Dessensibilização sistemática por imagens

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C A P IT U L O

Sistemática por Imagens M á r cia da R . P itta F e r r a z

A Dessensibilização Sistemática (DS), uma técnica tera­ pêutica derivada de procedimentos de aprendizagem, é amplamente empregada em casos de comportamentos de evitação, fobias ou outros padrões de comportamento que envolvem respostas de ansiedade. Essas respostas com­ põem-se de elementos associados a uma descarga do sistema nervoso autônomo, predominantemente, da divisão sim­ pática: taquicardia, aumento de pressão arterial, hiperpnéia, sudorese, midríase, piloereção, diminuição de salivação. A técnica consiste em levar o cliente a desenvolver respostas contrárias às de ansiedade, numa primeira eta­ pa e, posteriormente, colocá-lo em situações gradualmen­ te controladas em que a estimulação aversiva esteja presente. Isso pode ser feito por meio da imaginação ou ao vivo. O presente texto tratará da técnica de DS por ima­ gens visualizadas mentalmente pelo indivíduo. A DS é um procedimento de contracondicionamento onde são apresentados estímulos reforçadores e aversivos, simultaneamente. O resultado obtido é uma diminuição da freqüência das respostas de esquiva e de ansiedade, mesmo na presença de um estímulo com propriedades aversivas. As aplicações das técnicas do contracondicionamento foram relatadas por Jones (1924), mas a técnica da DS foi desenvolvida mais tarde por Wolpe (1958), que a aplicou numa grande variedade de transtornos comportamentais. Wolpe fundamentou-se nos experimentos clássicos de Pavlov (1927) sobre neuroses experimentalmente induzi­ das. Pavlov condicionou um choque elétrico fraco ao com­ portamento de comer num cachorro. O choque foi sendo

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gradualmente intensificado, enquanto o animal emitia a resposta de comer, até tornar-se extremamente forte. O cachorro continuou a emitir a resposta de comer e não apresentou nenhuma resposta de esquiva ao choque. Após várias repetições do procedimento, fortes descargas elétricas provocavam somente a resposta de comer. Outros estudos com animais de laboratório descreveram respostas de esquiva e ansiedade a um estímulo previamente neutro do contexto, quando o mesmo era pareado com estimulação aversiva. Wolpe (1958) descreveu experimentos nos quais as respostas de ansiedade em animais eram instaladas pela aplicação de descargas elétricas que inibiam seu comportamento de comer. Posteriormente, demonstrou que as respostas de ansiedade poderiam ser eliminadas, pareando-se um estímulo não-aversivo (comida) com a aproximação gradual do animal à jaula onde, ante­ riormente, havia recebido choques elétricos. Wolpe concluiu que as respostas de ansiedade eram reduzidas pela inibição de uma resposta (comer) por outra (medo). Ele propôs a explicação para a redução das respostas de ansiedade nos animais pelo conceito teórico da inibição recíproca. O termo inibição recíproca foi introduzido inicialmente por Sherrington (1947) e se refere à inibição de um reflexo medular por outro, como ocorre quando um nervo aferente causa relaxamento de um músculo contraído por estimulação con­ tralateral. Esse conceito se aplica às situações em que a eliciação de uma resposta parece provocar a diminuição na força de uma resposta simultânea (Wolpe, 1958). Segundo esse autor, as conexões normais entre os choques elétricos e as reações de defesa do animal foram inibidas neurofísiologicamente. A resposta de comer envolve uma inibição recíproca a de esquivar-se do estímulo aversivo, o que expli­ caria por que, mesmo com níveis elevados de intensidade de choque, a resposta de comer continua a ocorrer. Wolpe estendeu essa explicação aos sintomas de an­ siedade neurótica em seres humanos e desenvolveu o procedimento da Dessen­ sibilização Sistemática. Desde então, vários estudos foram realizados e demonstraram a eficácia da técnica de DS, a despeito da suposição teórica sobre a inibição recíproca. Bandura (1969) fez uma revisão desses estudos que investigam a eficiência da técnica e suas variáveis controladoras. Concluiu que os resultados obtidos indicam que as respostas autonômicas e as respostas de esquiva não se relacionavam de m aneira causal e que o relaxamento não era o responsável pela diminuição de esquiva frente ao estímulo aversivo. Ambos, relaxamento e esquiva, parecem ser igualmente afe­ tados no contracondicionamento e o relaxamento funciona mais como um facilitador do que como requisito fundamental para a mudança. O processo de dessensibilização aos estímulos aversivos seria alcançado induzindo atividades incompatíveis com as respostas de ansiedade na presença do estímulo eliciador. Esse efeito sobre o comportamento parecia embasar-se no fato de que os efeitos do condicionamento clássico podem funcionar como mediadores, principalmente por intermédio de mecanismos centrais sobre o comportamento instrumental aprendido. Nesse mesmo trabalho de revisão, Bandura apontou dificuldades metodológicas na realização dos experimentos e concluiu que o processo respon­ sável pelo êxito da DS não foi esclarecido e muitas pesquisas deveriam ser feitas. Wolpe (1958) e Bandura (1969) concluíram que três conjuntos de variáveis se­ riam importantes no processo de dessensibilização, alguns necessários e outros apenas facilitadores:

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1. A seleção de um estímulo neutro, que eliciasse respostas incompatíveis com as respostas emocionais e de esquiva evocadas pelo estímulo aversivo, como relaxamento muscular, alimentos, imagens agradáveis, respostas afetivas e medicações; 2. A seleção cuidadosa dos estímulos que provocariam as respostas de ansie­ dade e esquiva em sua dimensão física e intensidade. A DS geralmente é conduzida selecionando-se estímulos aversivos e neutros por meio da imaginação, pela praticidade em sua aplicação. No entanto, nas situações em que apenas a indução verbal dos estímulos ameaçadores não leva às respostas de ansiedade, faz-se necessário o uso de estímulos com dimensão física (visual ou auditiva - fotos, projeção de slides, fitas gravadas etc.); 3. O processo da DS deve prever que os estímulos neutros e os aversivos sejam apresentados temporalmente de maneira próxima, um após o outro.

PROCEDIMENTO DA DESSENSIBILIZAÇÃO SISTEMÁTICA O primeiro passo da DS é o treino do paciente em relaxamento e discriminação do seu nível de ansiedade. Diferentes técnicas de relaxamento podem ser utilizadas, como o relaxamento progressivo (envolve tensão e relaxamento dos diferentes grupos musculares), o relaxamento passivo (sem exercícios de tensão) e o rela­ xamento autógeno (são elaboradas frases com a finalidade de induzir o estado de relaxamento por sensações físicas como peso, calor, tranqüilidade). É importante enfatizar para o cliente que o relaxamento é uma habilidade que deve ser apren­ dida e praticada diariamente. Inicialmente, Wolpe (1958) utilizava o relaxamento como meio de comunicação entre terapeuta e paciente para informar o nível de ansiedade que o paciente experienciava com apenas um sinal: levantar uma das mãos ao menor indício de ansiedade. Anos mais tarde, introduziu-se a Escala de Unidades Subjetivas de Ansiedade (SUDS) para graduar as situações de estímulo conforme seu potencial provocador de ansiedade. A SUDS tem várias utilizações, sendo empregada: na construção da hierarquia de ansiedade, na avaliação do estado de relaxamento atingido pelo paciente e como uma estimativa, para o terapeuta, do nível de ansie­ dade do paciente durante todo o procedimento de apresentação das cenas amea­ çadoras. Pede-se ao paciente para imaginar a cena mais amedrontadora que puder e se dá a ela o número 100. Em seguida, ele imagina a situação mais tranqüila e agradável que já tenha experienciado e, para ela, atribui-se o número 0. Esses serão os pólos extremos da escala. Pode-se também pedir que o paciente imagine uma cena intermediária que recebe o número 50. Conforme as cenas são apresentadas, o paciente deve atribuir números entre esses valores, com o objetivo de levá-lo a discriminar, cada vez melhor, as intensidades de suas respostas de ansiedade. O segundo passo da DS é a construção da hierarquia de ansiedade, uma lista de situações de estímulo, as quais um paciente reage, relacionadas em termos de conteúdo e graduadas de acordo com a ansiedade que provocam. A hierarquia é construída colocando-se o item mais ameaçador (que teve a maior nota na escala

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SUDS) no topo da lista e, o que provoca menor intensidade, é colocado abaixo. Então, um conjunto de estímulos de mesmo conteúdo é desenvolvido, com a ajuda do paciente, e organizado de acordo com o nível de ansiedade atribuído a cada item. O aumento de intensidade entre um item e o próximo deve variar em 10 unidades, de modo que cada hierarquia tenha cerca de 10 itens. Em alguns casos, é necessário que mais itens sejam introduzidos, de modo que os intervalos de intensidade entre eles ficam menores. A hierarquia de ansiedade é a base para a DS por imagens com o uso de relaxamento. Quando houver dificuldades para o paciente visualizar as cenas solicitadas, ele pode ser treinado para isso. Por exem­ plo, mostrar a figura de umabola e solicitar que ele “veja” essa cena. A complexidade das cenas pode ser aumentada gradualmente ou podem ser utilizados recursos com fotos ou projeção de slides. O trabalho de construção das hierarquias começa com a Análise Compor­ tamental da história do paciente, que relata as diversas situações nas quais ele rea­ ge com uma perturbação desproporcional ao esperado.O próprio paciente fornece os dados durante as sessões iniciais. Outras fontes de dados podem ser utilizadas, como o Fear Survey Schedule (Inventário de Medo)} desenvolvido porWolpe e Lang (1969). O terapeuta deve fazer uma Análise do Comportamento cuidadosa desde o início e durante todo o tratamento, identificando e intervindo nos fatores fun­ damentais relacionados ao transtorno de ansiedade apresentado. Esse é um dos aspectos fundamentais para o êxito do procedimento. O terceiro passo é a aplicação daDS propriamente dita. O paciente, nessa altura, deve estar treinado no relaxamento e na utilização da escala SUDS. A primeira sessão de uso da DS começa com o paciente sendo solicitado a relaxar tão profun­ damente quanto possível. Ele precisa começar a imaginar uma cena que não produza ansiedade (o estímulo neutro). Deve-se ter o cuidado de assegurar que a cena seja visualizada tão vividamente quanto possível e que não sejam incorpo­ rados quaisquer estímulos perturbadores. O terapeuta pede que ele imagine as cenas durante alguns segundos. Em seguida, pergunta ao paciente o grau de an­ siedade que experimentou pela escala SUDS. Se ele atingiu um nível próximo de 0, é introduzida a cena mais fraca da hierarquia por alguns segundos, solicitando-se que o paciente atribua uma nota à ansiedade que a mesma despertou. O terapeuta, então, o conduz novamente ao estado de relaxamento com ansiedade próxima de 0. Reapresenta a cena anterior até que o paciente atinja o nível 0. Uma vez alcançado esse nível, apresenta-se o próximo item da lista e procede-se da mesma maneira, até se atingir o nível 0 novamente. Cada um dos itens é apresentado dessa forma ao paciente até que todo o conjunto seja esgotado. Deve-se ter o cuidado de não apresentar o próximo item cujo grau de evocação de ansiedade é maior, sem que o atual tenha atingido o nível 0. A hierarquia pode ser alterada ou o procedimento repetido sempre que o paciente relatar um aumento de ansiedade a um item que previamente havia atingido o nível 0. Geralmente, as sessões de DS têm uma duração total de 60 minutos, desde o seu início, com o terapeuta retomando os acontecimentos anteriores à sessão, a introdução do relaxamento, a apresentação das cenas, o relaxamento final e o tér­ mino da sessão. Caso não tenha se completado a hierarquia durante uma sessão, a seguinte se inicia pelo item corrente da lista. Pode ser necessária a construção

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de mais de uma hierarquia de ansiedade a qual aborde outro conjunto de estímulos provocadores de ansiedade. Neste caso, utiliza-se outra lista quando a anterior estiver completa. Wolpe (1969) relatou que o número total de sessões requerido é variável mas, em geral, fica entre dez e vinte e cinco. Esse número varia de acordo com as ca­ racterísticas do cliente, da intensidade da fobia, do tamanho da escala e, por essas razões, não se deve prender-se a ele. A seguir são relatados dois exemplos de caso que pretendem ilustrar a utilização da DS em situação clínica.

CASO 1 C é uma jovem de 18 anos, solteira, estudante do 29 ano do curso de Turismo, residente na cidade de São Paulo. Procurou a clínica com a queixa de haver desen­ volvido medo de andar de metrô. Vinha utilizando esse meio de transporte há 1 ano e meio, desde que havia entrado na faculdade. Até então, sua mãe era a res­ ponsável por levá-la e pegá-la na escola. C relatou que, aos 8 anos, teve um pro­ blema pulmonar importante (bronquiectasia), que a levou a ter um brônquio lesado e a requerer cuidados médicos rigorosos para evitar um processo cirúrgico, algo que a assustava muito. Além disso, foi desenvolvendo uma rinite que acumu­ lava líquido no ouvido, provocando tonturas e zumbidos constantes. Essa situa­ ção a tornou dependente de cuidados mais intensos e acompanhamento médico constante. Com o tempo, mesmo com seu quadro médico controlado e em franca melhora, ela foi deixando de sair com amigos e passou a evitar situações que pudessem desencadear uma gripe, como entrar em piscina, mar, beber gelado, sair em noite fria, tomar chuva etc. C passava a maior parte do seu tempo livre em casa. Por ocasião de sua entrada na faculdade, sua mãe intensificou seu trabalho como pro­ fessora, o que a obrigou a usar o metrô para se locomover. C tinha habilitação para dirigir mas não tinha coragem porque poderia sentir-se mal. Cerca de 3 semanas antes de ir pela primeira vez ao consultório, esperando o metrô com uma amiga, C se sentiu tonta, relatou dificuldades para respirar e forte zumbido no ouvido. Não entrou no vagão, com medo de piorar, começou a tremer e voltou para casa, ajudada pela amiga. No dia seguinte, não conseguiu entrar no metrô novamente. A partir disso, com medo de uma nova crise, não queria mais ir para a faculdade e estava disposta a desistir dela, apesar de ser boa aluna e gostar do curso. Fez vários exames médicos, os quais asseguraram que o episódio não havia sido desenca­ deado por uma piora no seu quadro orgânico estável e com bom prognóstico. Foi encaminhada para uma avaliação psicológica. Após algumas entrevistas com C, optou-se por iniciar a abordagem às suas dificuldades pelo medo de andar de metrô, uma vez que ela já havia perdido um grande número de aulas e isso poderia comprometer seu curso em curto prazo de tempo. A técnica escolhida foi a DS, que passou pelas seguintes etapas: 1. Treino em relaxamento e utilização da escala SUDS: Essa fase apresentou dificuldades porque C não conseguia relaxar na posição deitada, pela difi­ culdade respiratória. Foi usado relaxamento progressivo (lacobson) na

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posição sentada. Após duas sessões, C conseguiu atingir o relaxamento e a visualização de uma cena que não evocava ansiedade. Praticava esse exer­ cício em casa, diariamente, como tarefa e descrevia como tinha sido seu desempenho num diário de atividades. Utilizava adequadamente a escala SUDS - sempre que solicitada, atribuía uma nota compatível com os sinais de tensão observados pela terapeuta. 2. Construção da hierarquia: A partir da terceira sessão começou a se cons­ truir a hierarquia que constou do conjunto de itens que segue abaixo, com intensidade crescente de nível de ansiedade. Como cena agradável (neutra): estar deitada no seu quarto, em casa. 2.1 - A mãe bate na porta do quarto, avisando o horário de sair (10); 2.2 - C se levanta (20); 2.3 - Trocando de roupa (30); 2.4 - Saindo do quarto (40); 2.5 - Chegando na rua (50); 2.6 - Andando pela rua sozinha (60); 2.7 - Chegando à estação do metrô (70); 2.8 - Passando pela catraca, em direção à plataforma do metrô (80); 2.9 - Descendo as escadas (90); 2.10 - Entrando no vagão do metrô (100). 3. Dessensibilização Sistemática: Foram apresentados todos os itens da hie­ rarquia, em ordem crescente de nível de ansiedade atribuído por C. A cena agradável era reintroduzida após a apresentação e visualização de cada item da hierarquia. C repetia os passos da hierarquia em casa e fazia um diário no qual registrava as notas que havia atribuído para cada item e as possíveis dificuldades que ocorressem. Na terceira semana, com a hierarquia preenchida várias vezes, em casa e no consultório, ela resolveu ir sozinha à faculdade de metrô. Relatou que sentiu muito medo mas resolveu enfrentá-lo. Praticou o relaxamento dentro do vagão e percebeu a ansiedade diminuindo. Ficou tranqüila na volta para casa. A partir deste episódio, C decidiu sair sozinha para outros lugares e enfrentar suas sensações físicas. Com o prosseguimento das sessões, foram estabelecidas novas metas de tra­ tamento, que incluíram um treinamento de habilidades sociais. Após 8 meses de terapia, as sessões passaram a ser mensais. C continuava utilizando o metrô sozinha, começou a dirigir nos finais de semana e a ter mais contato com pessoas de sua idade. Após o término das sessões, C passou a trabalhar como estagiária numa agência de turismo, longe de sua casa, e continuava mantendo as melhoras conseguidas.

CASO 2 T é uma menina com nove anos de idade, no início da terapia, freqüentando a 3- série do ensino fundamental. Foi encaminhada pela pediatra para uma avaliação psicológica. Os pais se queixavam que havia 2 meses que T não dormia mais sozinha no seu quarto, indo todas as noites para a cama dos pais. T apresentava dores difusas no abdome, dores de cabeça e dizia ter muito medo de perder os pais. Suas

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notas haviam piorado na escola e estava com problemas de relacionamento com as amigas. Os pais não conseguiam identificar nenhum acontecimento fora da rotina que pudesse relacionar-se às queixas atuais. Sua mãe dizia que T era auto­ ritária com amigas e primos com os quais convivia bastante. Na sua história de vida, T teve algumas complicações no nascimento que ocorreu no início do 99 mês de gestação. Os pais ficaram muito aflitos pois haviam passado por uma ges­ tação anterior interrompida no 42 mês. Aos 2 anos, T teve desidratação e pneumo­ nia e foi hospitalizada. Seus pais ficaram preocupados e mostravam ansiedade frente a qualquer sinal de doenças em T. Eles possuíam dificuldades em colocar limites, sendo muito permissivos com as duas filhas. T se impressionava facilmente com filmes e histórias que lhe contavam. Brincava bastante tempo sozinha, fanta­ siando situações. Seus pais diziam “Ela não quer crescer.” A partir de observações realizadas em sessões de terapia individuais e em situações de grupo, observou-se que T possuía um nível intelectual adequado para sua idade, apresentava bom relacionamento com a terapeuta, mas tinha dificuldades no relacionamento com as crianças do grupo pois não iniciava conversas e só respondia ao que era neces­ sário. Para ela, o horário de dormir era muito difícil e procurava prolongar ao má­ ximo o momento de ir para a cama, o que significava sempre uma briga com seus pais, que acabavam por deixá-la ir para o quarto deles. A família, da religião espí­ rita, afirmava que T era muito sensitiva, tinha dons mediúnicos e poderia estar tendo problemas com isso. Depois de algumas sessões individuais, T disse que nunca mais dormiria no seu quarto porque sua irmã (com 12 anos) e sua prima (10 anos) haviam visto seu avô falecido lá, passando, então, a estar certa de que isso iria acontecer com ela também. T ficou pálida, chorou, dizia que sua barriga doía e foi para o colo da terapeuta, que procurou acalmá-la e questionar a veraci­ dade dessa narrativa. Não foi possível fazê-la sequer duvidar, mas ela concordou em tentar voltar para o quarto bem devagar. Optou-se pela DS por imagens e orientação com a família. Na prim eira etapa da DS, foi utilizado o relaxamento progressivo de Jacobson. Como cena neutra, T escolheu visualizar a si mesma e toda a sua família brincando na piscina do sítio. Ela colaborou muito bem e dizia gostar do relaxamento. Enquanto a DS era ini­ ciada nas sessãos individuais, as de grupo prosseguiam, com o objetivo de identi­ ficar dificuldades na sua interação com as outras crianças e modelar padrões mais adequados. A família participava de sessões de orientação com o objetivo de le­ vantar conteúdos de crenças religiosas, filmes ou mesmo padrões de interação entre T e sua irmã que pudessem se relacionar às respostas de medo. Em nenhum momento foram questionadas as crenças religiosas da família, apenas ponderouse que T estaria com problemas na maneira de interpretá-las, achando que veria um espírito no seu quarto. A família colaborou muito nesse sentido. A segunda etapa, construção da hierarquia, foi feita juntamente com T e, com ordem crescente de intensidade de estímulos provocadores de ansiedade, era a seguinte: 1. T saindo da escola no final da tarde (10); 2. Brincando na sala, antes do jantar (20); 3. Tomando banho (30);

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4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

Colocando o pijama (40); Jantando (50); Brincando na sala, depois do jantar (60); Na escada, indo escovar os dentes (70); Escovando os dentes (80); No corredor, indo para seu quarto (90); Na sua cama, dentro do quarto (100).

Não houve dificuldades para imaginar as cenas e as notas da escala SUDS eram atribuídas corretamente, ou seja, sempre que requeridas. T classificava seu nível de tensão com notas adequadas às respostas corporais que podiam ser observadas pela terapeuta (se ela estava com os maxilares tensos, ombros contraídos, mãos contraídas etc.) Na terceira etapa, começou-se a dessensibilização, feita cuidadosamente, cada item sendo reapresentado até que se atingisse o nível 0 por três vezes. Só depois passava-se para o item seguinte. A cena agradável era reintroduzida após apre­ sentação de cada um dos itens da hierarquia. Chegou-se ao final da lista em cerca de cinco sessões. T concordou em dormir no seu quarto. Depois de algum tempo lá dentro, sozinha, não conseguiu continuar ali, apresentando respostas de medo acentuadas. A sua mãe acabou ficando com ela até que pegasse no sono. Quando a mãe tentava sair, ela respondia com bastante ansiedade. T começou a não querer ir para a escola e a se queixar de isolamento. As sessões individuais e de grupo prosseguiram. Numa delas, T disse que realmente os espí­ ritos apareciam, sua irmã jurou que havia visto um e, como a terapeuta não acre­ ditava neles, eles não apareciam para ela (terapeuta) mas sua família sabia que eles existiam (todos eram espíritas) e ela (T) ouviu os adultos conversando sobre os ruídos que ouviam na casa do sítio e que eram atribuídos às almas que haviam morado ali antes deles e que tinham sofrido muito (tinha ocorrido um suicídio). A terapeuta tentou um questionamento para essa afirmação: se os espíritos apare­ cessem realmente para as pessoas, deveriam fazê-lo para quem acredita nisso e para quem não acredita também. O problema não era acreditar neles, mas que eles até o momento não apareceram para ninguém. Ela não argumentou mais. As sessões com a família passaram a ser semanais. A mãe foi orientada a se retirar gradualmente do quarto na hora de dormir, a não responder às perguntas insistentes com relação a esse tópico desde a saída da escola, a reforçar compor­ tamentos incompatíveis com as respostas de medo e a ignorar o choro quando saísse do quarto de T. Nas sessões individuais se optou por outro procedimento. A terapeuta utilizou um livro infantil, que narrava a história de uma menina que tinha tanto medo do Lobo Mau que não saía mais de casa. No livro, a personagem acaba com seu medo quando o encara firmemente e transforma o lobo em bolo. T resolveu fazer o mesmo e, junto com a terapeuta, escreveu os nomes do que lhe provocava medo em pedaços de papel. Os papéis eram recortados para montar novas palavras com outro signi­ ficado, geralmente inofensivo. A palavra “assombração” virou “brassomção”, “fan­ tasma” se tranformou em “mastanfa” e assim por diante. Era uma tentativa de colocar o comportamento de ansidade deT sob outro controle de estímulos no qual se fez

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um fad in g ou t da palavra ansiógena e xim fadingin de outras palavras. Satisfeita, T riu bastante e sugeriu que se fizesse o mesmo na situação de grupo. Ela mesma contou a história do livro e orientou os recortes. Fez o mesmo em casa, com as primas menores. Depois de duas semanas, comunicou à mãe que dormiria sozi­ nha no seu quarto. Não houve mais recaídas. T fez mais 4 sessões individuais, após seu primeiro dia dormindo sozinha no quarto e passou a freqüentar somente as sessões de grupo. Seus pais continuaram as orientações, agora mensais. T melhorou seu relacionamento com as crianças do grupo e começou a participar de trabalhos em equipes na própria escola. Após 6 meses, ela começou o processo de alta. A duração total da terapia foi 20 meses. Contatos posteriores, que a própria T fez com a terapeuta, mostraram que os resultados positivos em relação ao medo se mantiveram e que seu desempenho na escola havia melhorado. Os dois casos relatados ilustram a utilização da técnica de DS em clínica. No primeiro caso, a DS se mostrou um instrumento importante para aumentar a fre­ qüência de comportamentos incompatíveis com as respostas de ansiedade frente a uma situação específica. O princípio teórico no qual se fundamenta a DS ainda não foi suficientemente esclarecido, mas sua eficácia é reconhecida e extensamente corroborada por numerosos estudos. No entanto, no caso da menina T, somente o uso da DS por imagens não se mostrou efetivo. Inicialmente, mostraram-se aspectos positivos ao eliminar as respostas de ansiedade dentro da situação clínica, mas a generalização desses resultados para as situações naturais não ocorreu. Foi neces­ sário empregar um manejo de contingências dentro do ambiente familiar e a ex­ posição em uma outra dimensão dos estímulos que provocavam as respostas de medo. A relação com a terapeuta também foi um dos elementos que contribuíram para atingir os objetivos propostos. Uma vez que respostas mais adequadas ocorre­ ram, elas foram prontamente reforçadas pela terapeuta, pelas outras crianças do grupo (na clínica) e em ambiente natural (em casa, com os pais e primos), o que facilitou a ocorrência e manutenção desses comportamentos na escola e com os amigos. Nesse caso, a abordagem envolveu vários procedimentos para diferentes aspectos, combinando exposição gradual, eventos neutralizadores de ansiedade e reforçamento de comportamentos incompatíveis, o que foi mais efetivo na extinção dos comportamentos de esquiva do que a utilização de uma técnica isoladamente.

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