MAHONY, Mary Any. MULHER, FAMILIA E ESTATUTO SOCIAL NO SUL DA BAH

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Mulher; família e estatuto social no sul da Bahia: entre a escravidão e a liberdade, c, 1850 - c, 1920 Mary Ann Mahony

Em maio de 1887, um ano antes da abolição da escravidão no Brasil, a liberta Maria Felícia recebeu a notícia triste que sua filha mais nova, Thereza, havia sido "enterrada viva" depois de sofrer "algumas bofetadas e um grande ponta pé" do seu senhor João Theodoro de Farias, dono da Fazenda Embira em Ilhéus.' Obviamente, Thereza morreu e, como ela estava "num estado avançado de gravidez," morreu também sua filha ainda não nascida. Embora 1. Hoje o município dc Ilhéus abrange um território de quase 2 milhões de quilômetros quadrados no litoral sul da Bahia. Espalha-se do sul para o norte da divisa com Canavieiras até Itacaré, ou seja, mais de oitenta quilômetros. A o oeste está mais ou menos delineada pelos Rios A l m a d a e Engenho e pela BR 101. N o s séculos passados, o território de Ilhéus era muito maior sempre diminuindo com o passar dos tempos devido a "disputas entre segmentos diversos da sociedade colonial" e novas configurações do poder ao longo dos séculos. Caio Figueiredo Fernandes Adan, "Colonial Comarca dos Ilhéus: Soberania e territorialidade na América Portuguesa (1763-1808), (Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, 2009) Ilhéus teve origem como uma das catorze capitanias hereditárias, com um território medindo 50 léguas do Rio Jaguaripe no norte (perto da Bahia de Todos os Santos) para a fronteira com a Capitania de Porto Seguro no sul, e fundos ao oeste "sem limites." Mas, "em reflexo do tímido avanço da colonização" no litoral, e da descoberta de ouro no interior, foi perdendo território ao norte para a Bahia e a oeste para Minas Gerais. Em meio às reformas pombalinas, no ano de 1754, a Capitania de Ilhéus foi extinta c em 1763, o território foi transformado em uma comarca da Capitania da Bahia. Esta comarca corria do norte ao sul do Rio Jiquiriça até a divisa com Porto Seguro, e ao oeste até a divisa com Vitória da Conquista. É esta a Ilhéus estudada por Bert Barickman em A Bahian Counterpoint, (Stanford, 1998). Nas décadas seguintes, com o crescimento da economia e da população da região do litoral baixo sul da Bahia, a comarca de Ilhéus foi progressivamente perdendo território com o desmembramento de Valença, C a m a m ú , e Barra do Rio das Contas, que se tornaram novas comarcas. A criação destas novas comarcas seguia a formação anterior de freguesias católicas administradas pelo arcebispado da Bahia, até a criação do arcebispado de Ilhéus no século X X .

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recentemente alforriada, e em luto, Maria Felícia contratou um advogado e fez com que as autoridades investigassem a morte de sua filha.* No final, Farias foi inocentado, mas as ações de Maria Felícia revelam que a escravidão não diminuía seus sentimentos familiares e mostram que ela entendeu que a liberdade significava que o sistema de justiça poderia ser invocado para defender sua família.3 Enquanto Maria Felícia lutava para conseguir justiça para sua filha, muitos outros afrodescendentes - libertos e libertas, livres e escravizados/ as - concentravam seus recursos familiares e financeiros em se estabelecer como lavradores de cacau. Com o desenvolvimento da receita para chocolate ao leite em 1876, o mercado internacional para cacau - o ingrediente mais importante no chocolate - cresceu vertiginosamente Como havia muitas terras devolutas e propriedades privadas ainda não desenvolvidas para a agricultura no sul da Bahia, muitas pessoas, inclusive afrodescendentes, começaram a derrubar a floresta e a plantar cacau, tanto em terras de domínio público quanto particular. Conseguiram se fazer lavradores e fazendeiros de cacau porque, por um lado, o estado brasileiro não possuía recursos para coibir a destruição da mata atlântica e, por outro, faltava aos grandes fazendeiros e senhores de engenho na região a mão de obra necessária para plantar todas as terras do seu domínio sem a participação de livres e libertos que não se interessavam em se tornar jornaleiros ou trabalhadores permanentes.4 Durante todo este período, Ilhéus também incluía o arraial ou vila (após 1882, cidade) de São Jorge dos Ilhéus, situado no litoral, junto à confluência dos Rios Engenho, Cachoeira e Fundão, além de áreas rurais, colonizadas e cultivadas ou não, no interior. E m meados do século X I X , o município de Ilhéus era composto da vila de Ilhéus, e da ex-aldeia indígena de Olivença assim como terras ao oeste até a divisa com Vitória da Conquista que agora abrangem Uruçuca, Itajuípe, Itabuna, Buerarema, e outros. Esta é a Ilhéus a que referimos neste artigo. A o longo do século X X novos desmembramentos reduziriam o território do município com a criação de outros tais como Itabuna, Uruçuca, Itajuípe, Buerarema, Camacã, entres outros. 2. Antônio Pessoa Costa e Silva, advogado de Maria Felícia, liberta ao Juiz de Direito de Ilhéus, 16 maio 1887; Denuncio, 30 maio 1887, Arquivo Público do Estado da Bahia, Secção Judiciaria (doravante A P E B - S J ) , Processo Crime No. 06/182/15, 1887, Homicídio, Diogo, escravo, 1887. 3. A P E B - S J , Processo Crime, No. 06/182/is, Homicídio,.Diogo, escravo, 1887. 4. Para mais informações sobre afrodescendentes como lavradores de cacau veja M A H O N Y, M a r y Ann. "Land Reform, and the Question of Social Mobility in Southern Bahia, 18801920," Luso-Brazilian Review 34, no. 2 (Winter 1997), pp. 59-79.

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Entre estes afro descendentes encontramos Mariinha das Virgens Gallo Pitombo e seu marido Manuel Felix Pitombo. Os documentos revelam que quando Thereza faleceu, os Pitombo viviam em sua pequena fazenda com seus sete filhos - cinco moços e duas moças. Mariinha das Virgens era liberta como Maria Felícia, mas os outros membros da família nasceram livres. Possivelmente alguns parentes de Mariinha das Virgens continuavam na escravidão, mas as pessoas da sua responsabilidade principal - seus filhos e marido - não sofreram cativeiro.5 O fato de serem livres não significou que os Pitombo deixaram de enfrentar a hierarquia social da região: sua pequena fazenda de cacau estava bem estruturada, mas ocupava terras de terceiros. Como muitos outros produtores da época, os Pitombo vendiam o cacau que colhiam em troca de permissão para plantar. No caso deles, as terras pertenciam à família Sá Homem Del Rei, donos do Engenho Castelo Novo, e primos dos senhores de Thereza. Não nos surpreende, portanto, que, quando intimado a testemunhar acerca do caráter de Farias no curso do inquérito da morte da Thereza, Manuel Félix Pitombo assegurasse às autoridades que Farias tratava muito bem aos seus escravos, até mesmo dando-lhes enterros decentes.6 Para Maria das Virgens, a liberdade significava morar com seu esposo e seus filhos, construindo uma vida juntos, mas não significava independência total da hierarquia social e econômica da região. Como estas narrativas sugerem, embora tanto Maria Felícia quanto Mariinha das Virgens fossem libertas, as suas experiências com a liberdade eram muito distintas. As duas tiveram e criaram filhos e trabalhavam na lavoura no mesmo distrito e no mesmo período. Mas aí as semelhanças terminaram. Maria Felícia passou a maior parte da sua vida escravizada, trabalhando para outros, sem poder viver com seus filhos e companheiro(s). Nem sabemos se ela teve contato com, ou notícias do filho que foi mandado para trabalhar em Salvador quinze anos antes. Ganhou a liberdade e entrou no mercado de trabalho quando tinha, no mínimo, cinquenta e cinco anos de idade. Não podia depender das filhas para mantê-la e, pior, precisava preocupar-se com as três filhas e um filho ainda no cativeiro, para não falar de netos ingênuos que viviam sob a tutela dos donos das filhas. 5. Arquivo da Cúria de Ilhéus (doravante ACI), Livro de Registro dos Casamentos, c Livro de Registro dos Batismos, c. 1870-1876. 6. APEB-SJ, Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887.

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Mariinha das Virgens era sujeita ao poder do marido, mas ela não precisava representar sua família frente às autoridades.7 Nem uma nem outra escapou do sistema patriarcal e da sociedade hierarquizada que caracterizavam o Brasil na época, mas experimentaram esta cultura de uma forma diferente A sociedade regional viu Maria Felícia como uma mulher que não merecia respeito: era ex-escrava, analfabeta, mãe solteira, morando sem a proteção de um marido. Mariinha das Virgens, por outro lado, mesmo sendo ex-escrava e analfabeta, era também matriarca de uma família respeitada. Essa diferença era importante. Sabemos que escravidão e liberdade construíram ideologias de gênero, e que, ao mesmo tempo, noções acerca de gênero também moldavam as experiências e oportunidades abertas a escravizadas e a livres pobres." O escravismo foi um sistema patriarcal e a região cacaueira também se caracterizava por uma sociedade com essa característica, mas, durante e depois da escravidão, as experiências de escravizadas e livres com o patriarcalismo eram distintas. Estas diferenças não só impactaram as próprias pessoas, como, também, influenciaram as trajetórias das suas famílias em médio e longo prazos. Este capítulo examina os relacionamentos íntimos e a vida familiar dessas duas senhoras e de suas famílias ao longo de três gerações em Ilhéus oitocentista e nas décadas iniciais do século XX. Investiga como o escravismo e a liberdade afetou a vida familiar das duas. Não duvidamos que estas senhoras formaram famílias, mas queremos ver como o escravismo e a liberdade influenciaram sua habilidade de construir um futuro depois da abolição. Traçando as gerações: um desafio metodológico Embora várias gerações de historiadores e críticos culturais brasileiros vêm argumentando que a família é, e sempre foi, o esteio da sociedade e cultura brasileiras, até muito recentemente poucos analisaram a família escrava.^ 7. M A H O N Y , M a r y A n n , "Afro-Brazilians, LandReform, and the Question of Social Mobility in Southern Bahia, 1880-1920," Luso-Brazilian Review 34, no. 2 ( W i n t e r 1997), pp. 59-798. Esta abordagem se inspira nos argumentos encontrados e m P A T O N , Diana; S C U L L Y , Pamela (eds.) Gender and St ave Emancipation in the Atlantic World. ( D u r h a m ; Duke University Press, 2005) p. 1.

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Como os estudiosos iniciais da escravidão concluíram que escravos não formaram famílias, não havia porque estudá-lasMais recentemente pesquisadores investigando as experiências dos milhões de escravizados e livres pobres no Brasil têm mostrado que a instituição da família não foi um privilégio exclusivo das elites - ou seja, livres pobres e escravos também formavam famílias.10 Em outras palavras, está bem estabelecida a existência de relações íntimas e afetivas importantes entre pessoas vivendo no cativeiro, embora estas relações não fossem necessariamente formalizadas pelo casamento legal. Enquanto reconhecemos a importância da família para os milhões de escravos, escravas, libertos e libertas no Brasil, ainda não sabemos muito especificamente sobre as trajetórias destas famílias nos médios e longos prazos. A maioria dos estudos sobre a família escrava e liberta examinam o fenômeno em curto prazo. Pretendemos preencher esta lacuna, adotando uma metodologia já reconhecida como importante na história das famílias da elite - a genealogia. Desde a década dos 1980, a genealogia está permitindo a historiadores mostrar conexões, estratégias e trajetórias, de famílias brasileiras da elite no passado." Nosso projeto é utilizar a mesma metodologia para examinar as famílias escravas e libertas. 9. Para um estudo da historiografia que nega a existência da família escrava veja S L E N E S , Robert W., Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil sudeste, Século XIX. (Rio de Janeiro, 1.999), PP- 27-43. 10. Entre os estudos importantes encontramos G R A H A M , Richard, "Slave Families on a Rural Estate in Colonial Brazil." Journal of Social History (Hereafter JSH) 9, no. 3 (1976): 382-402; M A T T O S O , Katia Maria de Queiroz "Slave, Free, and Freed Family Structures in Nineteenth-Century Salvador, Bahia," Luso-Brazilian Review 25, no. 1 (1988): 69-84; S C H W A R T Z , Stuart B„ "Opening the Family Circle: Godparentage in Brazilian Slavery," in Slaves, Peasants and Rebels: Reconsidering Brazilian Slavery. (Urbana, 1996), 137-160. Os estudos mais importantes são S L E N E S , Na Senzala uma flor; FLORENTINO, Manolo and G O É S , José Roberto, A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c 1790-0. 1850. (Rio de Janeiro, 1997); MATTOS, Hebe Maria, A i cores do silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista—Brasil, Séc. XIX. 3rd ed. (Rio de Janeiro, 1998); Outros estudos importantes são REIS, Isabel Christina Ferreira, "A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888", U N I C a m p , 2007; M A H O N Y, M a r y Ann, "Creativity Under Constraint: Enslaved Families, Enslaved Afro-Brazilian Families in Brazil's Area, 1870-1890," Journal of Social History, 41:3, Spring 2008, pp. 633-666. 11. Veja por exemplo, L E W I N , Linda, Politics and Parentela in Paraiba. Princeton University Press, 1987; M E T C A L F , Alida, Family and Frontier in Colonial Brazil: Santana de Parnaiba, 1580-1822. University of California Press, 1992; M A H O N Y , M a r y A n n , "The World Cacao Made: Society, Politics and History in Southern Bahia, Brazil (1822-1919), Ph.D Dissertation, Yale University, 1996. 299

Aproveitar a genealogia para acompanhar famílias escravizadas ou libertas ao longo das gerações apresenta uma série de desafios metodológicos. Sociedades genealógicas e institutos históricos raramente se preocuparam com a genealogia de escravos e ex-escravos. Por isso, o historiador precisa se voltar aos documentos originais para encontrar traços das famílias em questão. Precisamos ter acesso a muitas coleções de documentos distintos das épocas colonial e imperial, inclusive registros paroquiais, inventários post mortem, os registros de escravos elaborados em 1872, escrituras de compra e venda, processos crime e civis, documentação policial e portuária assim como jornais. Para estudar tais famílias após 1889, não podemos nos esquecer dos registros civis de nascimentos, casamentos e óbitos. Todos estes documentos guardam dados que, juntos, abrem pistas para seguir famílias escravas e libertas. O segundo desafio para a genealogista da família escrava é encontrar coleções de documentos cobrindo períodos longos. Há muito tempo os historiadores vêm demonstrando a qualidade e complexidade da documentação referente aos escravizados no Brasil. Mesmo assim, rastrear as trajetórias de famílias ao longo .do tempo necessita de documentação referente ao lugar, de décadas senão séculos. As principais cidades antigas no Brasil mantêm coleções de documentos religiosos e civis muito antigos e muito completos. Mas muitas outras cidades brasileiras não existiam ou eram apenas pequenos povoados na época colonial ou imperial. Ao passar dos séculos, com o crescimento da população e da economia brasileira nestas regiões, foram criadas muitas novas regiões administrativas. Por isso, muitos municípios e freguesias brasileiros são de relativamente recente criação, e suas coleções de documentos também. Outros desafios enfrentados por genealogistas da família escrava são específicos às experiências dos escravos, escravas, libertas e libertos. Cativos e cativas foram levados ao Brasil pelo tráfico atlântico desde o século XVI até o século XIX. Ser afrodescendente no Brasil em 1890, por exemplo, não indica quando nem de onde os antepassados chegaram ao país. Para os traficantes e senhores de escravos brasileiros, era suficiente indicar que eram africanos, e batizá-los com nomes cristãos tão rapidamente quanto possível para estabelecer seus status como escravos. Por isso trabalhos como a biografia do alufá Rufino por João Reis, Flávio Gomes e Marcus Carvalho que reconstrói a

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história de vida de um escravo dos dois lados do atlântico são tão complicados de se fazer." O historiador genealogista também se confronta com problemas produzidos pela comercialização das pessoas escravizadas. Uma vez chegados ao Brasil, africanos e africanas não necessariamente ficaram no mesmo lugar, e muito menos seus descendentes. Traficantes venderam e revenderam escravos e escravas até os últimos dias da escravidão. A liberdade, antes ou depois da Abolição da escravidão, apresentava oportunidades para reunir a família, mas também para sair de onde o ex-escravo sofreu o cativeiro. Os esforços de pobres nordestinos para deixar as zonas rurais em busca de cidades próximas e depois distantes, levaram não sabemos quantos ex-escravos e ex-escravas ao sul da Bahia, a Canudos, a São Paulo e ao Amazonas, entre outros lugares, nas décadas após o fim da escravidão. Seguir o rastro destas pessoas e conectá-los às suas famílias é muito difícil. O desrespeito com que as autoridades trataram relacionamentos informais criou outro problema para traçar famílias de pobres, sejam livres, libertos ou escravizados. As autoridades coloniais e imperiais não reconheciam a presença de homens não casados legalmente, escravos ou não, nas suas famílias. Relacionamentos mesmo durando anos a fio, se não legalizados na igreja católica, não foram anotados nos registros. Por isso, muitas escravas, assim como libertas e mulheres livres pobres aparecem como mães solteiras nas páginas dos livros de batismo e seus filhos são registrados como naturais. Como já demonstrei às vezes a identificação dos pais é possível, mas não é frequente.13 No Brasil, oficialmente, "aqueles nascidos fora da união conjugal pertencem somente às mães".14 Para Diana Paton e Pamela Scully esta situação legal significa que o escravismo negava os "direitos sociais de paternidade aos homens escravizados".15 12. R £ I S , João José; G O M E S , Flávio dos Santos; C A R V A L H O , Marcus J M de . O alufá Rufinor tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1823 - c. 1853}. i. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 13. M A H O N Y , M a r y A n n , "Creativity under Constraint." 14. M E N D E S D A C U N H A apud L E W I N , Linda, Surprise Heirs: IUegitimacy, Inheritance Rights, and Public Power in theFormation of Imperial Brazil, 1822-1889. (Stanford: Stanford University Press, 2003), p. 273. 15. P A T O N , Diana; S C U L L Y , Pamela, "Introduction: Gender and Slave Emancipation in Comparative Perspective", In; P A T O N , Diana; S C U L L Y , Pamela, (eds.) Gender and Slave Emancipation, p. 5.

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Encontramos outro desafio nas práticas de nomeação de escravos não sabemos.34 O rompimento do relacionamento entre Thereza e Pedro veio no início de 1887. Em algum momento do final de 1886, um escravo de Farias chamado Diogo começou a se insinuar para Thereza, propondo que ela abandonasse Pedro para ficar com ele. As abordagens continuaram até março ou abril de 1887 quando Thereza aceitou as propostas e se mudou para a casa de Diogo. A separação física pode ter pesado na sua decisão, mas a ambição de Thereza também poderia ter alguma influência no trama. Tal como Pedro, Diogo possuía uma fonte de renda fora da plantation. Segundo as fontes, Diogo e 34. A P E B - S J , Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887.

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seu irmão, Taurino, cultivavam cacau numa roça perto de Embira. O cacau produzido era vendido a um comerciante em Itaípe e com sua parte dos rendimentos, Diogo comprou, entre outras coisas, um importante símbolo de status no mundo rural - um facão bem caro da marca Martindale Jacaré, importado da Inglaterra. A documentação não permite afirmar que Diogo teria sido mais próspero que Pedro, mas o facão sugere que fosse este o caso. Já que Thereza não tinha direito algum à roça do Pedro, porque não eram casados legalmente, não havia qualquer incentivo vinculado à propriedade para que ela resistisse à separação. A separação não foi fácil. Foi ao vir visitá-la e os filhos que Pedro descobriu que Thereza o havia abandonado, pois "encontrou ela na casa de Diogo".3S Enfureceu-se e, aos brados, ele e Thereza tiveram uma "rezinga" no caminho que passava ao lado da senzala. O conflito não piorou, no entanto, pelo menos em parte porque Diogo apelou para que se aquietassem "para o branco não ouvir".36 Não fica claro se, quando Thereza se mudou para a casa de Diogo, os três já sabiam que ela estava grávida com um filho de Pedro. De qualquer forma, logo, logo ficariam sabendo que ela estava grávida. Ninguém negou que Pedro era o pai da criança em gestação. Ao estabelecer um relacionamento com um homem com quem, pela primeira vez, dividiria uma casa, Thereza complicou sua vida de forma significativa. Além dos trabalhos como escrava dos Farias, Diogo esperava que ela cuidasse das suas necessidades do dia a dia: cozinhar, manter a casa e as roupas limpas. Ela não reagiu bem a esta situação. Ao mesmo tempo, mesmo que ela houvesse rompido com Pedro, Diogo tinha ciúmes do relacionamento prévio. Quando se tornou óbvio que ela estava grávida com um filho de Pedro, Diogo enraiveceu. E, quando Pedro tentou ganhar a custódia do seu filho Alberto, a fúria de Diogo aumentou ainda mais, talvez porque ele acreditasse que o menino ficaria debaixo de sua autoridade já que a mãe era amante dele. Por volta de 02 de maio de 1887, os ciúmes de Diogo e o desgosto de Thereza com relação às tarefas domésticas irromperam em uma gritaria entre os dois na senzala. 35. A P E B - S I , Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887. 36. A P E B - S I , Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 18S7.

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A partir das testemunhas subsequentes, fica claro que a discussão f 0 ' pesada e violenta. Ao que parece, Diogo pegou seu facão e começou a bater em Teresa com os laterais, uma prática comum entre os homens rurais ao castigar suas parceiras e filhos. Aos berros, Thereza saiu do casebre cora Diogo logo atrás. Diante de testemunhas horrorizadas, Diogo bateu nela várias vezes com o facão. Um dos vizinhos, o liberto Estanislau Del Rei tentou convencer Diogo a substituir o facão por uma cinta, mas a sugestão foi rejeitada e segundo seu irmão Taurino, Diogo "respondeu que deixasse ensinar aquele diabo". Neste momento Estanislau conseguiu tirar o facão das mãos de Diogo. Thereza correu para o curral onde a cinta era guardada, talvez numa tentativa de pegá-la antes de Diogo. Os dois continuaram lutando até chegar de volta à casa.37 O facão era e continua sendo ubíquo nas áreas rurais nas redondezas de Almada. Na época que estudamos livres e libertos sempre carregavam um nas suas andanças. Sobretudo, o facão era uma ferramenta agrícola, útil na lavoura, mas também era usado para várias atividades do dia a diá, por exemplo, abrir um coco, limpar as trilhas ou matar cobras venenosas. Para o homem escravizado ou livre em Almada, o facão era uma ferramenta e uma fonte de proteção, mas também era um símbolo de masculinidade, até porque as mulheres muito raramente o carregavam. A aquisição de um facão próprio por um escravo o faria independente do estoque de ferramentas da fazenda, o qual provavelmente fosse trancado à noite. Daí que, ser dono de um facão, era indicativo de uma fonte de renda autônoma, certo grau de prosperidade, e status como homem independente. Como os processos crime relativos às áreas rurais do Brasil revelam, os homens utilizavam o facão para manter seu poder na família. No campo, bater em mulheres e crianças com as laterais do facão era uma forma comum de disciplina masculina, mas ao ser virado, no sentido do corte, tornava-se uma arma letal. Nenhuma das testemunhas indicou que Diogo teria cortado Thereza, mas, obviamente, Estanislau temia uma morte, fosse por acidente, fosse de propósito.3"

37. Testemunha de Estanislau Del Rei e Senhorinha, escravos de João Theodoro Farias, 19 de junho de 1887. A P E B - S J , Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887 38. APEB-SJ, Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887.

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Thereza não se acanhou diante da ira de seu amante. Talvez ela não estivesse acostumada à violência vinda de um parceiro. Afinal, Pedro não „ bateu nela quando a encontrou com Diogo, de modo que ele talvez não fosse dado à violência. De qualquer forma, a raiva de Diogo parece ter sido igual à do primeiro dono de Thereza, ele que a vendeu porque estava desgostoso, porém com consequências bem diferentes. A briga continuou. De volta ao casebre, Thereza bradava com Diogo que ele era um ladrão de cacau e os vizinhos da senzala ouviam a gritaria. Ela não especificou quem ele teria roubado - o senhor deles, colegas escravos, arrendatários livres ou libertos ou a própria Thereza - mas a acusação tanto enfureceu Diogo que, do fogo, ele apanhou um tição e o usou para bater na boca dela. Como resposta, ela juntou as roupas e outros pertences dele, jogando tudo no pasto para serem pisoteados pelos animais da fazenda. Logo em seguida, a briga terminou quando o irmão de Diogo, Taurino, que chegara ao ponto em que seu irmão batia em Thereza com as laterais do facão, o convenceu a ir embora e deixar Thereza sozinha. As fontes nada dizem sobre a reação dos dois filhos mais novos de Thereza, mas é óbvio que testemunharam tudo. Pouco tempo depois, Thereza estava morta. Os relatórios subsequentes acerca da disputa violenta, no entanto, não parecem indicar que ela havia sofrido lesões que pudessem matá-la. Mesmo assim, dois dias mais tarde, Thereza se encontrava adoentada e incapaz de trabalhar. Passados poucos dias, ela foi enterrada no cemitério de Almada. Os boatos sobre a briga se espalharam, mas também deram conta de que, no mesmo período da briga, ela havia recebido uma surra do seu dono. Um dia ela chegou atrasada para o trabalho e o irado Farias "lhe deu algumas bofetadas e um grande ponta pé" no estômago. Dado que Thereza abortou um feto enquanto morria, os escravos e libertos da fazenda passaram a declarar que foi a surra que levou de Farias que a matou. Esta surra parece exagerada, dado a ofensa da moça. Não era o castigo mandado pelos regulamentos de punição de escravos. Era uma explosão de raiva por parte de um homem acostumado a ser obedecido.59 Pode ser que 3 9 . 0 Historiador americano Loren Schweninger mostrou que este tipo de violência muitas vezes penetrava a casa grande assim como as senzalas. N o argumento dele "nossa visão {americana} do patriarca preocupado, um homem de dignidade, consciência e moralidade, 315

Farias, sendo português, não participasse da cultura paternalista de muitos donos de escravos no Brasil. Por outro lado, pode ser que, como fazendeiro com acesso a poucos escravos e escravas, descobrir que uma escrava estava grávida o deixasse estressado e fora de controle. Assim, a evidência deixa bem claro que, nos dez dias antes de sua morte Thereza havia levado duas surras, uma do amante e outra do proprietário. Mas, elas a teriam matado? A autópsia realizada pelo médico legista não apontou a causa de morte, porque levou cinco dias para o cadáver ser exumado do solo úmido do Sul da Bahia no mês de maio. Este médico afirmou, no entanto, que Thereza não fora enterrada viva nem que havia recuperado a consciência após o enterro, pois suas mãos se encontravam dobradas sob seu peito, exatamente como seus companheiros as dispuseram em preparação para seu descanso final.40 Com base no arquivo do caso, a antropóloga forense, Susan Sheridan da University of Notre Dame, sugeriu que Thereza pode ter morrido de uma causa inteiramente distinta: um aborto caseiro mal feito.41 Relendo o relatório do médico legista e os depoimentos de testemunhas em luz da análise forense, a hipótese é plausível. De acordo com testemunhas, América Brasileira Farias relatou que Thereza estava "botando matéria" pela boca antes da morte por causa da surra de Diogo. Segundo Estanislau, o melhor das testemunhas, Thereza também estava ictérica quando de sua morte. Esta descrição não elimina os danos causados pelas surras, mas tão pouco elimina complicações resultantes de um aborto mal feito. A observação de que ela incomodado por possuir escravos, mas que achava que ser escravo era melhor para 'aquele povão' é bem menos exato que a imagem do dono com poucos problemas da consciência, que casou por dinheiro ou escravos e que tentava amedrontar fisicamente aos seus escravos, e às vezes aos membros da própria família." („.our picture of the troubled patriarch, a man of dignity, conscience, and morality, who was distressed by having to own slaves but thought it best for "those people"-this picture is less accurate than the picture of the owner who had few pangs of conscience, who married for money or slaves, and who attempted to exert physical intimidation over his slaves as well as sometimes over members of his own family.) Veja S C H W E N I N G E R , Loren "Slavery and Southern Violence: County Court Petitions and the South's Peculiar Institution," Journal of Negro History, Vol. 85, Nos. Vi, Winter-Spring 2000, pp. 33-35. 40. Relatório do médico legista, foão Batista Sá de Oliveira. A P E B - S I , Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887. 41. Comunicação pessoal, Susan Guise Sheridan, Department of Anthropology, University of Notre Dame, agosto, 1999.

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estava "botando matéria" da boca sugere algo além de uma cuspidela de pele queimada pelo ataque com um tição perpetrado por Diogo. Também sugere vômito, talvez a expulsão de um abortivo que consumira para terminar a gravidez. A icterícia indica que havia sangramento interno ou danos ao fígado, mas, outra vez, um abortivo ou um aborto caseiro poderiam produzir sintomas semelhantes. Senhorinha e Rufina, as duas escravas que cuidaram de Thereza nas últimas horas e que a prepararam para o enterro, insistiram que Thereza não adoeceu logo após as duas surras e que não sabiam porque ela faleceu. Devemos lembrar que Thereza tinha motivo para tentar terminar sua gravidez: estava envolvida em um relacionamento no qual o controle de seus filhos e a paternidade da criança em gestação constituíam fontes de tensão. Abortar teria sido um meio de amenizar pelo menos alguns dos seus problemas com Diogo. Talvez ela tenha consumido algum remédio caseiro para tentar tirar o feto. Talvez Senhorinha e Rufina tenham preparado e administrado tal remédio. Talvez não quisessem culpar nem Farias nem Diogo por um falecimento causado por outra coisa.41 Menos de um mês após a morte de Thereza, Maria Felícia ganhou a custódia dos seus dois netos. Se a mãe deles tivesse casado ou com Pedro, ou com Diogo, em função das leis regulamentando a herança no Brasil, eles teriam sido herdeiros de duas pequenas, mas potencialmente valiosas roças de cacau. Como Thereza nunca casou legalmente, no entanto, nem ela, nem os filhos gozavam de quaisquer direitos às roças tão importantes para Pedro e Diogo, homens que, um dia, esperavam colocar pelo menos o menino a trabalhar. No contexto da expansão da economia cacaueira, a propriedade de uma parte de uma roça de cacau, não importaria o tamanho, poderia ter permitido que Alberto se tornasse um produtor independente. Afinal, sabe-se que não poucos fazendeiros que se tornariam bem prósperos eram donos apenas de propriedades minúsculas em 1887. Da mesma forma, a posse legal de uma parte de uma fazenda de cacau teria assegurado à pequena Júlia uma fonte de renda independente ou uma herança com a qual poderia atrair um marido entre os milhares de migrantes que chegavam a Ilhéus, talvez até um de classe social mais elevada. Na realidade, os dois 42. A P E B - S J , Processo C r i m e , No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, 1887-

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desapareceram nas brumas da História, provavelmente sobrevivendo como trabalhadores da roça ou domésticos, justamente como acontecera com seus pais e avós. Mariinha das Virgens Gallo e seus filhos não tiveram que enfrentar um destino parecido. Mariinha das Virgens Gallo e Família Mariinha das Virgens Gallo nasceu por volta de 1840 num engenho de açúcar em São Francisco do Conde ou Santo Amaro. Sua mãe chamavase Efigênia e era escrava de Fortunato Pereira Gallo, um dos herdeiros do Engenho Cahipe. Como vários outros filhos de senhores de engenho na época, Fortunato Gallo e seu irmão não receberam um quinhão do engenho quando seu pai faleceu. O irmão mais velho, Domingos, ficou com o engenho, enquanto estes dois irmãos receberam seus quinhões em escravos, dinheiro em espécie e crédito junto às comerciantes de Salvador. Com suas porções compraram algumas propriedades velhas na fronteira agrícola de Ilhéus ao longo dos Rios Itaípe e Almada. Vários escravos e escravas da propriedade no Recôncavo, inclusive Mariinha das Virgens - como também sua mãe foram transferidos para Ilhéus para construir o Engenho Santo Antônio das Pedras, com seu novo engenho de açúcar, uma serraria de madeiras e plantações de cana, café e cacau. Quando Mariinha das Virgens casou-se, a força de trabalho era de 60 a 80 escravos, inclusive africanos recém-importados ilegalmente e afro-brasileiros de várias partes da Bahia.43 A documentação não revela nem quando, nem como Mariinha das Virgens foi alforriada, mas quando, na Matriz de Ilhéus, se casou com Manuel Félix Pitombo já se encontrava liberta e portadora do sobrenome Gallo. O noivo era também de ascendência africana, mas era livre, filho legítimo de pais livres. Nasceu em 1833, na paróquia açucareira de Rio Formoso, naquela época ainda parte da capital de Pernambuco, Recife.44 Manuel Felix também era alfabetizado, algo raro para a maioria dos brasileiros, inclusive sua mulher 43. APEB-SJ Inv. No. 03/1356/1825/21, Fortunato Pereira Gallo, Sr., 1830-1846; No. 7/3150/4» Rosendo Pereira Gallo, 1867-1873; Testamento, No. 02/750/1216/02, Fortunato Pereira Gallo, 1878. 44. ACI, livro de Registro dos Casamentos, 1856-1883 e Livro de Registro dos Batismos, c. 1870-1876.

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que era analfabeta. Como e por que ele chegou a Ilhéus e conheceu Maria das Virgens, as fontes levantadas até agora nada dizem. Do ponto de vista econômico, tratava-se de um bom casamento para a filha analfabeta de uma mãe solteira escravizada, mas os benefícios para o noivo não são óbvios. Talvez ele tenha se apaixonado perdidamente por ela. Talvez o pernambucano estivesse procurando uma esposa que sabia como cultivar cacau, algo que ele desconhecia. Talvez ele estivesse procurando mão de obra para estabelecer uma fazenda de cacau. Mas, mesmo assim, por que casar com uma moça de ascendência escrava? Nem em Ilhéus nem na Bahia era comum o casamento entre pobres livres e libertos. A união consensual era bem mais comum que o casamento formal sacramentado pela Igreja entre estes grupos sociais.45 Talvez fosse mais comum o casamento entre livres e libertos pobres em Pernambuco e ele trouxe seu entendimento cultural da região nativa para a nova. Também é possível que Pitombo soubesse que Mariinha das Virgens gozava de conexões com fazendeiros e senhores de engenho importantes na região. Com certeza os padrinhos do casamento eram dois membros de famílias importantes ilheenses, vizinhos dos donos do engenho onde ela vivia e trabalhava. Mas também pode ser que Mariinha das Virgens fizesse parte da família dos Gallo, ainda que não fosse membro legítimo nem reconhecido. Alguns detalhes encontrados nos documentos sugerem que seja possível este parentesco. Os registros paroquiais descrevem a moça como parda em vez de crioula, indicando alguma herança europeia. Ao mesmo tempo, o assento de casamento anotou que sua mãe era escrava, mas nada menciona acerca da condição da filha. Na verdade, a ausência de uma designação de condição legal facilmente poderia ser interpretada como indicando que era nascida livre. Não obstante, ela nasceu de uma mãe escrava e também teria sido uma escrava, a não ser que fosse alforriada na pia batismal. O cuidadosamente detalhado assento no registro de casamentos, em conjunto com a falta de informação quanto à condição da noiva, sugerem que houvesse 45. S C H W A R T Z , Stuart, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia 1550-1835• (Cambridge, 1985), 364-78; L E W I N , Linda, Surprise Heirs, Chapter 3; M A H O N Y , M a r y A n n , "'Instrumentos necessários:' Escravidão e posse de escravos no sul da Bahia no século dezenove" Afro-Ásia, no.25-26, (2001), pp. 95-139.

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algo que o clérigo preferia não explicitar. Claro que poderia também indicar incompetência do clérigo, mas não devemos ignorar a outra possibilidade Há outros indícios de parentesco entre os Gallo e Mariinha das Virgens Sabemos que Fortunato Pereira Gallo, manteve relações sexuais com mu lheres escravas e libertas. No seu testamento de 1878 incluiu instruções para os cuidados de várias crianças de cor, livres ou libertas e filhos de escravas ou mulheres recentemente libertas. Além de indicar seu interesse por estas crianças, ele deixou legados para cada uma e indicou como elas deveriam ser educadas/15 Mariinha das Virgens não fazia parte dos beneficiados do testamento, mas ela era mais velha e todas as crianças mencionadas eram menores. Pode ser que ela já tivesse recebido um legado, ou que o casamento com um moço livre, legítimo, capacitado e ambicioso tenha sido sua herança.47 Se Mariinha das Virgens fosse parente dos Gallo, tal parentesco não resultou em um legado de terras próprias nem muito dinheiro para ela e seu novo marido. A fazenda em Quebra Bunda era situada numa zona fronteiriça, aparentemente assim denominada em função dos penhascos do Rio Almada que eram escorregadios e a causa de constantes tombos dos moradores locais. As terras pertenciam aos donos do Engenho Castello Novo, relativamente perto das propriedades de Gallo, mas separadas delas. Mesmo assim, o casal Pitombo não estabeleceu relações comerciais com os Gallo, mas sim com os Adami, primos dos donos de Castello Novo e donos da casa comercial mais importante em Castello Novo. Pode ser que Gallo tenha garantido crédito junto aos comerciantes locais para o novo casal, um recurso bastante valioso para homens e mulheres preparando matas virgens para o plantio de cacau. Tal crédito teria oferecido ao casal meios para pagar jornaleiros para ajudar com a limpeza da área em Quebra Bunda coberta por mata atlântica em 1861. De qualquer modo, o jovem casal saiu da esfera de influência dos Gallo para desenvolver uma relação econômica e social com os vizinhos, os Sá Homem dei Rei. Não temos descrições específicas da fazenda de Manuel Félix e Mariinha das Virgens no início, mas certamente era bem pequena. Em 1860, o distri46. APEB-SJ, Testamento, No. 02/750/1216/02, Fortunato Pereira Gallo, 1878, APEB-SJ. 47. APEB-SH, Juízes, Ilhéus, maço 2397» Joaquim Rodrigues de Souza, Juiz de Direito à Presidente da Província, 8 janeiro, 1851.

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to de Castello Novo e Almada era coberto por densas matas, embora, nas três décadas anteriores, muita madeira de lei tivesse sido cortada. O distrito era de topografia acidentada e terras pedregosas, com bolsões de solo profundo, de modo que o transporte terrestre era complicado. Acima do porto onde as sedes dos Engenhos Almada e Castello Novo se defrontavam do alto das ribanceiras de cada lado, o Rio Almada era navegável apenas por canoa. A derrubada das matas para dar lugar às roças e às plantações iniciais em Quebra Bunda, portanto, não teria sido nada fácil. A venda da madeira teria oferecido algum lucro, mas após a limpeza das matas, as mudas de cacau levariam no mínimo mais cinco anos para dar seus primeiros frutos. O casal teria que cultivar mandioca e outras plantas domésticas para consumir e vender no intervalo para sustentar-se, mas ainda assim pode ser que tenha começado a desenvolver uma dívida grande com a casa comercial dos Adami. Temos alguma ideia da vida cotidiana de Mariinha das Virgens em Quebra Bunda. Com certeza no começo passou muito tempo trabalhando, ou na casa ou na fazenda. As condições do casal não teriam permitido que ela evitasse o trabalho braçal. Seu primeiro filho, ou pelo menos o primeiro filho de que temos notícia, Pedro Félix, nasceu só por volta de 1869, oito anos depois do casamento. Pode ser que ela não conseguira engravidar ou que perdera os filhos nascidos nos primeiros anos do casamento. Mas mais provável é que ela e o marido esperaram para começar sua família até que seus cacaueiros começassem a produzir. Uma vez que a fazenda estava produzindo, filhos apareceram com rapidez. Depois de Pedro Félix, nasceram outros seis em seguida: Joana das Virgens, batizada em 1870, João da Cruz, em 1872, Manuel Alfredo, 1874, Antônio Félix, 1876 e os gêmeos, Manuel Félix Júnior e Hermenegildo, em 1880. Dos sete, seis sobreviveram até a maioridade.48 Por volta de 1877, os filhos mais velhos de Manuel Félix e Mariinha das Virgens começaram a oferecer uma força de trabalho importante para a família. Quando Thereza morreu, em 1887, todos os jovens Pitombo estavam trabalhando na fazenda familiar, embora o caçula tivesse apenas onze anos. 48. A C I , Livro de Registro dos Casamentos, 1856-1883 e Livro de Registro dos Batismos, c. 1870-1876-, F E B C / P C V C , inventário de Manuel Félix Pitombo Júnior (1917) e Inventário João da Cruz Pitombo (1921).

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Aliás, ele era mais velho que Alberto, o filho de Thereza que estava trabalhando na Fazenda Embira. Naquelas alturas, muitos donos de escravos não contavam com tantos trabalhadores. Em 1887, quando deu seu testemunho sobre a morte de Thereza, Manuel Félix Pitombo era um fazendeiro respeitado, de 57 anos de idade. Vinte e seis anos depois de se mudarem para a fronteira de Almada, ele e Mariinha das Virgens eram donos de uma fazenda de cacau com uma força de trabalho de oito pessoas.49 Não morava mais na fazenda, mas sim numa casa pequena, mas bem construída no vilarejo de Sambaituba, um lugar movimentado perto de Castello Novo e Almada. Não há dúvida que os Pitombo estavam subindo na vida. O sucesso da família resultou de vários fatores. Entre eles foi a liberdade de Mariinha das Virgens que significava que o trabalho dela e dos filhos poderia ser dedicado ao projeto econômico familiar, em vez de ao projeto do dono. A sorte também tinha seu papel: nasceram mais filhos que filhas e o casal chegou ao fim da escravidão com sua saúde intacta e só um filho morreu, embora que febres várias, moléstias internas e mordidas de cobras matariam muitos adultos e crianças pequenas. Os filhos de Mariinha das Virgens e Manoel Felix continuaram no caminho começado pelos pais. Ainda jovens, já parecem ter plantado seus próprios pés de cacau e começado suas próprias vidas como lavradores. Pelo menos dois dos irmãos, João da Cruz e Manuel Felix Filho, aprenderam a ler e escrever. Joana das Virgens não recebeu instrução e permaneceu analfabeta como sua mãe. Talvez, seu pai não achasse que filhas precisavam desta educação, ou, talvez, nenhum dos filhos mais velhos foi educado porque quando eram jovens eles e o pai estavam ocupados demais com a fazenda para ensinar ou aprender. Todos aprenderam dos pais como relacionar-se com os poderosos da zona.50 E, com a morte dos pais, cada um recebeu pés de cacau, benfeitorias e terras como herança.

49. ACI, Livro de Registro dos Casamentos, 1856-1883 e Livro de Registro dos Batismos, c. 1870-1876; F E B C / P C V C inventários de Manuel Félix Pitombo Júnior (1917) e João da Cruz Pitombo (1921); A P E B - S J , Processo Crime, No. 06/182/15, Homicídio, Diogo, escravo, (1887). 50. P C V C / F E B C , Açáo Sumária, José Carlos A d a m i v. Manuel Félix Pitombo Júnior, 1900; Ação sumária, José Carlos Adami v. João da Cruz Pitombo, 1900.

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Como jovens proprietários, com experiência no cultivo de cacau e conexões comerciais com a elite locai, Joana e seus irmãos podiam esperar bons casamentos. Era uma época especialmente auspiciosa para moças solteiras com propriedade, ainda que fossem afro descendentes com propriedade pequena. A fama do cacau do sul da Bahia estava se espalhando pelo mundo e a zona estava recebendo muitos migrantes do nordeste, alguns dos quais originaram em famílias bem estabelecidas em outras partes dessa região. Muitos descobriram que casar com uma moça proprietária era mais fácil do que abrir sozinhos uma roça na mata. Em 1890, quando ela completaria 20 anos, Joana das Virgens casou-se com José Raimundo Alencar, um migrante vindo de Pernambuco, tal como o pai de Joana.sl Não se sabe como os noivos se conheceram, mas, talvez, fossem aparentados e ele convidado a vir para Ilhéus justamente para casar com ela e, assim, manter a propriedade na família. Ou talvez fosse mera coincidência. Pode ser que tivesse vindo por vontade própria e acabou sendo atraído pela família Pitombo em função das raízes regionais em comum. O jovem casal teve um começo auspicioso. Os pais da noiva organizaram um casamento no civil, assim garantindo legalmente os direitos dela e de seus filhos a qualquer propriedade do casal. Naquelas alturas, do ponto de vista dos direitos à propriedade familiar, o casamento apenas eclesiástico não garantiria os direitos aos bens comuns das esposas, nem dos filhos. Mas ainda que os país tentassem protegê-la, a vida de Joana das Virgens como senhora casada não foi fácil, pelo menos do ponto de vista econômico. Por volta de 1902, Alencar havia ganhado o apelido de "Zé Perdido", talvez porque não fosse muito inteligente. Sabemos que era analfabeto como sua esposa. Talvez tenha tido dificuldades em se adaptar à mata atlântica, e por isso perdia-se com frequência. Ou talvez ele bebesse muito. Sabemos que era briguento. Em 1902 foi presõ, junto com três outros homens, por serem "desordeiros". 51 Na época muitos lavradores despreparados na região de Quebra Bunda perderam suas fazendas e brigaram com comerciantes ou proprietários grandes na região de Castello Novo. Talvez tivesse se envolvido nestes conflitos. As fontes nada dizem a respeito, mas é certo que o sogro de 51. P C V C / F E B C , Livro de Casamentos, 1889-1902, 27 setembro, 1890. 52. Gazeta de Ilhéus, 26 de janeiro de 1902.

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Alencar teria ficado desgostoso, pois passou a vida cultivando boas relações com a elite local. A partir deste ponto, Joana das Virgens e Zé Perdido desaparecem da documentação investigada até agora. Vários outros membros da família constam no Censo de 1920 como sendo proprietários ou em Ilhéus, ou em Itabuna, mas este casal não. Fosse ou não uma iniciativa da família, a escolha de marido para Joana não foi nada feliz. As experiências de outros membros da família Pitombo foram melhores Entre os proprietários registrados pelo censo estavam um irmão de Joana e uma cunhada viúva. O censo indicou que João da Cruz Pitombo, o terceiro filho de Mariinha das Virgens e Manoel Félix, era dono de quatro fazendas de cacau. Edwirges Camara Pitombo e os herdeiros de Manuel Félix Pitombo Filho eram proprietários de uma. Era uma marca importante, indicando que o fazendeiro não só tinha cacau, mas que era dono também de terras tituladas. Era uma situação boa para o neto e bisnetos de uma escravizada e sua filha liberta. Mas manter e continuar a desenvolver a propriedade não foi nada fácil para os irmãos. Em 1898 ou 1899, João da Cruz teve cacau roubado, enquanto a colheita de 1899 foi ruim. Em 1900, tanto João da Cruz, quanto Manuel Félix tiveram dificuldades para liquidar suas contas correntes com o armazém dos Adami em Castello Novo. Solicitaram tempo adicional para pagar em uma carta para José Carlos Adami, filho do comerciante com que Manuel Félix Pitombo teria negociado, filho de um dos ex-donos de Thereza, irmão do chefe político da época e um dos maiores comerciantes na região. Nas cartas, os irmãos lembraram a ele que sempre pagaram suas contas em dia, mas Adami negou o pedido. Parece que conexões de parentesco fictício e amizade não tinham o poder do passado, agora que terras e cacaueiros valiam mais do que nunca. Conseguiram pagar a dívida de alguma maneira, porque não perderam suas terras, mas foi uma indicação desagradável de que o mundo local estava mudando.53 As dificuldades continuaram. Em 1901 Manuel Félix comprou dois burros de Martiniano Francisco Xavier. Ficou devendo mais do que a metade do 53. P C V C / F E B C , Ação Sumária, José Carlos Adami v. Manuel Félix Pitombo Júnior, 1900; Ação sumária, José Carlos A d a m i v. João da C r u z Pitombo, 1900.

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valor dos animais, porque tinha pouco dinheiro para entregar. Sorte sua, de certa forma, porque depois ele reclamou que os burros de nada prestaram. Queria seu dinheiro de volta, mas o vendedor tinha sumido.54 Logo em seguida, em 1902, perdeu parte significativa de sua colheita de cacau quando se emborcou a balsa que pilotava no Rio Almada junto com Elias José de Farias, filho de outros ex-proprietários de Thereza.55 As dificuldades econômicas não proibiram o casamento de Manuel Félix Pitombo Filho com Edwirges Câmara, a filha alfabetizada de um lavrador vizinho, o avô da qual chegou a Almada do Recôncavo antes de 1850. Não temos os inventários dos pais ou avós da moça, mas parece que ela também trouxe alguns cacaueiros e experiência com agricultura e comércio ao casamento. Talvez por isso, o casal não esperou para começar sua família. Entre 1903 e 1912, ela deu à luz a sete filhos - quatro filhas e três filhos. Os documentos sugerem que ela passou a maior parte de seu tempo nestes anos cuidando dos filhos em vez de trabalhar na fazenda, porque Manuel Félix Filho contratou uma família de trabalhadores para plantar uma nova roça de cacau. Quando ele morreu, estava em vias de pagá-los por seu trabalho e registrar a roça como propriedade dele.J
MAHONY, Mary Any. MULHER, FAMILIA E ESTATUTO SOCIAL NO SUL DA BAH

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