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4 A PSICOTERAPIA COMPORTAMENTAL INFANTIL: NOVOS ASPECTOS Fátima Cristina de Souza Conte Jaíde A. Gomes Regra
Introdução A psicoterapia comportamental infantil (PCI) é hoje uma atividade profissional clínica reconhecidamente diferente da modificação de comportamento infantil. A modificação de comportamento infantil caracterizava-se como uma tentativa de extrapolação do uso do método experimental e dos princípios de aprendizagem, descobertos em ambientes controlados, para a solução de problemas apresentados pelas crianças, como distúrbios de hábito, excessos e déficit comportamentais (Williams 1965; Madsen 1965). Procurava-se demonstrar que tais princípios comportamentais também ocorriam e eram aplicáveis a seres humanos, garantindo-se dessa forma a generalidade das descobertas. Encontramos, entre os primeiros trabalhos, o de Wolf, Risley e Mess (1965), em que ocorreu a aplicação de procedimentos de Estudos de caso 79
condicionamento aos problem as de uma criança autista. Tais pesquisadores ressaltam, na introdução do artigo, que poderosas técnicas para controlar o comportamento, inicialmente desenvolvidas com organismos inferiores, estavam, a partir de 1959, com Ayllon e Michael, sendo aplicadas em seres humanos. Na mesma época, Patterson (1965) descreveu o tratamento de fobia escolar utilizando-se da abordagem da teoria da aprendizagem, apontando sua importância para mudar o comportamento do paciente e não só para ressaltar a validade de uma teoria. Com os mesmos objetivos, Baer (1962) apresentou “Laboratory control of thumbsucking by withdrawal and representation of reinforcement” (“Controle laboratorial da ação de chupar o dedo por retirada e representação de reforço”), procurando demonstrar controles experimentais e enfocando a resposta única isolada para estudo. Em geral, nessa área, os pesquisadores não eram terapeutas e os terapeutas não eram pesquisadores, o que pode ter influenciado o desenvolvimento desses trabalhos. Sem querer esgotar a análise sobre as diferenças entre a modificação de comportamento infantil e o que entendemos hoje por psicoterapia comportamental infantil, gostaríamos de destacar alguns outros aspectos que dão a uma e a outra identidades diferentes. Segundo Lima (1987), desde 1920, encontramos na literatura relatos sobre atendimento comportamental a crianças em situação clínica. Contudo, só a partir de 1950-1960 é que a psicoterapia comportamental infantil se firma como modelo psicoterápico. As três influências iniciais básicas que a autora ressalta para isso são: a abordagem psicoeducacional de Witmer (1894-1930), que trouxe para o trabalho com a criança a quebra da patologia orgânica e a inclusão da ênfase na normalidade e no ambiente como determinantes de problemas; a modificação de comportamento proposta por Gray (1932)
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como modelo apropriado para a educação da criança; e, finalmente, a reemergência da modificação do comportamento em 1960, com o fortalecimento do campo conceituai decorrente do conhecimento advindo de pesquisas da análise experimental do comportamento, como a preocupação com os processos cognitivos e com os princípios éticos (ver Conte 1983 sobre ética e psicoterapia comportamental infantil). Inicialmente, a ênfase dos trabalhos era sobre uma resposta (a queixa) ou uma classe de respostas e procurava-se usar uma técnica ou um procedimento que pudesse alterá-la. O trabalho direto do terapeuta com a criança, no decorrer do processo, era praticamente ausente. Geralmente, o contato entre o terapeuta e a criança resumia-se apenas à observação de comportamentos de interesse apresentados pela criança, geralmente fora da clínica. Com base nessas observações e no relato dos pais, o terapeuta procedia à orientação destes últimos, a quem caberia alterar seu próprio comportamento, o que, em consequência, levaria à obtenção das mudanças desejadas no comportamento do filho. Uma vez que, sabia-se, as queixas infantis eram determinadas ambientalmente e os pais eram as pessoas mais influentes no ambiente infantil, parecia não haver razão para a intervenção direta na criança. Uma segunda diferença é que, raramente, eventos privados da criança faziam parte do processo de análise da queixa. Isso provavelmente decorria da compreensão errônea de que o objeto de estudo da análise do comportamento, mesmo aquela aplicada à clínica, deveria ser passível de observação pública, de forma que pudesse haver consenso entre várias pessoas sobre o que ocorria e assegurar que os resultados obtidos pudessem ser realmente atribuídos às estratégias empreendidas. Com isso, permitia-se a replicação do trabalho por outros profissionais, o que era altamente desejável. De fato, eventos privados poderiam ser relevantes, porém, pareciam não servir aos propósitos da investigação ou mesmo da atuação na clínica. Somava-se a isso, provavelmente, o
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fato de saber-se que tanto as ações públicas como as privadas eram decorrentes de contingências ambientais externas. Então, acreditava-se que a alteração de contingências ambientais relevantes afetaria tanto as respostas públicas como as respostas privadas. A premissa básica é verdadeira, mas, hoje, sabe-se que isso pode ocorrer apenas parcialmente e que determinados eventos privados, como conceitos e autorregras, entre outros, podem afetar a sensibilidade da pessoa às alterações de contingências e mesmo a contingências ambientais já presentes (Skinner 1969; Catania, Mathews e Shimoff 1990). Com certeza, durante todo o tempo, a ação do terapeuta diante dos pais era basicamente verbal e aberta, mas os relatos verbais públicos sobre o mundo privado, mesmo dos pais, não eram considerados suficientemente seguros ou mesmo relevantes como objetos de estudo. A relação entre o comportamento verbal e os demais comportamentos abertos ou encobertos estava pouco esclarecida. Hoje, já se analisam as implicações que as alterações do comportamento verbal (aberto ou encoberto) podem ter sobre cadeias comportamentais complexas envolvidas nos problemas psicológicos (Pilgrim e Galizio 1990; Forsyth e Eifert 1996). Um terceiro aspecto que se modificou está relacionado à indicação de quais eventos eram relevantes e deveriam fazer parte da análise funcional da queixa. Geralmente, incluíam-se apenas os eventos ambientais públicos e imediatamente antecedentes e consequentes à resposta em foco, ou seja, procurava-se pela tríplice relação de contingências. Um quarto aspecto, que parece decorrer do anterior, era o de que o procedimento aplicado pelo terapeuta deveria iniciar-se com a descrição, a mais clara possível, dos comportamentos-queixa. Buscavam-se exemplos para ilustrar a descrição, de forma que outros, além do terapeuta, pudessem verificar sua ocorrência; identificavam-se
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eventos antecedentes e consequentes provavelmente relacionados a sua ocorrência e manutenção e agregavam-se dados sobre sua frequência e intensidade e sobre as situações de não ocorrência. As informações citadas e as solicitações de exemplos são ainda importantes, como o eram, uma vez que favorecem a comunicação terapeuta-cliente e a melhor compreensão do problema, embora as formas de utilização sejam hoje bem diferentes, como se verá adiante. Com base nesse conjunto de elementos, estabelecia-se uma meta a ser obtida ao final do trabalho (geralmente extinguir os comportamentos-queixa e aumentar a probabilidade de ocorrência dos comportamentos incompatíveis). Os encobertos da criança, assim como os eventos de contexto, como conjunto, ou mesmo aqueles mais relacionados às relações que os pais estabeleciam com a criança, geralmente não eram enfatizados no processo de análise da queixa. Ao se propor a intervenção propriamente dita, selecionavam-se os procedimentos comportamentais já indicados na literatura como adequados para o enfrentamento daquele tipo de queixa ou, então, estruturavam-se estratégias baseadas em princípios de aprendizagem. A ação, via de regra, empreendida por mediadores (pais, professores e atendentes), sob orientação do terapeuta, era avaliada passo a passo com dados bastante objetivos, que indicassem que os efeitos observados estavam relacionados com os procedimentos introduzidos. Se eram múltiplas as queixas, podia-se agir apenas sobre uma delas e, após obter as mudanças, interferir sobre a outra queixa, e assim sucessivamente. Dessa forma, podia-se supor cada vez com mais segurança que o procedimento implementado estava relacionado a cada ganho obtido, destacando-se o quanto a ênfase estava na pesquisa. Isso tornava passíveis de críticas eventuais as intervenções feitas na clínica, onde eram introduzidos vários procedimentos ao mesmo tempo com o objetivo de mudança rápida de comportamento. Todavia, muito se
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discutii sobre os problemas éticos de alongar um atendimento em prol do conjrole de variáveis. Ainda, os estudos não traziam análises sobre o papel d l relação terapêutica estabelecida, que, sabe-se hoje, poderia alterar a obteijcão dos resultados. Não se considerava nem mesmo a relação que ocirria entre terapeutas e pais. Terminado o processo principal e obtidaslas metas almejadas, passava-se ao esvanecimento gradual do procedimento empregado e a um período de tempo de seguimento, para observlr a manutenção e a generalização dos resultados.
Do bemaviorismo metodológico ao behavtorismo radical na psicomrapia comportamento! infantil ] elo exposto anteriormente, parece que a ideia que se tinha do qu< seria a psicoterapia comportamental infantil (PCI) estava bastan e relacionada ao behaviorismo metodológico (comportamentos observ veis por várias pessoas, medidas objetivas e quantificáveis, uso dc estratégias comportamentais e de métodos experimentais e quase xperimentais na prática clínica) e ao conhecimento científico produí do até então. Porém, apesar dos limites, essa foi, sem dúvida, uma p ática importante, que ajudou a psicologia e, mais tarde, a psicofc rapia comportamental, de maneira geral, e a infantil, em partici ar, a instalarem-se como práticas profissionais sistemáticas, éticas < cientificamente sustentáveis, e colocá-las longe da desconfiança popular, do misticismo e do conceito de arte que cercava as demais formas de psicologia e psicoterapia. odemos constatar que utilizamos hoje muitas das formas citada* anteriormente, embora não do mesmo modo. Especificar os antece entes e os consequentes dos comportamentos ajuda a levantar hipóte; es sobre as possíveis funções tanto do comportamento como dos es|ímulos e a identificar se o comportamento pode ou não estar
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sensível às contingências. Especificar as situações em que eles ocorrem favorece também a análise do contexto e dos tipos de controle de estímulos presentes. Assim, introduzir tal forma de análise, incluir os encobertos e a avaliação da relação terapêutica não foi um simples somatório no processo evolutivo da psicoterapia comportamental infantil, mas uma grande mudança qualitativa, que alterou em muito sua forma de trabalho. Em virtude da m aneira inicial pela qual o processo se desenvolveu, a PCI atraiu para si críticas e desafetos, sendo considerada superficial por não lidar com os comportamentos encobertos que abarcam sentimentos e que haviam sido deixados de lado na fase em que predominou o behaviorismo metodológico. Embora criticada, é importante mencionar novamente que essa foi uma fase importante e produtiva, que, além dos efeitos sociais que trouxe para a psicoterapia, favoreceu a generalidade dos dados e forneceu a base para o processo que se seguiu. Embora se colocassem como seguidores de Skinner, muitos autores parecem não ter com preendido claramente as colocações dele, o que produziu distorções diante da difícil tarefa de conciliar o estudo dos sentimentos e, ao mesmo tempo, a fidelidade aos pressupostos da ciência natural no que se refere ao estudo do comportamento observável apenas. Grandes progressos parecem ter ocorrido com a redescoberta das colocações de Skinner (1974), com o acolhimento do behaviorismo radical, o avanço nos conhecimentos sobre comportamento verbal, o papel dos eventos privados na organização e na alteração de cadeias comportamentais complexas e o reconhecimento de que o mundo privado da criança tem um importante papel tanto na composição como na alteração de problemas psicológicos. De maneira especial, o behaviorismo radical resgatou sua posição diante dos eventos internos, legitimando sua inclusão como objeto de estudo, uma vez que reconheceu
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ser suficiente a observação direta desse evento apenas por um observador, no caso, o próprio sujeito/cliente. Os dados sobre tais eventos necessitam de replicação e seu conceito deve se ajustar ao mesmo conjunto de princípios e leis de análise do comportamento em geral (Matos 1990), isto é, comportamentos públicos e privados são fenômenos da mesma natureza, diferentes apenas no que se refere a sua privacidade. Skinner (1969) segue incorporando a análise do comportamento governado por regras, o que dá grande avanço à psicoterapia comportamental, pois, uma vez diferenciados o comportamento controlado pelas contingências e o comportamento governado por regras, novos estudos e procedimentos terapêuticos foram surgindo. Os estudos de pesquisadores operantes sobre equivalência de estímulos (Sidman e Taulby 1982; De Rose, De Souza; Rossito e De Rose 1993) foram de grande relevância para a compreensão da resposta relacional complexa em seres humanos verbais. Embora haja muitos trabalhos sobre o estabelecimento dessas relações condicionais, muito pouco se sabe sobre como essas relações podem ser modificadas (Pilgrim e Galizio 1990), uma vez que só recentemente começaram os estudos a respeito dessa questão específica. Mesmo com pouco conhecimento, parece que já é possível prever as implicações clínicas decorrentes, que indicam que os resultados terapêuticos apenas serão resultados duradouros se forem totalmente destruídas as redes de relações entre os eventos que constituem um dado problema. Quando apenas relações isoladas forem suprimidas por procedimentos terapêuticos e um número suficiente de relações permanecer intacto, as relações isoladas suprimidas poderão emergir novamente (De Rose 1993). Além disso, uma outra implicação bastante séria é a de que as classes formadas pelas relações de equivalência tendem a ser estáveis e resistentes às mudanças (Pilgrim e Galizio 1995). Desse modo, Forsyth e Eifert (1996) ressaltam a necessidade de conhecer a
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maneira pela qual se produzem mudanças fidedignas nas classes de equivalência e levantam muitas questões a respeito da necessidade de compreensão da “equivalência de estímulos” para explicar problemas de comportamento “mediados” pelo comportamento verbal. Apontam, ainda, como muito relevante, a necessidade de identificar se tipos de processos necessários para estabelecer equivalência de estímulos em laboratório representam processos similares quando aplicados a um dado comportamento relacional de um cliente, e se isso ocorre na clínica. Além de saber se ocorre, é preciso descobrir quando e como ocorre. Esse questionamento, fundamental e pertinente, leva-nos a concordar com Todorov (1982), que, já na década de 1980, apontava para o fato de que os trabalhos de pesquisa básica, voltados para o desenvolvimento teórico, eram tão úteis e necessários quanto os estudos de casos clínicos. A descrição e a análise dos comportamentos complexos envolvidos na relação terapêutica podem favorecer a compreensão dos processos básicos do contexto da psicoterapia e oferecer subsídio para a elaboração de novas pesquisas básicas e viceversa. Podem, ainda, identificar também formas de intervenção mais eficazes e duradouras (Kerbauy 1997). Por outro lado, as contingências da própria sessão terapêutica foram criando uma psicoterapia comportamental infantil diversa da proposta inicial da modificação de comportamento infantil, mas não adversa a ela. Era como se as crianças se recusassem a brincar no compasso de procedimentos previamente elaborados, embora se amoldassem às contingências naturais da relação terapêutica. Assim, também as contingências da própria psicoterapia foram mostrando aos terapeutas tanto a inviabilidade da implantação da proposta inicial (de extrapolação do método experimental ao dia a dia da clínica) como sua indesejabilidade, visto que, na busca de realizar a psicoterapia com o mesmo rigor metodológico com que se faziam as pesquisas em ambiente
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controlado ou em situações análogas, o terapeuta poderia afastar-se ou ignorar contingências presentes, importantes para a tomada de decisões durante as sessões, e mesmo promover a desistência do cliente, em razão do descompasso provável entre sua necessidade de ajuda imediata e o tempo de que o terapeuta necessitava para cumprir os rituais científico-metodológicos (Meyer 1990). Ainda quanto ao contexto da clínica, queixas mais complexas e difusas foram aparecendo, pois técnicas e procedimentos de modificação de comportamento descritos com base na análise experimental do comportamento (como tim e-ou t, extinção, dessensibilização e modelagem passo a passo, por exemplo) começaram a se mostrar insuficientes como estratégias para evocar, instalar e fortalecer os comportamentos desejáveis na própria sessão. Então, muitos terapeutas começaram a buscar estratégias em outros referenciais, escolhendo-as com base na análise de seus efeitos prováveis sobre o comportamento do cliente, usando para tal avaliação, os princípios de aprendizagem, fazendo um novo uso do referencial teórico da análise experimental do comportamento (Nalin 1993; Conte 1997a e 1997b). A linguagem terapêutica precisou tornar-se mais aberta para incluir a descrição de fenômenos que apareciam especialmente nesse setting. Ainda se descobriu a força da relação entre o cliente e o terapeuta como estratégia e instância de mudança comportamental (Davison 1976; Kohlenberg e Tsai 1987; Hayes e Wilson 1994; Folette, Naugle e Callaghan 1996). A inserção da criança diretamente no processo, em consonância com as características de seu desenvolvimento pessoal, ocorreu gradualmente e foi uma consequência de todos esses aspectos, além da expectativa social de que o terapeuta deveria, de alguma forma, atender diretamente a criança. Com a inclusão dela, os terapeutas precisaram apoiar-se mais e mais em estratégias lúdicas e, como já mencionado,
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conhecer e fazer uma releitura comportamental de procedimentos e estratégias usados por terapeutas de outros referenciais teóricos, que atuavam diretamente com a criança. Por outro lado, a análise funcional do problema-queixa evoluiu, incluindo mais eventos do que apenas a tríplice relação de contingências, embora esta tenha continuado a ser sua base e seu esteio. O espectro passou a incluir também variáveis orgânicas (uma vez que a relação organismo e comportamento foi se tornando cada vez mais conhecida), bem como eventos de contexto, comportamentos encobertos e o papel do comportamento verbal, aberto e encoberto, que ocorria, principalmente, durante as sessões de atendimento direto aos pais ou à criança. A observação direta do comportamento infantil continuou sendo um método importante e, além dos usos tradicionais, tornou-se um instrumento para a análise funcional da relação cliente-terapeuta e da fala dos clientes em sessão. Assim também a fala, em si mesma um recurso respeitado, pelo qual o terapeuta pode ter acesso ao que ocorre no ambiente externo e a comportamentos públicos e privados da criança. Ao ajudar a criança a observar seu ambiente e a observarse, descrever o que observa e estabelecer relação entre o que se passa no seu mundo privado e no seu ambiente externo ou, ainda, entre suas respostas privadas e suas respostas públicas, o terapeuta a está ajudando a constituir seu autoconhecimento e a expressálo adequadamente. É, na verdade, um processo de aprendizado e desenvolvimento e não de simples evocação do autoconhecimento. Kohlenberg e Tsai (1991) ressaltaram com bastante propriedade esses aspectos para os clientes adultos. Certamente, produzir autoconhecimento é meta fundamental na psicoterapia de crianças, tanto quanto na de adultos, o que já foi bastante salientado por outros terapeutas e investigadores comportamentais de adultos (ver Meyer 1997, por exemplo) e de crianças (Conte 1983, 1997a
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e 1997b). Quando o cliente consegue identificar as relações entre seus comportamentos abertos e encobertos e perceber de que variáveis eles são função, está mais apto a modificar seu próprio comportamento e interferir nas contingências a ele relacionadas, podendo ampliar seu repertório de forma mais independente. Isso é válido e possível mesmo para crianças, resguardando-se os limites impostos por seu desenvolvimento global. Especificamente, a fala sobre comportamentos encobertos por parte das crianças tem inúmeros ganhos. Ela pode, tanto quanto para o adulto, fornecer pistas ao terapeuta sobre o comportamento passado e as condições que o afetaram, o comportamento atual e as condições que o afetam, e, ainda, as condições que provavelmente se relacionarão à probabilidade de ocorrência do comportamento no futuro (Skinner 1989). A criança também tem a chance de poder alterar a ideia de que seus encobertos são as causas de seus comportamentos ou de que seus problemas têm causação interna. Pode também mostrar ao terapeuta o quanto ela está sensível a contingências ambientais não verbais e àquelas mediadas pela comunidade verbal. Quanto menor a criança e menos complexo seu desenvolvimento verbal, mais facilmente ela deveria estar sensível às contingências ambientais diretamente relacionadas a seu comportamento (“natural” ) e a sua alteração. Mas, como apontam Catania, Mathews e Shimoff (1990), as regras podem alterar o comportamento de modo que o torne insensível às contingências. Muitas crianças podem estar altamente insensíveis às contingências em decorrência de processos educacionais conduzidos com uso excessivo de regras preestabelecidas, ou mesmo de processos que não permitem à criança analisar contingências e, gradualmente, formular suas próprias regras (mesmo com a ajuda dos pais). Nesse caso, elas tenderiam a responder às perguntas dos terapeutas com conteúdos socialmente desejáveis e aprovados. A abordagem indireta dos encobertos ajudaria
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o terapeuta a descobrir as contingências que estão presentes ou que modelaram o comportamento de seguir incondicionalmente regras e a atuar para modificar tal padrão, uma vez que este está relacionado a inúmeros quadros psicopatológicos (Hayes, Kohlenberg e Melancon 1987). Aí é que entram muitas estratégias lúdicas e de fantasia, tanto na avaliação como na intervenção direta com a criança. Finalmente, as próprias regras e conceitos que a criança já formulou podem ser objeto de análise e intervenção. Entre as regras que as crianças podem formular estão as relacionadas a sentimentos e ao que deve ou não ser sentido, sustentadas pelo aprendizado de que existem bons e maus sentimentos. Por exemplo, o medo, a raiva e a ansiedade seriam maus sentimentos e não deveriam ser sentidos. Quando eles aparecem, tem-se, então, mais sentimentos desagradáveis concomitantes, como a culpa, a vergonha e o medo, entre outros. A tentativa, então, seria provavelmente de alterá-los inadvertidamente, promovendo reações emocionais sobrepostas que intensificam mais e mais o mal-estar provocado pela condição sentida e consigo mesmo. Ocorre, assim, o desenvolvimento de armadilhas de raciocínio lógico, como, por exemplo: sentimentos são causas de comportamentos, portanto, sentimentos ruins geram comportamentos ruins, então, tenho atos maus e sou mau, sendo mau, não mereço e não posso ser amado, e assim sucessivamente. Sentimentos e sensações são respostas humanas que decorrem de determinadas contingências ambientais (Skinner 1953). Evitar a esquiva, aceitar tais sentimentos e sensações e olhar para o ambiente buscando detectar seus determinantes e atuar diante deles seria a atitude mais saudável. Cordova e Kohlenberg (1994) destacaram esses aspectos para adultos. Cremos que os mesmos aspectos valem para as crianças. Quando o terapeuta está de posse de informações mais completas sobre as complexas cadeias comportamentais envolvidas na queixa e
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as amplas redes de determinantes, ele está em melhor condição de analisar a conduta dos pais e de orientá-los. Ele pode suspeitar das ações típicas dos pais diante de comportamentos típicos da criança, das regras que estão seguindo em sua vida e na educação do filho e dos conceitos e das regras que estão ajudando a criança a formar sobre si mesma e seu ambiente (Nalin 1993). Pode-se também levantar possíveis dificuldades pessoais dos pais, que os possam estar impedindo de funcionar como modelo apropriado para o filho e ser adequadamente responsivos a essa criança. Wells (1981) cita os seguintes aspectos que podem afetar a interação dos pais com a criança e que não são afetos ao comportamento das crianças: exposição das mães a muitas trocas coercitivas, presença de perdas familiares, financeiras ou de outra natureza, relacionamento conjugal insatisfatório, baixa tolerância dos pais a situações estressantes transitórias, pouca habilidade para lidar com as crianças, depressão e isolamento de mães e mesmo de pais. Podem ser acrescentados outros aspectos e, entre eles, dificuldades de envolvimento e expressividade emocional. Tais eventos de contexto podem funcionar como estímulos estabelecedores ou eventos disposicionais, que afetam ou determinam interações entre pais e filhos, dificultam a discriminação das contingências às quais estão respondendo, geram culpa e irresponsabilidade, entre outros comportamentos abertos e encobertos que dificultam a solução dos problemas e a melhora da criança. Walher e Graves (1983) ilustram como variáveis de contexto podem funcionar como eventos estabelecedores para a ocorrência de relações impróprias entre adulto e criança. Os eventos de contexto gerariam sentimentos, sensações e pensamentos desagradáveis e impróprios, que competiriam com a percepção adequada dos comportamentos da criança, com seus antecedentes e consequentes. Nesse caso, o adulto reagiria mais em função desse estado emocional do que em relação ao próprio comportamento da criança. Uma vez que
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houvesse reações impróprias do adulto, tais consequências promoveriam o desenvolvimento de comportamentos desadaptativos na criança. Na verdade, muitas vezes, os pais não identificam esse processo e, ao relatá-lo ao terapeuta, fazem-no com base em sua visão distorcida do comportamento do filho e de seus determinantes. Os eventos de contexto podem ser transitórios ou permanentes e as discriminações infantis que então ocorrem podem estar relacionadas a tais eventos. Por exemplo, a presença de uma briga entre os pais pode favorecer que determinado pai ou mãe administre uma punição severa ao filho que deixou seus brinquedos espalhados pelo chão por acharse explorado pelo parceiro e pelo filho naquele momento; contudo, em um outro momento, o mesmo comportamento da criança, sem a presença da discórdia conjugal e de tais encobertos, pode fazer com que a mãe ou o pai apenas sorriam e até guardem todos os brinquedos da criança. A inconsistência de reação pode favorecer que a criança, em vez de aprender a guardar seus brinquedos, aprenda a discriminar os humores dos pais e a agir em razão de tais pistas. Os eventos de contexto podem ser historicamente anteriores e totalmente relacionados com as armadilhas de interação entre pais e filhos que geralmente cercam as queixas infantis. De fato, os comportamentos “inadequados” podem ser desenvolvidos por um processo de modelagem pelos pais, da seguinte forma: podem ser inicialmente reforçados positivamente pelos pais e, depois, punidos, quando passam, mais para a frente, a trazer consequências negativas para os pais diretamente ou para a criança. Podemos ver isso no caso da dependência excessiva, em que, para uma mãe privada de contato social ou com dificuldades conjugais, produzir tal dependência pode ser muito reforçador inicialmente e deixar de sê-lo, posteriormente, quando a dependência excessiva passar a impedir que ela ou a criança obtenham outros reforçadores. Alguns desses comportamentos podem
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ser reforçados positivamente pelos pais, contínua ou intermitentemente, como é o caso das birras: ao ceder a elas, os pais livram-se da situação aversiva (são reforçados negativamente). Assim, estão aumentando a probabilidade de ocorrência futura tanto do comportamento de birra da criança como de seu próprio comportamento de “ceder”. Também isso pode ser observado com a autodepreciação e a autopunição das crianças. Em resumo, o comportamento inadequado da criança (queixa dos pais) trouxe ou traz um ganho para o indivíduo e para sua família, e pode ser determinado e mantido por contingências de reforçamento ou governado por regras. Ainda, o contexto em que a criança nasce e cresce (até mesmo o contexto socioverbal) parece funcionar como estabelecedor de determinados tipos de interação entre pais e filhos. A busca de psicoterapia ocorreria quando o comportamento da criança se intensificasse e fugisse ao controle, à tolerância ou à compreensão dos pais, ou quando o nível de tolerância dos pais ao comportamento da criança se alterasse, ou, ainda, por critérios de outros profissionais (médicos, professores e outros). Em resposta, começariam a aparecer as dificuldades dos pais para alterar determinados padrões em virtude de sua incompreensão sobre os possíveis determinantes. Para enfrentar tal situação, os terapeutas podem precisar mais do que instruir pais ou treinar com eles respostas específicas. Pode ser necessário fazê-los analisar seu próprio comportamento e a relação deste com o comportamento da criança, lidar com seus próprios comportamentos abertos e encobertos (como regras, conceitos, sentimentos e sensações relacionados ao problema) usando, muitas vezes, estratégias pouco convencionais. Como se pode verificar, a psicologia comportamental infantil, hoje, tem contornos bastante diferentes da modificação do comportamento infantil, delineados tanto por resgates e avanços no conhecimento da análise do comportamento como por contingências geradas pela ação terapêutica.
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Como iniciar o trabalho e utilizar os recursos necessários Em consonância com o já exposto, a psicologia comportamental infantil tem, hoje, alguns procedimentos estandardizados, que se mostram úteis para a realização da análise. Desde a fase inicial de contato com a família, inicia-se o levantamento de dados e também promovemse possíveis intervenções provocadoras de mudanças. Desse modo, llca descaracterizada a especificação de fases como as de avaliação ou psicodiagnóstico e de tratamento ou intervenção. Em primeiro lugar, porque se faz necessário agilizar o processo terapêutico; em segundo lugar, porque nem sempre é necessário dispor de uma avaliação extensa ou completa para poder intervir, e, finalmente, porque o próprio resultado da intervenção ajuda a validar as hipóteses diagnosticas iniciais.
A entrevista inicial com pais ou fa m ília A entrevista inicial pode ser feita com todos os membros da família ou apenas com os pais e, depois, com a criança em separado. Os aspectos da entrevista a serem considerados referem-se à forma pela qual ocorre a observação dos comportamentos pelo terapeuta, aos tipos de perguntas feitas por ele, em forma e conteúdo, e, finalmente, ao estabelecimento do contrato. A observação durante uma entrevista - Estando com o casal ou a família, o terapeuta pode ver, por exemplo, o lugar que escolhem para se sentar: quem procura ficar perto de quem; quem toma a iniciativa de falar; se cada um complementa o que o outro diz ou se discordam entre si; qual a postura de cada membro, e outros comportamentos relevantes. Aqui, não é importante o que dizem, mas a forma pela qual fornecem as informações. A forma das perguntas - Podem-se considerar os seguintes aspectos: a) as perguntas devem ser claras e objetivas, para favorecer Estudos de caso 95
a compreensão e a descrição dos dados; b) as perguntas devem ser neutras, para não favorecer a indução de respostas, o que ocasionaria vieses, alterando a análise dos dados; c) as questões não devem oferecer alternativas como ou isto ou aquilo, o que limita a resposta e dificulta a descrição; d) as questões podem ser reflexivas (Tomm 1985), uma vez que, assim, favorecem as discriminações necessárias para provocar mudanças. O conteúdo das perguntas - No que se refere ao conteúdo, procura-se identificar o motivo da vinda da criança para a consulta psicológica. Durante a queixa livre, geralmente, as questões não ocorrem. As perguntas que se seguem à queixa livre devem ajudar a especificar melhor a queixa, conduzindo a descrições de situações e facilitando o levantamento de um conjunto de hipóteses a ser mais bem investigado. O contrato - Para finalizar, é preciso fazer o contrato de trabalho com os pais e a criança. No caso dos pais, no primeiro contato, costumase descrever a forma e a rotina de trabalho. É, então, especificado que, na maioria dos casos, o atendimento se dá, inicialmente, em uma sessão semanal com a criança e uma sessão mensal com os pais. Dependendo das necessidades que forem sendo identificadas, pode-se fazer o atendimento mensal, em diferentes combinações, dos membros da família, ou seja, mãe e criança; pai e criança; todos os membros da família; sessão fraterna e outras. A forma de trabalho é descrita mencionando-se as atividades comumente utilizadas e exemplificando como elas podem ser desenvolvidas para atingir os objetivos propostos. São combinados a forma de pagamento e o valor de cada sessão e é especificado o critério de faltas e férias. Procura-se deixar claro que, na orientação familiar, o trabalho está voltado para todos os membros da família e, nessa situação, não será mencionado o que ocorre nas sessões da criança, a menos que ela permita. Explica-se, ainda, que contatos com os pais e a escola serão sempre mencionados à criança,
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reservando-se o sigilo dos pontos claramente especificados com ela. Como forma de diluir os rótulos, a família é questionada sobre outros membros que têm ou já tiveram os mesmos comportamentos “inadequados”. Assim, o terapeuta procura não compactuar com a família sobre os rótulos oferecidos à criança. Na entrevista inicial com a criança, é levantado o motivo de sua vinda para o atendimento psicológico; o terapeuta se apresenta (nome, como é sua profissão e o que faz). Trabalha-se com as respostas da criança para levá-la a identificar com que objetivo fará psicoterapia. Isso parece muito importante nesse primeiro contato, pois, uma vez que a criança é trazida à sessão, nem sempre foi ela quem formulou a queixa e, o que pode ser muito pior, ela pode adotar a queixa dos pais, que não é a sua. Nessas circunstâncias, podemos perguntar: “quem de nós faria terapia para melhorar para outras pessoas?”. Como geralmente se percebe, a criança vem para a psicoterapia achando que deve mudar seus comportamentos inadequados, para que a situação fique melhor para seus pais ou irmãos. Enquanto não for conduzida a descobrir seus próprios ganhos, não a teremos na terapia. É importante ainda esclarecer que, no grupo familiar, não é possível ou desejável que apenas uma pessoa mude, pois o ambiente e o relacionamento devem ficar bons para todos. Procuramos, assim, mostrar à criança que haverá um exercício mais democrático na escolha das mudanças, ou seja, se os pais verbalizam os comportamentos que consideram relevantes que a criança mude, a ela também cabe verbalizar o que gostaria que mudasse na mãe, no pai e nos irmãos. A criança pode perceber aqui seu novo poder, o de colocar seus sentimentos sem receber reprimendas, embora não saiba inicialmente como poderá usá-lo. Fica claro, todavia, que, agora, poderá ser ouvida, e que o terapeuta será uma pessoa que se preocupará em estar em sintonia com as necessidades dela. Agora, sim, a criança pode formular a sua queixa mais apropriadamente, dentro desse novo contexto.
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Como abordar a criança e promover a análise do comportamento dela A análise do comportamento da criança, na clínica, dá-se com base em vários recursos, como, por exemplo, a análise da interação que ela estabelece diretamente com o terapeuta (análise da relação), a análise das relações que estabelece entre personagens fictícios, retirados de suas fantasias e sonhos (Nalin 1993), e mesmo seus relatos diretos sobre o que ocorre no dia a dia. O relato direto é sempre incentivado logo no início das sessões, por questões formuladas pelo terapeuta sobre a vida diária da criança em vários ambientes. É comum também as crianças passarem a fazer relatos espontâneos relacionados à “temática” terapêutica. A relação que o terapeuta estabelece diretamente com a criança constitui um instrumento de intervenção terapêutica especial. Kohlenberg e Tsai (1991) salientam que, durante a interação do terapeuta com o cliente adulto, este pode apresentar comportamentos clinicamente relevantes. Tais comportamentos seriam aqueles que deveriam decrescer no decorrer do processo (chamado de CRB1) ou, então, aqueles cuja frequência e intensidade deveriam ser ampliadas (CRB2). Há, ainda, uma última categoria de comportamentos, que consiste na análise, pelo cliente, de seu próprio comportamento. Ele o identifica e o relaciona com o que acredita ser sua causa, o que inclui “razões e interpretações” (análise CRB3). Todos esses comportamentos serão relevantes se tiverem relação com o problema ou a prevenção de novos problemas. Como ocorrem na presença do terapeuta, este pode observar em que condições ocorrem e se mantêm e, então, agir com o cliente diretamente, para ajudá-lo a modificar condutas na própria sessão. Respostas clinicamente relevantes só vão ocorrer na clínica se o ambiente for funcionalmente semelhante àquele fora da clínica. Uma
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vez que isso ocorra, está demonstrada a similaridade ambiental, o que indica que a generalização da clínica para o ambiente externo poderá ocorrer. Espera-se que isso de fato ocorra, uma vez que a terapia seria inefetiva se o cliente melhorasse na sessão, mas não transferisse tal melhora para sua vida diária (Kohlenberg e Tsai 1991). Segundo os mesmos autores, os comportamentos do psicólogo que são terapêuticos e favorecem a similaridade ambiental são: evocar, observar, reforçar e interpretar o comportamento dos clientes. Tais comportamentos afetam o comportamento dos clientes via três funções-estímulos: 1) discriminativa (que promove comportamento operante ou voluntário); 2) eliminadora (que promove comportamento respondente); 3) reforçadora (que interfere na força de uma resposta). Temos observado que esses pressupostos são válidos e trazem ganhos importantes também para o atendimento à criança (com os limites impostos pelo nível de desenvolvimento global, como já mencionamos anteriormente). A seguir, mencionaremos um caso atendido pela terapeuta Fátima, em que a análise da relação com a criança favoreceu a discriminação sobre os comportamentos inadequados que ela apresentava e sua consequente mudança. Conforme ocorria o processo terapêutico da cliente, uma menina de 8 anos, ela começou a apresentar, durante os jogos, um comportamento que parecia relacionado a uma de suas dificuldades: o relacionamento com amigos. Nessa situação, a terapeuta percebeu que a menina a ridicularizava por perder e criticava sua demora em jogar. Quando a situação se invertia, a criança procurava burlar as regras ou “roubar”, tentando vencer de qualquer forma. Ao perder, apresentava reações emocionais, “emburrava” e já não queria continuar a atividade (esquivando-se de perder novamente). Numa sessão anterior, a criança saíra da sala e encerrara a sessão abruptamente, após perder duas vezes no mesmo jogo, e permanecera na sala de espera até que a mãe chegasse.
Estudos de caso 99
Assim, numa sessão em que percebeu que sua cliente estava bastante à vontade e relacionando-se bem com ela, a terapeuta decidiu evocar os CRB1, bloquear a esquiva da menina e, com bastante empatia, tentar fazê-la experienciar o jogo, aceitando os limites dos demais (terapeuta, no caso) e os seus próprios limites (perdendo), deixando o jogo correr “sem seu controle” sobre o comportamento dos demais ou o resultado da partida (todos CRB2), bem como fazer a cliente analisar seu próprio comportamento (CRB3) na situação e em outras situações semelhantes. A terapeuta propôs, então, que a menina escolhesse um jogo e foi alternando com ela perdas e ganhos, fazendo-a, gradualmente, perder mais do que ganhar (procurando evocar e eliciar CRB1, mas não gerar desistência), oferecendo modelo de CRB2 e também tentando valorizar verbalmente (fortalecer, modelar com reforçamento social positivo) o seu enfrentamento (CRB2, contrário à esquiva), a sua aceitação de limites, de forma que tornasse o ambiente mais agradável para ambas as jogadoras (CRB2). Ainda promoveu bloqueios sobre as investidas de controle de seu comportamento ou do resultado do jogo (fazendo suas escolhas ou demorando o necessário para isso, a despeito do que sua companheira dizia ou fazia, ora falando que cada um é um e tem seu jeito, ora que não tem só um jeito de jogar ou um jeito certo, que a menina a deixasse tentar do seu jeito, no seu ritmo, para ver se também dava certo; ao ganhar, mostrava que, “apesar do seu jeito”, também conseguira etc.). Ia dizendo, ainda, não às tentativas de burlar regras, em tom de quem diz com simpatia para que o outro não faça “arte”, verbalizando que “deixasse pra lá” o resultado e curtisse o jogo, a farra, que isso também era gostoso, e assim sucessivamente. Nas tentativas da menina de sair do jogo, ao perder, a terapeuta pedia que ela não saísse, apresentando vários argumentos, em várias ocasiões, como, por exemplo, de que era só um jogo, que perder ou ganhar fazia parte do processo, não que ela não fosse esperta, que estava legal
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jogar com ela, que tinha vezes em que ela ganhava. Também a tocava carinhosamente, mesmo quando emburrava, abraçava-a e ria com ela, dizendo que esperasse, que, em jogos, sempre se ganha e se perde, que era possível perder e se divertir e que ela esperasse para ver se era verdade o que a terapeuta dizia, que ela não estava acostumada ainda com esse novo jeito, que hoje ela não ia escapar, e muitas outras frases, ditas em tom gentil, com atos de apoio físico, que acabaram por fazer a menina permanecer na atividade. Conforme os CRB2 foram aparecendo, a terapeuta verbalizou o quanto estava gostoso brincar com a menina naquele dia. Perguntoulhe também como estava se sentindo. Conforme as respostas foram ficando mais positivas (o que deveria aumentar a probabilidade de que comportamentos que acompanham tais sentimentos ocorressem novamente), a terapeuta procurou fazer com a cliente a descrição de seu próprio comportamento em sessão naquele momento e no que esse comportamento diferia dos apresentados nas sessões anteriores (ajudando em sua discriminação do CRB1 e do CRB2 e buscando evocar autorreforçamento verbal, importantes para a generalização dos comportamentos adequados). Uma vez que, com o questionamento da terapeuta, a menina “se tornou consciente” tanto dos CRB1 como dos CRB2 (e, nesse momento, começou a analisar seu próprio comportamento, o que se caracteriza como CRB3), a terapeuta procurou fazê-la identificar seu comportamento usual com as crianças nos jogos, fora da clínica. Por ser esse um momento de confronto, a terapeuta procurou ser empática e bastante bem-humorada, rindo com a criança de como “ambas” não tinham percebido ainda como “acabavam caindo numa armadilha”: “a gente quer ganhar sempre, mostrar que é melhor, porque daí vai ter mais amigos e ficar muito esperta no jogo, para o outro ver que a gente é legal, melhor” e o “feitiço vira contra o feiticeiro”. Isto é, como acontecia o contrário: “Puxa! Que bom termos percebido isso!
Estudos de caso 101
a análise, o cliente e o terapeuta procuram identificar classes e cadeias de respostas dos personagens, eventos provavelmente associados a sua determinação e as relações mais ou menos apropriadas que a criança faz entre eles. Num outro momento, relaciona-se o que foi visto na fantasia com o que ocorre no dia a dia (Oaklander 1978; Nalin 1993; Conte 1997). Na própria fantasia ou no relacionamento dela com a “vida real”, modelam-se ou fortalecem-se comportamentos que podem aumentar o acesso da criança ao reforçamento positivo. No entanto, muitas crianças não conseguem fantasiar, imaginar ou sonhar nas sessões de terapia ou mesmo fora delas. Nesse caso, para usar tal recurso, o terapeuta precisa, primeiramente, ajudar a criança a soltar-se e a fantasiar, buscando descobrir os eventos provavelmente relacionados à não emissão dessa resposta. O quadro abaixo mostra tais eventos. QUADRO 1: POSSÍVEIS DETERMINANTES DO COMPORTAMENTO DE FANTASIAR OU NÃO
1.
A criança pode ou não ter tido oportunidade adequada (estimulação e reforçamento) para o desenvolvimento de:_______________________________ a. comportamento de fantasiar, de sonhar acordada; b. comportamento de fantasiar com base em estímulos verbais ou não verbais, apresentados por outras pessoas que não ela mesma; c. comportamento de explicitar seus encobertos por comportamentos públicos, verbais ou não; d. comportamento verbal de forma geral.
2.
A criança pode discriminar a ocorrência provável de reforçamento ou punição: se houver indicação de que ocorrerá punição para o comportamento de fantasiar ou para algum tipo de fantasia, naquele momento, poderá haver evitação da resposta, mas, se houver indicativo de que poderá haver reforçamento, a tendência é que ocorra o contrário.
3.
A criança pode ter dificuldade com a estimulação atual: os estímulos para evocar a resposta de fantasiar (os sinais para fantasiar, estímulos verbais ou não) devem ter a ver com a história de vida do cliente e o que se quer evocar.
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As estratégias usadas para evocar o comportamento de fantasiar devem ser cuidadosamente escolhidas. Parece importante que o terapeuta leve em consideração o sistema motivacional da criança, buscando as propostas mais agradáveis para ajudar a formação do vínculo terapêutico, fazer confrontos e bloquear esquivas. Mas a agradabilidade não deve ser desvinculada dos objetivos da terapia, que podem ser, até, apenas promover relaxamento e descontração ou instalar o próprio comportamento de fantasiar e sonhar acordado, ou, ainda, evocar reações emocionais desagradáveis. De fato, a estratégia em si (estruturação, oportunidade) para fantasiar não deve se tornar o ponto central do processo, como se sua simples ocorrência fosse suficientemente terapêutica. Também não deve haver competição entre o prazer da manipulação dos recursos lúdicos com base nos quais se fantasia (bonecos, argila, fantoches, desenhos, por exemplo) e os objetivos terapêuticos traçados. Isso pode ocorrer, por exemplo, com crianças que enfrentam muita privação de brinquedos e da atividade de brincar. Atento a isso, o terapeuta pode criar oportunidade para o comportamento exploratório em sessão, para análise familiar desse fato, e favorecer outras oportunidades no ambiente externo para tal comportamento. Citam os com o exem plo de fantasiar um caso atendido pela terapeuta Jaíde, que mostra o uso da fantasia em situação psicoterapêutica e a utilização de questionamentos que possam favorecer a mudança do comportamento verbal.
a)
A cliente: criança de 7 anos, com dificuldade intensa de ficar
na escola sozinha e de separar-se da mãe em qualquer situação. Relata pensamentos “ruins” de que alguma coisa aconteça com a mãe e o pai. Não deixa a mãe sair em nenhuma situação, chora muito nas poucas vezes em que isso acontece. Tem um irmão de 11 anos.
Estudos de caso 105
b) Desenho/fantasia: foi solicitado um desenho em quadrinhos, sendo dado o título “A pata e a patinha”, para criar uma situação dirigida que levasse a criança a descrever relações entre a pata e a patinha, e procurou-se, posteriormente, o correspondente entre mãe e filha. A folha foi dividida em seis quadrinhos e entregue à criança. Após o desenho, foi solicitado a ela que contasse uma história baseada nele. c) “Era uma vez... duas patinhas. Elas tavam nadando no lago. Depois elas queriam ir pra casa delas, mas não sabiam ir, porque elas não sabiam onde era, elas não sabiam o caminho. Mas, depois, a mãe disse pra não sair de casa pra não se perder. E elas foram teimosas e saíram. Depois as duas, elas foram andando, andando e foram cada uma pra um lado pra ver se achavam a casa e não acharam e se perderam numa floresta e a patinha que era a mais pequenininha, ela encontrou uma patinha que era a vizinha dela. E a vizinha também não sabia voltar. Aí, elas foram caminhando, caminhando. Aí elas tombaram, tombaram com a mãe e o pai e os irmãos.” 1.
Terapeuta: Por que elas não sabiam onde era a casa?
2.
Cliente: Porque a mãe não tinha avisado que a casa era desse lado, nem tinha dado o mapa, e elas eram pequenas. Ela tinha dado o mapa e ele afundou no lago. Elas perderam o mapa, tá no fundo aqui.
3.
T: Por que elas foram teimosas?
4.
C: Porque elas queriam sair de casa
pra brincar com os
amigos, porque elas viam os outros brincando, elas queriam também. 5.
6
T: E os outros eram teimosos?
7.
T: Os que elas viam brincando.
. C: Qual?
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8
C: Eram. Não.
9.
T: Por que os outros não eram teimosos?
.
10. C: Como? 11. T: Por que os outros saíam e não eram teimosos? 12. C: Porque a mãe deixava e eles já sabiam o caminho de casa. 13. T: Então, a mãe deles não tinha medo? 14. C: Não, não, mas a mãe das duas tinha. 15. T: Ela tinha medo do quê? 16. C: Que elas se perdessem. 17. T: Se a mãe das duas perdesse o medo, elas também perderiam? 18. C: Daí, elas também iam perder. Não. 19. T: Por que, se a mãe perdesse o medo, elas não iriam perder? 20. C: Porque elas são uma e a mãe é outra. 21. T (rindo): Você é esperta, hein?! 22. C (rindo): E se elas perdessem [o medo], a mãe não ia perder. 23. T: Se elas são uma e a mãe é outra, por que elas não são duas? 24. C: Elas são duas, mas juntas, porque elas ficam todo dia juntas. 25. T: E o que elas podem fazer sozinhas? 26. C: Elas podem ir no parquinho. Podem ir na casa da amiga, da avó, da tia. 27. T: Se elas podem fazer tudo isso, elas estão juntas. 28. C: É. Na escola também. 29. T: Então, o que cada uma pode fazer sozinha? 30. C: Dormir, porque cada uma tem um quarto. 31. T: O que mais? 32. C: Podem... ir também na casa da tia, da vó, sozinha, da amiga, porque cada uma tem uma amiga. Quando uma vai
Estudos de caso 107
na casa da vó, a outra fica em casa, ou pode ser, quando uma vai na casa da vó, a outra vai na casa da tia. 33. T: E o que a patinha sente quando ela vai sozinha na casa da vó? 34. C: Nada. 35. T: Nada é o quê? 36. C: Não. Ela sente saudade da irmã. 37. T: E o que ela faz quando sente saudade? 38. C: Pede pra vó ou pra tia levar ela embora. Depois os irmãos foram pra casa, beberam água e a mãe deixou eles irem no parquinho. E a mãe deu um mapa pra eles saberem voltar pra casa. 39. C: Eu já sei como elas se separam: elas marcam no papel o telefone e ligam. 40. T: Que boa ideia! 41. C: Fàla se tá bem. Uma vai na casa de cada um e marca o telefone. 42.
T:
E se ficar preocupada?
43.
C:
É só ligar.
44. T: Não precisa chorar? 45.
C: Não. Vou ligar: tô com saudade. Aí um fala pra cada um: “Eu vou te buscar pra ir pra casa, porque eu tô com saudades da mamãe.” Daí um fala assim: “Eu também.”
d)
Análise: o questionamento conduz a uma descrição mais
detalhada dos sentimentos e dos padrões de comportamento que ocorrem com os personagens da história. Tais relatos verbais apresentam alguma correspondência com as situações descritas pelos pais na entrevista e com os relatos feitos pela criança das situações do dia a dia.
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Uma característica relevante do uso da fantasia é levar a criança a encontrar outras alternativas de comportamento para os personagens e/ou para as situações semelhantes às de sua vida quando há dificuldade para trazer diretamente para a psicoterapia o material do dia a dia, o que quase sempre ocorre. Na história, a mãe é colocada como responsável por as patinhas terem-se perdido, pois não avisou que a casa era desse lado e não deu o mapa (2). O terapeuta não pergunta por que a mãe não deu o mapa, o que poderia ajudar na suposição de que a mãe não cuidou direito das patinhas. A criança justifica o fato de as patinhas não saberem achar a casa por serem pequenas (2); em seguida, retira a culpa da mãe ao mudar a história: ela deu o mapa e ele afundou; eles perderam o mapa (2). Conforme a criança relata a história, vai fazendo ajustes. Será que a ocorrência do relato auxilia na discriminação dos significados verbais, daí os ajustes? Ao tirar a culpa da mãe, coloca-a nas patinhas: elas foram teimosas (3). A mãe faz ameaça: se forem desobedientes e saírem, podem se perder. Ou a ameaça é outra, caso se separem da mãe, se perdem? A regra contida nessa relação condicional com descrição da consequência poderia ser efetiva para desencadear respostas emocionais de medo de separação? As hipóteses são: a) a mãe tenta ameaçar o comportamento desobediente com separação; b) a mãe tenta impedir o comportamento de separação com ameaça de separação. Ao tentar estabelecer uma correspondência entre a regra da mãe da patinha e a possível regra estabelecida pela mãe da criança, encontramos semelhanças, uma vez que a mãe relata medo de separar-se da filha em muitas situações e apresentação desse mesmo problema em sua própria infância. A criança é levada pelo terapeuta a verbalizar por que as patinhas foram teimosas (3), e diz que apenas queriam sair e brincar com amigos (coisas que a menina não vem fazendo em seu dia a dia). Com a pergunta “E os outros eram teimosos?” (5), a criança é levada a relacionar: se
Estudos de caso 109
as patinhas saíram e foram teimosas, então, os amigos que elas viam brincando e que saíram também eram teimosos. Se patinha sai = patinha teimosa; se amigo também sai, então, amigo = teimoso? A criança parece não compreender a questão inicialmente; parece não estabelecer a relaçãW_e^pergunta: Qual? (6). Primeiro, confirma que eram teimosos e, em seguida, diz que não (8). Para investigar se a regra era “nem todos os que saem para brincar são teimosos” foi indagado: por que os outros não eram teimosos? (9). A criança agora é levada a questionar as desigualdades: “se a patinha sai para brincar, então, é teimosa” e “se os amigos saem para brincar e não são teimosos”, por que isso ocorre? A criança parece confusa, parece não compreender a pergunta (10). Os termos que foram om itidos e estavam im plícitos são especificados: “por que os outros saíam e não eram teimosos? Agora, a criança compreende e responde “que a mãe deles deixava” (por isso, não eram teimosos) e porque eles sabiam o caminho de casa (12). A criança é levada a relacionar: “se a mãe das patinhas não as deixava sair e avisava que iriam se perder se saíssem” e “elas não sabiam o caminho; não tinham o mapa; se a mãe dos amigos deixa sair e eles sabiam o caminho de casa”, então, “a mãe dos amigos não tinha medo?” (13). Aqui, a menina, brilhantemente, conclui que a mãe deles não tinha medo, mas a mãe das duas [patinhas] tinha [medo]. E explicita o medo de “que eles se perdessem” (16), e é levada a estabelecer uma relação funcional entre o medo da mãe e o medo das patinhas: “Se a mãe perdesse o medo, elas também perderiam?”( 17). A menina confirma a relação entre os medos de uma e outra e, em seguida, nega; explica por que não há relação entre o medo das patinhas e o medo da mãe: “Elas são uma e a mãe é outra” (20); nesse momento, a criança desconecta as emoções entre as patinhas e a mãe, mas conecta as duas patinhas como se fossem uma; provoca riso na terapeuta (21) pela forma interessante como vai estabelecendo as relações.
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Ao ser elogiada (21), a criança se anima e arrisca uma outra relação sem ter sido solicitada pela terapeuta; agora, uma relação simétrica, uma vez que aponta o inverso como verdadeiro: “E se elas perdessem [o medo], a mãe não ia perder” (22). A menina é levada a identificar que coloca duas patinhas como uma: “Se elas são uma e a mãe é outra, por que elas não são duas?” (23). Essa questão provocou uma alteração no comportamento verbal: “Elas são duas, mas juntas...” (24). A menina é conduzida a diferenciar ainda mais essas duas patinhas como seres que fazem coisas separadas: “E o que elas podem fazer sozinhas?” (25). A menina descreve algumas situações (26) em que parece, ainda, que as patinhas são juntas. É novamente questionada sobre estar junto (27) e confirma o estar junto mesmo na escola (28). A pergunta é, então, alterada, em vez de “o que elas podem fazer sozinhas?”, pergunta-se “o que cada uma pode fazer sozinha?” (29). Pela primeira vez, a menina separa as duas: “dormir, porque cada uma tem um quarto” (30). Especifica outras coisas que podem fazer sozinhas, procurando deixar bem claro que, enquanto uma está na casa da avó, a outra fica em casa (32). Procurou-se, então, levá-la a descrever os sentimentos da patinha quando esta fica na avó e se separa da irmã (33). Primeiro, responde: “Nada” (34). Pede-se que explique (35). E ela diz que “sente saudade da irmã” (36). Agora, a preocupação da terapeuta é levá-la a descrever como a patinha se comporta quando sente saudade (37). A menina descreve alternativas de comportamento para as situações em que a patinha se separa: “Pede pra vó ou pra tia levar ela embora” (38). A história segue com mudanças no relato verbal: “Os irmãos foram pra casa, beberam água e a mãe deixou eles irem no parquinho. E a mãe deu um mapa pra eles saberem voltar pra casa.” Troca “elas” por “eles”, e passa a usar “irmãos” (38). Começa a verbalizar outras alternativas de comportamento para as situações de separação sem ser solicitada (38,
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41, 43 e 45). A pergunta “não precisa chorar?” (44) provoca indução de resposta; seria mais correto perguntar: “O que poderia fazer em vez de chorar?” Observa-se que ocorre mudança no comportamento verbal da criança, que pode aumentar a probabilidade de ocorrer mudança no comportamento não verbal correspondente (Catania, Mathews e Shimoff 1990). Na sessão terapêutica descrita, podemos ressaltar a diferença entre os procedimentos utilizados nas décadas de 1960 e 1970 e as intervenções que se baseiam numa análise do relato verbal, em que as hipóteses vão sendo levantadas pela terapeuta durante a sessão e imediatamente investigadas, seguidas de intervenções que se propõem a alterar o comportamento verbal, produzir discriminações e quebrar regras disfuncionais.
Os recursos lúdicos Implícito em muitas estratégias terapêuticas, está o uso de recursos lúdicos. Acreditamos que eles podem ajudar no processo de várias formas. O quadro a seguir mostra algumas possibilidades. QUADRO 2: USO DE RECURSOS LÚDICOS NA PSICOTERAPIA INFANTIL1
1. 2. 3.
1.
FUNÇÕES DO USO DO RECURSO LÚDICO NA TERAPIA INFANTIL Ajudar o terapeuta e a terapia a serem mais bem aceitos pela criança, valorizar o espaço e a atividade._______________________________________________ Identificar recursos potencialmente reforçadores, que poderiam ser usados para alterar a queixa e solucionar problemas de interação no ambiente “natural”da criança. Avaliar o grau de desenvolvimento da criança.___________________________
Este quadro é baseado em Conte (1996), que descreveu os usos que fez dos recursos lúdicos na psicoterapia de grupo com adolescentes.
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4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16.
Identificar as características das interações estabelecidas entre a criança e pessoas significativas de seu ambiente._________________________________ Identificar relações de contingências relacionadas com a queixa.____________ Identificar sentimentos, sensações e pensamentos que a criança tem diante de determinadas situações e pessoas._____________________________________ Identificar que conceitos e/ou autorregras a criança já formulou e como isso se relaciona com seus comportamentos públicos.___________________________ Verificar e provocar o aparecimento de reações emocionais da criança e de familiares em situações específicas.____________________________________ Analisar com a criança, “ao vivo”, comportamentos públicos e privados que tem diante de determinadas situações._____________________________________ Ajudar a criança a identificar os efeitos que suas respostas têm no ambiente, bem como ajudá-la a fazer relações entre suas respostas públicas e privadas. Ajudar a criança a formular autorregras e conceitos mais realistas.___________ Realizar processos de solução de problemas cotidianos por meio de situações simuladas._________________________________________________________ Modelar respostas alternativas mais adaptativas; desenvolver habilidades. Avaliar a relação terapêutica.__________________________________________ Ampliar os recursos criativos e lúdicos da criança.________________________ Estimular o desenvolvimento da inteligência geral.________________________
Como pode ser visto, os recursos casam-semuito bem os propósitos da análise do comportamento,embora
com
não deforma
“automática”, como já salientado. Apenas à guisa de ilustração, listamos algumas estratégias e recursos que o terapeuta pode usar em seu dia a dia.2
•
Formar, completar, interpretar, recontar histórias em quadrinhos, com base em gravuras ou outros textos;
•
2.
brincar com bonecos, bichos e casinha de bonecas;
Esta lista também foi parcialmente apresentada em Conte (1996).
Estudos de caso 113
•
trabalhar com argila, massa de modelar ou massa de farinha de trigo;
•
dramatizar com fantoches ou máscaras e outros, com base em propostas ou livremente;
•
realizar “viagens” de fantasia;
•
fazer atividades fora da clínica (na rua ou em parques, por exemplo) com o terapeuta;
•
trazer amigos para realizar atividades nas sessões de psicoterapia;
•
construir e realizar jogos de salão;
•
elaborar desenhos com base nas fantasias, vivências pessoais ou sob instruções (desenhos de si, da família, de ambientes e da escola, entre outros);
•
realizar movimentos corporais ou dança para expressão de sentimentos, pensamentos, ideias;
•
realizar atividades de mímica, imitação de bichos e outros;
• ^realizar pintura (cega, com olhos abertos, com as mãos, com os pés etc.); •
interpretar, compor músicas, poesias, textos, superstições, ditados populares, expressões e paródias;
•
analisar sonhos;
•
construir painéis e murais;
•
construir coisas com instrumentos de carpintaria, sucata e arame;
•
realizar associação de palavras;
•
assistir a filmes e interpretá-los;
•
realizar registros comportamentais.
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Os registros são geralmente vistos como um recurso custoso, contudo, podem ajudar a criança a observar-se tanto em suas dificuldades como em seu progresso. Podem também melhorar a observação sobre a relação entre seus comportamentos e outros eventos do ambiente, o que favorece a análise e a compreensão do que lhe ocorre, ajudando no processo de autoconhecimento e autocontrole. Ainda, quando o registro é feito com ajuda dos pais, ele cria oportunidade para que estes também analisem seu próprio comportamento em relação ao comportamento da criança, prestem atenção a ela como pessoa, e pode evocar a negociação e o acordo entre pais e filhos, aumentando a previsibilidade da criança quanto ao comportamento dos pais; pode, ainda, prever comportamentos “saudáveis” para pais e filhos (quando, então, as práticas de controle aversivo podem ser evitadas ou reduzidas); ajuda na formulação de novas regras diante das contingências mais bem percebidas e promove o aumento da responsabilidade da criança e dos pais no processo. De fato, os registros podem, mas nem sempre precisam, prever consequências arbitrárias para os comportamentos. Consequências arbitrárias, em muitos momentos, podem ser necessárias, mas devem ser usadas com cautela e logo retiradas, para evitar os problemas já bem colocados há muito tempo por Fester (1979), entre outros.
Os pais na psicoterapia Como já foi descrito, a PCI ampliou seu raio de ação na criança, o que não significa uma diminuição de seu trabalho com os pais. Ao contrário, a inclusão dos pais dá-se, hoje, mais intensamente. O terapeuta reconhece que:3
3.
A lista que segue também foi parcialmente apresentada em Conte (1996).
Estudos de caso 115
1. Os pais geralmente estão em contato com as crianças mais tempo do que qualquer outra pessoa, portanto, sua influência sobre o comportamento delas deve ser importante. 2. Os pais detêm o controle sobre a administração de punição e de reforçamento. 3. Os pais podem ajudar a crian ça a gen era liza r seu comportamento para novos ambientes. 4. Os pais podem ter falta de habilidades pessoais importantes e que se relacionem com a determinação das queixas apresentadas sobre a criança, necessitando de ajuda pessoal. 5. Os pais podem ter autorregras ou conceitos prejudiciais à adaptação, ao crescimento e ao desenvolvimento pessoal da criança que merecem ser revistos.
6
. Os pais podem estar submetidos a contextos (em sua vida pessoal, social, econômica ou conjugal) que favoreçam a ocorrência frequente de relações indesejáveis com a criança. Eles precisam se dar conta disso e tomar decisões sobre como lidar com tais contextos.
7. Os pais podem ter percepções impróprias sobre a criança e seus comportamentos, em razão de seus problemas pessoais, e precisam identificar esse processo e alterá-lo.
8
. A criança pode modificar-se e os pais podem não perceber tal modificação e continuar “reagindo à criança que viam” e não à que é “real” agora, atrapalhando o desenvolvimento dessa criança. Por isso, devem sempre acompanhar o trabalho do terapeuta e ser “informados” dos ganhos observados.
9. Os pais podem ter dificuldades sensoriais e de estabelecer vínculo com suas crianças. Os pais, muitas vezes, precisam eles mesmos de psicoterapia pessoal ou conjugal.
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Na verdade, como já visto, é com os pais que o terapeuta inicia sua análise, tendo como ponto de partida o conhecimento de suas queixas. Ele busca conhecer como a queixa se caracteriza no dia a dia, quais comportamentos da criança os pais incluem sob esse rótulo e quais eventos antecedem e sucedem a queixa. Segue, então, em busca de informações mais amplas sobre as relações dos pais com o filho, dos pais entre si e de outras configurações de seu contexto. Busca conhecer as dificuldades pessoais deles, basicamente as que os impedem de estabelecer uma relação afetiva com a criança, de ser mais responsivos a ela, de funcionar como bom modelo e de ser adequados na identificação, na administração e na alteração das contingências do dia a dia. Procura rever suas histórias de vida, buscando conhecer os eventos que podem ter favorecido o estabelecimento e a manutenção do atual padrão de interação pais-filhos, e que possa dificultar mudanças comportamentais. Assim como com a criança, além de buscar informações por meio do relato verbal, o terapeuta deve tornar as sessões um espaço para observar as relações dos pais entre si, e as características de sua própria relação com esses pais, na busca de comportamentos clinicamente relevantes. O quadro a seguir mostra aspectos que podem ser investigados nos pais e na criança, pelo terapeuta, e sua justificativa de inclusão no processo de análise.
Estudos de caso 117
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