DESVENDANDO OS SEGREDOS DA LINGUAGEM

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AULA 01 tema:

QUAL É A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM E POR QUE VOCÊ DEVE DOMINÁ-LA?

Seja bem-vindo às transcrições do nosso primeiro desafio. Aqui, você há de encontrar todo o conteúdo que lhes foi transmitido nas lives de uma forma já mais ordenada e, por assim dizer, “coada”. Quaisquer imperfeições ou repetições que ultrapassavam o caráter de ênfase e caiam no campo do tagarelar foram cortadas. Também passei a faca em referências orais imediatas, rearranjei a ordem da exposição para tornála mais clara e, no geral, transformei o que era uma transcrição nua e crua em textos com mérito e direito de existência próprios.

Nestas 14 aulas havemos de abordar filosofia da linguagem, literatura, a estrutura e funcionalidade da gramática, o analfabetismo funcional, métodos de leitura, as consequências de uma pobreza linguística e muito, muito mais. Na verdade, aqui se verá um pouco de quase tudo o que envolva escrita e comunicação. O que posso lhe garantir é que, ao final das 14 transcrições, sua compreensão quanto à importância da linguagem e os meios para aperfeiçoá-la estará muito mais clara.

Pois a verdade é que a linguagem – essa capacidade quase milagrosa de articuladíssima comunicação humana – e a língua portuguesa, uma de suas manifestações, são rebaixadas de sua nobre condição ao status de simples ferramentas descartáveis que servem, quando muito, apenas como meios para o fim de passar num concurso público ou mandar bem numa redação do ENEM.

No início deste desafio, a ideia é eu lhes dar uma base para que sobre ela construamos nosso edifício de conteúdo. Neste primeiro dia, havemos de falar sobre por que você precisa se preocupar com sua linguagem e como poderá, com o conteúdo exposto nos 14 documentos dessa série, trabalhar em si mesmo a capacidade linguística que eu venho trabalhando, sem parar, nos últimos 5 ou 6 anos.

LÍNGUA E LINGUAGEM Primeiro, distinções: linguagem é a capacidade humana de transmitir, por meio de uma série controlada de signos sonoros ou escritos (os fonemas ou as letras do alfabeto), a massa de experiência e percepções que recebemos do mundo interior e dos sentimentos. Portanto, capacidade de organizar o caos do mundo por meio da habilidade expressiva. A linguagem é a potência. As línguas são suas manifestações concretas.

Todas as línguas são linguagem. Nem toda linguagem já se manifestou numa língua.

A linguagem é, no fundo e no limite, o que nos separa dos bichos. E isto porque não é um trabalho fácil separar a racionalidade da capacidade linguística. Poderá existir razão que não se articule numa linguagem ordenada? Até que ponto pode-se falar em linguagem sem que se fale do poder racional humano de

ordenar, distinguir e hierarquizar elementos? Um tatu-bola, por exemplo. Não é um bicho racional — e, portanto, não é capaz de suplicar “por favor” a uma cobra ou escrever poesia. O tatu-bola não é capaz de refletir sobre sua experiência. O cachorro, por exemplo, não para e se pergunta: “Mas por que é melhor comer um pedaço de bife do que minha própria merda?” O cachorro apenas come o bife, sofre a sensação gostosa e pronto. A sensação não se lhe abre à consciência como conceito.

Dá-se o mesmo com os bebês. Meus filhos, por exemplo, agora começaram a comer comida. Num dia, comeram banana. Noutro, pera. Depois, mandioquinha. Ambos não gostaram da mandioquinha. Fizeram cara de nojo, cuspiram e lhe viraram a cara. Nenhum deles pensou consigo mesmo: “Não gostei da mandioquinha e gostei da pera porque existe algo chamado paladar; um dos cinco sentidos humanos, responsáveis por ser a ponte entre nós e o mundo externo.” Só fizeram a cara de nojo ou abriram o sorriso do prazer imediato.

Tente imaginar, por um instante, um ser racional que não tenha linguagem. Tente imaginar o poder da razão separado e desligado da capacidade expressiva de refletir sobre os dados da experiência e ordenálos interiormente.

Difícil, não é? Os filósofos da linguagem vêm saltando feito cabritas para tentar descobrir onde começa uma coisa e termina a outra. Quando um homem come o bife logo pode subir à sua mente, por meio da linguagem: “olha, comer um picadinho é melhor do que sentar e comer bosta.” Portanto, a linguagem livra o homem da escravidão da simples repulsa e atração sensoriais e o instala num reino mais elevado, acessível apenas pela razão. Bichos e bebês aí não entram.

Por que, então, você deve se preocupar com sua linguagem?

Porque você pertence à raça humana. Não é um cachorro. Não estou falando com estrelas do mar, ou escrevendo a tamanduás. Não quero melhorar a qualidade e substância da vida de cocos. Ser humano implica uma dignidade especialíssima. Somos únicos. Mortimer Adler, em seu famoso livro sobre a leitura1, descreve o momento exato em que a criança, como se por um mágico estalar de dedos, dáse conta de que as palavras, aqueles sinais gráficos que se juntam uns aos outros e se aglomeram em longas cadeias de palavras, querem dizer algo 1

“Como Ler Livros”, É Realizações

e se referem a alguma coisa fora deles. Isto é dizer: que são símbolos. E o grande estudioso arremata: não sabemos como isso acontece. Não sabemos como se dá o estalo e de onde vem.

É algo mágico. Foi por meio da mágica da linguagem que o homem conseguiu criar suas primeiras comunidades. Que conseguiu estabelecer suas religiões e a participação da comunidade numa cultura. Foi sua mágica que nos tirou do isolamento animalesco e abriu a possiblidade de cooperação,

sem a qual não existe civilização. Como diria Jordan Peterson: “nunca subestime o poder das palavras. Sem elas, ainda estaríamos vivendo em árvores.” Portanto, apurar sua habilidade e melhorar o seu domínio da língua é melhorar precisamente o que o torna humano. É melhorar COMO SER HUMANO. É ser uma pessoa melhor, com mais capacidade de ação. Alguém que ordena melhor o seu interior e consegue entender melhor os interiores alheios. Que consegue guiar-se melhor na vida. Que consegue ler e interpretar, não só livros, mas pessoas e situações.

Para encerrar: há uma série de palestras do Jordan Peterson que se chama “Biblical Series”. Nela, JP explica a profundíssima importância psicológica dos textos bíblicos. Não importância religiosa, mas psicológica. Peterson aborda a Bíblia como um documento humano absolutamente rico e se pergunta qual é sua relevância psicológico. Aborda, por exemplo, o começo do Evangelho de João e fala sobre a reivindicação do Apóstolo, de que no princípio de tudo havia o Verbo. E que o Verbo era Deus.

Ora, o “Verbo” com que traduzimos o original Logos não lhe esgota todos os sentidos. Logos foi um termo muito usado por diversos filósofos, e adquiriu diversos sentidos de acordo com as diversas filosofias que o usavam como veículo expressivo. Entre os principais estavam o discurso ordenado (humano), o princípio de Ordem que sustenta o Universo e, é claro, Cristo. São João, portanto, liga a linguagem à fundação mesma do Universo.

Não se trata de um simples recursozinho para você passar no ENEM. Trata-se da potência humana por excelência, sem a qual a vida do Homem voltaria à de um animal, apenas sofrendo os vaivéns de uma vida que não para de acontecer para se explicar ou nos dar um manual. A linguagem é a primeira fronteira de domínio do Homem sobre o caos circundante. Importa melhorá-la e refiná-la para que possamos fazer jus à nossa condição.

AULA 02

TEMA:

MINHA TRAJETÓRIA

Neste segundo material do desafio, após assentarmos uma base por assim dizer teórica da importância da linguagem, passaremos a um exemplo prático dos efeitos de sua melhora na vida diária.

E, é claro, o exemplo mais à mão é o deste que vos fala e que lhes vendeu este curso. Não se preocupe, pois nenhum senso das proporções foi ferido durante a gravação da live ou a escrita deste PDF. Hei de aqui falar sobre a minha trajetória porque, no instante em que me pus na posição de professor, aceitei ser um modelo para vocês. Portanto, referência não apenas quanto à posição em que estou hoje, mas, também, quanto aos desafios e dificuldades da jornada. Vejamos se eu, o professor, consigo fazer de modo satisfatório o que sempre recomendo com redobrada ênfase que vocês busquem fazer: acrescentar, à narrativa de sua própria vida, mais complexidade e detalhes, de modo a não falsear sua história e instalar-se na realidade.

MINHA HISTÓRIA

Durante um bom tempo da minha vida eu fui um completo perdido. Não sabia o que fazer profissionalmente e, pressionado sempre por amigos e familiares que pareciam “estar indo pra frente”, comecei a acreditar que nunca conseguiria fazer nada que preste. Com 20 anos de idade, depois de trabalhar num mercadinho de esquina, num escritório minúsculo e como peão de fábrica na AVON, senti que estava irremediavelmente perdido na vida prática e me voltei à vida que julgava ser minha: a do intelecto.

Comecei, portanto, a estudar. Mas não sabia por onde começar e o que ler. Não tinha professor e já pressentia que no ensino institucional não conseguiria encontrar o que estava procurando. Como não me achava profissionalmente, havia deixado de lado qualquer pretensão nessa área e me dedicara a ficar mais inteligente. A ser um homem melhor e realmente entender as coisas. Queria já SER, e não apenas receber um contracheque para ensinar o que aprendera obrigado para alunos que, obrigados, sentassem à minha

frente para aprender o que não queriam. Sobretudo na área de letras, percebia que não era assim. Queria ficar mais inteligente e escrever. E faculdade nenhuma formava escritores. As faculdades não deixavam as pessoas mais inteligentes. Voltando, portanto, à minha jornada caótica de estudos: lia, lia e sentia que, se num plano mais superficial conseguia absorver algumas

frases e jogá-las nas rodinhas para parecer cool, ainda permanecia confuso. Talvez mais confuso. Minha vida pessoal, por exemplo, até ali o único reduto de normalidade e ordem, já perigava sofrer uns abalos. Depois de algum tempo, pensei: “caramba, tem coisa errada nisso”. E em 2012 eu conheci o prof. Olavo de Carvalho. No final de 2013, comecei o COF — seu Curso Online de Filosofia. Resumindo a história: o professor passa as 10 primeiras aulas apenas distribuindo pancadas em nós, seus alunos. A pancada mais recorrente de todas: é que tínhamos que dominar

o português antes de nos aventurarmos em grandes obras de filosofia e teologia; que aprendêssemos a escrever antes de dar ousados saltos abstrativos. Que, antes de tudo, lêssemos muitas obras de ficção e construíssemos um imaginário rico e variado; que dominássemos pelo menos um autor clássico do português. Que, em suma, entendêssemos, por meio de suas incansáveis exposições e aulas sobre o assunto, qual era a importância crucial da linguagem. E eu ouvi o professor. Parei de ler traduções. Diminuí drasticamente minhas leituras em inglês, quase parei de ler

filosofia e passava longe de teologia. E comecei a fazer o que nunca fizera na vida: li romances (digo, o gênero ficcional de romance; não livros à la Nicholas Sparks). E aí vem um desafio da história: quando comecei a fazê-lo, trabalhava no telemarketing. Com 20 e poucos anos de idade, sem nenhuma formação ou perspectiva profissional, ainda morando com os pais, eu resolvi, em vez de caçar algum curso técnico ou coisa que o valha, começar a ler literatura. Nunca me esqueço do dia em que cheguei para trabalhar

com “Memórias Póstumas” debaixo do braço. Minha supervisora virou para mim e disse: “Para que você está lendo isso? Vai prestar vestibular?” E o pior: ela não queria tirar sarro. No seu rosto via-se às claras uma expressão de dúvida sincera. Por que estaria eu, para todos os fins sociais e econômicos um lascado, lendo um sujeito que tinha morrido fazia sei lá quantas incontáveis décadas, e que era um especialista em dizer do modo mais complicado possível coisas “simples”. Por que não estava fazendo uma faculdade, um curso técnico?

Ela, como todas as pessoas do meu círculo social, não via utilidade nenhuma naquilo. E eu, embora soubesse que havia, sim, utilidade, não sabia expressá-la ou explicá-la. Então apenas engolia em seco (não sem uma vaidadezinha besta, que depois venci), dava um sorriso amarelo e continuava a ler. Depois de algum tempo — porque isso leva algum tempo —, passado o primeiro esforço de ler e não entender quase

nada, de a cada três minutos largar o livro porque estava com sono ou meus olhos doíam e todo meu corpo se rebelava contra aquele absurdo de ficar parado, comecei a perceber algo: comecei a perceber um impacto de ordem sobre o meu espírito. E não apenas pela clareza descritiva dos autores, mas também pelo seu apuro estético e narrativo. Aqueles elementos começavam a reverberar em partes do meu espírito que eu nem sabia que existiam direito. Comecei a aumentar minha capacidade expressiva. A conseguir articular com maior exatidão e riqueza o que

me passava pela cabeça, e comunicá-lo para os outros. Com o aumento da minha capacidade expressiva, percebi outra coisa: as pessoas que eu conheci quando criança não tinham envelhecido bem. A idade não as tornara mais sábias. Pior: pareciam ter regredido. Antes, tomara por certo que o comum era vivermos e, com o acúmulo de experiências, irmos ficando mais sábios. O que já tinha passado podia ser acessado pela razão e aplicado como projeção ao futuro pessoal ou dos outros. Porém, as pessoas iam ficando mais xaropes.

Passavam-se os anos e adultos agiam mais como crianças birrentas. E eu pensava: “mas por quê?”

Entre várias possíveis causas, estava a seguinte: as tais pessoas não conseguiam aplicar a suas biografias um apuro linguístico e narrativo mínimo. Faltava-lhes vocabulário, domínio puro e simples do português e alguma riqueza imaginativa. A capacidade reflexiva empobrecia-se porque eram pobres seus instrumentos linguísticos. Sem recursos adequados, sua memória era obrigada a simplificar as situações e falsificar o passado.

Elas se iam desligando e afastando de si próprias.

A vida é um emaranhado complexíssimo de fatores inacreditavelmente variados. A vida do sujeito mais simplório não é NADA simplória a quem tenha as ferramentas intelectuais, perceptivas e linguísticas mais apuradas. A vida do sujeito simplório é simplória para ELE MESMO. E o descompasso entre a complexidade da vida real e simplificação grosseira da sua inteligência é algo que o faz sofrer sem que ele saiba de onde veio.

Se a ferramenta linguística é pobre e não consegue dar conta de pôr em palavras o mínimo da sua narrativa biográfica,

sua personalidade será falseada. Sua vida há de ser chapada. As situações particulares serão forçadas em padrões que não lhes cabem e ficará mais difícil para você se orientar. O que a linguagem faz é inserir o homem numa escala

de tempo que ultrapassa tanto sua vida física quanto sua consciência imediata. Ele pode lançar o olhar sobre o passado de sua vida e sobre o passado de todas as eras, assim como pode projetarse no futuro, quer pensando no emprego a que almeja daqui a dois anos, quer imaginando o futuro da humanidade.

O homem é o bicho que vive fora do tempo.

Animais não vivem fora do tempo. Estão presos ao presente. Às sensações; ao medo. À raiva ou à fome. O homem, não. Porém, aquelas pessoas conhecidas minhas não tinham ficado melhores. As experiências passavam por elas e pouco retinham. Seu poder reflexivo e projetivo da linguagem era muito reduzido. Italo Marsili diz que a personalidade é capacidade de você trazer o mundo para dentro de si, articulá-lo no seu interior e transformá-lo em poder de ação. A linguagem é uma ferramenta CRUCIAL desse processo.

Preste muita atenção: em certo sentido, sua vida É a narrativa que você conta para si mesmo. Ser humano é conseguir contar sua história de si para si. Eu, portanto, comecei a entender as pessoas melhor do que elas se entendiam a si próprias. Tudo porque conseguia contar suas histórias com maior exatidão e, portanto, conseguia antecipar seus movimentos melhor do que elas mesmas. Tudo porque conseguia colocar algumas coisas em palavras. Portanto, além de conseguir maior estabilidade interior, fruto da clareza conceitual e descritiva, conseguia maior poder de ação sobre os outros,

porque os entendia melhor. Aí estão alguns motivos para você se preocupar com sua linguagem. Nos próximos capítulos, discutiremos mais a fundo algumas dificuldades de ordem prática.

AULA 03

TEMA:

RESPOSTA A UMA DÚVIDA

Já falei, tanto nas lives quanto em toda e qualquer situação possível no Instagram, sobre a importância da literatura ficcional quando se trata tanto de dominar a linguagem quanto de expandir o imaginário e tornar-se, no final das contas, realmente mais inteligente. Como estou sempre e incansavelmente a enfatizá-lo, seria natural que surgissem dúvidas. Natural, sobretudo, que surgisse uma dúvida específica: se é assim importantíssimo ter uma linguagem mais poderosa e um imaginário mais abrangente, como é que existem pessoas boas, sensatas e felizes com reduzida (às vezes reduzidíssima) capacidade linguística e um imaginário ainda mais pobre? Há pessoas, admita-se logo, que conseguem se organizar mais ou menos bem na vida sem ter lido livro nenhum na vida e mal conseguir escrever uma frase coerente.

A pergunta é justa e, como é quase sempre o caso com perguntas justas, complexa e multifacetada. É dificílimo dar-lhe uma resposta satisfatória em qualquer circunstância, e absolutamente impossível sob estas nossas circunstâncias. Portanto, o que farei é delinear algumas possíveis abordagens e respondê-la parcialmente desde vários ângulos diferentes. Primeiro: todo e qualquer indivíduo existe numa coletividade. A tal coletividade existe em relativa harmonia, com seus membros conseguindo se entender uns aos outros, porque existe uma cultura. A cultura, no sentido em que aqui empregamos o termo, é um conjunto de crenças, valores e símbolos comuns a uma coletividade. A língua é, obviamente, o símbolo mais importante de todos, a ponto de não ser exagero o que disse Fernando Pessoa: “A minha pátria é a língua portuguesa”. Nós todos já nascemos em alguma cultu-

ra que não criamos e que antecede incalculavelmente nosso nascimento, de modo que um domínio mínimo da língua é inevitável que todos os que não estejam sofrendo miséria total tenham (como é o caso de Fabiano de Vidas Secas, livro que havemos de comentar mais tarde). E aqui chegamos ao primeiro ângulo desde o qual iremos dar uma resposta: ainda que haja indivíduos que não tenham se entregado eles próprios à tarefa de melhorar sua linguagem, a cultura em que vivem é o produto da linguagem rica, apurada e redimida de uns poucos indivíduos. Preste atenção, pois o que se lerá a seguir é tão importante quanto negligenciado hoje em dia: as diversas línguas são criadas, melhoradas e enriquecidas pelos seus melhores usuários. Isto quer dizer que não haveria o português atual se Camões nele não houves-

se escrito, criando-lhe inúmeras possibilidades expressivas e enxertando-lhe centenas de palavras do latim. Os grandes escritores criam a língua e são os responsáveis por conservá-la. Chaucer e Shakespeare são os pais da língua inglesa. E o que cargas d’água teria isso a ver com nossa pergunta? É simples: se o indivíduo não se preocupa com melhorar sua linguagem ou não pode fazê-lo, continua sendo o receptáculo passivo (ainda que longínquo) de uma língua criada por homens que devotaram suas vidas à linguagem.

Alguém, portanto, teve que se dedicar à língua para que outros homens pudessem negligenciá-la sem se tornarem bichos. NÓS TEMOS A CHANCE E O DEVER DE NÃO A NEGLIGENCIAR.

Segundo: à parte a língua, a referida cultura oferece uma estrutura mais ou menos estável e bem articulada de crenças, rituais e convenções sociais, códigos de moralidade, símbolos e etc., de modo que tanto o ambiente imediato (família e amigos) quanto a sociedade mais à larga podem agir como estruturas que impõem ordem à vida do sujeito. Além da comunidade e da cultura, há indivíduos que psicologicamente tendem à tranquilidade e estabilidade. Pode ser, também, que alguma experiência de vida lhes tenha enfiado juízo à força na cabeça. As explicações são, enfim, várias, e podem ser reduzidas a isto: a linguagem não é, claro, o único elemento capaz de dar ordem à vida humana. É um dos elementos principais, coisa importantíssima. Mas não é o único e cá não vou fingir o contrário. Por outro lado, é uma ferramenta inacreditavelmente poderosa, e negligenciá-la conscientemente e de bom grado é abrir mão de algo que, terceiro, só aumentaria

o poder de ação e estabilidade psicológica de quem já tiver uma vida estável na medida do possível. O ponto que desejo enfatizar aqui é o seguinte: melhorar a linguagem é potencializar o que já existe de bom em nós. Por ser a capacidade especificamente humana, a habilidade humana por excelência, a linguagem que é melhorada e enriquecida melhora e enriquece o homem como um todo. Melhora-o por inteiro, e não apenas partes suas. Ajuda a corrigir falhas e aumenta e fortalece os pontos já fortes. A linguagem continua sendo o que sempre foi: a capacidade que, no limite, nos separa dos animais.

AULA 04

TEMA:

ANALFABETISMO FUNCIONAL I

NESTE QUARTO CAPÍTULO OU EPISÓDIO DO DESAFIO, APÓS MOSTRAR-LHE UM NOVO HORIZONTE DE POSSIBILIDADES POR MEIO DA REPETIDA DESCRIÇÃO, POR UM LADO, DA IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM, E, PELO OUTRO, DA BREVE NARRATIVA DE MINHA TRAJETÓRIA, CHEGAMOS ENFIM À VIDA REAL. É UM PRINCÍPIO PEDAGÓGICO PRIMEIRO ALARGAR O HORIZONTE IMAGINATIVO DO ALUNO, APRESENTANDO À SUA VONTADE UM OBJETO DESEJÁVEL, PARA DEPOIS, E SÓ DEPOIS, MOSTRAR-LHE AS DIFICULDADES E AGRURAS NO CAMINHO. POIS BEM, PRIMEIRO FALEI SOBRE COMO O HOMEM É ESSE BICHO QUE ANDA COM OS PÉS NA TERRA E A CABEÇA NOS CÉUS, SENDO CAPAZ DE PROJETAR SUA CONSCIÊNCIA PARA TRÁS, VOLTANDO AO PASSADO, OU PARA FRENTE, VISLUMBRANDO E ANTECIPANDO O FUTURO. DEPOIS, CONTEI-LHES UM POUCO DA MINHA HISTÓRIA A FIM DE EXEMPLIFICAR TANTO OS PROBLEMAS DA JORNADA QUANTO SUAS RECOMPENSAS. E AGORA...

AGORA NOS CABE PÔR OS PÉS NO CHÃO E AVERIGUAR COMO ANDA A CAPACIDADE LINGUÍSTICA DO BRASILEIRO.

Durante um bom tempo da mAnda horrível. Catastrófica mesmo. Eis o resumo da ópera. Ao longo dos próximos três capítulos, iremos discutir alguns problemas cognitivos básicos ligados à linguagem. E, para começar, neste capítulo de agora outra vez hei de recorrer a exemplos meus. A história começa quando eu, como já deixei dito no primeiro capítulo do Desafio, dei os primeiros passos no meu estudo. Tinha na cabeça uma imagem de intercâmbio intelectual que pegara dos

livros sobre os intelectuais ingleses que tanto gostava de ler. Portanto, imaginavame a discutir, com o ardor desinteressado de sábios e homens de ciência, o que Platão tinha querido dizer em certa passagem de sua Apologia ou qual era o melhor poema de T. S. Eliot. Na realidade, logo descobri que, longe de discutir ou debater elevados conceitos filosóficos ou apuradíssimos

requintes literários, era difícil conseguir estabelecer uma ligação comunicativa básica. No geral, não conseguia sair do lugar porque era um parto estabelecer, pura e simplesmente, o que era minha opinião e o que apresentava como um fato, por exemplo.

O INAF, Instituto Paulo Montenegro, é uma organização sem fins lucrativos ligada ao IBOPE. Em 2001, o referido instituto, por influência da UNESCO, criadora do conceito de “analfabetismo funcional”, começou a fazer pesquisas para averiguar qual era o nível de letramento dos brasileiros. E falo em nível porque, segundo o INAF, há cinco níveis de letramento ou capacidade de leitura e interpretação de

texto ou discursos: o analfabeto em sentido estrito, incapaz de ligar as letras G A T O e formar a palavra “gato”, e mais quatro níveis: o rudimentar, o elementar, o intermediário e o proficiente. Quem se encontra nos dois primeiros níveis é o famoso “analfabeto funcional”. Quem está nos três de cima já é considerado funcionalmente alfabetizado — se bem o termo seja enganoso, como verificaremos mais tarde.

Que é alguém “funcionalmente” alfabetizado? É alguém com poderes linguísticos suficientes para guiálo pela vida diária com o mínimo de eficácia e desenvoltura. Isto é: para ler bilhetes, propagandas, jornais e destinos de ônibus e trens. De modo que o conceito quase nada diz sobre a leitura e interpretação de obras literárias ou de caráter científico. Está-se falando, aí, de leituras cotidianas. Portanto, de linguagem cotidiana.

O que nos leva aos exemplos que fui colhendo, inadvertidamente, ao longo de minha breve existência de debates e discussões virtuais ou presenciais.

O BRASILEIRO COMO OUVINTE E LEITOR

Quando estava no telemarketing, de vez em quando conversava com um rapaz que era estudante de psicologia (estava sei lá em qual semestre). Progressista roxo, tínhamos visões políticas opostas. Certo dia, a conversa não sei por que foi cair em atentados terroristas. Eu, coitado, queria porque queria estabelecer um terreno comum, alguma coisa sobre a qual concordássemos, e tentei logo apelar a um fato. Qual era o fato? Simples: dizia eu ao rapaz que os últimos

ataques terroristas tinham sido todos perpetrados por muçulmanos convictos, e não por cristãos, budistas ou hinduístas. Pronto. Tratava-se de um fato. A minha opinião ou a de meu interlocutor nada lhe poderia fazer. Mas meu interlocutor não conseguia enfiar na cabeça que se tratava de um fato. Tão logo eu dizia isso, retrucava ele: “Então você quer dizer, Raul, que todos os muçulmanos são terroristas?” E eu voltava à explicação, tentando de todos os jeitos desligar minha opinião do fato puro e simples. E o expunha outra vez. E de novo. E de novo. E, no final das contas,

não consegui enfiar-lhe na cabeça o fato bruto, puro e simples. O meu conhecido, incapaz de distinguir um fato de uma opinião ou possíveis desdobramentos do fato, tinha estudado em escola particular, e, àquelas tantas, lia Freud, Lacan e Piaget na faculdade. Julgava-se apto a examinar os meandros da psique humana e, contudo, não sabia o que era a descrição de um fato objetivo e como tentar refutá-lo. Hoje em dia, está dando palestras sobre inteligência emocional.

“Mas, Raul, isso não é ler. É ouvir.” Pois aí está a desgraça: quem não consegue ler direito também não consegue ouvir direito. A mesma incapacidade de compreensão revela-se com as palavras escrita e falada.

Segundo exemplo: quando estava na faculdade de letras (fiz um semestre), dormindo e babando, lembro-me que certo dia a professora passou uma tarefa. Consistia ela em ler um texto e resumilo. Pronto. A professora enfatizou o quanto pôde que NÃO QUERIA a opinião dos alunos sobre o texto. Queria apenas seu conteúdo resumido. No dia seguinte, fez a clássica rodinha de cadeiras universitária e lhes pediu que começassem.

A primeira moça começou assim: “Professora, eu acho...”. A segunda, assim: “professora, na minha opinião...”. E foi o mesmo ao longo de toda a noite. Com esses exemplos já se pode perceber que existe uma diferença entre conseguir ler (ou ouvir) algo e ENTENDER o referido algo. Porém, continuemos. Eu já escrevo faz alguns anos. Seis, sete anos. Comecei no Facebook. E consegui reunir uma coletânea invejável de incompreensões

inacreditáveis em textos de quatro linhas. Por exemplo, no texto abaixo: “O Funk é o resultado escatológico do dialeto aba-retístico acrescido de batidas macacalescas. É, por um lado, o êxtase libidinoso da putaria desenfreada, o Nirvana da suruba; e, pelo outro, o orgulho tribal de um bando de índios urbanos que, em vez de tangas, usam New Balance, e em vez de arco e flecha carregam fuzis e pistolas semi-automáticas. É a síntese pavorosa e

deprimente de tudo o que não presta fazendo tremer o Mundo ao som de suas batidas ensurdecedoras, cuspidas pelo som dum carro com o portamalas aberto -- o batuque profano do Príncipe deste mundo e de suas potestades.” O que fiz aí? Apliquei um estilo clássico, com várias orações subordinadas, esticando-se interminavelmente, além dum palavreado às vezes bíblico, às vezes escrachado e às vezes pura e simplesmente inventado, para criar uma série de incongruências que, comparada com o objeto pouco elogioso do texto

(os funkeiros), criaria um efeito cômico. O que aconteceu foi que muita gente leu o texto, não como se fosse um exercício estilístico controlado para fins cômicos, e sim como tentativa de descrição objetiva e quase científica dos funkeiros. Como se fosse um tratado sociológico e não uma imagem impressionista. Não entenderam que era uma ironia. Noutro texto, o sujeito não entendeu uma óbvia figura de linguagem, e a leu literalmente: “O desejo dum casal de não ter filhos é a coisa mais antinatural que eu consigo imaginar. É não

se ter nem mesmo aquele sacro egoísmo de buscar esticarse no tempo por meio de sua prole, vencer a morte à força do sangue seu que ainda corre noutras veias.” Escrevi o texto e, logo depois, vi um compartilhamento seguido de um textão. No textão, o sujeito (religioso) dizia que era ridículo dizer que ter filhos era “vencer a morte”, e que todo mundo sabia que, segundo o Catecismo, a vida individual se finda com a morte e cada um haverá de enfrentar sozinho o Juízo Divino. Ora, eu obviamente não estava dizendo LITERALMENTE que uma mulher parir um filho era alcançar a

imortalidade. Tratava-se de uma figura de linguagem. O sujeito pegara o seu fervor religioso, tão enorme quanto sua incapacidade linguística, e quis aplicar a um artifício retórico o rigor lógico de um tratado filosófico. Quase certo só lera teologia na vida sem dominar o básico do vernáculo (lembra-se da ordem que deu o prof. Olavo aos alunos do COF?). As pessoas liam de forma literal figuras de linguagem e de forma figurada textos literais. Não captavam sarcasmos ou escolhas estilísticas.

Na verdade, as pessoas faziam algo bizarro: elas ADIVINHAVAM o que estava escrito.

Eu escrevia “X” e a pessoa achava (adivinhava) que eu queria dizer “Y”. Isso não é exagero hiperbólico. É literal. Pior: quanto menos entendiam o texto, mais queriam aplicar-me alguma análise psicológica ou me passar algum pito moral. Por muito tempo, atribuí esse comportamento à chatice e mau-caratismo alheios. Depois, fui percebendo que a leitura divinatória não era implicância. As pessoas aplicavam-na a sério, sem perceber. Acreditavam piamente que estavam lendo, e não projetando sobre o texto o que não estava ali.

Liam sem ler. Eram analfabetas alfabetizadas. Aqui, não passaremos em revista os cinco níveis de letramento do INAF, pois o faremos nos próximos capítulos. Mas já podemos antecipar alguns dados e fazer alguns esclarecimentos: 42% das pessoas no Brasil — com margem de erro de 2% para mais ou menos — estão no nível elementar; 23% estão no nível intermediário; 8% estão no nível proficiente. Esclarecimento: só quem está no nível proficiente, segundo a classificação do INAF, não teria dificuldades expressivas

para entender os textos que escrevi no Facebook. Eu, um rapaz latino-americano que repetiu duas vezes o segundo ano do ensino médio numa escola pública horrenda, escrevo algo no Facebook e apenas 8% das pessoas num país com mais de 200 milhões de pessoas conseguem entendê-lo satisfatoriamente. Conseguem perceber que há um fim estilístico para minha escolha de fraseado e vocabulário e captam sua ironia. O INAF diz que é “proficiente” alguém capaz de ler, sem atolar o pé na jaca, um texto médio de jornal. Mas o que deveríamos fazer é chamar o tal alguém de

normal. Normal porque, tendo passado pelo sistema de ensino, consegue guiar-se na vida diária sem se embananar. No próximo capítulo havemos de entrar mais a fundo nos níveis de letramento.

AULA 05

TEMA:

ANALFABETISMO FUNCIONAL II

Após os exemplos práticos (e, espero eu, elucidativos) no capítulo anterior, agora já nos será mais útil entrarmos no conceito de analfabetismo funcional e explicar-lhe as partes. Como todos os conceitos que se popularizam e caem na moda, o “analfabetismo funcional” é frequentemente usado de modo leviano e irrefletido; mais como xingamento em discussões de boteco e menos como conceito descritivo e científico. Além do mais, o brasileiro tem a mania de aplicar qualquer coisa de ruim que aprende aos outros brasileiros, e não a si próprio. De modo que ouvimos falar sobre o conceito de analfabetismo funcional e logo imaginamos que é o outro, e não nós, que precisa de ajuda.

PORTANTO, CÁ VAMOS EXPLICAR DO QUE SE TRATA O CONCEITO E ACRESCENTAR ALGUMA SUBSTÂNCIA E SERIEDADE AO SEU USO. ,

O conceito de “analfabetismo funcional”, como já deixamos dito noutro capítulo, refere-se à vida prática. Segundo o INAF, quem é funcionalmente alfabetizado tem uma capacidade linguística e interpretativa suficiente para que consiga “fazer frente às demandas cotidianas” e, sozinha, dê conta de “aprender e continuar aprendendo”. Isso quer dizer o quê? Quer dizer que os três níveis “superiores” de letramento são, no final, a capacidade de alguém usar a linguagem para se guiar na vida prática cotidiana. Para ler um calendário, uma propaganda ou, em nível mais elevado, um artigo de jornal. Ler, isto é, e compreendê-lo. Saber resumi-lo de si para si. Saber apontar quais são as informações que existem ali e distinguir o que são opiniões. Para escrever uma mensagem coerente no Facebook ou ler um e-mail do chefe sem distorcê-lo.

Vamos aos níveis: O analfabeto é a pessoa que não consegue juntar as letras para formar palavras. Segundo o INAF, 8% da população brasileira é analfabeta em sentido estrito. Mais ou menos 20 milhões de pessoas. O alfabetizado de modo Rudimentar é o analfabeto funcional em sentido estrito. 22% dos brasileiros, portanto por volta de 60 milhões de pessoas, estão aqui. O Rudimentar mal consegue ler um bilhete ou mensagem simples. Tem dificuldades para localizar informações explícitas em textos pequenos (a data em alguma propaganda de vacinação, por exemplo). Logo por aí se vê que, segundo o INAF, o analfabeto funcional é alguém quase analfabeto. Ou, melhor dizendo, alguém que para todos os fins práticos é analfabeto. Portanto, não nos interessa muito aqui. O que nos interessa está nos três níveis de cima.

No nível Elementar temos 34% da população (68 milhões de pssoas); no Intermediário, 25% (50 milhões); no Proficiente, 12% (24 milhões). Aí estão os indivíduos “funcionalmente alfabetizados”. Analisemos cada um dos três, detidamente. Primeiro, o Elementar. Quase 70 milhões de brasileiros, inclusive universitários, encontram-se nesse grupo. O que conseguem fazer? Conseguem “selecionar uma ou mais unidades de informações, observando certas condições, em textos diversos de extensão média”, e realizam “pequenas inferências”. Assim explicada, a habilidade parece ser até avançada. Na prática, quer dizer o seguinte: a pessoa consegue pegar um texto pequeno ou médio, identificar uma informação explícita e ligá-la a outra informação explícita, desde que estejam próximas. “Duas pessoas morreram ontem na baixada santista”. As duas pessoas morreram ontem. Não anteontem. Não cinco dias atrás. E foi na baixada santista. Não na Argentina ou no

Egito. Pequenas, minúsculas inferências. Isto quer dizer que, se colocarmos algum espaço físico entre as informações — colocar, digamos, umas três linhas entre o fato “A” e o fato “B” —, a pessoa já terá dificuldades para fazer a ligação. Depois, o nível Intermediário. 50 milhões de pessoas aqui. O que fazem elas? Conseguem, por exemplo, localizar informações expressadas de forma literal. Ou seja: ironias, hipérboles, figuras de linguagem e premissas ocultas vão, todas, ser um problema para quem está nesse nível. “Literal” é o absolutamente claro; a linguagem despida de qualquer nuance de sentido ou camadas semânticas. Isto é: a informação tem de ser esfregada na cara do leitor para que ele a compreenda sem muito esforço. Uma outra habilidade sua é “interpretar e elaborar sínteses de textos diversos (narrativos, jornalísticos ou científicos), relacionando regras com casos particulares,

como reconhecimento de evidências e argumentos, e confrontando a moral da história com sua própria opinião ou senso comum”. Ou seja: o nível Intermediário consegue fazer o resumo de algum texto (desde que nele haja informações explícitas, lembre-se): o sujeito consegue apreender os elementos de um texto que lhe pareçam essenciais e dispô-las em ordem. Consegue, também, compreenderlhe a moral e confrontá-la com suas próprias opiniões.Consegue lerChapeuzinhoVermelho, entender qual é a moral ali ensinada e pensar consigo se ela é certa ou não. Como, porém, ainda estamos no reino do explícito e literal, QUALQUER nuance de sentido já lhe será um abacaxi terrível. E aqui já fica estranha a classificação do INAF: pois, segundo o instituto, só é analfabeto funcional quem está abaixo do nível Elementar. Contudo, o nível Elementar só consegue ler, com certo esforço, propagandas curtas e bilhetes; o Intermediário só consegue interpretar informações literais.

PORTANTO, MESMO QUEM É “FUNCIONALMENTE ALFABETIZADO” LÊ MUITO MAL. No primeiro relatório do INAF, feito em 2001, quando havia apenas quatro níveis de letramento (o Elementar e o Intermediário eram o “Básico”; o Proficiente, o “Pleno”), podiase ler os testes conduzidos durante a pesquisa.

Um dos testes era a leitura de um texto de jornal informativo, de uns cinco parágrafos, sobre certa briga entre a Marinha e a EMBASA. As duas instituições vinham jogando uma na conta da outra a responsabilidade por um vazamento que desencadeara um deslizamento e, consequentemente, a morte de três pessoas. Uma das perguntas era quantas pessoas tinham morrido por conta do deslizamento. Ocorre que, no texto, não havia a palavra “três”. Só havia os três nomes das vítimas, enfileirados. 58% das pessoas acertaram. Eis o “literal”. A outra pergunta era “Segundo a Embasa, por que a Marinha seria responsável pelo acidente?” No texto, descrevia-se o vazamento no segundo parágrafo, o deslizamento no terceiro e a troca de farpas entre as instituições no quarto. Portanto, havia um parágrafo entre o vazamento e a briga da Marinha com a EMBASA. 40% das pessoas acertaram o motivo. Mais ou menos

110 milhões de pessoas não conseguiriam fazer essa inferência. Segundo o INAF, porém, são “funcionalmente alfabetizadas”. Pessoas do nível Elementar não conseguiriam ler a reportagem e compreendê-la. Uma porcentagem considerável de quem está no nível Intermediário teria de suar a camisa para fazer a inferência entre o vazamento e a briga ao mesmo tempo em que mantinha em ordem as informações sobre as mortes. Mas já se pode ver que o buraco é muito, muito fundo. Hoje em dia, é moda falar das “instituições democráticas”. Como pode haver democracia quando 60% dos habitantes de um país continental não conseguem ler cinco parágrafos minúsculos de uma reportagem sem fazer confusão ou perder dados essenciais? Quando há pessoas do nível Elementar em faculdades, “estudando” para conseguir um diploma e, não raro, tornaremse professores?

O QUE EXISTE É UMA DEMOCRACIA NO PAPEL E NAS INSTITUIÇÕES. MAS NÃO NA REALIDADE. A TAL DEMOCRACIA PRA GRINGO VER. No próximo capítulo, havemos de falar mais um pouco sobre o conceito e abordaremos o quinto e último nível, o dos Proficientes.

AULA 06

TEMA:

ANALFABETISMO FUNCIONAL III

Chegamos, enfim, à terceira parte de nossa breve explicação sobre o analfabetismo funcional. Antes de continuarmos, cabe frisar algo importantíssimo, e que creio tenha passado batido nos capítulos anteriores: quando se fala em letramento, não se fala apenas em leitura de textos. Fala-se numa capacidade linguística mais abrangente, que aliás se estende à língua falada. Se há incompreensão grave em textos escritos, haverá incompreensão grave em textos orais, e isto porque várias ferramentas linguísticas de que se vale o escritor são as mesmas de que se vale o orador. Logo, o analfabetismo funcional vale também para conversas: diárias e de todo e qualquer outro tipo. Estamos falando de uma restrição cognitiva básica, e não de mera falha na interpretação de textos para o ENEM. Ao longo

de todas essas explicações sobre o conceito, nem mesmo chegamos a tocar textos literários, poemas ou textos opinativos. Não estamos falando de alguma incompreensão na leitura de A Máquina do Mundo ou dum artigo de Gustavo Corção.

ESTAMOS FALANDO DO ARROZ COM FEIJÃO. Logo, é assunto que interessa a TODOS. Se você está lembrado do vídeo de Jordan Peterson que lhes indiquei na primeira live, há de se lembrar que diz o psicólogo canadense não haver diferença entre aprender a escrever e aprender a pensar. A ordenação da língua escrita e a melhora de nossa capacidade para

entendê-la e interpretá-la estendem-se a todos os âmbitos da comunicação humana. Se sua capacidade de leitura é ruim, você será um mau comunicador. E um mau comunicador não tem vantagem NENHUMA no mundo. Mas voltemos aos níveis. No capítulo anterior, falamos um pouco sobre os níveis Elementar e Intermediário, respectivamente o terceiro e quarto níveis da escala de cinco estabelecida pelo INAF. E quanto ao nível Proficiente? O nome soa grandiloquente e pomposo, mas é enganoso. O nível “proficiente” de leitura corresponde ao nível em que devia estar uma pessoa no ensino médio, ou recém-saída do ensino fundamental. Se sua memória ainda estiver boa, já vimos que apenas 12% de todas as pessoas no Brasil enquadram-se nessa categoria. 12% de todos os brasileiros (aí inclusos políticos, magistrados, professores universitários, etc.) conseguiram alcançar o

nível que se deveria esperar de um aluno do ensino médio. Se há uma experiência que é comum e conhecida por todos os brasileiros é a sensação de que NADA aqui parece ir para a frente. As coisas não andam no Brasil. Tudo é emperrado. As dificuldades vão surgindo como que por mágica, complicando o que deveria ser simples e simplificando até falsear e estragar por completo o que deveria ser complicado. Se, por um lado, é óbvio que não podemos reduzir TUDO à pura e simples incapacidade linguística, tenho certeza absoluta de que esse problema é enormemente negligenciado e diminuído por quase toda a população. Exemplo de como a mútua incompreensão pode dificultar formidavelmente algo simples é a famosa discussão que se deu no grupo de Whatsapp do meu condomínio, e que eu já comentei aqui: https://www.instagram. com/p/B0EW6eYgU2n/

Se, para chegarmos a um consenso quanto ao papel de parede num salão de condomínio, já houve toda aquela inacreditável zorra, confusão e barraco, imagine o que não se dá nas esferas mais altas da sociedade? Nas grandes empresas? No Plenário? Na Câmara? Se quiser conferi-lo, basta ligar a tevê e assistir a algum discurso de nossos gloriosos políticos. 99% não consegue soltar uma frase direito.

O CAOS LINGUÍSTICO ANTECEDE E DÁ ORIGEM AO CAOS NA SOCIEDADE. A SOCIEDADE FUNDA-SE, PRECISAMENTE, NA COOPERAÇÃO QUE A LINGUAGEM TORNA POSSÍVEL. ENFRAQUEÇA A LINGUAGEM E A COOPERAÇÃO SERÁ ENFRAQUECIDA.

Antes, porém, de entrarmos no nível Proficiente, será útil comentarmos as duas últimas habilidades do nível Intermediário. O indivíduo nesse nível consegue relacionar uma regra geral e aplicá-la ao caso particular. Note: isso não quer dizer que ele consiga fazê-lo bem ou certo. Quer dizer apenas que a transição de uma regra geral para as circunstâncias concretas e particulares é uma habilidade que lhe está à mão. Quem está no nível Elementar já não consegue nem mesmo tentar. Ora, o que são as leis, por exemplo, se não regras gerais que o bom senso e uma série de faculdades cognitivas traduzem em direções práticas para casos particulares? Portanto, dezenas de milhões de brasileiros não conseguiriam entender ou julgar por si próprias qualquer medida legal. Quem está no nível Intermediário consegue, demais, “reconhecer o efeito de sentido ou estético de escolhas lexicais ou sintáticas de figuras de linguagem ou sinais de pontuação”.

Isto é: conseguirão reconhecer que o autor teve uma intenção específica quando usou uma palavra e não outra, notando alguma nuance de sentido entre o termo e seu sinônimo; que existe alguma dimensão significativa em pontos, travessões, vírgulas ou exclamações. Lembre-se: estamos falando do nível Intermediário. O quarto nível, abaixo apenas do Proficiente.

E COM ISTO ENTRAMOS, FINALMENTE, NO NÍVEL PROFICIENTE. O que faz o leitor que, segundo o INAF, alcançou a proficiência no letramento? Ele consegue elaborar “textos de maior complexidade — mensagem, descrição, exposição ou argumentação — com base em elementos de

um contexto dado”, e “consegue opinar sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto”. Quando se trata de descrições impessoais e científicas, a inteligência periga entregar-se a um torpor que rouba a força da verdade. O INAF está dizendo que o nível mais elevado do letramento funcional é o fulano conseguir ler um texto e opinar sobre o posicionamento do seu autor. Ou seja: consegue distinguir o que é sua opinião do que é a informação contida no texto. Depois, consegue opinar sobre o estilo do autor. Ou seja: consegue perceber que existe uma camada adicional, intencional no texto; que há outros cálculos em jogo com o uso de certas palavras ou determinadas ordens frasais. Logo, quem está abaixo do nível Proficiente não está habilitado a opinar sobre o posicionamento de um autor, porque não consegue distinguir com suficiente clareza o que ele projeta sobre o texto do que o texto diz. Temos aí, portanto, por volta de 176 milhões de pessoas incapazes, segundo um sério

instituto de pesquisas, de realizar uma série de operações cognitivas básicas. Portanto, aquelas pessoas que não chegaram a perceber que havia, no meu texto sobre o funk, uma intenção de estilo, estavam todas abaixo do nível Proficiente. E eram universitários. E, entre os textos de maior complexidade acessíveis ao leitor proficiente, está a escrita de... mensagens. Já se pode ver, pois, que a tal “proficiência” não é uma habilidade muito elevada. É algo básico. E aí vêm os problemas. Há, por exemplo, um número considerável de pessoas do nível elementar nas faculdades. O que pode sair de alguém incapaz de fazer uma simples inferência e que peçam para escrever uma dissertação? Porém, segundo o INAF o tal alguém está “funcionalmente alfabetizado”. Diz o Instituto Paulo Montenegro que ser funcionalmente alfabetizado é conseguir usar a linguagem, de modo mais ou menos satisfatório, para aprender coisas novas e

continuaraprendendo-asaolongodavida.Mas pelo que já se viu aqui está claro que é bastante reduzida a capacidade de aprendizado (porque proporcional à capacidade de leitura) inclusive dos níveis Elementar e Intermediário. No próximo capítulo, passaremos em revista os hábitos e a natureza do leitor brasileiro médio.

AULA 07

TEMA:

O LEITOR BRASILEIRO I

Já estabelecemos, nos últimos capítulos, que não ser um analfabeto funcional segundo o INAF não quer dizer muita coisa. Fizemos uma breve análise de cada uma das habilidades dominadas pelos indivíduos dos três níveis superiores de letramento e chegamos à conclusão de que, na verdade, apenas o nível Proficiente é capaz de ler um texto de complexidade média e entendêlo sem grandes dificuldades ou lapsos

interpretativos. A situação, portanto, é caótica, e vivemos em plena crise linguística. Agora, ainda nos valendo de dados do INAF, havemos de abordar a leitura no Brasil e alguns dados estatísticos. Não é de espantar que, com níveis tão baixos de letramento, haja confusões sem conta sobre o conceito de leitura. As pessoas já não sabem o que é leitura. Não sabem o que é um livro. Sabem-no, é claro, apenas literalmente. Sabem que o ato de leitura envolve a decodificação de signos gráficos impressos num papel e apreendidos pela visão, com auxílio mental ou falado dos sons que lhes correspondem. Sabem que um livro é o conjunto ordenado (às vezes) dos tais signos impressos em tais ou quantas folhas de papel.

Mas a leitura não é apenas absorção mecânica e automática de um conteúdo estático. A leitura não é coisa imediata, que se dê sempre perfeitamente e quase a despeito duma

inteligência ativa e uma consciência presente e desperta. Vamos abrir, agora, ainda outro leque de complexidades. Se, nos capítulos anteriores, abordamos o défice na leitura desde o ponto de vista de conceitos descritivos, aqui o abordaremos de modo mais prático, fazendo comentários às estatísticas de leitura do INAF. O primeiríssimo passo para a possível resolução de um problema é acrescentar-lhe complexidades novas, desde várias posições diferentes. As dificuldades internas vão, assim, tomando uma certa forma e o objeto vai-se revelando com maior clareza. Caso o leitor queira ler na íntegra o texto de onde estou tirando as citações, basta acessar o meu destaque “Mandando a Real”, neste link: https://www.instagram.com/stories/ highlights/17869006549466628/

“A média ANUAL de leitura do brasileiro é de 2,43 livros, segundo pesquisa feita pela empresa Picodi, 31% dos brasileiros nem mesmo chega a comprar livros”. Isto quer dizer que por volta de 70 milhões de pessoas não compra livros nunca, em hipótese nenhuma. “Mas, Raul, nosso país tem muitas desigualdades sociais. Há muita gente por aí morando no meio da rua, em casebres à frente de córregos. ” Seria loucura ou má-fé diminuir o problema da pobreza no Brasil. Mas, por outro lado, não se pode nem de longe dizer que temos 30% do país vivendo em miséria extrema; portanto, não se pode dizer que as pessoas nunca compram livros porque não têm condições. Há bastante bibliotecas gratuitas; e hoje se encontram PDFs com enorme facilidade. “Segundo o Banco Mundial,nossos estudantes devem levar mais de 260 anos para atingir a qualidade de leitura dos alunos de países

desenvolvidos”. Informação bastante autoevidente. Acrescentando à comparação de testes entre estudantes dos tais países a melhora média dos nossos leitores, o Banco Mundial chegou à conclusão de que, com as mesmas circunstâncias, levaremos quase três séculos para alcançar a qualidade de leitura dos estudantes de países desenvolvidos (cujos sistemas de ensino, via de regra, pegam pesado no ensino linguístico). E para quem lê noutras línguas isso não soa nem um pouco exagerado. Se você entrar em qualquer blogue mixuruca escrito em inglês, tanto os posts quanto os comentários de anônimos não raro ultrapassam, e muito, a capacidade expressiva e o domínio da língua de muitos “escritores” atuais consagrados pela mídia aqui no Brasil. E não se trata de hipérbole, e sim duma descrição fidedigna do estado de coisas. Muitas vezes já li em comentários satíricos no Youtube maior apuro literário do que vi em muito pretenso literato por aqui. A situação

chega a ser cômica de tão absurda. “56% da população acima de cinco anos é considerada o que chamam de ‘leitores regulares’: aqueles que leem, pelo menos, partes de um livro a cada três meses”. Logo, 44% de uma população de mais de duzentos milhões de habitantes não chega a ler nem mesmo partes de um livro ao longo de três meses inteiros. Quase 100 milhões de pessoas não consegue ler um livro inteiro no espaço de três meses. Eis aí alguns dados tristíssimos, para não dizer tragicômicos. Um país continental com dados assim não vai, obviamente, andar muito para frente. E não se trata de aqui fazermos coro com o simplório (e brega) clamor por “mais livros, por favor”, ou de cairmos no conto da carochinha da tal “mais verbas para educação”. A leitura não é coisa de que possamos prescindir na civilização atual. Mais: a leitura faz parte das capacidades linguísticas, como já deixamos dito.

Antes de qualquer outra coisa, acima e além de reformas econômicas ou sociais, o urgente é melhorarmos nossa capacidade linguística básica. E se você, leitor, não está nessas estatísticas, peço-lhe que resista à tentação de soberba. Nós, que lemos, quase sempre também lemos mal. O problema é generalizado. Estamos todos no mesmo barco, tentando melhorar. A linguagem é participação no mundo e, portanto, até certo ponto, domínio sobre o mundo. Aqui, estou apenas descrevendolhes a situação, colocando-a em palavras (e números) para que a realidade possa atingir nossa consciência e inteligência com o impacto bruto de uma experiência nacional inteira posta em poucas palavras. Portanto, leitor, absorva esses dados. Faça em si mesmo um exame sincero e deixe que eles trabalhem em sua inteligência, consciência e afeições. Se sair apontando dedos, tudo aqui há de entrar por um ouvido seu e lhe sair pelo outro.

ABAIXO O “GOSTAR DE LER” Em um dos stories, destaco alguns motivos elencados por quem foi entrevistado pelo INAF quando lhes perguntaram por que liam. Aqui, hei de comentar o primeiro motivo, tanto porque representa um quarto dos leitores brasileiros quanto porque nos servirá de exemplo perfeito para abordarmos alguns mal-entendidos generalizados sobre a leitura. Segundo o INAF, 25% dos entrevistados disseram que liam porque “gostavam de ler”. Já deixei claro no Instagram, várias vezes, que descobrir a palavra ou expressão exata para alguma experiência, fenômeno ou ente é algo importantíssimo. Isto porque a expressão verbal de certo modo delimita e molda a imaginação, e, consequentemente, a compreensão do que é dito. “Gostar” é um exemplo de palavra usada para designar experiências que, se análogas (parecidas em

certos aspectos), são diferentes. Dizemos, por exemplo, que “gostamos” de uma certa comida; que, portanto, o gosto de determinado alimento é aprazível ao nosso paladar, coisa entre o subjetivo e o objetivo. Dizemos que o rapaz “gosta” de certa moça; que, portanto, o rapaz pode estar desde passando por uma paixonite juvenil (o famoso calorzinho no peito; uma gostosa sensação afetiva) até amando, já com amor sólido e consciente, sua noiva. O que acontece, no geral, quando as pessoas dizem que gostam de ler? Sem que se deem conta ou o que o digam, quer em voz alta, quer para si mesmas, acabam ligando ao ato de leitura aquele prazer imediato do gostar de uma comida ou da paixonite juvenil.

Acabam pensando que a leitura deve vir acompanhada, sempre, de alguma satisfação imediata; seja ela física, espiritual, afetiva ou imaginativa. Já faz um tempo, postei algo sobre a leitura no Instagram e uma moça comentou algo assim: “Realmente, nós temos que entrar no mundo mágico da leitura”. Como se todos os livros nos transportassem, magicamente, para um mundo imaginativo maravilhoso, no qual podemos nos esconderporinstantesdarealidadeacinzentada e mortiça. Isso é balela. Mesmo os livros com imensa carga imaginária, como O Senhor dos Anéis, hão de exigir esforço. E aqui está o ponto: ESFORÇO.

Não é preciso fazer esforço nenhum para comer um pedaço de picanha e achar aquilo gostoso. Não é preciso esforço nenhum para que as afeições sejam amornadas pela imaginação de alguém querido. Tratam-se de coisas automáticas, que acontecem ao largo de qualquer compreensão intelectual. Não é assim com a leitura. E aqui já tocamos, incidentalmente, naqueles best-sellers água-com-açúcar. Por que são ruins e danosos? Porque funcionam como um pedaço de bife. Não exigem esforço e nem cócegas chegam a fazer no cérebro. São como tobogãs de inconsciência. Você os lê, lê e parece que nada permanece. Tudo se esvai tão logo acaba a frase. Não há uma só palavra desconhecida ou com sugestão semântica mais sutil; não há uma frase mais ousada, que faça uma inversão sintática para fim sonoro ou de estilo. Não há uma ideia mais complexa, que exija demora e atenção para ser compreendida. Contudo, na comparação com o bife há um

ponto em que falho: o bife, além de alimentálo fisicamente, é gostoso e não o deixa mais burro. Um livro simplório, sim. Se, por um lado, apenas apresentar novos problemas e complexidades à inteligência é aumentála, inversamente, esconder-lhe problemas e complexidades é torná-la menos capaz de percebê-los. É tornar a inteligência míope, incapaz de notar as sutilezas e detalhes do mundo real. Portanto, para todos os fins práticos o melhor é enterrarmos a expressão “gostar de ler”. Ou, pelo menos, guardá-la numa gaveta escura, longe de tudo e todos até que seja seguro. A leitura é presença, inteligência ativa e imaginação viva e guiada. Nos próximos capítulos, havemos de abordar outros motivos e incompreensões.

AULA 08

TEMA:

O LEITOR BRASILEIRO II

Neste segundo capítulo sobre a leitura, continuaremos a falar sobre os principais motivos apresentados pelo brasileiro médio para sua atividade de leitura, quando chega a tê-la. No capítulo anterior, e já com os três sobre o analfabetismo funcional, creio ter ficado claro que a leitura não é uma atividade automática e passiva — um mero sentar a bunda na cadeira, escanear o texto com os olhos e “absorver” o sentido completo do texto pelo simples ato de olhá-lo. Como se houvesse zero complexidade ou exigência de presença, reflexão, raciocínio ativo ou contemplação; como se se tratasse de algo puramente mecânico. Não. Deixei dito que a tal ideia do “gostar de ler” leva, frequentemente, a incompreensões, e que o melhor será cortá-la pela raiz antes de tentarmos nos tornar leitores mais conscientes.

Porém, antes de continuarmos quero fazer uma ressalva quanto ao “gostar de ler”. É óbvio que há leituras prazerosas. É claro que existem livros que nos fazem rir e nos dão alegria genuína — portanto, um prazer genuíno. Porém, se o autor for bom o livro nunca será aquele tobogã de inconsciência em direção ao nada. Haverá uma participação intelectual e imaginativa fortíssima, como é o caso dos livros de Agatha Christie, Conan Doyle, Robert Louis Stevenson ou Alexandre Dumas, entre outros. Não serão apenas clichês porcamente amontoados, mas personagens vivos, com histórias substanciosas e uma escrita necessariamente mais rica, tanto em relação ao vocabulário quanto às estruturas frasais. Em suma: será um prazer mais rico e consciente, acessível apenas à força de certo esforço e atenção. Portanto, um “gostar” diferenciado. Continuemos. Se 25% das pessoas que dizem ler põem o “gosto pela leitura” como motivo principal, 19% atribui a “atualizar-se culturalmente” o mé-

rito por suas leituras. Má ideia, no geral. Para começo de conversa, “atualizar-se”, quando se trata de cultura, é uma noção esquisitíssima. Atualizam-se aplicativos e nos atualizamos tecnologicamente, comprando um iPhone novo. Há, pressuposta nessa frase, uma visão sobre a cultura como a pura e simples manifestação dos valores, crenças e estilos artísticos de um povo. Só pode se atualizar culturalmente quem não vê hierarquia entre as diversas manifestações da cultura e, pois, acha mais importante ler o romance que saiu ontem, escrito pelo zé-da-esquina, do que Tolstói ou Cervantes. Não importa o que é mais novo; importa o que é mais importante. “Atualizar-se culturalmente” é, portanto, o fruto e a prova de uma mentalidade boboca; de uma visão rasa e chapada sobre a cultura. Cultura de verdade é cultivo humano. E é para onde se deu o maior e mais explícito cultivo que devemos ir. Não para o que é mais recente; para o que surgiu ontem e há de sumir de

toda a memória amanhã. E, agora, vem o motivo que mais nos interessa, cá neste capítulo: 15% dos entrevistados afirmaram que leem para se distrair. Antes de começarmos, porém, peço-lhe que se lembre da ressalva sobre o “gostar de ler” e as leituras prazerosas. Sim, elas existem. Mas o que se quer dizer aqui é, no geral, outra coisa. Uma boa leitura ainda exige de você algum movimento das partes superiores do seu espírito. Mesmo um Sherlock Holmes às vezes tem de ser lido mais de uma vez, quer porque não lhe ficou muito clara a resolução de um mistério, quer porque alguma passagem lhe pareceu memorável e você quis se demorar nela. Note que, em ambos os casos, não existe propriamente “distração”. Existe uma participação imaginativa e estética, duas coisas ativas. Vivas. “Distração” vem do latim distraho: separar ou dividir. Eis a ideia: nossa consciência, em vez de se concentrar num único ponto, fragmenta-se e se dispersa. Em vez de ser um feixe con-

centrado de luz, quebra-se e se estilhaça: nos distraímos. Assim como a luz fragmentada perde força e brilho, perde força a consciência distraída. Mais: é absolutamente fácil distrair-se. A inteligência, como os músculos, busca a inércia. Fazê-la trabalhar exige um esforço da Vontade. Por que, então, alguém quereria ler justamente para se distrair? Por que alguém pegaria um livro em busca de fragmentar e dispersar sua atenção? Precisamente porque não querem mais pensar. A leitura “para distração” é, potencialmente, o pior tipo de leitura imaginável. É ler para desligar o fluxo de pensamentos. Qual é o problema com livros ruins, cheios de chavões e estereótipos? É que chavões e estereótipos não têm substância conceitual ou imaginativa. Como já disse no capítulo anterior, só o que fazem é simplificar o que deveria ser complexo e padronizar o que é único. A inteligência, portanto, como que entra em stand-by e se deixa levar sem esforço pelo fluxo indolor de jargões e clichês.

Uma conhecida minha lia bastante. Estava sempre com um livro na mão. E eu, quando comecei a ler, lia sempre com muito esforço. Dormia frequentemente com o livro nas mãos. Às vezes, chegava a ficar com dor de cabeça. E a minha conhecida lia sempre com enorme facilidade. Tudo parecia ser-lhe translúcido. Mas havia uma outra diferença crucial entre nós: eu fui logo transformado radicalmente pelas minhas leituras. Minha personalidade sofria alterações brutais e minha inteligência ia aumentando quase a olhos vistos. Minha conhecida, por sua vez, nunca mudava. Lia, lia e lia até não querer mais e nunca se transformava. As leituras não se incorporavam à sua personalidade e a tornavam mais rica, viva ou interessante. Suas conversas não mudavam; sua visão de mundo continuava rigorosamente igual. E aí eu percebi: estávamos fazendo duas coisas muito diferentes quando líamos. Certo dia, peguei um livro que ela estava len-

do, abri-lhe as páginas e li umas dez. A tal obra se chamava “Crepúsculo”. Foi uma experiência horrível. Minha cabeça parecia ter desligado. Meus olhos iam deslizando automaticamente pelas páginas, sem esforço nenhum, mas não foram poucas as vezes em que eu parei no meio da leitura e pensei: “não faço ideia do que acabei de ler”. Esta minha conhecida lia para se distrair. Lia para desligar a função mesma que devia ser estimulada, enriquecida e melhorada pela leitura. Lia para entrar num coma induzido. A leitura é, eminentemente, e isto em todas as suas formas possíveis, um processo de atenção. Os livros “fáceis” têm uma característica própria: você os lê sem dificuldade, mas não consegue se lembrar de quase nada. Não existe aí, portanto, um exercício de atenção real. Existe um deixar-se levar distraído e inconsciente. A famosa leitura que fazemos enquanto pensamos em mil e uma coisas que nada têm a ver com o livro. A distração é o exato oposto da atenção. O que

se deve fazer numa leitura é arrancar o sentido do livro por meio da atenção concentrada; congregar os pontos dispersos de atenção, com eles criar um feixe de luz mais poderoso e por assim dizer furar o texto, como fazem os raios de sol congregados numa lupa. Portanto, abaixo o “gostar de ler” e o “ler para se distrair”. No próximo capítulo, falaremos mais um pouco sobre como fazer uma leitura mais humana.

AULA 09

TEMA:

O LEITOR BRASILEIRO III

Após termos comentado três motivos para leitura e deles extraído algumas verdades incômodas sobre incompreensões generalizadas aqui no Brasil (havia mais três; porém, não nos interessam), está na hora de abordarmos a leitura já de modo mais positivo. Já vimos seus erros; agora, não seria má ideia falar sobre o que seriam acertos na hora de ler. Você, leitor, já não deve mais estar aguentando tanta negatividade. Aqui, na parte três de nossa série sobre a leitura, hei de apresentar dois movimentos do espírito que são necessários a toda e qualquer boa leitura. Quando se trata de um bom leitor, no geral sua leitura envolve esses dois movimentos. O primeiro movimento é o de Abertura. Quando, por exemplo, você se põe a ler um livro ficcional qualquer, o óbvio a se dizer logo de cara

é que aquilo não é “real”. Os personagens não existem, e os dramas e histórias ali relatados não foram históricos. Nunca existiu uma Capitu como a Capitu de Machado; nunca houve um Pierre como o Pierre de Tolstói. Mas por que, então, as aspas? Porque toda obra de arte genuína, se não real, é sempre uma representação fidedigna do possível. Capitu nunca existiu — mas poderia muito bem ter existido aquela Capitu. Há, na personagem, uma substância humana real, ainda que não factual. E porque nela existe a tal substância com ela conseguimos aprender algo. O romancista é capaz de criar personalidades tão complexas e coesas quanto as personalidades existentes, de modo que suas desventuras exercem sobre elas um impacto parecidíssimo com o que haveria de exercer sobre pessoas reais. Suas vidas, portanto, passam a conversar com as nossas. Capitu não existiu; mas seus dramas já se repetiram milhões de vezes ao longo da história. Daí a abertura. A ficção nos vai apresentan-

do uma série de possibilidades humanas (ou mesmo não humanas) a que muito dificilmente teríamos acesso por experiência direta. Eis o que disse C. S. Lewis: “O homem que se contenta com ser apenas ele mesmo, e, portanto, com ter um eu reduzido, está numa prisão. Meus próprios olhos não me bastam; hei de enxergar com os olhos de outros. A realidade, mesmo quando vista através dos olhos de muitos, não me basta. Hei de ver o que outros inventaram. Lamento que os brutos não consigam escrever livros. De muito bom grado aprenderia com que feição as coisas se apresentam a um rato ou uma abelha; com ainda maior alegria haveria de experimentar o mundo olfatório carregado de todas as informações e emoções que carrega para um cachorro”. Cada novo olhar aprendido, cada nova condição humana de que participamos imaginativamente nos vai alargando o espírito e enriquecendo o mundo interior e imaginário de onde pode surgir qualquer inteligência supe-

rior. A abertura, portanto, é imaginativa. Mas é também moral. Não lemos obras ficcionais para julgar moralmente as personagens, e sim para contemplar a quase infinita variedade e complexidade das relações e situações humanas. Aliás, a suspensão moral é uma das melhores habilidades que nos pode proporcionar a arte narrativa ficcional. Em vez de ficarmos escandalizados com as podridões humanas ou céticos quanto às suas alturas, vamos nos acostumando com todo o espectro moral humano. O escândalo puritano é algo falso, postiço e, em última instância, demoníaco. O escandalizado confunde sua falta de imaginação moral com superioridade moral, e, portanto, acha que lhe cabe o dever de corrigir ou punir o pecador ou infrator moral. A arte ficcional pode ajudá-lo a corrigir o escândalo e colocar, no seu lugar, um senso profundo de participação. Somos todos filhos de Adão e Eva; todos nascemos, crescemos e morremos em direção a um destino desconhecido. Aprofundar o sentimento de partici-

pação na espécie humana por meio da abertura moral é uma das únicas formas de fugirmos à hipocrisia e soberba. Isto, porém, quando se trata de leituras ficcionais. E quanto à não-ficção? Aqui entra a abertura crítica. Nossa geração foi ensinada, desde o berço, a opinar sobre tudo o que vai entre o céu e a terra. Fala-se pelos cotovelos sobre o tal “senso crítico”, como se as diversas faculdades que precisam ser cultivadas, treinadas e afiadas para que se possa dizer algo de útil e valioso fossem uma só habilidade inata, que cresce à medida mesma que é usada. Isto é: dê cada vez mais pitacos e o seus pitacos hão de melhorar.

Balela. Dar opiniões é a coisa mais fácil do mundo. Tão fácil quanto soltar um arroto. É fácil, imediato, indolor e, no geral, efeito nenhum há de causar em coisa ou pessoa nenhuma. De modo que dar pitacos torna-se um vício.

Mas o que ninguém nos parece ter contado é que multiplicar as opiniões vazias de nada servirá para tornar alguma delas menos estúpida. Se você quer tornar mais limpa a água suja de um copo, despejar-lhe mais água suja não será uma ideia muito genial. O que você tem de fazer é jogar fora a água suja — esvaziar o copo. Pois aí está: poder-se-ia chamar a abertura crítica de esvaziamento crítico. Digamos que você pegue um livro de ensaios. Agora, acrescente às dificuldades de leitura do brasileiro a maldita sanha de dar pitacos — o que, no Brasil, passa como “argumentação”. A inteligência argumentativa, responsável por depurar fatos, evidências e cadeias lógicas de argumentos, pressupõe todo um treino e domínio prévio de camadas mais básicas. Entre elas, a expansão imaginativa e o puro e simples acúmulo de problemas. Se você se fecha aos problemas por já ter seu conjunto de opiniões prontas, não haverá abertura nenhuma. Não

haverá nenhum aprendizado. O que você deve fazer ao ler um livro não ficcional? Deve, antes de tudo, esforçar-se para entender o que o autor está dizendo. Quer ele provar algo ou apenas expressá-lo? Está sendo irônico? Está usando alguma figura de linguagem? Quer apenas causar um efeito ou criar alguma sugestão imaginativa? Se você aborda o livro já desconfiado do autor e apegado às suas opiniões, nada de bom poderá sair de sua leitura. Aliás, não será leitura em absoluto. Ler implica descompactar corretamente toda a carga semântica, emocional e imaginativa contida nos sinais gráficos de um texto. Sem isso, só existe adivinhação. Se você for um pitaqueiro, só haverá adivinhação acrescida de má-fé. É como as crianças que, na escola, são postas em rodinhas na sala de aula e convocadas a dar opiniões sobre o estado atual da democracia ou o desmatamento na Amazônia. Não estão entendendo bulhufas de coisa nenhuma. Mas sabem captar o que as pessoas querem ouvir

e repeti-lo. E já sabemos o que acontece com a repetição irrefletida de opiniões vazias. De modo que acabamos presos por dois lados: somos incapazes de interpretar um texto tanto por conta de deficiências cognitivas quanto pela soberba estúpida disfarçada de “pensamento crítico”. O resultado são tiranetes tão analfabetos quanto arrogantes. Portanto, recapitulando: a Abertura se divide em três tipos diversos. Abertura imaginativa, moral e crítica. O bom leitor quer expandir, alargar e tornar mais complexa sua percepção; não a diminuir, murchar e mirrar. Mas há, também, o segundo movimento: o movimento da Contração. Se, por um lado, você deve se abrir, pelo outro deve contrair tudo o que foi aprendido e deixá-lo maturar no seu espírito. Se quiser argumentar, argumente consigo mesmo. Em vez de julgar moralmente os personagens ficcionais, incorpore suas vidas à sua imaginação e deixe-a trabalhar livremente, exercendo sobre sua inteligên-

cia e personalidade influências insuspeitas. A Abertura é a mão que se abre para apanhar tudo quanto puder; a Contração, o punho que se fecha e guarda para si o apanhado. Como um os canais do coração, que se abrem e fecham interminavelmente, a leitura viva tem que se abrir e se fechar, abrir-se e fechar-se. A contração é tomar os elementos conseguidos pela leitura — imagens, impressões, narrativas, personagens, argumentações, figuras de linguagem, opiniões, etc. — e guardá-los com desprendimento na memória. De algum modo, com o passar do tempo tudo aquilo vai se incorporando à sua percepção, e você fica inacreditavelmente mais inteligente sem quase nem perceber. Portanto: Abertura e Contração. Eis os movimentos de uma leitura viva, eficiente e rica.

AULA 10

TEMA:

A LINGUAGEM IDEOLÓGICA I

No primeiro capítulo desta série, enalteci a linguagem e busquei enriquecer sua compreensão sobre um fenômeno tão crucial, milagroso e, nos dias que correm, negligenciado. Depois, para exemplificar sua importância contei um pouco da minha trajetória, e logo em seguida passamos a um breve exame do conceito de analfabetismo funcional. Portanto, fomos desde a linguagem enquanto elevadíssimo fenômeno para a linguagem manifestada concretamente na minha vida, e daí para as dificuldades que apresenta a linguagem. Depois, abordei o leitor brasileiro e acrescentamos às dificuldades cognitivas dos nossos leitores algumas incompreensões conceituais e hábitos práticos errados. Por fim, indiquei um possível caminho de melhora com o primeiro passo que é uma leitura viva: Abertura imaginativa, moral e crítica e Contração.

Agora, está na hora de complicarmos ainda um pouco mais as coisas. Pois o caótico estado de coisas não se resume às dificuldades aqui já descritas. Não temos apenas as deficiências e mal-entendidos; não bastam a soberba disfarçada e o acúmulo desenfreado de opiniões vazias e inúteis. Como se não fossem suficientes todos esses problemas, temos mais um: a linguagem ideológica. Se, no começo, tínhamos problemas de decodificação linguística básica e algumas incompreensões morais e conceituais, aqui temos um estreitamento mental ora deliberado, ora inconsciente. Temos o esvaziamento da linguagem e sua redução a invólucro descartável de ideologias revolucionárias.

Alcançamos a terceira camada dos problemas linguísticos: a única camada que, às vezes, vemos ser discutida nos meios alternativos de mídia.

E, no dia em que fiz a live de onde saiu esta apostila, calhei de receber de bandeja um exemplo duma seguidora, e vi que se tratava de uma ótima ilustração das várias camadas de incompreensão trabalhando juntas para colocar certa leitora o mais longe possível da interpretação correta de um texto curto e fácil de Instagram. Antes, portanto, de entrarmos nos conceitos, alimentemos a imaginação. Esta minha seguidora escreveu, há alguns dias, um texto no seu feed sobre amor. A moça, cristã, ali dizia que uma dor crônica no seu dedo a fazia lembrar-se de que o amor, às vezes, dói. Pronto. Resumindo a ópera, era isso. Donde se podia depreender, sem muita dificuldade, que o amor não era algo que se resume àquele sentimentozinho bobo no peito; que era, antes, coisa movida sobretudo pela Vontade. Não pelos sentimentos ou pela imaginação romântica em primeiro lugar. Pela Vontade que, voluntariamente, se obriga a manter certo ideal um dia jurado. Eis que, nos comentários, surge uma moça,

e, com aquele tom professoral já conhecido nosso, disse que era aquela ideia de amor que mantinha muitas mulheres presas, como servas irracionais, a homens violentos e abusivos. A incompreensão apenas dita parece simples. Explicar suas partes já é mais complicado e demorado. Todas as palavras que usamos no cotidiano dependem de certo contexto para que atinjam o sentido visado por quem as usa. Pressentir o contexto e antecipar possíveis sentidos de uma palavra é parte inescapável da compreensão linguística. Ao sentido dicionarizado das palavras acrescentam-se nuances, complicações e às vezes inversões mesmas, tudo a depender de quem as usa, e quando. É o caso óbvio de uma ironia, por exemplo; ou do famoso “pode ir” de uma mulher para o marido que lhe pergunta se está tudo bem jogar bola com os amigos em pleno domingo à noite.

Ora, quando a moça usou a palavra “amor” deveria ter ficado óbvio, a partir de todo o contexto da publicação (havia, salvo engano, uma foto da Bíblia) e do seu perfil, que o termo tinha ali sido empregado com um sentido específico, construído a partir de um complexo sistema de crenças, imagens, afeições e símbolos religiosos, além de possíveis memórias e exemplos de pessoas conhecidas ou de personagens bíblicos. Note: não estou falando que a leitora estava obrigada a saber detalhadamente qual era o tal sentido. Mas pressenti-lo, sim. Deveria ter lido a coisa e, abrindo-se, imaginado que se tratava de palavra com uma carga semântica peculiar — coisa, aliás, que o restante do post tornava ainda mais explícita. Mais: o texto não era polêmico. A moça não queria convencer ninguém a fazer coisa nenhuma; não queria provar nada. Estava apenas tentando expressar, de forma poética, parte de sua experiência. Estava verbalizando

suas crenças. Tudo isso (e muito mais) está pressuposto num ato de linguagem. Agora, o que acontece com a linguagem ideológica? Em suma: as ideologias reduzem os múltiplos sentidos possíveis, conceituais e contextuais, das palavras, a um único sentido, explicável apenas em termos daquela ideologia e significativo apenas dentro do esquema mental da mesma ideologia. O que raios quero dizer? Peguemos as palavras “amor” e “sofrimento”. Falamos em “amor” para os cuidados que tem uma mãe com seus filhos, para os arroubos de paixão que tem um amante com sua parceira, para o Sacrifício último de Cristo na Cruz. É óbvio que, se existe alguma semelhança entre os três atos, são bastante diferentes entre si. A mesma coisa com o sofrimento: a sofrência sertaneja não é o mesmo que o sofrimento de alguém passando por uma quimioterapia, e este não é o mesmo que o sofrimento in-

telectual de um bruto que não consegue pôr em palavras sua experiência. Mas acontece um probleminha: alguém disse àquela leitora, um dia, que o amor romântico não passava duma simples invenção criada por certo maligno patriarcado para que as mulheres se submetessem, voluntariamente, a homens maus em prol de algum ideal fantasioso.

Como a regra cá no Brasil é termos uma imaginação pobre, a explicação simplória das ideologias parece explicar e abarcar toda a realidade na medida mesma em que nós mesmos somos simplórios.

Em vez, portanto, de haver Abertura, ocorre ainda OUTRO fechamento. Primeiro, a inteligência é incapaz de descompactar e interpretar a linguagem básica; depois, com a palhaçada do “pensamento crítico” a imaginação vai-se atrofiando, e o indivíduo fica cada vez mais impossibilidade de perceber quaisquer dificuldades. Por último, vem a linguagem ideológica com uma explicação simplória e fecha o círculo vicioso: justamente por ser simplório, o sujeito engole uma explicação simplória e acha que é seu dever arrastar as pessoas para a luz de suas três frases. É o louco tentando ensinar o são; o cego guiando os que enxergam perfeitamente bem. Aí está porque tantos entram na faculdade e saem de lá meio pancadas da cabeça. Despejar um monte de fórmulas prontas e referenciais teóricos na cabeça de pessoas com o imaginário pobre e a linguagem capenga irá deixa-las LOUCAS.

MAS E A COMUNICAÇÃO? Dito tudo isso, não lhe soará um exagero eu dizer que não houve comunicação entre a moça que escreveu o post e sua leitora. A não ser que você tenha alguma base literária e certa bagagem imaginativa, além de uma ideia mínima de quais são as possibilidades, os mecanismos e os recursos da língua, as incompreensões só aumentarão. De um lado, a incapacidade verbal reduz o horizonte de consciência; por outro, o horizonte de consciência mirrado reduz as complexidades e torna tudo falsamente claro para o ignorante. Daí que os debates na internet sejam, quase sempre, completa perda de tempo. Daí que haja tanta raiva espumante e os textos enormes nunca esclareçam coisa nenhuma. É mais do que má-fé ou patifaria: é uma crise linguística. Nos próximos dois capítulos, hei de abordar conceitualmente a linguagem ideológica.

AULA 11

TEMA:

A LINGUAGEM IDEOLÓGICA II

Vimos, no capítulo anterior, um exemplo do estreitamento mental, moral e imaginativo que nos impõe a linguagem ideológica. Agora, com a ajuda de dois artigos magistrais do prof. Olavo de Carvalho, ambos presentes em seu “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, iremos abordar mais a fundo os mecanismos internos da linguagem ideológica. O primeiro artigo, do qual nos ocuparemos aqui, chama-se “Longa Noite”, e está na página 431 do referido livro. Hei de colocar alguns trechos seus e comentá-los logo em seguida. O livro começa assim: “Se há uma coisa que, quanto mais você perde, menos sente fala, é a inteligência. Uso a palavra não no sentido vulgar de habilidadezinhas mensuráveis, mas no de percepção da realidade. Quanto menos você percebe, menos percebe que não percebe”.

Como a linguagem é, por assim dizer, o “veículo” da inteligência, o que se aplica a esta aplica-se àquela. O indivíduo que tenha a linguagem reduzida pelas forças ideológicas em voga não irá conseguir dizer — ou, como a leitora do post sobre o amor, sequer entender — qualquer coisa que esteja para além do seu vocabulário usual. Estará, portanto, preso. Pior: será um preso que se imagina tanto mais livre quanto menor e mais sufocante for sua prisão. Daí que os possuídos pelo vocabulário ideológico rosnem com uma certeza inquebrantável seus dogmas. Estão fechados e não sabem. Sua narrativa é simplória, deixa um milhão de coisas de fora e eles não percebem. Já dizia Chesterton que o louco nunca tem dúvidas. Não tem dúvidas justamente porque sua imaginação mirrada não consegue entreter aquelas possibilidades que, numa pessoa normal, servem como freios.

O são estará sempre ABERTO a uma possibilidade. “E se essa pessoa estiver dizendo outra coisa que não aquilo que aprendi? E se?” Continuando o artigo: “Quase que invariavelmente, a perda vem por isso acompanhada de um sentimento de plenitude, de segurança, quase de infalibilidade. É claro: quanto mais burro você fica, menos atina com as contradições e dificuldades, e tudo lhe parece explicável em meia dúzia de palavras”.

Preste muita atenção nisso: a burrice — não como xingamento, e sim descrição de uma limitação cognitiva objetiva — pode ser definida como a incapacidade de enxergar dificuldades. Daí que exista a ideia popular de que os inteligentes são “tristes”. A ideia é balela, mas nela existe um fundo real. Daí, também, que desde o início eu tenha sobretudo acrescentado dificuldades e complexidades à sua concepção de leitura, linguagem e escrita. Enxer-

gar problemas já é ficar mais inteligente. “Se as palavras”, continua o prof. Olavo, “vêm com a chancela da intelligentzia falante, então, meu filho, nada mais no mundo pode se opor à força avassaladora dos chavões que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem todas as dúvidas e instalam, com soberana tranquilidade, o império do consenso final.”

Ou seja: se a classe falante, a suposta elite intelectual de um país, não só apoia como usa ela própria a linguagem ideológica, o processo de fechamento, emburrecimento e loucura pura e simples cá em cima narrado é multiplicado. Instaura-se aquela padronização apavorante, os discursos repetidos automaticamente como numa linha de produção linguística. “Refiro-me especialmente a expressões como ‘desigualdade social’, ‘diversidade’, ‘fundamentalismo’, ‘direitos’, ‘extremismo’, ‘intolerância’, ‘tortura’, ‘medieval’, ‘racismo’, ‘ditadura’, ‘crença religiosa’ e similares. O leitor, se quiser, pode completar o repertório mediante breve consulta às seções de opinião da chamada ‘grande imprensa’. Na mais ousada das hipóteses, não passam de uns vinte

ou trinta vocábulos. Existe algo, entre os céus e a terra, que esses termos não exprimam com perfeição, não expliquem nos seus mais mínimos detalhes, não transmutem em conclusões inabaláveis que só um louco ousaria contestar? Em torno deles gira a mente brasileira hoje em dia, incapaz de conceber o que quer que esteja para além do que esse exíguo vocabulário pode abranger”.

Pare, fique em silêncio alguns minutos e tente puxar da memória todos os últimos debates púbicos de que você se lembra. Duas coisas neles não faltaram: algum dos termos acima e um senso, uma atmosfera de enorme facilidade. Como se fosse tudo meio óbvio e translúcido. Como se não houvesse dificuldades e complexidades insuspeitas nas tais palavras, de modo que mesmo perguntar “o que é a democracia? ” seria julgado um desvio malicioso ou sem noção. Apenas com os excertos desse artigo já se pode entender MUITA coisa do caos que ora reina no Brasil. É um processo diabólico de hipnose e auto-hipnose verbais. A pessoa tanto se engana a si própria sem sabê-lo quanto

engana os outros — ora consciente, ora inconscientemente. No próximo capítulo, abordaremos a linguagem ideológica usada como ferramenta de controle social.

AULA 12

TEMA:

A LINGUAGEM IDEOLÓGICA III

No último capítulo, falei sobre a linguagem ideológica não como ferramenta usada deliberadamente para controlar ou confundir, e sim como um estreitamento mental inconsciente, de que os seus propagadores são tanto agentes quanto vítimas. Para tanto, lemos partes de um artigo do prof. Olavo de Carvalho e as comentamos. Aqui, outra vez havemos de recrutar o professor, e repetir o procedimento com o artigo que se segue imediatamente ao artigo comentado no último capítulo. Chama-se ele “A palavra-gatilho” e está na página 433 do livro “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”: “No artigo anterior, mencionei alguns termos da ‘língua de pau’ que domina hoje o debate público no Brasil, inclusive e sobretudo entre intelectuais que teriam como obrigação primeira analisar a linguagem usual, libertando-a do poder hipnótico

dos chavões e restaurando o trânsito normal entre língua, percepção e realidade”.

Eis, em grande parte, o que quero tentar fazer no meu Instagram e cá neste curso, ainda que em escala muito humilde: restaurar “o trânsito normal entre língua, percepção e realidade.” Quero ajudá-lo, leitor, a melhorar e fortalecer a relação entre o que você vê, o que você sente e o que lhe acontece. Melhorar sua linguagem e, portanto, de certa maneira seu acesso à realidade. Lembre-se do que eu já disse mil vezes: a linguagem é o primeiro ponto de contato e domínio sobre o mundo. Como é que a linguagem ideológica altera o trânsito normal entre a língua, a percepção e a realidade? Esvaziando a língua, acaba estreitando a percepção e esta, por sua vez, falseia a realidade à força de simplificá-la. Continuando: “Mas estou longe de pensar que os chavões são inúteis. Para o demagogo e charlatão, servem para

despertar na plateia, por força do mero automatismo semântico decorrente do uso repetitivo, as emoções e as reações desejadas.”

Dou um exemplo: há alguns dias, vi algum político inútil (redundância, eu sei; mas serve a fins retóricos e de pura e simples esculhambação a políticos, o que é sempre saudável), em alguma discussão igualmente inútil, vociferando isto contra algo potencialmente inútil: “essa coisa x aí é medieval; nós voltamos à Idade-Média!” Ora, o que o fez aí o eminente homem de Estado? Apelou a uma ideia popular sobre a Idade-Média. Na verdade, a uma imagem, que não chega a ser conceito e é apenas uma mistureba imaginativa de filmes ruins, desenhos animados, gibis, documentários de fundo de quintal e animes — imagens de fogueiras, autoritarismo obscurantista, hipocrisia galopante, velhos asquerosos e tarados sob roupas pom-

posas, torturas e gritos em câmaras rasgadas nas entranhas da terra e mulheres inocentes sendo queimadas na fogueira porque recusavam submeter-se à autoridade patriarcal. Em suma:

NADA de COISA NENHUMA a ver com a Idade Média real. Ou seja: a palavra já não se refere a nada real, e é usada apenas como gatilho para desencadear emoções negativas baseadas em imagens e impressões. O sujeito escuta “medieval” e logo pensa em tortura. Quem é gosta de tortura? Ninguém. Não gostando de tortura, insurge-se emocionalmente contra o termo. A emoção se sobrepõe à razão e o indivíduo fica impermeável a argumentos.

E os exemplos não faltam: desigualdade social, diversidade, fundamentalismo, intolerância, crença religiosa, racismo, ditadura... As tais palavras se vão sedimentando na nossa cabeça à força do puro e simples uso repetitivo. Outro exemplo: “sociedade”. Quase sempre, quem a usa não tem uma ideia clara do seu sentido preciso. Todos a empregam apelando a uma série de imagens mentais tão indistintas quanto a maçaroca imaginativa da Idade-Média. Eu, quando era mais novo, sempre que a ouvia logo apelava à imagem de uma mesa redonda, à qual sentavam-se vários homens de branco com terno, todos mal iluminados de uma forma sinistra, com os rostos obscuros. Por quê? Porque fora a imagem que minha imaginação produzira a partir das várias referências populares, sobretudo as de jogos e de Hollywood. Quando, portanto, a classe falante começa a usar as tais palavras, só faz reforçar o uso es-

vaziado da linguagem. Estão emburrecendo, às vezes de modo irremediável, milhões de pessoas. Voltemos ao artigo: “A linguagem dos chavões caracteriza-se por três traços inconfundíveis: 1) aposta no efeito emocional imediato das palavras, contornando o exame de objetos e experiências correspondentes”.

É o que já dissemos: como as palavras não têm substância semântica real e só fazem conjurar imagens, o exame do seu conteúdo pela inteligência é impossibilitado. Imagens vagas e impressões não podem ser impugnadas intelectualmente. Seu efeito não é conceitual, mas imaginativo. Só se pode combatê-las com imagens que lhes sejam contrárias ou que as corrijam em determinados pontos. “2) Procura dar a impressão de que as palavras são um traslado direto da realidade, escamoteando a história de como seus significados presentes se formaram pelo uso repetido, expressão de preferências e escolhas humanas”.

Isso é absolutamente crucial: quando falamos “gato”, seu objeto é óbvio e imediato. Um gato é um gato. Não há complicações. Uma vaca é uma vaca. O verde é verde. Não é o que se dá com a “democracia”, por exemplo. Ou com “direita e esquerda”. Ou “ditadura”. O presente uso das palavras vai se alterando, de acordo com o gosto ideológico do freguês ou suas intenções retóricas. Essas palavras surgiram em contextos específicos, dentro de um conjunto específico de crenças, e foram mudando de sentido ao longo dos tempos. Quem quer que apele à “democracia” como se estivesse falando de um gato ou é um demagogo, ou alguém que não sabe o que está fazendo. “3) Confere a autoridade de verdades absolutas a afirmações que, na melhor das hipóteses, têm uma validade relativa”. Recorramos, para fins didáticos, ao mesmo exemplo da democracia: trata-se de um sistema específico de governo, e não do Paraíso na terra.

Veja: uma parcela enorme das pessoas que participam dos debates públicos usa as palavras no exato sentido de gatilhos. “Classe média”, por exemplo. É menos um conceito descritivo e mais um amontoado de imagens retiradas da cultura popular, de sitcoms e músicas de rap: o casal bobo alegre, preconceituoso, tacanho e covarde. Uma classe de pessoas desprezíveis. “Fascista” é, claro, talvez o maior exemplo do esvaziamento da linguagem e seu uso político. É a palavra-gatilho que, aplicada de modo absolutamente indistinto a tudo e todos, já nem tenta ou finge descrever alguma coisa: apenas evoca a insurreição contra a tirania. A linguagem ideológica, pois, vai sendo usada como arma para animalizar as pessoas. Os termos servem como o chicote de adestramento para os cachorros. A língua já não serve para descrever e acessar a realidade, e sim para alterar o estado emocional do ouvinte à força de imagens vagas e, em última instância, irracionais.

Quem se vale da linguagem ideológica não é apenas um demagogo; é um inimigo da inteligência e um agente para o embrutecimento final do Homem.

AULA 13

TEMA:

VIDAS SECAS

Aqui, no décimo terceiro capítulo de nossa série, depois de tanto termos falado sobre os problemas e dificuldades da linguagem, está na hora de apresentarmos algum possível remédio. Um dos primeiríssimos remédios é começar a ter algum contato com a literatura ficcional. Em vez, porém, de eu aqui elencar várias razões e não sairmos do campo conceitual, resolvi que seria melhor unir o útil ao agradável e falar dum livro ficcional que ponha, ele mesmo, uma incapacidade linguística brutal em palavras e num exemplo palpável. Logo, em vez de falar sobre literatura achei por bem mostrar o poder da literatura na prática. O exemplo do livro é extremo, sim; contudo, por analogia conseguiremos dali tirar uma ou duas lições sobre a importância crucial da linguagem. Contemplando um homem redu-

zido à quase animalidade pela incapacidade expressiva, conseguiremos identificar melhor nossas próprias incapacidades. Por tabela, já demonstraremos a força da literatura. “Vidas Secas” é um de nossos clássicos. Graciliano Ramos ali retrata a existência quase animalesca duma família de sertanejos miseráveis, lutando para subsistir sob o clima cruel e imprevisível que faz pairar sobre suas cabeças a ameaça constante da seca. Fabiano, sua esposa, dois filhos e a cachorra Baleia. Como era de se esperar do ensino institucional de hoje em dia, a tendência geral é enfatizar os aspectos sociais da obra. Neste caso, a óbvia e sofrível pobreza material. Porém, a miséria de recursos é apenas uma parte das forças que roubam aos personagens sua humanidade. Ao longo do livro, Graciliano vai deixando claro como existe uma incomunicabilidade intransponível e quase total entre os familiares, e como seus próprios mundos

interiores não conseguem se organizar e ganhar alguma estabilidade. A prosa seca e cortada do autor só faz reforçar a sequidão e os constantes lapsos de consciência e lógica de que sofrem os personagens. Graciliano dá ênfase à cachorra precisamente para aproximar-lhe a natureza da natureza da família. São, todos eles, bichos. O capítulo que nos diz respeito é o seguinte: Fabiano vai à cidade a mando da esposa para ali comprar algumas coisas. O dinheiro, como sempre, é curto, e o sertanejo põe-se a discutir com o dono de certa vendinha quanto ao preço de determinado bem de consumo (crê que o outro está lhe passando a perna). Acaba tomando umas, ficando bêbado e parando para jogar umazinha. A noite cai rápida, Fabiano vê as horas, levanta-se esbaforido e chispa em direção à fazenda — mas um certo soldado amarelo resolve tomá-lo pra Cristo.

Fabiano, como já deixei dito, é um bruto. Um perfeito e rematado chucrão. O soldado, sujeitinho medíocre, porém “otoridade”, põe-se a irritar e afrontar o sertanejo matuto, peitando-o e, por fim, chegando a pisar no seu pé. Fabiano perde as estribeiras e xinga sua mãe. Pronto: eis o pretexto perfeito para o soldado metê-lo na cadeia. O que se segue é uma das cenas mais tristes de nossa literatura. Fabiano, ignorante, preso e meio bêbado, tenta recontar para si o que lhe acabou de acontecer para pôr alguma ordem nas ideias. No segundo capítulo desta série, afirmei que uma capacidade linguística pobre implica em pobreza narrativa, e que a pobreza narrativa acaba falseando as memórias. Afirmei, também, num capítulo posterior, amparado pelo INAF, que uma enorme parcela dos brasileiros tem dificuldades gravíssimas não só com textos, mas com a comunicação oral cotidiana. Agora, havemos de ver um exemplo extremo do que expus, posto em palavras pelas mãos

de um mestre. Fabiano, preso e acuado feito um bicho, na prisão escuta um bêbado a balbuciar e urrar coisas sem sentido: “Ouviu o falatório desconexo do bêbado, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor; nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais — aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? Se não fosse aquilo... nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou — e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos”.

A primeira coisa a se notar é a seguinte: note a variedade de recursos narrativos (como o discurso indireto livre, por exemplo), o domínio seguro de amplo vocabulário e a vasta e funda imaginação de que teve que lançar mão Graciliano Ramos para descrever a confusão de UM matuto. É preciso um gênio literário para reproduzir fielmente os processos mentais do sujeito mais simplório imaginável. E que processos são esses? Fabiano, com a já pouca habilidade mental reduzida pela cachaça, enfurecido por estar enjaulado, escuta um bêbado falando. Escuta-o e logo pensa que “ele também dizia palavras sem sentido”. Fabiano se vê a si próprio no bêbado. No início do livro, Graciliano descreve a linguagem do matuto como monossilábica. Tinha ele dificuldades para construir frases; para reconhecer os padrões sintáticos e usá-los corretamente. Ora, ocorre que os raciocínios são frases. Sem a construção formal e gramatical da língua não pode haver a etapa

posterior de ordenação da inteligência. Fabiano, portanto, faz ele próprio a comparação com o bêbado. É Fabiano e ninguém mais quem está vendo no encachaçado prisioneiro semelhanças consigo. Porém, como lhe é difícil formar frases e, portanto, encadear logicamente sequências de raciocínio, o que acontece? Ele se ira com a comparação. Sua linguagem monossilábica é incapaz de sustentar o mesmo fio de raciocínio por muito tempo. Daí parte à constatação de que era um bruto, “sim senhor”, e não sabia explicar-se. Impotente, sentindo-se reduzido sem saber por quê, dá murros na parede. E depois enfia outra linha de raciocínio: estava preso porque era um tatuto e não sabia falar direito. Daí passa às memórias do seu trabalho e passa a se auto-justificar. Era um trabalhador. Tudo em ordem. A provocação do soldado, seu revide e a consequente prisão: eis um raciocínio que não lhe passa pela cabeça. Fabiano faz tanto esforço

para articular aquelas poucas palavras que mal lhe sobram forças intelectuais e emocionais. Fabiano não consegue acessar suas próprias memórias imediatas. Lembre-se de que eu disse ser a linguagem o que instala o homem FORA DO TEMPO. Isto porque pode projetar-se no futuro ou acessar o passado. Mas o sertanejo não consegue acessar o passado e muito menos projetar o futuro. Vive à mercê das circunstâncias imediatas; abaixo das circunstâncias. Na verdade, apenas sofre as circunstâncias. Note, também, como os raciocínios vão sendo picotados antes que se consigam ligar uns aos outros. Fabiano vai pulando de galho em galho, tanto pela raiva com sua impotência expressiva quanto pela pura e simples incapacidade de construir frases longas, que se liguem com lógica, ordem e subordinação sintática. Fabiano é, portanto, como um bicho acua-

do. Não é capaz de contar para si com mínima exatidão sua história e, portanto, sofre os sentimentos feito uma criança. Não os entende. Não sabe de onde vêm e o que são. Sua vida emocional é um caos. Sua inteligência é atrofiada e ineficaz. Rasa, débil. E por que Graciliano fez questão de escrever essa cena? Porque queria enfatizar o isolamento da gente do sertão; seu rebaixamento em todas as esferas. E nosso escritor bem sabia qual é a importância da língua para o ser humano. Por que eu, por minha vez, resolvi comentar a referida passagem aqui? Porque nela, a um só tempo, verificamos não só o poder da literatura como o exemplo mais elucidativo, descontando-se seu caráter extremo, da indissociabilidade entre língua e razão; e entre estas e o fundamento do que é ser um humano. A língua é eminentemente, como diz o prof. Olavo de Carvalho, “participação no mundo”. Fabiano não participa no mundo; ele sofre o

mundo. Sofre o clima, a pobreza, a incomunicabilidade com os filhos e a esposa; sofre as ordens de um patrão em quem não confia, e cuja integridade não consegue aferir porque lhe faltam os conhecimentos matemáticos básicos e até mesmo a voz articulada para protestar; sofre os desmandos de um soldado amarelo. Sofre a semelhança com um bêbado balbuciando nada com nada. Ler este livro, ainda que possa ser difícil no início para alguns de vocês, poderá dar-lhes um poderosíssimo anti-exemplo. Que todos aqui façam o voto de, com quantas forças tenham, afastar-se da incapacidade de Fabiano e articular o mundo com um poder linguístico cada vez maior, mais eficaz e poderoso. A língua é participação no mundo. Sejamos agentes participativos.
DESVENDANDO OS SEGREDOS DA LINGUAGEM

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