ARRUDA. O aborto no Direito Brasileiro

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO DEPARTAMENTO DE DIREITO PENAL, MEDICINA FORENSE E CRIMINOLOGIA

O ABORTO NO DIREITO BRASILEIRO TESE DE LÁUREA ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA JANAÍNA CONCEIÇÃO PASCHOAL

GABRIEL GARCIA RIBEIRO DE ARRUDA – Nº USP 8593595 SÃO PAULO 2017

GABRIEL GARCIA RIBEIRO DE ARRUDA Nº USP 8593595

O ABORTO NO DIREITO BRASILEIRO

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco como requisito parcial para a obtenção de título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Departamento de Direito

Penal,

Medicina

Forense

e

Criminologia. Orientação:

Professora

Conceição Paschoal.

SÃO PAULO SETEMBRO DE 2017

Doutora

Janaína

Dedico este trabalho a Nossa Senhora do Desterro, às minhas queridas avós Elvira (in memorian) e Maria de Lourdes, e a todas as mulheres que corajosamente disseram ‘sim’ à maternidade, mesmo nos momentos mais duros da vida.

Agradecimentos

Agradeço aos meus pais, pelo apoio ao longo de todos meus anos de estudo formal. Aos professores Carlos Nougué e Francisco Razzo, pelas preciosas indicações bibliográficas. À professora Elza, por possibilitar a discussão que deu origem a este trabalho. À caríssima professora Janaína, minha orientadora, pelo apoio e pelo exemplo de professora, advogada e brasileira. A todos os professores que contribuíram para que eu chegasse até aqui.

Índice Considerações introdutórias 1.1 Introdução...………………………………….………………….......….......7 1.2 Objetivo..................…………………………..………………….................9 1.3 Método..........…………………………………………...............................10 Primeira Parte 2. Análise crítica das normas.........................................................................................13 2.1 Aborto: uma definição.....………………....................................................14 2.2 Considerações Históricas................……….................................................17 2.3 Artigo 124, CP: a regra geral.........……………………..............................32 2.4 Artigo 126, CP........................................….........…................…................35 2.5 Artigo 128: as permissivas....................….................................…..............39 2.5.1 Artigo 128, I: o “aborto necessário” ou “terapêutico”.......….............39 2.5.1.1 Crítica à nomenclatura de “aborto terapêutico”...................40 2.5.2 Artigo 128, II: o aborto em caso de estupro.........…....……..............42 2.6 Da natureza das excludentes............................................…........................43 2.7 Conclusão da primeira parte: o caminho do legislador.........…..................53 Segunda Parte 3.1 Introdução…….............................…………...................................…........55 3.2 A ADPF 54................................................…...............…..............………..57 3.2.1 Visão Majoritária…………………………...…….……………..58 3.2.2 Visão Minoritária….……………………...….…………….……61 3.3 O HC 124.306/RJ............................….........................…...........................65 3.4 Conclusão da segunda parte: o caminho do juiz…......…...........................78 Terceira Parte 4. Proposta de um novo estatuto jurídico ao aborto.................…...……......................81 4.1 Pressupostos filosóficos......................................…......…..........................82 4.1.1 O jusnaturalismo tomista.........................…....….........................83 4.1.2 A lei e o bem comum......................................…..........................87 4.1.3 Função pedagógica da lei........................…...……………..........92 4.1.4 Função da pena...............................................……………..........95 4.1.5 Direito e Moral........................................…..…...........................98 4.1.6 A primazia do direito à vida..........................…..........................100 4.1.7 Vida e pessoalidade..........................…………….......................103 4.2 Do aborto: o início da vida........................……………............................106 4.2.1 Após o nascimento.......................……………….......................109 4.2.1.1 Princípio da potencialidade.…………….....................110 4.2.1.2 Capacidade adquirida.......…….……….......................112

4.2.1.3 Crítica.......................………………………………....113 4.2.2 No nascimento..................……………..………........................115 4.2.2.1 Reconhecimento social……….............………….......115 4.2.2.2 Localização espacial.……..................………….........116 4.2.2.3 Forma humana..........…................…………...............117 4.2.2.4 Liberdade da mulher em se destacar do feto…..….....118 4.2.2.5 Argumento pragmático...............………………….....121 4.2.3 Antes do nascimento...........…...........………………...……….122 4.2.3.1 Anseios conscientes.....................……...…………….122 4.2.3.2 Viabilidade...................................…......……………..124 4.2.3.3 Capacidade de sentir dor..............….....……………...125 4.2.3.4 Desenvolvimento cerebral........…………….………..126 4.2.4 Nidação..................................................…………………….....127 4.2.5 Gradualismo..............................................…..……….………..130 4.2.6 Concepção.............................................………………..….......131 4.2.6.1 A pessoalidade no concepcionismo.….............….......131 4.2.6.2 Confirmações científicas..............…….………….......135 4.3 Sobre as mortes pelos abortos inseguros...................……….....…….......136 4.4 Conclusão da terceira parte: entre o ideal e o possível…….......…….......137 Conclusão ……...........................................................................……………............142 Apêndices A – Considerações sobre aborto e microcefalia................…........……….….............145 B – Considerações sobre o debate do aborto no Brasil..................…….....…............151 C – O princípio do duplo efeito e o “aborto necessário”...............……..…...............155

1. Introdução 1.1 Introdução

Toda tese acadêmica orienta-se a alguma finalidade externa a si mesma, como sua potencial aplicação prática ou sua relevância no desbravamento de novas áreas do conhecimento. Muitas vezes essa verdade simples e óbvia é esquecida – sobretudo nos meios universitários nacionais –, resultando em exemplares trabalhos sem qualquer relevância teórica ou prática, embora impecáveis em suas formalidades. No sentido contrário a essa tendência, buscamos estudar algum tema que fosse de grande relevância no cenário brasileiro, e que conjugasse ambas possíveis funções de um trabalho acadêmico – a saber, sua orientação para a prática e sua relevância teórica. Desse modo, o tema escolhido para o presente trabalho é a questão do abortamento1 e seu estatuto jurídico2 no Brasil. Cremos que o assunto possui grande relevância, seja em si mesmo – considerando as controvérsias e discussões que tal fato social já provocou ao longo da história da Humanidade 3 –, seja pela polêmica suscitada atualmente em torno deste ato. Assim, sustentamos que um estudo mais atento sobre o aborto possui grande importância no âmbito acadêmico, visto que se desenvolvem, hoje, as mais 1

Aqui faz-se necessária uma nota de caráter terminológico. Abortamento é o termo que se refere ao ato que leva a um aborto, isto é, abortamento é a ação (voluntária ou não) que gera a morte seguida ou não de expulsão de um nascituro, nos seus mais diversos estágios de desenvolvimento (embrião ou feto). Enquanto isso, aborto é o nome dado ao nascituro morto nesse processo. O presente trabalho empregará os termos ‘aborto’ e ‘abortamento’, dora em diante, como sinônimos, com vistas a se adequar ao emprego de tais termos na legislação e no linguajar comum, que ignora a diferença de seus sentidos técnicos. Que fique claro, também, que o abortamento pode ser involuntário, isto é, espontâneo, ou voluntário, que é aquele provocado por um agente intencionalmente. E é apenas sobre este segundo tipo (o aborto voluntário) que o estudo ora em pauta se debruçará.

2

Chamamos de “estatuto jurídico” o conjunto de normas, de origem legal ou não, que regulam dado fato. No caso do aborto, veremos que seu estatuto jurídico não é composto apenas por normas legais (tais como os artigos 124 e seguintes do Código Penal), mas também de normas originadas de outras fontes, como a interpretação legal dada em decisões judiciais (no caso, a ADPF 54).

3

Para uma abordagem histórica do ato de abortar, recomendamos o livro História do Aborto, de Giulia Galeoti, que apresenta o tratamento social dado ao abortamento desde as civilizações clássicas até o presente.

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diversas visões e posicionamentos jurídicos e morais4, sem haver verdadeiro debate acerca de tais opiniões e dos pressupostos que as sustentam. Muitas vezes, inclusive, tais pressupostos são ocultados com finalidade sofística – por haver possível contradição entre eles, ou por receio de sua baixa aceitação no âmbito público. Falta, portanto, uma discussão honesta sobre a questão do aborto, pautada na sóbria racionalidade e dotada do devido vigor intelectual, ordem e método que se esperam de qualquer um que arrogue-se a empreita de um trabalho científico. Também cremos que o presente estudo se fará relevante no âmbito prático, posto que, atualmente, o estatuto jurídico do aborto em vigor se encontra sob forte questionamento por parte do meio acadêmico, da mídia e dos formadores de opinião. Salta aos olhos a ação dos mais diversos agentes políticos que propõem mudanças normativas de diferentes orientações (como a legalização absoluta do aborto), muitas vezes sem grande debate ou às escondidas da população (como por projetos de legislação extravagante revogatória dos artigos concernentes ao aborto no Código Penal); bem como a contínua intervenção da ânsia legiferante de juízes, descolada da fonte legitimadora do próprio ordenamento5, por meio do ativismo judicial. Relevantíssimo é o fato de que, na presente data, tramita no Congresso Nacional um projeto de Novo Código Penal, que daria abordagem distinta à atual para esse delito, bem como há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pendente de julgamento, que almeja a descriminalização do aborto praticado até as 12 semanas de gestação6. Portanto, faz-se necessário estudo como o que buscaremos desenvolver ao longo das próximas páginas, nas quais nos debruçaremos atentamente sobre a questão do aborto, tentando dar a maior amplitude possível ao tratamento deste tema, sem perder a profundidade necessária para um trabalho verdadeiramente acadêmico.

4

Por “moral”, compreendemos o estudo da ação humana e das normas que a regulam e valoram. Sendo um ramo da Filosofia, a Moral (ou Ética) foi abordada por diversas perspectivas ao longo da história. Dentre essas múltiplas correntes, identificamo-nos com a corrente aristotélico-tomista.

5

A democracia representativa, pelo processo legislativo.

6

Todavia, tanto o projeto mencionado quanto a ADI não serão estudados pelo presente trabalho, sendo apenas mencionados como indicadores da relevância atual do tema escolhido.

8

1.2 Objetivo Inicialmente, então, é necessário o apontamento dos objetivos perseguidos pelo presente trabalho, a fim de que tenhamos claro guia para a condução do mesmo, guia necessário para traçar-se o método de seu desenvolvimento, e reta medida para o juízo qualitativo deste, verificando se tais objetivos foram, ao cabo do trabalho, atingidos. O primeiro objetivo deste trabalho é a exposição metódica e clara do tratamento jurídico dado ao aborto pelo ordenamento brasileiro. Essa exposição deve compreender não apenas a mera paráfrase dos dispositivos normativos, mas também seu histórico e a busca da racionalidade de tais disposições, obtendo, assim, indicação do caminho tomado pelo legislador pátrio. Um segundo objetivo, que decorre do primeiro, é a crítica a este estatuto jurídico. Buscaremos verificar se tal estatuto guarda uma coerência interna, bem como analisar se as motivações alegadas para o tratamento jurídico dispendido ao aborto realmente conduzem às normas ora postas. Analisaremos, num segundo momento, certas decisões do Supremo Tribunal Federal que se afiguram especialmente importantes no tema do aborto, para conhecer o caminho adotado pelo juiz – na figura de nossa Suprema Corte –, tendo em vista inquirir se há alguma discrepância entre esse e a opção determinada pelo legislador. Por fim, empreenderemos uma procura de como deve ser o estatuto jurídico ideal para o aborto, saindo do campo do ser e rumando ao dever ser. Em consequência das conclusões obtidas, indicaremos se se faz necessária alguma alteração ao presente estatuto jurídico do aborto e, em caso afirmativo, em que sentido7 deveria rumar esta. Em suma, nosso objetivo pode ser resumido na busca pela resposta da seguinte questão: Como é, no Brasil, e como deve ser, o tratamento jurídico dado ao aborto? 7

Ao buscarmos indicar o sentido da mudança, não nos comprometemos com a redação de um Projeto de Lei, o qual não deve pautar-se apenas na legislação ideal, mas leva em conta dados concretos circunstanciais a serem ponderados pela prudência política (virtude que deve reger o legislador) – como os efeitos que a lei provocaria no Brasil “aqui e agora” - que fogem ao escopo de nosso estudo.

9

1.3 Método Assim como o alpinista deve escolher um caminho para iniciar sua jornada rumo ao cume da montanha, e assim como há diversos caminhos para essa feita, havendo, dentre eles, algum que seja preferível para a obtenção do resultado com o menor risco e menor dispêndio de forças, da mesma forma um trabalho acadêmico deve partir de um método pré-escolhido e claro em consideração a seu objetivo. Não corremos risco de nos precipitarmos em algum abismo caso não adotemos o melhor dos métodos, mas, com certeza, correríamos o risco de não atingirmos o cume que visamos – a resposta para nossas questões, conforme traçadas no tópico anterior. Outro risco de um mau método é a obscuridade, repetição e confusão no desenvolver do trabalho, o que, na melhor das hipóteses, se tornaria causa de enfado ao leitor. Portanto, devemos iniciar nossa jornada pelo direito e a filosofia com o estabelecimento de um método. Tal como a eleição da rota pelo alpinista se baseia no cume que ele quer atingir, o nosso método deverá se basear nos nossos objetivos. E estes, como apresentados anteriormente, podem ser divididos em três grandes núcleos: apresentação da norma, crítica da norma, proposta de norma. Da mesma forma, nosso trabalho deveria, inicialmente, ser dividido em três grandes partes, cada uma para a consecução de um dos três objetivos. Todavia, nota-se que os objetivos, compostos de dois termos cada um, possuem um termo em comum: a norma. Ora, a mesma norma que apresentaríamos na Primeira Parte seria a norma criticada na Segunda Parte. Na Terceira Parte também tratamos sobre normas, mas esta não é a mesma “norma” da Primeira e da Segunda Parte do trabalho e, sim, aquela ideal. A norma tratada na Primeira e na Segunda Parte é a norma como está posta atualmente, ou seja, como ela é. Já na Terceira Parte, tratamos de uma norma que ainda não está posta, falando de como ela deve ser.

10

Portanto, tal como na matemática a soma de dois termos compostos por uma variável e uma constante pode ser simplificada pela soma das variáveis multiplicada pela constante8, o mesmo se dá com nosso trabalho 9. Portanto, não é necessária a divisão entre a Primeira e a Segunda Parte proposta anteriormente: elas podem estar juntas, pois seu objeto é o mesmo. 10 Desse modo, não teríamos – a priori – três partes no nosso trabalho, mas apenas duas, sendo a primeira delas a Exposição e Crítica da Norma. Como nesta parte o termo “norma” se refere a uma norma já dada, que existe posta no momento da análise, ou seja, que já é, a Primeira Parte será uma parte ontológica, por assim dizer, ao considerar a norma como ela é.11 Nessa primeira parte, então, faremos a exposição da norma de modo conjugado à sua crítica. Ou seja, logo após expormos, de modo neutro, uma dada norma e as razões alegadas para seu presente estado, procederemos à crítica desta norma e de suas razões, antes de partirmos para qualquer outro tema. Aqui encontramos um problema: se adotarmos por “norma” a regulação de um dado tema, veremos que há a possibilidade de ser uma a “norma” posta pelo legislador, e outra “norma” aplicada pelo juiz. Em outras palavras, o caminho do legislador não necessariamente coincidirá com o caminho do juiz. Essa realidade se torna tremendamente importante ao verificar-se o crescente envolvimento do Supremo Tribunal Federal na alteração interpretativa da aplicação dos preceitos legais, e a contínua pressão por grupos de poder para que a Corte persista na alteração da aplicação legal ainda que ausente qualquer sinalização nesse sentido por parte do Parlamento. Dessa maneira, nosso estudo “ontológico” deverá desdobrar-se em dois – não pela separação entre apresentação e crítica tratada anteriormente, mas segundo o “autor” da norma em análise. Deveremos, assim, abordar 8

Sendo E e C as variáveis, e 'n' a constante, estamos dizendo que nE+nC pode ser simplificado em n(E+C).

9

Interpretem-se os elementos apresentados na nota anterior da seguinte forma: E é a Exposição, C é a Crítica e 'n' é a Norma.

10

Em vez de efetuarmos uma Exposição da Norma e, posteriormente, uma Crítica da Norma, faremos uma Exposição e Crítica da Norma.

11

Ente, em grego, é “ón”. Assim, ontológico é aquilo que se refere aos entes; às coisas dotadas de ser.

11

separadamente o caminho do legislador e o caminho do juiz. Resta-nos a última parte do trabalho, que tratará da norma como ela deve ser. Por isso, tal seção será uma parte deontológica12. E é dessa abordagem conforme o dever ser que extrairemos possíveis sugestões para uma futura alteração normativa, caso a norma seja de uma forma, mas deva ser de outra. Nessa parte, primeiro apresentaremos os princípios de filosofia e de filosofia do direito que tomamos para nossos raciocínios – exposição esta que consideramos extremamente necessária, embora lamentavelmente rara na maior parte dos trabalhos e debates acerca do presente tema – na qual também faremos breve sustentação desses princípios, para, após sua sistemática exposição, partirmos para a apreciação da realidade objetiva acerca do ato de abortar. Por fim, após possuirmos os princípios e os fatos relevantes, concluiremos nosso raciocínio atingindo a norma ideal13. Há certos temas que julgamos relevantes para a discussão do aborto, mas que, entretanto, não são necessários para o estrito raciocínio que tomamos por objetivo de nossa tese. Esses temas serão apresentados, todavia o serão em separado, na forma de Apêndices. Dessa maneira, a presente monografia se dividirá em três grandes seções, nas quais faremos, respectivamente, a análise crítica da lei, a análise crítica da jurisprudência e, por fim, a proposta de uma legislação ideal. Passemos, pois, à nossa empreitada.

12

Deontológico é aquilo que se refere ao dever-ser

13

Não tratamos, aqui, de norma ideal enquanto norma inatingível, mas sim enquanto norma que deve ser modelo para a atividade normativa. Como dito anteriormente, no entanto, nem sempre a norma ideal é imediatamente aplicável na prática, uma vez que a política sempre deve guiar-se pela prudência, levando em conta as particularidades da realidade concreta “aqui e agora”.

12

PRIMEIRA PARTE

2. Análise crítica das normas

Na presente seção de nosso estudo, conforme dito anteriormente, buscaremos realizar uma exposição sistemática do tratamento jurídico do aborto no Brasil. Faremos algumas considerações históricas sobre esse delito, caminhando da perspectiva geral para a específica. Da definição de aborto passaremos à sua história geral, seguindo o enfoque rumo ao histórico do seu tratamento no Brasil. Exporemos o tratamento dado ao crime em questão nos nossos Códigos Penais, com algumas considerações e comentários aos textos legislativos. Depois, rumaremos a detalhes mais técnicos, pela apreciação da norma atual, atingindo, assim, o grau de especificidade inicialmente desejado. Por fim, procederemos à crítica das normas e da interpretação exposta. Uma consideração preliminar deve ser feita, todavia, antes de começarmos nossa análise. É necessário que se explique o porquê de nosso trabalho focar-se apenas nos delitos presentemente tipificados nos artigos 124 e 126 do Código Penal, e nas excludentes dispostas no artigo 128 do mesmo diploma. Esta opção se dá, centralmente, por dois fatores: Em primeiro lugar, a questão do consentimento no aborto é o que gera a grande controvérsia nesse assunto. Como veremos adiante, em praticamente toda a história do Direito houve a repressão ao aborto praticado sem consentimento da gestante (hoje tipificado no artigo 125 do Código Penal), dado que tal ato é aberrante ao senso comum de justiça dos diversos povos, nas diversas eras. Já o aborto voluntário recebeu diversos tratamentos em diferentes épocas e locais, sendo muito discutido hoje em dia. Assim, devemos tratar daquilo que suscita mais controvérsias no debate público, bem como propostas políticas de alteração legislativa. Em segundo lugar, vemos que o aborto consentido é um tipo penal que tutela um único bem jurídico, diferentemente do aborto provocado em outrem, 13

sem o consentimento da gestante. Nesse segundo caso, tutela-se tanto o bem jurídico zelado pelo tipo penal do aborto consentido (a vida do nascituro 14) quanto, conjuntamente, o direito da mulher sobre o concepto; seu direito a manter sua gestação e ter seu filho15. Dessa forma, como desejamos estudar especificamente o aborto consentido, não consideraremos o artigo 125 do atual Código, tampouco o 127, que trata das agravantes do aborto. O artigo 126, ao tratar da provocação de aborto com consentimento da gestante será, junto com o 124, objeto de nosso estudo, dado que nos debruçamos sobre um fato – o aborto consentido – que pode ou não ter uma pluralidade de agentes: a gestante que consente, e o sujeito que realiza o aborto com esse consentimento por ela dado, caso em que envolver-se-iam ambos artigos, o 124 e o 126. Essas questões serão abordadas com mais detalhes no decorrer do trabalho.

2.1 Aborto: uma definição

Para todo estudo, compete primeiramente delimitar a realidade estudada. Delimita-se o objeto traçando seus limites em relação ao ser 16 indistinto, o ens generalissimum. Esses limites, por sua vez, podem ser traçados de duas formas: negativamente – ao se dizer o que a realidade em foco não é, como quando se diz que Sócrates não é um vegetal – ou positivamente – como quando se diz que Sócrates é um homem. A segunda forma de delimitação, por óbvio, é a mais útil, dada que ela diz o que a realidade é, em verdade. Ela responde à pergunta “O que é isto?”, que, em latim, se diz “Quid est?/Quid sit?”, motivo pelo qual a resposta dada é chamada quididade, ou essência. Conhecemos as realidades, em verdade, quando conhecemos suas essências.

14

O bem jurídico do artigo 124 é objeto de controvérsia, e será abordado mais a frente. Há forte debate quanto a se aí se encontra a tutela a uma vida ou a uma expectativa de vida.

15

O bem jurídico em questão não é meramente a integridade física da mulher.

16

Conscientemente adotamos “ser” aqui fora de seu sentido próprio, para simplificar o entendimento.

14

E é apenas pelo conhecimento da essência de algo é que somos capazes de julgar ou discutir este algo, dado que o que não se conhece, por definição, não pode ser apreciado racionalmente – por ser desconhecido. Este conhecimento não se dá por uma dedução lógico-formal abstrata e desprendida da realidade material/física. Pensar o contrário foi justamente o erro que levou ao fracasso muitos sistemas filosóficos que pretenderam deduzir tudo a partir de um verdadeiro nada17. Dessa forma, sustentamos, junto à filosofia perene18 - corrente à qual nos filiamos e que será tomada por base filosófica para este trabalho – que todo conhecimento inicia-se pelos sentidos 19. Em consequência disto, para conhecermos a realidade sobre o aborto, devemos antes observar o que é o aborto, a fim de posteriormente defini-lo. O último passo, portanto, será a definição. Contudo, resta esclarecer que há dois tipos de definições possíveis de serem formuladas. O primeiro tipo é definição descritiva, que basicamente consiste na descrição de como é a realidade estudada. Por exemplo, descrever-se-ia um homem por “ente bípede, que respira, fala, ri”. O segundo tipo de definição – a aplicação deste termo em seu sentido próprio – é a que classifica a realidade estudada por seu gênero próximo e sua diferença específica. Num primeiro contato com a realidade estudada, vemos que o aborto é algo que só pode ocorrer numa gravidez. Abortar, assim, pressupõe uma gestação – o que engloba toda a realidade desta gestação. A gestação 20, por si, consiste no processo natural pelo qual uma mulher fornece um meio propício ao 17

Por exemplo, o sistema radicado na dúvida metódica, proposto por René Descartes. Este filósofo propôs que se deduzisse o conhecimento sem qualquer vinculação aos sentidos – que seriam falhos. Assim, ele partiu sua construção filosófica do raciocínio “Cogito, ergo sum” (Eu penso, logo, eu existo), sem notar que, para tal raciocínio, ele precisaria primeiramente saber o que é “existir”.

18

O termo Filosofia Perene se refere à corrente filosófica iniciada na antiga Grécia, por Sócrates, continuada por Platão, aperfeiçoada por Aristóteles e levada a seu ápice pelos Escolásticos medievais, dos quais o principal é São Tomás de Aquino.

19

A este respeito, conferir a Tese XIX das 24 Teses Tomistas, bem como GARDEIL, HenriDominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino. V.2 – Psicologia, Metafísica. 2 ed. Editora Paulus. São Paulo: 2013. p.100; e HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de Filosofia do Direito. Editora Martins Fontes. São Paulo: 2008. p.9

20

Genival Veloso de França conceitua “gravidez” como “o estado fisiológico da mulher durante o qual ela traz dentro de si o produto da concepção”. Cf. FRANÇA, Genival Veloso. Fundamentos de Medicina Legal. 2ed. Editora Guanabara Koogan. Rio de Janeiro: 2014. p.202

15

desenvolvimento de um outro ente – que chamaremos genericamente por “nascituro” - iniciando-se na concepção21, que é quando o gameta feminino se encontra com o gameta masculino e ambos se fundem, dando origem a uma célula-ovo, ou zigoto; e encerrando-se no parto. Abortar causa o fim dessa gestação, de forma distinta de seu fim natural (o parto). Assim, o aborto é um processo que tem por consequência o encerramento abrupto e não-natural do desenrolar gestacional. Abortar também causa a morte do nascituro. Dessa forma, a gestação encerrada em aborto não apenas tem seu fim distinto do natural (como seria um parto cirúrgico (“cesariana”), por exemplo), mas verdadeiramente contrário ao natural (o aborto gera a morte do nascituro e encerra a gestação por conta dessa morte). Há, ainda, no aborto ora estudado (o aborto voluntário) a centralidade das duas características anteriores como elementos teleológicos da ação. O aborto voluntário é um ato que tem por finalidade o encerramento da gestação com morte do nascituro. Podemos, então, conceituar inicialmente o aborto como o ato voluntário que busca o término de uma gravidez e a morte do gestado. No sentido de nossa definição segue também a maior parte das definições dadas pela Medicina Legal22, cujas definições centram-se na presença dos seguintes elementos: (i) intenção/dolo; (ii) morte do nascituro; (iii) interrupção da gravidez. Como havíamos dito anteriormente, há dois tipos de definição. A definição descritiva seria, então, que o aborto é uma morte provocada no nascituro intencionalmente, que leva ao encerramento da gravidez. Todavia, como ressaltado, o segundo tipo de definição – a definição propriamente dita –, que localiza a realidade definida dentro de seu gênero próximo e a especifica pela diferença específica é preferível à descrição. Dessa forma, adotaremos uma 21

As técnicas de fecundação extracorpórea, como a Fertilização In Vitro (FIV) realizam a concepção fora do organismo materno, e supõe uma consequente implantação do zigoto no útero materno. Todavia, como tais realidades são artificiais e excepcionais, e como isso não afeta nossa finalidade prática, daremos a definição descritiva de gestação tomando por base exclusiva a sua ocorrência natural.

22

Cf. FRANÇA, Genival Veloso. Fundamentos de Medicina Legal. 2ed. Editora Guanabara Koogan. Rio de Janeiro: 2014. p.227

16

definição desse segundo tipo, para o presente trabalho: aborto é a morte provocada do nascituro. O gênero próximo, no caso, é “morte provocada” (isto é, assassínio, termo que não empregaremos inicialmente por adotar pressupostos que serão discutidos ao longo do trabalho, como a humanidade do nascituro), e a diferença específica é “do nascituro”.

2.2 Considerações Históricas

O aborto provocado, nosso objeto de estudo, é eminentemente uma realidade humana – afinal, apenas o ser humano age voluntariamente 23. Assim, na medida que o homem é um ente temporalmente localizado, que age e interage com seu meio e cria, assim, uma história24, os atos humanos também são fatos que possuem sua história, dado o seu desenrolar ao longo das diversas eras e gerações de homens. Portanto, do mesmo modo como, para bem compreendermos uma pessoa é conveniente conhecer antes sua história, para conhecermos uma realidade humana – como o aborto – também convém antes investigarmos acerca de sua história. Todavia, como este não é o objetivo final deste trabalho, mas apenas um meio para alcançarmos nosso objetivo, nossa investigação terá certas limitações, sejam espaciais, sejam em profundidade, a fim de não nos perdermos numa mera investigação intermediária. Tomaremos por base para estas considerações o supracitado livro de Giulia Galeotti25, bem como as considerações históricas trazidas por Nelson Hungria26. 23

Os animais agem instintivamente, e não têm a capacidade de refletir sobre seus próprios atos. A ação voluntária demanda as potências do intelecto e da vontade, que se radicam na alma intelectiva do homem, distintamente da alma sensitiva dos demais animais, que ocupa um nível ontológico inferior. Cf. GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino. V.2 – Psicologia, Metafísica. 2 ed. Editora Paulus. São Paulo: 2013. p.23 ss.. ; REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. Editora Contraponto.. Rio de Janeiro: 2012 p. 97 ss.

24

Cf. CRUZ, Juan Cruz. Filosofia da História. Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”. São Paulo: 2007. pp.23 ss.

25

GALEOTTI, Giulia. História do Aborto. Edições 70. Lisboa: 2003

26

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. v.5 Editora Forense. Rio de Janeiro: 1958

17

A prática do aborto é tão antiga quanto a condição necessária para sua possibilidade: a gravidez. Desde passados remotos, o aborto ocorre na humanidade, com as mais diversas finalidades, todas tomando por meio desejado os fatos constitutivos e intrínsecos ao abortamento, a saber, a morte do nascituro e o término da gravidez. Todavia, nem sempre o aborto suscitou controvérsias na humanidade ou grandes reflexões morais. Por muito tempo, foi uma realidade considerada íntima e pessoal da mulher, ou do homem que possuía algum poder sobre a gestante. Na antiga Israel já vemos uma primeira repressão ao aborto. Como ressalta Nelson Hungria27, lê-se no livro do Êxodo:

“Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de aborto, sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará o que os árbitros determinarem. Mas se houver dano grave, então darás vida por vida”28

Do dispositivo citado é possível depreender algumas concepções da época. Em primeiro lugar, é notável que o valor que o culpado deve indenizar é o fixado pelo marido. Portanto, é plausível se afirmar que a tutela do aborto não se dava por conta de um direito do nascituro, mas sim por um direito do marido – o direito à prole/descendência. Em segundo lugar, vemos que o estipulado não exige intencionalidade na provocação do aborto. Hoje, diríamos que se trata de uma norma de responsabilidade objetiva. Todavia, é a primeira consideração que nos é mais relevante. Os tipos penais centram-se no bem jurídico que tutelam. O texto do Êxodo, portanto, não estaria entre os “crimes contra a vida”, mas possivelmente entre os “crimes contra a família”, se não nos “crimes contra a propriedade”. Na Grécia e Roma antigas, por sua vez, o aborto era considerado normal e tratado como assunto de foro íntimo da mulher. Vigia então a crença que foi bem sintetizada por Ulpiano, de que o nascituro era pars viscerum matris. Assim como 27

HUNGRIA, Nelson. op.cit. p. 269

28

Ex 21, 22-23. A tradução usada é a da Bíblia de Jerusalém.

18

a mulher era identificada com a maternidade, a gravidez era identificada como um processo exclusivo do corpo feminino, tão natural quanto a menstruação. Inclusive, era apenas a mulher quem podia afirmá-la ou negá-la, dado que só se conhecia a gravidez quando a gestante sentisse os movimentos do feto. Uma consideração de caráter embriológico deve ser feita, no entanto, para melhor se compreender o pensamento antigo. Os gregos – dos quais Aristóteles se sobressaiu no estudo das realidades naturais – não tinham, até por uma limitação dos instrumentos que a ciência da época dispunha, condições de conhecer realmente como se dá a formação e desenvolvimento de um novo ser humano. Dado que os pontos mais relevantes deste processo são microscópicos, os gregos só conheciam duas realidades macroscópicas que provinham do homem e da mulher: o sêmen e o sangue menstrual. Cria-se, na época, que o bebê que nascia se formou dentro do ventre materno pela conjugação do sêmen com o sangue menstrual. Entretanto, não se imaginava que essas duas realidades se misturavam dentro do útero. Havia o pensamento de que o sangue menstrual se coagulava dentro do útero materno, e que o sêmen paterno envolvia este coágulo e agia sobre ele, externamente, atribuindo-lhe forma humana. Isso se coadunava com a teoria que Aristóteles formulou – em sintonia com a composição hilemórfica 29 da realidade material por ele descoberta – de que o princípio material advinha da fêmea 30 enquanto o princípio formal31 advinha do macho. A falta de tutela ao nascituro também pode ser explicada por outro motivo além do parco desenvolvimento embriológico da época. O modelo familiar na Antiguidade era muito distinto do atual, sendo algo mais próximo de uma “mínima unidade produtiva” que da reunião de pessoas vinculadas por laços sanguíneos e afetivos. A família, como atualmente a concebemos, surgiu apenas 29

O hilemorfismo é a tese de que toda a realidade material possui dois princípios, que são a matéria e a forma – esta última o princípio imaterial que atribui a existência à materia prima, e define o que o ente em questão é. Cf. ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luis; MELENDO, Tomas. Metafísica. Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”. São Paulo: 2014. pp. 118 ss.

30

Optamos por “fêmea” e “macho”, em vez de “mulher” e “homem”, pois a tese aristotélica se aplicava a todos os animais, e não apenas ao ser humano.

31

O princípio formal dos seres vivos é aquilo que chamamos de alma. Aristóteles atribuía, assim, a humanidade do nascituro exclusivamente ao pai, dado que a mãe contribuiu apenas com a matéria em cima da qual seria feito um ser humano, por ação do sêmen paterno.

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após a influência do cristianismo na civilização clássica. Na civilização clássica, a estrutura familiar era composta por duas posições bem definidas, que são a do chefe da família, e a de seus subordinados. Nesta se encontram a esposa, os filhos, os escravos, etc. O poder do chefe sobre seus subordinados era incomensuravelmente maior do que o que hoje compreendemos por “pátrio poder”. O Direito Romano, onde se apresenta de modo claro esta concepção, previa que o pater familias possuía, sobre os filii familae, até mesmo o direito de vida ou morte (ius vitae et necis)32. Sabemos que, com o desenvolvimento do Direito Romano, o pátrio poder foi sendo reduzido, e o ius vitae et necis foi limitado33. Todavia, a abrangência deste poder nos períodos mais arcaicos nos dá claro sinal de como a mentalidade que reprimia o aborto não era semelhante à mentalidade atual, pois focava-se no direito de um terceiro sobre o nascituro (o pater, em geral), e não em um direito subjetivo34 do próprio nascituro. Havia – é claro – quem se opunha ao aborto, na sociedade clássica. Tal visão era comum, por exemplo, dentre os “homens da ciência”, como ressalta Giulia Galeotti35. Para prendermo-nos a um único exemplo, Hipócrates, o pai da medicina, era claramente crítico e opositor ao abortamento, tendo posto esta posição no seu conhecido Juramento que até os dias de hoje é venerado nos cursos de Medicina:

“nunca sugerirei a nenhuma mulher prescrições que a possam fazer abortar”

Mesmo fora do meio científico, também havia quem condenasse o aborto. Conforme nos remete Nelson Hungria36, Licurgo e Sólon, nas suas legislações, 32

Cf. ALVES, Moreira. Direito Romano. 14 ed. Editora Forense. Rio de Janeiro: 2010. p.621.

33

Cf. ALVES, Moreira. op.cit. p. 622

34

Tratamos aqui de uma concepção social acerca do direito subjetivo, sem o intuito de adentrarmos à nevrálgica questão do Direito Romano ser dotado do reconhecimento de direitos subjetivos ou ser um puro sistema de ações.

35

GALEOTTI, Giulia. op. cit. p. 37

36

HUNGRIA, Nelson. op. cit. p. 269

20

proibiram tal prática. Após o advento do Cristianismo, a preocupação com o abortamento cresceu. Um dos principais documentos do início dessa religião – a Didaqué, escrita no século I d.C. – condena explicitamente o aborto. Nessa época, os legisladores também começaram a reprimir o ato. Por meio de um edito imperial (um rescrito) datado entre o reinado de Sétimo Severo e Caracala, foram criadas sanções penais para o abortamento37. Todavia, nas primeiras manifestações legais, a preocupação – conforme ressaltamos anteriormente – era com um direito à prole por parte do pai, e também com um direito a um futuro cidadão por parte do Estado.38 Com a cristianização do Império Romano, por sua vez, começaram a surgir tutelas que tinham em vista não mais um direito do genitor ou do Estado, mas sim a condição humana do nascituro. Adriano, Constantino e Teodósio chegaram, por exemplo, a assimilar o aborto ao homicídio.39 Posteriormente, na Idade Média, longos debates foram travados acerca da condição humana do nascituro, discutindo-se quando ocorreria o início da humanidade deste. Como a filosofia postulava que nenhum ente poderia receber uma forma (nos seres vivos, alma) sem uma mínima disposição material que fosse apropriada à recepção desta forma, discutia-se quando se dava a infusão da alma intelectiva no nascituro.40 Cabe dizer que esta discussão tinha lugar apenas em decorrência da embriologia aristotélica tomada, que cria que o sêmen paterno, por meio de uma capacidade chamada vis formativa, advinda da alma intelectiva do pai, é que era responsável por modelar o corpo de um ser humano na massa 37

“A primeira sanção explícita do mundo romano foi um rescrito (datado entre o reino de Sétimo Severo e o de Antonino Caracalla, 193-217) com o qual foram introduzidas duas sanções penais contra essa prática. Exílio temporário para divorciadas ou casadas que tivessem abortado contra a vontade do cônjuge […] trabalhos forçados nas minas e exílio numa ilha com apreensão parcial dos bens para quem tivesse administrado chás ou filtros amorosos. Estava prevista inclusive a pena capital no caso de morte da mulher.” Cf. GALEOTTI, Giulia. op. cit. pp. 42(3)

38

A atual visão de cidadania e Estado é muito distinta da visão antiga. A título de exemplo, citamos a posição de Aristóteles, que sustenta que o suicídio é um crime contra a pólis, pois esta está sendo privada de um cidadão sobre o qual ela possuiria um direito. (cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ed. Edipro.São Paulo: 2014 p.213 (V, 1138a10)

39

HUNGRIA, Nelson. op. cit. p.271

40

Cria-se que, desde o início, o nascituro era vivo, ou seja, animado. Ocorre que se sustentava, por parte de alguns, que essa animação era primeiramente com uma alma vegetativa, posteriormente surgiria uma alma sensitiva e, apenas quando o corpo estivesse com aspecto humano é que seria infundida uma alma intelectiva criada diretamente por Deus.

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informe de sangue menstrual coagulado que provinha da mãe. Não se tinha ideia da existência de um óvulo, muito menos de um espermatozoide, ambos com suas informações genéticas mutuamente complementares, tampouco da fecundação. Os autores medievais postulavam, então, que o aborto só seria um homicídio após a infusão da alma racional41, que se daria 40 dias após a concepção, no caso de um homem, ou 80 dias, no caso de uma mulher. Havia quem discordasse, mesmo que não por motivos de ciência experimental, como São Basílio 42 e outros. Era relevante, também, a aplicação de um dito de Tertuliano 43, de que, ainda que o feto não fosse uma pessoa, haveria o dever de tratar-se como pessoa, desde o princípio, aquele que pessoa será. Com o decorrer do tempo, a tutela penal à vida do nascituro somente se ampliou. No final do século VI, o código visigótico do rei Leovigildo punia com pena de morte que fornecesse abortivo a uma mulher – e punia a mulher que abortou com chibatadas, se escrava fosse, ou com sua redução à escravidão (se fosse livre)44. Todavia, a questão sobre a animação ainda persistia. Mais de quinhentos anos mais tarde, São Tomás de Aquino, adotando a embriologia aristotélica, distinguia no aborto duas possibilidades distintas de pecado, sendo pecado semelhante ao homicídio apenas o aborto de um feto já com alma intelectiva. No século XIV, Bártolo de Sassoferrato separou a parte filosófico-jurídica da imputação do aborto da questão fática de quando se daria a tão discutida animação, e destinou esta última questão à ciência empírica.45 Já na era moderna, com o avanço da ciência e a compreensão do processo de formação embrionária do ser humano, eclesiologicamente a questão da animação 41

Alma racional e alma intelectiva são sinônimos.

42

Cf. HUGRIA, Nelson. op. cit. p.272

43

Referindo-se à visão da Igreja, Giulia Galeotti diz: “O princípio que permanece imutável no tempo é, portanto, o de que o feto, ser indefeso, deve ser protegido dos que pretendem eliminá-lo, e que sua eliminação deve ser equiparada ao homicídio. 'A nós (cristãos)', escreve Tertuliano, 'uma vez proibido o homicídio é também proibido matar o nascituro no útero materno, quando o sangue dá início a um homem. Impedir o nascimento é apressar o homicídio e não é diferente arrancar a alma ou destruí-la enquanto nasce. Quem se tornará homem já o é, assim como todo o fruto já existe no sémen.'”. Cf. GALEOTTI, Giulia. op. cit. p.53

44

Cf. GALEOTTI, Giulia. op. cit. p. 65

45

Cf. GALEOTTI, Giulia. op. cit. p. 68

22

foi solucionada, e a Igreja passou a postular que o aborto sempre seria equivalente a um homicídio46, punido-o, usualmente, com pena de excomunhão47 Já nos aproximando da realidade que é o foco do nosso estudo – o direito penal brasileiro contemporâneo – os diplomas legais que abordavam a matéria seguiram, de certa forma, uma lógica semelhante às condenações do direito canônico supracitado. Já no primeiro Código Penal do nosso país, o Código Criminal do Império (1830), o aborto era tipificado dentro dos “Crimes particulares” (isto é, dentre os crimes contra cidadãos, e não contra o Estado), nos “Crimes contra a segurança da Pessoa, e Vida”, na seção que trata de “Infanticídio”. Nesta seção, dois artigos se dedicavam ao aborto, o artigo 199 e o 200 do Código Criminal:

Art. 199. Occasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada. Penas - de prisão com trabalho por um a cinco annos. Se este crime fôr commettido sem consentimento da mulher pejada. Penas - dobradas. Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaesquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique. Penas - de prisão com trabalho por dous a seis annos. Se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes. Penas – dobradas.

Essencialmente, nota-se grande semelhança do artigo 199 com os atuais artigos 125 e 126 do Código Penal. O artigo 199 do então Código Criminal do Império tipificava tanto a conduta de provocar aborto com consentimento da 46

Cabe ressaltar que a visão da Igreja medieval, bem como a visão de São Tomás de Aquino, não tornava lícito o abortamento anterior à infusão da alma intelectiva. A questão debatida era apenas se o aborto seria um pecado contra a virtude da castidade, tal qual a contracepção, ou contra a virtude da justiça, como o homicídio.

47

O Papa Sisto V, em 29 de outubro de 1588, pela bula Effraenatam, aplicou a pena de excomunhão ao crime de aborto. Tal pena é recorrente para este delito no direito canônico, sendo vigente até os dias de hoje, pelo cânon 1398 do Código de Direito Canônico atual, de 1983, promulgado pelo Papa São João Paulo II.

23

mulher (hoje artigo 126 do CP) quanto a do aborto sem o consentimento da mulher (hoje artigo 125). O aborto sem o consentimento tinha a pena aplicada em dobro, o que demonstra que o legislador via maior reprovabilidade naquela conduta – o que se coaduna com a ideia que anteriormente expusemos de que o crime de aborto contra a vontade da mulher tutela dois bens jurídicos distintos, que são a vida do nascituro e o direito à prole da mulher. Todavia, como no Código de 1830 esses crimes estavam tipificados no mesmo artigo, depreende-se que não se via o aborto sem consentimento como um outro crime, mas sim se interpretava a falta de consentimento como uma qualificadora do crime de aborto. O artigo seguinte, art. 200, tipificava dois tipos de conduta, que seriam o fornecimento de abortivos resultando em aborto ou o mesmo fornecimento que não resultasse em aborto. Atualmente, esta primeira conduta é tomada por participação no crime de aborto (consensual ou não), por meio do artigo 29 do atual Código Penal. O artigo 200, tal como o que lhe antecede, também prevê uma qualificadora. Neste caso, é uma qualificadora subjetiva, que se determina em função do agente que pratica o fato: ser “médico, boticário, cirurgião, ou praticante de tais artes”. O sentido desta qualificadora se dá na maior reprovabilidade da conduta de fornecer abortivo quando praticada por alguém que, em função de seu ofício, teria o dever de zelar por uma vida, e não o de colaborar para seu fim (vide o que dissemos anteriormente acerca do Juramento de Hipócrates). Uma pergunta que poderia ser feita agora é onde estaria o crime hoje previsto no artigo 124, no Código Criminal do Império. A esse respeito, seria possível argumentar que o primeiro crime do artigo 124 do atual Código, que é “provocar aborto em si mesma” está contido no caput do artigo 199 do Código de 1830. Afinal, este condena a provocação de aborto com consentimento da mulher. Ora, uma das hipóteses de haver um aborto provocado com consentimento da mulher é quando a própria mulher o provoca. Assim sendo, a mulher que provocasse aborto em si mesma incorreria no crime do artigo 199. Contudo, não era essa a aplicação da lei.

24

A segunda parte do atual artigo 124, “ou consentir que outrem lho provoque”, não se encontra tipificada literalmente48 no artigo 199 do Código Criminal do Império. Assim, nota-se que tal conduta não era punida sob a ordem do Código de 183049, não havendo pena então, à mulher que abortasse, mas apenas a quem causava o aborto com ou sem o consentimento dela. Verifica-se que a ausência de punição à gestante era objeto de críticas 50, de modo que a posterior legislação criminal do Brasil reviu tal disposição, passando a punir a gestante. Já na República houve a promulgação de um novo Código Penal, no ano seguinte à Proclamação. O então Código Penal da República, o Código de 1890, também disciplinava a questão do aborto, que vinha tratado num capítulo separado do delito de infanticídio – diferentemente do Código Criminal do Império, onde infanticídio e aborto dividiam a mesma seção. No seu Título X, que tratava dos Crimes contra a Pessoa e a Vida, o Aborto ocupava o Capítulo IV, vindo depois do Homicídio, Infanticídio e Suicídio. Dizia o Código:

48

Ainda que fosse possível fazer uma interpretação de tal artigo à luz das normas de coautoria e participação (então chamadas de “cumplicidade”), vemos que essa não era a interpretação dada à lei, na época.

49

Cf. PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v.2. 10ed. Revista dos Tribunais. São Paulo: 2011. p. 129.

50

O médico João Gomes dos Reis, em sua tese sobre o aborto, de 1845, criticava a legislação de 1830 justamente por esse motivo: “quiséramos que as mães também fossem punidas, e que se estabelecessem penas graduadas, de maneira que um juiz ilustrado e consciencioso pudesse bem repartir a justiça, segundo esta ou aquela circunstância, de que o delito fosse revestido”. - REIS, João Gomes dos. Dissertação médico-legal sobre o aborto precedida de algumas considerações acerca dos motivos que em geral levam as mulheres a provocá-lo e meios de o prevenir. Tese Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1845. Apud SILVA, Marinete dos Santos. Reprodução, sexualidade e poder: as lutas e disputas em torno do aborto e da contracepção no Rio de Janeiro, 1890-1930. [Artigo Científico] in: História, Ciência e SaúdeMaguinhos vol. 19 no.4. Rio de Janeiro. Out/Dez. 2012. [Disponível online em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702012005000005] [Acesso em 29 de Março de 2016]

25

Art. 300. Provocar abôrto, haja ou não a expulsão do fructo da concepção: No primeiro caso: pena de prisão cellular por dous a seis annos. No segundo caso: pena de prisão cellular por seis mezes a um anno. § 1º Si em consequencia do abôrto, ou dos meios empregados para provocal-o, seguir-se a morte da mulher: Pena: de prisão cellular de seis a vinte e quatro annos. § 2º Si o abôrto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercicio da medicina: Pena: a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação. Art. 301. Provocar abôrto com annuencia e accordo da gestante: Pena: de prissão cedular por um a cinco annos. Paragrapho unico. Em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com reducção da terça parte, si o crime for commettido para occultar a deshonra propria. Art. 302. Si o medico, ou parteira, praticando o abôrto legal, ou abôrto necessario, para salvar a gestante de morte inevitavel, occasionar-lhe a morte por impericia ou negligencia: Pena: de prisão cellular por dous mezes a dous annos, e privação do exercicio da profisão por igual tempo ao da condemnação.

Uma primeira coisa que se nota da leitura dos artigos supracitados é a imperícia da redação dos mesmos, se comparados com os artigos 199 e 200 do Código Criminal do Império. O artigo 300 do Código de 1890 tipifica “provocar aborto”. Já o artigo 301 tipifica “provocar aborto com a anuência da gestante”. A pena do artigo 300 é maior que a do 301. Todavia, o crime do artigo 301 está contido dentro do crime do artigo 300. Assim, um crime menos reprovável estaria contido legislativamente dentro do tipo de um mais reprovável, sendo distinguido deste por uma diferença específica: “com a anuência da gestante”. Esta diferença, na prática, está fazendo o papel de uma qualificadora às avessas, como se fosse um “aborto privilegiado”. Melhor seria – cremos – se o legislador tivesse especificado no artigo 300 que o “provocar aborto” ali descrito exige o quesito “sem a anuência da gestante”, de modo que o crime do artigo 301 não fique contido no do 300. 26

Todavia, à parte a redação dos tipos, parece-nos que a distinção em três tipos penais e a adição de parágrafos constituiu uma redação mais proveitosa do que a anteriormente feita, em apenas dois tipos penais. O “provocar/ocasionar aborto com consentimento”, ato tipificado antes no artigo 199, no primeiro diploma republicano encontra-se no artigo 301. Já a qualificadora do antigo artigo 199, a falta de consentimento da mulher, não mais é tomada por qualificadora, constituindo um tipo penal próprio, que é o artigo 300 (dado que o 301 tipifica aborto sem consentimento, e o 300 tipifica genericamente “aborto”, o 300 seria aplicável apenas aos abortos não tipificados no 301, ou seja, aos abortos sem consentimento). Não se encontra mais a tipificação do fornecimento de abortivos que outrora havia no artigo 200 dentro da seção que trata do aborto. Uma explicação plausível para tal alteração poderia ser que todos os tipos ora postos são crimes de dano, enquanto o fornecimento de abortivo tipificado no antigo artigo 200, dada a ressalva de que não era relevante a posterior consecução de um aborto ou não era, sendo um crime de risco. Portanto, talvez o legislador republicano tivesse elegido apenas a criminalização de danos concretos, e não de riscos. Todavia, esta é apenas uma conjectura. Analisando em si mesmos os artigos do texto de 1890, vemos que o primeiro artigo sobre aborto, o 300, contempla uma hipótese geral: “Provocar aborto”. Este artigo estabelece duas penas distintas, para os casos de expulsão ou não expulsão do “fruto da concepção”, considerando mais graves os casos em que houver a expulsão do concepto. Mesmo assim, nesses casos, as penas cominadas são menores que as do antigo artigo 199 para este crime. O que antes era punido com dois a dez anos de prisão, no Código de 1890 é punido com dois a seis anos de prisão, sem os trabalhos previstos no de 1890. Já o aborto sem a expulsão do concepto – não previsto

no Código de 1830, mas que materialmente é

interseccionado pelo tipo penal do antigo artigo 200 - é punido com apenas seis meses a um ano de prisão. Este aborto, na verdade, em que não há a expulsão do concepto, é possível no início da gravidez, quando o embrião pode sofrer um processo de autólise dentro do útero materno, após ser morto, o que leva à sua não-expulsão. De forma semelhante, também é possível que ele se calcifique e 27

permaneça no útero como um corpo estranho51. No primeiro parágrafo do mesmo artigo há uma pena para o aborto que resulta em morte da mãe. A pena é a mesma que a do crime de homicídio sem agravantes (artigo 294, §2, Código Penal de 1890), a prisão de seis a vinte e quatro anos. A título de comparação, o mesmo crime hoje em dia seria punido com uma pena de seis a vinte anos, que também é a mesma pena aplicada atualmente ao homicídio simples (artigos 125 e 127 do Código Penal vigente). Vemos aqui, portanto, um caso de crime qualificado pelo seu resultado. No segundo parágrafo, por sua vez, há uma previsão de suspensão da habilitação para o exercício da medicina ou do ofício de parteira durante o cumprimento da pena, caso o agente seja médico ou parteira. O artigo seguinte, o 301, trata do aborto praticado com o consentimento da gestante. O caput deste artigo é uma paráfrase do antigo artigo 199 do Código de 1830. A pena, inclusive, consiste nos mesmos um a cinco anos de prisão, com o diferencial de que não haveria a obrigatoriedade de trabalhos, como no antigo 199. Todavia, em seu parágrafo único, ele traz um texto não presente no antigo artigo 199 do Código Criminal do Império: “em igual pena incorrerá a gestante que conseguir abortar voluntariamente”. Dessa forma, fica claro que a mulher que pratique aborto em si mesma ou que peça que outrem lho faça (como está hoje no atual artigo 124) também é punida. Ainda no parágrafo único, é disposto um fator privilegiador do crime de aborto praticado pela própria gestante: “se o crime for cometido para ocultar desonra própria [reduz-se a pena em um terço]”. Comparando a pena deste artigo, de um a cinco anos, com a pena do artigo 300, depreende-se que o legislador de 1890 julgou menos culpável o aborto provocado pela gestante ou o próprio consentimento desta do que o ato do terceiro que provocou o aborto quando ela assim desejou. Tal opção legislativa é semelhante à do atual Código – portanto, sendo mantida pelo legislador de 1940. O artigo 302, por sua vez, cria um crime próprio, dado que só pode ser praticado por um médico ou parteira (e com a segunda especificidade de “praticando aborto legal/necessário”). Pela primeira vez a legislação pátria dispõe 51

Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v.2. 10ed. Revista dos Tribunais. São Paulo:2011 p. 134.

28

especificamente um caso em que o aborto não seria punido: o aborto legal ou necessário, que é aquele feito para se salvar a vida da mãe. Todavia, o sentido do artigo 302 não é a exclusão da punição do dito “aborto legal ou necessário”, o que dispunha colateralmente, mas sim a tipificação da conduta dos médicos/parteiras que agissem culposamente (por negligência ou imperícia) num aborto legal e ocasionassem a morte da mulher. Após meio século de vigência, o Código Penal de 1890 foi substituído pelo Código Penal de 1940, que entra em vigor apenas em 1942, e permanece – com reformas – em vigor até os dias de hoje. Cabe-nos apresentar seus dispositivos nesta análise histórica, a fim de compará-los com os artigos do Código Criminal do Império e do Código Penal de 1890. Posteriormente, passaremos ao estudo em separado dos artigos que abordam o tema do aborto voluntário. O Código de 1940, apresentando notável superioridade em técnica legislativa em relação ao de 1890, dispõe acerca do aborto em cinco artigos. Notese a progressão histórica no sentido de aumento da especificidade do tratamento do aborto: nas Ordenações Filipinas, não se encontra qualquer referência ao crime, ao passo que a ele dedicam-se 2 artigos no Código de 1830, 3 no de 1890 e 5 no de 1940. Dessa forma, o atual Código é o que possui mais artigos a respeito do aborto. Topologicamente, o aborto foi colocado dentro do Título I, que trata dos Crimes contra a Pessoa, no Capítulo I, cujo objeto são os Crimes contra a Vida. É antecedido pelos crimes de homicídio, induzimento ao suicídio e infanticídio. Pela sua própria posição, deduz-se que o bem jurídico ali tutelado é a vida de uma pessoa: o nascituro52.

52

Considerando que o aborto está dentro do Título que trata dos crimes contra a pessoa, sustentamos que o próprio legislador de 1940 reconheceu a pessoalidade do nascituro. Do contrário, cremos que o crime de aborto seria posto dentro do Título VII, que versa acerca dos crimes contra a família. Como, dentro do Título I, ele se localiza no Capítulo I, dos Crimes contra a Vida, parecenos igualmente claro que foi reconhecido pelo legislador que abortar é retirar a vida de uma pessoa. Portanto, pela própria leitura do Código, não seria cabível a argumentação de que abortar é retirar uma expectativa de vida ou expectativa de pessoalidade, como é amplamente difundido hoje em dia. Todavia, justamente por essa argumentação ser aceita por considerável parte da academia, pretendemos enfrentá-la filosoficamente na segunda parte deste trabalho, e não centraremos nossa argumentação na mera consideração do que o legislador tomou por bem por escrever.

29

Os artigos redigidos pelo legislador de 1940 são os de número 124 a 128:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124: Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos Aborto provocado por terceiro Art. 125: Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128. não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Numa primeira análise, notamos que as condutas criminalizadas são as mesmas do Código de 1930, com duas alterações: o aumento aplicado à pena do aborto (com ou sem consentimento) quando ocorre lesão corporal grave à gestante, e a isenção de pena do aborto realizado em caso de estupro. O crime do artigo 124, que se centraliza na conduta da gestante que provocou ou consentiu no aborto é aquele outrora localizado no parágrafo único do artigo 301 do Código Penal de 1890 – com a alteração de que não mais a pena é minorada quando o crime é cometido com o intuito de “ocultar a própria 30

desonra”. O artigo 125, por sua vez, que criminaliza o aborto provocado sem o consentimento da gestante, atinge os mesmos casos englobados pelo artigo 300 do primeiro Código Penal republicano – que, como já ressaltamos mais de uma vez, atingia apenas os abortos provocados sem o consentimento da gestante, embora ele não especificasse isso, dado que os abortos provocados com o consentimento da mesma eram objetos do caput do artigo 301. Já o artigo 126, que penaliza o aborto provocado com o consentimento da gestante, é de conteúdo semelhante ao caput do antigo 301. Ocorre inovação no artigo 127. Sua função é dispor duas qualificadoras objetivas, segundo o resultado preterdoloso. A primeira delas, que aborda o resultado de lesão corporal grave (incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias, perigo de vida, ou deformidade permanente de membro, sentido ou função, conforme o parágrafo 1º do artigo 129 do Código Penal) na gestante em decorrência do abortamento ou do meio utilizado para sua realização, não se encontra no Código Penal de 1890. Já a segunda, que dispõe acerca do resultado morte é semelhante ao primeiro parágrafo do antigo artigo 300. Com o artigo 128 ocorre o mesmo que com o anterior. Nele, dispõe-se que há dois casos em que não há punição para o aborto, com a ressalva de que este deva ser praticado por médico – o risco de vida da gestante, no inciso I, e a origem da gravidez, por estupro, conforme o inciso II. A primeira parte, desta vez, é a que possui histórico no Código anterior, sendo extraída da interpretação do antigo artigo 302 (que, como dito quando o comentamos, não tem por finalidade direta a exclusão da sanção penal em tal caso). A segunda parte, por sua vez, é nova. Destes artigos do vigente Código, nem todos serão por nós analisados em profundidade. Como já dito em outro momento, nosso enfoque será nos dispositivos que se aplicam a um aborto feito com o consentimento da gestante. Três artigos nos interessarão, então: o 124, o 126 e 128. Passemos, enfim, ao estudo da realidade que eles regem e à norma por eles disposta.

31

2.3 Artigo 124, CP: a regra geral.

Dos três artigos que nós tomaremos por objeto material em nosso estudo, um se refere ao aborto consensual (artigo 124), outro à prática de aborto consensual em outrem (artigo 126), e o último (artigo 128) aos casos em que não se aplica a pena a tais crimes. Notamos, porém, que há dois artigos centrais, que se referem positivamente ao fato tipificado (sancionando-o), e o terceiro atua apenas de modo acidental, tratando de um conjunto de casos específicos que está contido nos dois outros artigos, mas que é menor que a soma dos conjuntos de ambos. Dessa forma, para tratarmos do terceiro artigo, é conveniente que tenhamos abordado os artigos 124 e 126 previamente. Esses dois artigos, de certa forma, versam sobre uma mesma realidade, a saber, o aborto consensual. Em um abortamento consentido, a mulher que dá seu consentimento para a prática do aborto não necessariamente será a mesma pessoa que irá provocá-lo, podendo haver, assim, uma cisão no polo ativo do fato delituoso, que se desdobrará em duas diferentes condutas, cada uma concorrendo com um elemento (consentimento/ação) para a consecução do fim (aborto). Tendo isto em vista, nota-se que o texto legal foi redigido pelo legislador de 1940 com uma dualidade de artigos tipificando condutas relativas a um mesmo fato objetivo. Fez o legislador o artigo 124 de forma que ou o crime se esgote nesse tipo, ou – quando há um agente distinto da gestante – ele transcende e alcança também a conduta tipificada no artigo 126. Assim, em todos os casos em que se aplica o artigo 126, também se aplicará o 124 (pois, por definição, nenhum sujeito pode praticar um aborto com o consentimento da gestante sem haver uma gestante consentindo nesse aborto); embora em nem todos os crimes nos quais incidirá o artigo 124 será aplicado o 126 (pois o artigo 124 também engloba a conduta da gestante que pratica o aborto em si mesma, sem um terceiro intervindo no ato). Do fato ressaltado acima – de que sempre que ocorre a incidência do artigo 126 ocorrerá também a do 124, embora o inverso não seja verdadeiro – decorre 32

que é conveniente, para nosso estudo, que iniciemos nossa abordagem pelo artigo 124, dado que os casos de aplicação do 126 o pressupõem. Para tanto, se faz útil repetirmos o texto legal:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Da sua análise textual, podemos notar que ele tipifica, em seu caput, 2 condutas distintas, não sendo necessária a caracterização de ambas para a concretização do tipo, dado que o conectivo que as une é um 'ou', e não um 'e'. Por isso, o artigo 124 é classificado como um tipo penal misto alternativo. A primeira conduta por ele tratada é “provocar aborto em si mesma”. Como já dito no início de nosso trabalho53, o mais adequado seria que o legislador tivesse escrito “provocar abortamento”. Todavia, a doutrina e a jurisprudência compreendem e tomam – tal qual o linguajar comum – aborto e abortamento como sinônimos. Já a segunda parte do artigo criminaliza o consentimento da gestante à provocação do aborto por ação de um terceiro: “ou consentir que outrem lho faça”. A diferença desta para a primeira parte do artigo é que aqui as manobras e práticas feitas no intuito de gerar o abortamento não são feitas pela própria gestante, mas sim por alguém que o faz com o consentimento desta. Este consentimento, por sua vez, não necessita ser expressamente manifestado sob a forma de um pedido, podendo ser a livre aceitação da gestante ao abortamento que alguém lhe ofereça como serviço, por exemplo. É necessário, todavia, que ele seja livre e consciente: a incapaz por idade ou motivos psiquiátricos não pode dar consentimento. Ambas as condutas do artigo 124 caracterizam crimes próprios, dado que somente gestantes podem praticar tal crime, pois o aborto pressupõe uma gestação em curso. Uma tentativa de abortamento sem uma gestação configuraria crime 53

Cf. nota de rodapé nº 1.

33

impossível por absoluta impropriedade do objeto 54: não há aborto se não há nascituro. Não há coautoria possível para os crimes do artigo 124, pois o terceiro que atuasse no procedimento (1ª parte do caput do artigo) seria atingido pelo artigo 12655 - embora seja possível a participação no delito, por exemplo, quando o partícipe induz ou instiga uma mulher a praticar aborto em si mesma, como ressalta Régis Prado56. É irrelevante o meio empregado pela mulher para a consecução do abortamento, desde que esse seja um meio idôneo e não interponha um outro agente (para a primeira parte de artigo 124). Caso haja algum agente interposto, ela incidirá na conduta prevista pela segunda parte do caput: “ou consentir que outrem lho faça”. A idoneidade necessária para o meio empregado leva ao fato de que, quando o meio empregado for inidôneo – imaginemos o caso da gestante buscar o aborto por meio de simpatias, a título de exemplo – ela não praticará o crime do artigo 124, mas sim crime impossível por ineficácia absoluta do meio 57. Quando a gestante busca o aborto por meio da ação de um médico, ela incorre no crime descrito na segunda parte do caput do artigo 124, incidindo o médico no crime expresso pelo artigo 126. É necessário, como elemento subjetivo do tipo, o dolo, ao menos eventual.

Não

é

suficiente

nem

mesmo

a

culpa

consciente

ou

a

preterintencionalidade – não se prevê a figura de um aborto preterdoloso, como ressalta Nelson Hungria.58 Apesar do artigo 124 tipificar duas condutas, elas conservam uma unidade lógica – conforme visto acima –, que pode ser compreendida ao considerarmos que as duas partes do tipo preveem uma ação praticada pela gestante. Tal ação, por sua vez, sempre consistirá na prática do aborto em si mesma através de algo: no autoaborto o meio empregado pela gestante será não-humano, como fármacos, 54

Código Penal, artigo 17: Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

55

Aqui é um exemplo de crime que o legislador de 1940 deixou de adotar a Teoria Monista, diga-se de passagem.

56

Cf. PRADO, Luiz Régis. Op. Cit. p. 140

57

Código Penal, artigo 17: Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

58

Cf. HUNGRIA, Nelson. op. cit. p. 290

34

intervenções físicas, etc; ao passo que, no aborto consentido (tipificado na segunda parte do caput), a gestante utilizará como instrumento a ação de outra pessoa – a qual, por ser um agente dotado de voluntariedade e consciência, também sofrerá punição, através do artigo 126 do Código. Considerando que o aborto voluntário pode, portanto, ser efetuado com o emprego da ação de um terceiro - “agente dotado de voluntariedade e consciência”, como ressaltamos no parágrafo anterior –, cabe-nos analisarmos agora o artigo que a este se aplica.

2.4 Artigo 126, CP.

Primeiramente, repitamos o dispositivo legal: Aborto provocado por terceiro Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

O artigo 126 busca atingir o outro lado do polo ativo de um aborto consentido. Como já dissemos diversas vezes, o aborto consentido tem por polo passivo (vítima) o nascituro, e por polo ativo (autor) a gestante. Esta poderá ou não se utilizar de um terceiro para a consecução do resultado. Quando houver este terceiro, o polo ativo se desdobrará em dois lados, com a gestante dando seu consentimento e o terceiro atuando no sentido da provocação do abortamento. Ambos concorrerão para a causação do resultado aborto, todavia, responderão por crimes diversos. O artigo que trataria da gestante nós já vimos, portanto agora estudaremos o artigo 126, que versa sobre a conduta do terceiro. Diferentemente do crime do artigo 124, o tipo penal do 126 é um crime comum, dado que qualquer um (menos a própria gestante) pode provocar o 35

abortamento, sem a necessidade de qualquer qualificação subjetiva. Note-se que, para fins da aplicação penal do artigo 126, não faz a menor diferença o fato do agente ser profissional da saúde ou não – o que reforça a clareza de que a vida do nascituro é o bem jurídico aqui tutelado, e não uma abstrata “saúde pública” interessada em “abortos seguros”, como fora no antigo ordenamento jurídico da União Soviética59, por exemplo. A convicção de que o bem jurídico tutelado pelos tipos penais que criminalizam o aborto é a vida do nascituro será de central importância para a posterior discussão que desenvolveremos acerca da legislação ideal. Além do fato de ser um crime comum, notamos que o artigo 126 tem por elemento subjetivo o dolo, não criminalizando uma conduta culposa, mesmo que seja por culpa consciente. Além disso, temos um crime em que é amplamente admissível o concurso de agentes, seja pela modalidade da coautoria, seja pela participação. Em comparação com o artigo 124, temos aqui uma conduta na qual o legislador vê maior reprovabilidade. O artigo 124 criminaliza a conduta da mãe que decide abortar seu filho, e o faz, seja por conta própria, seja usando do auxílio de um terceiro. Já o artigo 126 trata do terceiro que foi usado pela mulher para a consecução do aborto. Enquanto o legislador atribui uma pena de detenção (que poderá ser cumprida em regime aberto ou semiaberto) ao crime cometido pela mãe, ao terceiro é atribuída a pena de reclusão (que pode ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto), com duração de 1 a 3 anos para a mãe, e 1 a 4 para o terceiro. Apesar de, em ambos os casos, o legislador ter cominado pena diminuta – sendo a do artigo 124 a menor de todos os crimes dolosos contra a vida (Capítulo I do Título I da Parte Especial do Código Penal, capítulo no qual se insere o crime de aborto), e idêntica à do homicídio culposo (art. 121, §3) – os crimes dos artigos 124 e 126 não são considerados crimes de menor potencial ofensivo, dado que as penas máximas são superiores a dois anos. Desta forma, eles não se incluem na previsão do artigo 61 da Lei 9099/95 e não deverão ser julgados em Juizados 59

O artigo 116 do Código Criminal Soviético de 1955 punia apenas a prática do aborto feita por nãomédicos.

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Especiais Criminais. Em verdade, por serem crimes dolosos contra a vida, eles possuem procedimento especial, devendo ser julgados por meio do tribunal do júri, conforme dispõe a alínea “d” do inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal60 e o artigo 74, §1º do Código de Processo Penal61. O legislador, nesses crimes, deixou de empregar a teoria monista que norteou a tipificação das condutas presentes na Parte Especial do Código, cindindo um mesmo fato (um abortamento provocado com o consentimento da gestante) em dois tipos penais distintos, conforme a prática seja pela mãe literalmente provocando o aborto, ou autorizando/desejando sua provocação – ou por um terceiro que o faça com o consentimento da mãe. Dado que suas penas – como já ressaltamos acima – são distintas, cremos que a opção do legislador pela cisão do tipo penal segundo seu agente deu-se pela consideração de que a reprovabilidade da conduta é distinta conforme quem provoque o aborto seja a mãe do nascituro ou um terceiro. O sentido da pena mais severa é justamente a consideração de que o crime cometido pelo terceiro é mais reprovável, pois este deveria, com maior firmeza, se recusar à prática do aborto que fora pedido pela mulher, haja vista que esta, muitas vezes, se encontra subjetivamente numa situação de menor culpabilidade, afetada pelo desespero e pelas aflições oriundas de uma gestação indesejada. O terceiro, que presumivelmente possuiria um ponto de vista mais imparcial e privilegiado da situação daquela gravidez teria, então, um dever maior de recusar-se a praticar tão vil ato.

60

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: […] d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

61

Art. 74 A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri. § 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados.

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Em nossa visão, concordamos com a opção tomada pelo legislador. De fato, muitas vezes o terceiro se aproveita da situação aflitiva da mulher para buscar contrapartidas financeiras, além de frequentemente ser ele um profissional da saúde, o qual tem dever de ofício de proteger – e não tirar – a vida. Todavia, cremos que este dever profissional deveria ser constitutivo de uma qualificadora da conduta do artigo 126, bem como que a pena aplicada à mulher deveria ser a mesma do artigo 126 sem esta qualificadora, pois a mãe também possui um dever de preservação daquela vida. Ademais, talvez este dever seja até mais forte no caso da gestante, uma vez que ele é natural, não sendo oriundo da profissão, mas do vínculo mesmo da maternidade, e é, sem dúvidas, mais específico, pois se aplica a “este” nascituro em concreto, e não a qualquer pessoa em abstrato. Além do artigo 126, há outro dispositivo no Código que trata do aborto realizado por terceiro. Contudo, este dispositivo (o artigo 125), trata do aborto realizado pelo terceiro sem o consentimento da gestante, distanciando-se sobremaneira do nosso objetivo neste presente estudo, motivo pelo qual não o abordaremos. Ressaltamos, apenas, que o artigo 126 está mais próximo, em questão de reprovabilidade, do artigo 124 – dado que o terceiro que atua com o consentimento da gestante muitas vezes é apenas uma longa manus desta – do que do artigo 125, crime no qual o terceiro está tanto ceifando a vida de um nascituro (como nos artigos 124 e 126) quanto a prole de uma mãe que poderia desejá-la (no que o difere do 124 e 126). Considerando que o artigo seguinte, o 127, trata apenas de agravantes do crime do 126, que aumentam sua pena conforme o resultado do abortamento inflija consequências danosas à saúde e vida da gestante, sendo assim, um anexo daquele artigo que o qualifica pelos resultados, passaremos diretamente ao estudo do artigo 128, o relevantíssimo dispositivo do Código Penal que remove a punição dos crimes do artigo 124 e 126 em certos casos, os quais abordaremos individualmente e com grau de detalhamento adequado à profundidade de nosso estudo.

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2.5 Artigo 128: as permissivas

O artigo 128 do Código Penal, conforme já ressaltado anteriormente, dispõe acerca das situações fáticas em que não se aplicará punição ao ato do abortamento, em seus dois incisos. Convém, de início, sua repetição, a fim de que possamos melhor explanar as hipóteses nele previstas:

Art. 128. não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

2.5.1 Artigo 128, I: o “aborto necessário” ou “terapêutico”.

O inciso I do artigo 128 do Código Penal postula a primeira situação em que o aborto não será punido. Comumente, tal situação é a chamada de “aborto necessário”. Nelson Hungria assim o define62: “é a interrupção artificial da gravidez para conjurar perigo certo, e inevitável por outro modo, à vida da gestante”. Pode ele, ainda segundo Hungria, ser de natureza terapêutica (curativa) ou profilática (preventiva)63.

Em outras palavras, o legislador postula que, num hipotético caso no qual a vida da gestante somente possa ser salva por meio do término da gravidez, o médico (e a gestante) poderão encerrar a gravidez com um abortamento provocado, sem sofrer, por isso, qualquer sanção penal. O procedimento abortivo, contudo, é verdadeiramente independente do consentimento da gestante ou de sua

62

HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 309

63

Idem.

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família, havendo verdadeira permissão de intervenção arbitrária do médico64, sem que este se sujeite a qualquer sanção no âmbito do direito penal. Conforme Luiz Régis Prado65 e a ampla maioria dos penalistas pátrios, tal excludente se fundamentaria no estado de necessidade, excluindo a própria ilicitude da conduta.

2.5.1.1 Crítica à nomenclatura de “aborto terapêutico”

Embora tal hipótese de abortamento seja conhecida pela doutrina como “aborto terapêutico”, certa crítica convém ser feita à nomenclatura adotada, tendo em vista que esta não descreve adequadamente a realidade compreendida. Em primeiro lugar, há que se frisar que o aborto tratado pelo artigo 128, I, reduz-se à situação em que, como se encontra escrito no próprio texto legal, não há outro meio de salvar a vida da gestante. A progressiva supressão dessa realidade em prol da nomenclatura de “aborto terapêutico” concedeu, de pouco em pouco, amplitude demasiada a tal instituto, que, em sua origem, voltava-se de fato à manutenção da vida biológica da gestante, sujeita a severo risco de morte se à gestação não se pusesse termo. Com a definição cada vez mais vaga e ampla do conceito de saúde, que, de saúde biológica passou a incorporar também a esfera psicológica, e, nesta, o próprio bem-estar, a noção de “terapia” envolvida na nomenclatura do “aborto terapêutico” começou a ser expandida para o âmbito psicológico (havendo, em legislações estrangeiras, a introdução da “saúde psicológica” e do “bem estar” como excludentes de ilicitude para a prática do abortamento), conduzindo a um estado de flexibilização legislativa, por parte de certa ala mais engajada da doutrina, que busca, pela mera interpretação do texto legal, alterar em absoluto o ordenamento jurídico – à revelia do devido processo legislativo. O aborto compreendido pelo artigo 128, I, não deve, assim, ser chamado de “terapêutico”, em primeiro lugar, pela vastidão do conceito de “terapia”. O 64

HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 311

65

PRADO, Luiz Régis. Op. Cit. p. 144

40

Código Penal exclui sua punição caso seja necessário para salvar a vida biológica da gestante – apenas e tão somente. Há, nessa figura, um intrínseco caráter de urgência e imprescindibilidade, incompatível com sua progressiva dissolução num abstrato conceito de “terapia”. Em segundo lugar, deve ser ressaltado o problema de se chamar um procedimento de provocação do aborto de “terapia”. Se – pela simples exegese literal e topológica do Código – o legislador compreende que o aborto é um crime no qual se atenta contra o bem jurídico “vida”, pertencente a uma “pessoa humana”, chamar uma espécie de aborto de “terapêutico” faz tanto sentido quanto chamar um homicídio (cometido em legítima defesa, se assim se preferir) de “terapêutico”. A ação de matar, compreendida tanto pelo artigo 121, quando cometida contra pessoa adulta, quanto no 124 e seguintes, quando contra nascituro, é incompatível com o conceito de terapia. Por fim, chamar a excludente do artigo 128, I, de “aborto terapêutico” atentaria contra a própria realidade. Se, em 1958, Hungria já observava que “a ciência médica, cada vez mais, diminui as hipóteses de indicações terapêuticas do aborto”, quanto mais hoje as hipóteses em que o aborto se faz necessário para a salvação da vida biológica da mãe tornam-se abstrações hipotéticas e inverificáveis na realidade prática. No mesmo sentido da observação de Hungria, Genival Velloso de França :

“Cada dia que passa, tão grande tem sido o avanço das ciências médicas que as indicações do aborto terapêutico diminuem, tornando raras as indicações indiscutíveis. […] Com o passar dos dias, chega-se à conclusão de que são raros os casos em que o médico necessite intervir ante a possibilidade real de perigo de vida para a gestante. No futuro, passará essa forma de conduta como tantas outras já passaram em medicina.”66

Dessa forma, o nome “aborto terapêutico” se encontra, ao menos, ultrapassado, por ser resquício de época em que a obstetrícia, pelo seu baixo desenvolvimento, não encontrava respostas satisfatórias a certas situações de 66

FRANÇA, Genival Veloso. Op. cit. p. 229

41

risco, que hoje foram devidamente solucionadas. Além do fato de não se tratar de uma terapia, mas de um atentado contra o bem jurídico “vida”, reconhecido pelo legislador, a aplicação do 128, I, se devidamente interpretado, deveria ser, hoje, diminuta ou insignificante. A previsão do 128, I, é, assim, o aborto cometido, segundo a doutrina majoritária, no dito “estado de necessidade” – não se trata, portanto, de terapia, mas de necessidade.

2.5.2 Artigo 128, II: o aborto em caso de estupro.

Em seu segundo inciso, o mesmo artigo versa acerca do aborto cometido em caso de gravidez resultante de estupro – chamado pela doutrina de “aborto humanitário”, ou “ético”, ou ainda “sentimental”. Importa observar que a verificação da origem da gestação, conforme a doutrina penal majoritária67 independe de sentença penal condenatória transitada em julgado, bastando fundamentação sólida da origem violenta da gestação. Com o passar dos anos, todavia, tal exigência foi sendo cada vez mais flexibilizada, de modo que a atual orientação do Ministério da Saúde atribui presunção de veracidade à palavra da mulher, dispensando até mesmo o registro da ocorrência no órgão policial competente: O Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesse caso, a não ser o consentimento da mulher. Assim, a mulher que sofre violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. O Código Penal afirma que a palavra da mulher que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência, deve ter credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade. O objetivo do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde, portanto não cabe ao profissional de saúde duvidar da palavra da vítima, o que agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida. Seus procedimentos não devem ser confundidos com os procedimentos reservados a Polícia ou Justiça. 68 67

Cf. HUNGRIA, Nelson. Op. cit. pp. 312-313

42

Diferentemente do primeiro inciso, neste tem-se por requisito necessário ao enquadramento do aborto na excludente a prévia autorização do procedimento pela gestante ou seu representante legal. Dessa forma, a base última da eximente 69 é fundamentada no consentimento da gestante – pautada, segunda a doutrina, pelo princípio da inexigibilidade de conduta diversa. Não se pode – todavia – concluir, a partir deste fato, que o único bem jurídico a ser tutelado é o bem-estar da gestante, pois, do contrário, todo abortamento voluntário seria permitido pelo legislador penal. Deve-se, então, adotar o entendimento de que o legislador efetuou uma opção política por, no conflito entre dois bens jurídicos (bem-estar da gestante e vida do nascituro), autorizar o sacrifício de um destes bens (a vida do nascituro) em prol do outro.

2.6 Da natureza das excludentes70

Um dos questionamentos mais importantes ao ser feita a interpretação do artigo 128 do Código Penal é acerca da natureza das excludentes nele contidas. Quanto a isso, observa-se, preliminarmente, que há três interpretações possíveis, decorrentes da própria teoria do delito. Sendo o crime um fato típico, ilícito e culpável, é possível entender que tais excludentes eliminariam a ilicitude, ou a culpabilidade, ou, pura e simplesmente, a resposta punitiva do Estado – à parte, aqui, a profunda discussão sobre a relação entre a ilicitude e a tipicidade. Em primeiro lugar, caso elas eliminassem a ilicitude – e esta é a interpretação majoritária da doutrina – estaríamos defronte a excludentes de ilicitude. O aborto praticado nas condições do artigo 128 simplesmente não seria um ato ilícito, mas sim lícito. Sendo lícito, seria cabível a interpretação de que o legislador estaria, ali, tutelando parcelas do amplo (e vago) “direito à saúde”: a saúde propriamente dita, pela conservação da vida da gestante (art. 128, I) e a 68

Ministério da Saúde. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes. 3ed. Brasília: 2012. .[Norma Técnica] p. 69. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf

69

PRADO, Luiz Régis. Op. Cit. p. 145

70

Para um aprofundado estudo sobre o tema, indicamos a obra “Aborto na Rede Hospitalar Pública – O Estado Financiando o Crime”, de Luiz Carlos Lodi da Cruz.

43

saúde mental e psicológica, pela permissão do abortamento de uma gravidez que causaria sofrimento (art. 128, II). Sendo parcela do direito à saúde, entende-se que o Estado deveria ser responsável pelo seu fornecimento. É justamente pela adoção desta visão, por exemplo, que o aborto é disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo realizado em hospitais públicos no território nacional. O Código prevê, especificamente, normas gerais que dispõem sobre a exclusão da ilicitude do fato, em seu artigo 23:

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Dessa forma, há quatro hipóteses em que se exclui a própria ilicitude do fato, tornando-se o mesmo lícito, taxativamente previstas no artigo acima: o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito. Dentre essas, o estado de necessidade e a legítima defesa possuem artigos específicos, os quais citamos a seguir.

Estado de necessidade Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. § 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. § 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. Legítima defesa Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

44

Pela simples interpretação desses artigos, verifica-se que há requisitos legais para a prática de um ato ser compreendida sob o manto do estado de necessidade ou da legítima defesa. Os requisitos do estado de necessidade seriam, assim, (i) a existência de um perigo atual, (ii) que não tenha sido oriundo de ato voluntário do agente, (iii) ao qual o agente não possua dever legal de enfrentar, (iv) e ameace direito do agente ou de outrem, (v) cujo sacrifício não seria exigível, (vi) e que só poderia ser evitado pela prática do ato em questão. A legítima defesa, por sua vez, exigiria (i) a existência de uma injusta agressão (ii) a direito do agente ou de outrem, (iii) à qual a prática do ato seja necessária e (iv) moderada para evitar. Já vimos, ao analisar o artigo 128, I, que a excludente do “aborto necessário” comumente é interpretada como uma aplicação do “estado de necessidade”. Do mesmo modo, foi exposto que a excludente do aborto em caso de estupro costuma ser explanada como advinda da inexigibilidade de conduta diversa – construção doutrinária não prevista expressamente nas hipóteses de exclusão de ilicitude do artigo 23 do Código Penal. Para aferirmos se há real adequação das excludentes a tais institutos, compete verificar a presença ou não dos requisitos apontados anteriormente. Procederemos a tal tarefa analisando, primeiramente, a figura do aborto necessário (art. 128, I) como caso de “estado de necessidade” e, posteriormente, de “legítima defesa”, passando, em seguida, à consideração do aborto em caso de estupro (art. 128, II) como aplicação dos mesmos institutos. Não há dúvidas que, no caso do artigo 128, I, há a existência de um perigo atual, que não é oriundo de ato voluntário do agente71 e que ameaça direito seu – a sua vida – a qual só poderá ser salva pela prática do aborto 72. Contudo, os outros dois requisitos não se revelam com tamanha clareza – embora estejam presentes, em termos.

71

Ainda que a gravidez seja voluntária, escapa à volição da gestante o desejo de sofrer risco atual e iminente à própria vida.

72

À parte a questão de se esses casos realmente ocorrem ou não – parecem-nos hoje extremamente reduzidos, felizmente, sendo vistos apenas nos raríssimos casos de gravidez ectópica.

45

Em primeiro lugar, vê-se que a gestante não possui dever legal de enfrentar o perigo – caso compreendamos por “dever legal” apenas aqueles deveres que emanam da lei positiva, oriunda do legislador pátrio e submissa aos princípios da Constituição. Contudo73, conforme será sustentado em momento oportuno na terceira parte de nosso trabalho, sob uma ótica diversa – o tomismo, ao qual filiamo-nos –, seria possível falar de certa hierarquia e ordenação das leis em outro âmbito que não apenas o da lei positiva 74. Nesse sistema filosófico, caberia a argumentação de que certos deveres emanariam de uma lei natural, racionalmente acessível ao homem, a qual é a fonte de autoridade da lei humana. Dessa forma, se houvesse um dever de lei natural no enfrentamento daquele perigo, seria possível dizer que a lei positiva deveria reconhecê-lo e, mais concretamente, não poderia opor-se a ele. Todavia, como é claro que este não é o espírito filosófico adotado pelo nosso ordenamento jurídico, o qual radica-se num misto de juspositivismo com jusnaturalismo iluminista75, não cabe tal argumentação aqui – onde preocupamonos não com como deveriam ser as coisas, mas sim com a realidade concreta de como elas realmente são. Dessa forma, não havendo um dever legal positivado de sacrifício da própria vida, é clara a presença de tal requisito para fins da caracterização do estado de necessidade. No entanto, é mais controversa a questão da exigibilidade de tal sacrifício, o último requisito do estado de necessidade, uma vez que a exigibilidade independe de positivação legal. No aborto necessário, ocorre o sacrifício de uma vida (do nascituro) em busca da salvação de outra vida (da mãe). A mãe poderia, contudo, sacrificar-se para não matar o filho. Quem dirá se tal sacrifício é ou não exigível? Novamente, para responder a essa questão, devemos recorrer ao espírito que inspira o direito penal brasileiro atualmente76. 73

Permitimo-nos, aqui, breve digressão antecipando o que será sustentado em outro momento.

74

A qual seria, tecnicamente, chamada de “lei humana positiva”.

75

Do qual se origina a ideia de “direitos humanos” ou “direitos fundamentais”.

76

Reitera-se: não estamos falando de como achamos que deve ser, mas sim de como atualmente é. Ainda que discordemos – e discordamos, de fato –, não nos cabe dar ao ordenamento jurídico brasileiro interpretação falseada e absurda à luz das ideias que atualmente o iluminam.

46

Nesse sentido, concluir-se-ia que, tratando-se de bens jurídicos iguais, o sacrifício do bem de um não seria exigível para manutenção do outro 77. Tal raciocínio se fortaleceria ainda mais ao considerar-se que o ordenamento não tutela da mesma forma a vida do nascituro e a vida do já nascido, uma vez que atribui penas distintas ao atentado contra cada uma delas. Por outro lado, a doutrina do direito penal mínimo ensina que, dentre as características do direito penal, devem estar a fragmentariedade e a subsidiariedade. Dessa forma, nem todo valor juridicamente reprovável ou conduta juridicamente exigível deve ser objeto de tutela penal, chancelada pelo exercício do ius puniendi estatal. Ainda que tal sacrifício fosse exigível, portanto, sob a lógica de um direito penal mínimo, nem tudo aquilo que é exigível deve ser exigido por meio do direito penal. Dessa forma, seria evidente a configuração – no artigo 128, I – do “estado de necessidade”. Gostaríamos de deixar claro, desde já, nossa divergência em relação à doutrina exposta. Parece-nos que o raciocínio de ponderação de bens jurídicos que envolve o sacrifício de um para a salvação do outro parte de uma análise incorreta do ato humano e da exigibilidade das condutas. Cremos ser exigível a abstenção de qualquer conduta que sacrifique bens jurídicos alheios de igual monta àquele que se quer salvar, sobretudo se estiver envolvida uma vida humana78. Nesse sentido, sustentamos que a opção legislativa de aplicar-se uma pena menor ao aborto em comparação com o homicídio não pode ser vista como uma menor valoração da vida do nascituro, uma vez que o montante da pena não é a fonte do valor do bem jurídico, mas sim um produto de vários fatores, dentre os quais apenas um é o valor do bem jurídico. Tratando-se de vidas humanas nos dois casos (como sustentaremos na terceira parte de nosso trabalho), não há que se falar de diferenças de valor entre elas. Feita essa ressalva acerca de nosso posicionamento, deixamos clara a limitação de nossa conclusão sobre a configuração do dito “estado de 77

É o caso clássico da “tábua do náufrago”, ou “tábua de salvação”.

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Tudo isso será devidamente explicado na terceira parte de nosso trabalho.

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necessidade” no artigo 128, I: sob a vigência de um direito penal de matriz liberal, consagrado pela Constituição Federal de 1988 – sobremaneira sob a forma do direito penal mínimo que atualmente ilumina nosso sistema jurídico-penal –, o aborto praticado como única forma de salvar a vida materna de morte iminente não deverá ser objeto de uma resposta punitiva do Estado. Frise-se: não deverá ser objeto de uma resposta punitiva. Analisada a presença de um “estado de necessidade” na previsão do artigo 128, I, compete-nos ver se tal caso também se adequaria à figura da legítima defesa, objeto do artigo 25 do Código Penal. A resposta é negativa. Sendo requisito da legítima defesa a presença de uma “injusta agressão”, o caso de uma gestante correndo um iminente risco de vida que só possa ser afastado pelo aborto não contém nenhuma “injusta agressão” cometida contra a possível autora do aborto. Isso ocorre pelo fato de que nem todo risco origina-se numa agressão. Em sentido próprio, haveria alguma agressão injusta se o nascituro, fora do exercício de um direito próprio, estivesse agindo para a causação da morte da mãe. É capital diferenciar-se, aqui, o nascituro da condição fisiológica da gravidez 79. Nos casos de incidência do artigo 128, I, o risco da gestante pode estar vindo da gravidez, mas não se origina numa ação do nascituro. Este não é um “injusto agressor”. O risco é, antes, um “fato da natureza” - e não um ato do nascituro. Ademais, seria sustentável que todas as ações do nascituro (seu crescimento, etc) são simples exercício de um direito que naturalmente lhe compete: o direito à vida. Não havendo agressão, não há que se falar em legítima defesa, motivo pelo qual o artigo 128, I, somente pode ser associado à figura do estado de necessidade. Analisando-se a segunda excludente do artigo 128, a qual dispõe sobre o aborto em caso de gestação oriunda de estupro, vê-se a ausência de elementos caracterizadores do “estado de necessidade”.

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Partindo daqui, muitos derivaram a nefasta concepção de uma “antecipação terapêutica do parto”. Esse – cremos – é o efeito da má compreensão da legítima defesa por parte de nossa legislação e da doutrina penal, divorciada de todo o desenvolvimento de séculos de Filosofia Moral debruçada sobre o tema. Remetemos o leitor ao Apêndice C deste trabalho, no qual expomos a doutrina dos atos de duplo-efeito, fundamento moral para a “legítima defesa”.

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O único bem jurídico que é submetido a perigo atual não provocado pelo agente, no caso, é o bem-estar psicológico da mãe que não se sente bem por estar grávida de um bebê originado numa aviltante violência. Contudo, nota-se, aqui, a completa disparidade de valores entre os bens jurídicos a serem ponderados, uma vez que se tem uma vida humana de um lado e o bem-estar psicológico de uma pessoa do outro. Derivando da figura do “estado de necessidade”, a doutrina vê, no requisito da inexigibilidade do sacrifício do bem jurídico defendido pelo ato exculpado, uma figura exculpante própria, a “inexigibilidade de conduta diversa”. Contudo, cremos ser fortemente questionável tal construção, seja pela ausência de previsão expressa da lei – que não dispôs a “inexigibilidade de conduta diversa” no rol do artigo 23 –, seja pela completa falta de um parâmetro objetivo positivado de aferição da exigibilidade de uma conduta. Mesmo caso adotemos o método que empregamos na análise do primeiro inciso do artigo 128, no aborto em caso de gestação oriunda de estupro há uma disparidade tal nos bens jurídicos que nos parece patente a perfeita exigibilidade do sacrifício de carregar-se, por nove meses, um ser humano que nenhuma culpa tem no ato que o gerou. Semelhantemente, não caberia aqui a figura da legítima defesa. Isso se dá porque a única agressão sofrida pela gestante foi a violência sexual, contra a qual o aborto é meio completamente inepto de defesa, uma vez que a violência, em tal momento, já se consumou. Ainda que se considere a gestação como um prolongamento da agressão psicológica do ato, vê-se claramente que a provocação da morte do nascituro é meio tremendamente desproporcional para o combate do sofrimento psicológico – o qual poderia e deveria ser combatido por terapias psicológicas ou psiquiátricas. Havendo desproporção no meio, desconfigurar-se-ia a legítima defesa, conforme prevista no caput do artigo 25. Demais disto, repete-se aqui a relevante distinção de que o nascituro não estaria agredindo a gestante, mas seu crescimento é legítimo exercício do direito à vida, bem como que o sofrimento advém não da ação dele, mas sim da origem 49

daquela gestação. Dessa forma, sustentamos que a figura do artigo 128, II, não encontra nenhum paralelo legal nas causas excludentes de ilicitude presentes na parte geral do Código, sendo figura autônoma criada especificamente para o caso do aborto provocado em gestações oriundas de estupro. Impõe-se, agora, a seguinte questão: em qual âmbito da ação punitiva do Estado atuam os incisos do artigo 128, a fim de impedir a aplicação de uma pena? Vimos, de início, que o artigo 128, I, contém algo que parece ser uma aplicação específica da figura do “estado de necessidade” prevista no artigo 24, o qual cria – por força do artigo 23 – uma excludente de ilicitude. Embora na Exposição de Motivos do Código haja o comentário de que o artigo 128 traz excludentes de ilicitude, sustentamos ser inadequada esta interpretação, por uma série de fatores que elencaremos a seguir. Em primeiro lugar, a Exposição de Motivos não compõe a lei penal, de modo que o texto nela presente não possui nenhum caráter vinculante para a interpretação da lei. Em segundo lugar, o artigo 128, ao menos no que diz respeito a seu inciso I, tornar-se-ia supérfluo com a reforma da Parte Geral do Código, caso suas disposições fossem excludentes de ilicitude, uma vez que estaria apenas repetindo – em uma aplicação concreta ao tipo penal do aborto – algo já contido nos artigos 23 e seguintes. Todavia, se o legislador teve por bem não revogá-lo, isso pode indicar que a natureza das normas do artigo 128 é diversa daquela dos artigos 23 a 25. Em terceiro lugar, verifica-se que, por diversas vezes, pensou-se em alterar a redação do artigo 128, trocando-se o texto “não se pune o aborto” para algo como “não é crime”80. Ora, tal mudança seria absolutamente desprovida de sentido, caso o artigo – em sua atual redação – já criasse excludentes de ilicitude.

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Para maior detalhamento acerca das diversas propostas legislativas que almejaram essa mudança, cf. CRUZ, Luiz Carlos Lodi. Aborto na Rede Hospitalar Pública – O Estado Financiando o Crime. Múltipla. Anápolis: 2007. pp. 82ss.

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Em quarto lugar, nota-se que a redação do artigo 128 é muito próxima daquela do artigo 18181, o qual, indubitavelmente, cria uma hipótese excludente de punibilidade. Assim, não há motivo para interpretar-se diversamente o disposto no artigo 128. Por fim, tem-se que a redação do artigo 128 é claríssima, não abrindo margem para dúvidas acerca de sua natureza. In claris, cessat interpretatio. Repitamo-lo:

Art. 128. não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Não se trata, portanto, de uma excludente de ilicitude. O aborto, com o artigo 128, continua sendo, em nossa interpretação, um ato ilícito – valorado negativamente pelo ordenamento jurídico. O efeito do texto legal acima repetido é apenas impedir que, ocorrendo a prática desse injusto, advenha a cominação de uma pena. Dessa forma, não deve haver qualquer dúvida sobre a natureza do artigo 128: ele cria, em seus dois incisos, excludentes de punibilidade. O aborto, se praticado naquelas hipóteses, é um fato típico e antijurídico. Poderá ser, naturalmente, culpável. Contudo, a ele jamais será imposta uma pena, havendo – apenas e tão somente – a limitação no exercício do ius puniendi estatal. Mesmo no que diz respeito ao “aborto necessário”, o ordenamento prevê apenas a excludente de punibilidade. Vimos, anteriormente, que o “aborto necessário” seria um caso no qual – sob a presente ordem jurídico-constitucional – a aplicação da pena violaria os 81

Art. 181 – É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal; II – de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural.

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princípios norteadores do ordenamento. Contudo, a pena não necessariamente é impedida na esfera da antijuridicidade. Ela pode sê-lo – e aqui o será – apenas na vedação à resposta punitiva do Estado. Haverá crime, mas ele não será seguido de sanção penal. Sendo o artigo 128, I, norma especial em relação ao artigo 24, o ordenamento deve, a nosso ver, ser interpretado de forma que a excludente específica prevalecerá sobre a genérica, de modo que o abortamento em estado de necessidade será um fato ilícito, ao qual jamais se cominará pena. Caso houvesse a revogação do artigo 128, I, contudo, a prática do “aborto necessário” recairia na regra geral do artigo 24, e passaria a ser, para fins do direito penal, lícita. Uma vez compreendida a real natureza das excludentes do artigo 128, percebe-se que a interpretação vigente, a qual as considera como excludentes de ilicitude, chancela ação estatal completamente descabida: o oferecimento do aborto na rede pública de saúde, como se “aborto legal” fosse. Sendo um ato ilícito (embora a ele não se aplique pena), o aborto para gestantes cuja gravidez originou-se num estupro82, ou para gravidezes ectópicas, por exemplo, jamais poderia ser ofertado pelo Sistema Único de Saúde na forma de um “programa de saúde” no moldes atualmente aplicados. Algo valorado pelo ordenamento jurídico como ilícito não comporá, em hipótese alguma, o “direito à saúde” previsto na Constituição – pois não há direito a agir contra o ordenamento jurídico. Não há, no Brasil, “aborto legal”. Há apenas casos de aborto no qual ao crime não se cominará uma pena. Estes, contudo, são plenamente típicos e antijurídicos – motivo pelo qual não devem ser jamais estimulados e muito menos ofertados por parte do Estado.

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Ressaltamos que o principal problema é o aborto para grávidas cuja origem da gestação foi o estupro, haja vista que a correta interpretação do artigo 128, I, demonstra que o “aborto necessário” só ocorrerá em casos de tamanha urgência (pelo risco de vida) que não admitirão, pela sua própria natureza, falar-se em um “programa de saúde” que os ofereça, mas sim numa ação desesperada de um médico em particular. Interpretação diversa desta violaria o texto legal independentemente da natureza da excludente.

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2.7 Conclusão da primeira parte: o caminho do legislador

Filiou-se o legislador pátrio a uma tradição histórica, pois o aborto é um fato que interessa à sociedade e ao direito desde tempos longínquos – a exemplo do dispositivo do Êxodo mencionado quando tratamos do histórico legislativo. Nesse sentido, quando o Código Penal atualmente em vigor foi elaborado, ele manteve a orientação do Código Penal de 1891, punindo o aborto em todos os casos e por todos os agentes, estabelecendo apenas duas exceções. Diferiu, assim, do Código Criminal do Império, que, gerando muitas críticas à sua época, não punia o abortamento provocado pela gestante. Seja pelo avanço da embriologia, seja pela alteração da moral social, o legislador republicano teve por bem punir, inclusive, a gestante. As duas exceções mencionadas foram a do aborto praticado para salvar a vida da gestante e a do aborto em gravidezes resultantes de estupro. A doutrina identifica tais excludentes às figuras do estado de necessidade e da inexigibilidade de conduta diversa. Segundo o abordado anteriormente, sustentamos que há real identificação entre o abortamento em caso de risco de vida e o estado de necessidade, não ocorrendo o mesmo com o aborto em gestação causada por estupro. De um modo ainda mais esclarecedor do grau de reprovação atribuído ao aborto pelo legislador, a opção legislativa no Brasil foi a de criar excludentes que não afetam a ilicitude da conduta, nem mesmo sua culpabilidade, mas apenas e tão somente a punibilidade. O fato do artigo 128 prever excludentes de punibilidade torna límpida a orientação adotada quando da redação do Código, e mantida até os dias atuais. Dessa forma, concluímos que o caminho do legislador, no feitio da norma, foi o da reprovação total ao aborto, reconhecendo apenas duas hipóteses em que não se aplicaria a pena àquele que cometesse o fato típico, e essa opção permaneceu até os dias atuais – pois não foi por falta de projetos de lei que o aborto não foi descriminalizado no Brasil, mas sim por soberana opção do legislador, em sua função de representar a vontade popular. 53

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SEGUNDA PARTE Uma vez tendo analisado o texto legal que regula o abortamento no Brasil, notamos que a opção do legislador foi pela criminalização do aborto, incluindo duas hipóteses de excludentes de punibilidade, que são o risco de vida da gestante e a gravidez resultante de estupro. Vimos também que a compreensão da doutrina sobre tais dispositivos baseia-se na aplicação do estado de necessidade e da inexigibilidade de conduta diversa, havendo controvérsia sobre a natureza das excludentes, que usualmente são interpretadas como excludentes de ilicitude, mas que foram redigidas pelo legislador como simples excludentes de punibilidade, demonstrando a forte reprovabilidade do aborto em qualquer hipótese para o ordenamento jurídico brasileiro e, em última instância, para o povo. Cabe-nos, agora, verificar qual é o rumo tomado pelo nosso Poder Judiciário, a fim de entendermos como a aplicação de lei ocorre no Brasil. Isso não será feito pelo estudo de casos, mas sim com base em dois julgados de nossa Suprema Corte, que são ilustrativos da opção tomada pela instância máxima do Poder Judiciário, e do rumo que o abortamento provavelmente tomará no Brasil. Estudaremos, para tanto, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que culminou na liberação do aborto de fetos anencéfalos no Brasil e o Habeas Corpus nº 124.306/RJ, no qual o Ministro Luís Roberto Barroso – que figurara como advogado na ADPF 54, pleiteando a descriminalização do aborto de anencéfalos – dera, em seu voto, claro sinalização de sua inclinação pela legalização do aborto no Brasil por via judicial. Três importantes ações, todavia, não serão objeto de nosso estudo. Em primeiro lugar, não estudaremos a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510, que analisava dispositivo da Lei de Biossegurança acerca da pesquisa com células-tronco embrionárias. Embora tal ação não tratasse de aborto, o debate sobre o início da vida permeou todo o julgamento, de modo que, nos votos da ADPF 54, por diversas vezes os ministros se remeteram ao julgado formado na ADI 3.510. 55

As outras duas ações que não serão objeto de nosso estudo deixarão de ser analisadas exclusivamente por ainda não terem sido julgadas, dado que sua importância será capital no futuro do tratamento deste assunto. Da mesma forma que, com o surgimento do entendimento, na ADI 3.510, de que a vida começaria apenas com o desenvolvimento do encéfalo, houve abertura política à propositura da ADPF 54, que pleiteava a descriminalização do aborto de anencéfalos pautando-se no argumento de que a ausência de encéfalo excluiria a caracterização de vida; certo tempo depois da sinalização, no voto dado pelo Ministro Barroso no HC 124.306/RJ, de que o aborto deveria ser livre até as 12 semanas de gestação, adveio o ajuizamento de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pleiteando a descriminalização do aborto até as 12 semanas. Pouco antes dessa última ação, outra ADPF foi ajuizada, tendo sido redigida pelo mesmo grupo que buscara a permissão do aborto de anencéfalos. Esta ADPF, por sua vez, pleiteia a permissão do aborto para mulheres que padecessem de zika vírus durante a gestação – suposto causador de microcefalia no bebê. Passemos, então, à ADPF 54.

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3.2 A ADPF 54

Dentre as várias más-formações congênitas existentes, uma das mais graves é a anencefalia. Esta consiste num defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento do embrião, e leva à falha na formação do encéfalo e da calota craniana. A anencefalia pode ocorrer em diversos graus, sendo o mais severo a completa ausência de cérebro e cerebelo. Nas palavras de Genival Veloso de França83:

“Nestas situações, as crianças nascem sem a fronte, com orelhas malformadas e de implantação baixa e com pescoço curto. A boca é sempre pequena e o nariz longo. Têm excesso de pele nos ombros, olhos grandes e protrusos. Mesmo que tenham quase todos os reflexos primitivos do recém-nascido, não sobrevivem horas ou minutos. Quando sua sobrevivência é maior, a anencefalia não é completa por restar rudimentos cerebrais.”

Assim, a anencefalia é uma má-formação que leva o bebê à morte pouco tempo após o parto, havendo também consideráveis chances do óbito ocorrer no momento do parto ou até durante a gestação. Dessa forma, o diagnóstico da anencefalia no feto sempre foi uma notícia que causa muita comoção à gestante e sua família, e por muitas vezes deu causa a pedidos judiciais para a autorização do aborto. Tais pedidos, em geral, pautavam-se na consideração da inviabilidade da vida extrauterina do bebê anencéfalo, que viveria por pouquíssimo tempo antes de falecer. Pelo aborto, portanto, antecipar-se-ia o óbito inevitável, encurtando o sofrimento da família na qual a criança nasceria. Esses pedidos rotineiramente eram julgados procedentes pelo Judiciário, ainda que não houvesse qualquer fundamentação legal para a autorização, por comoção com o sofrimento da gestante e da família. Em decorrência disso, no ano de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde propôs, junto ao STF, uma Arguição de Descumprimento 83

FRANÇA, Genival Veloso. Op. cit. p. 229

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de Preceito Fundamental, pedindo que fosse declarada a inconstitucionalidade da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, sob os argumentos da inviabilidade da vida extrauterina e do sofrimento causado à gestante. Sendo designado como relator o Ministro Marco Aurélio, este concedeu tutela liminar ao pedido – a qual foi cassada pelo Pleno, por entendimento de que anteciparia o objeto do mérito. Após oito anos, a ação foi julgada procedente, por oito votos contra dois, havendo a maioria dos votantes seguido o relator.

3.2.1 Visão majoritária

O voto do Ministro Marco Aurélio, seguido pelos Ministros Ayres Britto, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Luís Fux, Joaquim Barbosa, Rosa Weber e Celso de Mello, concedeu total provimento ao pedido formulado. A linha argumentativa adotada pelo relator iniciou-se na consideração de que o Estado brasileiro é laico, não podendo ser influenciado por doutrinas dogmáticas advindas da religião, bem como que a legislação brasileira acerca do aborto, data da década de 1940, e deveria ser lida – no seu entendimento – de modo evolutivo, em conformidade à tese neoconstitucionalista. Assim, dever-se-ia atentar ao fato de que a anencefalia não era diagnóstico cognoscível durante a gravidez, à época em que a legislação vigente fora redigida, de modo que a hipótese do aborto de um feto anencéfalo sequer fora imaginada pelo legislador de outrora. Hoje em dia, por outro lado, ela figuraria entre os diagnósticos “de certeza”, isto é, aqueles diagnósticos que, feitos durante a gestação, eram dotados de 100% de chance de acerto. Demais disto, verificava-se uma omissão contumaz do Congresso em legislar no assunto, de modo que milhares de mulheres tinham que recorrer à justiça para fazer valer um direito que deveria ser debatido na seara legal. O ministro ainda seguiu a linha do entendimento médico de que morte é morte cerebral, deduzindo que, por não ter cérebro, o anencéfalo era um natimorto – logo, por ser natimorto, seria desprovido de direito à vida. 58

De modo análogo, compreendendo que a criminalização do aborto pressupunha a viabilidade da vida extrauterina, o ministro também concluiu que o anencéfalo não seria tutelado pelos tipos penais do aborto, por não possuir nenhuma viabilidade. Além disso, mesmo que se pressupusesse a existência de vida, esta deveria ter um valor muito baixo na ponderação com os demais direitos, dada a completa ausência de viabilidade – devendo ser lembrado que o direito à vida, embora central, não seria dotado de um valor absoluto no ordenamento jurídico vigente no Brasil, conforme o qual os direitos fundamentais conflitantes devem ser objeto de sopesamento, o que só é possível caso eles tenham um valor relativo. Dessa maneira, o ministro-relator concluiu pela atipicidade do aborto de anencéfalos, uma vez que nem este possuía vida, nem o tipo penal abrangeria fetos desprovidos de viabilidade. Também entenderam pela atipicidade, tendo em vista a inviabilidade da vida extrauterina do feto anencéfalo, os ministros Ayres Britto e Celso de Mello – tendo este último apresentado uma segunda via argumentativa, pautada na pressuposição da tipicidade da conduta do aborto de anencéfalos, e concluindo pela inconstitucionalidade de tal criminalização, por inexistência de ilicitude e reprovabilidade da conduta. Com especial enfoque na questão dos direitos reprodutivos da mulher, que sobrepujariam o interesse na manutenção da gravidez – posto que o feto anencéfalo não teria viabilidade extrauterina –, votaram a Ministra Rosa Weber e o Ministro Joaquim Barbosa. No mesmo sentido caminhou a Ministra Cármen Lúcia, a qual ainda teceu considerações acerca do aborto do feto anencéfalo como medida de proteção à saúde física e psíquica da gestante. Contudo, nem todos os ministros seguiram a linha da atipicidade do aborto de anencéfalos. O Ministro Gilmar Mendes, por exemplo, entendeu que o aborto de anencéfalos encontrava-se amparado em uma excludente de ilicitude, por haver inexigibilidade de conduta diversa. O argumento empregado nesse sentido partiu das excludentes previstas no texto legal, que foram compreendidas pelo ministro como excludentes de ilicitude, passando à compreensão de que a excludente da gestação em caso de estupro visava o bem-estar da gestante, sendo uma espécie de reconhecimento da aplicação do instituto da inexigibilidade de conduta diversa. 59

Analogamente, tal instituto seria aplicável às gestantes de fetos anencéfalos, as quais sofreriam enormemente com a continuação indesejada da gestação, por estarem fadadas a dar à luz um bebê que morreria em instantes. No mesmo sentido seguiu o Ministro Luís Fux, entendendo que o aborto de fetos anencefálicos encontra-se sob um estado de necessidade de índole supralegal, de modo que a criminalização de tal conduta não seria apenas inútil, por não evitar quaisquer abortamentos, como também cruel, uma vez que jogaria a mulher, que buscou apenas reduzir seu sofrimento, no banco dos réus, em um Tribunal do Júri, aumentando sua dor. Sustentando que o aborto de anencéfalos não é questão de direito penal, mas sim de saúde pública, o ministro votou acompanhando o relator. Dessa forma, o entendimento majoritário da corte pode ser dividido entre duas correntes. De um lado, há a ideia de que o aborto de feto anencefálico é conduta atípica. Do outro, tem-se a tese de que, embora típica, tal conduta não se revestiria de ilicitude. A primeira corrente baseou-se em duas vias argumentativas: (i) a ausência de viabilidade extrauterina exclui o feto anencéfalo da tutela jurídica da vida, de modo que não há qualquer direito a vida a ser tutelado no caso; (ii) a ausência de desenvolvimento cerebral descaracteriza a vida, por interpretação decorrente do conceito jurídico de morte, entendida como “morte cerebral”: assim, o feto anencéfalo não possui vida. A diferença entre as duas teses é, centralmente, que a primeira exige uma diferenciação entre “existência de vida” e “vida juridicamente tutelada”, enquanto a segunda prescinde da mesma diferenciação, excluindo da compreensão da realidade fática qualquer aferição de vida fetal. Para a primeira visão, o anencéfalo é vivo, mas não possui direito à vida, enquanto para a segunda o feto anencefálico não pode ser dito “vivo”. Quanto à corrente da ausência de ilicitude da conduta, a argumentação empregada foi no sentido da existência de excludente de ilicitude por inexigibilidade da conduta diversa, ou pela desproporcionalidade na aplicação de sanção a tal conduta, forçando a gestante a submeter-se a uma condição comparável – segundo alguns ministros – à tortura. 60

Nota-se, por fim, a repetição, em praticamente todos os votos vencedores, de considerações sobre a laicidade do Estado, justificável ao se compreender que o maior grupo político de oposição à legalização do abortamento era e é composto por pessoas religiosas.

3.2.2 Visão minoritária

Por outro lado, os votos dos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso divergiram do entendimento do relator, caminhando no sentido da tipicidade e ilicitude da conduta do abortamento voluntário de fetos anencefálicos, e defendendo que o entendimento contrário adotado pela Corte naquela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental seria tendente à violação da separação de poderes e da soberania popular. Nesse sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski explana, em seu voto, que o legislador de 1940 já possuía conhecimento de métodos para diagnóstico de más formações fetais, e que, caso assim indicasse a vontade do povo, o Congresso Nacional facilmente poderia ter alterado a legislação criminal original a fim de incluir hipóteses tais como as do aborto de anencéfalos dentre as elencadas no rol do artigo 128 – sobretudo considerando-se que diversos projetos nesse sentido foram propostos e rejeitados pelos congressistas. O ministro ainda buscou trazer à baila o brocardo de que in claris cessat interpretatio, de modo a tornar claro que a interpretação conforme a Constituição não daria ao Supremo Tribunal Federal o poder de legislador positivo, alterando por via interpretativa clara disposição de texto legal. Além disso, Lewandowski ainda trouxe citação da manifestação de professor de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro em uma das audiências públicas que precederam o julgamento, o qual afirmou que não haveria propriamente condição de anencefalia, mas sim que há merocefalias, haja vista que cada “anencéfalo” possui a má-formação em um determinado grau, não sendo possível dizer-se que haja alguma linha bem delimitada entre aquele que não possui encéfalo e aquele que o possua. 61

Cezar Peluso, por outro lado, iniciou seu voto rememorando a definição de vida por ele apresentada na ADI 3510, a qual versara acerca da pesquisa com células-tronco embrionárias – semelhante à definição aristotélica de vida enquanto capacidade de movimentos imanentes. Desse modo, sustentou que a vida é uma realidade pré-jurídica, sendo patente que o anencéfalo é vivo, consoante uma citação de Lenise Martins Garcia, que participara das audiências anteriores ao julgamento, de que “o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque ele está vivo. Se ele não estivesse vivo, ele não poderia morrer”. Apresentando uma definição de vida, o Ministro afastou a aplicação do conceito de “morte cerebral” com o intuito de aferir-se a vida do anencéfalo, por diversos fatores – como a inaplicabilidade do protocolo de morte cerebral a recém-nascidos, a inexistência de linha demarcatória clara separando anencéfalos de merocéfalos e a falta de consenso médico quanto à ausência de atividade cerebral em todos os bebês diagnosticados como “anencéfalos”. Dessa forma, ficaria claro – segundo o Ministro – que a liberdade da gestante de abortar é excluída pela lei penal vigente, não havendo lacuna a ser preenchida, ou vazio que demandasse interpretação distinta da literalidade do texto da norma. Não havendo o requisito da viabilidade extrauterina da vida fetal no texto que tipifica o abortamento, não caberia ao intérprete a invenção de tal exigência. Peluso ainda apontou que haveria uma tentativa de se levantar a laicidade estatal como amparo capaz de legitimar conduta tendente a violar o direito à vida claramente defendido pela lei, deixando claro que a questão do aborto não era uma questão religiosa, mas uma clara questão legal. Frise-se que, em seu voto, o Ministro deixou clara sua visão divergente acerca da natureza das excludentes do artigo 128, que seriam excludentes de punibilidade, e não de ilicitude, segundo sua interpretação. O Ministro ainda sustentou o valor jurídico da vida independentemente de sua duração ou do grau de perfeição biológica do ser humano que a detenha, considerando que a duração da vida é valor acidental à própria vida, e que a realidade da morte para um anencéfalo – tão sustentada nos demais votos – não o diferencia de todo o resto da humanidade, também marcado pela perspectiva certa 62

da morte. Partir da ideia da proximidade da morte para a perda do direito à vida, para o Ministro, é um passo imediatamente anterior à admissão da eutanásia e da eugenia. Quanto à comparação do sofrimento da gestante com a tortura, o Ministro sustentou que, embora o sofrimento seja grande, não é possível realizar-se tal comparação, haja vista que a tortura pressupõe um sofrimento ilegal e injusto, enquanto a dor sofrida pela gestante que carrega um filho anencéfalo não pode ser legalmente evitada, e tampouco pode ser injusta juridicamente, haja vista que não há qualquer agente ao qual seja imputável a causação desta dor – sendo que o mero acaso da natureza não age justa ou injustamente, posto que não opera de modo voluntarístico. Tal dor, segundo Peluso, não daria ensejo à prática do aborto. Em suas palavras:

“[…] só cegueira passional não percebe que o sistema jurídico se defronta, de maneira inexorável, com tensa relação entre dois valores de pesos axiológicos muito diversos, perante os quais ao intérprete não sobra alternativa de escolha hermenêutica, quaisquer que sejam os princípios ou postulados dogmáticos a que recorra. Noutras palavras, trata-se de ver, logo, que a vida humana, hospedada na carne frágil de feto imperfeito, não pode, a despeito da fortuita imperfeição que lhe não subtrai a dignidade jurídica imanente, ser destruída a fórceps para satisfazer sentimento, quase sempre transitório, de frustração e de insuportabilidade personalíssima de uma dor ainda que legítima. Não há, nesse esquema de ponderação de bens tão manifestamente desproporcionais, critério algum capaz de equilibrar ou compensar valores jurídicos díspares, nem de justificar, isto é, tornar justo o sacrifício desnecessário da vida em nome da tutela de sentimento cujo objeto é apenas livrar-se de uma dor sem culpa, que não é justa nem injusta, mas apenas humana.”

Tampouco seria cabível a analogia entre o abortamento de anencéfalos e os abortamentos previstos no artigo 128, haja vista que, no caso julgado, ainda que a origem da gravidez seja fortuita, e a gestação, indesejada, seu advento não se deu por ato de violência, como ocorre no caso da gravidez oriunda de estupro. Da mesma forma, ainda que haja algum risco à gestante, este risco não é o risco 63

iminente e gravíssimo à sua vida – hipótese em que o aborto seria amparado pela excludente do artigo 128, inciso I –, mas apenas o risco intrínseco a qualquer gestação, no máximo dilatado em algum leve grau pelas especificidades de um anencéfalo. Dessa forma, Cezar Peluso conclui seu voto com a principal consideração que uniu a visão minoritária – a decisão do STF que concedesse provimento ao pedido seria verdadeira ação de legislador positivo, usurpando função do Congresso Nacional.

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Após a exposição de ambas as orientações surgidas na ADPF 54, passemos à apresentação do segundo julgado, o HC 124.306/RJ, com o estudo do voto proferido pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Em seu voto, certos argumentos jurídicos sustentados na ADPF 54 se repetiram, sem qualquer oposição – ao contrário do ocorrido na ADPF, na qual a corrente minoritária, sobretudo pelo voto do Ministro Cezar Peluso, dedicou-se à busca da refutação de cada argumento,

jurídico

ou

fático,

apresentado

pelo

grupo

favorável

à

descriminalização. Tendo em vista a ausência de contraditório ao voto do Ministro Barroso, nos dedicaremos à crítica de sua argumentação após expormos o conteúdo de seu voto.

64

3.3 O HC 124.306/RJ

Em 2012, a Polícia Civil do Rio de Janeiro instaurou o Inquérito Policial 86/2012, que ficou conhecido por Operação Herodes84, cujo objetivo era desarticular uma organização criminosa que explorava o aborto no estado do Rio de Janeiro, com braços que se estendiam até o Poder Público. A operação, cuja investigação perdurou por 15 meses, culminou com a expedição de mandados de prisão temporária de 75 pessoas, dentre as quais 14 servidores públicos (bombeiros, policiais civis, policiais militares e um militar do Exército), 10 médicos (além de 1 falso médico) e 3 advogados. A quadrilha investigada realizava abortos até os sete meses de gestação. Em março de 201385, em virtude da operação supracitada, foi desmantelado um dos núcleos (Núcleo Campo Grande) da organização criminosa que atuava realizando os abortos, composto por cinco integrantes (Carlos Eduardo, Débora, Rosemere, Edilson e Jair). O primeiro destes, Carlos Eduardo, possuía certo estudo em medicina (embora não fosse médico), e atuava realizando os procedimentos de abortamento. Já Débora era a responsável por angariar gestantes e levá-las até o taxista que as conduzia à clínica. Rosemere, por sua vez, era enfermeira e proprietária do estabelecimento onde funcionava a clínica de aborto, liderando a atuação do grupo e mantendo contato com as gestantes, para agendar horários, fixar preços e marcar o local de encontro para as idas até a clínica. Era, ainda, a responsável por toda a parte financeira do negócio. Edilson atuava como segurança da clínica, alertando aos demais membros e às pacientes qualquer possível movimentação policial. Jair, por fim, era o taxista responsável por conduzir as gestantes até a clínica e levá-las, após o procedimento, de volta para o local combinado. Na data em que a polícia ingressou no local, Edilson foi preso enquanto tentava fugir, com diversas gestantes que aguardavam o abortamento e outras mulheres que haviam feito o aborto, bem como com Rosemere (que levava 84

Os slides produzidos pela Polícia Civil acerca de tal operação se encontram em https://pt.slideshare.net/alerj/herodes-slide

85

Os dados foram extraídos do acórdão proferido nos autos do Recurso em Sentido Estrito nº 0065502-27.2013.8.19.0000, julgado pela 4ª Câmara Criminal do TJ/RJ

65

consigo R$20.000,00) e Carlos Eduardo, o qual se encontrava com luvas ensanguentadas e levando consigo diversas ultrassonografias rasgadas, além de instrumentos cirúrgicos e outras luvas também sujas de sangue. Ao fugir, o suposto médico abandonou uma mulher que acabara de passar pelo abortamento, ainda sobre a maca, desacordada e com intenso sangramento vaginal. Presos preventivamente ainda em 14/03/2013, o grupo foi posto em liberdade após decisão em primeiro grau (21/03/2013), havendo novo mandado de prisão em 25/02/2014, após Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público em 2014. Ainda em 2014, a chefe do grupo (Rosemere), teve a prisão decretada 86 novamente, desta vez por suspeita de participação na morte de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, a qual desapareceu em 26/08/2014 após sair para realizar um aborto na clínica operada por Rosemere. Posteriormente, o corpo de Jandira foi encontrado carbonizado, dentro de um carro. As investigações – que ainda compunham a chamada Operação Herodes – indicaram que a jovem faleceu por complicações do abortamento, tendo, em seguida, os responsáveis pela clínica buscado ocultar o cadáver. Eles fizeram isso atirando no corpo, esquartejando-o, colocando-o em um carro e ateando fogo87. Os novos integrantes do grupo, bem como Rosemere, atualmente estão sendo processados, em virtude de tal fato, pelos crimes dos artigos 121, §2º, I e IV; 288; 125; 126; 211 e 124, todos do Código Penal88 89. Pela terceira vez, menos de dois anos, o núcleo de Campo Grande teve seus integrantes presos. Contra a prisão decorrente do processo iniciado no flagrante de março de 2013, ordenada pela Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, foi impetrado habeas corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça, o qual foi rejeitado por unanimidade. Contra esta decisão, por sua vez, foi impetrado o 86

“TJ-RJ decreta prisão temporária de envolvidos no sumiço de grávida”. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/09/tj-rj-decreta-prisao-temporaria-de-envolvidosno-sumico-de-gravida.html [Acesso em 08 Set 2017]

87

Conforme informado pelo delegado Hilton Alonso, então responsável pelo caso. Cf. “Decisão do STF sobre aborto em Caxias provoca polêmica”. Disponível em: http://odia.ig.com.br/rio-dejaneiro/2016-12-01/decisao-do-stf-sobre-aborto-em-caxias-provoca-polemica.html [Acesso em 08 Set 2017]

88

Processo nº 0312390-33.2014.8.19.0001-TJ/RJ

89

http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/24506

66

HC 124.306/RJ junto ao Supremo Tribunal Federal, o qual foi distribuído para a Primeira Turma, com relatoria do Ministro Marco Aurélio. O Ministro Relator antecipou a tutela para os acusados Edilson e Rosemere em 08/12/2014, estendendo os efeitos da cautelar para os demais corréus em 27/06/2015. No julgamento do habeas corpus, todavia, foi o voto do Ministro Luís Roberto Barroso que teve destaque, pelo seu conteúdo, o qual analisaremos mais detidamente – primeiro, expondo o conteúdo do voto e, posteriormente, tecendo nossas considerações. Embora o ministro Barroso tenha entendido que a ação impetrada não era cabível, em seu voto ele reconhece de ofício a ausência de fundamentos da prisão preventiva, votando pela sua desconstituição. Tal ausência de fundamentação foi justificada por duas vias: em primeiro lugar, a ausência dos requisitos de cautelaridade da prisão, entendendo que os acusados são “primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação”. A segunda via argumentativa adotada pelo ministro, mais relevante para o nosso trabalho, foi a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124 a 126 do Código Penal, entendendo que a criminalização do aborto no primeiro trimestre de gravidez violaria direitos fundamentais das mulheres, bem como o princípio da proporcionalidade. Dessa forma, foi sustentado que criminalização do aborto em seu primeiro trimestre é incompatível com os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a qual não poderia ser obrigada a manter uma gestação indesejada; bem como com a autonomia da mulher, que tem o direito de fazer suas escolhas existenciais; além da integridade física e psíquica da gestante e a igualdade de gênero, “já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”. Além disso, o ministro Barroso ainda sustentou que o tratamento penal do aborto impede que mulheres pobres o façam com segurança, gerando automutilações, lesões graves e óbitos. Por fim, sustentou que a tipificação penal violaria o princípio da proporcionalidade, haja vista que seria medida duvidosa para proteger o bem jurídico da vida do nascituro, além de não produzir impacto 67

relevante sobre o número de abortos praticados no país, bem como por ser possível que o Estado atue mais eficazmente no combate ao aborto por outros meios, como a educação sexual, a distribuição de contraceptivos e o amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas. O ministro Luís Roberto Barroso inicia sua defesa da inconstitucionalidade da criminalização do aborto com a consideração dos direitos fundamentais das mulheres. Diz o ministro que os direitos fundamentais “representam uma abertura do sistema jurídico perante o sistema moral”, sendo oponíveis às maiorias políticas e funcionando como limites ao legislador e até ao poder constituinte reformador, sendo de aplicabilidade direta e imediata, legitimando a atuação da jurisdição constitucional para a sua proteção em casos de ação ou omissão (frisese) legislativa. Seguindo a doutrina de Alexy, o ministro sustenta que os casos de colisão de direitos fundamentais devem ser apreciados por meio do princípio instrumental da proporcionalidade, que dividir-se-ia nos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Em seguida, manifesta-se dizendo que “é dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos direitos fundamentais das mulheres, com reflexos inevitáveis sobre a dignidade humana”, e explana que ninguém faria o aborto por prazer. Segue o voto sustentando que há duas posições antagônicas em relação ao status jurídico do embrião durante a fase inicial da gestação, sendo que a primeira adviria da visão de que há vida desde o momento da concepção, enquanto a segunda constituir-se-ia na defesa de que não há vida “em sentido pleno” antes do terceiro mês de gestação, em decorrência da formação do sistema nervoso central. Posiciona-se o ministro dizendo que “não há solução jurídica para esta controvérsia”, pois “ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica”, e que “o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação”, pois “ele dependerá integralmente do corpo da mãe”. 68

Após isso, inicia-se uma consideração dos direitos fundamentais que seriam violados, de modo específico. O rol elencado pelo ministro começa pelo direito à autonomia, dizendo ele que a autodeterminação da mulher lhe daria o direito de viver seus próprios valores, interesses e desejos, não cabendo a ninguém impedirlhe de cessar uma gravidez. Posteriormente, é apresentado o direito à integridade física e psíquica, pois a integridade física da mulher seria abalada pelas “transformações, riscos e consequências da gestação”, bem como sua integridade psíquica seria “afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida”. Tem-se, então, uma consideração dos “direitos sexuais e reprodutivos”, os quais “incluem o direito de toda mulher decidir sobre se e quando deseja ter filhos”, bem como de “obter o maior grau possível de saúde sexual e reprodutiva”. Diz o ministro que “o tratamento penal dado ao tema, no Brasil, pelo Código Penal de 1940, afeta a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada”, além de aumentar os índices de mortalidade materna. Frisa, ainda, que haveria uma violação à “igualdade de gênero”, pois “na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”. Por fim, haveria uma discriminação social intrínseca à tipificação penal, que prejudicaria de forma desproporcional as mulheres pobres, as quais “precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários primitivos”. Passa, então, o ministro, à sustentação de que haveria uma violação ao princípio da proporcionalidade na criminalização do aborto, dado que o legislador, fundamentado e limitado pela Constituição, teria liberdade para definir crimes e penas, desde que levasse em conta o respeito aos direitos fundamentais dos acusados e os deveres de proteção para com a sociedade, utilizando aquele princípio como critério de aferição da validade das restrições a direitos 69

fundamentais, bem como sob a função de princípio proibidor do excesso e da insuficiência. Posto isso, o ministro defende que o Código Penal estaria defasado, o que seria comprovável pela decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 – havendo esta descriminalizado o aborto de fetos anencefálicos. Em suas palavras: “a questão do aborto até o terceiro mês de gravidez precisa ser revista à luz dos novos valores constitucionais trazidos pela Constituição de 1988, das transformações dos costumes e de uma perspectiva mais cosmopolita”. Parte o voto, então, à análise da criminalização do aborto sob a ótica dos subprincípios da adequação, da necessidade, e da proporcionalidade em sentido estrito. Quanto ao primeiro subprincípio, explana o ministro que a criminalização do aborto não protegeria a vida do feto, pois a taxa de abortos é muito semelhante nos países onde ele é permitido e onde ele é ilegal. Para prová-lo, o ministro recorre a uma pesquisa do Instituto Guttmacher em parceria com a OMS, que provaria que o índice de abortos é menor em países onde ele é legalizado. Dito isso, é feita a consideração de que a única diferença instituída pela criminalização é a insegurança nos procedimentos abortivos, a qual constituiria “um grave problema de saúde pública, oficialmente reconhecido”. A análise do subprincípio da adequação é concluída com a consideração de que “em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma”. “Portanto” - segue o ministro - “a criminalização do aborto não é capaz de evitar a interrupção da gestação e, logo, é medida de duvidosa adequação para a tutela da vida do feto”. Sobre o subprincípio da necessidade, o ministro sustenta que há outros mecanismos eficazes à proteção dos direitos do feto e menos lesivos à mulher, como a descriminalização do aborto no primeiro trimestre, sob a condição de que a gestante passe por uma consulta de aconselhamento. Além disso, haveriam os contraceptivos, a educação sexual e a criação de uma rede de apoio à grávida e sua família, envolvendo o acesso a creches e assistência social. 70

Acerca do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, é dito que “é preciso reconhecer que o direito à vida do nascituro varia de acordo com o estágio de seu desenvolvimento na gestação”. Dessa forma, “o interesse do Estado na proteção da vida pré-natal não supera o direito fundamental da mulher a realizar um aborto” (grifo nosso). Dessa forma, bem como pelos argumentos anteriormente expostos, o ministro manifesta-se pela não recepção da criminalização do aborto no primeiro trimestre pela Constituição de 1988. Passemos à nossa crítica ao voto. De início, salta aos olhos o desprendimento do voto do ministro em relação ao caso concreto. Deve-se ter em mente que nenhuma ex-gestante figurava dentre as partes do habeas corpus – pelo contrário, tratava-se de membros de uma organização criminosa que se infiltrara até mesmo dentro do Estado (um dos impetrantes da ação, Edilson, era policial), realizando milhares de abortos e lucrando tremendamente com o desespero das gestantes que lhes buscavam. Não havia nenhuma mulher desamparada, mas sim criminosos profissionais. É de se questionar como seria possível o ministro saber se a clínica atuava apenas antes dos três meses de gestação, considerando-se que, segundo o informado pela corregedoria da polícia nos slides da Operação Herodes 90, a organização desmantelada (que atuava em diversas clínicas, das quais uma é a tratada no Habeas Corpus) trabalhava com abortos até os sete meses de gestação, sendo que em uma das clínicas (a de Bonsucesso), segundo os registros, foram realizados mais de 2000 procedimentos. Vê-se que uma das corrés, a qual foi a primeira a receber a antecipação de tutela pelo relator, foi presa novamente pouco tempo depois, por ter voltado a chefiar a mesma clínica de aborto, suspeita de envolvimento com uma morte seguida de ocultação de cadáver (caso Jandira – o corpo foi baleado, mutilado e queimado). A residência fixa e o trabalho – ao menos no caso de uma das rés – foi voltar à mesma organização criminosa de antes de sua prisão. Ainda na primeira via argumentativa do ministro, pode-se notar o voto foi proferido como se nenhum dos réus pudesse ficar preso em regime fechado – 90

Cf. nota de rodapé n. 84

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considerando como se a única acusação fosse o crime de aborto. Foi completamente ignorada a associação criminosa e a participação e suborno de funcionários públicos, tendo o ministro julgado uma quadrilha como se fosse uma ex-gestante abandonada e aflita. Além de tamanha discrepância fática, os próprios argumentos jurídicos aduzidos pelo ministro se apresentam, ao menos, heterodoxos. Analisemo-los. A nosso ver, não vislumbramos qualquer motivo pelo qual uma percepção – de forma alguma unânime – dos países ditos “do Primeiro Mundo” deveria ser, por si só, um indicador de que a vedação ao aborto viola direitos fundamentais. O fato de um país ser mais ou menos desenvolvido não dá ao seu legislador qualquer posição privilegiada para a compreensão da natureza humana – sobretudo em temas nos quais a discordância é tão firme quanto no abortamento. O argumento do ministro, aqui, não passa de uma espécie falaciosa de argumento de autoridade. Em segundo lugar, a consideração de que “ninguém em sã consciência suporá que se faça um aborto por prazer ou diletantismo” em nada influi na relevância criminal da conduta do abortamento. Ora, se o aborto é – como sustentamos em nosso presente trabalho – um ato que suprime a vida de um ser humano inocente – ele permanecerá ilegítimo, mesmo que a pessoa que o cometa não o faça por prazer91. Em um ponto – todavia – o voto está correto: ao dizer que não há solução jurídica para o problema do início da vida. Isso ocorre pelo simples fato de que essa questão não é um problema jurídico. Em verdade, como sustentaremos na terceira parte do presente trabalho, não há absolutamente nenhum bioeticista de relevância que defenda que a vida não começa na concepção, pois tal posição já é pacificada na embriologia e na filosofia. A argumentação comumente apresentada na bioética não trata sobre o início da vida, mas sim sobre o início da pessoalidade, momento no qual o direito à vida passaria a existir – o embrião é um 91

Em verdade, há pessoas (e seu número é crescente) que defendam o aborto como um ato intrinsecamente bom e prazeroso, ou até mesmo um ato sagrado. Exemplo deste último caso é a concepção neopagã do aborto como um ato sagrado, defendida por Ginette Paris, em seu livro “O Sacramento do Aborto”. Dentro da militância pró-aborto, inclusive, há muitas defensoras que o ato de abortar é uma espécie de “libertação” e fonte de “empoderamento feminino”. Por óbvio, todavia, não cremos que esse seja o caso da maioria das pessoas que buscam o aborto no Brasil atual.

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ser humano, questiona-se se ele é também uma pessoa humana. Ademais do fato de não ser o início da vida uma matéria jurídica, mas préjurídica – situada no âmbito da biologia e da filosofia –, tal consideração deveria ser irrelevante para o voto do ministro, que deveria haver questionado, sim, se há alguma proteção jurídica à vida do nascituro no ordenamento em vigor. De fato, a consideração do início da vida (e, de modo mais próprio, a consideração sobre o início da pessoalidade) é relevante no debate legislativo, como pressuposto para a elaboração da lei, devendo o debate judiciário debruçar-se, antes, sobre o ordenamento jurídico vigente. Caso o ministro Barroso houvesse buscado considerar não “se é possível uma resposta jurídica ao problema”, mas sim “se já há resposta jurídica”, veria que a opção do legislador, disposta no artigo 2º do Código Civil 92 e reafirmada no Pacto de São José da Costa Rica93 (incorporado ao ordenamento com nível supralegal) é clara, havendo um reconhecimento do direito à vida do nascituro(e, por consequência lógica, da existência de vida), no ordenamento jurídico brasileiro, desde a concepção. Nota-se que a própria época em que tais diplomas passaram a vigorar em nosso ordenamento já refuta por completo a consideração do ministro de que o dispositivo do Código Penal seria mera legislação vetusta, não adequada a uma “sociedade cosmopolita”. Embora o legislador de 1940 tenha vedado o aborto, protegendo juridicamente a vida do nascituro, também o fizeram os legisladores de 1992 e o de 2002. Nada mais esperado num país em que o poder emana do povo, sendo exercido pelos representantes eleitos94, e o povo é, em sua imensa maioria, contrário ao aborto95. Antiquada ou não, a legislação vigente refletiria, 92

Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

93

Art. 4.1 - Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

94

Constituição Federal, artigo 1, parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

95

Apenas 16% dos brasileiros defenderiam a legalização do aborto, segundo pesquisa feita pelo Ibope em 2014. Cf. “Ibope: quase 80% são contra legalizar maconha e aborto”. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ibope-quase-80-sao-contra-legalizar-maconha-eaborto,1554665 [Acesso em 08 Set 2017]

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assim, a vontade popular. Quanto às considerações tecidas pelo ministro sobre os supostos direitos fundamentais, que culminariam num direito fundamental ao aborto, tampouco encontramos qualquer solidez em sua cadeia argumentativa, que nos parece pura e simples prática de ativismo judicial em sua pior face96. O primeiro dos direitos fundamentais elencados, a autonomia, é defendido ignorando-se completamente a realidade da gravidez – tutelada pelo legislador e lastreada na vontade popular, ressalte-se – pela qual a mulher, por mais autônoma que seja, não se confunde com o nascituro. Este é, pelo aborto, privado do bem jurídico que mais lhe interessa: sua própria vida. O conflito entre a autodeterminação e a vida do nascituro sequer é abordado pelo ministro em tal tópico, uma vez que ele apenas explana a autonomia individual como se fosse um direito absoluto que jamais poderia se dobrar perante outros direitos igualmente fundamentais. Um erro aqui manifestado e que permeou toda a cadeia argumentativa do voto foi considerar que a vedação ao aborto obriga a mulher à maternidade. Não se trata disso, caso bem se analise a gestação. Só pode haver aborto, se houver gravidez. Só há gravidez, se houver nascituro. Se há nascituro, já há a relação de maternidade e de filiação – e não apenas no âmbito fático, mas para o próprio direito. Vide, por exemplo o reconhecimento de direitos sucessórios do nascituro. Repita-se: para o Direito Civil, os direitos são tutelados desde a concepção, e esta realidade foi ignorada pelo ministro Luís Roberto Barroso, o qual, caso quisesse considerar a mente do legislador pós-88, deveria analisar o Código Civil, que é um dos mais importantes diplomas posteriores à atual Constituição. O mesmo erro novamente se fez presente quando da apresentação do terceiro conjunto de direitos fundamentais mencionados no voto, os direitos sexuais e reprodutivos. O aborto não impede a gestação – quem o faz é a contracepção. O aborto a encerra, encerrando a vida (real e existente) do ente gestado. 96

Conosco está Lênio Streck, o qual ainda aponta que o voto haveria pervertido a aplicação da teoria de Alexy. Cf. “Aborto – a recepção equivocada da ponderação alexyana pelo STF”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-dez-11/aborto-recepcao-equivocada-ponderacao-alexyana-stf [Acesso em 08 Set 2017]

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O segundo direito fundamental abordado foi a integridade psicofísica, tendo o ministro considerado que a gravidez indesejada violaria, por seus riscos, a saúde a mulher. Ora, é fato que a gravidez acarreta certos riscos à gestante – mas lembremo-nos que não se trata, aqui, de qualquer tipo de risco à vida, pois este já se encontra compreendido na excludente do artigo 128, I. O aborto, por outro lado, não acarreta mero risco ao nascituro, mas sim a certeza de sua morte, isto é, o encerramento abrupto e violento de sua vida – justamente por isso que o legislador de 1940 dispôs, com certa proporcionalidade no sopesamento dos bens jurídicos, que não haveria pena à violação deste direito à vida quando esta fosse feita para salvaguardar outro direito à vida (o da gestante). Em momento algum o ministro considerou um conflito de direitos entre dois sujeitos – nascituro e gestante – mas sim entre um difuso interesse social impessoal acerca do feto, contraposto a um claro e concreto interesse da gestante, o que decorre de seu posicionamento (inexistente em lei) de que a vida começaria apenas com a formação do sistema nervoso central. O quarto direito trazido pelo ministro foi a igualdade de gênero, bem resumido na citação do ex-ministro Carlos Ayres Britto feita pelo ministro Barroso: “se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto seria descriminalizado de ponta a ponta”. O mesmo erro da consideração dos outros direitos fundamentais permanece aqui, pois, em nenhum momento, é considerado o direito à vida do nascituro. Quanto à discriminação social, que abordaremos novamente mais à frente no presente texto, frisamos apenas que a consideração feita pelo ministro Barroso acerca da necessidade das mulheres pobres de recorrerem a abortos inseguros é falsa, pois pressupõe um fato falso: ninguém 97 tem verdadeira necessidade de aborto algum. Demais disto, novamente nada é dito dos direitos do nascituro. A abordagem realizada pelo ministro acerca da proporcionalidade igualmente se mostra falha. De início, o ministro cita estatística do Instituto Allan Guttmacher, órgão de pesquisa vinculado à IPPF, grupo que trabalha com abortos em todo o mundo. Da mesma forma que tal instituto e demais organizações que 97

Não consideremos aqui o chamado “aborto necessário”, o qual é feito nas mesmas condições para ricos e para pobres, e nada tem a ver com o presente tópico.

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militam pela legalização do aborto argumentam que a legalização gera uma diminuição do número de abortos, os defensores da manutenção da criminalização sustentam98 que aquelas organizações inflacionariam o número de abortos, a fim de que, com o advento das estatísticas oficiais por ocasião da legalização, ocorresse uma falsa constatação de queda nos números de abortamentos. Com base em pesquisas acerca da porcentagem de abortos provocados perante o total de abortamentos, bem como do percentual da necessidade de internações entre mulheres que abortaram, e do número de tais internações, tais grupos estimam 99 que a real estatística de abortos no Brasil seja de 100.000 abortos anuais, valor dez vezes inferior ao comumente exposto de 1 milhão de abortos. Ainda quanto à queda no número de abortos após a legalização, defendida pelo ministro, vê-se que há diversas estatísticas que constituem verdadeiros contraexemplos a tal tese, como a realidade dos Estados Unidos, onde o número de abortos entre 1970100 e 1980101 saltou de aproximadamente 193.000 para cerca de 1.300.000, ou mesmo a Suécia102, na qual primeiro registro sobre aborto 103, em 1939, apontava 439 procedimentos, valor que passou para 38.000 104 em 2015, havendo a população105 aumentado em apenas de 6.310.214

habitantes para

9.851.017 habitantes ao longo de tais anos. Ao cabo, quanto à adoção do princípio da proporcionalidade como fator de inconstitucionalidade da criminalização do aborto no primeiro trimestre, tem-se igualmente que a defesa feita pelo ministro Barroso encontra-se eivada de vícios e 98

Tais teses encontram-se expostas em slides apresentados em Audiência Pública no Senado Federal, disponíveis em https://goo.gl/GP9jX0

99

A metodologia do cálculo, bem como as referências das pesquisas que levaram a tal estimativa encontram-se nos slides mencionados na nota anterior.

100

Dados disponíveis em: https://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtml/ss5713a1.htm

101

Dados disponíveis em: https://www.cdc.gov/mmwr/preview/mmwrhtml/00000366.htm

102

Cf. CASSEL, Gunnar. Induced Legal Abortion in Sweden during 1939-1974: Change in Practice and Legal Reform. Estocolmo: 2009. Stockholm University Demography Unit. Disponível em.: http://www.stressforskning.su.se/polopoly_fs/1.18721.1320939636!/WP_2009_1.pdf [Acesso em 08 Set 2017]

103

Os valores encontram-se sistematizados em http://www.johnstonsarchive.net/policy/abortion/absweden.html (fontes no próprio link).

104

Valor também disponível em http://www.socialstyrelsen.se/statistik/statistikefteramne/aborter

105

Disponível em: http://www.statistikdatabasen.scb.se/pxweb/sv/ssd/START__BE__BE0101__BE0101G/BefUtvKo n1749/?rxid=aee8d9f4-aae0-4af5-890f-f696c02429f2

76

pressupostos contestáveis. Na vertente do subprincípio da adequação, o ministro sustenta a questão estatística (já abordada anteriormente), além de dizer que não é função do Estado opinar em temas moralmente divisivos. Todavia, tal argumentação ignora por completo que os opositores do aborto sustentam que este é análogo a um homicídio, de modo que tal tese deve sim, no mínimo, ser cogitada e investigada pelo Estado, dada a relevância do assunto. Além disso, a sustentação de que o Estado deve ausentar-se do assunto é própria do debate legislativo, e não do judiciário, onde a decisão (política, frise-se) acerca da intervenção ou não do Estado no tema já foi tomada. A única hipótese em que o Judiciário pode imiscuirse em tal análise é quando o legislador produz alguma norma que afrontosamente viole os princípios constitucionais, intrínsecos a um Estado Democrático de Direito, tomados em concreto, e não do modo vago e abstrato sustentado no voto do ministro. Para que se conclua pela violação do subprincípio da adequação, é necessário julgar inadequada a criminalização do aborto para o combate à sua prática – o que é, no mínimo duvidoso, de modo que tal debate deve ocorrer na arena democrática do Legislativo, e não no Judiciário. Quanto ao subprincípio da necessidade, o ministro, ao apelar para as estatísticas já criticadas anteriormente, não apenas repete tal erro como agrava-o, sustentando que o combate eficaz ao aborto depende da educação sexual e da contracepção, como se estas fossem medidas mutuamente excludentes à criminalização do abortamento. De modo incoerente, inclusive, é sustentado, ao mesmo tempo, que o aborto é uma realidade crescente no Brasil atual, mas que pode ser evitado pela distribuição de contraceptivos e educação sexual – sendo que a difusão da “educação sexual” e a distribuição de contraceptivos nunca foram tão grande como hoje, e que não há nenhuma pesquisa que indique que sejam eficazes no combate à prática do aborto106. Caso se queira um efetivo combate cultural ao aborto, possivelmente se obterá maior sucesso com a difusão 106

Embora o aborto pressuponha uma gravidez, e esta pressuponha a ausência ou falha da contracepção, concluir que a distribuição de contraceptivos levará à queda da taxa de abortos ignora a realidade de que muitas pessoas deixam de usar métodos contraceptivos não por falta de disponibilidade ou ignorância, mas por outros motivos diversos.

77

de uma cultura de respeito pela vida desde a concepção 107 do que pela “educação sexual” promovida nos moldes atuais. Por fim, quanto à inadequação ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, o ministro formulou sua argumentação sobre a tese gradualista do direito à vida, a qual abordaremos detidamente em momento oportuno. Frise-se, por ora, apenas que tal teoria, defendida por alguns bioeticistas, não encontra qualquer respaldo na legislação brasileira, inclusive em nossa Constituição e nos tratados dos quais o Brasil é signatário. Ao contrário, derivaria do princípio da isonomia que o direito à vida é igual entre todas as pessoas, não admitindo gradação entre uns e outros. A defesa do aborto dependeria, assim, da consideração de que o nascituro não é uma pessoa, tema que abordaremos na próxima parte de nosso trabalho.

3.4 Conclusão da segunda parte: caminho do juiz

Qual o caminho tomado pela instância máxima de nosso Judiciário? Estariam os Ministros do Supremo Tribunal Federal a guardar a Constituição ou antes, sob o rótulo de defendê-la, estariam violando-a? O juiz está seguindo o legislador, ou está se fazendo de legislador? Com base nos casos apresentados, temos uma triste conclusão. Como apontado pelos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, em seus votos proferidos na ADPF 54, o Supremo Tribunal Federal, na matéria do aborto, está ignorando não apenas a lei vigente, mas também os princípios constitucionais, a sua própria função e, por fim, a vontade popular. Ignora a lei vigente, dado que essa é clara – criando distinções não desejadas nem realizadas pelo legislador de 1940, fazendo interpretações forçadas e conflitantes entre os próprios ministros (como o conflito entre atipicidade x tipicidade sem ilicitude suscitado na ADPF 54) com o intuito de promover a paulatina ampliação das hipóteses de “aborto legal” no Brasil. Como comentado na introdução desta parte de nosso trabalho, com a ADI 3.510 introduziu-se a 107

Que, possivelmente, seria considerada, por alguns, “inadequada a uma sociedade cosmopolita”.

78

ideia de que a vida começaria apenas com o encéfalo, pensamento que foi, posteriormente, desenvolvido e consolidado na ADPF 54. Pensamento adotado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto no HC 124.306/RJ, para sustentar a inconstitucionalidade da criminalização do abortamento antes dos 3 meses de gestação. Ideia que se difundiu e que poderá, num futuro próximo, levar à descriminalização do aborto até os 3 meses de gestação, assim que houver o julgamento da ADPF proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no dia 08/03/2017. Ignora os princípios constitucionais, arrogando-se o poder de legislador positivo e ultrajando a separação de poderes, pautando-se cinicamente no falso pressuposto de que a ausência de alteração legislativa no sentido desejado pela Suprema Corte é uma “omissão legislativa” que deve ser corrigida com pronta ação do Supremo Tribunal Federal. Ignora sua função, ao interpretar a lei contra legem, desprezando a vontade do legislador e a clareza dos dispositivos, e adotando postura antes legislativa a judicante. Ignora, por fim, o povo – do qual “todo poder emana”, nos termos da Constituição – que, em suma maioria, apresenta-se contrário ao aborto, e elege parlamentares com essa exata visão, motivo pelo qual o Congresso brasileiro jamais legalizou o aborto, embora não tenham faltado propostas legislativas nesse sentido, advindas de um ou outro representante de visões minoritárias em nossas Casas Legislativas. O caminho do juiz pátrio é, em síntese, desconectado do caminho do legislador. Aquele ignora este, taxa-o de “ultrapassado” e, a ouvidos moucos, ignora a própria população por este representada. As reiteradas posturas do STF no tema do abortamento demonstram que o caminho do juiz é, em verdade, o caminho de um segundo legislador – que, embora não eleito, é dotado de um grande poder.

79

80

TERCEIRA PARTE

4. Proposta de um novo estatuto jurídico ao aborto

Como vimos anteriormente, a regulamentação do aborto no Brasil se encontra cindida por uma divergência entre o caminho tomado pelo legislador e o rumo adotado pelo Poder Judiciário. Embora o primeiro tenha positivado o aborto como um crime contra a vida humana, há a admissão legal de hipóteses nas quais a prática do abortamento não se sujeita a qualquer pena. Essas hipóteses tradicionalmente são interpretadas (erroneamente, a nosso ver) como se fossem excludentes da ilicitude do ato, criando doutrinariamente – e jurisprudencialmente – a tese de que haveria, em certos casos, um direito subjetivo ao aborto. Com alguns raciocínios a mais, encaixa-se tal direito subjetivo dentro do amplo “direito à saúde” e – numa rápida dedução – tem-se que o SUS deve financiar o aborto no Brasil. Em outras palavras, por uma interpretação doutrinária totalmente avessa à própria letra da lei, instrumentaliza-se o Estado para o financiamento de um ato que o próprio legislador considera como atentatório à vida de uma pessoa humana. Do lado judicial, temos a forte ação das altas esferas do Poder Judiciário buscando flexibilizar e expandir cada vez mais as hipóteses em que o aborto não será punido, havendo a pressão de partidos políticos e grupos de militância na mais alta corte do país para que a interpretação legal acarrete verdadeira mudança na lei. De tudo isso, pode-se concluir apenas que a legislação brasileira é questionada por amplos setores de militância política e acadêmica, os quais alimentam forte anseio de mudança na lei – ainda que sem qualquer respaldo na vontade popular. Cabe-nos, agora, analisar qual é o caminho ideal que deve ser tomado por norte para qualquer proposta de mudança no estatuto jurídico hodiernamente aplicado ao aborto. Embora diversos outros autores já trabalhado no mesmo 81

sentido, buscaremos demonstrar como os princípios filosóficos tomistas nos conduzem ao rumo oposto do comumente defendido na academia.

4.1 Pressupostos filosóficos

Para podermos propor uma alteração legislativa, muitos conhecimentos devem ser pressupostos. Ocultá-los por completo é uma atitude que consideramos absolutamente inadequada, e que conduz ao debate tresloucado presente, hoje em dia, no Brasil. Um dos motivos pelos quais muitos debates políticos atualmente não produzem bons resultados é justamente pelas teses serem debatidas sem qualquer prévio consenso a respeito dos pressupostos que as sustentam. Quando os interlocutores não concordam acerca dos próprios pressupostos de uma discussão, é necessário dar um passo atrás, elevando-se o grau de abstração do assunto, para se discutir – e firmar – primeiramente os fundamentos pelos quais o tema almejado pode ser debatido. Especificamente quanto ao abortamento, possuirão fundamental relevância questões como a finalidade da lei, a função da lei penal, o intuito e a natureza da punição, a origem da lei, e diversos outros tópicos que pertencem mais ao âmbito da filosofia do direito que do próprio Direito Penal. Essas concepções jusfilosóficas sempre estarão presentes e exercerão grande influência em qualquer disputa acerca do teor de uma lei penal – ainda que não sejam expostas. Por outro lado, também é necessário o conhecimento da realidade concreta que se busca regular. No caso, tratar-se-á de questões como o início da vida, a própria definição de vida, e a natureza do ato do abortamento. Por óbvio, não pretendemos esgotar a discussão de cada um desses pressupostos. Temas profundos e complexos, sobre os quais muitas obras já foram escritas – como a natureza das leis e a existência de uma lei natural – não serão esgotados num simples trabalho de conclusão de curso, cujo tema apenas incidentalmente toca nessas questões jusfilosóficas.

82

Dessa forma, não é nosso intuito apresentar todas as correntes filosóficas e suas respostas para cada um dos temas que abordaremos nessa seção de nosso trabalho, mas apenas expor aquela visão à qual nos filiamos, que, como já foi dito, é de matriz tomista. Ao abordarmos o tema da finalidade da pena, por fim, iremos apresentar (e defender) exclusivamente a visão que adotamos, a fim de não desviarmos o foco de nosso objetivo.

4.1.1 O “jusnaturalismo” tomista.

Como ponto de partida dos fundamentos filosóficos que adotaremos para solucionar a questão jurídica do tratamento dispensado ao aborto no Brasil, adotamos com firme convicção a tese jusnaturalista clássica. Sucintamente, poderíamos dizer que a nossa filiação ao jusnaturalismo consiste na crença de que há uma medida de justiça extrínseca às leis promulgadas pelos legisladores humanos108, que deve ser tomada por regra das próprias leis feitas pelos homens – a essa medida chamamos de Lei Natural. Convém explicá-la, e, em seguida, apontar onde ela se refletirá na questão do aborto. Iniciemos, pois, com uma citação do célebre orador romano:

“Se o Direito se originasse dos mandatos populares, dos decretos dos chefes, das sentenças dos juízes, seria roubos e adultérios e falsificações testamentárias – sempre que tais atos fossem ratificados pelos votos ou pelas decisões das massas. Se o poder e as decisões dos ignorantes pudessem transformar a natureza das coisas, por que, então, não decidir que o mau e o pernicioso ter-se-ão por bons e saudáveis? E desde que a lei com o injusto pudesse criar um direito, por que não poderia com o mal fabricar o bem? Porém, para distinguir a lei boa da lei má não há outro parâmetro que não a Natureza. É a Natureza que permite distinguir entre o justo e o injusto, entre o honroso e o desonroso, por nos ter dotado de igual inteligência e nos ter capacitado para relacionar o honroso com a virtude e o desonroso com o vício.”109 108

Como não nos lembrarmos, aqui, do apelo de Antígona face a lei injusta do tirano?

109

CÍCERO, Marco Túlio. De Legibus, Liber Primus, cap. XVI A tradução empregada foi CÍCERO, M. Túlio. Tratado das Leis – introd. Trad. E notas: Marino Kury – Caxias do Sul: Educs, 2004. p.58

83

Tradicionalmente, a filosofia identifica nas pessoas duas grandes capacidades, análogas às presentes nos demais seres vivos. Enquanto os animais – e o próprio homem, na medida em que este é um animal – possuem uma capacidade de conhecer o mundo a sua volta, constituída pelos sentidos 110, e uma capacidade de inclinar-se para o mundo exterior, desejando e atraindo-se por coisas que lhe pareçam convenientes a si, denominada apetite111, o homem possui, além dos sentidos (que lhe conferem o conhecimento sensível) e dos apetites sensíveis, duas capacidades espirituais112, que são o intelecto e a vontade113. Por meio daquele, conhece-se a realidade de maneira muito distinta do modo de qualquer outro animal, sendo o homem capaz de se abstrair formas imateriais e atingir conhecimentos abstratos, chegando ao conhecimento científico e às noções de causa, efeito, fim, etc. Tal ocorre pelas ditas “operações do espírito”, que são a simples apreensão, o juízo e o raciocínio, estudadas e orientadas pela Lógica. Compete, ainda, ao intelecto (dito, nesse sentido, “intelecto prático”, em contraposição ao “intelecto especulativo”, embora ambos sejam uma única e mesma potência114) planejar e ordenar a ação humana. Por meio da vontade, por outro lado, o homem pode tomar decisões e inclinar-se para a busca de bens que No original: “[43- 44] Quodsi populorum iussis, si principum decretis, si sententiis iudicum iura constituerentur, ius esset latrocinari, ius adulterare, ius testamenta falsa supponere, si haec suffragiis aut scitis multitudinis probarentur. Quodsi tanta potestas est stultorum sententiis atque iussis, ut eorum suffragiis rerum natura uertatur, cur non sanciunt ut quae mala perniciosaque sunt, habeantur pro bonis et salutaribus? Aut cum ius ex iniuria lex facere possit, bonum eadem facere non possit ex malo? Atqui nos legem bonam a mala nulla alia nisi natura norma diuidere possumus. Nec solum ius et iuria natura diiudicatur, sed omnino omnia honesta et turpia. Nam, communis intellegentia nobis notas res effcit easque in animis nostris inchoauit, honesta in uirtute ponuntur, in uitiis turpia.” disponível em http://www.thelatinlibrary.com/cicero/leg1.shtml#57 110

Nem todos os animais possuem todos os sentidos. Quanto mais desenvolvida aquela forma de vida, maiores serão seus sentidos. Identificam-se cinco sentidos externos – tato, paladar, olfato, audição e visão e os quatro sentidos internos – sentido comum, imaginação, estimativa e memória. Cf. AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 78, a.4, resp.

111

Este, por sua vez, divide-se em apetite concupiscível, que orienta-se para os bens fáceis de se obter, que se mostram presentes no momento, e apetite irascível, que ordena-se para os bens árduos, que se mostram dificultosos de atingir-se. Cf. AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 81, a.2.

112

Denominar-se-ão “espirituais” por sua origem se encontrar no dito “princípio formal” do ser humano, que é a alma, a qual possuiria, no homem, natureza espiritual, isto é, imaterial. É relevante ressaltar-se que tal concepção advém da filosofia grega clássica, não sendo “invenção religiosa” - rótulo muitas vezes adotado como pretexto para sua desconsideração de per si, atitude absolutamente antiacadêmica e censurável.

113

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q.78, a.1

114

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 79, a. 11

84

abstratamente lhe foram apresentados por ação de seu intelecto. Há uma clara primazia do intelecto perante a vontade115, sendo ele determinado e medido pela realidade116, e a vontade sendo submissa ao mesmo. Assim, em última análise, deve haver uma submissão da vontade humana à realidade, que se impõe para o homem como fonte de conhecimento e consequente ordenação. O homem, ao conhecer a realidade, forma uma ideia abstrata que se refere à realidade conhecida117. A identificação entre a ideia e a realidade é o que se denomina “verdade”118. A realidade, por sua vez, foi criada conforme uma Razão Eterna119, que se identifica com o próprio Deus Criador120. Dessa forma, ao conhecer a realidade, o homem conhece uma ordem natural das coisas, dispostas segundo um Intelecto ordenador121, e à qual ele deve submeterse. Tal ordem é, em si, a chamada Lei Eterna 122, a “suma razão existente em Deus”123. A fração da Lei Eterna que é cognoscível pelos homens é a chamada Lei Natural124, sobre a qual nos debruçaremos para fundar nosso trabalho125. Lei, em abstrato, é uma regra do agir, que tem em vista o bem comum e é promulgada por uma autoridade competente126. Toda lei humana, sendo uma ordenação racional do agir, e tendo por fim o bem comum, possui sua autoridade fundada na própria Lei Natural127. Isso não significa – ressalte-se – que toda lei 115

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 82. a. 3

116

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 84, a. 6

117

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 85, a. 1

118

Na clássica definição medieval, a verdade é a adequação do intelecto à realidade.

119

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 16, a. 5

120

O qual é chamado por Cícero de “Sumo Júpiter”, sendo também referido por Platão e Aristóteles, e cuja existência é passível de prova racional. Cf. AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 2 a. 3

121

A ordem disposta nas coisas é chamada “Providência”, enquanto sua consecução chama-se “governo”. Cf. AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 22, a. 3

122

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 91, a. 1

123

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 93, a. 1

124

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 91, a. 2

125

Até porque, frise-se, este trabalho é jurídico, e não teológico, embora necessite buscar seus fundamentos mais remotos na Teologia e na Filosofia.

126

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 90

127

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 95, a. 2

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humana (a alíquota do ICMS sobre roupas, por exemplo) seja uma norma de direito natural, mas sim que sua autoridade última se funda na Lei Natural. Mais especificamente, toda lei só é lei na medida em que é justa, e só é justa na medida em que é reta segundo a regra da razão. Sendo a primeira regra da razão a Lei Natural128, toda lei será reta (e, por conseguinte, será lei) na medida em que se conformar à Lei Natural. Essa conformação pode ocorrer por dois modos129. O primeiro deles é por meio de conclusões extraídas dos princípios das leis naturais. Dessa forma, por exemplo, proíbe-se o homicídio tendo em vista que a vida de uma pessoa é devida a ela (é um “suum”; um direito), sendo um ato de justiça respeitá-la (dado que justiça é a virtude pela qual dá-se a cada um o seu direito - “suum cuique tribuere”130) e gravíssima injustiça que outra pessoa lhe tire a vida131. O segundo modo é pela determinação daquilo que, na lei natural, é abstrato e indeterminado. Por essa via, por exemplo, adquirem autoridade as leis mais simples do trânsito de veículos, como as que determinam o sentido do tráfego. Não é determinado pelo direito natural que os carros trafeguem pela faixa da esquerda ou pela faixa da direita. Todavia, é dever emanado da natureza a busca pela conservação da vida. Dessa forma, justifica-se um esforço tolerável para evitar acidentes. Desse esforço, por fim, surge a atribuição de sentidos obrigatórios ao fluxo de veículos132. Assim, toda lei deve ser redigida tendo-se em vista a Lei Natural, fonte de sua autoridade, de forma a não desrespeitá-la, mas, antes, concretizá-la. Portanto, sempre que se for legislar acerca de qualquer matéria – dentre as quais inclui-se, com certa proeminência, o Direito Penal – é necessário analisar previamente os direitos133 envolvidos nos casos que irão ser regulados pela norma jurídica, a fim 128

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 91, a. 2, ad. 2

129

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 95, a. 2, resp.

130

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. II-II, q. 57, a. 1

131

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. II-II, q. 64, a. 2

132

Aristóteles dá outro exemplo igualmente ilustrativo: seria de direito natural que se oferecesse sacrifício aos deuses, sendo o dever para com os deuses o primeiro dos deveres de justiça. Todavia, não é, em si, determinado pelo direito natural se tal sacrifício seria de um boi ou de um cabrito, ou se seria oferecido no dia X ou no dia Y.

133

Adotamos, aqui, a linguagem dos “direitos subjetivos”, não empregada pela filosofia tomista, apenas para simplificar nossa exposição. A rigor, falar-se-ia de deveres advindos da lei natural, dos quais se poderia derivar, por via interpretativa, algum “direito”.

86

de não se ignorar direitos mais importantes, que serão tutelados sob a ótica de bens jurídicos, em detrimento de direitos de menor relevância134. Duas grandes consequências que advém de nossa concepção jusnaturalista possuem relevância na normativa do abortamento. Em primeiro lugar, há a consequência já apontada de que haverá direitos naturais a serem tutelados pela lei penal, não ficando ao mero arbítrio do legislador a escolha sobre o que ele desejará tomar como “bem jurídico” a ser defendido. Em segundo lugar, derivado da concepção da primazia do intelecto sobre a vontade135, tem-se que a lei deve ser fruto, primeiramente, de uma apreensão intelectiva da Lei Natural feita pelo legislador, e não produto arbitrário de sua vontade. O legislador não fará a lei como ele quer, mas sim como ela deve ser feita. Ele não possuirá aquela onipotência ideal, que por muitos se atribui ao Poder Constituinte. O legislador, sim, deverá ser guiado pela virtude da prudência (a qual consiste na reta razão no agir), de modo a criar leis que ordenem todas as coisas para o bem comum. Tais leis, portanto, deverão considerar os direitos naturais, e ordenar-se à finalidade intrínseca de qualquer lei, que é o bem comum.

4.1.2 A lei e o bem comum

Profundamente vinculado ao ponto anterior, outra pedra fundamental sobre a qual buscaremos construir nosso raciocínio vincula-se à finalidade da lei. Sobre esse tema, é muito comum a visão de que as leis se ordenam pura e simplesmente a fins particulares, não havendo uma finalidade geral, comum a toda e qualquer lei, decorrente da própria natureza de lei. Nesse sentido, o Código Penal buscaria apenas finalidades penais, enquanto a Lei Orgânica da Assistência Social teria por finalidade última regular a 134

Ressalte-se que aqui estamos usando linguagem imprópria, pois o direito só é verificável no caso concreto, onde, sob a orientação da justiça legal, se averígua qual é a fração de bens e males a ser distribuída para cada uma das partes envolvidas num conflito. O que buscamos dizer é, em suma, que o legislador deve observar se, ao tutelar um “bem jurídico”, ele não está violando algum dever natural – o qual se concretizaria em outro direito e, em última análise, em outro “bem jurídico”.

135

Cuja negação deu origem a grande parte dos erros filosóficos modernos, iniciados com a filosofia voluntarista de Duns Escoto.

87

Assistência Social. Nada haveria de comum entre ambos diplomas, exceto que foram feitos pelo mesmo legislador e para o mesmo país. O pauperismo de tal concepção jusfilosófica parece-nos patente, bem como seu teor marcadamente nominalista, e pode ser notado pela própria compreensão de que as leis se destinam à ordenação da sociedade como um todo, e não apenas a resolver questões pontuais. É justamente esta visão total que distinguiria o bom legislador do legislador inepto. Conforme já dito anteriormente, a doutrina tomista ensina que a finalidade da lei é o bem comum136. Dessa forma, sendo que o primeiro princípio de qualquer ação voluntária é o fim almejado pela vontade 137, e sendo a lei um certo princípio dos atos humanos138, dado que ela indica e ordena ao homem como ele deve agir ou se abster de agir, a lei deverá, por consequência, ter em vista o fim último desejado pela vontade – e, num âmbito mais compreensivo, o próprio fim último do homem. Ao contrário do que possa parecer à primeira análise, conceitos como “bem comum” e o “fim último do homem” não são, numa ótica tomista, indeterminados e adaptáveis ao bel prazer em cada caso concreto, senão que realmente podem ser investigados pela razão e explicitados com clareza. É o que nos cabe fazer agora. O conceito de bem comum é frequentemente empregado em discursos políticos, embora poucas vezes seja definido. Bem comum, para a filosofia aristotélico-tomista, é o bem de todos os homens, que consiste na criação de possibilidades para que todos os indivíduos possam atingir seu fim último de forma livre, isentos de empecilhos externos para tal. A busca do bem comum será, sobretudo, a missão da Política, sendo também a finalidade das leis – que devem ser feitas por um legislador dotado da virtude da prudência. Embora muito contestada hoje em dia, por entender-se um conceito fluido e indeterminado, a existência de um bem comum não apenas pode ser provada, 136

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 90, a. 2

137

Nesse sentido, o primeiro princípio de uma viagem até uma cidade X a fim de participar de um casamento não é “chegar à cidade X”, mas sim “participar de um casamento”. E será justamente para este fim que cada ação intermediária se ordenará – por exemplo, se abastecerá o carro, na estrada, não meramente para abastecê-lo, mas sim isto (o abastecimento) se ordenará ao fim último de participar do casamento. Diz-se que a causa final é a causa das causas.

138

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 90, a. 1

88

como este não é, em si, indeterminado. Dado que todos os seres humanos compartilham de uma mesma essência, todos eles possuem a mesma finalidade última, e necessitam, enquanto homens, das mesmas coisas. Essas necessidades e fins comuns são os elementos constituintes do próprio bem comum. Assim, as boas condições econômicas e, sobretudo, a paz social, são elementos nucleares do próprio conceito de bem comum, posto que são necessários à consecução do fim último do homem, devendo, dessa forma, serem buscados pela atividade legislativa e política. A existência de um fim último para o homem – hoje posta em dúvida – é necessária pelo simples motivo que todo agente (entre os quais se encontra o homem) age tendo em vista um fim. Só se faz algo por que se quer alguma coisa. Só se deseja um meio (sob a ótica de fim intermediário) tendo em vista um fim último. Como é impossível remeter-se a uma cadeia infinita de fins intermediários139, pois senão todos os fins seriam sempre intermediários, e não teriam valor algum em si mesmos, não levando o agente à ação, é necessário que haja algum fim último em vista do qual todos os elementos intermediários adquirem valor para o agente140, que passará a desejá-los. Qual é o fim último do homem? Para Aristóteles e Tomás de Aquino, a resposta é muito simples. O fim último do homem é a felicidade, objeto necessário da vontade, perante o qual o homem não possui a capacidade de fugir ou deixar de buscar. Todos os homens são, por assim dizer, fadados a buscarem a felicidade141. Num célebre exemplo de Santo Agostinho142, até mesmo o suicida, ao matar-se, busca a felicidade, desejando a morte como um bem. Nesse ponto, inclusive, ele não age mal. O erro do suicida é intelectivo: o que ele achou que lhe fosse um bem (a morte) é, em verdade, um terrível mal. Sua ação é má porque seu objeto é mau, ainda que suas intenções fossem boas. Uma pessoa que possua as corretas inclinações buscará corretamente o fim último143, isto é, a felicidade. Uma pessoa sem as devidas inclinações e virtudes procurará inutilmente a felicidade 139

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.1, a . 4

140

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.1, a . 6

141

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.5, a. 8

142

O clássico exemplo do suicida é apresentado por Santo Agostinho na obra “De Libero Arbitrio”.

143

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.1, a . 7, resp.

89

onde ela não se encontra, jamais a atingindo. Seguindo a tradição de Platão e Aristóteles, Tomás de Aquino dirá que o fim último, isto é, a felicidade, sumo bem para o homem 144, não consistirá nem na posse de riquezas145, nem nas honras,146 na fama147 ou no poder148, tampouco em qualquer bem corporal149, ou mesmo no prazer150, mas sim, de certa forma, num bem da alma151. Aristóteles dirá que, como o homem é um “animal racional”, necessariamente sua felicidade estará no exercício daquilo que lhe é único e especial, e o difere de todos os demais animais, isto é, na racionalidade. A fonte da felicidade, segundo o Estagirita, seria, assim, a atividade da contemplação filosófica, que é a mais elevada de todas as atividades que o homem pode exercer. Ela só seria possível quando o indivíduo estivesse com todas as suas potências ordenadas, submetendo suas potências concupiscíveis e irascíveis, tal qual sua vontade, à razão152. Este estado de perfeição natural, o qual exigiria grande esforço para ser atingido, seria a chamada “eudaimonia”. Santo Tomás, em complemento a Aristóteles, nota que, como o apetite intelectual, isto é, a vontade, tem como objeto o bem universal, qualquer bem inerente à alma será um bem participado, ou seja, limitado 153. Dessa forma, o homem só seria plenamente satisfeito caso estivesse em posse do bem absoluto, que não é bem por participação, mas por essência. Este bem, conforme a doutrina dos transcendentais, seria o próprio Deus Criador 154, de forma que o homem só 144

Em verdade, todo fim, na medida em que é um fim, é compreendido sob razão de bem, dado que bem é aquilo que a todos apetece.

145

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a . 1

146

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a . 2

147

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a . 3

148

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a . 4

149

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a . 5

150

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a . 6

151

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a. 7, resp.

152

Note-se a imensa diferença entre a doutrina aristotélica e o estoicismo. Para Aristóteles – seguido, nisso, por Tomás de Aquino, o homem deve ordenar suas potências, colocando-as em seus devidos lugares e limitando-as a seus âmbitos específicos. Para os estoicos, por outro lado, a felicidade exigiria não a ordenação dessas potências, mas antes seu total silenciamento, levando ao estado por eles chamado de “ataraxia”.

153

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a. 7

154

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.3, a. 1

90

seria plenamente satisfeito quando em posse de Deus, isto é, na bem-aventurança eterna do Paraíso. Note-se que a tese de Aristóteles e a tese de Tomás de Aquino não se contradizem. Pelo contrário, elas são complementares. Aristóteles soube, com maestria, demonstrar em quê consistiria o fim último natural do homem, que é na felicidade pela contemplação. O Doutor Angélico, por outro lado, realçou que, propriamente, só haveria felicidade plena e verdadeira no âmbito sobrenatural, havendo, assim, um fim último sobrenatural do homem, que também consiste numa ação155 contemplativa exercida pelo intelecto156, sendo o objeto contemplado a própria essência divina157. Em que isso é relevante a nosso estudo acerca do aborto? Simples. Tanto Aristóteles quanto Tomás de Aquino (e, aqui, também poderíamos incluir muitos outros autores, como Platão, Cícero, Agostinho, etc) concordam que, para o homem atingir sua finalidade última, ele necessariamente deve desenvolver-se nas virtudes. A busca pelo crescimento nas virtudes é intrínseca ao homem bom. Dessa forma, as condições que permitem tal desenvolvimento, bem como o crescimento nas virtudes são componentes do bem comum – o qual, como vimos, é a finalidade da lei. Assim, a lei se relacionará com as virtudes de mais de uma maneira. Em primeiro lugar, é função da lei garantir a paz social necessária para que as pessoas possam desenvolver-se nas virtudes, crescendo como pessoas e possibilitando o florescimento de todos os ricos matizes das diversas personalidades que compõe uma sociedade. Sem a paz social, é tremendamente difícil o desenvolvimento humano. Assim, assegurar a paz social deve ser um dos primeiros fins a serem buscados pelo Estado. Em segundo lugar, e como causa do ponto anteriormente levantado, a lei deve obrigar as pessoas a praticarem um mínimo de atos virtuosos 158,

155

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a. 2

156

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a. 3-4

157

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.2, a. 8

158

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.93, a. 1

91

impropriamente dizendo, para que seja possível a convivência entre elas159. Dizemos “impropriamente” pois a virtude não se encontra na prática involuntária e coercitiva de atos bons (ao modo de mero adestramento), mas sim na prática desses atos por uma certa conaturalidade com o bem. Todavia, como ressalta Santo Tomás, alguns homens somente são conduzidos à virtude por meio da coação, dada a má disposição desses160. Embora a guarda da paz social seja um motivo ainda hoje sustentado como justificador das leis humanas (apesar da perda da percepção de que a paz social, em si, não é o fim último 161 das leis, mas sim ordena-se para outra finalidade mais remota, que é possibilitar o desenvolvimento das virtudes nos homens), a função legal de obrigar os homens à prática de um mínimo de virtudes, é uma doutrina contrária à filosofia política que justifica e embasa o Direito moderno, dado que esta é de origem liberal162. Um terceiro laço ainda une a lei e as virtudes. Todavia, dada sua relevância, trataremos dele num tópico à parte, a seguir.

4.1.3 Função pedagógica da lei

Uma das mais importantes funções da lei, muito esquecida hoje em dia – por influência da mentalidade liberal, segundo a qual os fins dos indivíduos não decorrem necessariamente de sua natureza, tampouco podem ser precisados racionalmente, motivo pelo qual serão os próprios agentes que determinarão seus fins – é a função pedagógica. Como ressaltado anteriormente, sendo função do Estado promover o bem comum, que consiste no auxílio e incentivo ao 159

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.95, a. 1, resp.

160

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q.95, a. 1, ad. 1

161

Tratamos, aqui, do chamado “fim último relativo”, que é uma finalidade considerada a finalidade última sob um certo aspecto (secundum quid), em contraste com o “fim último absoluto”(simpliciter). Assim, o fim último relativo da medicina é a saúde, embora seu fim último absoluto seja o mesmo fim último absoluto do homem, que é a felicidade.

162

Nos referimos à concepção de que as pessoas são absolutamente livres para agirem como quiserem, desde que não incomodem umas às outras. Respeitosamente discordamos de tal visão. Cremos que a liberdade existe apenas num sentido positivo, ou seja, para a prática de atos bons – ainda que muitos atos maus devam ser tolerados pelo Direito (mas jamais formalmente autorizados). Uma boa síntese da divergência entre o tomismo e a filosofia liberal encontra-se na Carta Encíclica Libertas, escrita pelo Papa Leão XIII.

92

crescimento do povo na virtude, e sendo esta atividade exercida, sobretudo, por meio da lei, instrumento da Política, tem-se que o legislador é, de certa forma, um pedagogo. Ao contrário desta visão ser algo recente, ou remontar aos abomináveis regimes totalitários do século XX, vê-se que a ideia da função pedagógica da lei remonta às origens da própria Política, sendo claríssima sua presença na Grécia Clássica. Nesse sentido, Werner Jaeger atesta que a legislação era peça fundamental do conceito grego de paideia163. A lei, vista como fruto do trabalho de um legislador virtuoso, era mais um elemento na formação integral do homem, prescrevendo comportamentos virtuosos, e vetando comportamentos viciosos, de modo a tutelar o desenvolvimento do cidadão a fim de que ele atingisse seu fim perante a pólis. O legislador, como ressalta Jaeger, possuiria assim uma função pedagógica semelhante à do poeta e, posteriormente, à do filósofo. Ao contrário de tal visão ser semelhante à dos totalitarismos do século XX, há uma diferença fundamental que as separam em polos absolutamente opostos da política, sendo sua única semelhança a concepção de um Estado Educador. Os regimes socialistas, comunistas, nazistas e fascistas (bem como todas as outras religiões políticas e demais ideologias) do pressupuseram, no seu próprio íntimo, a inversão fundamental de intelecto e vontade que caracterizou a modernidade e que já comentamos anteriormente164. As ideologias totalitárias eram visceralmente voluntaristas, no que se opõem diretamente ao platonismo, ao aristotelismo e ao tomismo. O Estado Educador não era, naqueles regimes, propriamente um Pedagogo, mas sim um Ideólogo. Ele não ensinaria os homens a praticarem o bem e buscarem as virtudes que decorrem da própria natureza e são apenas conhecidas pelo legislador, mas antes o Estado seria o responsável por criar e determinar o que seria virtude e bem. Estes não lhe antecederiam logicamente, e sim pressuporiam a ação arbitrária do Estado. O Estado não era um amigo das 163

Cf. JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. Trad: Artur M. Parreira. 6ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. p.143

164

Conferir nota de rodapé nº 135.

93

virtudes, senão um definidor das virtudes. Ele não as conhecia, para desejá-las; ele simplesmente as inventava segundo fosse de seu desejo arbitrário. O Estado clássico, por outro lado, sabendo que os homens possuem a mesma essência, e que certos bens convêm necessariamente a tal essência (como as virtudes), buscava guiar os cidadãos no caminho do desenvolvimento e alcance desses bens. Não ignoramos que essa visão é tremendamente distinta do liberalismo vigente. Para este, o Estado e os indivíduos se opõem, devendo aquele servir a estes para se evitar a escravização do indivíduo por um Estado totalizante165. Com a devida vênia, discordamos de tal visão. Cremos que ela só é válida numa ordem voluntarista – como a que deu origem à modernidade. Sustentamos que, afastado o erro iniciado no scotismo e reentronizado o intelecto como elemento superior à vontade, perceber-se-á que outra ordem é possível (e natural). Sob a ótica conservadora, a visão liberal parece esquecer-se de que o homem é, por natureza, um animal político 166, e que as sociedades se originam orgânica e naturalmente da estrutura familiar167. Dessa forma, sendo a família uma estrutura formadora/educadora do homem, os povoados, as cidades e o Estado manterão tal natureza, sob um modo análogo e com competências subsidiárias, mas existentes. A sociedade imperfeita que é a família ordena-se para a sociedade perfeita que é a pólis, e ambas possuem por finalidade natural o bem comum de todos os indivíduos. Não há, assim, qualquer oposição intrínseca entre indivíduos e Estado. Outro ponto comumente ignorado, e profundamente vinculado com o intuito pedagógico da lei, é a profunda relação entre a ordem jurídica e a ordem moral. Dada a complexidade de tal tema, temos por bem tratá-lo adiante. Antes disso, porém, convém dissertar acerca de um elemento específico da teleologia jurídica: qual é a função da punição? 165

Vemos que a visão socialista é similar à liberal, alterando-se apenas o “time” para o qual se torce. Sob o socialismo, o Estado totalizante subjuga os indivíduos, pois a liberdade desses é vista como uma oposição e ameaça ao Estado. Sem dúvidas, entre socialismo e liberalismo, ficamos com o segundo. Contudo, como buscamos explanar, cremos que, uma vez abandonado o voluntarismo, outras alternativas passam a existir.

166

ARISTÓTELES. A Política. I, 1253a

167

ARISTÓTELES. A Política. I, 1252b-1253b

94

4.1.4 Função da pena

Muito já foi escrito acerca da função da sanção penal – não é nossa pretensão expor ou abordar a vastíssima literatura a respeito, senão apenas esclarecer a visão que norteia esta dissertação. Em primeiro lugar, não sustentamos que a pena possua uma única função, num sistema “tudo ou nada”. Cremos que há diversas funções relevantes à sanção penal, de forma que o foco em uma delas não exclui as outras. De início, vislumbra-se a realidade da função da justiça comutativa involuntária. Aristóteles, ao explicar as divisões da justiça, expõe que há uma separação entre justiça distributiva – aquela que distribui bens e males a cada um conforme seu mérito, ocorrendo entre desiguais (justiça geométrica) – e a justiça comutativa (justiça aritmética), que ocorre entre indivíduos e que possui por modelo a troca (haja vista que esta é feita por uma prestação e uma contraprestação equivalentes). A justiça comutativa pode ser voluntária (contratos) ou involuntária, no caso em que a contraprestação é uma sanção com vistas à retribuição do mal causado. De um modo mais desenvolvido, tal função é conhecida como função retributiva, e é a responsável pela proporcionalidade entre o mal praticado e a severidade da punição. Negá-la em absoluto conduziria à negação do próprio fundamento da proporcionalidade. Todavia, tal função não é absoluta (embora exista), não sendo a única determinante na aplicação de uma sanção penal. Isso é deixado bem claro por Santo Tomás de Aquino, que compreendia que a retribuição perfeita de todos os males não é função da sanção penal, sendo reservado o perfeito juízo a Deus, o qual retribuiria o mal moral com as penas do inferno168.

168

Em verdade, muitos males devem ser tolerados pelo legislador e pelo juiz, tendo em vista um bem maior – de modo análogo à tolerância divina com o mal moral presente no mundo. Esse pensamento consagra-se no brocardo “faça-se a justiça e o mundo perecerá”.

95

Em segundo lugar, tem-se uma função pedagógica da pena 169, a qual se manifesta tanto no indivíduo punido quanto na sociedade170. No âmbito do indivíduo, ela imiscui-se consideravelmente com a função retributiva, pois envolve a transmissão do conteúdo de que o ato por ele praticado foi grave e que, por isso, ele foi punido. O núcleo de tal função é a promoção da consciência e reconhecimento da culpa e do propósito de emenda171. Já no âmbito social, a função pedagógica da pena expressa-se duplamente: em primeiro lugar, pela mensagem de valor por ela passado e, em segundo lugar, pela ameaça. É inegável a influência natural que a legislação possui sobre o conjunto de valores morais de um povo, e vice-versa. Essa influência será menor, na medida em que o povo possua outras fontes de valores (advindos da religião, da mídia, da cultura, etc), mas será tão maior quanto mais laicizado seja este povo, ou menos dogmática seja a ordem moral predominante. Dessa forma, muitos atos que, enquanto proibidos, ocorrem numa dada quantidade constante, sofrem verdadeiras explosões após sua legalização. Um ilustrativo exemplo é o do aborto nos Estados Unidos da América, já mencionado anteriormente172, e que diminuiu apenas com o fortalecimento da militância próvida e de grupos religiosos a ele opostos – sobretudo o conservadorismo católico. Embora o mesmo fato seja negado para países como o Uruguai (do que discordamos veementemente, haja vista a patente inflação nas estatísticas do número de abortos praticados antes da legalização, por parte da militância próaborto173), é notável que os mesmos grupos que militam pela legalização do aborto são os que se opõem à legalização do porte de armas, sob o argumento de que a 169

Optamos por fundir todas as funções preventivas em uma só, chamando-a de função pedagógica, por crermos ser tal nome mais adequado à função abordada.

170

Sustentar a existência de uma função pedagógica da pena não implica em qualquer afirmação acerca das atuais condições carcerárias do Brasil, mas apenas e tão somente em dizer que a pena é um instrumento naturalmente relevante para o legislador na consecução das finalidades do Estado, do direito e da sociedade.

171

O que nunca ocorrerá enquanto se continuar difundindo a visão ideologizada de que o delinquente é vítima da sociedade ou de uma estrutura abstrata, negando-lhe a mais básica pessoalidade e personalidade – visão que, querendo protegê-lo, apenas o reduz e ultraja. Há que se reconhecer – e fazer com que ele mesmo reconheça – que o delinquente é uma pessoa livre, que optou livremente – com mais ou menos pressão ambiental – por um ato ilícito e mau, e que poderia, se assim quisesse, não o fazer.

172 173

Na página 66. Igualmente comentada na página 66.

96

legalização do porte de armas aumentará o número de tiroteios e assassinatos por armas de fogo174. Negar a influência do ordenamento jurídico no sistema de valores de uma sociedade é, de certa forma, desconhecer a própria natureza humana 175. As pessoas buscam conformar-se a sistemas valorativos externos – ninguém cria sua própria moral sem base em valores preexistentes, ainda que seja negando-os – e a lei estatal, que reflete (em tese) os valores de um Estado, possui relevantíssimo papel nisso. Dessa forma, a criminalização de um ato é um sinal claro do Estado (e do legislador) para a sociedade, no sentido de que o ato criminalizado é mau, portanto não deve ser feito. Já a ameaça da sanção, segundo componente da função pedagógica da pena, possui toda a sua funcionalidade na promoção de hábitos bons que, consolidados, tornam-se uma espécie (imperfeita e imprópria) de virtude. Em verdade, como explica Santo Tomás, a lei é de grande serventia para os indivíduos maus176, haja vista que os bons voluntariamente buscam praticar a virtude e se esforçam para não cometer atos maus. A lei, assim, servirá para coagir os indivíduos que não estão focados no crescimento nas virtudes a não praticarem atos maus e a, por um sistema de estímulos positivos (recompensas) e negativos (punições)177, praticarem um mínimo de atos bons, que se consolidará com o tempo, formando um hábito. Como aqui não se trata de uma virtude propriamente 174

Note-se aqui o salto lógico: no caso do aborto, tais pessoas afirmam que legalizar sua prática não apenas não aumentará o número de abortos praticados, como diminuirá tal número, enquanto sustentam que a permissão do porte de armas não só aumentaria apenas o número de pessoas armadas (o que seria óbvio, tão óbvio quanto que legalizar o aborto aumentaria o número de abortos), mas sim que aumentaria o número de tiroteios e homicídios!

175

Tive interessante experiência a respeito, ao acompanhar de perto o drama de uma gestante cuja criança sofria de anencefalia. A pressão social suportada pela mulher (que levou a gestação a termo) foi imensa, tendo ela sofrido pressão constante para que abortasse (inclusive e sobretudo de médicos), tendo todos os argumentos morais trazidos por aqueles que desejavam que ela fizesse o aborto centrados na questão da suposta legalidade de tal abortamento: “é seu 'direito', logo, você não estará fazendo algo errado”. A 'lei' (emanada de autoridade ilegítima – o Judiciário) tornou-se a Moral – o lícito/ilícito e o certo/errado tornam-se intercambiáveis.

176

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II, q. 92, a.1

177

Análogo ao sistema empregado na educação de crianças que não atingiram a idade da razão. De fato, ao homem que não se comporta segundo sua condição racional, sendo guiado por paixões, caberá a mesma pedagogia que é aplicada às crianças, as quais – sem a razão desenvolvida – vivem em constante obediência às paixões.

97

dita (isto é, adquirida pela prática livre e voluntária de atos bons), basta a remoção do estímulo para que tal hábito, com o tempo, definhe. De modo concreto isso pode ser ilustrado pela formação de um hábito de respeito à propriedade alheia. Caso se revogassem todas as leis que tutelam a propriedade privada, veríamos que, assim como muitos continuariam respeitando as propriedades, também surgiriam pessoas que passariam a tomar os bens alheios (roubar/furtar/etc) sendo que elas não o faziam antes da revogação das leis. É para estas que a lei exerce uma função pedagógica pela ameaça. Uma vez tendo compreendido qual a função da pena, vislumbramos parte da complexa relação entre o universo jurídico e o universo moral – vimos, por exemplo, que a alteração da lei gera uma alteração da percepção moral do povo (ainda que certo e o errado não mudem, uma má identificação do certo e do errado pelo ordenamento jurídico gerará um obscurecimento da consciência moral do povo, inversamente proporcional à quantidade de referenciais morais que ele possua). Cabe-nos, agora, aprofundar nossas considerações sobre a relação entre Direito e Moral, indo pela via oposta: da moral, ao direito.

4.1.5 Direito e Moral

O Direito, como exposto acima, possui profundo vínculo com a Moral, de forma que a separação entre Direito e Moral, como se fossem pertencentes a universos estanques e incomunicáveis é equivocada. Os laços entre tais ramos do saber prático começam em seus próprios objetos – ambos se debruçam sobre a ação humana, regulando-a e valorando-a. De fato, numa abordagem tomista, o direito estabelece-se como sendo uma parte da moral178, de modo que é possível afirmar-se que todas as obrigações jurídicas são obrigações morais, embora nem todas as obrigações morais reflitam-se como obrigações jurídicas.

178

Cf. CORREIA, Alexandre. Concepção Tomista do Direito Natural. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 35, n. 3. (1940) São Paulo. p. 342 Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/65924

98

Dessa forma, a Moral é uma ciência centrada nas ações humanas, que estuda sua estrutura e sua valoração, fundamentando-se na Lei Natural (e, em última análise, na Lei Eterna) não apenas tomada em abstrato, mas também aplicada à realidade concreta, com todas as suas especificidades e particularidades. O Direito, compreendendo aqui apenas o Direito Positivo e seus ramos, é o instrumento pelo qual se dá efetividade a certos deveres morais, dotando-os da clareza e coercibilidade necessárias para um adequado convívio social. Nesse sentido, o Direito é o meio pelo qual a Lei Natural converte-se em Lei Humana, ordenando diretamente a realidade. Tal lei possui o fim principal de tornar os homens bons179 – compreendendo-se “bondade” aqui de um modo objetivo, a saber, a posse de um grau mínimo de virtude (nos termos abordados anteriormente), para que a sociedade permaneça íntegra e seus fins continuem alcançáveis. Assim, os primeiros princípios do intelecto prático – acessíveis aos homens pelo hábito natural da sindérese180 – poderão ser concretizados, em maior ou menor grau181, por instrumentos jurídicos. Em outros termos, o mandamento de fazer o bem e evitar o mal irá se expressar, em alguma medida, por ordenações e proibições legais dotadas da coercibilidade e eficácia próprias das normas jurídicas. Todavia, conforme exposto, nem toda matéria que componha objeto de deveres morais deve, ipso facto, converter-se em obrigação jurídica. O direito, sob a pena de perder sua utilidade num sem-número de ordenações, códigos e regras fúteis, deve restringir-se apenas àquilo que lide com deveres graves ou de resultado relevante, de modo que o aparato jurídico seja usado apenas quando realmente é necessário.

179

CORREIA, Alexandre. Op. cit. p. 354; AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I-II q. 92, a. 1

180

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 79 a. 12; AQUINO, Tomás. De Veritate. q. 16, a. 2, resp.

181

Na elaboração da lei positiva, muitos fatores concretos, concernentes à realidade “aqui e agora” presente ao legislador, influenciarão na maior ou menor concretização da lei natural. Contudo, os princípios apontados pela sindérese sempre deverão ser guia-mestra para a atividade legislativa. Cf. CORREIA, Alexandre. Op. cit. p. 354

99

Se a seletividade do Direito em relação à Moral, quanto à positivação de deveres, já é clara (não devem, por exemplo, o dever de ajudar um necessitado 182 ou o de ser veraz183 tornarem-se objeto de lei), com ainda maior peso ela se fará presente no âmbito do direito penal, verdadeiro braço forte do Estado, que deve ser usado apenas para tutelar bens de grande relevância que não podem ser resguardados com eficácia por outros ramos do direito184. Não havendo uma fronteira clara e apriorística entre as matérias que devem ser objeto de norma penal e aquelas que não devem – o que pode variar conforme o lugar e a época185 - percebe-se que, entretanto, há certos temas que sempre devem ser objeto do direito penal. Há alguns atos que, pela sua gravidade, são objetos naturais do direito penal186. Exemplos disso são o homicídio e o estupro. De modo especial, compete-nos dissertar um pouco acerca do fundamento do primeiro destes crimes – o direito à vida.

4.1.6 A primazia do direito à vida

Uma vez que expusemos um dos princípios primeiros e autoevidentes que servem de parâmetro para os juízos da razão prática e que são naturalmente apreendidos pelo homem sob a forma de um habitus do intelecto187, a saber, o dever da prática do bem e abstenção do mal, temos de demonstrar qual o raciocínio justificador do direito à vida – tutelado pelo tipo penal do aborto. “Bem”, como já foi dito, é um conceito aplicável a realidades concretas – ainda que, em si mesmo, não possa ser definido em sentido próprio, uma vez que, 182

Sob condições normais, isto é, sem que se caracterize situação de omissão de socorro ou abandono de incapaz.

183

Novamente, isto é dito sob condições normais, excluindo-se, por exemplo, o perjúrio.

184

Perspectiva que deriva do próprio princípio da subsidiariedade, o qual será exposto a frente.

185

Como já repetimos diversas vezes, cabe à prudência política ponderar, nas realidades concretas, qual é a justa medida das leis e medidas a serem feitas. O direito e o Estado não devem ser aprioristicamente “mínimos” ou “máximos”, mas sim “adequados”. E a “adequação” só pode ser precisada numa realidade concreta.

186

Não se trata aqui do resgate de um posicionamento vetusto, senão da pura e racional aplicação dos princípios expostos.

187

A sindérese.

100

sendo um transcendental188, não faz parte de gênero algum – e possuirá sempre a razão de fim. Desse modo, todos os atos voluntários ordenam-se a um bem, seja este real ou aparente, tal como tudo o que buscamos sempre será buscado por parecer-nos bom. Para que algo pareça bom, temos de julgar a conveniência desse objeto à nossa natureza – sobretudo ao nosso fim último. Da mesma forma, para que algo seja bom, essa conveniência deverá ser verdadeira e real. Como a natureza humana, em termos já abordados anteriormente, é a de um animal dotado de razão, caberá ao homem um duplo plano de bens. Sendo, por sua animalidade, um ente corpóreo, ao homem convirão diversos bens corporais/materiais. Sendo, por sua razão, um ente dotado de espírito, também lhe convirão bens espirituais/imateriais189190. Por ser o corpo um princípio (material) 191 subordinado à alma192 (princípio formal), os bens do corpo ordenar-se-ão aos bens da alma. Contudo, nosso foco, no presente trabalho, deverá ser no primeiro grupo, o dos bens corporais. Prosseguindo em nosso raciocínio, é notável que para que algo possa ser aperfeiçoado por qualquer qualidade, é necessário primeiro que este “algo”, pura e simplesmente, “seja”. Em outros termos, a conservação de um ente no ser é requisito sine qua non para possibilidade de existência de quaisquer bens que venham a aperfeiçoar esse mesmo ente. Aplicando-se isto à realidade corporal, teremos que a manutenção da existência de um corpo é pré-requisito para qualquer outro bem que este mesmo corpo possa receber. Sendo pré-requisito, deverá essa conservação ser tomada como o primeiro (e principal, por consequência) bem do corpo. Conservar a existência de um ente vivo, por sua vez, é conservar a sua vida – dado que para os 188

Cf. ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luís; MELENDO, Tomás - Metafísica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2014. pp. 219ss

189

Essa distinção entre bens do corpo e bens da alma, bem como a prioridade destes sobre aqueles, já fora ressaltada por Platão, em diversos diálogos.

190

Dentro deste último tipo de bens, é conveniente ao homem o conhecimento, as belas artes, etc.

191

Nos referimos aqui à composição hilemórfica da realidade corpórea. Esta será esclarecida ulteriormente.

192

Nesse caso específico, é possível trocar-se o termo “alma”, que empregamos, por “mente”, “espírito” ou “razão”.

101

seres vivos, viver é ser193. Dessa maneira, o primeiro de todos os bens convenientes ao homem, na ordem corporal, será a vida. Sem ela, não há como existir qualquer outro bem – e, por consequência, qualquer direito que se ordene ao corpo. Sem vida não há patrimônio, dignidade sexual, etc. Uma vez havendo estabelecido que a vida é o primeiro e principal dos bens convenientes ao homem, na ordem corpórea, cabe explanar de que forma este bem torna-se um direito. Retornando ao princípio sinderético que ordena “fazer o bem e evitar o mal”, notamos que nossas ações, positivas ou negativas (“fazer” ou “não fazer”), podem referir-se a nós mesmos ou a outrem. Uma vez que elas se refiram a outrem, elas deverão ser reguladas pela virtude da justiça, que é o hábito pelo qual o sujeito inclina-se a dar a cada um o que é seu: suum cuique tribuere. O “suum” pertencente a cada um poderá se concretizar de modo positivo ou negativo: seja dando a cada um o bem/mal194 que lhe cabe, seja deixando de dar/tirar algo de cada um. Haverá, assim, o surgimento – pela lei natural – de deveres de justiça, que são os deveres orientados a outrem que não o próprio agente. Como vimos que a vida é o maior e o primeiro dos bens corporais, o primeiro “suum” de cada ser humano será justamente a vida. Assim, o primeiro dever de justiça (suum cuique tribuere) será dar a cada um a “vida” que lhe pertence, ou seja, não tomar a vida alheia. Em outras palavras, o primeiro dever de justiça para com um homem é não matá-lo. O “suum”, por sua vez, constituirá o que chamamos de “direito”. Dessa forma, o primeiro dos direitos de um ser humano será, justamente, o direito à vida – que é consequência do dever de justiça, advindo da lei natural, ao qual todo agente se submete, de “não matar”.

193

ARISTÓTELES, Da Alma. Livro II, capítulo 4. [415b1]

194

Quatro formas de ação serão possíveis: dar um bem, dar um mal, não dar um bem, não dar um mal. Dessas, podemos tomar, para nossos fins, por semelhantes, “dar um mal” e “não dar um bem”, bem como “dar um bem” e “não dar um mal”.

102

Por fim, sendo o primeiro, maior e principal dos direitos – condição de existência dos demais direitos, como vimos –, o direito à vida será, naturalmente, o objeto prioritário da tutela penal. Mais que qualquer outro bem jurídico, à vida compete a proteção do braço armado do Estado.

4.1.7 Vida e pessoalidade

Tendo exposto a razão de existência do direito à vida, cabe agora a pesquisa – cientes de que talvez esse seja o ponto capital na discussão sobre o aborto – acerca que quem é o sujeito próprio desse direito. Quem possui “direito à vida”? De início, poder-se-ia responder: “quem possui vida”. Contudo, é necessário lembrar que muitos entes são vivos: desde a bactéria, até o homem. Portanto, convém primeiro definir “o que é vida”, para, em seguida, distinguir quais vidas devem ser respeitadas por grave dever de justiça. Adotamos a definição aristotélica de “vida” - a mesma que fora sustentada por Cezar Peluso no julgamento da ADPF 54. Vida é, assim, a capacidade de produzir movimentos imanentes195. De modo mais desenvolvido, a vida é a capacidade que um ente possui de causar mudanças (“movimentos”), quaisquer que sejam, em si mesmo (“imanentes”). Por meio dessa definição, notamos que muitos entes são vivos. Será possível agrupá-los em três grupos, com diferentes graus de dignidade. Em primeiro lugar, vemos que há os animais – que são os entes vivos dotados de sentidos, pelos quais eles apreendem o mundo exterior. Em segundo plano, notamos que há aqueles entes que não possuem sentidos, os quais chamamos de vegetais 196, sendo de dignidade inferior à dos animais, por possuírem – dada a falta de sentidos 197 – uma “existência” (em sentido impróprio) menos plena. Por fim, dentro do grupo dos 195

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 18 a. 1, resp.

196

A classificação apresentada considera os diferentes níveis ontológicos ocupados por tais entes, e não possui coincidência com a divisão taxonômica empregada pela Biologia, a qual divide os entes vivos de outra forma, com base em outros parâmetros. Na verdade, não é a falta de sentidos causa dessa inferioridade, mas “sintoma”. O fator limitador da intensidade do ato de ser em um dado ente é sua essência. É da essência dos vegetais não possuírem sentidos – assim, estes, propriamente, não “são” nem mais, nem menos do que deveriam: “são” como devem ser.

197

103

animais, há o homem, que é dotado de intelecto, sendo capaz de apreender conceitos universais abstratos, despidos de quaisquer notas de materialidade. Na ordem “vegetais, animais e homem”, vemos que há um crescente grau de imanência nas capacidades dos entes. Enquanto nos mais rudimentares vegetais há apenas a capacidade de se reproduzir e alimentar-se, nos animais há sentidos (nos mais rudimentares, apenas o tato, ao passo que nos animais superiores haverá todos os cinco sentidos externos e quatro internos aos quais já nos remetemos anteriormente). Pelos sentidos, os animais conseguem formar, dentro de si, uma projeção imaginária de como é o mundo exterior, estimando-o e armazenando essa representação em sua memória. No homem, enfim, há a capacidade de gerar conceitos mentais completamente abstraídos da matéria presente no mundo exterior, por meio da ação do intelecto. Quanto maior a imanência, mais elevada e mais nobre é a vida encontrada naquele ente. É essa faculdade racional – o intelecto – que diferencia o homem de todos os outros seres vivos e torna-o especialmente digno, dotado de uma vida de altíssimo valor. Por ocupar um patamar ontológico completamente distinto dos demais animais, o valor de sua vida será completamente distinto (e superior) ao dos animais brutos. A capacidade racional do homem habilita-o a formar conceitos abstratos imateriais. A imaterialidade dos conceitos mentais demonstra a imaterialidade do intelecto198 humano, uma vez que o semelhante só pode ser apreendido no semelhante199, e explica sua alta dignidade. Sendo imaterial, ele não possui partes. Não possuindo partes, ele não pode ser decomposto. Não sendo decomponível, pode-se dizer, de algum modo, que o intelecto é imortal. É aqui que reside a dignidade específica do ser humano: por ele ser racional e, em virtude disso, elevar-se, de algum modo, acima do tempo e da matéria. Dessa forma, por “ser” de um modo mais valioso, a vida humana possui mais valor – lembremo-nos: para 198

Frise-se: não estamos aqui sustentando um dogma religioso, mas apenas a visão já defendida por Aristóteles no De Anima. Nesse sentido, cf. ARISTÓTELES, Da Alma. Livro III, capítulo 4 [429a1]; AGOSTINHO, Sobre a Potencialidade da Alma (De quantitate animae).

199

Ideias imateriais exigem um intelecto imaterial. Não se nega – e nunca se negou – que a ação do intelecto dependa do encéfalo (dado que este é a sede dos sentidos internos, e todo conhecimento se inicia pelos sentidos). Apenas se sustenta, rigorosamente, que não se pode confundir o intelecto com a cogitativa e os demais sentidos internos.

104

os entes vivos, viver é ser200. Como veremos adiante, esse valor intrínseco à vida humana é justamente o ponto controvertido na questão bioética do aborto, haja vista que os defensores de sua licitude sustentam que nem toda vida humana seria dotada deste valor. Estes, na sua defesa do aborto, estão prontos para concordar com tudo quanto expusemos acerca do valor do homem como animal racional. Todavia, sustentam que ser racional é próprio de pessoas e, não necessariamente, de todos os seres humanos. Nessa visão, o direito à vida cabe a todas as pessoas, mas nem todos os seres humanos seriam pessoas. Discordamos de tal visão, e sustentamos que todo ser humano é, necessariamente, uma pessoa, desde a sua concepção – demonstraremos isso no momento oportuno.

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Após a exposição de nossos pressupostos filosóficos, que fundamentam a regulamentação a ser aplicada na prática, nos encaminhamos à última parte deste trabalho, na qual investigaremos a moralidade do ato de abortar e verificaremos se este é, moralmente, equiparável a um homicídio ou não, donde derivaremos o rumo que uma boa legislação deveria tomar. Começaremos pela consideração dos diversos pontos de vista presentes no debate sobre o abortamento – tanto a visão favorável à criminalização quanto as diversas vertentes que sustentam sua legalização. Alguns pontos do senso comum (como, de início, que aqueles que defendem a legalização acham que o nascituro não é um ser humano no sentido biológico do termo) deverão ser desmistificados, como condição necessária para o fino debate filosófico que se desenrola sobre a realidade em análise. Iniciaremos, assim, apresentando o argumento central empregado pela defesa de sua criminalização, seguida da análise da maioria dos argumentos mais usados para a defesa de sua legalização. 200

ARISTÓTELES, Da Alma. Livro II, capítulo 4. [415b1]

105

4.2 Do aborto: o início da vida

De início, cabe observar que, pela parte dos defensores da criminalização do aborto, este não é uma questão moralmente complexa, emanando sua ilicitude de uma simples aplicação do princípio da não agressão (não se deve agredir um inocente), o que pode ser feito de duas formas principais 201. A primeira delas é o silogismo a seguir:

P1: É imoral o ataque à vida de um ser humano P2: Todo nascituro é um ser humano C: É imoral o ataque à vida de qualquer nascituro

A primeira premissa de tal silogismo é, geralmente, considerada como autoevidente, e se baseia na intuição natural de que não se pode agredir a outrem sem uma estrita justa causa – na qual o dano se dê de forma meramente acidental não havendo outra alternativa ( o que ocorre, por exemplo, nos casos de legítima defesa202). A segunda premissa, por sua vez, também é aceita pela maioria das pessoas. Segundo Christopher Kaczor203, “embora muitas vezes a discussão popular se canalize sobre a humanidade do feto ou do recém-nascido, do ponto de vista científico, tais questões estão definitivamente encerradas”. O centro da discordância filosófica acerca da realidade do aborto não é a humanidade do nascituro, mas sim a pessoalidade do mesmo – como havíamos mencionado anteriormente. Todavia, cumpre-nos explicar algumas vias pelas quais pode ser provado que o nascituro é humano. Elencamos as seguintes: 201

Note-se que a formulação das preposições nas formas de “Todo ser humano tem direito à vida”, ou “É imoral o ataque à vida de um ser humano”, ou até mesmo “Não se deve atacar a vida de um ser humano” são indiferentes para o fim proposto, pois se alteraria apenas o modo como é enunciada a mesma ideia, sem prejuízo ao sentido.

202

Em verdade, tais casos não são verdadeiras exceções à regra, mas sim aplicações do chamado “princípio do duplo efeito”, o qual é analisado mais detidamente no Apêndice C desta monografia.

203

KACZOR, Christopher. A Ética do Aborto. São Paulo: Loyola. 2014. p.26 Este livro será o fio condutor da presente seção do trabalho, e é obra capital sobre o tema.

106

(i) Biologicamente204, o embrião/feto é um ser humano em decorrência de seu DNA, o qual define não apenas sua espécie, mas todas as características únicas e irrepetíveis que o individuam. (ii) Considerando-se um indivíduo X, este indivíduo estabelece consigo mesmo uma relação ontológica de identidade, ou seja, o indivíduo X é substancialmente o mesmo ao longo de toda a sua existência. Ainda que seus acidentes205 mudem, sua substância206 – que é o fundamento de seu ser – continua a mesma, sendo, portanto o mesmo ente207.

Logo,

ainda

que

ele

cresça

ou

mude

aparentemente

(acidentalmente), ele continuará radicalmente sendo uma mesma coisa. Oras, se é de sua essência208 ser humano, ele assim continuará a sê-lo, em qualquer momento em que se possa estabelecer uma relação ontológica de identidade209 daquele indivíduo X na situação tomada por início da análise com a situação atual. Traçando-se os sucessivos momentos da vida de um ser humano, na linha contrária ao desenrolar temporal, alcançar-se-ia o momento de seu nascimento, passar-se-ia por toda a gestação, e se atingiria, por fim, o momento inicial da fecundação. O ser humano com 12 anos é, num sentido fundamental, a mesma “coisa” concreta que ele aos 11 anos, aos 5 anos ou aos 3 meses – ou, ainda na gestação. Até mesmo no zigoto ainda se traçaria essa relação ontológica de 204

A abordagem biológica será detalhada quando sustentarmos que a pessoalidade começa na concepção.

205

Realidades mutáveis ou não, às quais convém ser em outro – participam do ser vinculados à substância. Para todo o vocabulário técnico que será empregado nessa seção do trabalho, bem como para aprofundamento em todo aquele que já foi empregado, cf. ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luís; MELENDO, Tomás - Metafísica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2014.

206

Realidade que permanece e caracteriza a essência do ente – manifestando-se a partir de outras (acidentes), para o observador, mas ocupando posição ontológica antecedente a estas, por participar diretamente do ser. É à substância que convém a existência: o homem existe. Ao acidente (exemplo: altura de 1,7m) não convém diretamente a existência (não se encontra por aí alturas de 1,7m...), mas convém radicar sua existência em uma substância.

207

Ente, a grosso modo, é tudo o que é. Não consiste em gênero, mas sim classificação que se aplica a tudo quanto participe do ser.

208

Todas as coisas que são, são algo. Essência é o termo que denota justamente esse “algo”. A essência de um ser humano é “ser humano”, e pode ser definida como “animal racional” (gênero próximo + diferença específica). A alteração da essência se dá apenas pela corrupção e geração, no plano da natureza.

209

Relação pela qual se estabelece que um dado ente A é ele próprio.

107

identidade (substancial, por óbvio). Note-se que, aqui, não se trata de uma redução ao infinito: no momento exatamente anterior à fecundação e à formação daquele zigoto, a matéria que compôs o primeiro estágio daquele ente (o zigoto) estava separada em um espermatozoide e um óvulo. O espermatozoide e o óvulo são diferentes entre si e não se identificam com o zigoto. Deixados separados, nada acontece, por melhores que sejam as condições ambientais. Com o zigoto, todavia, basta que ele esteja em seu ambiente natural (num útero, pelos primeiros 9 meses de sua existência) para seu desenvolvimento ocorrer incessantemente até a formação de um homem adulto. Tendo ambas as premissas ampla aceitação, levanta-se a questão: qual a fundamentação, pois, para a legalização do aborto? A resposta, como comentamos anteriormente, é que, em geral, sustenta-se que o direito à vida não decorre diretamente da condição humana, mas mais propriamente da condição de pessoa. Dessa forma, o argumento contrário à legalização deveria adotar a seguinte aparência:

P1: Toda pessoa tem direito inalienável à vida210 P2: Todo nascituro é pessoa C: Todo nascituro tem direito inalienável à vida

É justamente na segunda premissa deste argumento que surge a controvérsia sobre a realidade do aborto. Antes de ser uma categoria jurídica, a pessoalidade é uma categoria filosófica, sendo o ponto fundamental da divergência entre os partidários da legalização do aborto e os partidários de sua criminalização. Como já mencionamos, enquanto para estes absolutamente todos os seres humanos são pessoas211, aqueles postulam a possibilidade de seres humanos não-pessoas. No 210

Aqueles que defendem a liceidade da pena capital alteram a primeira premissa, tanto deste quanto do argumento anterior, a fim de incluir a distinção fundamental de “inocência” para a garantia absoluta do direito à vida. Entretanto, este ponto é irrelevante para a presente discussão, dado que seu oposto – “culpa” – pressupõe a capacidade de agir voluntariamente com responsabilidade pelos próprios atos, coisa da qual fetos e embriões (na realidade até crianças, como veremos em breve) não são dotados.

211

Ambos reconhecem a possibilidade filosófica de pessoas não-humanas. Por exemplo, se aparecesse um a criatura de espécie alienígena, nos moldes das tramas de ficção científica,

108

fundo, o problema é simples, pois, caso o nascituro seja uma pessoa, o aborto é um assassinato. Caso não seja, não o é. A pessoalidade, a grosso modo, é possibilidade de ser sujeito moral. Entes impessoais são objetos em relações morais, e não sujeitos 212. Segundo a filosofia perene, a mais adequada definição de pessoa é individua substantia rationalis naturae (substância individual de natureza racional)213. À questão de quando se inicia a pessoalidade, há tantas respostas quantos são os posicionamentos acerca do abortamento, uma vez que estes derivam-se das respostas. Seguindo a feliz divisão feita por Christopher Kaczor, iremos apresentálas conforme o lapso temporal em que se sustenta a existência de um humano não pessoa, começando pela visão de que só se torna-se pessoa após o nascimento, chegando até a visão concepcionista (isto é, de que se é pessoa desde a concepção).

4.2.1 Após o nascimento214

Há quem defenda que o homem só adquire sua condição de pessoa em algum momento após o nascimento. Tal posicionamento remove o a equiparação moral ao homicídio não apenas do aborto, mas também de todos os infanticídios cometidos antes da vítima atingir a idade em que surgiria a pessoalidade. Embora esse posicionamento possa parecer aberrante à primeira vista, sua análise é muito importante, dada a solidez da sua fundamentação, bem como o renome de seus defensores. Sua sustentação se dá por duas grandes vias: a da potencialidade e a da aquisição de capacidades. pensando, falando ou coisa que o valha, sem dúvidas a ele caberia a condição de pessoa. É de se ressaltar inclusive a doutrina teológica da existência de pessoas imateriais, tais como os seres angélicos (que seriam, segundo a tradição tomista, formas puras) e de Deus (no qual, sob a ótica cristã, identificam-se três pessoas). A noção de pessoalidade, na verdade, apesar de surgir no epicurismo, desenvolveu-se majoritariamente sob a Teologia cristã. 212

Daí deriva a incoerência da escravidão. Moralmente dizendo, há que se falar em pessoas, e em objetos. Dar ao escravo uma posição intermediária entre pessoa e objeto, a fim de garantir-lhe alguns direitos, mas não todos, é algo filosoficamente insustentável. Pessoa, ou se é, ou não se é.

213

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 29, a. 1.

214

Um dos maiores defensores desta visão é Peter Singer, mas há outros.

109

4.2.1.1 Princípio da potencialidade

Michael Tooley, em um célebre texto215, após afirmar a falta de solidez de qualquer posição intermediária sobre o aborto, defendendo que sejam sustentáveis a visão concepcionista (de que o direito à vida inicia na fecundação) e a sua própria, ataca o concepcionismo afirmando que este pressupõe um valor intrínseco ao ser humano que não poderia ser aceito, uma vez que faltariam características relevantes num embrião humano para justificar que o mesmo possua mais valor que, por exemplo, um gato adulto. Com ele está Peter Singer, famoso bioeticista, o qual defende 216 que a diferenciação entre homens e animais em função da espécie constitui um caso análogo ao racismo. Ele atribui a essa atitude o nome de “especismo”. Tooley apresenta uma curiosa analogia, afirmando que, se cientistas inventassem um soro que transformasse gatos em animais racionais (logo, pessoas), não haveria o dever moral por parte dos humanos de submeter todos os gatos do mundo ao tratamento com este soro. De modo análogo, não haveria o dever moral de manter o nascituro sendo gestado, pois ele é apenas potencialmente uma pessoa, assim como os gatos o seriam em tal caso. O mesmo se aplicara às crianças já nascidas, ao longo de um curto período de sua vida (até poucas semanas). Esse argumento, que emprega uma analogia, pode ser expressado da seguinte forma: P1: O nascituro/nato está em potência para a pessoalidade P2: O gato217 está em potência para a pessoalidade P3: Não temos o dever moral de aplicar o soro ao gato, tornando-o pessoa C: Logo, não temos o dever moral de manter a vida do indivíduo, fazendo-o pessoa 215

TOOLEY, Michael. Abortion and Infanticide. In: Philosophy and Public Affairs, 2(1) (Autumn) 37-65, 1972. Disponível em: http://eclass.uoa.gr/modules/document/file.php/PPP504/Michael %20Tooley,%20Abortion%20and%20infanticide.pdf [Acesso em 10 Set 2017]

216

SINGER, Peter. Ética Prática. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 159ss.

217

Pressuposta a existência do soro.

110

Tooley, por considerar que a única via sólida de sustentação do concepcionismo partiria do princípio da potencialidade – uma vez que, segundo ele, a diferença de espécies não teria a capacidade de criar qualquer distinção moral entre os homens e os gatos – pretende derrubar o concepcionismo com a analogia dos gatos. Entretanto, sua posição possui grandes fragilidades, conforme demonstra Christopher Kaczor:

(i) Nem todos argumentos pró-vida partem do princípio da potencialidade. Via de regra, sustenta-se que o nascituro é pessoa em ato. (ii) Dessa forma, a analogia exposta pressupõe uma premissa não compartilhada pelos dois lados do debate: a tese de que “nascituros não são pessoas”. (iii) Ainda que o pressuposto fosse compartilhado por ambos os lados, o argumento ignora uma distinção que invalida a analogia feita: o ser humano seria pessoa em potência ativa 218, enquanto o gato seria pessoa em potência passiva. A potência ativa compreende a capacidade de atualizar-se por si só – o embrião, por si só, cresce, até se tornar um adulto. Já a potência passiva depende de um ato externo para atualizar a perfeição para a qual ela está em potência219 – o gato, por si só, não se tornaria pessoa, pois ele necessitaria da aplicação do soro.

218 219

ALVIRA, Tomás; CLAVELL, Luís; MELENDO, Tomás - Metafísica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2014. pp. 83ss Um exemplo ilustrativo: um bloco de mármore está em potência passiva para ser uma estátua, pois ele depende da ação de uma causa eficiente (o escultor) que o conformará ao formato de estátua.

111

4.2.1.2 Capacidade adquirida

Tooley e Singer defendem que o que caracteriza a pessoalidade é, na verdade, a capacidade de compreender a si mesmo como sujeito. Singer 220 coloca a necessidade de que haja consciência da própria existência, ao longo de tempo e lugar diversos, com capacidade de ter desejos e planos – uma vez que, como já salientamos, a valoração especial do ser humano em relação aos demais animais, para tais autores, seria “especismo”. Para ambos, vale a regra de que só há direitos quando há desejos. Algumas exceções221 a essa regra, como pertubações emocionais, pessoas doutrinadas e inconsciências “temporárias”, todavia, são reconhecidas. Seguindo Kaczor, apontamos as seguintes fraquezas a essa tese:

(i) As exceções apontadas são todas formuladas ad hoc, não decorrendo da regra ou de qualquer outro princípio adotado pelos autores. (ii) A defesa do infanticídio é claramente uma aberração para a consciência da maioria das pessoas222.

(iii) O “especismo” apontado por Singer não é, a nosso ver, um problema, como atesta a natural convicção moral humana 223. Além disso, uma vez que se compreenda a relação entre a espécie do ente e a intensidade de sua participação no ser, fica claro o motivo da dignidade humana ser incomparavelmente superior à de qualquer outro animal. O 220

SINGER, Peter. Op. cit.. pp. 180-183

221

TOOLEY, Michael. Op. cit. pp. 47.

222

Aqui não se deseja fazer um argumentum ad populum, mas apenas ressaltar que, se a tese clássica de que a lei moral pode ser apreendida pela reta razão está correta, há forte indício contra esses argumentos.

223

Kaczor fornece ilustrativos exemplos: a repugnância natural dos homens pelo canibalismo e pela bestialidade, bem como a preferência natural de socorrer-se uma criança a um animal ferido, por caminhos diversos, atestam que o homem naturalmente reconhece um valor especial na sua própria espécie.

112

conceito de “especismo” é, assim, um simples lugar retórico, que busca criar um título de ódio224 e atribuí-lo ao concepcionismo.

Por fim, a adoção de uma igualdade moral entre homens e animais não conduz de modo necessário à defesa do aborto e infanticídio – é perfeitamente possível interpretá-la em sentido contrário, de modo a ampliar os “direitos” dos animais, em vez de restringir-se o direito à vida do ser humano.

4.2.1.3 Crítica

A visão de que a pessoalidade se inicia após o nascimento, minoritária mesmo no meio pro-choice, possui diversas falhas. Em primeiro lugar, se considerarmos como critério para a pessoalidade a percepção da própria existência, buscaremos uma realidade de foro íntimo, que deverá mais ser pressuposta do que comprovada in factu. Há correntes filosóficas que defendem que a compreensão do eu se inicia com o desenvolvimento da fala – logo, poderse-ia matar o infante muitos meses depois do nascimento (quiçá anos). O prazo estipulado pelos bioeticistas que citamos anteriormente é puramente arbitrário. É, para Singer, de 1 mês, enquanto para Tooley é de 1 semana. O motivo dado é que, após certo tempo, nenhum pai desejaria mais matar o filho 225 - o que não alteraria de forma alguma o valor da vida da criança. Por isso, vemos que, além do limite se arbitrário, ele não possui nenhuma justificativa sólida. Ademais, caso se considere que é a consciência a causa da pessoalidade, teremos um problema quanto às pessoas adormecidas. Enquanto dormirem, não estarão conscientes – portanto, não serão pessoas. Tampouco o seriam aquelas em coma, ainda que temporário, ou sob efeito de anestesia. Seria, portanto, moralmente válido o assassinato de um sujeito sob anestesia geral. Como explica Kaczor, apesar de haver certa resposta a estas objeções – pela 224

Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razão. Rio de Janeiro: Topbooks. 2003. pp. 174

225

Cf. TOOLEY, Op. cit., pp. 64 e SINGER, Op. cit., pp.181 ss

113

interpretação de que não se depende consciência (ou autopercepção) atual, mas sim de uma capacidade de autopercepção imediatamente exercível (pode-se acordar aquele que dorme, mas não pode se acordar um feto) –, a resposta é falha, uma vez que inapta para resguardar as pessoas em coma temporário. Kaczor ainda aponta que, mesmo se for considerado necessário o aparato encefálico suficiente para a autopercepção, e não apenas a autopercepção imediatamente exercível, veremos que permanecerão excluídos do grupo das “pessoas” todos quantos sofreram danos cerebrais severos, ainda que esses danos possam ser tratados com uma tecnologia atual ou futura. Poderia, nesse caso, um ser humano ser considerado “pessoa”, deixar de sê-lo, e voltar a tal condição após uma cirurgia. Nesse meio tempo, seria lícito matá- lo. Ressalte-se que a tese da pessoalidade posterior ao nascimento, apesar de negar a pessoalidade do feto pela potencialidade ativa comentada anteriormente, igualmente depende de uma potencialidade de exercício da razão como parâmetro para a aferição da pessoalidade. Soma-se a isso o fato de que, assim como pode ser escolhido por critério “ter cérebro”, sob argumento de que é uma condição necessária para a pessoalidade, poder-se-ia optar pelos critérios de “ter vida” ou “ter natureza racional” que, igualmente, são condições necessárias à pessoalidade. Passemos, agora, à próxima opinião comumente sustentada.

114

4.2.2 No nascimento

Após a visão de que a pessoalidade só começaria em algum momento posterior ao parto, devemos analisar a posição que sustenta que a pessoalidade é conferida no momento do nascimento com vida. No geral, essa é a visão mais comum no mundo ocidental, apesar de não ser a mais comum no Brasil. Entre seus defensores, por exemplo, há a gigante americana de serviços de contracepção e aborto, Planned Parenthood – embora nos EUA o aborto legal inicialmente tenha sido permitido apenas até a viabilidade do bebê (pelo precedente do caso Roe vs. Wade), judicialmente o termo foi ampliado até o momento do parto, sendo permitida, em alguns estados, até mesmo a prática do aborto de parto parcial226. Cinco grandes vias argumentativas sustentariam essa tese. 227 Passemos a analisá-las.

4.2.2.1. Reconhecimento Social

Para alguns, a pessoalidade adviria no nascimento em decorrência do maior reconhecimento social dado aos nascidos, em detrimento dos nascituros. O maior pesar de uma mãe e da sociedade pela perda de um filho já nascido em comparação ao de um filho ainda em gestação (aborto espontâneo) seria exemplo da realidade dessa visão. Poucas pessoas – todavia – defendem este argumento, 226

“Com uma extremidade [fetal] inferior na vagina, o cirurgião usa seus dedos para soltar a extremidade inferior oposta, depois o dorso, os ombros e as extremidades superiores. O crânio se aloja no orifício cervical interno. Usualmente não há dilatação suficiente para ele passar através. O feto é orientado com o dorso ou a espinha para cima. A este ponto o cirurgião destro escorrega os dedos da mão esquerda ao longo das costas do feto e ”engancha” os ombros com o indicador e o anular (com a palma para baixo). O cirurgião pega uma tesoura de Metzenbaum curva sem corte na mão direita. Cuidadosamente avança a ponta curvada para baixo, ao longo da coluna e embaixo de seu dedo médio, até sentir que contatou a base do crânio sob a ponta do seu dedo médio. O cirurgião então força a tesoura na base do crânio ou no forâmio magno; tendo entrado seguramente no crânio, abre a tesoura para aumentar a abertura. O cirurgião remove a tesoura e introduz um cateter de sucção no orifício e evacua o conteúdo do cérebro. Com o cateter ainda no lugar, aplica tração ao feto, removendo-o completamente da paciente.” (Gonzales v. Carhart) apud. KACZOR, Op. cit., pp.57

227

Reiteramos que a presente seção de nossa monografia possui como guia o livro supracitado de Christopher Kaczor, do qual foram extraídos não apenas as famílias argumentativas de cada fase abordada, mas também suas fragilidades e refutações, às quais fizemos nossos acréscimos ao adicionar uma abordagem tomista.

115

dada sua patente fragilidade. Em primeiro lugar, a vontade social não se conecta a qualquer realidade objetiva que fundamente a aquisição de pessoalidade apenas por um consenso. Do contrário, a sociedade poderia justificar quaisquer crimes – mesmo o genocídio – apenas pelo consenso de que uma dada população não era composta por pessoas, mas por seres humanos desprovidos de pessoalidade. Por fim, caso se compreenda essa tese como uma interpretação estrita do texto legal que reconhece a personalidade civil apenas após o nascimento, necessariamente adotar-se-ia a convicção (errada) de que a lei gera a moralidade, bem como se confundiria a pessoalidade jurídica com a pessoalidade moral. O justo não é justo apenas porque a lei o disse, mas por fundamentar-se na lei natural (conforme explanado em nossos pressupostos filosóficos).

4.2.2.2 Localização espacial

Há também quem adote a concepção romanista de que o feto é pars viscerum matris, de modo que, enquanto este se encontrar no ventre materno, deverá ser tratado como parte da mãe, tornando-se pessoa apenas após o parto. No entanto, observa-se que a diferença entre um feto de 8 meses e um recém-nascido um pouco prematuro é praticamente nula, sendo possível, hoje, a sobrevivência de bebês que nasçam antes dos seis meses de gestação, graças às incubadoras modernas. Dessa forma, a diferença entre um feto durante grande parte da gestação e tais bebês é apenas a localização espacial – e o espaço não nos parece, por qualquer motivo, razão suficiente para tamanha diferença moral entre o nascituro e o nascido. Além disso, assumindo-se a associação da pessoalidade com o nascimento em decorrência da localização espacial, seria de se questionar se um nascituro fruto de fertilização in vitro teria sido, inicialmente, pessoa (por ser concebido fora do corpo), perdendo a pessoalidade ao ser implantado no útero materno e readquirindo-a ao nascer. Caso o embrião não seja pessoa na placa de Petri, 116

pergunta-se228: é ele pars viscerum vitris? Haveria, ainda, o problema de definir-se qual é o critério de separação, ou seja, o que é o nascimento. Uma vez que muitos partos duram diversas horas (ainda que a última fase, o período expulsivo, seja mais rápida), quando o bebê terá efetivamente nascido? Por fim, ressaltamos a fragilidade ontológica dessa diferenciação: que diferença há, para a pessoalidade, entre o momento logo anterior ao parto e o momento logo posterior ao mesmo? A localização, já o ensina Aristóteles 229 é um dos nove predicamentos acidentais, não sendo parte, assim, da substância do ente. Como basear a pessoalidade num critério tão frágil, que pode mudar sem qualquer alteração substancial do ente?

4.2.2.3 Forma Humana

Uma terceira via de sustentação para a opinião de que a criança torna-se pessoa com o seu nascimento, é argumentando que a pessoalidade decorreria da forma humana, pelo reconhecimento do bebê como ser humano. Com o surgimento dos exames por imagem, no século XX, todavia, tal posição tornou-se insustentável. De início, sabe-se que forma humana começa bem antes do nascimento. Na décima semana o feto já tem toda a sua forma física atual, com dedos, face, etc. Além disso, não se reconheceria pessoalidade a seres humanos que, sem dúvida, são pessoas: crianças, jovens e adultos com deformação física, seja de nascença, seja adquirida posteriormente. Por fim, seria lógico que houvesse uma gradação de pessoalidade, bem como há uma gradativa apresentação de forma humana no desenvolvimento embrionário – o que é um contrassenso, pois ou se é pessoa, ou não se é, tertium 228

A priori, parece uma questão jocosa. Entretanto, seu questionamento é real e de difícil resposta na visão pró-aborto: se a pessoalidade predica-se, e predica-se em função do acidente “lugar”, então como discordar de tal visão? Ambas respostas contrariam ou o bom-senso, ou a lógica interna da argumentação analisada.

229

Em seu tratado Categorias.

117

nom datur. Passemos, pois, ao argumento mais comum para defender a pessoalidade a partir do nascimento.

4.2.2.4 Liberdade da mulher em se destacar do feto

O argumento mais defendido para sustentar-se que a pessoalidade começaria apenas no nascimento, sem dúvidas, não é nenhum dos abordados anteriormente, mas sim a consideração de uma liberdade individual da gestante. Este é um argumento pró-aborto que, na verdade, não depende diretamente da defesa de um critério específico para a pessoalidade do feto, por desviar o centro da discussão para a gestante, passando ao segundo plano o nascituro que terá sua vida encerrada violentamente230 pelo abortamento. A visão pró-vida/concepcionista responde a essa tese com a consideração de que o direito à vida, enquanto primeiro dentre todos os direitos, sobrepõe-se a qualquer outro direito, inclusive ao bem-estar da gestante. É necessário frisar que não se trata, como propagado politicamente de modo erístico, de uma “vontade de submeter a gestante”, ou “insensibilidade para com a condição da grávida”. A abordagem pró-vida parte do pressuposto de que sempre há duas pessoas em questão, quando tratamos do aborto: a mulher, e o nascituro (que em 50% dos casos também será uma mulher). Em primeiro lugar, há o dever de buscar preservar a vida de ambos. Sustentar uma livre disposição da vida do nascituro por vontade da mãe simplesmente neutralizaria qualquer direito à vida que o feto possua. Se limitarmos o direito deste à autorização da mãe, concretamente, faremos como se não houvesse direito algum. Há uma famosa figura que é usada para sustentar o argumento pró-aborto que aqui analisamos: a analogia do violinista231 232: 230

Violento, para a filosofia clássica, é tudo aquilo que não segue seu rumo natural.

231

Para demais analogias, argumentos e suas refutações, consultar o capítulo 7 do livro supracitado de Kaczor.

232

Abordada nas páginas 137 e seguintes do livro de Kaczor, que foram fonte da refutação aqui

118

Judith Jarvis Thomson, em seu artigo “Uma defesa do aborto”233, propõe a seguinte analogia: imagine que você foi sequestrado e ligado a um violinista que tem uma doença raríssima, mas que será curado se ficar ligado a você por nove meses. Você é obrigado a ficar ligado a ele? E se fossem nove anos? E se fosse toda a vida? E pede que o leitor se lembre que o direito à vida suplanta todos os outros direitos. Obviamente a autora espera que o leitor pense um “não”, e então faz uma analogia com a situação da grávida e do nascituro. A intenção é realizar uma reductio ad absurdum sobre a primazia absoluta do direito à vida e, assim, justificar o aborto nos nove meses de gestação. Em seguida, Judith Thomson propõe que um bom samaritano (em alusão à parábola evangélica) permaneceria ligado ao violinista. Completa dizendo que ser um bom samaritano, o que é ser heroico, não é uma conduta obrigatória, embora seja boa. Ademais, nem toda conduta que não seja boa, necessariamente seria ruim – para a autora. Quando num polo houver ato heroico, no outro haveria uma conduta tolerável – algo como um “samaritano minimamente decente”. Embora sedutora, cremos que essa comparação é inadequada. Inicialmente, nota-se que a parábola evangélica não propõe a ação do samaritano como modelo de conduta heroica234, mas sim como o certo a ser feito, sendo conduta obrigatória. Além disso, é falso o pressuposto de que quando num polo houver uma conduta heroica, necessariamente haverá alguma conduta alternativa meramente aceitável. Em muitos casos, a única opção moralmente lícita será o ato heroico235. Ademais, a situação da conexão com o violinista é, na melhor das hipóteses, análoga à de uma gravidez oriunda de estupro, mas não às gravidezes oriundas de relações consensuais.

exposta. 233

THOMSON, Judith Jarvis. Uma defesa do aborto. In: Revista Brasileira de Ciência Política, n. 7 janeiro-abril de 2012. Brasília. pp. 145-164. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n7/a08n7 [Acesso em 12 Set 2017]

234

Nos textos evangélicos, seria heroica a conduta do jovem rico, caso tivesse vendido tudo o que tinha e dado aos pobres. Um bom exemplo, dado por Kaczor, é o de um ditador que dê a um sujeito a opção de ser torturado até a morte, caso ele não mate seus próprios pais. Nesse caso só haveria duas condutas possíveis, sendo uma heroica e a outra profundamente imoral.

235

119

Ressalte-se também que a desconexão do violinista é um ato materialmente exequível de forma muito diferente de um aborto. Sob certa ótica, inclusive, a desconexão poderia ser moralmente sustentada por força do princípio do duplo efeito236. Uma analogia adequada com o aborto seria provocar a morte do violinista, a fim de que houvesse desconexão. 237 Mais propriamente, a analogia deveria dizer destroçar, triturar ou envenenar o violinista para que, uma vez morto, se procedesse à desconexão. O mais grave defeito da analogia de Thomson é que ela parte de uma petição de princípio. É pressuposto que o violinista não possui direito de ficar ligado ao sequestrado, e que a situação dele é análoga à do feto, estando embutida a pressuposição, portanto, de que o feto não tem direito a permanecer ligado à mãe. Contudo, esse é o próprio assunto do debate. Como, então, pressupô-lo? Kaczor ainda aponta que, ao contrário do caso do violinista, tipicamente quem busca o aborto não deseja pura e simplesmente interromper a gravidez apenas, mas também encerrar a vida do feto. Se houvesse como fazer a interrupção sem a morte do feto, em muitos casos se optaria mesmo assim pela morte desse, o que claramente não ocorreria no caso do violinista. O aborto não busca cancelar a gravidez, mas a maternidade. Por fim, Ronald Dworkin238 demonstra que o argumento do violinista não é uma figura realista da gravidez, dado que esta é uma relação natural à própria condição humana, que não pode ser reduzida a uma abordagem praticamente contratual.

236

Conferir o Apêndice C. Note-se que aqui ressoa a distinção que já fizemos anteriormente entre o estado fisiológico da gravidez e o nascituro. As mulheres que querem abortar não o fazem para encerrar o estado fisiológico da gravidez, mas (principalmente) para não ter um filho – ou seja, para matar o nascituro. Se houvesse a opção de continuar a gestação numa incubadora, após a qual o bebê seria entregue à gestante, é muito provável que pouquíssimas optassem por essa prática.

237

Apenas duas formas de aborto seriam minimamente próximas da desconexão com o violinista: a histerotomia e a histerectomia (respectivamente, a cesariana e a remoção do útero), que praticamente não são usadas.

238

DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida – aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2ed. WMF Martins Fontes. São Paulo: 2009. pp. 76 ss

120

4.2.2.5 Argumento pragmático

A última forma de argumentação no sentido de que a pessoalidade começaria no nascimento é aquela na qual se sustenta que o marco inicial da pessoa humana deve ser posto no momento que for mais conveniente para a sociedade (visão baseada em uma interpretação possível da ética utilitarista). Desse modo, partido-se da consideração dos problemas da superpopulação mundial e da pobreza, admitir-se-ia o aborto como método de “planejamento familiar”, limitando o crescimento populacional e dando aos genitores o poder de controle sobre a sua prole mesmo após a concepção. Contudo, um marco inicial da pessoalidade adotado por pura conveniência não refletiria qualquer consideração sobre a moralidade do aborto ou o real início da pessoalidade, uma vez que a mera convenção não altera a objetividade dos fatos. Ou se é pessoa, ou não se é – e isso independe da utilidade da condição de “pessoa” para terceiros. Além disso, para o mesmo fim proposto, tão ou mais útil seria a permissão do aborto e do infanticídio – coisa que nenhum dos filiados ao posicionamento do nascimento como origem da pessoalidade desejam (caso contrário, estariam no grupo que abordamos anteriormente). Ainda caso se buscasse exclusivamente a redução populacional, ao considerar-se que o fator limitante do crescimento de uma população é o número de mulheres, abortar (ou matar por infanticídio) exclusivamente as mulheres seria tão ou mais efetivo que a legalização do aborto para fins de controle populacional. Algum dos defensores dessa tese estaria pronto a abraçar a moralidade do aborto seletivo? Ressalte-se, ao cabo, que a premissa de que há um problema de descontrole populacional é discutível, não sendo aceita unanimemente pelos debatedores do assunto. Passemos ao próximo grupo de opiniões.

121

4.2.3 Antes do nascimento

Antes de analisarmos a tese de que a pessoalidade começa na concepção, cabe o estudo das diversas vertentes de sustentação que fixam o começo de tal característica em algum momento situado entre a concepção e o nascimento. Tais posicionamentos são majoritários no debate político brasileiro – motivo pelo qual são extremamente comuns, em debates sobre a legalização do aborto, afirmações como: “ninguém quer legalizar aborto aos nove meses!”239 ou “até os 3 meses o feto não é humano!”240. Por serem amplamente difundidas, é conveniente uma dedicada apreciação das vias argumentativas empregadas para a defesa de que a pessoalidade tem início em algum momento entre a concepção e o parto.

4.2.3.1 Anseios conscientes

O primeiro argumento que analisaremos consiste na defesa de que a presença de desejos/anseios conscientes é o que caracterizaria a pessoalidade do ser humano. Essa posição é próxima à visão de Tooley e Singer, já abordada anteriormente, tendo apenas algumas pequenas mudanças feitas para que o ponto chave caia não após, mas sim antes do nascimento. Os anseios que justificam a pessoalidade não necessariamente estariam presentes em ato na consciência do indivíduo (assim se exclui o caso do paciente em coma temporário, bem como do adormecido) podendo ser imputados idealmente. Considerar-se-ia que, para haver desejos, seria necessária uma atividade cerebral organizada no feto. E sabe-se241 que isso ocorre cerca de 25 a 32 239

Afirmação que, apesar de comum, demonstra ignorância da realidade ocidental. A ampla maioria do movimento pró-aborto no mundo defende o aborto até o término da gestação, comumente sendo legalizado até um dado momento da gestação, e posteriormente sendo ampliado por toda a gestação. Como explicaremos adiante, a legalização no esquema “tudo ou nada” é a mais coerente.

240

Novamente trata-se de desconhecimento fático. Além do já arguido anteriormente, retomaremos o tema à frente.

241

BOONIN, David. A Defense of Abortion. Cambridge, UK: New York: Cambridge University Press. 2003. p.127 ss – disponível em https://ethicslab.georgetown.edu/phil553/wordpress/wpcontent/uploads/2015/01/David-Boonin-A-Defense-of-Abortion.pdf

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semanas após a fecundação. Logo, a pessoalidade se daria em algum momento nessa faixa de tempo. Entretanto, há diversos erros na opinião – extremamente comum, reitera-se – de que a pessoalidade dependeria da atividade cerebral, em função dos anseios/desejos conscientes. Em primeiro plano, convém frisar que a inclusão de desejos meramente ideais é uma exceção ad hoc. Adota-se um critério mais complexo do que o necessário, de modo a remover os casos que indevidamente seriam incluídos ou excluídos pelo critério adotado em sua forma mais simplificada, isto é, sem tais exceções. Além disso, tal qual no argumento de Boonin e Singer, atribuir o início da pessoalidade – e consequentemente o início do direito à vida – à presença de desejos ou anseios conduziria à negação de direitos inalienáveis – como a liberdade. É possível242 imaginar-se pessoas sem desejos243, mesmo que por fruto de um acidente (no sentido usual do termo – imagine alguém que danificou irreversivelmente a área do cérebro relacionada com desejos) ou de experimentos, etc. Aplicando o critério dos desejos/anseios conscientes, tal indivíduo não seria propriamente uma pessoa, não tendo direito algum. Outra consequência de tese da correlação entre os direitos e os desejos seria a negação da crença de que todas as pessoas possuem direitos iguais. A depender do modo como se colocam as coisas, seria possível concluir que o direito à vida de uma pessoa em depressão é inferior ao de uma pessoa em plenas condições de saúde psicológica. Ainda há o sério problema da imprecisão do marco escolhido, estando em algum lugar entre a 25ª e a 32ª semanas de gestação, provavelmente variando de nascituro para nascituro e, mesmo que se adotasse a perspectiva mais garantista 242

A importância de exemplos possíveis, embora talvez inexistentes, decorre do fato de que a área de aplicação de um critério moral deve ser a mais vasta possível, isto é, em todos os mundos possíveis aquele critério deve ser aplicável, sob pena de cairmos num relativismo que inviabilizaria a função orientativa e diretiva dos juízos morais e da ética.

243

Inclusive a possibilidade de tal ausência de desejos é presente e fundamental em diversas tradições religiosas e filosóficas. Por exemplo, o budismo ensina que o Nirvana é um estado no qual não há mais desejos, bem como o cristianismo sustenta que na beatitude celeste todos desejos cessarão em decorrência da posse do Sumo Bem.

123

(25 semanas), ainda haveria a possibilidade de o avanço da medicina chegasse a possibilitar, um dia, que fetos que nascidos antes desse prazo sobrevivessem. Por fim, há uma considerável diferença entre a presença de um sistema nervoso apto à percepção do ambiente em que o feto se encontra e a real presença de desejos e anseios no feto – haja vista que estes são muitos mais complexos que a mera apreensão passiva do meio externo. Dessa forma, seria mais sustentável a opinião defendida por Tooley e Singer de que os anseios atuais seriam o requisito para a pessoalidade – opinião que já abordamos anteriormente.

4.2.3.2 Viabilidade

Rara no Brasil, há também a postura de defender que só há pessoalidade quando houver viabilidade do nascituro. Essa foi a opinião que prevaleceu no clássico caso Roe vs. Wade, que permitiu o aborto em todo o território dos EUA. Naquele processo, a Suprema Corte americana fixou que o interesse estatal na criança começaria apenas quando esta pode sobreviver separada do organismo materno244. Expressada em termos próprios, essa tese consiste na sustentação de que a pessoalidade do feto tem por condição necessária e suficiente a viabilidade de sua vida fora do corpo materno. Seguindo Kaczor, contudo, somos da opinião de que esse argumento possui muitas fraquezas. De início, mencionamos uma fraqueza na tese já apontada por Tooley. Diz este que, caso houvesse como um feto aprender a falar, isso já seria o suficiente para atribuir-lhe pessoalidade. Dessa forma, se fosse possível vê-lo falando, por algum exame como um ultrassom, ele já deveria ser considerado como uma pessoa. Logo, a dependência fisiológica da mãe não tem relação necessária com pessoalidade. Outro contra-argumento elencado por Tooley é a constatação de que gêmeos 244

Como já foi comentado, essa tese foi descartada posteriormente, dando lugar ao amplo reconhecimento de um “direito ao aborto”, que perduraria por toda a gravidez – havendo estados americanos nos quais se realizam muitos abortos tardios (3º trimestre da gestação) e, até mesmo, abortos de parto incompleto.

124

siameses muitas vezes dependem um do outro para a sobrevivência, às vezes dependendo ambos dos órgãos de um só e, no entanto, são duas pessoas. A viabilidade ainda está intimamente ligada a fatores contingentes, tais quais o estado da tecnologia médica, e o local onde a mãe se encontra. Um feto poderia ser viável numa grande cidade, onde houvesse a possibilidade dele ser cuidado em UTIs neonatais e incubadoras modernas, mas inviável em condições diferentes. Dessa maneira, caso se atribuísse a pessoalidade à viabilidade do feto, o nascituro seria uma pessoa apenas enquanto sua mãe estivesse num grande centro urbano, deixando de sê-lo caso essa fosse à zona rural ou a alguma pequena cidade. Por fim, vemos que é perfeitamente possível que o avanço da técnica permita que a viabilidade do nascituro ocorra em momentos cada vez mais precoces da gestação. Como consequência da adoção da viabilidade por parâmetro de pessoalidade, o momento no qual o feto se torna uma pessoa mudaria – com o progresso tecnológico – cada vez para mais cedo. Isso é o suficiente para deixar clara a ausência de fundamentação ontológica nesse critério da pessoalidade, que mais diz respeito à técnica médica que ao nascituro.

4.2.3.3 Capacidade de sentir dor

Outra visão comum no Brasil245 é a de que o aborto seria permitido enquanto o feto não pudesse sentir dor. Assim, a pessoalidade dependeria da capacidade de sentir dor do nascituro: enquanto não houvesse um sistema nervoso minimamente desenvolvido, o feto não seria pessoa. Como aponta Kaczor, tal posicionamento possui diversos inconvenientes, a começar pelo fato de que se sentir dor for condição necessária e suficiente para ser pessoa, insetos também o seriam e, por consequência, teriam direito à vida. Por outro lado, se sentir dor fosse condição necessária, mas não suficiente, faltaria a apresentação de quais seriam as outras condições necessárias. Caso 245

Também derivada de total desconhecimento da real problemática moral do aborto: pois, se esse for lícito, a dor é indiferente e, se for ilícito, idem.

125

possuir natureza humana fosse uma delas, nos depararíamos com o problema da situação das pessoas incapazes de sentir dor246 e dos anestesiados. Por fim, cumpre apontar que esse critério, como todos os anteriores, não possui fundamentação ontológica, dado que não há qualquer mudança relevante entre o feto incapaz de sentir dor e aquele que já desenvolveu tal capacidade.

4.2.3.4 Desenvolvimento cerebral

Intimamente relacionada com a visão anterior, a atribuição de pessoalidade como decorrência do desenvolvimento cerebral é uma posição extremamente popular no Brasil, sendo defendida até pelo Conselho Federal de Medicina. Sua ampla difusão advém do fato do cérebro ser visto por muitos como condição necessária para a identificação de um ser humano com uma pessoa humana: é pessoa quando se tem cérebro. Essa opinião também se baseia no fato de que o critério para o diagnóstico de morte mais comumente usado é o de morte cerebral. Desse modo, uma vez que a ausência de atividade cerebral indicaria a ausência de vida, a ausência de um cérebro também deveria indicá-lo – dado que o cérebro é condição sine qua non para a atividade cerebral. Como já foi apresentado na segunda parte de nosso trabalho, esse mesmo raciocínio foi amplamente adotado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54. Porém, a questão não é tão clara quanto parece. Em primeiro plano, nota-se que a razão da morte ser identificada 247 com a morte cerebral248 é que a partir dela todos os órgãos vitais começam a falhar 246

São conhecidos e descritos na medicina casos de indivíduos com insensibilidade congênita e permanente à dor.

247

Cf. SHEWMON, Alan. “Brainstem Death”, “Brain Death” and Death: a Critical Re-Evaluation of the Purported Equivalency. In: Issues in Law and Medicine, v. 4, number 2 – 1998. Disponível em: http://homepage.ruhr-uni-bochum.de/walter.schweidler/shewmon.pdf [Acesso em 12 Set 2017]

248

Desconsiderando-se aqui, para não prolongar demasiadamente o ponto discutido, a possibilidade (sustentável) de que essa identificação seja meramente utilitária, uma vez que a difusão do conceito de morte cerebral em textos legislativos foi feita visando-se propositalmente a possibilitação jurídica do transplante de órgãos sem que isso caracterizasse o crime de homicídio.

126

iminentemente de forma inexorável. Kaczor ressalta que essa convicção está cada vez mais sendo questionada, pois o cérebro tem um papel mais propriamente harmonizador que constitutivo (o coração, por exemplo, possui uma rede neural própria que mantém a pulsação mesmo na morte cerebral). Ele ainda menciona, para esse fim, casos249 de pessoas que viveram mais de 15 anos após o diagnóstico de morte do córtex cerebral. Contudo, ainda que consideremos a morte cerebral como o melhor meio para se determinar a morte de um indivíduo, isso não implicaria que fosse um bom meio para pressupor-se a vida250. O feto está muito mais assemelhado a alguém em coma temporário – pois há uma potência ativa para atividade cerebral que, se não for interrompida violentamente251, culminará na existência dessa atividade em ato –, nada tendo a ver com um morto, que não possui qualquer potência para a atividade cerebral, seja ativa, seja passiva. Poderia, por fim, ser objetada a relevância de um cérebro para a caracterização de uma pessoa. É possível pensar-se em pessoas sem cérebros 252, bem como há diversos seres com cérebro, que não são pessoas. Dessa forma, a presença de um cérebro não parece ser condição necessária para a pessoalidade. Muito menos será condição suficiente.

4.2.4 Nidação

Embora todas as linhas argumentativas analisadas anteriormente guardem certa importância, nenhuma delas atinge, no Brasil, a relevância da defesa do nidacionismo – concepção de que o nascituro adquiriria a pessoalidade quando ocorresse sua implantação no endométrio materno. Para muitos, este é o 249

Cf. SHEWMON, D. Alan. Is it Reasonable to Use the UK Protocol for the Clinical Diagnosis of 'Brain Stem Death' as a Basis for Diagnosing Death? In: GORMALLY, Luke (org.), Issues for a Catholic Bioethics. London: Linacre Center. 1999. p. 323. Apud KACZOR, supra., p.81

250

Relembremos a frase mencionada pelo Min. Peluso na ADPF 54: “O anencéfalo morre – e, se morre, é porque estava vivo.”.

251

Novamente: violento é aquilo que age no sentido contrário ao da natureza.

252

Seja como alienígenas de ficção científica – possíveis, ressalte-se, visto que não contradizem a lógica e a metafísica – seja como seres imateriais da Teologia.

127

posicionamento do legislador brasileiro253. Caso ela seja aceita, o aborto seria moralmente inadmissível, mas autorizar-se-iam as pesquisas com embriões produzidos por fertilização in vitro254, bem como o uso da chamada “contracepção de emergência”255. Pragmaticamente, é uma visão útil e muito comum. Entretanto, cabe analisar sua consistência filosófica e coerência com os dados da realidade. O nidacionismo costuma ser sustentado por dois argumentos principais. Em primeiro lugar, pela consideração de que a gravidez só é identificável a partir da nidação, quando o embrião implantado inicia a produção do hormônio beta-HCG, que é o principal marcador para testes de gravidez. Em segundo plano, afirma-se que o embrião implantado está mais próximo de realizar seu potencial que o zigoto ainda não nidado. Como aponta Kaczor, ambas as vias são claramente falhas. Em primeiro lugar, porque a identificabilidade da gravidez não implicaria na existência ou não de pessoalidade. Em outras épocas, a gravidez só seria identificável pela mexida do feto, o que não alteraria a realidade de que ele existia mesmo antes de ser percebido – e que se o é pessoa já ao ser detectado pelos modernos testes hormonais, deveria sê-lo no mesmo estágio da gravidez no século XIX, ainda que não fosse percebido pela gestante. Dessa forma, a identificação da gravidez e a pessoalidade do feto seriam fatores independentes. É possível, ainda, pensar-se em pessoas nunca implantadas num útero. Seja imaginando um método artificial de gestação de embriões extracorpóreo, seja 253

Haja vista que, caso fosse o concepcionismo, diversos métodos contraceptivos hormonais deveriam ser proibidos como abortivos. Trata-se de uma interpretação da lei, sem dúvidas, que busca lê-la conforme um interesse prévio, não desejando interrogar o que a lei diz, mas sim buscar o que se deseja que ela diga.

254

Discussão interessante sobre o tema se deu entre os Ministros Ayres Britto e o brilhante Menezes Direito que, cremos, provou com notável aristotelismo o direito à vida dos embriões congelados frutos da Fertilização In Vitro (FIV), na ADI 3510.

255

Que não é uma contracepção no sentido próprio do termo, pois age evitando a nidação. Semelhante efeito possuem os contraceptivos orais combinados, como mecanismo de ação secundário – evitam ovulação e, paralelamente, alteram o endométrio para impedir nidação caso o mecanismo primário falhe. Isso pode ser verificado na própria bula desses contraceptivos. É curioso que certos autores, como Stephen Coleman, argumentam que a defesa da pessoalidade desde a concepção acarretaria aos pró-vida terem que ser contra tais contraceptivos, coisa que teoricamente eles não aceitariam defender (o que é falso, pois grande parte dos pró-vida são contra tais métodos contraceptivos), enquanto no Brasil há desconhecimento geral e negação sistemática do potencial abortivo de tais métodos.

128

imaginando pessoas não-humanas. Além disso, não há qualquer diferença ontológica considerável entre um embrião pré-implantação e um embrião já nidado, pois ambos possuem a mesma potência ativa para tornarem-se adultos.

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Duas frequentes objeções levantadas ao concepcionismo e ao próprio nidacionismo dizem respeito à relevância do supostamente alto índice de mortalidade embrionária, o qual indicaria certa chance de aborto espontâneo inerente a qualquer gravidez, bem como ao uso intercambiado dos termos embrião e feto. Convém responder à primeira esclarecendo que o tempo de vida de uma pessoa não altera o valor dessa vida. Se o embrião é pessoa, qualquer violação a ela será imoral. Se o embrião não for pessoa, violar sua vida não será equiparável a um assassinato, ainda que ele viva por anos. À segunda, por sua vez, deve ser feito o esclarecimento de que os nomes dados às diferentes fases do ente não alteram sua essência. A diferenciação entre “embrião” e “feto” é feita pautada em características acidentais mutáveis, para fins biológicos de datar-se a fase do crescimento daquele ente – assim como se chama à criança de “criança” e ao adulto de “adulto”, muito embora todo homem passe naturalmente pelas duas fases sem deixar de ser a mesma pessoa. Ontologicamente a nomenclatura adotada é irrelevante: caso chamemos um bule de chá de “cão”, isso não o fará começar a latir.

129

4.2.5 Gradualismo

Por fim, dentre as distintas posições que colocam a pessoalização do ser humano como fenômeno que ocorre em algum momento entre a concepção e o parto, cabe falar da visão gradualista, ou processualista, que põe a pessoalidade não como um marco divisório do tipo “tudo ou nada”, mas como um processo que ocorre aos poucos, com um crescente grau de pessoalidade do nascituro, a culminar no parto, conforme ele se desenvolve. Essa tese se baseia no raciocínio de que cada uma das etapas de desenvolvimento embrionário vai se somando às anteriores, como diversos cordões que se juntam numa corda única (excelente metáfora empregada por Kaczor), e que atribuiriam crescente robustez à corda, o que harmonizaria com o fato de que os direitos comumente são conquistados de modo gradativo ao longo da vida do indivíduo. Contudo, há que se frisar que nem todas as coisas admitem gradação. Muitas, principalmente na Moral, são questões de dicotômicas do tipo “sim/não”, “permitido/proibido” e “lícito/ilícito”. No âmbito fático, toda característica se atribui de um modo “presente/ausente”, inclusive a pessoalidade, visto que não há “meias pessoas”. Além disso, embora os direitos como um todo costumem advir de modo gradativo, isso não ocorre com cada direito em particular, o qual surge integralmente em algum momento – especialmente o direito à vida256, que deve ser o primeiro a surgir.. O gradualismo levado a seu máximo ainda possuiria inconvenientes consequências, pois o desenvolvimento de um ser humano não cessa no seu nascimento, persistindo até a idade adulta, de modo que dever-se-ia concluir que uma criança de 8 anos é menos pessoa que um adulto de 20 anos de idade. Com a senilidade, inclusive, a pessoalidade começaria a decrescer, na medida em que as funções biológicas sofressem seu natural declínio. Desse modo, por não haver “frações” de pessoalidade, dado que está é uma característica predicável como “presente/ausente”, não é possível a adoção da tese 256

Tendo em vista que ele é condição necessária, no âmbito moral, para demais direitos.

130

gradualista para a concessão do direito à vida por aferição da pessoalidade.

4.2.6 Concepção

Enfim, cabe tratar do concepcionismo, isto é, o posicionamento que defende que o início da pessoalidade ocorre na concepção – tese defendida pelos setores conhecidos como “pró-vida”. Para tanto, cumpre retomar a definição de pessoalidade apresentada anteriormente, como “substância individual de natureza racional”, a qual será importante logo mais.

4.2.6.1 A pessoalidade no concepcionismo

Numa breve explanação de certos conceitos da filosofia clássica que serão empregados aqui, devemos esclarecer que, por “substância”, se entende uma das dez categorias (predicamentos) aristotélicas, oposta às outras nove, que são denominadas comumente de “acidentes”. À substância convém diretamente o ser, enquanto ao acidente convém o ser em outro (ser numa substância, portanto). Todos os parâmetros aferidores de pessoalidade que apresentamos até agora, sustentados pelo lado pró-aborto/pro-choice, se pautavam em algum acidente: seja lugar (quando se falou do nascimento), quantidade (quando se fala do tamanho), relação (quando se fala de viabilidade), qualidade (quando se fala de forma humana, dentre outros), ação (pensamento), paixão (sensibilidade à dor), etc. Em nossa visão, o fato de que todas as distinções feitas pelo lado pró-aborto se encaixam dentre os predicamentos acidentais aristotélicos explica claramente a necessidade dos ajustes arbitrários obtidos pela inclusão ad hoc de exceções em todos aqueles posicionamentos que já expusemos – exceções estas que buscam evitar que se tomem certas “coisas” por “pessoas” e vice-versa. Essa necessidade de exceções ad hoc decorreria do fato que nenhuma das posições abordadas partia da definição correta de “pessoa”. Pessoa é, sempre e em todo caso, uma substância. Como já dissemos, pessoa é a substância individual 131

de natureza racional257. É substância, pois a pessoalidade não é uma característica acidental de um ente, mas sim algo de sua mais profunda intimidade ontológica, a própria maneira pela qual o ente participa no ser. Ela é o que o ente é, é sua quididade. Por isso que tentar explicar a pessoalidade tomando por ponto de partida um predicamento distinto daquele ao qual ela pertence leva ao erro e à confusão. “Substância”, contudo, possui dois sentidos. Entende-se por “substância primeira” a “coisa” concreta, singular, individuada na realidade. Por “substância segunda”, compreende-se a essência daquela coisa, isto é, sua quididade – um universal, despido dos caracteres que individuam um ente em concreto. Diz-se que a pessoa é uma substância “individual”, pois a pessoa é sempre uma substância primeira, um ente concreto, uma “coisa”. A “humanidade”, por exemplo, não é uma pessoa, mas sim o “homem” o é. A “natureza racional” dessa definição, por sua vez, é a característica que diferencia a pessoa das demais substâncias258. Por “natureza racional”, designa-se a capacidade natural das pessoas para a apreensão de universais abstratos e a livre ordenação de seus atos. Deve-se deixar claro, desde o início, que o impedimento do exercício da potência intelectiva possuída por toda pessoa não altera a realidade da natureza racional do ente, uma vez que sua substância pode não se desabrochar em plenitude por razões acidentais que a impeçam. O defeito da matéria não altera a potência ativa da forma, ainda que impeça seu exercício acidentalmente. Num claro exemplo de Aristóteles, bastaria trocar a matéria para que aquela potência ativa operasse naturalmente: se déssemos ao velho o olho de um jovem, ele enxergaria bem como um jovem. O próprio Aristóteles já explanara que o exercício do intelecto pode declinar na medida em que haja declínio de algum órgão interno, ainda que o próprio intelecto – por sua natureza espiritual – seja impassível 259.O mesmo se aplica àqueles que ainda não possuem um cérebro formado, ou mesmo que nunca virão a 257

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. I, q. 29, a. 1.

258

Intimamente relacionada com a natureza espiritual das pessoas.

259

ARISTÓTELES, Da Alma. Livro I, capítulo 4. [408b1]

132

possuí-lo, ainda que sua natureza os levasse a tal. Como já comentado anteriormente, o cérebro é a sede dos sentidos internos, sendo necessário para a formação dos fantasmas sobre os quais atua o intelecto, mas não se confunde com o próprio intelecto. A presença desse advém necessariamente da forma (alma, nos seres vivos) e independe do seu exercício em ato. Dizer que a incapacidade do uso da razão por um dado ente alteraria a sua substância, removendo a racionalidade de sua caracterização faria tanto sentido quanto dizer que uma planta doente, por deixar de apresentar crescimento vegetativo260, deixa de ser planta. A posição pró-vida, portanto, defende o critério da pessoalidade no âmbito mais sólido e mais objetivo261 de todos, que é o âmbito ontológico. Defendemos que o ser humano é, por natureza, pessoa 262, e que essa pessoalidade começa no justo momento de surgimento ontológico daquele ser humano, no exato instante em que a união do espermatozoide com o óvulo gera um novo ente, que é informado com uma forma substancial distinta das células que o geraram, mas numa matéria que foi recebida dessas células. Dessa forma, o mesmo argumento de identidade que apresentamos

no início desta seção do presente trabalho

provaria, também, a pessoalidade do homem. Retomemo-lo, com outras palavras:

Dado um ente X, as características substanciais 263 desse ente permanecem, desde seu surgimento até seu fim (dado que a mudança substancial implica na alteração da identidade ontológica). Esse ente, portanto, possui uma relação de identidade consigo próprio, em qualquer momento que sua essência permanecer a mesma. Oras, o primeiro momento no qual essa relação de identidade pode ser estabelecida, caso X seja um ser humano, é na 260

Que seria a perfeição própria de um ente dotado de alma vegetativa

261

Deve-se lembrar que a ordem de apreensão é inversa à ordem do ser, sendo a ontologia a última ciência na abstração, mas a primeira ordem na realidade.

262

A definição de “animal racional” já o mostra de modo patente, dado que a racionalidade é uma característica das pessoas. Logo, o homem se diferencia de seu gênero próximo (animal) pela diferença específica da pessoalidade (implicação da racionalidade).

263

Os ditos “acidentes necessários”, que decorrem da própria substância.

133

concepção. Antes dela, haviam dois entes distintos, de essências (e características substanciais, portanto) distintas. O ente X não poderia ser igual a esses dois entes, dado que eles são diferentes entre si. A partir daquele momento inicial (a concepção), seria possível estabelecer a relação de identidade ontológica com o ente em qualquer instante, até a sua morte(separação e consequente perda da forma, por parte da matéria). Assim sendo, essencialmente tal ente permanece o mesmo ao longo de toda sua vida. Se a pessoalidade (como cremos que seja) é uma característica essencial (uma substância), o ser humano é uma pessoa desde a concepção até a morte.

Ao colocar a pessoalidade como característica essencial, não há absolutamente nenhum dos inúmeros problemas que exigiam a formulação de critérios adicionais ad hoc nas visões pró-aborto. Colocando-a como característica essencial do ser humano, todos os seres humanos são pessoas, e o são igualmente. Da mesma forma, não há possibilidade de perda da pessoalidade – exceto pela morte. Além disso, nada se diz de “especista” (mesmo se o especismo for realmente algum problema ético), pois dizer que todo ser humano é pessoa nada diz a respeito da condição de seres não humanos, que poderão ou não ser pessoas. Por fim, os dados da ciência empírica apenas comprovam aquilo que foi filosoficamente demonstrado, como será apresentado no tópico a seguir.

134

4.2.6.2 Confirmações científicas

A pertença à espécie humana ser inerente ao embrião é provado cientificamente, sendo consenso na embriologia e na biologia, como já foi dito. A título de exemplos, convém citar o brilhante voto do Min. Menezes Direito no julgamento da ADI 3510:

“A

embriologia

moderna

dispõe

de

conhecimentos

extraordinários e um dos mais importantes textos de referência do mundo nessa área, adotado em inúmeras faculdades de medicina, o de Moore e Persaud, ensina que o desenvolvimento humano se inicia exatamente na fecundação (Embriologia clínica. Rio de Janeiro: Elsevier, 7a ed., 2004). No mesmo sentido Jan Langman (Medical embryology. Baltimore: Williams and Wilkins, 3a ed., 1975. pág. 3) e Bruce M. Carlson (Patten's foundations of embryology. N. York: McGraw-Hill, 6a ed., 1996. pág. 3). Assim também sustenta o Doutor Gerson Cotta-Pereira, destacado médico patologista, Chefe do Serviço de

Imunoquímica

e

Histoquímica

da

Santa

Casa

de

Misericórdia do Rio de Janeiro, em trabalho ainda não publicado e no qual descreve detalhadamente o processo de reprodução ("O Exato Momento em que se inicia a Vida Humana e a Terapia com as Células-Tronco").”

Tomando-se a pessoalidade por característica essencial do ser humano, a prova científica de que o embrião é humano é suficiente para demonstrar que, por consequência, ele é pessoa. Além disso, a negação da pessoalidade de certos grupos humanos foi justificação para genocídios, para a escravidão, e para a discriminação da mulher ao longo de diversas eras da história da humanidade. Separar os nascituros, justamente aquele grupo que sequer possui força física ou voz para se defender, e negar a pessoalidade deles com base em critérios falhos e arbitrários (como demonstrados anteriormente) é, a nosso ver, um grave erro. 135

4.3 Sobre as mortes pelos abortos inseguros

No debate público, o argumento predominante para a defesa da legalização do aborto não tem por centro o aborto em si mesmo, ou a pessoalidade ou o direito à vida, mas sim a chamada “questão de saúde pública”, sustentando-se que a proibição do aborto só geraria mortalidade feminina. Argumenta-se também que a legalização deve ser feita pois a proibição é ineficaz. Essas opiniões devem ser analisadas com cautela, buscando-se conservar uma postura racional, a fim de que os argumentos apresentados não se tornem meras falácias ou apelos erísticos, transformando-se em títulos de ódio (ex: “o movimento pró-vida é feminicida!”) ou apelos ad misericordiam (“vocês não têm dó das mulheres?”). Em resposta a eles, rememoramos que, a rigor, a questão da mortalidade é irrelevante para a discussão do status moral do aborto. Isso não é o mesmo que dizer que a mortalidade é irrelevante em si, mas sim para a análise da moralidade do ato de abortar. Se o aborto for algo moralmente lícito, será lícito independentemente da mortalidade entre as pessoas que o praticam. Se for ilícito, idem. Além disso, o combate da mortalidade por abortos “inseguros” não deve necessariamente ser feito por meio da legalização da prática, podendo-se buscar o mesmo fim por meio da prevenção e combate aos abortos. Sobretudo ao considerarmos que, sendo o aborto atentado a uma pessoa humana, ele é imoral, e usar de um meio imoral para um fim bom não torna o todo da ação moralmente bom. Os fins não justificam os meios. Da mesma forma, o fato de haver socialmente uma a prática de abortos mesmo com a proibição da lei não é motivo para a legalização do ato, mas apenas um raciocínio falacioso que poderia ser usado para a revogação de todos os tipos penais. Vejamos: se um dado ato condenável nunca é praticado, não há necessidade de legislar proibindo-o; se ele for praticado – adotando-se a tese da ineficácia legal – e proibido, a proibição deveria ser revogada. Ora, assim não se precisará de leis penais nunca, pois elas serão inúteis em ambos os casos. 136

Ademais, dizer que a ineficácia de uma lei penal deve implicar na sua revogação parte do pressuposto – incorreto, em nossa opinião - de que a pena não possui nenhuma função retributiva, mas apenas preventiva, e esta deve ter uma eficácia absoluta que é absolutamente inatingível na realidade prática. Sustentar que há mulheres ricas que abortam e não são punidas, ao passo que as pobres ou morrem no aborto, ou são presas tampouco justifica a moralidade do aborto. Partindo dessa tese, a única coisa que se pode afirmar é que as mulheres ricas também devem ser punidas, e que o sistema penal deve ser reforçado. Nota-se que, também aqui, o argumento pode ser expandido até se chegar à revogação de todas as normas penais, pois os ricos no geral possuem maior acesso a uma boa defesa que os pobres264. Convém reiterar que 50% dos nascituros abortados são mulheres. Se (supondo-se que os números dados por quem milita pelo aborto são corretos) 1 milhão de abortos ocorrem por ano no Brasil, o número de mulheres mortas não é de poucas centenas dentre as que abortam, mas sim de mais de 500 mil. A legalização apenas agravaria esse problema.

4.4 Conclusão da terceira parte: entre o ideal e o possível

Vimos que a lei é a ordenação racional da comunidade política para o bem comum, assim como que ela obriga os indivíduos à prática de um mínimo de atos virtuosos/bons , dentre os quais se encontram os atos negativos de respeito aos chamados “direitos naturais” – originados nos deveres da lei natural –, dentre os quais se sobressai o direito à vida. Vimos também que a lei gera uma grande influência sobre a consciência moral do povo e, por essa razão, que se aplica com especial gravame à lei penal, a legislação possui um forte caráter pedagógico. Concluímos que a lei deve refletir a ordem deontológica/moral, mantendo uma proporcionalidade com a gravidade social e moral dos atos a serem 264

Obviamente ser assim não implica que deva ser assim. Contudo, uma falha no sistema não é o suficiente para descartar-se o sistema penal como um todo.

137

proibidos – uma vez que nem todo ato moralmente ilícito deve ser legalmente ilícito e, muito menos, penalmente reprimido. Semelhantemente, apresentamos que o motivo pelo qual a vida humana é o primeiro e principal valor a ser protegido pelo ordenamento jurídico é que o homem é naturalmente uma pessoa – bem como que a sua dignidade se inicia junto à sua vida, no instante mesmo da concepção. Sendo a fonte da dignidade humana a própria natureza de homem – a qual, conforme sustentamos, carrega consigo a pessoalidade como algo intrínseco, não sendo esta “somada” posteriormente a um ente humano pré-pessoal – a vida não apenas deve ser tutelada desde a concepção, como a forma pela qual ocorreu esta concepção é absolutamente irrelevante. Assim, podemos concluir que é descabida a falta de proteção àquele que foi concebido num ato de violência sexual, contra o qual o ordenamento jurídico brasileiro deixa de punir, atualmente, o aborto, por força artigo 128, II, do CP. Portanto, podemos concluir que a excludente de punibilidade do aborto em caso de estupro deve ser revogada, dado que absolutamente incompatível com a proteção e a dignidade da vida humana. O mesmo raciocínio se aplica a seres humanos com deficiências físicas ou expectativas limitadas ou nulas de vida extrauterina. Uma vez que sejam humanos, é devida a proteção a suas vidas, motivo pelo qual o abortamento de anencéfalos deve ser compreendido como qualquer outro aborto: o atentado à vida de uma pessoa ainda não nascida – uma modalidade de homicídio (moralmente), que possui tratamento diverso do homicídio no texto legal apenas por questões de tradição e percepção social. Quanto ao aborto cometido com o intuito de salvar a vida da gestante, por sua vez, vislumbra-se que a prática do aborto como meio265 para se obter algo é intrinsecamente má e criminosa, motivo pelo qual esta também, idealmente, deveria ser penalizada – problema que se estende a diversas aplicações práticas do chamado “estado de necessidade”, dado que atos intrinsecamente maus não podem ser usados como meios para a obtenção de bens, uma vez que o fim não 265

Cf. Apêndice C.

138

justifica os meios266. Aqui – contudo – encontramos uma grande incompatibilidade de nosso posicionamento com a ordem constituída, a qual parece-nos que, politicamente, impede qualquer alteração legislativa no sentido da penalização do dito “aborto necessário”. O instituto do estado de necessidade, do qual o aborto dito necessário é uma aplicação267, parece ser é um imperativo da hodierna ordem de um Estado Democrático de Direito, o qual reconhece um direito penal limitado e influenciado pelo ideário liberal, o qual não admite a imposição estatal de condutas – por assim dizer – heroicas aos cidadãos (isto é, condutas que exijam o sacrifício de bens relevantes ao sujeito). Respeitosamente, como já afirmamos, discordamos dessa visão, mas devemos reconhecê-la na própria constituição do Estado Brasileiro atual. Dessa forma, embora concluamos que, num Estado Ideal, o chamado “aborto necessário” devesse ser punido, vemos que esta política não é possível de ser implementada no Estado Real, isto é, no Brasil de hoje, que é o objeto sobre o qual devem desenvolver-se as nossas propostas políticas – uma vez que a política, embora inspirada pelo ideal, é limitada pelo possível. Contudo, tampouco deve haver o reconhecimento da licitude do aborto necessário, uma vez que este reconhecimento implicaria numa sinalização ao povo, da moralidade desse ato. Entendemos que a política mais adequada, a esse respeito, é a manutenção do texto atual do artigo 128, I, ou sua reforma de modo a trocar a expressão “não se pune” para “não será aplicada pena”, de modo a tornar mais clara a já presente natureza de excludente de punibilidade daquele artigo – que reconhece o abortamento, nos casos por ele previstos, como ilícitos, mas não puníveis. Assim, se por um lado não é possível a punição do aborto em risco de vida sob a ordem constituída atual, é possível a manutenção do texto atual com o esclarecimento de seu sentido, a saber, a compreensão de sua ilicitude – e, por 266

Caso se admita a licitude do aborto necessário, é necessário admitir que o princípio moral de que “os fins não justificam os meios” possui, ao menos, uma exceção. Dessa forma, propõe-se a seguinte questão: a mesma justificação se aplica ao emprego de tortura para a obtenção de algum bem socialmente relevante? Se não, por quê?

267

Com a já comentada exceção de que, nesse caso, não se excluiria a ilicitude, mas a punibilidade.

139

consequência, a vedação de sua promoção, facilitação ou incentivo por parte do Estado ou de grupos de ativistas – somada à impunibilidade, de modo a não se penalizar as pessoas que, na situação aflitiva, praticaram (indevidamente, frisemos) um grande mal para tentar alcançar um bem. Compreendemos, sem dúvidas, a polêmica de tal posição, uma vez que ela nega a direção evolutiva comumente apontada ao Direito Penal e ao próprio Direito Constitucional, em prol do resgate de uma visão fundamentada na filosofia grega e medieval que, embora pareça anacrônica a muitos, entendemos ser adequada por fundar-se na imutável ordem da realidade, da lei natural e da natureza humana – que eram a mesma na Grécia, na França medieval, e no Brasil contemporâneo268. Entretanto, não pretendemos resumir a questão do aborto à legislação, e compreendemos que a solução do problema atual – a insatisfação da elite midiática e acadêmica em relação à legislação vigente 269 - não advirá apenas da legislação (sobretudo por nossa proposta ser contrária ao pleiteado por tais grupos), mas demanda uma verdadeira renovação cultural no sentido da promoção da valorização da vida humana em todos os seus estágios – sobretudo nos mais frágeis e dependentes – e aumento da solidariedade social para com as gestantes, principalmente aquelas em situações de pobreza, abandono e vulnerabilidade, apoiando as gravidezes não planejadas e a criação das crianças nascidas em tais situações, até a vida adulta270. Se vislumbramos, por um lado, em qual sentido uma sã alteração legislativa deve caminhar, afigura-se de maneira ainda mais cristalina o sentido que não deve adotado em uma mudança legal. Concluímos, por tudo o que até agora foi exposto, que é absolutamente inadmissível a descriminalização e/ou a legalização do aborto, por via legislativa ou – com ainda mais razão – por via 268

O mesmo fogo que queima na Pérsia, queima na Grécia – disse Aristóteles. A ele fazemos coro, afirmando que a mesma lei natural que havia na Antiguidade, há hoje, e é nela que deve fundamentar-se o Direito.

269

Que, ressalte-se, encontra amplo apoio em meio ao povo brasileiro – sumamente contrário ao aborto. Essa realidade proposta já existe, embora hoje se resuma a algumas instituições religiosas que promovem o combate ao aborto por meio do socorro às gestantes e suas famílias. Pessoalmente, não temos conhecimento de algum número razoável de grupos laicos de apoio a gestações não planejadas ou mesmo indesejadas e, muito menos, de políticas públicas nesse sentido.

270

140

judicial, dado que esta viola abertamente a lei natural, negando o direito à vida de um ser humano em seu estágio mais frágil. Entre o ideal e o possível, a certeza que obtivemos como conclusão das investigações desta última parte de nosso trabalho é que o aborto é um mal que deve ser combatido penalmente e que sua descriminalização/legalização é fortemente injusta e imprudente, devendo a legislação caminhar no sentido mais protetivo à vida do nascituro, aliada à promoção de uma nova cultura valorizadora e incentivadora da vida.

141

5. Conclusão Iniciamos nosso empreendimento analisando o atual regime normativo do abortamento no Brasil, vendo-o como fruto de um processo histórico que remonta à Antiguidade e que tradicionalmente vê no nascituro um ente a ser protegido – por motivos os mais diversos, que variaram conforme o tempo. Passamos, em seguida, ao esclarecimento da interpretação realizada pela doutrina dos nossos dispositivos legais, explanando o porquê de discordarmos da visão atualmente predominante. Na segunda parte de nosso trabalho, demonstramos qual o rumo que vem sendo tomado pelo Supremo Tribunal Federal no tratamento do aborto – no sentido de uma clara sinalização de ativismo judiciário legalizador do aborto, análogo ao ocorrido nos Estados Unidos da América – e explicamos a incoerência e a ilegitimidade de tal ativismo. Nesta última parte, por fim, dissertamos acerca de diversos pontos da filosofia tomista que podem lançar luz à questão do aborto no Direito, com a ciência de que muitos deles podem divergir ao ideário liberal e do pensamento progressista - este último predominante no meio acadêmico. Sustentamos um retorno à filosofia política grega e escolástica como a solução para a confusão atualmente reinante no debate nacional e estrangeiro. Deixamos clara a raiz filosófica última do direito à vida, e demonstramos como ele é inerente à pessoa humana. Em seguida, buscamos investigar o início da pessoalidade no homem, enfrentando todos os diversos posicionamentos pro-choice, chegando à sustentação da visão concepcionista com a qual concordamos. Embora não tenhamos realizado uma proposta categórica de um projeto legislativo, apenas apontando em qual rumo uma sã mudança deve ser empreendida, deixamos claro que as reformas atualmente defendidas por amplos setores acadêmicos não podem ser admitidas, por violarem o claro direito à vida dos nascituros – pessoas, faticamente, desde a concepção – e agredirem toda a tradição histórica do Direito brasileiro, bem como o sentimento popular. 142

Apontamos que uma reforma ideal não engloba apenas a mudança legislativa – sempre no sentido do aumento da proteção ao nascituro – mas toda uma reforma cultural e resgate civilizacional de valorização da vida. Ao nosso ver, os anseios hodiernos pela legalização do aborto, por parte da mídia e da academia, não devem ser respondidos com a liberação de tal prática, mas sim com uma política de estímulo e valorização da caridade e união social. Buscamos deixar claros os limites que nossos princípios encontram dentro da ordem constituída e do direito penal contemporâneo, dado que respondem a muitas questões fundamentais com entendimentos opostos aos adotados nos atuais Estados Democráticos de Direito, laicos e liberais. Sem nos abalarmos com isso, mostramos que, mesmo dentro dos limites do Estado Democrático de Direito contemporâneo, é possível a melhoria da situação atual. Encerramos nosso trabalho, assim, com a certeza de termos atingido o objetivo proposto no início, tendo feito alguma contribuição ao debate que permeia os meios de formação de opinião nos dias de hoje, expondo uma visão minoritária, porém firmemente apegada à racionalidade e à filosofia clássica. Esperamos que este texto, com todas as suas limitações, possa ser útil a todos quantos o lerem.

143

144

6. Apêndices A - Considerações sobre aborto e microcefalia Depois que já se iniciara a confecção deste trabalho, cujo antecedente remoto em minha vontade se encontra no início do ano de 2015, quando me encontrava no terceiro ano de graduação, uma nova questão se colocou no debate do aborto. Tamanha é sua importância, que creio ser ensejadora de um texto à parte. Tal qual os demais textos postos em apêndice ao corpo do trabalho, aqui tratarei de um tema relacionado à questão central desta tese de láurea, mas não tão intimamente vinculado a ponto de encontrar-se no corpo do texto. Nos Apêndices, dos quais este é o primeiro, trato de assuntos que podem esclarecer questões relevantes à compreensão do próprio núcleo de minha tese. A primeira dessas questões, fato atualíssimo, poderia ser tanto a luta pela criminalização do aborto na Polônia – perante a qual o movimento feminista internacional se levantou, amplamente, em manifestações contrárias, que levaram a um verdadeiro atentado contra a soberania do povo polonês e de seus representantes eleitos; quanto ao centésimo aniversário da Planned Parenthood, instituição pertencente ao maior grupo responsável pela divulgação e apologia do aborto em todo o mundo (IPPF), que despeja rios de dinheiro na promoção dos argumentos pró-aborto nos meios acadêmicos e midiáticos – hoje aclamada como promotora dos “direitos humanos” e dos “direitos das mulheres”, mas que fora fundada por uma defensora da Ku-Klux-Klan que encarava o aborto como um método de “branqueamento” populacional271. Entretanto, por mais relevantes que sejam tais temas, há algo ainda mais urgente a ser tratado. No ano de 2015, em meio a um momento extremamente conturbado de nosso país, ao mesmo tempo que milhões de pessoas foram às ruas para derrubar um governo envolvido em tremendos escândalos de corrupção – tendo outros milhões se levantado em defesa do governo (que, ao cabo, acabou caindo, no segundo processo de impeachment de nossa história recente), o país passou por epidemias terríveis relacionadas ao mosquito Aedes Aegypti, velho 271

Me refiro a Margaret Sanger.

145

conhecido dos sanitaristas brasileiros. Desde o expurgo do DDT por pressão de ambientalistas, ano após ano os jornais brasileiros estampavam em suas primeiras páginas os imensos números de casos de dengue, que geravam mortes e prejuízos gigantescos à saúde pública, fato agravado pela falta de interesse econômico em desenvolver-se uma vacina para uma doença tropical, típica de países pobres – dado que os Primeiro Mundo erradicou seus mosquitos numa época em que o DDT era visto com bons olhos. Em 2015, além da dengue, duas outras doenças surgiram nos jornais brasileiros: a zika e a chikungunya. Tal qual a velha conhecida, são males transmitidos pelo mosquito supramencionado, que causam febre, dores nas articulações, etc, etc. Um problema novo oriundo dessas doenças, se impôs como “questão de saúde pública” - como se as epidemias anuais causadas pelo mosquito já não fossem, por si mesmas, assuntos de “saúde pública”. Centenas de bebês, pelo país todo, começaram a nascer com o diâmetro do crânio inferior ao normal – em alguns casos, embora nascessem normais, o crescimento da cabeça cessava rapidamente, tendo um resultado final semelhante aos que nasciam com tal mal. Caía, então, na boca do povo, a doença da vez: a microcefalia. Após estudos feitos no cérebro de um bebê abortado 272 – no último trimestre da gravidez, às 32 semanas! – evidências cada vez mais fortes passaram a vincular a suposta “explosão” (em si, controvertida273) de casos de microcefalia ao zika vírus, transmitido pelo mosquito da dengue. Do debate das causas da microcefalia, o movimento feminista pulou a uma teratológica “solução” para o problema: a 272

Cf. “Estudo encontra zika no cérebro de bebê abortado na Eslovênia” - Disponível em: http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/estudo-encontra-zika-no-cerebro-de-bebeabortado-na-eslovenia/ [Acesso em 12 Set 2017]

273

Tal qual diversos dados biológicos, a distribuição dos diâmetros encefálicos de recém-nascidos dáse em forma de uma curva de Gauss. Assim, são chamados de “microcefalia” os diâmetros que localizam-se nos percentis menores à esquerda da distribuição normal no gráfico, o que, multiplicando-se tais percentis pelos números absolutos de nascimentos, levariam à casa dos milhares de microcéfalos anuais no Brasil, antes da dita “epidemia”, e não às poucas dezenas notificadas, que levaram ao posterior alarde quando os holofotes da mídia voltaram-se para tais crianças. O problema, assim, seria a falta de notificação dos microcéfalos nos anos anteriores à dita “epidemia”. Nesse sentido, as seguintes notícias: http://g1.globo.com/jornalnacional/noticia/2016/02/aumento-da-microcefalia-pode-ter-relacao-com-problemasestatisticos.html ; http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,microcefalia-que-sempreexistiu,10000015230 ; http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/zika-e-microcefaliauma-relacao-complicada/

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descriminalização do aborto de microcéfalos. Numa paráfrase de Chesterton, foi feita a proposta de que a decapitação resolveria a dor de dente. Todavia, dada a demora para o diagnóstico da microcefalia – somente caracterizável, quando muito, no segundo trimestre da gravidez – bem como por uma questão política274 acerca da opinião pública, que percebeu o claro viés eugênico da proposta, foi sustentado pelo movimento feminista, em suas diversas ONGs (financiadas à exaustão, ressalte-se, com dinheiro de Fundações Internacionais, muitas das quais vinculadas ao IPPF), o argumento utilizado para a promoção do aborto de microcéfalos não seria o mesmo do aborto de anencéfalos. Para

este,

pleiteou

o

movimento

feminista

o

reconhecimento

da

inconstitucionalidade de sua criminalização sob os artigos do Código Penal pátrio pela inviabilidade de sua vida extrauterina. Para os microcéfalos, todavia, o argumento foi mais sentimental e menos racional. Débora Diniz, importante feminista, encabeçou o movimento pela propositura de outra Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 275, buscando o reconhecimento do direito ao aborto em casos de grávidas que foram infectadas por zika vírus ao longo da gestação. Como microcéfalos costumam viver muitos anos, alguns chegando, inclusive, a alçar a alfabetização e o ensino superior276, não seria conveniente à causa apresentar a vítima do aborto(que não 274

Estive em palestra ministrada por importante feminista brasileira, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, cuja gravação – por motivos que fogem ao meu conhecimento, mas dos quais é possível se desconfiar – nunca foi disponibilizada na íntegra, e presenciamos a palestrante explicando que a tática política adotada para a descriminalização do aborto passaria por reforçar o ponto de não se tratar de eugenia (pois ainda não se saberia – disse ela – se o feto era microcéfalo ou não). Igualmente “política” foi a proposta, feita duas vezes pela palestrante e que presenciei com meus próprios olhos (talvez seja este o motivo para a gravação nunca ter sido divulgada) de que alguma garota rica, aluna da USP, que aceitasse engravidar com a finalidade de pleitear judicialmente (com os melhores advogados do Brasil, assegurou a palestrante, sem divulgar quem financiaria tal demanda) o direito de fazer um aborto, deveria procurá-la ao final da palestra, ou por qualquer meio de contato. Para acalmar alguma possível voluntária, a palestrante ainda assegurou que, como o Judiciário brasileiro é lento, quando a voluntária atingisse os seis ou sete meses de gestação, ela viajaria (de graça!) junto com a palestrante para Portugal, a fim de lá fazer o aborto. A intenção era que o processo chegasse ao STF, local no qual a palestrante nutria firme convicção de que haveria o reconhecimento de um direito ao aborto para todas as brasileiras, ao arrepio do Poder Legislativo, do princípio democrático e do bebê que seria gerado com o único intuito de ser abortado tempos depois.

275

Cf. “Grupo prepara ação no STF para aborto em casos de microcefalia”. - Disponível em : http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160126_zika_stf_pai_rs [Acesso em 12 Set 2017]

276

Cf. “Jovem com microcefalia escreve livro e tira diploma de universidade em MS”. - Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/12/jovem-com-microcefalia-escreve-

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seria tão facilmente desprezada como ocorreu com os anencéfalos), mas sim a gestante. Alegou-se que o Estado possuía um dever de permitir o aborto, pois a própria infecção por zika teria ocorrido em decorrência de uma omissão do ente público. Partiu-se de um conceito omnicompreensivo do Estado, para responsabilizá-lo por um mero fato da natureza: a picada de um mosquito. O argumento até faria sentido, se o pleiteado fosse uma indenização em face da União, ou coisa parecida. Mas não é isso que interessa ao movimento abortista. Buscou-se, ao contrário, ampliar ainda mais o (ilegítimo, como vimos) rol de abortos “legais” no ordenamento pátrio. O objetivo final, sim dúvidas, permaneceu sendo a legalização total277. Nenhum sentido subsiste na falaciosa alegação de que não quer abortar microcéfalos por serem microcéfalos. O argumento de que a permissão para a “interrupção da gravidez” vincular-se-ia ao abandono das mulheres infectadas pelo zika conduz ou à legalização absoluta do aborto (pois o mesmo deveria ser sustentado para aquelas infectadas pela gripe, ou por qualquer mulher que não tivesse uma vida absolutamente perfeita, em decorrência da idílica tutela absoluta do Estado), ou à sua vinculação com a microcefalia. Por maiores que sejam os eufemismos e joguetes empregados, a verdade é que o pleito de que a autorização para o aborto deve ser dada às gestantes com zika é, apenas e tão somente, por desejar-se permitir o aborto de microcéfalos. Por que não desejar microcéfalos? Pelas mesmíssimas justificativas da maioria dos abortos praticados no mundo todo, agravadas pela situação concreta. Se uma criança não desejada já gera gastos, leva à forçada alteração nos planos de vida de seus genitores, quanto mais não o fará uma criança deficiente, que terá perpétua limitação e será consideravelmente mais dependente de seus pais. Assim, se a criança (deficiente ou não) é um fardo, a solução é permitir uma contracepção a posteriori, isto é, um aborto. Se severa é sua deficiência, severa será a “necessidade” de abortá-la. A comodidade dos genitores – e da sociedade – se livro-e-tira-diploma-de-universidade-em-ms.html [Acesso em 12 Set 2017] 277

Uma das grandes discussões no movimento feminista brasileiro atual, inclusive, é acerca da melhor tática de legalização do aborto. Certas vertentes feministas, por exemplo, se põe contrariamente à legalização progressiva do aborto, compreendendo que só seria legítima uma legalização total e absoluta.

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impõe em face ao direito à vida da criança. Verdadeiramente eugênica, à proposta da legalização do aborto em caso de infecção da gestante por zika vírus opomos as sábias palavras de Nelson Hungria278: “Andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do abôrto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa pretensiosa charlatanice que dá pelo nome de eugenia. Consiste esta num amontoado de hipóteses e conjeturas, sem nenhuma sólida base científica.”

Mais que anticientífica, a permissão do aborto em caso de microcefalia é verdadeiramente injusta. A autorização de eliminar deficientes apenas por serem – como tais – um “fardo”, um encargo a serem tutelados pelas pessoas saudáveis “superiores” - nada mais é que velho fantasma de Trasímaco 279, permanentemente a sugerir à humanidade que adote por base da justiça a vontade do mais forte. Ouvir tal sugestão, por sua vez, é abandonar exatamente aquilo que nos constitui como humanos: enquanto somos racionais, devemos, conforme largamente dissertado ao longo deste trabalho, reconhecer a lei natural e os direitos alheios, e por freios aos impulsos que nos levam à absolutização de nossos desejos egoístas em detrimento dos direitos e do bem dos outros. A justiça, assim, deve imperar – e, para tanto, deve prevalecer a vida.

278

HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 313

279

O clássico personagem d’A República, de Platão. No diálogo, Trasímaco tenta sustentar, face a Sócrates, que a Justiça nada mais é que o império do desejo do mais forte.

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B - Considerações sobre o debate do aborto no Brasil No Brasil atual, muito se fala acerca da suposta necessidade de um debate sobre o abortamento. “Precisamos falar sobre o aborto!”. Contudo, a mídia e a academia parecem já ter, antes do debate, uma certa conclusão como “a única aceitável”. Ambas claramente se posicionam a favor de um dos lados desse debate – a descriminalização. Revistas, jornais e programas televisivos – inclusive telenovelas – são empregados como panfletos ideológicos em prol da promoção do movimento descriminalizador, sem espaço para o contraditório, e com argumentos que beiram as raias do absurdo. O nível do debate travado no Brasil é paupérrimo, em claro contraste com os argumentos sustentados nos debates estrangeiros. Talvez isso seja oriundo de um desejo não pela busca da verdade280, mas pela visão utilitarista da política, em que a retórica, adotada como fim em si mesmo, vale mais que a dialética 281 por ela conduzida – em outros termos, o que interessa é convencer o ouvinte, mesmo se isso ocorrer através do emprego de falácias e sofismas. Numa palavra: é pura erística. Como foi apresentado no presente trabalho, há argumentos relevantes dos dois lados do assunto, tratando acerca de uma distinção entre pessoalidade e humanidade, versando sobre a essência da pessoa e sua caracterização, e mesclando temas que vão desde a tese dos direitos naturais até teorias éticas e metaéticas. Há nomes que verdadeiramente encaramos como “oponentes dignos” na luta argumentativa que é a questão do abortamento, como Peter Singer ou Judith Thomson. Nomes sumariamente ignorados no Brasil. Aqui não se debate, mas se grita. Esperneia-se. Defendem – até na academia! - o aborto com argumentos que apelam não à razão humana, mas ao 280

Não é nosso intuito, no presente trabalho, embrenharmo-nos pela tormentosa questão da verdade na filosofia moderna. Em síntese, convém deixar claro que nosso posicionamento, de matriz aristotélico-tomista, assume como óbvia a existência da verdade, tanto em seu sentido lógico, definido por “adequação da mente à coisa [real]” quanto em seu sentido ontológico, como transcendental do ser.

281

Aplicamos, aqui, os sentidos clássicos dos termos “retórica” e “dialética”, sem qualquer vínculo com a visão de Hegel, Marx, Schoppenhauer ou demais autores que posteriormente empregaram esses termos. Adotamos “retórica” como a arte do discurso, e “dialética” como o processo discursivo pelo qual se dá a busca pela verdade.

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sentimentalismo irracionalista: “Pobres mulheres! Elas sofrem por não poderem abortar!”. Ignorando e rejeitando qualquer abordagem realista, que se curva sobre a realidade chamada “aborto”, a fim de investigar, pelos primeiros princípios da razão prática, qual sua moralidade e qual deve ser seu tratamento jurídico, o debate brasileiro forma hordas de bárbaros, que buscam vencer a disputa no grito e nos rótulos (“Discurso de ódio!”, “Machismo!”, “Fascismo!”), ignorando os argumentos do lado opositor. A título de exemplo, tratarei de 3 argumentos comumente vistos nesse debate: (i) o aborto é uma discussão feminina, (ii) o Estado é laico e (iii) o lado pró-vida adota um argumento religioso. Em primeiro lugar, trato do argumento que busca fechar a discussão apenas às mulheres, sob a ideia de que apenas estas seriam legitimadas para debater a questão do abortamento. Este argumento é um exemplo claro de aplicação da falácia do poço envenenado, dado que parte de uma condição do interlocutor (não pertencer ao grupo “mulheres”) para deslegitimar qualquer argumento que ele possa trazer. Envenena-se o poço (interlocutor), para que toda água (argumento) que dele venha não possa ser bebida. Per se, isso já é razão suficiente para se desconsiderar tal objeção. No entanto, ainda há mais problemas com ela. A objeção vinculada ao sexo do debatedor parte, igualmente, do pressuposto de que o aborto é uma questão feminina. Afinal, só se pode dizer “você não pode debater, pois é homem” quando se pressupõe que apenas mulheres podem debater o assunto. Isso é claramente uma petição de princípio. Por que o aborto seria uma questão feminina? Obviamente por ser – segundo quem adota essa visão – um assunto íntimo das mulheres, uma liberdade individual, um direito de sua vida privada. Ora, mas é justamente sobre isso que versa a discussão! A questão que se põe é justamente se o aborto é um crime (no sentido moral), portanto, público, ou é algo moralmente irrelevante (ou, ao menos, menos relevante ao ponto de autorizar sua descriminalização). Um dos principais argumentos empregados no nosso país não só é falacioso, como é uma gigante petição de princípio sobre a própria discussão: busca matá-la antes que ela surja, pois já adotou uma posição em relação às conclusões que tal discussão buscaria – mas não precisávamos falar sobre aborto?

152

Em segundo lugar, temos a visão de que a laicidade estatal seria ferida pela criminalização, ou pela presença de argumentos pró-vida no âmbito público. Como esta objeção se relaciona com a terceira, acerca do caráter religioso dos argumentos pró-vida, tratá-las-ei conjuntamente. Sustentar a laicidade do Estado para pleitear a descriminalização ou a legalização

do

aborto

pressupõe

que

os

argumentos

contrários

à

legalização/descriminalização são todos de fundamentação puramente religiosa. Pressupõe-se, igualmente, que argumentos de origem religiosa não são válidos no debate público de uma nação laica. Esta posição é duplamente errada. Em primeiro lugar, erra-se ao dizer que os argumentos pró-vida são religiosos. Não o são. Como muitos autores favoráveis à legalização já perceberam, o argumento centrado na pessoalidade, ou na humanidade do nascituro não possui absolutamente nenhum pressuposto religioso, sendo do âmbito da Filosofia.282 Religioso seria um argumento que adotasse a estrutura “O Papa diz que aborto é errado; o Papa é infalível em matéria moral; logo, o aborto é errado”. Todavia, esse argumento jamais foi empregado nessa discussão. O segundo erro dessa visão está em segregar “argumentos públicos” de outros argumentos, “privados”, e jogar todos os argumentos de matriz religiosa para o segundo grupo. Essa cisão implica no reconhecimento não de uma laicidade do Estado, mas sim de um laicismo ou ateísmo do Estado, pois só poderiam ser usados no âmbito público argumentos materialistas-ateus. O Estado Laico não deve privilegiar um grupo religioso em detrimento do outro, mas os argumentos religiosos são válidos para tantos quantos aceitarem suas premissas. Um consenso acerca delas bastaria para levar à aceitação de tais argumentos – precisamos falar sobre aborto, mas nem todo mundo pode falar? Enquanto perdurar o irracionalismo no debate pátrio, que busquei apontar neste breve apêndice, nada de relevante se produzirá no âmbito nacional. A cultura que transforma todas as questões políticas, jurídicas e morais, do aborto e de muitos outros temas (a exemplo da descriminalização das drogas, da redução da 282

Talvez a motivação dessa confusão, por parte do grupo pro-choice brasileiro,seja pela falta de familiaridade com a filosofia clássica, dado que a abordagem contemporânea mais difundida da filosofia nacional, de viés marxista, toma a filosofia como teleologicamente ordenada para a mudança do mundo, e não para a compreensão da realidade.

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maioridade penal, do casamento entre pessoas do mesmo sexo) em disputas semelhantes às de times de futebol precisa ser abandonada. Esperamos, com este trabalho, ter dado um primeiro passo nesse sentido.

154

C - O Princípio do duplo efeito e o “aborto necessário” O aborto, tal qual grande parte do direito penal, é assunto estudado também em outros ramos do conhecimento, sobremaneira na moral. Tanto o Direito Penal quanto a Moral fundam-se sobre o estudo dos atos humanos e sua valoração. Enquanto nesta valoram-se os atos como bons ou maus, certos ou errados, no âmbito jurídico tratam-se de atos lícitos ou ilícitos. Por conta dessa identificação de objeto material que ocorre entre Direito e Moral, cremos ser muito útil o intercâmbio de ideias entre esses ramos do conhecimento, a fim de que ocorra um enriquecimento mútuo. Ao contrário do que buscam diversos autores modernos, tomamos que Direito e Moral são intimamente relacionados, sendo o direito uma área específica do grande estudo sobre a ação e a razão prática – a Moral. Portanto, além do reconhecimento e influência mútuas, seria muito proveitoso que seus estudiosos convivessem em amistosa relação, principalmente se houve um produtivo intercâmbio de ideias. Um dos postulados da Moral que ajudam a iluminar a questão do abortamento é o chamado princípio do duplo efeito, ou princípio do voluntário indireto. Tal princípio não é, em absoluto, desconhecido dos penalistas. Nelson Hungria cita-o em seus comentários ao Código Penal, ao abordar o tema do aborto283. Todavia, é notável a visão extremamente pejorativa e negativa que o autor possui contra a Moral e, especificamente, contra o princípio do duplo efeito, tendo-o por uma odiosa invenção da religião. O laicismo do século XX não poupou nem os melhores autores, de fato. Citemo-lo:

“[...] êsse apêlo ao abôrto indireto é apenas uma acomodação com o céu, um expediente ardilosamente excogitado para conciliar escrúpulos religiosos com a imperativa necessidade prática. Tanto vale querer um resultado quanto assumir o risco de produzi-lo.”284

283

HUNGRIA, Nelson. Op. cit. pp.306-309

284

HUNGRIA, Nelson. Op cit. p. 308

155

E continua, buscando justificar seu pensamento, e confundindo Filosofia Moral com doutrina religiosa: “Direito penal nada tem a ver com religião, a não ser para garantir a liberdade de culto.”285

Considerando que a ignorância da ratio do princípio do duplo efeito não poupou nem nosso melhor penalista, temos que convém, portanto, explicar tal princípio. Em suma, o objeto de estudo da Moral são os atos humanos, bem como as virtudes e os vícios que ao homem se relacionam. A Moral, dessa forma, é a ciência da razão prática humana, que ordena o agir do homem em vista dos fins últimos, quaisquer que sejam eles – para o tomismo, ao qual filiamo-nos, tal fim último, tomado de seu âmbito natural, é a felicidade, visão semelhante à de Aristóteles. Os atos humanos, estudados pela Moral, são aquelas ações feitas livremente – isto é, com consciência e vontade livre – pelo homem. Digerir, por exemplo, é um “ato de homem”, mas não um “ato humano”. Os atos humanos, desse modo, são valorados em bons ou maus. Tal valor advém das finalidades dos atos – pois todo agente só age em vista de um fim. Além das finalidades, outro elemento levado em conta são as consequências e o objeto do ato em si. Dessa forma, um tiro, por exemplo, é um objeto em si neutro, que pode compor um ato bom (caso tenha, por exemplo, a finalidade de acertar pratos num esporte olímpico), ou um ato mau (caso seja para matar alguém, por exemplo). O princípio do duplo efeito postula, assim, que certos atos humanos, que tenham em vista um fim bom, e partam de um objeto em si bom ou neutro, serão moralmente lícitos mesmo se ocasionarem um efeito ruim, desde que este seja indesejado e proporcional ao efeito bom e seja o único modo de se alcançar o efeito desejado. Esse princípio é, por exemplo, a justificativa moral da legítima defesa. Num ato de legítima defesa, o que é desejado é a cessação da agressão injusta (finalidade boa), por meio de, por exemplo, um tiro (objeto moralmente neutro), ainda que isto cause um ferimento no agressor (resultado ruim e 285

HUNGRIA, Nelson. Op. Cit. p. 308

156

indesejado). Note que, se houver desproporcionalidade entre o fim bom e o efeito indesejado (por exemplo, quando a “agressão” seja apenas uma piada desagradável, e o agredido busca parar a tal “agressão” com tiros de canhão) o ato será mau. Da mesma forma será mau o ato caso haja outro modo de atingir o efeito desejado (por exemplo, se o agressor cessasse a agressão por meio de um simples pedido de “por favor, pare”). Perceba-se a semelhança de tal doutrina – que adveio da Moral, sobretudo da Teologia Moral medieval, ao Direito Penal moderno, que exige uma proporcionalidade nos atos de legítima defesa, bem como que a agressão seja séria e grave. No aborto, a aplicação moral deste princípio é relevantíssima nos casos do estado de necessidade. O clássico exemplo da gestante que precisa fazer um aborto para salvar sua vida, ainda que seja mero caso hipotético, pode ser melhor compreendido pela aplicação deste princípio. É absolutamente imoral – e ilegítimo – retirar a vida de um inocente para se salvar outro inocente. O direito não pode tutelar tal tipo de ato. Não é aceitável que se absolva um sujeito que matou alguém para preservar a sua vida, usando da morte como meio. Mesmo que se isente de pena tal delito (o que discutimos no momento oportuno), ele não pode ser meramente reconhecido como fato lícito, ensejador de direitos subjetivos. Por outro lado, é moralmente aceitável que seja praticado um ato que não tenha o abortamento nem por meio, nem por fim, sendo a provocação do aborto um efeito indesejado deste ato, quando o ato em questão é o único modo de se atingir uma dada finalidade boa e gravemente necessária (proporcional ao mal objetivo da provocação do aborto). Nesse sentido, não é moralmente condenável uma cirurgia cardíaca que seja o único modo de se salvar a vida de uma gestante, ainda que esta cirurgia ocasione, em 100% dos casos, um aborto espontâneo. Todavia, seria moralmente ilícito provocar o aborto, para, em seguida, proceder-se à cirurgia. No primeiro caso, o aborto é uma consequência indesejada da cirurgia, enquanto no segundo ele é desejado. Desejar – em moral – faz toda a diferença para a valoração do ato, tal qual o dolo o faz para o Direito Penal. Como a Moral estuda o âmbito voluntário do homem, um efeito indesejado escapa à alçada valoradora de um ato, 157

sendo mera circunstância acidental, que não faz de uma ação boa, má, nem de uma ação má, boa. O aprofundamento nos estudos da Moral, como o estudo do princípio do duplo efeito, pode, assim, esclarecer-nos quais casos sequer incidiriam dentro do “aborto necessário”, pelo abortamento fugir à alçada voluntarística do homem (dolosa), configurando-se fato de culpa consciente, não punida pelo Direito Penal, e quais casos são verdadeiros abortos, dolosos, e que como tal devem ser tratados. Para tanto, todavia, deve-se abandonar os preconceitos modernos em relação à Moral e às suas relações com o direito, e passar-se ao sério estudo e enfrentamento daquelas questões que por séculos foram objeto de investigações por centenas de filósofos e teólogos.

158

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AD MAIOREM DEI GLORIAM

162
ARRUDA. O aborto no Direito Brasileiro

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