravos a atacar Zaknafein. O ataque ao cérebro central libertara-os a todos das sugestõe dos leitores de mentes, e agora duendes, anões cinzentos e todos os outros estavam mais preocupados com a sua própria fuga. Os que estavam mais perto das saídas da caverna fugiram por elas; outros corriam por todo o lado, tentando manter-se à distância dos contínuos ataques mentais dos illithid. Quase sem pensar nas suas acções, Zaknafein abria caminho à espada, abatendo um duende que corria perto dele, aos gritos. Depois, o espírito-espectro aproximou-se da criatura que vinha a perseguir o duende. Passando por mais um ataque de raios mentais, Zaknafein abateu o leitor de mentes. No castelo de pedra, Drizzt recuperara a identidade, e os encantamentos mágicos imbuídos no espírito-espectro focaram-se nos padrões de pensamentos do alvo. Com um rugido gutural, Zaknafei correu directamente para o castelo, deixando um rasto de mortos e feridos, escravos e illithid, no seu caminho. Outro rothe abriu muito os olhos, surpreendido por se ver a voar pelos ares. Três dos animais cambaleavam, feridos, do outro lado do abismo; um quarto tinha ido juntar-se ao duergar no fundo do abismo. Desta vez, porém, a pontaria de Clacker foi certeira, e a pequena criatura semelhante a um

vaca bateu contra a alavanca, empurrando-a para trás. Imediatamente a ponte encantada rolou para fora e fixou-se firmemente junto aos pés de Clacker. O horror de garras pegou noutro anão cinzento, só por precaução, e começou a correr pela ponte. Estava quase a meio do caminho quando apareceu o primeiro leitor de mentes, correndo para a alavanca. Clacker percebeu que não conseguiria fazer todo o percurso pela ponte antes que o illithid a recolhesse de novo. Só tinha uma oportunidade. O anão cinzento, alheado de tudo o que se passava à sua volta, subiu no ar acima da cabeça do horror de garras. Clacker manteve-o no ar e continuou a correr, deixando o illithid aproximar-se o mais possível. Quando o leitor de mentes avançou para a alavanca e a agarrou com a sua mão de quatro dedos, o duergar-míssil abateu-se contra o seu peito, deitando-o ao chão. Clacker correu pela sua vida. O illithid recuperou e empurrou a alavanca para a frente. A ponte recolheu, abrindo o abismo profundo. Um último salto, mesmo antes de a ponte mágica desaparecer debaixo dos seus pés, mandou Clacker de encontro à parede do abismo. Lançou os braços e garra por sobre a saliência da rocha e manteve suficiente sangue-frio para rapidamente deslizar para o lado. O illithid puxou de novo a alavanca, e a ponte saiu outra vez, raspando por Clacker. Mas o horro de garras desviara-se para o lado o suficiente, e estava suficientemente bem agarrado para aguentar o roçar da ponte pela sua armadura. O illithid praguejou e puxou de novo a alavanca, e depois correu ao encontro do horror de garras. Ferido e confuso, Clacker ainda não tinha começado a içar-se quando o illithid chegou. Ondas d energia estonteante rolaram por cima dele. A cabeça começou a ficar-lhe zonza e escorregou para baixo vários centímetros antes de se conseguir agarrar firmemente de novo. A ganância do illithid custou-lhe cara. Em vez de simplesmente sacudir Clacker da saliência a que se agarrava, pensou que poderia fazer uma refeição rápida com o cérebro do horror de garras. Ajoelhou-se junto de Clacker, com os quatro tentáculos a mergulhar gulosamente à procura de uma abertura na armadura facial. As entidades duplas de Clacker tinham resistido aos ataques mentais dos illithid nos túneis, e também agora a energia mental estonteante tinha apenas um efeito mínimo. Quando a cabeça de polvo do illithid apareceu mesmo à frente da sua cara, a visão fez Clacker despertar de novo. Um ataque com o bico arrancou dois dos tentáculos, e depois o avanço desesperado de uma garra apanhou um joelho do illithid. Sob o poder da garra, houve ossos transformados em pó, e a criatura gritou em agonia, telepaticamente e na sua voz aquosa, de outro mundo. Um momento mais tarde, os gritos desvaneceram-se enquanto a criatura mergulhava no abismo profundo. Um encantamento de levitação poderia ter salvado o illithid em queda, mas os encantamentos exigiam concentração e a dor de um rosto desfeito e de um joelho esmagado atrasavam essas acções. O illithid só pensou em levitar no mesmo momento em que a ponta de uma estalagmite lhe atravessava a espinha. A mão de martelo estilhaçou a porta de outra alcova de pedra.

— Raios! — rosnou Belwar, vendo que também esta não tinha nada mais a não ser roupas de illithid. O guarda-tocas tinha a certeza de que o seu equipamento haveria de estar por perto, mas metade dos compartimentos da habitação do seu anterior amo já estavam em cacos e nada conseguira encontrar. Belwar regressou então à câmara principal e aos assentos de pedra. Entre as duas cadeiras, viu estatueta da pantera. Guardou-a numa bolsa e depois esmagou a cabeça do illithid que restava, o exilado astral, com a mão de picareta. No meio da confusão, o svirfnebli quase esquecera esse monstro restante. Puxou o corpo, deixando-o cair numa pilha disforme no chão. — Magga cammara! — murmurou o svirfnebli quando voltou a olhar para a cadeira de pedra e viu o contorno de um alçapão no sítio onde a criatura estivera sentada. Sem nunca colocar a delicadeza à frente da eficiência, a mão martelo de Belwar reduziu o alçapão a cascalho, e o guardatocas viu então a desejada visão da sua mochila e equipamento. Belwar encolheu os ombros e seguiu a lógica, afastando o outro illithid, o que Guenhwyvar tinh decapitado. O monstro sem cabeça caiu para o lado, revelando outro alçapão. — O drow há-de estar a precisar disto! — comentou Belwar enquanto afastava os bocados de pedra partida e retirava um cinturão com duas cimitarras. Correu para a saída e deu de caras co outro illithid. Ou, mais correctamente, a mão martelo de Belwar deu com o peito do illithid. O monstro voo para trás, rodopiando e saltando por cima do corrimão metálico. Belwar correu para fora e avançou para o lado, sem tempo para ver se o illithid teria de alguma forma conseguido agarrar-se, e sem tempo, de qualquer forma, para ficar ali a brincar. Conseguia ouvir a agitação lá em baixo, os ataques mentais e os gritos e os rugidos contínuos de uma pantera, que pareciam música aos seus ouvidos. Com os braços presos ao lado do corpo devido ao inesperado e poderoso abraço do illithid, Drizz só conseguia sacudir a cabeça para atrasar a progressão dos tentáculos. Um deles conseguiu encontrar um ponto para se agarrar, depois outro, e começaram a penetrar debaixo da pele de ébano do drow. Drizzt pouco sabia sobre a anatomia dos illithid, mas eram criaturas bípedes, e permitiu-se presumir uma ou duas coisas. Sacudindo-se um pouco para se pôr de lado, para não ficar cara a cara com aquela coisa horrível, levantou um joelho e golpeou o illithid na virilha. Pelo súbito afrouxar do abraço e pela forma como os olhos do illithid pareceram abrir-se mais, Drizzt calculou que as suas presunções estavam correctas. O joelho bateu mais uma vez, e depois outra. Drizzt debateu-se com toda a sua força e libertou-se do abraço enfraquecido do illithid. O teimosos tentáculos, porém, continuaram a subir-lhe pela cara, à procura do cérebro. Explosões de dor abateram-se sobre ele e quase desmaiou, com a cabeça a pender-lhe para a frente. Mas o caçador não se renderia. Quando voltou a olhar para cima, o fogo dos olhos cor de alfazema de Drizzt assentaram no illithi como uma maldição. O caçador agarrou os tentáculos e rasgou-os selvaticamente, puxando-os para baixo, na direcção da cabeça do illithid.

O monstro disparou o seu raio mental, mas o ângulo estava errado e a energia nada fez para abrandar o caçador. Uma mão segurava os tentáculos firmemente, enquanto a outra batia com o frenesim de uma mão de mithral de um svirfnebli na cabeça macia do monstro. Nódoas negras e azuladas multiplicavam-se na pele macia; um olho sem pupila inchou e ficou fechado. Um tentáculo agarrou o pulso do drow; o illithid desesperado batia com os braços, mas o caçador nem dava por isso. Continuava a bater-lhe na cabeça, repetidamente, obrigando-o a vergarse até ao chão de pedra. Drizzt sacudiu o braço e libertou-o do tentáculo, e depois ambos os punhos trabalharam incansavelmente até os olhos do illithid se fecharem para sempre. Um retinir metálico chamou a atenção de Drizzt. No chão, a apenas um metro dele, estava um visão familiar e bem-vinda. Satisfeito por as cimitarras terem aterrado perto do amigo, Belwar correu por uma escada de pedra, descendo até ao illithid mais próximo. O monstro virou-se e largou o seu raio de energia. Belwa respondeu com um grito de pura raiva — um grito que bloqueava parcialmente o efeito paralisante — e lançou-se no ar, indo ao encontro das ondas de energia. Embora abalado pelo assalto mental, o gnomo das profundezas abateu-se sobre o illithid e ambos caíram sobre um segundo monstro que acorrera para ajudar o primeiro. Belwar mal se conseguia recompor, mas compreendeu claramente que a confusão de braços e pernas a toda sua volta não era uma reunião de amigos. As mãos de mithral do guarda-tocas cortavam e socavam, e cambaleou pela varanda em busca de outra escada. Quando os dois illithid feridos recuperaram o suficiente para retaliar, o bravo svirfnebli já tinha desaparecido dali. Belwar apanhou outro illithid de surpresa, esborrachando-lhe a cabeça mole contra a parede enquanto descia com paraa omaioria nível seguinte. Uma dúzia outrosque leitores mentes corriam por da essa varanda, porém, deles a guardar as duasdeescadas davamdepara a câmara inferior torre. Belwar fez um rápido desvio, trepando sobre o varandim e saltando três metros até ao chão. Um raio de energia paralisante rodopiou por cima de Drizzt enquanto ele tentava apanhar as armas. Mas o caçador resistiu-lhe, com os seus pensamentos simplesmente demasiado primitivos para u tipo de ataque tão sofisticado. Num único movimento demasiado rápido para o seu mais recente adversário, puxou uma cimitarra e rodou, cortando com a lâmina num ângulo ascendente. A cimitarra enterrou-se até meio na cabeça do illithid perseguidor. O caçador soube que o monstro já estava morto, mas puxou a cimitarra e voltou a golpear o monstro enquanto este caía, sem nenhuma razão em especial para isso. Depois, o drow levantou-se e correu, com ambas as espadas em riste, uma a pingar sangue illithid e a outra sequiosa por mais. Drizzt deveria estar à procura de uma rota de fuga — a parte dele que era Drizzt Do’Urden tê-lo-ia feito —, mas o caçador queria mais. O seu outro eu exigia vinganç contra a massa cerebral que o escravizara. Foi então que um único grito salvou o drow, trazendo-o de volta das profundezas negras da sua raiva cega, instintiva. — Drizzt! — gritou Belwar, coxeando até junto do amigo. — Ajuda-me, elfo negro! Torci um

tornozelo quando saltei! Com todos os pensamentos de vingança subitamente afastados, Drizzt Do’Urden correu para junt do companheiro svirfnebli. De braço dado, os dois amigos saíram da câmara circular. Guenhwyvar, saciada de sangue e massa esponjosa do cérebro central, saltou para se lhes reunir. — Conduz-nos daqui para fora — pediu Drizzt à pantera. E Guenhwyvar assumiu de bom grado posição dianteira. Correram por corredores serpenteantes e toscos. — Não foram feitos por nenhum svirfnebli — apressou-se a comentar Belwar, piscando o olho a Drizzt. — Acho que foram — respondeu Drizzt, devolvendo a piscadela de olho. — Mas sob a hipnose de um leitor de mentes — acrescentou rapidamente. — Nunca! — insistiu Belwar. — Nunca o trabalho de um svirfnebli seria assim, nem mesmo que sua mente tivesse sido completamente derretida! Apesar dos perigos em que estavam, o gnomo das profundezas conseguiu largar uma valente gargalhada, e Drizzt uniu-se-lhe. Ecos de batalha chegavam-lhes das passagens laterais de cada intersecção por onde passavam. O sentidos apurados de Guenhwyvar mantinham-nos pelo caminho mais seguro, embora a pantera não tivesse maneira de saber que direcção levava à saída. Fosse como fosse, e fosse qual fosse a direcção, só poderiam encontrar melhor do que os horrores que tinham deixado para trás. Um leitor de mentes saltou para o corredor onde estavam assim que Guenhwyvar cruzou um intersecção. A criatura não vira Guenhwyvar passar e ficou de frente para Belwar e Drizzt. Drizz atirou o svirfnebli ao chão e mergulhou de cabeça para a frente, em direcção ao adversário, esperando receber um raio de energia antes que conseguisse chegar perto dele. Mas quando o drow olhou para cima, recuperou o fôlego com um grande suspiro de alívio. O leitor de mentes estava caído na pedra, com Guenhwyvar confortavelmente sentada em cima dele. Drizzt avançou até ao seu companheiro felino e Guenhwyvar terminou o assunto descontraidamente. Belwar reuniu-se-lhes logo de seguida. — Raiva, elfo negro — notou o svirfnebli. Drizzt olhou para ele, curioso. — Acredito que a raiv consegue contrariar os raios de energia deles — explicou Belwar. — Um deles atacou-me lá e cima nas escadas, mas eu estava tão irado que mal dei por isso. Talvez esteja enganado, mas… — Não — interrompeu Drizzt, recordando como tinha sido tão pouco afectado, mesmo a curt distância, quando fora apanhar as suas cimitarras. Nessa altura, estava possuído pelo seu alter-ego, pelo seu lado negro, maníaco, que tão desesperadamente pretendia deixar para trás. — Não estás enganado — garantiu ao amigo. — A raiva consegue vencê-los, ou pelo menos abrandar os efeitos dos ataques mentais deles. — Então, enfurece-te! — rosnou Belwar enquanto fazia sinal a Guenhwyvar para avançar. Drizzt pôs um braço de novo sob o ombro do svirfnebli e acenou em concordância com a sugestão do amigo. O drow sabia, porém, que a raiva cega de que Belwar falava não podia ser criad conscientemente. O medo e a raiva instintivos poderiam derrotar os illithid, mas Drizzt, da su

experiência com o seu alter -ego, sabia que essas emoções só eram trazidas pelo desespero e pelo pânico. O pequeno grupo atravessou mais uma série de corredores, passou por uma grande sala vazia e depois por mais uma passagem. Limitados pelo svirfnebli que coxeava, depressa ouviram passos atrás deles. — Demasiado pesados para serem de illithid — notou Drizzt, olhando para trás por cima do ombro. — Escravos — calculou Belwar. — Flupe! — ecoou um ataque atrás deles.Flupe! Flupe! Os sons vinham ter com eles, seguidos de vários rugidos e ecos de patadas. — Escravos, outra vez — disse Drizzt sombriamente. Os passos que os seguiam ouviram-se d novo, desta vez soando mais como uma corrida ligeira. — Mais depressa! — gritou Drizzt, e Belwar não precisava do incentivo. Correram, agradecend cada esquina inesperada das passagens, pois receavam que os illithid estivessem apenas uns passos mais atrás. Então, foram dar a uma câmara larga e alta. Havia várias saídas possíveis à vista, mas uma delas, um conjunto de grandes portas metálicas, chamou-lhes a atenção. Entre eles e as portas havia uma escadaria em espiral, e numa varanda não muito acima pairava um leitor de mentes. — Corta-nos o caminho! — calculou Belwar. Os passos ouviam-se cada vez mais fortes atrá deles. Belwar voltou a olhar para o illithid, com curiosidade, quando viu um grande sorriso a abrirse no rosto do drow. O gnomo das profundezas também sorriu. Guenhwyvar subiu as escada em três grandes saltos. O illithid, sensatamente, fugiu pela varanda e escondeu-se na escuridão dos corredores adjacentes. A pantera não o perseguiu, mas manteve uma posição de guarda lá em cima, por cima de Belwar e Drizzt. O drow e o svirfnebli agradeceram-lhe enquanto passavam, mas a satisfação dissipou-se quando chegaram às portas. Drizzt empurrou com força, mas as portas não se mexiam. — Trancadas! — gritou. — Não por muito tempo! — rugiu Belwar. O encantamento já tinha expirado nas suas mãos de mithral, mas o svirfnebli carregou na mesma, batendo as pesadas mãos contra o metal. Drizzt pôs-se atrás do gnomo das profundezas, mantendo a guarda e à espera de que os illithid entrassem na câmara a qualquer momento. — Despacha-te, Belwar — implorou. Ambas as mãos de mithral trabalhavam furiosamente contra as portas metálicas. Gradualmente, o ferrolhos começaram a ceder e as portas abriram apenas um centímetro. — Magga cammara!, elfo negro — gritou o gnomo das profundezas. — O que as prende é uma barra do outro lado! — Raios! — reclamou Drizzt, enquanto, do outro lado, um grupo de vários leitores de mente entrava na câmara. Belwar não abrandou. A mão martelo batia repetidamente na porta. Os illithid atravessaram a escadaria e Guenhwyvar saltou para o meio deles, fazendo todo o grupo

cair. Nesse momento de horror, Drizzt apercebeu-se de que não tinha consigo a estatueta de ónix. A mão martelo batia no metal em rápida sucessão, alargando a abertura entre as portas. Belwar enfiou a mão picareta por essa abertura e empurrou para cima, arrancando a barra dos apoios. As portas abriram-se. — Venham, depressa — gritou Belwar para Drizzt. Enfiou a mão picareta por baixo do ombro do drow para o puxar, mas Drizzt libertou-se desse gesto. — Guenhwyvar! — gritou. Flupe! O som malévolo vinha repetidamente da pilha de corpos. A resposta de Guenhwyvar chegou mais como um uivo indefeso do que como um rugido. Os olhos de alfazema de Drizzt ardiam de raiva. Só tinha ainda dado um passo em direcção escada quando Belwar encontrou a solução. — Espera! — chamou o svirfnebli, ficando verdadeiramente aliviado quando Drizzt se virou e olhou para ele. Belwar aproximou a anca de Drizzt e apontou para a bolsa, dizendo: — Usa isto! Drizzt pegou na estatueta de ónix e deixou-a cair aos pés. — Vai-te, Guenhwyvar! — gritou. — Regressa à segurança do teu mundo! Drizzt e Belwar nem conseguiam ver a pantera no meio do monte de illithid, mas sentiram a súbit perturbação dos leitores de mentes, mesmo antes de a névoa negra aparecer em volta da estatueta de ónix. Reunidos, os illithid voltaram-se para eles e atacaram. — Fecha a outra porta! — gritou Belwar. Drizzt apanhou a estatueta do chão e já ia na direcção d porta. As portas de metal bateram com força e Drizzt apressou-se a recolocar a tranca no lugar. Vários dos apoios da tranca tinham sido arrancados do sítio por Belwar, e a tranca estava torcida, mas Drizzt conseguiu colocá-la no sítio com suficiente força para pelo menos atrasar os illithid. — Os outros escravos estão encurralados — notou Drizzt. — Na maioria são duendes e anões cinzentos — respondeu Belwar. — E Clacker? Belwar baixou os braços, desesperançado. — Lamento por eles todos — disse Drizzt, sinceramente horrorizado com essa perspectiva. Nada no mundo pode torturar mais do que as grilhetas mentais dos leitores de mentes. — Verdade, elfo negro — murmurou Belwar. Os illithid batiam nas portas, e Drizzt esmurrava-os ainda mais, segurando a tranca no lugar. — Para onde vamos? — perguntou Belwar, atrás dele. E quando Drizzt se virou e observou longa e estreita caverna, percebeu claramente a confusão do guarda-tocas. Via-se pelo menos uma dúzia de saídas, mas entre eles e cada uma das saídas corria uma multidão de escravos aterrorizados ou um grupo de illithid. Atrás deles ouviu-se outro baque surdo, e as portas abriram-se uns centímetros. — Vamos embora! — gritou Drizzt, empurrando Belwar. Correram por uma larga escadaria, e depois pelo chão irregular, escolhendo um caminho que os levasse o mais longe possível do castelo de pedra. — Há perigo de todos os lados! — gritou Belwar. — De escravos e de leitores de mentes!

— Eles que se cuidem! — retorquiu Drizzt, com as cimitarras a abrir caminho. Abateu um duende com o punho da espada e, um momento depois, retalhou os tentáculos de um illithid quando este começava a sugar o cérebro de um duergar recapturado. Depois, outro ex-escravo, um maior, saltou para a frente de Drizzt. O drow avançou, mas desta ve manteve as cimitarras descidas. — Clacker! — gritou Belwar, atrás de Drizzt. — O… o… fun… O fundo da caverna — gaguejou o horror de garras, com as palavras guturai quase incompreensíveis. — Me… Melhor saída! — Vai à frente — respondeu Belwar excitadamente, com a esperança a regressar. Nada se poderia opor a eles os três unidos. Quando o guarda-tocas começou a avançar atrás do seu gigantesco amigo horror de garras, porém, reparou que Drizzt não os seguia. Primeiro, Belwar receou que o amig tivesse sido apanhado por um ataque mental, mas quando voltou para junto dele, percebeu que não era isso. Ao cimo de outras das grandes escadarias que percorriam a caverna com vários níveis, uma figura isolada, magra, movia-se por entre um grupo de illithid e de escravos. — Pelos deuses! — murmurou Belwar, incrédulo, porque os movimentos devastadores daquela figura assustavam verdadeiramente o gnomo das profundezas. Os golpes precisos e hábeis das espadas gémeas não eram nada assustadores para Drizz Do’Urden. Em vez disso, para o jovem elfo negro, aqueles movimentos reacendiam memória familiares que traziam dor ao seu coração. Olhou para Belwar sem expressão e disse o nome do único guerreiro que poderia fazer aquelas manobras, o único nome que poderia acompanhar aquela destreza com as armas: — Zaknafein.

Quantas mentiras lhe tinha contado a Matrona Malice? Que verdade poderia Drizzt alguma ve encontrar na teia de mentiras e dissimulações que caracterizavam a sociedade drow? O seu pai não tinha sido sacrificado à Rainha Aranha! Zaknafein estava ali, a lutar à sua frente, usando as espada com tanta agilidade como Drizzt sempre vira. — O que é? — perguntou Belwar. — O guerreiro drow — mal conseguiu responder Drizzt. — Da tua cidade, elfo negro? Enviado para te perseguir? — perguntou Belwar. — De Menzoberranzan respondeu Drizzt.deBelwar esperou pormuitos mais pormenores. informação, mas Drizz estava demasiado absorvido—pelo aparecimento Zaknafein para dar — Temos de ir — disse por fim o guarda-tocas. — E rapidamente — concordou Clacker, regressando para junto dos amigos. A voz do horror de garras parecia agora mais controlada, como se o simples encontro com os seus amigos tivesse ajudado o lado pech na sua contínua luta interior. — Os leitores de mentes estão a organizar as defesas. Muitos escravos já tombaram. Drizzt escapou-se ao alcance da mão picareta de Belwar. — Não — disse com firmeza. — Não o abandonarei! — Magga cammara, elfo negro! — gritou-lhe Belwar. — Mas quem é ele? — Zaknafein Do’Urden — gritou Drizzt em resposta, igualando a ira crescente do guarda-tocas. volume da voz de Drizzt reduziu-se consideravelmente enquanto terminava o raciocínio, e quase se engasgou nas palavras: — O meu pai. Enquanto Clacker e Belwar trocavam olhares incrédulos, Drizzt desaparecia, correndo para escadaria e depois subindo-a. Ao cimo desta, o espírito-espectro estava de pé no meio de um monte de vítimas, leitores de mentes e escravos, que tinham tido a infelicidade de se cruzar no seu caminho. Mais acima, vários illithid tinham fugido do monstro não-vivo. Zaknafein começou a persegui-los, porque estavam a fugir na direcção do castelo de pedra, seguindo o caminho que o espírito-espectro tinha escolhido desde o início. Mil alarmes mágicos soaram dentro do espírito-espectro, porém, e fizeram-no parar abruptamente e regressar às escadas. Drizzt estava a aproximar-se. O momento de cumprimento do zin-carla, a finalidade da animação de Zaknafein, tinha finalmente chegado! — Mestre de armas! — gritou Drizzt, saltando com ligeireza para se pôr ao lado do pai. O jovem drow estava radiante de emoção, sem perceber a verdade do monstro que estava diante dele. Quando chegou perto de Zak, porém, percebeu que havia algo de errado. Talvez fosse a estranha luz nos olhos do espírito-espectro que fez Drizzt abrandar a sua corrida. Talvez fosse o facto de Zaknafein não ter respondido ao chamamento. Um momento depois, foi o golpe descendente de uma espada. Drizzt conseguiu a custo pôr uma cimitarra a bloquear o golpe, mesmo a tempo. Confuso, aind

acreditava que Zaknafein simplesmente não o tinha reconhecido. — Pai! — gritou. — Sou Drizzt! Uma espada carregou de cima, enquanto a outra começou um movimento circular, em direcção ao lado de Drizzt. Correspondendo à velocidade do espírito-espectro, Drizzt baixou-se com um cimitarra a bloquear o primeiro ataque e lançou a segunda contra o ataque da outra espada. — Que és tu? — perguntou Drizzt, desesperadamente, furioso. Uma nuvem de ataques rápidos veio em resposta. Drizzt esforçava-se freneticamente por manter o ataques à distância, mas Zaknafein avançou com uma pancada lateral e conseguiu afastar ambas as espadas de Drizzt para o mesmo lado. A segunda espada do espírito-espectro seguia a primeira de perto, num golpe apontado ao coração de Drizzt, num ataque que este não poderia bloquear. Ao fundo da escadaria, Belwar e Clacker gritaram, pensando que o amigo estava perdido. Mas o momento de vitória de Zaknafein foi-lhe roubado pelos instintos do caçador. Drizzt salto para o lado, frente à lâmina que carregava contra ele, e depois virou-se e encolheu-se debaixo do golpe mortal de Zaknafein. A espada ainda o apanhou por baixo do queixo, deixando um corte doloroso. Quando Drizzt completou a manobra e se pôs de pé, apesar dos ângulos da escada, não mostrou sinais de se aperceber sequer da ferida. Quando voltou a enfrentar o impostor do seu pai, havia um fogo lento a arder-lhe nos olhos de alfazema. A agilidade de Drizzt espantou até os seus amigos, que já o tinham visto em combate. Zaknafei correu imediatamente atrás dele, mas Drizzt já estava de pé e pronto antes que o espírito-espectro chegasse perto. — Quem és tu? — perguntou Drizzt de novo. Desta vez, a voz era calma e letal. — O que és tu? O espírito-espectro rosnou e atacou destemidamente. Acreditando agora sem quaisquer dúvidas que aquele não era Zaknafein, Drizzt não perdeu a oportunidade. Correu de volta à posição anterior, afastou uma espada e avançou uma cimitarra enquanto passava pelo adversário. A lâmina de Drizzt cortou a cota de malha fina e penetrou profundamente o pulmão de Zaknafein — um ferimento que faria parar qualquer opositor mortal. Mas Zaknafein não parou. O espírito-espectro não respirava e não sentia dor. Zak virou-se par Drizzt de novo e lançou-lhe um sorriso tão malévolo que poria a Matrona Malice de pé a aplaudir. Agora de novo no último degrau da escada, Drizzt estava de olhos muito abertos, espantado. Via ferida e via, contra todas as possibilidades, que Zaknafein avançava calmamente, sem sequer pestanejar. — Afasta-te! — gritou Belwar lá do fundo da escada. Um ogre correu para o gnomo das profundezas, mas Clacker interceptou-o e esborrachou-lhe cabeça com uma garra forte. — Temos de ir — disse Clacker a Belwar, com a clareza da sua voz a fazer o gnomo das profundezas voltar-se. Belwar conseguia vê-lo agora claramente nos olhos de Clacker: era agora mais pech do que ante do encantamento polimorfo do mago. — As pedras dizem-me que os illithid estão a concentrar-se no castelo — explicou Clacker, e Belwar não se espantou por ele ouvir as vozes das pedras. — Os illithid em breve sairão à noss

procura — prosseguiu Clacker — para esmagar todos os escravos que estão na caverna! Belwar não duvidou de nenhuma destas palavras, mas para o svirfnebli a lealdade estava muito acima da segurança pessoal. — Não podemos abandonar o drow — respondeu, entredentes. Clacker acenou em concordância e atacou para afastar um grupo de anões cinzentos que se tinha aproximado demasiado. — Corre, elfo negro! — gritava Belwar. — Não temos tempo! Drizzt não ouvia o seu amigo svirfnebli. Estava concentrado no avanço do mestre de armas, daquele monstro que se fazia passar pelo seu pai, ao mesmo tempo que Zaknafein se concentrava nele. De todos os muitos males perpetrados pela Matrona Malice, nenhum, de acordo com a estimativas de Drizzt, teria sido maior do que esta abominação. Malice tinha de alguma form pervertido a única coisa do mundo que alguma vez lhe dera prazer. Drizzt julgara Zaknafein morto, e esse pensamento já era doloroso o suficiente. E agora isto. Era mais do que o jovem drow podia suportar. Queria lutar contra este monstro de alma e coração, e o espírito-espectro, criado precisamente para este recontro, concordava plenamente. Nenhum deles reparou nos illithid que desciam da escuridão mais acima, mais atrás da plataforma, por detrás de Zaknafein. — Vem, monstro da Matrona Malice — rosnou Drizzt, juntando as armas. — Vem sentir as minhas lâminas. Zaknafein fez uma pausa apenas a alguns passos de distância e lançou de novo o seu sorriso malévolo. As espadas subiram; e depois o espírito-espectro deu mais um passo.

Flupe!

O ataque dos illithid voou na direcção de ambos. Zaknafein manteve-se inalterado, mas Drizz recebeu o impacto em cheio. A escuridão abateu-se sobre ele, as pálpebras fecharam-se-lhe com um peso insuportável. Ouviu as cimitarras a caírem-lhe no chão, mas estava para além de qualquer outro entendimento. Zaknafein riu-se, vitorioso, bateu com as espadas uma na outra e avançou para o drow caído. Belwar gritou, mas foi o monstruoso uivo de protesto de Clacker que soou mais alto, erguendo-se acima da caverna palpitante de combates. Tudo o que Clacker alguma vez soubera enquanto pech acorreu-lhe de rompante, quando viu o drow que se tornara seu amigo a cair, condenado. Essa identidade pech ressurgiu com mais clareza até, talvez, do que Clacker alguma vez a sentira na sua vida anterior. Zaknafein carregou, vendo a sua vítima indefesa ao alcance, mas depois embateu de cabeça contra uma parede de pedra que apareceu do nada. O espírito-espectro recuou, com os olhos muito abertos, frustrado. Bateu contra a parede, mas esta era bem real e sólida. A pedra bloqueava completamente o acesso à escada e à sua presa. Lá em baixo, Belwar desviou o olhar espantado para Clacker. O svirfnebli ouvira dizer que algun pech conseguiam convocar estas paredes de pedra. — Mas tu… — gaguejou o guarda-tocas.

O pech no corpo de um horror de garras não parou o tempo suficiente para responder. Clacker subiu as escadas a quatro e quatro e pegou em Drizzt cuidadosamente com os seus poderosos braços. Pensou até em recolher as armas do drow, mas depois desceu pesadamente as escadas. — Corre! — comandou ao guarda-tocas. — Pela tua vida, Belwar Dissengulp, corre! O gnomo das profundezas, coçando a cabeça com a mão picareta, correu, de facto. Clacker abri caminho até à saída mais afastada da caverna — e ninguém se atreveria a pôr-se no seu caminho — e o gnomo das profundezas, com as suas pernas curtas de svirfnebli, uma das quais ferida, teve dificuldade em acompanhá-lo. No cimo das escadas, atrás da parede, Zaknafein só podia presumir que o illithid flutuante, o mesmo que tinha atacado Drizzt, estava a bloquear-lhe agora o ataque. Procurou o monstro enquanto gritava de ódio puro. Flupe!, ouviu-se outro ataque. Zaknafein saltou e cortou ambos os pés do illithid com um único golpe. O illithid levitou mais par cima, lançando gritos mentais de angústia e desespero para os companheiros. Zaknafein não conseguia chegar à coisa e, com outros illithid a acorrer de todos os cantos, o espírito-espectro não tinha tempo para pôr em prática o seu próprio encantamento de levitação. Culpava aquele illithid pelo seu falhanço; não o deixaria escapulir-se. Atirou uma espada com tanta precisão como se fosse uma lança. O illithid olhou para baixo, para Zaknafein, incrédulo, e depois olhou para a lâmina enterrada até meio no seu peito e soube que a vida estava a terminar. Leitores de mentes correram para Zaknafein, disparando os seus ataques atordoantes. O espírito espectro só tinha agora uma espada, mas esmagava os opositores, mesmo assim, descarregando a frustração naquelas feias cabeças de polvo. Drizzt escapara-lhe… por agora.

— Louvada Lolth — gaguejou a Matrona Malice, sentindo a satisfação distante do seu espírito espectro. — Apanhou Drizzt! A matrona-mãe lançou um olhar para o lado, e as três filhas recuaram perante o poder puro das emoções que lhe contorciam o rosto. — Zaknafein encontrou o vosso irmão! Maya e Vierna sorriram uma para a outra, contentes por toda aquela provação estar finalmente a chegar ao fim. Desde o chamamento do zin-carla, as rotinas normais e necessárias da Casa Do’Urde tinham praticamente parado, e todos os dias a nervosa mãe se fechava cada vez mais dentro de si mesma, absorvida pela caçada do espírito-espectro. Do outro lado da antecâmara, o sorriso de Briza mostraria outra luz a quem se desse ao trabalho de reparar nele; um esgar de quase desapontamento. Felizmente para a filha primogénita, a Matrona Malice estava demasiado absorvida pelo acontecimentos distantes para notar. A matrona-mãe caiu num transe meditativo ainda mais profundo, saboreando cada pedaço de raiva que o espírito-espectro emanava, sabendo que o seu filho blasfemo estava a receber toda aquele raiva. A respiração de Malice vinha agora em soluços excitados enquanto Zaknafein e Drizzt lutavam, e depois a matrona-mãe quase ficou completamente se respirar. — Não! — gritou Malice, saltando do seu trono decorado. Olhou em volta, à procura de alguém quem atingir ou de alguma coisa que pudesse atirar. — Não! — gritou de novo. — Não pode ser! — Drizzt escapou? — perguntou Briza, tentando manter o tom sobranceiro fora da voz. O subsequente olhar frio de Malice mostrou-lhe que o tom era capaz de ter deixado transparece demasiado dos seus pensamentos. — O espírito-espectro foi destruído? — perguntou Maya, com uma perturbação sincera. — Destruído, não — respondeu Malice, com um óbvio tremor na voz geralmente firme. — Mas mais uma vez, o vosso irmão fugiu! — O zin-carla ainda não falhou — raciocinou Vierna, tentando consolar a excitada mãe. — O espírito-espectro está muito perto — acrescentou Maya, aproveitando a deixa de Vierna. Malice deixou-se cair na cadeira e limpou o suor dos olhos. — Deixem-me — ordenou às filhas, não querendo que a vissem num estado tão deplorável. O zincarla estava a roubar-lhe a vida, sabia disso, porque cada pensamento, cada esperança da sua existência do sucesso espírito-espectro. Depois estava de as pendente filhas terem saído, do Malice acendeu uma vela e pegou num pequeno e precioso espelho. Que coisa desgraçada se tornara naquelas últimas semanas. Mal comera, e linhas profunda de preocupação sulcavam-lhe agora a pele de ébano, antes tão suave e lisa como vidro. Pelas aparências, a Matrona Malice envelhecera mais nas últimas semanas do que no século anterio inteiro. — Vou ficar como a Matrona Baenre — murmurou, enojada. — Seca e feia. Talvez pela primeira vez na sua longa vida, Malice começou a interrogar-se sobre o valor da sua

procura contínua de poder e do favor da Rainha Aranha. Esses pensamentos desapareceram, porém, tão depressa como tinham vindo. A Matrona Malice já tinha ido demasiado longe para remorsos tão tolos. Pela sua força e dedicação, Malice elevara a sua casa ao estatuto de família governante e assegurara um lugar para si mesma no prestigiado Conselho Governante. No entanto, continuava à beira do desespero, quase arrasada pelos esforços dos últimos anos. Voltou a limpar o suor dos olhos e olhou para o pequeno espelho. Que coisa desgraçada se tornara. Fora Drizzt quem lhe fizera isto, lembrou a si mesma. As acções do filho mais novo tinham irado Rainha Aranha; o sacrilégio dele tinha deixado Malice à beira da desgraça. — Apanha-o, meu espírito-espectro — murmurou Malice com um esgar de raiva. Nesse momento de ira, pouco lhe importava o futuro que a Rainha Aranha lhe reservaria. Mais do que qualquer outra coisa no mundo, a Matrona Malice Do’Urden queria ver Drizzt morto. Correram pelos túneis às cegas, esperando que não houvesse monstros a surgirem-lhes à frente inesperadamente. Com um perigo tão real atrás deles, os três amigos não se podiam dar ao luxo das precauções habituais. Passaram horas, e continuavam a correr. Belwar, mais velho que os amigos e com as pernas a terem de dar dois passos por cada um dos de Drizzt e três por cada um dos de Clacker, foi o primeiro a cansar-se, mas isso não fez o grupo abrandar. Clacker colocou o gnomo das profundezas sobre um ombro e continuou a correr. Quantos quilómetros teriam percorrido, não podiam saber quando finalmente pararam para descansar. Drizzt, silencioso e melancólico ao longo de todo o caminho, assumiu uma posição de sentinela à entrada da pequena alcova tinham escolhido acampamento temporário. Reconhecendo a dor profunda do seu amigoque drow, Belwar avançou como para oferecer algum consolo. — Mas de que estavas tu à espera, elfo negro? — perguntou o guarda-tocas suavemente. Se nenhuma resposta, mas com Drizzt obviamente a precisar de falar, Belwar insistiu. — Conhecias o drow da caverna. Disseste que era teu pai? Drizzt lançou um olhar irado ao svirfnebli, mas o rosto descontraiu-se-lhe consideravelmente depois de um momento ao aperceber-se da genuína preocupação de Belwar. — Zaknafein — explicou Drizzt. — Zaknafein Do’Urden, meu pai e meu mentor. Foi ele que m treinou com a espada e me instruiu durante toda a minha vida. Zaknafein era o meu único amigo e Menzoberranzan, o único drow que alguma vez conheci que partilhava das minhas crenças. — Mas ele queria matar-te — declarou Belwar com simplicidade. Drizzt fez uma careta e guarda-tocas tentou rapidamente dar-lhe alguma esperança. — Talvez não te tenha reconhecido? — Era o meu pai — disse Drizzt de novo. — Foi o meu companheiro mais próximo durante dua décadas. — Então… Porquê, elfo negro? — Aquilo não era Zaknafein — respondeu Drizzt. — Zaknafein está morto, foi sacrificado pel minha mãe à Rainha Aranha. — Magga cammara — murmurou Belwar, horrorizado pela revelação acerca dos pais de Drizzt.

O tom casual com que Drizzt explicou aquele acto odioso levou o guarda-tocas a acreditar que o sacrifício de Malice não seria algo tão invulgar na cidade dos drow. Um arrepio percorreu a espinha do gnomo das profundezas, mas conteve a reacção, por consideração com o seu atormentado amigo. — Não sei ainda que monstro pôs a Matrona Malice na forma de Zaknafein — prosseguiu Drizzt sem sequer se aperceber do desconforto de Belwar. — Mas é um adversário formidável, seja ele o que for — notou o svirfnebli. Era precisamente isso que desconcertava Drizzt. O guerreiro drow com que combatera na cavern dos illithid movia-se com a precisão e o estilo inconfundível de Zaknafein Do’Urden. O raciocíni de Drizzt podia negar que Zaknafein se virasse contra ele, mas o seu coração dizia-lhe que o monstro com quem terçara espadas era, de facto, o seu pai. — Como acabou? — perguntou Drizzt, após uma longa pausa. Belwar olhou para ele, intrigado. — O combate — explicou Drizzt. — Lembro-me do illithid, mas de nada mais. Belwar encolheu os ombros e apontou para Clacker. — Pergunta-lhe a ele — respondeu. — Apareceu uma parede de pedra entre ti e o teu inimigo, mas como lá foi parar, não faço a menor ideia. Clacker ouviu a conversa e aproximou-se dos amigos. — Fui eu que a pus lá — disse, com uma voz perfeitamente clara. — Poderes de pech? — perguntou Belwar. O gnomo das profundezas conhecia a reputação do pech relativamente à pedra, mas não em suficiente pormenor para compreender completamente o que Clacker fizera. — Somos uma raça pacífica — começou Clacker, percebendo que esta talvez fosse a única oportunidade que teria para falar aos amigos da sua gente. Continuava mais próximo de parecer u pech do que alguma vez parecera desde o feitiço polimorfo, mas já começava a sentir de novo a pressão do horror de garras a querer regressar. — Apenas desejamos trabalhar a pedra. É a nossa vocação e o nosso empenho. E com esta simbiose com a terra vem uma certa medida de poder. As pedras falam connosco e ajudam-nos nos nossos esforços. Drizzt olhou amargamente para Belwar. — Como aquele elementar de terra que uma vez convocaste contra mim. Belwar engasgou-se com uma gargalhada contida. — Não — disse Clacker sobriamente, determinado a não se deixar distrair. — Os gnomos da profundezas também conseguem convocar os poderes da terra, mas a relação deles é diferente. O amor dos svirfnebli pela terra é apenas uma das suas variadas definições de felicidade — Clacker desvioudao terra. olhar Ajuda-nos para longecomo dos nós companheiros, a parede de pedra. — Os pech são irmãos a ajudamos aolhando ela, porpara afeição. — Falas da terra como se ela fosse um ser senciente — notou Drizzt, não com sarcasmo, mas co genuína curiosidade. — E é, elfo negro — respondeu Belwar, imaginando Clacker como este seria antes do encontro com o mago —, para aqueles que conseguem escutá-la. A grande cabeça com bico de Clacker acenou em concordância.

— Os svirfnebli conseguem ouvir o cântico distante da terra — disse. — Os pech conseguem fala com ela directamente. Tudo isto ia muito para além da compreensão de Drizzt. Sabia da sinceridade das palavras do seus companheiros, mas os elfos drow não estavam ligados às rochas do Subescuro como os svirfnebli e os pech. Mas, se precisasse de alguma prova daquilo que Belwar e Clacker estavam dizer, bastava-lhe recordar a sua batalha contra Belwar, havia uma década antes, ou imaginar a parede que de alguma forma tinha aparecido vinda do nada para bloquear os seus inimigos na caverna dos illithid. — E que te dizem as pedras? — perguntou Drizzt a Clacker. — Deixámos os nossos inimigos par trás? Clacker afastou-se e encostou um ouvido à parede. — As palavras são agora vagas — disse, com um óbvio lamento na voz. Os companheiros percebiam a conotação daquele tom. A terra não estava a falar com menos clareza; era o ouvido de Clacker, perturbado pelo regresso iminente do horror de garras, que começava a falhar. — Não ouço mais ninguém em nossa perseguição — prosseguiu Clacker. — Mas não tenho a certeza se posso confiar nos meus ouvidos. Rosnou subitamente, virou costas e afastou-se para o outro canto da alcova. Drizzt e Belwar trocaram olhares preocupados, e depois seguiram-no. — O que foi? — atreveu-se o gnomo das profundezas a perguntar ao horror de garras, embora pudesse adivinhar com facilidade. — Estou a decair — respondeu Clacker, e o tom arranhado que regressara à voz só veio confirmar ainda mais o que ele dizia. — Na caverna dos illithid, fui mais pech… Mais pech do que nunca. Fu pech com um foco muito concentrado. Fui a terra — Belwar e Drizzt pareciam não perceber. — pa… a parede — tentou explicar Clacker. — Convocar aquela parede é uma tarefa que só u pequeno grupo de anciãos pech poderia conseguir, trabalhando juntos e através de rituais meticulosos — fez uma pausa e sacudiu a cabeça violentamente, como se estivesse a tentar sacudir dela o lado de horror de garras. Bateu com uma pesada garra contra a parede e obrigou-se a continuar. — E no entanto, fi-lo. Tornei-me a pedra e bastou-me levantar uma mão para bloquear os inimigos de Drizzt. — E agora isso está a deixar-te — disse Drizzt suavemente. — O pech está a fugir do teu control novamente, soterrado sob os instintos de um horror de garras. Clacker desviou o olhar e tornou a bater com uma garra contra a parede, em resposta. Algo nesse movimento lhe dava conforto, e repetiu-o, uma e outra vez, ritmicamente, como se estivesse a tentar agarrar-se a esse pedaço do seu antigo eu. Drizztprivacidade. e Belwar afastaram-se alcovarepararam e foram para para darem ao amigo alguma Pouco tempodadepois, que oo corredor, batuque parara, e Clacker pôs a gigante cabeç de fora, com os olhos enormes, de pássaro, cheios de tristeza. As suas palavras tartamudeadas lançaram arrepios pelas espinhas dos amigos, porque viram que não podiam negar a sua lógica, nem o seu desejo. — Por… por fa… Por favor, matem-me.

Espírito. Não pode ser quebrado, nem pode ser roubado. Uma vítima sob as garras do desespero pode sentir de forma diferente, e decerto o «senhor» da vítima gostaria de acreditar nisso. Mas na verdade, o espírito permanece, por vezes bem enterrado, mas nunca completamente apagado. Essa é a falsa presunção do zin-carla, e o perigo de tais animações sencientes. As sacerdotisas, vim a saber, proclamam-no como maior dádiva da Rainha Aranha, a divindade que governa os drow. Mas eu penso que não. Seria melhor chamar ao zin-carla a maior mentira de Lolth. Os poderes físicos do corpo não podem ser separados do lado racional da mente e das emoções do coração. São uma e a mesma coisa, uma compilação do ser singular. É na harmonia destas três coisas — corpo, mente e coração — que encontramos o espírito. Quantos tiranos já tentaram? Quantos governantes procuraram reduzir os seus súbditos a simples instrumentos irracionais para lucro e proveitos próprios? Roubam os amores, a religião, do seu povo; procuram roubar-lhe o espírito. Mas no fim, e inevitavelmente, falham. Tenho de acreditar nisto. Se a chama da vela que é o espírito se extingue, há apenas morte, e o tirano não encontrará nenhum ganho num reino apenas cheio de cadáveres. Mas é uma coisa resiliente, esta chama do espírito, indómita e sempre perseverante. Em alguns, pelo menos, sobreviverá, para desgraça do tirano. Onde estava então Zaknafein, meu pai, quando se dispôs a destruir-me? Onde estava eu nos meus anos isolado na selva do Subescuro, quando o caçador que me tornara cegava o meu coração e guiava a minha mão e a minha espada muitas vezes contra os meus desejos conscientes? Ambos estávamos lá o tempo todo, soterrados, mas nunca roubados. Espírito. Em todas as línguas de todos os Reinos, da superfície e do Subescuro, em todos os tempos e em todos os lugares, essa palavra tem uma carga de força e de determinação. É a força do herói, a resiliência da mãe, e a armadura do pobre. Não pode ser quebrado, e não pode ser roubado. Nisto tenho de acreditar. — Drizzt Do’Urden

A espada surgiu demasiado depressa para que o escravo duende tivesse sequer tempo para gritar de horror. Caiu para a frente, bem morto mesmo antes de chegar ao chão. Zaknafein passou-lhe por cima e prosseguiu; o caminho até à estreita saída de trás da caverna estava aberto à sua frente, e a menos de dez metros. Enquanto o guerreiro não-vivo passava por cima da última vítima, um grupo de illithid veio pôr-se à sua frente. Zaknafein riu-se e não se virou, nem abrandou o passo. A sua lógica e os seus passos eram directos; Drizzt tinha saído por ali, e ele segui-lo-ia. O quer este que se pusesse no seu caminho! caminho seria abatido. Deixem prosseguir o seu —que — disse um grito telepático vindo de diversos pontos da caverna, de outros leitores de mentes que já tinham visto Zaknafein em acção. —Não

conseguirão derrotar este! Deixem o drow partir! Os leitores de mentes já tinham visto o suficiente das espadas do espírito-espectro; mais de uma dúzia dos seus camaradas tinham já morrido às mãos de Zaknafein. Este novo grupo que estava diante de Zaknafein não deixou de ouvir a urgência dos apelo telepáticos. Afastaram-se para os lados a toda a velocidade — excepto um. A raça illithid baseava a sua existência num pragmatismo fundado em vastos volumes de conhecimento comunal. Os leitores de mentes consideravam as emoções básicas, como o orgulho, u erro fatal. Isso mostraria ser verdade também desta vez. Flupe! O illithid isolado lançou o seu ataque de energia para o espírito-espectro, determinado a que ninguém escapasse dali. Um instante depois, o tempo necessário para um único e preciso golpe de uma espada, Zaknafei passou por cima do illithid caído e prosseguiu o caminho para fora, para a selva do Subescuro. Mais nenhum illithid fez um único gesto para o deter. Zaknafein agachou-se e determinou cuidadosamente o seu caminho. Drizzt tinha avançado po aquele túnel; o odor da carne era fresco e claro. Mesmo assim, na sua cuidadosa perseguição, em que teria de frequentemente parar e verificar o rasto, Zaknafein não podia mover-se tão rapidamente como a sua presa. Mas, ao contrário de Zaknafein, Drizzt tinha de parar para descansar. — Parem! — o tom da ordem de Belwar não deixava lugar para debates. Drizzt e Clacker estacara de Belwar imediato, interrogando-se o queà causara o alarme avançou e encostousobre o ouvido parede de pedra. do guarda-tocas. — Botas! — murmurou, apontando para a pedra. — Num túnel paralelo a este. Drizzt juntou-se ao amigo perto da parede e escutou atentamente, mas, embora os seus sentidos fossem mais apurados do que os de quase todos os outros elfos negros, não era nem de longe tão hábil a ler as vibrações da pedra como o gnomo das profundezas. — Quantos? — perguntou.

— Poucos — respondeu Belwar, mas o encolher de ombros disse a Drizzt que era apenas um estimativa esperançosa. — Sete — disse Clacker, uns passos mais atrás, com voz clara e firme. — Duergar… Anõe cinzentos. A fugir dos illithid, tal como nós. — Como podes tu… — começou Drizzt a perguntar, mas depois parou, lembrando-se do que Clacker lhe dissera acerca dos poderes dos pech. — Os túneis cruzam-se? — perguntou Belwar ao horror de garras. — Podemos evitar os duergar? Clacker regressou para junto da pedra, para obter respostas. — Os túneis unem-se pouco mais adiante — respondeu. — Depois, continuam como apenas um. — Então, se ficarmos aqui, os anões cinzentos provavelmente passarão por nós — raciocinou Belwar. Drizzt não tinha tanta certeza desse raciocínio do gnomo das profundezas. — Nós e os duergar partilhamos um inimigo comum — notou Drizzt. Depois, os olhos abriram-se lhe como se um pensamento lhe tivesse surgido subitamente. — Aliados? — Embora muitas vezes os duergar e os drow viajem juntos, os anões cinzentos não costuma aliar-se com os svirfnebli — lembrou-lhe Belwar. — Nem com horrores de garras, suponho! — Esta situação está longe do habitual — respondeu Drizzt rapidamente. — Se os duergar estão fugir dos illithid, então provavelmente estão desarmados e mal equipados. Poderão ver com bons olhos uma tal aliança, para benefício de ambos os grupos. — Não acredito que eles sejam tão amigáveis quanto estás a presumir — respondeu Belwar co um sorriso de esguelha sarcástico —, mas concedo que este túnel não é uma posição defensável, e que é mais adequada ao tamanho dos duergar do que às longas espadas de um drow e aos braços ainda maiores de um horror de garras. Se os duergar virarem para trás na intersecção e vierem na nossa direcção, poderemos ter de combatê-los numa área que os beneficia a eles. — Então, vamos para o local onde os túneis se juntam — disse Drizzt —, e vamos saber o que pudermos saber. Os três companheiros depressa chegaram a uma pequena câmara oval. Outro túnel, aquele onde o duergar estavam a avançar, entrava naquela área logo ao lado do túnel dos companheiros, e uma terceira passagem saía pela parte de trás da câmara. Os amigos avançaram para as sombras desse túnel mais afastado, no mesmo momento em que o som de botas lhes chegava aos ouvidos. Um momento mais tarde, os sete duergar entraram na câmara oval. Estavam mal vestidos, como Drizzt suspeitara, mas não desarmados. Três deles traziam mocas, outro tinha um punhal, dois empunhavam espadas e o último arrastava consigo duas grandes pedras. Drizzt reteve os companheiros avançou ir aoe encontro estranhos.muitas Embora nenhuma raças tivesse grande consideração epela outra, para os drow os duergardos formavam vezes aliançasda mutuamente compensadoras. Drizzt calculou que as hipóteses de forjar uma aliança pacífica seria maiores se aparecesse sozinho. O seu súbito aparecimento assustou os nervosos anões cinzentos. Correram por todo o lado, freneticamente, tentando assumir alguma postura defensiva. Espadas e mocas puseram-se e prontidão, e o anão que tinha as pedras pôs os braços em posição para as lançar.

— Saudações, duergar! — disse Drizzt, esperando que os anões cinzentos percebessem a língu dos drow. As mãos pousavam descontraidamente sobre os punhos das cimitarras embainhadas; sabia que poderia desembainhá-las suficientemente depressa, se precisasse delas. — E quem serás tu? — perguntou um dos anões cinzentos com uma espada, num drow arranhado, mas compreensível. — Um refugiado, como vocês — respondeu Drizzt. — Em fuga da escravidão dos cruéis illithid. — Então sabes bem que estamos com pressa — rosnou o duergar. — Por isso, sai do caminho! — Proponho-vos uma aliança — disse Drizzt. — Decerto o número maior só nos será benéfic quando os illithid vierem. — Sete chegam tão bem como oito — respondeu teimosamente o duergar. Atrás do que falava, o que tinha as pedras retesou os músculos ameaçadoramente. — Mas não tão bem quanto dez — retorquiu Drizzt calmamente. — Tens amigos contigo? — perguntou o duergar, com um tom notoriamente menos agressivo. Olhava em volta ansiosamente, à procura de sinais de uma possível emboscada. — Outros drow? — Não propriamente — respondeu Drizzt. — Eu já o vi! — gritou outro do grupo, também em drow, e antes que Drizzt pudesse começar a explicar-se. — Este fugiu junto com o monstro de garras e com o svirfnebli! — Um gnomo das profundezas… — O chefe dos duergar cuspiu para os pés de Drizzt. — Não sã amigos dos duergar, nem dos drow! Drizzt estava disposto a deixar a proposta ficar por ali, com ele e os seus amigos a seguirem o seu caminho e os anões cinzentos a seguirem o seu. Mas a bem merecida reputação dos duergar não os mostrava como pacíficos, nem como muito inteligentes. Com os illithid não muito atrás, este bando de anões cinzentos dificilmente precisava de mais inimigos. Uma pedra voou em direcção à cabeça de Drizzt. Uma cimitarra reluziu e desviouinofensivamente para o lado. — Bivrip! — ouviu-se o grito do guarda-tocas vindo do túnel. Belwar e Clacker correram para fora, nada surpreendidos pelo súbito curso dos acontecimentos. Na Academia drow, Drizzt, como todos os elfos negros, passara meses a aprender os usos e os truques dos anões cinzentos. Esse treino salvara-o agora, pois foi o primeiro a atacar, iluminando todos os sete diminutos opositores com o inofensivo fogo púrpura feérico. Quase ao mesmo tempo, três dos duergar desapareceram de vista, exercendo o seu talento inato para se tornarem invisíveis. As chamas púrpura continuavam, porém, a delinear claramente a sua presença. Um voou pelo ar,rir, embatendo peito de aClacker. O em monstro ter-se-ia rido de segunda tão toscopedra ataque, se pudesse e Clackerno prosseguiu sua carga frente,couraçado para o meio dos duergar. O lançador de pedras e o que tinha o punhal fugiram do caminho do horror de garras, sem armas que pudessem ferir o gigante couraçado. Com outros inimigos por perto, Clacker deixou-os ir. Vinham pelos lados da câmara, atacando em direcção a Belwar, pensando que o svirfnebli seria o alvo mais fácil.

O varrimento de uma mão de picareta fê-los estacar subitamente. O duergar desarmado saltou par a frente, tentando segurar o braço antes que este pudesse fazer o movimento em sentido inverso. Belwar previu essa tentativa e atingiu-o com o outro braço e a mão de martelo, que se abateu e cheio na cara do duergar. Saltaram faíscas, partiram-se ossos, e pele cinzenta ardeu e rasgou-se. O duergar caiu de costas e rebolou freneticamente, agarrado à cara desfeita. O que empunhava o punhal já não estava desejoso de combater. Dois duergar invisíveis avançaram para Drizzt. Com o contorno desenhado pelas chamas púrpura Drizzt conseguia ver os movimentos deles, e marcara prudentemente aqueles dois como sendo os que tinham espadas. Mas estava em clara desvantagem, pois não conseguia discernir os golpes e ataques. Recuou, criando distância entre ele e os companheiros. Pressentiu um ataque e lançou uma cimitarra para bloqueá-lo, sorrindo com a sorte que teve quando ouviu o embate metálico das armas. O anão cinzento apareceu à vista por um breve momento, para mostrar a Drizzt um sorriso maldoso, e depois desapareceu rapidamente outra vez. — Quantos pensa ele que consegue bloquear? — perguntou o outro duergar invisível, sobranceiro. — Mais do que tu, suspeito — disse Drizzt, e depois foi a vez de o drow sorrir. O seu globo encantado de escuridão desceu sobre os três combatentes, anulando a vantagem dos duergar. No fulgor da batalha, os instintos selvagens de horror de garras de Clacker tomaram o controlo absoluto das suas acções. O gigante não compreendia o significado das chamas púrpura vazias que marcavam o terceiro duergar invisível e em vez disso carregou contra os dois anões cinzentos restantes, ambos com mocas. Antes que o horror de garras chegasse perto deles, porém, uma moca bateu-lhe num joelho, e o duergar invisível riu-se alto, satisfeito. Os outros dois começaram a desaparecer da vista, mas Clacker não lhes prestava agora atenção. A moca invisível voltou a atacar, desta vez abatendo-se contra a coxa do horror de garras. Possuído pelos instintos de uma raça que nunca se preocupara com delicadezas, o horror de garras uivou e caiu para frente, esmagando a figura envolta nas chamas púrpura sob o seu peito enorme. Clacker subiu e deixou-se cair de novo por várias vezes, até ficar convencido de que o inimigo invisível estava morto. Mas depois, uma saraivada de golpes de moca caíram sobre a nuca do horror de garras. O duergar que tinha o punhal não era principiante em combate. Os seus ataques vinham em golpe precisos, forçando Belwar, que tinha armas mais pesadas, a tomar a iniciativa. Os gnomos das profundezas odiavam tão profundamente os anões cinzentos quanto estes odiavam os svirfnebli, mas Belwar não era tolo. A mão de picareta agitava-se, mas apenas o suficiente para manter o opositor à distância, a mão martelosem se mantinha para atacar. Assim, enquanto os dois enfrentaram-se vantagempronta de nenhum durante vários momentos, ambos apenas à espera de que o outro cometesse o primeiro erro. Quando o horror de garras gritou de dor, e com Drizzt fora de vista, Belwar foi forçado a agir. Inclinou-se para a frente, fingindo tropeçar, e avançou com a mão martelo estendida para a frente, e a mão picareta descida. O duergar reconheceu a armadilha, mas não podia ignorar a abertura óbvia nas defesas do svirfnebli. O punhal avançou por cima da picareta, mergulhando em direcção à garganta de Belwar.

O guarda-tocas lançou-se para trás com igual rapidez, e levantou uma perna enquanto o fazia, co a bota a atingir o queixo do duergar. Mas o anão cinzento não parou de avançar, aterrando em cima do gnomo das profundezas que caía, com o punhal a abrir caminho. Belwar ergueu a picareta apenas uma fracção de segundo antes de a arma encontrar o seu pescoço. O guarda-tocas conseguiu afastar para longe o braço do duergar, mas o peso considerável do anão cinzento mantinha-o perto, com as caras de ambos a apenas centímetros de distância. — Agora apanhei-te! — gritou o duergar. — Então toma lá esta! — gritou Belwar em resposta, libertando a mão martelo o suficiente par lançar um murro curto, mas pesado, em cheio nas costelas do duergar. O anão cinzento deu uma cabeçada na cara de Belwar, e em resposta este mordeu-lhe o nariz. Rebolavam agora os dois, cuspindo e rosnando e usando todas as armas que podiam encontrar. Pelo som das lâminas que se batiam, quaisquer observadores fora do globo de escuridão de Drizz teriam jurado que havia lá dentro uma dúzia de combatentes. O ritmo frenético das espadas era apenas obra de Drizzt Do’Urden. Numa tal situação, a lutar às cegas, o drow calculava que o melho método seria manter todas as espadas à maior distância possível do seu corpo. As cimitarras atacavam à sua frente sem parar e em perfeita harmonia, obrigando os dois duergar a recuar sobre os calcanhares. Cada braço trabalhava o seu próprio opositor, mantendo os anões cinzentos no mesmo sítio, bem à frente de Drizzt. Se um dos inimigos conseguisse passar para o lado, o drow sabia que ficaria e grandes sarilhos. Cada golpe de cimitarra era acompanhado pelo clamor de metal contra metal, e cada segundo que passava dava a Drizzt maior compreensão das capacidades dos seus oponentes e das suas estratégias de ataque. No Subescuro, Drizzt lutara às cegas muitas vezes, e uma vez até usando um capuz sobr os olhos, contra o basilisco que encontrara. Esmagados pela velocidade estonteante dos ataques do drow, os duergar só podiam estender e recolher as suas espadas, na esperança de encontrarem uma aberta entre as cimitarras. As lâminas faiscavam e ecoavam enquanto os dois duergar se esquivavam e atacava freneticamente. Depois, veio um som que Drizzt esperava, o som de uma cimitarra a enterrar-se e carne. Um momento mais tarde, uma espada bateu na pedra e o seu utilizador ferido cometeu o erro fatal de gritar de dor. O eu caçador de Drizzt veio à superfície nesse momento e concentrou-se nesse grito, e a cimitarr atacou a direito, abatendo-se contra os dentes do anão cinzento e saindo-lhe pela nuca. O caçador virou-se para o duergar restante, furioso. Em círculos, as suas espadas atacavam. delas disparou demasiado depressa para uma resposta de bloqueio. Apanhou oDepois, duergaruma no ombro, rasgandoa direito, uma ferida profunda. — Rendo-me! Rendo-me! — gritou o anão cinzento, não desejando a mesma sorte do companheiro. Drizzt ouviu outra espada a cair no chão. — Por favor, elfo drow! Perante as palavras do duergar, o drow enterrou as suas pressões instintivas. — Aceito a tua rendição — respondeu Drizzt, e aproximou-se do opositor, encostando a ponta da cimitarra ao peito do duergar. Saíram depois juntos da zona escurecida pelo encantamento de Drizzt.

Uma dor agonizante ardia na cabeça de Clacker, com cada golpe recebido a enviar ondas de dor. O horror de garras rugia e explodiu em movimentos furiosos, levantando-se de cima do duergar esmagado e esbracejando contra os novos opositores. Uma moca de duergar bateu-lhe de novo, mas Clacker estava já para lá de qualquer sensação de dor. Uma pesada garra cortou o ar na direcção do contorno púrpura, acertando no crânio do duergar invisível. O anão cinzento voltou a ficar visível subitamente, com a concentração necessária para manter o estado de invisibilidade roubada pela morte, o maior de todos os ladrões. O restante duergar voltou-se para fugir, mas o enraivecido horror de garras moveu-se mais depressa. Clacker apanhou o anão cinzento com uma garra e lançou-o ao ar. Guinchando como u pássaro enlouquecido, o horror de garras atirou o anão cinzento contra a parede. O duergar voltou a aparecer, mas agora esmagado e caído junto à base da parede de pedra. Não havia mais opositores para enfrentarem o horror de garras, mas a fome selvagem de Clacke estava longe de saciada. Drizzt e o duergar ferido apareceram então de entre as sombras, e o horror de garras avançou. Com o combate de Belwar a prender-lhe a atenção, Drizzt não percebeu as intenções de Clacke até ouvir o prisioneiro duergar gritar de horror. Mas nessa altura, já era demasiado tarde. Drizzt viu a cabeça do seu prisioneiro a voar de volta para o globo de escuridão. — Clacker! — gritou o drow, em protesto. Depois, teve de se baixar e de saltar para trás, para defender a sua própria vida, quando outra garra veio malevolamente na sua direcção. Detectando uma nova presa por perto, o horror de garras não seguiu o drow até ao globo de escuridão. Belwar e o duergar do punhal estavam demasiado enraivecidos e concentrados no seu combate para notarem a aproximação do gigante enlouquecido. Clacker dobrou-se, apanhou os contendores nos seus enormes braços e ergueu-os ambos no ar. O duergar teve o azar de ser o primeiro a descer, e Clacker atirou-o prontamente com uma pancada para o outro lado da câmara. Belwar teria encontrado a mesma sorte, mas um par de cimitarras cruzadas impediu o movimento seguinte de Clacker. A força do gigante atirou Drizzt quase um metro para trás, mas o golpe das cimitarras amorteceu o gesto do gigante o suficiente para que Belwar caísse no chão ali perto. Mesmo assim, o guarda-toca caiu pesadamente e ficou durante um longo momento demasiado atordoado para reagir. — Clacker! — gritou Drizzt mais uma vez, enquanto um pé gigantesco subia no ar com a evidente intenção de esmagar Belwar. Precisando de toda a sua velocidade e agilidade, Drizzt mergulhou e direcção às costas do monstro, atirou-se para o chão e atacou os joelhos de Clacker, tal como tinha feito no seu primeiro encontro. Tentando espezinhar o svirfnebli Clacker estava já um para pouco desequilibrado, e Drizzt facilmente o fez cair. Num piscar de olhos,caído, o guerreiro drow saltou-lhe cima do peito e enfiou a ponta de uma cimitarra por entre as pregas couraçadas do pescoço de Clacker. Drizzt esquivou-se a um golpe desajeitado de Clacker, que continuava a debater-se. O dro odiava o que tinha de fazer, mas depois o horror de garras acalmou-se subitamente e olhou para ele com sincera compreensão.

— Fa… Faz… Faz isso! — chegou o pedido tartamudeado. Drizzt, horrorizado, olhou par Belwar, em busca de apoio. Já de pé outra vez, o svirfnebli limitou-se a desviar os olhos. — Clacker! — chamou Drizzt. — És outra vez Clacker? O monstro hesitou, e depois a cabeça com bico acenou afirmativamente. Drizzt saltou para trás e olhou para a carnificina na câmara. — Vamos embora — disse. Clacker manteve-se deitado por mais um momento, considerando as sinistras implicações dos seus gestos. Com a conclusão da batalha, o seu lado de horror de garras ganhara o controlo total da consciência. Aqueles instintos selvagens estavam à espreita, Clacker sabia-o, e não muito longe da superfície, à espera de outra oportunidade para conquistarem o poder. Quantas vezes seria ainda o lado mais fraco de pech capaz de lutar contra esses instintos? Clacker bateu na pedra, com uma pancada fortíssima que fez abrirem-se rachas pelo chão fora. Com grande esforço, o gigante cansado pôs-se de pé. Com a sua vergonha, nem olhou para o companheiros, mas correu pelo túnel, com cada passo a ecoar como um martelo a bater num prego cravado no coração de Drizzt. — Talvez devesses ter acabado com ele, elfo negro — sugeriu Belwar, pondo-se ao lado do amigo. — Salvou-me a vida na caverna dos illithid — retorquiu secamente Drizzt. — E foi um amigo leal. — Tentou matar-me. E a ti também — disse o gnomo das profundezas sombriamente. — Magga

cammara. — Sou amigo dele! — rugiu Drizzt, agarrando o svirfnebli por um ombro. — E dizes-me que mate? — Digo-te que ajas como amigo dele — retorquiu Belwar, libertando-se da mão de Drizzt e entrando pelo corredor atrás de Clacker. Drizzt agarrou de novo o ombro do guarda-tocas e fê-lo virar-se bruscamente. — Só vai piorar, elfo negro — disse Belwar calmamente, enfrentando o esgar de Drizzt. — cada dia que passa, o feitiço do mago ganha mais força. Clacker há de voltar a tentar matar-nos, receio bem. E se tiver sucesso, a concretização desse acto destroçá-lo-á ainda mais do que as tuas espadas algumas poderão fazer! — Não consigo matá-lo! — disse Drizzt, e já não estava irado. — Nem tu. — Então, temos de o deixar — respondeu o gnomo das profundezas. — Temos de deixar Clacker livre no Subescuro, para que viva a sua vida de horror de garras. E é isso que certamente se vai tornar, de corpo e de espírito. — Não — disse Drizzt. — Não podemos abandoná-lo. Somos a única esperança dele. Temos de ajudar. — O mago está morto — relembrou-lhe Belwar, e virou costas e começou de novo a andar, seguindo Clacker. — Há mais magos — respondeu Drizzt em surdina, desta vez sem fazer qualquer gesto par impedir o guarda-tocas de prosseguir o caminho. Os olhos do drow semicerraram-se e voltou a embainhar as cimitarras. Sabia o que tinha de fazer,

sabia o preço que a amizade de Clacker exigia que pagasse, mas considerava o pensamento demasiado perturbante para o aceitar. Havia, de facto, outros magos no Subescuro, mas os encontros fortuitos estavam longe de se comuns e os magos capazes de reverter o encantamento de Clacker seriam ainda menos. Mas Drizz sabia onde se poderiam encontrar magos desses. A ideia de regressar à sua terra-mãe perseguiu-o e atormentou-o a cada passo que ele e os companheiros davam, nesse dia. Tendo já visto as consequências da decisão de deixar Menzoberranzan, Drizzt não queria jamais voltar a ver o mundo negro que o tinha amaldiçoado daquela forma. Mas se escolhesse agora não regressar, sabia que em breve teria de ver um espectáculo mais maligno do que Menzoberranzan. Teria de ver Clacker, um amigo que o salvara da morte certa, a degenerar até se tornar um simples horror de garras. Belwar sugerira que abandonassem Clacker, e essa opção parecia preferível à batalha que ele e Belwar teriam de lutar certamente se estivesse perto de Clacker quando a degeneração se completasse. Mesmo que Clacker estivesse longe, porém, Drizzt sabia que seria testemunha dessa degeneração Os seus pensamentos ficariam com Clacker, o amigo que teria abandonado para o resto dos seus dias, apenas mais uma dor para o atormentado drow. Em todo o mundo, Drizzt não conseguia pensar em nada que mais desejasse menos do que ver de novo Menzoberranzan, ou conversar com a sua antiga gente. Se pudesse escolher, preferiria a morte a regressar à cidade dos drow, mas a escolha não era assim tão simples. Tinha a ver com mais coisas do que apenas os seus desejos pessoais. Baseara a sua vida em princípios, e esses princípios exigiam agora lealdade. Exigiam que colocasse Clacker acima dos seus próprios desejos, porque Clacker tinha sido seu amigo e porque o conceito de verdadeira amizade ultrapassava de longe os seus desejos pessoais. Mais tarde, quando os amigos montaram acampamento para um pequeno repouso, Belwar noto que Drizzt estava a debater-se com um conflito interior. Deixando Clacker, que estava de novo a batucar contra as paredes de pedra, o svirfnebli moveu-se cautelosamente até perto do drow. Belwar inclinou a cabeça, curioso. — O que estás a pensar, elfo negro? Também Drizzt, presa do turbilhão emocional que o devorava, não devolveu o olhar de Belwar. — A minha terra tem uma escola de magia — respondeu Drizzt, com uma determinação férrea. Inicialmente, o guarda-tocas não compreendeu o que Drizzt estava a sugerir, mas depois, quando o drow olhou para Clacker, Belwar percebeu as implicações da declaração do amigo. — Menzoberranzan? — gritou o svirfnebli. — Regressarias a Menzoberranzan, na esperança d que um elfo negro mago mostrasse piedade para com o nosso amigo pech? — Regressaria lá porque Clacker não tem nenhuma outra hipótese — retorquiu Drizzt irritadamente. — Então, Clacker não tem hipótese nenhuma — rugiu Belwar. — Magga cammara, elfo negro! Menzoberranzan não será tão rápida assim a receber-te de volta! — Talvez o teu pessimismo se mostre correcto — disse Drizzt. — Os elfos negros não são

movidos pela piedade, concordo. Mas pode haver outras opções. — És procurado — disse Belwar. O tom da voz mostrava que esperava que aquelas simple palavras fizessem acordar algum juízo no seu companheiro drow. — Pela Matrona Malice — respondeu Drizzt. — Mas Menzoberranzan é uma cidade muito grande meu pequeno amigo, e as lealdades para com a minha mãe não desempenharão nenhum papel em qualquer encontro que tenhamos, a não ser com a minha própria família. E garanto-te que não tenho nenhuma intenção de me encontrar com ninguém da minha família! — E o que poderemos nós, diz-me lá, elfo negro, oferecer em troca do desencantamento de Clacker? — perguntou sarcasticamente Belwar. — Que temos nós para oferecer que qualquer elfo negro de Menzoberranzan possa considerar de valor? A resposta de Drizzt começou pelo agitar rápido de uma cimitarra, foi aumentada pelo familiar fogo branco dos seus olhos cor de alfazema, e terminou com uma simples declaração que nem mesmo o teimoso Belwar poderia refutar: — A vida do mago.

A Matrona Baenre fez um longo e cuidadoso exame a Malice Do’Urden, avaliando até que ponto a provações do zin-carla começavam a pesar na matrona-mãe. Rugas profundas de preocupação riscavam a cara de Malice, antes tão lisa, e os seus cabelos brancos e compostos, que tinham sido a inveja da sua geração, estavam, por uma vez entre muito poucas em séculos, desalinhados e mortiços. O mais evidente, no entanto, eram os olhos de Malice, antes radiosos e alerta, mas agora escuros de cansaço e enterrados nas órbitas da pele negra. — Zaknafein quase o apanhou — explicou Malice, com a voz a soar num invulgar lamento. Drizzt estava mesmo à mão dele, e no entanto, por qualquer razão, o meu filho conseguiu escapulirse! Mas o espírito-espectro está muito perto dele, de novo — acrescentou rapidamente, vendo o franzir de sobrolho desaprovador da Matrona Baenre. Para além de ser a mais poderosa figura de toda a Menzoberranzan, a ressequida matrona-mãe d Casa Baenre era considerada a representante pessoal de Lolth na cidade. A aprovação da Matron Baenre era o mesmo que a aprovação de Lolth e, pela mesma lógica, a sua desaprovação significav quase sempre a desgraça de uma Casa. — O zin-carla exige paciência, Matrona Malice — disse a Matrona Baenre calmamente. — Aind não passou assim tanto tempo. Malice descontraiu-se um pouco, até voltar a olhar para o que a rodeava. Odiava a capela da Cas Baenre, tão vasta e esmagadora. Todo o complexo Do’Urden poderia caber naquela única sala, e se a família e soldados de Malice fossem multiplicados por dez, ainda assim não preencheriam todas as filas de assentos. Directamente por cima do altar central, mesmo por cima da Matrona Baenre pairava a imagem virtual de uma gigantesca aranha, que depois mudava para a forma de uma bela fêmea drow, e depois voltava a assumir a forma da aranha. Estar sentada ali sozinha com a Matrona Baenre, sob aquela imagem esmagadora, fazia a Matrona Malice sentir-se ainda mais insignificante. A Matrona Baenre sentiu o desconforto da sua convidada e aproximou-se para a reconfortar. — Foi-te concedida uma grande dádiva — disse com sinceridade. — A Rainha Aranha não concederia o zin-carla, nem teria aceitado o sacrifício de SiNafay Hun’ett , uma matrona-mãe, se nã aprovasse os teus métodos e as tuas intenções. — É uma prova — respondeu Malice distraidamente. — Uma prova que não poderás falhar! — retorquiu a Matrona Baenre. — E depois… As glória que conhecerás, Malice Do’Urden! Quando o espírito-espectro daquele que foi Zaknafein tive terminado sua tarefa o teu filhoserenegado estiverantes morto, sentar-te-ás honra ano Conselho Governante.a Muitos anos,e prometo-te hão-de passar que qualquer Casacom se atreva ameaçar Casa Do’Urden. A Rainha Aranha fará brilhar o seu favor sobre ti pela conclusão correcta do zin carla. Terá a tua Casa na mais alta consideração, e defender-te-á contra rivais. — E se o zin-carla falhar? — atreveu-se Malice a perguntar. — Suponhamos que… A voz de Malice calou-se enquanto via os olhos da Matrona Baenre a abrirem-se muito d espanto.

— Nem digas essas palavras! — desdenhou a Matrona Baenre. — Nem penses em tai impossibilidades! Começas a distrair-te por causa do medo, e bastará isso para provocar a tua derrota. O zin-carla é um exercício de força de vontade e um teste à tua devoção à Rainha Aranha. espírito-espectro é uma extensão da tua fé e da tua força. Se falhares na tua confiança, então o espírito-espectro de Zaknafein falhará na sua missão! — Não falharei! — rugiu Malice, com as mãos crispadas a agarrar os braços da cadeira. Aceito a responsabilidade pelo sacrilégio do meu filho, e com a ajuda e a bênção de Lolth, exercerei o castigo adequado contra Drizzt! A Matrona Baenre descontraiu-se e recostou-se na cadeira, meneando a cabeça em sinal de aprovação. Tinha de apoiar Malice nesta tarefa, por ordem de Lolth, e sabia o suficiente sobre o zincarla para perceber que a confiança e a determinação eram os dois principais ingredientes para o sucesso. Uma matrona-mãe envolvida num zin-carla tinha de proclamar a sua confiança em Lolth e o seu desejo de lhe agradar frequentemente e sinceramente. Agora, porém, Malice tinha mais um problema, uma distracção que não podia ter. Viera a casa da Matrona Baenre de sua própria vontade, em busca de ajuda. — Então, quanto a este outro assunto… — incitou a Matrona Baenre, começando a cansar-s rapidamente do encontro. — Estou vulnerável — explicou a Matrona Malice. — O zin-carla rouba-me a energia e a atenção Receio que outra Casa possa aproveitar-se da oportunidade. — Nunca uma Casa atacou uma matrona-mãe durante um zin-carla — notou a Matrona Baenre, Malice percebeu que a velha e ressequida drow falava por experiência própria. — O zin-carla é uma dádiva rara — respondeu Malice —, concedida a matronas de Casa poderosas, quase certamente no mais alto favor da Rainha Aranha. Quem atacaria em tai circunstâncias? Mas a Casa Do’Urden é muito diferente. Acabámos de sofrer as consequências d uma guerra. Mesmo com a adição de alguns soldados da Casa Hun’ett, estamos cerceados. É be sabido que ainda não recuperei o favor de Lolth, mas a minha Casa é a oitava Casa da cidade, o qu me coloca no Conselho Governante, numa posição muito invejada. — Os teus receios estão deslocados — garantiu-lhe a Matrona Baenre, mas Malice deixou-se cai para trás na cadeira, frustrada, apesar das palavras. A Matrona Baenre abanou a cabeça, desesperada. — Vejo que as minhas palavras não bastam para te acalmar. A tua atenção deve estar concentrada no zin-carla. Compreende isso, Malice Do’Urden. Não tens tempo para preocupações tã mesquinhas. — Mas persistem — disse Malice. — Então, eu acabarei com elas — propôs a Matrona Baenre. — Regressarás à tua Casa agor mesmo, acompanhada por duzentos soldados Baenre. Os números assegurarão os teus aposentos, e o meus soldados usarão a insígnia da Casa Baenre. Ninguém da cidade se atreverá a atacar tai aliados. Um grande sorriso abriu-se na cara de Malice, num esgar que fazia desaparecer um pouco as ruga de preocupação. Aceitou a generosa proposta da Matrona Baenre como um sinal de que talvez,

afinal, Lolth ainda tivesse a Casa Do’Urden no seu favor. — Vai para a tua Casa e concentra-te na tarefa que tens em mãos — prosseguiu a Matrona Baenre. — Zaknafein tem de encontrar Drizzt de novo e tem de o matar. Foi esse o negócio que propuseste Rainha Aranha. Mas nada receies por causa do recente falhanço do espírito-espectro ou do tempo perdido. Uns dias ou umas semanas não são muito tempo aos olhos de Lolth. A única coisa que importa é a devida conclusão do zin-carla. — Tratas da minha escolta? — perguntou Malice, levantando-se da cadeira. — Já está à tua espera — tranquilizou-a a Matrona Baenre. Malice desceu do altar central, mais elevado, e saiu por entre as filas de assentos da gigantesca capela. A sala enorme estava fracamente iluminada, e Malice mal conseguiu ver, enquanto saía, outra figura que se dirigia ao altar central, vinda da direcção oposta. Presumiu que fosse o companheiro illithid da Matrona Baenre, uma figura habitual na capela. Se Malice soubesse que o leitor de mente da Matrona Baenre tinha deixado a cidade para tratar de assuntos pessoais no oeste, poderia te prestado maior atenção àquela figura. As suas rugas ter-se-iam então multiplicado por dez. — Triste — notou Jarlaxle enquanto subia para se sentar ao lado da Matrona Baenre. — Esta nã é a mesma Matrona Malice Do’Urden que conheci há alguns meses. — O zin-carla não é concedido a troco de nada — respondeu a Matrona Baenre. — O preço é pesado — concordou Jarlaxle. Olhou directamente para a Matrona Baenre, lendo-lh os olhos, bem como a resposta que viria a seguir: — Falhará? A Matrona Baenre deu uma gargalhadinha alta, num riso que mais parecia um espirro. — Até mesmo a Rainha Aranha apenas poderia fazer suposições quanto a isso. Os meus… O nossos soldados dão à Matrona Malice o conforto suficiente para completar a tarefa. Essa é, pel menos, a minha esperança. Malice Do’Urden esteve em tempos na mais alta consideração da Rainh Aranha, sabes? O lugar dela no Conselho Governante foi exigido pela própria Lolth. — Os acontecimentos parecem, de facto, dirigir-se para a concretização da vontade de Lolth riu-se Jarlaxle, lembrando-se da batalha entre a Casa Do’Urden e a Casa Hun’ett, em que os Brega D’aerthe tinham desempenhado um papel central. As consequências dessa vitória, a eliminação da Casa Hun’ett, tinha colocado a Casa Do’Urden na oitava posição da cidade e, assim, colocara Matrona Malice no Conselho Governante. — A fortuna sorri aos favorecidos — notou a Matrona Baenre. O sorriso de Jarlaxle deu lugar a um súbito olhar sério. — E estará Malice… A Matrona Malice — corrigiu imediatamente, vendo o olhar de censura d Matrona Baenre — agora no favor da Rainha Aranha? A fortuna sorrirá à Casa Do’Urden? — A dádiva do zin-carla removeu tanto o favor como o desfavor, presumo — explicou a Matrona Baenre. — A sorte da Matrona Malice, compete-lhe a ela, e ao espírito-espectro, determinar. — Ou ao filho dela destruir — completou Jarlaxle. — Será este jovem guerreiro assim tã poderoso? Porque não o esmagou simplesmente Lolth? — Ele renegou a Rainha Aranha — respondeu a Matrona Baenre. — Renegou-a por completo e d todo o coração. Lolth não tem poder sobre Drizzt e ela decidiu que o problema é da Matrona Malice.

— E um problema bem grande, parece — riu-se Jarlaxle com um rápido sacudir da cabeça calva. O mercenário percebeu imediatamente que a Matrona Baenre não partilhava da sua boa disposição. — De facto… — respondeu ela, sombriamente, e a voz desvaneceu-se enquanto se deixava recostar na cadeira, para alguns pensamentos privados. Conhecia os perigos, e os possíveis ganhos, do Zin-carla melhor do que qualquer outro drow na cidade. Por duas vezes, a Matrona Baenre pedir a maior dádiva da Rainha Aranha, e por duas vezes levara a tarefa até ao fim com sucesso. Com grandeza sem rival da Casa Baenre à sua volta, a Matrona Baenre não podia esquecer os ganhos d sucesso num zin-carla. Mas sempre que via o seu reflexo mirrado e seco num lago ou num espelho, relembrava-se vivamente do pesado preço a pagar. Jarlaxle não se intrometeu nas reflexões da matrona-mãe. O mercenário aproveitou esse momento para reflectir um pouco, também. Num tempo de testes e confusão, como este, um oportunista hábil só teria a ganhar. Segundo a avaliação de Jarlaxle, os Bregan D’aerthe só tinham a ganhar com atribuição do zin-carla à Matrona Malice. Se Malice tivesse sucesso e reforçasse o seu lugar n Conselho Governante, Jarlaxle teria mais um aliado poderoso dentro da cidade. Se o espírito espectro falhasse, para ruína da Casa Do’Urden, o prémio pela cabeça desse jovem Drizzt subiri certamente para um nível que poderia tentar o bando de mercenários. Tal como acontecera durante a viagem até à primeira Casa da cidade, Malice imaginava os olhares invejosos a segui-la no regresso pelas ruas serpenteantes de Menzoberranzan. A Matrona Baenre tinha sido bastante generosa e gentil. Aceitando a premissa de que a velha e ressequida matrona era, de facto, a voz de Lolth na cidade, Malice mal conseguia conter um sorriso. Inegavelmente, porém, os receios mantinham-se. Viria a Matrona Baenre assim tão prontamente e seu socorro Drizztnocontinuasse a escapar a ficaria Zaknafein, o zin-carla acabasse—portalfalhar? posição de se Malice Conselho Governante entãose bastante fragilizada como existência da própria Casa Do’Urden. A caravana passou pela Casa Fey-Branche, nona Casa da cidade e muito provavelmente a maio ameaça a uma Casa Do’Urden enfraquecida. A Matrona Halavin Fey-Branche estava decerto observar o cortejo por detrás dos seus portões de adamantite, vendo a matrona-mãe que agora tinha o cobiçado oitavo assento no Conselho Governante. Malice olhou para Dinin e para os dez soldados da Casa Do’Urden que caminhavam ao seu lado enquanto ela seguia sentada sobre o disco mágico. Deixou o olhar percorrer os duzentos soldados, guerreiros que ostentavam abertamente o orgulhoso emblema da Casa Baenre, marchando co precisão disciplinada atrás da sua própria e modesta tropa. O que poderia a Matrona Halavin Fey-Branche estar a pensar ao ver uma tal exibição, interrogavase Malice. Não pôde evitar um sorriso. — As nossas maiores glórias estão prestes a chegar — garantiu Malice ao filho guerreiro. Dinin acenou com a cabeça e devolveu o sorriso, com o sensato cuidado de não roubar nenhuma da alegria da sua volátil mãe. Em privado, porém, Dinin não podia ignorar as suas perturbantes suspeitas de que muitos do soldados Baenre, guerreiros drow que nunca tiveram oportunidade de conhecer antes, lhe parecia

vagamente familiares. Um deles até mandara uma piscadela de olho manhosa ao Rapaz Mais Velho da Casa Do’Urden. O apito mágico de Jarlaxle, que usara na varanda da Casa Do’Urden, veio subitamente à mente d Dinin.

Drizzt e Belwar não precisaram de lembrar um ao outro o significado do brilho esverdeado que aparecia mais à frente no túnel. Ambos apressaram o passo para apanhar Clacker, que continuava a aproximar-se com passos largos e apressados pela curiosidade, e para o avisarem. Agora, era sempre o horror de garras quem ia à frente; Clacker tornara-se simplesmente demasiado perigoso para que Drizzt e Belwar o deixassem vir atrás. Clacker virou-se de repente, quando se aproximavam dele, agitou uma garra ameaçadoramente e fez um silvo. — Pech — sussurrou Belwar, dizendo a palavra que tinha vindo a usar para acordar uma recordação na mente que desaparecia rapidamente do amigo. O grupo tinha virado para trás, para leste, em direcção a Menzoberranzan, assim que Drizzt convencera o guarda-tocas da su determinação de ajudar Clacker. Belwar, não tendo mais opções, acabara finalmente por concordar com o plano do drow como sendo a única esperança de Clacker, mas, embora tivessem virado para trás imediatamente e tivessem acelerado o passo, ambos receavam agora não chegar a tempo. A transformação de Clacker tinha sido dramática desde o confronto com os duergar. O horror de garras mal conseguia agora falar, e virava-se ameaçadoramente contra os amigos com bastante frequência. — Pech — disse Belwar mais uma vez, enquanto ele e Drizzt se aproximavam do ansioso monstro. O horror de garras parou, confundido. — Pech! — gritou Belwar pela terceira vez, batendo com a mão martelo contra a parede de pedra. Como se uma pequena centelha de reconhecimento se tivesse acendido no turbilhão da sua consciência, Clacker descontraiu-se e deixou cair os pesados braços ao longo do corpo. Drizzt e Belwar olharam para lá do horror de garras, para o brilho esverdeado, e trocaram olhare preocupados. Tinham-se comprometido totalmente com este rumo, e agora não tinham grandes escolhas. — Vivem corbies na câmara adiante — começou Drizzt a dizer em voz baixa, pronunciando cada palavra lentamente e com clareza, para se assegurar de que Clacker compreendia. — Temos de atravessar a sala a direito e sair pelo outro lado rapidamente, porque se quisermos evitar uma batalha não temos tempo a perder. Cuidado onde pões os pés. Os únicos caminhos são estreitos e traiçoeiros. — Clac…Clac.. — gaguejou o horror de garras futilmente. — Clacker — completou Belwar. — Clacker v… va… — Clacker parou subitamente e apontou uma garra na direcção da câmar que brilhava a verde. — Clacker vai à frente? — disse Drizzt, incapaz de suportar os esforços desesperados do horro de garras. — Clacker vai à frente — disse de novo, vendo a grande cabeça a acenar e concordância. Belwar não parecia muito convencido da sensatez dessa sugestão.

— Lutámos contra os homens-pássaros antes e já conhecemos as manhas deles — raciocinou o svirfnebli. — Mas Clacker não. — O tamanho dele deve mantê-los à distância — argumentou Drizzt. — Talvez a simples presença dele nos evite um combate. — Não contra os corbies, elfo negro — disse o guarda-tocas. — Atacarão o que quer que seja, sem medo. Viste bem a loucura deles, o desprezo pelas suas próprias vidas. Nem mesmo a tua pantera os deteve. — Talvez tenhas razão — concordou Drizzt. — Mas mesmo que os corbies ataquem, que armas têm eles contra a couraça de um horror de garras? Que defesa têm contra as garras de Clacker? nosso amigo gigante varrê-los-á do caminho. — Esqueces os suicidas que se atiram com pedras do tecto — lembrou-lhe o guarda-tocas. — Serão rápidos a saltar agarrados a uma grande rocha, levando Clacker com eles! Clacker virou costas à conversa e olhou fixamente para as paredes de pedra num esforço fútil por recuperar uma pequena porção seu anterior eu. Sentiu uma ligeira necessidade de começar a bater na pedra, mas não maior do que a sua contínua tentação de bater com uma garra na cara do svirfnebli ou do drow. — Eu lidarei com quaisquer corbies que haja nas saliências superiores — respondeu Drizzt. — T segue Clacker pelo caminho; uns dez passos atrás dele. Belwar olhou em volta e notou a tensão crescente do horror de garras. O guarda-tocas percebe que não se podiam dar ao luxo de mais demoras, por isso encolheu os ombros e empurrou Clacker, apontando para a passagem que dava para o brilho verde. Clacker começou a avançar e Belwa seguiu-lhes os passos, mais atrás. — A pantera? — sussurrou Belwar para Drizzt enquanto dobravam a última esquina do túnel. Drizzt abanou a cabeça bruscamente e Belwar, lembrando-se do que acontecera à pantera da última vez que ali tinham estado, não insistiu mais. Drizzt deu uma pancadinha no ombro do svirfnebli, para desejar sorte, e depois passou por Clacker e foi o primeiro a entrar na sala silenciosa. Com uns poucos movimentos simples, o drow fe um encantamento de levitação e flutuou silenciosamente, subindo. Clacker, espantado com aquele lugar estranho com um lago de ácido brilhante mais abaixo, mal reparou nos movimentos de Drizzt. O horror de garras ficou completamente imóvel, olhando por toda a sala e usando o seu sentido de audição apurado para localizar possíveis inimigos. — Anda — sussurrou-lhe Belwar, por trás. — A demora só pode trazer sarilhos. Clacker avançou, hesitante, e depois adquiriu velocidade enquanto ganhava confiança na solidez do caminho e suspenso. o caminho a direito conseguia discernir, embora mesmo esse estreito serpenteasse antes Seguiu de chegar à arcadamais da saída, na que direcção oposta àquela por ondeaté tinham entrado. — Vês alguma coisa, elfo negro? — perguntou Belwar tão alto quanto se atrevia, uns momento mais tarde. Clacker já passara do meio do caminho sem qualquer incidente e o guarda-tocas não conseguia mais conter a sua crescente ansiedade. Nenhum corby tinha aparecido; não se ouvira um único som, a

não ser o pesado bater dos pés de Clacker e o arrastar das botas de Belwar. Desceu, flutuando, até passagem, bem atrás dos amigos. — Nada — respondeu. O drow partilhava da suspeita do amigo de que não havia ali nenhun corbies. O silêncio da caverna cheia de ácido era completo e enervante. Drizzt correu para o centro da câmara, e depois subiu de novo, levitando, tentando conseguir um melhor ângulo de visão de todas as paredes. — Que vês? — perguntou Belwar pouco depois. Drizzt olhou para baixo, para o guarda-tocas, encolheu os ombros. — Absolutamente nada. — Magga cammara! — resmungou Belwar, quase desejando que um corby saltasse de qualquer lado e atacasse. Clacker tinha quase chegado à saída, nessa altura, embora Belwar, na sua conversa com Drizzt, tivesse ficado mais para trás e ainda estivesse perto do centro da enorme câmara. Quando o guardatocas finalmente se virou de novo para o caminho em frente, o horror de garras já tinha desaparecido pela arcada de saída. — Alguma coisa? — continuou Belwar a perguntar a ambos os companheiros. Drizzt abanou cabeça e continuou a subir. Rodou lentamente, observando as paredes, incapaz de acreditar que não houvesse corbies à espreita, emboscados. Belwar voltou a olhar para a saída. — Devemos tê-los feito fugir — murmurou para consigo. Mas, apesar dessas palavras, o svirfnebli sabia que isso não podia ser verdade. Quando ele e Drizzt tinham fugido daquela câmara, semanas antes, tinha deixado ali várias dezenas de homens-pássaros para trás. Decerto a morte de uns quantos corbies não teria sido o suficiente para fazer fugir dali os restantes membros do destemido bando. Por qualquer razão desconhecida, nenhum corby viera opor-se-lhes. Belwar começou a avançar a passo acelerado, pensando que o melhor era não desafiar a sorte. I chamar por Clacker, para confirmar que o horror de garras tinha passado em segurança, quando um uivo agudo, aterrorizado, veio da saída, seguido de um forte som de embate. Um momento depois, Belwar e Drizzt tinham as suas respostas. O espírito-espectro de Zaknafein Do’Urden saltou para a arcada e pôs-se no caminho. — Elfo negro! — chamou Belwar a plenos pulmões. Drizzt já tinha visto o espírito-espectro e estava a descer rapidamente para a passagem perto do centro da câmara. — Clacker — chamou Belwar, sem esperar uma resposta, que não recebeu, vinda das sombras para lá da arcada. O espírito-espectro avançava com firmeza. — Monstro assassino! — praguejou Belwar, afastando os pés e batendo as mãos de mithral uma na outra. — Anda! Vem receber o que mereces! Belwar começou o cântico para encantar as mãos, mas Drizzt interrompeu-o. — Não! — gritou o drow, lá do alto. — Zaknafein está aqui por minha causa, não por ti. Sai do caminho!

— E Clacker? Estava cá por causa dele? — gritou Belwar em resposta. — Um monstro assassino é o que ele é, e temos contas a ajustar! — Não sabes isso — respondeu Drizzt, descendo mais depressa agora, tão depressa quanto se atrevia, para interceptar o intrépido gnomo das profundezas. Drizzt sabia que Zaknafein apanhari Belwar antes dele, e podia facilmente imaginar as sinistras consequências. — Acredita em mim, peço-te — implorou Drizzt. — Este guerreiro drow está muito para além da tuas capacidades. Belwar voltou a bater as mãos uma na outra, mas não podia, honestamente, refutar as palavras de Drizzt. Belwar só vira Zaknafein em combate por uma vez, na caverna dos illithid, mas o movimentos rápidos como relâmpagos do monstro tinham-lhe retirado o fôlego. O gnomo das profundezas recuou alguns passos e desceu para uma passagem lateral, em busca de outro caminho para a saída, para poder saber o destino de Clacker. Com Drizzt tão à vista, o espírito-espectro não prestou atenção ao svirfnebli. Zaknafein avançou direito pelo caminho e prosseguiu para o cumprimento do propósito da sua existência. Belwar pensou em perseguir o estranho drow, aproximar-se por trás e ajudar Drizzt no combate, mas um novo grito veio da arcada, um grito tão cheio de dor e desgraçado, que o guarda-tocas não podia ignorá-lo. Parou assim que chegou de novo à passagem principal, e depois olhou para trás e para diante, dividido nas suas lealdades. — Vai! — gritou-lhe Drizzt. — Vai ajudar Clacker. Este é Zaknafein, meu pai. Drizzt notou uma ligeira hesitação no avanço do espírito-espectro ao ouvir estas palavras, uma hesitação que lhe deu uma centelha de compreensão. — O teu pai? Magga cammara, elfo negro! — protestou o gnomo das profundezas. — Lá na caverna dos illithid… — Estou em segurança — interrompeu Drizzt. Belwar não acreditava que Drizzt estivesse seguro, mas contra os protestos do seu próprio teimoso orgulho, o guarda-tocas percebeu que a batalha que estava prestes a começar estava muito para além das suas capacidades. Seria de pouca utilidade contra aquele poderoso guerreiro drow, e a sua presença no combate poderia até mostrar-se um empecilho para o amigo. Drizzt já teria bastante co que lidar, para ter ainda de se preocupar com a segurança de Belwar. Bateu as mãos uma contra a outra, frustrado, e correu para a saída e para os contínuos uivos do seu companheiro horror de garras. Os olhos da Matrona Malice abriram-se muito e emitiu um som tão gutural que as filhas, reunidas a seu lado na antecâmara da capela, souberam imediatamente que o espírito-espectro tinha encontrado Drizzt. Briza olhou para as sacerdotisas mais novas da Casa Do’Urden e mandou-as embora. May obedeceu prontamente, mas Vierna hesitou. — Vai-te — rosnou Briza, com uma mão a dirigir-se para o chicote de cabeças de serpente. — Já! Vierna olhou para a matrona-mãe, em busca de apoio, mas Malice estava alheada, concentrada no espectáculo de acontecimentos distantes. Este era o momento de triunfo do zin-carla e da Matron Malice Do’Urden; não se deixaria distrair pelas brigas menores dos seus inferiores.

Briza ficou sozinha com a mãe, de pé atrás do trono, estudando atentamente Malice, ao mesmo tempo que Malice observava atentamente Zaknafein. Assim que entrou na pequena câmara para lá da arcada, Belwar soube que Clacker estava morto, o estaria em breve. O gigantesco horror de garras estava caído no chão, sangrando de uma única ferida, uma ferida sinistramente precisa em volta do pescoço. Belwar começou a virar costas, mas depois percebeu que devia, pelo menos, dar algum consolo ao amigo caído. Caiu sobre um joelho e obrigouse a ficar a ver Clacker passar por uma série de violentas convulsões. A morte punha fim ao feitiço polimorfo, e Clacker estava gradualmente a voltar ao seu antigo eu. Os enormes braços com garras estremeciam e agitavam-se, e transformaram-se nos longos braços de pele amarela de um pech. Começou a surgir cabelo entre as rachas que se abriam na couraça da cabeça de Clacker, e o grande bico abriu-se ao meio e desapareceu. O peito maciço também se dissipou e o corpo inteiro contraiu-se com um som de rangido que provocava arrepios na espinha do guarda-tocas. O horror de garras desaparecera e, na morte, Clacker voltava a ser o que sempre fora. Era u pouco mais alto do que Belwar, embora não tão largo, e o rosto era amplo e estranho, com olhos sem pupilas e um nariz achatado. — Como era o teu nome, meu amigo? — murmurou o guarda-tocas, embora sabendo que Clacke nunca lhe responderia. Inclinou-se e segurou a cabeça do pech nos braços, encontrando algu consolo no pensamento de que a paz chegara finalmente ao rosto da atormentada criatura. — Quem és tu, que assumes o aspecto do meu pai? — perguntou Drizzt enquanto o espírito-espectro dava os últimos passos. O rugido de Zaknafein foi indecifrável, e a resposta foi mais claramente dada pelo voltear de um espada. Drizzt bloqueou o ataque e saltou para trás. — Quem és tu? — perguntou de novo. — Não és o meu pai! Um grande sorriso abriu-se no rosto do espírito-espectro. — Não — respondeu Zaknafein numa voz trémula. A resposta chegara-lhe de uma antecâmara a muitos quilómetros dali. — Sou… a tua mãe! E as espadas avançaram de novo, numa série de movimentos rápidos. Drizzt, confundido com a resposta, respondeu ao ataque com igual ferocidade, e os muitos embates de cimitarra contra espada soavam como um único retinir metálico. Briza observava cada movimento da mãe. O suor escorria pelas pálpebras de Malice, os punho cerrados batiam com força nos braços do trono de pedra, mesmo depois de já estarem a sangrar. Malice já esperava que fosse assim, que o momento final do seu triunfo brilharia claramente na sua mente à distância de quilómetros. Ouvia cada palavra nervosa do filho e sentia a perturbação dele profundamente. Nunca Malice sentira tanto prazer! Depois, sentiu um ligeiro formigueiro, enquanto a consciência de Zaknafein lutava contra o se controlo. Malice afastou Zaknafein com um rugido gutural; o corpo animado de Zaknafein era o se

instrumento! Briza notou o súbito esgar da mãe com mais do que um interesse passageiro. Drizzt sabia para lá de quaisquer dúvidas que aquele que estava à sua frente não era Zaknafei Do’Urden; mas não podia negar que o estilo de combate singular era o do seu antigo mentor. Zaknafein estava ali, algures, e Drizzt teria de chegar até ele, se queria obter respostas. A batalha entrou num ritmo confortável, comedido, com ambos os oponentes a lançarem rotinas de ataque cautelosas e a prestarem atenção ao chão perigoso que pisavam. Belwar entrou na câmara, nessa altura, transportando o corpo destroçado de Clacker. — Mata-o, Drizzt! — gritou o guarda-tocas. — Magga… — o svirfnebli parou e ficou com medo quando viu o combate. Drizzt e Zaknafein pareciam enlaçados, com as armas a rodopiar e a assobiar, com cada ataque tendo um bloqueio como resposta. Pareciam iguais, estes dois elfos negros que Belwar tinh considerado completamente diferentes, e essa ideia perturbou o gnomo das profundezas. Quando surgiu a pausa seguinte no combate, Drizzt olhou para o guarda-tocas e os seus olho detiveram-se no corpo do pech morto. — Maldito sejas! — rugiu. E voltou a atacar, com as cimitarras em riste para o monstro que tinha morto Clacker. O espírito-espectro bloqueou o ousado e destemido ataque e desviou as cimitarras de Drizzt par cima, fazendo-o recuar. Também aquele movimento parecia muito familiar ao jovem drow; era uma abordagem que Zaknafein tinha usado contra ele muitas vezes nos seus treinos em Menzoberranzan. Zaknafein forçava Drizzt a levantar as cimitarras, e depois atacava subitamente por baixo com amba as espadas. Nos combates iniciais, Zaknafein tinha-o muitas vezes derrotado com essa manobra, o duplo ataque em baixo; mas, no último recontro que tinham tido na cidade drow, Drizzt descobrira o bloqueio adequado para esse ataque e virara-o contra o seu mentor. Agora, Drizzt interrogava-se se o seu oponente seguiria a rotina de ataque esperada, e interrogavase também sobre como Zaknafein reagiria ao seu contra-ataque. Haveria algumas memórias de Zaknafein dentro do monstro que agora enfrentava? As lâminas do espírito-espectro continuavam a manter as cimitarras de Drizzt bem ao alto, defensivamente. Zaknafein deu depois um rápido passo atrás e avançou por baixo com ambas as espadas em riste. Drizzt baixou as cimitarras para uma posição em cruz, o bloqueio adequado que parava as espadas atacantes. Levantou um pé entre os punhos das espadas e directo à cara do oponente. O espírito-espectro já esperava o contra-ataque e estava fora de alcance antes que a bota de Drizz conseguisse atingi-lo. Drizzt acreditou então que tinha a resposta às suas interrogações, pois só Zaknafein Do’Urden poderia ter sabido daquele contra-ataque. — És mesmo Zaknafein! — gritou Drizzt. — Que te fez Malice Do’Urden? As mãos do espírito-espectro tremeram visivelmente enquanto seguravam as espadas, e a boca contorceu-se como se estivesse a querer dizer alguma coisa. — Não! — gritou Malice, e recuperou violentamente o controlo do seu monstro, percorrendo a linh

delicada e perigosa entre as capacidades físicas de Zaknafein e a consciência do ser que antes ele tinha sido. — És meu, espectro! — admoestou Malice. — E pela vontade de Lolth, hás-de completa a tua tarefa! Drizzt viu o súbito regresso do espírito-espectro assassino. As mãos de Zaknafein já não tremiam, e a boca estava fechada, com um sorriso ténue e sinistro, mais uma vez. — O que é, elfo negro? — perguntou Belwar, confundido pelo estranho encontro. Drizzt reparou que o gnomo das profundezas tinha depositado Clacker numa saliência de rocha e estava a aproximar-se. Saltavam faíscas das mãos de Belwar, sempre que se uniam. — Para trás! — avisou Drizzt. A presença de um inimigo desconhecido poderia arruinar os planos que começavam a ganhar forma na sua mente. — É Zaknafein — tentou explicar a Belwar. — Ou pelo menos, uma parte dele! Numa voz demasiado baixa para que Belwar conseguisse ouvir, Drizzt acrescentou: — E acredito que sei como chegar a essa parte. Avançou com uma saraivada de golpes de cimitarra que sabia que Zaknafein poderia facilmente contrariar. Não queria destruir o seu opositor, mas antes procurava inspirar outras memórias de rotinas de combate que seriam familiares para Zaknafein. Fez Zaknafein passar pelas fases típicas de uma sessão de treino, falando ao mesmo continuamente, da mesma forma como ele e o mestre de armas costumavam conversar, em Menzoberranzan. O espírito-espectro de Malice contrariava esta familiaridade de Drizzt com selvajaria, e respondia às palavras amigáveis com rugidos animalescos. Se Drizzt pensava que podia amansar o seu oposito com terrivelmente Aspalavras, espadas estava atacavam Drizzt porenganado. todos os lados, procurando uma aberta nas suas defesas be construídas. As cimitarras igualavam a rapidez e precisão dos golpes do espírito-espectro, aparando e bloqueando todos os golpes e desviando todos os ataques directos. Um espada conseguiu passar por uma aberta e picou Drizzt nas costelas. A boa cota de malha desviou a ponta aguçada da espada, mas a força do embate deixaria uma profunda nódoa negra. Obrigado a recuar, Drizzt viu que o seu plano não seria tão facilmente executado. — És o meu pai! — gritou para o monstro. — A Matrona Malice é o teu inimigo, e não eu! O espírito-espectro troçou destas palavras com uma gargalhada malévola e avançou selvaticamente. Desde o início do combate que Drizzt receara este momento, mas agora lembrav teimosamente a si mesmo que aquilo não era realmente o pai que estava ali diante dele. A ofensiva descuidada de Zaknafein deixou inevitavelmente algumas abertas nas suas defesas, e Drizzt encontrou-as, uma vez e depois outra, com as cimitarras. Uma lâmina abriu um buraco no estômago do espírito-espectro, e outra cortou-o profundamente no pescoço. Zaknafein limitou-se a rir mais uma vez, com mais força ainda, e continuou a avançar. Drizzt lutava agora em puro pânico, com a confiança a fugir-lhe. Zaknafein era quase seu igual, e mesmo assim as suas lâminas mal o feriam! Outro problema depressa se tornou evidente, porque o tempo corria contra Drizzt. Não sabia exactamente o que estava a enfrentar, mas suspeitava de que

não se cansaria. Pressionou com toda a sua capacidade e velocidade. O desespero levava-o agora a um novo auge de destreza com as cimitarras. Belwar começou a avançar de novo, mas parou logo depois, confundido pela exibição. Drizzt atingiu Zaknafein mais algumas vezes, mas o espírito-espectro parecia não dar por nada, e enquanto o jovem drow aumentava o ritmo, a intensidade do espírito-espectro crescia para igualar a dele. Drizzt mal podia acreditar que aquele não fosse de facto Zaknafein Do’Urden que estava a luta contra ele; conseguia reconhecer os movimentos do pai e antigo mentor muito claramente. Nenhuma outra alma poderia mover o corpo perfeitamente musculado do drow com tal precisão e destreza. Drizzt estava a recuar de novo, cedendo terreno e esperando pacientemente pelas suas oportunidades. Relembrou a si mesmo, uma e outra vez, que não era Zaknafein que estava a enfrentar, mas um qualquer monstro criado pela Matrona Malice, com o único propósito de o destruir. Tinha de estar pronto; a sua única hipótese de sobreviver a este recontro era fazer cair o oponente do estreito caminho. Com o espírito-espectro a lutar com tanto ardor, no entanto, essa hipótese parecia de facto distante. O caminho fazia um ligeira curva mais adiante, e Drizzt tenteou com o pé, correndo-o ao longo d laje de pedra. Então, uma pedra mesmo por baixo do seu pé partiu-se e soltou-se da parte lateral da laje. Drizzt cambaleou e a perna, até ao joelho, ficou pendurada fora da ponte de pedra. Zaknafei avançou rapidamente. As espadas assobiavam e depressa encontraram Drizzt caído de costas na estreita passagem, com a cabeça pendendo de forma precária sobre o lago de ácido. — Drizzt! — gritou Belwar, impotente. O gnomo das profundezas acorreu, embora não pudesse te esperanças de chegar a tempo ou de derrotar o assassino do amigo. — Drizzt! Talvez tivesse sido esse gritar do nome de Drizzt, ou talvez tivesse sido apenas o momento da estocada final, mas a antiga consciência de Zaknafein ganhou vida nesse instante; e o braço que empunhava a espada pronta a mergulhar e matar Drizzt, e que este não poderia desviar, hesitou. Drizzt não esperou por explicações. Esmurrou com o punho de uma cimitarra, depois com o outro, com ambos a acertarem em cheio no queixo de Zaknafein e fazendo o espírito-espectro recuar. Estava de novo de pé, arquejante e massajando um tornozelo magoado. — Zaknafein! — confuso e frustrado pela hesitação, Drizzt gritava agora para o opositor. — Driz…. — esforçava-se a boca do espírito-espectro por pronunciar. Depois, o monstro da Matrona Malice voltou a investir, de espadas em riste. Drizzt derrotou o ataque e desviou-se mais uma vez. Conseguia sentir a presença do pai; sabia que o verdadeiro Zaknafein estava ali, mesmo abaixo da superfície daquela criatura, mas como poderia libertar esse espírito? Era evidente que não poderia continuar este combate por muito mais tempo. — És mesmo tu — murmurou Drizzt. — Ninguém mais poderia lutar desta maneira. Zaknafein est aí, e Zaknafein não me matará. Outro pensamento ocorreu então a Drizzt, uma ideia em que tinha de acreditar. Mais uma vez, a verdade das suas convicções seria posta à prova. Embainhou as cimitarras.

O espírito-espectro riu-se; as suas espadas dançavam no ar e golpeavam com ferocidade, mas Zaknafein não avançou. — Mata-o! — guinchava Malice rejubilante, pensando que o seu momento de vitória estava a u passo. As imagens do combate, porém, desvaneceram-se de súbito e ficou apenas na escuridão. Devolvera demasiado a Zaknafein quando Drizzt acelerara o ritmo do combate. Fora forçada permitir que uma maior dose de consciência de Zaknafein regressasse à sua animação, precisando de todas as capacidades de combate de Zaknafein para derrotar o filho guerreiro. Agora, Malice estava reduzida à escuridão, e com o peso da queda iminente a pairar-lhe sobre cabeça. Olhou para a filha, demasiado curiosa, e depois regressou ao seu transe, debatendo-se por recuperar o controlo. — Drizzt… — disse Zaknafein. E a palavra soube mesmo muito bem àquele corpo animado. As espadas de Zak caíram na bainhas, embora as suas mãos tivessem de se debater contra as exigências da Matrona Malice a cad segundo. Drizzt foi direito a ele, nada mais desejando do que abraçar o pai e melhor amigo, mas Zaknafei estendeu uma mão para o manter à distância. — Não — explicou o espírito-espectro. — Não sei por quanto tempo poderei resistir. O corpo é dela, receio bem… Drizzt não compreendeu, inicialmente. — Mas então tu estás… — Estou morto — declarou Zaknafein com simplicidade. — E em paz, fica descansado. Malic reanimou o meu corpo para os seus malévolos propósitos. — Mas tu derrotaste-a — disse Drizzt, atrevendo-se a ter esperanças. — Estamos de novo juntos. — É uma presença temporária, e nada mais — como que para sublinhar a ideia, a mão de Zaknafein dirigiu-se involuntariamente para o punho da espada. Fez uma careta e rosnou, e teimosamente resistiu, largando lentamente o punho da arma. — Ela está a regressar, meu filho. Ela está sempre a regressar! — Não posso perder-te outra vez! — disse Drizzt. — Quando te vi na caverna dos illithid… — Quem viste não era eu — tentou explicar Zaknafein. — Era o zombi da malévola vontade d Malice. Eu já desapareci, meu filho. Desapareci há muitos anos. — Estás aqui — argumentou Drizzt. — Por vontade de Malice, não pela minha. Zaknafein rugiu e o rosto contorcia-se-lhe enquanto lutava para afastar Malice por apenas mais u momento. Recuperando o controlo, estudou o guerreiro que o filho se tornara. — Lutas bem — notou. — Melhor do que alguma vez imaginei. Isso é bom, e é bom que tenha tido a coragem de fugir — o rosto de Zaknafein contorceu-se de novo subitamente, interrompendo-lhe as palavras. Desta vez, ambas as mãos agarraram nas armas, e desta vez ambas as espadas fora desembainhadas.

— Não! — implorou Drizzt enquanto uma névoa lhe toldava os olhos cor de alfazema. — Resiste lhe! — Já… Não consigo! — respondeu o espírito-espectro. — Foge daqui, meu filho. Foge até a fim… do mundo! Malice nunca perdoará. Nunca… parará! O espírito-espectro saltou para a frente e Drizzt não teve outra opção senão sacar das armas. Ma Zaknafein sacudiu-se subitamente antes de chegar perto de Drizzt. — Por nós! — gritou Zaknafein com clareza, num grito que soou como um clarim de vitória n câmara iluminada a verde e ecoou ao longo de quilómetros até ao coração da Matrona Malice, como o rufar de tambores a anunciar a queda final. Zaknafein conseguira o controlo de novo, apenas por u instante — mas o suficiente para lançar o corpo do espírito-espectro para fora da ponte.

A Matrona Malice nem sequer conseguia gritar a sua recusa de acreditar. Mil explosões abatiam-se contra o seu cérebro enquanto Zaknafein mergulhava no lago de ácido, mil percepções de um desastre iminente e inevitável. Saltou do trono de pedra, com as mãos magras contorcendo-se e agitando-se no ar como se estivessem à procura de algo palpável para agarrar, algo que não estava ali. A respiração ofegante era-lhe difícil e saíam-lhe da boca uivos sem sentido. Após um momento em que não se conseguia acalmar, Malice ouviu um som mais claro do que o turbilhão das suas convulsões. Atrás dela ouviu-se o ligeiro sibilar das cabeças de serpentes do chicote de uma alta sacerdotisa. Malice virou-se e ali estava Briza, com uma expressão sinistra e determinada, com o chicote de seis cabeças de serpentes a agitar-se no ar. — Pensava que o meu momento de ascensão ao trono só seria daqui a muitos anos — disse a filha mais velha calmamente. — Mas tu és fraca, Malice. Demasiado fraca para manter a Casa Do’Urde de pé durante as provações que se seguirão ao nosso, ao teu, falhanço. Malice quis rir na cara da insensatez da filha; os chicotes de cabeças de serpentes eram ofertas pessoais da Rainha Aranha e não podiam ser usados contra as matronas-mães. Por qualquer razão, no entanto, Malice não conseguiu reunir a coragem ou a convicção para contrariar a filha, nesse momento. Ficou a olhar, pasmada, enquanto o braço de Briza se afastava lentamente para trás e depois disparava para a frente. As seis cabeças de serpentes saltaram na direcção de Malice. Era impossível! Ia contra todos o mandamentos da doutrina de Lolth! As cabeças com dentes aguçados avançaram sedentas e mergulharam na carne de Malice com toda a fúria da Rainha Aranha a guiá-las. Uma dor indescritível atravessou o corpo de Malice, fazendo-a saltar e contorcer-se e deixando um rasto de gélida dormência. Malice cambaleou, à beira da inconsciência, tentando manter-se firme contra a filha, tentando mostrar a Briza a futilidade e a estupidez de prosseguir aquele ataque. O chicote de serpentes estalou de novo e o chão pareceu subir para engolir Malice. Ainda ouvi Briza a murmurar qualquer coisa, uma maldição qualquer ou um cântico à Rainha Aranha. Depois veio o terceiro estalar do chicote, e Malice já não se apercebeu de mais nada. Estav morta antes de receber o quarto golpe, mas Briza prosseguiu os ataques por vários minutos, dando largas à sua fúria, para garantir à Rainha Aranha que a Casa Do’Urden tinha renegad verdadeiramente a matrona-mãe derrotada. Quando Dinin, inesperadamente e sem se fazer anunciar, entrou na sala, Briza estav confortavelmente sentada no trono de pedra. O Rapaz Mais Velho olhou para o corpo desfeito d mãe, e depois de novo para Briza, abanando a cabeça, incrédulo, e com um sorriso bem largo, cúmplice, na boca. — Que fizeste tu, mana… Hum, Matrona Briza? — perguntou, corrigindo o deslize antes que

irmã pudesse reagir. — O zin-carla falhou — rugiu Briza enquanto o olhava com intensidade. — Lolth já não aceitari mais Malice. O riso de Dinin, que parecia ter o sarcasmo por raiz, atingiu Briza até à medula. Os olhos del cerraram-se mais e deixou que Dinin visse bem a mão a dirigir-se para o chicote. — Escolheste o momento perfeito para subir ao trono — explicou o Rapaz Mais Velho calmamente, e aparentemente nada preocupado com a hipótese de Briza o punir. — Estamos sob ataque. — Fey-Branche? — gritou Briza, saltando excitadamente da cadeira. Ainda não estava há cinco minutos no trono como matrona-mãe e já enfrentava o primeiro teste. Daria provas à Rainha Aranha e redimiria a Casa Do’Urden dos muitos danos que os falhanços d Matrona Malice tinham provocado. — Não, irmã — disse Dinin rapidamente, sem disfarces. — Não é da Casa Fey-Branche. A resposta do irmão levou Briza a voltar a sentar-se no trono e transformou-lhe o sorriso de excitação numa careta de puro medo. — É Baenre. E Dinin também já não sorria. Vierna e Maya olharam para fora das varandas da Casa Do’Urden, para as forças que s aproximavam frente aos portões de adamantite. As irmãs não sabiam quem era o inimigo, ao contrário de Dinin, mas perceberam, pelo número das forças, que havia uma grande casa implicada. Mesmo assim, a Casa Do’Urden tinha duzentos e cinquenta soldados, muitos deles treinados pel próprio Zaknafein. Com mais duzentos soldados bem treinados emprestados pela Matrona Baenre Maya e Vierna calcularam que as suas hipóteses não seriam assim tão más. Rapidamente delineara as estratégias de defesa, e Maya lançou uma perna por cima da varanda, tencionando descer para o pátio e transmitir os planos aos seus capitães. Claro que, quando Maya e Vierna perceberam subitamente que tinham já duzentos inimigos dentro dos seus portões — inimigos que tinham aceitado como empréstimo da Matrona Baenre — esse planos já pouco significavam. Maya prosseguiu para fora da varanda, mesmo assim, mas nesse momento os primeiros soldados Baenre já tinham chegado lá acima. Vierna puxou do seu chicote e gritou a Maya que fizesse o mesmo. Mas Maya não se mexia, e Vierna, olhando melhor, reparou em vários pequenos dardos espetados no corpo da irmã. O próprio chicote de cabeças de serpente de Maya virou-se então contra ela, com as presas recortar-lhe a face delicada. Vierna compreendeu de imediato que a queda da Casa Do’Urden tinh sido decretada pela própria Lolth. — Zin-carla… — murmurou Vierna, percebendo a fonte daquele desastre. O sangue toldou-lhe a visão e uma vaga de torpor subjugou-a, enquanto a escuridão a rodeava. — Isto não pode ser! — gritava Briza. — A Casa Baenre ataca-nos? Lolth não me deu… — Tivemos a nossa oportunidade! — gritou-lhe Dinin. — Zaknafein era a nossa oportunidade

olhou para o corpo da mãe —, e o espectro falhou, presumo. Briza rosnou e fez estalar o chicote. Mas Dinin já esperava o ataque — conhecia Briza demasiad bem — e saltou para longe do alcance da arma. Briza deu um passo em frente. — A tua ira precisa de mais inimigos ainda? — perguntou Dinin, de espadas nas mãos. — Vai lá fora, à varanda, querida irmã, onde encontrarás mil à tua espera! Briza soltou um grito de frustração, mas virou costas a Dinin e saiu a correr da sala, na esperanç de conseguir salvar alguma coisa daquela terrível situação. Dinin não a seguiu. Agachou-se junto da Matrona Malice e olhou uma última vez para os olhos d tirana que governara toda a sua vida. Malice fora uma figura poderosa, confiante e malévola; mas como se tinha revelado frágil o seu governo, arruinado pelas façanhas de um filho renegado! Dinin ouviu agitação no corredor, e depois a porta da antecâmara abriu-se de novo. O Rapaz Mai Velho não precisou de olhar para saber que o inimigo estava na sala. Continuou a olhar fixamente para a mãe morta, sabendo que em breve partilharia esse destino. No entanto, o golpe esperado não chegou, e alguns momentos agonizantes mais tarde Dini atreveu-se a olhar por cima do ombro. Jarlaxle estava confortavelmente sentado no trono de pedra. — Não estás surpreendido? — perguntou o mercenário, notando que a expressão de Dinin não se alterara. — Os Bregan D’aerthe estavam entre as tropas Baenre; talvez fossem até mesmo todas as tropa Baenre — disse Dinin descontraidamente. Espreitou discretamente os cerca de dez soldados qu tinham seguido Jarlaxle até ali. Se ao menos conseguisse chegar perto do chefe dos mercenários antes que eles o matassem! Ver o traiçoeiro Jarlaxle morto talvez lhe trouxesse alguma satisfação, no meio de todo aquele desastre. — Muito observador — disse-lhe Jarlaxle. — Mantenho as minhas suspeitas de que soubeste tempo todo que a tua Casa estava condenada. — Se o zin-carla falhasse — respondeu Dinin. — E sabias que falharia? — perguntou o mercenário, quase retoricamente. Dinin acenou afirmativamente. — Há dez anos — começou a dizer, interrogando-se porque estava a contar tudo isso a Jarlaxle —, vi Zaknafein ser sacrificado à Rainha Aranha. Raramente alguém em Menzoberranzan vi tamanho desperdício. — O mestre de armas da Casa Do’Urden tinha uma grande reputação — concordou o mercenário. — E bem merecida, sem dúvida — respondeu Dinin. — Depois Drizzt, o meu irmão… — Outrovoltou guerreiro poderoso.com um gesto da cabeça. E Dinin a concordar — Drizzt desertou-nos, com a guerra às nossas portas. O erro de cálculo da Matrona Malice nã podia ser ignorado. Soube nesse momento que a Casa Do’Urden estava condenada. — A tua Casa derrotou a Casa Hun’ett, o que não é coisa de somenos — argumentou Jarlaxle. — Apenas com a ajuda dos Bregan D’aerthe — corrigiu-o Dinin. — Ao longo de toda a minh vida, vi a Casa Do’Urden, sob a orientação firme da Matrona Malice, a subir na hierarquia d

cidade. Todos os anos, o nosso poder e influência foram crescendo. Mas na última década, vi a espiral da queda. Vi as fundações da Casa Do’Urden minadas. A estrutura teria de acompanhar ess queda. — És tão sensato quanto hábil com a espada — notou o mercenário. — Já antes disse isto acerc de Dinin Do’Urden, e parece que volto a mostrar estar correcto. — Se isso te agradou, peço-te apenas um favor — disse Dinin, pondo-se de pé. — Concede-mo s te aprouver. — Matar-te rapidamente e sem dor? — perguntou Jarlaxle com um grande sorriso. Dinin meneou a cabeça em concordância pela terceira vez. — Não — disse simplesmente Jarlaxle. Sem compreender, Dinin sacou da espada, pronto para lutar. — Não te vou matar — explicou Jarlaxle. Dinin manteve a espada em riste e estudou o rosto do mercenário, procurando alguma pista que revelasse as intenções dele. — Sou um nobre da Casa — disse então. — Uma testemunha do ataque. A eliminação de uma Casa nunca está completa se houver nobres sobreviventes. — Testemunha? — riu-se Jarlaxle. — Contra a Casa Baenre? Que ganharias com isso? A espada de Dinin desceu. — Então, qual é o meu destino? Serei acolhido pela Matrona Baenre? — o tom de Dinin mostrav que essa perspectiva não o entusiasmava. — A Matrona Baenre tem pouca necessidade de machos — respondeu Jarlaxle. — Se alguma da tuas irmãs sobreviver, e parece-me que uma delas, chamada Vierna, sobreviveu, poderão vir a encontrar lugar na capela da Casa Baenre. Mas a velha e ressequida Matrona Baenre nunc reconheceria qualquer valor num macho como Dinin Do’Urden, receio bem. — Então? — perguntou Dinin. — Eu sei o que vales — declarou Jarlaxle com simplicidade. Seguiu o olhar de Dinin pelo sorrisos de concordância das tropas. — Bregan D’aerthe? — espantou-se Dinin. — Eu, um nobre, tornar-me um renegado? Mais depressa do que o olhar de Dinin poderia seguir, Jarlaxle lançou um punhal para o corpo caído aos seus pés. A lâmina enterrou-se até ao punho nas costas de Malice. — Um renegado ou um cadáver — explicou Jarlaxle descontraidamente. Não era uma escolha muito difícil. Uns dias mais tarde, Jarlaxle e Dinin olharam para o arruinado portão de admantite da Cas Do’Urden. Em tempos erguera-se orgulhoso e forte, com as imagens intricadas de aranhas e os doi formidáveis pilares de estalagmites que serviam como torres de vigia. — Como tudo mudou tão depressa — notou Dinin. — Vejo toda a minha anterior existência diante dos meus olhos e, no entanto, tudo já desapareceu. — Esquece o que houve antes — sugeriu Jarlaxle. A piscadela de olho do mercenário disse a Dinin que Jarlaxle tinha alguma coisa em mente. — A não ser aquilo que te possa ajudar no futuro.

Dinin fez uma breve inspecção visual de si mesmo e depois das ruínas. — O meu equipamento de combate? — perguntou, em busca do que Jarlaxle tinha em mente. — meu treino? — O teu irmão. — Drizzt? — Mais uma vez aquele nome maldito voltava a trazer angústia a Dinin! — Parece que ainda há o assunto de Drizzt Do’Urden a ser tratado — explicou Jarlaxle. — É um presa de valor aos olhos da Rainha Aranha. — Drizzt? — perguntou Dinin mais uma vez, mal conseguindo acreditar nas palavras do mercenário. — Ficas assim tão surpreendido? — perguntou Jarlaxle. — O teu irmão ainda está vivo, pois cas contrário a Matrona Malice não teria sido derrotada. — Mas que Casa poderia ter interesse nele? — perguntou Dinin sem rodeios. — É mais um missão da Matrona Baenre? A gargalhada de Jarlaxle troçou dele. — Os Bregan D’aerthe podem bem agir sem a orientação, ou a bolsa, de uma Casa reconhecida respondeu. — Planeias ir em perseguição do meu irmão? — Pode ser a oportunidade perfeita para Dinin mostrar o seu valor perante a minha pequen família — disse Jarlaxle, para ninguém em especial. — Quem melhor para apanhar esse renegado que provocou a queda da Casa Do’Urden? O valor do teu irmão aumentou imenso com o falhanço d zin-carla. — Eu vi o que Drizzt se tornou — disse Dinin. — O custo será elevado. — Os meus recursos são ilimitados — respondeu Jarlaxle com sobranceria. — E nenhum custo demasiado alto, se o lucro for ainda maior. O excêntrico mercenário ficou calado por uns momentos, permitindo a Dinin olhar mais algu tempo para as ruínas da sua Casa, em tempos orgulhosa. — Não — disse Dinin subitamente. Jarlaxle fez-lhe um olhar preocupado. — Não irei atrás d Drizzt — explicou Dinin. — Serves a Jarlaxle, senhor dos Bregan D’aerthe — relembrou-lhe o mercenário calmamente. — Tal como em tempos servi a Malice, matrona da Casa Do’Urden — respondeu Dinin com igua calma. — Não me aventurei atrás de Drizzt uma segunda vez por ordem da minha mãe — e olho directamente para Jarlaxle, sem medo das consequências — e não o farei outra vez por ti. Jarlaxle passou um longo momento a estudar o seu companheiro. Normalmente, o chefe do mercenários não aceitara toleraria Dinin uma talnos insubordinação, masporque Dinin estava a ser àsincero e determinado, dúvida. Jarlaxle Bregan D’aerthe dava valor experiência e destrezased Rapaz Mais Velho Do’Urden; não poderia agora ignorar tão simplesmente a avaliação de Dinin. — Podia entregar-te a uma morte lenta — respondeu Jarlaxle, mais para ver a reacção dele do que para fazer alguma ameaça. Não tinha nenhuma intenção de destruir alguém tão valioso como Dinin. — Não seria pior do que a morte e desgraça que encontraria às mãos de Drizzt — respondeu Dinin calmamente.

Mais um longo momento passou, enquanto Jarlaxle avaliava as implicações das palavras de Dinin Talvez os Bregan D’aerthe devessem reavaliar os seus planos de ir à caça do renegado; talvez o preço a pagar fosse mesmo demasiado alto. — Vem, meu soldado — disse por fim Jarlaxle. — Regressemos à nossa casa, às ruas, onde poderemos saber que novas aventuras o futuro nos reserva.

Belwar correu pelas passagens para chegar perto do amigo. Drizzt não viu a aproximação do companheiro. Estava ajoelhado na passagem estreita, olhando para baixo, para o ponto borbulhante do lago de ácido onde Zaknafein tinha mergulhado. O ácido revolvia-se e fervilhava, e a bainha de uma espada, corroída, apareceu à vista e depois desapareceu sob o manto opaco de névoa verde. — Estava lá, o tempo todo — murmurou Drizzt para Belwar. — O meu pai! — Fizeste uma aposta bem alta, elfo negro — respondeu o guarda-tocas. — Magga cammara Quando embainhaste as cimitarras pensei que ele te ia mesmo abater. — Ele esteve lá o tempo todo — repetiu Drizzt. Olhou para o seu amigo svirfnebli. — Mostraste me isso. Belwar fez uma careta, confuso. — O espírito não pode ser separado do corpo — tentou explicar Drizzt. — Não em vida — olho de novo para o ondular do lago de ácido. — E não na não-morte. Durante os meus anos sozinho n selva do Subescuro, perdi-me de mim próprio, ou assim acreditei. Mas tu mostraste-me a verdade. coração de Drizzt nunca esteve longe do seu corpo, e por isso eu soube que o mesmo seria verdade acerca de Zaknafein. — Mas desta vez havia outras forças implicadas — notou Belwar. — Eu não teria tido tant certeza. — Mas não conheceste Zaknafein — retorquiu Drizzt. Pôs-se de pé, com a humidade que ainda lh rodeava os olhos de alfazema diminuída pelo sorriso sincero que se lhe abria no rosto. — Mas eu conheci-o. É o espírito, e não os músculos, que guia as armas de um guerreiro, e só aquele que foi verdadeiramente Zaknafein poderia mover-se com tanta destreza. O momento de crise deu Zaknafein a força para resistir à vontade da minha mãe. — E tu deste-lhe esse momento de crise — prosseguiu Belwar. — Derrotar a Matrona Malice o matar o próprio filho… — Belwar abanou a cabeça calva e enrugou o nariz. — Magga cammara, és mesmo valente, elfo negro — e piscou o olho para o drow. — Ou então muito estúpido. — Nem uma coisa nem outra — respondeu Drizzt. — Limitei-me a confiar em Zaknafein. Voltou a olhar para o lago de ácido e não disse mais nada. Belwar ficou em silêncio e esperou pacientemente enquanto Drizzt terminava a sua elegia privada. Quando finalmente o drow desviou os olhos do lago de ácido, Belwar fez-lhe sinal para que o seguisse e começou a avançar pela passagem. — Anda — disse o svirfnebli por cima do ombro. — Vem ver a verdade do nosso amigo assassinado. Drizzt considerou o pech uma criatura bela, uma beleza inspirada pelo sorriso pacífico que finalmente encontrara caminho até ao atormentado rosto do amigo. Ele e Belwar disseram alguma palavras, murmuraram algumas esperanças aos deuses que pudessem estar a ouvi-los, e entregaram Clacker ao lago de ácido, considerando esse um destino melhor do que os estômagos dos salteadores necrófagos que corriam pelos corredores do Subescuro.

Drizzt e Belwar partiram de novo, sozinhos, tal como tinham partido da cidade svirfnebli, e chegaram a Blingdenstone poucos dias depois. Os guardas junto aos portões gigantescos da cidade, embora obviamente muito contentes por vêlos, pareciam confundidos com este regresso. Permitiram aos dois amigos a entrada na cidade sob promessa do guarda-tocas de que iria imediatamente informar o Rei da sua chegada. — Desta vez, ele deixar-te-á ficar, elfo negro — disse Belwar a Drizzt. — Venceste o monstro. Deixou Drizzt em sua casa, esperando poder regressar em breve com as boas notícias. Drizzt não tinha tanta certeza disso. O aviso final de Zaknafein de que a Matrona Malice nunc desistiria da sua caça continuava muito claro na sua mente, e não poderia negar-lhe a verdade. Muito tinha acontecido durante as semanas em que ele e Belwar tinham estado ausentes de Blingdenstone, mas nada disso, tanto quanto Drizzt soubesse, fizera diminuir a ameaça muito real à cidade svirfnebli. Drizzt apenas concordara em seguir Belwar de regresso a Blingdenstone porque esse parecia u primeiro passo adequado para o plano que já tinha decidido seguir. — Quanto tempo ainda teremos de lutar, Matrona Malice? — perguntou Drizzt para a pedra lisa depois de o guarda-tocas ter partido. Precisava de ouvir os seus pensamentos em voz alta, para se convencer para além de qualquer dúvida de que a decisão que tomara era a mais sensata. — Nenhu de nós tem nada a ganhar com este conflito, mas são assim os costumes dos drow, não é? Drizzt deixou-se cair sobre um dos bancos junto à pequena mesa e considerou a verdade das suas palavras. — Hás-de perseguir-me, até à minha ruína ou até à tua, cegada pelo ódio que regula a tua vida. Não pode haver perdão em Menzoberranzan. Isso iria contra os éditos da tua malévola Rainh Aranha. E isto é o Subescuro, o teu mundo de sombras e de névoas, mas não é o mundo todo, Matrona Malice, e hei-de ver até quão longe os teus braços conseguem chegar! Drizzt ficou sentado, em silêncio, por muitos minutos, recordando as suas primeiras lições na Academia drow. Tentou encontrar alguma pista que o levasse a acreditar que as histórias do mundo da superfície não seriam mais do que mentiras. Mas as mentiras dos mestres da Academia drow tinham sido aperfeiçoadas ao longo de séculos e eram infalivelmente sólidas. Drizzt depressa concluiu que teria de confiar apenas nos seus sentimentos. Quando Belwar regressou, com uma expressão sombria, algumas horas mais tarde, a resolução de Drizzt estava firme. — Teimoso, cabeça de orc… — resmungava o guarda-tocas entredentes enquanto entrava. Drizzt fê-lo parar com uma gargalhada sincera. — Não querem ouvir falar em ficares cá! — gritou-lhe Belwar, tentando apagar-lhe o sorriso. E esperavas mesmo Julgas que fosse outra maneira? — perguntou-lhe — Aderrotada? minha luta ainda não—acabou, caro Belwar. quedea minha família pode ser assim tão Drizzt. facilmente — Voltaremos a sair — rosnou Belwar, aproximando-se para se sentar no outro banco diante de Drizzt. — O meu generoso rei … — as palavras saíram-lhe carregadas de sarcasmo — concordo que poderias ficar na cidade por uma semana. Uma única semana! — Quando eu partir, partirei sozinho — interrompeu-o Drizzt. Tirou a estatueta de ónix do bolso e reconsiderou as palavras. — Quase sozinho…

— Já tivemos esta discussão antes, elfo negro — lembrou-lhe o svirfnebli. — Isso foi diferente. — Foi? — retorquiu o guarda-tocas. — Sobreviverás melhor sozinho no Subescuro agora do qu sobreviveste antes? Já esqueceste o fardo da solidão? — Não ficarei no Subescuro — respondeu Drizzt. — Pretendes voltar para a tua terra? — gritou Belwar, pondo-se de pé num salto e fazendo o banco cair e rolar pelo chão de pedra. — Não, nunca — riu-se Drizzt. — Nunca regressarei a Menzoberranzan, a não ser que seja sob a grilhetas da Matrona Malice. O guarda-tocas endireitou o banco e voltou a sentar-se, curioso. — E também não permanecerei no Subescuro — explicou Drizzt. — Este é o mundo de Malice mais adequado ao coração negro de um verdadeiro drow. Belwar começava a compreender, mas não queria acreditar no que estava a ouvir. — Que estás a dizer? — perguntou. — Onde pretendes ir? — Para a superfície — respondeu Drizzt calmamente. Belwar pôs-se de pé num salto, novament mandando o banco a rebolar pelo chão de pedra, desta vez ainda para mais longe. — Estive lá uma vez — prosseguiu Drizzt, sem se perturbar com a reacção do amigo. Acalmou o svirfnebli com u olhar determinado. — Tomei parte num massacre drow. Só os actos dos meus companheiros drow me trazem memórias dolorosas dessa viagem. Os aromas do mundo mais vasto e a sensação fria do vento não causam temor algum no meu coração. — A superfície… — murmurou Belwar, de cabeça baixa e com a voz quase transformada num sopro. — Magga cammara… Nunca pensei viajar até lá… Não é local para um svirfnebli — bate na mesa subitamente e depois levantou os olhos, com um sorriso determinado no rosto. — Mas se é para lá que vai Drizzt, então Belwar irá ao seu lado! — Drizzt irá só — respondeu o drow. — Como acabaste de dizer, a superfície não é lugar para um svirfnebli. — Nem para um drow — retorquiu o gnomo das profundezas. — Mas eu não me encaixo na visão habitual dos drow — retorquiu Drizzt. — O meu coração nã é como o deles, e o lar deles não é o meu lar. Até quão longe terei de caminhar por túneis intermináveis, até me ver livre do ódio da minha família? E se, ao fugir de Menzoberranzan, po acaso for dar a outra das grandes cidades de elfos negros, a Ched Nasad ou outro lugar semelhante? Também irão esses elfos negros assumir a perseguição para aplacar os desejos da Rainha Aranha de que eu seja morto? Não, Belwar. Não encontrarei a paz sob os tectos fechados do Subescuro. Já tu receio queentre nunca serias feliz afastado das pedras do Subescuro. O teu lugar é aqui, um lugar de honr merecida o teu povo. Belwar ficou sentado em silêncio por muito tempo, digerindo tudo o que Drizzt tinha dito. Seguiri o amigo, se este assim desejasse, mas não queria verdadeiramente deixar o Subescuro. Não conseguia também encontrar argumentos contra a decisão de Drizzt de partir. Um elfo negro encontraria decerto muitas provações na superfície, Belwar sabia disso, mas seriam essas provações mais pesadas do que os sofrimentos que Drizzt experimentaria sempre no Subescuro?

Belwar remexeu um bolso fundo e retirou de lá a jóia luminosa. — Fica com isto, elfo negro — disse suavemente, entregando a jóia a Drizzt. — E nunca t esqueças de mim. — Nunca, nem por um dia, em todos os séculos do meu futuro — prometeu Drizzt. — Nem por u momento. A semana passou demasiado depressa para Belwar, relutante em ver o amigo partir. O guardatocas sabia que nunca mais voltaria a ver Drizzt, mas sabia também que a decisão do amigo era a mais correcta. Como amigo, Belwar tratou de se assegurar de que Drizzt tivesse as melhore hipóteses de ser bem-sucedido. Levou o drow aos melhores fornecedores de equipamento de Blingdenstone e pagou as provisões do seu próprio bolso. Depois, procurou um presente ainda maior para Drizzt. Os gnomos das profundezas viajava ocasionalmente até à superfície, e o Rei Schnicktick possuía vários exemplares de mapas que mostravam os caminhos para fora dos túneis do Subescuro. — A viagem levar-te-á muitas semanas — disse Belwar a Drizzt quando lhe entregou o rolo de pergaminho. — Mas creio que sem isto nunca sairias de cá. As mãos de Drizzt tremiam-lhe enquanto desenrolava o pergaminho. Era verdade, atrevia-se agor a acreditar. Ia mesmo para a superfície. Queria dizer a Belwar, nesse momento, para ir com ele; como poderia dizer adeus a um amigo tão precioso? Mas os princípios tinham levado Drizzt até ali nas suas viagens, e os princípios exigiam que não fosse egoísta agora. Saiu de Blingdenstone no dia seguinte, prometendo a Belwar que, se alguma vez voltasse a passa por ali, regressaria para o visitar. Mas ambos sabiam que nunca regressaria. Os dias e os quilómetros passaram sem acontecimentos dignos de nota. Por vezes, Drizzt pegava n óia luminosa que Belwar lhe oferecera; outras vezes caminhava na escuridão silenciosa. Po coincidência ou por destino, não encontrou monstros ao longo do percurso marcado no mapa. Poucas coisas tinham mudado no Subescuro, e embora o pergaminho fosse antigo, o trilho era fácil de seguir. Pouco depois de levantar o acampamento no seu trigésimo terceiro dia fora de Blingdenstone, Drizzt sentiu o ar ficar mais leve, uma sensação daquele frio e amplo vento de que se recordava tão vivamente. Retirou a estatueta de ónix da bolsa e convocou Guenhwyvar para junto de si. Juntos, caminhara ansiosamente, esperando que o tecto desaparecesse ao virar de uma qualquer esquina. Chegaram a uma pequena caverna, e a escuridão para lá da arcada distante não era tão negra como a escuridão atrás deles. Drizzt susteve a respiração e Guenhwyvar seguiu-o lá para fora. As estrelas cintilavam por entre as nuvens dispersas do céu nocturno, com a luz prateada da Lua surgir numa aura por detrás de uma nuvem maior, enquanto o vento entoava uma canção de montanha. Drizzt estava agora lá em cima, nos Reinos, empoleirado na encosta de uma montanha, no meio de uma enorme cadeia montanhosa. Não se importou nada com a brisa fria, mas ficou muito quieto durante um longo momento, observando as nuvens que passavam por cima dele no seu caminho aéreo até à Lua.

Guenhwyvar ficou ao seu lado, sem o julgar, como Drizzt sabia que a pantera sempre faria. FIM DO SEGUNDO VOLUME

A LENDA DE DRIZZT

A TRILOGIA DO ELFO NEGRO:

Pátria Exílio Refúgio A TRILOGIA DAS PLANÍCIES GELADAS:

Fragmento de Cristal Rios de Prata A Jóia Encantada

Leia nas próximas páginas um excerto do 3º Volume da Trilogia de R. A. Salvatore REFÚGIO

Uma das maiores lendas da fantasia: Drizzt, o Elfo Negro. Depois de escapar da sociedade cruel e vingativa de Menzoberranzan, a sua cidade natal escondid nas profundezas da terra, Drizzt inicia uma nova aventura num mundo inteiramente diferente. Dest vez na superfície, sob a luz revigorante de um sol que o fascina e rodeado por florestas frondosas e mil e um segredos para descobrir. Mas esse novo mundo também pode ser hostil e, pior, os elfos negros não desistiram de o caçar. Poderá Drizzt encontrar refúgio longe das trevas que rodeiam a sua raça e integrar-se num mundo que o olha com desconfiança e temor? Não perca a dramática conclusão da trilogia do Elfo Negro. Venha descobrir Drizzt, o elfo negro, uma das personagens mais lendárias da fantasia. E acompanhe-o na épica e intrépida jornada para longe de um mundo onde não tem lugar… em busca de outro, na superfície, onde talvez nunca o aceitem. Mais informações em WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM

PRELÚDIO

O elfo negro estava sentado na encosta da montanha desolada, observando ansiosamente enquanto a linha vermelha subia sobre o horizonte oriental. Esta seria, talvez, a sua centésima alvorada, e sabia bem o ardor que a luz crescente iria provocar-lhe nos olhos cor de alfazema — olhos que sempre tinham conhecido apenas a escuridão do Subescuro, durante mais de quatro décadas. O drow não virou costas, porém, quando o aro superior do Sol flamejante cresceu sobre o horizonte. Aceitou a luz como o seu purgatório, como uma dor necessária se queria seguir o caminho que escolhera para se tornar uma criatura do mundo da superfície. Fumo cinzento ondulou diante da cara de pele escura do drow. Sabia o que isso significava, mesmo sem olhar para baixo. O seupiwafwi, a capa mágica de drow que tantas vezes, no Subescuro, o tinha protegido de olhares inimigos, sucumbira finalmente à luz do dia. A magia da capa começara a desvanecer-se semanas antes, e o próprio tecido estava simplesmente a desfazer-se. Grandes buracos tinham aparecido no lugar de pedaços da veste que se tinham dissolvido, e o drow encolhia os braços o mais que podia para tentar resgatar o que restava. Mas sabia que isso não faria nenhuma diferença; a capa estava condenada a desfazer-se neste mundo tão diferente daquele onde tinha sido criada. O drow agarrava-se-lhe desesperadamente, vendo-a de certa forma como uma analogia da sua própria sorte. O Sol subiu mais alto e as lágrimas começaram a correr dos olhos semicerrados do drow. Já não conseguia ver o fumo; não conseguia ver nada, a não ser o brilho ofuscante daquela terrível bola de fogo. Mesmo assim, manteve-se sentado e a observar a alvorada. Para sobreviver, tinha de se adaptar. Empurrou dedo grande do pé contra uma saliência de rocha e concentrou atenção longeodos olhos. Pensou no dolorosamente que as suas botas finamente trabalhadas se tinham tornado, ea sabia que também elas em breve se dissolveriam. E a seguir? As cimitarras, talvez? Desapareceriam também aquelas armas drow magnificas que o tinham apoiado em tantas batalhas? Inconscientemente, o drow meteu uma mão na bolsa, à procura da maravilhosa estatueta, tão perfeita em todos os pormenores, que usava para convocar o felino. A solidez da estatueta tranquilizou-o nesse momento de dúvida; mas, se também ela tinha sido criada por elfos negros, imbuída da magia tão particular dos seus domínios, poderia igualmente perder Guenhwyvar em breve? — Que criatura desgraçada me tornei — lamentou-se o drow na sua língua nativa. Interrogou-se, não pela primeira vez, e decerto não pela última, acerca da sabedoria da sua decisão de deixar o Subescuro, de renegar o mundo da sua própria gente. A cabeça latejava-lhe; o suor escorria-lhe para os olhos, aumentando o ardor. O Sol continuava a subir e o drow não conseguia já suportá-lo. Levantou-se e dirigiu-se para a pequena caverna que escolhera como lar; e, mais uma vez, levou uma mão distraída à estatueta da pantera. O piwafwi caía-lhe dos ombros em farrapos, servindo de fraca protecção contra os ventos gélidos da montanha. Não havia ventos no Subescuro, a não ser as ligeiras correntes de ar que se erguiam dos lagos de magma, e não havia frio, a não ser no toque gélido de algum monstro não-vivo. Este mundo

da superfície, que o drow conhecia havia alguns meses, mostrava muitas diferenças, muitas variáveis — e muitas vezes acreditava que seriam demasiadas. Drizzt Do’Urden não se renderia. O Subescuro era o mundo dos seus, da sua família, e ness escuridão nunca encontraria descanso. Seguindo as exigências dos seus princípios, atacara Lolth, Rainha Aranha, a divindade malévola que o seu povo reverenciava acima da própria vida. Os elfo negros, a família de Drizzt, não perdoariam as suas blasfémias, e o Subescuro não tinha buraco suficientemente fundos para fugir ao seu longo alcance. Mesmo que Drizzt acreditasse que o Sol o dissolveria a ele também, tal como estava a dissolver lhe as botas e o precioso piwafwi, mesmo que se tornasse algo quase insubstancial, como o fumo cinzento arrastado pela brisa gelada da montanha, manteria os princípios e a dignidade, esses elementos que tinham tornado a sua vida digna de ser vivida. Drizzt retirou o que restava da capa e atirou-a para um abismo profundo. O vento frio era cortante contra a sua testa perlada de gotas de suor, mas o drow caminhou a direito e orgulhoso, com o queixo erguido e os olhos de alfazema bem abertos. Este era o destino que escolhera. Ao longo da encosta de outra montanha, não muito longe dali, outra criatura observava o nascer do Sol. Também Ulgulu deixara o seu local de srcem, os sujos e fumarentos labirintos que marcavam o plano de Gehenna; mas este monstro não viera de sua livre vontade. Era o destino de Ulgulu, a su pena, crescer neste mundo até ter conquistado força suficiente para regressar a casa. A especialidade de Ulgulu era o assassinato, alimentando-se da força vital dos mortais indefesos que o rodeavam. Estava agora prestes a atingir a maturidade: era enorme, e forte e terrível. Cada matança deixava-o mais forte.

Queimava-me os olhos e fazia doer cada parte do meu corpo. Destruiu o meu piwafwi e as minhas botas, roubou a magia da minha armadura e enfraqueceu as minhas leais cimitarras. Mesmo assim, todos os dias, sem falhar, lá estava eu, sentado no meu sítio, no meu banco dos réus, à espera da chegada da alvorada. Chegava até mim todos os dias de formas paradoxais. O ardor não podia ser negado, mas também não podia desmentir a beleza do espectáculo. As cores logo antes do nascer do Sol arrebatavam a minha alma de uma forma que nenhum padrão de emanações de calor do Subescuro alguma vez poderia fazer. Inicialmente pensei que o meu fascínio se devesse à estranheza da cena, mas mesmo agora, tantos anos passados, sinto o coração bater com força perante o subtil clarear que anuncia a alvorada. Sei agora que o meu tempo debaixo do Sol — a minha penitência diária — era mais do que um mero desejo de me adaptar aos usos do mundo da superfície. O sol tornou-se o símbolo da diferença entre o Subescuro e a minha nova casa. A sociedade de que eu tinha fugido, esse mundo de acordos secretos e conspirações traiçoeiras, não poderia existir nos espaços abertos sob a luz do dia. Este sol, apesar de toda a angústia que me trazia fisicamente, acabou por representar a minha renúncia a esse outro mundo mais negro. Esses raios de luz reveladora reforçaram os meus princípios tão seguramente como enfraqueceram os artigos mágicos criados pelos drow. À luz do Sol, o piwafwi , a capa defensiva que derrotava olhares penetrantes, a veste preferida de assassinos e ladrões, tornou-se apenas um pedaço esfarrapado de tecido sem valor. — Drizzt Do’Urden

Drizzt rastejou para lá dos arbustos protectores e da pedra lisa que davam para a caverna que agora lhe servia de lar. Sabia que alguma coisa tinha passado por ali recentemente — muito recentemente. Não havia rastos visíveis, mas o odor era intenso. Guenhwyvar andava em círculos por sobre as rochas acima da entrada da caverna. A visão da pantera dava ao drow uma certa medida de tranquilidade. Drizzt habituara-se a confiar implicitamente na pantera e sabia que o felino expulsaria quaisquer inimigos que estivessem escondidos a tentar uma emboscada. Desapareceu na entrada escura e sorriu ao ouvir Guenhwyva descer dele, vigilante. Parouatrás atrás de uma rocha logo à entrada, deixando que os olhos se ajustassem à escuridão. O So ainda brilhava, embora já começasse a descer rapidamente no céu a ocidente, mas a caverna estava muito mais escura — suficientemente escura para Drizzt deixar a visão reverter para o espectro infra-vermelho. Assim que esse ajustamento ficou completo, localizou o intruso. O brilho visível de uma fonte de calor, de uma criatura viva, emanava por detrás de uma rocha mais ao fundo na caverna. Drizzt descontraiu-se consideravelmente. Guenhwyvar estava agora apenas a alguns passos dele e, considerando o tamanho da rocha, o intruso não podia ser um animal muito grande. Mesmo assim, Drizzt crescera no Subescuro, onde todas as criaturas vivas, independentemente d tamanho, eram temidas e consideradas perigosas. Fez sinal a Guenhwyvar para ficar em posição unto à saída e avançou acocorado para poder ver melhor o intruso. Nunca vira um animal como aquele. Parecia semelhante a um gato, mas a cabeça era muito menor e muito mais afunilada. No total, não deveria pesar mais de uns dois ou três quilos. Esse facto, a caud peluda e a pelagem espessa indicavam que se tratava mais de um animal oportunista do que de um predador temível. Estava agora a vasculhar um monte de comida, aparentemente inconsciente da presença do drow. — Descontrai-te Guenhwyvar — disse Drizzt calmamente, voltando a embainhar as cimitarras Deu um passo para diante, aproximando-se do intruso para o ver melhor, embora mantendo uma distância de precaução, para não o assustar, pensando que talvez tivesse encontrado outro companheiro. Se conseguisse ganhar a confiança daquele animal… O pequeno animal virou-se abruptamente ao ouvir as palavras de Drizzt, com as pernas dianteira curtas no ar e encostando-se subitamente contra a parede. — Tem calma — disse Drizzt suavemente, desta vez para o intruso. — Não te farei mal. Deu mais um passo e a criatura bufou e começou a andar às voltas, com as pequenas patas a bater com força no chão. Drizzt quase se riu alto, pensando que a criatura queria empurrar-se contra a parede de pedra até desaparecer nela. Guenhwyvar aproximou-se então, e a sua súbita perturbação fez desaparecer o sorriso do rosto do drow. A cauda do animal ergueu-se; Drizzt notou, na penumbra, que tinha uma risca branca bem definida

ao longo do dorso. Guenhwyvar encolheu-se e virou-se para fugir, mas era tarde demais… Cerca de uma hora mais tarde, Drizzt e Guenhwyvar caminhavam pelos trilhos mais inferiores d montanha, em busca de um novo lar. Tinham recolhido tudo o que fora possível recolher, embora não fosse muito. Guenhwyvar mantinha uma boa distância mais ao lado de Drizzt. A proximidade tornava o fedor ainda pior. Drizzt aguentou tudo com estoicismo, embora o fedor do seu próprio corpo tornasse aquela lição um pouco mais pungente do que teria gostado. Não sabia o nome do pequeno animal, evidentemente, mas tinha fixado vivamente a sua aparência. Da próxima vez que encontrasse uma doninha, seria mais cuidadoso. — Lá se vai a ideia de novos companheiros neste mundo estranho — murmurou Drizzt par consigo. Não era a primeira vez que o drow expressava estas preocupações. Sabia muito pouco acerca da superfície, e menos ainda das criaturas que ali viviam. Os seus últimos meses tinham sido passados dentro e em redor da pequena caverna, com apenas algumas expedições ocasionais até às regiões mais abaixo, e mais populosas. Aí, enquanto procurava comida, vira alguns animais, geralmente à distância, e observara até alguns humanos. Ainda não reunira, porém, a coragem para abandonar o esconderijo e saudar os vizinhos, receando a potencial rejeição e sabendo que não tinha mais nenhum sítio para onde fugir. O som de água a correr levou o drow e a pantera até um riacho de águas rápidas. Drizzt procuro imediatamente uma sombra protectora e começou a despir a armadura e as roupas, enquanto Guenhwyvar descia o riacho para pescar um pouco. O som da pantera a chapinhar na água fez nasce um sorriso no rosto severo do drow. Nessa noite jantariam bem. Abriu a fivela do cinturão e deitou as armas ao lado da cota de malha. De facto, sentia-se vulnerável sem armadura e sem armas — no Subescuro, nunca as deixaria tão longe do seu alcance —, mas tinham passado muitos meses desde que precisara delas pela última vez. Olhou para as cimitarras e foi inundado pelas recordações agridoces da última vez em que as tinha usado. Dessa vez, combatera com Zaknafein, com o seu pai e mentor, e melhor amigo. Apenas Drizz sobrevivera ao encontro. O lendário mestre de armas desaparecera, mas o triunfo nesse combate pertencia tanto a Zaknafein como a Drizzt, pois não fora realmente Zaknafein quem viera e perseguição de Drizzt sobre a ponte de pedra acima do lago de ácido. Fora o espírito-espectro de Zaknafein, sob o controlo da sua mãe, a Matrona Malice. Esta procurara a vingança contra o filh devido à renúncia deste a Lolth e à caótica sociedade drow em geral. Drizzt passara mais de trint anos em Menzoberranzan, mas nunca aceitara os usos malévolos e cruéis que eram a norma na cidade drow. Fora um embaraço constante para a Casa Do’Urden, apesar da sua considerável destreza co as armas. Quando fugira da cidade para viver exilado na selva do Subescuro, colocara a sua mãe e alta-sacerdotisa longe do favor de Lolth. Assim, a Matrona Malice Do’Urden convocara o espírito-espectro de Zaknafein, o mestre d armas que sacrificara a Lolth, e enviara aquela coisa morta-viva em perseguição do filho. Porém, Malice errara nos cálculos, porque permanecera no corpo do espírito-espectro o suficiente da alma de Zaknafein para se negar a atacar Drizzt. No momento em que Zaknafein conseguira resistir a controlo de Malice, soltara um urro de triunfo e mergulhara no lago de ácido.

— Meu pai… — murmurou Drizzt, ganhando forças com essas simples palavras. Fora bem-sucedido onde Zaknafein falhara; renegara os usos malévolos dos drow, os mesmos e que Zaknafein ficara aprisionado durante séculos, agindo como um peão nos jogos de poder da Matrona Malice. Desse falhanço e desse destino final de Zaknafein, o jovem Drizzt retirara forças; da vitória de Zaknafein na caverna do ácido, Drizzt recolhera determinação. Ignorara a teia de mentira que os seus antigos mestres da Academia de Menzoberranzan tinham tecido e viera para a superfície para começar uma nova vida. Drizzt estremeceu quando entrou na água gelada. No Subescuro sempre conhecera temperatura quase constantes e uma escuridão perene. Aqui, porém, o mundo surpreendia-o a cada momento. Já notara que os períodos de luz diurna e de escuridão não eram constantes; o Sol punha-se mais cedo a cada dia que passava e a temperatura — que parecia mudar de hora para hora — descera continuamente durante as últimas semanas. Mesmo durante esses períodos de luz e de escuridão havia inconsistências. Algumas noites eram visitadas por uma orbe que brilhava como prata, e alguns dias mostravam-se cinzentos, em vez de cobertos por uma cúpula de azul brilhante. Apesar de tudo isso, Drizzt sentia-se, na maior parte do tempo, confortável com a sua decisão de vir para este mundo desconhecido. Olhando agora para as suas armas e armadura, caídas na sombra a uns metros de onde se banhava, tinha de admitir que a superfície, apesar de toda a sua estranheza, proporcionava mais paz do que qualquer lugar do Subescuro alguma vez poderia proporcionar. Drizzt estava agora na selva, apesar da sua calma. Passara quatro meses à superfície e continuav sozinho, à excepção da altura em que podia convocar o seu companheiro felino mágico. Agora, quase nu, apenas com as calças esfarrapadas, com os olhos a arder devido ao borrifo da doninha, o sentido do odor perdido e aprisionado dentro da nuvem do seu próprio fedor pungente, com o apurado sentido da audição abafado pelo ruído da água a correr, o drow estava de facto vulnerável. — Que triste figura devo ter — riu-se, correndo os dedos magros pela cabeleira branca e espessa. Quando voltou a olhar para o equipamento, porém, esse pensamento desapareceu rapidamente. Cinco formas possantes examinavam os seus pertences e mostravam claramente não se importar nada com a aparência esfarrapada do elfo negro. Drizzt examinou a pele acinzentada e os focinhos negros daquelas figuras humanóides com rostos de cão e dois metros de altura; mas observou mais especialmente as espadas e lanças que agora apontavam para ele. Conhecia aquele tipo de monstros, pois vira criaturas semelhantes a servir de escravos em Menzoberranzan. Nesta situação, porém, os gnolls pareciam muito diferentes, mai ameaçadores do que Drizzt se lembrava deles. Ponderou brevemente dar uma corrida até às cimitarras, mas pôs de lado essa ideia, sabendo que umagigante lança odetrespassaria que com conseguisse chegar lá perto. maior de por entreumo longo bando momento, de gnolls, um dois metrosantes e meio, cabelo vermelho, olhou O para Drizzt depois olhou para o equipamento, e depois voltou a olhar para ele. — Que estás tu a pensar? — murmurou Drizzt. Sabia realmente muito pouco acerca dos gnolls. N Academia de Menzoberranzan fora-lhe ensinado que os gnolls eram uma raça goblinóide, malévola, imprevisível e muito perigosa. Mas também lhe fora dito o mesmo acerca dos elfos da superfície e dos humanos — e, aliás, agora que pensava nisso, fora-lhe dito o mesmo acerca de quase todas as

raças que não fossem drow. Drizzt quase se riu em voz alta, apesar da situação delicada em que estava. Ironicamente, a raça que mais merecia essa qualificação de maldade e de imprevisibilidade era a dos próprios drow! Os gnolls não se mexeram mais e não deram quaisquer ordens. Drizzt compreendeu a hesitação deles perante a visão de um elfo negro, e soube que tinha de aproveitar esse receio natural da parte deles, se queria ter alguma hipótese. Fazendo apelo às capacidades inatas da sua herança mágica, Drizzt agitou uma mão negra e desenhou chamas púrpura em volta de cada um dos gnolls. Um dos animais caiu imediatamente no chão, como Drizzt esperara, mas os outros estacaram a u sinal da mão estendida do líder, mais experiente. Olhavam em volta, nervosamente, aparentemente indagando-se acerca da sensatez de prosseguir com aquele encontro. O chefe dos gnolls, porém, já vira aqueles fogos feéricos inofensivos, numa luta com umranger drow azarado — e agora morto. E sabia o que aquilo era. Drizzt ficou tenso, na expectativa, e tentou decidir qual o gesto seguinte. O chefe dos gnolls olhou em volta, para os seus companheiros, como se a estudar até que ponto estavam rodeados pelas chamas bruxuleantes. A avaliar pela perfeição do encantamento, aquele drow não era um vulgar campónio — ou pelo menos, era isso que Drizzt esperava que o chefe dos gnolls estivesse a pensar. Descontraiu-se um pouco quando o chefe dos gnolls baixou a ponta da lança para o chão e fez sinal aos outros para fazerem o mesmo. O gnoll resmungou depois uma enxurrada de palavras que ao drow soaram como uma algaraviada. Vendo a óbvia incompreensão de Drizzt, o gnoll disse qualquer coisa na língua gutural dos duendes. Drizzt compreendia essa linguagem, mas o dialecto do gnoll era tão estranho que apenas conseguiu decifrar algumas palavras, entre as quais «amigo» e «chefe». Cautelosamente, Drizzt deu um passo em direcção à margem do riacho. Os gnolls recuaram deixando o caminho livre até aos seus pertences. Deu mais um passo cauteloso e depois foi ganhando confiança quando viu que havia uma silhueta escura de felino nos arbustos, a pouca distância. A uma ordem sua, Guenhwyvar, num único salto, abater-se-ia sobre o bando de gnolls. — Tu e eu caminhamos juntos? — perguntou Drizzt ao chefe dos gnolls, usando a linguagem dos duendes e tentando simular o dialecto da criatura. O gnoll respondeu com um rugido atabalhoado, e a única coisa que Drizzt pensou ter percebido foi a última palavra da pergunta: «…aliado?». Drizzt fez que sim com a cabeça, lentamente, esperando ter compreendido toda a intenção da criatura. — Aliado! — rosnou o gnoll, e todos os seus companheiros riram aliviados e deram palmadas nas costas uns dos outros. Drizzt chegou então perto do seu equipamento e colocou imediatamente o cinturão com as cimitarras. Vendo os gnolls distraídos, o drow olhou rapidamente para Guenhwyvar e fez-lhe sinal na direcção do trilho mais adiante, por entre a vegetação. Com agilidade e silenciosamente, Guenhwyvar tomou uma nova posição. Não havia necessidad de revelar imediatamente todos os seus segredos, considerou Drizzt. Pelo menos até ter percebido verdadeiramente as intenções dos seus novos companheiros.

Caminhou ao lado dos gnolls pelos trilhos mais inferiores e serpenteantes da encosta da montanha. Os gnolls mantinham-se afastados, de ambos os lados de Drizzt, fosse por respeito a ele e reputação da sua raça ou por qualquer outra razão; não podia saber. Mais provavelmente, suspeitava Drizzt, manteriam a distância simplesmente por causa do fedor, que o banho pouco fizera para diminuir. O chefe gnoll dirigia-se a Drizzt de vez em quando, acentuando as suas palavras excitadas co uma piscadela de olho manhosa ou com um esfregar das mãos grossas e sapudas. Drizzt não fazia ideia do que o gnoll estava a dizer, mas presumiu, pelos estalos que este dava com a língua, que o estava a levar a alguma espécie de festim. Drizzt depressa descobriu o destino do bando, porque avistara muitas vezes, dos cumes das montanhas, as luzes de uma pequena comunidade agrícola humana no vale. Não podia fazer ideia nenhuma acerca da relação entre os gnolls e os humanos agricultores, mas pressentiu que não seria uma relação amigável. Quando se aproximaram da aldeia, os gnolls assumiram posições defensivas, avançaram a coberto de arbustos e mantinham-se o mais possível nas sombras. O crepúsculo estava a aproximar-se rapidamente enquanto o bando abria caminho em redor da área central da aldeia, para se concentrar numa casa mais isolada, a oeste. O chefe dos gnolls sussurrou para Drizzt, dizendo cada palavra lentamente, para que o drow o entendesse. — Uma família — disse. — Três homens, duas mulheres… — Uma mulher jovem — acrescentou outro, excitado. O chefe gnoll riu-se. — E três jovens machos — concluiu. Drizzt compreendia agora o objectivo da expedição, e o ar surpreendido e de interrogação no seu rosto levou o chefe gnoll a confirmar-lho para além de qualquer dúvida. — Inimigos — declarou o chefe. Drizzt, que quase nada sabia acerca de ambas as raças, estava num dilema. Os gnolls era salteadores — isso era evidente — e tencionavam atacar aquela casa assim que a luz do dia desaparecesse. Drizzt não tinha nenhuma intenção de se lhes juntar no combate, até ter muito mais informação relativamente à natureza do conflito. — Inimigos? — perguntou. O chefe gnoll franziu o sobrolho, mostrando uma aparente consternação. Despejou um chorrilho de palavras quase incompreensíveis de onde Drizzt julgou ter percebido «humanos… fracos… escravos». Todos os gnolls perceberam o súbito desconforto de Drizzt e começaram a deitar as mãos às — armas a olhar uns—para osDrizzt. outros nervosamente. Trêse homens… disse O gnoll espetou a lança selvaticamente no chão. — Matar mais velho! Apanhar os dois! — E mulheres? O sorriso aberto na cara do gnoll respondeu à pergunta para além de qualquer dúvida, e Drizz começava a compreender em que posição estava neste conflito.

— E as crianças? Olhou para o chefe gnoll directamente e disse cada palavra bem marcadamente. Não podia have mal entendidos. A sua última pergunta confirmava tudo, pois ainda que Drizzt conseguisse aceitar a selvajaria típica entre inimigos mortais, nunca poderia esquecer a vez em que tinha participado num raide semelhante. Nesse dia, salvara uma criança elfo, escondera-a debaixo do corpo da mãe para a abrigar da ira dos seus companheiros drow. De todos os muitos males que Drizzt já testemunhara, o assassinato de crianças fora o pior. O gnoll empurrou a lança de novo contra o chão, com o rosto canino contorcendo-se numa alegria malévola. — Não me parece — disse simplesmente Drizzt, com o fogo a brilhar nos olhos cor de alfazema. De repente, os gnolls perceberam que, sem saberem como, as cimitarras tinham aparecido nas mãos de Drizzt. O focinho do chefe gnoll franziu-se de novo, mas desta vez numa expressão de confusão. Tentou levantar a lança, para se defender, sem saber o que aquele estranho drow faria a seguir, mas já era demasiado tarde. A corrida de Drizzt era demasiado ágil. Antes que a lança do gnoll sequer se mexesse, já o drow mergulhava com as cimitarras em riste. Os outros quatro gnolls observaram estupefactos enquanto as lâminas de Drizzt rodopiavam duas vezes, rasgando a garganta do poderoso chefe. O gnoll gigante caiu para trás em silêncio, agarrando futilmente o pescoço. Um gnoll mais ao lado foi o primeiro a reagir, erguendo a lança e carregando contra Drizzt. O ágil drow desviou com facilidade o ataque frontal, mas teve o cuidado de não fazer o gnoll perder o balanço. Enquanto a grande criatura passava por ele, lançada, Drizzt rolou pondo-se ao seu lado e pontapeou-a nos tornozelos. Perdido o equilíbrio, o gnoll estatelou-se, mergulhando a ponta da lança no peito de um dos companheiros. O gnoll puxou a arma para trás, mas esta estava bem enterrada, com a ponta serrilhada bem presa nos ossos do outro gnoll. O gnoll não estava nada preocupado com o seu companheiro moribundo; a única coisa que queria era a sua arma. Puxava e sacudia a lança, e praguejava e rugia perante as expressões agonizantes do companheiro — até que uma cimitarra se lhe enterrou no crânio. Outro gnoll, vendo o drow distraído e pensando que seria mais sensato atacar este adversário à distância, ergueu a lança para a atirar. O braço subiu, mas antes que a arma começasse sequer a avançar, Guenhwyvar carregou sobre ele e ambos rebolaram para longe. O gnoll dava fortes murros nos flancos musculosos da pantera, mas as garras afiadas de Guenhwyvar eram muito mais eficientes. Na fracção de segundo que Drizzt demorou a desviar o olhar dos três gnolls mortos aos seus pés, já o quarto do bandosoltou-se estava morto debaixoabraço da grande pantera. O quinto fugira. elegantes do felino ficara Guenhwyvar do teimoso do gnoll morto. Os músculos em tensão, ansiosamente à espera da ordem. Drizzt observou a carnificina à sua volta, o sangue nas cimitarras e as horríveis expressões nos rostos dos mortos. Queria deixar as coisas ficar por ali, pois percebera que tinha entrado numa situação que ia para além da sua experiência, que cruzara os caminhos de duas raças das quais sabia muito pouco. Após um momento de ponderação, porém, a única ideia que se mantinha na mente do drow era a promessa sorridente do chefe gnoll de morte

para as crianças humanas. Havia demasiado em risco. Drizzt virou-se para Guenhwyvar, com a voz mais determinada do que resignada: — Apanha-o. O gnoll tropeçava por entre os arbustos, olhando em volta ansiosamente, enquanto imaginava silhuetas negras por detrás de cada pedra ou de cada árvore. — Drow! — rosnava repetidamente, usando a palavra como uma espécie de encorajamento enquanto fugia. — Drow! Drow! Ofegante, o gnoll chegou a uma fila de árvores que se estendia entre duas paredes altas de pedra nua. Tropeçou num tronco caído e magoou as costelas ao embater numa pedra coberta de musgo. Mas essas dores menores não iriam abrandar a assustada criatura, de modo algum. O gnoll sabia que estava a ser perseguido, sentia uma presença a rondar nas sombras, sempre no limite de onde alcançava o seu olhar. Quando estava a chegar perto do fim da fila de árvores, envoltas numa escuridão cada vez mais cerrada, o gnoll deparou com um par de olhos amarelos faiscantes a olharem para ele. O gnoll vira o seu companheiro que fora abatido pela pantera e podia adivinhar o que estava agora a bloquear-lhe o caminho. Os gnolls eram monstros cobardes, mas eram capazes de combater com uma tenacidade surpreendente, quando encurralados. Assim acontecia agora. Percebendo que não tinha por onde fugir — pois evidentemente não podia voltar para trás em direcção ao elfo negro — o gnoll rosnou e ergueu a pesada lança. Ouviu um restolhar, um baque surdo e um guincho de dor quando a lança atingiu algo. Os olhos amarelos afastaram-se por um momento, e depois uma silhueta correu para uma árvore. Movia-se rente ao chão, quase como um felino, mas o gnoll percebeu logo que o seu alvo não era uma pantera. Quando o animal ferido chegou à árvore, olhou para trás e o gnoll reconheceu-o claramente. — Texugo — rosnou o gnoll. E riu-se. — Estava a fugir de um texugo! O gnoll abanou a cabeça e afastou o sorriso com um suspiro profundo. A visão do texugo dera-lhe uma certa dose de alívio, mas não podia esquecer-se do que tinha acontecido mais atrás. Agora, tinha de regressar ao seu antro, para relatar a Ulgulu, o seu gigantesco amo duende, a sua criatura-deus, tudo acerca do drow. Deu um passo em frente para recuperar a lança, e depois parou subitamente, sentindo movimento atrás de si. Lentamente, virou a cabeça. Conseguia ver o seu próprio ombro e uma rocha coberta de musgo mais atrás. Ficou imóvel. Nada se movia atrás dele, não vinha um único som de entre as árvores, mas a best sabia que alguma coisa estava lá atrás. A respiração do goblinóide era agora entrecortada; as mãos gordas abriam-se e fechavam-se ao lado do corpo. O gnoll rodou rapidamente e rugiu, mas o urro de raiva transformou-se num grito de horror quando trezentos quilos de pantera saltaram de uma árvore para cima dele. O impacto fez o gnoll estatelar-se, mas não era uma criatura fraca. Ignorando as dores excruciante das cruéis garras da pantera, o gnoll agarrou a cabeça de Guenhwyvar e manteve as maxilas mortais

afastadas, tentando impedi-las de encontrar o seu pescoço. Durante quase um minuto, o gnoll debateu-se, com os braços a fraquejar sob a pressão dos poderosos músculos do pescoço da pantera. Foi então que a cabeça do felino desceu e Guenhwyva encontrou um ponto onde agarrar. Dentes enormes fecharam-se sobre o pescoço do gnoll e abafaram a respiração da criatura condenada. O gnoll agitou-se e sacudiu-se freneticamente; conseguindo mesmo rebolar para cima da pantera. Guenhwyvar manteve-se impassível, despreocupada. As maxilas mantinham-se bem cerradas. Ao fim de uns minutos, a agitação cessou.

Biografia

R. A. Salvatore é um autor norteamericano conhecido pelos seus romances da sérieForgotten ealms e Vector Prime, pertencente à série New Jedi Order do universo Star Wars. O seu primeiro romance, Crystal Shard , foi publicado emuma 1988, qual se seguiram várias alcançandoThe a popularidade com a sua criação de das ao personagens mais famosas da trilogias, fantasia, o elfo negro Drizzt Do’Urden. R. A. Salvatore vive em Massachusetts, EUA, com a mulher e trê filhos. Mais informações em WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM

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MAGO- APRENDIZ Raymond E. Feist

Na fronteira Reino dasserIlhas umadestemido vila tranquila chamada Crydee. lá que órfão franzinodoque sonha um existe guerreiro ao serviço do rei. Mas Éa vida dá vive voltasPug, e Puu torna-se aprendiz do misterioso mago Kulgan. Nesse dia, o destino de dois mundos altera-se par sempre. Com a sua coragem, Pug conquista um lugar na corte e no coração de uma princesa, ma subitamente a paz do reino é desfeita por misteriosos inimigos que devastam cidade após cidade. É então arrastado para o conflito e, sem saber, inicia uma odisseia pelo desconhecido: terá de dominar os poderes inimagináveis de uma nova e estranha forma de magia… ou morrer. Mago: Aprendiz é uma aventura sem igual, uma viagem por reinos distantes e ilhas misteriosas, onde conhecemos culturas exóticas, aprendemos a amar e descobrimos o verdadeiro valor da amizade. E, no fim, tudo será decidido na derradeira batalha entre as forças da Ordem e do Caos. Mais informações em WWW.SAIDADEEMERGENCIA.COM
Trilogia do Elfo Negro #02 - Exilio - R. a. Salvatore

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