ATLAS SOBRE O DIREITO DE MORAR EM SALVADOR

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Elisabete Santos Roseli Afonso Suely Ribeiro Cezar Miranda Elba Veiga Cássia Carneiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA 

Reitor Dora Leal Rosa Vice-Reitor Luiz Rogério Bastos Leal

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria Vidal de Negreiros Camargo

Elisabete Santos Roseli Afonso Suely Ribeiro Cezar Miranda Elba Veiga Cássia Carneiro

EDUFBA Salvador - Bahia 2012

© Copyright 2012 by Elisabete Santos, Roseli Afonso, Suely Ribeiro, Cezar Miranda, Elba Veiga, Cássia Carneiro Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal. Capa e Projeto Gráfico Antônio Eustáquio Barros de Carvalho Foto da Capa Roseli Afonso Revisão e Normalização Nícia Padilha

Sistema de Bibliotecas - UFBA A881

Atlas sobre o direito de morar em Salvador / Elisabete Santos [coordenação geral], Roseli de Fátima Afonso ...[et al.] — Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012. 196 p.: il. Parcerias: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia — FAPESB, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio-Ambiente e Defensoria Pública do Estado da Bahia. ISBN: 978-85-232-0984-1 1. Direito à moradia — Salvador (BA). 2. Movimentos sociais — Salvador (BA). 4. Política habitacional — Salvador (BA). 5. Direitos humanos — Salvador (BA). 6. Habitação popular — Salvador (BA). 7. Política urbana — Salvador (BA). 6. Direito de propriedade — Salvador BA). I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. II. Santos, Maria Elisabete Pereira dos. III. Afonso, Roseli de Fátima. IV. Título. CDD 342.8132085

Editora filiada à

ASOCIACIÓN DE EDITORIALES UNIVERSITARIAS DE AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE

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Aos Sem Teto

Prefácio Em seus estudos epistemológicos voltados para estabelecer as condições paradigmáticas do conhecimento pós-moderno, Boaventura de Sousa Santos se vale de diferentes procedimentos e de estratégias de representação acerca dos modos aceitáveis e convincentes de conhecer e de orientar a ação humana projetada no mundo. Entre esses procedimentos e estratégias ele destaca a cartografia enquanto representação de espaços por meio de mapas, útil para a determinação da natureza do objeto do conhecimento de que se trate, como para aferir as consequências das ações e práticas sociais que nesses conhecimentos se fundem. Mapas, ainda que promovam distorções da realidade, contribuem para fundamentar análises e orientar ações com razoável segurança, com a utilização de mecanismos estruturantes de sua possibilidade de precisão que são, a escala, a projeção e a simbolização. A cartografia se caracteriza, assim, por permitir acentuar relevâncias e, de algum modo, indicar a pertinência, as correspondências e as realidades que se busca conhecer ou interpretar (SANTOS, 2007). Foi desse modo, para citar um exemplo, que Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, elaboraram no Distrito Federal, com o objetivo de identificar a existência de redes para a defesa de direitos humanos, uma cartografia das entidades e organizações da cidade-satélite de Ceilândia, originada de um programa de erradicação de invasões (Campanha de Erradicação de Invasões — CEI) e de seu potencial mobilizável para a construção e efetividade da democracia, da cidadania e dos direitos: “A história social de Ceilândia traz em seu bojo uma trajetória de lutas e iniciativas no campo da formação para a cidadania. Vários movimentos sociais de conteúdos diversos ocorreram desde o período de sua criação. A cidade é hoje a mais populosa do Distrito Federal e apresenta certa melhoria nos serviços e bens de consumo urbano, porém, há carências urbanas significativas a merecer atenção das autoridades governamentais. Esta trajetória histórica, pontilhada de ações coletivas diversificadas no campo dos direitos, retrata também uma comunidade com grande potencial a ser trabalhado pela implementação de uma rede de defesa dos direitos humanos. É nesta direção que a proposta em análise ganha corpo, apontando para uma história passada, pautada na luta pela moradia que, hoje, se traduz em ações plurais onde o público e o privado tornam-se espaços mediadores do processo de efetivação da democracia e da cidadania” (MACHADO, SOUSA, 1998). A publicação deste Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador se inscreve nesta metodologia cartográfica e, com o rigor de sua elaboração, serve ao conhecimento e à interpretação da realidade que registra com muita precisão. Resultado de um estudo analítico ao abrigo da Faculdade 2 de Julho, do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social — CIAGS da Escola de Administração da UFBA com as parcerias da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio-Ambiente — SEDHAM/PMS, Defensoria Pública do Estado da Bahia — DPE e o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia — FAPESB, o trabalho foi coordenado por uma equipe constituída por Maria Elizabete Pereira dos Santos, Roseli de Fátima Afonso, Luiz Cezar dos Santos Miranda, Suely Maria Ribeiro, Elba Guimarães Veiga e Valnêda Cássia Santos Carneiro, que se incumbiram também da redação, que teve ainda a participação de Fredson Oliveira Carneiro, Fernanda Alves Costa, Patrick Campos Araujo, Vinicius Álen Alves Oliveira, Victor Lopo de Almeida Costa, Gilmar Carneiro Mascarenhas, Gilberto dos Santos Cruz, Iraildes Santos de Santana e Miralva Alves Nascimento. A ficha técnica da publicação registra igualmente as contribuições gráficas, fotografia e revisão, fundamentais para a qualidade do trabalho e de sua apresentação. O Atlas descreve, em pormenor, 36 ocupações de áreas urbanas em Salvador, indicando localização, tipo, população estimada, tamanho médio das famílias, faixa etária, escolaridade do grupo, renda, atividades produtivas ou de subsistência, inserção no mercado de trabalho, perfil das lideranças e os vínculos dos ocupantes com os movimentos sociais. Cada levantamento vem apoiado em dados criteriosamente coletados e organizados graficamente para ilustrar seus valores, em recortes que puderam ser estabelecidos com os elementos de questionários e entrevistas. Se a descrição precisa já pode ser considerada uma oferta explicativa, parafraseando Engels, para quem, “a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação” (MARX, ENGELS, 1975), a cartografia elaborada, com esses cuidados, torna possível formular as escalas, as projeções e o simbólico que circunscreve o fenômeno, dando base para interpretações e orientação para a ação no campo das políticas públicas e para a afirmação e legitimação de direitos. Não por outra razão, a primeira parte do trabalho tem por objetivo construir a base desses dois pressupostos. Já no capítulo primeiro os autores afirmam o ponto de partida da iniciativa de elaborar o Atlas: “necessidade de aprofundar a discussão teórica sobre o direito à moradia e à cidade em um contexto contraditório e profundamente desigual, de avanço na institucionalização de gestão urbana qualificados como democráticos”. Assim, o desafio posto pela equipe é, diz ela, “contribuir para a construção de uma teoria política da cidade e da sociedade, de Ocupações

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contribuir para a formação dos estudantes, dos futuros gestores públicos e sociais e de fundamentar a ação dos movimentos sociais”. O trabalho, a meu ver, se apresenta à altura do desafio proposto. Com base em categorias teóricas bem identificadas, a partir de Boaventura de Sousa Santos, não apenas focaliza a afirmação jurídica da moradia como um direito fundamental socialmente construído, como percebe a subjetividade coletiva dos movimentos sociais aptos a designá-los e afirmar as bases legitimadoras para seu reconhecimento. Encontro na abordagem desenvolvida no Atlas, a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (SOUSA JUNIOR, 1982, 1987, SOUSA JUNIOR e SANT’ANNA, 1987, SOUSA JUNIOR e COSTA, 1998). Estudei esse assunto ao procurar caracterizar o por mim denominado sujeito coletivo de direito (SOUSA JUNIOR, 2011). Encontro no Atlas a mesma constatação que já fizera naqueles estudos, vale dizer, a percepção de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes inscritas nos movimentos sociais, instaura práticas políticas novas em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos. Ana Amélia Silva referiu-se à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades” (SILVA, 1996). Ela alude, nesse passo, a Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (SADER, 1995). Trata-se, ao fim e ao cabo, como afirma uma das lideranças do movimento entrevistadas para o Atlas, (Ana Vaneska) de “rever conceitos, adensar valores, refletir sobre o nosso lugar e papel no mundo, sobre a transformação das relações de trabalho, de gênero, étnico-raciais e geracionais. O desafio está em construir e multiplicar uma formação política dos sujeitos do movimento mais humana e integral. Sem isso fica muito difícil reafirmar o compromisso social de construir, com o povo, a luta popular na cidade. Afinal, os movimentos sociais devem lutar pela construção de espaços coletivos, pelo acesso à informação e pela criação de novas tecnologias para que o povo tenha condições de intervir na sua própria realidade. Temos hoje o desafio de construir uma reflexão crítica sobre a realidade, de construir uma nova simbologia, de reinventar a utopia”. Na perspectiva do Atlas sustentam os autores, com base na análise da prática dos movimentos sociais estudados, o que perpassa a consciência de sua ação é o poder abrir a consciência para a reivindicação da moradia como um direito e, a partir dessa representação, poder desencadear “uma forma particular de materialização do direito à cidade, que além de contemplar questões relativas ao acesso à moradia e serviços de consumo coletivos refere-se à função social da propriedade, ao acesso à justiça, a inserção produtiva, ao exercício da cidadania e à gestão democrática da cidade”. Marilena Chauí procura expandir o conceito de cidadania para assimilar o trânsito desencadeador dessa ação transformadora. Identifiquei isso em alguns de seus enunciados: “a cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados e cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa, portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política” (CHAUÍ, 2011). Dentro deste campo de luta, no qual o direito à moradia ganha força, num processo de verdadeira invenção democrática, o que ocorre em Salvador, como o Atlas demonstra, se dá também em outras circunstâncias. Basta ver as já citadas Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, mencionando o caso de Ceilândia no Distrito Federal, para registrar que as ações coletivas nos bairros resultavam em mobilizações populares dotadas de grande visibilidade, traduzindo na prática as carências por direitos e a articulação dos movimentos, permitindo um espaço de negociações que acaba levando à conquista de políticas sociais alternativas. Na linha do que estabelece o parágrafo segundo, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim se vê, os direitos não são quantidades, são relações. Eles não foram estabelecidos uma vez para integrar uma tabela fixa, eles são continuamente inventados. Eles formam o acervo designado por Patrick Pharo de “civismo ordinário” (PHARO, 1985), referindo-se às formas de sociabilidades constituídas em relações de reciprocidade num cotidiano no qual são legitimados padrões sociais livremente aceitos. Tomando por base estratégias sociais para a institucionalização do direito à moradia, Ana Amélia Silva refere-se à formação de “agendas sociais” e de “espaços públicos” para aí inserir o que denomina “direitos de cidadania”, reivindicando outras leituras aptas a conceber “o horizonte de propostas e lutas pelos direitos de cidadania como um campo social em construção” (SILVA, 1996).

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Em outro depoimento de militante de movimento recolhido no Atlas, Pedro Cardoso fala do esforço de construção de mecanismos dentro das ocupações para que as pessoas se tornem sujeitos do processo de luta e abram a consciência quanto a compreender que a luta pelo Direito à Moradia não se restrinja à necessidade de acesso à casa: “Ter acesso à casa representa apenas a primeira conquista. Depois, começa a luta para não perder essa conquista e mais, a luta pelo acesso aos serviços e equipamentos que a cidade oferece”. Ponho em relevo no trabalho dois capítulos. O que distingue a mulher na luta pela moradia e o que analisa o acesso à justiça e segurança pelos Sem Teto. No primeiro, transparece a constatação que já pode se generalizar do sentido de empoderamento que a participação na luta pela moradia confere à mulher. Um depoimento ilustra bem isso: “Mesmo considerando que muitas mulheres entram no Movimento de Luta pela Moradia levadas apenas pela necessidade da casa, na atuação diária, elas fazem política e se percebem como sujeitos políticos”. Essa condição tem sido uma referência corrente diante do protagonismo político da mulher. Em Brasília, a partir de um curso de extensão desenvolvimento pela UnB/Faculdade de Direito para a capacitação de mulheres em gênero e direitos humanos, como “promotoras legais populares” (SOUSA JUNIOR, 2012), percebe-se que tratar dos direitos das mulheres é também tratar dos direitos dos homens, e dos direitos em geral, pois quando as mulheres avançam na sua pauta por libertação por conseqüência a sociedade toda em conjunto avança no horizonte da igualdade e, portanto, da justiça. No segundo, é importante discernir, como o faz o texto, o acesso à justiça do acesso ao judiciário. Aqui, combinam-se duas aproximações cruciais, uma de ordem teórica, inserida na análise, de modo a precisar com apoio em Boaventura de Sousa Santos, o cuidado de não perder de vista que as situações de conflito não se dão apenas no plano jurídico, mas também no plano social. Portanto, o chamamento para a possibilidade de constituição de novas ordens sociais e também de novos ordenamentos jurídicos com referência à hipótese teórica do pluralismo jurídico, tão bem definido pelo sociólogo português. A segunda aproximação, de ordem política, referida à mediação formal do aparato judiciário reduzido a um legalismo estéril, que desconhece as promessas emancipatórias do Direito. É neste passo que se perde o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (CANOTILHO, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”. Quero salientar a concordância entre a crítica formulada nessa parte do trabalho e os resultados a que chegamos, em trabalho de pesquisa e de proposta de institucionalização de um Observatório da Justiça, a partir de constatações semelhantes (SOUSA JUNIOR, SILVA, PAIXÃO, MIRANDA, 2009). Os termos em que formulamos as nossas conclusões dizem bem acerca dessas constatações: “Incluir esta dimensão societal na análise e no acompanhamento da Justiça implica dialogar com atores que muitas vezes não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio de um protagonismo que procura o direito no social, em um processo que antecede e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no espaço estatal e dos códigos é, efetivamente, achado na rua. Em outros termos, trata-se de assumir uma posição de alteridade, sem hierarquias ou opor as práticas sociais às prescrições da autoridade localizada no Estado; do Direito adjudicado por um especialista (o juiz) a partir de uma pauta restrita (o código, a lei). Esta proposta de observação da Justiça vincula-se a uma tradição muito própria do pensamento jurídico e social da América Latina: trata-se de creditar ao protagonismo social a capacidade de instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas no aspecto semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também no aspecto pragmático (como novos e autênticos princípios para a legítima organização social da liberdade)”. O ATLAS SOBRE O DIREITO DE MORAR EM SALVADOR, em seu arranjo cartográfico, cumpre, exemplarmente, seu intento político e metodológico. Além disso, ele contribui para ampliar “os sentidos da democracia”, de modo a permitir, como lembra Maria Célia Paoli (PAOLI, 1992), “recuperar os direitos de uma cidadania que, reinventando a si própria pela discordância e pela sua própria recriação, possa reinventar novos caminhos de construção democrática”.

José Geraldo de Sousa Junior Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua Reitor da Universidade de Brasília

Ocupações

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Foto: Jacob Bitencourtt

I - Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Figura 1 — Movimento de Luta pela Moradia

Este Atlas apresenta um retrato do exercício do Direito de Morar e do Direito à Cidade pelos Sem Teto em Salvador. Tradicionalmente, um Atlas é um conjunto de informações cartográficas sistematizadas e se constitui em fonte de referência, em apoio ao processo de aprendizagem. Segundo a mitologia grega, o titã Atlas, em tempos imemoriais, trava uma batalha contra Zeus. É derrotado e obrigado, eternamente, a carregar o mundo nas costas, o que justifica a associação da palavra Atlas à noção de sustentação, de apoio. Nos últimos tempos, o Atlas agregou novas significações. Mudaram os sujeitos da sua construção como também seus conteúdos e funções. O Atlas rompe os limites escolares e passa a qualificar os aspectos geopolíticos, sociais, jurídicos, econômicos, socioambientais e político-institucionais, servindo como referência não apenas para estudantes, estudiosos e pesquisadores, mas também para gestores públicos, operadores do direito, movimentos sociais e para o cidadão. A iniciativa de elaborar o Atlas sobre o Direito de Morar e à Cidade em Salvador se justifica pela necessidade de aprofundar a discussão teórica sobre o direito à moradia e à cidade em um contexto contraditório e profundamente desigual, de avanço na institucionalização de instrumentos de gestão urbana qualificados como democráticos, mas de manutenção dos processos estruturais que conformam o modo de produção capitalista da cidade — particularmente no que diz respeito à apropriação privada da renda da terra urbana, das condições de produção e reprodução da força de trabalho e da degradação de recursos ambientais. Assim, as questões de moradia e urbanas não podem ser qualificadas, de forma aligeirada, como problemas sociais, “suscetíveis de serem resolvidos dentro dos limites estruturais e de compatibilidade funcional impostos pela lógica do capital”. Como afirma Boaventura de Sousa Santos, a “questão urbana é um dos afloramentos, ao nível da superfície, das contradições que se produzem na estrutura mais profunda das sociedades capitalistas” (SANTOS, 1982, p. 67-68). Adicionalmente, é preciso registrar que a resolução, ou não, da crise urbana tem, no Estado, um dos seus principais protagonistas, sobretudo se levarmos em conta o caráter de classe da sua ação. Assistimos, hoje, a despolitização do discurso sobre a crise das cidades, o que reflete, exatamente, a natureza da hegemonia de grupos políticos que, em décadas passadas, estiveram na trincheira de luta pela construção de uma cidade, de uma sociedade mais democrática, em seu significado mais substantivo. O retrato dos Sem Teto em Salvador revela o caráter de classe da luta pela moradia digna, pelo acesso aos serviços de consumo coletivo e da ação do Estado — explicitado nos limites dos programas habitacionais voltados ao atendimento da demanda por moradia e na ausência de políticas de inserção produtiva dos segmentos sociais situados nas menores faixas de renda. Desse modo, o desafio de um trabalho de pesquisa como o produzido por esse Atlas é o de contribuir para a construção de uma teoria política da cidade e da sociedade, de contribuir para a formação dos estudantes, dos futuros gestores públicos e sociais e de fundamentar a ação de movimentos sociais. Reafirmamos, aqui, a tese de que a problemática de acesso à moradia e o exercício do direito à cidade devem ser compreendidos no âmbito da crise urbana e ambiental, resultado da complexa relação entre campo e cidade, da constituição da terra urbana e da cidade como mercadorias e das condições precárias de produção e reprodução da força de trabalho no atual processo de flexibilização produtiva. Isso significa que uma política habitacional deve ter como elementos estruturais uma política fundiária, de inserção produtiva, capazes de equacionar as assimetrias estruturais, de classe, de gênero e de raça, sob pena de constituir-se apenas em emplastro. Afinal, o que explica a histórica exclusão de segmentos sociais não contemplados por direitos, constitucionalmente estabelecidos e devidamente regulamentados, e que não conseguem, senão através do mercado, ter acesso à moradia? Quais os múltiplos significados do direito à moradia e à cidade para os sujeitos sociais que lutam pelo acesso à moradia e à cidade? A construção social do significado do direito de morar e do direito à cidade é determinada Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

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Foto: Iraildes Santana

Figura 2 — Movimento de Luta pela Moradia

pelos distintos interesses e lugares que as várias classes e segmentos sociais ocupam na produção e reprodução da vida em uma cidade com as características de Salvador. As concepções e práticas relativas ao acesso à terra urbana e à habitação dos Movimentos de Luta pela Moradia rompem com as formas convencionais de acesso à moradia (através do mercado). Por outro lado, as ações e discursos de representantes do Estado tentam equacionar as demandas postas nos termos circunscritos pela subordinação da função social da propriedade e da cidade aos interesses privados, à especulação e à segurança jurídica, estatuídos pelo direito positivo. A discussão da problemática relativa ao exercício do direito à moradia e à cidade, em Salvador, no atual contexto de globalização, situa-nos, portanto, no âmbito do debate sobre a necessidade de universalização de direitos fundamentais em uma conjuntura na qual o Estado tem uma presença mais expressiva, através da implementação de políticas públicas voltadas aos segmentos historicamente excluídos, mas os processos de mercantilização e exclusão continuam a dar a tônica da vida social. Desse modo, este Atlas enfrenta o desafio da construção de uma análise crítica sobre os processos que reafirmam o locus estratégico da cidade no processo de produção e reprodução ampliada do capital e da força de trabalho, sobre a inserção subordinada de Salvador e sua região nesse contexto e, consequentemente, de compreender como se associam pobreza urbana, exclusão social e direito à moradia e à cidade, nos tempos atuais. A problemática dos Sem Teto nas nossas cidades é expressão da não resolução de conflitos urbanos gestados no contexto do urbanismo keynesiano, da cidade industrial fordista, produtora, em massa, de mercadorias, da cidade como centro de poder. A cidade do século XXI, situada na periferia capitalista, subsumida às aporias da acumulação predatória, encontra-se sobredeterminada pelos processos de acumulação especulativa (em sua essência, nômades e voláteis), que moldam e redefinem escalas produtivas e, consequentemente, as possibilidades de inserção produtiva de amplos segmentos sociais historicamente excluídos. Apesar da ampliação do ingresso de parcelas da população no mercado de consumo na última década e do acesso aos benefícios que a tecnologia da informação introduz na vida social, a cidade brasileira, múltipla em suas contradições, amplia a fragmentação do seu território, uma vez que o capitalismo globalizado, e a sucessão de crises, potencializa o uso especulativo da terra urbana, esgota o “localismo” dos poderes locais, atualiza e potencializa fraturas e desigualdades historicamente consolidadas (HARVEY, 2005). Apesar da dificuldade em qualificar o atual momento político, vivenciamos hoje, no Brasil, uma experiência de construção democrática, que avança de forma lenta e titubeante no equacionamento de históricos problemas de acesso à terra urbana, à moradia, universalização do acesso aos serviços qualificados como direito universal e democratização da gestão da res publica. Há mesmo quem afirme, de forma enfática e bem fundamentada, que estamos experimentando, do ponto de vista da construção democrática, um retrocesso. A avaliação do processo de elaboração e implementação de Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano — PDDU no país, na última década, por exemplo, registra o aumento significativo do número de municípios com Planos aprovados, com a incorporação de princípios e instrumentos instituídos pelo Estatuto da Cidade (Lei Nº 10.257/01). Entretanto, é baixa a sua regulamentação (o que significa que os instrumentos não se efetivam) e precária a estrutura administrativa dos municípios, especificamente voltada para a atividade de planejamento urbano. Também é grande o despreparo do corpo técnico para lidar com questões complexas que envolvem problemas urbanoambientais. No conjunto, constata-se que o Plano Diretor tem se mostrado incapaz de determinar as prioridades dos investimentos públicos, de integrar as políticas urbanas, de estabelecer a necessária vinculação entre o Plano e os instrumentos orçamentários municipais e de fazer prevalecer os interesses mais gerais e coletivos. Finalmente, a avaliação conclui que em muitos municípios brasileiros inexistem instâncias de participação e de controle social (circunscritas aos conselhos setoriais) e que muitos dos instrumentos de gestão urbana, apesar de se constituírem em conquistas dos movimentos sociais, têm-se convertido em instrumentos de acumulação e especulação imobiliária (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2010).

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Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Foto: Iraildes Santana

Ademais, a institucionalização da função social da propriedade urbana e da cidade amplia, mas não transforma efetivamente o acesso à terra urbana e aos serviços produzidos nas cidades, uma vez que a operacionalização de instrumentos jurídicos (criados com o objetivo de democratizar o acesso à terra no bojo da luta pela reforma urbana e ao longo do processo de redemocratização), em beneficio da maioria dos moradores das nossas cidades, depende da capacidade do movimento popular em obter acordos que resultem em equidade. Poder-seia, então, dizer que “direitos sem instrumentos são direitos inexistentes, da mesma forma que instrumentos sem sujeitos sociais são folhas ao vento” (RIBEIRO, 2001). Apesar do avanço na constituição e ampliação da esfera pública, na construção de políticas voltadas para os segmentos sociais historicamente excluídos, a atual lógica de desenvolvimento econômico não altera o modelo hegemônico que, de forma polêmica e contraditória, reafirma a possibilidade de conciliar liberdade econômica, mercado e justiça social. Em sendo assim, é preciso romper com o silêncio em relação aos conflitos gestados pelas atuais formas de produção de valor e de acumulação, as contradições do mundo do trabalho e a luta de classe — que misteriosamente desaparecem do discurso político hegemônico e, em certa medida, de parcela expressiva da teoria social preocupada, sobretudo, em produzir o conhecimento necessário à legitimação e consolidação da política em curso, inclusive da política habitacional. A realidade dos Sem Teto nas grandes cidades, em especial na cidade de Salvador é, portanto, expressão emblemática das dificuldades estruturais de universalização de direitos em sociedades moldadas por um mercado profundamente segmentado, que confunde as condições de consumidor e de cidadão — subordinando este a aquele. Salvador é um rico exemplo de como o processo de redemocratização (que chega de forma tardia), encontra limites em contextos econômicos, sociais e políticos que se caracterizam pela existência histórica de processos de exclusão econômica e social e pela participação pouco densa de segmentos sociais que, em tese, teriam o interesse histórico de aprofundamento do processo democrático. Os Sem Teto de Salvador são, predominantemente, filhos dessa cidade. São mulheres e homens na sua maioria negros, jovens, trabalhadores informais, com renda média inferior ao salário mínimo, que convivem diariamente com a violência (contraditoriamente resultado da presença e da ausência do Estado e do tráfico de drogas), que moram em prédios, galpões e terrenos situados em áreas centrais degradadas e na periferia da cidade — lugares abandonados ou distantes dos centros urbanos consolidados e infraestruturados, sendo os mesmos convidados, sempre, a se retirarem quando ameaçados pelos proprietários, públicos ou privados da terra. Os Sem Teto vivem onde raramente o Estado se faz presente, onde a norma é ditada pela lei do mais forte e o exercício dos direitos fundamentais se transforma em uma labuta cotidiana. Não ter um teto, um endereço, esgoto na porta de casa, água na torneira, um vaso sanitário, acesso à escola, à saúde (às vezes por não possuir um endereço fixo), ao transporte público (pela impossibilidade de pagar a passagem), à justiça ou ao que a cidade oferece como possibilidade de usufruto material e simbólico, transforma a vida dos moradores das ocupações em um verdadeiro suplício. E a luta cotidiana pela sobrevivência, que tem na mulher negra um dos seus principais sujeitos coletivos, machuca, embrutece e restringe seus horizontes. Nesse contexto, os Movimentos de Luta pela Moradia se constituem em uma possibilidade de acesso à casa, difícil ou impossível de ser alcançada, através do mercado capitalista. As políticas públicas, nos últimos dez anos, Figura 3 — Movimento de Luta pela Moradia alcançam, tocam a vida dos Sem Teto embora

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o façam de forma parcial. Muitas das ocupações estudadas têm oito anos de existência, o que revela a lentidão da política pública em equacionar situações extremas e limítrofes de carência. Programas como o Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Família, implementado pelo Governo Federal (além de programas sociais como o auxílio aluguel, programas para juventude, auxílio gás, bolsa escola, programa do Pet) resultado, em certa medida, da histórica luta dos movimentos por moradia, acenam com a possibilidade de acesso à moradia e à melhoria de vida dessa população — o que se converte, simultaneamente, em realidade e promessa, uma vez que a implementação desses programas, não está associada à mudança da lógica de produção do espaço urbano e não estão colocadas possibilidades, reais, de inserção produtiva dessa população. Assistimos, hoje, ao trabalho do Estado na erradicação de ocupações e da transferência de sua população para conjuntos habitacionais. No momento da edição deste trabalho, algumas das ocupações que se constituíram em seu objeto já não mais existem — o que vai ao encontro do desejo de todos nós de que as ocupações de hoje se transformem em uma longínqua e histórica realidade. Entretanto, os conjuntos habitacionais que estão sendo construídos, retiram a população pobre da área urbana consolidada, próxima do seu local de trabalho, dos serviços urbanos e convívio social e a desloca para áreas periféricas onde o custo da terra urbana é menor, reproduzindo, assim, mais uma vez a tradicional lógica da periferização. Diante da dificuldade de encontrar uma fonte de renda nesses novos locais de moradia, de arcar com os custos da moradia e do deslocamento, esta mesma população termina por vender os imóveis, voltando a ocupar novas áreas na proximidade dos bairros nos quais as antigas ocupações estavam localizadas. É preciso lembrar que muitos dos moradores desenvolvem atividades de prestação de serviço e comércio informal, a exemplo das atividades de reciclagem de resíduos sólidos, o que requer proximidade de bairros e centros de comércio e serviço produtores do “lixo” que é reciclável. A transferência do morador da ocupação para áreas distantes e sem infraestrutura aprofunda a dissociação entre moradia e trabalho, sendo o custo do transporte urbano um elemento operacional dificultador e que pode inviabilizar a sua permanência no novo endereço (ROLNIK, 2000). Desse modo, a análise da política da moradia em curso deve colocar em questão a natureza da dialética negativa do Estado na cidade, que consiste, às vezes, na arte de diluir contradições, dispersá-las e não exatamente de enfrentá-las ou resolvê-las. (SANTOS, 1982) A conversão do direito à moradia em direito à cidade, coloca a necessidade e a possibilidade de construção de uma sociedade menos desigual, na qual o acesso ao trabalho e à terra urbana sejam elementos instituintes. A análise das lides envolvendo o direito à propriedade, revela a predominância do interesse privado em detrimento do coletivo, sendo a concretização da função social da propriedade um objetivo ainda a ser alcançado. Assim, superar a exclusão demanda não apenas a transferência, através de políticas dirigidas, de recursos públicos para segmentos sociais específicos mas, também, a transformação das relações de classe historicamente excludentes, que se materializam na construção das cidades. Esses desafios nos situam, propriamente, no território da política, e demandam uma cidadania ativa, autônoma, substantiva, condição necessária para a construção de uma vida mais digna e melhor para os Sem Teto, para a cidade do Salvador e para nossas metrópoles. A metodologia de pesquisa adotada na realização do trabalho empírico e na estruturação do Atlas buscou associar as dimensões propriamente quantitativa e qualitativa do objeto investigado, o que implicou a sistematização de dados secundários, realização de pesquisa de campo, com aplicação de questionários e realização de 58 entrevistas semi-dirigidas (com lideranças e coordenadores das ocupações e do movimento), além da análise de processos relativos às ocupações da Alfred e da Escola Nossa Senhora da Penha. Foram aplicados 1845 questionários, com 137questões abertas e fechadas, com a identificação e caracterização dos moradores e do domicílio, a dinâmica da moradia, condições de habitabilidade, padrão de consumo, formas de deslocamento na cidade, acesso aos serviços de educação e de saúde, segurança, acesso à justiça, lazer, religião, relação com o movimento de luta pela moradia, questões relativas a gênero, raça e etnia, nas 36 ocupações, quais sejam: Edifício Lord (Centro); Ladeira da Praça (Centro Histórico); Ladeira do Prata (Nazaré); JJ Seabra (Saúde); Ipac III (Centro Histórico); Ipac II (Centro Histórico); Guindaste dos Padres (Comércio); Edifício Rajada (Comércio); Ipac I (Lapinha); Edifício Matelba (Brotas); Dois Leões (Macaúbas); Saboaria (Calçada); Galpão da Leste I e II (Calçada); Galpão da Leste III (Santa Luzia); Alfred (Mares); Toster/Ribeira (Bonfim); Barreto de Araújo (Bonfim); Escola Nossa Senhora da Penha (Ribeira); Toster (São João do Cabrito); Vila Mar (São João do Cabrito); Boiadeiro (Alto do Cabrito); Quilombo de Escada (Itacaranha); Cidade de Plástico (Periperi); Portelinha/Fábrica de Mamona (Paripe); Tubarão (Paripe); Monte Sagrado (Paripe); Caranguejo (São Tomé); Servidão (Bom Juá); Vila Via Metrô (Mata Escura); Quilombo Paraíso (Pirajá); Lagoa da Paixão (Valéria); Via do Bronze (Moradas da Lagoa); Gal Costa (São Rafael); Recanto dos Cajueiros (Mata Escura); Ladeira Cajazeira (Cajazeiras VI) Vila Nova Esperança (Cajazeiras VI).1 Entende-se, aqui, por “ocupação” os assentamentos coletivos da terra, organizados pela população situada 1

Os nomes dos bairros aqui relacionados resultam do trabalho de delimitação de bairros desenvolvido pelo CIAGS/EA/UFBA conjuntamente com a SEDHAM/PMS e CONDER e que deve converter-se em lei municipal. Isso significa que a localização de algumas ocupações, às vezes referida a uma localidade específica do bairro, pode aparecer de forma diferente quando situada no contexto da referida delimitação. A sequência da apresentação das ocupações obedece ao critério da contiguidade territorial, sendo a área central o ponto de partida.

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nas menores faixas de renda, com vínculos, diretos ou indiretos, com o movimento social. Foram ainda realizadas entrevistas, com os coordenadores das ocupações e do movimento, com o objetivo de recompor a história de cada uma delas e do Movimento de Luta pela Moradia e caracterizar de forma mais consistente as condições de vida e de moradia dos Sem Teto. Ao auscultá-los, às vezes, encontramos referências históricas e números que não se equivalem, o que resulta do acesso diferenciado a informações ou mesmo das distintas formas de interpretação de um mesmo evento. Procuramos, na transcrição das entrevistas, sem maiores prejuízos formais, preservar o tom coloquial, a autenticidade das falas, cujos recursos típicos nem sempre estão em conformidade com o padrão formal da língua. É preciso registrar, do ponto de vista metodológico, a dificuldade em definir uma amostra que efetivamente fosse representativa do universo pesquisado, em função da variação do número de moradores nas ocupações. O ponto de partida do reconhecimento desse universo foi o cadastro das ocupações realizado por Angela Gordilho, quando esteve à frente da Secretaria de Habitação do Município de Salvador. No período de 2009 a 2010, quando da realização dos trabalhos de campo, identificamos em torno de 5027 famílias, o que totalizou um contingente de, aproximadamente, 21.415 pessoas. Atualmente, esse número é diferente, em função do crescimento do número de moradores em algumas ocupações como também da erradicação de tantas outras, resultado inclusive da transferência de moradores pelo Programa Minha Casa Minha Vida. A seleção dos domicílios pesquisados foi feita por amostra probabilística aleatória simples, sem reposição, com margem de 5% para cima ou para baixo, e os questionários tabulados em banco de dados MsQuery e front-end em Access, com tratamento estatístico gerado a partir do módulo Solver do MS Excel (com dados em formato de planilha Excel versão 2007). Vale destacar que os dados relativos ao número de famílias e de população apresentados na caracterização de cada ocupação são estimados. O tamanho médio da família de cada ocupação é resultado da relação entre o número de famílias e de pessoas que se constituíram em objeto da pesquisa. Esses esclarecimentos são necessários em função da dificuldade em estabelecer a adequada correspondência entre o número de famílias declarado e a situação encontrada quando da realização do trabalho de pesquisa de campo. As entrevistas realizadas com coordenadores das ocupações e lideranças dos movimentos sociais agregam novos elementos à reflexão sobre a complexidade do acesso à moradia nas nossas capitais, sobretudo no que diz respeito à democratização do acesso à terra urbana. A reflexão teórica desenvolvida teve como fundamento autores que, apesar da diversidade de abordagens, lidam com questões relativas ao direito à moradia, à cidade e acesso à justiça, a exemplo de Henri Lefebvre, David Harvey, Neil Smith, Jordi Borja, István Mészarós, Boaventura de Sousa Santos, Mauro Cappeletti, Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Júnior, Francisco de Oliveira, Ermínia Maricato e Ângela Gordilho, dentre outros. Esse Atlas foi resultado de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia — FAPESB, através do Edital Ação Referência no período de 01/12/2008 a 30/04/2011, desenvolvido na Faculdade 2 de Julho - F2J e Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social - CIAGS da Escola de Administração da UFBA. Além disso, agrega pesquisadores do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia IFBA, da Faculdade de Direito e do Curso de Ciências Sociais da UFBA, além de técnicos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio-Ambiente — PMS e da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Especificamente, este projeto é fruto do trabalho de grupos de pesquisa sobre Direito, Gênero e Cidadania e Direitos Humanos, do CNPq. Associam-se a essa iniciativa a coordenação do Curso de Direito da Faculdade 2 de Julho e o Núcleo de Prática Jurídica, que tem por objetivo aprofundar o aprendizado dos estudantes deste Curso através do atendimento da demanda jurídica da população situada nas menores faixas de renda, inclusive as relativas ao direito de morar. Ademais, esse projeto articula as atividades de ensino, pesquisa e extensão nas referidas instituições de ensino e se insere em uma rede de pesquisa qualificada sobre o tema. A experiência de construção dessa pesquisa junto com os Sem Teto em Salvador trouxe resultados teóricos como também uma vivência ímpar para professores, pesquisadores e estudantes. Em primeiro lugar, tivemos a oportunidade de viver a experiência de como a institucionalização de direitos universais, como o direito à moradia — um passo importante na construção sociopolítica da modernidade — é absolutamente insuficiente, quando não estão dadas as condições políticas e institucionais para transformá-las em realidade. Em segundo lugar, o contato com os militantes dos Movimentos de Luta pela Moradia, em suas várias vertentes políticas, a princípio desconfiados e reticentes, descortinou um universo existencial duro, difícil, limítrofe, porém de extraordinária generosidade. Mira, Iraildes e GG, lideranças desses movimentos, que estiveram conosco nessa caminhada, vivenciando de perto as condições de vida nas ocupações, fazem parte da vida de cada um de nós. Esse trabalho não seria possível sem a participação, companheirismo e cumplicidade dos coordenadores das ocupações e das lideranças das várias vertentes políticas dos Movimentos de Luta pela Moradia, particularmente de Idelmário Proença, Pedro Cardoso e Jhones Bastos, dentre tantos outros. Essa experiência de pesquisa nos estimulou a fazer uma reflexão de cunho epistemológico sobre o discurso positivista de neutralidade da ciência. Depois de várias e várias idas e vindas às ocupações, checando dados e entrevistando moradores e lideranças, Ivo Carvalho da Silva, liderança da ocupação Dois Leões, disse a Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

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Roseli Afonso: “esse livro vai ficar bom, esse livro vai ficar bonito, por que ele está sendo feito com amor.” Ele conseguiu traduzir, em poucas palavras, o sentimento que nos mobiliza e inspira na construção desse trabalho. Aprendemos desde cedo que uma pesquisa para ser qualificada como científica precisa estabelecer uma relação de distanciamento com o objeto de pesquisa. Nós nos apaixonamos pelo nosso “objeto de pesquisa” e, mais do que isso, fomos tomados pelo sentido de urgência, pela necessidade de nos inserirmos na luta pela mudança da situação dos moradores das ocupações. Epistemologicamente, afirmamos, convictos, não existir contradição entre nossa mobilização afetiva, pessoal e política diante da realidade dos Sem Teto e a objetividade da pesquisa ora realizada. Partimos do pressuposto de que a relação entre sujeito e objeto do conhecimento é permeada por uma dimensão subjetiva, ideológica, que perpassa todo o processo de produção do conhecimento. A tese da neutralidade positiva é um discurso de poder, cujo objetivo é apresentar como universal aquilo que é particular, socialmente comprometido e historicamente circunscrito. A nossa inserção como pesquisadores é plenamente carregada de significados teóricos e, consequentemente, políticos. Somos sujeitos políticos e como tais tomamos posições acerca da conservação ou transformação da vida social. Situamo-nos, então, no campo da política em seu sentido mais amplo e substantivo — sendo as nossas opções teórica e epistemológica — resultado do modo como concebemos a relação entre conhecimento e interesse, entre teoria e transformação social. Adicionalmente, consideramos que esse trabalho é um bom exemplo de uma relação profícua entre Universidade e sociedade, uma tentativa, bem sucedida de superação de práticas e relações instrumentais e utilitárias, que pouco beneficiam o “objeto da pesquisa”, nesse caso aqui (e sem o risco da retórica ou da demagogia) os verdadeiros sujeitos do conhecimento aqui produzido. Se esse trabalho tem algum mérito é o fato dele ter tentado dar voz aos Sem Teto — estaremos satisfeitos se tivermos alcançado esse objetivo. Reiteramos, mais uma vez aqui, a compreensão de que a política urbana implementada no país, a instituição dos instrumentos de gestão propostos pelo Estatuto da Cidade e incorporados pelos Planos Diretores, com o objetivo, por exemplo, de fazer valer a função social da propriedade, a atual política habitacional, não revertem o padrão periférico de urbanização, consolidado ao longo do período autoritário, exacerbado nos anos de política neoliberal e intocado na última década. Como afirma Ermínia Maricato, de forma esclarecedora, o nó é a terra, o que nos situa no âmago dos processos de produção e reprodução do capital e da radicalização da constituição da cidade como mercadoria (MARICATO, 2011). Adicionalmente, situamo-nos no campo de embate entre o direito positivo e o direito alternativo, particularmente no campo de luta que busca transformar em realidade aquilo que está instituído no texto da lei e de converter em lei o que se constitui em demanda socialmente justa. Reafirmamos, ainda, a necessidade de reinventar, de recolocar em pauta a luta pela reforma ou revolução urbana, inconclusa ou não realizada em seus fundamentos — principalmente no que diz respeito à democratização do acesso à terra e à possibilidade de constituição de um novo padrão societário. Nesse contexto, o direito urbano ou urbanístico, em seu sentido mais estrito, deve contribuir para a construção de uma cidade mais justa, sobretudo no que diz respeito à regulação pública da propriedade privada, na justa distribuição dos custos e benefícios do processo de urbanização e à gestão democrática da cidade. Isso significa que a efetividade do direito à moradia pressupõe a implementação de instrumentos jurídicos que condicionem o direito de propriedade à sua função social. Os Movimentos de Luta pela Moradia, com as suas distintas compreensões e propostas políticas, perpassados por contradições e conflitos, são fruto da condição de extrema exclusão em uma sociedade na qual o acesso à moradia se constitui em um privilégio e não em um direito e são sujeitos sociais capazes de introduzir transformações na agenda política e na produção de direitos. Desse modo, a universalização do acesso à moradia implica no enfrentamento de dois desafios: o primeiro, consiste em viabilizar a inserção qualificada dos excluídos no processo produtivo; o segundo, no combate sistemático à lógica periférica de desenvolvimento urbano. A ruptura com as limitações relativas à implementação da política habitacional em curso, demanda uma crítica profunda e estrutural ao atual modelo de acumulação, às atuais formas de produção de valor — o que concretamente, hoje, implica a reinvenção da política.

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Foto: Roseli Afonso

II - Pasárgada - Direito e Justiça Social O debate travado em torno do exercício de direitos universais, particularmente do direito à cidade, moradia e justiça, é profundamente marcado pelo embate entre o direito positivo e o direito alternativo, ainda que muitos tenham sido os esforços no sentido de construir alternativas a tais paradigmas. Inspirados em Boaventura de Sousa Santos consideramos que a crítica ao direito positivo e a admissão da possibilidade de um direito alternativo nos insere no contexto do pluralismo jurídico, que sustenta a impossibilidade de fecharmos os olhos à existência de outras manifestações normativas exteriores ao direito instituído, ou seja, elaboradas em outras instâncias sociais distintas do Estado, e aponta a necessidade de associar o exercício do direito à noção de justiça social (SANTOS, 2003c). Assim, é preciso refletir de forma crítica sobre o direito que temos e o direito que precisamos ter, a necessidade de conversão da lei em realidade, além do imperativo da ampliação do acesso à justiça. Como afirma José Geraldo de Sousa Junior, o embate entre o direito instituído e os distintos sistemas normativos alternativos situa-nos, propriamente, no âmbito da luta de classes, do fato de que a “troca desigual de juridicidade reflete e reproduz, a nível jurídico, as relações de desigualdade entre as classes cujos interesses se espelham num e noutro direito” (SOUSA JUNIOR, 1983). Referindo-se ao pluralismo jurídico Boaventura de Sousa Santos, afirma: “existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que, no mesmo espaço geopolítico, vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social — neste caso, a habitação”, (SANTOS, 1980, p.1). O contato com o Movimento de Luta pela Moradia reafirma o fato de que o universo da ocupação institui novas ordens jurídicas — configurando a incidência de diversos ordenamentos em um mesmo espaço geopolítico (SANTOS, 1982). A exemplo da reflexão feita por Boaventura de Sousa Santos quando da análise das complexas relações entre o direito “oficial” e aquele que vigora efetivamente em paralelo em Jacarezinho, metaforicamente chamado de Pasárgada, na década de setenta no Rio de Janeiro, o que de fato regula as relações intersubjetivas na ocupação é uma “duplicidade jurídica”, fruto da condição de “ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial.” Em verdade, muitas das “favelas” constituídas ao longo do processo de urbanização das grandes cidades hoje são qualificadas como “bairros populares”, de alguma forma oficialmente reconhecidas e objeto de intervenção urbanística, ainda que em muitas situações a questão fundiária continue a não ser devidamente resolvida. O fato é que a ocupação de hoje vive condições similares e muitas vezes piores do que muitos assentamentos populares de décadas passadas. E é nesse território que se torna possível a reedição do que o autor qualifica como o direito de Pasárgada, que “vigora em paralelo (ou em conflito) com o Figura 1: Regulamento instituído pelo MDMT — Ocupação Ladeira da Praça direito oficial” (SANTOS, 1982, p.2). A condição

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de “ilegalidade” da ocupação (resultado da apropriação legítima de terrenos, e edifícios de terceiros, públicos ou privados, bem como a construção fora de padrões urbanísticos) determina a natureza da relação da ocupação com o Estado e com o conjunto da sociedade, além de transformar o direito oficial em uma ameaça, sobretudo quando a função social da propriedade se subordina ao direito individual e à propriedade privada. Desse modo, deparamo-nos com a construção de um conjunto de mecanismos normativos, constituídos a partir da necessidade de instituição de uma “ordem”, em um universo situado nas “franjas” do sistema, voltado para o equacionamento de conflitos associados à posse da terra e da casa, com a violência decorrente da presença e da ausência do Estado, do tráfico de drogas — que invariavelmente, desencadeia tensões no processo hegemônico de manutenção do (des) equilíbrio das forças que garantem a “coesão social” no tecido e trama que envolvem a luta pelo direito à moradia. Reiterando o que afirma Santos em Pasárgada, trata-se da construção de um direito e de um lugar não imaginários, que batem na nossa porta e clamam pela nossa atenção. Destarte, ao falarmos sobre moradia, cidade e direito estamos, simultaneamente, nos reportando a direitos já incorporados pelo Estado (fruto da luta organizada dos diversos movimentos sociais e assessorias jurídicas que conseguiram incorporar o direito à moradia no ordenamento vigente), como também a um conjunto de demandas que reivindicam a condição de direito, ou seja, as aspirações sociais que reivindicam o direito de se constituírem em direito e o exercício do direito à moradia situa-se nestes dois campos. Recuperamos aqui o debate sobre a concepção hegemônica de direito, fundada em pressupostos de que a produção do direito é monopólio do Estado, que o realiza através de um processo legislativo hermético e pretensamente neutro. Como afirma Joachim Hirsch, efetivamente o Estado se constitui no centro da regulação, mas o faz em nome ou a partir de interesses de classe hegemônicos, constituindo-se portanto no lócus onde se cristalizam relações sociais antagônicas, em um campo no qual as relações de classes se materializam institucionalmente. (HIRSH, 1998). Reportamo-nos, assim, aos embates entre os direitos positivados no ordenamento jurídico, ao direito público e ao direito privado, à luta e ao conflito social e, consequentemente, ao direito forjado nas franjas do sistema, que conforma ações, institui paradigmas e conduz a campos de conhecimento transdisciplinares. Situamo-nos, assim, em campos teóricos e epistemológicos exploratórios, aqui compreendidos como olhares, saberes, percepções e vivências multifacetadas, que diluem fronteiras, reconstroem totalidades e significados — nas dimensões teóricas e práxis social. Nesse sentido, o direito forjado na luta pela moradia, na rua, nos explicita múltiplos significados. Em primeiro lugar, a rua é o lócus onde são travados os embates, a luta pelo direito de ter direitos, contra os processos globais de exclusão; em segundo lugar, a rua é uma alusão, ainda que não muito bem acabada, ao que hodiernamente chamamos de esfera pública, no sentido habermasiano do termo, ou seja, uma rede que torna possível a comunicação, tomada de posição e constituição de opiniões, da vontade política e do interesse coletivo (SOUZA JUNIOR, 1993). Ainda que não tenhamos na realidade local e nacional os requisitos necessários a uma comunicação desimpedida (cidadania ativa, equidade e um Estado de direito em seu sentido pleno), o conceito de esfera pública nos remete a possibilidade e, sobretudo, a necessidade de construção do interesse coletivo e de consensos que levem em conta a alteridade e a diferença (HABERMAS, 1997). Na realidade brasileira, o exercício da democracia implica em ruptura com um modelo de desenvolvimento social e ambientalmente excludente, na construção de uma esfera pública o que pressupõe, necessariamente, a possibilidade de um diálogo qualificado entre os desiguais. Assim, a rua é compreendida como espaço de construção de direitos e de manifestação livre, lócus de embate, de manifestação de conflitos de interesses, que conformam e moldam a vida, o tecido social e a luta de classe. É nesse contexto que consideramos a necessidade de retomada da discussão da complexa relação entre o acesso à moradia, à cidade, ao direito, à justiça social e à democracia — que tem na economia um dos seus pressupostos. Desse modo, a universalização do acesso à moradia requer que se avance, de forma simultânea, na incorporação de novas demandas sociais à condição de norma institucionalizada, como também na transformação em realidade do que já está instituído em lei. Como registra a literatura sobre o tema, numerosas são as iniciativas nos planos nacional e internacional com o objetivo de instituir princípios capazes de orientar a ação dos governos no que diz respeito ao direito à moradia e à cidade (GORDILHO, 2008; MARICATO, 2006). Data de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos da ONU, o estabelecimento do princípio de que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e os serviços sociais considerados como indispensáveis (Declaração Universal dos Direitos Art. 25, §1o). Particularmente no que diz respeito ao direito à moradia, em 1966, a ONU constituiu o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), do qual o Brasil (juntamente com 160 países) é signatário. Esse documento tem força de lei e cria a obrigação, por parte do signatário, de fazer cumprir esse direito. Em seu artigo 11, §1o, este documento reconhece o direito de toda pessoa à moradia adequada, devendo seus signatários se comprometerem a tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito (BRASIL, 2011).

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Hodiernamente, várias são as iniciativas que reafirmam a universalidade desse direito, a exemplo da Primeira Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos (Vancouver em 1976 — que resultou na criação do Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos — Habitat); a Agenda 21 (Rio de Janeiro em 1992, que ressalta a importância da moradia); a Conferência sobre Assentamentos Humanos (Istambul em 1996), que teve como resultado a aprovação da Agenda Habitat, também adotada pelo Brasil. Este documento na sua seção III, item 8, reafirmou o direito à moradia e reiterou o comprometimento da comunidade internacional com a realização completa e progressiva do direito à moradia adequada. Deste modo, os Estados signatários deveriam adotar providências de modo a garantir a posse da terra e o acesso à moradia para todos. No ano de 2000, a Declaração do Milênio incorporou aos objetivos gerais já instituídos pela ONU, os direitos à moradia e ao saneamento adequado e, em 2001, a declaração das Cidades e outros Assentamentos no Novo Milênio (aprovada pela Sessão Especial das Nações Unidas Istambul+5, ocorrida em Nova York) reafirmaram os compromissos anteriormente assumidos no Habitat. A Constituição de 1988, em seus Arts. 2.º incisos I, II, IV e V; 43 a 45, 182, 183 e 225, e o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), retomam os princípios instituídos nos textos internacionais. Nos referidos textos, o direito à moradia é definido como direito a uma habitação digna, de dimensões adequadas, que garanta aos seus moradores privacidade e tranquilidade, bem como o acesso aos locais de trabalho e de lazer, aos equipamentos urbanos e comunitários, ao transporte e aos serviços públicos projetados de acordo com os interesses e as necessidades da população, mediante uma gestão democrática, respeitando o princípio do desenvolvimento sustentável. Tal definição se aproxima do conceito presente no § 60 da Agenda Habitat, qual seja: moradia adequada significa mais do que ter um teto sobre a cabeça. Significa também espaço e privacidade adequados, acessibilidade, segurança pública e da posse da terra, estabilidade e durabilidade estrutural do imóvel, iluminação, calefação, ventilação e infraestrutura básica adequadas, o que significa acesso aos serviços de abastecimento de água regular e de qualidade, aos serviços de esgoto e coleta de lixo. Desse modo, o exercício do direito à moradia implica no acesso ao que a cidade pode proporcionar como satisfatório, ou seja, a moradia digna, a qualidade urbana e ambiental e inserção produtiva. De forma correlata ao direito à moradia, o direito à cidade encontra-se amplamente positivado em vários documentos internacionais e nacionais. Conforme a Carta Mundial do Direito à Cidade, este é definido como o usufruto equitativo das cidades, levando em conta os princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação e à gestão, baseado em usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. Assim, o direito à Cidade é concebido como o conjunto de garantias formado pelas distintas gerações ou dimensões dos direitos: direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também o direito à liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural (Carta Mundial do Direito à Cidade, 2006). Os direitos à cidade e à moradia têm como pressuposto o acesso à justiça, aqui concebido como um dos mais básicos dos direitos humanos, como o requisito de um sistema jurídico que tenha por objetivo a garantia e não apenas a proclamação dos direitos de todos. Desse modo, o acesso à justiça não pode ser confundido com acesso aos tribunais e deve ter como princípio a garantia de que as decisões judiciais efetivamente e indiscriminadamente contemplem os interesses coletivos (CAPPELETTI; GARTH, 1998). Considerando que os princípios que afirmam o direito à moradia digna e à cidade resultam de postulados universalistas, que afirmam a dignidade da pessoa humana, cabe a própria sociedade implementar políticas públicas, de modo a equacionar situações limítrofes como a vivenciada pelos Sem Teto. Boaventura de Sousa Santos, ao discutir os vários obstáculos de natureza social, econômica e cultural para o acesso à moradia, o exercício do direito à cidade e o acesso à Justiça, ressalta que a não concretização de tais direitos acarreta prejuízo a todos os demais — a propósito, vale registrar a rica experiência dos Tribunais Constitucionais na Hungria, África do Sul, Índia, Rússia, Coreia e Colômbia na luta pela defesa dos direitos fundamentais, indo de encontro, às vezes, aos interesses políticos hegemônicos e à lógica do mercado (SANTOS 1989; 2002c). Nesse contexto, vale destacar a experiência e produção teórica do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP) da Universidade de Brasília-UNB, que há mais de duas décadas vem trabalhando com a temática dos direitos humanos e a promoção da dignidade da pessoa humana. Essa experiência, que se estrutura em torno de linhas de pesquisa, nasceu a partir das demandas por novas formas de juridicidade gestadas a partir da efervescência dos movimentos sociais no Brasil nas décadas de setenta e oitenta. É a sociedade civil organizada que, por meio de suas assessorias jurídicas populares e das demandas das comissões de Direitos Humanos, estimula a UNB a produzir uma reflexão crítica sobre a (in) justiça. Como afirma José Geraldo de Sousa Junior, a proposta político-pedagógica do projeto Direito Achado na Rua (voltado para a formação de assessorias jurídicas aos novos sujeitos sociais coletivos) reporta-nos a práticas sociais criadoras de direitos, capazes de estabelecer

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novas categorias jurídicas, de gestar relações sociais nas quais o direito possa realizar-se não apenas como necessidade de regulação mas sobretudo como liberdade, como emancipação (SOUSA JUNIOR, 1993). Desse modo, a reflexão crítica desenvolvida neste momento histórico aponta para a necessidade de constituição de uma outra relação entre o ordenamento jurídico vigente e a realidade social gerando, assim, demandas de construção de propostas contra-hegemônicas, consequentemente, de novos direitos, além da concretização da universalização dos já existentes. São essas necessidades que redesenham as possibilidades de radicalização da ação dos movimentos sociais, de repolitização do cotidiano e da relação com o Estado — o que implica no debate sobre o direito à cidade, sobre a possibilidade de implementação de instrumentos de gestão urbana de cunho democratizante, em contextos profundamente marcados pela lógica capitalista, cujo objeto da acumulação é a própria cidade. Os conceitos centrais que estruturam esse Atlas, que perpassam a prática dos movimentos populares urbanos, dos operadores da política e do direito (em suas várias escalas) são os de direito à moradia e de direito à cidade, aqui compreendidos como o acesso aos serviços de infraestrutura (água potável, energia, saneamento ambiental, transporte e iluminação pública); as condições adequadas de habitabilidade (condições físicas e de salubridade); custo acessível da moradia (gastos com a moradia proporcionais à renda); segurança jurídica da posse e garantia da propriedade da terra e da habitação (proteção contra despejos e deslocamentos forçados); localização adequada (possibilitando a acessibilidade a transporte público, emprego e serviços públicos de consumo coletivo); adequação cultural (que respeite padrões relacionados com usos e costumes dos distintos segmentos sociais) e direito ao trabalho. O direito à moradia é aqui compreendido como uma forma particular de materialização do direito à cidade, que além de contemplar questões relativas ao acesso à moradia e serviços de consumo coletivos referese à função social da propriedade, ao acesso à justiça, a inserção produtiva, ao exercício da cidadania e à gestão democrática da cidade. Recorrendo a Henri Lefebvre afirmamos que “o direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de regresso às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada” (LEFEBVRE, 2006). Isso significa em, nos atuais tempos de flexibilização produtiva, repolitizar a luta pelo direito à moradia e à cidade — sendo os Sem Teto um exemplo, contundente, da necessidade de reinvenção da democracia e da política. Ademais, o direito instituído (historicamente inclinado à defesa da propriedade privada) sem medo da quebra da segurança jurídica, precisa superar o paradigma da igualdade formal e avançar em direção à construção da igualdade substantiva, material, o que implica em aprofundar e transformar em realidade os princípios universalizantes do texto constitucional, particularmente no que diz respeito ao acesso à terra e à moradia, e enfrentar o desafio da construção de direitos coletivos e difusos, de caráter transindividuais, indivisíveis e sem titularidade determinada — o que demanda a superação dos limites instituídos pelo sistema fundado na propriedade especulativa e privada da terra.

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III - Direito à Cidade e à Moradia – Quem é o Sem Teto? Salvador é uma cidade reconhecida pela beleza natural e arquitetônica. É uma cidade acolhedora mas também hostil, rica e contraditoriamente pobre, profundamente desigual. O padrão de desenvolvimento regional gestou uma estrutura social polarizada, com enclaves de riqueza em um mar de pobreza e precariedade. O acesso à renda, aos serviços de consumo coletivo, à terra urbana e a moradia em Salvador estão profundamente marcados pela inserção precária na economia da cidade e de sua região, consequentemente, pela segregação e exclusão socioespacial. As condições de precariedade nas quais vivem os Sem Teto são exemplos das limitações estruturais de universalização do direito à moradia nas cidades da periferia dos sistemas capitalistas, em cidades que, ao se modernizarem, consolidam uma estrutura de classes marcadamente excludente — com profundas consequências em relação ao direito à moradia e à cidade. Os Sem Teto de Salvador são, em sua maioria, filhos dessa cidade. Essa constatação empírica contraria a tese de que os excluídos são constituídos principalmente de migrantes recém-chegados do campo ou de cidades do interior, do processo migratório que despeja na capital, pessoas que não conseguem inserção no mercado de trabalho. Os dados revelam que a exclusão social nas grandes cidades, na última década, em função de mudança do perfil migratório, precisa ser compreendida a partir da própria dinâmica da economia local e regional. Como afirma Mira Nascimento, “os Sem Teto de hoje são os filhos do êxodo”, dos migrantes das décadas de sessenta, setenta e oitenta e que, de forma renitente, construíram Salvador. O fato é que 60,49 % dos Sem Teto são originários da própria cidade do Salvador (Gráfico 1). Dentre os demais, 24,55%, vieram dos mais variados municípios do interior da Bahia, 6,02% particularmente de Feira de Santana e 3,09% do entorno metropolitano — os que declararam ser originários de outros estados, 5,85% vieram de Pernambuco, Sergipe, Alagoas e de São Paulo. Dentre os moradores que vieram de outro município ou estado 81,28 % já residem em Salvador há mais de 5 anos e afirmam ter se deslocado em direção a Salvador em busca de melhores condições de vida. A história dos que vieram de outros estados para Salvador em busca de uma vida melhor é contada por Maria José da Silva, “mulher negra, índia, uma mistura”, liderança do Movimento de Luta pela Moradia. “Sou de Pernambuco. Viemos da zona rural, primeiro para Dias D’Ávila e depois pra Salvador, na ilusão de arranjar emprego. A realidade de Pernambuco é pior do que a da Bahia. Meu pai foi um dos fundadores do Movimento dos Sem Terra. Ele ocupava fazendas de cana de açúcar. Eu ia para os acampamentos dos Sem Terra pra dar aula. Eu andava carregada de livros, fazendo curso para os Sem Terra. Terminei o magistério e fui para os acampamentos dar aula. Quando vim pra Bahia fui pra casa de meu irmão. Casei e com 2 filhos, a gente pagava aluguel. Chegou um momento que a gente não conseguia mais pagar. A dona da casa então disse: ‘Quero minha casa de volta, pois eu preciso passar para alguém que possa pagar’. Começamos, então, a procurar um lugar para ocupar”, relata Maria. Como os dados revelam, os atuais moradores das ocupações são provenientes de bairros populares ou de origem popular, cuja população se situa nas menores faixas de renda, a exemplo de Fazenda Coutos, Paripe, Lobato, Periperi, Ribeira, Sussuarana, Valéria, Massaranduba, Castelo Branco, Liberdade, São Caetano, São Cristóvão, Cosme de Farias, Águas Claras, Boca do Rio, Beiru/Tancredo Neves, Mata Escura, Mares, Calçada, Uruguai, Brotas, Gráfico 1 — Local de Nascimento do Responsável pela Família Comércio e São Marcos. Ao falar-nos de Salvador e da sua inserção na luta pela moradia, Valdizia Freitas reporta-nos aos processos de formação e constituição dos bairros populares de Salvador. Nos anos de 1960 e 1970, os Alagados faziam parte do cenário de uma cidade que se urbanizava de forma acelerada e o fazia de modo profundamente desigual. Como afirma Maria Brandão, a luta pela moradia em Salvador é a luta contra o charco, contra a água. Os Sem Teto de hoje são a versão atualizada dos moradores das incontáveis ocupações da terra e do mar que, desde a década de 1940, lutam por uma moradia em Salvador, a exemplo de Alagados, na Península de Itapagipe, do Corta Braço, no bairro da Liberdade, das várias ocupações ao longo do Subúrbio Ferroviário, dentre tantas Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. outras, que se transformaram em bairros populares,

Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

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lugar de moradia de trabalhadores assalariados e informais, vinculados à construção civil, à prestação de serviços, atividades comerciais e domésticas. Em Salvador, a exemplo do que acontece no conjunto do país, as origens da luta pela moradia remontam à tradição de luta da esquerda brasileira, com a participação de militantes históricos do Partido Comunista Brasileiro, Partido Comunista do Brasil e Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, da Ação Popular, do Trabalho Conjunto de Bairros de Salvador, dentre outros, além da presença marcante e expressiva dos grupos vinculados à Igreja Católica, de intelectuais, orgânicos ou não, de estudantes e do morador dessa cidade, através das suas distintas organizações populares. A grande maioria dos Sem Teto se insere no contexto da ocupação de forma estável e regular, apesar da existência de uma certa “rotatividade”, que varia de ocupação a ocupação. Em torno de 86,99% dos moradores têm, na ocupação atual, a única experiência de residência em ocupação. Parcela mais expressiva dos moradores, 49,26% têm de um a três anos residindo na ocupação, sendo que muitos deles vieram de outras ocupações, o que configura uma situação prolongada de moradia em condições de vida precárias. De uma maneira geral, o que se observa é que a prolongada permanência no território, no lugar, termina conformando e consolidando vínculos, gestando uma sociabilidade a partir da convivência cotidiana com a vizinhança imediata e com o entorno da ocupação (Gráfico 2). Dentre os que declararam ser a atual ocupação a segunda experiência em moradia desse tipo, muitos vieram das ocupações que foram desativadas (Clube Português, Mesbla, Irte) ou que ainda existem (como Tubarão, Lagoa da Paixão e Leste). Isso significa que parcela considerável dos Sem Teto termina por vivenciar, quase que como permanente, uma situação que deveria ter caráter provisório. Ademais, como coloca Pedro Cardoso, inspirado em Milton Santos, a percepção de que a vida na ocupação termina por gestar relações de sociabilidade remete-nos ao conceito de território como relação social — o que se explicita na extensão das relações primárias e familiares para o conjunto da ocupação, como também no fato de que os moradores têm no entorno do seu local de moradia, no território da ocupação a possibilidade de acesso a serviços urbanos, particularmente à saúde, transporte e educação, além do trabalho. Desse modo, os Sem Teto são moradores dos bairros populares, que não conseguem ter acesso, através do mercado, à moradia, que têm dificuldade de arcar com o ônus do aluguel ou garantir esse direito através da autoconstrução — processo através do qual os bairros populares de Salvador foram constituídos ao longo de décadas. A experiência de viver em uma ocupação é relatada de forma muito diferenciada pelos Sem Teto. Muitas são as declarações de que o lugar onde vive é “tranquilo”, “bom de se viver” como também muitas são as afirmações que revelam as dificuldades decorrentes da precariedade do imóvel, da falta de acesso aos serviços de infraestrutura, ainda que muitos afirmem ser vantajoso morar em uma ocupação pelo fato de não precisar pagar pela moradia, água, luz e IPTU. Os moradores lamentam a convivência diária com a violência que atinge, sobretudo jovens, mulheres e negros, violência relacionada e decorrente, contraditoriamente, da ausência, mas também da presença do Estado, manifestas na cotidiana falta de segurança e na violência policial, na ameaça que emana das decisões judiciais que impõem a desocupação do terreno ou do imóvel. A violência se faz presente, ainda, no ambiente familiar e na convivência de mulheres e crianças com o tráfico de drogas, o que as coloca em situações extrema exposição — estando a proteção estatal distante da suas vidas. Ademais, o fato de morar em uma ocupação cria a insólita situação de não ter um endereço, documentos que comprovem a residência, e isso se constitui em um problema sempre que é necessário realizar qualquer atividade que implique em comprovação. Do atendimento em um posto de saúde (o que se contrapõe ao caráter universalizante do SUS) à abertura de uma conta bancária. Desse modo, a exclusão do Sem Gráfico 2 — Tempo de Moradia na Ocupação Teto tem várias matizes: à condição de pobre, associa-se a de raça, de gênero que, por sua vez, confunde-se com o fato de não possuir um lugar na cidade, com a situação de exclusão. Ao Sem Teto é negada a possibilidade de constituição da sua própria identidade — sobretudo quando referida à noção de território. Quando questionados sobre a condição de moradia, antes de morarem na ocupação, 45,37% dos Sem Teto declararam residir em imóvel alugado; 27,21% moravam em casa pertencente à família; 14,36% moravam de favor; 9,38% possuíam casa própria; sendo 0,76%, originalmente, moradores de rua. As 36 ocupações pesquisadas estão localizadas, sobretudo, no centro antigo da cidade, com Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. 16,2% (nos bairros do Centro, Centro Histórico

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Foto: Jacob Bittencourt

Figura 1: Rede Ferroviária — Subúrbio Ferroviário

e Nazaré); ao longo da Cidade Baixa em direção ao Subúrbio Ferroviário com 75,7% (bairros do Comércio — espraiando-se em direção a Lapinha, Brotas, Macaúbas, Calçada, Santa Luzia, Mares, Bonfim, Ribeira, Lobato, Alto do Cabrito, Itacaranha, Periperi, Paripe, Bom Juá, Mata Escura, Pirajá, Valéria, Moradas da Lagoa); e no Miolo da cidade, em torno das Cajazeiras, com 8,1%. Desse modo, as ocupações localizam-se predominantemente no Centro Antigo e no vetor de expansão do Subúrbio Ferroviário, território ocupado pela população situada nas menores faixas de renda (Figura 2 e Quadro 1). A maioria das ocupações, em torno de 50,0%, está situada em terrenos, sobretudo as localizadas nos bairros do Subúrbio Ferroviário e no Miolo de Salvador. Cerca de 39,0%, estão em prédios, 5,5% em galpões e 5,5% podem ser qualificadas como mistas, por associarem a ocupação de terreno e prédio. As ocupações em prédios e galpões estão localizadas, sobretudo na área de ocupação consolidada, infraestruturada, porém degradadas, situadas em imóveis antigos, outrora utilizados como fábricas de confecções, como a Alfred e Toster nos Mares e Bonfim, prédios da administração pública, a exemplo da Secretaria da Fazenda do Município, no Centro, a Escola Nossa Senhora da Penha, na Ribeira e galpões da Rede Ferroviária Federal, na Calçada, em sua maioria (60%), de propriedade pública.

Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

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Mapa: Ednilva Azevedo

Figura 2 — Ocupações do Sem Teto em Salvador

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Quadro 1 — Ocupações dos Sem Teto em Salvador

Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

Ocupação

Coordenador

1. Edifício Lord 2. Ladeira da Praça 3. Ladeira do Prata 4. J.J. Seabra 5. IPAC III 6. IPAC II 7. Guindaste dos Padres 8. Edifício Rajada 9. IPAC I 10. Edifício Matelba 11. Dois Leões 12. Saboaria 13. Galpão da Leste 1 e 2 14. Galpão da Leste 3 15. Alfred - Mares 16. Toster — Ribeira 17. Barreto de Araújo 18. Escola Nossa Senhora da Penha 19. Toster - Lobato 20. Vila Mar 21. Boiadeiro 22. Quilombo de Escada 23. Cidade de Plástico 24. Fábrica de Mamona 25. Tubarão 26. Monte Sagrado 27. Caranguejo 28. Servidão 29. Vila Via Metrô - BR-324 30. Quilombo Paraíso 31. Lagoa da Paixão 32. Via do Bronze 33. Gal Costa 34. Recanto dos Cajueiros 35. Ladeira Cajazeira 36. Vila Nova Esperança

Cirlene e Norma Gilberto (GG) / Dermeval (Tikão) Edileusa / Gilberto (GG) Norma / Dinalva e Gilberto (GG) Sandra / Maura Jorge Maia Zé Carlos Janete Manoel Ivo / Nete / Leninha (in memoriam) Vado, Alaine, Alan Val / Adriana Helena Iraildes / Aidinalva Jhones / Conceição José da Conceição / Nelson Carlos Moura Josete / Malhado Nilton Nice / Alba Mira Ajurimar / Edinha Célia / Teca (in memoriam) Valdizia Elias / Índio (in memoriam) / Luiz Marcelo Valdizia Solidalva / Walter Sena Regineide / Walter Sena Rita / Malhado Foguinho / Graziele Ailton (in memoriam) / Goldivino Faria Marcelo Raimundo / Valnise Tota / Bigode Daí

Grupo Político

Nº Famílias

MNLM MDMT MDMT MDMT MSTB MSTB MSTS MSTS MSTB MSTS MSTB MSTS MSTS MSTS MSTS MSTS MSTS MSTS MSTB Independente MSTB MSTB MSTB MSTS Independente MSTB/Independente Independente MSTS MSTS MSTB MSTB MSTS MSTB MSTB MSTS Independente

126 58 20 18 6 32 30 56 12 30 85 130 94 72 150 150 120 31 100 100 100 400 328 300 200 130 25 45 150 320 910 129 200 82 88 200

Proprietário do Imóvel/Terreno

Endereço

Particular Público (Municipal) Particular Particular Público (Estadual) Público (Estadual) Particular Particular Público (Estadual) Particular Público (Municipal) Particular Público (Federal) Público (Federal) Particular Particular Particular Público (Municipal) Particular Público (Estadual) Público (Estadual) Publico (Estadual) Público (Federal) Particular Particular Particular Público (Federal) Público (Federal) Particular Público (Estadual) Público (Estadual) Público (Estadual) Público (Federal) Público (Estadual) Público (Estadual) Público (Estadual)

Av. Carlos Gomes - Centro Ladeira da Praça, Nº 18 - Centro Histórico Ladeira do Prata, Nº 10 - Nazaré Av.. J. J. Seabra - Saúde Rua do Passo, Nº 46 - Centro Histórico Rua do Passo, Nº 32 — Centro Histórico Rua Guindaste dos Padres - Comércio Rua do Julião - Comércio Ladeira da Soledade, Nº 125 — Soledade, Lapinha Rua Manari Nº 31, Jardim Caiçara - Brotas Rua General Argolo - Largo dos 2 Leões, Macaúbas Beco do Sabão na Avenida Nilo Peçanha - Calçada Rua Luis Maria — Calçada Rua Nilo Peçanha, Nº 01, Baixa do Fiscal - Santa Luzia Av. Fernandes da Cunha - Mares Rua Visconde de Cabo Frio - Bonfim Av. Beira Mar - Bonfim Largo da Ribeira - Ribeira Av. Afrânio Peixoto — São João do Cabrito Av. Afrânio Peixoto — São João do Cabrito Av. Alto do Cabrito - Alto do Cabrito Av. Afrânio Peixoto, Suburbana- Itacaranha Av. Afrânio Peixoto — Periperi Rua Dr. Eduardo Dotto - Paripe Rua Dr. Eduardo Dotto — Paripe Rua do Índio - Paripe Vila Real — São Tomé BR-324 - Bom Juá Vila Via do Metrô, BR-324 — Mata Escura Rua Silvio Araujo (em Periperi), Pirajá Entorno da Lagoa da Paixão - Área do Projeto Village da Lagoa - Valéria Via Bronze, Moradas das Lagoas Av. Gal Costa - São Rafael Rua Vale do Bosque - Mata Escura Rua São Paulo, Cajazeiras VI (Próxima à Estrada do Matadouro) Estrada do Matadouro, Cajazeiras VI (Próxima a área remanescente CONDER)

Tipo Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Prédio Terreno Galpão Galpão Prédio Prédio Prédio/Terreno Prédio Prédio/Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno Terreno

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Tabela 1 — Pessoas de 10 anos ou mais com Rendimento Médio Mensal na RMS Belo Horizonte

Brasília

Porto Alegre

Recife

Rio de Janeiro

Salvador

Sem Teto Salvador

São Paulo

Até 1/2 SM

4,34

2,26

3,43

9,99

2,79

11,93

18,93

2,88

Mais de 1/2 a 1 SM

16,83

9,91

10,42

23,97

12,39

21,90

18,93

7,97

Mais de 1 a 2 SM

34,07

30,39

36,47

27,58

33,97

28,42

3,78

33,92

Mais de 2 a 3 SM

12,01

10,20

15,04

8,55

12,17

7,79

0

14,29

Mais de 3 a 5 SM

10,61

9,91

12,29

6,66

11,93

7,60

0

12,57

Mais de 5 a 10 SM

6,67

11,30

7,77

4,11

7,60

5,05

0

8,27

Mais de 10 a 20 SM

3,15

7,43

2,88

2,16

3,43

2,55

0

3,28

Mais de 20 SM

1,06

4,23

1,14

0,72

1,39

0,87

0

1,09

Sem rendimento

9,54

10,93

7,72

13,65

8,79

12,98

60,33

10,77

Sem declaração

1,71

3,43

2,83

2,61

5,56

0,91

0

4,99

100,00

100,00

100,00

100,00

100,00

100,00

100,00

100,00

Classes de rendimento mensal

Total

Figura 3 — Feira do Rolo — Subúrbio Ferroviário

Figura 4 — Pescador — Baía de Todos os Santos

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Foto: Jacob Bittencourt

Foto: Jacob Bittencourt

Fonte: IBGE/PNAD, 2009 / Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

A situação de exclusão dos Sem Teto se explicita quando comparamos a estrutura de renda dos moradores das ocupações com a dos demais habitantes de Salvador e sua região metropolitana e desta com as demais metrópoles brasileiras. Em torno de 60,33% dos responsáveis pelos domicílios das ocupações, declararam não ter rendimento, estando 37,86% situados na faixa de até um salário mínimo. Quando reportamos essa situação ao padrão de renda de Salvador e sua Região Metropolitana se constata, exatamente, o significado macro regional da pobreza no país — as regiões metropolitanas de Salvador e de Recife são as que apresentam os maiores percentuais de população situadas nas menores faixas de renda enquanto que as RMs situadas no centro-sul do país apresentam situações comparativamente melhores (Tabela 1). Desse modo, os moradores das ocupações estão situados nas menores faixas de renda e são desempregados, aposentados, trabalhadores dos serviços domésticos, vendedores ambulantes, biscateiros, ajudantes da construção civil, catadores de material reciclável, porteiros e vigias, pequenos comerciantes, manicures, cabeleireiros, pintores, marceneiros, eletricistas, mecânicos, garçons, cozinheiros, auxiliares de serviços gerais e do comércio, pescadores, trabalhadores de cargas e descargas de mercadorias, motoristas, trabalhadores artesanais, lavadores e guardadores de carro, professores, motociclistas, fotógrafos, frentistas, agentes comunitários, jornaleiros, baianas de acarajé, técnicos em telecomunicações, vidraceiros, trabalhadores tipográficos, músicos, técnicos em eletricidade e eletrotécnica em sua grande maioria sem vínculo empregatício e acesso a direitos trabalhistas. Dentre essas várias atividades econômicas

Foto: Iraildes Santana

destaca-se a de reciclagem de resíduos sólidos, em geral exercidas em condições extremamente precárias (Figura 5 e 6). Apesar de não dispor de uma política municipal de reciclagem, Salvador, frequentemente, se destaca pelo volume de resíduo reciclado. Esse destaque se deve, exatamente, ao fato de que essa é uma atividade que ocupa parcela considerável dos trabalhadores sem qualificação profissional, situados nas menores faixas de renda. Maria José da Silva, referindo-se ao exercício dessa atividade pondera: “Eu não sou contra a reciclagem, ser catador de lixo, mas eu sou contra a catação, porque isso não é emprego, nem subemprego, essa é uma condição de vida desumana! A reciclagem deveria ser trabalhada nas escolas, nos lares. Deveria ser um hábito, não um trabalho. Isso é escravidão! Você ter que catar lixo pra comprar comida. O governo tem que elevar o nível de educação das pessoas. Eles dizem que tem emprego, só não tem gente qualificada. Ouvi falar em importação de mão de obra. Como assim? O governo não tem capacidade de formar as pessoas, mesmo com toda a política, mais recente, de expansão da educação?”

Foto: Iraildes Santana

Figura 5 — Material Reciclável - Edifício Rajada

Figura 6 — Material Reciclável - Edifício Alfred

Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

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Em sua grande maioria, os Sem Teto são trabalhadores informais, ou seja, autônomos ou empregados sem vínculo empregatício e previdenciário, que exercem atividades em condições precárias. O percentual, pouco expressivo, dos trabalhadores com carteira assinada é de motoristas de ônibus, auxiliares de cozinha, cozinheiras (merendeiras), auxiliares de serviços gerais — funcionários públicos, industriárias, porteiros e seguranças. Como afirma Mira Nascimento “dá pra contar nos dedos”, quem tem carteira assinada. A renda média dos moradores das ocupações é de R$ 426,20 e a renda per capta é de R$ 99,92 (Gráfico 3). Gráfico 3 — Renda Média Mensal por Domicílio Segundo Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

As ocupações que apresentam menor renda média por domicílio são: Cidade de Plástico e Quilombo Paraíso. As ocupações de Servidão/Bom Juá, Vila Nova Esperança e Toster da Ribeira são as que, relativamente, apresentam os maiores rendimentos médios. A análise da composição dessa renda indica uma participação expressiva do auxílio proveniente dos programas de assistência social, a exemplo da bolsa-auxílio no total da renda auferida pelo conjunto dos moradores das ocupações. Estão nas ocupações de Monte Sagrado, Quilombo de Escada, Cidade de Plástico e Quilombo Paraíso os maiores percentuais de participação da Bolsa Família na composição da renda familiar (Gráfico 4). Gráfico 4 — Renda Média por Domicílio Segundo Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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De uma maneira geral, observamos que a composição da renda das ocupações indica uma participação expressiva do auxílio proveniente dos programas de assistência social do governo federal. Os dados de renda dos moradores das ocupações se refletem na escolaridade, nas condições do imóvel e no acesso aos serviços de consumo coletivo. Os dados relativos à escolaridade dos Sem Teto indicam que 28,35% têm o primeiro ciclo fundamental incompleto; 26,37% têm o segundo ciclo do fundamental incompleto e 12,40% têm o ensino médio completo. Vale destacar o percentual de 6,05% dos que nunca estudaram (Gráfico 5). Um dos principais motivos alegados para o fato de não ter continuado os estudos é a Gráfico 5 - População Residente nas Ocupações Segundo Escolaridade necessidade de trabalhar ou a falta de oportunidade — dificuldade de acesso à escola. Muitos dos chefes de família não concluíram os estudos e não têm perspectiva de fazê-lo — não tendo acesso a programas de governo relacionados à educação. Dentre os moradores das ocupações que estudam, apenas 16,55% declararam ter acesso a programas como Projovem, Prouni e Trilha. Maria José da Silva, moradora de ocupação e liderança do Movimento Nacional de Luta pela Moradia — MNLM, ressalta a necessidade de realização de programas educacionais capazes de reverter à atual situação de exclusão. Apesar da ampliação do número de vagas na educação “quem pode ter uma educação boa hoje é o rico. É preciso que haja uma reparação mas isso tem que ser feito pela base. Não adianta tentar reparar agora que eu tenho 40 anos e não consigo mais entrar no mercado de trabalho. Tem que ser pela base. Não adianta apenas ser Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Deinteligente. Tem que ter formação técnica. Se senvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. o Estado tivesse investido em mim eu estaria no mercado de trabalho. Fiz magistério nível médio e não tenho como passar no vestibular de uma universidade pública. Não cursei nas escolas privadas por questões financeiras. Hoje está mais fácil mas há algum tempo atrás não! O governo tem que reparar investindo nos primeiros anos, se isso acontecesse não teria mais bandido e traficante. Os que eu conheço têm, no máximo, até a quarta série. Na verdade, essa é uma situação muito difícil de ser resolvida. Se o capitalismo não fosse tão desigual! Mas no capitalismo é assim: se você tem, eu não tenho.” Gráfico 6 — Tipologia do Imóvel A análise da tipologia dos imóveis nas ocupações revela o predomínio do padrão construtivo qualificado como misto, ou seja, 42,44% dos imóveis têm paredes externas de madeira, papelão, lona, plástico e mesmo bloco (Gráfico 6). Em seguida, aparecem os imóveis de madeira, com 25,42%; de bloco com 24,07% e lona e plástico com 5,09%.

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

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Foto: Iraildes Santana

Gráfico 7 — Tipologia do Imóvel segundo Tipo da Ocupação

O percentual, comparativamente alto, de domicílios qualificados como de bloco, resulta da sua localização em prédios ou galpões e do fato dos moradores aproveitarem a estrutura dos imóveis originais. A ocupação da Toster, no bairro da Ribeira, é um típico exemplo dessa situação. É preciso registrar que no interior dos prédios ou casas os arranjos são múltiplos. A análise da tipologia do imóvel por tipo de ocupação (se terreno, prédio, galpão ou prédioterreno) revela o peso dos arranjos mistos nas ocupações situadas em galpões, terrenos e prédio-terreno, enquanto nas situadas em prédios predomina o uso de blocos (Gráfico 7). A maioria dos imóveis (51,54%) tem apenas um cômodo, sendo a maior Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. incidência desse tipo de imóvel nas ocupações situadas em galpão, o que configura uma situação de uso múltiplo que compromete, inclusive, o convívio do grupo familiar. Em relação ao tipo de uso que é dado ao imóvel, vale destacar a ampla predominância de uso residencial, em 84,82% dos imóveis existentes, mas também a existência de pequenos comércios, em especial de gêneros alimentícios e de uso doméstico, atividades que se constituem em fonte de renda para os moradores. De maneira geral, o acesso à água, luz e esgotamento sanitário se faz de forma informal e indireta, através de ligação alternativa, sendo o acesso a tais serviços nas ocupações localizadas em prédios, mais precário e difícil do que nas ocupações localizadas em terreno ou galpão. A situação da ocupação da Alfred ilustra as dificuldades adicionais que as ocupações enfrentam para ter acesso à água. Na Alfred existem três pontos de água: no térreo, no primeiro e no terceiro andar. Os moradores do terceiro ao sétimo andar descem para os referidos andares para se abastecerem com vasilhames. Tem-se o registro de moradores que conseguem canalizar a água até o interior do domicílio, existindo sempre, sérios problemas de intermitência no abastecimento. Essa situação se reproduz em várias outras ocupações, a exemplo do Edifício Lord e Rajada, no qual as pessoas garantem o acesso à água através do armazenamento em vasilhames plásticos, o que traz sérios problemas de comprometimento da qualidade da água consumida (Figura 7). A situação de acesso à água e à luz dos moradores das ocupações localizadas em galpão e em terreno é relativamente menos problemática por favorecerem a realização de ligações dos imóveis à rede geral. A situação das ocupações em relação ao acesso ao esgotamento sanitário é particularmente difícil em todas as ocupações. Como relata Iraildes Santana, durante muito tempo os moradores da Alfred Figura 7 — Armazenamento de Água - Edifício Rajada (Comércio) reivindicaram a ligação da rede existente no prédio (em condições precárias) à rede de esgoto do Bahia Azul. O pedido foi negado com o argumento de que o prédio estava inativo, sem direito a serviço de infraestrutura, água, energia e esgotamento sanitário. Quilombo de Escada, no Subúrbio Ferroviário, apresenta uma situação algo singular. Uma rede de coleta de esgoto, que atravessa o terreno da ocupação, foi implantada em 2011 com o objetivo de canalizar as águas servidas que atingem uma propriedade da Igreja

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Foto: Roseli Afonso

Foto: Bete Santos

Católica, devidamente cercada, localizada em terreno lindeiro à ocupação. A população não tem acesso a esse serviço e convive com o esgoto à sua porta (Figura 8). Como informam os moradores, a primeira providência que se toma quando da ocupação de uma área é a instalação de um ponto de água e de luz e essa engenharia apresenta dificuldades distintas em se tratando de prédios, terrenos e galpões (Gráfico 8). A energia é o serviço ao qual os moradores têm mais acesso. São frequentes os relatos de ocorrência de situações de risco de incêndio em função das condições precárias das instalações elétricas e da própria atividade de instalação da rede nas ocupações, realizada pelos próprios moradores - a exemplo do ocorrido na ocupação Lagoa da Paixão onde três moradores morreram quando da instalação do serviço de energia. A natureza estratificada do acesso aos serviços básicos se revela mais uma vez no relato de Valdizia Freitas quando ela se reporta ao programa Luz para Todos. “Todos quem?” Nós aqui estamos no escuro, a Suburbana está trocando os postes... Estão botando luz onde já tem luz. Já fizemos um abaixo assinado pedindo luz pra aqui... O projeto da energia já está pronto, a COELBA já pediu autorização da SUCOM e nós estamos esperando...” Em relação ao acesso ao transporte coletivo a situação é similar. “Você quer ver o que é o ônibus de Tubarão é só você ir até a Estação da Lapa às seis horas da tarde... Depois que a gente sai dos nossos empregos, mortos de cansados, a gente pega uma fila de quase duas horas... Só temos um ônibus aqui em Tubarão. Em torno de 80% das sessões eleitorais são do povo de baixa renda e é aqui no Subúrbio onde está a maior parte da votação, do eleitorado da cidade — 60% do eleitorado estão na Suburbana e Cajazeiras. Cadê os benefícios? Cadê o IPTU? Deveria ser utilizado onde ele é arrecadado, mas investem lá, no centro da cidade... Está chegando a Copa do Mundo, estão restaurando lá, e aqui?” Figura 8 — Armazenamento Quando se analisa o acesso às condições de infraestrutura de Água — Ladeira da Praça domiciliar, a exemplo da existência de cozinha, lavanderia,

Figura 9 — Rede de Esgoto Sanitário Quilombo de Escada

Gráfico 8 — Acesso a Serviço de Iluminação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

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Gráfico 9 — Condições do Domicilio e Acesso a Serviços de Consumo Coletivo

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

sanitário no imóvel e coleta regular de lixo, de uma maneira geral, observa-se uma grande precariedade, sendo a situação dos moradores de ocupações em terreno e prédio-terreno, relativamente piores. Particularmente, em relação às ocupações em prédios, destaca-se a dificuldade de acesso a água como demonstram os depoimentos dos moradores e lideranças do Edifício Alfred, nos Mares, e do Edifício Lord, na Rua Carlos Gomes (Gráfico 9). Vale aqui destacar também os que declararam não ter sanitário no imóvel e que recorrem ao balão de fezes (descarte pelo arremesso dos excrementos em saco plástico) como forma de descarte. Quando se analisa de forma mais detida às condições de moradia no interior das ocupações, constata-se o dado preocupante de que 48,02% dos domicílios não possuem cozinha e entre os que declararam ter cozinha, 21,14% não têm um ponto de água, sendo essa situação de precariedade relativamente mais acentuada nas ocupações localizadas em primeiro lugar em prédio, em seguida terreno/galpão, galpão e em seguida em terreno (Gráfico 10). O acesso aos serviços de coleta de lixo é também diferenciado segundo a situação da ocupação. Àquelas situadas em prédios e galpões, por estarem localizadas em área urbana mais consolidada têm um acesso mais

Gráfico 10 — Existência de Cozinha e Acesso a Ponto de Água

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

regular ao serviço de coleta, enquanto as que se encontram em terrenos localizados na área urbana aonde o serviço não chega, têm o acesso mais precário. Essa situação dos moradores das ocupações contrasta de forma gritante com a realidade da grande maioria dos moradores da cidade do Salvador e sua região metropolitana. Segundo dados da PNAD de 2009, o percentual dos domicílios particulares permanentes ligados à rede de esgotamento sanitário em Salvador e sua região metropolitana é de 80,66%, superior à de Recife, com 39,41% e inferior à de São Paulo que é de 85,57%. Em relação ao serviço de abastecimento de água, os dados são melhores ao indicar que 97,27% dos domicílios particulares permanentes

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de Salvador e sua RMS têm acesso ao serviço de abastecimento de água, com canalização interna, dados que se aproximam da realidade de São Paulo com 97,92%. É verdade que esses números não revelam a realidade dos domicílios que não são considerados como permanentes ou que, ainda que sejam construídos de alvenaria, apresentam condições de insalubridade e têm um acesso restrito ou precário ao serviço de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. É preciso lembrar que a existência de um ponto de água no domicílio não significa acesso regular à água, como também a existência de rede de saneamento na porta de casa não significa que o domicílio tenha acesso ao serviço, uma vez que a ligação do imóvel à rede implica sempre em custo adicional na conta de água e, em muitas situações, o morador não tem condições de arcar com esse custo adicional — ademais, a instalação dos referidos serviços implicaria na legitimação da ocupação e do movimento. O fato é que em Salvador parcela considerável dos domicílios é considerada como “informal”, ou seja, não atendem aos requisitos mínimos em termos de padrões construtivos e não têm acesso regular aos serviços públicos considerados como básicos. A vida em tais condições sanitárias traz vários problemas de saúde. Além da incidência de doenças, o acesso à assistência médica por parte dos moradores das ocupações é bastante restrito. Vale registrar a frequência com que ocorrem doenças relacionadas com a falta de esgotamento sanitário e que atinge sobretudo crianças, a exemplo da diarreia e verminose. Esse quadro está diretamente relacionado às condições sanitárias, à ausência dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, sendo uma constante a convivência com o esgoto e o lixo. Em torno de 3,09% dos moradores registraram a ocorrência de morte na família. As principais causas de morte nas ocupações se enquadram genericamente no que se qualifica como “causas externas”, ou seja, a violência relacionada, sobretudo, com a polícia e com o tráfico de drogas. Essa violência atinge, sobretudo, homens, jovens e negros. Em seguida aparecem as doenças cardíacas, câncer, diabetes e doenças respiratórias (Gráfico 11). Especificamente, quando questionados sobre a existência de morte materna relacionada com Gráfico 11 — Causa de Morte na Família o aborto, em torno de 6,18% responderam de modo afirmativo. Considerando a dificuldade de obtenção desse tipo de registro, que deve ser efetivamente mais alto constata-se, mais uma vez, a gravidade da problemática do aborto, que expõe a mulher a uma situação de extremo risco, particularmente a situada nas menores faixas de renda. Em relação ao acesso aos serviços de saúde, em torno de 25,53% dos moradores registram o não atendimento quando, em algum momento, tentaram usar o serviço público de saúde. O não acesso está relacionado com a inexistência de médicos e enfermeiras, mas também à recusa do atendimento. Nesse caso particular é preciso registrar as dificuldades adicionais Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Deque os moradores das ocupações têm em senvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. função da recusa de muitos dos postos de saúde em atendê-los sob a alegação de falta de documento ou mesmo de um endereço fixo. De forma adicional, 40,92% dos moradores declararam estarem sujeitos a situações de risco, particularmente de incêndio, deslizamento e alagamento. O incêndio ocorrido em 2011 na ocupação do Quilombo de Escada atesta essa afirmação. Em poucos minutos 60 barracos de madeira, com todos os pertences dos moradores foram reduzidos a pó. Como a foto indica, em alguns poucos minutos se vão anos de labuta, pertences, a própria identidade dos moradores. Outro aspecto relevante é a falta de assistência, particularmente à criança e ao adolescente. O depoimento de Valdizia Freitas é ilustrativo: “Nós temos um número muito grande de crianças e de adolescentes aqui. Foi por isso que eu fundei um projeto cultural e esportivo dos Filhos do Quilombo. Esse projeto contempla 200 crianças. As crianças saem da escola e não têm pra onde ir. As mães não têm condições de pagar um reforço escolar, falta aula nas escolas todos os dias, principalmente nas municipais. O tráfico de drogas é um problema. Se essas crianças não têm pra onde ir, eles vão “fazer o quê? Servir de quê”? De baleiros... A gente precisa cuidar de nossas crianças. Jovens são presos porque roubam um pacote de bolacha, depois que eles saem de lá, o que acontece com um menino desse? Ele aparece na mídia: ladrão! Ficham a carteira dele. Ele vai achar emprego onde? Isso é que Direito à Cidade e à Moradia - Quem é o Sem Teto?

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Foto: Bete Santos Foto: Jacob Bittencourt

Figura 10 — Incêndio no Quilombo de Escada

é cidadania? Isso é segurança? A carteira dele já foi manchada. Quando precisar apresentar um documento vai tá lá: ladrão. Ladrão de um pacote de bolacha.” A convivência de crianças e adolescentes com o tráfico é um elemento de grande preocupação no cotidiano das ocupações. Segundo depoimento de uma moradora: “imagine o que é você criar um filho em uma ocupação, convivendo com o tráfico, sendo abordado e seduzido o tempo todo pelos traficantes! Os meninos são seduzidos pelo dinheiro, eles querem celular, tênis bom, eles são vaidosos. Se todo mundo tem, porque eu não posso ter? Se você tem uma casa boa, um carro, por que eu não? Os que estão no tráfico aprenderam com outros traficantes. Foram assassinados aqui dois meninos de 17 e 18 anos. A galera que está surgindo hoje é diferente da nossa geração, Figura 11: Infância — Vila Mar que foi criada na cultura do medo. Antes sua mãe ensinava com o chicote, com a cinta. Fez errado: pau! Hoje não, os meninos querem e pronto! A própria relação com a vida e com a morte, hoje, é diferente. Eu dificilmente seria capaz de ferir uma pessoa, mesmo em legitima defesa. Não condiz com minha educação. Hoje não se tem a noção de que não se pode ferir o outro. O que tá faltando não é religião, falta ética, falta formação moral.” Quando perguntados sobre a raça, 45,87% se declaram e se reconhecem como negros. Esse dado vai ao encontro da constatação de muitas das lideranças do Movimento dos Sem Teto quando afirmam que os Sem Teto são a lídima expressão da exclusão racial em Salvador e também do fato de que as pessoas se reconhecem como negros. Quando questionados sobre a condição de excluído ou discriminado, por conta da raça ou cor, a maioria (78,15%) declara nunca ter sido objeto de discriminação, percentual que não reflete a fala de muitos moradores e lideranças sobre a estreita relação entre raça, discriminação e exclusão. Vale registrar o peso dos que se declaram católicos (42,22%) e, sobretudo, os que se declaram evangélicos (30,08%), os que não têm religião (12,20%) e os adeptos do candomblé (1,46%). No conjunto, dados que não revelam as múltiplas possibilidades de associação de práticas religiosas de diferentes matizes. Merece destaque os dados relativos às declarações dos que se afirmam evangélicos, certamente resultado do crescimento dessa opção religiosa no seio das camadas populares (Gráfico 12).

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Esse quadro retrata a geopolítica da exGráfico 12 — Opção Religiosa clusão social em Salvador, ou seja, o acesso diferenciado da população aos bens e serviços de consumo coletivo, particularmente dos que se inserem no sistema produtivo e mercado de consumo de forma precária e que não foram alcançados, ou objeto da política pública ao longo do processo de urbanização regional e nacional. A importância da garantia do direito à moradia, de acesso ao imóvel pode ser atestada quando se questiona aos moradores das ocupações sobre a preferência em relação ao bairro que gostariam de morar. Em geral, os bairros indicados são os da circunvizinhança, mas o que chama a atenção é a declaração Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de de que não importa o bairro, o que de fato tem Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. importância é o acesso à casa própria. Essa declaração deve ser devidamente ponderada uma vez que a proximidade do imóvel do local de trabalho tem uma relevância significativa inclusive em relação à permanência do morador na nova residência. Uma vez que parcela considerável dos moradores das ocupações desenvolve atividades no mercado informal, a proximidade dos locais que se constituem em fonte de renda termina por ser um elemento decisivo — sobretudo se isso implica em não arcar com o custo do transporte. Vale destacar que Salvador é, dentre as capitais brasileiras, uma das que apresenta um dos maiores índices de deslocamento de “modo a pé”, e isso resulta da dificuldade do morador pagar pelo transporte urbano. Muitas são as ponderações dos moradores sobre o fato de estarem sendo transferidos para bairros distantes da ocupação principalmente pelo fato da mesma possibilitar o acesso a pé ao trabalho e à escola. Tem sido digno de registro a preocupação de muitos dos moradores sobre a capacidade de pagarem a mensalidade da casa como também a taxa pelo uso dos serviços urbanos — essa preocupação resulta da condição de desemprego e também da dificuldade de continuar a desenvolver a atividade informal em função da localização dos conjuntos habitacionais para onde estão sendo transferidos. A análise do acesso aos bens de consumo por parte dos moradores das ocupações sugere uma situação um tanto inusitada. Eles não têm acesso a bens como um vaso sanitário, mas têm em casa, um aparelho de televisão e celular. Quando questionados sobre a disponibilidade e o acesso aos serviços e equipamentos como áreas de lazer como praças, praias, cinema, teatro, museus, saúde, educação e transporte, eles majoritariamente declararam que esses equipamentos existem de forma satisfatória na cidade, apesar de não terem acesso aos mesmos. A análise dos dados relativos às atividades de lazer desenvolvidas pelos moradores das ocupações revela o significado que a praia tem na vida dos moradores de Salvador, sendo essa alternativa de lazer Gráfico 13 — Satisfação e Acesso a Equipamento e Serviço Público referida por 80% dos moradores. Apesar de declararem ter acesso ao serviço de saúde e ao transporte público, eles se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados. A educação é um dos índices de maior acesso e satisfação. Esses dados sugerem o quanto o que qualificamos como direito à cidade, aqui compreendido como o acesso pelo cidadão ao que a vida urbana pode oferecer, pode ser limitado pela sua capacidade ou possibilidade de pagamento (Gráfico 13). De uma forma geral, o acesso aos serviços de infraestrutura urbana e de consumo coletivo nas ocupações é precário e limitado e essa situação precisa ser equacionada nos conjuntos habitacionais para onde estão sendo transferidos. Essa necessidade se explicita na seguinte declaração de uma moradora: “o conjunto que fica em Lauro de Freitas, próximo ao shopping, Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. não tem um posto policial.” E mais adiante

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arremata: “não é só dar a casa e pronto, é necessário que o novo bairro tenha os mesmos equipamentos públicos dos demais logradouros — transporte, iluminação, segurança, enfim, é vital que as pessoas que habitam nesses locais, efetivamente pertençam à cidade e desfrutem de forma igualitária de tudo o que ela tem de bom. O que estamos discutindo é algo muito maior do que o que se convencionou chamar de segurança pública pura e simples, nós queremos ter acesso e direito à cidade, em sua totalidade.” Em síntese, poder-se-ia afirmar que o não direito à moradia e também ao trabalho se constituem em traços marcantes dos moradores das ocupações, visto que, esses moradores são trabalhadores informais autônomos que estão situados, principalmente, nas menores faixas de renda e, em decorrência disso, não dispõem das condições mínimas necessárias para garantir a sua subsistência. O município de Salvador, apenas episodicamente, teve uma política pública de habitação para os seus moradores que não conseguiam ter acesso à moradia através do mercado formal — fato responsável pela geração do expressivo déficit habitacional e pela produção de várias cidades: a primeira, construída de acordo com os paramentos instituídos pela legislação urbanística; a segunda, informal, resultado da labuta cotidiana dos moradores situados nas menores faixas de renda, forjada pela autoconstrução e, a terceira, por aqueles que não têm onde morar — os Sem Teto.

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Foto: Gilberto Cruz (GG)

IV - A Luta pelo Direito à Cidade e à Moradia Falar no Movimento de Luta pela Moradia em Salvador, na última década, significa reportar-se a um conjunto de grupos e lideranças, de várias matrizes políticas, forjados ao longo do processo de luta contra a ditadura militar e do recente processo de redemocratização, particularmente da luta pela reforma urbana. A exemplo do que acontece com o conjunto do movimento social, existem diversas formas de conceber a problemática e o direito à moradia e à cidade e distintas são as estratégias políticas forjadas no cotidiano dessa luta. Desse modo, a ideia de que as várias iniciativas populares de ocupação de imóveis e terras na cidade pudessem ser genericamente identificadas por uma sigla, rapidamente se desfez no primeiro contato com o movimento de luta pela moradia. Nesse sentido, as diversas formas de pensar o direito à moradia reportam-nos ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM); Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB); Movimento dos Sem Teto de Salvador (MSTS); Movimento de Defesa da Moradia e Trabalho (MDMT); Associação de Moradores de Tubarão; Central dos Movimentos Populares (CMP); Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM); União Nacional por Moradia Popular (UNMP); Frente de Luta por Moradia Popular (FLM) e vários grupos que se identificam como politicamente independentes, grupos políticos que organizam e estruturam em várias escalas e níveis de poder. Significa ainda falar de lideranças como Idelmário, Pedro, Jhones, Gilberto (GG), Valdizia, Walter Sena, Rita, Ana Vaneska, Maria José, Mira, Iraildes, Foguinho, Tikão, Antonisia, Cirlene, Edileusa, Norma, Sandra, Maura, Jorge, Jose Maia, Zé Carlos, Janete, Manoel, Ivo, Leninha (in memoriam), Vado, Elaine, Alaine, Alan, Adriana, Maria Helena, Aidinalva, Conceição, José da Conceição, Nelson, Walney (Maõzinha) (in memoriam), Baiano, Carlos, Malhado, Joel, Josete, Nilton, Nice, Alba, Ajurimar, Célia, Elias, Índio (in memoriam), Carla, Bira, Zezito, Gordo, Graziele, Jorge Sacramento (in memoriam) Ailton (in memoriam), Marcelo, Raimundo, Valnise, Edson (Bigode), Amaíldes (Tota), Antonio Marcos Proença, Antonio Rosalino, Daí, Edinha, Cris, Celinha, Rodrigues, Cida, Ninha (in memoriam), Carlos, João Dantas, Célia, Cristina, Denise, Edna, Elisangela, Kojak, João Gomes; João Pinheiro, Joel, Silvanise, Silvia Maria (in memoriam), Valdir Almeida, Jorge Sacramento (in memoriam), Jocélia, José Pedreira, Lúcia, Juarez Monteiro Jupiraci Borges, Leda (in memoriam), Nete, Luciana, Maria das Graças, Erisvaldo (Val), Marilúcia, Marlene, Moisés (in memoriam), Regina Rasta, Carlos Alberto, Renato Moura (in memoriam) Rosilene Araújo - Teca (in memoriam), Silvana França, Josias Mota, Solon Mári, Joelma, Neremere, Marli Carrara, Sérgio Bulcão, Raimundo, Anísio, Rosângela, Agnaldo (Santinho), Maria de São Pedro, Ivonete e João Pereira, dentre tantas outras lideranças, muitas anônimas e que não foram alcançadas por esse trabalho. Coordenadores, ex-coordenadores e lideranças com inserções e perfis diferenciados no contexto do movimento social, que têm concepções, práticas, estratégias e táticas de luta em muito distintas. A luta pela moradia é histórica e muitas são as possibilidades de recorte histórico, de escolha de um ponto de partida... Reportando-nos a história mais recente, particularmente à primeira metade do século passado, poderíamos começar falando da luta tinhosa dos moradores de Alagados, do aterro do mar, com lixo, que resultou na construção de terra urbana, como também aos processos de ocupação coletiva da terra, a exemplo de Corta-Braço, situada no bairro da Liberdade, considerada como exemplar dos conflitos que envolvem proprietários, Estado e ocupantes e dos incontáveis exemplos de ocupação como Bico-de-Ferro, Rocinha dos Marinheiros, Calabar, Péla Porco, Malvinas, que se constituem em lídima expressão do padrão segregador e excludente do processo de urbanização de Salvador (GORDILHO, 2008). Entretanto, as origens dos Movimentos de Luta pela Moradia, mais recentes, reportam-nos aos anos de 1980, quando começaram a surgir e consolidarem-se as primeiras Figura 1 — Movimento de Luta pela Moradia associações de moradores que tinham como motivação de

A Luta pelo Direito à Cidade e à Moradia

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luta o acesso à moradia nas capitais brasileiras e, particularmente, em Salvador. O país vivia sob o regime militar e as associações de moradores eram — em parte — trincheiras de resistência contra a ditadura, onde militavam integrantes de organizações e partidos políticos das mais distintas matrizes políticas, da esquerda mais radical às forças genericamente qualificadas como democráticas. Em Salvador, contava-se ainda com a ação e assessoria qualificada e politizada de entidades como as CEBs — Comunidades Eclesiais de Base, a CJP — Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador, o CEAS — Centro de Estudos e Ação Social, o IAB — Instituto dos Arquitetos da Bahia, o Trabalho Conjunto de Bairros de Salvador, além de várias entidades, que integravam a luta contra o regime autoritário, pela melhoria da qualidade de vida nas grandes cidades. A constituição da FABS — Federação das Associações de Bairros de Salvador, em 1979, entidade que agregava associações comunitárias, cuja demanda estava associada à luta pela melhoria da qualidade de vida e o movimento de luta contra a ditadura, inclusive de cunho socialista, foi um marco importante na história da luta pela moradia. Na década de 1980, a FABS, com extraordinário crescimento, chegou a ter 200 associações filiadas (GARCIA, 2002). Em 1983, como dissidência da FABS, surgiu o MDF — Movimento de Defesa dos Favelados. O movimento era formado, sobretudo, pelas associações de moradores do Calabar e de Novos Alagados e teve atuação destacada nos quatro primeiros anos, disputando base social com a FABS. A partir de 1988, o MDF entrou em crise. O embate se agudizou e a Associação do Calabar se retirou do MDF e a disputa interna terminou por enfraquecer o movimento. Entre 1995 e 1997, desarticulado, o MDF chegou ao fim. A FABS permanece até os dias atuais, porém sem a expressão que tinha na década de oitenta. No começo da última década, começam a ressurgir, em diversos estados, ocupações de Sem Teto, ganhado destaque nacional a ocupação de um terreno da Volkswagen em São Paulo, em 2002. Em Pernambuco, os Sem Teto também se organizam. Assistimos, nesse momento, a agudização de conflitos e tensões gerados pelo modelo de desenvolvimento historicamente excludente e por uma década de políticas liberalizantes — pela ausência de políticas que contemplassem os segmentos sociais excluídos. Na Bahia, o grupo político hegemônico liderado pelo então senador Antônio Carlos Magalhães, que demonstrou uma extraordinária capacidade de sobrevivência política, começou a apresentar fissuras e a perder poderio político. Ainda nesse mesmo ano, estudantes secundaristas fizeram uma grande mobilização estudantil contra o aumento das passagens de ônibus de Salvador, conhecida como Revolta do Buzu, com repercussão nacional. No ano anterior, 2001, as polícias civil e militar da Bahia realizaram uma mobilização que culminou numa greve das corporações que durou quase um mês. Essas mobilizações atingiram as forças políticas lideradas por Antônio Carlos Magalhães, que controlava as máquinas do governo estadual e municipal. Salvador, nesse período, é apontada como campeã nacional em desemprego. O parque industrial baiano sofre com a reestruturação produtiva e o Centro Industrial de Aratu chega à insolvência. É nesse contexto que se constituiu, em julho de 2003, o Movimento dos Sem Teto de Salvador, fato histórico e político que ofereceu uma nova dimensão ao movimento de luta pela moradia na cidade. Com grande capacidade de mobilização, o MSTS (assim denominado inicialmente) ocupou prédios e terrenos ociosos e sem função social, numa tática de enfrentamento, de busca de visibilidade social e de enfretamento com o Estado. Quando um grupo de pessoas ocupou um terreno na Estrada Velha do Aeroporto, bairro de Mussurunga, na “periferia” da cidade, logo a repressão se fez presente, com a Polícia Militar efetuando diversas ações na ocupação. Os ocupantes resistiram e nos dias seguintes, cerca de 300 pessoas criaram o Movimento dos Sem Teto de Salvador (MSTS). Foi nesse momento que também se formou o Movimento 2 de Julho, que hoje se articula com a União de Moradia Popular e a Central de Movimentos Populares e que perde expressão no conjunto do movimento ao voltar-se para o cadastramento das famílias em programas estatais, estando muitos dos seus integrantes instalados em conjuntos habitacionais. O primeiro enfrentamento do MSTS se deu contra a Prefeitura de Salvador, que reivindicava para si a posse do terreno ocupado na Estrada Velha do Aeroporto. O Movimento dos Sem Teto na Bahia, em Salvador, começou em Mussurunga afirma Jhones Bastos. “Eu morava com minha avó, duas tias e quatro primos, dividíamos um espaço pequeno com muita gente dentro de casa. Sempre tivemos problemas e eu senti a necessidade de procurar o meu canto. Ai eu comecei a fazer uma pesquisa no bairro de Mussurunga, onde eu morava — passei 23 anos morando em Mussurunga — encontrei uma casa abandonada no Km 14, a última casa do lado direito em Mussurunga. Me juntei com o pessoal da Igreja Católica — eu fazia parte do grupo de jovens — e chamei esse pessoal para ocupar essa casa comigo. Já tinha 12 anos que essa casa tinha sido abandonada. Ocupamos essa casa e 15 dias depois — nós limpamos tudo, deixamos bonitinho — apareceu a dona, que era uma delegada de polícia. Uma parte da casa ficou dividida para três famílias e no terreno ficaram umas 15. A gente teve de entender que essa casa tinha dono, de fato, e aí tivemos que sair. Ela pediu desculpas dizendo que ela tinha culpa pelo acontecido, por ter deixado a casa abandonada.” Apesar de dispersos, os moradores continuaram a se articular, reunindo-se em “uma Escola chamada Ana Maria Popovic, lá em Mussurunga, uma escola particular. O grupo começou a aumentar — e eu pedia para que as pessoas que se identificassem com minha situação, fizessem o mesmo que eu, que convidassem

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mais pessoas para a reunião na Escola Ana Maria Popovic. Esse grupo começou a crescer e de 15 passou para 30, depois passou para 40, 50, 100 e beirou a 200 pessoas. Aí nós começamos a procurar um terreno nas proximidades de Mussurunga, na Estrada Velha do Aeroporto, depois de Vila Verde. Marcamos o dia da ocupação. Nós passamos três meses de reunião, de fevereiro a abril e no dia 28 de junho, de 2003, nós ocupamos a Estrada Velha do Aeroporto.” A ação dos Sem Teto, com enorme adesão, expõe o problema do acesso à moradia em Salvador e os interesses que giram em torno do acesso à terra urbana. O movimento se consolida e se amplia. “Nós sofremos diversas ameaças. Três dias depois da ocupação, tinha uma quantidade enorme de pessoas. “Estardalhou”, chamou muito a atenção e aí apareceu o dono do terreno, que se chamava Dr. José Alban, um advogado. Olha que sorte nós tivemos: primeiro foi uma delegada de polícia, depois foi um advogado, que também chamou a polícia, chamou todo tipo de polícia da Bahia, chamou a Prefeitura... Nós não entendemos porque a prefeitura também tinha interesse no fato, porque a Prefeitura fez a intervenção, uma vez que o terreno era particular. Na época, quem comandava a Prefeitura era Antônio Imbassahy. Fernando Medrado era o Secretário de Habitação e então eles colocaram a polícia pra nos tirar de lá. Eles conseguiram nos tirar à força! Então, a gente sentiu a necessidade de se organizar. Mais do que nós já tínhamos feito. O grupo cresceu mais ainda”, afirma Jhones Bastos. A repressão ganha maiores proporções e passa a exigir uma organização maior do movimento: “Aí a gente começou a se organizar mais — pela necessidade, por conta das pressões dos policiais e por conta da necessidade que nós tínhamos de permanecer no local. Não tendo pra onde ir, nós insistimos na permanência e aí o policiamento dobrou. Foi quando nós reocupamos o terreno de onde eles tinham nos tirado. Eles deram um vacilo de sair e aí nós reocupamos. Depois que a gente insistiu nessa ocupação, eles vieram com força total, veio a Choque, veio a RONDESP, veio tudo. Veio Polícia Civil, veio a SUCOM — e a gente não entendia porque a SUCOM estava ali”. O poder público começou a perceber que o movimento se consolidava e que era preciso mudar a tática: “A Prefeitura, percebendo que o movimento se ampliava, chamou a gente pra conversar. Na verdade eles nos chamaram porque fizemos uma passeata no dia 30 de junho de 2003 até o Centro Administrativo e lá falamos com o Presidente do Tribunal de Justiça — na época era Dr. Carlos Cintra Dutra. Nós expusemos nossa situação, colocamos para ele a necessidade da moradia, falamos sobre o direito à moradia que está na lei — colocamos isso abertamente para ele — infelizmente tivemos de sair da Lei para que a Lei fosse cumprida. Ele entendeu a nossa situação e colocou o Coronel Correia pra nos ajudar no que fosse preciso na mediação com os policiais comandados pelo Coronel Josué Brandão que, na época, estava no Comando da Capital e daquela operação. Depois que o poder Judiciário chama a atenção da Prefeitura e do Estado, a Prefeitura chama a gente, todos nós, para negociar.” Funcionários da SUCOM, da Prefeitura Municipal de Salvador, tentam negociar e propõem a realização de cadastro de todas as famílias, sugerindo que os ocupantes esperassem “em suas casas”. “Se vocês pensam que essa Prefeitura, com essas informações que vocês cadastraram, vai dar casa a vocês, vocês nunca vão ter a casa que vocês realmente sonham. Eu nunca vi quem tem casa estar no cadastro. E quem está lutando pela sua casa não tem como esperar pela sua casa em casa. E eu não tenho casa. E eu vou lutar aqui. Daqui ninguém me tira. Daqui eu só saio morto. E outra: se vocês realmente têm casa, acompanhem o que a Prefeitura está sugerindo, porque as pessoas que não têm casa vão continuar a lutar. Agora se vocês têm casa, podem fazer seu cadastro e adiantar o lado de vocês. Essa prefeitura que está aí, em 1980, fez um grande cadastramento na Fonte Nova e eles repetiam esses mesmos argumentos — pra vocês esperarem suas casas em casa. Até hoje esse povo espera pelas suas casas”, relata Jhones. A proposta da Prefeitura não foi aceita e, em uma assembleia com mais de 300 pessoas, os ocupantes resolvem fazer uma passeata para pressionar por uma solução. Como ressalta Pedro Cardoso, liderança e também fundador do movimento, filiado ao PSOL, a ocupação da Estrada Velha do Aeroporto foi um ato espontâneo, resultado da necessidade das famílias por moradia. “Antes do dia 02 de Julho de 2003 não existia qualquer movimentação organizada na perspectiva de ocupar o terreno do Km 12. Neste dia, umas 700 pessoas, no máximo, se juntaram e ocuparam o terreno, foi uma ocupação espontânea. Essa ocupação foi resultado da situação de moradia, da falta histórica de políticas habitacionais ao longo de todo o período da ditadura militar. A ocupação se deu em um terreno que o Estado dizia ser área de preservação ambiental. O interessante é que agora a Tenda (construtora) está construindo lá. Quer dizer, para o povo era uma área de preservação ambiental, para a iniciativa privada, não. O fato é que eu e outras lideranças como Graça, Celinha, Anelita fomos chamados para ajudar a organizar a ocupação. Jhones já estava lá, ele chegou dois dias antes. Quando eu cheguei, no dia 3 de julho, não tinha um barraco em pé, a polícia já tinha derrubado tudo, só tinham as pessoas pensando em uma forma de resistir. Só ficaram lá umas 150 famílias e como a polícia não saía de lá e não deixava a gente construir, não deixava a gente demarcar a terra, então, a gente disse: como a terra é pública, a gente vai ficar aqui. E a gente ficava lá, passava o dia todo lá. A disciplina era tão grande que as pessoas chegavam às 7:00h da manhã, iam embora as 17:00h e voltavam às 07:00h

A Luta pelo Direito à Cidade e à Moradia

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Foto: Iraildes Santana

Figura 2 — Movimento de Luta pela Moradia

do outro dia. Nessa época estavam eclodindo movimentos de Sem Teto em várias capitais, nós então decidimos criar o movimento aqui também. Ficamos lá no terreno durante dois meses. E a gente ia fazer o quê durante esse período? A gente começou a discutir questões, politizar o movimento. A gente começou a fazer comida coletiva e a discutir várias questões como a morte de um fotógrafo na ocupação da Volkswagen em São Paulo. Eu levei a experiência de Canudos como referência de resistência, trouxemos a saga do povo hebreu pra ser discutida e tudo isso foi o que garantiu que a gente pudesse ficar lá esse tempo inteiro. A primeira grande caminhada aconteceu em 20 de agosto da Estrada Velha do Aeroporto até a Prefeitura e, mesmo com a ameaça de chuva, as pessoas estavam lá para fazer a passeata. Somente depois dessa ocupação espontânea é que começou a se fazer um movimento organizado. Quando a ocupação ganhou repercussão na imprensa, a direita na Bahia começou a se preocupar com o movimento e os órgãos de inteligência foram acionados para acompanhar o movimento.” Em uma das maiores mobilizações realizadas pelo movimento, os Sem Teto fizeram uma passeata de Mussurunga, nos limites da cidade, até a Prefeitura, localizada no Centro, fazendo um percurso de cerca de 30 km. Com bandeiras vermelhas do MSTS, gritando palavras de ordem (organizar, ocupar e resistir), o movimento chamou a atenção da população, da imprensa e do poder público. Atendidos pelo então secretário municipal de habitação, o movimento apresentou a seguinte pauta de reivindicações: retirada da cerca do terreno que pretendiam ocupar no km 12 da Estrada Velha do Aeroporto; saída dos funcionários da SUCOM e policiais militares da área; distribuição de cestas básicas e materiais de construção, além da construção de 119 mil novas casas populares (A Tarde, 21/08/03). A caminhada que marca a história do movimento ocorreu em 21 de agosto de 2003, dia nacional da habitação. E pra convencer essas pessoas a caminhar da Estrada Velha do Aeroporto até a Prefeitura? A filiação com a igreja e a recorrência ao imaginário religioso, foi um elemento importante na mobilização do movimento, afirma Jhones: “Usamos a imagem de Moisés, porque o povo de Moisés andou 40 anos atrás da sua terra prometida. Nós não podemos andar três, quatro horas de relógio até a Prefeitura? Pedimos ajuda a Franklin Oliveira para que ele trouxesse lideranças que pudessem dar apoio ao movimento — Pedro Cardoso e Idelmário Proença. Pedro veio logo. Idelmário não quis vir porque tínhamos tido problemas no Conselho de Moradores — ele achava que eu deveria dar mais de mim para conseguir o Conselho, mas a gente faz o que pode nesse mundo. Pedro veio e nós formamos uma dupla muito boa, começamos a preparar a passeata. Depois veio Idelmário, desconfiado, mas veio. E começou o famoso e maior trio de Salvador. Começamos, então, a intensificar a luta, a montar as estruturas do movimento. O dia da caminhada foi muito chuvoso. Nós marcamos para as 7 horas da manhã e 4:30 já tinha gente chegando. Achávamos que não iria ter ninguém, mas quando deu 5 horas da manhã já tinha mais gente. As primeiras a chegar foram as velhinhas, com guarda-chuva. Na época, Nelson Santana, que era vereador, da Comissão de Justiça e Paz, também deu uma força. Nessa época eu não tinha vinculação político-partidária. Eu estava ali, realmente, porque eu precisava. Pedro Cardoso veio da Igreja Católica, Idelmário Proença era liderança sindical e eu sempre fui liderança do movimento estudantil.” Cheguei no Movimento após o inicio da primeira ocupação na Estrada Velha do Aeroporto, afirma Idelmário Proença. “Fui convidado por Pedro Cardoso que, na época, trabalhava na Comissão de Cultura da Paz e Combate a Violência, e que também teve resistência em participar em função das divergências que teve com Jhones, um ano antes, durante a ocupação da sede do Conselho de Moradores de Mussurunga. Eu entro no MSTS em agosto de 2003 e uma das minhas primeiras preocupações é alertar os companheiros para a existência de prédios ociosos na cidade, o que feria os princípios contidos no Art. 5º da Constituição de 1988. Nós começamos, então, a fazer ocupações em prédios, como forma de desviar a atenção da repressão da ocupação da Estrada Velha e dar mais visibilidade ao Movimento. Dessa forma é feita a primeira ocupação de um prédio público federal - o prédio da antiga Rede Ferroviária Federal, na Praça da Inglaterra no Comércio.” Segundo Pedro Cardoso, “do ponto de vista conjuntural, vários fatores explicam a constituição do movimento.

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Em primeiro lugar, vínhamos de uma década de política neoliberal, de falta de investimento em habitação para os segmentos populares e pipocavam vários movimentos de Sem Teto pelo Brasil; em segundo, tinha o fato político da ascensão de Lula à presidência da República. Nesse período houve um processo de aprofundamento da crise que começou no governo Fernando Henrique. Eram os primeiros seis meses do mandato de Lula e meio milhão de trabalhadores perderam seus postos de trabalho e o problema da moradia se agudiza muito mais. Em terceiro lugar, tínhamos a crise do carlismo na Bahia, a fissura na hegemonia carlista. Os liderados por Antônio Carlos Magalhães não mais o seguiam cegamente. A Revolta do Buzú é ilustrativa dessa crise — ACM escreve um editorial no qual ele dizia que o prefeito era um “banana”, que não tinha coragem de enfrentar os estudantes.” Logo o movimento teve uma rápida ascensão. Em pouco tempo tornou-se presente em 18 bairros da periferia da capital (A Tarde, 20/08/2003), sendo cadastradas cerca de 3.000 famílias. Prédios e terrenos localizados em sua maioria, na periferia da cidade, foram ocupados. O movimento convidou a todos aqueles que não tinham casa própria, que viviam de aluguel ou de favor, para integrarem o movimento. O primeiro prédio a ser ocupado foi o da Rede Ferroviária Leste Brasileiro, localizado no Comércio, região de concentração de bancos de Salvador. Os embates contra o Estado começavam, sendo que as liminares de reintegração de posse, ajuizadas, apareciam de forma célere, logo após a ocupação. “Ocupamos a cidade inteira”, afirma Jhones. “Começamos a intensificar as ocupações e quando as pessoas viram que as ocupações estavam dando certo, sem perseguição policial por conta de acerto, de forma organizada e baseando-se na lei da moradia, no artigo 6º da Constituição Federal, que diz que a ‘moradia é um direito do cidadão’. O movimento se consolidou. Digo sempre nas reuniões: fazemos uma ação que é contraditória. A nossa ação é uma contradição da história da justiça, da história geral, porque está na lei que a habitação é um direito nosso. E por que a gente não tem casa, já que tá na lei? É porque os políticos não cumprem a própria lei.” No dia 14 de setembro de 2003 aconteceu a primeira ocupação no Subúrbio Ferroviário de Salvador, em Boiadeiro. Essa ocupação sofreu forte repressão, com a presença de aparato policial, com apoio da SUCOM, sendo as pessoas agredidas e os barracos derrubados, desalojando mais de 100 famílias. Como protesto, os ocupantes fizeram manifestação na Avenida Suburbana e fecharam a via. Mais uma vez a polícia reprimiu o movimento. (A Tarde, 09/2003) A organização e mobilização do Movimento dos Sem Teto de Salvador chamou a atenção e preocupou o Governo do Estado. O jornal A Tarde em 02/02/2004 publicou uma matéria com a seguinte manchete “Sem Teto se organiza como força política”. Os serviços de inteligência do governo federal foram acionados neste mesmo período, temendo a força política e a possibilidade de expansão dessas mobilizações pelo país (CLOUX, 2008). No ano de 2005, o movimento reduziu o ritmo das ocupações e, segundo declarações de lideranças, passou a sedimentar as conquistas anteriores e a organizar o movimento internamente. Em janeiro de 2005 o movimento realizou seu primeiro Congresso, no qual fez um balanço de suas ações e discutiu sua organização. Nesse evento, ocorreu a eleição de nova coordenação, de caráter colegiado, quando se discutiu a relação entre o movimento e o Estado. Nesse momento, o movimento adquire caráter e densidade estadual, realizando ocupações em Lauro de Freitas e Conceição da Feira. A questão de gênero passa a fazer parte do debate e discute-se a necessidade de organização das mulheres e da estratégia do Movimento. Segundo Ana Vaneska, “esse foi um momento de uma maior horizontalização no modo de direção do movimento, o que significou um grande avanço em relação a participação da mulher na luta, aumentando consideravelmente a participação de mulheres na coordenação. Antes tínhamos 03 mulheres na direção executiva na coordenação geral (municipais e estadual) avançamos para 13 — ficando então com uma proporção de 46,4 % de mulheres e 53,6% de homens. Essa foi uma conquista para as mulheres do movimento, pois sabemos que são, justamente, nestas instâncias de direção, onde as polêmicas sobre posições políticas são travadas e decisões sobre a vida da coletividade são tomadas.” Os Sem Tetos passaram a ser destaque nos movimentos sociais e se articularam com outras entidades e movimentos. Participaram do Grito dos Excluídos, tendo presença marcante no evento, em 7 de setembro de 2005. A mobilização, o enfretamento e as negociações com o Estado continuaram e o movimento participou de forma ativa da discussão da política habitacional nas escalas municipal (Secretaria Municipal de Habitação), estadual (CONDER — Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia) e federal (Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal). O Estatuto das Cidades, que estabelece a função social da propriedade urbana, passou a ser um argumento legal nas negociações e o PSH — Programa de Subsídio da Habitação do governo federal, que prevê a construção de 15 mil casas no Estado, acenando com a possibilidade de atendimento de parte das suas reivindicações. No ano seguinte, em 2006, a eleição para governador do candidato do PT, Jacques Wagner, e a reeleição do presidente Lula, influenciaram as ações do movimento e as diferentes formas de compreender a problemática da moradia passaram a influenciar na definição da estratégia a ser seguida pelo movimento — surgiram, então, divergências em torno da estratégia e tática de luta e, consequentemente, em relação à forma de se relacionar com o Estado. Tais divergências começam a influenciar nas mobilizações e se conformam distintos grupos A Luta pelo Direito à Cidade e à Moradia

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políticos dentro do movimento — que passa a ser polarizado por forças políticas vinculadas ao Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), vindo a constituir o Movimento do Sem Teto de Salvador - MSTS e Movimento do Sem Teto da Bahia - MSTB. O MSTS propondo uma relação de aproximação com o Estado, agora qualificado como democrático, e MSTB, que afirma o caráter de classe do Estado e a necessidade de avançar na luta política, de uma perspectiva socialista. Nesse período, o movimento contava com cerca de 4.500 famílias cadastradas. Durante esses anos muitas ocupações acontecem. Prédios públicos e privados foram ocupados: reocupação do Edifício Lord, na Rua Carlos Gomes (Centro); prédio da UFBA, no Largo 2 de Julho (Centro); prédio do INSS, na Sete Portas (Centro); Galpão da Leste, na Calçada; prédio da antiga fábrica de tecidos Toster (Baixa do Bonfim); prédio da antiga fábrica de vestuário Alfred (Mares); prédios do IPAC — Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Centro Histórico e Lapinha); em Escada (Subúrbio Ferroviário); terreno da Leste em Periperi (Subúrbio Ferroviário); prédio da antiga papelaria Enoque Silva (Comércio); prédio da antiga loja Mesbla (Calçada), Edifício Rajada (Comércio), dentre outras. A ocupação do Clube Português, com 150 famílias, localizado no bairro da Pituba, área nobre da cidade, teve grande destaque na imprensa. O clube foi, outrora, local de grandes festas da classe média baiana e, após décadas de funcionamento, entrara em crise financeira, sendo o prédio abandonado. O local sempre foi alvo de interesse de grupos imobiliários, por estar situado numa área privilegiada — à beira do mar e em um bairro com população predominantemente de classe média. Nessa época, o movimento de luta pela moradia começa a se interiorizar, fazendo ocupações em Lauro de Freitas (Região Metropolitana de Salvador) e Conceição da Feira (região de Feira de Santana). A partir de 2006, as ocupações retornaram com força ao cenário de Salvador, quando ocorreu uma das maiores ocupações da história do movimento, liderada pelo MSTB, a do Quilombo da Lagoa da Paixão, localizada entre os bairros de Fazenda Grande Coutos e Valéria, com cerca de 2.000 famílias. A tensão política gerada por tais protestos denunciava o estado de abandono dos segmentos sociais situados nas menores faixas de renda nas grandes cidades. Nesse processo, o Movimento de Luta pela Moradia se diversificou internamente, surgindo e se consolidando várias organizações. Com a consolidação do projeto político do Partido dos Trabalhadores, nas escalas federal e estadual, além da participação do PT na gestão municipal nos primeiros anos do governo do PDT (primeiro a suceder a hegemonia carlista na gestão municipal) o movimento passou por um processo de redefinição. As divergências, anteriormente existentes, acerca do entendimento da natureza da problemática habitacional e das estratégias de luta, se aprofundam no contexto da hegemonia do Partido dos Trabalhadores. Os grupos políticos vinculados ao PT redefiniram a estratégia de luta, partindo do pressuposto de que a política em curso no país traz a possibilidade de equacionamento da problemática da habitação com a implementação de Programas como Minha Casa Minha Vida. No outro extremo do cenário político, o MSTB afirma a posição crítica em relação à política em curso e a necessidade de prosseguir na luta, articulando-se nacionalmente com movimentos vinculados a Resistência Urbana, que lança a Campanha Minha Casa Minha Luta, cujo objetivo, segundo declaração de militante do MSTB é “fortalecer junto ao povo a conquista da casa como um fruto da resistência histórica da classe oprimida e não apenas como fruto de uma política governamental”. As referidas divergências e posições se explicitam nas várias formas como as lideranças do movimento compreendem a problemática da moradia. Idelmário Proença considera ser possível equacionar o problema de moradia no atual contexto e que a atuação parlamentar tem uma função sim, ainda que limitada: “Acredito que é possível resolver o problema de moradia na sociedade capitalista. Tenho dúvidas se é possível melhorar as condições de saúde, educação e conseguir emprego. Na verdade, a grande arma do movimento é a mobilização e acredito que conseguimos influenciar a política pública, a ação do Estado.” Por exemplo, afirma Idelmário, “o PAC I não incorporava municípios que já tinham sido contemplados com o FNHIS e essa era a situação de Salvador. Fomos pra rua, paramos o trânsito e quebramos essa amarra. Essa ação envolveu as várias organizações que compõem o Movimento de Luta pela Moradia. Outro exemplo de conquista ou de possibilidade de mudança da situação da moradia, através do parlamento, é o PEC da moradia digna, que estabelece que a União e os Estados devem disponibilizar 2% e os municípios 1% dos seus orçamentos para habitação. Com esse investimento, em 15 anos, seria possível superar o déficit nacional atual que é sete milhões e setecentos mil moradias. Ainda que outras demandas pudessem ser acrescidas ao longo dos próximos anos, com esse investimento, a atual situação de carência de moradia poderia melhorar e muito.” Pedro Cardoso compreende de forma diferente a problemática da moradia. “O movimento de Luta pela Moradia é dividido e essa divisão reflete concepções diferentes sobre a sociedade, sobre a luta pela moradia e a natureza da relação com o Estado. Essas diferenças refletem a existência de forças políticas e projetos de sociedade distintos em uma escala mais ampla.” Para ele “o problema da moradia é estrutural no capitalismo e ele só será equacionado com a mudança estrutural do sistema. Moradia não são apenas quatro paredes. O conceito de moradia nos remete a habitação, mas também à saúde, educação, segurança, trabalho e lazer e o capitalismo não tem como garantir isso para o conjunto da sociedade. O problema de moradia em Salvador, no país, resulta de um padrão de desenvolvimento excludente, da falta de emprego, de infraestrutura urbana, do

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Foto: Jacob Bittencourt

inchaço das grandes cidades em função da não resolução da questão agrária. Então, se o déficit habitacional é um problema estrutural do sistema, a política habitacional em vigor não tem como equacioná-la. É preciso mudar a estrutura econômica, é preciso mudar a sociedade e o Estado.” Como alternativa o MSTB propõe a construção das “Comunidades do Bem Viver”, “que significam não apenas a conquista da casa, mas, a própria conquista da cidade”, afirma Ana Vaneska. Trata-se de “rever conceitos, adensar valores, refletir sobre o nosso lugar e papel no mundo, sobre a transformação das relações de trabalho, de gênero, étnico-raciais e geracionais. O desafio está em construir e multiplicar uma formação política dos sujeitos do movimento mais humana e integral. Sem isso fica muito difícil reafirmar o compromisso social de construir, com o povo, a luta popular na cidade.” Afinal, continua Ana Vaneska, “os movimentos sociais devem lutar pela construção de espaços coletivos, pelo acesso à informação e pela criação de novas tecnologias para que o povo tenha condições de intervir em sua própria realidade. Temos hoje o desafio de construir uma reflexão crítica sobre a realidade, de construir uma nova simbologia, de reinventar a utopia.” Quando questionado sobre a estratégia adotada pelo MSTS para equacionar os problemas de moradia dos Sem Teto, Idelmário Proença destaca a necessidade de pressionar e negociar com o Estado. Nesse contexto, a estratégia de ocupação de terrenos e imóveis é colocada em um segundo plano. “Estrategicamente o MSTS decidiu realizar ocupações em duas situações: a primeira, quando recebemos uma reintegração de posse — para cada imóvel ou terreno reintegrado fazemos uma nova ocupação. Essa é uma forma de pressionar o judiciário e de obrigá-lo a pensar duas vezes antes de emitir uma reintegração de posse. A segunda é depois da consolidação de uma ocupação. “Você não tem dimensão do trabalho que envolve a consolidação de uma ocupação. Demanda muito esforço. Você envolve 100 famílias, pessoas de origem, formação, costumes e religiões diferentes, desloca essas pessoas para um mesmo lugar e tem que lidar com todo o tipo de problema de convivência. É uma atividade socialmente importante, mas muito desgastante e você acaba desviando o foco da sua ação. Deixa de dar prioridade a pressão e ao diálogo com o governo, para administrar problemas domésticos — o que às vezes é um desgaste para os moradores e para a liderança do movimento. Desse modo, decidimos que, provisoriamente, as ocupações estão suspensas. Somente nos casos de reposição e depois da consolidação. Entretanto, sempre que se fizer necessário, o MSTS fará novas ocupações, independente de quem esteja no governo.” João Gomes de Souza, liderança da primeira ocupação na Estrada Velha do Aeroporto, atualmente residente no Conjunto Antônio Conselheiro, na mesma localidade, reafirma essa estratégia: “antes a relação com o Estado era muito difícil. Não tinha diálogo. Era uma luta de campo, era confronto. Hoje tem democracia, é possível negociar.” Essa afirmação conduz a uma certa diluição de fronteira entre o que se constitui em função e obrigação do movimento social e do Estado: “negociamos cotas (número de imóveis por ocupação), fiscalizamos quem tem moradia, quem não tem, quem tem mais filhos, quem tem menos”, ou seja, o movimento auxilia na implementação do programa, na operacionalização da política. “O movimento entregou as casas no Alto do Cabrito e em Valéria. A política habitacional hoje não traz dor de cabeça. A pessoa é cadastrada, espera em torno de um ano e recebe a sua casa,” afirma João Gomes. A esse propósito Rita Sebadelhe coloca: “o

Figura 3 — Movimento de Luta pela Moradia

A Luta pelo Direito à Cidade e à Moradia

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movimento precisa hoje redefinir o seu papel. Estamos fazendo o papel do Estado. Essas são atribuições do Estado. Estamos, na verdade, trabalhando para o Estado e sem salário.” Idelmário Proença considera que é preciso reconhecer que a relação entre o Movimento de Luta pela Moradia e o Estado é ambígua. “Apesar das mudanças políticas o Estado continua opressor. A mudança do Estado precisa se aprofundar. A constituição diz que a moradia é um direito, mas ela diz o mesmo da propriedade privada — apesar de afirmar a sua função social. Em várias situações, apesar de provarmos que o prédio ou terreno não está cumprindo a sua função social, ainda assim, o Judiciário dá a reintegração de posse ao proprietário. O MSTS só ocupa imóveis que não têm função social, ainda assim, a ordem judicial chega e as famílias são retiradas.” Pedro Cardoso reafirma a necessidade de inserir a luta pela moradia em um contexto mais amplo: “o MSTB compreende que a luta pela casa é um aspecto de uma luta maior, uma vez que o problema da moradia é estrutural. É preciso, na verdade, agregar pessoas, elevar o nível de consciência, compreender os mecanismos de funcionamento da sociedade e criar as condições para a mudança da estrutura da sociedade. A luta pela casa é um meio para agregar pessoas. Nós nos inspiramos nas lutas do nosso povo, na trajetória de 500 anos de resistência, nas lutas de Canudos, Sabinada, Cabanada, Quilombo dos Palmares — que inspiram o movimento. Somos herdeiros da trajetória de resistência indígena, negra, feminina e popular. Esses movimentos apontam no sentido de socialização da terra. Nós sabemos que quando resolvemos o problema da moradia vem o problema do emprego, da saúde, da educação, do transporte, ou seja, precisamos mudar a estrutura da sociedade, criar outra ordem política. É preciso construir uma sociedade na qual a desigualdade não exista. É importante organizar as pessoas a partir da luta pela moradia para mudar as estruturas que estão aí. Por isso construímos as Brigadas com o objetivo de horizontalizar a organização do movimento e avançar na luta.” Apesar de afirmar a possibilidade de resolução da questão habitacional no contexto da sociedade capitalista (o que pode não ser verdade em relação ao acesso aos serviços de saúde, educação e trabalho), Idelmário Proença compreende o direito à cidade como o direito ao transporte, a acessibilidade e ao trabalho e à moradia digna e sustentável. Ele ressalta a existência de uma dimensão coletiva do direito à cidade, que está para além do interesse individual ou mesmo de determinados grupos, ainda que estejam na condição de excluídos. Temos uma ocupação nos Galpões da Leste na Calçada, pertencente à antiga Rede Ferroviária Federal, afirma ele. “Propusemos um projeto para a construção de 2000 unidades habitacionais nessa área. A Prefeitura e o Governo do Estado afirmam que essa área precisa ser utilizada e ampliar a Nilo Peçanha para a implantação do Projeto de Integração Trem-Ônibus, o Projeto do Trem Regional. Reestruturamos o projeto original e hoje temos o projeto para construir 200 unidades. Direito à cidade é isso. Você precisa pensar no conjunto, no interesse de todos. Não somos egoístas e sabemos que o Estado tem obrigação com toda a sociedade.” De qualquer modo, as lutas pela moradia, pelo acesso aos serviços urbanos e pelo trabalho, estão intimamente associadas na formulação dele: “O movimento Sem Teto não luta só pela casa, luta pela saúde, pela educação, pelo emprego.” Os limites da dissociação entre as referidas lutas estão claros na declaração de João Gomes de Souza, que defende com vigor o Projeto Minha Casa Minha Vida: “Tem família que precisa da moradia e precisa do emprego. O povo tem e dá muito trabalho pra pagar a moradia. Por exemplo, no Conjunto Antônio Conselheiro a maioria dos moradores é de reciclador. A pessoa tira R$ 8,00 reais por dia, no máximo R$12,00 ou R$15,00 reais. É a conta de colocar comida em casa. A conta de luz é R$15,00 ou R$17,00. E a água? Juntando com a mensalidade tudo dá R$80,00 reais. Tem morador com 7 filhos. Ele precisa de um teto, mas precisa de um emprego. As pessoas não estão pagando e não têm como pagar.” É preciso lembrar, segundo declaração de Ana Vaneska, “que o déficit habitacional está diretamente relacionado com à reestruturação produtiva que levou a classe trabalhadora a engrossar as filas do desemprego, a ser jogada no mercado informal, no subemprego — a intensificação da exploração da força de trabalho e aumento da exclusão social. Como ter uma casa sem renda, sem condição para sustentá-la? Em 2003, quando o movimento dos Sem Teto eclodiu em Salvador, éramos considerados a capital do desemprego! Esse tipo de percepção levou a criação da Cooperativa Guerreira Zeferina na ocupação de Periperi. Precisamos articular a questão da moradia, à questão do trabalho e a discussão de gênero pois, no final das contas, quem está na base da pirâmide são as mulheres, pobres e negras. São as que sofrem as mazelas do desemprego e da exclusão sócial. É por isso que a Cooperativa Guerreira Zeferina foi feita por elas e para elas.” Pedro Cardoso ressalta os limites da política habitacional em vigor. “Esse projeto não resolve o problema da moradia. O Programa Minha Casa Minha Vida foi concebido com o objetivo de aquecer a economia, injetar recursos na iniciativa privada e debelar a crise econômica, que mais uma vez ameaça retornar.” A relação com o Estado e o governo precisa ser concebida de uma perspectiva mais radical, segundo ele. “O MSTB tem como princípio a autonomia do movimento em relação ao governo, ao Estado. Consideramos que é o movimento que deve pautar o Estado não o contrário. É o princípio do poder popular. Lutamos para abrir o canal de negociação e continuamos ocupando para pressionar nas conquistas populares. As pessoas que estão de fato envolvidas

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nas ocupações devem estar permanentemente na rua exigindo moradia e políticas públicas. É preciso entender os limites do Estado, ampliando seu horizonte e avançando na transformação do sistema.” É preciso ainda, segundo o militante do MSTB, compreender as contradições internas que moldam o Estado. “Moradia é um direito de todos e a constituição reconhece isso. Mas a constituição também legitima a propriedade privada — apesar de subordiná-la à sua função social. O que acontece no dia a dia é que o Estado sempre se posiciona na defesa da propriedade privada. Se diz que o Estado é neutro, que ele defende os interesses de todos. Como? Todas as reintegrações de posse que sofremos têm como justificativa o direito de propriedade. O direito de propriedade de terrenos abandonados há mais de 10 anos, que servem para o tráfico de droga, para desova. Desova realizada pela própria polícia. E quando o juiz age, ele age defendendo a propriedade e a propriedade que não está cumprindo a sua função social. O Estado se diz neutro, mas o executivo e judiciário, sempre que se posicionam se colocam ao lado do proprietário em prejuízo do interesse social”. Segundo Pedro Cardoso “eles criminalizam o movimento e defendem a propriedade privada. O Estado capitalista sonega o direito à moradia. O Estado não cumpre a própria constituição. Vamos continuar a ocupar porque o próprio governo sonega o direito à moradia. Por isso o MSTB não pode parar de ocupar. Essa compreensão do movimento, na concepção de Pedro Cardoso, se desdobra em uma estrutura organizacional particular. “Do ponto de vista da organização do movimento procuramos instituir uma estrutura horizontalizada. Tentamos construir mecanismos dentro das ocupações que levem as pessoas a se organizarem e serem sujeitos do próprio processo de luta. Inspirados no Movimento dos Sem Terra construímos as brigadas.” Militantes de outros grupos políticos, a exemplo de Rita Sebadelhe, do PC do B concordam que a luta pelo Direito à Moradia não se restringe a necessidade de acesso à casa. Ela é uma luta muito mais ampla, ela está circunscrita na luta pelo Direito à Cidade. Nessa perspectiva, o acesso à casa não esgota a luta dos Sem Teto. Ter acesso à casa representa apenas a primeira conquista. Depois, começa a luta para não perder essa conquista e mais, a luta pelo acesso aos serviços e equipamentos que a cidade oferece. Por isso, vale destacar os aspectos levantados por Rita, liderança do MSTB e representante da Frente de Luta Popular no Conselho das Cidades no estado, quando afirma que a simples entrega da casa não resolve o problema dos Sem Teto. Desse modo, ela reforça a posição de que a questão da moradia tem uma dimensão estrutural uma vez que envolve, efetivamente, o acesso a bens, serviços e ao trabalho. Entretanto, o Movimento de Luta pela Moradia é bastante diverso. A ação política de Valdizia Freitas, por exemplo, tem características muito diferentes das anteriormente relacionadas. Sua relação com os Sem Teto, com a população do Subúrbio situa-se, sobretudo, no campo da assistência à população excluída. Ela coordena, em Tubarão, uma creche que dá assistência a crianças além de ter preocupação com a situação de violência que atinge direta ou indiretamente, principalmente adolescentes e mulheres. “As meninas namoram com usuários de drogas, nós precisamos apoiar essas adolescentes, conversar com esses jovens, escutar cada um deles, saber por que eles estão ali... Tem muitos que ainda têm conserto. No dia em que a gente começar a ter amor próprio, a olhar as pessoas sem preconceitos, sem discriminar, se a gente começar a cuidar dos nossos jovens a situação pode mudar. Tem que começar da barriga da mãe, desde o nascimento dela e ir cuidando... Se cada bairro fizer um trabalho social e cultural, se cada Associação cuidar das crianças, muita coisa vai mudar.” A natureza da relação de Valdizia Freitas com o Estado se explicita na seguinte formulação: “Eu não queria mais conversa com ninguém, eu já tinha três liminares, que vinham do antigo governo. Aí o governo, através de Dr. Afonso, começou a andar atrás de mim, mas eu não queria conversar com ninguém. Eu estava muito revoltada, era só humilhação. Todo mundo dizia que eu ia fazer daqui depósito de marginais. Um determinado dia me convidaram para um Seminário e eu fui. Aí eu tive o grande prazer de conhecer o Dr. Afonso Florence, que sentou comigo, juntamente com as equipes de trabalho, que eu chamo de família: a SEDUR. Aí eu descarreguei, disse pra eles tudo o que eu queria dizer. Eles escutaram, olharam pra mim e perguntaram: Valdizia o que você quer que a gente faça? Eu quero que vocês olhem para o povo, para essa classe sofrida, aquele povo de lá... O que agente pode fazer para conversar com você? Eu disse: Primeiro, eu quero o Ministério Público, uma reunião com todo mundo... Então, fizemos um compromisso com a SEDUR, o Governo do Estado, no qual eu iria desocupar a área lá do outro lado, do Projeto Solidário (tinha oito meses com as pessoas morando).” Ainda segundo Valdizia: “Eu consegui tirar todo mundo de lá numa boa, sem reforço de polícia, de nada. Eu coloquei e eu tirei as famílias de lá. Em troca eles iriam disponibilizar esforços para desapropriar essa área que hoje já está desapropriada, inclusive, acho que foi uma das primeiras desapropriadas pelo Governo do Estado. Por isso tiro o meu chapéu para essa equipe, para a SEDUR, para Dr. Afonso, que disponibilizou essa área para implantar o projeto da creche. Tudo isso foi feito a partir de um grupo de pessoas, Valdizia não fez nada sozinha. Valdizia, além de uma equipe de liderança, teve essa comunidade que foi guerreira junto comigo, lutou comigo, tivemos muitos problemas, temos muitas brigas, temos muitas críticas, mas temos vitória e essa vitória não é minha, mas da população, da comunidade. Essa é a história de vida da Comunidade Irmãos do Quilombo, da população de Tubarão e de Valdizia Freitas.”

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Problematizando as relações de poder internas ao movimento e com o Estado Idelmário Proença pondera: “Com o aumento do numero de ocupações, os problemas também aumentaram. O MSTS ganhou um forte inimigo: o “poder”. A inexperiência de muitos e a dificuldade de lidar com problemas sociais geram problemas, criam dificuldades. Liderar grupos de pessoas com vários níveis e formações não é fácil. As pessoas se sentem com o poder nas mãos pra decidir, muitas vezes, de forma contraditória com a própria causa. Além disso, como convencer as pessoas de que seu voto é importante para o futuro, não só do movimento, mas também da nossa cidade? Como conduzir o MSTS pelo o caminho certo? Sem imposição, sem autoritarismo? Cada cabeça é um mundo! Como envolver o MSTS na política, se sua postura deveria ser de independência? Mas, como ser independente se o povo passa fome, não tem trabalho nem saúde? Se temos no Estado pessoas eleitas pelo o próprio povo para exercer o papel de executor, promotor e defensor dos direitos contidos na Constituição? Então, devemos fazer parcerias e estabelecer acordos, o que conseguimos já no segundo ano de existência do MSTS é um exemplo de que estamos certos. Basta lembrar as seguintes obras: (i) 1200 unidades habitacionais através do crédito solidário (construídas pelo Governo Federal e o Instituto do Brasil); (ii) 720 unidades habitacionais pelo PSH (Governo Federal e do Estado); (iii) 100 unidades habitacionais (Governo Federal e Coopred); (iv) 85 de unidades habitacionais para moradores da ocupação do Clube Português (Prefeitura), além do financiamento de uma cozinha comunitária em Valéria, um empreendimento solidário. Podemos dizer que estamos dando os primeiros passos sozinhos e temos tudo para dar certo. Precisamos nos unir, arregaçar as mangas cada vez mais, porque a luta contra a opressão é árdua e nunca vamos nos conformar com as injustiças dessa sociedade capitalista. Com disciplina, responsabilidade, força de vontade, esperança, fé, amor e muito trabalho, conseguiremos, porque não podemos esquecer jamais que o nosso lema é: Ocupar, Organizar e Resistir.” A análise dos dados relativos à inserção dos moradores das ocupações no Movimento de Luta pela Moradia sugere que, concretamente, a principal motivação de vinculação com o movimento é a necessidade e dificuldade de ter acesso à moradia pelos mecanismos convencionais — compra, aluguel ou doação. Os dados que qualificam a relação do morador com o Movimento de Luta pela Moradia revelam que em torno de 69,81% declararam fazer parte do movimento dos Sem Teto — é preciso ressaltar que o fato de residir na ocupação não os caracteriza como “militantes” (ainda que alguns estabeleçam essa relação como necessária). Dentre os que participam do movimento, quando questionados sobre a motivação para inserir-se, 74,38% afirmam participar por precisar adquirir a casa própria e 8,46% devido ao fato de morar na ocupação. Os demais declararam não se interessar em participar do movimento e que simplesmente “estão na ocupação por não ter onde morar”. Em torno de 51,92% dos moradores das ocupações reafirmam uma certa relação de estranhamento com o movimento ao declararem participar das atividades desenvolvidas (reuniões, passeatas, assembleias e mutirões), apenas motivados pela necessidade de obter informações sobre a aquisição da moradia ou dos que declararam não conhecer os objetivos do Movimento de Luta pela Moradia. Adicionalmente, é alto o percentual dos moradores que declararam não terem conhecimento da existência do processo de escolha interna da coordenação da ocupação, em torno de 67,43%, e de não terem participação dele — 75,93%. Esses dados podem significar falta de mobilização, inexistência de mecanismos internos de alternância de poder como também certo alheamento, desinteresse pela atividade política. Quando perguntados sobre a filiação política 95,93% dos moradores afirmaram não ter vinculação partidária como também 87,32% declararam não ter tido experiência anterior de participação em outro movimento social. Esses dados atestam a não existência de uma correlação direta entre a condição de morador e a de militante, ainda que em muitas situações essa dupla condição esteja absolutamente associada e se explícita no reconhecimento de que a mobilização é o fator determinante para alcançar aquilo que se constitui no objetivo de cada morador, ou seja, a casa. É nesse território, ou seja, da necessidade, as mais elementares e vitais que as lideranças do Movimento de Luta pela Moradia politicamente trabalham. As forças políticas que têm uma preocupação maior com o desenvolvimento de uma consciência política crítica se deparam, permanentemente, com a possibilidade de desmobilização, em função do atendimento da reivindicação em torno da moradia e com o fato de que o aprendizado na luta pela aquisição da casa não se reverte, necessariamente, em uma militância em torno de demanda e questões mais estruturais, relacionadas com a qualidade de vida e o direito à cidade. O fato é que dentre os moradores, 71,92% afirmaram participar das atividades promovidas pelo movimento sendo que, dentre estes, 63,72% participam de reuniões, sobretudo para obter informações sobre a moradia e sobre o movimento. A participação em passeatas é atividade que mobiliza os moradores, em torno de 42,35% dos Sem Tetos, o que se traduz na constatação de que a ação direta se constitui em um importante mecanismo de pressão em relação ao Estado. Os mutirões, que evidenciam laços de solidariedade entre os Sem Teto, mobiliza 33,01% dos moradores, enquanto que as assembleias em torno de 32,40% dos Sem Teto. Apenas 6,78% participam de Núcleos e 1,96% de atividades de formação política. Os núcleos estruturados pelo MSTB têm como objetivo de agregar os moradores em torno de discussões de questões de saúde, gênero e produção. “Os Núcleos são formados por pessoas da própria ocupação e por “apoiadores” que se identificam com o tema escolhido”, afirma Ana Vaneska. “Enquanto

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Foto: Valdizia Santana Freitas

Figura 4 — Movimento de Luta pela Moradia

na brigadas têm a responsabilidade de dirigir a ocupação, os Núcleos discutem temas. As duas estruturas são importantes no processo de descentralização do poder e controle das coordenações locais. Dentre os Núcleos, um que está no centro de nossas ações no trabalho de Coletivo de Guerreiras Sem Teto é o de Gênero.” Em torno de 77% dos moradores tomaram conhecimento do movimento através do “boca a boca”, de amigos, parentes ou vizinhos. A grande maioria dos Sem Teto não tem histórico de experiência de militância em movimentos sociais, sendo que 87% nunca participaram de nenhum movimento anterior ao Sem Teto. Apenas 1,5% já participaram de alguma associação. Refletindo sobre a história do Movimento de Luta pela Moradia, João Dantas, militante histórico dos movimentos sociais, destaca as suas peculiaridades em relação ao processo de constituição da cidade do Salvador: “O Km 12 iniciou de modo semelhante a tantas outras ocupações que aconteceram em Salvador. Praia Grande, por exemplo, foi um bairro construído assim, através da ocupação. Aqui poucos lotes foram vendidos. Na verdade, essa é a história de formação da nossa cidade, que em muito é semelhante à história dos grandes centros urbanos. Na verdade, é preciso lembrar que nós não invadimos, nós ocupamos o que é de direito, o direito de ter um pedaço de terra, um lugar para morar — invasão mesmo quem fez foram os europeus. Enfim, Salvador foi feita assim: depois de enfrentar três ou quatro vezes a polícia, depois de resistir, o pessoal foi comprando material, foi construindo suas casas e se assentando, se consolidando e formando os bairros. E sempre haverá pessoas com necessidade de moradia, esse é um movimento contínuo... A experiência do movimento dos Sem Teto coloca questões novas, que oxigenam e mudam a qualidade desse movimento de formação da cidade. O que foi diferente na experiência da Estrada Velha do Aeroporto em relação aos processos anteriores de ocupação da cidade é que o Movimento de Luta pela Moradia estimulou a quem conseguiu a casa a ajudar ao outro que ainda não tinha conseguido. Além disso, ele trava uma discussão política sobre a questão da moradia e não se encerra na conquista da casa, fazendo surgir, fortalecer o papel do militante da causa urbana. Outra diferença é a exigência que se coloca em relação ao papel do Estado, pois é direito de todos o acesso à moradia e as pessoas têm que construir as suas próprias casas. Esse movimento tem uma estratégia que vai para além da própria ocupação. Ele se insere na luta pela Reforma Urbana. Ele é muito maior que a luta por um pedaço de terra. Ele pensa a cidade, as condições de produção da cidade.” A perspectiva do movimento de luta pela moradia no atual cenário nacional e estadual, segundo João Dantas, mostra que, “se o movimento estiver isolado será muito difícil a sua sobrevivência. Existe hoje um esvaziamento dos movimentos populares, dos sindicatos, decorrente da vitória do Partido dos Trabalhadores. Os movimentos não fazem mais a crítica da política, eles negociam com o governo. Não se trava mais a luta, eles fazem “cadastros”, eles são “clientes” do governo. Esse tipo de prática dá margem a todo tipo de degeneração do movimento social. Portanto, se não estivermos juntos não conseguimos fazer o contraponto. Na Bahia nós criamos uma frente de luta pela moradia popular, juntando vários movimentos. No plano nacional, constituímos um movimento de resistência urbana, que é uma Frente Nacional de Movimentos de Resistência Urbana, que agrega movimentos que têm como características o não engessamento, a independência e a autonomia em

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relação ao Estado. É uma forma de se reforçar, de ter uma pauta mais ou menos unificada a nível nacional, de pressionar o governo federal e, ao mesmo tempo, no âmbito local, encontrar parceiros e unificar setores em torno de questões comuns. A pauta da Resistência Urbana consiste em retomar a luta pela Reforma Urbana, de compreendê-la como uma bandeira estratégica.” A Resistência Urbana funciona como um pólo aglutinador e pretende reunir forças para a luta pelo socialismo, afirma Ana Vaneska. “É uma frente estratégica, que atua com o objetivo de construir a unidade da classe trabalhadora e se fundamenta na estratégia de construção do poder popular, na autonomia política frente aos governos, aos partidos e a outras organizações políticas. O MSTB faz parte de um conjunto de movimentos que tentam fazer o enfrentamento à lógica do capital, da concentração de riqueza, da propriedade, da venda da cidade e da sua constituição como mercadoria. É com esse posicionamento que o MSTB tanto a nível municipal, em se tratando de Salvador, quanto a nível estadual, quando tratamos a luta em municípios como Feira de Santana ou no sul do estado, como no caso de Camamu. Essa luta está associada ao combate à criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, contra a faxina étnico-racial e extermínio da população negra e indígena.” “Não vamos negociar com o governo a reforma urbana!”, afirma João Dantas. “Se você quer uma cidade para a maioria, tem que enfrentar o setor imobiliário, a especulação, a classe dominante. A bandeira da Reforma Urbana é estratégica porque quando se consegue a moradia, se precisa lutar pelo saneamento, pelo transporte, pela educação, ou seja, essas lutas não se encerram, elas se complementam. Alguns segmentos do Movimento de luta pela Moradia acreditam que a Reforma Urbana pode ser negociada com o Estado, mas isso é uma fantasia, é propaganda e só. Não dá para acreditar que, ao fazer um PDDU, você vai resolver o problema da moradia e das cidades. Só uma mudança da sociedade poderia mudar isso. A classe dominante já percebeu que, hoje, a melhor forma de preservar os seus interesses é manter o PT no governo. Infelizmente é isso. Antes tínhamos movimentos sociais autônomos. Com a chegada do PT ao poder, infelizmente, a maioria dos movimentos virou correia de transmissão. Eles não fazem a crítica, não travam a luta. É o antigo pelego. Antes o pelego era a direita, agora é o antigo companheiro, que faz um discurso radical, mas na prática só tem compromisso com ele mesmo e com o grupo ao qual é vinculado. É por isso que há uma certa simbiose entre o PT e o Estado.“ Idelmário Proença considera que o movimento vem de uma perspectiva diversa e que na verdade o racha do MSTS ocorre em função da existência de concepções diferentes sobre o próprio movimento. Enquanto uma parcela buscava utilizar o MSTS e seus cadastrados como apêndice de uma corrente partidária, a outra se apoiava no principio da autonomia, tanto em relação aos governos quanto aos partidos políticos. Embora nós continuemos a dialogar com os Governos, pois entendemos essa necessidade como forma de viabilizar resultados imediatos, não abrimos mão da nossa autonomia. Pressionamos os poderes públicos como forma de conquistar a moradia digna para todos que precisam. Quando da implantação do programa Minha Casa, Minha Vida, em Salvador, o MSTS não poupou esforços e colocou três mil integrantes na porta da Governadoria, do mesmo modo que não poupou esforços para pressionar a Prefeitura para ampliar o número de casas em Salvador, além da batalha pela a isenção do ITV, para as famílias que ganham de zero a três salários mínimos. Em linhas gerais, poderíamos afirmar que os motivos que levam a inserção do morador da ocupação no Movimento de Luta pela Moradia são extremamente diversos. Da simples necessidade de ter um lugar para morar à motivação militante, com práticas e perfis políticos os mais variados. Os distintos grupos políticos que, genericamente, podem ser denominados de Movimento de Luta pela Moradia enfrentam hoje um dilema: diante da implementação de Programas Habitacionais voltados para os Sem Teto, qual a natureza da relação a ser estabelecida com o Estado? Quais as perspectivas políticas do movimento? Seus objetivos estão sendo alcançados? Eles se esgotam ou seus horizontes são mais amplos? Em tempos de desmobilização dos movimentos sociais, de despolitização das questões urbanas e estruturais qual o fôlego do Movimento de Luta pela Moradia? Certamente que múltiplas são as possibilidades de respostas a essas questões e elas dependem, hoje, exatamente, das estratégias de luta e das distintas perspectivas políticas dos grupos e lideranças que integram o Movimento de Luta pela Moradia — retrato, bem acabado, dos distintos projetos de sociedade em luta na arena política brasileira.

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Foto: Jacob Bittencourt

V - A Mulher e a Luta pela Moradia

Figura 1 — Manifestação das Guerreiras Sem Teto

A vida da mulher na ocupação associa a condição de ordenadora do lar, com a de chefe de família e de militante da causa da moradia. Ela dá conta das atividades domésticas, sustenta ou ajuda a sustentar a casa, é responsável pela posse da moradia, participa de mutirões, assembléias, passeatas, além de ser responsável pela coordenação de atividades na ocupação. Essa associação de “funções” se dá pela força das circunstâncias, melhor dizendo, da necessidade. Nesse movimento, muitas se revelam e se constituem em sujeitos públicos, o que em muitos casos resulta na ressignificação da vida privada, da sua inserção no âmbito da família e do espaço públicos. Segundo Ana Vaneska, militante do Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB), formada em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal da Bahia e com histórico de trabalho em comunidade, com teatro político, arte e educação, “o modo como a sociedade trata as diferenças de gênero invisibiliza a mulher, colocando-a em uma condição subalterna e isso ganha contornos particulares no contexto das ocupações. Mesmo considerando que muitas mulheres entram no Movimento de Luta pela Moradia levadas apenas pela necessidade da casa, na atuação diária, elas fazem política e se percebem como sujeitos políticos. Ao “fazer política” elas mudam as relações de gênero, transformam a experiência individual e privada e se descobrem sujeitos da sua própria vida — e cada experiência particular passa a ser um exemplo, uma fonte de inspiração para outras mulheres.” Mas afinal, o que torna singular a vida da mulher na ocupação? Ainda segundo Ana Vaneska, muitas mulheres chegam às ocupações fugindo não apenas do aluguel, conforme o depoimento de Mira Nascimento, coordenadora da Ocupação Quilombo de Escada: “quando se começava uma ocupação as mulheres chegavam sozinhas, com os filhos, e pediam um pedaço de terra pra construir a casa. Elas diziam que o aluguel comia junto, no prato delas. Elas limpavam o terreno, cavavam o buraco e construíam a casa. Os maridos, os companheiros, chegavam depois. É por não poder mais pagar aluguel que elas vêm para a ocupação. A luta pela moradia é uma luta geral, de homens e mulheres mas, na grande parte das ocupações, são as mulheres que estão à frente dessa luta. Basta ver que a maioria das coordenações é de mulheres. Mulheres que, em sua maioria, são desempregadas, fora do Bolsa Família, trabalhando como recicladoras, catadoras de marisco, que trabalham sem nenhuma condição, se ferem, se machucam, fazem fogo na porta da casa pra tirar a casca do marisco e vendem para comprar o alimento para os filhos, netos e, às vezes, para o companheiro.” A mulher também vai para a ocupação e se insere no Movimento, declara Ana Vaneska, tentando fugir de uma situação de opressão e violência dentro de casa. Para ela “quando a mulher entra no movimento ela sai de um estado de claustro — quando a mulher vai em busca da casa, ela é impelida a sair da casa da mãe, do pai, de algum amigo, do marido, que não a reconhece como mulher, que a expulsa, a violenta, agride física e moralmente. Ela está tentando sair de uma condição de opressão. Quando ela chega no Movimento essa situação é transformada... A casa deixa ser um claustro e passa ser um lugar de possível liberação — para isso é preciso recompor a autoestima, delinear o seu rosto. Ela precisa ressignificar a própria relação com a casa, com a sua moradia. Quando você limpa a sua casa, arruma seu guarda-roupa, seus documentos, você, na verdade, recompõe seu mundo interior. Muitas mulheres têm seus documentos destruídos como forma de mantê-las enclausuradas. A casa, no Movimento, representa também a liberdade ou possibilidade de liberdade para as mulheres.”

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Exatamente por isso, ela afirma, a casa tem um significado peculiar para essa mulher. Nesse caso particular, a casa representa a possibilidade de reconstrução da sua própria identidade, em seu sentido mais elementar, primário. Enquanto que para muitas das feministas de “classe média” a esfera privada se contrapõe à dimensão propriamente pública e a afirmação da mulher significa, sobretudo, a sua inserção no mercado de trabalho, na vida pública, qualificados como territórios masculinos, a mulher Sem Teto, precisa de um lugar que também a proteja da violência doméstica. Isso não significa, evidentemente, que a violência de gênero não perpasse as distintas classes sociais. Significa segundo Ana Vaneska, que a problemática de gênero tem determinações de classe que, em uma cidade como Salvador, também tem um recorte de raça claramente definido. Em torno de 43,24% das coordenações das ocupações são exercidas por mulheres. Numa aproximação maior do universo da vida da mulher na ocupação destaca-se o fato de que, apesar da sua liderança, em várias dimensões e aspectos, em linhas gerais, é o homem quem tem maior expressão política, quem fala pelo movimento, reproduzindo assim as assimetrias estruturais que conformam as questões relativas ao gênero. Segundo Ana Vaneska “É fato que essas mulheres, muitas vezes, aparecem como coadjuvantes e não protagonistas da luta, pois, sendo pobres e negras, em sua maioria, com baixo nível de escolaridade e instrução, trabalhando no mercado informal, subempregadas, assumindo uma tripla jornada de trabalho, tendem a secundarizar a sua própria intervenção no Movimento. Em muitas situações elas são as responsáveis por proverem o sustento e a organização do espaço doméstico, o que também impacta, freia, retarda o seu amadurecimento político, sobretudo se não há uma divisão de responsabilidades em relação às tarefas domésticas.” Outro aspecto a ser ressaltado é que as condições de responsável pelo sustento da casa e de sujeito político contribuem para uma dupla exposição da mulher às situações de violência, que rondam cotidianamente a ocupação. Em muitas situações a mulher é um alvo fácil da violência masculina, tanto do companheiro como também de homens que circulam no espaço comum da ocupação — locus da luta política (a participação nas atividades relacionadas com o movimento se constitui, frequentemente, em motivo de conflito doméstico), dos conflitos entre moradores e mesmo da transgressão, particularmente a que envolve o tráfico de drogas. A vida na ocupação, como é comum nos bairros populares, faz da rua uma extensão da casa. A precariedade da moradia, as condições de desempregado ou de subempregado transformam os arremedos de espaços públicos nas ocupações em intensos locais de convivência — tornando a sociabilidade mais densa e potencialmente mais conflituosa. As atividades desenvolvidas pelas mulheres, no contexto da ocupação, segundo Ana Vaneska, vão desde “a organização de listas de cadastrados (o trabalho de “secretariar”), a organização de tarefas de limpeza e segurança, o que implica na exposição a ameaças, a situações de risco, inclusive de morte. E mesmo sendo responsável por tarefas relevantes, numa situação de precariedade da vida nas ocupações e de exposição em contextos de conflito e violência, o que torna ainda mais problemática a questão de gênero, muitas sofrem a violência simbólica de ter a sua atuação invisibilizada, em função do ranço dos preconceitos.” Assim, as questões relativas ao gênero ganham uma extraordinária relevância no universo da ocupação. Deparase com uma estranha simbiose entre machismo, racismo e exclusão — o que torna a reprodução capitalista no nosso contexto, em muitos aspectos peculiar, afirma Ana Vaneska. “As relações de gênero são relações de poder e quando se diz que o que é masculino tem mais valor, se abre uma grande ‘brecha’ para assegurar o prestígio e uma relação de poder desigual, garantido ao homem ‘tudo’ e à mulher ‘o que Tabela 1 — População por Sexo sobra’”, afirma Ana Vaneska. Sexo N % No conjunto dos moradores Sem Teto Feminino 4030 51,23 entrevistados 51,23% são mulheres, o que Masculino 3817 48,53 corresponde à participação relativa da população Sem Informação 19 0,24 feminina no conjunto da cidade (Tabela 1). Total 7866 100,00 Quando questionado sobre a atribuição Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar da responsabilidade pelo domicílio, a maioria de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. declarou ser compartilhada, vindo em seguida a referência à mulher e por último o homem. Do universo dos questionários aplicados, 60,5% foram respondidos por mulheres e 39,5% por homens. Esses dados são indicativos do grande peso da participação das mulheres na administração do universo doméstico. A percepção geral predominante de quem é o “chefe de família” na ocupação, com 47,86%, é de que essa é uma função tanto do homem como da mulher. Em seguida, aparece a mulher como principal responsável pela moradia com 31,06%, enquanto 18,86% afirmaram ser o homem quem ocupa essa posição (Gráfico 1). Essa tendência muda relativamente quando estratificamos os dados segundo o sexo do entrevistado. Quando mulheres e homens são questionados, seus percentuais, respectivamente, aumentam. Para os homens, apenas 19,78% das famílias na ocupação são chefiadas por mulheres, enquanto que para as mulheres 38,45%

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Gráfico 1 — Condição de Chefe de Família na Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

das famílias são chefiadas por mulheres. Quando indagados sobre o que acham da mulher como chefe de família, 51,22 % achavam satisfatório por considerar que as mulheres têm qualidades que lhes são peculiares; 9,16% consideram “normal”, pois homens e mulheres são iguais; 8,18% achavam ótimo, pelas qualidades e por permitir o desenvolvimento das mulheres; 1,3% acreditavam ser excelente. Além disso, 0,33% afirmam ser indiferentes, 9% achavam humilhante, pois essa função é masculina; 5,96% achavam essa condição difícil e 14,8% não sabem ou não responderam. A história de Roselândia Ramos dos Santos, moradora da ocupação da Ladeira da Praça, é ilustrativa da condição da mulher como responsável e provedora da família. “Eu estava grávida de sete meses do terceiro filho quando meu marido me deixou e eu fui colocada pra fora da casa que era de aluguel. Quando os donos da casa viram que eu estava grávida e sozinha imaginaram que eu não iria mais sair da casa. Era uma casa de invasão, no Subúrbio. Eu pedi noventa dias pra poder desocupar a casa. Com esse tempo, meu filho já teria três meses e eu já teria arrumado melhor a vida. Os donos não aceitaram. Eu vi que iria parar na praça com esses meninos. Foi aí que uma colega falou do Movimento dos Sem Teto. Isso tem seis, sete anos. Minha amiga disse: traga colchão e panela e a gente vai encontrar um lugar pra você. Minha primeira ocupação foi no Gelo Pioneiro, nos Mares, na Calçada. Eram quase 200 pessoas. Era uma situação subumana. Naquela época eu me senti como um rato com minhas crianças. Era uma torneira pra quase 200 pessoas, tinha muita criança, tinha lixo, mosquito e muita sujeita. Eu estava desempregada, com um bebê com problema de saúde. Era muito sofrimento. Eu lavei roupa por um pacote de peixe, por uma lata de leite Itambé — as pessoas se aproveitam quando vêem a gente na miséria. É humilhação? É. Mas você vai fazer o quê? Catei papelão, latinha. Fiquei na fila da sopa, com meus filhos, junto com mendigo, morador de rua. Pegava pão na igreja dos Mares.” No que diz respeito à divisão do trabalho na família, as respostas mais frequentes reproduzem o padrão hegemônico que atribui à mulher a principal responsabilidade na realização das atividades domésticas, com 51,71% (Tabela 2). Apenas 1,90% declararam ser a atividade doméstica uma responsabilidade dos homens e 25,15% afirmaram compartilhar tais tarefas. Quando perguntados quanto à capacidade de liderança de homens e mulheres, 57,6% afirmaram ser a capacidade e direitos iguais e 8% serem as mulheres mais Tabela 2 - Divisão de Trabalho na Família capazes, “fortes e guerreiras”. Além disso, Atividade Doméstica N % 4% afirmaram que homens e mulheres lutam pelos mesmos propósitos e objetivos, enquanto A mulher faz tudo 954 51,71 que 2,2% afirmaram que as mulheres são O homem faz tudo 35 1,90 mais solidárias; 0,1% que as mulheres são Há divisão de tarefas 464 25,15 mais inteligentes, enquanto que os homens Não responderam 392 21,25 mais agressivos. Devem ainda ser registradas Total 1845 100,00 as seguintes respostas: que a mulher deve Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar buscar se desenvolver pessoalmente, com de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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0,2%; que elas têm mais garra, são mais trabalhadoras, com 0,2% e, finalmente, que embora os homens e as mulheres tenham os mesmos objetivos, há mais respeito quando os homens lideram, com 0,05%; em torno de 26,7% não responderam à questão. Quando questionados sobre a participação das mulheres na luta pela moradia, 64,72% afirmaram que a mulher participa ativamente da luta. Entretanto, quando estratificamos esse dado segundo o sexo do entrevistado, verificamos que a percepção de homens e mulheres quanto à inserção das mesmas na luta pela moradia apresenta diferenças significativas, ou seja, apenas 44,78% dos homens registram a participação das mulheres nesta luta, enquanto que 77,90% das mulheres afirmam participar do movimento, ou seja, a percepção das mulheres em relação à participação feminina é bem mais expressiva (Gráfico 2). De maneira geral, as principais atividades desenvolvidas pelas mulheres na luta por moradia são a participação em reuniões e assembléias, protestos e passeatas, além de mutirões e oficinas. No que se refere ao fato da participação feminina no movimento de luta pela moradia causar problemas familiares, 97,78% Gráfico 2 — Participação da Mulher no Movimento de Luta pela Moradia afirmaram que a participação feminina no movimento de luta pela moradia não causa qualquer tipo de problema familiar. Esse dado, certamente, reflete a realidade de mulheres que não têm uma atuação mais direta no movimento. Muitas declarações de mulheres “militantes” sugerem a existência de conflito entre o cumprimento de tarefas domésticas (que em geral não são compartilhadas com os homens) e as atividades requeridas pelo movimento. Apenas 2,22% consideram que a participação feminina traz problemas para o ambiente doméstico, principalmente conflitos com o companheiro. Dentre os que afirmaram existir problemas familiares ou com vizinhos, Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de destacam-se os que afirmaram existir problemas Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. decorrentes do machismo (Tabela 3). Quando questionada sobre a condição da mulher como coordenadora, Mira Nascimento, coordenadora da Ocupação de Quilombo Tabela 3 - Problemas Familiares em Decorrência da Participação Política da Mulher de Escada afirma: “É difícil, é complicado. Problemas N % Temos que administrar desde conflitos entre os Brigas Familiares (machismo) 26 63,41 moradores — como o incômodo gerado por um Brigas entre Vizinhos 1 2,44 vizinho que coloca o som alto, até os problemas Não sabe ou não respondeu gerados pelo fato da coordenação ser feita por 14 34,15 uma mulher. De vez em quando você ouve: Total 41 100,00 Ah, se fosse uma voz masculina teria mais Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. força. Entretanto, já tivemos experiências de coordenação de homens que não foram tão boas, que tiveram problema. Tenho casa e filhos pra cuidar, mas dou tudo de mim.” Em relação à participação da mulher no movimento de luta, vale destacar que as questões que envolvem conflito ou violência doméstica são objeto de tabu, particularmente entre as mulheres. É preciso registrar aqui que a inserção da mulher no movimento, a depender do modo como é concebida a questão de gênero, envolve a realização de atividades que são similares às atividades domésticas. A dimensão simbólica da negação, por parte dos homens, da ação das mulheres na luta por direitos fundamentais como a moradia, tem um significado particular em uma sociedade marcadamente machista como a brasileira. Atesta ainda essa constatação, o fato de, apesar da inserção qualificada e militante da mulher no cotidiano da luta pela moradia, os postos de lideranças de maior destaque pertencer aos homens. Aidinalva Barbosa Souza afirma: “é difícil liderar e não ser reconhecida, tomar a frente e não ser reconhecida, realizar atos importantes sem ficar para trás. Eu vou para muitos seminários e conferências e vejo que as mesas sempre estão cheias de homens e as mulheres, quando vão falar, tem que ser resumido, com tempo contado. As pessoas sempre preferem ver os homens falarem”. Rita Sebadelhe é enfática quando afirma: “Meu companheiro sempre diz o seguinte: o Movimento dos Sem Teto é um movimento que era para ser mais forte, mais revolucionário que Canudos. E eu concordo com ele. Acontece que alguns coordenadores se venderam e isso foi em função, principalmente, da postura dos homens

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do movimento. (...) O brio e a vaidade dos homens, dos machos desse movimento, ninguém aguenta! Agora, o povo é quem sofre. E somos nós, mulheres, que estamos carregando esse movimento nas costas, somos nós que amamentamos esse movimento. (...) Nós, as mulheres, tornamos esse movimento uma extensão da nossa vida. Só para você ter uma ideia, Mira amanhã tem que levar 50 pessoas na CONDER. É o pessoal das casas que pegaram fogo. Mira mandou que eles fossem. Mas eles não vão sozinhos, pois eles tem medo. Só vão se Mira for. É o tempo todo assim. Há um “maternalismo”, que protege e ao mesmo tempo causa dependência e nós precisamos desenvolver a autonomia desse povo.” O “maternalismo”, destacado por Rita Sebadelhe, encontra-se presente em muitas das atividades desenvolvidas pelas mulheres para as mulheres no contexto do Movimento de Luta pela Moradia. A ocupação se configura então como uma extensão da casa — Regina Lúcia de Jesus (Regina Rasta) afirma: “sempre contribuí com dinheiro para o movimento, desde a época do Km 12, depois na Toster/Bonfim, nas festinhas da Alfred, sempre participei. Como eu sou uma grande liderança na feira de São Joaquim, o povo lá sempre me ajudou a ajudar os Sem Teto. Eu sempre pedi lá e até hoje faço isso. (...) Ainda hoje, por exemplo, as meninas da Leste que foram para Cajazeiras vão lá me pedir as coisas. As mulheres me pedem e eu ajudo como posso.” Para Iraildes Santana, liderança do MSTS, a politização das mulheres do movimento se dava dentro das ocupações através da realização de eventos, “a gente sempre fez eventos na Alfred para as mulheres. Fazíamos o café da manhã, comemorávamos o dia do amigo, dia dos pais, dia das mães, o aniversário da ocupação. A gente sempre fazia festinhas e todas elas participavam. (...) A gente ia atrás de colchão, filtro, água. Tudo isso era feito por nós mulheres. (...) A gente fez o aniversário de cinco anos da Alfred, comemoramos com um bolo em homenagem ao MSTS.” Para Aidinalva, “na verdade, a questão da mulher no movimento é social, é uma questão de segurança alimentar, por isso a gente se preocupa em fazer alimentos, fazer eventos. As mulheres vão buscar alimentos na Cesta do Povo e as famílias dividem o que conseguem. A gente aproveita os eventos, como o dia do amigo, das mães, para preparar o povo para quando for para as suas casas, para que eles possam ter uma convivência harmoniosa com as outras pessoas que não têm a vida que eles têm aqui na ocupação. Eu mesma criei o café da manhã com o objetivo de sociabilizar as crianças e fazer com que elas entendam que ao ter um pão, elas podem precisar dividir. É um café simples, mas que faz todas elas se sentirem satisfeitas, nem que seja uma vez por mês... Eu faço café, às vezes faço uma vitamina, às vezes um doce. Sempre no evento tem alguma coisa para estimular a harmonia social entre as mulheres e as famílias. A gente também sempre fez sopa lá na Alfred. Na verdade a questão das mulheres sempre foi muito importante nas ocupações.” Segundo Iraildes, as atividades realizadas na Alfred são importantes mecanismos de interação. “As pessoas da Alfred que foram para Bairro Novo II estão reclamando, dizendo que estão sentido falta disso. Eles falam que lá eles não estão tendo nenhuma festinha. Na Alfred a gente sempre dava um jeito de estar se reunindo. E era tudo harmonizado graças a Deus, por que a gente não botava negócio de bebedeira. Se tivesse alguma bebidinha era só um vinhozinho, refrigerante.” Sobre o significado político da questão de gênero e a participação da mulher no movimento social, Aidinalva afirma: “as mulheres ainda têm muita dificuldade de entender o que é envolvimento político, como discutir as questões do bairro e fazer uma representante. Muitas ainda entendem que são os homens que tem que tomar a frente.” Iraildes completa: “na verdade, temos que politizar as mulheres, pois ainda há muito preconceito quanto ao poder de coordenação das mulheres dentro do movimento.” O depoimento de Regina (Rasta) é marcante: “até hoje, mesmo a gente indo resolver e resolvendo um problema, o povo pergunta se Idelmário e Jhones não vêm?!” O depoimento de Iraildes mostra o quanto é importante a participação das mulheres no Movimento de Luta pela Moradia: “independente de partido, independente do racha (do movimento), todas as famílias, com fé em Deus, serão encaminhadas para as suas casas. E mesmo assim a nossa luta vai continuar. Não é porque nós conquistamos as nossas casas que nós vamos parar o movimento. A gente vai dar continuidade ao nosso trabalho, agora com menos sofrimento, porque quem vive em ocupação sofre e só quem vive em ocupação é que sabe o significado dessa experiência. Principalmente quem é coordenador, pois até hoje, eu moro agora no Rajada, o povo ainda vem me procurar aqui para resolver problemas.” A questão da propriedade do imóvel é central dentro no movimento e coloca a questão de gênero no centro do debate. Para Regina (Rasta) “no que diz respeito ao direito à propriedade o movimento protege as mulheres. Temos as seguintes prioridades: primeiro os idosos, depois as mulheres com muitos filhos e depois os portadores de necessidades especiais.” Entretanto, é preciso lembrar, segundo Aidinalva, que “isso só foi possível depois de muita luta, porque as mulheres sempre foram tutoras do lar, mas quando o casal se separava, sempre o homem dizia que a casa era dele. Muitas mulheres tinham que voltar para a casa de seus pais. Ele podia trazer outra mulher, um parente, ou qualquer pessoa para ocupar a casa. Então, desde o início do movimento essa discussão foi feita e se decidiu que a mulher era a prioridade em relação à posse do imóvel.” Na verdade, a assimetria das relações de poder entre homens e mulheres se evidencia e se reproduz no

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Foto: Iraildes Santana

cotidiano da lida na ocupação. Como afirma Aidinalva “a questão da mulher é importante por que a gente cuida da ocupação, cuida das crianças. Como temos um espaço grande na Alfred eu comecei a montar uma creche, mas tinha outro coordenador que não deixou a gente continuar... Mesmo assim nós continuamos trabalhando as questões da mulher. Eu sempre fazia reuniões às quartas-feiras com as mulheres para esclarecer sobre seus direitos, o que fazer, como participar, a questão política. Embora a gente não tivesse preparada, a gente precisava tomar pé das questões políticas porque a gente precisava encaminhar mulheres para nos representar nas diferentes instâncias, nas diferentes funções públicas. Mas isso é muito difícil, por que as mulheres foram criadas para atuar no espaço doméstico e muitas vezes elas não querem mudar. Eu procuro mostrar a importância da questão política, eu me preocupo muito com a inserção da mulher na política. Não na política partidária, na política social em geral, pois eu acho que a gente tem que conhecer para saber escolher.” Iraildes complementa, “esse trabalho que nós temos no movimento é de grande responsabilidade. Na verdade, nós mulheres fazemos de tudo que você possa imaginar, de assistente social a médica, a enfermeira, porque quando essas mulheres têm alguma situação difícil na ocupação, briga com marido, briga com o filho, briga com o vizinho, elas procuram quem? As mulheres, porque os homens nunca vão estar disponíveis para atendê-las.” Ao relatar a sua trajetória no movimento, Iraildes explicita as opções políticas postas às mulheres de parcela do movimento e as tentativas de enfrentar o grave problema da falta de renda entre os Sem Teto: “eu não entrei no movimento a mando de ninguém — a militância está no sangue. Desde criança eu me preocupava quando via criancinhas, mulheres, dormindo na rua. Quando eu fui para o movimento, eu fui por que precisava de casa. Mas quando eu cheguei lá eu vi que aquelas pessoas precisam muito de ajuda. Eu me sensibilizei e comecei a participar como secretária, escrevendo as atas das reuniões que eram coordenadas por Aidinalva. Depois fui para o Congresso de 2005 como delegada, logo em seguida me tornei coordenadora local. Fiquei um ano e oito meses na Alfred, vivendo o sofrimento das famílias que estavam naquela ocupação. Posteriormente eu me tornei coordenadora municipal. Fiquei fazendo trabalhos, participando de conferências, não só da Conferência de Política das Mulheres, mas da conferência organizada pela SEDUR, onde me tornei conselheira pela segunda gestão do Conselho das Cidades, que se reúne de dois em dois meses, para discutir questões de saneamento básico, onde se define as prioridades de moradia. Foi lá que definimos as cotas de idosos, depois para as mulheres que têm mais filhos, depois as pessoas que vivem em áreas de risco. Participamos também da FENAGRO, a terceira feira de agronegócios do Estado da Bahia. Nessa feira o material artesanal produzido pelo movimento como garrafa pet, bonecas feitas de garrafas de vidro, com as garrafas de conhaque, almofadas de fuxico, foi exposto. Temos mulheres que fazem este tipo de trabalho. Estes trabalhos sairão no catálogo elaborado pelas voluntárias do Programa Economia Solidária — como o capitalismo está em crise, à economia solidária será o futuro da economia”. A titulo de exemplo, segundo Iraildes, “a politização das mulheres se dá em reuniões para montar as equipes de brigadas, cada uma com sua responsabilidade de organizar e manter a ordem no espaço de convivência, pois o local de morada é o santuário do cidadão e as mulheres se organizavam nas principais tarefas: grupos de organização, de cultura e lazer e grupos de segurança.” A inserção das mulheres na organização da segurança é muito importante, pois evita a entrada de pessoas estranhas na comunidade, evita a violência contra os idosos, mulheres e crianças, além de organizar a resistência de todas as formas possíveis, juntamente com as coordenadoras do local.” De uma forma geral, a participação da mulher precisa ser qualificada, segundo Roselândia Ramos dos Santos. “A participação da mulher ainda é fraca. A mulher precisa ser mais instruída, mais informada. Muitas são analfabetas e estão acomodadas. A minha trajetória de sofrimento me ensinou muito. Às vezes você vive na ocupação por viver. Eu acredito na luta. Eu tenho um chaveiro para colocar a chave da minha casa. A moradia é dever do governo e direito nosso. Às vezes o político não tem compromisso de resolver a situação. Se ele tem compromisso, mesmo Figura 2 — Exposição de Artesanato de Mulheres do MSTS que seja aos poucos ele vai fazendo. E não

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só é a moradia, é saúde, é educação, o problema é grande porque a miséria é grande. Não é falta de dinheiro é falta de compromisso.” Uma questão que toca diretamente a vida das mulheres na ocupação é a violência — de origem doméstica, policial e relacionada com o tráfico. Quando indagados sobre a ocorrência de violência contra as mulheres nas ocupações, a maioria, ou seja, 60,87% afirmaram não ocorrer violência — a qualificação desses dados segundo o sexo não apresenta uma variação significativa, ainda que o registro por parte das mulheres tenha sido maior. É preciso registrar que esse dado se reporta a violência física não levando em conta a dimensão propriamente simbólica da mesma. Dentre os 39,13% que afirmaram ocorrer violência contra as mulheres nas ocupações, 8,29% afirmaram que ela ocorre sempre; 5,31% afirmaram que ela ocorre quase sempre; 13,17% afirmaram que ela ocorre de vez em quando e 10,24% afirmaram que ela ocorre raramente (Gráficos 3 e 4). Entretanto, o contato com a realidade das ocupações demonstra que esse percentual oculta uma realidade de violência, velada ou explícita, marcada pelas mais diversas formas de agressão. Em muitas situações era visível o medo e o constrangimento das mulheres de declarar a existência de violência, seja ela de origem doméstica, imposta pela ausência ou presença do Estado, seja àquela produzida pela convivência, direta ou indireta com o tráfico de drogas. Em uma das visitas às ocupações encontramos uma coordenadora de uma ocupação com o rosto deformado, com grande ferimento ainda aberto na face. Ela havia recebido uma machadada no rosto, de um dos traficantes da área. Quando indagada sobre o motivo de não ter ido a um hospital fazer um Gráfico 3 — Violência contra a Mulher curativo, ela declarou “não quero morrer”. Ir a um serviço médico implicava em declarar a causa do ferimento e consequentemente das circunstâncias e autoria da agressão. A maioria dos moradores das ocupações são mulheres sozinhas, com filho, o que as transforma em vítimas fáceis da violência, declara uma moradora. Além disso, “acontece muita briga entre marido e mulher envolvendo principalmente cachaça. Quando tem bebida no meio sempre tem briga. Os homens são violentos e as mulheres não agüentam. Temos várias histórias de violência. Eles bebem, querem ter relação e se a mulher não quer, ele bate nela. As mulheres dão queixa, eles são presos Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de e depois voltam pra casa. Quando eles não Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. bebem são ótimos maridos, mas quando bebem é um horror. Quando a situação é grave a pessoa tem que sair de casa.” Gráfico 4 — Frequência da Violência contra a Mulher Em 2009, levantamento da situação das mulheres nas ocupações, realizado no Encontro do Coletivo das Guerreiras Sem Teto - MSTB, constata que o problema do alcoolismo atinge também as mulheres. “O desemprego, a violência doméstica têm levado ao uso excessivo do álcool. Cresce a dependência do álcool como uma fuga para os problemas do cotidiano. As mulheres também estão bebendo bastante”, afirma Ana Vaneska. Ademais, ela afirma que é preciso chamar a atenção para a dimensão simbólica da violência contra a mulher: “Muitas pessoas entendem como violência apenas aquela de ordem física, mas quando o homem humilha, constrange, priva a mulher de seus filhos, a ridiculariza diante deles, os maltrata para atingí-las, quando a qualidade de seu trabalho é desqualificada e invisibilizada, isso também é violência, mas de ordem simbólica. É violência também quando dela é furtado o Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. direito de ser registrada como partícipe da luta

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Foto: Jacob Bittencourt

na conquista do bem, da casa — tem homens que na hora de definir o registro em algum programa habitacional tentam esconder que têm companheiras, para não ter que dividir a posse ou propriedade da casa o bem com elas. É por isso que orientamos que a titular seja a mulher e que elas tenham a sua documentação em dia.” Valdizia Freitas, que realiza um trabalho de assistência a mulheres e crianças afirma a necessidade de apoio às mulheres em situação de risco: “Ah!... Se vocês ouvissem as histórias que escuto aqui. Tem mãe aqui que era mulher de traficante perigoso (que já morreu) e que pediu uma casa pra morar, porque a mãe jogou ela para fora, na rua. Eu dei um barraco a ela de plástico e de caixa de papelão. Hoje ela tem uma baita de uma casa na Ocupação Bate Coração e os filhos dela hoje são de bem. E são filhos de um traficante... Naquele momento exato ela achou apoio, e outras, e tantas outras, que têm aqui dentro?! Aqui eu já encontrei histórias de pais que violentavam filhas, que hoje estão em abrigos — eu levei para o Juizado de Menores. Maridos que espancavam mulheres e que foram para a cadeia. Eu corri risco de vida, até hoje sofro pressão por causa disso que fiz.” Ela ressalta a necessidade de criar condições para que a Lei Maria da Penha seja mais efetiva: “Por exemplo: o policial que matou a esposa no Bate Coração, ele está preso? Um marido matou a mulher no bairro de Coutos, e daí? Ele está preso? É isso que a gente quer saber, até onde vai a Lei Maria da Penha. A gente precisa fazer campanhas, fortalecer a Lei Maria da Penha. A gente tem muita mulher apanhando! Tem muita mulher sofrendo violência às escondidas, vocês sabiam o que os maridos dizem aqui no acampamento, quando brigam com as suas mulheres? Vá buscar Valdizia e a Lei Maria da Penha. Quando eu chego lá, eu digo: você quer que eu vá buscar a Lei Maria da Penha? Aí eles ficam quietinhos... Aqui existia muita violência contra a mulher, mas melhorou muito, hoje eles pensam duas vezes antes de fazer qualquer coisa. Eu denuncio mesmo e digo a eles, vou denunciar e denuncio. Porque tudo na vida da gente acontece no dia certo, na hora certa, eu não tenho medo. Só tenho medo dos poderes de Deus.” No contexto geral de luta em torno das questões de gênero, merecem destaque as ações desenvolvidas pelo Coletivo das Guerreiras Sem Teto, cujo objetivo principal é discutir a condição da mulher e fortalecer a presença da mesma na luta política, “sobretudo, na tentativa de tirar a intervenção da mulher na luta política da situação de invisibilidade dentro e fora do movimento”, afirma Ana Vaneska. A história do Coletivo das Mulheres Guerreiras Sem Teto, como relata Ana Vaneska, é a luta pela “resignificação da vida privada da mulher e pela inserção qualificada de sua atuação política na vida coletiva.” Como ela afirma “a realidade do movimento colocou outro tipo de demanda para quem trabalha com arte e educação — a fome, a moradia, o desemprego, a realidade de mulheres que sustentam a casa fazendo faxina, lavando roupa, catando material reciclável na rua, colocam a necessidade, premente, de aprofundar e radicalizar a luta pela moradia.” As Mulheres Guerreiras Sem Teto têm em Março de 2005, uma das suas referências mais importantes — quando foi realizada a primeira caminhada das Guerreiras Sem Teto, com o objetivo de agregar as mulheres e construir uma plataforma de luta, “inspiradas, inclusive, na Organização das Mulheres Sem Terra, um segmento da sociedade que luta contra o uso especulativo da terra e a propriedade privada, concentrados nas mãos do latifúndio e dos donos da terra urbana. Uma das suas principais motivações foi a necessidade de romper com a invisibilidade da participação da mulher no espaço público — a dor de estarem no cotidiano da luta nas ocupações e de não terem voz nos espaços de decisão, deliberação. Segundo Ana Vaneska “os homens são educados para viverem o universo do espaço público, as mulheres ainda quando se fazem presentes na vida pública, não são reconhecidas pelas lideranças do próprio movimento. As próprias mulheres relutam, estranham em reconhecer a outra na condição de liderança — a fala de poder é masculina. É mais forte e viril ouvir um homem do que uma mulher. A representação social de gênero é uma construção social — a mídia tem um papel importante no empoderamento do homem e na invisibilidade das mulheres. Há uma tendência que insiste em tentar forjar e manter a mulher no espaço privado e doméstico e o homem na rua, no espaço público” Ainda segundo Ana Vaneska “é preciso Figura 3 — Manifestação das Guerreiras Sem Teto - MSTB ir além das conquistas e dos limites da Lei

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Foto: Jacob Bittencourt

Maria da Penha, que considera como vítima apenas quem sofre a violência doméstica. E a violência simbólica que coloca a mulher como coadjuvante em sua própria luta? A lei não leva em conta as músicas que nos detonam, quando as políticas públicas não nos consideram. Além disso, a própria Lei Maria da Penha não conta com recursos para a sua implementação. Na verdade, a lei Maria da Penha é resultado da visibilização da história de uma mulher de classe média, branca, que, a despeito da omissão do Estado brasileiro, teve mais acesso à Justiça, facilidade que a sua própria condição de classe lhe possibilitou... É claro que essa é também uma história de violência, que representa a situação de milhares de mulheres e que a história e a lei em si são importantes para a luta. Mas qual a visibilidade que está sendo dada às histórias de tantas mulheres negras e pobres exterminadas e decepadas que morrem Figura 4 - Manifestação das Guerreiras Sem Teto a cada segundo nesse país?” Ana Vaneska associa a constituição da supremacia masculina à existência da propriedade privada e salienta a necessidade de reinventar as formas de apropriação da terra — a necessidade de “pensar a posse coletiva da terra, sendo os quilombolas exemplos a serem levados em conta. É preciso reconhecer que culturalmente as mulheres foram ensinadas a cuidar da família, então, na nossa sociedade a luta pela moradia, pela creche, contra a carestia é, historicamente, construída por mulheres.” Em relação às determinações das questões de gênero, ela afirma: “na sociedade capitalista patriarcal a posse sempre foi um atributo do pai, patrão. Não existe possibilidade de autonomia, poder de decisão, sem autonomia econômica. A construção da Cooperativa Guerreira Zeferina é uma iniciativa que busca criar a possibilidade de autonomia financeira para as mulheres.” A mulher que mora na ocupação tem “mil braços”. “Ela tem uma tripla jornada de trabalho, dá conta da organização da casa, do filho, do marido, ela trabalha fora e ela participa da organização da vida na ocupação. Mas a mulher precisa desvelar o seu rosto. As Guerreiras Sem Teto tentam criar um aconchego para que essa mulher possa, de forma livre e autônoma, contar a sua história e desvelar o rosto que cada mulher tem — o rosto que não lhe era permitido existir.” Nesse contexto, é necessário discutir as diferenças de percepção dos homens e das mulheres em relação a casa. “Quando os “Arquitetos Sem Fronteiras” fizeram um workshop na Ocupação Quilombo de Escada, ficou clara a diferença entre o olhar de um homem e de uma mulher sobre o desenho da casa: ela desenhou uma casa, na qual, o quarto das crianças ficava perto do quarto do casal; o homem colocou o quarto das crianças distante, ele queria silêncio e privacidade. Enquanto as mulheres queriam o espaço de coletividade, a creche, a cooperativa, alguns homens queriam espaço para estacionamento, para um carro que sequer existia... Construir uma comunidade sem consultar homens e mulheres e mesmo gerações diversas é uma violência, praticada inclusive pelo Estado brasileiro quando constrói conjuntos habitacionais que atendem prioritariamente o interesse da indústria imobiliária, deixando em segundo plano os interesses e necessidades da própria comunidade que no conjunto vai morar”, afirma Ana Vaneska. A mulher do Movimento Sem Teto da Bahia — a exemplo de Luciana, Graça e Cris, que estavam na direção no início do movimento — ajudou-nos a descobrir a política. “Eu não sabia o que era a política; aprendi o que era política atuando no movimento”, essa fala de Cris representa a todas nós, afirma Ana Vaneska. “Inicialmente, a motivação para se integrar ao movimento era a conquista da casa. Em seguida começamos a perceber que é essa sociedade que nos faz Sem Teto, que a nossa luta é muito maior, que nessa luta está colocada a questão de gênero, que nossa luta é a luta para a construção de um outro tipo de sociedade.” Adicionalmente, Ana Vaneska afirma: “Aqui se faz necessário uma construção que está no universo do símbolo, da representação, que envolve as mulheres numa discussão sobre o fortalecimento da sua autoestima, pela reestruturação da sua própria de vida, pela mudança de perspectiva de sua atuação política e social. Esse é um trabalho árduo e muito difícil de fazer. Muito se faz e pouco parece que foi construído, mas os signos ficam, a exemplo o hino do MSTB, que foi criado por uma mulher simples, Luciana Moura, que nunca havia se imaginado na direção de um movimento e que, a partir de seu processo de libertação, criou um símbolo que hoje agrega homens e mulheres num único coletivo que é o movimento.”

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Não faltam, no plano jurídico, instrumentos que legitimem o acesso aos direitos fundamentais, particularmente das mulheres. No entanto, a efetivação desses direitos está, em uma escala mais ampla, em muito distante da realidade de homens e mulheres Sem Teto, uma vez que além de não terem acesso aos direitos historicamente consagrados como universais (o que atesta as condições de vida às quais estes estão submetidos), terminam por se constituírem em objeto de discriminação econômica, de raça e de gênero. Mira, Ana, Aidinalva, Rita, Maria, Cirlene, Maura, Sandra, Janete, Adriana, Dona Helena, Iraildes, Conceição, Nice, Alba, Ajurimar, Célia, Teca (in memoriam), Valdizia, Dona Daí, Roselândia, Cida, Rita de Paraíso, Rita da Lagoa, Edinha, Josete, Cléia, Jocélia, Aurina (in memoriam), Bárbara e Cris, dentre tantas outras mulheres, de forma diferenciada, recorrendo a estratégias distintas, fazem da luta pela moradia uma forma de re-construção da própria identidade, da sua condição de mulher, mãe, militante, companheira de todos os dias e de todas as horas. A análise das condições de vida e da luta da mulher que mora na ocupação revela o quão distante está a garantia, institucionalizada, do direito a uma vida digna, do cotidiano das mulheres excluídas.

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Foto: Roseli Afonso

VI - Acesso à Justiça e Segurança pelos Sem Teto

Figura 1 — Movimento em Defesa da Moradia e do Trabalho

Os princípios da proporcionalidade e equidade, formulados no bojo das teorias clássicas e que estão na base do novo constitucionalismo, fundamentam o imperativo de que os desiguais devem ser tratados de modo desigual. Àqueles que são desiguais ou que estão em condições de desigualdade, demandam a correção da desigualdade com a instituição de parâmetros de equidade e, sobretudo, com a distribuição proporcional às suas necessidades. Isso significa que é justa e necessária uma distribuição que contemple com uma parte maior àquele que nada tem, alçando-o ao patamar daqueles que antes se encontravam em situação de privilégio. Boaventura de Sousa Santos sintetiza de forma exemplar o descompasso entre as condições de igualdade e a construção da diferença, quando afirma que “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2003c, p. 53). Tais princípios têm significado especial quando referidos à realidade dos Sem Teto. Os problemas decorrentes da convivência cotidiana com a violência e do difícil acesso aos serviços de segurança pública e de acesso à Justiça no Brasil são históricos. Com a consolidação de conquistas democráticas, ainda que formais, poderse-ia afirmar que não faltam, hoje, dispositivos legais voltados à garantia dos direitos do cidadão. Entretanto, a efetividade desses direitos é um grande desafio e encontra-se profundamente permeada por determinações de classe. Com a Constituição de 1988, vários avanços foram alcançados no âmbito das políticas públicas de segurança e acesso aos direitos, embora as camadas populares continuem a ser o alvo mais direto da violência, tanto no que tange à criminalidade urbana, quanto do próprio Estado, como também muitas são as barreiras no acesso à justiça — resultado, por exemplo, da falta de estrutura para atender ao cidadão em vulnerabilidade social, que não pode arcar com os seus custos. Muitas medidas vêm sendo tomadas no sentido de democratizar o que se convencionou chamar de acesso à justiça, sobretudo, de colocá-la ao alcance dos mais pobres, tais como a ênfase em formas alternativas de resolução de litígios através da mediação, arbitragem, busca da conciliação, formação de acordos ou mesmo a criação dos Juizados de Pequenas Causas, dos Juizados Especiais (a exemplo dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais - JECrim / Lei Nº 9.099/95), da criação da Defensoria Pública e da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Embora o acesso à justiça nos remeta ao acesso ao judiciário, é um equívoco concebêlos como sinônimos, uma vez que, como já foi dito, o acesso ao judiciário pode representar uma longa peregrinação pelos tribunais, além de fazer surgir um sentimento de desesperança e descrédito, naqueles que se aventuram nessa empreitada. O ingresso com um processo no judiciário, reivindicando por justiça, pode estar longe de garantir o acesso efetivo à justiça. Mais que isso, a desconfiança no sistema judiciário, leva o cidadão a se sentir desmotivado, o que faz com que o sentimento de descrédito na justiça e no judiciário se generalize. Assim, o Estado tem a responsabilidade de tornar possível o efetivo acesso à justiça, a partir de medidas que acelerem a resolução dos litígios, considerando que a morosidade na solução de conflitos, além de encarecer o processo, faz surgir a desconfiança e o descrédito no sistema judiciário, bem como na própria constituição ética do corpus jurídico. Tais questões nos remetem não apenas à natureza do ordenamento jurídico, mas à prática do judiciário,

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sendo necessário aprofundar a distinção do que pode ser qualificado como acesso à justiça e ao judiciário. A possibilidade de alguém mover um processo qualquer, exigindo o cumprimento de um direito que o cidadão considere ameaçado, ou que fora violado, não significa que ele teve acesso à justiça, mas tão somente ao judiciário, ou seja, ao sistema mantido pelo Estado. Mas, se a lide não se resolve, se isso não ocorre com a eficiência que se espera, se a conclusão do processo é morosa, em muitos casos podendo arrastar-se por anos, então, nesses casos, não estamos falando de efetivação da justiça, mas de uma esperança que, com o passar dos anos, se esvai e se transforma em um sonho inalcançável. Sendo assim, apesar do acesso ao judiciário, efetivamente a justiça não se fez. Garantir, pela lei, o acesso de qualquer pessoa ao sistema judiciário não equilibra os lados da balança. É preciso que as desigualdades materiais, que condicionam a vida do cidadão, não interfiram nas decisões dos tribunais. Ademais, a garantia de acesso à justiça não se concretiza apenas com o alargamento do número de pessoas que acessam o judiciário, mas, sobretudo, o acesso à justiça deve ser entendido como uma “garantia de acesso à ordem jurídica justa” (WATANABE, 1988). Nada mais que a justiça substancial, no tempo certo e em sintonia com as necessidades sociais. Esse modelo garantista faz valer o princípio de que a observância dos postulados da vigência e de validade das normas infraconstitucionais deve ser confrontada com o texto constitucional de forma crítica, de maneira que a norma tenha a sua efetividade comprovada. Desta forma, toda produção normativa, judiciária e executiva deve guardar estreita relação de respeito com os direitos fundamentais dos cidadãos, tanto no plano formal quanto no plano material. “Com efeito, a teoria geral do Garantismo, entendida como modelo de Direito, está baseada no respeito à dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais, com sujeição formal e material das práticas jurídicas aos conteúdos constitucionais, aqui trabalhados, dissociados de uma visão essencialista. Isto porque, diante da complexidade contemporânea, a legitimação do estado democrático de direito deve suplantar a mera democracia formal, para alcançar a democracia material, na qual os direitos fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da deslegitimação paulatina das instituições estatais” (ROSA, 2006, p.28). Questões relativas à natureza do sistema jurídico, à eficácia, eficiência, e justeza das ações do poder judiciário perpassam a fala, a vida dos Sem Teto — da demanda individual e pontual relativa à pensão alimentícia, às decisões de reintegração de posse, que colocam em cheque o princípio da função social da propriedade. Quando questionados se já tiveram necessidade de recorrer à justiça e do motivo pelo qual não o tinham feito a resposta mais frequente dos moradores das ocupações revela uma situação de desalento — eles não procuram porque sabem que a justiça não vai resolver ou simplesmente “entregaram nas mãos de Deus” a solução dos problemas enfrentados (Gráfico 1). Outros afirmam que “ainda vão recorrer” ou que têm “medo” ou “vergonha”. Como afirma Capelleti: “Em muitos países, as partes que buscam solução judicial precisam esperar dois ou três anos, ou mais, por uma decisão exequível. Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices de inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas causas, ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito” (CAPPELETTI; GARTH, 1998, p.35). Gráfico 1 — Motivo por não ter Recorrido à Justiça em Caso de Necessidade A situação de extrema precariedade na qual vivem os Sem Teto demanda urgência, celeridade no equacionamento das lides relativas à posse e uso da terra e dos imóveis ocupados e demanda, ainda que o direito coletivo e a função social da propriedade não se subordinem ao interesse particular. A título de exemplo, os processos das ocupações da Alfred e da Escola Nossa Senhora da Penha tramitaram durante seis e três anos, respectivamente, e a ação do judiciário, apesar da pressão do movimento social, subordinou o exercício da função social da propriedade ao direito do proprietário, tanto àquele de natureza pública quanto privada1. O processo referente à ocupação da Escola Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Nossa Senhora da Penha trata da reintegração Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. de posse e envolve o Estado da Bahia e os

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A lide da ocupação da Escola Nossa Senhora da Penha, localizada no bairro da Ribeira em Salvador, foi registrada como Processo Nº 2576647-3/2009 e a da Alfred, localizada nos Mares, foi registrada como Processo Nº 0096900-51-2006-5-05-0008-EXF, estando ambos registrados no Tribunal Regional do Trabalho - 5ª Região (a disputa em torno da posse do imóvel envolve questões trabalhistas).

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moradores. É um imóvel de propriedade do poder público municipal, cedido ao Estado para o funcionamento de uma escola estadual, que foi desativada em 2004. O prédio foi ocupado por 26 famílias do MSTS. O imóvel encontra-se em situação de risco em função da existência de problemas estruturais, apresentando risco de desabamento. A Justiça concedeu parecer favorável ao Estado, determinando a reintegração de posse do imóvel. A ação empreendida pelo poder público consistiu em envio de força policial, o que tornou difícil a situação dos moradores. O fundamento jurídico utilizado na ação foi o da necessidade de assegurar, resguardar e proteger a propriedade de “invasão”, ou seja, o que determina o art. 1.228 do Código Civil: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. (CÓDIGO CIVIL, 2002) O julgamento reportou-se unicamente ao caput do Artigo 1.228, deixando de mencionar, na sua fundamentação, o parágrafo primeiro do mencionado artigo, que trata da função social da propriedade, qual seja: “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” (CÓDIGO CIVIL, 2002). O outro caso exemplar é o da ocupação Alfred, que consiste em Concessão de Emissão e Reintegração de Posse, envolvendo o atual proprietário do imóvel e os ocupantes. Em verdade, esse processo dispõe sobre questões trabalhistas, uma vez que o referido imóvel foi utilizado como parte do pagamento de dívida trabalhista contraída pelos proprietários. A sentença proferida de reintegração da posse tem como fundamento jurídico o questionamento da posse também com base nos artigos do Código Civil. O judiciário determinou a reintegração e emissão de posse, ordenando a remoção dos moradores, que foram retirados. O que as experiências revelam é que a decisão judicial não submete o direito de propriedade, que não é absoluto, inclusive do Estado, à sua função social. A interpretação da lei, qualquer que seja, deve sujeitarse ao que preconiza a Constituição, que recomenda em várias passagens a observância da função social da propriedade como fundamento. Ainda em relação ao direito de propriedade, convém mencionar que o texto constitucional determina que todos têm o direito à propriedade (artigo 5º, inciso XXII), entretanto, submetea à observância da função social (inciso XXIII). O art. 170, que trata da ordem econômica, em seus incisos II e III, atenta para a propriedade privada e sua função social, enquanto que o inciso VII, do mesmo artigo, recomenda a redução das desigualdades regionais e sociais. O que se observa, portanto, é que ainda que não seja desejável a permanência dos moradores Sem Teto nos referidos imóveis em função de sua precariedade, as decisões judiciais tiveram como fundamento e motivação a garantia do direito de propriedade e não a situação de insegurança dos moradores, sendo a função social da propriedade colocada em um plano secundário — o que sugere o quão complexa pode ser a articulação interna das várias peças que constituem o sistema jurídico. O depoimento de Cirlene Conceição Santana, moradora e liderança do movimento MLMN, que passou pela experiência de reintegração de posse é emblemático: “a juíza deu uma liminar de despejo em 2007, mas ela não analisou a origem da escritura da propriedade do prédio. Descobrimos que ela pertencia a quatro donos e uma empresa, apenas um dos herdeiros entrou na justiça e quando o Ministério Público passou a acompanhar o processo descobriu que também o Mosteiro de São Bento tem uma parte aqui (...). A gente chama muito a atenção para o fato de que eles olham para o processo com a visão do proprietário e não com a visão do coletivo. Qual será o destino destas 97 famílias que aqui estavam? Então, isso não é justiça (...). A gente não entrou aqui para tomar o imóvel, mas para pressionar, para termos nossos direitos (...). Se morar é um privilégio, ocupar é nosso direito (...). A gente fica magoada porque depois de tanta luta pelo nosso direito, encontramos pessoas que fazem parte da Justiça mas que não ajudam a fazer justiça”. Não havia espaço para discussão sobre o significado social daquela desapropriação. Toda a discussão acerca do justo empalideceu e perdeu força no decorrer do processo judicial, o que passou a importar, naquele momento, foi a sentença — a isso ficou resumida a ordem jurídica justa. Em relação ao acesso à justiça, o representante da Comissão de Justiça e Paz de Salvador, à época, Yuri Falcão, coloca de forma clara como o direito atinge a luta dos movimentos de luta pela moradia. “É difícil o movimento ter sucesso em uma ação possessória. Na verdade, nossa postura é fazer com que a liminar não saia imediatamente e que as pessoas sejam expulsas. Na verdade, a judicialização da questão é sempre negativa para o próprio movimento. Ela se dá via ação de reintegração de posse, e apesar do movimento ocupar imóveis que estão vazios há anos, imóveis que não cumprem a função social da propriedade. Os requisitos para reintegração são poucos e as ações são desfavoráveis ao movimento. Os juízes confundem a posse com a propriedade do imóvel e do terreno e quem sai ganhando é o proprietário. A sociedade perde de várias formas. A cidade gasta com a implantação de serviços públicos, o terreno se valoriza e quem ganha é o proprietário.” Segundo Yuri, a ocupação de um prédio do Tribunal de Justiça por parte do movimento

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dos Sem Teto foi um exemplo de como os poderes públicos protegem a propriedade, independente da sua função social. “Na ocupação do prédio do Tribunal de Justiça, desocupado há mais de 10 anos, a liminar de reintegração de posse saiu em seis horas. Fomos ingênuos, imaginando que, em sendo um prédio do judiciário, a postura seria outra. O judiciário, enquanto proprietário foi o nosso pior algoz. O oficial de justiça queria executar a ordem de despejo imediatamente. Foi a polícia quem disse, para o próprio judiciário, que precisava primeiro entrar com um processo judicial. Foi a liminar mais rápida que recebemos! O prédio, até hoje, continua sem uso. Juridicamente, dá-se ao proprietário muitos elementos para que, mesmo sem cumprir qualquer função social, a reintegração de posse se faça.” É preciso registrar que “a ocupação é um ato político contra os imóveis que não cumprem a sua função social,” segundo Yuri, e que “o exercício do direito à moradia não envolve apenas questões jurídicas. É claro que questões jurídicas estão envolvidas. Mas, fundamentalmente, as ocupações colocam questões de natureza social e política. É preciso fazer pressão política frente ao Estado para que a população possa, de fato, ter acesso aos direitos fundamentais.” Yuri ressalta a natureza dos compromissos e posturas assumidas pelo Ministério Público e pela Defensoria: “às vezes o Ministério Público tem sido um parceiro, às vezes não. Eles ajudam no questionamento dos limites estritos do Código Civil, de corte estritamente liberal, e da sua aplicabilidade em um Estado democrático de direito. Por outro lado, às vezes o Ministério reproduz a lógica de criminalização do movimento, de defesa da propriedade — a relação é complexa e ambígua. A Defensoria Pública tem uma postura muito boa. Eles tem uma intervenção de excelente nível, de qualidade técnica e política, de percepção das necessidades das pessoas. A defensora Monica Aragão, têm feito um trabalho excelente. São os novos ventos democráticos que passaram pela Defensoria.” Tentando qualificar a ação da Justiça Pedro Cardoso, afirma: “em sete anos de existência do movimento realizamos várias ocupações, hoje temos praticamente um terço do que tínhamos antes o que dá uma ideia do numero de reintegrações de posse que já sofremos. Quando analisamos a justificativa dos juízes para deferir as reintegrações de posse, o principal argumento é que tem que ser garantido o direito à propriedade privada. O próprio juiz não reconhece a função social da propriedade. Em muitas situações o terreno está abandonado há mais de 10 anos, servindo para desova, para assassinato de pessoas, que muitas vezes são cometidos pela própria polícia e não somente pelos marginais em disputas por pontos de drogas (...). E o Estado se posiciona sempre a favor da iniciativa privada (...). Não somos vagabundos, fazendo ocupações. A ocupação se justifica e se legitima exatamente pela ausência do poder público. Está no artigo 6º da Constituição que a moradia é um direito de todos, e que o governo tem que prover moradia para o povo. Quando o governo sonega este direito ele legitima as ocupações”. Desse modo, o direito à ocupação se constitui quando o Estado faz prevalecer o interesse do proprietário, em situações nas quais a função social da propriedade não está sendo cumprida. Configura-se, então, uma situação de conflito, no plano estritamente jurídico como também social, instaurando a possibilidade de constituição de novas ordens sociais como também novos ordenamentos jurídicos — o que remete, exatamente, ao já referido pluralismo jurídico. É nesse contexto que recrudescem a desconfiança e o desalento no sistema judiciário e nos institutos jurídicos que deveriam efetivar a justiça. Como afirma Gilberto dos Santos Cruz (GG), o Movimento dos Sem Teto existe porque não se cumpre a lei: “O movimento tem como objetivo fazer cumprir o que está na Constituição. Hoje, o acesso ao judiciário pode ser considerado como bom, mas a solução dos problemas é outra história... Abriram somente uma porta, mas existem tantas outras portas fechadas. Falta a vontade política para resolver as questões de forma favorável aos Sem Teto. O que pode mudar essa situação é o enfrentamento com passeatas, marchas... O governo se diz parceiro mas é quem mais apronta com a gente... A gente encaminha demandas, exigimos o que temos direito mas o Estado é lento ou melhor, ele é lento pra uns, pra outros não.” Nesse contexto, o movimento social termina por se constituir em mecanismo de pressão, de garantia de direitos e mesmo de proteção ao morador. O depoimento de uma liderança de uma ocupação revela o significado que o movimento e a liderança têm no cotidiano, na vida na ocupação: “(...) em janeiro de 2008 aconteceu um fórum social nacional do movimento de luta pela moradia que eu não fui. Mas o dono (do imóvel) achou que eu tivesse viajado e mandou dois oficiais de justiça, um mini caminhão baú e quatro policiais, escolhidos a dedo, que eram uns armários para despejar as pessoas.” Diante da presença da liderança, o Estado recuou. Os policiais são o Estado, a manutenção da ordem, o cumprimento da ordem de despejo, a proteção dos interesses do proprietário, da propriedade privada, independente da sua função social. Não há espaço para discussão sobre a justeza ou não da desapropriação ou do despejo. Toda a discussão acerca do justo se empalidece e perde força no decorrer dos processos judiciais. O que importa é a sentença de despejo e é a isso que fica resumida a ordem jurídica. Em quem e em quais instituições os Sem Teto confiam? Eles confiam no Conselho Tutelar, 78,54% e no movimento social, com 77,07% (Gráfico 2). A referência ao Conselho Tutelar se justifica pela existência de conflitos

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relacionados com a criança e adolescência, enquanto Gráfico 2 — Confiança nas Instituições que a referência ao movimento social pelo fato desse ser o mecanismo através do qual o acesso à moradia se torna possível. Em seguida, aparecem a escola, com 75,07%, a Defensoria Pública com 72,63%, o Ministério Público com 70,19%, a Imprensa com 61,19% e a Justiça com 60,76%. As referências à Defensoria e ao Ministério Público estão diretamente relacionadas ao papel que esses entes desenvolvem junto aos movimentos sociais nos embates que envolvem a luta pela moradia. Desse modo, é através dos órgãos voltados à defesa dos interesses sociais e coletivos, dos movimentos sociais que essa parcela da população busca garantir o acesso à justiça. A participação no movimento Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de de luta pela moradia é, assim, uma “forma Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. de sonhar” com a moradia, pois é através da pressão exercida pelo movimento social e não exatamente através dos mecanismos instituídos pelo sistema judiciário e pelo Estado, que os Sem Teto vislumbram a possibilidade de concretização do direito à moradia. Dentre os entes considerados como menos confiáveis estão o empresariado, com 29,16%; o Governo com 46,45% e a Segurança Pública com 52,63%. O Sistema Único de Saúde, a Igreja Evangélica, Sindicatos e a Igreja Católica apresentam níveis de confianças considerados como intermediários. A análise dos dados relativos à motivação de busca do Conselho Tutelar, Defensoria Pública e Ministério Público envolvem, sobretudo, conflito sobre ação de guarda, pensão alimentícia e separação conjugal. Particularmente em relação ao Ministério Público e à Defensoria Pública, vale destacar sua atuação na defesa dos Sem Teto, explicitada na fala de Monica Aragão, defensora pública: “a Defensoria Pública trata do acesso à justiça. Os Sem Teto são excluídos de tudo. Não só do direito à moradia, que é violado, mas de uma série de outros direitos: violação do direito da mulher; direito da criança e do adolescente; direito à vaga na escola; direito à creche, de todos os direitos que o cidadão tem. Os Sem Teto não têm os direitos mais elementares (...). Eles são invisíveis e a sociedade faz de conta que eles não existem. O direito não se organizou para tratar essas demandas, para atender essa população, objeto da violência. Temos, de um lado, os vazios urbanos e do outro, as ocupações e o movimento social, pressionando para que esse direito social seja alcançado. Os conflitos nascem dessa tensão. O judiciário tem que estar preparado para esses conflitos”. A representante da Defensoria conclui: “não há hierarquia entre direito à propriedade e direito à moradia, o direito à propriedade não é mais direito que o direito à moradia. Penso que o direito à propriedade está mais limitado que o direito à moradia (...). O direito à propriedade é constitucional e sofre limitação pela função social da propriedade, ele não é absoluto.” A confiança dos moradores na Defensoria Pública demonstra que o trabalho realizado Gráfico 3 — Confiança na Justiça por essa instituição traz alento e esperança na garantia de direitos. Dentre os principais problemas que levam as pessoas a acessar órgãos da Justiça, destacam-se as “brigas” entre os moradores, como também os conflitos relacionados com o tráfico de drogas. A presença do Estado na ocupação se dá, sobretudo, através da polícia, particularmente nas referidas situações. Quando analisamos mais detalhadamente os dados relativos à confiança na Justiça pelos Sem Teto, constatamos 60,76% que declararam confiar na Justiça em contraponto aos 25,09% que declararam não confiar (Gráfico 3). Quando questionados se já tinham sido objeto de discriminação ao recorrer a instituições da Justiça e de segurança, 93,71% declararam que Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. não. Os que responderam de forma afirmativa

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atribuem a discriminação ao fato de morarem na ocupação, ao fato de não ter endereço fixo, por ser pobre, negro, pela “aparência”, por ser mulher e por ser pobre e negro. Historicamente, o direito à segurança está previsto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC) de 1789: “o fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança (grifo nosso) e a resistência à opressão” (art. 2º). Encontramos traços desse direito antes mesmo da DDHC, precisamente na Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776 que, em seu art. 1º afirma que “todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança (grifo nosso)” (RODRIGUES, 2009). No Brasil, em todas as Constituições, tanto democráticas, quanto autoritárias, se preservou de forma expressa o direito à segurança: de 1824 (art. 179), 1891 (art. 72), 1934 (art. 113), 1937 (at. 122), 1946 (art. 141), 1967 (art. 150), 1969 (art. 153) e a de 1988 (art. 5º, caput)” (RODRIGUES, 2009, p.34). O termo “segurança” encerra em si não apenas a noção de segurança pública como estamos acostumados, àquela que é de responsabilidade apenas dos organismos estatais. De certa maneira, a expressão segurança pública é mais ampla e em torno dela gravita a noção de segurança humana “utilizada em 1944 pela Organização das Nações Unidas, num dos informes que realiza anualmente, no marco do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)” (RODRIGUES, 2009, p.35). Desse modo, a noção de segurança pública está inserida em um conceito mais amplo que é o da segurança humana e envolve a segurança econômica, política, alimentar, ambiental, física ou pessoal, segurança na saúde, da comunidade, etc. O acesso à segurança pelos Sem Teto é problemático por vários motivos. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a exposição ao risco e a situações de violência é socialmente diferenciada e que a condição de exclusão dos Sem Teto potencializa tal exposição. Quando perguntados sobre a exposição à violência, 66,61% declararam não terem sido expostos a nenhuma situação, enquanto que 33,39% afirmaram terem sido vítimas dos mais variados tipos de ocorrência, como agressão física e verbal, espancamento, briga de rua, assalto, roubo, assédio, estupro, violência doméstica, agressão da polícia, bala perdida, ameaça de morte, discriminação por morar em ocupação, tentativa de assassinato. A violência tem origem, às vezes, no companheiro, no vizinho, em um cidadão qualquer, em grupos, milícias organizadas, no tráfico de drogas e em grupos vinculados a instituições do próprio sistema de segurança do Estado. “Somos às vezes visitados por pessoas encapuzadas, em carro preto, que caçam pessoas. Nós temos medo, nós temos muito medo”, afirma uma moradora. Declarações semelhantes foram registradas várias vezes ao longo da pesquisa: “a polícia quando vem aqui é para matar, eles trazem gente de fora para matar aqui, eles trazem as pessoas dentro do camburão, colocam dentro da ocupação e matam aqui. Eles dizem que trocaram tiros, é tudo mentira. Dão alguns tiros para cima e depois matam mesmo. Outro dia trouxeram um senhor com defeito na perna, que mal conseguia andar. Eles não tiveram piedade. Mataram também! Depois pegaram um rapaz na porta da escola, trouxeram para cá e mataram. Outra vez trouxeram uma pessoa encapuzada e mataram. Isso é uma falta de respeito, pois eles fazem isso na frente de nossas crianças. Eu procurei o Comandante da região e ele me disse que era para anotar a placa da viatura. Mas como vamos anotar a placa da viatura, se eles entram aqui gritando que somos vagabundos, com a arma na nossa cabeça? A gente não pode nem olhar para o lado. Eles dizem que ninguém vai se importar mesmo, porque somos invasores, um bando de vagabundos! Eles metem o pé nas portas, gritam, é um horror! Quando a polícia chega, as crianças saem gritando: corre, corre, que lá vem o ladrão! Como podemos achar que a polícia vai nos proteger? Essa é a polícia que as nossas crianças conhecem”. Quando perguntamos sobre a frequência com que isso acontece, eles nos responderam: “isso é toda semana.” As ocupações são vistas e vividas como territórios sem lei, nos quais a violência contra os moradores, o “acerto de contas” são impunes. “A gente enfrenta uma dificuldade muito grande, porque a sociedade acha que pobre e preto é ladrão, é marginal. Nos bairros de elite eles não fazem nada. Mas aqui, para a polícia, todo mundo é vagabundo e puta e não tem como dialogar com eles. Eles não respeitam ninguém. Eles chegam, colocam arma na cabeça do povo e acham que podem tudo. A gente só vai conseguir romper com essa situação, quando o governo investir no social e entrar na ocupação.” Às vezes, a disputa pela terra, por motivos distintos, alcança de forma transversa, o agente público, em tese, responsável pela garantia e segurança da propriedade. “No começo da invasão, um policial tentou tomar o terreno destinado a nossa associação dos moradores. Eu precisei enfrentar ele. Ele me ameaçou, tirou a arma e disse que eu tinha peito largo, que ele ia trocar a bala por role point, uma bala especial. Ele veio com outro policial militar, começou a invadir os terrenos que já tinham barracos, desmanchando e marcando o terreno. Eu falei com um Capitão que morava vizinho, ligamos para o batalhão e na mesma hora três viaturas chegaram. Enquadraram ele, chamaram na “chincha”. O colega dele que estava junto com ele fazendo isso morreu, Deus sabe por quê. A moto dele apareceu carbonizada. Então, deixaram a gente em paz. Foi ai que coloquei a placa da associação.”

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O fato é que toda relação com a política é eivada de conflito. O depoimento de uma moradora de uma ocupação localizada no Centro da Cidade revela a situação extrema, limítrofe de violência a qual estão submetidos os moradores das ocupações. Questionada sobre as semelhanças e diferenças entre o tratamento dado pela polícia na época dos governos autoritários e nos tempos atuais ela afirma de modo enfático: “o povo está sempre acreditando que a vida vai melhorar. Eu voto de novo em Lula e em Dilma, mas em Wagner, não mais. Ele enganou a gente. A especulação imobiliária esta ganhando em Salvador. Pensei que ele tivesse um projeto de moradia, de educação, de segurança melhor. Somos humilhados pela polícia. Eles nos tratam como vermes, inclusive os policiais da nossa cor, esses são os piores. Eu fiz uma ocupação aqui perto, no prédio do Sindicado dos Rodoviários. Sempre gosto de ocupar cedo, ocupar à noite parece invasão e não ocupação. Ocupamos pelos fundos, abrimos a porta da frente e colocamos a bandeira do movimento. Quando a gente acabou de abrir a porta, a polícia chegou. Quem estava no comando era uma mulher. Só tinha mulher nessa ocupação (tinha uma senhora de 62 anos). Quando vi que era uma tenente imaginei que ela seria sensível à nossa luta. Ela mandou a gente desocupar o prédio. A gente se recusou a sair. Ela olhou pra cima, viu a bandeira e disse: não vamos poder tirar vocês daí porque é um grupo organizado. O governo que resolva, junto com a justiça. Aí ela disse: ‘Vocês saem do Subúrbio para ocupar o Centro. Aqui é difícil de matar. Mas a gente tira daqui e leva pra lá. Mata lá.’ Tinham outros soldados com ela. Eu perguntei se ela estava falando por toda a corporação ou só por ela. Ela recuou, entrou no carro e um policial começou a conversar com ela. Então, eu disse pra ela: a gente sabe que quem mata os jovens na Suburbana são vocês. Mas eu gostaria que a Senhora nos respeitasse. Imagine se a gente estivesse agora em Escada, em Paripe e a senhora dissesse que pega a gente daqui do Centro e leva pra matar lá... Até hoje, quando eu lembro disso, meu olhos enchem de lágrimas. Isso foi na época em que pegaram dois jovens em Pero Vaz e mataram lá no Subúrbio. Enterraram a menina viva.” Uma moradora de uma ocupação no Subúrbio traz o seguinte depoimento: “Antigamente aqui era sossegado. Hoje é um desespero. Meu filho de 25 anos, com dois filhos, um menino de 6 e uma menina de 2 anos, foi assassinado. Ele estava no bar aqui em frente tomando uma cerveja quando a polícia chegou e, com uma arma, mandou ele entrar no carro. Ele não quis, e eles disseram: ou você entra ou a gente mata você aqui! O corpo dele foi achado depois na geladeira do Nina Rodrigues. Até hoje o filho dele chora e pergunta quem matou o pai. Eu digo pra ele: só Deus sabe quem matou teu pai! Dizem que ele apontou uma arma para a polícia mas ele não era menino disso.” São incontáveis os relatos de violência: “Ninha morava no Calabetão, ela chegou para mim e disse: Pedro, a polícia chegou lá em casa e colocou o plástico na cabeça do meu filho, quase matou meu filho. Eu estou querendo dar uma queixa, o que você acha? Eu disse: você tem que dar a queixa! Seis dias depois ela, o filho e o marido foram assassinados. Eu fiquei mais ou menos uns seis meses com remorso, eu fiquei fudido com isso! Foi aí que eu pensei: e a minha vida? Quantas vezes eu sofri ameaças? Eu fui preso, tomei buraco de bala. Nesse mesmo dia eu tomei uma fantada que quebrou minha clavícula. Não podemos fazer concessão e não denunciar este estado burguês que está aí. Hoje a realidade é outra, muito diferente da década de 80, hoje tem um processo de comunicação muito mais rápido, tem um processo de articulação da própria polícia muito mais rápido, mas também tem um processo de ação da corregedoria muito mais rápido do que existia antes e não se tem a mentalidade política imposta pelo carlismo, de abafar tudo”, afirma Pedro Cardoso.” Além da violência praticada pelo próprio Estado, os moradores das ocupações convivem diariamente com a violência associada ao tráfico de drogas. “O tráfico é muito grande, não respeitam ninguém. Acham que são donos de tudo, ameaçam todo mundo, colocam arma na cara de todos, batem em todos. Eu já não morri por força de Deus. Já fizeram até emboscada para mim. Eu tenho um companheiro, isso me ajuda um pouco, ele não é de baixar a cabeça não.” Em outro depoimento uma moradora afirma: “a ocupação vive uma situação complicada. Um dos líderes de lá foi assassinado pelos bandidos que ele ajudou a tirar da cadeia. Ele vem de uma família abastadada. Apesar de ter seus defeitos ele era uma pessoa solidária. Depois que ele morreu a situação piorou ainda mais. A coordenadora que continuou o trabalho tem ligações com o pessoal do tráfico e eles obrigam as pessoas a pagarem taxa de energia, de condomínio. De 2006 até hoje aconteceram 5 assassinatos. O último foi há um mês atrás. As pessoas que moravam lá, que já estavam em outro lugar, voltaram pra assassinar um grupo de moradores. Como existem várias pessoas envolvidas, sempre tem batida policial na ocupação. A pessoa que coordena a ocupação é, na verdade, coordenada por um cara da Marinha. Na verdade, os moradores são constantemente intimidados pelo pessoal do tráfico e da polícia. Para a polícia, estando ali dentro é marginal. Um dia, meu filho desceu pra pegar um vasilhame de água e a polícia estava fazendo uma batida. Eu entrei na frente, mostrei meus documentos e depois de muita luta foi que deixaram a gente sair. Fiquei desesperada! Nunca tinha acontecido isso com a gente. Não existe segurança nenhuma em morar em uma ocupação. O poder público poderia fazer a diferença nessas ocupações. As pessoas se tornam criminosas porque o poder público é omisso. Na ocupação tem 30 crianças e mulheres grávidas. Tem pessoas com quatro, cinco filhos, que não têm qualificação e não tem como formar os filhos. Qual o futuro dessas crianças?” Existem, por parte dos coordenadores, tentativas não apenas de estabelecer regras na ocupação (como horário

Acesso à Justiça e Segurança pelos Sem Teto

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de entrada e saída, responsabilidades em relação à manutenção e limpeza da área), mas de ter um certo controle sobre quem entra e quem sai e vários são os critérios utilizados para a realização dessa seleção, como demonstra o depoimento a seguir. “Quando alguém quer morar na ocupação a gente faz um levantamento pra saber de quem se trata — o cara vai ter que me dar um atestado de antecedente, é em cima disso que eu vou ver se ele pode morar aqui.” Vale destacar que esse controle é mais efetivo nas ocupações de prédio, onde é possível se estabelecer apenas uma entrada e saída do local. No caso das ocupações em terreno o controle por parte das coordenações é mais difícil, em função da dificuldade de monitorar o acesso às mesmas. Ainda assim as situações de conflito são permanentes: “uma vez chegou aqui um rapaz, ele me chamava de pai. Depois começou comprando maconha na boca e revendendo na ocupação. Eu chamei a Rondesp e ele foi levado daqui. Isso que eu fiz acabou sendo para o bem dele — se o marginal, se o dono da boca daqui fica sabendo do concorrente, Gráfico 4 — Confiança na Segurança Pública ele estava morto e eu ainda iria ficar devendo favor ao traficante. Ele estava montando, aqui dentro, uma boca, vizinha a outra boca, a 200 metros daqui. Mandei desmanchar o barraco e ele não voltou mais. A vida de vagabundo é curta, a vida de marginal é curta, leva 20 anos. Dificilmente você vê marginal chegar a 20 anos, dificilmente! Quando questionados sobre o nível de confiança na segurança pública, 52,63% responderam que confiam; 30,89% declararam não confiar e 15,83% afirmaram não ter nada a dizer, alternativa que pode significar que de fato não há uma opinião formada ou mascarar uma posição negativa (Gráfico 4). Comparativamente com outras instituições, a segurança pública ocupa a antepenúltima Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. posição em termos de aceitação por parte dos moradores das ocupações. É uma posição ruim, mas o percentual de aceitação é relativamente alto. Esses dados conflitam com os depoimentos de violência policial relatados pelos moradores das ocupações como também refletem a dúbia situação de protetor e também de agressor, de promotor da violência. As intervenções policiais nas ocupações, em geral, têm caráter violento, sendo consideradas como desumanas e humilhantes, ferindo os direitos fundamentais do indivíduo, segundo os moradores. No âmbito do universo das ocupações, os acessos à justiça e à segurança pública são eivados de conflito. A presença do Estado tem, aqui, significados muito particulares: ele faz-se presente através do juiz e da força policial que viabilizam os processos de reintegração de posse, garante a subordinação da função social da propriedade ao interesse privado e criminaliza o movimento social; faz-se presente combatendo o tráfico e a criminalidade, mas também de forma indiscriminada, transforma o morador da ocupação em objeto da violência — o que se traduz em uma perversa associação entre pobreza e marginalidade e termina por expor trabalhadores, pessoas honestas e indefesas a situações de extremo risco. Por outro lado, a ausência do Estado cria vazios que são preenchidos por ordenamentos nem sempre socialmente justos e adequados, como a gestão pelo tráfico de drogas, que colocam os Sem Teto, particularmente mulheres e crianças, em uma condição de extrema vulnerabilidade social. Enfim, a relação entre os Sem Teto e o Estado, do ponto de vista do acesso à justiça e à segurança é duplamente perversa — ele se faz presente, quase que invariavelmente, quando os moradores são colocados na condição de “foras da lei” estando ausente, com algumas alvissareiras exceções, quando se trata de proteger os interesses e a integridade dos cidadãos Sem Teto.

68 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

VII - Política Pública e Direito de Morar Historicamente, a política habitacional em suas várias escalas de poder, tem contribuído pouco no sentido de tornar realidade o direito constitucionalmente reconhecido à moradia, para a população situada nas menores faixas de renda. Enquanto os países capitalistas centrais tiveram a possibilidade de, através do Estado do bem estar social, concretizar algumas das promessas da modernidade, nos países situados na periferia do sistema, tais promessas são esvaziadas, por um processo de desenvolvimento que sequer conseguiu universalizar direitos consagrados como universais como a educação, saúde, saneamento, moradia e trabalho (SANTOS, 1990). O fato é que políticas públicas e direito de morar, no Brasil, nem sempre são consonantes. A natureza excludente do processo de desenvolvimento capitalista, a captura do Estado por interesses privados e o patrimonialismo fizeram com que as questões fundiária, rural e urbana fossem tratadas da perspectiva dos interesses dos grandes proprietários, especulativos e predatórios, com consequências sociais e ambientais graves (MARICATO, 2008). Compreendidas como diretrizes, princípios e intervenções do Estado, as políticas públicas são fruto da negociação, pressão, gestão de conflitos e mobilização em torno dos distintos interesses que conformam a estrutura de classes. Destarte, as políticas públicas instituem agendas, planos, programas e projetos que refletem interesses sociais hegemônicos — estando mais ou menos permeadas por demandas sociais a depender da capacidade de mobilização e influência de entes que encarnam o interesse coletivo e difuso. Desse modo, a natureza da política pública remete-nos a correlação de forças entre as classes sociais, as formas particulares de estruturação do Estado, a natureza da participação da sociedade civil e organização dos movimentos sociais, enfim, da correlação de força entre as distintas classes sociais e respectivas relações entre raça e gênero em determinado momento histórico (TEIXEIRA, 1999). A história mais recente das políticas públicas de habitação no Brasil tem início com a criação da Fundação Casa Popular em 1946, que não conseguiu atender à população de baixa renda, sendo extinta com o golpe militar em 1964. A partir de então, foram instituídos o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, o Banco Nacional de Habitação - BNH e o Sistema Financeiro de Habitação - SFH, que se encarregaram da construção de moradias no país, através de recursos provenientes principalmente do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). A criação do BNH impulsionou a indústria da construção civil, gerando empregos e injetando recursos na economia — na condição de banco, o BNH tinha responsabilidades e metas econômicas, beneficiando, sobretudo, os segmentos sociais com capacidade de pagar pela moradia, relegando os segmentos sociais situados nas menores faixas de renda à própria sorte. O sonho da casa própria, acalentado nos anos de 1970, aos poucos foi se diluindo com as ações “governamentais que visaram, por vezes, apenas ao reaquecimento da economia, sem qualquer preocupação com a possibilidade de manutenção e preservação da capacidade econômica de milhares de mutuários submetidos às normas impostas pelo sistema financeiro. Por tudo isso, a expressão cunhada transformou-se para muitos em o sonho que virara pesadelo” (SOUZA, 2008, p.58). O BNH foi extinto em 1985 e a Caixa Econômica Federal CEF assumiu seu espólio. No Brasil, assim como em muitos países da América Latina, estima-se que apenas 30% da população tenham acesso à moradia através do mercado privado. Resta à população excluída do mercado formal a ocupação de áreas de risco, ambientalmente instáveis, como córregos, mangues, beira de rios, fundo de vales e áreas alagáveis, sendo estas as mais atingidas por enchentes, deslizamentos, poluição de recursos hídricos e epidemias. Desse modo, “a negação do direito à cidade se expressa na irregularidade fundiária, no déficit habitacional e na habitação inadequada, na precariedade e deficiência do saneamento ambiental, na baixa mobilidade e qualidade do transporte coletivo e na degradação ambiental” (MARICATO, 2008, p.3). Estudo realizado pela Fundação João Pinheiro traz um quadro ilustrativo da composição do déficit nas regiões metropolitanas brasileiras. Segundo dados da PNAD de 2008, o déficit habitacional no país é de 5.546 milhões de domicílios, sendo que desses, 4.629 milhões estão localizados nas áreas urbanas. A distribuição regional apresenta o seguinte quadro: “36,9% localizam-se na região Sudeste, o que corresponde a 2.046 milhões de unidades. Em seguida vem a região Nordeste com 1.946 milhão de moradias estimadas como déficit, o que corresponde a 35,1% do total” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2011, p.29). “Nas Unidades da Federação, os valores absolutos do déficit habitacional são muito expressivos, em São Paulo, único estado cuja necessidade de novas unidades habitacionais ultrapassa um milhão de moradias, correspondendo a 1.060 milhão, com 8,2% dos seus domicílios particulares permanentes. Desse total, 510 mil unidades estão na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Em seguida vem a Bahia, com 485 mil moradias em déficit habitacional ou 11,5%, sendo 116 mil na RM de Salvador; Minas Gerais, com 474 mil ou 7,8%, dos quais 115 mil estão na RM de Belo Horizonte; Maranhão, com 434 mil, 26,9%; e Rio de Janeiro, com 426 mil ou 8,1%, sendo que na RM deste

Política Pública e Direito de Morar

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estado estão expressivos 320 mil domicílios” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2011, p. 31). Quando se qualifica o referido déficit habitacional percebe-se que a coabitação familiar (a soma das famílias conviventes secundárias), totaliza 1.182 milhões nas áreas urbanas, e o ônus excessivo com aluguel (o comprometimento de mais de trinta por cento da renda com aluguel por parte das famílias de até três salários mínimos), em torno de 1.888 milhão de famílias urbanas no país, estando os referidos números concentrados na região Sudeste. A habitação precária (compreendida aqui como domicílios improvisados e rústicos), com 1.138 milhão de habitações, está concentrada, sobretudo, nas áreas rurais e no Nordeste. A análise do déficit habitacional urbano revela que, comparativamente, a Região Metropolitana de Salvador ocupa o quinto lugar com um déficit de 114.524 mil domicílios, sendo superada por Belém, Distrito Federal, Recife e Fortaleza (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2011). Gráfico 1 — Déficit Habitacional Urbano em Relação aos Domicílios Particulares Permanentes — RMs (2008)

Fonte: PNAD (IBGE) / Ministério das Cidades / Fundação João Pinheiro, 2011.

A composição do déficit urbano da Região Metropolitana de Salvador segue o padrão nacional, sendo 48,6% qualificado como coabitação e 46,4% como decorrente do ônus excessivo com o aluguel. Esses números, a exemplo do que acontece no plano nacional, revelam uma subestimação do déficit qualificado como qualitativo. A análise da distribuição do déficit urbano revela a sua absoluta concentração na faixa de zero a três salários mínimos (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2011).

Gráfico 2 — Déficit Habitacional Urbano Segundo Faixa de Renda em Relação aos Domicílios Particulares Permanentes — RMs (2008)

Fonte: PNAD (IBGE), Fundação João Pinheiro, Ministério das Cidades, 2011.

70 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Além dos referidos números, importa registrar a observação de Angela Gordilho, segundo a qual a cidade do Salvador apresenta um déficit habitacional qualitativo estimado em certa de 400 mil domicílios, o que equivale a dizer que cerca de 60% da população mora em condições precárias (falta de infraestrutura urbana e do imóvel, regularização ou legalização fundiária) (GORDILHO, 2007). Em verdade, “o crescimento do déficit habitacional no Brasil é resultado direto de dois fatores: o alto preço da terra e a ausência de políticas públicas voltadas para o segmento mais pobre da população. A terra e a casa, como mercadorias, são inacessíveis para grande parte da população que, sem alternativa, é expulsa para as periferias da não-cidade, desprovida de equipamentos e serviços que asseguram uma moradia digna. Dessa forma, parcelas crescentes da população vão sendo excluídas. A política habitacional governamental, por sua vez, vem historicamente reforçando essa exclusão, pois o modelo, baseado no financiamento não atinge parcela da população com renda inferior a três salários mínimos” (CESE, 2010, p. 6). Segundo o estudo realizado pela Fundação João Pinheiro “Um fator que se destaca a cada nova atualização do estudo sobre o déficit habitacional é o grande montante dos domicílios vagos. A aparente contradição entre um déficit de moradias ao lado de um enorme número de imóveis vagos é sempre uma fonte de questionamento. É apontada também a impossibilidade de obtenção de maiores detalhes sobre as condições, localização, situação de propriedade e o padrão da construção desse estoque de moradia. Pode-se obter, apenas, a distinção entre imóveis em construção ou reforma, em condições de serem ocupados e em ruínas. Uma caracterização maior é de vital importância para o delineamento do perfil desses domicílios e a identificação da parcela que mais provavelmente poderia ser direcionada a suprir parte das carências de habitação da população” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2011, p. 42). Na região Metropolitana de Salvador enquanto o déficit habitacional urbano é de 114.524 o numero de domicílios vagos é de 140.890, o que significa que temos imóveis suficientes para acabar com o déficit habitacional (Tabela 1).

Gráfico 3 — Déficit Habitacional Urbano e Domicílios Vagos — RMs (2008)

Fonte: PNAD (IBGE), Fundação João Pinheiro, Ministério das Cidades, 2011.

Política Pública e Direito de Morar

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72 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

318.818

504.403

61.716

73.713

102.548

Rio de Janeiro

São Paulo

Curitiba

Porto Alegre

Distrito Federal

5.234.640

1.834.287

29.908

126.316

60.882

624.833

463.259

168.206

140.890

102.744

91.551

55.606

N

10,6

11,6

4,2

9,7

6,4

10,3

12,0

10,8

12,5

9,4

9,4

10,2

%

88,6

86,6

84,8

83,0

78,0

80,8

85,7

91,0

92,5

95,1

93,5

87,1

0a3

7,5

9,0

5,3

10,9

13,7

13,4

8,9

4,8

5,1

2,9

3,8

7,7

Mais de 3a5

3,2

4,0

6,5

5,3

6,0

4,8

4,5

3,6

1,5

1,7

1,9

4,5

Mais de 5 a 10

0,8

0,9

3,4

0,8

2,4

0,9

0,8

0,6

0,9

0,3

0,9

0,7

Mais de 10

Déficit Habitacional segundo Faixa de Renda Média Domiciliar Mensal (Em SM)

Dado relativo aos domicílios urbanos duráveis em relação aos domicílios particulares permanentes Percentual em relação aos domicílios particulares permanentes

9,4

8,7

14,4

7,2

6,5

8,3

8,3

7,4

10,2

11,4

10,4

15,0

%

Domicílios Vagos em Condições de Serem Ocupados

Fonte: PNAD (IBGE), Fundação João Pinheiro, Ministério das Cidades, 2011.

2

1

115.278

Belo Horizonte

4.629.832

114.524

Salvador

Brasil

123.891

Recife

1.516.322

101.266

Fortaleza

RMs

82.713

N

Habitacional2

Déficit

Belém

RMs

Tabela 01 — Déficit Habitacional Urbano e Condições de Moradia (Regiões Metropolitanas - 2008)1

11,1

6,3

7,5

27,2

10,8

3,9

6,0

1,1

2,8

7,7

6,9

4,7

Habitação Precária

41,0

37,4

35,1

30,7

32,4

29,6

32,7

39,5

48,6

45,0

47,8

71,3

Coabitação Familiar

40,8

47,1

53,7

38,2

52,0

50,9

53,3

50,9

46,4

44,8

37,1

18,3

Ônus Excessivo com Aluguel

Composição do Déficit

7,1

9,2

3,7

3,9

4,7

15,7

8,0

8,5

2,2

2,6

8,3

5,7

Adensamento Excessivo

3,4

5,9

2,8

6,1

3,0

8,6

2,7

5,6

3,4

7,2

6,6

3,3

Inadequação Fundiária

1,6

1,1

0,7

1,6

0,6

0,6

0,5

0,8

2,1

2,1

1,8

7,4

Domicílios Urbanos Duráveis sem Banheiro

22,3

13,6

3,9

12,8

7,4

6,9

14,0

9,0

6,9

42,5

29,0

40,9

Carência de Infra-Estrutura

Foto: Iraildes Santana

A política habitacional muda ao longo da última década. A institucionalização do Estatuto da Cidade, a criação do Ministério das Cidades, com a realização das Conferências da Cidade, o estimulo à elaboração e implementação de Planos Diretores, a construção de uma política urbana inspirada nas demandas da luta pela reforma urbana apontam no sentido da construção de uma cidade mais democrática. A instituição do Conselho Nacional das Cidades em 2004 e a realização de Conferência das Cidades nos últimos anos contribuíram para a construção de uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano — processo que incorporou os movimentos populares constituídos ao longo da luta pela reforma urbana. Em linhas gerais, a referida política reafirma o direito à cidade e à moradia digna, ao saneamento ambiental e público, transporte, função social da cidade e da propriedade, além da redução das desigualdades e combate à exclusão social (MARICATO, 2011). Efetivamente, as referidas iniciativas significaram um avanço nas formulações de políticas públicas, sobretudo ao reafirmar a função social da propriedade, o que dá lastro jurídico aos movimentos de luta pela moradia. A criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) em 2005 e do Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, com o objetivo de construir moradia, são iniciativas importantes no enfrentamento do déficit quantitativo e qualitativo de habitação no país (MARICATO, 2011). No Estado da Bahia a Lei nº 11.041/2008 institui a Política e o Sistema Estadual de Habitação de Interesse Social e cria o Fundo Estadual de Interesse Social. Segundo seus próprios termos a finalidade da Política Estadual de Habitação de Interesse Social — PEHIS é orientar planos, programas, projetos e ações dos órgãos e entidades que compõem o Sistema Estadual de Habitação de Interesse Social - SEHIS, de modo a proporcionar à população de baixa renda (população urbana ou rural sem renda ou com renda familiar mensal equivalente a até três salários mínimos vigentes) o acesso à moradia digna. O PEHIS incorpora a concessão de subsídio com a finalidade de complementar a capacidade de pagamento do beneficiário para o acesso à moradia. A população das ocupações se enquadra nos requisitos instituídos pela Lei nº 11.041/2008 para admissão aos programas de financiamento de habitação de interesse social (a renda média por domicílio apurada no universo das ocupações investigadas é de R$ 426,20, enquanto que a renda per capta é de apenas R$ 99,92). Isso significa que, de acordo com o art. 15, VII, da referida lei, as famílias com rendimento de até um salário mínimo (inclusive), têm direito ao subsídio integral da moradia. O programa Minha Casa Minha Vida tem como objetivo reduzir o déficit habitacional no país em 14%, atendendo às faixas de 0 a 3 salários mínimos (com 400 mil unidades); de mais de 3 a 4 (200 mil unidades); mais de 4 a 5 (100 mil unidades) e mais de 6 a 10 (200 mil unidades) (CESE, 2010, p. 17). Segundo dados da Prefeitura Municipal do Salvador a “Caixa Econômica Federal apresenta a previsão de entrega de aproximadamente seis mil unidades habitacionais em Salvador no final de 2011”. Concretamente tem-se a previsão de entrega de “680 unidades no Bairro Novo II e III — Cia Aeroporto; 284 unidades no Morada do Atlântico - Bairro Trobogy; 380 unidades em Cajazeira - Residencial Assis Valente; 348 unidades no Residencial Sítio Izabel — Boca da Mata; 500 unidades no Bairro Novo IV — na Cia Aeroporto tendo sido entregue 380 unidades no Recanto das Margaridas no Bairro do Jardim das Margaridas” (SEDHAM, 2011).

Figura 1: Condomínio Residencial em Cajazeiras

Política Pública e Direito de Morar

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Foto: Iraildes Santana

Ainda segundo dados da Prefeitura Municipal do Salvador o alvo do programa são “pessoas físicas com renda familiar mensal bruta limitada a R$ 1.395,00 (um mil, trezentos e noventa e cinco reais), com contribuição mensal do beneficiário (10% da renda, sendo o mínimo de R$ 50,00, por um período de 10 anos) (SEDHAM, 2011). Mais especificamente, segundo a Prefeitura Municipal é o seguinte o público alvo do Programa:

Figura 1: Condomínio Residencial em Cajazeiras

• “Famílias vinculadas a movimentos de luta pelo direito à moradia com assento no Conselho Gestor do Fundo Municipal de Habitação ou no Conselho Municipal de Salvador e atuação comprovada na Bahia há mais de 2 (dois) anos; • Famílias que vivem em ocupação ou situação de conflito fundiário há mais de 2 (dois) anos; • Famílias em Aluguel Social ou situação de remanejamento em razão de obras públicas ou Servidor Público” (SEDHAM, 2011). O mecanismo de funcionamento do Programa consiste no seguinte: • “Aporte de recursos por parte da União e solicitação de projetos; • Realização de cadastramento da demanda por parte de estados e municípios, triagem e seleção de famílias com base na informação do cadastro único; • Apresentação de projetos por parte das construtoras às superintendências regionais da Caixa Econômica Federal, podendo fazê-los em parceria com estados, municípios, cooperativas, movimentos sociais ou independentemente; • Análise do projeto por parte da Caixa Econômica Federal, contratação da operação, acompanhamento e execução da obra pela construtora, liberação de recursos conforme cronograma e, concluído o empreendimento, realização da sua comercialização” (SEDHAM, 2011). Os dados relativos à construção de novas unidades habitacionais estão, em muito distantes, dos números do déficit habitacional de Salvador e de sua região. Parcelas significativas dos moradores das ocupações estão cadastradas no Programa e ainda estão a serem contempladas e isso se traduz em uma longa espera para quem reside em condições de moradia precárias. Dentre os moradores das ocupações que aderiram a algum Plano de Habitação, destaca-se o Programa Minha Casa Minha Vida, com cerca de 98,10%, restando apenas percentual de 1,90% para Crédito Solidário, Projeto Pilar e FNHIS. Gráfico 4 — Adesão ao Plano de Habitação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

74 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Segundo declaração dos moradores das ocupações, o tempo de espera para ser incluído em um Programa Habitacional, para 53,65% dos entrevistados, é de até um ano, vindo em seguida, com 28,81%, os que declararam ter aguardado em torno de um a três anos (Gráfico 5). Gráfico 5 — Tempo de Espera para Ingressar em um Programa de Habitação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Quando questionados sobre a disposição de pagar pela aquisição do imóvel 40,70% revelam que podem comprometer até 15% do salário mínimo, aqueles que acham que não devem pagar nada pelo imóvel a ser adquirido são em torno de 35,72%. O modo como o movimento está sendo Gráfico 6 — Intenção de Pagamento pela Habitação em Relação ao Salário Mínimo contemplado com as unidades habitacionais é objeto de crítica de Gilberto dos Santos Cruz (GG). “O Minha Casa Minha Vida não está contemplando a todos. Ele gera emprego, ele estimula a construção civil, mas não atende a todos. Ele deveria priorizar o movimento social, mas temos hoje que concorrer a sorteio para ter acesso a casa. Estamos decididos a marchar até Brasília pra reivindicar que o movimento social seja priorizado. As pessoas que vivem em condições precárias não podem concorrer com quem se cadastrou pela internet. Na verdade, o Minha Casa Minha Vida tem um caráter político.” Essa crítica é reiteradamente feita ao Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvilongo dos vários depoimentos e ela conjuga mento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. vários aspectos: primeiro o fato de que se está construindo conjuntos habitacionais em áreas sem infraestrutura e serviços urbanos. As pessoas estão tendo acesso às casas, mas não têm como pagar, afirma Maria José da Silva. “Em 2007 e 2008 discutíamos a necessidade do FNHIS, que foi criado com muita luta. Discutimos de onde iria se tirar recursos para a moradia. O Minha Casa Minha Vida veio depois. Com o FNHIS a pessoa não iria pagar nada. Uma pessoa que está catando lixo hoje, que está limpando retrovisor de carro, que não tem o que comer, teria que ter uma qualificação profissional antes de ser contemplado com o Minha Casa Minha Vida. O governo não preparou o povo para receber o Programa. O programa, hoje, cobra um valor simbólico, mas muita gente não tem. O governo financia a elite, no transporte, na habitação e às vezes o

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cara nem paga o que deve. Eu gostaria de ter o meu dinheiro pra comprar a minha casa onde eu quisesse. No Programa, você é obrigado a morar ali — se quiser é ali, se não, fica sem. Por que a elite tem a casa financiada onde quer e nós não? Isso é tenebroso, um golpe da direita que está no poder com o disfarce de esquerda. O povo tem que disputar a cidade. Historicamente nós como negros, principalmente aqui na Bahia, somos colocados em segundo ou terceiro plano.” Idelmário Proença reafirma essa posição ao expor: “a falta de emprego pode inviabilizar a conquista da moradia. Quando se entrega a moradia é preciso pensar no trabalho e renda para que o morador possa pagar a mensalidade e as tarifas públicas. Apesar de subsidiada, a mensalidade precisa ser paga. Os moradores da Alfred que foram para o conjunto habitacional construído pelo Projeto Minha Casa Minha Vida já estão passando por dificuldades. Em torno de 99,00% dos que receberam a casa na Estrada Velha do Aeroporto já estão inadimplentes e muitos estão com a água e luz cortadas. Então, é preciso pensar a moradia de forma associada com o trabalho.” Adicionalmente ele revela: “Os moradores da ocupação do Clube Português, por exemplo, quando foram transferidos para Pirajá e Valéria começaram a passar necessidades. Eles viviam de reciclagem no bairro da Pituba, quando foram transferidos para um bairro periférico e pobre não tiveram mais como trabalhar. A matériaprima do trabalho deles é o resíduo sólido gerado no bairro rico e eles não têm como pagar transporte para se deslocar de Valéria a Pituba.” Ademais, várias são as dificuldades de natureza administrativa e política na implementação do Programa, afirma Rita Sebadelhe: “Eu sou a secretária da Frente de Luta Popular, sou eu que resolvo toda essa questão burocrática do Movimento com a Caixa Economica Federal. A burocracia na Caixa é imensa. Tem situações que eu vou de barraco em barraco, explicando o que precisa, ligando para os coordenadores para avisar que os moradores precisam ir à Caixa. É muito trabalho, muito documento, muito detalhe. Agora mesmo, quando a Caixa entregou o Jardim Cajazeiras eu disse ao representante da Caixa que estava tudo muito bonito, mas as casas não tinham sido entregues. Mesmo o Estado sendo petista, mesmo sendo um Estado parceiro, a burocracia ainda é muito grande. A visão deles é muito burocrática. Não está sendo fácil. Os empreendimentos estão vazios, as pessoas que deveriam estar morando em Bairro Novo ainda não foram morar. Por quê? Se a Caixa dá um mês para pessoa ir morar? Por que ainda não foram? O problema são os bilhetes dos políticos que estão indo por baixo do pano. Tem gente ganhando casa para veraneio — o conjunto fica perto do Aeroporto. E quem precisa, realmente, não tem o acesso”, afirma Rita. Em relação às perspectivas do Movimento de Luta pela Moradia diante da implementação do Programa Minha Casa Minha Vida, Rita coloca: “a entrega da casa não acaba com o nosso trabalho. Você sabia que as Assistentes Sociais da Caixa Econômica Federal estão dizendo ao povo que esqueçam o movimento? Estão dizendo: a partir de agora vocês não são mais movimento! Isso é um absurdo, por que o nosso trabalho não termina aqui. Como é que você cria um filho e depois joga no mundo? Só por que ele fez 18 anos você não se preocupa mais com ele? Eu disse a mulher da Caixa, o Movimento está no sangue. A gente não pode abandonar esse povo. E mais, o lema da Frente de Luta por Moradia é moradia, trabalho e cidadania. A gente tem que começar a fazer núcleos, associações. Nenhuma relação termina assim.” Referindo-se ao modo como os conjuntos habitacionais estão sendo construídos Rita afirma: “Esses programas estão jogando essas pessoas para lugares sem nenhuma infraestrutura, sem nenhum controle social. E se não tiver um controle social aquilo ali vai se transformar em uma Cidade de Deus em Salvador. Os traficantes estão lá, eles foram junto com suas famílias. E aí? O povo tá perdido e tá todo mundo sem saber o que fazer. Não tem reciclagem, não tem pesca. Como eles vão sobreviver?” Naelson Cléon, militante vinculado ao Movimento de Luta pela Moradia, reafirma essa posição quando problematiza a ausência do Estado nos novos empreendimentos, o que termina por reproduzir o estado de abandono existente nas ocupações: “na verdade, com a ausência do Estado nesses espaços, as comunidades acabam criando suas próprias regras e a marginalidade é quem se impõe. Depois vai ter que se usar tanque de guerra para levar o Estado lá pra dentro. O Estado precisa estar presente nesses empreendimentos desde sempre. Caso contrário, em vez de criar dignidade, estará construindo favelas de concreto. O governo da Bahia precisa perceber que se ele não estiver presente, ele vai gastar milhões para resolver esse problema depois. É comum as pessoas ficarem escandalizadas quando sabem que o morador vendeu sua casa por um pequeno valor, mas a verdade é que ninguém come parede. A pessoa vende por necessidade e volta a ocupar de novo. Não adianta dar a casa e a pessoa não ter como pagar, como comer.” Essa colocação vai ao encontro de muitos dos depoimentos que ressalta o fato de que o Minha Casa e Minha Vida, com a promessa de realizar o sonho da casa própria de milhares de brasileiros, está reafirmando, em tempos de democracia, o velho padrão periférico de urbanização, com o aprofundamento da segregação socioespacial, devidamente marcada por traços étnicos e raciais. Pedro Cardoso, de forma critica afirma: “a política habitacional em curso privilegia, na verdade, a indústria da construção civil e aquece a economia capitalista em tempos de crise. Em primeiro lugar, não tem casa para todo mundo que precisa. Em segundo lugar, quem é contemplado e que realmente precisa tem dificuldade de realizar o sonho da casa própria, pois quem pode ter a casa é quem pode pagar. Precisamos da casa sim, mas precisamos também de acesso ao trabalho. Esse é o dilema do sistema capitalista.”

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A experiência mais recente de implementação do Programa Minha Casa Minha Vida para os segmentos de menor faixa de renda, reafirma a necessidade de avançar na implementação da política nacional de desenvolvimento urbano, particularmente em relação à habitação em Salvador: (i) avançar na implementação dos instrumentos de gestão urbana, capazes de tornar realidade a segurança da posse, com especial ênfase na construção de uma política fundiária, com a ocupação prioritária de vazios urbanos e regulamentação das Zonas Especiais de Interesse Social — ZEIS, capazes de se contrapor a lógica de acumulação e periferização urbana e de aumentar a oferta de terras para o mercado urbano de baixa renda; (ii) construir uma política de prevenção de despejos e institucionalizar medidas contra despejos forçados; (iii) implementar os mecanismos, já instituídos, como parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo no tempo, com o objetivo de viabilizar a recuperação da mais valia urbana, fruto dos investimentos públicos no espaço urbano. A ausência de controle público sobre a propriedade da terra contribui para a carência habitacional, segregação territorial, aumento do custo de infraestrutura e serviço, comprometendo a qualidade de vida na cidade e impondo sacrifícios adicionais à população pobre excluída (MARICATO, 2008). Como afirma Maricato, o problema da moradia no Brasil não resulta da falta de planejamento ou de leis. O país tem uma das melhores legislações do mundo relativas à questão urbana. O fato é que apesar dos avanços no processo de democratização da sociedade brasileira nos últimos vinte anos, da institucionalização de instrumentos de gestão voltados à ampliação do acesso à terra urbana e à moradia, a radicalização dos processos de mercantilização da terra urbana agrava a situação da população que se insere de forma precária no contexto das sociedades globalizadas. A conjuntura econômica tem impulsionado a indústria de construção civil e o mercado imobiliário, ampliando as fronteiras e possibilidades de investimento nas grandes cidades, passando a habitação para os segmentos situados nas menores faixas de renda um campo promissor de investimento. Tal cenário repercute na implementação das políticas públicas para moradia. A experiência e a literatura têm demonstrado que a efetividade de uma política habitacional depende da possibilidade de inserção social e produtiva. Como afirmam os moradores das ocupações: não basta ter a casa. Para mantêla é preciso ter trabalho. A implementação de uma política habitacional sem se contrapor à lógica capitalista de valorização do solo urbano, sem o combate à periferização, sem regularização fundiária e segurança da posse, tem pouca efetividade.

Política Pública e Direito de Morar

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VIII

O CUPAÇÕES

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Foto: Roseli Afonso

Edifício Lord (Centro) A ocupação do Ed. Lord localiza-se na Av. Carlos Gomes, no Bairro do Centro (Figuras 1 e 2). É um prédio com oito andares (bloco A) e dez andares (bloco B) ocupado em 03 de setembro de 2006, por 300 pessoas, pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia — MNLM. A propriedade do prédio é controversa — inicialmente era considerado como sendo de quatro pessoas físicas e da Empresa Agrícola de Comércio LTDA. Quando da disputa pela reintegração de posse do imóvel, apenas um dos proprietários entrou na 2006 Início da ocupação justiça. No final de 2007, Avenida Carlos Gomes, Centro Localização com uma liminar de despejo Prédio Tipo de ocupação acompanhada pela Defensoria 504 População estimada Pública e pelo Ministério 126 Famílias estimadas Público, descobriu-se que 3,10 Tamanho médio das famílias haviam 13 apartamentos 20 a 39 anos Faixa etária predominante vendidos e que os respectivos 53,60% de mestiços Predominância étnica Figura 1: Fachada da Ocupação proprietários pagavam 88,10% não concluíram o ensino Escolaridade média dos chefes aforamento ao Mosteiro médio de família de São Bento. Renda média R$ 522,67 Os moradores do Ed. Lord são originários, principalmente, de uma R$ 168,86 Renda per capita ocupação outrora existente no bairro do Tororó, cujo imóvel sofreu processo Contribui com 7,0% da renda total Bolsas-auxílio de reintegração. Eram aproximadamente 97 famílias que não tinham onde Principais atividades econômicas Vendedores ambulantes, morar e, como afirma Maria Cirlene Conceição Santana, uma das líderes da empregados domésticos ou na ocupação, “tomar o imóvel, foi a forma que nós encontramos de pressionar para manutenção de edificações termos os nossos direitos”, reportando-se a um slogan de seus companheiros Inserção no mercado de trabalho 93,08% dos moradores não possuem carteira assinada de movimento do Rio Grande do Sul, “enquanto morar é privilégio, ocupar Maria Cirlene Conceição Santana Principais lideranças é nosso direito”. e Norma de Castro Batista As condições de habitabilidade do prédio são extremamente precárias. Vinculo com o Movimento Social MNLM Somente em 2008, depois de onze meses de negociação, ou seja, dois anos após o início da ocupação, os moradores conseguiram estender a rede de esgoto existente Edifício Lord – Bairro do Centro e fazer o entroncamento com a rede geral. Isso Coordenadas X: 552.236,48 e Y: 8.564.615,88 só foi possível porque o sindicato dos bancários cedeu espaço para que a tubulação do prédio passasse pela tubulação do sindicato. Além disso, os moradores contam com apenas um ponto de água que se localiza no andar térreo do prédio, para o abastecimento de todas as famílias que ali vivem. Em função disso, apenas algumas famílias do andar térreo conseguiram levar água até as suas moradias. Nessas condições sanitárias, nos dois primeiros anos da ocupação, inúmeras foram as doenças que ali encontraram condições adequadas para se disseminarem, como afirma Cirlene: “na época algumas crianças morreram por problemas respiratórios; a minha filha foi vítima de celulite facial. Foram quase seis meses internada fazendo tratamento, várias pessoas tiveram problemas respiratórios agravados, ataque de asma, outras Figura 2: Foto pessoas tiveram meningite”. Os dados registram Aérea - Localização dois casos de morte de crianças de até um ano de idade, por doenças infecto contagiosas e respiratórias — as doenças da Ocupação mais frequentes registradas no Ed. Lord são: gripe, dengue, diarreia e verminoses.

Ocupações

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No geral, a maior parte dos responsáveis pelos domicílios no Ed. Lord é originária da cidade do Salvador, representando 58,54% dos entrevistados (Gráfico 1). Dentre os responsáveis pelo domicilio, 88,10% não concluíram o ensino médio e 2,38% jamais estudaram. Do conjunto dos moradores entrevistados, 50% moravam de aluguel antes de vir para a ocupação e, em 81% dos casos, essa é a primeira ocupação. Quanto ao tempo de moradia na ocupação, 68% dos moradores têm entre um e três anos, enquanto 20% têm entre três e cinco anos morando ali. Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

O tamanho médio da família na ocupação é de 3,10 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por mestiços e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos que desenvolvem atividades de vendedores ambulantes, empregados domésticos ou de manutenção de edificações — 93% dos moradores do Edifício Lord não possuem carteira assinada. A média da renda mensal por domicílio dos moradores é de R$ 522,67 e a renda per capita é de R$ 168,86. O programa bolsa-auxílio integra 7,0% do rendimento das famílias. Esse quadro de precariedade explica o fato de que, apesar de todas as dificuldades de se morar em uma ocupação, 24,75% dos entrevistados afirmaram que não pagar aluguel, água e luz, representa uma vantagem em relação à sobrevivência. Um exemplo contundente da dificuldade em romper com os limites da informalidade é dado pelo depoimento sobre a qualificação dos trabalhadores residentes na ocupação. No início de 2011, a Caixa Econômica Federal, em parceria com a SETRE e o SIMM, ofereceu um curso realizado pelo SENAI para os beneficiários do Programa Bolsa Família dos Sem Teto, com duração de dois meses. Na ocupação do Edifício Lord, apenas alguns conseguiram terminar o curso, pois as condições às quais os moradores estão submetidos não lhes permitiram aproveitar essa oportunidade. O depoimento de

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Cirlene é esclarecedor da dificuldade de qualificação para quem não possui condições prévias que lhe garantam a sobrevivência: “(...) solicitamos que a Caixa Econômica Federal pudesse subsidiar pelo menos uma cesta básica para as pessoas que estavam realizando o curso. Como a maioria é camelô e precisa trabalhar todo o dia para garantir a subsistência e o auxílio não saiu, houve evasão. Quer dizer, é uma oportunidade boa, porém as condições reais não permitem a qualificação do trabalhador, se ele não vai trabalhar e não leva o pão para dentro de casa à noite (...). O camelô vive do que vende, o dia que ele não vende, ele não tem (...)”. Os integrantes da Ocupação Edifício Lord residem em unidades unifamiliares, sendo que destas 28,57% contam com apenas um cômodo e 80,95% têm apenas um cômodo como dormitório. O material utilizado na delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente bloco e em 2,38% dos casos é o misto. Isto se deve ao fato da ocupação ser em prédio domiciliar, fato que lhes permite aproveitar a própria infraestrutura existente. Dentre as ocupações em prédio existentes, destaca-se a precariedade das condições de habitabilidade. Os moradores se abastecem em um ponto de água no térreo do edifício com baldes, portanto, os mesmos chegam a subir 10 andares carregando baldes de água para o seu abastecimento diário. Quanto à existência de sanitário, 90,48% dos entrevistados declararam ter acesso a sanitário, sendo que 26,19% destes afirmaram compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária, estando conectados de forma precária à rede geral de esgoto, uma vez que não existe acesso a esgoto para o descarte dos dejetos. Dentre os que declararam não possuir sanitário individual (unidomiciliar / unifamiliar), 80,95% faz uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 80,95% dos pesquisados declararam ter acesso frequente ao serviço de coleta de lixo, que passa regularmente na Avenida Carlos Gomes. É importante destacar que o acesso à coleta de lixo regular na ocupação se deve ao fato desta localizar-se no Centro da cidade, o que a diferencia, neste aspecto, da grande maioria das ocupações. Os equipamentos públicos como biblioteca, cinema, museu ou teatro são inacessíveis aos moradores da ocupação, embora eles considerem a própria existência como satisfatória na cidade do Salvador. Já em relação ao transporte público, ainda que tenham acesso, os moradores se

declararam, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados (Gráfico 2). Quando da realização desta entrevista, várias famílias da ocupação já haviam sido removidas para o empreendimento Morada das Margaridas, na Estrada Velha do Aeroporto. É grande a preocupação das lideranças com a permanência das famílias nos novos empreendimentos habitacionais — ocorrendo uma dificuldade enorme em mantê-las na nova moradia. Essa preocupação se manifesta, desde o início, quando da definição das famílias que terão acesso ao programa de habitação. Particularmente, temse a preocupação de evitar que a moradia se torne objeto de especulação imobiliária, como também que sejam criados mecanismos que possibilitem a permanência das famílias nos empreendimentos. Assim, Cirlene afirma: “Não foram todas as famílias remanejadas porque deu problema no NIS (Número de Inscrição Social). É através desse número que nós solicitamos o cadastro único, para que as pessoas não se registrem mais de uma vez e não façam do déficit habitacional uma bola de neve que não acaba nunca. Por que você é beneficiado hoje, vende amanhã, no outro dia está, de novo, na ocupação. Aí vai, de novo, ser beneficiado, quer dizer, você tira a vez de outra pessoa que realmente necessita e aí a gente vai “dar vazão” à especulação imobiliária.” Entretanto, é preciso registrar que o acesso à moradia em áreas distantes do tecido urbano e de áreas de concentração comercial e de serviço dificulta a permanência dessas famílias nesses empreendimentos. Segundo depoimentos registrados, o impacto de estarem sendo deslocados para a periferia da cidade é muito marcante, visto que as condições que lhes permitem a reprodução de suas vidas ficarem extremamente difíceis, quando não inviabilizadas, seja pela absoluta incapacidade de dar conta das suas novas despesas, como condomínio, água, luz, IPTU, etc.; seja pela extrema dificuldade de acesso aos bens, serviços e trabalho, fundamentais para a garantia da sobrevivência. Isso aparece de forma marcante na fala de Cirlene, quando afirma que, “Quando a gente chegou lá, achou IPTU de R$ 140,00 debaixo da porta. Depois vieram várias outras despesas: condomínio, água, luz. Quer dizer, coisas que eles não estão acostumados, pois o único benefício deles é o Bolsa Família, que não dá para cobrir todas essas despesas.” Isso mostra que as políticas públicas de habitação para famílias de baixa renda não mudaram no essencial, ou seja, ao deslocar os moradores para a periferia dos grandes centros urbanos dificulta, quando não inviabiliza, a

Gráfico 2 - Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

reprodução de suas vidas nesses espaços da cidade, induzindo, num ciclo vicioso, o seu retorno para a condição de Sem Teto, levando-os a fazerem o movimento de retorno às áreas centrais da cidade. Cirlene mais uma vez afirma: “é claro que nós que moramos na ocupação, nós sabemos que não moramos com dignidade, porque, como você pôde observar aqui a coisa é muito difícil (...). A gente sai do Centro, onde já tem toda uma infraestrutura, a gente larga tudo aquilo que faz parte do nosso convívio, quando sabemos que o nosso Centro está superlotado de imóveis vazios, há muitos anos ociosos, imóveis que poderiam ser transformados em habitação de interesse social. Infelizmente, as autoridades devolvem esses imóveis localizados no Centro para a especulação imobiliária. O Santo Antônio Além do Carmo é um exemplo disso — ali tinha um projeto para quase 1.500 famílias que moravam no entorno, mas a especulação imobiliária não deixou, a Copa nos tirou esse direito. Então, vem a Copa, vêm os grandes eventos futuros e quem realmente tem direito à cidade é expulso.” Assim, o direito à cidade, ao que ela oferece em termos de equipamentos públicos não é, de fato, acessível à população Sem Teto. Para Cirlene, “Salvador é uma cidade para os que vêm de fora (...) e quem está tendo direito a Salvador são os estrangeiros, os que vêm de outros estados, que chegam aqui e se estabelecem por que têm um nível financeiro confortável. É complicado! As coisas travam quando são direcionadas aos setores de baixa renda. A gente luta e às vezes a gente chega a ponto de querer ‘chutar o pau da barraca’, porque apesar dos grandes avanços que nós tivemos na questão da reforma urbana, a gente vê que diante de tudo que conseguimos é muito pouco para o que nós queremos, para o que nós almejamos, para o que nós sonhamos para as gerações futuras.”

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Ladeira da Praça (Centro Histórico) Foto: Roseli Afonso

A ocupação da Ladeira da Praça localizase em um prédio de propriedade da Prefeitura Municipal do Salvador, onde funcionava a Secretaria Municipal da Fazenda (SEFAZ), no Centro Histórico. O prédio possui uma área de 510 m2 e tem três pavimentos. (Figuras 1 e 2). A ocupação do prédio teve início em 2005 e estima-se que atualmente vivam 232 pessoas em 58 famílias. Segundo Dermeval Cerqueira de Oliveira (Tikão), um dos líderes da ocupação e do Movimento em Defesa da Moradia e do Trabalho — MDMT e também militante histórico da União de Negros pela Igualdade — UNEGRO, a ocupação da Ladeira da Praça surge da iniciativa de retirada de 25 famílias, também Sem Teto, que moravam em um prédio com a estrutura comprometida, na Rua do Sodré nº 76, no Largo 2 de Julho. Segundo Tikão, as pessoas que aí moravam não tinham como pagar aluguel nem mesmo

Figura 1: Fachada da Ocupação de um quarto. “As crianças conviviam, diariamente, com pessoas vendendo e consumindo drogas, a porta da casa não fechava. Foi então que começamos a perceber a necessidade de buscar outro

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Ladeira da Praça – Bairro Centro Histórico Coordenadas X: 553.007,8 e Y: 8.565.597,14

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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2005 Ladeira da Praça, nº18, Centro Histórico Prédio 232 58 7,67 20 a 39 anos 46,65% negro 98% têm até a nona série do ensino fundamental R$ 444,58 R$ 57,99 Contribui com 18,07% da renda total Vendedor Ambulante, Empregado Doméstico, Garçom 95% dos moradores não possuem carteira assinada Gilberto dos Santos Cruz (GG) Dermeval Cerqueira de Oliveira (Tikão) MDMT

lugar para morar”. Por iniciativa dele, de Gilberto dos Santos Cruz (GG) e de Paulo de Jesus, ocuparam uma antiga escola na Rua Carlos Gomes, no dia 3 de fevereiro, primeiro dia de carnaval de 2005. Como a casa era pequena e já tinha uma família morando no local, vinculada ao MSTS, foi necessário procurar outro lugar. Foi então que ocuparam o prédio na Ladeira da Praça. “Procuramos na cidade um lugar que não estivesse cumprindo a sua função social e, no dia 16 de abril de 2005, fundamos a Ocupação da Ladeira da Praça”, afirmam Tikão e GG. “Segundo avaliação de técnicos da Prefeitura o prédio apresenta risco de desabamento, com fissuras.

Limpamos o prédio e ocupamos. Na época tinha muito material da Prefeitura — ainda tem documentos. Nos responsabilizamos pelo que ainda está aqui até hoje”. A maioria dos responsáveis pelos domicílios da Ocupação Ladeira da Praça, em torno de 66,66%, é originária do interior do estado, com destaque para o município de Feira de Santana (Gráfico 1). Em seguida, destacam-se os moradores que nasceram em Salvador. Em torno de 66,67% dos moradores da Ocupação Ladeira da Praça residiram anteriormente em casas alugadas e não tinham como arcar com os custos do aluguel, água e luz, sendo que 25% destes são provenientes de outras ocupações. A trajetória de GG relata o caminho percorrido por muitos dos que estão hoje na Ocupação Ladeira da Praça: “Minha família morava no Corta Braço, no Pero Vaz. Eu saí, fui morar de aluguel, mas não pude pagar. Foi quando conheci Tikão e outras pessoas do movimento. Morei no Dois de Julho, mas como as condições de vida eram muito ruins fomos em busca de outro lugar. Foi então que encontramos o prédio da antiga Secretaria da Fazenda do Município. O lugar antes era um ponto de droga. Tivemos que brigar com os traficantes — tivemos que ‘sair na mão grande’ para ocupar esse lugar. Disseram pra gente: isso aqui é da Prefeitura: nós dissemos, não, agora é do povo, é dos Sem Teto. Passamos 6 meses limpando o prédio.” Em função da natureza dos vínculos entre as lideranças e o conjunto dos moradores (que associa de forma peculiar militância política e relações interpessoais), a Ocupação Ladeira da Praça, se assemelha, em muitos aspectos, ao que poderíamos qualificar como uma comunidade. O tamanho médio da família na ocupação é de 7,67 pessoas por domicílio, maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26. Muitas crianças nasceram ou se tornaram adolescentes, no seio da ocupação — o que imprime a sensação de estarmos diante de uma família estendida, com vínculos e referências consolidadas, com todos os conflitos e dificuldades que isso implica. A maior parte dos moradores é constituída por fundadores ou com mais de três anos de moradia, sendo comparativamente pequeno o número de moradores residindo há menos de um ano na ocupação. O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e mestiços totalizando 91,3% e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. Para Paulo “a vida na ocupação é boa. Mas pra viver aqui é preciso seguir a regra, senão ‘vai pro olho da rua’. Não pode ter droga,

Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

marido batendo em mulher, não entra gente estranha, tem horário pra entrar. Tem morador que não se adapta. Não basta dizer: tem uma vaga e eu quero morar aqui. Pra morar nessa ocupação tem que passar por uma reunião e aceitar as regras do lugar. Se a pessoa infringe a regra, uma, duas vezes, ela é chamada pra conversar, mas se ela continua errando, ela não pode ficar mais. Aqui tem regras como os outros lugares têm.” Essa realidade nos aproxima da noção de pluralismo jurídico — ainda que referida ao ambiente propriamente privado. É preciso lembrar que a clássica distinção entre o público e privado, aqui, de certa forma, cai por terra, dado que se verifica um embaralhamento das fronteiras que constituem a vida privada e coletiva. Esse sentimento de comunidade e de pertencimento resulta, na verdade, de um trabalho político desenvolvido há anos, conforme afirma GG: “Trabalhamos a educação política, a valorização das pessoas, que às vezes são vistas como baderneiras, traficantes, drogadas. Somos pessoas como todos os outros.” A história de vida de Paulo de Jesus é um exemplo, contundente, da trajetória de quem, ainda hoje, se desloca para a cidade grande, em busca de melhores condições de vida. “Fui criado sem pai e não tive muita leitura. Morava com minha mãe em Conceição do Almeida, na roça. Faltavam as coisas em casa e tive que enfrentar a vida. Perdi o estudo. Fui trabalhar na roça. Um tio que mora em Salvador me trouxe pra aqui. Saí, fui para o Rio de Janeiro pra tentar uma vida melhor, mas não gostei. A paisagem do Rio é bonita, mas não deu pra ficar. Rodei por esse mundão todo trabalhando, mas preferi voltar pra Salvador. Aqui eu trabalho e sou reconhecido. Vim do interior direto para a ocupação no Largo 2 de Julho.” As atividades mais comuns desenvolvidas pelos moradores da Ocupação Ladeira da Praça são as de dona de casa, garçons, barman, copeiro, vendedor de cafezinho e artista plástico, sendo registrada apenas uma pessoa com vínculo empregatício formal. Paulo relata, de forma extremamente rica, o modo como um imigrante, sem escolaridade e emprego, com talento, criatividade e em condições adversas, constitui laços, constrói sua identidade e torna-se um cidadão de Salvador.

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Foto: Victor Lopo

“Não conhecia a cidade e lavava carro no Largo. Ali mesmo aprendi a profissão de sapateiro, de engraxate. Fui trabalhar na Graça, onde engraxei o sapato de Antônio Carlos Magalhães. A Prefeitura tirou as barracas da rua e fiquei sem ter como continuar trabalhando. Com a dificuldade resolvi vender café. Comecei, então, a fazer os meus próprios carrinhos pra vender café, que começaram a chamar a atenção das pessoas e hoje tenho carros em exposição em vários lugares do país e lá fora também. Já participei de concurso no Mercado Modelo, aqui em Salvador, na Espanha, no Rio de Janeiro, em São Paulo.” A sua criatividade e talento, manifestos em seu trabalho, no carro de café e nos quadros, são reconhecidos em vários cantos do país e mesmo no exterior, dando uma ideia da riqueza e diversidade existentes nessa cidade de Todos os Santos.

Figura 3: Carrinho de Café — Paulo de Jesus A trajetória de Paulo de Jesus é ainda um exemplo do significado econômico e social da transferência, da população situada nas menores faixas de renda, de áreas próximas aos centros comerciais e de prestação de serviços para a periferia das grandes cidades, onde os trabalhadores informais não conseguem garantir a sobrevivência — reforçando a lógica de acumulação da renda da terra, o histórico processo de periferização. A escala e a forma de deslocamento da informalidade em Salvador é o modo a pé — metade dos moradores da Ladeira da Praça declarou se deslocar, sobretudo a pé, para o seu trabalho. É importante registrar que, nesse caso, o custo do deslocamento é do próprio trabalhador. “É preciso morar em um local no qual a gente possa sair para trabalhar. De que adianta morar em uma casa bonita e ficar com fome, de braço cruzado, sem poder trabalhar? Tem muita gente na rua que recebeu a casa em bairro distante, mas não tem como sobreviver. O que vai acontecer? A gente abandona, vende

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a casa por qualquer dinheiro e vai procurar um lugar para morar onde possa trabalhar por perto. Eu preciso ficar no meio do povo pra vender o meu café. Eu ando pra Graça há oito anos e chego em casa com dinheiro pra fazer o mercado. Se eu acordo e não tem nada em casa, eu saio, vendo meu café e chego com dinheiro. Eu tenho um filho de 11 anos e uma menina pequena, ‘criados com café’. Quando ele era de berço eu saía de madrugada pra trabalhar. A minha casa é o meu lugar de trabalho, aqui eu faço o café que vendo e aqui eu construo os carros de café. Quando tem gravação aqui no Pelourinho, como o filme de Lázaro Ramos, a gente aluga televisão, quadro, mesa, cama (dorme até no chão) e se ganha um dinheiro. No filme do Quincas Berro D’água minha esposa trabalha — se ganha sempre um dinheiro. Eu não tenho o que falar de Salvador. O que falta é a casa.” A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Ladeira da Praça é de R$ 444,58 e a renda per capita é de R$ 57,99. O programa integra 18,07% do rendimento das famílias. Os responsáveis pelos domicílios na Ladeira da Praça estão distribuídos em proporção semelhante entre a primeira e a nona séries do ensino fundamental e 98% têm até a nona série do ensino fundamental. Na Ocupação Ladeira da Praça fica evidente o quanto a luta pela sobrevivência dificulta o acesso à educação. Quando questionados sobre o motivo de não terem conseguido concluir os estudos 75% alegam motivo de natureza pessoal ou relacionado com o trabalho. Esse quadro pode ser ilustrado pela trajetória de Tikão, nascido em Salvador, morador do bairro do Garcia, filho de mãe lavadeira e pai técnico, que chega à Faculdade de Direito aos 47 anos e relata o quanto é difícil para a população pobre e negra ter acesso à escola. A mãe lavava roupa para as famílias da Barra e como a ajudava entregando roupa ele via a diferença social que existia. “Não consegui ter um tênis — o que ganhava era usado. Aí comecei a entender a história do povo negro que veio da África, que foi escravizado, excluído dos seus direitos. Não falo por pena, mas por reconhecimento. O Estado tem obrigações com essa população. No dia que todo mundo se olhar igual e perceber que a questão não está na cor da pele, no nível social. (...) Foi assim que surgiu essa luta. Precisamos lutar pra fazer valer o que está nos artigos 5º e 6º da Constituição, que afirmam que toda pessoa tem direito ao trabalho, escola, lazer e a moradia digna.”

Foto: Roseli Afonso

Foto: Roseli Afonso

saúde pública e transporte coletivo, apesar de considerarem o serviço insatisfatório. Ademais, eles registraram a insuficiência de equipamentos de teatro e de cinema na cidade, além da dificuldade de ter acesso aos mesmos. A relação dos moradores com o Movimento de Luta pela Moradia é permeada pela necessidade de ter acesso à casa, destacando-se que 66,66% dos entrevistados se declaram filiados ao movimento. É uma reivindicação dos moradores da ocupação permanecer no centro histórico. “Estamos pleiteando permanecer aqui”, afirma GG. “Nós temos direito de morar em qualquer lugar na cidade, na Barra, na Graça. Queremos morar em um lugar onde tenha infraestrutura e na periferia não tem. É importante ficar onde temos vínculo social, onde já vivemos. O direito à cidade significa ter acesso à infraestrutura, à padaria, farmácia, posto de saúde, transporte de qualidade. Nós somos a cidade. Por isso brigamos por ela. Gosto de Salvador. A história de Salvador é a nossa história, nós somos a cidade.”

Figura 4: Máscara Africana

Essa assertiva encontra correspondência com os dados que demonstram a grande confiança dos moradores nos movimentos sociais, bem como na instituição escolar. A Ocupação Ladeira da Praça é composta de unidades unifamiliares, sendo que destas unidades, 75% contam com apenas um cômodo. O material utilizado na delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente misto com 55% e, em seguida, a madeira com 33,33%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, existem quatro pontos de água — no subsolo, térreo, primeiro e segundo andar. Existem seis banheiros, quatro cozinhas e duas lavanderias de uso coletivo. O prédio está conectado à rede geral de esgoto e os moradores têm acesso ao serviço de lixo que passa regularmente na porta. Todos os domicílios têm pelo menos um ponto de luz. A doença mais frequente registrada na Ocupação Ladeira da Praça é a gripe. Vale registrar que apesar de todos os problemas decorrentes das condições de insalubridade, essa é uma das ocupações em prédio, com melhores condições sanitárias e de acesso aos serviços de água, esgoto, luz e limpeza. Os moradores da Ocupação Ladeira da Praça destacam, entre os espaços, equipamentos e serviços coletivos, que têm mais acesso e satisfação no uso das praias e praças. Declaram ainda ter acesso aos serviços de

Figura 5: Tela — Paulo de Jesus

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Foto: Roseli Afonso

Ladeira do Prata (Nazaré)

A Ocupação Ladeira do Prata teve início em 2 de julho de 2007, na “Semana Vermelha”, quando o Movimento de Luta pela Moradia coloca em prática a estratégia de ocupar imóveis na cidade que não estivessem exercendo a sua função social. Como afirma Edileuza Oliveira dos Anjos, cozinheira, uma das líderes da ocupação, “quando chegamos aqui não tinha luz, não tinha água e era lixo pra todo canto. A gente convivia com rato. Passamos por muita dificuldade, de não ter um copo d’água pra beber.” A maior parte dos responsáveis pelo domicílio 2007 Início da ocupação na Ocupação Ladeira do Ladeira do Prata, nº 10, Localização Prata, 55,56%, é originária Nazaré da Cidade do Salvador. Tipo de ocupação Prédio Os demais são originários População estimada 73 do município de Feira de Famílias estimadas 24 Santana, com 22,22%, Tamanho médio das famílias 2,78 de outros municípios do Faixa etária predominante 40 a 59 anos interior, com 11,11% e de Predominância étnica 52% mestiço cidades de outros estados Escolaridade média dos chefes 77,78% não concluíram o ensino Figura 1: Ladeira do Prata como Sergipe. de família médio O tamanho médio da Renda média R$ 262,56 família na Ocupação Ladeira do Prata é de 2,78 pessoas por domicílio Renda per capita R$ 94,52 (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). Bolsas-auxílio Contribui com 16,12% da renda total O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na Principais atividades econômicas Vendedores ambulantes e faixa etária de 20 a 39 anos. A vida na ocupação é cheia de altos e baixos, empregados domésticos Inserção no mercado de trabalho 94% dos moradores não possuem segundo Edileuza: “a cidade vê os Sem Teto de uma forma muito ruim. carteira assinada Somos discriminados porque somos Sem Teto. Sem Teto é palavrão, Sem Principais lideranças Gilberto dos Santos Cruz (GG) e Teto é roubo, Sem Teto é droga. E não é verdade. Todo mundo trabalha. Edileuza Oliveira dos Anjos Sem carteira assinada, mas todo mundo trabalha. Somos do gueto. Ninguém Vínculo com o Movimento Social MDMT gosta da gente. Saímos 5 horas da manhã pra trabalhar, pra garantir o

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Ladeira do Prata – Bairro Nazaré Coordenadas X: 553.438,85 Y: 8.565.516,20

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Foto: Roseli Afonso

sustento.” Os moradores da Ocupação Ladeira do Prata desenvolvem atividades de catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos e biscateiros. Os moradores ressaltam a falta de emprego na cidade. Dentre os moradores da ocupação 77,78% não concluíram o ensino médio. Cerca de 44,45% dos atuais moradores da Ocupação Ladeira do Prata residiam em casas alugadas antes de morarem na atual ocupação (Gráfico 1). A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Ladeira do Prata é de R$ 262,56 e a renda per capita é de R$ 94,52. O programa bolsa-auxílio contribui com 16,12% da renda total. Os integrantes da ocupação residem em unidades unifamiliares, sendo que 66,67% destas, contam com apenas um cômodo e todos têm apenas um cômodo como dormitório. Os imóveis são predominantemente de material misto, com 55,56% dos casos, e 44,44% de bloco (Gráfico 2). É muito grande a expectativa dos moradores em relação à relocação para o conjunto habitacional construído pelo programa Minha Casa Minha Vida. Segundo Edileuza “temos uma grande expectativa em relação à mudança. Estou feliz, pois vou ter a minha casa.” Quando questionada sobre os custos da nova moradia ela recorre ao auxílio do Bolsa Família e afirma: “vamos pagar a luz, a água e a mensalidade da casa com a bolsa família. E todo mundo vai ter que se virar. Todo mundo vai ter que saber usar a água, a luz. É preciso ter educação. Pra ter uma vida boa tem que ter educação, organização. É graças ao movimento de luta pela moradia que vamos ter a nossa casa. O movimento ajudou muito. Como vamos retribuir? Cuidando da casa, pagando a luz, a água, o IPTU, a mensalidade. Tendo educação ao usar as coisas. A gente hoje tem televisão, fogão, microondas... Vamos agora ajudar ao movimento ajudando a gente mesmo. O movimento social nos ajudou muito.” Os moradores declaram o quanto é difícil a vida na ocupação: “é preciso ter pulso, as coisas são muito difíceis. Quando chegamos aqui, as condições do prédio eram muito ruins. Temos que, o tempo todo, fazer consertos, fazer reparos e nem sempre contamos com a ajuda de todos. Às vezes precisa comprar fio, precisa substituir o fio e ninguém faz nada. Não tem união, falta organização. Viver em ocupação é pra quem tem pulso firme.” Existem quatro pontos de água no prédio — um ponto no subsolo, outro no térreo, no primeiro e segundo andar. Existem cinco banheiros, duas cozinhas e duas lavanderias de uso

Figura 3: Interior da Ocupação da Ladeira do Prata Gráfico 1 — Condição da Ocupação Anterior

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Material de Construção da Unidade Domiciliar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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coletivo. Os moradores têm acesso à rede geral de esgoto e ao serviço de coleta de lixo. Todos os domicílios têm pelo menos um ponto de luz. As três doenças mais frequentes registradas na Ocupação Ladeira do Prata são a gripe, a febre e a diarreia. Quando questionados sobre o acesso a equipamentos públicos e aos benefícios que a cidade tem, os moradores destacaram a satisfação com o acesso à praia, praças e escola pública. Já a saúde pública e o transporte público, ainda que tenham acesso, os moradores da Ocupação Ladeira do Prata se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados. Registra-se um grande índice de insatisfação em relação às áreas de lazer e esporte (Gráfico 3). Em relação à situação de segurança, os moradores da ocupação consideram que os principais problemas de violência estão relacionados com agressão física e brigas familiares ou entre vizinhos. Segundo Edileuza, a ocupação não é um fator de violência na Ladeira do Prata, ao contrário, a ocupação trouxe segurança: “quando chegamos na Rua do Prata não ficava um carro na rua. Hoje, os donos dos carros deixam os carros na rua porque sabem que tomamos conta. As pessoas sabem que cuidamos não apenas da ocupação mas do entorno.” Ademais, apesar das dificuldades e lidas próprias da vida em uma ocupação, o Movimento de Luta pela Moradia cria laços, fortalece relações. “Às vezes, passamos o dia na labuta do movimento e chegamos em casa e não temos o que comer, por não ter ido trabalhar.

Você chega na ocupação e encontra um prato de comida, um pedaço de pão que alguém deixou pra você.” “A vida na ocupação é difícil, tem muitos problemas, tem briga, mas hoje nós somos uma família. Temos uma convivência boa aqui. É preciso ter regra pra viver. Conseguimos estabelecer regras de convivência. Eu sei que o meu direito termina onde começa o do outro.” Edileuza se sente uma vitoriosa: “Lutamos, aguentamos tudo e agora vencemos.” É preciso saber que não pode vender, alugar e nem colocar comércio na nova moradia.” Gilberto dos Santos Cruz, líder do MDMT, afirma”: não pode mais de uma pessoa da família ter direito a casa. Não pode ter “contrato de gaveta” (...) O Estado tem tomado imóveis que não têm uso adequado e o cadastro único tem sido uma forma eficiente do poder público evitar o mau uso dos imóveis.” Edileuza ressalta o significado da condição de líder do Movimento de Luta pela Moradia: “Ser líder é difícil. Ser líder é ser humilde, é aguentar problemas, das pessoas, da luta. É aguentar briga, choro, alegria, é companheirismo. O que recebe por ser líder? Só a graça de Deus.”

Gráfico 3 - Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Foto: Roseli Afonso

JJ Seabra (Saúde) A Ocupação JJ Seabra localiza-se na Av. JJ Seabra, em um prédio de três andares, em estado precário, com área construída de 320 m2, no bairro da Saúde (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início em 2005, e vivem lá hoje, aproximadamente 18 famílias e 72 pessoas. Segundo Norma da Silva Pinto, líder da ocupação, “os atuais moradores da JJ Seabra vieram da ocupação do prédio

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

2005 Rua JJ Seabra, Saúde Prédio 72 18 3,82 10 a 39 anos 65,85% mestiços 90,91% não concluíram o ensino médio R$ 375,00 R$ 98,21 Contribui com 19,08% da renda total Vendedores ambulantes e empregados domésticos 97,56% dos moradores não possuem carteira assinada Gilberto dos Santos Cruz (GG); Norma da Silva Pinto; Dinalva Freitas dos Santos MDMT

Figura 1: Fachada da Ocupação

da ‘Marisa’ na Barroquinha. Recebemos ordem de despejo, fomos para o Cine Pax (de propriedade da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco), onde também recebemos ordem de despejo em menos de 30 dias. Depois, ocupamos esse prédio e estamos aqui até hoje.” A história de vida de Norma da Silva Pinto se assemelha à de muitas mulheres, trabalhadoras de Salvador, que não conseguem garantir o sustento da família. “Minha vida era muito ruim e a experiência de viver na ocupação, no começo, foi muito dura. Mas o Senhor me encaminhou para essa ocupação. No começo eu não queria, mas o Senhor me queria aqui. Deus me sustentou aqui.” A passagem por várias ocupações e a experiência de passar um dia na rua foram marcantes. “A gente estava desesperada. Com menos de

JJ Seabra – Bairro Saúde Coordenadas X: 553.460,82 e Y: 8.565.861,23 Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Foto: Roseli Afonso

Figura 3: Entrada da Ocupação 15 dias de despejo da ocupação da Marisa, a gente estava na rua de novo. Passamos uma noite na rua, com criança, na chuva. Uma noite... e foi tão difícil. Imagine se fosse mais tempo. Deus moveu o coração dos policiais, que viram nossa situação, colocaram a gente na viatura e começaram a procurar um lugar pra a gente ficar. Quando nós fomos expulsos do Cine Pax nem a comida o padre deixou a gente pegar. Mas Deus é grande. Depois o padre mandou entregar as nossas coisas aqui. Aprendi com as duas desocupações e sabemos que ficar na rua é muito difícil.” Em torno de 45,45% dos responsáveis pelos domicílios da Ocupação JJ Seabra são originários da cidade do Salvador, tendo a ocupação uma significativa participação de moradores oriundos de outros municípios, com 36,36%; sendo 9,09% particularmente de Feira de Santana. Quando chegou à

Gráfico 1 — Comparação do Total da Bolsa-Auxílio, Renda, Renda por Domicílio e Renda Per Capita

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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ocupação, afirma Norma da Silva Pinto: “eram 50 famílias. Depois, quinze desistiram, depois mais 10... e foram ficando alguns poucos. Outros chegam e saem. A vida aqui é muito difícil. Eu sou pai e sou mãe. Se a gente não grita a gente explode, a gente morre. Tenho 8 filhos e dois deles nasceram aqui — esses são os verdadeiros Sem Teto. A vida aqui ensina a gente a viver, a calar, a ouvir, a entender o sofrimento do outro. Antes eu não ouvia nada, não ouvia ninguém. O Senhor me ensinou que é melhor ser tardio ao falar e apto em ouvir.” Cerca de 81,82% dos atuais moradores da Ocupação JJ Seabra, residiram originalmente em casas alugadas e 36,36% deles vieram de outras ocupações. Dentre os responsáveis pela família, 90,91% não concluíram o ensino médio e 9,09% nunca estudaram. O tamanho médio da família na Ocupação JJ Seabra é de 3,82 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). A exemplo do que acontece com a maioria das ocupações, o núcleo familiar é composto, em sua maioria, por mestiços, em torno de 65,85%; e jovens, predominantemente nas faixas etárias de 10 a 39 anos, com 55,00%. Os moradores desenvolvem atividades de catadores de resíduos sólidos, de vendedores ambulantes, empregados domésticos e biscateiros — 97,56% deles não possuem carteira assinada. A média da renda mensal por domicílio dos moradores é de R$ 375,00 e a renda per capita é de R$ 98,21 (Gráfico 1). O programa bolsa-auxílio representa 19,08% do rendimento das famílias. A associação entre as condições de morador de uma ocupação e de trabalhador informal traz problemas adicionais à vida das pessoas, afirma Norma da Silva Pinto: “o movimento é rejeitado, somos considerados como bandoleiros, sem “ocupação”. Uma vez fui discriminada na fila do SUS. A funcionária pediu meu endereço e quando disse que morava em uma ocupação fui agredida verbalmente. Ela nos acusou de arrombar a casa dos outros. Nós não arrombamos a casa de ninguém! Nós ocupamos terreno e casas que não estão sendo usados. E ocupamos não por vandalismo, mas por necessidade. Moram famílias nas ocupações! Ela ainda disse que era o dinheiro do povo que iria pagar pelas nossas casas. Disse a ela que quem iria pagar pela casa era a gente. Sem Teto é gente, nós trabalhamos e não queremos o dinheiro de ninguém. O governo não está dando nada. Nós vamos pagar. Sem Teto sofre de tudo que é jeito.” Os integrantes da Ocupação JJ Seabra residem em unidades unifamiliares,

sendo que 64% destas, contam com apenas um cômodo e 90,91% têm apenas um cômodo como dormitório (Gráfico 2). As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, com 63,64%; e as famílias se abastecem em dois pontos de água existentes no interior do prédio — no térreo e primeiro andar, não existindo cozinha, nem individual nem coletiva. Os moradores lavam roupa e utensílios domésticos nos pontos de água existentes e compartilham os sanitários existentes no prédio. Todos os domicílios têm pelo menos um ponto de luz, acesso à rede de esgotamento sanitário e coleta de lixo, uma vez que os serviços estão disponíveis na via principal onde se encontra situado o prédio. As doenças mais frequentes registradas na ocupação são: gripe, febre e diarreia. Os espaços e equipamentos públicos que apresentam maior possibilidade de acesso e nível de satisfação são praia, praça, escola e saúde pública. Os menores índices de acesso e satisfação registrados foram os de cinema e teatro. Em relação às questões de segurança, a convivência com a violência gerada pelos conflitos do dia a dia é preocupante. Segundo Dinalva Freitas dos Santos, outra liderança da Ocupação JJ Seabra “no começo era diferente. Tinha muita briga, um tirava sangue do outro. Melhorou, mas ainda tem risco. Temos medo de desabamento. Tem gente aí embaixo consumindo drogas. Eles não convivem aqui na ocupação mas criam um clima ruim. Tenho um filho de catorze anos, que mora comigo, e outro de 19 anos, que mora com o pai, mas que vem aqui no fim de semana. Eu preciso ter condições melhores para criar esses meninos. Os meninos não se envolvem com nada, mas eu fico com medo. Vêm pessoas de outros bairros para consumir droga aí embaixo. A gente conversa com esses meninos mas é difícil. Um sobrinho meu, que consumia a pedra, morreu. Por causa de uma dívida de R$ 10,00 perdi a vida de meu sobrinho.” A opinião dos moradores sobre o movimento é bastante diversa: “é bom, mas também “polêmico”! É “mais ou menos, demora de entregar as casas”, como se fosse obrigação do movimento a entrega das casas. “Certo, bom e necessário, pois precisamos lutar pela casa” e “bom porque ajuda quem precisa”, afirmam

Gráfico 2 — Número de Cômodos por Imóvel

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

outros moradores. A condição de liderança, segundo Norma da Silva Pinto, envolve dificuldade de várias ordens: “A luta é muito difícil. Mexe com sua vida toda. Ninguém é coordenador de um movimento e diz que passou por mais coisas boas do que ruim. Todos os coordenadores deixam a sua vida pessoal, financeira, sentimental em segundo plano. Você fica exposto a todo tipo de violência. Já vivi situações de pessoas puxarem faca pra mim. Fui várias vezes ameaçada e meus filhos também. Existem muitas cicatrizes. Além disso, nem todos os moradores querem seguir as regras instituídas pelo movimento. Quando o coordenador é uma mulher é mais difícil. Já tivemos três coordenadores, eles saíram e eu fiquei. Eu tento entender as dificuldades das pessoas. De cada morador da ocupação eu vou levar um pedaço.” O contentamento em relação à aquisição da casa própria é evidente entre os moradores. Para Norma da Silva Pinto, “Passamos aqui seis anos de luta, de sofrimento, mas valeu a pena. Agora, vamos pra dentro do que é nosso. Finalmente conseguimos. Quem tiver um sonho entregue na mão de Deus e acredite! Agradeço a Deus de estar indo agora pra meu lar, pra minha casa com meus filhos. Vou dar valor a isso pro resto da minha vida. A gente só dá valor quando a gente luta e da maneira que lutamos. Antes eu chorava de tristeza, hoje choro de alegria. Quem não vai pra sua casa é quem não quer...” Em relação aos compromissos assumidos com a nova casa, Dinalva afirma: “Em recebo R$134,00 do Bolsa Família. O pai do meu filho dá R$ 100,00 por mês. Agora vem aí o custo da água e da luz. Fico preocupada sem saber se vou conseguir pagar. Mas Deus nunca me desamparou não vai ser agora que isso vai acontecer.”

Ocupações

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IPAC III (Centro Histórico) Foto: Cezar Miranda

A Ocupação IPAC III localiza-se na Rua do Paço, no Bairro do Centro Histórico (Figuras 1 e 2). Na ocupação vivem estimadamente 6 famílias e aproximadamente 24 pessoas. A maior parte dos responsáveis pelos domicílios da Ocupação IPAC III, em torno de 80%, é originária da Cidade do Salvador. Sandra Maria Coelho dos Santos, uma das lideranças da ocupação, conta a história da ocupação: “Sou mãe solteira, tenho 5 filhos. Eu morava no 48, aqui ao lado. Morava de favor, na casa de minha tia. Esse prédio foi desapropriado em 1994, pelo governo de ACM. Foi reformado e ficou fechado durante 10 anos. Eu olhava do quintal de onde eu morava e via cada janela, cada porta, ser destruída pela chuva e pelo tempo, durante esse anos todos. Em 2006, eu tomei a decisão de ocupar o prédio com outras famílias. O governo ditador de Paulo Souto nos tirou daqui em 15 dias. Chegaram aqui armados, com a polícia, como se fossem tirar bandidos. E como a polícia não respeita ninguém, resolvemos recuar e devolver o prédio. Na época, o IPAC marcou para fazer a nossa inscrição em algum programa de

Início da ocupação Localização

Figura 1: Fachada da Ocupação

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

IPAC III – Bairro Centro Histórico Coordenadas X: 553.353,85 e Y: 8.566.186,93

Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média dos moradores Renda per capita dos moradores Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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2006 Rua do Passo, nº 46, Centro Histórico Prédio 24 6 3,20 20 a 39 anos 93,75% negro 20% não concluíram o ensino médio. R$ 465,00 R$ 145,31 Contribui com 10,41% da renda total Pintor, artesão, ator, técnico em eletrônica, capoeirista, músico, auxiliar de serviços gerais, biscate 93,75% dos moradores não possuem carteira assinada Sandra Maria Coelho dos Santos e Maura Brito MSTB

moradia. Nunca nos procuraram. Passou março, passou abril, maio, junho e julho e nada. Em outubro, o novo governo ganhou a eleição. Em janeiro de 2007, ocupamos o prédio outra vez. Aí veio de novo a polícia, mas agora veio de forma mais leve. Em 2006, a polícia chegou aqui com fuzil e ocupou toda a rua. Em 2007, chegou uma viatura e conversaram com a gente. Colocamos a bandeira do movimento na fachada do prédio, pois quando a gente coloca a bandeira do movimento a polícia não invade a não ser que esteja acontecendo alguma coisa, de fato, errada.” O tamanho médio da família na ocupação da IPAC III é de 3,20 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráfico 1).

Gráfico 1 - População por Raça/Etnia

Foto: Cezar Miranda

não possuem carteira assinada — são trabalhadores autônomos, que desenvolvem atividades artesanais, culturais e de prestação de serviços no Pelourinho e seu entorno. “Eu sou auxiliar de serviços gerais do Centro de Estudos AfroAmericanos da UNEB (Universidade do Estado da Bahia), aqui, também no Centro Histórico”, afirma Sandra. Sua inserção no mercado de trabalho mostra como é tênue a fronteira entre o mercado formal e informal de trabalho para os Sem Teto: “Sou formada em pedagogia, mas nunca exerci a carreira de magistério. Já trabalhei vendendo cerveja no carnaval, na produção do filme Ó pai ó. O meu filho é cantor de Hip Hop e meu genro tem uma banda. Minha filha toca flauta e faz dança. Meu outro filho é saxofonista. As moradoras daqui são poetizas, recitam poesia nos bares e restaurantes daqui. Cléa é dona de casa e é artesã. Fábio é capoeirista, mora também aqui uma psicóloga, formada na USP, em São Paulo. O filho dela é ator. Mãe Val Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J também mora aqui. Ela faz direito na / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/ UFBA, 2012. UFBA (Universidade Federal da Bahia). Ela pediu pra morar aqui enquanto Maura Brito coloca de forma clara as estudava. Como ela morava em Plataforma e precisava estar contradições associadas ao perfil dos moradores mais perto da escola, a gente cedeu pra ela colocar uma da ocupações em Salvador: “você é branco, cama, um computador e um fogão. Todo mundo aqui tem o você tem o poder, mas quem está lá dentro pé e a mão na cultura. Se tirarem a gente daqui acabam de (na ocupação) é preto.” De modo enfático ela matar o Pelourinho. Tirar a gente daqui significa piorar o que afirma: “essa é minha luta dentro do sistema, é já está ruim.” para conscientizar. Eu tenho várias vertentes na minha militância. Eu parto do princípio de que as pessoas precisam de moradia, para poder fazer qualquer outro movimento. Só que eu percebo que nosso povo não tem consciência da questão racial. Eu vejo a ingenuidade do povo o tempo todo. Quando eu faço minha fala no movimento, eu falo de Zumbi, como foi a construção de Palmares, para que eles se sintam a importância de ser descendente africano.” Ires Brito, qualifica essa situação de exclusão se referindo ao que ela qualifica como “epider-mocracia”, ou seja, “se a gente fizer uma análise epiderme da situação das pessoas que estão nessa situação precária de moradia, se a gente fizer uma análise geopolítica, você vê o retrato da discriminação. Isso não pode ser coincidência, é impossível que seja uma coincidência. E se for coincidência, é uma coincidência muito perversa.” O contingente formado pelos moradores da Ocupação IPAC III integra, em sua maioria, Figura 3: Signos do Universo Afro na Ocupação do IPAC III o mercado informal, sendo que 93,75% deles

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As condições de moradia do IPAC III, apesar de precárias, quando comparadas com outras ocupações em prédios, são melhores e isso está relacionado com a atitude da liderança no processo de ocupação. “A ocupação que fizemos aqui foi por apartamento’, afirma Sandra. “Aqui tem 6 apartamentos e tem seis famílias. Nós queremos morar com dignidade. As pessoas quando não têm casa, no desespero, saem dividindo os espaços com papelão. Eles não têm noção do que é morar com dignidade, o que é ocupar com dignidade para, inclusive, ter o respeito do próprio governo. Além disso, quando a ocupação não se dá ao respeito, fica fácil até mesmo para a área ser ocupada pelo tráfico de drogas. Eu nunca quis ocupar para dividir a minha casa em dez. Eu trabalho, eu voto e eu quero morar bem.” O acesso dos moradores aos serviços de água e luz pode ser considerado menos precário pelo fato do acesso aos serviços ser individualizado. “A gente não pode mexer na estrutura do prédio, que é tombado, mas nós temos água, luz e sanitário. No começo, fizemos um banheiro coletivo e com o passar do tempo fomos fazendo um banheiro pra cada um. Nunca deixaram a gente fazer ligação com a rede de esgoto — é o que acontece aqui com todos os prédios, eles jogam o esgoto atrás, no terreno. Nunca cortaram a luz, mas de dois em dois meses cortam a água. A gente vai e liga de novo! Já pedimos várias vezes para regularizarem a situação da água e da luz. Eles não liberam, pois isso configuraria algum direito em relação ao prédio”, afirma Sandra. As condições da instalação elétrica expõem os moradores a uma situação permanente de risco: “A gente tem medo de incêndio, pois as instalações elétricas são ruins. Com o tempo a gente vai substituindo os fios, mas ainda assim, dá medo.” Cerca de 60% dos atuais moradores da Ocupação IPAC III residiram em casas alugadas, e 20% são provenientes de outras ocupações como a Alfred e Guindaste dos Padres. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação IPAC III é de R$ 465,00 e a renda per capita é de R$ 145,31. O programa bolsa-auxílio integra 10,41% do rendimento das famílias (Gráfico 2). A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 80% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. A doença mais frequente registrada no IPAC III é a gripe. Gráfico 2 - Renda Total e Bolsa-Auxílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Em relação à disputa jurídica do prédio, Sandra afirma: “o IPAC colocou a gente na Justiça, pediu a reintegração de posse. Eles não colocaram o movimento na Justiça, colocaram a mim, a Jocélia Fonseca, a Fábio Nascimento. No primeiro momento, como somos réus, não fomos ouvidos. Como quem ocupou o prédio foram mulheres e mulheres sérias, ele negou a reintegração e disse que o IPAC teria um prazo para definir o que deveria ser feito com as famílias. Antes de sair dessa audiência eu disse para o juiz: não é justo o senhor não nos escutar.” Entretanto, para Sandra a decisão do juiz favoreceu aos moradores: “era pra a gente sair no mês seguinte. Nesse caso, eu senti que a Justiça não é tão cega assim. Tem pessoas que são extremamente contra os movimentos sociais. Pensam que só tem maluco, drogado, desorientado. Ele não! Quando ele negou a reintegração de posse ele percebeu que o movimento dos Sem Teto não tem só bagunceiro. Eu sou pedagoga, fiz magistério, outras pessoas fizeram faculdade. Temos noção dos nossos direitos e sabemos fazer política. Estamos apreensivas pois janeiro está chegando e não sabemos o que vai acontecer. Em relação à possibilidade de deslocamento do Centro Histórico, Sandra é enfática: “Não sabemos se vamos permanecer aqui. Quando ocupamos aqui deixamos claro pra SEDUR e pra CONDER que a gente não quer o prédio. A gente quer morar no Centro Histórico, pois nossa vida está aqui. O governo garantiu em várias reuniões, isso está registrado em várias atas, que não sairíamos daqui. Não fazemos questão de ficar aqui nesse prédio. Queremos ficar no Centro Histórico. Aqui eu trabalho, minha filha e meu neto nasceram aqui. Aqui eles estudam e também trabalham.” Esse sentimento de pertencimento ao Centro Histórico é claramente explicitado por 80% dos entrevistados, seja pela proximidade do trabalho, pela chance de conseguir um emprego ou por estarem acostumados com a vizinhança. Sandra é muito enfática na defesa da permanência dos moradores da ocupação no Centro Histórico. “Hoje já acontece coisa aqui que não acontecia nem quando era brega. Quando era baixo meretrício, puteiro. Hoje, a situação do Pelourinho está pior porque não há respeito ao outro. Eu digo sempre aos meus filhos: vocês respeitem de puta, a ladrão, a doutor! O desrespeito começa com a polícia. Não sou contra a abordagem. Sou contra a humilhação, como eles já fizerem com meus filhos. Eles pegaram o revólver, colocaram

na cabeça dos meninos e disseram: você é bandido, traficante, você é avião. Não se pode falar assim com as crianças. Eu já falei várias vezes com a polícia: vocês sabem onde está a bandidagem, os traficantes, e não vão lá pois sabem que é perigoso.” Segundo Sandra, o atual governo não tem uma política para o Centro Histórico, não tem uma política para as pessoas que aí moram: “o governo atual tem um discurso técnico que é igual ao dos governos anteriores. O atual governo não tem um projeto para o Centro Histórico. Eles vão ter que rebolar muito pra ter esse prédio de volta. A COPA esta chegando e o povinho, por que é assim que eles chamam o povo pobre e preto, tem que ir pra Cajazeiras ou não sei pra onde. O menino que fez Capitães de Areia é viciado em pedra e vive zanzando por aqui. Nós aqui incomodamos os turistas, os colonizadores. Nós não vamos recuar assim fácil não. O governo sabe disso. Eles batem na mesa e eu bato também. Nosso discurso é político. Eles não gostam muito quanto eu vou para as reuniões, pois eu vou pra cima. Na verdade, eles não falam nada que esteja favorável ao povo e, no fundo, no fundo, o discurso do governo não mudou.” Segundo Sandra, a postura diante do Centro Histórico é a mesma para toda a cidade. “Veja o plano que o governo tem para o Centro Histórico para 2014. Eles não querem que a gente continue morando aqui. A especulação imobiliária está pressionando para que a população pobre seja expulsa daqui — quem fala mais alto é o dinheiro. Carlos Suarez tem interesse na área e eles não querem pobre,

preto nem morador de rua aqui. O discurso de hoje é igual ao de antes. Jacques Wagner é igualzinho a ACM. Não mudou nada. Eu votei as duas vezes nele. No primeiro governo a postura foi até diferente, mas agora eles estão mostraram as asas deles. O fato é que o problema da moradia é político. Eles não têm um projeto de moradia para a população pobre. Eles não têm projeto para o povo e a COPA simboliza uma faxina no Centro Histórico, outra faxina, porque ACM já tinha feito uma antes.” E a política para o Centro Histórico não mudou porque não mudou a política como um todo, segundo Sandra. “O rico continua na verdade cada vez mais rico, o pobre cada vez mais pobre. As pessoas continuam na rua, maltratadas. Você vê a diferença de tratamento que se dá a uma pessoa branca e a uma pessoa preta. Vá procurar um emprego! Se é uma pessoa de cabelo liso, de pele mais clara, consegue. Se for um preto, ele volta. O salário da gente é pra escravizar. As escolas perderam o senso do que é educação. Na verdade, o governo não vai dar conhecimento para o povo preto e pobre, pra eles se revoltarem.” Quando questionada sobre o movimento de luta pela moradia, Sandra afirma: “É um movimento de respeito. Tem pessoas que são desonestas, mas a maioria luta pela causa social. Pedro Cardoso é um deles. Ele é honesto, ele não se vende. O Governo faz assim: faça isso que eu lhe dou aquilo. Eu não abandono esse movimento — só se ele desistir das causas dele. Se o Governo conseguir comprar as suas lideranças. Casa popular muitos Governos já fizeram. O Minha Casa Minha Vida tem suas vantagens e desvantagens. Por que a gente não pode ficar aqui e tem que ir pro meio do mato como se a gente fosse macaco, como se fosse bicho? Eles, na verdade, não têm projeto para gente. Esse é um Governo mentiroso. Salvador hoje definha, pois eles só pensam neles. Existem duas Salvador. Quando eu vou no Itaigara eu digo: Meu Deus, aqui tem governo! Mas quando a gente vai para a periferia a situação é outra. Há uma Salvador para a elite e outra para o preto e pobre.”

Ocupações

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IPAC II (Centro Histórico) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação IPAC II localiza-se na Rua do Passo, no Bairro do Centro Histórico (Figuras 1 e 2). Na ocupação vivem aproximadamente 32 famílias e 128 pessoas. Todos os responsáveis pelo domicílio da Ocupação IPAC II são filhos da cidade do Salvador. Segundo Jorge Luiz de Oliveira Santos “os atuais moradores vieram de um prédio no Taboão. O prédio estava em péssimas condições e nós tínhamos a assistência da CONDER. Depois de oito anos, chegou uma verba da Caixa Econômica pra fazer reforma ou realocar a gente. A verba chegou, se passaram quatro anos e ninguém fazia nada. Era só reunião, reunião, reunião e não se fazia nada! O terceiro andar desabou. Veio outra verba de emergência e nada. Passaram-se mais três anos com a gente dentro, e nada. Com a chuva, o prédio desabou. O prédio começou a tremer, tremer e caiu todo. A gente saiu correndo... e o prédio atrás! Perdemos tudo. Passamos três dias na rua. Queriam levar a gente pra albergue mas com criança não pode. A CONDER não tinha solução nenhuma. Traziam uma sopa com pão e a gente

Início da ocupação Localização

Figura 1: Fachada da Ocupação

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

IPAC II – Bairro Centro Histórico Coordenadas X: 553.353,85 e Y: 8.566.186,93

Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

98 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2005 Rua do Passo nº 32, Centro Histórico. Prédio 128 32 3,82 10 a 19 anos 77,78% negro 100% não concluíram o ensino médio R$ 310,80 R$ 86,33 Contribui com 9,91% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos e guardador de carro 100% dos moradores não possuem carteira assinada Jorge Luiz de Oliveira Santos MSTB

é que teve que se virar. Prometeram auxílio-moradia, que só saiu 60 dias depois. Várias vezes a verba pra resolver a nossa situação foi liberada e o dinheiro sumia. O Movimento viu a nossa situação e nos colocou aqui. Entraram em contato com a CONDER e com o IPAC e deixam a gente aqui. Esse prédio estava fechado há dezesseis anos. Fechado!” O tamanho médio da família na Ocupação IPAC II é de 3,60 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 10 a 19 anos. Nenhum morador do IPAC II possui carteira assinada — são trabalhadores autônomos, que desenvolvem atividades no tradicional Centro Histórico da cidade. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação IPAC

Gráfico 1- Origem da Renda Familiar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

II é de R$ 310,88 e a renda per capita é de R$ 86,33. O programa bolsa-auxílio integra 9,91% do rendimento das famílias (Gráfico 1). Os vínculos dos moradores com o Centro Histórico são fortes e ficam muito evidentes na declaração de Jorge Luiz: “nós somos daqui. Todo mundo trabalha aqui, a escola dos meninos é aqui. Prometeram que iriam fazer uma reforma e que não sairíamos daqui. Mas existe uma proposta de realocação. Concretamente ainda não aconteceu nada. A CONDER já entrou com o pedido de reintegração de posse desse prédio. A CONDER tem oitenta e seis prédios. Todos fechados. Lacram a frente de cimento, por dentro está tudo desabando, mas não deixam ninguém morar. Estão reservando essa área pra gringo. Dois prédios vizinhos foram comprados por dois franceses. Estão fechados há três anos. Um espanhol comprou uma casa e também está fechada. A filha do dono do Iguatemi já comprou 46 imóveis, casarões antigos. Eles fecham tudo, lacram e deixam vazios. Pra depois dizer que moram na Bahia, no Pelourinho. Vão retirar a gente daqui. Não queremos ir para Coutos, CIA, Barro Duro, vamos fazer o que lá? Sou biscateiro, as pessoas fazem faxina, vendem café, trabalhamos aqui. Como vamos fazer para sobreviver lá?” Nenhum morador do IPAC II concluiu o ensino médio. Quando questionados sobre o direito à moradia e à cidade, de forma muito enfática, os moradores colocam a necessidade de que sejam tomadas as providências necessárias à resolução da situação de precariedade na qual se encontram. Os dados da pesquisa revelam que o acesso ao que a cidade oferece se dá, sobretudo, através do acesso aos espaços livres, como praias e praças. Particularmente

em relação ao acesso à saúde e à escola pública, ainda que tenham acesso, os moradores se declararam, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados (Gráfico 2). Jorge destaca o peso da segregação socioespacial, da exclusão, em uma cidade, segundo ele, moldada pela especulação imobiliária e por políticas de requalificação urbana que privilegiam, sobretudo, a acumulação. “Estão fazendo uma faxina étnica no Pelourinho e nós somos os excluídos. Querem mostrar a cidade com a cara de primeiro mundo. Isso não existe. Nós somos terceiro ou quarto mundo. E essa situação é criada pelo próprio governo. Na verdade, falta vontade política pra resolver essa situação de exclusão. Todo mundo sabe, todo mundo vê e ninguém faz nada. A corda só quebra no lado mais fraco. E nós somos o lado mais fraco. Não temos poder, não temos força. Em outros países as pessoas se revoltam, Gráfico 2 — Acesso e Satisfação aos Serviços e à Cidade

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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brigam, quebram tudo, até conseguir alguma coisa. Aqui nós somos diferentes, não temos essa característica. Aqui nós somos mais do que pacíficos, somos idiotas.” Cerca de 80% dos integrantes da Ocupação IPAC II residem em unidades unifamiliares, sendo que 60% destas contam com apenas um cômodo e todos têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco, com 60%; sendo as demais construídas de material misto. Em relação à forma de abastecimento de água, a grande maioria dos moradores tem pelo menos um ponto de água no interior do domicílio, além de se abastecerem em pontos de água existentes no interior do prédio. Existem cozinhas, banheiros e lavanderias individuais no interior dos domicílios como também banheiros coletivos nas dependências do prédio. Quanto às condições sanitárias, 80% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária, estando conectados à rede de esgoto através da canalização geral do prédio, que funciona de forma precária. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e todos os domicílios pesquisados decla-

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raram ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. A doença mais frequente registrada no IPAC II é a gripe. Em relação ao Movimento dos Sem Teto, Jorge afirma “Já tive fé no Movimento dos Sem Teto. O movimento tem uma certa influência mas não tem poder de fogo. É só conversa. Não chega lá. Sobe um degrau hoje, amanhã desce quatro. É preciso que exista o movimento, mas o Estado deveria levar mais em conta o Movimento. O governo já faz da gente gato e sapato, sem o movimento, eles vão tirar a gente daqui de trator. Quem sobreviver, sobreviveu! A nossa classe social não interessa ao governo. Nem sei se somos de verdade uma classe social. Salvador é uma cidade fracionada. Existe uma Salvador de ricos, de pobres e de muito pobres. Na verdade, estou em um estado de revolta grande. Temos uma sensação de insegurança eterna e nada se resolve.”

Guindaste dos Padres (Comércio)

Início da ocupação Localização

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

2008 Rua Guindaste dos Padres, Comércio Prédio 120 30 3,25 40 a 59 anos e 10 a 19 anos 66,67% negro 58,33% não concluíram o ensino médio R$ 473,08 R$ 145,56 Contribui com 8,74% da renda total Empregados domésticos, vendedores ambulantes e biscateiros 100% dos moradores não possuem carteira assinada José Pereira Maia de Jesus Filho e Marilúcia Cerqueira de Brito MSTS

Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Guindaste dos Padres localiza-se no começo na Rua Guindaste dos Padres, próximo da Ladeira da Montanha, no Bairro do Comércio (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início em junho de 2008, após reintegração de posse da ocupação do Ed. Chile, que tinha como coordenadores Marilúcia e José Maia, além do apoio de Carlos Lima e Juarez Monteiro, afirma José

Figura 1: Fachada da Ocupação

Pereira Maia de Jesus. ”A ocupação do Ed. Avelino foi a última ocupação do MSTS, tendo sido difícil a transferência dessas famílias para essa ocupação. Foram muitas as dificuldades e também, nesse tempo, houve Inserção no mercado de trabalho o desaparecimento da filha de um coordenador que estava dando apoio a Principais lideranças transferência dessas famílias. A filha dele, de 11 anos, apareceu boiando na Prainha do Lobato. Ela foi estrangulada e estuprada — isso transtornou Vínculo com o Movimento Social a todos na época da mudança”, afirma liderança do MSTS. Segundo José Pereira “na verdade as pessoas que moram aqui hoje vieram do Pelourinho, Guindates dos Padres – Bairro do Comercio Gamboa, Barroquinha e das ocupações do Coordenadas X: 553.043,67 e Y: 8.565.955,19 Ed. Chile, Stela Mares e da Estrada Velha do Aeroporto.” Ele participou de todo o processo de construção do Movimento de Luta pela Moradia: eu participei do movimento desde o início, quando nos reuníamos para ocupar o terreno em Mussurunga. Eu sou da época da ocupação do km-12, juntamente com Jhones Bastos, Idelmário Proença, Pedro Cardoso, João Dantas e demais companheiros. Conversávamos, com Jhones Bastos e começamos a ver que está na Constituição que todo cidadão tem direito a moradia. A gente ocupa, a polícia vem e tira. Tira uma vez, a gente volta, depois tira a segunda vez. Ocupamos o prédio na Carlos Gomes, da Universidade Católica. Depois fomos para outro prédio nos 2 Leões (onde Jubiraci e Ivo eram coordenadores) e, Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação finalmente, chegamos aqui.”

Ocupações

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Vivem na ocupação, aproximadamente, 30 famílias e 120 pessoas. A grande maioria dos responsáveis pelos domicílios, 75%, é originária da cidade do Salvador. Dentre esses, 58,33% não concluíram o ensino médio e 25% nunca estudaram. Eles desenvolvem atividades de vendedores ambulantes, empregados domésticos ou biscateiros. O tamanho médio da família na Ocupação Guindaste dos Padres é de 3,25 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros, na faixa etária de 40 a 59 anos (Gráfico 1), vindo em seguida a faixa de 10 a 19 anos. São, portanto, moradores com inserção social e econômica já definida e crianças e adolescentes em fase de formação. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que nenhum deles possui carteira assinada — em sua maioria trabalham como ambulantes.

Gráfico 1 - Distribuição da População por Faixa Etária

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2- Condição do Imóvel Antes da Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Quando questionado sobre o significado da atividade de líder no contexto da ocupação, Maia ressalta as dificuldades próprias de qualquer relação, mas também das condições nas quais essa liderança é exercida: “Ser líder de uma ocupação é muita dor de cabeça. Eu não faço nada esperando alguma coisa em troca. Eu faço de coração. Aprendi, com passar do tempo, que você não deve esperar reconhecimento pelo que você faz. Como liderança você vira exemplo. Às vezes você faz 99,0% mas como faltou um pouquinho, você não presta. Como líder de uma ocupação você é como um tipo de pai. Ou você presta pra todo mundo ou você não presta pra ninguém.” Em relação à composição social do movimento, ele afirma: “no movimento você encontra todo tipo de gente. Têm pessoas que vieram de baixo, pessoas humildes, tem pessoas que tem melhores condições e que querem ajudar e tem pessoas que querem se aproveitar do movimento. Na verdade, o que nós estamos fazendo é obrigação do governo. Estamos substituindo o governo. A constituição garante o nosso direito a moradia. Como o governo não garante esse direito, o movimento passa a ser necessário. E direito a moradia não é só direito a casa é também o direito a comunicação, lazer, cultura, de ir e vir.” Cerca de 75% dos atuais moradores da Ocupação Guindaste dos Padres, antes das várias passagens por outras ocupações, residiam originalmente em casas alugadas, sendo 25% provenientes da Alfred e Estrada Velha (Gráfico 2). “Na verdade, quando a gente tira um pai de família da rua nós estamos livrando ele de ser um assaltante, um traficante, dele matar. Estamos ajudando ele a ser um cidadão”, afirma Maia. Os integrantes da Ocupação Guindaste dos Padres residem em unidades unifamiliares, sendo que 91,67% destas contam com apenas um cômodo e todos têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco, com 86,33%; sendo 16,67% de material compensado ou madeirite. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, os moradores se abastecem em pontos de água existentes no interior do prédio. Quanto à existência de sanitário, 83,33% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade, estando precariamente conectados à rede geral de esgoto através da rede existente no prédio. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 83,33% declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registrada na ocupação Guindaste dos Padres são a gripe e a diarreia.

A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Guindaste dos Padres é de R$ 473,08 e a renda per capita é de R$ 145,56. O programa bolsa-auxílio integra 8,74% do rendimento das famílias. Como afirma Maia, a condição de Sem Teto é difícil e isso se explicita de várias formas. “Quando você se identifica como membro do Movimento do Sem Teto você é excluído: Não perguntam se você é pessoa, se você é gente. Às vezes perguntam pra mim: mas você mora naquele lugar? Com aquele povo? Eu digo: sim, eu moro. São pessoas humildes, que têm coisas boas, são pessoas e que têm calor humano. As pessoas pensam que ser Sem Teto é ser bandido. Na verdade para os Sem Teto, Salvador é uma selva e todos querem devorar a gente. Tente chegar em um lugar e diga. Eu sou um Sem Teto. Você pode ser branco, formado,

você pode ter a formação que for, mas se você é Sem Teto você é sempre marginalizado. Dizem que não tem discriminação em Salvador. Não é verdade.” Quando questionados sobre os objetivos do movimento, os moradores declaram em sua maioria (58,33%) conhecer, afirmando que seus objetivos são a luta pela moradia digna. É preciso ainda pensar melhor na política habitacional que está acontecendo agora, afirmam alguns moradores. As pessoas que estavam nas ocupações que são realocadas já tinham a “vida arrumada”. “Quando vão pra outro local às vezes não tem escola, não conseguem ter acesso ao transporte, pois não pode pagar e não tem como trabalhar — muitas pessoas são catadores e agora como vão fazer? Na verdade, estão tirando a gente da boca da onça e estão colocando na boca do leão.” Essa percepção da exclusão se reflete nos dados segundo os quais os moradores da Guindaste dos Padres declaram não ter acesso ao que a cidade oferece e os serviços aos quais têm acesso são qualificados como não satisfatórios.

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Edifício Rajada (Comércio)

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2004 Rua do Julião, Comércio Prédio 120 21 3,17 10 a 39 anos. 73,68% negro 75% não concluíram o ensino médio R$ 468,17 R$ 147,84 Contribui com 13,79% da renda total Catadores de resíduos sólidos, vendedores ambulantes, empregados domésticos, biscateiros, balconistas, cozinheiros, cabeleireiros e garçons 97,37% dos moradores não possuem carteira assinada José Carlos Gonçalves de Oliveira MSTS

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Edifício Rajada – Bairro do Comercio Coordenadas X: 553.280,8 e Y: 8.566.270,12

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Foto: Roseli Afonso

A ocupação do Edifício Rajada localizase na Rua do Julião, no Bairro do Comércio (Figuras 1 e 2). O prédio possui dez pavimentos, totalizando 557 m2 de área construída. A ocupação teve início em 2004, organizada pelo Movimento dos Sem Teto de Salvador. Hoje, vivem 21 famílias e cerca de 120 pessoas. Cerca de 58,33% dos atuais moradores da Ocupação Edifício Rajada residiram em casas alugadas; 16,67% deles vieram de outras ocupações.

Figura 1: Fachada do Edifício Rajada

A história dos moradores do Edifício Rajada pode ser contada a partir da experiência de vida de José Carlos Gonçalves de Oliveira: “Eu morava de aluguel em Alto de Coutos com minha família. Recebi ordem de despejo e vim morar aqui. Eu não gosto de falar... Abre uma ferida que ainda não fechou. Na época do despejo eu trabalhava com carimbo. Fui atropelado, quebrei as costelas, a cabeça, a perna. Fui parar no HGE, fui operado e passei um ano na cama. Meu ex-sócio, pensando que eu ia morrer, pegou meu computador, tudo que eu tinha e vendeu. A gente passou muita dificuldade. A gente passou fome nessa cidade. Eu não tinha coragem de roubar nem de pedir nada a ninguém. Arrumamos outra casa... fui despejado. Labutamos, labutamos e foi quando eu conheci a Ocupação. Aí eu pensei: Eta lasqueira! Olha quanto ladrão ali dentro. Aí Cristina me chamou pra morar aqui. Não tinha jeito. Aí embaixo tinha estuprador, sasiseiro, traficante, tudo de ruim que você possa imaginar. Combati esse povo. Nunca temi a morte. Hoje, graças a Deus esse é um dos melhores acampamentos. Aqui eu não admito homem bater em mulher. E também não admito droga. Tem umas pessoas que fumam, como em todo lugar, mas fumam lá fora. Aqui dentro não! E se fumar pedra sai do acampamento. O certo é não fumar. Não vivemos em um mar de rosas. Mas não passo mais fome com minha família. Agradeço a Deus, ao Movimento dos Sem Teto e a Idelmário Proença.

Gráfico 1 — Distribuição dos Moradores por Cor e Raça

Mestiço 26,32%

Negro 73,68%

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Eu aprendi muito com ele. Aqui eu cresci e me reeduquei. Eu devo muito a ele. Se amanhã a sorte tiver comigo, se eu ganhar na loteria e se eu der todo o dinheiro a ele, eu não pago o que ele fez por mim.” A maior parte dos responsáveis por domicílios da Ocupação Edifício Rajada (58,33%) é originária da cidade do Salvador e 75% não concluiu o ensino médio. O tamanho médio da família na ocupação do Edifício Rajada é de 3,17 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por pessoas na faixa etária de 10 a 39 anos e por negros (Gráfico 1 e Gráfico 2). O contingente formado por esses traba-

lhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 97,37% deles não possuem carteira assinada — são trabalhadores autônomos, que desenvolvem atividades de catadores de resíduos sólidos, vendedores ambulantes, empregados domésticos, biscateiros, balconistas, cozinheiros, cabeleireiros e garçons. Como afirma José Carlos “aqui cada um se vira. Somos Sem Teto, não somos mendigos. Nós temos duas pernas e dois braços. Lugar de mendigo é no albergue. Gelo Queimado sai com a carrocinha dela e vende o queimado, a outra é garçonete, outra é cozinheira, outro trabalha na portaria. Quem fica na portaria recebe. Não tem aquele “dinheiro”... Mas, dá pra viver... Uma vez um policial invadiu aqui e disse: Sem Teto com televisão, DVD? Eu disse: nós somos Sem Teto, não somos mendigos não! Nós trabalhamos. Com o dinheiro do aluguel, da luz e da água a gente compra o que precisa à prestação, em 12 vezes, com-

Gráfico 2 — Moradores Segundo Faixa Etária

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Foto: Iraildes Santana

pra geladeira de segunda mão. Se fosse para pagar aluguel a gente não tinha nada não. Iria ser despejado como eu fui. Aqui não tem vagabundo.” A média da renda mensal por domicílio dos moradores do Edifício Rajada é de R$ 468,17 e a renda per capita é de R$ 147,84. O programa bolsa-auxílio integra 13,79% da renda total. Os integrantes da Ocupação Edifício Rajada residem em unidades unifamiliares, sendo que 33,33% destas contam com apenas um cômodo e 91,67% têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco, com 41,67%; e de madeira, com 33,33%. Aproximadamente, 41,67% dos entrevistados declararam não ter cozinha coletiva ou individual. O abastecimento de água é feito através de ligação alternativa, tendo um ponto de água na entrada principal de uso coletivo, sendo que o mesmo distribui a água para o subsolo e primeiro andar, onde reside o coordenador. Os demais andares armazenam

águas em vasilhames plásticos, garrafas pet, baldes, tonéis, e garrafões. Quanto à existência de sanitários, 50% dos entrevistados dividem com mais de um morador a mesma unidade sanitária. Em torno de 41,67% afirmam que fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 41,67% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. A doença mais frequente registrada no Edifício Rajada é a gripe. Quando se pergunta sobre se a vida melhorou ou piorou ao morar na ocupação, a opinião dos moradores se divide, o mesmo ocorre quando se questiona sobre a ocupação onde mora — metade afirma tratar-se de um bom lugar e metade considera não ser um lugar digno pra se morar. Para José Carlos “a principal ferramenta de luta do movimento é ocupar a rua. Mas, hoje, para resolver o problema da moradia é preciso sentar à mesa e negociar com o nosso governo. Temos, hoje, casas pra morar. Alguns moradores vão pra Barro Novo II, Sítio Isabel e Trobogy. Outros devem ir para Assis Valente, na Boca da Mata.” Quando se refere à relação do coordenador com a ocupação, ele afirma: ‘Os Sem Teto devem abraçar o coordenador como se fosse um irmão”. Como ele ressalta: “esse trabalho gratifica a pessoa, mas envolve sacrifício e é muito difícil.”

Figura 3 — Reserva de Água

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Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

A Ocupação IPAC I localiza-se na Ladeira da Soledade, no Bairro da Lapinha (Figura 1 e 2). É um prédio de quatro andares em estado precário de conservação, com área construída de 570 m2. A ocupação foi fundada em 2002, vivendo estimadamente 12 famílias e 48 pessoas. “As pessoas que ocuparam o prédio são na verdade antigos moradores, que moravam aqui de aluguel e que foram desalojados por conta da reforma — o prédio começou a desabar, o governo desapropriou e tirou as pessoas com a promessa de que eles voltariam”, afirma Janete Borges de Brito, líder da ocupação. “O prédio ficou com a obra parada. Quando o vigilante saiu, os antigos moradores, que residiam no entorno, de aluguel, ocuparam de novo o prédio. Na época não tinha nem Movimento Sem Teto. Eu morava em uma avenida de casa no fundo do prédio, de aluguel. Uma moradora desistiu e cedeu pra mim. Quando o movimento surgiu, Pedro Cardoso veio aqui e sugeriu que a gente se associasse. Eu não quis. Figura 1: Fachada do IPAC I Eu achava que era uma coisa de política (pensei que ele quisesse se candidatar a algum cargo). Depois vieram dois pedidos de reintegração de posse. Nós conseguimos ficar aqui até hoje. Já estamos aqui há 9 anos. Se não fosse o IPAC I (Lapinha) Movimento, a gente não estaria aqui.” Coordenadas X: 554.272,58 e Y: .856.7415,09 A maior parte dos responsáveis por domicílio da Ocupação IPAC I é originária da cidade do Salvador, representando 77,78% dos responsáveis pelos domicílios (Gráfico 1). Em torno de 88,89% dos moradores não

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2002 Ladeira da Soledade, Lapinha Prédio 48 12 3,78 20 a 39 anos 41,18% negro 88,89% não concluíram o ensino médio. R$ 497,67 R$ 131,74 Contribui com 8,35% da renda total Trabalhadores dos serviços domésticos; Vendedores ambulantes; Biscateiros 94,12% dos moradores não possuem carteira assinada. Janete Borges de Brito MSTB

Ocupações

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Foto: Suely Ribeiro

IPAC I (Centro Histórico)

concluíram o ensino médio. “Os moradores trabalham como ambulante, manicure, vendedor e tem gente que recebe bolsa família — todos trabalham em torno do Centro, da Av. Sete, Carlos Gomes, Comércio”, afirma Janete. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 94,12% deles não possuem carteira assinada. “Queremos ficar aqui” ela afirma. “Existe a promessa de que a gente vai continuar no Centro. Não adianta tirar a gente daqui, levar para o Barro Duro. Lá não tem escola, não tem nada. A gente trabalha aqui, vai a pé para o Centro. Vamos para a Avenida Sete de Setembro, Comércio, Liberdade, tudo a pé. Tem família precisando e querendo morar na ocupação. O pessoal confia no Movimento e pede pra morar.” Segundo a pesquisa, os moradores desta ocupação gostariam de morar nos bairros como Barbalho, Lapinha ou Santo Antônio ou por considerarem um “ambiente bom de se morar” ou por ser um Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio lugar bonito, tranquilo e, assim, proporcionar melhor qualidade de vida. O tamanho médio da família na Ocupação IPAC I é de 3,78 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por mulheres 52,94%, negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráfico 2). Cerca de 55,56% dos atuais moradores da Ocupação IPAC I residiram anteriormente em casas alugadas. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da ocupação IPAC I é de R$ 497,67 e a renda per capita é de R$ 131,74. O programa bolsaauxílio integra 8,35% do rendimento das famílias. Os integrantes da ocupação residem em unidades unifamiliares, sendo que 11,11% destas contam com um cômodo e 55,56% possuem um dormitório. Pelo menos 22,22% dos domicílios não têm cozinha, nem coletiva nem individual. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 77,78% Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio. Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. Quanto à existência de sanitário 88,89% declararam possuir sanitário individual e 66,67% dispõem de pia, chuveiro, vaso sanitário e têm acesso à rede de esgoto canalizada. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 88,89% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. “É preciso refazer as instalações elétricas do prédio”, afirma Janete. “A instalação feita na época da reforma foi roubada e a que está aí foi feita por nós e é ruim. Temos medo de incêndio.” A doença mais frequente registrada no IPAC I é a gripe. Janete afirma que não esperava ficar tanto tempo morando em ocupação. “E o que é pior, não sabemos o que vai acontecer com a gente. Nós não nos inscrevemos no Minha Casa Minha Vida, pois achamos que o prédio deve ser revitalizado e a gente vai continuar aqui.” O tempo de permanência na ocupação, para a maioria dos moradores em torno de 77,78% supera as expectativas; e 66,67g% deles declaram ter melhorado de vida após a sua vinda para o IPAC I, principalmente por não precisarem pagar aluguel, luz ou água. Em relação às dificuldades do exercício da liderança ela afirma: “é difícil ser liderança quando você mora na ocupação. Nem todo mundo gosta de ouvir a liderança, seguir a regra. Eu vou levando... O maior problema é a limpeza do Gráfico 2 - Moradores Segundo Faixa Etária prédio e a participação em atividades do Movimento. Fica tudo para eu resolver.” Sobre a diferença da liderança masculina e feminina, ela considera que a “liderança da mulher é mais calma, a do homem é mais forte. Mas dá pra levar. A mulher tem uma participação maior. A gente tem mais pressa que as coisas sejam resolvidas. A gente tem pressa. Estamos mais próximas das necessidades das pessoas.” Por outro lado, o exercício ao direito a moradia e a cidade não é fácil. “A casa para o Sem Teto deveria sair mais rápido, de forma mais ágil. Demora, porque o governo não dá tanta importância como dá pra Copa do Mundo. Eles resolvem tudo em 4 anos. Nós já temos 9 anos aqui e nosso futuro é incerto. Quantos e quantos engenheiros já vieram aqui! Vou pra reunião e chego aqui e tenho que dizer que não tem nada certo.” Nós queremos ficar no Centro, nossa vida está Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro aqui, afirma Janete. Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

108 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Foto: Roseli Afonso

Edifício Matelba (Brotas) A Ocupação Edifício Matelba localiza-se na Rua Manari, no Bairro de Brotas (Figuras 1 e 2). O prédio possui quatro pavimentos, totalizando 700m2 de área construída. A ocupação aconteceu em 2004, organizada pelo Movimento dos Sem Teto de Salvador, com 30 famílias e cerca de 120 pessoas. Este prédio era residencial e encontra-se em estado precário de conservação. Em torno de 60% dos responsáveis pelos domicílios são originários de Salvador, 10% de municípios da RMS e os demais do interior do estado. Segundo Manoel Bonfim Almeida Santos, essa diversidade em relação à origem das pessoas é interessante, mas também traz dificuldades: “as pessoas aqui são de várias origens, de várias culturas. Elas têm o hábito de decidir sobre a própria vida e não têm o costume de ter alguém para exercer o controle sobre elas. Quando Deus deu o livre arbítrio às pessoas, deu também aos Sem Teto. É difícil adestrar as pessoas, colocar cada um dentro da norma. Figura 1 - Fachada do As pessoas não se adaptam ao regimento interno. E Edifício Matelba as vezes é preciso ser rígido.” A colocação de Manoel nos reporta exatamente à dificuldade de estabelecer regras que, de alguma forma, ordenem a vida coletiva na ocupação. “Esse trabalho exige muito da gente. Se a pessoa é boa, quando ela fica à vontade, ela fica melhor, mas se é uma pessoa ruim, ela fica pior. As pessoas gostam de ser livres e não de seguir a regra. É natural, mas também é complicado. Se não fosse assim não precisaríamos de advogado, polícia, e de juiz.” O tamanho médio da família na Ocupação Edifício Matelba é de 2,70 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. Dentre esses, 87,50% não concluíram o ensino médio. Desenvolvem atividades de manutenção de edificações, trabalhadores do mercado informal e vendedores ambulantes. O contingente formado por Edifício Matelba – Bairro de Brotas esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo Coordenadas X: 556.648,86 e Y: 8.565.295,22 que nenhum morador desta ocupação possui carteira assinada. A média da renda mensal por domicílio dos moradores do Edifício Matelba é de

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2004 Rua Manari, Brotas Prédio 120 30 2,70 20 a 39 anos 51,85% negros 87,50% não concluíram o ensino médio R$ 459,40 R$ 170,15 Contribui com 9,53% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos e cozinheiros 100% dos moradores não possuem carteira assinada Manoel Bonfim Almeida Santos MSTS

Ocupações

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R$ 459,40 e a renda per capita é de R$ 170,15. O programa bolsa-auxílio integra 9,53% do rendimento das famílias. Esses dados de renda remetem à constatação de Manoel sobre o significado das assimetrias de renda. “Se existisse igualdade no mundo, as coisas seriam diferentes. Existe hoje uma tendência que é o seguinte: quem tem mais acaba ganhando mais e quem tem menos continua a ganhar menos. No governo de Lula e de Dilma essa situação tem melhorado um pouco. Na verdade, as pessoas deveriam poder ter saúde, educação, emprego. Hoje a gente tem uma possibilidade maior de ter acesso a universidade. Nós temos o exemplo de Iraildes. Se nós pudermos frequentar a universidade, fazer Engenharia, Direito, daqui a algum tempo a situação pode mudar. A questão da igualdade é a mais importante. Se tivéssemos igualdade em todos os aspectos viveríamos em um mundo melhor.” Cerca de 50% dos atuais moradores do Edifício Matelba residiram anteriormente em casas alugadas e 20% deles são provenientes de outras ocupações. Os integrantes da ocupação do Edifício Matelba residem em unidades unifamiliares, sendo que 60% destas contam com apenas um cômodo e 80% têm apenas um cômodo como dormitório. O material utilizado na

Gráfico 1 — Condições de Habitabilidade - Tipologia do Imóvel

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Local Onde Gostaria de Morar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

110 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente bloco em 50% dos casos, e madeira em 30% (Gráfico 1). Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, os moradores se abastecem em pontos de água existentes no interior do prédio. Quanto à existência de sanitário, 80% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária, estando conectados à rede geral de esgoto. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 80% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas no Edifício Matelba são a gripe, verminoses e pressão alta. Os equipamentos públicos como parques e teatro são inacessíveis aos responsáveis por domicílios da Ocupação Edifício Matelba, embora eles os considerem satisfatórios na cidade do Salvador. Já a saúde pública e o transporte público, ainda que tenham acesso a estes, se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados. Destaca-se a referência ao fato de que existe emprego em Salvador, mas os mesmos não estão acessíveis aos Sem Teto. Quando questionado sobre a condição de líder, Manoel afirma: “ser líder é um trabalho solidário e todo trabalho desse tipo traz momentos de alegria e de tristeza. Mas é um trabalho bonito. É um trabalho bom, eu gosto. E estamos conseguindo o nosso objetivo de conseguir a moradia. Minha área hoje é administração, gosto de trabalhar com pessoas. Tem gente que não gosta de ser dirigido por mulher, mas tanto o homem quanto a mulher pode exercer a função de coordenação.” Parcela considerável dos moradores da ocupação está em processo de mudança para o Jardim das Margaridas. Manoel ainda está na ocupação por conta de existirem ainda famílias que não conseguiram ser transferidas. “Estou aqui por causa deles. O comandante é o último a abandonar o navio.” Em relação à política habitacional em curso, ele acredita que os projetos vão de fato acontecer e contemplar os moradores Sem Teto. Quando questionados sobre o local onde gostariam de morar,os moradores do Edifício Matelba afirmam que preferencialmente morariam em Brotas, por gostarem do bairro, por estarem mais próximos de familiares, por conhecerem as pessoas da região, pelo fato do bairro dispor de serviços e comércio ou por estarem próximos do trabalho e terem mais opções de emprego (Gráfico 2).

Dois Leões (Macaúbas) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Dois Leões está localizada na Rua General Argolo, no bairro de Macaúbas. O prédio tem dois pavimentos, uma área total de 2.600m2 e abrigava o Conselho Tutelar. A ocupação data de 2002, tem 85 famílias e 340 pessoas (Figura 1); Até chegar à ocupação de Dois Leões, a trajetória dos fundadores foi longa, como conta Ivo Carvalho da Silva, um dos líderes da ocupação: “No começo fomos para o antigo Edifício Saionara, no Comércio, recebemos a ordem de reintegração de posse depois de seis meses. Fomos, então, para o Cantagalo na Calçada. Ficamos quinze

Figura 1 - Fachada de Dois Leões

dias, recebemos reintegração de posse e tentamos ocupar o prédio de uma firma. Não deu certo e fomos para a Alfred. As pessoas não quiseram ficar lá e procuramos outro lugar. Fizemos uma votação e decidimos vir pra aqui. Aqui era um foco de marginal. Ninguém passava na rua tarde da noite. O dono da padaria era assaltado, o colégio fechava cedo. Quando viemos pra aqui esses problemas acabaram. A gente ajuda e dá segurança ao lugar. Os Sem Teto não são o problema, as pessoas que não conhecem a gente interpretam mal.” O tamanho médio da família na ocupação é de 3,30 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 10 a 39 anos. Metade dos responsáveis pela família

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Dois Leões – Bairro de Macaúbas Coordenadas X: 555.025,49 e Y: 8.566.638,98

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2002 Rua General Argolo, Largo dos 2 Leões, Macaúbas Prédio 85 340 3,30 10 a 39 anos 72,73% negros 88,10% não concluíram o ensino médio R$ 520,70 R$ 157,79 Contribui com 17,71% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos e trabalhadores de edificações (construção civil) 93,08% dos moradores não possuem carteira assinada Ivo Carvalho da Silva e Luzinete Severo de Santana (Nete) MSTB

na ocupação é originária de Salvador e a outra metade do interior do estado, com destaque para o município de Feira de Santana. A história de Luzinete Severo de Santana (Nete), também líder da ocupação, e que lida, no dia a dia, com as dificuldades da vida em condições tão adversas, é a história de muitos dos que se dirigem à capital com o objetivo de conseguir trabalho. “Eu sou de Itabuna. A minha vida sempre foi trabalhar de doméstica. Eu tenho um filho. Tive meu filho com 13 anos. Não queria mais trabalhar na enxada, deixei ele na roça com minha mãe e vim trabalhar em Salvador, na Graça. Eu tomava conta de duas moças. Fiquei seis anos nesse trabalho, elas eram médicas e me operaram (ligadura de trompas) com dezenove anos. Elas casaram, foram embora e eu fui procurar outro emprego. Minha ficha é limpa. Arranjei outro emprego. Trabalhei na casa de uma jornalista do jornal A Tarde, depois fui tomar

Ocupações

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conta de um velho, um sargento da Marinha e só saí quando ele morreu. Hoje trabalho pra mim. O que eu faço é meu. Faço minha guia lá fora, vendo cerveja, bandeira, camisa do Vitória, faço almoço, trabalho na portaria. Fui criada na casa de barão. Eu aprendi tudo. Faço uma comida muito gostosa. Desço seis horas da manhã e subo seis horas da tarde. Meu marido é camelô. Ele sai cinco e meia da manhã e chega a oito da noite. No carnaval eu trabalho todos os dias, chego

Gráfico 1 — Tipologia Habitacional

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

aqui três horas da manhã. Hoje eu trabalho muito, mas é pra mim.” A média da renda mensal por domicílio dos moradores da ocupação Dois Leões é de R$ 520,70 e a renda per capita é de R$ 157,79. O programa bolsa-auxílio integra 17,71% do rendimento das famílias. Em torno de 88,10% dos moradores não concluíram o ensino médio. Um dos principais motivos dos moradores dos Dois Leões estarem morando na ocupação é o fato de não poderem continuar pagando o aluguel. Cerca de 70% dos atuais moradores residiam anteriormente em casas alugadas e 30% são provenientes de outras ocupações. Nete afirma: “eu morava de aluguel, pagava R$300,00 reais. Vim morar aqui por causa do meu esposo. Passei uns meses chorando, com medo de vir morar na ocupação. Nunca tinha morado com tanta gente junta. No interior, a gente tem a casa, tem a família por perto. Aqui a gente está lutando pra ter a casa, mas é muito difícil. Às vezes a gente não aguenta mais e quer sair. A gente tem medo. A gente está aqui porque precisa. Um terreno a gente até compra aqui em Salvador, mas a casa não. Muita gente já desistiu de continuar na ocupação porque não é fácil. Muita gente não aguenta. Eu sonho em ter a minha casa. Vários Sem Teto já ganharam. Eu durmo e sonho com minha casa. Eu sonho arrumando a minha casa.” Segundo Ivo Carvalho da Silva, “o prédio tem problemas sérios de infraestrutura e está condenado pela CODESAL. Foi feita uma vistoria, temos o laudo, e já responsabilizamos

112 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

a prefeitura e governo do Estado — caso aconteça algum desabamento.” Os integrantes da Ocupação Dois Leões residem em unidades unifamiliares, sendo que destas, 60% contam com apenas um cômodo, e 90% tem apenas um cômodo como dormitório. O material utilizado na delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente bloco, com 70%; 20% de taipa e 10% misto (Gráfico 1). Para Ivo as ocupações terminam por desenvolver uma função social na cidade: “Imagine se todas essas pessoas estivessem na rua? Como ficaria essa cidade?” Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que os mesmos se abastecem em pontos existentes no interior do prédio, sendo que alguns domicílios têm ponto de água — muitos dos domicílios possuem cozinha e lavanderia individual. Quanto à existência de sanitário, 60% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 90% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na ocupação são: gripe, febre, leptospirose, diarreia e verminoses. A condição de líder de uma ocupação para Ivo está relacionada ao trabalho de defesa dos direitos coletivos. “Está na constituição que a moradia é um direito. O governo tem a obrigação de dar moradia ao cidadão. Quem mais paga imposto é o mais fraco, as grandes empresas são isentas. O trabalho de coordenador deve fazer as pessoas entenderem que a moradia é um direito de todos. Coordenador é aquele que ajuda e orienta as pessoas, ajuda ao Movimento, faz com que as pessoas entendam que os direitos são iguais, que não tem que ter privilégio, pois está todo mundo no mesmo barco. O coordenador está sujeito a erros. Não é fácil você ter que orientar 80 famílias em um ambiente fechado.” Para Nete, o cotidiano do exercício da liderança é difícil: “Nem sei explicar! Labutar com gente é difícil. Ninguém quer ser líder e nem é pra todo mundo. Estou vivendo em ocupação há nove anos. Aparece todo tipo de gente aqui, ladrão, traficante. Tem ameaça. Tem briga de marido e mulher. Às vezes temos que agir pra colocar a pessoa pra fora. A gente procura advogado, polícia. Se não sai por bem, sai por mau. Por tudo batem na porta da gente, não tem hora. É isso... É aquilo. É, Nete, o banheiro deu problema, Nete, o menino brigou, Nete, invadiram a casa de fulana. Eu preciso ficar livre dessa trabalheira. Preciso

deitar na cama e não ter ninguém batendo na porta com problema pra eu resolver. Eu quero paz. Quero deitar e poder dormir.” Quando questionado sobre a condição de mulher como coordenadora, Ivo afirma que “Existe diferenças entre o masculino e o feminino, mas tanto o homem quanto a mulher tem a mesma capacidade. A mulher tem uma compreensão melhor e isso ajuda no trabalho de liderança.” Luzinete reafirma a posição de que o desempenho da mulher como coordenadora é melhor: “se a coordenação fosse de um homem seria pior. Já teve coordenador aqui e foi pior. Meu esposo já foi coordenador. Mas eu acho que como mulher estou agindo melhor do que se fosse homem. Eles respeitam a mulher na coordenação sim. Às vezes quando preciso de ajuda eu procuro Ivo. Mas eles respeitam sim. Aconteceu uma tragédia aqui e tivemos que colocar o marido pra fora. A mulher ficou e ele saiu. Ivo estava viajando e eu coloquei ele pra fora.” Quando questionados sobre a ocupação onde moram, 90% afirmam que as principais vantagens de morar em ocupação, são as de não pagar aluguel, água e luz. A opinião dos moradores sobre a ocupação destaca os aspectos positivos do lugar — ressaltando o fato de ser um bom lugar para morar (Gráfico 2). A possibilidade de ser deslocado para um local distante traz preocupações: “A gente quer a casa da gente. Mas vai ser muito difícil ir pra um bairro onde Judas perdeu as botas. Aqui, eu coloco as minhas coisas e vendo tudo. Lá, vai ser difícil. Vai ser a mesma coisa quando a gente entrou aqui na ocupação. E depois vamos ter que pagar cinquenta reais pela casa, água e luz. É um sonho que está virando pesadelo. Mas, pra quem gosta de trabalhar... Eu vou ter que trabalhar em São Cristovão. Lá, no novo bairro, vão ser duas mil pessoas. Vai ser difícil conviver. Está na mão de Deus. Aqui a gente não pode ficar mais. Acordei quatro horas da manhã e seis já estava na portaria. Eu vivo aqui a base de remédio.” Ivo coloca de forma direta o significado do processo de segregação socioespacial promovido, inclusive, pela política pública, na vida das pessoas: “As pessoas que moravam no Pelourinho, nasceram ali, moraram ali há mais de 50 anos foram expulsas pelo governo, pela burguesia que não deixou que eles ficassem ali. Eles acham que a gente não tem o direito de morar ali. O objetivo dos governantes é afastar os pobres pra longe. O governante ganha em cima da miséria do povo. Não poderíamos continuar aqui? Não poderiam reconstruir o prédio? Se fosse o filho, o sobrinho

dos governantes, o tratamento dado seria o mesmo que está sendo dado ao povo? Somos encurralados, oprimidos, sem ter direito a expressão, a nada. Podemos ter a moradia, mas e o acesso a saúde a educação? Só temos direito a voz na hora da eleição. Aí o cidadão na verdade é forçado a votar. Não existe lei que obrigue o governo a fazer o que precisa ser feito para o povo.” Ele continua, “pra que existe a justiça, os três poderes? Não é para atender as necessidades dos pobres, é para atender as necessidades deles. Por exemplo, existem situações nas quais os prédios estão ocupados há anos e o juiz dá ordem de despejo. Aí, a justiça é rápida e atinge a gente. Existem muitos imóveis vazios em Salvador, porque não se resolve o problema da moradia, de quem não tem teto, por quê? O rico é o dono da lei. Ele está acima da lei, nada atinge ele.” Em relação às ações de reintegração, ele registra a mudança de postura nos dias de hoje: “Antes a polícia baixava o pau. Antes tinha até barraco queimado. Mas isso gerava muito conflito. Hoje eles procuram negociar. Apesar deles não cumprirem as obrigações pelo menos dá tempo de procurar a casa para as pessoas.” Para Luzinete, a inserção no Movimento tem um sentido muito claro: “Estamos lutando pra ganhar a casa. Precisamos estar juntos pra conseguir a casa.” Para Ivo, a relação com o Movimento dos Sem Teto é boa. “Em várias ocupações do MSTB, não só em Salvador, mas no conjunto do Estado, a relação é boa. Enquanto o governo tenta colocar os oprimidos uns contras outros, nós tentamos fazer com que as pessoas entendam a causa e não sejam enganadas de quatro em quatro anos.” A vinculação ao Movimento é uma forma de encontrar um lugar em uma cidade e em um contexto que os invisibiliza. Ademais, a possibilidade de não pagar pela moradia, inclusive água e luz, amplia a possibilidade de acesso a bens de consumo coletivo. “Quando chegamos aqui ninguém tinha nada. Nós saímos pedindo ajuda pra comprar fios pra colocar a luz. Colocamos água, compramos filtro, organizamos a ocupação. Tinha gente aqui que chegou com uma sacola. Hoje tem móveis. Eu comia o pouco que a minha patroa me dava. Agora eu tenho a minha independência. Abri conta no banco. Tudo que eu tenho devo ao Sem Teto. Agradeço ao Movimento dos Sem Teto. Eu amo Salvador. Tenho 16 anos aqui. Não tem quem faça sair daqui. Eu amo essa cidade.”

Gráfico 2 — Opinião sobre Ocupação onde Mora

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Saboaria (Calçada) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Saboaria localiza-se no Beco do Sabão transversal da Avenida Nilo Peçanha, no Bairro da Calçada (Figuras 1 e 2). Originalmente, nessa área, funcionava uma fábrica de sabão, de propriedade da Indústria de Mamona da Casa, do mesmo proprietário da Fábrica de Mamona de Paripe. Existe no terreno um galpão com um pavimento, totalizando 3.400 m2 de área construída. A ocupação teve início em 2003, e somente depois se aproximou do Movimento dos Sem Teto de Salvador. Essa ocupação nasceu em função das condições econômicas da população que morava no entorno da fábrica e não conseguia mais pagar aluguel, água e luz. Hoje

Início da ocupação

Figura 1 - Ocupação da Saboaria

Localização

vivem aproximadamente 130 famílias e cerca de 520 pessoas. A propriedade do terreno, originalmente dos trabalhadores (aquisição resultado de pagamento de dívida trabalhista), passou para o Banco do Brasil, em função de um empréstimo contraído — a situação ainda encontrase em litígio na Justiça. Segundo Alaíne dos Santos Cardoso, liderança da ocupação, “nós queremos permanecer aqui. Queremos que isso seja resolvido logo, pois a maioria já construiu suas casas de bloco.” Entretanto, falta a infraestrutura necessária, complementa outra liderança, Alan Xavier Lino, quando afirma que “o direito à moradia é você ter um lugar onde você possa se abrigar, com saneamento básico, com energia, água. É saber que você vai sair para trabalhar e ter o que comer quando voltar. É ter segurança. (...) Nós tentamos dar

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Saboaria – Bairro Calçada Coordenadas X: 554.595,81 e Y: 8.568.941,46

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

114 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

2003 Beco do Sabão, Nilo Peçanha Calçada Terreno 520 130 4,53 20 a 39 anos 61% negro 80% não têm ensino médio e 8,75% nunca estudaram. R$ 586,59 R$ 129,63 Contribui com 7,05% da renda total Ajudantes de Obras Civis, Cozinheiros, vendedores ambulantes, empregados domésticos ou na manutenção de edificações, Babá e Motorista 90% dos moradores não possuem carteira assinada Cleidivaldo de Almeida Santos (Vado) / Alaíne dos Santos Cardoso / Alan Xavier Lino MSTS

esperança as pessoas para que elas não desistam, para que continuem lutando.” A maior parte dos responsáveis pelo domicílio na Ocupação Saboaria é originária da cidade do Salvador, em torno de 52,50%. Dentre esses, 80% não concluíram o ensino médio; 8,75% nunca estudaram e desenvolvem atividades de empregados domésticos, trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações e biscate. O tamanho médio da família na ocupação é de 4,53 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, ao mercado informal, sendo que 90% deles não possuem carteira assinada — são trabalhadores autônomos. Cerca de 60% dos atuais moradores da Saboaria residiram em casas alugadas, sendo 10% provenientes de outras ocupações,

Gráfico 1 - Renda Total e Bolsa-Auxílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

localizadas em Mata Escura, Castelo Branco. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Saboaria é de R$ 586,59 e a renda per capita é de R$ 129,63. O programa bolsa-auxílio contribui com 7,05% da renda total (Gráfico 1). Os integrantes da Ocupação Saboaria residem em unidades unifamiliares, sendo que 22,50% destas contam com apenas um cômodo e 63,75% têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco, em 53,75% dos casos; e madeira, em 27,5% (Gráfico 2). Em relação à forma de abastecimento de

água nos domicílios, constata-se que 82,50% têm pelo menos um ponto de água no domicílio. Alan Xavier Lino, um líder da ocupação afirmou que “no período da eleição veio aqui alguém ligado a Embasa para colocar a tubulação de água, mas eles não queriam fazer o esgotamento sanitário. Nós sabemos que na conta de água vem uma taxa de esgoto, então a nossa pergunta foi: e a água que nós usarmos irá para onde? Em função disso não quisemos instalar a água. Depois ninguém voltou aqui.” Quanto à existência de sanitário, 77,33% dos entrevistados declararam ter sanitário; 40% dispõem de pia; 72,50% de chuveiro; e 80% têm vaso sanitário; sendo que 2,67% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária e somente 27,50% estão conectados à rede

Gráfico 2 - Material de Construção do Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Foto: Roseli Afonso

canalizada de esgoto — através da rede da antiga fábrica, como também das ligações alternativas feitas pelos moradores. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 20% dos entrevistados, 60% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz. Uma parte desses domicílios tem energia elétrica fornecida pela Coelba. Entretanto, Alan Xavier Lino afirma que “a Coelba só apareceu por aqui em 2005 e obrigou as pessoas a pagarem os dois últimos anos de consumo tendo como base de cálculo o consumo mensal atual. Conclusão: “minha mãe mesmo está pagando uma conta de R$ 3.000,00 (três mil reais) parceladas em 24 meses, mas tem um monte de gente que não teve condições de pagar e já está com a luz cortada”, relata Alan. Além disso, “aqui não há iluminação pública e a Coelba cobra a iluminação pública em nossa conta de luz”. Outra liderança, Cleidivaldo Almeida Santos (Vado) destaca: “fui eu que consegui com um vereador três torrezinhas para colocar luminária e acabar com a escuridão em uma das entradas da ocupação”. Dos domícilios pesquisados, 52,50% declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na Ocupação Saboaria são: a gripe, a febre, dengue e a diarreia. Em função da sua localização, quando chove o acesso à ocupação através do Beco do Sabão fica inviabilizado, pois se forma uma grande correnteza de água que desce do bair-

Figura 3 — Beco do Sabão

Gráfico 3 - Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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ro da Liberdade pelo beco. Além disto, há um grande buraco na entrada deste beco, por onde passa uma tubulação. Esse buraco estava aberto no início de 2010, quando estivemos na ocupação pela primeira vez, e encontrava-se do mesmo jeito quando voltamos lá em agosto de 2011, sendo recorrente a ocorrência de acidentes em função das condições do beco. Os equipamentos públicos como biblioteca, cinema, museu ou teatro são inacessíveis aos

é proporcionar a circulação de informações na comunidade. No que diz respeito à confiança nas Instituições, os entrevistados afirmam confiar no Conselho Tutelar, na Defensoria Pública, Ministério Público, Escola, Movimentos Sociais e na Justiça, enquanto o menor nível de confiança é no empresariado e governo (Gráfico 4). Assim, vale destacar os elogios feitos por Alaíne e Vado sobre a atuação da juíza responsável pelo processo de desapropriação que caminha na justiça: “ela é ótima, ela nos ouve. A maioria dos juízes não faz isso, eles não querem dar atenção ao nosso problema. Ela é diferente, ela quer fazer justiça. Ela mandou o

Gráfico 4 — Confiança nas Instituições

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

responsáveis por domicílios da Saboaria, embora eles os considerem satisfatórios na cidade do Salvador (Gráfico 3). Já a saúde pública e o transporte público, ainda que tenham acesso a estes, se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados. Alan, um dos líderes da ocupação afirma: “o direito à cidade é você ter direito a projetos que ocorrem fora da comunidade e aqui nós não temos direito, por exemplo, a creche, pró-jovem e outras coisas que nós não temos acesso.” Alan criou um jornal chamado Jornal da Gente, cujo objetivo

oficial de justiça conhecer cada família. Ela nos orientou a criar a associação, mandou organizar as ruas, deixar tudo bonitinho, para que, quando a Prefeitura chegasse, não tivesse bagunça. Ela dizia nas audiências para os donos do terreno que ela não daria a ordem de desocupar e deixar as pessoas com uma mão na frente e outra atrás. Aconteceu um boato de que a gente estava vendendo terreno, ela mandou um oficial de justiça seis horas da manhã para ver se era verdade. Ela queria fazer a audiência aqui, na ocupação. Essa juíza observa tudo. Ela mandou o oficial de justiça anotar tudo, saber como a gente vivia. Ela é uma juíza justa. A nossa advogada também é ótima, ela é da Defensoria Pública.”

Ocupações

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Galpões da Leste I e II (Calçada) Fotos: Roseli Afonso

A ocupação situada nos Galpões da Leste I e II localiza-se na Rua Luís Maria na Calçada (Figura 1, 2, 3, 4, 5 e 6). A ocupação teve início em 2003. Hoje, vivem 94 famílias e cerca de 376 pessoas. Na verdade, não existia Leste 1 ou 2, afirma Erisvaldo Cardoso dos Santos (Val). “É uma Leste só, colocaram essa divisão depois. Essa ocupação surgiu quando tivemos que desocupar a antiga Mesbla Veículos. Com a ordem de despejo, tivemos que desocupar o prédio. Eram 360 famílias. Nem todos queriam ir para o Galpão, eles diziam que lá não era lugar de gente sobreviver. Foi muito dificultoso. As pessoas se dividiram, uma parte veio pra aqui e outra foi para a Sampaio.” Em torno de 72,73% dos moradores dos Galpões da Leste I e II, é originária da cidade do Salvador. Dentre esses, 89,09% não concluíram o ensino médio e 7,27% nunca estudaram. Val fala de quando ele chegou à ocupação. “Eu entrei no Movimento não para ser líder, na época foi para ganhar uma casa, e eu já ganhei minha casa, lá em Valéria. Eu era um dos tais que dizia: que ganhar casa o que?! Vocês são bobos, rapazes. Eu morava no fundo da casa de minha sogra. Construí um barraquinho de madeira e fui morar com minha mulher. Ela dizia: nego, vai ter um movimento aí. O povo está dizendo que vai ganhar casa. A gente faz um barraco de lona, de madeira... Eu falava: pára com isso, minha filha... Que ganhar casa que nada! Aí, ela falava: se você não for, eu vou. Eu disse: você vai, mas eu fico. Ela foi para algumas reuniões, e eu ia

Fotos: Roseli Afonso

Figura 1 - Galpão da Leste I

Figura 2 - Galpão da Leste II

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Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2003 Rua Luis Maria, Praça Teive e Argolo, Calçada Galpão 376 94 3,42 20 a 39 anos 64,71% negro 89,09% não têm ensino médio e 7,27% nunca estudaram R$ 304,27 R$ 89,02 Contribui com 15,46% da renda total Serviços domésticos em geral; vendedores; trabalhadores de serviços de manutenção de edificações; serviços de embelezamento e higiene; catadores de material reciclável; ajudantes de obras civis 98,40% dos moradores não possuem carteira assinada Erisvaldo Cardoso dos Santos (Val) e Adriana dos Santos Ribeiro MSTS

acompanhando para ver como era. A gente também não fica à vontade de deixar nossa mulher sozinha neste tipo de coisa. Eu fui para uma das reuniões e foi aí que conheci Jhones Bastos. Fui e fiquei! Ganhei minha casa dois anos depois que eu entrei no Movimento. Nessa época, já tinham sido entregue umas casas em Valéria e tinha umas pessoas que não conseguiram ficar lá, que é muito longe. Essas pessoas já trabalhavam, já tinham uma barraquinha na Pituba e passaram a casa pra mim, para que quando eu ganhasse a minha (o que vai acontecer agora), eu passasse a minha para elas. Assim foi feito.”

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Galpão da Leste I e II – Bairro da Calçada Coordenadas X: 554.493,56 e Y: 8.569.183,30

Figura 3: Foto Aérea — Localização da Ocupação

domésticos em geral, vendedores, trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações, trabalhadores nos serviços de embelezamento e higiene, catadores de material reciclável ou ajudantes de obras civis. “A luta dos Sem Teto é assim, é a luta pela moradia — temos famílias que trabalham, temos família Fotos: Roseli Afonso

Apesar da necessidade e expectativa em relação à casa, morar em Valéria trouxe problemas e dificuldades dentro da própria família de Val. “A minha mulher não quis ir de forma nenhuma. Por causa da distância, da família dela que mora na Ribeira e do trabalho dela que era no Uruguai.” Ele acrescenta: “pergunte ao pessoal que saiu da Barreto de Araújo. Agora eles estão morando em Jardim das Margaridas. Pergunta lá, quem está satisfeito. Eles moravam na Ribeira. Onde eles estão não tem ônibus, a escola das crianças fica longe, para comprar mercadoria é um trabalho, para vim trabalhar tem que pegar duas conduções, fica mais caro.” Adriana dos Santos Ribeiro, coordenadora da Leste II relata como ela veio parar na ocupação: “Quando vim pra aqui, morava de aluguel no Lobato. Aconteceu um acidente com meu marido. Ele vinha de bicicleta, caiu e quebrou a clavícula. Eu estava com quinze dias de parida, de um parto de risco e desempregada. A única maternidade que me aceitou foi a Maria Mãe, no Alto do Cabrito. Quando eu mostrava meus exames as maternidades não aceitavam fazer meu parto. O bebê estava “de pé”. A dona da casa começou a cobrar o aluguel e a gente não tinha como pagar. O primo de meu marido, que já morava aqui, chamou a gente. Eu ainda estava com os pontos do parto, dei mais de dez viagens pra conseguir acertar um lugar pra mim aqui. Eu não tinha um centavo pra fazer o barraco. Foi uma pessoa que me ajudou. Ele catava pedaço de pau, prego velho, que a gente desentortava pra montar o barraco. Eu não sabia nem o que era Sem Teto. Chegou, então, o dia que eu tive que esvaziar a casa de aluguel. Minha mudança veio em um carro de reciclagem. Eu estava em um estado que não consegui nem armar a cama. Minha filha amanheceu, de manhã, dentro d’água.” Assim como Adriana e Val, cerca de 58,19% dos atuais moradores da ocupação residiram em casas alugadas ou de favor, com seus familiares (Gráfico 1). Também, percebe-se uma grande contingente que tinha passado por outras ocupações — cerca de 41,82% vieram da Mesbla e a da Sampaio. Eles usaram, predominantemente, material misto, com 58,18%, e de madeira, com 36,36%, para a construção das suas casas. A média da renda mensal por domicílio dos moradores do Galpão da Leste I e II é de R$ 304,27 e a renda per capita de R$ 89,02. O programa bolsa-auxílio integra contribuindo com 15,46% da renda total. As principais atividades desenvolvidas pelos moradores dos Galpões são como trabalhadores dos serviços

Figura 4 - Galpão da Leste I

Gráfico 1 - Condição de Moradia Antes da Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Fotos: Roseli Afonso

Figura 5 - Galpão da Leste II

Gráfico 2 - Sexo do Responsável pela Família

Foto: Roseli Afonso

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Figura 6 — Ponto d’Água no Galpão da Leste II

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que não têm trabalho fixo, mas recicla, mesmo dia de domingo. Trabalho vendendo cerveja, vendendo salgado — temos uma cooperativa de seis mulheres, afirma Adriana”. O tamanho médio da família na ocupação é de 3,42 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros, em torno de 64,71% e de jovens, com 30,94% na faixa etária de 20 a 39 anos e 19,34% na faixa de 10 a 19 anos. A maioria da população é do sexo masculino — 53,48%, ainda que sejam maioria as mulheres que se declaram responsáveis pela família (Gráfico 2). Os integrantes da ocupação residem em unidades unifamiliares, sendo que 56,36% destas contam com apenas um cômodo e 90,19% têm somente um dormitório. Em torno de 45,45% declararam não ter cozinha, seja coletiva ou individual. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constatase que os moradores utilizam pontos de água existentes na ocupação para a realização dos afazeres domésticos. A situação em termos de sanitários é extremamente precária e em torno de 50,91% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária — 41,82% declararam não ter acesso a nenhum tipo de sanitário. Dentre os que afirmaram não possuir sanitário, 91,30% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios, ou seja, 80% têm pelo menos um ponto de luz no domicílio e 45,45% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas são: a gripe, a diarreia, as verminoses e infecção intestinal. Quando questionado sobre a inserção da mulher no movimento de luta pela moradia, Val afirma: “O movimento não foi feito para nós, homens. Eu sempre fui e sempre soube das reuniões. Mesmo não sendo casada a casa fica sempre com as mulheres, são as mulheres que geralmente ficam com os filhos. Não sei por que, mas minha mulher quis colocar a casa dela em meu nome.” Ele ressalta a necessidade do acesso ao trabalho como uma forma de garantir a própria casa. “O movimento ajuda você a conseguir sua casa, mas não vai dar leite para sua família e nem emprego. As pessoas que aprenderam isto, hoje, estão conseguindo alguma coisa. Com o trabalho elas estão comprando suas coisinhas para quando ganhar sua casa, arrumar a sua casa.” A situação de carência dos moradores da ocupação é muito acentuada. Muitos eram moradores de rua em torno de 64%. “A maioria

Gráfico 3 - Opinião sobre o Movimento de Luta por Moradia

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

comprar, quem tinha que providenciar o dinheiro era eu. Eu já fui ameaçado de morte, por gente dentro da ocupação, porque não aceitava vagabundo. Eu aceitava a mãe, aí vinha o filho, que estava metido em vagabundagem. Procurei me cobrir, conhecer algumas pessoas, falar com policiais para que eles sempre dessem uma passada aqui. Sempre trabalhei como segurança e a maioria dos meus patrões era policial. Sabe o que eles diziam? Abandone isso aí, isto não é lugar para gente viver.” Muitos dos coordenadores que viveram a experiência de fundação do Movimento no início da década passada, relembram com um certo saudosismo desse tempo. “Antigamente eram todos juntos, eu achava uma maravilha, tinham as reuniões deles, depois eles passavam para a gente, eles explicavam tudo direitinho”, afirma Val. “Diziam que a gente nunca ia ficar só, como a gente nunca ficou mesmo. Era tudo organizado. Depois o Movimento se partiu e quem perdeu com isso foi

Foto: Roseli Afonso

daquele pessoal que morava na rua, na calçada, mora, hoje na ocupação. Eles saem à noite, para se alimentar. Na verdade, esse pessoal foi mal acostumado porque se eles não saíssem de noite para ir atrás da sopa, do pão, eles dormiriam de noite e, de dia, iriam procurar o que fazer. Muitos apreenderam a reciclar. Quantos eu ajudei a comprar um carrinho de mão, quantos eu ajudei a comprar um gás. Eu falava: você tem que aprender a trabalhar.” Val considera ser possível resolver os problemas de moradia dos Sem Teto através do programa Minha Casa Minha Vida. “Eu acho que é possível que essa situação se resolva para a maioria. Não acredito que todos consigam resolver este problema. Eu digo o tempo todo: procure um trabalho agora, porque a casa não vai ser de graça, vocês vão ter que pagar um taxa. No meu caso, nós ganhamos a casa e eu pago R$30,00. Eles vão ter que enfrentar uma realidade nua e crua, pagar água e luz. Então, eles têm que colocar o pé no chão. Eles têm que procurar alguma coisa para fazer, se não eles vão perder o empreendimento deles e aí a luta fica em vão. Eles vão para rua e não vão poder se cadastrar de novo, porque o cadastro é único, independe da pessoa estar aqui, em Belo Horizonte ou Rio de Janeiro.” Em torno de 60,09% dos moradores declararam fazer parte do Movimento, seja participando de mutirões, passeatas ou reuniões. A grande maioria busca, essencialmente, como meio para conseguir a moradia, tendo uma boa opinião sobre Movimento de Luta pela Moradia (Gráfico 3). Muitas são as dificuldades da condição de líder de uma ocupação. “Para ser líder de verdade você tem que morar dentro do acampamento. Hoje em dia eu me afastei um pouco. Às vezes, eu me afasto por conta de coisas que aconteceram no movimento, pelas promessas infundadas que às vezes se faz. Hoje em dia, os líderes olham para você, acham você bonitinho e falam: vou te dar esta ocupação para você cuidar, sem o sujeito conhecer o povo, as necessidades do povo, sem saber verdadeiramente o que o povo precisa. Vá morar lá, vá! A mulher que morava comigo na época falava: não aceite, não aceite, sua vida vai virar um inferno! Eu não acreditei nela. Eu não tinha hora para dormir. O povo batia na minha porta das 5 da manhã até as 3 horas da tarde do outro dia. Tinha outras pessoas comigo na coordenação, mas só batiam na minha porta, só corriam para mim. Quando quebrava um fio, um tubo, quando tinha uma lâmpada pra

Figura 7 — Calendário da Limpeza da Leste II

Ocupações

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o próprio Movimento. Eu acho que o racha foi uma perda imensa, eles ganhariam mais estando juntos. Como a gente diz, o Movimento é um só, e não é só para ganhar a casa. Acredito eu, que o racha foi uma questão política e eu, como muitos outros, acho que isto não deveria ter acontecido. Se eles estivessem juntos, teria sido mais proveitoso para ambas as partes.” Em relação ao Movimento de Luta pela Moradia e a condição de líder Adriana afirma: “a luta do Sem Teto é assim, é a luta pela moradia, pela educação, pela saúde e pelo trabalho. Ser líder de uma ocupação é ser líder de verdade, é ter responsabilidade, é trabalhar com amor, porque a gente enfrenta muita crítica. Aqui tem que fechar o portão às 10 horas da noite, tem uma portaria, tem a lista da faxina.“ Adriana destaca a abrangência da luta travada pelos Sem Teto: “dizem que nos acampamentos só tem ladrão, mas nos acampamentos dos Sem Teto têm guerreiros. São aqueles que acreditam na moradia para sua família, são aqueles que vão para rua brigar por seus direitos e que, através dos Sem Teto, ajudam muitas famílias que não são Sem Teto, mas que precisam de escola, lazer e trabalho. No condomínio que a gente vai morar não tem apenas Sem Teto. Então, a gente briga pelos que são do movimento e pelos que não são.” “Eu consegui tirar a violência daqui”, ela afirma. “Um cara aqui foi punido e ele deixou de usar maconha. Quando tinha festa aqui, eu perguntava logo o que aconteceu e falava: não pode usar nada aqui dentro. Eu reunia os maconheiros (só eu de mulher) e falava: não fume aqui! Eu conversava com eles e falava: não pode ter tráfico aqui. Eu sei quem fuma aqui, quem faz o que e, se brigar, eu chamo a polícia, porque eu não quero que invadam aqui. Que batam em mim e em meu marido, que é trabalhador, por causa de vagabundagem. Eu regulo e digo: se continuar eu expulso.”

Figura 8 — Lateral do Galpão da Leste II

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Para Val a participação na vida da cidade, em termos políticos, requer a associação a figuras do mundo político partidário. “Sozinho a gente não vai para lugar nenhum. Hoje em dia político direito é invisível. Às vezes se escolhe certo, mas quando o político chega lá em cima, e você pensa que aquela pessoa vai fazer a coisa certa, acaba indo por água a baixo. Seria bom se juntar com o prefeito para Salvador ficar melhor. Ele já mudou de partido um bocado de vezes. Não acho que ele seja inteligente, o pai dele, governador, foi sim inteligente.” Por outro lado, por conta dos interesses eleitorais os políticos precisam, em certa medida, ir ao encontro das necessidades da maioria da população: “O prefeito está ajudando o programa Minha Casa minha Vida, mas ele faz isto porque a eleição está aí perto. Ele está puxando para ele, as eleições estão chegando e ele chama, puxa, para ele. Hoje, você tem que ter um partido político do povo, para o povo, e como se dizia antigamente, ‘vamos ver o que o povo precisa’.” De modo enfático ele afirma: “Dizem que pedimos demais, que nós fracos pedimos demais, mas a gente só quer o justo: uma casa boa para se morar, que é o que o Movimento está querendo, uma boa escola, um posto médico. Mas nós sabemos que os políticos não querem que pobre, preto, aprenda a ler e escrever, senão eles não têm a quem chicotear. A escravidão acabou há muito tempo, mas a gente sabe que continua escravo desse povo.”

Foto: Roseli Afonso

Galpão da Leste III (Santa Luzia) A Ocupação Galpão da Leste III localiza-se na Rua Nilo Peçanha na Baixa do Fiscal, no bairro Santa Luzia (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início com a tomada do galpão. Hoje, vivem cerca de 72 famílias e 288 moradores. “Nós ocupamos essa área em 06 de setembro de 2004”, afirma Maria Helena de Souza, coordenadora da ocupação. “Esse prédio é da Leste Brasileira, mas na época da ocupação, ele já estava à disposição da Prefeitura — teve aqui um albergue da Prefeitura. A Leste tinha também alugado essa área para outros órgãos como a Odebrecht. Aqui era um ponto de desova, tinha muita criminalidade aqui dentro. Essas paredes não existiam. Quando chegamos aqui, a gente tirou 19 caçambas de lixo. O mato estava crescido, as Figura 1- Galpão da Leste III

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

paredes sujas de sangue. Com a gente já aqui dentro ainda trouxeram gente para estuprar aqui. Nós reagimos e não deixamos. Agora nós estamos aqui dentro e para o que era nós estamos no céu. Estamos cuidando das instalações, que agora voltou para as mãos do governo Federal.” A maior parte dos responsáveis por domicílio Galpão da Leste III é originária da cidade do Salvador, representando 62,79% dos responsáveis pelos domicílios. Cerca de 50% dos atuais moradores da Ocupação Galpão da Leste III residiram em casas de aluguel; 88,64% deles ocupam pela primeira vez, vindo,

Galpão da Leste III – Bairro Santa Luzia Coordenadas X: 555.064,70 e Y: 8.569.522,60

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2004 Rua Nilo Peçanha, Baixa do Fiscal, Santa Luzia Galpão 288 72 4,82 20 a 39 anos 61,32% negro 79,07% não têm ensino médio e 11,63% nunca estudaram R$ 368,55 R$ 76,49 Contribui com 2,69% da renda total Serviços de manutenção de edificações; mecânico; motoristas 88,68% dos moradores não possuem carteira assinada Maria Helena de Souza; Idelson Rocha de Andrade MSTS

originalmente, do Uruguai, Baixa do Fiscal, Paripe, Santa Mônica e São Caetano. Os 11,36% migraram de outras ocupações como o Clube Português a Mesbla e a Toster. Em torno de 79,07% dos responsáveis pelo domicílio, não concluíram o ensino médio e 13,64% sequer estudaram algum dia. As famílias do Galpão da Leste III têm nos homens os principais responsáveis pelos domicílios — o que contrasta com muitas ocupações (Gráfico 1). A ocupação tem um tamanho médio de 4,82 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, em torno de 61,32%, por negros e jovens, na faixa etária de 20

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Foto: Roseli Afonso

Figura 3 - Galpão da Leste III

Gráfico 1 - Responsável pela Família segundo Sexo

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Existência de Sanitário

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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a 39 anos, com 30,77%. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 88,68% deles não possuem carteira assinada — eles são ajudantes de obras, motoristas e mecânicos. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da ocupação é de R$ 368,55 e a renda per capita é de R$ 76,49. O programa bolsa-auxílio contribui com 2,69% da renda total. Os integrantes da Ocupação Galpão da Leste III residem em unidades unifamiliares, sendo que 63,64% destas contam com apenas um cômodo e 93,73% tem apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de tijolo, em 50% dos casos e misto, em 27,27%. Quanto à exposição a situações de risco, 52,72% dos responsáveis pelo domicílio se mostraram intranquilos diante da ocorrência, sobretudo de alagamento. Os moradores se abastecem em um ponto de água coletivo existente na ocupação. Em torno de 50% dos imóveis não dispõem de cozinha e existe um sanitário coletivo na ocupação. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 18,18% dos entrevistados, 16,67% fazem uso do artifício do balão de fezes (Gráfico 2). A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 72,73% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As cinco doenças mais frequentes registradas na do Galpão da Leste III são: gripe, dengue, diarreia, infecção intestinal e as verminoses. Mais da metade dos moradores da ocupação recorrem aos postos de saúde, em torno de 65,96 quando buscam assistência médica; e 34,09% tenham declarado terem deixado de ser atendidos, seja por falta de vagas ou de médico e enfermeiro. Vale registrar que 4,26% declararam não ter a quem recorrer quando têm algum problema de saúde (Gráfico 3). A situação de segurança já foi difícil aqui, afirma Dona Helena: “Dentro da ocupação, nós temos um grupo de segurança. Os moradores dão R$ 20,00 e pagamos a dois policiais, que nos defendem de muitas coisas aqui. Da Cajazeira para cá, nós temos muito respeito. Internamente, é ótimo. Aqui, a lei Maria da Penha é colocada em prática pelas mulheres. Aqui, só levamos para a polícia quando é um caso extremo, se não, resolvemos aqui mesmo. Aqui tem um estatuto, cada galpão tem um estatuto criado pelo movimento, pelo MSTS.” Segundo os entre-

Gráfico 3 - Local que Recorre para Assistência à Saúde

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

vistados, 43,18%, a polícia se faz presente nas proximidades da ocupação quando da realização de ronda (Gráfico 4). “Ser coordenadora é a gente organizar pessoas que têm necessidade de moradia, que tenham disposição para trabalhar, para lutar pela melhoria da sua vida pessoal, para que não fiquem mendigando pão”, afirma Dona Helena. “Eu peço a Deus é que não me leve antes de eu ver meu povo dentro das suas casas. Eles são meus filhos, não quero que nada toque neles. Eles me respeitam e eu respeito eles. Somos uma grande família. Esta madeira que está aí na frente é de desmanche de trilhos das firmas que desmontam e mandam para mim. Eu vendo, para quando alguém estiver doente, eu comprar um remédio, um gás. Essa era a única doação que eu recebo aqui. Agora, estamos recebendo também uma doação da Mesa Brasil, que está nos ajudando.”

Gráfico 4 - Percepção da Presença Policial segundo Moradores

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Alfred (Mares) Foto: Iraildes Santana

A Ocupação Alfred localiza-se na Rua Agrário de Menezes, perpendicular à Avenida Fernandes da Cunha e à Rua Barão de Cotegipe, no Bairro dos Mares (Figuras 1 e 2). Originalmente neste prédio funcionava uma fábrica de confecções, cuja posse é disputada na justiça, envolvendo, inclusive, dívida trabalhista. O prédio possui uma área construída de 12.500m2, configurando dois blocos, o primeiro, de quatro andares, voltado para a Avenida Fernandes da Cunha, e o segundo, com sete andares, voltado para a Rua Barão de Cotegipe. As condições físicas do prédio são extremamente precárias, e pioram em época de chuva, chegando mesmo a entrar em situação de risco — as lajes do quinto andar e do térreo estão flectidas, com ameaça de desabamento. Segundo Iraildes Santos de Santana, a ocupação teve início em 21 de abril de 2004, com 300 famílias. Atualmente, vivem 150 famílias e cerca de 600 pessoas. Figura 1: Fachada do Prédio da Ocupação A Ocupação Alfred ocorreu em um momento de acirramento do conflito e de grande efervescência na luta pela moradia em Salvador e em várias capitais brasileiras. De acordo com Iraildes, essa ocupação resultou da estratégia do Movimento em ocupar áreas ociosas, sem fins sociais. Ela se insere

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Alfred – Bairro Mares Coordenadas X: 553.969,50 e Y: 8.569.408,58

Início da ocupação Localização

Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família

Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

126 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2004 Rua Agrário de Menezes, perpendicular à Avenida Fernandes da Cunha e à Rua Barão de Cotegipe, Mares Prédio 600 150 2,78 10 a 39 anos 63% negros 17,81% estudaram até a quinta série do ensino fundamental, 15,07% até a terceira série do ensino médio e 4,11% nunca estudaram. R$ 327,45 R$ 117,75 Contribui com 14,12% da renda total Catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos e biscateiros 97,04% dos moradores não possuem carteira assinada Iraildes Santos de Santana e Aidinalva Barbosa de Souza MSTS

nessa luta como moradora e militante desde 2004, após participação em congresso do Movimento em janeiro de 2005, quando foram instituídas coordenações locais, municipais e estaduais do Movimento. Iraildes Santana passa, então, a fazer parte da coordenação da ocupação, sendo indicada, por eleição, para integrar a coordenação municipal e, em decorrência disso, passa ainda a integrar a Central de Movimento Popular por Moradia — CMP e a fazer parte do Conselho das Cidades (ConCidades). Em torno de 75,34% dos moradores da Alfred são originários da cidade do Salvador, vindos do Uruguai, Itinga, Jardim Cruzeiro, Massa-

Gráfico 1 - Material de Construção da Unidade Domiciliar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

veiro ou vaso sanitário, 64,38% dos entrevistados compartilham com mais de um morador a mesma unidade sanitária. Segundo Iraildes, existem na ocupação oito sanitários químicos e um banheiro, localizado no térreo, de fato funcionando — a tubulação dos andares está danificada e, apesar da coordenação solicitar o conserto das instalações, os agentes dos poderes públicos acionados nada fazem em relação a essa situação de precariedade com receio, inclusive, de legitimar a ocupação. Dentre os que declararam não ter acesso a sanitário, 72,22% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e têm acesso ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na Alfred são: gripe, febre, diarreia, verminoses e infecções nos olhos. Segundo Iraildes Santana, têm-se re-

Foto: Iraildes Santana

randuba, Estrada Velha do Aeroporto, Plataforma, Paripe e Centro Histórico. Cerca de 45,21% dos atuais moradores da Alfred residiam em imóveis alugados; 19,18% residiam com a própria família e 17,81% “de favor” em casas de terceiros. A ocupação abriga ainda, ex-moradores de outras ocupações, a exemplo do Clube Português, Mesbla e Irte. A análise do perfil dos moradores revela que 17,81% deles estudaram até a quinta série do ensino fundamental. Apenas 15,07% chegaram à terceira série do ensino médio e 4,11% nunca estudaram. A população economicamente ativa desenvolve atividades de catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos e biscateiros. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal — 97,04% deles não possuem carteira assinada. Existe no térreo do prédio uma área destinada a depósito de material reciclável recolhido durante a semana pelos moradores. Apesar de facilitar a vida dos catadores de papelão e plástico, esse depósito aumenta o risco de proliferação de doenças entre os moradores. “Esse é um trabalho duro”, afirma uma moradora: “você pode conseguir R$200,00 a R$300,00 reais por semana, mas está sujeita a contrair doença e a todo tipo de risco trabalhando na rua.” A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Alfred é de R$ 327,45 com uma renda per capita de R$ 117,75. O programa bolsa-auxílio contribui com 14,12% da renda total. O tamanho médio da família na ocupação é de 2,78 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26) e o núcleo familiar é composto, em 63,00% pela população negra, particularmente por jovens negros, na faixa etária de 10 a 39 anos. Os integrantes da ocupação Alfred residem em unidades unifamiliares, sendo que 61,64% destas contam com apenas um cômodo, predominantemente de material misto, com 57,53%; e de madeira, com 31,51%. (Gráfico 1). Em relação à forma de abastecimento de água constata-se a existência de um ponto de água, no térreo da ocupação, considerado como principal e no qual o conjunto dos moradores se abastece, além de mais três pontos no bloco de sete andares (nos primeiro, terceiro e quarto andares). A água é armazenada no interior dos domicílios em utensílios como baldes, galões, garrafas pet e tonéis plásticos. Quanto ao acesso a sanitário, pia, chu-

Figura 3: Domicílio no Interior do Prédio

Ocupações

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Foto: Iraildes Santana

Figura 4: Pia no Interior do Prédio

Foto: Iraildes Santana

gistro de leptospirose, dengue e meningite e a incidência de doenças está relacionada às condições sanitárias extremamente precárias do prédio e às dificuldades financeiras dos moradores. Nessas condições sanitárias e ambientais, a falta de cooperação entre os moradores, difícil de construir em condições tão adversas, têm gravidade e significado maior. Aidinalva Souza, moradora da Alfred desde 21 de abril de 2004,

Figura 5: Banheiro no Interior do Prédio

128 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

coordenadora local e eleita coordenadora estadual após o congresso do MSTS em janeiro de 2005, com atuação na ocupação, em reuniões internas e externas de discussões e mobilização dos integrantes do MSTS afirma: “é grande a dificuldade de manter as condições de higiene na ocupação: as pessoas usam, por exemplo, o banheiro, e não se dão ao trabalho de limpar — o coordenador acaba tendo também a função de, além de garantir a ordem, manter a limpeza da ocupação, e isso é particularmente sério quando se trata de uma ocupação em um prédio, que envolve o uso comum de espaços e equipamentos. Na verdade manter o espaço da ocupação como um lugar limpo e seguro é uma obrigação de todos, mas nem sempre é assim que acontece.” Adicionalmente Aidinalva afirma: “essa situação de carência me deixa triste. Hoje o movimento social tem uma maior atuação em função de estarmos em uma democracia — se pode usar de maior liberdade nas discussões das ações populares, os entes federados passam a ouvir e fazer acordos e dar mais oportunidades as lideranças que são interlocutoras de problemas que se agravam e ferem os direitos estabelecidos no Art. 5º da Constituição de 1988. Sentimos a necessidade de fazer cumprir os direitos universais onde ainda não foi concretizado de fato, pois, ainda existem pessoas sofrendo, carentes de tudo, em extrema pobreza e sem conhecimento dos seus direitos.” Dona Bárbara, moradora há cinco anos da Alfred, afirma: “a vida aqui é muito difícil, principalmente quando a coordenação não está presente, existe a falta de respeito com o vizinho, a falta de privacidade, o direito ao sono — acordei, hoje, uma hora da manhã com uma filha de um ano e não consegui dormir durante toda a noite por conta de um som alto”. Quando questionados sobre as vantagens e desvantagens de morar em uma ocupação os moradores da Alfred declaram que a principal vantagem é não pagar aluguel, água e luz (Gráfico 2) e dentre as desvantagens relacionadas a principal foi a existência de conflitos entre os moradores. Em relação ao nível de satisfação e acesso ao que Salvador oferece ao seu cidadão, os moradores da Alfred destacam as praias e praças (que às vezes se constituem em espaço de lazer e de possibilidade de trabalho), além dos serviços de educação e transporte público. Entretanto, falta emprego e saneamento básico. Os moradores da Alfred consideram que morar no bairro dos Mares tem um significado especial pois permite o aces-

Gráfico 2- Vantagem de Morar em Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

ção a maioria declarou não ter preferência (o que importa é o acesso à moradia), mas muitos declararam preferir residir nos bairros e localidades do entorno da Cidade Baixa como Calçada, Ribeira, Uruguai, Boa Viagem, Centro, Mares. Afinal, a escolha de onde morar é, também, um direito do cidadão de qualquer cidade. Para a grande maioria dos moradores da Alfred, participar do movimento de Luta pela Moradia tem um sentido muito claro: é a forma, ao alcance deles, de ter acesso à moradia.

Foto: Iraildes Santana

so aos serviços urbanos e sobretudo ao pão de cada dia — é no comércio e suas redondezas que eles trabalham. Morar em outro lugar, como Cajazeiras, Boca da Mata, Mata Escura ou Tubarão, por exemplo, pode trazer dificuldades na luta cotidiana pela sobrevivência e tornar a vida mais difícil. Quando questionados sobre qual bairro gostariam de morar em caso de remanejamento da ocupa-

Figura 6: Interior do Prédio

Ocupações

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Foto: Cézar Miranda

Toster/Ribeira (Bonfim) A Ocupação Toster/Ribeira localiza-se em um prédio que antes era ocupado pela Fábrica da Toster, situada na Rua Visconde de Cabo Frio, Baixa do Bonfim (Figuras 1 e 2). A ocupação aconteceu em 19 de dezembro de 2003, organizada pelo MSTS. Vivem nesta ocupação cerca de 150 famílias e 600 pessoas. A ocupação do prédio da Toster resultou de levantamento feito pelo Movimento com o objetivo de identificar os prédios abandonados na cidade baixa. Segundo Jhones Bastos, “o prédio estava abandonado há quinze anos quando nós decidimos ocupá-lo. Tiramos muitas caçambas de entulho e tinham muitas ossadas também, pois aqui era um lugar de encontro de marginais. Quando ocupamos, a vizinhança veio nos agradecer por que éramos famílias e eles começaram a nos ajudar, fornecendo, inicialmente, água e depois alimentos. Só para vocês terem uma ideia, eles arrecadaram tantos alimentos na área, que nós ficamos

Figura 1: Fachada da Ocupação

quase seis meses nos alimentando destas doações.” A maior parte dos responsáveis pelos domicílios da Ocupação Toster/Ribeira, é originária da cidade do Salvador, representando 66,67% dos entrevistados (Gráfico 1). Segundo, Jhones Bastos, são os moradores “que haviam se cadastrado lá na Estrada Velha do Aeroporto quando começamos o movimento de luta por moradia. As pessoas que eram despejadas, que não conseguiam mais pagar aluguel, iam nos procurando e assim formaram os diferentes grupos que ocuparam áreas distintas da cidade. Com o tempo vieram pessoas de outras ocupações que haviam sofrido reintegração de posse”.

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Toster/Ribeira – Bairro Bonfim Coordenadas X: 553.502,01 e Y: 8.571.024,3

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

130 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Vínculo com o Movimento Social

2003 Rua Visconde de Cabo Frio, Bonfim Prédio 600 150 5,57 20 a 39 anos 49,22% negro 86,42% não têm ensino médio e 1,23% nunca estudaram R$ 861,98 R$ 154,81 Contribui com 14,64% da renda total Ajudantes de Obras Civis, Porteiros, Mecânico e Garçom e Barmen 91,35% dos moradores não possuem carteira assinada Jhones Bastos e Maria da Conceição Santos MSTS

Dentre os moradores 86,42% não concluíram o ensino médio e 1,23% nunca estudaram. Eles desenvolvem atividades de catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos ou biscateiros. O tamanho médio da família na Ocupação da Toster/Ribeira é de 5,57 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 91,35% deles não possuem carteira assinada. Cerca de 45,68% dos atuais moradores da ocupação residiram em casas alugadas e 7,41% deles são provenientes de outras ocupações, a exemplo da Mesbla e da Sampaio. Para Jhones, “o objetivo deles é permanecer neste lugar”. Segundo ele,

Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

“hoje nós ocupamos para transformar este lugar em moradia, não apenas para chamar a atenção do Estado para a necessidade de moradia. Por isso, nós queremos entrar com pedido de usucapião coletivo na Justiça”. A média da renda mensal por domicílio dos moradores é de R$ 861,98 e a renda per capita é de R$ 154,81, uma das maiores dentre as ocupações. O programa bolsa-auxílio contribui com 14,64% da renda total dos moradores. É interessante destacar o que afirma

Jhones quanto à possibilidade de acesso a bens de consumo dos moradores das ocupações que, segundo ele, “puderam comprar seus pertences, seus eletrodomésticos, eletroeletrônicos, seus móveis, pois não precisam pagar aluguel.” Os moradores da Toster/Ribeira residem em unidades unifamiliares, sendo que 48% destas contam com apenas um cômodo e 93% tem apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, em 48% dos casos e de madeira, em 30% (Gráfico 2). Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 70,37% não têm um ponto de água

Gráfico 2 - Material de Construção da Unidade Domiciliar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Foto: Cézar Miranda

canalizada no domicílio e em torno de 67,90% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária, estando os mesmos conectados à rede de esgoto de forma precária, a partir da canalização do prédio. Dentre os que declararam não possuir sanitário, 44,44% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 77,78% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na ocupação são a gripe, a febre, a diarreia, as verminoses e as infecções nos olhos e couro cabeludo. Na ocupação existem regras claras de convivência. Maria Conceição Santos, liderança local, afirma: “ser liderança cansa muito, sempre a noite tem briga de marido e mulher, às vezes tem faca, às vezes tem polícia e eu tenho que receber a polícia e resolver os problemas. Eu sou chamada o tempo inteiro, mas tem regimento interno. Eu comecei tirando as bebidas dos corredores, até mesmo de dentro dos barracos, por que mesmo quando eles bebem em seus barracos eles saem para brigar. Eu tirei homem sem camisa nos andares. A questão da limpeza no dia a dia, eu coloco no mural de cada andar qual a família que é responsável pela limpeza do andar naquele dia. A limpeza tem que ser feita até as 10 horas da manhã. De quinze em quinze dias eu faço assembleia geral aqui e quando precisa eu convoco Jhones e ele vem sempre que eu chamo.”

Foto: Cezar Miranda

Figura 3: Lateral da Ocupação

Figura 4: Entrada da Ocupação

132 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Foto: Itaildes Santana

Barreto de Araújo (Bonfim)

Figura 1: Fachada da Ocupação

A Ocupação Barreto de Araújo localiza-se no Prédio / Terreno da antiga fábrica de chocolate, com área total de 6000 m2, localizada na Avenida Beira Mar, no bairro do Bonfim (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início em 2003, segundo Nelson Sosnierz, líder da ocupação. Estima-se que vivem 120 famílias e 480 pessoas. “Antes essa área era um lugar de onde as dragas tiravam areia pra construir as casas nos Alagados pela CONDER. O prédio era uma antiga fábrica de chocolate que estava abandonado, em condições muito ruins e o dono com dívida com o Estado, com a Prefeitura, com Ministério do Trabalho. Passando por lá, passando por cá, vimos que a área estava desocupada. Como tínhamos famílias precisando de um lugar pra morar, ocupamos. Começou com 60 famílias e chegamos a ter 220. Fizemos reunião com nossos líderes e resolvemos ocupar. A gente não invade, a gente ocupa.” A maior parte dos responsáveis por domicílio da Ocupação Barreto de Araújo, 74,55%, é originária da cidade do Salvador (Gráfico 1). Nelson veio da ocupação da Toster / Ribeira para a Barreto de Araujo. “Eu estava desempregado e morava com meus pais. Eram cinco famílias morando junto. Depois, quando paga aluguel falta para outras coisas mais. Juntamos um grupo e ocupamos a Toster e depois vim para a Barreto de Araujo. São anos na lama, os muros desabando, a gente escorava, mas quando chega a chuva é um desespero! Uma vez caiu uma viga em cima de um barraco. Felizmente não tinha ninguém dentro.” Em relação à reintegração de posse, Nelson afirma: “Eles foram muito bons com a gente. Eles viram que éramos necessitados e fomos negociando, negociando. São pessoas muito conscientes e eles viram que a gente estava necessitada mesmo, eles ajudaram. Até que chegou o dia de a gente entregar a área ocupada.” Dentre os moradores, 84,75% não conInício da ocupação 2003 cluíram o ensino médio e 3,39% nunca

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Barreto de Araújo – Bairro Bonfim Coordenadas X: 553.630,46 e Y: 8.571.497,78

Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias

Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

Vínculo com o Movimento Social

Avenida Beira Mar, Bonfim Prédio / Terreno 480 120 3,59 20 a 39 anos 48,26% negro 84,75% não têm ensino médio e 3,39% nunca estudaram R$ 287,07 R$ 79,98 Contribui com 8,10% da renda total Trabalhadores dos serviços domésticos em geral; Porteiros; Vigias; Serviços de manutenção de edificações; Biscateiros; Pescadores 93,53% dos moradores não possuem carteira assinada Nelson Sosnierz, José da Conceição, Walney (Mãozinha) (in memoriam) MSTS

Ocupações

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Gráfico 1 - Origem dos Responsáveis por Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Motivos pelo quais Deixaram de Estudar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 3 - Distribuição da População por Raça/Etnia

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

134 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

estudaram, sendo que a grande maioria dos responsáveis pelos domicílios afirma ter deixado de estudar principalmente por conta da necessidade de trabalhar, questões de natureza pessoal ou familiar e por “falta de oportunidade” (Gráfico 2). O tamanho médio da família na ocupação é de 3,59 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráficos 3). Os moradores desenvolvem atividades relacionadas com serviços domésticos, porteiros e vigias, trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações e biscate. Segundo Nelson, “vivemos de reciclagem, da pesca, do biscate, sendo a maior parte dos moradores desempregado. É gente de bem, que tem seu trabalho, mas que o dinheiro não dava pra pagar o aluguel.” O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 93,53% deles não possuem carteira assinada. Cerca de 35,71% dos atuais moradores da Ocupação Barreto de Araújo residiram anteriormente em casas de parentes, e 16,07% deles são provenientes de outras ocupações. “As pessoas da Barreto de Araújo vieram da Suburbana, Calçada, Ribeira, Mangueira, Lasca, Ribeira, Brotas, de vários bairros da cidade”, afirma Nelson. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Barreto de Araújo é de R$ 287,07 e a renda per capita é de R$ 79,98. O programa bolsa-auxílio integra 8,10% do rendimento das famílias. Os integrantes da ocupação residem em unidades unifamiliares; em torno de 64,29%, moram em unidades com apenas um cômodo, contam com um cômodo como dormitório, em torno de 96,43% dos casos. O material utilizado na delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente misto, com 48,21%; seguido de madeira com 32,13% e bloco com 19,64%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, existem dois pontos de água no qual as pessoas se abastecem. “Cavamos a rua e puxamos a água. Temos uma área pra tomar banho e para lavar a roupa e as pessoas se abastecem com baldes. Cada casa tem sua cozinha. Quando chove acaba tudo, pois alaga. Todo mundo tem um ponto de luz”, afirma Nelson. Em torno de 64,29% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na ocupação Barreto de Araújo são a gripe, diarreia, verminose e dengue.

Gráfico 4 - Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Salvador é um lugar bom pra se morar, afirma Nelson. “É preciso cada um fazer a sua parte e cobrar das autoridades. Mas valeu a pena esperar pelas nossas casas. É o que eu digo para os meus vizinhos: abrace o Movimento porque não é sempre que a gente recebe um brinde desse. É obrigação do governo mas esse aqui foi dado por Deus mesmo. Ele vale mais do que qualquer coisa. A prioridade agora é garantir que as pessoas paguem o condomínio. O movimento precisa se organizar mais pra levar moradia pra os que não tem. O governo está tendo uma parceria com o movimento, os dois estão se encaixando. Cada um procura o outro. Que o governo continue como está, nos apoiando em tudo. Que o movimento faça a coisa séria e digna. Nós temos confiança nos órgãos competentes.”

Foto: Itaildes Santana

Os equipamentos públicos como saneamento básico, cinema ou teatro são de difícil acesso aos responsáveis por domicílios na ocupação Barreto de Araújo, embora eles os considerem satisfatórios na cidade do Salvador. Já a saúde pública e o transporte público, ainda que tenham acesso, eles se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados (Gráfico 4). Para Nelson, a relação entre o Movimento de Luta pela Moradia e o Governo é muito boa. “No começo nos fazíamos passeatas, manifestações. O governo começou a se sensibilizar e vamos para um apartamento com área de lazer — é praticamente um condomínio fechado. Com quiosque, eu não tenho do que me queixar. Em cada apartamento moram de três ou quatro pessoas. Vão pra lá moradores da Toster/Ribeira, a Barreto de Araújo, Alfred, Leste, Nossa Senhora da Penha e outras. Como eu estou nas negociações eu não posso falar mal do governo. Eles nos atenderam amigavelmente, com todo o carinho. Vem nos procurando pra negociar. Procuram ver o que necessitamos, o que precisamos. O Jardim das Margaridas foi um dos primeiros a ser entregue. A Caixa Econômica Federal está dando curso de graça. Eles vem fazendo vários cursos para os moradores. Tudo pra gente demora mais um pouquinho mas eles tem dado tudo que a gente precisa.” José da Conceição, morador da ocupação e que atualmente reside no Jardim das Margaridas afirma: “Morar na ocupação durante todo esse tempo foi uma luta. Tínhamos momentos de alegria, claro, mas também de muita tristeza. Agora, quando a gente vê o resultado, vê que valeu a pena. Por que o resultado da luta foi muito bom. No Condomínio Jardim das Margaridas, graças a Deus, é uma coisa totalmente diferente do que a gente vivia na ocupação. Antes, quando fechava o tempo para chover a gente começava a pedir misericórdia a Deus! Era tudo muito difícil, sem condições. Quando chovia era insuportável. A água invadia tudo, ela entrava por um lado e saía por outro. Tinha que colocar panelas em todos os lugares. Hoje, aqui, é totalmente diferente.” Quando questionado sobre o acesso ao transporte, escola e aos serviços de saúde ele afirma: “Tem tudo lá, mas as coisas são difíceis também. É o maior sacrifício. O transporte, por exemplo, tem dia que vai até lá, tem dia que não vai. Aí a gente tem que andar muito. Tem dia que tem horário certo, tem dia que não tem. Tem escola lá, mas é longe. Para algumas escolas precisa tomar ônibus, para outras não. É tudo muito longe. Mas a morada lá é boa e eu acho que tende a melhorar.”

Figura 3: Lateral da Ocupação

Ocupações

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A Ocupação Escola Nossa Senhora da Penha localiza-se no Largo da Ribeira, na Ribeira (Figuras 1 e 2). Essa ocupação surgiu após uma ocupação frustrada do prédio Amado Bahia, na Ribeira, próximo ao Iate Clube Itapagipe. “Originalmente nesse imóvel funcionava uma escola estadual e em 2005 encontrava-se sem função social, tendo sido ocupado pelo MSTS”, afirmam lideranças da ocupação. Foram, então, alojadas famílias da Fábrica de Gelo Pioneiro e da antiga Mesbla, que tinha como coordenadora Maria Clara (Ninha). O pouco espaço existen-

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

2005 Largo da Ribeira, nº109 - Ribeira Prédio 91 31 5,11 20 a 39 anos 56,52% negro 77,78% não têm ensino médio R$ 470,56 R$ 92,07 Contribui com 15,87% da renda total Ajudantes de Obras Civis, Porteiros, empregada doméstica 95,65% dos moradores não possuem carteira assinada Carlos Moura MSTS

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Escola Nossa Senhora da Penha – Bairro Ribeira Coordenadas X: 554.935,24 e Y: 8.572.488,63

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

136 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Foto: Cezar Miranda

Escola Nossa Senhora da Penha (Ribeira)

Figura 1: Fachada da Ocupação

te no prédio e as distintas trajetórias geraram situações de conflito entre os moradores — muitos foram os coordenadores que tentaram administrar as situações de conflito na Escola Nossa Senhora da Penha, como José Maria, Regina Souza e Jupiracy Borges. As famílias do Gelo Pioneiro já vinham da Ocupação Shopping da Boa Viagem, na Rua Imperatriz, e as famílias da Mesbla da ocupação frustrada da escola Nossa Senhora de Fátima, na Avenida Tiradentes nos Dendezeiros. A desocupação desses lugares foi feita através de negociação entre a coordenação do MSTS e a Polícia Militar do 17º Batalhão dos Dendezeiros. O prédio da Escola Nossa Senhora da Penha possui dois pavimentos, totalizando 380m2 de área construída. Até 2011 viviam 31 famílias e cerca de 91 pessoas. Hoje, vivem apenas 6 famílias nesta ocupação. A maior parte dos responsáveis pelo domicílio na ocupação da Escola Nossa Senhora da Penha, 66,67%, é originária da cidade do Salvador (Gráfico 1). O tamanho médio da família na ocupação é de 5,11 pessoas por domicílio (ela supera e está entre uma das maiores médias das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por evangélicos, negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráficos 2). Dentre esses moradores 77,78% não concluíram o ensino médio. Desenvolvem atividades como a de empregada doméstica, trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações ou ajudantes de obras civis. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 95,65% deles não possuem carteira assinada. Cerca de 44,44% dos moradores da Ocupação Escola Nossa Senhora da Penha residiram anteriormente na casa dos familiares, enquanto 22,22% moravam de aluguel, e 66,67% deles são provenientes de outras ocupações. Segundo Carlos Moura, líder da ocupação, “a maior parte das famílias daqui veio da ocupação do Gelo Pioneiro. Nós passamos muito tempo lutando pela moradia, foram várias inscrições, mas ninguém conseguia nada. (...) Somente agora começamos a receber as casas, mas essa política do governo tem muitos defeitos, embora seja um projeto bom, não teve a infraestrutura que a gente esperava, pois falta tudo no conjunto. Andamos quase um quilômetro para chegar ao condomínio, e não tem serviço de saúde, não tem escola.” As doenças mais frequentes registradas na ocupação da Escola Nossa Senhora

da Penha são a gripe e a diarreia. No caso dos moradores que já tiveram acesso às suas casas no Condomínio Jardim das Margaridas, a questão do acesso à saúde parece ter piorado ainda mais, pois como afirma o líder Carlos Moura, “o posto de saúde de Itinga não quer atender a gente, eles dizem que lá é Lauro de Freitas e nós somos de Salvador.” A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Escola Nossa Senhora da Penha é de R$ 470,56 e a renda per capita é de R$ 92,07. O programa bolsa-auxílio integra 15,87% do rendimento das famílias. Segundo Carlos Moura, “o direito à moradia é muito mais que ter acesso a uma casa, tem que ter renda e emprego, o povo precisa de emprego para pagar as suas contas e não adianta ficar pensando a longo prazo, o povo precisa de emprego e renda agora. O programa Minha Casa, Minha vida, esqueceu do povo, não prepara o povo para morar num condomínio desses, as pessoas estão entregue às baratas.” No tocante às condições de habitabilidade dos integrantes da ocupação, eles residem em unidades unifamiliares, sendo que 33,33% destas, contam com apenas um cômodo e todos têm apenas um cômodo como dormitório. O material utilizado na delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente o bloco, com 88,89% e mista, em 11,11%. Os moradores se abastecem em dois pontos de água existentes na ocupação. Quanto à existência de sanitário, todos os entrevistados declararam ter sanitário, mas apenas 33,33% dispõem de pia; 55,56% têm chuveiro; e 55,56% têm vaso sanitário — sendo que 33,33% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária e 77,78% estão conectados à rede canalizada de esgoto. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 66,67% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. Dentre as atividades de lazer desenvolvidas pelos moradores da Escola Nossa Senhora da Penha destacam-se a praia, o dominó e visita a parentes (Gráfico 3). O preconceito enfrentado pelos Sem Teto na nova condição de morador do Condomínio Jardim das Margaridas é muito forte, segundo Carlos Moura, “tem uma obra aqui de junto mas eles não querem colocar o nosso povo lá — mesmo aqueles que têm experiência na carteira. Eles não aceitam Sem Teto e ninguém faz nada contra isso. O povo tá precisando de trabalho e o governo precisa buscar emprego pra gente. O governo poderia abrir uma usina de reciclagem aqui, mas isso é para já, não podemos ficar esperando mais. (...) O que nós

Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 — Distribuição da População por Raça/Etnia

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 3 — Forma de Lazer

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

estamos pedindo é trabalho e renda, educação e saúde e isso é possível, mas é preciso vontade política. Quando o benefício é para os grandes é rápido, veja o salário dos deputados e senadores, é um desrespeito com a gente que é pobre.”

Ocupações

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Foto: Cezar Miranda

Toster / Lobato (São João do Cabrito) A Ocupação Toster/Lobato localiza-se no Bairro de São João do Cabrito, na antiga fábrica de confecções da Toster, desativada (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início em junho de 2006. Sua história não se diferencia muito da história de outras ocupações mais recentes, ou seja, a ocupação da Toster/Lobato é fruto da impossibilidade dos seus moradores em arcar com o ônus da moradia. Para Valter Almeida de Jesus Filho (Malhado), líder da ocupação, a inserção na ocupação se deu em função da falta de moradia: “eu morava na casa da minha cunhada, não tinha onde morar e como o governo diz que aqui é terra de todos nós e nós não temos onde morar, eu ocupei. Mas eu ocupo desde meus 17 anos de idade. Eu ocupei toda essa cabeceira (antigo Alagados). Depois fui para o interior tentar a vida, mas como não deu certo, eu voltei.” Hoje, Figura 1: Fachada da Ocupação aqui vivem 100 famílias e cerca de 400 pessoas. A maior parte dos responsáveis por domicílio da ocupação Toster/Lobato, em torno de 71,43%, é originária da cidade do Salvador (Gráfico 1). Em torno de 75,36% dos responsáveis pela família não concluíram o ensino médio e 5,80% nunca estudaram e trabalham com serviços domésticos, ajudantes de obras civis, trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações ou catadores de material reciclável. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 93,94% deles não possuem carteira assinada. O tamanho médio da família

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Toster – Bairro São João do Cabrito Coordenadas X: 556.544,88 e Y: 8.573.088,22

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

138 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2006 Localização: Av. Afrânio Peixoto - São João do Cabrito Prédio/Terreno 400 100 2,83 20 a 39 anos 45,96% negro 75,36% não têm ensino médio e 5,80% nunca estudaram R$ 306,86 R$ 108,48 Contribui com 14,58% da renda total Trabalhadores dos serviços domésticos em geral; Ajudantes de obras civis; Trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações; Catadores de material reciclável 93,94% dos moradores não possuem carteira assinada Valter Almeida de J. Filho (Malhado) e Josete Barbosa Texeira MSTB

na Ocupação da Toster/Lobato é de 2,83 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros, mulheres e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. Cerca de 38,57% dos atuais moradores da Ocupação Toster/ Lobato residiram em casas alugadas; 37,14% moravam com familiares (Gráfico 2); e pelo menos 95,71% tem na Toster sua primeira ocupação. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Toster/ Lobato é de R$ 306,86 e a renda per capita é de R$ 108,48. O programa bolsa-auxílio contribuiu com 14,58% da renda total.

Gráfico 1 — Origem dos Responsáveis por Família

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Condição de Moradia Antes da Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Foto: Cezar Miranda

Os integrantes da Ocupação Toster/Lobato residem em unidades unifamiliares, sendo que 61,43% destas contam com apenas um cômodo e 95,71% têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, em 67,14% dos casos e madeira, em 18,57%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 78,57% não têm um ponto de água canalizada no domicílio. Quanto à existência de sanitário, 35,71% dos entrevistados declararam ter sanitário; sendo que 12% não dispõem de pia, chuveiro, vaso sanitário ou rede de esgoto canalizada e desses, 8,57% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 64,29% dos entrevistados, todos fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 31,43% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As cinco doenças mais frequentes registradas na ocupação Toster/Lobato são: a gripe, a diarreia, as verminoses, a dengue e as infecções nos olhos e couro cabeludo. Apesar dessa precariedade, 75,71 % dos responsáveis por domicílios entrevistados, afirmaram ser vantajoso morar em ocupação principalmente por não pagar aluguel, água e luz. Segundo Josete, viver na ocupação e ser liderança não é nada fácil, pois “é como viver num campo minado, a qualquer hora uma bomba pode estourar. É uma briga constante, uma luta por espaço, é bandido contra bandido, e a gente, que não tem nada a ver com isso,

Figura 3: Movimento de Luta pela Moradia

Ocupações

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Gráfico 3 - Vantagens de se Morar na Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

fica no meio. É muito difícil, muito difícil, viver aqui. Algumas situações nós vemos e temos que engolir. A gente sofre ameaça o tempo inteiro”. Essa situação de violência constante no cotidiano dessas famílias se dá em função da presença dos traficantes nas imediações e até mesmo dentro da ocupação. Coisa muito comum, principalmente nas ocupações em terreno, onde o controle de entrada e saída de pessoas é quase impossível, segundo moradores. Para Malhado, liderança da ocupação, viver na ocupação “é ser discriminado pelo Estado. Quando a polícia chega, ela não te respeita, ela não respeita sua família. Oprime as mulheres, passa a mão. Já vi caso do cara mandar a mulher fazer boquete, já vi dando tapas na bunda. Não há nenhum respeito. Aqui na ocupação é o contrário, as pessoas te respeitam, te consideram. Mas é difícil também, por que eles cobram muito, qualquer coisa eles te crucificam logo”. Ao falar do direito à cidade e o que ela oferece em termos de equipamen-

140 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

tos públicos os moradores, no geral, mostram insatisfação quanto ao acesso a esses equipamentos. Em torno de 75,71% nunca foram ao teatro e 42,86 % nunca foram ao cinema. Na ocupação também não há espaço de lazer — 89,55% dos responsáveis pelos domicílios afirmaram não haver nenhuma área de lazer na ocupação. Neste contexto mais amplo, a moradia se torna um sonho. Malhado afirma que o “direito à moradia é você ter direito ao seu sonho. Ter um lugar para a sua família. É ter direito também à escola.” Embora o mesmo considere que “só quem tem direito à cidade é quem tem laços com o Estado. Quem não tem laços com o Estado só tem direito a favela e a periferia. Salvador não é igual para todos.”

Vila Mar (São João do Cabrito) Foto: Jacob Bittencourt

A Ocupação Vila Mar teve inicio em um terreno no bairro de São João do Cabrito (Figuras 1 e 2). Segundo Nilton Renato de Araújo, coordenador de Vila Mar e sem vinculação com grupos políticos, “a ocupação ocorreu em 16 de março de 2007, com 286 famílias. O terreno pertencia a uma empresa particular, de um cidadão que faleceu. Ele devia impostos e agora o terreno pertence à Prefeitura. A parte lá de cima do terreno era da Coelba, que repassou para a CONDER.” A maior parte dos responsáveis pelos domicílios na Vila Mar é originária da cidade do Salvador, representando 53,85% dos entrevistados. Pelo menos, 83,33% dos responsáveis pelo domicílio não concluíram o ensino médio Figura 1: Vista da Ocupação Vila Mar e 3,85% nunca estudaram. Segundo Nilton, “o início da ocupação foi uma perturbação só, por parte de polícias e dos supostos donos do terreno. Trouxeram a polícia e tomaram uma parte do terreno. Foi difícil, mas nós conseguimos. As relações com a polícia e as instituições são muito difíceis. Para a gente sobreviver é preciso um jogo de inteligência. Você tem que rezar para Deus e oferecer uma vela ao diabo. Isto quer dizer, que você não pode ir contra os marginais nem contra a polícia. Tem que conviver com os dois, do mesmo lado. O povo precisa morar. Nós construímos com alvenaria, mas é por conta e risco do mo-

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Inserção no mercado de trabalho Vila Mar – Bairro São João do Cabrito Coordenadas X: 556.598,36 e Y: 8.573.107,32

Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

2007 São João do Cabrito Terreno 400 100 3,09 20 a 39 anos 48,55% negro 83,33% não têm ensino médio e 3,85% nunca estudou R$ 457,45 R$ 148,05 Contribui com 8,77% da renda total Trabalhadores dos serviços domésticos em geral; Trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações; Vendedores; Porteiros e vigias 89,21% dos moradores não possuem carteira assinada Nilton Renato de Araújo Independente

rador, porque qualquer hora podem chegar e destruir.” Vila Mar encontra-se localizada em uma das extremidades da Baía de Todos os Santos e seus moradores lidam com as vantagens e desvantagens da convivência com as suas águas não tão límpidas, com uma natureza exuberante e degradada e com o pôr do sol mais bonito da cidade do Salvador. O tamanho médio da família na ocupação da Vila Mar é de 3,09 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 89,21% deles não pos-

Ocupações

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Foto: Jacob Bittencourt Foto: Jacob Bittencourt

suem carteira assinada — são trabalhadores autônomos, que desenvolvem atividades como serviços domésticos, manutenção de edificações, vendedores, porteiros, vigias e pescadores. Segundo Nilton, a situação de desemprego entre os jovens é de fato muito preocupante na ocupação e cria um estado de tensão permanente, trazendo, inclusive, o risco crescente de envolvimento com o tráfico de drogas. Em função disso, Nilton afirma que “tem a intenção de construir uma marcenaria, na própria ocupação, na sede da associação, para empregar os jovens daqui. Espero ter ajuda do poder público para isso. É preciso tirar os jovens que estão nas drogas, jogados na rua. Temos aqui uns quinze jovens nessa situação. Outro dia mataram um aqui.” Cerca de 51,28% dos atuais moradores da Vila Mar residiam em casas alugadas, enquanto 8,97% deles são provenientes de outras ocupações, como Boiadeiro, Escada. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Vila Mar é de R$ 457,45 e a renda per capita é de R$ 148,05. O programa bolsa-auxílio contribui com 8,77% da renda total. Os integrantes da Ocupação Vila Mar residem em unidades unifamiliares, sendo que 46,75% destas contam com apenas um cômodo e 80,52% têm apenas um cômodo como dormitório. Dos domicílios entrevistados, 44,87% não contam com cozinha, seja ela coletiva ou Figura 3: Natureza em Vila Mar individual. Como afirma Nilton, a grande maioria das casas é de bloco, o que confere um caráter mais consolidado à ocupação (Gráfico 1). Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 62,82% têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio. Em torno de 55,84% dos moradores declararam ter sanitários e 83,72% deles dispõe de pia, chuveiro, vaso sanitário; sendo que 2,60% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária e 23,26% estão conectados à rede canalizada de esgoto. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 44,16% dos entrevistados, 94,12% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 39,74% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso reFigura 4: Pesca em Vila Mar gular ao serviço de coleta de lixo. As cinco doenças mais frequentes registradas na Vila Mar Gráfico 1 - Tipologia do Domicílio são a gripe, a diarreia, as verminoses, a dengue e a infecção intestinal. Os equipamentos públicos como biblioteca, cinema, museu ou teatro são inacessíveis aos responsáveis por domicílios da Ocupação Vila Mar. Já a saúde pública e o transporte público, ainda que tenham acesso a estes, se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados (Gráfico 2). Quanto à relação dos moradores com o movimento de luta pela moradia, 60,26% disseram que participam de forma ativa através de reuniões, passeatas ou assembleias. Eles buscam, em sua maioria, 78,72%, por um terreno, uma casa, uma moradia. Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

142 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Gráfico 2 — Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços

Foto: Any Afonso

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Figura 5: Vista Interna da Vila Mar

Ocupações

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A Ocupação Boiadeiro localiza-se no Bairro Alto do Cabrito (Figuras 1 e 2). Teve início em 2003 quando 85 famílias ocuparam um terreno neste local e construíram um único barração para todas morarem juntas. Hoje, vivem 100 famílias e cerca de 400 pessoas. A história de Eunice Ramos (Nice), líder desta ocupação, desde o seu nascimento, se confunde com a história da própria ocupação: “eu vim morar aqui porque meu pai ficou doente e eu tive que deixar de trabalhar para cuidar dele. Figura 1: Vista de Boiadeiro Depois ele morreu e eu não consegui mais trabalhar, não tinha como pagar aluguel. O aluguel tem um peso muito alto no nosso orçamenInício da ocupação to. Estou aqui desde 2003. São muitos Localização anos, muita gente foi embora. No início

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Boiadeiro – Bairro Alto do Cabrito Coordenadas X: 556.877,20 e Y: 8.573.230,06

Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Foto: Cézar Miranda

Boiadeiro (Alto do Cabrito)

2003 Av. Alto do Cabrito - Alto do Cabrito Terreno 400 100 2,83 20 a 39 anos 67,68% negro 82,83% não têm ensino médio e 5,71 nunca estudou R$ 343,91 R$ 121,59 Contribui com 11,99% da renda total Ajudantes de Obras Civis, Empregada doméstica, Vendedores, Marceneiros, Garçom, Barmen 93,24% dos moradores não possuem carteira assinada Eunice Ramos (Nice) Alba Valéria Adáes MSTB

eram 85 famílias morando num barraco só. A polícia veio e derrubou tudo. As pessoas foram embora, não tinha um pé de gente aqui. Eu fiquei aqui sozinha, nesse matagal. Era eu e Deus! Depois, vieram várias famílias para cá e cada um fez seu barraco. A polícia veio e derrubou tudo novamente. Construímos tudo de novo e estamos aqui até hoje.” Para Alba Valéria Adáes, também liderança da ocupação, a estória de uma certa forma se repete — também dói o aluguel, o motivo da sua vinda para a ocupação: “eu não aguentava mais pagar aluguel. Soube do Movimento e vim conhecer. Estou aqui até hoje.” Para Nice

e Alba, assim como para 68,57% dos moradores, não pagar aluguel é uma das principais vantagens de morar numa ocupação (Gráfico 1). Todos os responsáveis pelos domicílios da Ocupação Boiadeiro são originários da cidade do Salvador. Dentre esses, 82,83% não têm ensino médio e 5,71% nunca estudaram. Desenvolvem atividades de catador de material reciclável, ajudante de obras civis, empregada doméstica, vendedor, marceneiro, garçom, barmen ou biscateiro. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho é muito grande e mais uma vez a história de Nice ilustra essa realidade: “Na idade que a gente tem, nem a cozinha do branco te aceita mais. A gente já tá velha para trabalhar. Outro dia eu arranjei uma faxina, fui lá e a moça me disse que esse trabalho era muito pesado para mim. Fazer faxina de casa, limpar janela é pesado? A moça não me deu o trabalho. Então eu pergunto: Eu vou comer o quê? Só porque estou velha, eu não visto e não como? Eu vou fazer 50 anos, o emprego tem que ser para gente mais nova.” Além disso, Alba destaca: “Além de exigir segundo grau para tudo, não tem creche aqui. A creche municipal fechou. Muitas mulheres aqui não têm com quem deixar as crianças para trabalhar.” O tamanho médio da família na Ocupação Boiadeiro é de 2,83 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por homens, negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 93,24% deles não possuem carteira assinada. Cerca de 22,86% dos atuais moradores da Ocupação Boiadeiro residiram em casas alugadas, enquanto 2,86% deles são provenientes de outras ocupações. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da ocupação é de R$ 343,41 e a renda per capita é de R$ 121,59. O programa bolsa-auxílio contribui com 11,99% da renda total. Os integrantes da Ocupação Boiadeiro residem em unidades unifamiliares, sendo que 48,57% destas contam com apenas um cômodo e 97,14% tem apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, em 74,29% dos casos e de madeira, em 17,14%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 71,43% têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio e quanto à existência

Gráfico 1 - Vantagens de Morar em uma Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

de sanitário, 52,94% dos entrevistados declararam ter sanitário e dispor de pia, chuveiro, vaso sanitário e acesso à rede de esgoto. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 47,06% dos entrevistados, todos fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 31,43% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. Somente 37,14% dos pesquisados declaram possuir cozinha, seja ela individual ou coletiva, sendo que em 57,14% dos domicílios existem geladeiras e 91,43% dispõem de fogão. As cinco doenças mais frequentes registradas na Ocupação Boiadeiro são a gripe, a diarreia, a dengue, as verminoses e a infecção intestinal. Quanto à vida na ocupação e à condição de liderança, Nice afirma: “viver na ocupação é bom e ao mesmo tempo não é bom. É bom por que a gente fica livre do aluguel, por outro lado não é bom por causa das drogas, por que é muito arriscado, você pode tomar um tiro sem necessidade. O negócio é ver e fingir que não viu. Ou seja, viu qualquer coisa? Deixa lá! Eles acabam te respeitando. Ser coordenadora é como ser a mãe, você tem que se preocupar com tudo. A gente observa até se as crianças estão descalças. Separa briga de marido e mulher e de vizinhos. Toma conta de tudo. E também ouve muita reclamação, o povo reclama por tudo, e você tem que ouvir, acalmar as pessoas. Ser coordenador é fazer as coisas andarem.” No que se refere ao direito à moradia, Alba afirma: “ter direito a moradia é ter um lugar para morar, para botar a cabeça no lugar e descansar. Ficar tranquila. E isso é impossível para quem sempre morou de aluguel ou em ocupação”. Nice, de modo semelhante afirma: “é você ter um lugar para morar, um lugar para deitar e ficar com a cabeça descansada. Saber que você está livre do dono chegar e dizer que você terá que desocupar a casa. De você ficar andando para lá e para cá sem saber onde ficar. É a gente saber que a casa é nossa, que ninguém vai te tirar você de lá. Mesmo que venha luz, água, mesmo assim dá para pagar. A gente economiza, faz um ge-

Ocupações

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Gráfico 2 - Forma de Lazer

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Foto: Cézar Miranda

ladinho, etc.” A necessidade e o desejo de ter a sua casa própria estão retratados na planta de um apartamento, que decora a casa de Nice.

Figura 3 — O Real e o Sonho

146 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

No que diz respeito ao direito à cidade, Alba afirma: “Salvador não é igual para todo mundo. A gente vê a Barra e a Orla (Atlântica), toda bonitinha. Aqui a gente não tem nada. Veja o projeto do Parque São Bartolomeu, até hoje não saiu. Quando chove alaga tudo, os moradores têm que se unir para tirar o povo da lama. Quando chove é cobra e todo tipo de bicho dentro de casa. Isso não é justo. A gente precisa de esporte para os jovens, e veja que não tem uma quadra aqui. Salvador é boa para os ricos e ruim para os pobres que estão na periferia. Os ricos estão do outro lado, a gente nem vê”. Nice afirma: “todos têm direito à cidade, Salvador é uma cidade justa, os governantes é que não são justos, pois tem muita gente passando fome.” A reclamação de Alba sobre o acesso ao lazer também é sentido pelo conjunto dos moradores, em torno de 91,43%, segundo os quais não há espaço de lazer na ocupação. É a praia, principalmente, a alternativa que eles têm para se divertirem (Gráfico 2).

A Ocupação Quilombo de Escada localiza-se na Av. Afrânio Peixoto, em Escada, no Bairro Itacaranha (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início em 20 de dezembro de 2006, sendo o terreno particular. Hoje, vivem 400 famílias e cerca de 1600 pessoas. A maior parte, 60%, dos responsáveis pelos domicílios do Quilombo de Escada é originária da cidade do Salvador. Para Miralva Alves Nascimento (Mira), coordenadora da ocupação “foi a necessidade de moradia que nos fez criar a ocupação de Quilombo Figura 1: Ocupação Quilombo de Escada de Escada. É por não poder mais pagar aluguel que viemos para a ocupação. As mulheres cheInício da ocupação 2006 gavam com os filhos e pediam um pedaAvenida Afrânio Peixoto - Itacaranha Localização ço de terra pra construir a casa. Elas diTerreno Tipo de ocupação ziam que “o aluguel comia junto, no pra-

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Quilombo de Escada – Bairro Itacaranha Coordenadas X: 556.134,24 e Y: 8.575.762,94

Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

400 1.600 2,96 10 a 39 anos 59.75% negros 90,83% não concluíram o ensino médio R$ 358,02 R$ 120,82 Contribui com 63,82% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos e trabalhadores de edificações (construção civil), cozinheiros, catadores de material reciclável 91,80% dos moradores não possuem carteira assinada Miralva Alves Nascimento (Mira) MSTB

to delas.” Cerca de 46,79% dos atuais moradores da Ocupação Quilombo de Escada residiram anteriormente em casas alugadas, o que atesta o peso atribuído por Mira ao aluguel no orçamento das pessoas que se mobilizam em busca de alternativa de moradia. Ela destaca o papel das mulheres na construção das ocupações. “As mulheres limpavam o terreno, cavavam o buraco e construíam a casa. Os maridos, os companheiros, chegavam depois. A luta pela moradia é uma luta geral, de homens e mulheres, mas na grande parte das ocupações são as mulheres que estão à frente da organização da ocupação e do Movimento. Basta ver que na maior parte das ocupações a coordenadora é mulher.” O tamanho médio da família na Ocupação Quilombo de Escada é

Ocupações

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Foto: Suely Ribeiro

Quilombo de Escada (Itacaranha)

de 2,96 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 10 a 39 anos (Gráfico 1 e Gráfico 2). Em torno de 90,83% dos responsáveis pela família não concluíram o ensino médio em Quilombo de Escada. As crianças estudam em escolas públicas do bairro. Segundo Mira “as crianças estudam pela manhã e não têm muito o que fazer no período da tarde. Elas iam à praia para brincar mas, por se sentirem discriminadas, deixaram de ir. Crianças e jovens ficam na ocupação sem ter o que fazer. Tentamos fazer um grupo de hip hop mas não deu certo pois os adolescentes têm que sair pra trabalhar.” Mira reafirma o papel das mulheres no sustento da família no âmbito da ocupação, o que vai ao Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. encontro dos dados que afirmam a participação comparativamente maior das mulheres na condição de chefe de família em Salvador. “Em verdade, as mulheres, na maioria, são desempregadas. Elas trabalham como recicladoras, catadoras de marisco, trabalham sem nenhuma condição — se ferem e se machucam, fazem fogo na porta da casa pra tirar a casca do marisco e vendem o produto do seu trabalho para comprar o alimento para os filhos, netos e às vezes para o companheiro. Alguns companheiros trabalham na Feira de São Joaquim. Saem pra trabalhar quatro horas da manhã e retornam no final da tarde. Outros vendem picolé, outros constroem na sua própria casa uma biboca pra vender alguma coisa — as vezes uma cachaça, açúcar, café.” Dentre os responsáveis pelo domicílio em Quilombo de Escada 91,80% não possuem carteira assinada. A média da renda mensal por domicílio dos Figura 3: Ocupação Quilombo de Escada moradores da ocupação é de R$ 358,02 e a renda per capita é de R$ 120,82. O programa bolsa-auxílio integra 63,82% do rendimento das famílias. Os integrantes da Ocupação Quilombo de Escada residem em unidades unifamiliares, sendo que 41,67% destas contam com apenas um cômodo e 88,07% tem apenas um cômodo como dormitório. O material utilizado na delimitação do espaço da unidade domiciliar é predominantemente o misto, em 61,11%; e a madeira em 36,11% dos casos. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 80,73% têm um ponto de água canalizada no domicílio; a grande maioria tem cozinha individual; 12,04% têm sanitário e dentre os que declararam não possuir vaso sanitário, ou seja, 36,11%, a maioria faz uso do artifício do balão de fezes. A ocupação não está conectada à rede de esgoto, alguns dos moradores canalizam as águas servidas que são lançadas no próprio terreno. Uma rede da Embasa atravessa o terreno da ocupação e serve ao imóvel pertencente à Igreja Católica, localizado ao lado do terreno da ocupação. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 55,05% dos moradores declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. Figura 4: Interior da Ocupação As cinco doenças mais frequentes registradas na Ocupação

Fonte: Suely Ribeiro

Fonte: Suely Ribeiro

Gráfico 1 - Distribuição da População por Faixa Etária

148 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Quilombo de Escada são a gripe, a febre, dor de cabeça, a diarreia e o cansaço. Para Mira o acesso ao serviço de saúde é problemático para os moradores da ocupação. “Existe um Posto Médico perto, uma vez precisamos de ajuda, pois um morador teve um corte. O atendimento foi negado com o argumento de que o Posto só atendia os inscritos no PSF. Constatamos que na verdade o atendimento foi negado pelo fato de sermos Sem Teto. Procuramos a direção e eles argumentaram que não poderíamos ser atendidos por não tínhamos endereço fixo e, além disso, a demanda do Posto era muito grande. Fizemos um documento para a Secretaria de Saúde, que garantiu que poderíamos ser atendidos nesse posto.” As questões relativas à segurança em Quilombo de Escada reproduzem um quadro semelhante à existente nas outras ocupações. “Contamos com a ajuda de cada um pra tomar conta das casas”, afirma Mira. Além disso, a relação com a polícia é problemática por vários motivos: “a polícia quando entra acaba causando um certo desconforto. Quando ela chega por terra ou no helicóptero ela traz medo — moramos em barraco e temos medo que uma bala achada entre na nossa casa.” Quando questionados sobre a confiança nas instituições destaca-se a confiança nos movimentos sociais e no Conselho Tutelar, sendo o menor índice de confiança relacionado com o empresariado e o governo. Coordenar uma ocupação é difícil, afirma Mira: “É difícil, é complicado. Temos que administrar desde conflitos entre os moradores — como o incômodo pelo fato de um vizinho que coloca o som alto, até os problemas gerados pelo fato da coordenação ser feita por uma mulher. De vez em quando você ouve: Ah, se fosse uma voz masculina teria mais força! Entretanto, já tivemos experiências de coordenação de homens e que não foram tão boas, que tiveram problema. Tenho casa e filhos pra cuidar e, além disso, dou conta das atividades da coordenação, além de ser militante do grupo Guerreiras Sem Teto, que tem como objetivo lutar contra a discriminação da mulher.” As questões relativas à raça ganham um significado especial na Ocupação de Quilombo de Escada. Em torno de 59,75% dos moradores da ocupação são negros e 29% mestiços. Quando questionados sobre o modo como as questões relativas à raça interferem no exercício do direito à moradia e à cidade, 45,87%

Gráfico 2 — Etnia ou Raça

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

declaram que a discriminação racial e social contribui negativamente para o acesso à moradia digna. Existe na ocupação um espaço que é utilizado para a reunião. “É onde discutimos questões relacionadas à luta pela moradia, da mulher, de questões de saúde, violência, dengue, depende da necessidade.” Quando questionados sobre a motivação para integrar o Movimento, 38,53% dos moradores declararam vincular-se pela necessidade de obtenção da casa enquanto que 17,43% afirmam não se interessarem pelo Movimento e que simplesmente está na ocupação por precisar da moradia, desvinculando a possibilidade de acesso à casa ao movimento de luta pela moradia. As Guerreiras Sem Teto desenvolvem várias atividades na ocupação, merecendo destaque para as ações voltadas à inserção da mulher em atividades cooperativas. Quando questionados sobre as vantagens e desvantagens de morar em ocupação, os moradores declaram que não pagar água, luz e aluguel e ter onde morar aparecem como os principais motivos de se optar por ocupar. Porém, na contrapartida, conviver num espaço com nenhuma ou pouca infraestrutura urbana e saneamento ou ainda com violência surgem como preocupação constante para os moradores. Quando questionados sobre o acesso ao que Salvador oferece de alternativa para usufruto dos seus moradores, a exemplo de praças, parques, teatros, eles consideram a existência satisfatória apesar de declararem não ter acesso. Em relação aos serviços de saúde, transporte público e educação, ainda que tenham acesso, os moradores, em sua maioria, se declararam insatisfeitos em relação à qualidade dos serviços prestados. Mira afirma de forma enfática: “Salvador é uma cidade boa, bonita, mas tem algo que nos entristece. Nós, os Sem Teto, estamos fora do processo de construção dessa cidade. Nós, os Sem Teto não temos o direito a ela. A cidade é quem perde. Nós somos capazes, nos somos fortes e temos muito a contribuir com a cidade.”

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A Ocupação Cidade de Plástico localizase na Av. Afrânio Peixoto, no Bairro Periperi, tendo tido início em agosto de 2006 (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem 328 famílias e cerca de 1280 pessoas. Ajurimar Bentes, liderança da Cidade de Plástico, conta como foi o início da ocupação: “Aqui era só mato. Ponto de desova. Até hoje tem sacos com ossos humanos por aqui. Um dia, eu ia passando quando encontrei Pedro Cardoso, Ana Vaneska e outras pessoas que estavam ocupando o terreno com algumas famílias. Ele perguntou de lá: quem vai se responsabilizar por fazer o feijão da galera pra depois que a gente capinar e colocar as Figura 1: Ocupação famílias pra a gente almoçar? Eu disse: eu Cidade de Plástico faço! A partir daí, eu comecei a me enturmar e a conhecer melhor o trabalho do Movimento dos Sem Teto. Comecei a medir os espaços para colocar as famílias, a assentar as famílias, a orientar as pessoas para que elas pudessem conviver no espaço da ocupação. Nessa trajetória, eu fui conhecendo as pessoas e as suas dificuldades. Com esse trabalho, eu pude experimentar diversos sentimentos em relação ao ser humano. Cada um é diferente do outro. Eu convivo aqui com pessoas que vieram do presídio, com ex-presidiários que não tinham onde morar, com pessoas que tiveram o vício da droga, com mulheres que já tinham sido espancadas, que não tinham onde morar. Todos com problema de habitação, pessoas que moravam na casa de desconhecidos e que encontram aqui uma oportunidade de construir um lar. Mesmo que tenha aqui uma condição subumana, mas encontram aqui um terreno, que mais tarde pode se transformar em uma moradia digna.” A maior parte dos responsáveis por domicílio da Ocupação Cidade de Plástico é originária da cidade do Salvador, representando 66% dos entrevistados (Gráfico 1). Mas aqui moram pessoas que vieram de Alagoinhas, do Rio Grande do Sul, de Cidade de Plástico – Bairro Periperi Dias d’Ávila, Aracaju, afirma Ajurimar. “Tem uma cigana, uma neta de Coordenadas X: 556.551,23 e Y: 8.578.027,95

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Foto: Suely Ribeiro

Cidade de Plástico (Periperi)

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Vínculo com o Movimento Social

2006 Avenida Afrânio Peixoto, Periperi Terreno 328 1.280 3,02 20 a 39 anos. 52,98% negros 76,19% não concluíram o ensino médio e 14,29% nunca estudaram R$ 38,12 R$ 12,62 Contribui com 75,87% da renda total Porteiros; vendedores ambulantes, empregadas domésticas, cozinheiros, babás, pintores, garçonetes e diaristas, catadores de resíduos sólidos, pescadores, garçonete, diaristas, artesãs 76,32% dos moradores não possuem carteira assinada Ajurimar Bentes e Ednézia Leite (Edinha) MSTB

Gráfico 1- Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

existência de sanitário, 75,51% dos entrevistados declararam ter sanitário e 83,78% deles dispõem de pia, chuveiro, vaso sanitário ou esgoto canalizado. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 24,49% dos entrevistados, 91,67% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 46% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na ocupação são a gripe, a anemia e a diarreia. Destaca-se na Cidade de Plástico um restaurante comunitário, a Cooperativa Guerreira Zeferina, fruto da ação do MSTB e organizada pelas Guerreiras Sem Teto, envolvendo mulheres da própria comunidade e de outras ocupações, além de militantes que se somam à causa das mulheres. Segundo Ana Vaneska, “esse instrumento de fortalecimento da autonomia feminina e foi implantado a partir de financiamento de instituições internacionais, a exemplo da Cozinha Sem Fronteiras, da Suíça, e da Nova Comunidade, da Suécia. Outras atividades comunitárias são desenvolvidas pelas Guerreiras Sem Teto, Foto: Suely Ribeiro

cigano”. Eu mesma sou de origem cigana, conta ela: “Meu pai era cigano, cigano mestiço, eu nasci no Rio Grande do Norte, mas fui criada aqui em Salvador. Minha mãe não assumia os filhos. Ela fazia os filhos, mas ela não criava. Com cinco dias de nascida, as pessoas da minha família foram me buscar porque sabiam que eu estava nas mãos de estranhos. Os parentes de minha mãe não queriam que o sangue delas ficasse espalhado e foram me buscar. Quando eu cheguei aqui, os ciganos arrodiaram a casa porque queriam dar fim em mim. Os ciganos Gitanos, que são os ciganos puros, que vieram da Romênia, não gostam de mestiços. Como eu sou mestiça, de cabelo duro, eu sujo a essência deles. A nossa ocupação é muito misturada, temos aqui várias culturas.” O tamanho médio da família na Ocupação Cidade de Plástico é de 3,02 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. Dentre os moradores da Cidade de Plástico 76,19% não concluíram o ensino médio e 14,19% nunca estudaram. São “porteiros, vendedores ambulantes, empregadas domésticas, cozinheiros, babás, pintores, garçonetes, diaristas, catadores de resíduos sólidos, pescadores, mulheres que trabalham como garçonetes, diaristas, fazendo trabalho informal. Tem ainda mães de família que trabalham com artesanato e vendem pra fora”, afirma Ajurimar. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 76,32% deles não possuem carteira assinada. Cerca de 58% dos atuais moradores da Cidade de Plástico residiram em casas alugadas, todos estão em sua primeira ocupação (96%). A média da renda mensal por domicílio dos moradores é de R$ 38,12 e a renda per capita é de R$ 12,62, uma das mais baixas dentre as ocupações. O programa bolsa-auxílio representa 75,87% do rendimento das famílias — o maior peso dentre as ocupações. Os integrantes da Ocupação Cidade de Plástico residem em unidades unifamiliares, sendo que 44,90% destas contam com apenas um cômodo; 83,67% delas têm apenas um cômodo como dormitório; 68% possuem cozinha (individual ou coletiva) e equipadas com fogão (88%) e geladeira (70%). As unidades domiciliares são predominantemente de lona e plástico. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 82% têm pelo menos um ponto de água canalizada. Quanto à

Figura 3: Ocupação Cidade de Plástico

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Foto: Suely Ribeiro

Figura 4: Cooperativa Guerreira Zeferina sendo seu principal foco a melhoria da qualidade de vida dos moradores da ocupação e o desenvolvimento de trabalho sócioeducacional e cultural, particularmente com mulheres. Jovens integrantes de uma banda, que ensaiam na ocupação, falam da dificuldade de ter acesso a moradia e também a cultura em Salvador. “Apesar de morar em uma ocupação meu irmão continua a não ter um teto”. “O telhado do barraco dele está desabando. Hoje ele tem teto, amanhã está sem. É uma pessoa que não pode pagar um aluguel. Se vive aqui de pedreiro, de catar lixo, de biscate. Você está aqui, mas a qualquer momento você pode perder tudo — amanhã podem chegar aqui e derrubarem sua casa. Se isso aqui acabar eu vou pra onde? Só vou saber se acontecer... Aí, vou ter que

tomar uma providência. A gente diz sempre: hoje é dia da Nossa Senhora das Providências — você sempre tem que tomar providências... Nossa família mora de aluguel. Não tem uma casa. Eu consegui um teto através de meus parentes. Meu irmão não teve a mesma sorte. Viemos pra cá porque não tínhamos outro lugar pra morar e para ensaiar. A casa de meu irmão é sua música. Ele toma café, almoça música. Pra gente, que sempre morou aqui, é difícil chegar ao Centro da cidade. A gente leva quarenta minutos, uma hora pra chegar ao Centro. Salvador é uma cidade violenta e por morar no Subúrbio a gente é visto como violento. Quando pensamos em sair daqui a gente já imagina o preconceito que vai sofrer. Não temos dinheiro para o transporte. A gente vai voltar que horas? Temos que esperar amanhecer pra voltar. As pessoas tratam a gente como ladrão. Poucos amigos aceitam a gente pra dormir na casa deles, se é que a gente pode dizer que tem amigo na cidade.” Não pagar aluguel também é uma das principais vantagens apontada pelos moradores — 51,02%, o que indica o peso desse item no orçamento dos Sem Teto (Gráfico 2). Ainda se referindo à vida do jovem que mora na “periferia” um morador da ocupação afirma: “O jovem na periferia é marginalizado e ele se sente um marginal. Hoje somos adultos, maduros. Mas outros grupos na periferia, às vezes estão com vontade de amar, de arranjar uma gata, mas também de bater em alguém, de expurgar e expor sua ira, sua revolta, por ser massacrado... E a forma mais fácil

Gráfico 2 — Vantagens de se Morar numa Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

152 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Foto: Pedro Pires

é a violência. É como a gente diz: Não vou comer de ninguém. Não vão aceitar violência de ninguém e estão sempre prontos pra qualquer coisa! Por exemplo, eles divulgam que o carnaval é lindo, mas na prática o bicho pega e quem não tiver atitude a coisa fica feia. O carnaval é um ensaio do que acontece o ano todo. No Carnaval, Periperi se encontra no Relógio de São Pedro. Desceu, não encontrou uma gata, passou um otário, toma na cara! Todo mundo já tomou um murro na cara. Eu também já tomei. O camarote? Quem curte o camarote? O camarote é muito alto — não dá nem pra gente pular. Não curto o camarote. Gosto de brincar o carnaval, de verdade.” Em relação ao direito à cidade, Ajurimar afirma: “Há muito tempo, através do debate, estamos lutando pelo direito à cidade. Estou

agora no Conselho das Cidades. Como vocês sabem, estão projetando a construção do Metrô na Paralela (Avenida Luiz Vianna) enquanto que temos um trem no Subúrbio em uma situação terrível. Vivemos pendurados em ônibus que deveriam levar quarenta pessoas e levam setenta, cem pessoas. Você chega atrasado e todo amassado no trabalho. Já chega cansado. Eu já vi situações de pais brigando por uma pedra de craque e o filho chorando no berço, sem ter quem desse uma gota de água pra ele. Qual o futuro dessa criança? Eu, como Conselheira, não concordo e nem voto nessa proposta do Metrô para a Paralela. É uma gota em um oceano, mas vamos, sim, protestar. Estão preocupados em preparar a cidade para a Copa de 2014 e esquecem do morador. Então, o direito à cidade é isso: é o interesse de todos, do morador da cidade. O movimento dos Sem Teto não é só de Salvador é do estado da Bahia. Precisamos de moradia (estamos chegando lá) mas precisamos conquistar mais, conquistar o direito à cidade, precisamos de cidadania.”

Figura 5: Painel Cooperativa Guerreira Zeferina

Ocupações

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Portelinha / Fábrica de Mamona (Paripe) Foto: Cezar Miranda

A Ocupação Fábrica de Mamona/Portelinha localiza-se na Rua Eduardo Dotto, no Bairro de Paripe (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem 300 famílias e cerca de 1200 pessoas. “A ocupação começou em 14 de Janeiro de 2008”, afirma Célia Maria dos Santos Anunciação, uma das suas coordenadoras. “Eu não moro aqui, eu trabalho aqui. Eu trabalhava no Movimento da Estrada Velha do Aeroporto, em 2003. Lá, eu fui moradora. Como mataram o coordenador e não tinha ninguém para ficar no lugar dele, eu fui para a coordenação. Trabalhei quase cinco anos na coordenação. Quando entregaram os apartamentos de lá, me transferiram para aqui, aliás, primeiro fui para Fazenda Coutos I e depois vim parar aqui. Falaram pra mim: Célia, tem uma fábrica em Paripe que está abandonada. Conversei com um colega e ele viu que esse terreno é da EMBASA. Então decidimos entrar — organizei e enFigura 1: Ocupação Portelinha / Fábrica de Mamona

trei, mas eu não pensei que iria crescer tanto. O povo vai chegando e diz: Célia, eu estou na rua, estou morando de favor, aí, eu vou colocando na ocupação. Idelmário dizia: não coloque mais ninguém novato! Mas, se tem terreno vazio e se tem gente precisando, acaba ficando.” Segundo Célia, agora a ocupação se chama Comunidade Rosa de Charon. “A ocupação aumentou muito. Fizeram outra ocupação aqui atrás, outra lá em cima. São três ocupações em

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Fabrica de Mamona/Portelinha – Bairro de Paripe Coordenadas X: 557.269,79 e Y: 8.580.769,26

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

154 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2008 Rua Eduardo Dotto, Paripe Terreno 300 1200 5,57 20 a 39 anos. 51,07% mestiços 97,78% não concluíram o ensino médio R$ 368,69 R$ 66,15. Contribui com 11,61% da renda total Serviços de manutenção de edificações; trabalhadores dos serviços domésticos em geral; ajudantes de obras civis; trabalhadores nos serviços de embelezamento e higiene 94,99% dos moradores não possuem carteira assinada Célia Maria dos Santos Anunciação Rosilene Araújo (Teca) (in memoriam) MSTS

uma. A ocupação aumentou mesmo porque as pessoas que não têm a casa e vêm nos procurar. Parou de crescer agora porque a gente parou de dar terreno. Se a gente continuasse, porque ainda tem terreno, teria mais de 1000 famílias.” Em torno de 67,33% dos responsáveis pelos domicílios da Fábrica de Mamona/Portelinha são originários da cidade do Salva-

dor. O tamanho médio da família na ocupação é de 5,57 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por mestiços, mulheres, 50,60%, jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos; chefiados por mulheres, em torno de 41,33%, sendo que 15,90% dos responsáveis pela família não possuem CPF e 26,01% não possuem registro de identidade civil (Gráfico 1). Cerca de 52% dos seus moradores residiram anteriormente em casas alugadas e 15,33% são provenientes de outras ocupações, como Lagoa da Paixão, Escada e Monte Sagrado, e aqueles que têm nessa ocupação sua primeira experiência, vieram de bairros como Paripe, Fazenda Coutos e Periperi. Seus moradores residem em unidades unifamiliares, sendo que 60,67% destas têm apenas um cômodo e 96% têm apenas um dormitório. Os imóveis são predominantemente de material misto, em 42% dos casos, e de bloco com 40,67%. “Viver na ocupação é difícil, é difícil mesmo, porque não tem nada seguro, não temos casa, porque não é nossa, muitos não trabalham, uns vivem de reciclagem, não tem luz, água e rede de esgoto. Aqui é fácil pegar doença, porque é tudo precário. Tem uma criança que está com dengue hemorrágica”, afirma Célia. Em torno de 50% dos entrevistados declararam ter sanitário e 21,33% dispor de pia, chuveiro, vaso sanitário e rede sanitária. Dentre os que declararam não possuir sanitário, 74,67% fazem uso do artifício do balão de fezes. Existem na ocupação três pontos de água de uso coletivo e as águas servidas são lançadas no terreno — existem alguns banheiros químicos na ocupação. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 38% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. Cerca de 57,33% dos entrevistados disseram que não têm um cômodo que sirva de cozinha ou que faça uso de alguma cozinha coletiva. As cinco doenças mais frequentes registradas na ocupação da Fábrica de Mamona/Portelinha são a gripe, a diarreia, a dengue, as verminoses e as infecções nos olhos. Dentre os responsáveis pelo domicílio, 97,78% não concluíram o ensino médio. Os moradores desenvolvem atividades de serviços de manutenção de edificações, serviços domésticos, são ajudantes de obras civis, trabalhadores nos serviços de embelezamento e higiene, 94,99% deles não possuem carteira assinada. A média da renda mensal por do-

Gráfico 1 - Responsável por Família segundo Sexo

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

micílio dos moradores da ocupação é de R$ 368,69 e a renda per capita de R$ 66,15. O programa bolsa-auxílio contribui com 11,61% da renda total. A relação com as instituições públicas, particularmente com as de segurança pública, é problemática, como afirma Célia “é difícil se fazer respeitar quando se é morador em uma ocupação ou quando se participa do Movimento dos Sem Teto. Nós somos discriminados por morar na ocupação, por estar no Movimento... Quando a polícia chega, por algum motivo, procurando por alguém, ela pensa que “todos são iguais”, não respeita ninguém. A polícia vinha e eu mostrava que não era assim. Que eles tinham que vir em busca da pessoa certa e não sair invadindo as casas das pessoas e xingando mãe de família.” Aqui era assim, afirma Célia. “Depois de muita conversa com um comandante, agora ele trata o pessoal diferente. Mas para chegar a isso eu tive que lutar muito com a polícia. Com a política e também com os marginais. Teve um marginal que queria colocar o negócio dele aqui. Ele disse que eu não mandava na ocupação. Eu tive que mostrar para ele que não era isso.” Célia afirma uma posição de divergência em relação ao movimento de luta pela moradia. “Eu entrei no Movimento dos Sem Teto com vontade de ajudar as famílias que não tinham casa. Meu pai criou a gente em casa de aluguel, embaixo do viaduto, nunca tivemos casa — ele não tinha dinheiro. Mas, na verdade, a visão que tenho hoje do movimento não é tão boa. Quando a gente entrou aqui eu não tinha o apoio de ninguém. No começo a gente colocou a bandeira de grupos que existem no movimento, mas tive problemas. Eu arranquei a bandeira e falei para eles não entrarem mais aqui. Mudei o nome da ocupação, agora somos a Associação Rosa de Charon. É como eu já disse, eu entrei no movimento porque eu achava que o movimento era para ajudar as pessoas, mas não é isto, eles se beneficiam da miséria dos outros — se é pra falar a verdade, no movimento tem interesse político e por dinheiro. Depois de oito anos, vendo e conhecendo o movimento, a realidade é essa. Hoje eu aceitei Jesus. Passei a ser evangélica. Então, eu não

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posso colaborar mais com eles. Quando a gente aceita Jesus, a gente tem que se desligar de tudo que é errado.” Para Célia “ser líder é como ser mãe. Quando tem algo que vai atingir meu povo eu fico fora de mim. Aí meu esposo fala: ‘filha, tem lugar que você não pode falar certo tipo de coisa.’ Mas quando eu sei que vão mexer com eles, eu fico doida. É como se a gente estivesse defendendo nossos filhos. A gente se sente protetora. Ele fala pra mim: ‘filha, esse povo não merece! Muita gente fala de você por trás.’ Por outro lado, se você sair, o movimento acaba”. Ainda se referindo às dificuldades do exercício de liderança, ela afirma: “É difícil ser líder, você mexe com vários tipos de pessoas. Você tem que saber distinguir os problemas, saber conversar com cada pessoa, porque cada pessoa é e age diferente. Você tem que ter jogo de cintura, para você chegar onde você quer e fazer com que a pessoa chegue aonde ela quer chegar. Não é fácil não.” A nature-

za da liderança exercida está profundamente marcada pela reprodução, na vida coletiva, de uma relação maternal — uma inversão da tradicional relação patriarcal, um dos traços mais marcantes da vida política brasileira. A compreensão de Célia em relação ao significado do direito à moradia é clara: “O direito à moradia significa ter uma moradia digna, uma moradia digna é ter uma casa, com tudo organizado dentro, para poder colocar nossos filhos, para poder andar com a cabeça erguida. É quando a gente sabe que aquilo é nosso e ninguém vai poder tirar a gente daquele lugar. Direito à moradia é poder ter um telefone fixo. Aqui, não podemos ter telefone, luz, água, até o posto médico não atende a gente porque não temos endereço fixo.” Salvador não é uma cidade justa, afirGráfico 2 - Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços ma Célia. “Salvador está abandonada, não a cidade toda, mas o Subúrbio. Muitos bairros estão abandonados, eles criam a imagem só do “outro lado”, aqui a realidade é diferente. Salvador é uma cidade desigual, eles só mostram a fachada, na realidade Salvador tem outra história. Salvador só tem uma, mas não é a mesma, então são duas, os ricos, da Barra, da Pituba e os pobres que estão na periferia. Pode ver que eles não trazem os gringos para a periferia, trazem?” Essa percepção de Célia é reafirmada quando se pergunta sobre o que a cidade tem a oferecer ao morador desta ocupação e o quanto este se encontra satisfeito com o serviço. Percebe-se uma insatisfação alta quando se trata do acesso ao saneamento básico, ao teatro e museus, oportunidade de emprego e cesta básica mais barata. Eles se manifestam satisfeitos e têm acesso às praças e praia. Ainda que tenha acesso, eles não se declaram satisfeitos com o transporte público Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012. e a saúde pública (Gráfico 2).

156 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Foto: Suely Ribeiro

Tubarão (Paripe)

Figura 1: Ocupação Tubarão

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação População estimada Famílias estimadas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

1989 Rua Dr. Eduardo Dotto, Paripe Terreno 200 1110 5,55 20 a 39 anos Negro e mestiço 84,81% não concluíram o ensino médio e 3,80% nunca estudaram R$ 792,61 R$ 142,81 Contribui com 9,95% da renda total Vendedores Ambulantes, Empregados Domésticos, Trabalhadores de Edificações (construção civil), Barmen, Copeiros, Porteiros e Vigias, Marisqueiras 90,11% dos moradores não possuem carteira assinada Valdizia Freitas Independente

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Tubarão – Bairro Paripe Coordenadas X: 556.153,32 e Y: 8.581.583,86

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

A Ocupação Tubarão localiza-se na Rua Dr. Eduardo Dotto, no Bairro Paripe (Figuras1 e 2). Na ocupação vivem hoje 200 famílias e cerca de 1110 pessoas. Essa ocupação é anterior às demais e seu processo de formação possui características diferenciadas das que se constituíram no bojo do Movimento de Luta pela Moradia a partir de 2003. Valdizia Freitas, fundadora e líder da Ocupação de Tubarão, relata a história da ocupação dessa área: Aqui era lugar de desova, era uma área de desmanche de carro, nessa área acontecia muitos casos de estupros, as mulheres eram violentadas. Ocupamos aqui em 1989. Os donos da fábrica de cimento jogaram a gente na rua. Voltamos e ocupamos de novo! Colocaram outra liminar, saímos, depois constituímos um advogado e entramos no Tribunal de Justiça com um agravo. Sem que a gente soubesse houve um acordo no qual a Votorantim ou o grupo Itaú, doava um pedaço da área para fazer as casas e, em troca, a gente não ocuparia mais a terra que era deles. Fizeram tudo isto por debaixo do pano sem que a gente soubesse de nada. Quando foi um belo dia, em 2000, eu descobri o acordo e chamei eles para conversar. Não tinha como ter acordo porque, naquela época, não tínhamos uma associação registrada. Éramos um grupo de quatro pessoas e chamamos esse pessoal para conversar. Eles não aceitaram o acordo e em 2004 eu resolvi ocupar de novo a área. Quando eu ocupei, o Prefeito veio aqui e colocou uma liminar contra nós. A Associação da Gameleira e o Movimento Sem Teto também colocaram liminares contra nós. Todos eles queriam essa terra a qualquer custo. Nós fizemos caminhadas, reivindicamos, lutamos. Foi uma história muito triste. Foi uma história de luta, foi uma conquista, mais muito perigoso — até tiro no carro no qual eu estava, teve. Eles diziam que essa terra é muito bonita para pobre morar.” Valdizia relata o conturbado processo de construção da Ocupação Tubarão: “A primeira coisa que a gente fez aqui foi um projeto para a ocupação da área. Porque em toda ocupação tem pessoas inteligentes, com criatividade. Antes de ocupar, medimos a área, dividimos em lotes, separamos área para atividade social, com equipamentos comunitários, organizamos para saber quantas pessoas cabiam na ocupação para não ficar um por cima do outro. Aí, chegaram alunos da faculdade de Arquitetura dizendo que queriam ajudar e pediram para ver o projeto. Eu, inocente, sem nenhuma experiência, dei o projeto — era um simples pedaço de papel, eu achava que não tinha valor. Três anos depois surge um projeto, igual ao nosso, no próprio lugar onde nós ocupamos. Um projeto idêntico, até o nome era o mesmo que eu dei. Esse projeto ganhou seis milhões de reais para a construção das moradias populares, verba que veio de fora. Procurei saber, reivindiquei que eu queria uma cota das casas para contemplar as famílias daqui. Fizemos várias reivindicações, invadimos a área onde iria ser feito o projeto. Até o prefeito João Henrique colocou processo em cima da gente. Na hora de assinar a liminar, eu conheci a Juíza Maria do Carmo. Essa juíza foi de uma importância muito grande para nosso movimento, porque ela escutou o lado da gente e não assinou logo a ordem para a polícia viesse tirar a gente. Dessa vez não foi assim.

Ocupações

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Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Condição de Moradia antes de Morar na Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012

Gráfico 3 - Renda Total e Bolsa-Auxílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

158 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

A partir daí, com a ajuda do Ministério Público, (da Promotora de Justiça Silvana Almeida) conseguimos descobrir que os acionistas da Votorantim tinham doado um pedaço de terra para as famílias que, naquela época, tinham ocupado aquele local. Alguém escondeu não deixando que aquelas famílias fossem contempladas. Quando governador Jacques Wagner tomou posse, a SEDUR negociou e fez com que tudo fosse resolvido. Acertamos que a gente entregaria parte da terra e que um pedaço seria para construir casas para a União de Moradia.” A maior parte dos responsáveis por domicílio da Ocupação Tubarão é originária da cidade do Salvador, em torno de 49,37% dos chefes de família (Gráfico 1). Dentre esses, 84,81% não concluíram o ensino médio; 6,58% estudavam na época da entrevista e 3,80% nunca estudaram. Os moradores desenvolvem atividades de vendedores ambulantes, empregados domésticos, trabalhadores de edificações (construção civil), barmen, copeiros, porteiros e vigia. O tamanho médio da família na Ocupação Tubarão é de 5,55 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros, mulheres e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 90,11% deles não possuem carteira assinada. Cerca de 38,75% dos atuais moradores da Ocupação Tubarão residiram em casas alugadas ou em casa de familiares, com 33,75%; e 7,50% vieram de outras ocupações (Gráfico 2). A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Tubarão é de R$ 792,61 e a renda per capita é de R$ 142,81. O programa bolsa-auxílio integra 9,95% do rendimento das famílias (Gráfico 3). Os integrantes da Ocupação Tubarão residem em unidades unifamiliares, lideradas por homem, com 46,25%; tendo 41,77% apenas um cômodo e 79,75% apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco, com 42,50%; de madeira com 20% e mista com 37,50%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 85% têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio. Quanto à existência de sanitário, 61,33% dos entrevistados declararam ter sanitários e dispor de pia, chuveiro ou vaso sanitário e 52,17% estão conectados à rede canalizada de esgoto. Dentre os que declararam não pos-

Foto: Suely Ribeiro

suir sanitário, ou seja, 38,67% dos entrevistados, todos fazem uso do artifício do balão de fezes. Pelo menos 62,50% dos domicílios têm um ponto de luz e 48,75% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As casas, em sua maioria, têm TV, 65%; rádio com 53,75%; geladeiras com 50%; fogão com 81,25% e telefone celular com 66,25%. As doenças mais frequentes registradas na ocupação Tubarão são a gripe, a diarreia, a infecção intestinal e verminose. Valdiza fala das iniciativas desenvolvidas com o objetivo de melhorar a qualidade de vida

dos moradores de Tubarão: “hoje aqui tem uma creche, temos projetos voltados para mulheres, parceria com a Petrobras e outras entidades, estamos construindo o Infocentro e estamos com parceria com o Conselho da Criança e dos Adolescentes, para que possa implantar o curso de computação. Temos ainda parceria com o SESC para a realização de curso de pintura em tecido e com garrafa pet. Esses projetos não envolvem somente os moradores de Tubarão. Todos que precisam são contemplados, quer seja das ocupações vizinhas, marisqueiras, empregadas domésticas, os que ganham Bolsa Família. Abraçamos todos aqui nos projetos sociais. Os projetos já se expandiram, estamos na Ilha de Maré, no Quilombo de Maré, com cursos para marisqueiras, com curso na construção civil, além de Praia Grande, Santana e Botelho.

Figura 3: Creche e Escola Comunitária Filhos do Quilombo

Ocupações

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Monte Sagrado (Paripe) Foto: Cezar Miranda

A Ocupação Monte Sagrado localiza-se na Rua do Índio, no Bairro Paripe (Figuras 1 e 2). A ocupação teve início em janeiro de 2008. Hoje, vivem 130 famílias e cerca de 520 pessoas. Luiz Marcelo, um dos fundadores, relata como foi o início da ocupação: “Nós vimos o terreno e chamamos alguns companheiros que já tinham experiência para organizar a ocupação. Marcamos a hora e a data. Foi bem cedinho, seis horas da manhã. A gente começou a ocupar perto de um depósito de material de construção. O pessoal da área disse que não podia ser nesse lugar, tinha que ser mais em cima. Aqui ainda não se chamava Monte Sagrado. Um rapaz, chamado Mário, que estava Figura 1: Ocupação de Monte Sagrado

comigo, que fazia parte do MSTB, falou do quanto aqui era bonito. Era como se a gente estivesse perto de Deus, ai eu coloquei o nome Monte Sagrado.” A maior parte dos responsáveis por domicílio de Monte Sagrado é de Salvador, com 62,50%, vindo em seguida municípios do entorno metropolitano e Feira de Santana (Gráfico 1). Dentre os moradores 82% não concluíram o ensino médio e 2% nunca estudaram. Eles desen-

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Monte Sagrado – Bairro Paripe Coordenadas X: 556.590,14 e Y: 8.581.637,16

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

160 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2008 Rua do Índio, Paripe Terreno 130 520 2,78 20 a 39 anos 54,29% negro 82% não concluíram o ensino médio e 2% nunca estudaram R$ 235,32 R$ 84,52 Contribui com 42,54% da renda total Vendedores ambulantes, Empregados Domésticos, Trabalhadores de Edificações (construção civil), Barmen, Copeiros, Porteiros e Vigias 46,97% dos moradores não possuem carteira assinada Elias Bonfim; Val; Índio (in memoriam) Luiz Marcelo Vieira da Conceição MSTB e Independente

volvem atividades de catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos, porteiros, babás e de biscate. O tamanho médio da família na Ocupação Monte Sagrado é de 2,78 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráficos 2). Em sua maioria, os moradores da ocupação Monte Sagrado residiram em casas alugadas ou em casa de parentes e 14,77% vieram de outras ocupações, como dos Alagados e Tubarão. A média da renda mensal por domicílio dos moradores de Monte Sagrado é de R$ 235,32 e a renda per capita é de R$ 84,52. O programa bolsa-auxílio integra 42,54% do rendimento das famílias (Gráfico 3). Os integrantes da Ocupação Monte Sagrado residem em unidades unifa-

Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 — Distribuição da População por Raça/Etnia

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 3 - Renda Total e Bolsa-Auxílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Foto: Suely Ribeiro

miliares, sendo que 55,68% destas, contam com apenas um cômodo; 89,77% têm apenas um cômodo como dormitório e 50% declararam ter cozinha. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco, com 48,86%; vindo em seguida a mista com 26,14% e a de madeira, com 18,18%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 84,09% não têm ponto de água canalizada no domicílio. Quanto à existência de sanitário, apenas 22,73% dos entrevistados declararam ter sanitário e 95% destes dispõem de pia, chuveiro, vaso sanitário ou rede de esgoto. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 77,27%, em torno de 95,59% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios, 54,55%, tem pelo menos um ponto de luz e declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo, que é depositado em um contêiner. Como afirma Elias “a luz a gente puxou de dois cabos de força, reforçado; a água as pessoas se organizaram e puxaram o gato, rede de esgoto não existe, alguns têm fossa no quintal”. Elias Bonfim, uma das lideranças da ocupação relata o embate em torno da ocupação da terra: “Com o decorrer do tempo veio o governo querendo a terra, aí travamos uma luta. Mas, como o espaço é muito grande e os moradores não ocupavam toda a área, fizemos um acordo. Liberaríamos uma parte e a outra nós moraríamos. Além disso, o governo teria que bancar o aluguel das pessoas que sairiam, até as casas do Programa Minha Casa Minha Vida ficarem prontas. Eles estão cumprindo o acordo. A gente agora está na espera das casas, para depois a gente reivindicar saneamento básico. Já é proposta do Governo fazer o saneamento dessa área. Mas a gente não pode só esperar, se não eles terminam, tiram as máquinas e a gente não ganha nada.” Os moradores de Monte Sagrado declararam não ter acesso a equipamentos públicos como biblioteca, cinema, museu ou teatro, embora eles os considerem satisfatórios na cidade do Salvador. Em relação à educação, à saúde pública e ao transporte coletivo, ainda que tenham acesso a estes, se encontram, em sua maioria, insatisfeitos quanto aos serviços prestados. Elias fala da importância das atividades culturais desenvolvidas na ocupação: “Quando viemos para cá trouxemos pessoas que faziam parte de um movimento de Teatro. Como meu objetivo sempre foi fazer trabalho social, eu peguei um terreno, fiz uma casinha de plástico e junto com o pes-

Figura 3: Coleta de Lixo na Ocupação Monte Sagrado

soal de Teatro, com a comunidade, essa casa de plástico hoje já é uma sede de um bloco. É uma construção de 18m2, que abriga além do teatro, um grupo de dança e uma banda de lata. A gente tem orgulho porque são poucas ocupações que têm um centro cultural como a nossa — que já foi para a rede Bahia Revista e tudo mais.”

Ocupações

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Caranguejo (São Tomé) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Caranguejo localiza-se em Vila Real, no Bairro de São Tomé (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem nessa ocupação 25 famílias e cerca de 110 pessoas. A Ocupação Caranguejo teve início em 1989 com a desocupação da área pertencente à Votorantim. Como relata Valdizia Freitas, liderança da ocupação, “a liminar da Votorantim jogou todo mundo na rua. Foram para mais de cinco ônibus de polícia só para tirar a gente daqui. Em protesto, nós acampamos na beira da praia. Enquanto a gente esperava o desenrolar do processo da Defensora Pública, ficamos para mais de dois meses acampados na beira da praia. Então, com três meses de ocupação, a Marinha queria que a gente saísse. Mas eles não chegaram com liminar. Eles chegaram conversando. Aí, tinha um cantinho em São Tomé, que era um manguezal e resolvemos Figura 1: Ocupação de Caranguejo

sair da beira da praia e ir para o manguezal. Aterramos o manguezal e construímos os barracos.” A maior parte dos responsáveis pelos domicílios em Caranguejo é originária da cidade do Salvador, representando 55,56% dos entrevistados (Gráfico 1). Dentre os moradores 77,78% não concluíram o ensino médio e 11,11% nunca estudaram. Os moradores desenvolvem atividades de catadores de material re-

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Caranguejo – Bairro São Tomé Coordenadas X: 556.352,69 e Y: 8.586.801,56

Início da ocupação

Principais lideranças

1989 Vila Real, Rodovia BA, nº 528 Terreno 25 110 4,44 20 a 39 anos 57,50% mestiço 77,78% não concluíram o ensino médio e 11,11% nunca estudaram R$ 608,78 R$ 136,98 Contribui com 6,33% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos e mecânico, cozinheiros, porteiro e vigia 83,33% dos moradores não possuem carteira assinada Valdizia Freitas

Vínculo com o Movimento Social

Independente

Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

162 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

ciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos, porteiros e ajudantes de obras civis. O tamanho médio da família na Ocupação Caranguejo é de 4,44 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por homens, mestiços e jovens na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráficos 2). O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 83,33% deles não possuem carteira assinada.

Cerca de 44,44% dos atuais moradores da Ocupação Caranguejo residiram em casas de parentes, sendo a média da renda mensal por domicílio dos seus moradores é de R$ 608,78 e a renda per capita, de R$ 136,98. O programa bolsa-auxílio integra 6,33% do rendimento das famílias. Os integrantes da Ocupação Caranguejo residem em unidades unifamiliares, sendo que 33,33% destas contam com apenas um cômodo e 55,56% têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de bloco; 11,11% de madeira e 11,11% mista (Gráfico 3). Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que a grande maioria possui um ponto de água canali-

Gráfico 1 - Origem do Responsável pelo Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Distribuição da População por Faixa Etária

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

zada no domicílio. Quanto à existência de sanitário, 44,44% dos entrevistados declararam ter sanitário e dispor de pia, chuveiro ou vaso sanitário e 75% estão conectados à rede canalizada de esgoto. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 55,56% dos entrevistados, 60% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 11,11% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na Ocupação Caranguejo são a gripe e diarreia. A grande maioria dos entrevistados declarou que a ocupação não tem espaço dedicado para o lazer, sendo a praia e ouvir música as formas mais usuais de lazer desses moradores.

Gráfico 3 - Material de Construção da Unidade Domiciliar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Servidão (Bom Juá) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação da Servidão/Bom Juá localiza-se em uma encosta, na faixa de servidão da BR-324, no Bairro de Bom Juá (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem 45 famílias e cerca de 180 pessoas. A ocupação teve início entre os anos de 2000 e 2002, segundo Solidalva do Nascimento, coordenadora. “Eu moro aqui há seis anos”, ela afirma. “Graças a Deus é a uma moradia boa. O perigo aqui é a BR, o carro cair de lá, como já aconteceu. Também falta de esgotamento sanitário. Não moramos aqui por descaração, é por precisão. Entra ano e sai ano, todo mundo tira foto, e nada! Muitos que chegam aqui prometem mundos e fundos e não fazem nada. Os grandes estão aí, para fazer pela gente, mas o grande

Início da ocupação Localização

Figura 1: Ocupação da Servidão

mesmo é Deus. O pobre, coitado, que anda aqui nesta terra, sobrevive. A gente, aqui, está na mão de Deus.” Parcela significativa dos responsáveis pelos domicílios na ocupação é originária da cidade do Salvador, ou seja, 77,78%. São, em sua maioria, trabalhadores do mercado informal de trabalho, 96,97%, que exercem atividades de vendedores ambulantes, empregados domésticos ou catadores de material re-

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Servidão/Bom Juá – Bairro de Bom Juá Coordenadas X: 557.191,47 e Y: 8.569.081,66

Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

164 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2000 Encosta na faixa de servidão da BR-324, Bom Juá Terreno 45 180 7,33 20 a 39 anos 54,55% negro 66,67% não concluíram o ensino médio e 22,22% nunca estudaram R$ 979,11 R$ 133,52 Contribui com 16,48% da renda total Vendedores ambulantes; empregados domésticos; catadores de material reciclável 96,97% dos moradores não possuem carteira assinada Walter Sena Santana Solidalva do Nascimento MSTS

ciclável, sem a formação básica do ensino médio — 66,67% deles não concluíram sequer o terceiro ano do ensino médio e 22,22% nunca estudaram. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Servidão/Bom Juá é de R$ 979,11 e a renda per capita é de R$ 133,52. O programa bolsaauxílio contribui com 16,48% da renda total. O tamanho médio da família na ocupação da Servidão/Bom Juá é de 7,33 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos (Gráfico 1). Cerca de 55,56% dos atuais moradores da Servidão/Bom Juá residiram com seus familiares no próprio bairro de Bom Juá e estão vivendo em uma ocupação pela primeira vez — em torno de 88,89%. Os integrantes da Ocupação Servidão/Bom Juá residem em unidades unifamiliares, chefiadas por homens, com 44,44%, em casas com dois cômodos, com 45% dos casos, sendo que 55,56% dos domicílios têm somente um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de alvenaria e, em 66,67% das casas há cozinha, seja ela coletiva ou individu-

Gráfico 1 — Distribuição da População por Faixa Etária

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

nem para a sinaleira pedir. Eu quero trabalhar como eu trabalho aqui. É pesado, mas eu trago o pão de cada dia para minha casa, meus filhos são todos de menor.” Para Solidalva, o bairro de Bom Juá precisa de muita coisa. “Primeiro, de um posto de saúde, porque o que tem aqui é a mesma coisa que nada. Eu mesma já lutei para conseguir uma consulta e toda vez que eu vou lá, eles falam: médico, só para semana, para o mês. Aí, a gente vai e desiste e parte para procurar outro. O posto daqui está acabado. O lixo é jogado à toa, o esgoto passando por aqui, tem que respirar fundo. Esse esgoto, na rua, tem anos, vem da Fazenda Grande. Da escola não tenho o que dizer, é uma beleza.”

Foto: Roseli Afonso

al; e em torno de 88,89% dispõem de fogão ou geladeira. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que todos os entrevistados têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio. Quanto à existência de sanitário, 66,67% dos entrevistados declararam ter sanitário individual e pelo menos 16,67% destes dispõem de pia, chuveiro, vaso sanitário e rede sanitária. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 33,33% dos entrevistados, 66,67% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 55,56% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. A doença mais frequente registrada na Servidão/Bom Juá é a gripe. Ainda que precário, é ao posto de saúde que 88,89% dos moradores desta ocupação recorrem quando precisam de assistência à saúde, embora 11,11% tenham sido deixados de ser atendidos seja por falta de pessoal ou vaga. Quando questionados sobre o lugar onde gostariam de morar, os moradores indicam Águas Claras e Bom Juá, sendo os principais motivos alegados o fato de gostarem do bairro, por ter familiares nas proximidades, conhecerem as pessoas ou pelo fato dos bairros disporem de serviço e comércio: “Antes eu não gostava daqui, mas agora eu gosto”, afirma Solidalva. “Aqui não tem violência, você pode dormir de janela e porta aberta. O povo aqui é unido. Muita gente já falou que, pra sair daqui, um lugar sossegado, para outro, não sai não. Aqui, parte da ocupação já é construída. Começaram em barraco e terminaram em casa construída, de alvenaria. Muita gente aqui diz que sua casa não abandona nunca.” As preocupações relativas a uma nova moradia em um conjunto habitacional são muitas. “Nos conjuntos que estão implantando tem violência. Para as casas populares vão duzentas pessoas... É muita gente junto. Eu sou pai e mãe de cinco. Trabalho para sustentar meus filhos. Eu sou recicladora. Aqui, eu tiro tudo do meu suor e de Jesus. Se me tirarem daqui e me colocarem em casa popular, vai ser um desespero. Eu vou para a porta da Prefeitura com meus cinco filhos fazer guerra. Porque eu não vou ficar sem trabalhar. Não vou passar fome, não vou roubar e

Figura 3: Material Reciclável na Ocupação da Servidão

Ocupações

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Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Foto: Roseli Afonso

Vila Via Metrô (Mata Escura) A Ocupação Vila Via Metrô está localizada na BR-324, limite com Arraial do Retiro, uma área de topografia acidentada, de alta declividade (Figura 1). Estima-se que vivem 150 famílias e em torno de 600 pessoas. Segundo Regineide Costa de Almeida, coordenadora da ocupação, “no começo, aproximadamente em 2000, a ocupação era considerada uma invasão. O pessoal sofreu pressão e, na época, a gente foi ajudada por um vereador. Com a interferência dele, parou a violência da polícia, parou a pressão em cima dos moradores. Foi aí que a gente saiu da concepção antiga de que a gente morava em uma invasão e passou se considerar uma ocupação, ligada ao movimento dos Sem Teto.” Os responsáveis pelos domicílios da Ocupação Vila Via Metrô são originários, em proporFigura 1: Ocupação ção semelhante, da cidade do Salvador, com de Vila Via Metrô 46,15%, e de outros municípios do interior da Bahia, com destaque para Feira de Santana. Dentre os moradores 96,3% não concluíram o ensino médio e 18,52% nunca estudaram, um dos maiores percentuais de analfabetismo encontrado nas ocupações. Algumas iniciativas dos próprios moradores de construção de unidades escolares na ocupação não vingaram por falta de apoio. “Um equipe construiu um terreiro de candomblé aqui para fazer o documentário de Pola Ribeiro, sobre ‘As ervas que curam’. Quando terminou o documentário eles deram para gente a construção e sugeriram que a gente construísse uma escola para os meninos. ConversaVila Via Metrô – Bairro Mata Escura Coordenadas X: 557.573,7 e Y: 8.569.616,1 mos com algumas pessoas, mas precisava de infraestrutura e não deu certo”, afirma Regineide. “Hoje temos luz, mas a Coelba nos cobra um

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Vínculo com o Movimento Social

2000 BR-324, limítrofe com Arraial do Retiro, Mata Escura Terreno 150 600 2,78 20 a 39 anos 72% negro 74,07% não concluíram o ensino médio e 18,52% nunca estudaram R$ 355,33 R$ 127,92 Contribui com 11,61% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos, garçom, barmen, copeiro e mecânico 93,08% dos moradores não possuem carteira assinada Walter Sena Santana Regineide Costa de Almeida MSTS

Foto: Roseli Afonso

absurdo, a conta vem em torno de R$100,00 reais. A gente não sabe o que fazer, porque eles cobram errado. Vamos ter audiência pública, pra discutir sobre a luz, a Bahiagás, sobre a Coca-Cola que está aqui perto, que não oferece emprego”. O tamanho médio da família na ocupação é de 2,78 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. Os moradores em idade ativa desenvolvem atividades de vendedores ambulantes, empregados domésticos, marceneiros e recicladores, sendo que 93,08% deles não possuem carteira assinada. Segundo Regineide “aqui a maioria das pessoas trabalhavam com reciclagem. Agora com os cursos profissionalizantes, muita gente está com trabalho de carteira assinada. Ainda esta aquém da realidade, mais graças a Deus está melhor.” Cerca de 29,63% dos atuais moradores da ocupação Vila Via Metrô residiam anteriormente em casas alugadas, enquanto 7,41% deles são provenientes de outras ocupações. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Vila Via Metrô é de R$ 355,33 e a renda per capita é de R$ 127,92. O programa bolsa-auxílio integra 11,61% do rendimento das famílias. Os integrantes da Ocupação Vila Via Metrô residem em unidades unifamiliares, sendo que destas, 29,63% tem apenas um cômodo, tendo a maioria cozinha individual — 94,74%. O material utilizado na construção do imóvel é predominantemente misto, com 37,04%; vindo em seguida o bloco, com 33,33%, e 29,63% de madeira. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se a existência de três pontos de água de uso coletivo. Quanto à existência de sanitário, 74,07% dos entrevistados declararam ter sanitário, sendo que 3,70% dos moradores declararam compartilhar com mais de um morador a mesma unidade sanitária. Dentre os que declararam não possuir sanitário, 3,70% faz uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 25,93% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na Ocupação Vila Via Metrô são a gripe, febre, a diarreia e as verminoses. Regineide considera que a condição de líder de uma ocupação e a vida em uma ocupação colocam desafios pessoais interessan-

tes, mas também traz dificuldades e expõe as pessoas a situações de risco: “ser líder é fazer reunião, fazer mutirão de limpeza da comunidade, fazer manifestação. Não é fácil ser líder aqui dentro. Ninguém tem força de vontade de fazer nada. Quando eu faço dizem que eu quero tudo para mim. Na verdade, nem de tudo eu quero participar. Eu só quero minha casa e por isso tenho que engolir muita coisa. Acontecem problemas sérios aqui e às vezes eu não dou queixa por temer pela vida dos meus filhos. Cheguei até a ir embora daqui em 2008, mas voltei. Não durmo de noite e se o cachorro late, eu já fico tremendo... Já mataram duas pessoas na minha porta. Meus filhos não moram comigo, já estão com minha mãe, porque os traficantes queriam pegar meu filho dizendo que ele tinha pegado uma sandália deles. No dia seguinte ao qual meus filhos foram embora, eles ficaram rondando minha casa com uma arma. Eu não fui para ocupação para comprar briga, eu fui para conseguir minha casa.” Para Regineide, além de grande responsabilidade, nem sempre o trabalho da liderança é devidamente reconhecido: “ser líder significa ter muita responsabilidade e ainda assim as pessoas não reconhecem o que a gente faz. A gente se passa como um nada. A gente até reunia as pessoas para pedir ajuda, mais ninguém quer nada. Só eu e meu companheiro fazemos tudo. A ponte aqui mesmo foi a gente que ajeitou. Antes, muita gente tinha caído, um menino caiu, os livros foram embora e ele bebeu muita água. Uma vez tinha um pessoal jogando entulho lá embaixo. Eu fui falar e ele foi ao carro e pegou uma arma. Eu falei então: desculpa aí cara!” A exemplo do que colocam vários coordenadores e moradores em relação à possibilidade de mudança para outro bairro em função da aquisição da casa através do Programa Minha Casa, Minha Vida, Regineide afirma: “não tem como a gente sair daqui. Já temos vínculos, é perto de tudo, tem trabalho, as pessoas já têm uma vida estruturada, não tem como ir para longe, vai fazer o que?” Entretanto, o sonho da casa própria fala sempre alto. “Tem uma pessoa aqui, Jurema, que foi

Figura 3: Domicílio na Ocupação Vila Via Metrô

Ocupações

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Gráfico 1 — Motivo da participação no Movimento de Luta

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

contemplada com uma casa no programa Minha Casa, Minha Vida. Lá é bonzinho, porque ela morava na ribanceira, tinha risco de vida. Explicaram para ela que por ela ser do Bolsa Família, ela vai pagar R$ 50 reais, fora luz e água.” Ela disse que está muito feliz. “Eu só estou esperando a Caixa Econômica ligar. Não vejo a hora de ir com meus 5 filhos para minha casa,” afirma Regineide. Os moradores da ocupação têm uma relação estreita com o movimento — 75% participam das atividades motivados pela necessidade de obter informações sobre o próprio movimento e sobre o direito à moradia (Gráfico 1). Os moradores afirmaram recorrer à justiça em casos que envolvem questões trabalhistas ou vara de família — pensão alimentícia. Quanto às formas de lazer, 48,15% dos responsáveis pelo domicílio declaram terem ido ao cinema; e 40,74% já foram ao teatro pelo menos uma vez. Quando perguntados sobre as formas atuais de lazer 85,19% afirmaram não ter lazer; aparecendo 7,41% que jogam futebol e 3,70% frequentam a igreja (Gráfico 2).

Gráfico 2 - Forma de Lazer

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Quilombo Paraíso (Pirajá) Foto: Cezar Miranda

A Ocupação Quilombo Paraíso localizase atrás do Hospital do Subúrbio, com acesso pela Rua Sílvio Araújo (em Periperi), no Bairro de Pirajá (a ocupação situa-se em uma região limítrofe dos dois bairros) (Figuras 1 e 2). É uma das ocupações mais recentes, teve início em junho de 2010. Hoje, vivem 320 famílias e cerca de 1280 pessoas. Rita de Cássia Ferreira dos Santos, uma das lideranças da ocupação, fala do significado da luta pela moradia no Quilombo Paraíso: “antes de vir morar aqui eu tinha uma visão totalmente diferente das ocupações. Eu pensava que só morava ladrão. Fui convidada por Cida para ocupar, aqui, junto com ela. Mas eu tenho casa. Vim para ajudar na organização da ocupação. Fui me envolvendo com o movimento, com as pessoas e aí eu fui ficando, fui ficando, estou aqui até hoje. Eu fiquei por um ideFigura 1: Ocupação Quilombo Paraíso

al, que é a luta, para ajudar a conquistar a moradia para quem não tem condições. Na ocupação ninguém pode pagar nada. Moravam na rua, de aluguel e não tinham como pagar.” A maior parte dos responsáveis pelos

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Quilombo Paraíso – Bairro Pirajá Coordenadas X: 558.968,71 e Y: 8.577.533,33

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

2010 Rua Silvio Araujo, Pirajá Terreno 320 1280 3,64 20 a 39 anos 54,27% negro 97,78% não concluíram o ensino médio R$ 74,91 R$ 20,55 Contribui com 83,24% da renda total Mecânico, ajudantes de obra civil, pintores 87,30% dos moradores não possuem carteira assinada Rita de Cássia Ferreira dos Santos; Valter Almeida de Jesus Filho (Malhado) MSTB

domicílios na Ocupação Quilombo Paraíso é originária da cidade do Salvador, representando 94,12% dos entrevistados. Dentre esses, 97,78% não concluíram o ensino médio. As principais atividades desenvolvidas pelos moradores são de mecânico, ajudantes de obra civil e pintores. Para Rita “a vida na ocupação é normal, como uma vida qualquer. Só que as condições são bem precárias. Não tem saneamento básico, mas para quem não tem onde morar, um canto é muito. Direito a moradia é ter a casa, é ter escola, saúde, creche e lazer.” Preocupada com as condições educacionais para a população pobre, afirma “O rico tem direito a tudo. Tinha que ter uma lei que obrigasse o político a colocar os fi-

Ocupações

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Foto: Suely Ribeiro

Figura 3: Ocupação Quilombo Paraíso

lhos em escola pública, assim a gente ia ter uma educação boa de verdade.” O tamanho médio da família na Ocupação Quilombo Paraíso é de 3,64 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). E torno de 87,30% dos responsáveis pelos domicílios não possuem carteira assinada. Cerca de 48,89% dos atuais moradores da Ocupação Quilombo Paraíso residiram em casas alugadas e a média da renda mensal por domicílio dos moradores é de R$ 74,91, sendo a renda per capita de R$ 20,55%, uma das menores dentre as ocupações e o programa bolsa-auxílio contribui com 83,24% da renda total, um dos maiores dentre as ocupações. Gráfico 1 - Tipologia Construtiva

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Os integrantes da Ocupação Quilombo Paraíso residem em unidades unifamiliares, sendo que 71,11% destas contam com apenas um cômodo e 86,67% tem apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de lona, plástico e mistura de vários materiais sendo uma das ocupações em condições mais precárias (Gráfico 1). Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que nenhum morador tem ponto de água canalizada no domicílio e a população se abastece em mananciais existentes no entorno da ocupação. Os domicílios não têm as mínimas condições de abrigar os moradores, dispondo apenas de ponto de luz. As doenças mais frequentes registradas na Ocupação Quilombo Paraíso são tuberculose, anemia e pressão alta. Ser líder é estressante, afirma Rita, “tem gente de todo jeito. Você tem que ser calma e inteligente, não é para qualquer um. Tem problema de briga de família, problema com a luz, com a água, com morador que acha que é dono. De qualquer modo, eu me sinto honrada em ser coordenadora, pois de cinco coordenadores eu sou a única mulher e sou respeitada por conseguir fazer o meu trabalho.” Quando se reporta à abrangência do Movimento, Rita afirma: “o Movimento luta pela ocupação e pela comunidade toda. Esse seria, na verdade, o papel do Estado. O Movimento luta pela moradia mas não só pela moradia, luta pela escola e por tudo que a gente

Foto: Suely Ribeiro

precisa. No pensamento do povo nós somos bandidos, traficantes. Nós queremos provar à comunidade que a gente é ser humano.” Em relação ao direito à cidade, Rita afirma: “Salvador não é de todos nós, porque o pobre não tem direito a nada.” De forma indireta ela explicita o caráter de classe do Estado: “o que está faltando é união. O Estado, quando quer derrubar o pobre, eles se unem, se articulam, dão o bote e depois se separam.” As classes populares, por sua vez, são desarticuladas: “Nós não agimos assim, precisamos nos unir para conseguir as coisas. Salvador é uma cidade injusta, porque falta tudo, saúde, escola, moradia. O Movimento me ajudou muito. Todos os movimentos sociais têm que unir as pessoas por uma causa justa. Quando os professores foram à luta, eu falei com Pedro Cardoso: vamos também, eles são os professores dos nossos filhos. Se a gente fizer isto o Estado não vai ter força contra a gente. Quando conseguirmos fazer a cabeça de um, de outro, quando isto acontecer, acabou!” Para 75,56% dos entrevistados, morar na ocupação melhorou a sua condição de vida e isso está diretamente relacionado com o fato de não mais pagarem aluguel ou não mais morarem “de favor” (Gráfico 2). Em relação à estratificação socioespacial, Rita afirma: “Salvador é dividida em duas. A dos ricos e a dos pobres. Na televisão só mostra a do rico. Segundo os poderosos, o pobre

mora na favela, o que não é verdade, eles estão em toda parte. Só que eles escondem, o pobre está em todos os lugares. Eles vão pegar os pobres na copa e vão jogar para longe. Lá no CIA, eles pensam neles e não nos pobres. A Copa não beneficia os pobres!”

Figura 4: Fogão na Ocupação Quilombo Paraíso

Gráfico 2 — Melhoria de Vida Após a Vinda para a Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Foto: Roseli Afonso

Lagoa da Paixão (Valéria)

Figura 1: Ocupação Lagoa da Paixão

A Ocupação Lagoa da Paixão localiza-se no entorno da Lagoa da Paixão, próximo à área do projeto Village da Lagoa, no Bairro de Valéria (Figuras 1 e 2). Tem aproximadamente 910 famílias e 3640 pessoas. Em torno de 55,02% dos responsáveis pelos domicílios é originária da cidade do Salvador (Gráfico 1). Dentre esses, 84,81% não concluíram o ensino médio e 8,10% nunca estudaram. O tamanho médio da família na Ocupação Lagoa da Paixão é de 5,30 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por mulheres (53,02%), negros, em torno de 56,80%, e jovens, com 32,83%, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 97% deles não possuem carteira assinada. Os moradores desenvolvem atividades de catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos, biscateiros, lavadores de roupa e carro. “Aqui tem muita gente que trabalha com reciclagem, outros não têm ocupação e outros vivem do Bolsa Família. Uma boa parte dos moradores está trabalhando na construção das novas moradias, Foguinho conseguiu negociar”, afirma Tâmara Graziele Ezequiel, uma das líderes da ocupação. Edmilton Nascimento da Silva (Foguinho) reafirma: “Estão trabalhando na obra em torno de 60 pessoas e vai ter casa para todos os moradores da ocupação. A gente não vai parar de lutar, nós queremos muito mais, Início da ocupação 2006 queremos saúde, queremos escola.” Em torno da Lagoa da Paixão, Localização Cerca de 50,61% dos atuais moradopróximo a área do Projeto Village da Lagoa res da Lagoa da Paixão residiam em casas Tipo de ocupação Terreno alugadas (Gráfico 2), enquanto 12,85% deNúmero estimado de famílias 910 les são provenientes de outras ocupações, Número estimado de pessoas 3640 como Vila Via Metrô, Tubarão, Toster/RibeiTamanho médio das famílias 5,30 ra e Cidade de Plástico. A média da renFaixa etária predominante 20 a 39 anos da mensal por domicílio dos moradores da Predominância étnica 56,80% negro Lagoa da Paixão é de R$ 347, 59 e a renEscolaridade média dos chefes 84,81% não concluíram o ensino da per capita é de R$ 65,57. O programa de família médio e 8,10 nunca estudaram bolsa-auxílio agrega R$ 8.143,00 na renRenda média R$ 347,59 da local, contribuindo com 9,41% da renRenda per capita R$ 65,57 da total que é de R$ 86.551,00.

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Lagoa da Paixão – Bairro de Valéria Coordenadas X: 560.090,10 e Y: 8.578.950,02

Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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Contribui com 9,41% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos, garçom, barmen, copeiro e mecânico 96,67% dos moradores não possuem carteira assinada Ademilton Nascimento da Silva (Foguinho) Tâmara Graziele Ezequiel dos Santos MSTB

Os integrantes da Ocupação Lagoa da Paixão residem em unidades unifamiliares, sendo que 49% destas contam com apenas um cômodo e 86,75% tem apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de madeira em 48,59% dos casos, e mista em 36,95%. Pelo menos 44,18% dos domicílios têm cozinha. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios,

constata-se que 79,12% não têm um ponto de água canalizada e usam a água da lagoa. Quanto à existência de sanitário, 31,58% dos entrevistados declararam ter sanitário e desses, 70,51% dispõem de pia, chuveiro, vaso sanitário. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 68,42% dos moradores, 97,04% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 57,83% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As cinco doenças mais frequentes registradas na Lagoa da Paixão são a gripe, a diarreia, as verminoses, a dengue e a infecção intestinal. Para Tâmara Graziele Ezequiel dos Santos o programa habitacional implementado pelo governo não chega exatamente a ser satisfatório: “não por falta de condições, mas pela falta de vontade resolver o problema. Eles querem, na verdade, é encher o próprio bolso e pronto! A construção das 1000 moradias começou há 6 meses. É uma vitória você conseguir a moradia e ela ser construída no local onde você já está ocupando. É uma vitória, porque, quando você está em uma ocupação e é colocada em outro lugar você não tem a garantia do que vai acontecer. Eles falam: você vai sair, nós vamos construir e depois vocês voltam, mas na verdade você não sabe se vai voltar. É ruim você sair de um lugar onde já tem uma história de luta. Eles tiram você dali e colocam em lugares bem distantes de tudo, não tem nada perto, escola, posto, saúde, nada.” Segundo opinião dos moradores, os bairros de Fazenda Coutos, Paripe e Valéria foram apontados entre preferidos para morar, caso tenham a possibilidade de escolha — o que reafirma o desejo de manter-se próximo à ocupação. A exemplo de muitos dos moradores, Tâmara Graziele se preocupa com o pagamento dos encargos com a nova moradia. Tem muita gente que não tem condições para pagar o valor da taxa que o Estado estipulou no Programa Minha Casa Minha Vida. Eu mesma estou desempregada, meu companheiro também, a gente está empurrando... O que será quando a gente tiver que pagar pela luz e pela água? A gente não pode ser expulso. Tem uma vizinha que ganha R$ 70,00 do Bolsa Família. Com esse dinheiro ela compra comida. Quando o gás falta, ela não come. E ai, ela vai ter condições de pagar? Eu acho um absurdo esta cobrança pelo imóvel e ainda tem que pagar luz e água. Imagina pagar R$ 50,00 de mensalidade, para quem ganha R$70,0. Vai ter que passar o mês com R$20,00 — não dá para nada.” Para Tâmara Graziele, o direito à moradia pode ser compreendido como uma “troca”. “A gente paga imposto, então, esse dinheiro é para ser investido em nós mesmos. Eles têm a obrigação de nos dar moradia, lazer e saúde.” Para ela “ser liderança é lutar pela melhora daqueles que precisam, é ser militante, é lidar com o povo, que sofre demais. O poder público não liga para o pobre. Não é digno morar nas condições que moramos nas ocupações.”

Gráfico 1 - Local de Origem dos Responsáveis por Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 - Situação de Moradia antes da Ocupação

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Pelo menos, 65,46% dos entrevistados declararam participar ativamente do movimento de luta por moradia, sendo a principal motivação a necessidade de ter que lutar para conseguir a casa própria — em torno de 85,75% (Gráfico 3).

Gráfico 3 - Motivação para Participar do Movimento de Luta por Moradia

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Foto: Roseli Afonso

A convivência com a violência, particularmente a originária da polícia é marcante na declaração de uma moradora. “É muito difícil lutar contra a violência, é muito difícil bater de frente, porque é um risco para sua vida. Aí a gente tenta fazer vista grossa. A polícia, às vezes é boa, porque pega bandidos, mas outras vezes é ruim, porque eles acham que todos são bandidos e querem bater em todo mundo. Essa semana mesmo, eles vieram aqui, xingando, com a maior falta de respeito, porque nós somos mais fracos, pobres. Às vezes, o tráfico nos protege mais do que a polícia. Uma vez a polícia quase atropela uma criança, se a mãe não corre, a criança estava morta. Um dia eles pegaram um rapaz aqui, que era inocente, e levaram. A ocupação inteira foi para a delegacia, para tirar o rapaz. Depois de muita luta, eles soltaram. O rapaz estava todo machucado de pancada. O tráfico é ruim, é prejudicial, mais eles não trazem mal para a gente como a polícia traz. Uma vez, roubaram a televisão de uma moradora. O pessoal do tráfico veio e falou: ‘vamos achar sua televisão, minha tia. Aqui dentro não pode ter ladrão’. Eles vão, acham e devolvem. Eles acabam sendo a segurança da ocupação.” A ação inadequada do Estado ou a sua ausência, cria situações de medo e expõe os moradores a situações permanentes de violência. Outra forma de violência que aparece de forma muito marcante na vida da ocupação é a que envolve a relação familiar. “Aqui tem muita briga de família”, afirma uma moradora: “marido bate na mulher o tempo todo. Como a polícia não pode vir aqui na ocupação, então os maridos descem o pau e elas não dão queixa com medo de trazer um mal maior para elas. Elas apanham, se drogam. Elas são tão novas e bonitas, para quer fazer isto?!? Eu não entendo porque elas fazem isso.” Foguinho, de forma veemente, fala do significado da condição de líder em uma ocupação: “Pra ser líder o cara deve estar na ocupação toda hora, para ver o que eles estão precisando. Tem que ter o compromisso de união, ter garra, porque nós não temos nada e tudo de ruim que acontece cai para cima da ocupação. Aqui só tem sangue vermelho, os sangue azuis já saíram. Sangue azul são aqueles que já tinham casa e só estavam aqui para espiar e para atrapalhar, os sangue vermelho são aqueles que realmente precisam da casa. Ser líder é estar unido com todos ao mesmo tempo, a liderança é a comunidade. A conquista das 1000 casas foi assim: se a gente tivesse fi-

Figura 3: Ocupação Lagoa da Paixão

174 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

cado parado a gente não tinha nada. A gente fez uma manifestação há dois anos atrás, fomos até a governadoria, mostramos a comunidade, mostramos que aqui tem criança, idosos e deficientes. A gente lembrou ao governo: aqui todos votam.” “Eu morei na Boca do Rio”, afirma ele. “O Estado tirou a gente de lá para construir um condomínio de luxo. Jogou a gente aqui, sem nada, simplesmente jogou. Como se fosse assim: vamos tirar esses negrinhos daqui e jogar no Subúrbio que é o lugar deles. Eu sou revoltado e é por isto que eu estou aqui, agora, lutando por essas pessoas e mostrando para o Estado como é uma comunidade bem organizada. Aqui, estamos acompanhando a construção das casas, nós estamos de olho, querendo saber quando termina, se vai ter greve, nós estamos sempre perto, de olho neles. Não tem casa para todos. Não sei o que vou fazer com os moradores que chegaram depois. E também a gente não quer só a casa. A gente quer uma cooperativa de reciclagem, saúde, escola. A gente precisa de renda, porque sem renda não tem como pagar a casa. Quando foi para construir as casas, eu falei para eles: vocês podem ter o pessoal de vocês capacitado. Mas na ocupação também tem. Nós temos pedreiro, carpinteiro, açougueiro e nós queremos trabalhar na construção das casas. Graças a Deus nós conseguimos, tem trabalhadores da ocupação na obra das casas. Também conseguimos escola para as nossas crianças. Fizemos um acordo, um pacto com a Secretaria de Educação de que as escolas ao redor recebessem nossas crianças. Mas, nós ainda precisamos de uma creche, de atendimento de saúde aqui na comunidade.” A possibilidade do trabalho cria a expectativa de ser possível manter a casa: “Com esta comunidade vai ser diferente. Nós não queremos só a casa, nós queremos também escola, geração de renda, creche, lazer. E quero deixar bem claro, nós não vamos descansar enquanto não conseguirmos o que queremos. Eu tenho escolaridade, mas tem gente que não tem. Aqui nós formamos ambientalistas para fazer coleta de lixo, para melhorar o saneamento, para a nossa ocupação ficar limpa. Depois das construções, vamos manter tudo organizado. Não vai acontecer como aconteceu lá em cima, que venderam as casas que receberam. Aqui vai ter geração de renda, para que eles possam ter a sua casa e manter. A maioria das pessoas aqui, antes, não tinha documento, eram pessoas tristes, jogadas. Hoje, elas têm documentos, têm vida, têm alegria e eu pergunto sempre: tem comida? Tem problema? E sempre que eu posso, eu ajudo.”

Via do Bronze (Moradas da Lagoa) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Via do Bronze localiza-se, no Bairro Moradas da Lagoa (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem 129 famílias e cerca de 516 pessoas. A maior parte dos responsáveis por domicílio na Via do Bronze é originária da cidade do Salvador, representando 41,46% dos responsáveis pelos domicílios, sendo expressivo o percentual dos moradores originários do interior do estado — 45,12% (Gráfico 1). Dentre esses, 78,75% não concluíram o ensino médio e 7,50% nunca estudaram. Os moradores desenvolvem atividades de catadores de material reciclável, vendedores ambulantes, empregados domésticos, encanadores, marceneiros e biscateiros. O tamanho médio da família na Ocupação Via do Bronze é de 2,65 pessoas por domicíFigura 1: Ocupação Via do Bronze

lio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros e jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 89,40% deles não possuem carteira assinada. “Eu vim morar na ocupação, porque eu tenho 53 anos e não tenho condições de comprar uma casa”, afirma Goldivino Faria. “Uma casa custa sessenta a setenta mil. Se eu vender um caminhão eu só consigo 30 mil, como eu vou comprar uma casa? Eu vim de São Paulo há sete anos, pagava R$ 300,00 reais de aluguel. Saí do aluguel e montei

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Via do Bronze – Bairro da Moradas da Lagoa Coordenadas X: 559.687,93 e Y: 8.579.763,01

Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

2007 Via Bronze, Moradas da Lagoa Terreno 129 516 2,65 20 a 39 anos 50,23% negros 78,75% não concluíram o ensino médio e 7,50% nunca estudaram R$ 410,84 R$ 155,25 Contribui com 6,00% da renda total Vendedores ambulantes, empregados domésticos, catadores de material reciclável, biscateiros, trabalhadores de edificações (construção civil) e marceneiros 89,40% dos moradores não possuem carteira assinada Ailton Oliveira Evangelista (in memoriam) e Goldivino Faria MSTS

este “movimento” aqui, uma borracharia, para meus meninos. A gente está na beira da rodovia, e todo dia aparecia um carro com o pneu furado. Com sacrifício, comprei material fiado e coloquei meus filhos para trabalhar e estudar, porque tem meninos de 12 e 13 anos servindo o tráfico.” Cerca de 45,12% dos atuais moradores da ocupação Via do Bronze residiram em casas alugadas, enquanto 6,10% deles são provenientes de outras ocupações, como Cidade de Plástico, Tubarão e Lagoa da Paixão. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Via do Bronze é de R$ 410,84 e a renda per capita é de R$ 155,25. O programa bolsa-auxílio contribui com 6% da renda total.

Ocupações

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Gráfico 1 - Distribuição dos Moradores por Cidade de Origem

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Os integrantes da Ocupação Via do Bronze residem em unidades unifamiliares, sendo que 56,10% destas contam com apenas um cômodo e 92,68% têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, com 67,07% dos casos e de madeira, com 29,27%. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 78,05% têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio. Quanto à existência de sanitário, 40,24% dos entrevistados declararam ter sanitário e dispor de pia, chuveiro, vaso sanitário ou esgoto encanado. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 31,71% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na Ocupação Via do Bron-

ze são: a gripe, verminose, diarreia, dengue e as infecções nos olhos. Para a maioria dos moradores, em torno de 92,56%, a ocupação não oferece lugar para lazer — no conjunto dos moradores destaca-se a declaração de que os mesmos não têm lazer. Dentre as formas de lazer mais citadas, destacam-se a praia e ouvir música. Dois moradores declararam o cinema e o teatro como forma de lazer (Gráfico 2). Esses dados se confirmam quando se pergunta sobre a possibilidade de acesso e o grau de satisfação a equipamentos e a serviços em Salvador e se constata que o acesso ao cinema e teatro está disponível a um percentual pouco expressivo da população (Gráfico 3). “Viver na ocupação é tranquilo”, afirma Goldivino, apesar de suas considerações não sugerirem exatamente isso. “Eu me dou com todo mundo. Mas a gente não tem saneamento básico (eu que fiz uma fossa), não temos água encanada. O movimento já colocou água, luz e esgoto em muita ocupação. A gente quer colocar a luz e água aqui também.” Em relação à convivência com a violência, ele afirma: “Outro dia a policial da 8ª nos elogiou dizendo que aqui quase que não tem ocorrência policial. A gente só trabalha, não se envolve com nada. Graças a Deus, aqui só teve o caso de Ailton e de um cara que tinha uma dívida de tráfico. Deram uma marretada na cabeça dele, só isto.” À medida que ele vai falando a situação de insegurança na ocupação se apresenta de forma mais clara.

Gráfico 2 - Formas de Lazer

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Gráfico 3 - Satisfação e Acesso a Oportunidades, Bens e Serviços

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

“Eu já levei três tiros, por causa de uma briga com um cara. Ele estava passando correndo com uma moto, podendo atropelar uma criança. Fui pedir para ele não correr ele tirou uma pistola, eu segurei na mão dele e ele atirou.” E finalmente ele diz: “Depois das 7 horas da noite ninguém sai de casa.” O direito à moradia é o direito que todo cidadão tem, qualquer cidadão, afirma ele. “Mas eu não tenho como financiar uma casa, comprar uma casa. Eles pedem renda própria e eu sou autônomo. Hoje eu ganho, amanhã eu não sei. Todo cidadão tem direito à moradia e como o governo fala, todos queremos sair da informalidade e todos têm direito de ter uma casa digna. Eu estou me dando bem em Salvador, eu só dou nota ruim na saúde e na educação, porque é ruim, não presta, não ensina.

Salvador não é igual para todos. O cara que tem poder aquisitivo tem poder para pagar uma escola boa, saúde boa. Eu não tenho como bancar nada disso e na escola, como mostrou no Fantástico, o ensino é péssimo. Para alfabetizar meus filhos, eu tive que comprar uma lousa e uma caixa de giz — ajudei meu filho a aprender a ler. Em Salvador, eu dou 4 para educação e 4,5 para a saúde. Eu sou de Mato Grosso, depois fui para São Paulo. Igual a São Paulo não tem. Não estou falando mal da Bahia, mas a educação aqui é péssima.” Na verdade, “eu não sou líder”, afirma Goldivino. “Mas eu acho que ser líder é ter autoridade perante as autoridades para reivindicar melhoras para comunidade e também atender as reivindicações da comunidade.” Aqui tinham coordenadores, quando mataram um dos líderes daqui os outros foram embora, com medo de também morrer. Juvenal e Jorge venderam tudo e foram embora, mas agora estão voltando. Aqui era lugar de jogar gente morta. Fui tentando arrumar, mas aqui não tem união. Aqui é cada um por si e Deus por todos.

Ocupações

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Gal Costa (São Rafael) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Gal Costa localiza-se na Av. Gal Costa no Bairro São Rafael (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem 200 famílias e cerca de 800 pessoas. A maior parte dos responsáveis por domicílio da Gal Costa é originária da cidade do Salvador, representando 50% dos moradores. Os demais vieram do interior do estado, 39,47%, com destaque para o município de Feira de Santana (Gráfico 1). “Antes, bandidos usavam este terreno para desova, quando a gente veio para cá isso acabou”, afirma Marcelo José Barbosa. “Foi Everaldo quem encontrou o terreno. Aqui se divide em três partes: a área do TRT, do DNOCS e da EMBASA. O movimento começou no Km 12, éramos um grupo só. Com a divergência, Figura 1: Ocupação Gal Costa

com o racha e o surgimento do MSTB e MSTS, as pessoas se dividiram. Mas nós somos um movimento livre, quando a gente tem que aplaudir o governo, nós aplaudimos, quando temos que criticar a gente critica. Hoje nós temos uma mesa de negociação com o Governo onde as coisas estão sendo resolvidas, entre aspas, é melhor que se diga.”

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Gal Costa – Bairro São Rafael Coordenadas X: 562.832,55 e Y: 8.569.800,05

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

178 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

2007 Av. Gal Costa - São Rafael Terreno 200 800 6,03 20 a 39 anos 54,28% negros 85,53% não concluíram o ensino médio e 9,21% nunca estudaram R$ 343,33 R$ 56,97 Contribui com 11,21% da renda total Serviços domésticos em geral; trabalhadores nos serviços de manutenção de edificações; vendedores; porteiros e vigias; cozinheiros 94,30% dos moradores não possuem carteira assinada Marcelo José Barbosa MSTB

Em torno de 85,53% dos moradores da Ocupação Gal Costa não concluíram o ensino médio e 9,21% nunca estudaram. Hoje, apenas 6,58% ainda estudam. Dentre os moradores, 94,30% não têm carteira de trabalho e desenvolvem atividades relacionadas a serviços domésticos em geral; serviços de manutenção de edificações, recicladores, vendedores, porteiros, vigias e cozinheiros. “As pessoas que moram aqui trabalham em construção civil, reciclagem e atividade doméstica — a maioria trabalha no Bosque Imperial”, afirma Marcelo. O tamanho médio da família na Ocupação Gal Costa é de 6,03 pessoas por domicílio (maior que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros, com 54,82%, jovens; na faixa etária de 20 a 39 anos, com 35,40%; em torno de 49,33% são católicos; 57,34% possuem CPF e 65,79% têm registro de identidade. Cerca de 40% dos atuais moradores da Ocupação Gal Costa residiram em

casas alugadas e 92,11% têm na Gal Costa sua primeira experiência em ocupação. Estes vieram das regiões de Sussuarana, Nova Sussuarana, Bairro da Paz, Pernambués ou São Marcos. Pelo menos, 65,79% dos responsáveis por família estão cadastrados em algum programa de habitação há cerca de 1 ano (59,21%). A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Gal Costa é de R$ 343,33 e a renda per capita é de R$ 56,97. O programa bolsa-auxílio integra e contribui com 11,21% da renda total (Gráfico 2). Os integrantes da Ocupação Gal Costa residem em unidades unifamiliares, sendo que 77% destas contam com, no máximo, dois cômodos e 86,84% têm apenas um cômodo como dormitório (Gráfico 3). As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, com 60,53%; e de madeira, com 18,42%. Em torno de 76,32% são equipados com TV; 53,95% têm geladeira; 82,89% têm fogão e 63,16% dos moradores possuem pelo menos um aparelho de celular, entretanto 52,63% não têm cozinha. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 71,05% têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio. Em torno de 40% dos entrevistados declararam ter sanitário (coletivo ou individual) sendo que 33,33% destes não têm pia, chuveiro, vaso sanitário — muitos dos imóveis canalizam as águas servidas para fossa no terreno. Dentre os que declararam não possuir sanitário, ou seja, 60% dos entrevistados, 95,65% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 53,95% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo.As cinco doenças mais frequentes registradas na ocupação Gal Costa são a gripe, a diarreia, as verminoses, infecção intestinal e leishmaniose. Em relação às questões de segurança, Marcelo reporta-nos, mais uma vez, a relação de conflito com a polícia. “Aqui nós resolvemos vários problemas, briga de marido e mulher, de vizinhos, além de problema de invasão de polícia. A polícia é a principal invasora. E fazem isso sem mandado de segurança, invadindo os barracos. Eles falam que para Sem Teto não precisa de mandado. Mete o pé na porta e pronto! Uma vez, a polícia entrou aqui de noite — foi uma madrugada de terror. Eles invadiam e algemavam as pessoas. Eu estava dentro do meu barraco e quando saí várias pessoas estavam algemadas. Eu fui falar que não podiam fazer isto e aí me algemaram na frente das mi-

Gráfico 1 - Origem dos Responsáveis por Domicílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

nhas filhas e me levaram para fora da ocupação. Eu perguntei quem estava no comando, aí, um senhor se apresentou e perguntou quem eu era. Eu disse que era coordenador estadual dos Sem Teto e ele então ele falou: é você mesmo que eu estava procurando. Coordenador de Sem Teto é tudo ladrão! As esposas dos coordenadores são treinadas, para os momentos perigosos como esse. No momento em que eu estava sendo conduzido para delegacia, ela já estava ligando para a asses-

Gráfico 2 - Renda Total e Bolsa-Auxílio

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 3 - Quantidade de Cômodos

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Ocupações

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Foto: Roseli Afonso

soria jurídica do movimento. Imagine um pobre, preto sendo levado para delegacia?! Eu já estava sendo autuado como chefe do tráfico e responsável por homicídios, imagine o que eles não iam fazer. Eu pedi para fazer a ligação que eu tenho direito e eles disseram que ali eu só fazia o que eles quisessem, e que eu não tinha direito a nada. Eu não sabia que Iury, o advogado do movimento, já estava lá fora. Aí, foi uma correria: “tira a algema dele...” Me chamaram e começaram a dizer que, na verdade, não nos prenderam, que só tinham nos autuado para averiguação. Eles disseram: ‘Como nada consta, eu vou lhe dar um conselho: saia dali. ’ Iury perguntou: então: qual é a acusação contra o meu cliente? Eles falaram: nada não Dr. E não fizemos nada. Eu falei: eles fizeram sim, eles me maltrataram, arrombaram minha casa e me algemaram. Iury conversou com os policiais e todos foram soltos — eu cheguei na ocupação como herói.” A Ocupação Gal Costa tem várias coordenadoras Guerrei-

Figura 3: Ocupação Gal Costa

180 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

ras Sem Teto, como Fernanda Barbosa, Vânia Santos, Vânia Souza, Genilda Conceição, Maria Amada, Regina Reis, Patrícia Souza, Priscila Teixeira, Rita Lima e Ana Lúcia, que coordenam áreas específicas dentro da ocupação e tem Marcelo como coordenador geral. Como afirma Marcelo José Barbosa, a área é muito grande e “com essa estrutura mais coletiva não se concentra o poder em uma só pessoa. O coordenador local é quem ordena as coisas no dia a dia da ocupação. Eu sou coordenador estadual e local porque moro aqui. Estou aqui há quatro anos, desde 02 de julho de 2007. Aqui, nós respeitamos o coletivo e, às vezes, eu sou voto vencido.” Em relação às possibilidades de mudança para as casas do Programa Minha Casa Minha Vida, o sentimento é ambíguo nos moradores da Gal Costa. Dona Maria, uma das coordenadoras locais afirma: Eu não tenho como ir para onde as casas estão sendo construídas, porque meu comércio está aqui e lá não sei como me sustentar. Eu só tenho aposentadoria e vou pagar 51 reais, fora luz, água. No começo, não pagava nada e agora que a Caixa Econômica entrou, vamos ter que pagar. Mas, na justa razão, não era para pagar nada. Nós estamos sendo desapropriados. Vieram vários políticos aqui, fizeram discursos, mas não estão cumprindo nada do que era para fazer. Os prédios estão demorando. Se eles não adiantarem, a juíza pode tirar a gente daqui. Tem várias pessoas nessa situação. Só vão para as casas, os que estão sofrendo a reintegração de posse, que são 80, o resto, os 120, são pessoas do Subúrbio.” Para Marcelo a “cidade de Salvador foi mal estruturada. Você tem que pensar na cidade com um todo, que tem que ter saúde e educação. Foi uma luta para conseguir ser atendido aqui no posto de saúde, porque eles diziam que a gente não tinha endereço e CEP. Nós somos discriminados. Agora, depois de brigar, nós vamos ser atendidos. O pessoal pra onde a gente vai, está se mobilizando porque não querem Sem Teto perto deles. Fizeram até um panfleto. Eles acham que na ocupação só tem marginal. Violência tem em todos os lugares. Quando a gente vai atrás de emprego e diz onde mora, as portas se fecham, e tudo que acontece de ruim no bairro é culpa da gente.”

Recanto dos Cajueiros (Mata Escura) Foto: José Raimundo Souza

A Ocupação Recanto dos Cajueiros localiza-se na Rua Vale do Bosque, Mata Escura (Figura 1). Hoje, vivem 82 famílias e cerca de 328 pessoas. A maior parte dos responsáveis por domicílio da Ocupação Recanto dos Cajueiros é originária da cidade do Salvador, representando 66,67%, sendo que muitos vieram de bairros dos arredores da ocupação, como de Mata Escura, Beiru/Tancredo Neves, Jardim Santo Inácio ou Sussuarana. A ocupação data de 2007, segundo José Raimundo Souza, líder da ocupação, “Quando as pessoas ocuparam o terreno, eles foram escarreiradas por Pedro do Boi, que atirou em todo mundo. Ele vendia frutas, ali, na sinaleira. Era aposentado da aeronáutica e chamaram ele para trabalhar na penitenciária, como agente penitenciário. Tinha uma área que ia da sinalei-

Figura 1: Ocupação Recanto dos Cajueiros

Início da ocupação

ra de Mata Escura até a Brasilgás, que era da penitenciária e colocaram ele pra morar e tomar conta do terreno. Era uma fazenda, o proprietário tinha uma dívida e o Estado tomou. Ele trabalhava na Penitenciária, morava lá e tomava conta da área. Ele começou a criar boi e por isto o apelido dele ficou Pedro do Boi. Foi quando ele começou a vender a parte do terreno que dava para a Avenida Dom Avelar Vilela, ele vendeu, loteou os vários terrenos. Aí fomos pra cima dele. No começo, tinham 48 famílias e chegamos a 189. Na época do cadastro, chegamos a 250.”

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Recanto dos Cajueiros – Bairro da Mata Escura Coordenadas X: 559.239,65 e Y: 8.570.102,15

Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças

Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

2007 Rua Vale do Bosque, Mata Escura Terreno 82 328 4,24 20 a 39 anos 51,63% negros 75,55% não concluíram o ensino médio e 6,67% nunca estudaram R$ 523,64 R$ 123,37 Contribui com 8,72% da renda total Serviços de manutenção de edificações; trabalhadores dos serviços domésticos em geral; trabalhadores nos serviços de embelezamento e higiene; pintores de obras e revestidores de interiores ajudantes de obras civis 92,16% dos moradores não possuem carteira assinada José Raimundo Souza Silvanise da Costa Alves Silvia Maria dos Santos (in memoriam) Valdir Almeida Santos MSTB

O tamanho médio da família da ocupação Recanto dos Cajueiros é de 4,24 pessoas por domicílio (praticamente a mesma média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26). O núcleo familiar é composto, em sua maioria, por negros, em torno de 51,63%; e 43,14% mestiços; jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos, com 49,87% e católicos com 50%. Em torno de 75,55% dos moradores não concluíram o ensino médio ou porque tiveram que ir cedo ao mercado de trabalho para ajudar no sustento da família (25%), ou por terem constituído família e assim não conseguiram compatibilizar o estudo com as obrigações familiares (38,89%). O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 92,16% deles não possuem carteira assinada. Desenvolvem atividades de empregados domésticos, em obras civis como pintor ou ajudante ou lidam com o mercado de salão de beleza. “Eu cheguei à ocupação através da filha de uma ex-companheira, que já tinha um pedaço de terra lá”, afirma

Ocupações

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Foto: José Raimundo Souza

Figura 3: Ocupação Recanto dos Cajueiros

Raimundo: “um dia, como hoje, ela me chamou pra conhecer o terreno e fomos lá... Quando chegamos, perguntei a dona Ló, se tinha algum terreno ou barraco que eu pudesse ocupar e ela passou um barraco pra mim por R$80,00 reais. No começo da conversa ela pediu R$100,00 reais, mas eu disse que só tinha R$80,00. Nessa época, o tráfico estava aqui dentro, todos armados com fuzil e rifle. Quando a gente chegava, tinha que falar quem era. Hoje, eu agradeço a Deus que isto acabou. Acabou também a venda de terreno. Muitas vezes eu deitava e pensava em desistir, mais eu falava pra mim mesmo: pense, pense em tudo que você já passou! Em 1973 eu trabalhei nas Óticas Teixeira, na Avenida Sete de Setembro. Em 1976 fiquei desempregado. Com várias profissões e conhecimento, eu me vi na rua, de favor. Eu vim da área rural para a área urbana em busca de uma vida melhor. Quando eu cheguei aqui, eu não suportei a forma como era oprimido pelo patrão. Eu ficava pensando: meu Deus o que eu vou fazer!?! Onde eu vou dormir e tomar meu banho? Eu não tinha condições de comprar um pão cacetinho, um copo de água. Em 1982, eu consegui trabalhar, graças a um bom Deus, eu refiz a minha vida,

Gráfico 1 — Existência de Unidade Sanitária

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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mas as sequelas ficaram. Qualquer um de nós pode passar por isso. Então, eu me pergunto: porque não lutar por estas pessoas, para que não venham a acontecer o que aconteceu comigo? A luta pela moradia é uma luta justa e uma obrigação de todos nós.” Cerca de 53,33% dos atuais moradores da Ocupação Recanto dos Cajueiros residiram em casas alugadas; 6,67% deles são provenientes de outras ocupações, como a do Calabetão ou de Sussuarana. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ocupação Recanto dos Cajueiros é de R$ 523,64 e a renda per capita é de R$ 123,37. O programa bolsa-auxílio contribui com 8,76% da renda total. Os integrantes da Ocupação Recanto dos Cajueiros residem em unidades unifamiliares, sendo que 46,67% destas contam com apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, com 71,11% dos casos e madeira, e 26,67% madeira; 40% delas não possuem nenhum tipo de cozinha (individual ou coletiva), porém têm acesso ao sanitário: ou individual, 66,67% ou coletivo, 2,22% (Gráfico 1). Quanto à existência de sanitário, 69% dos entrevistados declararam não possuir, apenas 3,23% dispõem de pia, chuveiro e vaso sanitário. Dentre os que declararam não possuir sanitário individual, ou seja, 33,33% dos entrevistados, 86,67% fazem uso do artifício do balão de fezes. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 73,33% têm pelo menos um ponto de água canalizada. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 22% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. Quando necessitam de atendimento médico, os moradores desta ocupação recorrem, principalmente a postos de saúde, cerca de 78,72%; e 24,44% alegam ter deixado de ser atendidos pelo fato de, na unidade de saúde na qual procuraram atendimento, não haver médico, enfermeira, agente comunitário, vaga ou mesmo equipamentos (Gráfico 2). As doenças mais frequentes na Ocupação Recanto dos Cajueiros são a gripe e verminoses. Raimundo destaca questões relativas à qualidade urbano-ambiental dos projetos construídos pelo Programa Minha Casa Minha Vida: “esse projeto não atende aos interesses da comunidade, não atende à moradia digna, porque não tem a escola, não tem posto de saúde — o campo de futebol, a nossa área comunitária, e a área de plantio comunitária, tudo foi tirado. Eu procurei a pessoa responsável pelo

Gráfico 2 - Falta de Atendimento nas Unidades Públicas de Saúde

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

só no pau. E os brasileiros só vão para o pau quando dói no bolso. Se todos os pobres, a massa, se reunir, governo, senado, Dilma, ninguém segura. Na Bahia, nós somos carneiros! É preciso muita pressão em cima do governo, só através da luta para conseguir o que precisamos. Temos que ter estratégia e sabedoria pra mostrar ao governo, à mídia, à sociedade que na ocupação nós temos pessoas que poderiam ser até escritor. O que eles dizem? Que aqui tem miseráveis, famintos, pobres, ladrões, vagabundos e traficantes. Eu não sou pardo, eu sou preto. Eu sou negro e tenho orgulho disso. Vá falar pra minha filha que ela é parda! Foto: José Raimundo Souza

projeto Minha Casa Minha Vida para conversar, mas eles foram empurrando este projeto garganta abaixo, ‘na tora’”. O projeto de Mata Escura foi empurrado goela abaixo, teve até ameaça: ou nós aceitávamos o que eles estavam querendo ou então a verba seria destinada para o interior (do Estado). Isso foi dito isto pela SEDUR. Esse projeto joga as famílias em verdadeiras fornalhas. O projeto inicial, destinado a 200 famílias (120 em apartamento e 80 era casa) tinha “verde”. A Caixa Econômica Federal e a SEDUR aparecerem com um novo projeto, dizendo que o anterior não valia mais, e que agora o que valia era o de uma nova construtora. Nesse novo projeto os pés de cajueiro desapareceram. Eu disse: vocês acabaram com o recanto dos cajueiros o que restou foi um abacaxi ou um pepino. Fizeram reajustes, uma, duas três vezes. Fizemos uma proposta de revisão com a comunidade e a UNEB e vamos ver como é que fica. Eu não acredito no projeto Minha Casa Minha Vida, não funciona.” A demanda em relação ao lazer é fundamentada na constatação ou reclamação de 60% dos moradores de que ocupação não possui espaço dedicado ao lazer — eles usam o campo de futebol ou a própria escola para práticas de esportes. A relação com o Estado é complicada, segundo Raimundo: “O interesse do governo é desarticular as lideranças. O governo busca dentro do movimento social, aquelas lideranças que não são honestas, e negocia.” Referindo-se ao processo de periferização ele afirma: “O governo, a própria burguesia, são perversos. O que eles querem sempre é nos distanciar deles, o mais que eles puderem. Eles nos empurram mais do que para a periferia. No decorrer dos anos, a própria periferia pode se transformar em um centro e então, de novo, eles passam a tirar a gente desses lugares. Eles nos empurram o mais que podem, a qualquer custo. Eles não querem plebeus perto deles — essa é a posição, a decisão do governo. Eles nos excluem, nos difamam, porque nós somos pessoas necessitadas, para eles não temos conhecimento e não temos valor. Salvador é fatiada para o empresário, para o capital, para a especulação, para a burguesia. É o capitalismo. É a injustiça. Se fala muito do artigo 6º da Constituição Federal, do direito a moradia mas, na realidade, eles só querem nos ludibriar. Para fazer valer o artigo 6º

Figura 4: Construção de Conjunto Habitacional pelo Projeto Minha Casa Minha Vida na Ocupação Recanto dos Cajueiros

Ocupações

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Ladeira Cajazeira (Cajazeiras VI) Foto: Roseli Afonso

A ocupação Ladeira Cajazeiras localiza-se na Rua São Paulo no Bairro de Cajazeiras VI (Figuras 1 e 2). Hoje, vivem 88 famílias e cerca de 352 pessoas. Amailde da Silva Peixe (Tota), coordenadora local, mora na ocupação desde o início em 2007. “Os moradores vieram de outros bairros da cidade e de uma maneira geral essa é a primeira ocupação deles.” A maior parte dos responsáveis pelos domicílios na Ladeira Cajazeiras é originária da cidade do Salvador, ou seja, 53,57%. E vieram de outros bairros como Beiru/Tancredo Neves, Cajazeiras VIII, Pau da Lima e Águas Claras e moravam “de favor” com familiares ou de aluguel (Gráfico 1). Figura 1: Ocupação Ladeira Cajazeiras

Prevalecem, nesta ocupação, homens, jovens na faixa etária de 20 a 39 anos, negros ou mestiços. Dentre os moradores 82,14% não concluíram o ensino médio e 10,71% nunca estudaram (Gráfico 2). O tamanho médio da família na Ocupação Ladeira Cajazeiras é de 3,82 pessoas por domicílio (menor que a média das demais ocupações pesquisadas, que é de 4,26).

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Ladeira Cajazeiras V – Bairro Cajazeiras VI Coordenadas X: 562.294,39 e Y: 8.574.501,92

Início da ocupação Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

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2007 Rua São Paulo, Cajazeiras VI Terreno 88 352 3,82 20 a 39 anos 52,63% negros 82,14% não concluíram o ensino médio e 10,71% nunca estudaram R$ 457,46 R$ 134,83 Contribui com 15,42% da renda total Serviço doméstico; ajudantes de obra civil; catadores de material reciclável 85,26% dos moradores não possuem carteira assinada Amailde da Silva Peixe (Tota); Edson Luis dos Santos (Bigode) MSTS

O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, o mercado informal, sendo que 85,26% deles não possuem carteira assinada — são trabalhadores autônomos, que desenvolvem atividades domésticas; ajudantes de obra civil; catadores de material reciclável. A média da renda mensal por domicílio dos moradores da Ladeira Cajazeiras é de R$ 457,46 e a renda per capita é de R$ 134,83. O programa bolsa-auxílio contribui com 15,42% da renda total. Quando associados, o preconceito racial e a condição de morador de uma ocupação terminam por aumentar as dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Tota, pondera: “Veja: quando você coloca no currículo que mora em uma invasão, ocupação ou em um bairro violento você já perde a oportunidade de emprego. Às vezes você tem chance, mais só por seu nome vir de onde vem, você perde oportunidade. É preconceito. Eu trabalho em um restaurante e pizzaria. Às vezes o povo oferece carona. Um dia eles falaram que não iam trazer a gente aqui porque aqui só tem marginal. Disseram isso na nossa cara. Deu vontade de dizer umas verdades, mas ficamos caladas”. Cerca de 89,29% dos atuais moradores

Gráfico 1 - Condição de Moradia Antes de Ocupar

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

da Ocupação Ladeira Cajazeiras têm nessa experiência sua primeira residência em uma ocupação. Os integrantes da Ocupação Ladeira Cajazeiras residem em unidades unifamiliares, sendo que 50% destas contam com apenas um cômodo e 85,71% têm apenas um cômodo como dormitório. As unidades domiciliares são predominantemente de material misto, com 53,57%; e em 25%, de bloco. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 64,29% têm pelo menos um ponto de água canalizada no domicílio, mas não têm acesso à rede de esgotamento sanitário. Quanto à existência de sanitário, 51,90% dos entrevistados declararam ter sanitário (individual ou coletivo). Dentre os que declararam não possuir sanitário, 85,71% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e apenas 3,57% dos domicílios pesquisados declararam ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na Ladeira Cajazeiras são a gripe, a diarreia, as verminoses, dengue e as infecções na pele/ couro cabeludo, além de queixas de febre e dor de cabeça. Para a grande maioria dos moradores, quando precisa de assistência médica, estes só contam com hospitais públicos ou postos de saúde. “Aqui tem usuário de droga, mas não tem boca de fumo nem ladrão”, afirma Tota: “Quando tem algum barulho, todos ajudam, e quando tem briga, todos se juntam para ajudar. A polícia, aqui, não vem. Ela até fala bem daqui. Eu trabalho em um restauran-

te e uns agentes falam muito bem daqui. Dizem: como é que tem um lugar desse e não tem violência.” Segundo Tota, “O Movimento de luta pela Moradia tem diminuído, e eu acho que o plano do governo é diminuir os Sem Teto. Se continuar do jeito que o governo está trabalhando, o movimento vai acabar, porque o governo está dando mais oportunidade aos que vivem no aluguel, de favor. O movimento também está sendo bom com o governo. Estão pedindo a Deus que este Plano continue. Agora, tem pessoas fazendo errado, porque estão vendendo as casas. O governo já disse que quem vender a casa não vai ter de novo, porque tem muita gente precisando e não pode ter. Eu vejo o governo como par-

Gráfico 2 - Distribuição da População Segundo Escolaridade

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

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Foto: Roseli Afonso

Figura 3: Ocupação Ladeira Cajazeira

ceiro do movimento.” Em relação à condição de liderança, ela afirma: “Eu me sinto respeitada e reconhecem meu trabalho, quando eu falo, todos acatam. Vamos todos para o mesmo lugar. Nós conversamos muito sobre isto. No começo queriam ir tirando a gente aos pouquinhos. Nós batemos muito na tecla e convencemos o governo que só sairemos todos juntos, porque nós já temos amor um pelo outro, se nos separar é como ‘tirar um pedaço do outro’.” Quanto à possibilidade de pagamento da nova casa ela afirma: “Para alguns vai ser tranquilo pagar, para outros não. Tem gente com mais filhos, desempregado, faz bico e não tem nada certo, mas isto é a minoria.” “Ser coordenadora é ter muita responsabilidade, é como se fosse ser mãe”, segundo Tota. “Cuidamos de cada família,

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quando adoece, quando falta um documento. Mas a minha preocupação maior é que cada um tenha seu cantinho. Nós já fomos inscritos no Minha Casa Minha Vida, já levamos a documentação na Caixa Econômica Federal e vamos para Boca da Mata.” Em relação à inserção na cidade, ela afirma: “Salvador está diminuindo, encolhendo. A cidade está pequena, a gente procura espaço e não encontra. Salvador é uma cidade desigual, os ricos moram nos bairros nobres e a gente mora na favela. Além disso, esse rio aqui, quem suja é o hospital. O rio é muito sofrido.”

Vila Nova Esperança (Cajazeiras VI) Foto: Roseli Afonso

A Ocupação Vila Nova Esperança localiza-se na Estrada do Matadouro, próxima à área remanescente da CONDER, no Bairro de Cajazeiras VI (Figuras 1 e 2). Hoje vivem na ocupação cerca de 200 famílias e 800 pessoas. A ocupação começou em 14 de abril de 2006, afirma Maremilda Araujo Cruz (Dona Daí). “As pessoas que moram aqui vieram do interior. São desempregados, não tem condições de pagar aluguel. São pessoas que precisam de apoio, desabrigadas da chuva, são excluídas da sociedade, que não sabem ler e escrever. Elas nos procuram e eu coloco aqui.” Destacase aqui o percentual dos que vieram do interior, com destaque para o município de Feira de Santana — apesar de Salvador isoladamente, ser o município com maior peso (Gráfico 1).

Figura 1: Ocupação Vila Nova Esperança

Início da ocupação

São, sobretudo, negros ou mestiços, que têm de 10 a 39 anos, declaradamente católicos ou evangélicos, sendo que 88,75% não concluíram o ensino médio e 1,25% nunca estudaram, e que têm em Vila Nova Esperança a primeira experiência de ocupação. Dona Daí tem 5 anos na ocupação. “Eu entrei aqui porque me comoveu ver a CONDER derrubando as

Localização Tipo de ocupação Número estimado de famílias Número estimado de pessoas Tamanho médio das famílias Faixa etária predominante Predominância étnica Escolaridade média dos chefes de família Renda média Renda per capita Bolsas-auxílio Principais atividades econômicas

Fonte: SEDHAM - PMS, 2006

Vila Nova Esperança – Bairro Cajazeiras VI Coordenadas X: 562.303,3 e Y: 8.574.729,06

Inserção no mercado de trabalho Principais lideranças Vínculo com o Movimento Social

Figura 2: Foto Aérea — Localização da Ocupação

2006 Estrada do Matadouro, Cajazeiras VI Terreno 200 800 6,83 10 a 39 anos 52,38% negros. 88,75% não concluíram o ensino médio e 1,25% nunca estudaram R$ 871,05 R$ 127,63 Contribui com 10,26% da renda total Manutenção de edificações; Trabalhadores dos serviços domésticos em geral; Cozinheiros; Trabalhadores nos serviços de embelezamento e higiene; Vendedores ambulantes 93,08% dos moradores não possuem carteira assinada Maremilda Araujo Cruz (Dona Daí) Independente

casas hoje, e os moradores levantando as casas no dia seguinte. Eu venho do Movimento em São Paulo e eu tomei isso aqui como uma briga. Graças a Deus estamos aqui. E as pessoas estão aqui por falta de oportunidade, essa é uma área de risco e as pessoas convivem com o lixo.” O tamanho médio da família na ocupação da Vila Nova Esperança é de 6,83 pessoas por domicílio, índice superior ao das ocupações pesquisadas, que é de 4,26. O domicílio é formado, em 97,5% dos casos, por uma única família e chefiada, sobretudo por homens, em torno de 43,75%, ainda que morem mais mulheres na ocupação, em torno de 51,56% (Gráfico 2). O contingente formado por esses trabalhadores integra, em sua maioria, ao mercado informal, sendo que 93,08% deles não possuem carteira assinada. “A única coisa que eu falo quando alguém me pergunta é: respeitem a gente”. Para Dona Daí é preciso que se diga que “somos ocupantes, não malandros. Aqui é um local de família. As pessoas trabalham, pagam suas contas. Aqui não tem ladrão! Tudo que eu peço é que nos respeitem, porque a gente só precisa de uma

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Gráfico 1 — Origem dos Chefes de Família

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

Gráfico 2 — Distribuição do Domicílio Segundo o Sexo do Responsável

Fonte: Projeto de Pesquisa Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador, Faculdade 2 de Julho - F2J / Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social CIAGS - Escola de Administração/UFBA, 2012.

oportunidade, preparação, educação. Agora mesmo todos aqui têm seus R$ 20,00 reais, da reciclagem. Na ocupação, cinquenta mulheres estão tomando um curso de construção civil. Elas estão adorando porque dá café, almoço, lanche e transporte. Quem está dando o curso é a Casa do Trabalhador. A gente só pede uma oportunidade. Temos uma proposta de construir aqui uma fábrica de pré-moldado para podermos nos sustentar. A maioria dos chefes de família aqui está com seus 40 anos, não estamos preparados para o mercado de trabalho. Aqui, a gente é uma família, então a gente tem segurança.” Cerca de 43,75% dos atuais moradores da Ocupação Vila Nova Esperança residiram em casas alugadas, e muitos vieram das regiões do Costa Azul e Águas Claras. A média da renda mensal por domicílio dos moradores desta ocupação é de R$

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871,05 e a renda per capita é de R$ 127,63. O programa bolsa-auxílio contribui com 10,26% da renda total. Os integrantes da Ocupação Vila Nova Esperança residem em unidades construídas com madeira ou material misto, têm apenas um cômodo, em torno de 73,75% e 95% têm apenas um cômodo como dormitório. Os moradores de Vila Nova Esperança possuem TV, em torno de 85%; geladeira com 57,5%; e fogão, com 85%; e 80% dos entrevistados têm telefone celular. Em relação à forma de abastecimento de água nos domicílios, constata-se que 78,75% têm pelo menos um ponto de água canaliza-

elas são. É não ignorar as pessoas. Eu me comporto como psicóloga, advogada, mãe de aluguel, sou de tudo... No começo era difícil, mas quando eu faço um evento eu chamo todos, vendo feijoada e com o dinheiro arrecadado, eu ajudo quem está precisando. Fazemos campeonato de futebol com a inscrição custando um quilo de comida. A gente quer ficar aqui. Em primeiro lugar, nós fundamos isto aqui. Antes era mato e mange.” Quanto à afinidade com o Movimento, ela afirma: “A relação é boa. São meus amigos. Quando tem uma manifestação a gente se junta e faz o que precisa. Agora mesmo eu já pedi apoio, porque se não resolverem nada, vamos subir à governadoria e vamos ocupar, pacífica e educadamente a sede de governo. Sem vandalismo. A gente só quer a casa, não sei por que isso é tão difícil. Agora estamos cadastrados no Programa Minha Casa, Minha Vida, mas não temos uma posição de quando vai sair a casa. Eu não aceito que peçam nada a ninguém, os políticos famosos que vêm aqui, nos dá dinheiro. Eu não aceito. Eu confio é no governador, as três vezes que a gente foi recebido, fomos muito bem recebidos. Ele já está com toda a documentação da ocupação.” Vale ressaltar que cerca de 78,75% dos moradores estão cadastrados no programa habitacional Minha Casa, Minha Vida há pelo menos três anos.

Foto: Roseli Afonso

da. Quanto à existência de sanitário, 61,25% dos entrevistados declararam ter sanitário individual e dispõem de pia, chuveiro ou vaso sanitário. Dentre os que declararam não possuir sanitário individual, ou seja, 36% dos entrevistados, 76,67% fazem uso do artifício do balão de fezes. A grande maioria dos domicílios tem pelo menos um ponto de luz e 53,75% dos domicílios pesquisados declararam não ter acesso regular ao serviço de coleta de lixo. As doenças mais frequentes registradas na ocupação Vila Nova Esperança são: a gripe, a diarreia, as verminoses e as infecções intestinais e nos olhos. Os moradores da Vila Nova Esperança estão organizados em uma Associação de Moradores que mobiliza e organiza os moradores da ocupação. “Eu estou aberta a acordo”, afirma Dona Daí, se referindo ao governo do estado. “Mas eu quero que coloquem o povo nas casas. Nós não queremos sair daqui, porque estamos perto do trabalho, da escola. Eu acho que ser liderança, é aceitar as pessoas como

Figura 3: Associação de Moradores

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PERIÓDICOS A Tarde, edição de 20/08/03, Sem teto anuncia onda de invasões A Tarde, edição de 21/08/03, Sem teto invade centro da cidade A Tarde, edição de 23/08/03, Sem Teto I A Tarde, edição de 01/09/03, Sem Teto invade prédio no Comércio A Tarde, edição de 08/09/03, Grito dos Excluídos rouba a cena A Tarde, edição de 11/09/03, Sem teto mais perto de conseguir casa própria A Tarde, edição de 15/09/03, Sem teto planeja ocupar novas áreas A Tarde, edição de 20/09/03, Sucom desmonta invasão no Lobato A Tarde, edição de 25/09/03, Sem teto ocupa prédio no Centro A Tarde, edição de 26/09/03, Sem Teto de olho em 117 prédios A Tarde, edição de 21/10/03, Prédio público é alvo dos Sem Teto A Tarde, edição de 10/12/03, “Não vamos abrir mão do prédio” A Tarde, edição de 11/12/03, Sem Teto promete radicalizar movimento A Tarde, edição de 13/12/03, Sem Teto têm prazo para deixar o INSS A Tarde, edição de 16/12/03, Galpão da Leste, na Calçada, é solução provisória A Tarde, edição de 18/12/03, Sem Teto dorme em motel de R$ 6 A Tarde, edição de 05/01/04, Mutirão começa a construir casas hoje A Tarde, edição de 25/01/04, Sem Teto invade prédios abandonados em Salvador A Tarde, edição de 23/02/04, Famílias sem moradia ocupam Clube Português A Tarde, edição de 02/02/04, Sem Teto se organiza como força política A Tarde, edição de 30/04/03, Força dos sem-teto preocupa governo A Tarde, edição de 05/04/03, Sem Teto sai de clube e ocupa antigo hotel A Tarde, edição de 21/04/04, Sem teto ocupa prédio no Comércio A Tarde, edição de 23/04/04, Sem teto do Paulus espera casa A Tarde, edição de 04/05/04, Sem teto volta a ocupar o Clube Português A Tarde, edição de 08/05/04, Na Mesbla, negociação em vez de reintegração A Tarde, edição de 14/05/04, Sem teto: saiba mais A Tarde, edição de 02/06/04, Sem teto faz caminhada do Lobato até o Centro A Tarde, edição de 03/06/04, MSTS alcança reivindicações em negociação com a Caixa A Tarde, edição de 05/06/04, Visita de Lula à Bahia vai durar oito horas A Tarde, edição de 07/06/04, Integrantes do MSTS fazem nova ocupação na Calçada A Tarde, edição de 08/06/04, Sem teto cobra casas populares prometidas A Tarde, edição de 17/07/04, Passeata vira comício da esquerda A Tarde, edição de 18/09/04, Bancários baianos iniciam greve A Tarde, edição de 21/10/04, Sem teto pode voltar à ativa A Tarde, edição de 28/10/04, MSTS protesta em vários pontos da cidade A Tarde, edição de 09/12/04, Atrás de renda e emprego A Tarde, edição de 25/04/06, União por mais moradia A Tarde, edição de 18/04/07, Integrantes do MSTS protestam em frente à Secretaria de Habitação A Tarde, edição de 05/06/07, Sem-teto realiza nova ocupação A Tarde, edição de 08/06/07, Conder garante que vai retirar invasores A Tarde, edição de 12/07/07, Bahia tem déficit de 850 mil moradias A Tarde, edição de 14/08/07, Sem-teto pressiona governo A Tarde, edição de 18/04/08, Protesto dos sem-teto

Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

| 193

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE 2 DE JULHO — F2J

Dora Leal Rosa

Edilson Freire Josué da Silva Mello (2004-2012)

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO EA-UFBA

CURSO DE DIREITO - F2J / UNIVERSIDADE CATÓLICA

Reginaldo Souza Santos

Valnêda Cássia Santos Carneiro

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE DESENVOLVIMENTO E

GESTÃO SOCIAL — CIAGS/EA/UFBA Tania Maria Diederichs Fischer

PARCERIAS Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio-Ambiente — SEDHAM/PMS Paulo Sérgio Damasceno Silva Defensoria Pública do Estado da Bahia - DPE Maria Célia Nery Padilha

FINANCIAMENTO Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia — FAPESB

EQUIPE Maria Elisabete Pereira dos Santos — CIAGS/EA-UFBA (Coordenação Geral); Roseli de Fátima Afonso — IFBA / UFBA; Luiz Cezar dos Santos Miranda — IFBA/UFBA (Coordenação de Campo); Suely Maria Ribeiro — F2J / UFBA; Elba Guimarães Veiga — CIAGS/EA-UFBA; Valnêda Cássia Santos Carneiro — F2J (Coordenação do Curso de Direito) / UCSAL e NPEJI

REDAÇÃO Maria Elisabete Pereira dos Santos — CIAGS/EA-UFBA; Roseli de Fátima Afonso — IFBA / UFBA; Luiz Cezar dos Santos Miranda — IFBA / UFBA; Suely Maria Ribeiro — F2J / UFBA; Elba Guimarães Veiga — CIAGS/EA-UFBA; Fredson Oliveira Carneiro — UFBA; Fernanda Alves Costa — F2J; Patrick Campos Araujo — F2J; Vinicius Álen Alves Oliveira — F2J; Victor Lopo de Almeida Costa — F2J; Gilmar Carneiro Mascarenhas — F2J; Gilberto dos Santos Cruz — Movimento pelo Direito a Moradia e ao Trabalho - MDMT; Iraildes Santos de Santana — Movimento dos Sem Teto de Salvador — MSTS; Miralva Alves Nascimento — Movimento dos Sem Teto da Bahia — MSTB

FOTOGRAFIA Any Afonso, Bete Santos, Cezar Miranda, Gilberto dos Santos Cruz, Iraildes Santos de Santana, Jacob Bittencourt, José Raimundo Souza, Pedro Pires, Roseli Afonso, Suely Ribeiro, Victor Lopo, Valdizia Santana Freitas

SUPERVISÃO EDITORIAL Rodrigo Mauricio Freire Soares — CIAGS-ADM/UFBA

Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

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PESQUISADORES Cid Alcântara dos Santos — F2J Dinazilda Idalentio Konan — F2J Fernanda Alves Costa — F2J Fredson Oliveira Carneiro — UFBA Gilberto dos Santos Cruz — MDMT Gutemberg Gomes do Santos — F2J Hugo dos Santos Dantas — UFBA Iraildes Santos de Santana — MSTS Islaine de Almeida Carvalho — F2J Jônatas Lopes Pereira — F2J Judite S. Menezes de Oliveira — Faculdade Dom Pedro II Lenilton Barbosa Silva — UFBA Maria José da Silva — MNLM Marilene Leite — F2J Mauricio Bastos Santa Rosa Galvão — F2J Miralva Alves Nascimento — MSTB Monique Jaialy de Oliveira Silva — F2J Patrick Campos Araujo — F2J Sara da Silva Lima — F2J Vinicius Álen Alves Oliveira — F2J Vinícius Cunha de Souza Dantas— F2J Vitor Lopo de Almeida Costa — F2J

LIDERANÇAS ENTREVISTADAS DO MOVIMENTO DE LUTA PELA MORADIA Ademilton Nascimento da Silva (Foguinho) — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Adriana dos Santos Ribeiro — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Aidinalva Barbosa de Souza — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Ajurimar Bentes — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Alaíne dos Santos Cardoso — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Alan Xavier Lino — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Alba Valéria Adáes — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Amailde da Silva Peixe (Tota) — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Ana Vaneska Almeida — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB / Guerreiras Sem Teto Carlos Moura — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Célia Maria dos Santos Anunciação — Movimento dos Sem Teto de Salvador — MSTS Cleidivaldo de Almeida Santos (Vado) - Movimento dos Sem Teto de Salvador — MSTS Dermeval Cerqueira de Oliveira (Tikão) — Movimento pelo Direito a Moradia e ao Trabalho - MDMT Dinalva Freitas dos Santos - Movimento pelo Direito a Moradia e ao Trabalho — MDMT Edileuza Oliveira dos Anjos — Movimento pelo Direito a Moradia e ao Trabalho - MDMT Elias Bonfim — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Erisvaldo Cardoso dos Santos (Val) — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Eunice Ramos (Nice) — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB (rever a ordem alfabética) Gilberto dos Santos Cruz (GG) — Movimento pelo Direito a Moradia e ao Trabalho - MDMT Goldivino Faria — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Idelmário Proença — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Iraildes Santos de Santana — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Ivo Carvalho da Silva — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Janete Borges de Brito — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Jhones Bastos — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS João Dantas — Movimento dos Sem Teto da Bahia — MSTB Jorge Luiz de Oliveira Santos — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB José Carlos Gonçalves de Oliveira — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS José da Conceição - Movimento dos Sem Teto de Salvador — MSTS José Pereira Maia de Jesus Filho — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS José Raimundo Souza — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Josete Barbosa Texeira — Movimento dos Sem Teto da Bahia — MSTB Luiz Marcelo Vieira da Conceição — Independente Luzinete Severo de Santana (Nete) — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Manoel Bonfim Almeida Santos — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Marcelo José Barbosa — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB

196 | Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

Maremilda Araujo Cruz (Dona Daí) — Independente Maria da Conceição Santos — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Maria Helena de Souza — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Maria José da Silva — Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM Maria Cirlene Conceição Santana — Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM Maura Brito — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Miralva Alves Nascimento — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Mônica de Paula Oliveira Pires de Aragão — Defensoria Pública Naelson Cléon — Frente de Luta Popular - FLP Nelson Sosnierz — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Nilton Renato de Araújo — Independente Norma da Silva Pinto — Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM Paulo de Jesus — Movimento pelo Direito a Moradia e ao Trabalho - MDMT Pedro Cardoso — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Regineide Costa de Almeida — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Rita de Cássia Ferreira dos Santos — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Rita de Cássia Sebadelhe — Frente de Luta Popular - FLP Sandra Maria Coelho dos Santos — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Solidalva do Nascimento — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Tâmara Graziele Ezequiel dos Santos — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Valdízia Santana Freitas — Independente Valter Almeida de Jesus Filho (Malhado) — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB Walter Sena Santana — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS

BOLSISTAS Miralva Alves Nascimento (Pesquisador Local-FAPESB) Vinicius Álen Alves Oliveira — F2J (Iniciação Cientifica - FAPESB)

COLABORAÇÃO Ana Vaneska Almeida — Movimento dos Sem Teto da Bahia - MSTB / Guerreiras Sem Teto Antonio Carlos Souza Mota — SEDHAM-PMS Any Cristine Afonso Bartôlimara Souza Daltro Déa Maria Santana Barreiro Ednilva Azevedo — SEDHAM/ PMS Fátima Fróes — UFBA Franklin de Carvalho Oliveira Junior Gil Braga de Castro Silva — Defensor Público do Núcleo de Prevenção, Mediação e Regularização Fundiária da DPE Idelmário Proença — Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS Jamile Trindade — UFBA Luana Presa — SEDHAM-PMS Marcelo Souza Costa — F2J Melisa Florina Lima Teixeira — Defensora Pública do Núcleo de Prevenção, Mediação e Regularização Fundiária da DPE Miguel Archanjo — F2J Mônica de Paula Oliveira Pires de Aragão — Defensoria Pública Nilce de Oliveira — UFBA Nilton Renato de Araújo — Independente Pedro Cardoso — Movimento dos Sem Teto da Bahia — MSTB Raymundo Torres — UFBA Renata de Alvarez Rossi — CIAGS-ADM/UFBA Rodrigo Mauricio Freire Soares — CIAGS-ADM/UFBA

Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador

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Sumário Prefácio — José Geraldo Sousa Junior ........................................................................................................... 07 I. Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador ...............................................................................................11 II. Pasárgada - Direito e Justiça Social .......................................................................................................... 17 III. Direito à Cidade e a Moradia - Quem é o Sem Teto .................................................................................. 21 IV. A Luta pelo Direito à Cidade e a Moradia .................................................................................................. 37 V. A Mulher e a Luta pela Moradia................................................................................................................. 49 VI. Acesso à Justiça e Segurança pelos Sem Teto ........................................................................................ 59 VII. Política Pública e Direito de Morar ............................................................................................................ 67 VIII. Ocupações Edifício Lord - Centro .................................................................................................................................... 79 Ladeira da Praça - Centro Histórico .............................................................................................................. 82 Ladeira do Prata - Nazaré ............................................................................................................................. 86 JJ Seabra - Saúde......................................................................................................................................... 89 Ipac III - Centro Histórico............................................................................................................................... 92 Ipac II - Centro Histórico................................................................................................................................ 96 Guindaste dos Padres - Comércio ................................................................................................................ 99 Edifício Rajada - Comércio.......................................................................................................................... 102 Ipac I - Lapinha............................................................................................................................................ 105 Edifício Matelba - Brotas ............................................................................................................................. 107 Dois Leões - Macaúbas............................................................................................................................... 109 Saboaria - Calçada.......................................................................................................................................112 Galpão da Leste I e II - Calçada...................................................................................................................116 Galpão da Leste III - Santa Luzia ................................................................................................................ 121 Alfred - Mares .............................................................................................................................................. 124 Toster/Ribeira - Bonfim ................................................................................................................................ 128 Barreto de Araújo - Bonfim .......................................................................................................................... 131 Escola Nossa Senhora da Penha - Ribeira ................................................................................................. 134 Toster — São João do Cabrito ...................................................................................................................... 136 Vila Mar - São João do Cabrito ................................................................................................................... 139 Boiadeiro - Alto do Cabrito .......................................................................................................................... 142 Quilombo de Escada - Itacaranha ............................................................................................................... 145 Cidade de Plástico - Periperi ....................................................................................................................... 148 Portelinha/Fabrica de Mamona - Paripe...................................................................................................... 152 Tubarão - Paripe ......................................................................................................................................... 155 Monte Sagrado - Paripe .............................................................................................................................. 158 Caranguejo — São Tomé.............................................................................................................................. 160 Servidão - Bom Juá ..................................................................................................................................... 162 Vila Via Metrô -Mata Escura ........................................................................................................................ 164 Quilombo Paraíso - Pirajá ........................................................................................................................... 167 Lagoa da Paixão - Valéria ........................................................................................................................... 170 Via do Bronze - Moradas da Lagoa ............................................................................................................. 173 Gal Costa - São Rafael ............................................................................................................................... 176 Recanto dos Cajueiros - Mata Escura ......................................................................................................... 179 Ladeira Cajazeira - Cajazeiras VI ................................................................................................................ 182 Vila Nova Esperança - Cajazeiras VI .......................................................................................................... 185 IX. Referências Bibliográficas ........................................................................................................................ 188

REALIZAÇÃO



PARCERIAS

FINANCIAMENTO
ATLAS SOBRE O DIREITO DE MORAR EM SALVADOR

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