Mulheres Fiéis e seu Deus Maravilhoso Traduzido do original em inglês Faithful Women & eir Extraordinary God por Noël Piper Copyright © 2005 by Nöel Piper Publicado por Crossway Books, Um ministério de publicações de Good News Publishers Wheaton, Illinois 60187, U.S.A Esta edição foi publicada através de um acordo com Good News Publishers ■ Copyright © 2010 Editora Fiel ■ Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.
■ Presidente: Rick Denham Presidente Emérito: James Richard Denham Jr. Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Laura Makal Lopes Revisão: Gwen Kirk; Marilene Paschoal Diagramação: Spress Capa: Edvânio Silva Ebook: Alex Sandro de Souza e Yuri Freire ISBN: 978-85-8132-082-3
Caixa Postal, 1601 CEP 12230-971 São José dos Campos-SP PABX.: (12) 3919-9999 www.editora el.com.br
Índice
Agradecimentos Semelhanças Introdução Sarah Edwards Fiel em meio ao mundano Lilias Trotter Fiel na fraqueza Gladys Aylward Fiel na humildade Esther Ahn Kim Fiel no sofrimento Hellen Roseveare Fiel na perda
Dedicatória Às Mulheres da Bethlehem Baptist Church Vocês me abençoaram, no passado, pedindo histórias. Agora sou abençoada, quando vejo vocês seguindo os passos de santas mulheres como Sarah, Lilias, Gladys, Esther e Helen. Sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua glória em toda a perseverança e longanimidade; com alegria, dando graças ao Pai, que vos fez idôneos à parte que vos cabe da herança dos santos na luz. Colossenses 1.11-12
Agradecimentos
P
RIMEIRO, À MINHA FAMÍLIA. Ao Johnny, por me manter focalizada no verdadeiro Centro; à Talitha, por brincar e estudar sozinha, enquanto eu trabalhava; ao Abraham e Molly, e ao Benjamin e Melissa por todas aquelas “visitas inesperadas” que Talitha fez às suas casas. À Heather e Elizabeth Haas e outros, por sua hospitalidade demonstrada à Talitha enquanto eu escrevia. À Helen Roseveare por permitir-me contar sua história e por tão gentilmente corrigir meus erros. À Alison Goldhor e George Ferris, por explicarem-me diversas vezes o antigo sistema monetário britânico. E ainda não consegui entender! À Carol Steinbach por ler e reler esta obra, e por suas excelentes sugestões, das quais me utilizei em sua maioria. E aquelas que não usei, provavelmente deveria tê-las utilizado. À minha equipe de editoração – especialmente Lucille Travis e Lois Swenson – pelas avaliações construtivas, capítulo por capítulo. Aos amigos da Crossway Books. À Lane e Ebeth Dennis, Marvin Padgett e Geoff Dennis por toda ajuda e encorajamento; e à Lila Bishop e Annette LaPlaca por seu olhar detalhista. À equipe que nos apoiou em oração, nos proveu refeições e cuidados, bem como outras dádivas de amor. A todos aqueles que me incentivaram, perguntando: “Como está indo o livro?”
E, acima de tudo, dou “sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Efésios 5.20).
Semelhanças INTRODUÇÃO
M
ULHERES SIMPLES E SEU DEUS MARAVILHOSO.
Este é o título que eu queria dar a este livro. Porém, um marido, queixando-se, disse: “Eu jamais daria à minha esposa um livro com esse título! Ela poderia pensar que acho que ela é apenas uma pessoa comum”. É bom que um marido sinta isso, mas acho tranqüilizador saber que Deus faz sua obra por meio daquilo que é simples. Ao usar o título Mulheres Simples, eu tinha em mente aquilo que Jim Elliot disse: “Missionários são seres humanos comuns, fazendo o que lhes foi ordenado. São apenas ninguém tentando exaltar Alguém”.1 Nem todas as mulheres neste livro são missionárias, mas penso que cada uma delas lhe teria dito: “Sou apenas uma pessoa comum”. Você poderia perguntar: Por que eu me incomodaria em ler estas histórias? Só há uma razão: Estas mulheres comuns tinham um Deus maravilhoso que as capacitava a fazerem coisas extraordinárias. E hoje, Ele é o mesmo Deus para nós. “Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hebreus 13.8). É por isso que descobrimos semelhanças inesperadas entre nossa vida e a vida destas cinco mulheres que viveram e trabalharam em seis nações, durante um período de tempo de mais de 250 anos. Gladys Aylward, Lilias Trotter e Esther Ahn Kim falam de sua fraqueza e incapacidade para realizarem suas tarefas dadas por Deus. Nós não sentimos o mesmo? Enquanto Sarah Edwards cumpria suas responsabilidades monótonas e enfadonhas como esposa e mãe, ela possuía pouca idéia do impacto que teria sobre as gerações, através de seu marido e seus lhos, e outros que iam à sua casa. Hoje, não precisamos desse
mesmo encorajamento para nossa vida neste mundo? Helen Roseveare lutava com o desejo de fazer um trabalho excelente, enquanto aquilo que a rodeava limitava-a ao “su cientemente bom”. Não nos sentimos frustradas quando pensamos que nossos dons e habilidades não têm sido usados por completo? Esther Ahn Kim aprendeu a viver para Deus na prisão, e não apenas a sentar e esperar por uma vida “normal”. Às vezes, não sentimos que estamos “patinando na água” até que nossa “verdadeira” vida e ministério se iniciem? Cada uma destas mulheres, em meio a uma vida simples, viveu aquilo que podemos chamar de uma experiência de nitiva. Agora, sob nossa perspectiva, podemos ver a vida destas mulheres preparando-as antecipadamente para aquele ponto decisivo. E tudo o que viria posteriormente seria moldado e de nido por essa preparação. Sarah Edwards experimentou o poder aperfeiçoador de Deus quando, durante alguns dias, foi física e espiritualmente abalada pelo seu Espírito. Lilias Trotter descobriu a alegria de servir a Deus de todo o seu coração, após ter tomado a difícil decisão de deixar uma vida dedicada à arte, o que ela tanto amava. Gladys Aylward dava cada passo, minuto após minuto, seguindo a liderança de Deus, depois de ter gasto quase toda a sua força e saúde para salvar cem crianças. Esther Ahn Kim entendeu que Deus não é algemado pela crueldade das pessoas e da prisão, depois de ter se recusado, assim como os três amigos de Daniel, a curvar-se diante de um falso deus. Helen Roseveare encontrou a presença e o poder de Deus, precisamente nos momentos em que ela necessitava, durante semanas de violência sexual, terror, incerteza e dor. Com uma exceção, estas mulheres não conheciam umas às outras. Mas eu posso visualizar cada uma passando o bastão da delidade, de sua geração à próxima. Em 1758, quando Sarah Edwards morria, na Nova Inglaterra, “ela expressou inteira resignação a Deus, e seu desejo de que Ele fosse glori cado em todas as coisas; e que ela fosse capacitada a glori cá-Lo até o m”.2
Passaram-se quase cem anos e, na Inglaterra, Lilias Trotter nasceu numa família de posição social tal como os Pierreponts, a família de Sarah Edwards. Quando Lilias morreu, em 1928, na Argélia, Gladys Aylward estava em Londres, tentando persuadir seus irmãos e amigos de que alguém tinha de levar o evangelho à China. Logo, ela percebeu que Deus a estava chamando. Em 1940, enquanto Gladys atravessava as montanhas junto com cem crianças, Esther Ahn Kim já havia sido prisioneira por amor do evangelho, durante um ano, na Coréia. Esther foi libertada em 1945, o ano em que Helen Roseveare, uma estudante de medicina da Inglaterra, se tornou crente. E a vida de Helen Roseveare cruza os anos de nossa vida, e ela passa o bastão da delidade a nós, a geração presente. Mais do que apenas cronologia liga estas mulheres. Somente Deus conhece todas as semelhanças entre suas vidas. Mas sabemos que Helen Roseveare foi tocada pelos escritos de Lilias Trotter, e por seu conhecimento pessoal de Gladys Aylward. Lilias Trotter... é alguém [que tenho] amado por muitos anos. Ganhei uma cópia de seus escritos “Alegorias da Cruz” e “Alegorias da Vida de Cristo” (em um volume) antes de ir para o campo missionário, em 1952/3, e isto era um tesouro para mim – até que os soldados rebeldes destruíssem minha coleção de livros preciosos, na revolta de 1964. Eu cito, em meu novo livro,3 uma de suas amáveis alegorias – aquela a respeito das sépalas do botão-de-ouro, dobrando-se para trás, para soltar a or, sem força para fechar-se novamente. Gladys Aylward cou na sede da WEC... por volta de 1950 – antes que ela voltasse a trabalhar com órfãos chineses em Taiwan. Tenho uma vívida lembrança de algumas das reuniões nas quais ela falou, naquele tempo!4
Podemos observar outras “semelhanças” – similaridade de circunstâncias, de sentimento e fé. Saúde frágil. Trabalho missionário nos subúrbios, junto aos “inaceitáveis”. Signi cância dos contatos e das conversas “insigni cantes”. Falta de quali cação para ser aceita na junta missionária. Reconhecimento da morte
como o caminho de entrada para Deus, no céu. Um espírito de “independência”, que é a verdadeira dependência de Deus. Que Deus nos dê olhos para enxergarmos as semelhanças entre a vida dessas mulheres e a nossa. E, ainda mais, que possamos ver claramente a Deus em nossa própria vida, em razão daquilo que vemos na vida de Sarah Edwards, Lilias Trotter, Gladys Aylward, Esther Ahn Kim e Helen Roseveare. Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus; e, considerando atentamente o m da sua vida, imitai a fé que tiveram. Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre. Hebreus 13.7-8
É por isso que leio biogra as. Para lembrar as pessoas que trilharam o caminho com Deus, para meditar sobre a vida delas e imitar sua fé. Porque temos o mesmo Deus, e Ele é o mesmo ontem, hoje e para sempre.
NOTAS DA INTRODUÇÃO: 1 Elliot, Elisabeth. Shadow of the Almighty. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1989.
p. 46. 2 Dodds, Elizabeth. Marriage to a difficult man: the uncommon union of Jonathan and
Sarah Edwards. Laurel, Miss.: Audubon Press, 2003. p. 169. 3 Roseveare, Helen. Living holiness. 4 E-mail pessoal de Helen Roseveare, em fevereiro de 2005.
Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade. Suportai-vos uns aos outros, perdoai-vos mutuamente, caso alguém tenha motivo de queixa contra outrem. Assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós; acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo da perfeição. Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos. Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração. E tudo o que zerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai. Colossenses 3.12-17
Sarah Edwards FIEL EM MEIO AO MUNDANO
N
o século XVIII, no Novo Mundo, treze pequenas colônias britânicas se amontoavam próximas à costa do Atlântico — colônias separadas, não um país. A América não era uma nação, mas um continente quase totalmente desconhecido. Além das colônias, em direção ao oeste, nenhum europeu havia ainda descoberto ou medido a terra que se estendia até o desconhecido. A Nova Inglaterra e as outras colônias eram uma frágil ponta de terra conhecida, à margem do continente. Os colonos eram cidadãos britânicos, cercados de territórios de outras nações. A Flórida e o sudoeste pertenciam à Espanha. O Território da Louisiana pertencia à França. Os franceses, em particular, eram ávidos por aliarem-se aos índios, os habitantes locais, contra os ingleses. Portanto, qualquer história iniciada em meio a esse tênue contexto político devia evocar a visão de tropas nos topos das montanhas, os sons de tiros à distância, o desconforto dos soldados se posicionando nas propriedades dos colonos, o choque e o terror das notícias sobre massacres nas colônias vizinhas. Este era o contexto da vida diária, num grau maior ou menor, nas colônias inglesas, durante todo o século XVIII.
SARAH PIERREPONT
Em meio a esse contexto, Sarah Pierrepont nasceu, em 9 de janeiro de 1710. Toda a sua vida seria desgastada no cenário de incerteza política e de guerra iminente. Sua família vivia no presbitério de New Haven, Connecticut, onde seu pai, James, era pastor. Ele foi um dos fundadores do Yale College e uma autoridade proeminente na igreja da Nova Inglaterra. A mãe de Sarah foi Mary Hooker, cujo bisavô, omas Hooker, foi um dos fundadores de Connecticut. omas Hooker teve um papel importante quando as Ordens Fundamentais da colônia foram escritas, provavelmente a primeira constituição escrita da história. Como lha de uma das famílias mais distintas de Connecticut, Sarah teve a melhor educação que uma mulher daquele tempo poderia receber. Aperfeiçoou-se nas habilidades re nadas da sociedade. As pessoas que a conheciam mencionavam sua beleza e sua maneira de fazer as pessoas se sentirem bem. Samuel Hopkins, que mais tarde a conheceu, enfatizou a “peculiaridade de sua encantadora expressão, como resultado da combinação de inteligência e bondade”.1
JONATHAN EDWARDS Diferentemente dela, Jonathan Edwards, seu futuro marido, era introvertido, tímido, inquieto e de pouco falar. Iniciou seus estudos na faculdade aos treze anos e formou-se como orador o cial. Comia pouco, naquele tempo de mesas fartas, e não era inclinado à bebida. Era alto, desajeitado e muito esquisito. Faltava-lhe cordialidade. Ele escreveu em seu diário: “Uma virtude que necessito em mais alto grau é a gentileza. Se eu tivesse um ar mais gentil, seria muito melhor”.2 (Naquele tempo, gentileza signi cava cordialidade, o que caracterizava um cavalheiro.)
SARAH E JONATHAN
Em 1723, aos dezenove anos, Jonathan se formou, em Yale, e foi pastor em Nova York, por um ano. Quando terminou seu período de pastorado naquela igreja, começou a trabalhar como professor em Yale e voltou para New Haven, onde Sarah Pierrepont morava. É possível que Jonathan já a tivesse conhecido três ou quatro anos antes, quando estudara em Yale. Naquele tempo de estudante, quando tinha mais ou menos dezesseis anos, Jonathan provavelmente viu Sarah, quando freqüentava a Primeira Igreja de New Haven, onde o pai dela pastoreou até a sua morte, em 1714, e onde seus familiares continuaram como membros.3 Em seu retorno, em 1723, Jonathan tinha vinte anos e Sarah treze, num tempo em que era comum as moças se casarem aos dezesseis anos. Ao iniciar seu trabalho como professor, no início do ano letivo, parece que Jonathan se distraiu um pouco de sua dedicação habitual aos estudos. Uma história popular nos conta que ele sonhava diante de sua gramática de grego, a qual tencionava estudar, a m de preparar sua aula. Em vez disso, encontramos sobre a página de rosto daquela gramática, um relato de seus verdadeiros pensamentos: Dizem que em [New Haven] existe uma moça amada do Grande Ser, Aquele que criou e governa o mundo. Dizem que em certos períodos este Grande Ser vem ao encontro desta moça e, de uma maneira invisível, enche-lhe os pensamentos com extraordinário deleite; e que ela di cilmente se interessa por qualquer outra coisa, exceto meditar nEle... [Você] não pode persuadi-la a fazer qualquer coisa errada ou pecaminosa, ainda que prometa dar-lhe o mundo inteiro, pois ela receia ofender a este Grande Ser. Ela possui muita doçura, tranqüilidade e total benevolência de pensamento; especialmente depois que este Grande Deus se manifestou a ela. Às vezes, anda de um lugar a outro, cantando com doçura; e parece estar sempre cheia de alegria e gozo... Ela ama estar sozinha, passeando pelos bosques e campos, e parece ter Alguém Invisível sempre a conversar com ela.4
Todos os biógrafos mencionam o contraste entre os dois. Porém, uma coisa que tinham em comum era o amor pela música. É possível que Sarah soubesse tocar alaúde. (No ano de seu casamento, cordas para alaúde era um dos itens da lista de compras que Jonathan levou em uma viagem.5 Pode ter sido para um músico do casamento ou mesmo para Sarah.) Jonathan mencionava a música como o modo mais perfeito pelo qual as pessoas deviam se comunicar umas com as outras. O melhor, mais bonito e mais perfeito modo que temos de expressar um ao outro a doce concordância de pensamento é por meio da música. Quando construo em minha mente a idéia de uma sociedade no mais alto grau de felicidade, penso nessas pessoas expressando seu amor, sua alegria, a concordância, a harmonia e a beleza espiritual de suas almas, cantando um para o outro.6
Aquela imagem era apenas o primeiro passo para um salto da realidade humana para a realidade celeste, onde Jonathan viu a doce intimidade humana como uma simples canção, comparada à sinfonia de harmonias na intimidade com Deus. Enquanto Sarah crescia e Jonathan tornava-se, de certa forma, mais gentil, eles começaram a passar mais tempo juntos. Gostavam de conversar e caminhar juntos; e ele aparentemente encontrou nela uma mente que combinava com sua beleza. De fato, ela lhe apresentou um livro de Peter van Mastricht, o qual mais tarde muito in uenciaria o pensamento de Jonathan.7 Eles caram noivos na primavera de 1725. Jonathan era um homem cuja natureza enfrentaria incertezas, tanto em seus pensamentos quanto em sua teologia, como se tais incertezas lhe causassem grande tensão física. Além disso, os anos que teve de esperar até que Sarah tivesse idade para casar trouxeram-lhe pressão ainda maior. Aqui estão algumas palavras que ele usou para descrever a si mesmo, extraídas de seu diário, em 1725, um ano e meio antes de casarem-se:
29 de dezembro – Entediado e desanimado 9 de janeiro – Abatido 10 de janeiro – Recuperando8
Provavelmente seus sentimentos por Sarah zeram com que Jonathan temesse pecar por pensamentos. Em seu esforço por manter-se puro, fez a seguinte resolução: “Quando sou violentamente atacado por uma tentação, ou não consigo livrar-me de pensamentos impuros, decido fazer alguma operação aritmética ou de geometria, ou algum outro estudo, que necessariamente envolva toda a minha mente e a impeça de car vagueando”.9
COMEÇO DA VIDA CONJUGAL Jonathan Edwards e Sarah Pierrepont se casaram, nalmente, em 28 de julho de 1727. Ela tinha dezessete anos, e ele, vinte e quatro. Jonathan vestia uma peruca e uma nova veste clerical, que ganhou de sua irmã, Mary. Sarah usava um vestido de cetim verde bordado.10 Temos apenas vislumbres do grande amor entre eles. Certa vez, Jonathan usou o exemplo do amor entre um homem e uma mulher para exempli car o amor a Deus. “Quando temos uma idéia do amor de alguém por determinada coisa, se for o amor de um homem por uma mulher... não conhecemos completamente o amor dele; temos apenas uma idéia de suas ações que são os efeitos do amor... Temos uma leve e vaga noção de suas afeições.”11 Jonathan tornou-se pastor em Northampton, seguindo os passos de seu avô, Solomon Stoddard. Começou este ministério em fevereiro de 1757, apenas cinco meses antes de seu casamento, em New Haven. Sarah não passou desapercebida em Northampton. De acordo com os costumes da época, um biógrafo imagina a chegada de Sarah à igreja de Northampton:
Qualquer pessoa bonita que chegue a um vilarejo gera curiosidade. Contudo, quando tal pessoa é também a esposa do novo pastor, causa intenso interesse. A maneira como os bancos da igreja eram dispostos naquela época, davam destaque à família do pastor como uma bandeira tremulando... Por isso, os olhos de cada pessoa da cidade estavam sobre Sarah, enquanto ela se movia em seu vestido de noiva. O costume ditava que uma noiva, em seu primeiro domingo na igreja, vestisse seu vestido de noiva e caminhasse vagarosamente, para que todos pudessem observá-lo bem. As noivas também tinham o privilégio de escolherem o texto a ser pregado no primeiro domingo após o seu casamento. Não há registro a respeito do texto que Sarah escolheu, mas seu versículo favorito era: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8.35). É possível que ela tenha escolhido este versículo como texto para a pregação. Ela tomou seu lugar no assento designado a simbolizar o seu papel – um banco alto de frente para a congregação, onde todos poderiam perceber o menor sinal de expressão. Sarah havia sido preparada para esta posição de evidência a cada domingo de sua infância, na comunidade de New Haven, mas era diferente de ser, ela mesma, a esposa do pastor. Outra mulher poderia bocejar ou mover furtivamente o pé, numa manhã fria de janeiro, dentro de uma igreja sem aquecimento. Ela nunca.12
Marsden diz: “No outono de 1727 [cerca de três meses após o casamento], Jonathan tinha recuperado sua conduta espiritual, principalmente sua habilidade em aprofundar a intensidade espiritual que havia perdido por três anos”.13 O que fez a diferença? Talvez ele estivesse mais apto para uma posição na igreja do que para o cenário acadêmico, em Yale, onde lecionava, antes de aceitar o cargo pastoral. Aparentemente, sua recuperação também estava relacionada ao casamento. Durante cerca de três anos antes de casar-se, além de sua rigorosa ocupação acadêmica, Jonathan se refreara sexualmente, ansiando pelo dia em que ele e Sarah seriam uma só carne. Quando iniciaram a vida juntos, ele era um novo homem. Tinha encontrado seu lar e o céu na terra.
SARAH COMO ESPOSA Quando Sarah iniciou seu papel de esposa, deu a Jonathan liberdade para buscar os combates losó cos, cientí cos e teológicos que zeram dele o homem que nós honramos. Edwards era um homem a quem as pessoas reagiam. Era diferente, intenso. Sua força moral era uma ameaça às pessoas inclinadas ao rotineiro. Após adentrar seus pensamentos às verdades bíblicas e implicações teológicas ou aos assuntos eclesiásticos, ele não voltava atrás em suas descobertas. Por exemplo, ele compreendia que somente os crentes deveriam tomar a Ceia do Senhor na igreja. A igreja de Northampton não cou feliz quando Edwards foi contra os padrões mais fracos de seu avô, que permitia que mesmo os descrentes tomassem a Ceia, desde que não tivessem participação em pecado aberto.14 Esse tipo de controvérsia signi cava que Sarah, em segundo plano, também era afetada pela oposição que seu marido enfrentava. Edwards era um pensador que mantinha idéias em sua mente, ponderandoas, separando-as, juntando-as a outras idéias e testando-as contra outras partes da verdade de Deus. Tal homem alcança o auge quando as idéias separadas juntam-se numa verdade maior. Mas, também é o tipo de homem que pode encontrar-se em covas profundas, no caminho à verdade.15 Não é fácil viver com um homem assim. Mas Sarah encontrou meios de construir um lar feliz para ele. Ela o assegurou de seu amor constante e criou uma atmosfera e uma rotina, nas quais ele gozava de liberdade para pensar. Ela entendia que, quando ele estava absorto em um pensamento, não queria ser interrompido para jantar. Compreendia que suas sensações de alegria ou tristeza eram intensas. Edwards escreveu em seu diário: “Freqüentemente, tenho visões muito comoventes de minha própria pecaminosidade e perversidade, a ponto de me levar a um choro alto... que sempre me força a car a sós”.16
A cidade via um homem sereno. Sarah conhecia as tempestades que existiam dentro dele. Ela conhecia o Jonathan da intimidade do lar. Samuel Hopkins escreveu: Enquanto ela tratava seu marido com acatamento e inteiro respeito, não poupava esforços para conformar-se às inclinações dele e tornar tudo em família agradável e prazeroso, fazendo disso sua maior glória e o modo como poderia melhor servir a Deus e à sua geração [e a nossa, podemos acrescentar]; e isso tornava-se o meio de promover o benefício e a felicidade de seu marido.17
Portanto, a vida no lar dos Edwards era moldada, em sua maior parte, pelo chamado de Jonathan. Uma das notas de seu diário dizia: “Penso que, ao ressuscitar de madrugada, Cristo nos recomendou levantar bem cedo pela manhã”.18 Levantar-se cedo era um hábito de Jonathan. Durante anos, a rotina da família era acordar cedo, junto com ele, ler um capítulo da Bíblia à luz de velas e orar, pedindo a bênção de Deus para aquele novo dia. Jonathan tinha o hábito de fazer algum trabalho físico durante uma parte do tempo, todos os dias, para exercitar-se – por exemplo, cortar lenha, consertar cercas ou trabalhar no jardim. Mas Sarah tinha a maior parte da responsabilidade em cuidar da propriedade. Com freqüência, Jonathan estudava treze horas por dia. Isto incluía muita preparação para os domingos, com o ensino bíblico. Mas também incluía os momentos em que Sarah ia conversar, ou quando os membros da igreja paravam para uma oração ou aconselhamento. À noite, os dois andavam à cavalo pela oresta para exercitar-se, respirar ar puro e conversar. E, então, oravam juntos novamente.
SARAH COMO MÃE
Em 25 de agosto de 1728, os lhos começaram a chegar na família– onze ao todo – com quase dois anos de intervalo entre cada um: Sarah, Jerusha, Esther, Mary, Lucy, Timothy, Suzannah, Eunice, Jonathan, Elizabeth e Pierpont.19 Este foi o começo do próximo grande papel de Sarah, o de mãe. Em 1900, A. E. Winship fez um estudo contrastando duas famílias. Uma tinha centenas de descendentes que apenas exploraram a sociedade. A outra família, descendentes de Jonathan e Sarah Edwards, foram destaque por suas contribuições à sociedade. Ele escreveu sobre o clã dos Edwards: Tudo que a família fez foi de maneira competente e nobre... E muito da capacidade, do talento, da inteligência e do caráter dos mais de 1400 membros da família Edwards é devido à senhora Edwards.
Por volta do ano 1900, quando Winship fez seu estudo, o casamento de Jonathan e Sarah havia produzido: 13 presidentes de universidades 65 professores 100 advogados e um reitor de uma faculdade de Direito 30 juízes 66 médicos e um reitor de uma faculdade de Medicina 80 encarregados de ofício público, inclusive: 3 senadores nos Estados Unidos Prefeitos de 3 grandes cidades Governadores de 3 estados Um vice-presidente dos Estados Unidos Um diretor do Ministério da Fazenda dos Estados Unidos
Os membros da família escreveram 135 livros... editaram 18 jornais e periódicos. Iniciaram o ministério em grandes grupos e enviaram cem missionários além-mar, como também muitos membros da família foram diretores de organizações missionárias.20
E Winship continua listando instituições, indústrias e empresas que pertenceram ou foram dirigidas pelos descendentes dos Edwards. “Di cilmente existe uma grande indústria americana que não tenha tido um dos membros dessa família entre seus principais promotores.” Bem podemos perguntar como Elisabeth Dodds: “Que outra mãe contribuiu tão essencialmente para a liderança de uma nação?”21 Seis dos lhos de Edwards nasceram num domingo. Naquele tempo, alguns ministros não batizavam bebês que nasciam aos domingos, porque acreditavam que os bebês nasciam no dia da semana em que foram concebidos, e esta não era uma atividade tida como apropriada para o Dia do Senhor. Mas todos os lhos de Edwards foram batizados, a despeito da data de seu nascimento. E todos os lhos viveram ao menos até a adolescência. Às vezes, isso gerava ressentimento em outras famílias da comunidade, visto que este fato era raro numa época em que a morte estava sempre próxima.
O SERVIÇO DOMÉSTICO Em nossas casas modernas, com aquecedores centrais, é difícil imaginar as tarefas que Sarah tinha de fazer ou delegar: quebrar gelo para tirar a água do poço, trazer lenha e acender o fogo, cozinhar e preparar lanches para os viajantes que os visitavam, fazer roupas para a família (desde a tosquia das ovelhas até o tear e a costura), plantar e cultivar, fazer vassouras, lavar roupa à mão, tomar conta de bebês, tratar enfermidades, fabricar velas, alimentar as aves domésticas, supervisionar o abate de animais, ensinar aos meninos tudo que não aprendessem na escola e observar se as meninas estavam aprendendo a realizar as tarefas do lar. Isto era apenas uma pequena porção das responsabilidades de Sarah. Certa vez, quando Sarah estava fora da cidade e Jonathan cara encarregado das tarefas da casa, escreveu, quase desesperado: “Temos vivido sem você, mas
ainda não sabemos como fazer isso”.22 Muito do que sabemos a respeito das tarefas domésticas da família Edwards vem de Samuel Hopkins, que viveu com eles durante algum tempo, e escreveu: Ela possuía um jeito excelente de governar os lhos; sabia como fazê-los respeitar e obedecer alegremente, sem palavras iradas ou gritos e, muito menos, sem bater neles… Se alguma correção era necessária, não a ministrava com cólera; quando tinha necessidade de repreender e reprovar, ela o fazia com poucas palavras, sem irritação [isto é, sem impetuosidade] nem barulho... Seu sistema de disciplina começava desde a mais tenra idade. A sua norma era resistir à primeira, assim como a toda subseqüente exibição de descontrole ou desobediência da criança... considerando sabiamente que, se a criança obedece aos pais, será capaz de obedecer a Deus.23
Seus lhos eram onze pessoas diferentes, provando que a disciplina de Sarah não deformava suas personalidades – talvez porque um aspecto importante de sua vida disciplinada era, como Samuel Hopkins escreveu, orar “por [seus lhos] de modo determinado e constante, e os levar em seu coração, diante de Deus... e isto mesmo antes de nascerem”.24 Dodds diz: A maneira de Sarah lidar com os lhos fez mais do que apenas evitar que Edwards fosse importunado enquanto estudava. A família proveu a ele um fundamento sólido para a sua ética... O último domingo em que [Edwards] esteve no púlpito, como pastor da igreja de Northampton, disse estas palavras: “Toda família deve ser... uma pequena igreja, consagrada a Cristo e totalmente governada e in uenciada por seus mandamentos. E a educação e a ordem da família estão entre os principais meios da graça. Se isto falhar, todos os outros meios provavelmente não terão efeito”.25
Ainda que o papel de Sarah tenha sido vital, não devemos imaginar que ela criou os lhos sem a ajuda do marido. A afeição de Jonathan e Sarah um pelo outro e a rotina devocional regular da família foram alicerces rmes para os lhos. Jonathan teve parte integral em suas vidas. Quando já estavam crescidos, ele sempre levava um ou outro junto consigo, quando viajava. Em casa, Sarah sabia que Jonathan gastaria uma hora, todos os dias, com os lhos. Hopkins o descreve como alguém “que penetrava facilmente nos sentimentos e preocupações dos lhos e estimulava-os com conversas alegres e animadas, acompanhadas freqüentemente de observações vivazes, acessos de riso e humor... Então, ele retornava ao escritório para trabalhar um pouco mais, antes do jantar”.26 Este era um homem diferente daquele que a congregação freqüentemente via. É possível juntar muitas informações sobre o lar dos Edwards, porque eles economizavam papel. O papel era caro e tinha de ser encomendado de Boston. Por isso, Jonathan guardava notinhas velhas, listas de compras e os rascunhos de cartas, juntando-os em pequenos blocos para usar o lado branco para escrever sermões. Uma vez que seus sermões foram guardados, as anotações dos detalhes do dia-a-dia também caram guardadas. Por exemplo, muitas das listas de compras incluíam um lembrete para comprar chocolate.27
A AMPLA ESFERA DE INFLUÊNCIA DE SARAH Naquela época colonial, os viajantes entendiam que, se uma cidade não tinha hospedaria, ou se esta era ruim, a casa do pastor era um lugar agradável para se passar a noite. Portanto, desde seu começo em Northampton, Sarah exerceu seus dons de hospitalidade. A casa dos Edwards era bem conhecida, ocupada e elogiada. Sarah não era somente esposa, mãe e an triã; ela, além disso, sentia-se espiritualmente responsável por aqueles que entravam em sua casa. Uma grande la de jovens pastores apresentava-se à porta de sua casa, ao longo dos
anos, na esperança de viver com eles e absorver a experiência de Jonathan. Por esse motivo, Samuel Hopkins morou com eles e teve a oportunidade de observar a família. Em dezembro de 1741, ele chegou à casa dos Edwards. Aqui está o seu relato das boas-vindas que recebeu: Quando cheguei, o senhor Edwards não estava em casa, mas fui acolhido com grande gentileza pela senhora Edwards, juntamente com a família, e recebi o encorajamento de que poderia car ali durante o inverno... Eu era um tanto melancólico e a maior parte do tempo cava retirado em meus aposentos. Depois de alguns dias, a senhora Edwards veio... e disse que eu me tornara membro da família por uma temporada e, por isso, estava interessada em meu bem-estar. Observara que eu parecia triste e desanimado e esperava que eu não a achasse intrometida [por causa] de seu desejo de saber e de perguntar-me por que me sentia assim... E eu lhe disse... que estava num estado desesperador, longe de Cristo... e nisto iniciamos uma conversa franca... e ela me disse que havia [orado] a meu respeito desde que eu entrara na família; que con ava que eu receberia luz e conforto e que, sem dúvida, Deus ainda faria grandes coisas através de mim.28
Sarah tinha sete lhos nessa época – entre um ano e meio e treze anos de idade – e, ainda assim, tomou este homem sob seus cuidados e o encorajou. Ele recordou disso por toda a sua vida. O impacto da certeza de Sarah Edwards a respeito da obra de Deus na vida de Hopkins não parou naquela conversa pessoal. Ele continuou sua caminhada a m de tornar-se pastor em Newport, Rhode Island, uma cidade dependente da economia escrava. Ele ergueu uma voz forte contra a escravidão, embora muitos cassem ofendidos. No entanto, um jovem se impressionou. William Ellery Channing estava desorientado e procurava um propósito para sua vida. Ele conversou longamente com Hopkins, voltou para Boston, tornou-se um pastor e, além de in uenciar Emerson e oreau, participou de forma decisiva no movimento abolicionista.29
Certamente Hopkins admirava Sarah Edwards. Ele escreveu: “Ela cultivava como regra pessoal o falar bem de todos, tanto quanto podia fazê-lo com verdade e justiça a si mesma e aos outros...” Isto parece muito com as primeiras re exões de Jonathan a respeito de Sarah – uma con rmação de que o seu amor por ela não o cegava. Hopkins comentou sobre o relacionamento entre Jonathan e Sarah: Em meio a tantos trabalhos complicados... [Edwards] encontrou em casa alguém que, em todos os sentidos, era uma auxiliadora para ele, alguém que fazia de sua simples habitação um lar de ordem e limpeza, de paz e conforto, de harmonia e amor para todos os que moravam ali, e de bondade e hospitalidade ao amigo, ao visitante e ao estranho.30
Outra pessoa que observou a família Edwards foi George White eld, quando visitou a América do Norte durante o Grande Despertamento. Em outubro de 1740, ele foi a Northampton passar um m de semana e pregou quatro vezes. No sábado pela manhã, ele falou aos lhos de Edwards, em sua casa. White eld escreveu que, quando pregou no domingo pela manhã, Jonathan chorou durante quase todo o culto. A família de Edwards também teve um grande efeito sobre White eld: Senti grande satisfação por estar na casa dos Edwards. Ele é um lho de Abraão e tem uma lha de Abraão como esposa. Que casal agradável! Seus lhos não se vestiam de cetim e seda, mas de trajes simples, como os lhos daqueles que, em todas as coisas, devem ser exemplo da simplicidade de Cristo. Ela é uma mulher adornada de um espírito manso e tranqüilo, alguém que fala de maneira franca e rme das coisas de Deus; parece ser tão grande auxiliadora para seu marido, que isto me fez renovar aquelas orações, as quais, por muitos meses, tenho feito a Deus, para que se agrade em me enviar uma lha de Abraão para ser minha esposa.31
No ano seguinte, White eld casou-se com uma viúva a quem John Wesley descrevia como “uma mulher de integridade e benevolência”.32
A CRISE ESPIRITUAL DE SARAH Jonathan Edwards teve um papel chave no Grande Despertamento, o avivamento que atingiu todas as colônias. Freqüentemente, ele era chamado para pregar em outros locais e precisava viajar. Durante esse tempo, em casa, a família cou em meio a uma tensão por causa de nanças. Em 1741, Jonathan pediu um salário xo à igreja, o qual possibilitasse suprir as necessidades crescentes de sua grande família. Isto fez com que a congregação inspecionasse o estilo de vida da família Edwards, a m de detectarem possíveis sinais de extravagância. O comitê responsável pelas nanças da igreja decidiu que Sarah teria de manter uma declaração de cada gasto, item por item. Em janeiro de 1742, durante este período de avivamento público e tensão pessoal, Sarah passou por uma crise, que mais tarde relatou a Jonathan. Ela contou sua experiência e Jonathan a transcreveu. Publicou-a em Some oughts Concerning the Present Revival of Religion (Pensamentos a Respeito do Presente Avivamento da Religião).33 Para preservar a privacidade dela, ele não revelou o nome nem o sexo do protagonista. A alma habitava nas alturas, estava perdida em Deus e parecia quase sair do corpo. A mente desfrutava de um deleite puro que a alimentava e satisfazia; tendo prazer sem o menor incômodo ou qualquer interrupção... [Havia] extraordinárias visões das coisas divinas e sentimentos religiosos, acompanhados freqüentemente de grandes efeitos no corpo. A condição humana sucumbia ao peso das descobertas divinas e o vigor do corpo desapareceu. A pessoa não tinha capacidade de permanecer de pé ou falar. Às vezes, as mãos cavam travadas, o corpo frio, mas os sentidos ainda continuavam. A natureza física estava em grande emoção e agitação e a alma cava tão dominada por admiração e um tipo
de alegria incontrolada, que levava a pessoa a pular com toda a sua força, com
regozijo e intensa exultação...34 Os pensamentos de humildade perfeita, com os quais os santos adoram a Deus no céu e se prostram diante do seu trono, venciam freqüentemente o corpo, deixando-o em grande agitação. 35
Não devemos imaginar que ela estava retraída e sozinha durante este período de duas semanas, ou que cada minuto era marcado por este êxtase. Jonathan estava ausente de casa, exceto nos dois primeiros dias. Então, ela cou responsável pela casa – cuidar das sete crianças, dos hóspedes e freqüentar as reuniões na igreja. Talvez, naquele momento ninguém compreendesse como Deus a abalava e transformava, quando ela estava sozinha com Ele. Isto aconteceu somente um mês após Samuel Hopkins ter se mudado para a casa dos Edwards; portanto, as impressões dele sobre a família foram moldadas em meio aos dias mais transformadores da vida de Sarah. No esforço em explicar este período na vida de Sarah Edwards, muitos biógrafos abordam o assunto de modo muito diferente, deixando-nos o desa o de tentar entender o que realmente aconteceu. Ola Winslow, um biógrafo que rejeitava a teologia de Edwards, usou o relato da experiência de Sarah para minimizar o impacto da aceitação de Edwards, no que se referia às manifestações ativas e exteriores do Espírito Santo. Winslow escreveu: “O fato de que sua esposa tinha estas extremas manifestações, sem dúvida, o inclinou a uma atitude mais acolhedora para com tais manifestações...”36 Isto parece implicar que, em circunstâncias normais, Jonathan teria falado contra manifestações incomuns, como as de Sarah; porém, desde que teve de responder pela experiência de sua esposa, foi forçado a aceitá-las. Outro perito na vida de Edwards, Perry Miller, que rejeitou a idéia de qualquer coisa sobrenatural, pôde apenas concluir que a história de Sarah deu a Jonathan uma prova para usar contra aqueles que pensavam que “entusiasmo”
era coisa de Satanás. Miller pressupõe que, apesar de nós, pessoas modernas, sabermos que tais manifestações podem não ser realmente sobrenaturais, Edwards era antiquado e pensou equivocadamente que algo sobrenatural estivesse acontecendo. Portanto, Miller diria, era conveniente para Edwards ter uma experiência em mãos para usar como prova contra dúvidas.37 Elisabeth Dodds descreve Sarah como alguém “visivelmente necessitada, grosseira – tagarela, dada a alucinações, profundamente desanimada”.38 Ela chama esse estado de colapso, e o atribui ao estoicismo anterior de Sarah, à sua luta com um marido difícil e muitos lhos, às pressões nanceiras, ao criticismo de Jonathan a respeito de seu modo de agir com certa pessoa, e ao ciúme dela por causa do sucesso de um pastor visitante enquanto Jonathan pregava longe de casa. Dodds diz que não podemos saber se tal reação foi um êxtase espiritual ou um colapso nervoso.39 A experiência de Sarah foi primeiramente psicológica? Provavelmente não. É raro que uma pessoa, sem razão aparente, tenha um colapso psicológico e logo depois volte ao normal. Portanto, Dodds, que acredita que isto foi realmente um tipo de colapso, sugere que Jonathan estava agindo como um precursor inconsciente de um psiquiatra, quando fez Sarah assentar-se e contar-lhe tudo que havia acontecido.40 Sua experiência teve uma causa espiritual? Parece que sim. Sabemos que ninguém jamais tem motivações, ações ou causas totalmente puras em suas atividades espirituais, contudo não há dúvida de que tanto Jonathan quanto Sarah reconheceram que as experiências dela vieram de Deus, e que tinham o propósito de deleitá-la e bene ciá-la espiritualmente. Sarah fala a respeito de sua experiência como um encontro espiritual, e o faz sem ambigüidade. Portanto, o leitor deve perguntar: Os Edwards provaram ser pessoas cujo julgamento em questões espirituais é con ável? Se a resposta for positiva, seria um erro tentar explicar o entendimento dela sobre sua própria experiência. Nem tampouco desejaríamos minimizar a con rmação de Jonathan a respeito da natureza
espiritual da experiência de Sarah, explícita em sua disposição em publicar o relato. Tensões a respeito de nanças, a ição por ter irritado o marido, ciúmes por causa de outro ministro – tudo isso era real na vida de Sarah. E Deus usou estas coisas para revelar-Se a Sarah, para mostrar-lhe o quanto precisava dEle e para revelar a fraqueza dela. E quando vieram sobre ela as sensações quase físicas da presença de Deus, Ele era o mais precioso e amável para ela, por causa do que Ele fez e venceu por ela. É bom lembrar a descrição feita anteriormente por Jonathan a respeito de Sarah, escrita em sua gramática de grego. Admitamos que ele era um amante inebriado. Mas ele não fez aquela descrição sem motivo. Ele escreveu a respeito de uma determinada pessoa, e podemos ver como era esta pessoa, ainda que seja através das lentes coloridas de Jonathan. ...em certos períodos este Grande Ser vem ao encontro desta moça e, de uma maneira invisível, enche-lhe os pensamentos com extraordinário deleite; e que ela di cilmente se interessa por qualquer outra coisa, exceto meditar nEle.41
Isto é muito parecido com a maneira como Sarah descreve sua experiência. E lembre-se que aos treze anos, ela amava ...estar sozinha, passeando pelos bosques e campos, e parece ter Alguém invisível
sempre a conversar com ela.42
Adolescentes solitários geralmente se tornam adultos solitários. Onde estava aquela solidão para Sarah, uma mulher que quase a cada ano dava à luz um novo bebê, com um uxo constante de viajantes e pastores iniciantes morando em sua casa, e com uma cidade que percebia cada mínimo movimento que ela fazia?
A vida de Sarah se tornou diferente depois destas semanas – diferente como se espera, depois de Deus ter visitado alguém de modo especial. Jesus disse: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.16). Jonathan disse que Sarah mostrava …grande humildade, gentileza e benevolência de espírito e de conduta; e uma grande mudança naquelas coisas que, em tempos passados, eram falhas que a pessoa cometia. Ela parecia estar repleta e transbordante de grande aumento de graça. E aqueles com quem ela mais conversava e que lhe eram mais íntimos podiam observar isso.43
Ele também assegurou a seu leitor que Sarah não se tornara excessivamente espiritual a ponto de não cumprir seus deveres terrenos: Oh, como é bom, disse certa vez esta pessoa, trabalhar para o Senhor durante o dia, e à noite deitar sob seus sorrisos! As grandes experiências e afeições religiosas desta pessoa não têm sido vivenciadas com qualquer disposição para negligenciar as ocupações necessárias do chamado secular... Mas as responsabilidades da vida secular têm sido cumpridas com grande disposição, como parte do serviço a Deus: a pessoa declara que, o serviço sendo assim realizado, descobriu ser tão bom quanto orar.44
Sua vida transformada levava as marcas de Deus, e não de um desequilíbrio psicológico. É evidente que Jonathan concordava com ela na crença de que ela havia tido um encontro com Deus: Se tais coisas são entusiasmo e frutos de uma perturbação mental, que a minha mente seja sempre mais possuidora de tão feliz perturbação! Se isto for loucura, oro a Deus para que a humanidade do mundo inteiro seja capturada por esta afável, branda, bené ca, beatí ca e gloriosa loucura!45
O DESERTO Após mais de vinte anos de ministério, Jonathan foi injustamente exonerado de sua igreja em Northampton. Até que ele tivesse novo cargo, permaneceram em Northampton. Não é necessário muito esforço para termos empatia com a pressão nanceira e emocional em que Sarah vivia. Já seria um grande desa o permanecer no lugar onde seu marido fora rejeitado. Mas, além disso, não havia sustento. E, durante um ano, Sarah viveu num cenário hostil, administrando sua ampla responsabilidade doméstica sem uma quantia xa para o sustento. Em Stockbridge, havia uma comunidade de índios e alguns poucos brancos. Eles procuravam com urgência por um pastor, ao mesmo tempo em que Jonathan buscava de Deus o próximo passo para sua vida. Em 1750, os Edwards mudaram-se para Stockbridge, ao lado oeste de Massachusetts, nos limites do domínio britânico no continente. Em 1871, a Harpers New Monthly Magazine publicou um artigo sobre Stockbridge. Isto ocorreu cem anos após a morte de Edwards e, ainda assim, por ocasião daquele artigo ele conquistou apreço internacional, sendo ultrapassado somente por George Washington. Muitos parágrafos deste artigo descreveram o importante papel de Edwards na história da cidade de Stockbridge. E ainda que décadas tenham se passado, eles não esqueceram a controvérsia de Northampton que levou ao chamado de Jonathan para Stockbridge. A vaga ao pastorado naqueles bosques selvagens foi ocupada por alguém cujo nome não é apenas altamente honrado nesta terra, como também muito conhecido e honrado em outros países, talvez mais do que qualquer de nossos conterrâneos, com exceção de Washington. Ele é insuperável como pregador, lósofo e uma pessoa de devotada piedade... Depois de um ministério muito bem sucedido por mais de 20 anos, surgiu uma controvérsia entre ele e sua congregação, e eles o exoneraram grosseiramente e quase em descrédito. A aceitação posterior de suas opiniões, não
apenas em Northampton, como também nas igrejas da Nova Inglaterra, vindicou abundantemente sua posição naquela controvérsia lamentável... Ele não se considerava importante em sua própria avaliação para aceitar o lugar que lhe ofereciam [na distante Stockbridge]... Edwards era quase uma máquina de pensar... Não seria estranho que um homem tão pensativo fosse indiferente a diversas coisas de importância prática. Assim, somos informados que o cuidado de seus afazeres domésticos e seculares era con ado quase inteiramente à sua esposa. Felizmente, ela, que possui um modo de pensar semelhante ao dele em muitos aspectos, e que estava preparada para ser sua companheira, também era capaz de assumir os cuidados lançados sobre ela. É dito que Edwards “não conhecia suas próprias vacas, nem sabia quantas lhe pertenciam. Entre todos os cuidados que tinha com seu gado, parece que se envolvia ocasionalmente no ato de levá-las ao pasto. Ele fazia isso espontaneamente, por causa da necessidade de exercitar-se. A respeito disso, conta-se uma história que ilustra a sua falta de conhecimento dos assuntos triviais. Certa ocasião, enquanto conduzia o gado ao pasto, um rapaz abriu a porteira para ele, fazendo-lhe reverência. Edwards reconheceu a gentileza do rapaz e perguntou-lhe de quem era lho. “Sou lho de Noah Clark”, foi a resposta... Ao retornar, o mesmo rapaz... abriu novamente a porteira para ele. Edwards [perguntou novamente quem ele era]... “O lho do mesmo homem de quinze minutos atrás, senhor.”46
ÚLTIMO CAPÍTULO Esta era uma família que raramente experimentara a morte, ainda que sempre estivessem conscientes de sua proximidade. Uma mulher poderia facilmente morrer ao dar à luz. Uma criança poderia facilmente morrer de febre. Alguém poderia facilmente ser atingido por uma bala ou uma echa na guerra. Era fácil uma fagulha da lareira espalhar um incêndio pela casa, enquanto todos estivessem dormindo. Quando Jonathan escrevia aos lhos, sempre os alertava – não de maneira mórbida, mas como um fato – de quão próxima a morte poderia estar. Para Jonathan, a realidade da morte levava automaticamente à necessidade de vida eterna. Ele escreveu ao lho de dez anos, Jonathan Jr., a respeito da morte de
um coleguinha do menino: “Este é um chamado altissonante para que você se prepare para a morte... Nunca dê a si mesmo descanso até que haja uma boa evidência de que você é convertido e nascido de novo”.47 Uma tragédia na família foi a página de abertura do último capítulo de suas vidas. A lha de Sarah e Jonathan, Esther, era esposa de Aaron Burr, o presidente do Colégio de Nova Jérsei, que mais tarde veio a se chamar Princeton. Em 24 de setembro de 1757, este genro morreu repentinamente, deixando Esther com duas crianças pequenas. Esta foi a primeira de cinco mortes na família, dentro de um ano. A morte de Aaron Burr deixou em aberto a presidência do Colégio de Nova Jérsei; e Edwards foi convidado a tornar-se presidente da escola. Jonathan se mostrava extremamente produtivo em seus pensamentos e escritos, durante os seis anos que passou em Stockbridge; portanto, não foi fácil deixar aquele lugar. Contudo, em janeiro de 1758, ele partiu para Princeton, esperando que sua família fosse ao seu encontro, na primavera. George Marsden ilustra aquele momento: Ele deixou Sarah e os lhos em Stockbridge, como Suzannah, com dezessete anos, relatou: “Tão afetuosamente, como se não fosse mais voltar”. Quando ele estava do lado de fora da casa, virou-se e declarou: “Con o-vos a Deus”.48
Jonathan mal tinha se mudado para a Residência Presidencial em Princeton, quando recebeu notícias de que seu pai havia morrido. Marsden relata: “Um grande estímulo em sua vida tinha, nalmente, partido; embora a força da personalidade tivesse enfraquecido alguns anos antes”.49 Neste capítulo nal da vida de Jonathan e Sarah, há momentos que expressam com clareza e con rmam a obra de Deus na vida de Sarah Edwards, nas muitas funções que Ele lhe con ou.
1. O papel de Sarah como mãe, com o desejo de criar lhos piedosos Quando Aaron Burr morreu, temos um vislumbre de quão bem esta mãe preparou a lha para uma tragédia inesperada. Esther escreveu à sua mãe, Sarah, duas semanas após a morte de seu marido: Deus parecia sensivelmente próximo, de maneira tão confortante e consoladora que penso jamais ter experimentado... Não duvido que tenho as suas orações e as de meu honrado pai, diariamente, por mim, mas permita-me rogar-lhe que supliquem fervorosamente ao Senhor para que eu não desanime com este golpe severo da parte dEle... Tenho receio de que me comporte de tal modo a desonrar... o cristianismo que professo.50
No momento mais obscuro de sua vida, a lha de Sarah desejou ardentemente não desonrar a Deus. 2. O papel de Sarah como esposa de Jonathan Logo que Jonathan chegou a Princeton, foi vacinado contra rubéola. Este era ainda um procedimento experimental. Ele contraiu a doença e morreu, em 22 de março de 1758, enquanto Sarah ainda estava em Stockbridge, na atividade de fazer as malas da família para a mudança para Princeton. Menos de três meses se passaram, desde que Jonathan despedira-se dela, na frente da casa. Durante os últimos minutos de sua vida, seus pensamentos e palavras foram para sua amada esposa. Ele sussurrou a uma de suas lhas: Parece-me ser a vontade do Senhor que eu vos deixe em breve; por isso, transmita o meu amor mais sincero à minha querida esposa, e diga-lhe que a união incomum, que tanto tempo houve entre nós, foi de tal natureza, que creio ser espiritual, e que, portanto, continuará para sempre: e espero que ela encontre suporte sob tão grande tribulação e submeta-se alegremente à vontade de Deus.51
Alguns dias depois, Sarah escreveu a Esther (cujo marido havia morrido apenas seis meses antes): Minha querida lha, que posso dizer? O Santo e bom Deus nos cobriu com uma nuvem escura. Que aceitemos a correção e quemos em silêncio! O Senhor o fez. Deus me fez adorar sua bondade, porque tivemos o seu pai por tanto tempo. Mas o meu Deus vive; e Ele possui meu coração. Oh! que legado meu marido, o seu pai, nos deixou! Estamos todos entregues a Deus; e aí eu estou, e gosto de estar. Com carinho, de sua mãe,
Sarah Edwards52
Esther nunca chegou a ler a carta de sua mãe. Em 17 de abril de 1758, menos de duas semanas depois da morte do pai, Esther morreu de uma febre, deixando os pequenos, Sally e Aaron Jr.53 Sarah viajou a Princeton para car com os netos durante algum tempo e, então, levá-los a Stockbridge, para junto dela. 3. O papel de Sarah como lha de Deus Em outubro, Sarah estava viajando para Stockbridge com as crianças de Esther. Ao fazer uma parada na casa de alguns amigos, foi acometida de uma disenteria, e sua vida na terra chegou ao m, em 2 de outubro de 1758, quando tinha quarenta e nove anos. As pessoas que estavam com ela relataram que “ela entendeu que sua morte estava próxima, quando expressou sua inteira resignação a Deus e seu desejo de que Ele fosse glori cado até o m; e continuou com uma disposição calma e resignada, até que morreu”.54 A morte de Sarah Edwards foi a quinta morte na família dentro de um ano, e o quarto túmulo da família Edwards acrescentado ao Cemitério de Princeton durante aquele ano fatídico, que marcou o m das vidas terrenas de Jonathan e Sarah Edwards.
Depois de mais de 250 anos, Jonathan Edwards ainda é o maior teólogo da América do Norte e provavelmente o maior lósofo. Ele in uenciou nosso modo de entender o mundo e de ver a Deus. É claro que isto nos deixa curiosos a respeito da esposa dele. Como Sarah poderia saber que dom estava nos concedendo, ao deixar Jonathan livre para cumprir seu chamado? Contudo, como em qualquer outra biogra a, perderíamos tempo, se nos satis zéssemos apenas em ler com o propósito de achar fatos interessantes. Por isso, tenho orado para que esta história nos faça olhar e voltar nossas afeições em direção à verdade bíblica, para que sejamos edi cados e encorajados. É comum, quando lemos biogra as, identi carmos alguma coisa de nós mesmos na história de outra pessoa. Sarah Edwards foi esposa de um pastor que era um pensador profundo, com convicções rmes e alicerçadas na Bíblia. Vejo nela uma mulher que amava Romanos 8.35: “Quem nos separará do amor de Cristo?” Vejo alguma coisa de mim mesma em sua vida. E quando ela se depara com di culdades e desa os, sinto-os de modo impactante, porque se parecem com os fardos que carrego. Posso ver como Deus agiu, ao levar os fardos dela; portanto, reconheço com mais clareza quando Ele faz isto por mim. Vejo uma mulher muito reservada e que, ainda assim, experimentou um enlevo espiritual extraordinário que mudou a sua vida. Penso que minha tendência, se eu tivesse passado por duas semanas similares às que ela passou, seria menosprezar a experiência, racionalizá-la de alguma maneira – assim como vários biógrafos tentaram fazer com Sarah. Mas vejo Sarah olhando para Deus, a m de obter a explicação. Colossenses 3.16 diz: “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria”. Sou aconselhada pela vida de Sarah. Ela aconselhou, de forma mais direta, a Samuel Hopkins, quando ele não conseguia interpretar corretamente a obra de Deus em sua vida. Esta conversa
foi para mim um grande encorajamento, quando a li pela primeira vez, durante a minha experiência com vários lhos pequenos. Todos nós temos conversas pessoais que podem ser esquecidas. Do mesmo modo, a conversa de Sarah com Samuel seria esquecida, se não fosse o diário de Hopkins. A conversa entre eles fazia parte de uma seqüência de acontecimentos que o levaram, pelo menos, até Emerson e oreau, e que certamente não terminaram aí – nós apenas não temos registros a respeito do que aconteceu depois. Freqüentemente, não sabemos como Deus entrelaça sucessivamente as linhas de nossa vida. Também quei impactada pela santa liberdade com que Jonathan e Sarah criavam seus lhos. Numa época em que a morte pairava tão próximo – em função de guerras, enfermidades, animais selvagens, infecções, partos e ferimentos – eu esperava que os pais mantivessem seus lhos bem perto de si; que os tivessem sempre diante de seus olhos. Ao contrário, Jonathan e Sarah, quando viviam em Stockbridge, perigosamente próximos à lugares selvagens, permitiam que seu lho Jonathan, de dez anos de idade, viajasse com um evangelista para o oeste distante, em missão entre os índios, nas montanhas – o lho de dez anos de idade! Isto não signi ca que eles eram ignorantes acerca dos perigos. Este foi o momento em que Jonathan escreveu a Jonathan Jr. a respeito da morte de um de seus amiguinhos. “Este é um chamado altissonante para que você se prepare para a morte... Nunca dê a si mesmo descanso até que haja uma boa evidência de que você é convertido e nascido de novo.”55 Não, todos eles estavam conscientes da proximidade da morte física. Mas a morte do corpo não foi o que os fez orar e clamar por seus lhos. A iminência da morte física os fez temer não a perda da vida, mas a ausência da vida eterna. Esta é uma perspectiva que quero ter para com os que amo.
Sarah Edwards era a auxiliadora, a protetora e a edi cadora do lar para Jonathan Edwards, cuja loso a e paixão por Deus ainda está viva trezentos anos após a sua morte. Ela foi mãe piedosa e exemplo para onze lhos, que se tornaram pais de cidadãos importantes dos Estados Unidos e – imensamente mais importante para ela – muitos são também cidadãos do céu. Ela foi an triã, consoladora e encorajadora de Samuel Hopkins, e, quem sabe, de tantos outros, que em continuidade ministraram a outros... os quais ministraram a outros... Ela foi exemplo para George White eld (e, quem sabe, para tantos outros) do que é ser uma esposa piedosa. E, no cerne de tudo, ela foi lha de Deus e, desde os mais tenros anos, experimentou doce comunhão espiritual com Ele e, através dos anos, cresceu em graça, sendo, ao menos uma vez, visitada por Deus de um modo tão extraordinário que transformou sua vida. Assim como Sarah Edwards não tinha idéia das subseqüentes gerações que in uenciaria por meio de sua interação com Samuel Hopkins, existem duas mulheres que provavelmente não têm qualquer noção de seu impacto causado em mim e, conseqüentemente, em meu marido, meus lhos, meus amigos e minha igreja. Bem antes de meu marido ser chamado para o ministério de pregador, admirei o testemunho de duas mulheres, esposas de nossos pastores, uma na Califórnia, outra em Minnesota. Deus as usou como auxiliadoras na preparação para a minha futura função, que nenhum de nós esperava. Esta história de Sarah Edwards é dedicada a Delores Hoeldtke e Anne Ortlund.
NOTAS DO CAPÍTULO 1
1 Citado no livro de Elisabeth D. Dodds, Marriage to a difficult man: the uncommon
union of Jonathan and Sarah Edwards. Laurel, Miss.: Audubon Press, 2003. p. 15. Devo a possibilidade de escrever esta curta biogra a a respeito de Sarah Edwards especialmente ao livro de Dodds. Conheço esta obra há muito tempo e é possível que, às vezes, possa ter incluído algum de seus pensamentos sem citar as devidas notas de rodapé. Percebo que há imperfeições na apresentação de Dodds. Portanto, recomendo que os leitores interessados em uma cronologia mais criteriosa, uma compreensão e interpretação teológica do homem que moldou a vida de Sarah e que por ela foi afetado consultem Jonathan Edwards: a life, escrito por George Marsden, e Jonathan Edwards: a new biography, escrito por Iain Murray. 2 Citado no livro de Dodds, Marriage to a difficult man. p. 17. 3 Murray, Iain H. Jonathan Edwards: a new biography. Edinburgh, Scotland: Banner of
Truth, 1987. p. 91. 4 Idem. p. 92. 5 Marsden, George. Jonathan Edwards: a life. New Haven, Conn.: Yale University
Press, 2003. p. 110. 6 Idem. p. 106. 7 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 21. (Dodds soletrava o nome como
Peter Maastricht.) 8 Idem. p. 19. 9 Idem (ênfase acrescentada). 10 Idem. p. 22. 11 Idem. 12 Idem. p. 25. 13 Marsden, George. Jonathan Edwards. p. 111. 14 Para obter mais informações a esse respeito, veja Mark Dever, “How Jonathan
Edwards Got Fired and Why It’s Important for us Today”, em A God entranced vision of all
things: the legacy of Jonathan Edwards, editado por John Piper e Justin Taylor. Wheaton, Ill.: Crossway Books, 2004. p. 129-144. 15 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 57. 16 Idem. p. 31. 17 Idem. p. 29-30 (ênfase acrescentada). 18 Idem. p. 28. 19 O nome de Pierpont era soletrado de modo diferente do sobrenome de Sarah,
Pierrepont. O soletrar padronizado não tinha ainda se tornado uma prática comum. 20 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 31-32. 21 Idem. p. 32. 22 Citado no livro de Marsden, George. Jonathan Edwards. P. 323. 23 Citado por Dodds, Elisabeth. Em Marriage to a difficult man. p. 35-36. 24 Idem. p. 37. 25 Idem. p. 44-45. 26 Idem. p. 40. 27 Idem. p. 38. 28 Idem. p. 50. 29 Esta cadeia de in uência é descrita por Dodds, Elisabeth. Idem. p. 50-51. 30 Idem. p. 64. 31 Winslow, Ola. Jonathan Edwards: 1703-1758: a biography. New York: Macmillan,
1940. p. 188. 32 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 74-75.
33 A seção que conta a história de Sarah Edwards é publicada como Apêndice E em
idem. Edição 2003. p. 209-216. 34 Edwards, Jonathan. Some thoughts concerning the present revival in New England. In:
Hickman, Edward. Ed. e works of Jonathan Edwards. 2 vol. Reimpressão de 1834. Edinburgh: Banner of Truth, 1974. p. 376. 35 Idem. p. 377. 36 Winslow, Ola. Jonathan Edwards. p. 205. 37 Miller interpretou de maneira errada a narrativa deste acontecimento. Miller, Perry.
Jonathan Edwards. New York: W. Sloane Associates, 1949. p. 203-206. 38 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 81. Dodds descreve a experiência de
Sarah no capítulo 8. 39 Idem. p. 90. 40 Idem. p. 88. 41 Murray, Iain. Jonathan Edwards. p. 92. 42 Idem. 43 Edwards, Jonathan. oughts on the revival. p. 378. 44 Idem. 45 Idem. 46 “A New England Village”. Harpers New Monthly Magazine. November, 1871. 47 Marsden, George. Jonathan Edwards. p. 412. 48 Idem. p. 491. 49 Idem. 50 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 160. 51 Dwight, Sereno E. “Memoirs of Jonathan Edwards”, em Edwards, Works, 1:clxxviii.
52 Idem. clxxix. 53 Aaron Burr Jr. tornou-se vice-presidente do presidente omas Jefferson. Ele caiu em
desfavor político e pessoal quando desa ou Alexander Hamilton para um duelo e o matou. 54 Dodds, Elisabeth. Marriage to a difficult man. p. 169. 55 Marsden, George. Jonathan Edwards. p. 412.
Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte. 2 Coríntios 12.9-10
Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o SENHOR, o Criador dos ns da terra, nem se cansa, nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar o seu entendimento. Faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no SENHOR renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam. Isaías 40.28-31
Lilias Trotter FIEL NA FRAQUEZA
N
o ano 354 (A.D.), se você viajasse 1.600 quilômetros direto ao sul de Londres — que, naquela época, era uma movimentada aldeia governada por Roma e chamada Londinium — você teria atravessado a terra dos francos e chegado ao Mar Mediterrâneo. Depois de cruzar o Mediterrâneo, a primeira terra que você avistaria seria aquela que agora é chamada Argélia. Naquele tempo, se chamava Numídia, uma província do Império Romano. Naquele ano, numa pequena cidade que cava a poucos quilômetros no interior, um fazendeiro e sua esposa tiveram um bebê. O menino foi chamado Aurelius Augustinus. Nós o conhecemos como Agostinho, um dos gigantes da História da Igreja. Durante os anos em que Agostinho foi Bispo de Hipona (agora Annaba, Argélia), o Império Romano começou a cair. Agostinho morreu quando os vândalos devastadores invadiram sua terra. Depois dos vândalos veio o Império Bizantino. Então, nos anos 600 vieram os árabes do leste, trazendo o islamismo e também a língua e a cultura árabe. De 1500 até o início de 1800, o Império Otomano fortaleceu a in uência do islamismo nesta área. No tempo em que os franceses ganharam o controle da Argélia, em 1830, a igreja cristã desapareceu. Mil e quinhentos anos após o nascimento de Agostinho, mil e duzentos anos após a grande migração árabe para o oeste, e vinte e três anos após a invasão francesa, a Argélia estava longe dos pensamentos de Alexander e Isabella
Trotter, em 14 de julho de 1853, quando sua lha Isabella Lilias nasceu. Eles não viveriam até ver a Argélia tomar seu lugar de importância na vida de Lilias. Alexander Trotter era um respeitado corretor de investimentos. Conhecido em sua família como alguém que tinha um “atraente caráter de amor, gentileza, generosidade e altruísmo”.56 Ele demonstrava respeito pelas pessoas dos mais diferentes níveis sociais, respeito que o levou a expressar sua fé cristã com “uma preocupação especial com a condição das instituições públicas”, tais como prisões, albergues e orfanatos. Ele amava novas experiências e era fascinado pelas maravilhas do mundo natural, examinando-o pessoalmente ou através de relatórios cientí cos, os quais ele muito admirava. Lilias e seus irmãos lembravam de seus auxílios nos experimentos que realizavam em casa e também de quando os levava a demonstrações e conferências cientí cas. Décadas mais tarde, em Argel, Lilias escreveu, com afeição, a respeito de seu pai. Após ter colocado alguma coisa que desejava conservar na mesa ao lado de sua cama, ela escreveu: Este objeto está ao meu lado..., e foi usado para ser a mesa que cava no quarto de meu pai – a gaveta que ele chamava “meu jardim”, e a outra que cava junto era de Alec [irmão dela]. Ele costumava esconder em nossos respectivos “jardins” alguns pequenos presentes, livros de gravuras, ou brinquedos que ele trazia quando voltava da cidade.57
Isabella Trotter, mãe de Lilias, interessava-se por tópicos das mais amplas esferas, desde jardinagem e decoração até geologia e botânica. “Sua natureza simpática fez dela uma advogada valente para os que estavam em desvantagem... sendo esta a mesma preocupação natural pelos outros que foi evidenciada por sua lha nos anos subseqüentes.”58 Nas cartas de Isabella há descrições, brotadas de um coração voltado para a beleza que reaparece mais tarde nos escritos de Lilias. A senhora Trotter apegava-se fortemente à sua fé cristã, apesar de seus pais e o outro círculo mais amplo da família serem
“liberais e tolerantes”. Ela parecia ter sido mais espontânea do que seu marido e menos inclinada ao cientí co. Certa vez, quando Alexander e ela faziam uma viagem distante, ela escreveu aos lhos, de modo brincalhão, a respeito de um argumento sobre o comprimento da cauda de um cometa: “Digo que parece ter dois metros de comprimento, porém o papai diz que é difícil falar, mas que tem realmente cerca de um grau e meio de comprimento, ou cerca de seis vezes o diâmetro da lua”.59 O pai de Lilias morreu quando ela estava com doze anos de idade. Sua família observou uma mudança distinta nela, à medida em que aprendia a depender do Pai celeste, agora que seu pai, Alexander, tinha falecido. Às vezes, quando eles esperavam encontrá-la brincando, achavam-na orando, em seu quarto. A personalidade, fé, interesse e qualidades pessoais de Alexander e Isabella se re etiam com força em sua lha Lilias, à medida que esta amadurecia. Seu pai morreu cedo demais para que pudesse ver a mulher que ela se tornaria. Mas sua mãe aprovou completamente a vida ministerial que Lilias abraçou. Isabella incentivou o extraordinário dom artístico de Lilias. As únicas relíquias da infância de Lilias são um desenho e um caderno de desenho que ela ganhou de sua mãe – talvez um símbolo daquele incentivo à visão de beleza e à habilidade artística de Lilias.60
ABRAÇANDO O MINISTÉRIO Quando Lilias tinha dezenove anos, ela e sua mãe assistiram pela primeira vez a Higher Life Conference – precursora do atual Keswick Ministries.61 Depois dessa ocasião, ela participava quase todo ano das conferências, e elas exerciam forte in uência no aprofundamento da vida espiritual de Lilias. Nos anos subseqüentes, os amigos Keswick proveriam um suporte pessoal e signi cativo ao ministério para o qual Deus a levaria.
A cada ano, sob orientação da conferência, Lilias se envolvia nas missões locais preparadas pelos organizadores da conferência. Por exemplo, sua irmã escreve uma carta sobre ajudar a servir um jantar, tarde da noite, para os cocheiros, homens que trabalhavam arduamente na condução de carruagens: O que você acha que Lilias e eu fazíamos ontem, de dez e meia até as três horas da madrugada? Foi um bom tempo, raro de ocorrer. Foi uma noite chuvosa, mas vieram cerca de 180 homens; alguns não conseguiram chegar antes de uma hora da madrugada. Eles tiveram um excelente jantar, muitos cânticos e ouviram mensagens breves. Creio que foram muito abençoados. E muitos deles não têm outras atividades sociais.62
Durante esses anos de ministério, na década de 1870, Dwight L. Moody realizou quatro grandes campanhas anuais em Londres. Como membro da equipe voluntária para campanhas, Lilias recebeu treinamento pessoal de Moody, sobre como falar com as pessoas que buscavam a Deus. Somente mais tarde Moody começou a usar O Livro sem Palavras.63 Parece que Moody apresentou a Lilias esta ferramenta evangelística. Anos mais tarde, na Argélia, Lilias utilizou O Livro sem Palavras, especialmente onde a linguagem era uma barreira.64 Contudo, em 1875, ela não tinha a noção de que este treinamento evangelístico era uma preparação para missões, porque as missões ainda não representavam nada para ela. Suas experiências serviram como degraus para o que hoje em dia poderíamos chamar “ministério interno” em Londres. Ela era ativa no Welbeck Street Institute, um tipo de abrigo que provia domicílio e alimentação para mulheres pobres e necessitadas.
DUAS PAIXÕES EXTENUANTES
Em 1876, quando Lilias tinha vinte e três anos, viajou pela Europa com sua mãe e sua irmã. Ao avistar os Alpes suíços, “ cou tão deslumbrada pela beleza majestosa dos Alpes que irrompeu em lágrimas”.65 Aquela viagem encheu seus olhos e sua alma sensíveis com cor e luz que sua mão habilidosa e seu pincel expressaram sobre a tela. Duas signi cativas amizades iniciaram-se durante esta viagem. Primeiro, numa convenção na Suíça, ela conheceu Blanche Haworth, que tornou-se uma amiga íntima e, em uma década, se tornaria sua colega de missões e amiga mais próxima. Em Veneza, a senhora Trotter descobriu que John Ruskin estava hospedado no mesmo hotel. Ruskin era um “artista, crítico, lósofo e uma gura proeminente na Inglaterra Vitoriana”.66 Ele era a voz da arte no mundo da sua época. Se ele dissesse que determinada coisa era boa, aquilo era realmente bom. A senhora Trotter enviou-lhe um pacote com pinturas em guache de sua lha Lilias, juntamente com uma nota: “A senhora Alex Trotter tem o prazer de enviar ao Professor Ruskin as pinturas em guache de sua lha. A senhora Trotter está preparada para ouvir que ele não as aprova – ela começou a desenhar na infância e recebeu pouco ensino. No entanto, se a senhora Trotter puder ter a opinião do senhor Ruskin isso seria valioso”.67 Apesar do fato que Lilias era tão facilmente levada às lágrimas pela beleza e tivesse amado pintar, era verdade que não havia recebido nenhum treinamento formal. Sua habilidade era um dom. Sua irmã lembrava com irônica admiração: “Em desenho ela felizmente fez um breve curso em paisagismo – interno – do qual nenhum benefício conseguiu derivar”.68 Ruskin descreveu os quadros que recebeu como “uma obra meticulosa e extremamente correta”.69 Apesar de que as palavras tenham parecido equilibradas, a sua reação re etiu mais entusiasmo. Ele mostrou aos Trotters os tesouros da arte de Veneza, deu tarefas a Lilias, e convidou-a para ser sua aluna, quando ela retornasse à Inglaterra. Ele a tomou sob seus cuidados, foi seu tutor e visualizou de antemão um grande futuro como uma artista de nível mundial.
Ela e sua irmã visitaram Ruskin com freqüência em sua casa, em Lake District, onde ele auxiliava Lilias a aprimorar sua habilidade. Estas semanas imersas em cor, forma e beleza ofereceram rejuvenescimento ao espírito desta jovem mulher que gastava o resto de seu tempo nos distritos mais sombrios de Londres. Contudo, quando Lilias tinha vinte e seis anos, Ruskin cou frustrado com ela por deixar-se distrair de sua arte. Ele não aprovou o modo como Lilias dividia o tempo, durante a semana. Ela gastava muito tempo nas ruas de Londres e não dedicava tempo su ciente à pintura. Então, Ruskin demonstrou-lhe a glória da vida da arte que estava diante dela. Se ela se dedicasse à arte, ele disse, “seria a maior pintora da época e faria obras imortais”.70 Esta foi uma decisão angustiante. Paralelamente em sua vida existiam duas atividades totalmente apaixonantes – arte e ministério. Ela sabia que era impossível doar-se totalmente a estas duas paixões. Não é possível servir totalmente a dois diferentes senhores. Mas, Lilias entendeu que é possível uma das paixões tornar-se serva da outra. E, assim, ela teve de decidir qual paixão tornar-se-ia mestra da outra. Por muitos dias, Lilias ponderou seus desejos e orou a Deus para que tornasse claro o seu chamado. Sua amiga Blanche Pigott escreveu: “Ela me disse que sentia como se aqueles dias fossem muitos anos”. Ao escrever para mim... ela diz: “Você entenderá que não é por vaidade que lhe conto os elogios de Ruskin à minha obra. Acho que não é por vaidade, pois não tenho autoridade sobre o meu dom, assim como não a tenho sobre a cor do meu cabelo. Eu lhe contei porque preciso de oração para descobrir com clareza a vontade de Deus”. O deleite intenso que ela sentia... diante da perspectiva de uma vida devotada à arte e envolvida pela arte somente fez com que buscasse mais intensamente ser guiada pela vontade única de Deus.71
Ela amava a sua arte e sabia ser possível que Deus usasse sua in uência naquela área para os propósitos do seu Reino. Mas, nalmente, ela disse: “Agora, vejo, tão claro como o dia, que não posso dedicar-me à pintura do modo como ele [Ruskin] pretende e, ainda, continuar a buscar ‘em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça’”.72 Agora ela estava livre para entregar-se de todo coração ao ministério em Londres. Ela continuou amiga de Ruskin até o m da vida dele, apesar do fato que ele nunca entendeu sua decisão. Ela ainda amava a arte – e como poderia não amar, visto que sua alma era tão ternamente vulnerável à beleza? Mas, agora, admirava sua arte como um dom e não como uma paixão. Muito tempo mais tarde, ela compreendeu ainda mais profundamente a importância de focalizar-se em Jesus, em vez de focalizar-se em todas as boas coisas que Ele nos dá. Nunca foi tão fácil viver em diversos mundos inofensivos ao mesmo tempo – arte, música, ciência social, jogos, dirigir, seguir alguma pro ssão, e assim por diante. E, entre estas atividades, correr o risco de o “bom” ocultar o “melhor”... É fácil descobrir se nossas vidas estão focalizadas e, neste caso, no que estão focalizadas. Em que se concentram nossos pensamentos, quando nossa consciência volta pela manhã? Onde eles oscilam quando a pressão é aliviada ao longo do dia?... Tenha coragem para perguntar isso a Deus... e peça-Lhe que lhe mostre se tudo está ou não focalizado em Cristo e em sua glória... Como trazemos as coisas a um foco no mundo da ótica? Não olhando para aquilo que precisamos deixar, mas olhando àquele ponto que precisa ser focalizado. Direcione a visão de sua alma para Jesus, e olhe insistentemente para Ele; então, uma estranha obscuridade virá sobre tudo o que está à parte dEle.73
MINISTÉRIO E VIDA PESSOAL Por mais de dez anos, Lilias trabalhou junto ao Welbeck Street Institute, dando continuidade ao trabalho quando o instituto se uniu a algumas outras
organizações para formar a primeira Young Women’s Christian Association (YWCA - Associação Cristã de Mulheres Jovens). Os alvos de Welbeck harmonizavam-se bem com o objetivo do novo YWCA para “unir jovens mulheres em oração e evangelismo, promover a amizade cristã e o auxílio mútuo, e promover o bem-estar social, cultural e moral de seus membros”.74 Para Lilias, o ministério signi cava ajudar a criar e administrar lugares e programas para moças pobres trabalhadoras, a m de que estas tivessem refeições e um lugar para dormir. Isto signi cava dar aulas de estudo bíblico para mulheres e crianças. Ela estava envolvida em trabalho de resgate, ou seja, estar presente onde mulheres precisassem de ajuda para saírem de más situações; talvez “sentar-se à noite inteira com uma menina pobre e desequilibrada, para impedi-la de cometer suicídio”75, ou, talvez, sair pelas ruas para oferecer às prostitutas um lugar seguro. Para muitas moças que viviam abandonadas na cidade, sem habilidades ou meios de emprego, [prostituição] era um trágico recurso... Lilias atravessava destemidamente as ruas, com a nalidade de resgatar estas andarilhas... Ela as trazia ao albergue para que tivessem uma boa noite de sono e para treiná-las em alguma habilidade que lhes desse algum emprego, e as apresentava ao Bom Pastor.76
As escolhas do ministério de Lilias tinham implicações diretas em sua vida pessoal. A Inglaterra Vitoriana possuía um senso de classe bastante de nido. Ao escolher trabalhar entre aquelas pessoas que eram consideradas as mais desprezíveis da sociedade, ela estava se excluindo do círculo de amizades da sociedade da moda. Em primeiro lugar, as damas distintas não “trabalhavam”. E, certamente, não andavam sozinhas ou freqüentavam aquelas partes da cidade. As mães, no nível de sociedade em que Lilias nasceu, não desejariam para seus lhos uma mulher que se comportasse de modo tão impróprio. Com efeito, Lilias havia escolhido permanecer solteira.
UMA VISÃO MAIS AMPLA Em 1884 – quando Lilias tinha quase vinte e nove anos – submeteu-se a uma cirurgia super cial. Ela estava tão exausta antes da cirurgia que sua recuperação, em casa, levou algum tempo, o que a impediu de trabalhar na YWCA, durante algumas semanas. Ela cou com uma seqüela permanente no coração. Contudo, até mesmo um coração fraco, que tornaria outras mulheres semi-inválidas, não conseguiu mantê-la em casa. Quando retornou ao ministério, Deus estava lhe preparando uma visão mais ampla. Eu estava ocupada, trabalhando em Londres; tudo prosperava, com a bênção de Deus. Eu não tinha outro pensamento, a não ser o de passar toda a minha vida ali. Toda a questão missionária parecia-me obscura e estava totalmente além do meu horizonte. Mas, eu tinha duas amigas com as quais desfrutei de um bom relacionamento; elas tinham o coração no evangelismo de regiões em trevas exteriores (áreas do mundo ainda não alcançadas pelo evangelho). Não me lembro de que tivessem falado pessoalmente qualquer coisa a respeito do assunto; mas dava para sentir o que estava no coração delas. Elas estavam animadas e, depois de algum tempo, embora eu não estivesse mais interessada no assunto, comecei a sentir que elas tinham uma comunhão com Jesus da qual eu nada sabia a respeito. Eu O amava e não queria viver sem essa comunhão; portanto, comecei a orar: “Ó Senhor, quanto aos povos que ainda não foram alcançados, dá-me a mesma comunhão contigo que tens dado a essas duas irmãs”. Não se passariam muitas semanas até que começasse a acontecer – um estranho anseio de amor por aqueles que estavam “no vale da sombra da morte”, um sentimento de que Jesus poderia falar comigo a respeito disso e de que eu poderia falar com Ele; uma grande barreira entre eu e Ele fora rompida e desaparecera. Naquele tempo, eu não imaginava sair da Inglaterra, e não tinha a menor intenção de estimular outros de minha casa a fazê-lo. Contudo, antes que se passassem dezoito meses, Deus traçou meu caminho em direção à escuridão, de forma tão reta como uma linha [ao campo missionário que Ele a estava direcionando].77
Duas coisas começaram a acontecer. Primeiro, ela começou a sentir um anelo pelas necessidades dos não-cristãos de terras longínquas. Segundo, como uma de suas amigas disse: “Ela me falou que sempre que orava, as palavras ‘África do Norte’ soavam em sua alma como se uma voz a estivesse chamando”.78 No entanto, não parecia realmente possível que ela pudesse ir a algum lugar, porque estava comprometida a cuidar de Jaqueline, sua irmã de ciente, durante seis meses a cada ano, pois sua mãe havia morrido havia alguns anos. Em maio de 1887, ela ouviu um missionário dizer que, quatro dias antes ele havia estado na Argélia, África do Norte. Ela disse: “Naquela primeira frase que ele disse, o chamado do Senhor soou. Se a Argélia estava tão próxima assim, eu poderia passar seis meses lá e a outra metade do ano em casa. Então, aquele era o chamado para mim e, antes do amanhecer, não restava qualquer sombra de dúvida de que este era o plano de Deus”.79 No seu trigésimo quarto aniversário, em 14 de julho de 1887, ela enviou uma inscrição para a Missão da África do Norte. Eles não acharam sábio responsabilizarem-se por ela, porque seu frágil coração não permitira que ela passasse no exame de saúde. Contudo, eles estavam dispostos a aceitar que ela trabalhasse “em harmonia com a missão, mas não estivesse ligada a ela”.80
ARGÉLIA Então, Lilias Trotter saiu, em 5 de março de 1888, como expressam suas palavras, “com um estranho e ao mesmo tempo alegre sentimento de tudo ter entregue e lançado sobre Deus”.81 Suas companheiras eram Lucy Lewis e Blanche Haworth, que fora sua amiga especial desde que se conheceram, na Suíça. Blanche seria constante colaboradora de Lilias e a amiga mais chegada durante trinta anos. As outras iam e vinham. Ela e suas amigas deixaram a Inglaterra menos de nove meses depois de Lilias ter sentido o chamado de Deus. Muitos missionários contemporâneos con rmariam que não havia tempo su ciente para preparação. Contudo, ela
tinha, de fato, trinta e quatro anos de preparação. Deus não desperdiça nada e durante toda a sua vida a tinha preparado para fazer missões; fora um treinamento por meios que não teriam sido imaginados pelos programas de treinamento missionário disponíveis a ela. As mulheres navegaram até Argel, em 9 de março de 1888. Este pequeno grupo de missionárias trouxe uma carga de obstáculos junto consigo. Nenhuma delas estava apta para aprovação no exame médico de qualquer sociedade missionária... Aquelas três mulheres não conheciam nenhuma viva alma na Argélia, nem uma frase em árabe. Elas não tinham idéia de como iniciar um trabalho numa terra intocada.82
Se Deus realiza sua obra através das fraquezas dos humanos, como Lilias cria, Ele faria isso ali com força total! Elas começaram a fazer a oração que seria o clamor de seus corações durante os anos que viriam: que as portas fossem abertas, que os corações fossem abertos e que os céus fossem abertos. Então, simplesmente, dando cada passo prático adiante, enfrentaram as barreiras entre elas e o povo. A maior barreira era o islamismo. A observância religiosa do islamismo requeria naquela época, assim como agora, cinco deveres, chamados Os Pilares do Islamismo: con ssão de fé, oração em árabe cinco vezes ao dia, jejum durante os trinta dias de Ramadã, caridade e peregrinação até Meca ou outros lugares sagrados. Estas observâncias eram entrelaçadas à vida diária e à cultura, mas em pouco contribuíam para transformar vidas. Apenas algumas semanas após sua chegada, Lilias recebeu a notícia da morte de sua irmã de ciente. Isto foi um choque. O plano de Lilias era dividir cada ano entre missões na Argélia e o cuidado de Jaqueline. E quando Lilias disse adeus à Jaqueline, esperava revê-la em seis meses. Lucy e Blanche caram ao lado dela, para ajudá-la a sentir-se confortada por Deus em sua dor.
Nós estávamos indo à igreja, quando as cartas chegaram. Elas zeram-me esperar meia hora e, então, conseguimos chegar a tempo no culto de ceia do Senhor. Era tão bom ir direto à ceia, antes de estar totalmente consciente das notícias; era útil ter todo o trabalho doméstico para fazer e, então, o cansaço do corpo nos fazia dormir. Deus tem sido tão bom.83
Agora Lilias descobriu que estava livre para focalizar-se totalmente na Argélia.
LINGUAGEM E VIDA A primeira tarefa delas era aprender árabe. Hoje em dia, os missionários podem fazer cursos que lhes possibilitam aprender uma nova língua. Lilias e suas colegas de missão tiveram de improvisar seus próprios métodos, usando os recursos de que dispunham. Seu primeiro esforço foi escrever o evangelho de João, palavra por palavra em árabe, passando do inglês para o francês e para o árabe, porque a única ferramenta de tradução que elas possuíam era um dicionário francês-árabe. Elas freqüentaram aulas de árabe até que o professor adoeceu e parou. Um adolescente encontrava-se com elas, três vezes por semana, para ajudá-las, até que se assustou com alguma coisa e não voltou mais. Depois de alguns meses, elas contrataram um tutor pro ssional. “Oh, como ansiamos por falar”, Lilias escreveu. “A possibilidade de falar só vem quando estamos em meio às pessoas – mas o tempo mostrará o plano de Deus”.84 Ainda que o alvo delas fosse viver e ministrar entre os árabes, as três mulheres estabeleceram seu primeiro domicílio na região francesa da cidade, porque falavam francês. (A Argélia foi uma colônia francesa durante todos os anos em que viveram lá). Logo que chegaram, estavam ansiosas por conhecer alguém que estivesse disposto a passar tempo com elas. Alguns de seus primeiros
contatos foram os vizinhos que falavam o idioma francês, os quais elas convidavam para os cultos de domingo, em sua casa. Mesmo antes de saberem o idioma, seu tutor traduziu pequenas porções da Escritura em árabe, as quais elas imprimiram como cartões decorativos e distribuíram na região árabe da cidade, para iniciarem conversação com pessoas árabes que falassem francês. Nos cafés, às vezes, os garçons podiam ler os versos em voz alta para todos os clientes. No porto, elas distribuíam cartões em muitas línguas para os marinheiros de muitas nações. E por este caminho cresciam as oportunidades para que praticassem o árabe.
MULHERES ÁRABES Contudo, não era tão fácil aproximar-se das mulheres árabes. Ainda que muitos homens falassem o idioma francês, as mulheres, em geral, conheciam apenas o árabe. Até que Lilias e suas coadjutoras aprendessem a língua, não havia um meio fácil para comunicarem-se com a maioria das mulheres daquela localidade. Outra barreira que existia era o fato de que as mulheres viviam usualmente reclusas em suas casas. A mulher árabe pertencia a seu pai até o dia de seu casamento e, depois, a seu marido. Sua vida limitava-se a servir primeiro a um, depois, a outro. Depois dos dez anos, a mulher usava um véu e era separada de qualquer contato com homens. De modo geral, tal como hoje, as mulheres eram as pessoas que podiam se relacionar com outras mulheres – se elas fossem bem-vindas em alguma casa. Normalmente, as crianças eram a chave para isso. Quando as mulheres inglesas faziam amizade com alguma criança, à porta de sua casa, a criança poderia convidá-las a entrar e levá-las até a sua mãe. Lilias descreveu o cenário que encontrou, ao entrar numa típica casa árabe, situada além de uma estreita passagem sinuosa, na velha cidade árabe, Casbah.
O quintal era pequeno, sem bancos, sem folhagem, com muitas pessoas, e com utensílios de cozinha esparramados – em estado precário e desordem. Todas as mulheres se misturam livremente e cozinham juntas no andar de baixo; porém, se um homem entra, ele pigarreia fortemente no pequeno vestíbulo que ca à porta de entrada e, instantaneamente, as mulheres e meninas correm para seus quartos, como coelhos em suas tocas, e abaixam a cortina da porta; o local é totalmente desocupado, somente permanecendo as mulheres que lhe pertencem, pois elas reconhecem o pigarrear de seu senhor e mestre. Assim que ele entra em seu quarto, todas saltam para fora novamente. Em cada casa há quatro ou cinco famílias e no contrato de aluguel da casa há uma cláusula que diz que, a não ser em caso de doença ou alguma necessidade urgente, os homens não devem entrar entre sete da manhã e sete da noite, com exceção para sua refeição de meio-dia, o que deixava o lugar bem mais livre para nós.85
O maior obstáculo era que a mensagem do evangelho era inconcebível. Conversamos com uma mulher que falava francês. Começamos falando do amor de nosso Senhor; ela meneou a cabeça com muita tristeza. “Não, Ele não ama as mulheres, só os homens.” Repetimos João 3.16. Mas ela somente repetia: “Não, não o mundo, não as mulheres”.86
Mais tarde, quando as orações foram respondidas e uma mulher tornou-se crente, havia barreiras culturais a serem vencidas. A mulher queria obedecer a Escritura e ser batizada, mas havia um problema. A di culdade era que as mulheres não poderiam tolerar a idéia de serem tocadas por um homem estranho. “Isto é pecado – é impossível”, elas diziam aos missionários... Então, elas oraram, e para sua alegria descobriram que o marido daquela mulher, que também era crente, estava disposto a deixá-la ser batizada pelo
senhor Brading, um missionário com quem eles tinham comunhão. A situação com a mulher foi difícil, mas, nalmente, ela cedeu.87
Desde o começo, Lilias sentiu um chamado especial para o trabalho com as mulheres, e aquele fardo nunca foi aliviado. Através dos anos, ela sonhou com meios de alcançá-las. Ela sabia que não era apenas uma estratégia totalmente proposital que realizaria isso. Ela e suas colaboradoras visitavam as mulheres em suas casas. Elas desenvolveram aulas de bordado e de estudo bíblico para meninas e mulheres. Nas ocasiões raras em que as mulheres saíam de casa, geralmente para irem a uma cerimônia nos túmulos dos parentes, as mulheres européias alugaram um local para uma “casa aberta”, onde as mulheres da localidade podiam relaxar e socializarem-se, enquanto estavam fora de casa. Embora quase todas as muçulmanas fossem analfabetas, Lilias cou especialmente preocupada que houvesse forte literatura cristã para elas, esperando pelo dia em que as meninas poderiam receber educação. Mais tarde, em 1909, quando aconteceram mudanças na sociedade, ela pôde ver aquele amanhecer no horizonte. Ela escreveu a colegas de trabalho na África do Norte: Nova literatura para mulheres crentes. Os colegas missionários duvidam, e pensam que está longe o dia em que haverá necessidade disso? Pode ser que não. Temos um Deus que vive na eternidade, e não conhece limite de tempo. Podemos nos preparar para as grandes chuvas, como os crocos do outono nessas terras sulistas, que erguem sua cabeça com esperança, ainda que hajam poucas nuvens no céu... Ore para que Deus levante, dentre os crentes, mulheres inteligentes, que sejam capazes de interpretar a mentalidade pouco explorada e as condições de vida mal compreendidas do povo que buscamos alcançar. E não nos deixe sentir que “isso é totalmente prematuro”. A fé geralmente é prematura; ela lida com “fatos que se não vêem”. Para nós, a visão deste assunto quase começou. Não nos deixe perder nossa última chance de crer e esperar até que a madrugada rompa em dia.88
AS TERRAS DO SUL Em março de 1893, quando Lilias chegava quase aos quarenta anos, ela e Blanche zeram sua primeira expedição pelo deserto, até Briska, que cava a 402 quilômetros ao sul de Argel. Hoje as cidades são unidas por uma rodovia. Mas naquela época era uma viagem de 463 quilômetros de trem ao leste até Constantina, e de carruagem mais 241 quilômetros ao sul até El Kantara, e, então, mais 48 quilômetros de camelo. Suas descrições verbais dessas terras evidenciam seu amor pelo deserto e provam que sua pena era tão descritiva e delicada quanto seu pincel. E seu olhar para a beleza continuava reluzente. Ao acordar uma manhã no deserto, ela escreveu este relato em 1914, vinte e seis anos depois de ter deixado a carreira artística: O sol surgiu com grandes asas de escaravelho de poeira avermelhada detrás de montanhas de cor púrpura. Do outro lado, estavam os montes, brilhantes em laranja avermelhado, em contraste com um céu azul cloisonné... um pouco mais tarde, e as asas de escaravelho tornaram-se gloriosamente brancas em todas as hostes dos céus, em contraste com um céu de mais suaves sombras de turquesa, fundindo-se num indescritível verde e malva nas partes próximas do horizonte.89
O sonho de Lilias era criar postos de propagação do evangelho nas cidades desertas. Ela tinha a esperança de que algum dia existissem crentes que vivessem e ministrassem nesses postos permanentemente. E, ao mesmo tempo, tinha esperança de que, junto com suas coadjutoras, pudesse visitar estes lugares periodicamente. Às vezes, numa cidade deserta, ela simplesmente caminhava pelas ruas empoeiradas, parando nas portas, para ver onde seria bem-vinda. Freqüentemente, as mulheres que viviam no deserto a convidavam e chamavam suas amigas para visitá-las também.
Uma delas mostrou-me arranhões em seu rosto, feitos quando lamentava a morte do marido, ocorrida alguns dias atrás. “O que vocês fazem quando as pessoas morrem?”, ela perguntou. Disse-lhe que se cremos em Jesus, Deus nos consola. Isto pareceu tê-las atingido de tal maneira, que elas continuamente repetiam umas às outras: “Deus as consola! Deus as consola!”90
Lilias não se deixava abater pelas condições de viagem. Cada jornada era arriscada para duas mulheres que viajavam sozinhas, com um guia estranho, através de territórios em que os europeus eram alvos de bandidos do deserto, escorpiões, doenças e cães ferozes. Não havia estradas através das grandes dunas constantemente em mudança, que se erguiam até mais de 120 metros acima do chão. Uma tempestade de areia cobria as marcas das trilhas. Mesmo as menores falhas de cálculo poderiam signi car a perda do destino em muitos quilômetros. Com o passar das horas, o ar poderia queimar os pulmões e o sol queimar o viajante. Era necessário apenas metade de um dia para que se chegasse a um estado de desidratação. Durante a viagem, o sol estava abrasante, e Blanche quase teve uma insolação, o que lhe deu vários dias de dor de cabeça agonizante e febre. Observávamos com avidez a la de palmeiras que se aproximava e caminhávamos diretamente para o abrigo das palmeiras... O único meio de refrescar-nos era mergulhar nossas mãos na areia; parecia um pouco mais fresco, apesar de que quando medimos sua temperatura, por curiosidade, marcou-se 31 graus.91
A viagem era dolorosamente vagarosa. Era possível caminhar durante dias pela areia e atravessar pouco mais de trezentos quilômetros. Mesmo hoje, nos primeiros dias do século 21, não é difícil encontrar pessoas nos países da África do Norte que se lembram da viagem de três dias à camelo a uma cidade que agora pode ser alcançada em duas horas por meio de carro ou ferrovia. Na Argélia moderna, há rotas de ônibus e trens, e rodovias entre as cidades. Para Lilias não havia nada a não ser camelos, cavalos e carruagens. E Lilias
amava isso. Oh! O deserto é maravilhoso em sua calma – a grande tranqüilidade meditativa que há em toda parte é tão repleta de Deus! Pode-se entender por que Ele levava seu povo ao deserto para ensiná-lo.92
Uma amiga disse que nunca era difícil para Lilias preparar-se para uma viagem. O anseio para retornar ao deserto era tão grande que ela às vezes tinha de se lembrar de que isto poderia ser uma tentação, em vez de um chamado de Deus: Um clamor tem me despertado nestes últimos dias, para ir ao deserto novamente... uma grande atração por tudo isso... Não suponho que Ele me deixe ir até que eu tenha lidado com isso e suplantado esta atração por esses lugares com a comunhão com Ele.93
MUDANDO-SE PARA A REGIÃO ÁRABE Em 1893, cinco anos depois de ter ido para a Argélia, Lilias e Blanche e suas colaboradoras, nalmente, conseguiram mudar-se para uma casa na região árabe – uma área que muitos consideravam um bairro pobre. Ela escreveu, em uma carta: Foi bom virarmos as costas para as longas ruas francesas e mergulharmos na multidão. No momento de cruzar o limiar da porta, veio a palavra: “Neste lugar, darei paz, diz o Senhor” [Ageu 2.9]... No domingo, quando acenei para elas da minha janela, umas falaram às outras em voz alta: “Aquelas são as pessoas que têm harpas!” Eu peguei minha pequena cítara... e elas se moveram lentamente junto ao parapeito... para uma sacada do outro lado da minha janela, onde facilmente poderíamos tocar nas mãos, do outro lado daquela rua estreita. Ali elas sentaram,
meia dúzia de mulheres e meninas, de costas para o sol poente, enquanto tocávamos e conversávamos com elas; então ouviu-se uma voz de homem na rua, abaixo, e elas saíram lentamente sem nenhuma outra palavra.94
Seis anos depois, quando uma amiga inglesa planejava visitá-las e esperava car na casa de Lilias, ela sentiu que devia preparar sua amiga para conhecer um lugar bastante diferente daquilo que os ingleses estavam acostumados. Então, pela primeira vez se permitiu descrever a casa através de olhos europeus. Nosso quarto de hóspedes é escuro e melancólico, e somente serve para ser utilizado durante poucos dias, já que o sol e a luz são essenciais à saúde. Além disso, uma casa árabe numa região nativa não signi ca aquilo que os médicos querem dizer, quando ressaltam: “Vá para Argel (é bom para sua saúde)”. O ar aqui é muito... carregado e ruim; todos os outros missionários que vêm dizem que são gratos por não viverem aqui. A casa é tanto úmida como exposta a correntes de ar. Até que realmente chegue a primavera, o pátio, para o qual se abrem todas as janelas, sempre ca encharcado toda vez que chove, e não há lareiras.95
As crianças entravam e saíam da casa delas, sob os cuidados especiais de Blanche – a “Marta” da dupla. Elas zeram amizade com as mulheres do bairro, e algumas delas eram inclinadas ao evangelho.
CÉUS DE BRONZE Entretanto, era grande a oposição. À medida que elas falavam com mais uência o árabe, e se tornavam mais cientes da complexidade da cultura ao redor, o mal se tornava mais óbvio. Mais do que nunca... temos sinais do poder deliberado do diabo ao nosso redor. A sujeira moral que grassa por todos os lados torna-se visível em direções que jamais
imaginamos, mesmo entre as crianças pequenas; elas estão submersas nela. Todos os meios exteriores pelos quais as forças do mal são invocadas – encantos, feitiçarias e bruxarias – vêm mais e mais à luz, à medida em que temos contato com as pessoas. Não é de admirar que mesmo o ar pareça impregnado de malignidade, e que o sentido de conhecê-lo como adversário tem sido mais intenso do que jamais fora antes, e, a cada mover que Deus realiza é visível que há uma ação contrária sempre preparada. Mais e mais nos deparamos com casos estranhos e misteriosos de doenças provocadas pela ira, que mais parecem casos de possessão do que qualquer outra coisa.96
Às vezes, a sensação de opressão era muito intensa, como Lilias escreveu: Não se pode fazer outra coisa, literalmente, senão orar, a cada instante livre; alguém leria as cartas e relatos nanceiros como se fosse uma obrigação mas, quase sempre tinha de deixá-los em cinco minutos e apressar-se a orar – com di culdade – elevando um clamor inaudível aos céus de bronze.97
Muitas vezes elas viam um novo convertido começar a retroceder e colocar-se contra elas. Chegaram a ter conhecimento do trabalho com drogas, secretamente administrado na comida ou na bebida, que deixava a pessoa exposta a más in uências e a ser sugestionada. Assim como era difícil ver novos santos morrerem, estas mulheres encontraram conforto em saber que este era um meio de Deus proteger suas ovelhas. O cunhado de Roukia tinha ido para a casa celestial em grande paz. Com seu fôlego limitado, mal podendo articular palavras, ele repetia: “Eu amo a Jesus mil vezes, mil vezes”. E quando seu m chegou, com um maravilhoso sorriso no rosto, disse: “O portão do céu está aberto – e eu entro – Jesus”, e assim partiu. É melhor assim – oh, in nitamente melhor! Eu cava triste quando Deus os salvava às portas da morte. Agora só posso regozijar-me, pois seu treinamento para a obra da eternidade tem sido continuado pelo próprio Deus, na quietude do céu…98
PADRÕES DE VIDA E DE MINISTÉRIO Com o passar dos anos, aconteceram certas ocorrências regulares que deram padrão ao ministério. Na primavera e, às vezes, no outono, podiam acontecer expedições às vilas próximas, a m de realizar novos contatos evangelísticos ou para renovar o que havia sido feito antes. No incômodo verão, Lilias e suas colegas de missão usualmente passavam algum tempo na Europa, a m de se revigorarem, e também para que seus mantenedores continuassem tendo contato com seu trabalho. A cada ano, o Ramadã, mês de jejum muçulmano, era um tempo de intensa luta espiritual para Lilias e sua equipe. Era a temporada de maior desa o para os novos crentes. Uma vez que manter o jejum era o principal meio para que alguém se tornasse adepto do islamismo, os crentes sentiram que não deveriam jejuar. Isto lhes trouxe grande perseguição e tormento. Lilias e os outros missionários oravam incessantemente, ofereciam um local onde os crentes podiam comer juntos, e eventualmente faziam um culto de comunhão, com a ceia do Senhor durante o tempo de Ramadã. O culto de comunhão realizado durante o Ramadã é sempre um tempo de provação – serão eles corajosos ou não para permanecerem rmes diante dos “adeptos” que sem dúvida os denunciarão? “Tome, coma!” é o desa o de todo o mundo muçulmano.99
Outro padrão foi criado para Lilias em função de sua saúde. Sempre, em alguns anos, depois de car mais e mais envolvida e sobrecarregada com o ministério, ela sofria um desfalecimento físico. E isto requeria que ela estendesse seu tempo anual na Inglaterra. Deveria ela ter feito as coisas de modo diferente? É difícil e provavelmente injusto julgarmos. Sabemos que na Argélia ela se disciplinou a regularmente
tomar algum tempo e esconder-se por entre as moitas altas de grama em algum lado tranqüilo da montanha, por exemplo, para estar a sós com Deus. Ela era cuidadosa em fazer uma pausa durante os meses perigosos do verão e, às vezes, retirava-se à uma cidade litorânea longe de Argel. Porém, Lilias era uma mulher que não podia passar no teste de resistência física de uma missão. Com um coração fraco, provavelmente não teria parecido esquisito para muitas pessoas, se ela tivesse passado sua vida na Inglaterra, como uma semi-inválida. Sim, sua saúde requeria periodicamente que ela parasse e passasse algumas semanas ou meses em recuperação. Mas, ela não viveu a vida como uma pessoa frágil. Pelo contrário, por amor ao evangelho, era uma pioneira numa terra cujo clima prejudicou a saúde de muitos que foram mais fortes do que ela.
PIONEIRA Seu espírito pioneiro brilhava, tanto em sua vida particular quanto em seu ministério. De fato, aquele espírito aventureiro deve ter acelerado seus períodos de recuperação. Em 1900, aos quarenta e sete anos, ela começou a realizar experimentos com a tecnologia – sua nova Brownie, uma câmera. Foi naquele mesmo ano que ela também tentou aprender a esquiar. Temos esquiado para exercitar. É tão agradável como voar, depois que você supera as di culdades preliminares de car enroscado nos esquis de dois metros de comprimento. Margaret [sua irmã] talvez consiga desembaraçar-se antes de voltar para a Inglaterra, mas acho que eu não conseguirei.100
Sim, com freqüência Lilias tinha de sair de seu local de missões, em função de sua saúde, e, às vezes, também por causa da política de ocupação do governo francês. Era aquele um tempo perdido? Seus períodos de “abatimento” impediram o avanço do evangelho? Provavelmente não. Ela realizou mais do
que muitos de nós jamais esperamos realizar. E parecia que os tempos de descanso extra sempre vinham antes de um tempo de grande di culdade e desa o – como se Deus a estivesse “recarregando”. E os tempos de descanso eram com freqüência ricos em escritos e em criatividade. Durante toda a vida de Lilias Trotter, muito de seus escritos evangelísticos foram feitos nos períodos de descanso e recuperação que se seguiam a um colapso de saúde. Ela parecia ver tudo ao seu redor como uma pintura de Deus e seus caminhos – como uma parábola. Ela compilou algumas parábolas em livros, durante seus períodos de enfermidade. A natureza era repleta de lições a respeito de seu Criador. “Entrei na profundeza das águas” [Salmos 69.2 - RC] tomou novo sentido essa manhã.... isso evidencia que águas rasas é um lugar onde não se pode afundar ou nadar. Em águas profundas pode-se fazer um ou outro... Nadar é a forma mais intensa e ativa de se movimentar. Todo o seu corpo está envolvido, e cada centímetro seu está em repouso sobre a água que o carrega. “Em ti con amos e no teu nome viemos” [2 Crônicas 14.11].101
O diário de Lilias era uma combinação de palavras, pinturas e esboços. No tempo livre, ela usava muitas das pinturas para ilustrar livros devocionais que deu a milhares de pessoas um vislumbre da verdadeira vida numa área que parecia, naquele tempo, remota e exótica. Hoje suas pinturas serviriam como uma vívida história do deserto e do povo árabe e daqueles lugares que agora estão no centro do conhecimento do nosso mundo. Mas, infelizmente, sua arte é inacessível, guardada nos arquivos da Inglaterra – até que alguma casa editorial sábia e corajosa se disponha a torná-la disponível novamente.102 Um de seus mais criativos e esforçados escritos nos pode parecer óbvio agora, mas Lilias era alguém entre aqueles que estavam à frente da época, em suas missões, com a idéia de criar e publicar livretos que teriam aparência e gosto árabe, para um leitor árabe. A palavra escrita tinha uma vantagem sobre a
palavra dita; se uma pessoa levasse uma literatura para casa, poderia ler e reler na particularidade de seu lar, sem ter de sofrer pressões em função de aparências. Lilias e suas colaboradoras escreveram muitas histórias e parábolas que demonstravam vários aspectos de Jesus e do evangelho. Ela ilustrava as histórias e fazia bordas árabes elaboradas para as capas e páginas. Primeiro, num tempo em que a maior parte da literatura para muçulmanos lidava... com muitos pontos de di culdade e diferença entre as duas religiões, a senhorita Trotter escrevia histórias que, com todo o seu conhecimento íntimo do pensamento e do comportamento muçulmano, apelava primeiramente para a semelhança fundamental, as grandes necessidades de todo ser humano. E em segundo lugar... a senhorita Trotter dava a todos os seus folhetos um toque de cor e de beleza oriental, com desenhos em duas cores ou pequenas gravuras que pareciam artisticamente de acordo com caligra a árabe, ao invés de uma escrita estrangeira e estranha.103
Seu olhar não se limitava apenas aos árabes da Argélia. Uma excelente literatura árabe podia ser usada através de todo o mundo árabe. Para uma pessoa do meio leste, mesmo hoje, a beleza visível de uma literatura de alguma forma é valiosa.
OPOSIÇÃO DE ANIVERSÁRIO Durante muitos anos, março parecia trazer novamente as di culdades mais profundas na área física, espiritual, ou política. Lilias achava que Satanás reconhecia que era aniversário da chegada delas no território dele. O mês de março de 1918 trouxe uma mudança que abalou sua vida.
A anotação da última página do Relatório Financeiro – “Examinado e achado correto, 5 de fevereiro de 1918” – tem um signi cado importante, embora tenha sido desconsiderado quando foi para a grá ca, dias depois, pois o balancete com o arranjo de suas páginas anteriores foi o último serviço que Blanche Haworth prestou à Algerian Mission Band. Quando a prova retornou, ela estava inconsciente, com febre, e, em 9 de março, no aniversário em que completava trinta anos de trabalho árduo nesta terra, ela passou, completamente inconsciente de que estava indo, à praia onde o Senhor a esperava.104
Blanche Haworth havia deixado a Inglaterra junto com Lilias, em 1888, e haviam ministrado juntas durante trinta anos. Sua morte signi cou o m de uma profunda amizade com a pessoa que melhor conhecia Lilias em todo o mundo. Juntas, elas fundaram o Algiers Mission Band. Lilias viveu mais dez anos e viu o AMB crescer e incluir vinte e nove colaboradoras com postos em pelo menos quatorze cidades desertas. Em 1964, o AMB uniu-se ao North África Mission, que mudou seu nome para Arab World Ministries, em 1987. É difícil imaginar Lilias, Blanche e suas colaboradoras – em sua maioria, mulheres solteiras – realizando tudo o que zeram, considerando-se a saúde, o clima e os desa os espirituais. Elas desenvolveram meios para que os crentes árabes se tornassem nanceiramente independentes. Elas ofereceram um “acampamento familiar”, onde grupos podiam ouvir o evangelho longe das pressões culturais normais. E elas atuavam como casamenteiras – contribuindo para a formação de famílias – para os cristãos árabes que desejavam se casar. E sempre tentavam atrair outros ao seu chamado e visão. É possível que elas tenham sido as primeiras a criar um plano de missão a curto prazo. Havia oportunidades para representar a causa muçulmana à igreja cristã internacional, falando em igrejas e em conferências internacionais.
OS ÚLTIMOS ANOS
Nos últimos três anos de sua vida, o coração fraco de Lilias a con nou em seu quarto. Ela transferiu as responsabilidades da liderança do Algerian Mission Band para outras pessoas. Disse: “Há muito tempo atrás, no passado, era uma alegria pensar que Deus precisava de mim. Agora é uma alegria muito mais profunda sentir e ver que Ele não precisa de alguém, mas que Ele tem tudo em suas mãos”.105 No m de suas forças, ela terminou e Way of the Sevenfold Secret, um livro para mostrar Jesus aos místicos do deserto – os su stas – com os quais tinha interagido durante suas viagens pelo deserto. Em um determinado ponto de sua vida, alguém a descreveu: “Ela era tranqüila e criou uma tranqüilidade”, tal como alguém escreveu após tê-la visto pela primeira vez: “Foi encantador conhecer a senhorita Trotter; é maravilhoso estar próximo dela. Eu amo a quietude dela”. Isto foi muitos anos depois, quando a luta tinha sido longa e difícil. Era a tranqüilidade da força, o calor do ferro que sai da fornalha.106
Esta tranqüilidade freqüentemente havia sido seu aspecto durante o dia, especialmente quando estava restrita à permanecer em sua cama. Mas quando estava sozinha, principalmente durante a noite, ela era uma guerreira. O mapa da Argélia e da Tunísia – seu “manual de intercessão” – permanecia ao lado de sua cama, e ela criava estratégias, consumindo-se em oração, com sua lâmpada acesa até as primeiras horas da manhã, “com uma intercessão tal que somente os que amam o fazem”. Escrito no mapa, com sua própria caligra a, estava o desa o: “Atenta para o ministério que recebestes no Senhor, para o cumprires” [ Colossenses 4:17].107
Ela compreendeu que a oração não é necessariamente fortalecida por estar presente no local pelo qual se ora. Pelo contrário, talvez alguém ore com mais intensidade, estando longe. A incapacidade de ir pode causar grande gozo ao orar. Pode-se estar em espírito entre as apreciadas casas de barro em Tolga, nos tetos abobadados de Souf, nos arcos em formato de ferradura em Tozeur, e nos casebres de cerâmica construídos nas colinas, cercados de gueiras da índia e, assim, trazer o derramamento do Espírito Santo, “pela fé naquele Nome”, talvez mais efetivamente do que se estivesse presente lá. Pode-se fechar a porta, por assim dizer, e car a sós com Deus, algo que alguém no campo missionário não pode fazer, em vista das inquietantes distrações das coisas visíveis exteriores.108
Uma de suas amigas descreveu a transformação em Lilias, enquanto ela se aproximava da morte, do portão do céu. [Eu me lembro] de uma meditação de Lilias Trotter sobre o “corpo glori cado” na Ressurreição. “Suponha” ela imaginou, “que ao invés de sangue, cada veia fosse preenchida com luz!” No último ano de sua vida, isso quase parecia estar acontecendo nela mesma, tão belo e estranho era o brilho da luz espiritual em um corpo frágil e exaurido.
Em 27 de agosto de 1928, suas amigas cantaram “Jesus, Amado de Minha alma”. Lilias olhou pela janela e exclamou: “Uma carruagem e seis cavalos!” Uma amiga perguntou: “Você está vendo coisas belas?” “Sim, muitas coisas belas.” Ela ergueu as mãos em oração, e quase que de imediato, tranqüilamente deu seu
último suspiro.109
Lilias Trotter não contemplou a resposta à sua oração para que uma multidão de muçulmanos fosse convertida a Cristo. Tanto naquela época como hoje, o solo é rígido. Os escritos de Lilias que foram distribuídos são parábolas de anelo por aquele glorioso orescer da primavera de Deus chegando ao mundo muçulmano. Deus tem deixado bem pouco de seu pomar espiritual com galhos desnudos, ao passo que o traço verde fresco é visto de modo amplo – pode bem ser que Ele não precise de lentos estágios preparatórios, mostras de avanço evidente para o alvo. Há uma semana atrás, aqui em cima das colinas, disseram, um dia: “Um pé de cerejas está orescendo”. No dia seguinte, todos os pomares estavam esbranquiçados como a neve. Quem pode dizer qual mínimo movimento é o precursor do orescer nas árvores desnudas do islamismo?... E a maravilha da primavera no mundo islâmico será revelada, através “das reservas desconhecidas das fontes Divinas”.110
As cartas de Lilias, suas anotações em diário, relatórios e devocionais, re etem um forte, constante e sereno tom. Às vezes, há desânimo ou anseio. Mas, em outro registro, a ira salta das páginas. Ela estava num navio, cruzando o Mediterrâneo, voltando de uma conferência na Europa, para Argélia: Alguém que viajava conosco falava do modo como, no olhar da Igreja para o campo missionário, ainda há uma visão muito geral de que os muçulmanos são uma raça condenada. Uma raça condenada!! Isto não parece re etir “o Deus da Esperança”, ou “o Deus de Amor”. Uma crença condenada é a expressão mais próxima da verdade; a casca que envolve a semente é condenada; isso é tudo. Aleluia!111
Deus havia dado a Lilias a tríplice oração quando elas entraram na Argélia, e este foi o centro de suas orações depois de ter chegado ali – portas abertas, corações abertos e céus abertos. Em 1923, após trinta e cinco anos, ela escreveu sobre a resposta de Deus a esta tríplice oração. Ela permanece como uma
bênção em seu trabalho na Argélia e resta uma petição a ser feita por todos aqueles que se importam com a Argélia e com o amplo mundo árabe. A oração tríplice dos primeiros dias volta à memória. Primeiro, para que as portas sejam abertas: isto já foi respondido mais do que possamos pedir ou pensar. Então, que os corações sejam abertos: e isto está acontecendo – a atitude foi mudada, de apatia para hostilidade, e da hostilidade para uma grande medida de receptividade. A seguir, e por último, para que os céus sejam abertos – quando isto for concedido, virá o tempo da colheita.112
É algo ímpar, a partir de nossa perspectiva, que Deus preparasse Lilias para missões, como Ele o fez. Ela sofria com um constante problema no coração desde que tinha vinte e nove anos. Ela assumia a responsabilidade pelo cuidado de sua irmã de ciente. E quando pensou em missões como uma possibilidade, já estava “muito velha”. Isto faz com que eu pergunte a mim mesma algumas coisas. Espero que você também pergunte a si mesma, em oração. Que pessoas devem se envolver num ministério, talvez em missões? Quais são os verdadeiros impedimentos para seguir o chamado a algum ministério? Quais são as quali cações requeridas para seguir o chamado de Deus? Que preparação este chamado requer? É possível que eu, ou minha lha, ou minha neta faça algo assim? Talvez sim. Talvez não. Isto não depende de mim. Quem é o meu Deus? Não é Ele o mesmo Deus que chamou Lilias Trotter, preparou-a, levou-a e sustentou-a na Argélia durante quarenta anos? Ele não é o mesmo ontem, hoje e para sempre? Contudo, como posso saber o que está reservado para o futuro? Como saberei o modo como me preparar? Não posso saber de fato. Lilias deve ter
ponderado alguns pensamentos, enquanto escrevia: Quantos de nós têm dito e cantado com todo o nosso coração “Vou a qualquer lugar com Jesus”, mas ao mesmo tempo não percebemos tudo o que isso signi ca para nós. De fato, em casa, e rodeado por tudo aquilo que um lar abrange, não podemos saber. Quando a provação vem, não podemos esquecer que “qualquer lugar” para os missionários signi ca algo diferente da vida na Inglaterra, e tomemos muito cuidado para não transformarmos em “tristeza de qualquer coisa” aquilo que o “qualquer lugar” nos trouxer. Para nós na Argélia isto pode signi car, uma vez ou outra, comida árabe. Fazemos alguma objeção a isto? E ratos, nos importamos com eles? E mosquitos, achamos que são terríveis? Em algumas regiões signi ca um contato próximo com a sujeira e com doenças repulsivas. No entanto, se Jesus está ali, do que temos de reclamar? “Qualquer lugar” signi ca viver entre pessoas obstinadas e insinceras, e lutar com uma língua estranha e difícil. E ainda, deixe-nos escrever a respeito de todas as nossas tristezas, das grandes e em sua maior parte muito pequenas, estas palavras transformadoras: “Com Jesus”. E, então, o próprio sopro do céus soprará sobre todo o nosso ser, e regozijaremos.113
Talvez o chamado de Deus para mim, agora, seja para que eu esteja aqui. Mas não presumo que sempre será assim. Nesse ínterim, desejo ser como Adeline Braithwaite e Lelie Duff, as duas amigas de Lilias, cujas orações determinadas e ardor de espírito inspiraram Lilias a pedir que Deus concedesse a ela o que estas duas amigas possuíam. O que Deus deu a ela foi uma comunhão com Ele que a levou a Argélia. Adeline e Lelie são exemplos – assim como Sarah Edwards a exortar Samuel Hopkins – de mulheres que falaram e oraram com delidade, sem compreender totalmente o impacto contínuo que Deus faria através delas. Adeline e Lelie foram responsáveis, em parte, por quarenta anos de ministério el na Argélia, apesar de que elas mesmas nem foram àquele campo missionário. Lilias expressou sua gratidão:
Por toda eternidade agradecerei a Deus pela chama silenciosa nos corações daquelas duas amigas e pelo que elas zeram por mim. Nenhuma delas jamais teve seu caminho aberto para um trabalho estrangeiro, mas a luz do Dia que está por vir mostrará o que Deus permitiu que zessem, in amando a outros com seu ardor.114
Lilias Trotter, nos padrões humanos, deveria ter sido uma artista famosa, ainda que frágil. Certamente, ela não era saudável o bastante para ser uma missionária num local de clima e cultura tão exigentes como a Argélia. Ainda assim, como a própria Lilias a rmou, seu Deus é o Deus do impossível. Há uma mulher, especial para mim, que esteve em minha mente enquanto eu lia sobre Lilias Trotter e a Argélia. Barbara era quase parte de minha família — a irmã do marido da irmã de meu marido — e tornou-se minha amiga num tempo de grande sofrimento. Ela passou sua fase adulta na North African Mission, servindo na Argélia pelo tempo que pôde, e com os árabes na França, até a sua morte. A vida física de Barbara foi mais fácil nos anos 60 e 70 do que foi para Lilias Trotter na passagem do último século. Mas o coração daquelas duas pessoas não era tão diferente. Por isso, dedico esta história de Lilias trotter na Argélia a Barbara Bowers.
NOTAS DO CAPÍTULO 2 56 As impressões de Alexander e Isabela Rockness são tiradas de Miriam Huffman
Rockness, A passion for the impossible: the life of Lilias Trotter. Wheaton, Illinois, Harold Shaw Publishers, 1999. capítulo 2. Ao escrever este capítulo, dependi, em grande parte, desta excelente biogra a, que inclui uma útil bibliogra a das obras de Lilias Trotter e
também de obras a seu respeito. Sou imensamente grata à Miriam Rockness por sua pesquisa, talento e interesse em Lilias Trotter. Uma edição mais recente está disponível (Grand Rapids: Discovery House Publishers, 2003). 57 Pigott, Blanche A. F. I, Lilias Trotter. London: Marshal, Morgan & Scott Ltd., nd).
P. 211. (Aparentemente o livro foi escrito em 1929; veja nota de rodapé, p. 32 do livro de Pigott.) Blanche Pigott foi amiga de Lilias Trotter por muito tempo. O livro é tirado primeiramente do diário e das cartas de Lilias. Blanche Pigott descreve sua primeira interação, após uma das conferências da Higher Life Conferences: Caminhamos pelo parque até a margem da oresta... Eu havia chegado à mudança de caminhos em minha vida, e estava muito perplexa, compreendendo que para seguir aquilo que eu sentia ser a vontade de Deus para mim signi caria desfazer um dos meus mais preciosos laços. Contei à Lilias minha di culdade e, em grande angústia, clamei: “O que eu devo fazer?” Sem hesitação, ela respondeu: “Você pode apenas obedecer a Deus”. 58 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 29. 59 Idem. p. 35. 60 Idem. p. 31. 61 Keswick continua sendo um ministério multi-facetado, mantendo seu alvo original
de aprofundar a vida espiritual de pessoas e igrejas. Seu escritório central ca na Inglaterra. 62 Pigott, Blanche. I, Lilias Trotter. p. 5. 63 Charles Spurgeon apresentou o conceito — seu livro tinha somente páginas pretas,
vermelhas e brancas, simbolizando a necessidade que o pecador tem da salvação, a provisão do sangue de Cristo para a expiação e a pureza resultante da redenção — num sermão, em 1866. Subseqüentemente, outras páginas foram acrescentadas por outros. Nove anos depois deste sermão de Spurgeon, Moody começou a usar O Livro sem Palavras. 64 Rockless, Miriam. A passion for the impossible. p. 104. 65 Pigott, Blanche. p. 9. 66 Rockness, Miriam. “Lilias Trotter: almost famous”. Victória, July 2001, p. 22. 67 Idem. p. 22.
68 Pigott, Blanche. p. 4. 69 Rockness, Miriam. “Almost famous”. P. 22. 70 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 68. 71 Pigott, Blanche. p. 9-10. 72 Idem. p. 11. 73 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 288-289. 74 Idem. p. 73. 75 Pigott, Blanche. p. 15. 76 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 75. 77 Pigott, Blanche. p. 84. 78 Idem. p.15. 79 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 79. 80 Idem. p. 80. 81 Idem. 82 Idem. p. 87. 83 Pigott, Blanche. p. 23. 84 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 89. 85 Pigott, Blanche. p. 32-33. 86 Idem. p. 21. 87 Stewart, I. R. Govan. e love that was stronger. London: Lutterworth Press, 1958.
p. 35. 88 Pigott, Blanche. P. 136.
89 Idem. p. 153. 90 Idem. p. 43. 91 Idem. p. 65. 92 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 110. 93 Idem. p. 110. 94 Pigott, Blanche. p. 44-45. 95 Idem. p. 85. 96 Idem. p. 97. 97 Idem. p. 77-78. 98 Idem. p. 100. 99 Idem. p. 216. 100 Idem. p. 89. 101 Idem. p. 239. 102 “Lilias reservou ‘trinta pequenos volumes de diários’. Onde estão eles?... Minhas
pesquisas me levaram... ao Loughborough, Inglaterra, e ao escritório do Arab World Ministries... Lá, quei admirada ao descobrir os arquivos dela: um rico acervo de livros, folhetos e, de modo muito atrativo, seus diários e relatos — museus em miniatura — iluminados por extraordinárias pinturas à guache e esboços fortes.” “As pinturas de Lilias, as quais Ruskin tão orgulhosamente patrocinou (suas primeiras obras, antes de ir à Argélia), estão guardadas na Sala de Impressões do Ashmolean Museum em Oxford.” Ambas são citações de Miriam Rockness, em “Almost famous”. p. 23, 24. 103 Padwick, Constance. Citado em Pigott. p. 244. 104 Idem. p. 173 (ênfase acrescentada). 105 Idem. p. 226.
106 Idem. p. 13-14. 107 Sinclair, Lisa M. “e legacy of Isabella Lilias Trotter”, International Bulletin of
Missionary Research. January 2001. p. 33. Citações tiradas de uma antiga biogra a, de Constance E. Padwick: I, Lilias Trotter of Algiers. Croydon: Watson, nd. 108 Pigott, Blanche. p. 103-104. 109 Recontado em Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 273. 110 Padwick, Constance. I, Lilias Trotter of Algiers. p. 18. 111 Pigott, Blanche. p. 149. 112 Idem. p. 195. 113 Rockness, Miriam. A passion for the impossible. p. 202. 114 Pigott, Blanche. p. 84.
Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a m de que ninguém se vanglorie na presença de Deus. Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santi cação, e redenção, para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. 1 Coríntios 1.25-31
Tudo posso naquele que me fortalece. Filipenses 4.13
Gladys Aylward FIEL NA HUMILDADE
N
a China, o século dezenove terminou com uma sangrenta agressão contra os estrangeiros e os chineses que se associavam a eles. Milhares de cristãos chineses e mais de 230 estrangeiros, muitos deles missionários, foram assassinados por membros de uma sociedade revolucionária chamada Fists of Righteous Harmony, apelidada de “Boxers”. Seu grito de guerra era: “Exterminem os estrangeiros, matem os demônios!”115 O mês de setembro de 1901 marcou o m da Rebelião Boxer. Cinco meses mais tarde, em 24 de fevereiro de 1902, no outro lado do globo terrestre, um bebê nascia em Edmonton, uma região ao norte de Londres. O senhor e a senhora omas Aylward chamaram sua primeira lha Gladys May. Nem os Aylwards, nem muitos de seus vizinhos de classe operária jamais se mudariam de onde tinham nascido. Eles certamente nunca imaginaram que algum dia Gladys moraria na Província Shanxi da China, que havia sido um lugar propício para a brutalidade dos Boxers. omas Aylward era carteiro e o encarregado do pastor na igreja St. Aldhelm’s Church. A senhora Aylward fazia o trabalho doméstico, e, algumas vezes, falava no hall da missão, contra os males da bebida. Os pais de Gladys levavam-na regularmente aos cultos e à escola bíblica dominical da igreja. Gladys não foi uma boa aluna, nem tampouco gostava de estudar; deixou os estudos aos quatorze anos, cando desquali cada para fazer qualquer trabalho.
Seus pais ajudaram-na a encontrar uma vaga num Penny Bazaar – um tipo de “loja de R$1,99” de nossos dias. Também trabalhou num pequeno mercado. Em seguida, trabalhou como babá e depois como arrumadeira em casas de classe alta. Estes trabalhos não pagavam bem, mas Gladys gozava a vida na cidade. À noite, ela freqüentava aulas de drama, porque realmente desejava tornar-se atriz. E nesse tempo tornou-se impaciente com as coisas da religião.
POR QUE NÃO VOCÊ? Mas Deus a preparava para algo mais. Em sua autobiogra a ela escreveu: Uma noite, por alguma razão que nunca poderei explicar, fui a uma reunião religiosa. Lá, pela primeira vez, compreendi que Deus tinha algo determinado para minha vida, e aceitei a Jesus Cristo como meu Salvador. Juntei-me ao Young Life Campaign, e em uma de suas revistas li um artigo sobre a China que causou uma maravilhosa impressão em mim. Compreender que milhões de chineses nunca tinham ouvido falar de Jesus Cristo era um pensamento surpreendente para mim, e senti que tinha de fazer algo a respeito disso.116
O ponto principal do artigo falava sobre a primeira vez que um piloto havia voado de Shanghai até Lanchow, bem no interior. Gladys provavelmente nunca ouvira falar de Lanchow e não tinha idéia de que algum dia visitaria aquele lugar e que moraria próximo dele. Ainda sem perceber que aquele artigo era designado a ela, tentou fazer com que seus amigos cristãos se interessassem em levar o evangelho à China. Mas nenhum deles se interessou. Ela aproximou-se de seu irmão, pensando que ele certamente iria, se ela prometesse auxiliá-lo. “Eu não!”, ele disse prontamente. “Isto é tarefa para uma solteirona. Por que você mesma não vai?”
“Tarefa para uma solteirona?” pensei, com raiva. Mas aquele golpe foi certeiro. Por
que estou tentando empurrar os outros para a China? Por que eu mesma não vou?117
Ela não era enfermeira ou professora, por isso não tinha certeza onde haveria um lugar para ela no campo missionário. Mas ela sabia que podia falar. Talvez Deus pudesse usar isso. Então, fez sua inscrição para o China Inland Mission.118 Em 12 dezembro de 1929, o Comitê de Candidatos daquela missão tomou nota de sua conversão ao cristianismo e de sua “força visível de caráter”. Embora não tivesse menção direta sobre seu inadequado grau de escolaridade e de suas pobres habilidades educacionais, estas limitações implicam na recomendação condicional do “teste de alguém para veri car se é capaz de estabelecer-se para estudo regular”.119 Na Casa de Treinamento de Mulheres, Gladys vivenciou uma nova experiência, permanecendo no andar de cima, com as outras mulheres que eram treinadas, e não no andar de baixo, com as servas da casa. O termo de três meses foi preenchido com trabalho de classe, estudo bíblico, devocionais particulares, ensino na escola dominical em bairros pouco civilizados, e ouvir relatórios sobre a China e as di culdades de chegar e viver lá. Gladys se saiu bem nas questões práticas, mas parecia não aprender e entender as conferências e os livros. No m daquele período, o comitê julgou que ela não estava quali cada e que sua base educacional era muito limitada. Também se preocuparam que a língua chinesa seria muito difícil para ela, especialmente na idade em que estava – quase trinta anos. Gladys estava atônita. Tinha muita certeza de que Deus a queria na China.
TREINAMENTO DE MISSÕES PERSONALIZADO E Deus queria. Mas Ele planejava enviá-la de um modo diferente, um modo que se adequasse a ela. Antes de enviá-la, Deus a colocou em sua escola de
aprendizado particular de candidatos missionários que havia preparado especi camente para ela. Algumas das matérias eram similares às que ela havia recebido na escola de candidatas, mas a sala de aula era a própria vida. Talvez suas primeiras lições tenham sido na área de oração, mesmo enquanto ainda estava lutando no Treinamento de Candidatas da Missão para o Interior da China (MIC). No m de seu tempo ali, ela disse ao comitê: “Desculpemme por não ter sido capaz de aprender muito no colégio, mas aprendi verdadeiramente a orar, a orar como nunca orei antes, e isto é algo pelo que sempre serei grata”.120 Quando o comitê de missões pediu que Gladys não retornasse para treinamento adicional, ela questionou a si mesma se Deus havia fechado a porta para a China. Especialmente quando um dos executivos da missão perguntou a ela sobre seus planos, e ofereceu-lhe um trabalho em Bristol para auxiliar o Doutor Fisher e sua esposa, que recentemente haviam se aposentado da China. Ela aceitou porque a porta que ela havia planejado para o futuro estava fechada naquele momento. Contudo, trabalhar para os Fishers parecia um passo para trás. Isso a colocou de volta ao serviço doméstico, que não era o que sonhava. Mas neste cenário, Deus a colocava em meio a mentores espirituais mais velhos, mais sábios. Mais tarde, ela disse: Aprendi muitas lições com eles; sua fé irrestrita em Deus foi uma revelação para mim. Nunca havia conhecido ninguém que con asse em Deus tão completamente, tão cegamente e com tanta obediência. Eles conheciam a Deus como amigo, não como alguém distante, e viviam com Ele a cada dia. O Doutor Fisher e sua esposa me contaram histórias de suas próprias vidas alémmar. “Deus nunca lhe deixa. Ele lhe envia, guia e providencia para você. Talvez Ele não responda suas orações como você gostaria que fossem respondidas, mas Ele as responde.”
A verdadeira indagação de Gladys era a seguinte: O não que recebeu da Missão para o Interior da China signi cava também um não da parte de Deus?
Ou isto era simplesmente o meio de Deus deixá-la livre para um outro plano? “Como posso saber se Ele quer que eu vá para a China ou que permaneça em Bristol?” Eu me questionava. “Ele lhe mostrará a seu próprio tempo. Continue vigiando e orando.”121
Aquele não parecia um conselho muito signi cativo, mas era o que ela precisava – uma exortação para que vigiasse e orasse. Se a sua habilidade para falar seria seu principal recurso num desa ante campo missionário, então, ela precisaria de experiência ministerial. Mesmo antes de ter feito sua inscrição para a MIC, Deus lhe dera oportunidades para evangelizar. As atas do Comitê de Candidatas da MIC observam que “ela se tornou uma testemunha consistente em seu local de trabalho e, que trabalhou ao ar livre e em reuniões de grupos jovens”.122 Mais tarde, quando deixou os Fishers, mudou-se para o País de Gales para trabalhar como “irmã de uma missão de resgate” em Swansea, uma cidade portuária. Toda noite ela descia aos estaleiros, tentando persuadir mulheres a irem para casa ou a irem junto com ela para a sede da missão. Nos bares toscos à beira-mar, ela enfrentaria marinheiros bêbados, se fosse necessário, para salvar as moças que estavam com eles. E, então, levava-as para a estalagem da missão.
UMA EMPREGADA DOMÉSTICA QUE TINHA UM CHAMADO Esse tipo de ministério desa ador ajudou-a a compreender que precisava conhecer mais a fundo a Bíblia, se Deus a levasse algum dia para a China. Começou então a ler desde a primeira página. Seu estilo de vida e de conversação era sincero, e era desse modo que ela entendia o que lia. Quando aprendeu sobre o modo como Deus guiou Abraão a um lugar estranho e sobre como Moisés desa ou um povo difícil a seguir a Deus, ela pensou: “Se eu for
para a China terei de me dispor a mudar e deixar todo e qualquer mínimo conforto ou segurança que eu tenha”.123 E ela não esperou. Saiu de Swansea e mudou-se para Londres, a m de trabalhar e juntar dinheiro, para pagar os gastos que teria para ir à China. Ainda perplexa com o chamado de Deus em sua vida, sua leitura bíblica trouxe-lhe a história de Neemias. Esta história era de especial interesse para Gladys, uma criada, porque Neemias estava a serviço também, como um tipo de mordomo. Ele teve de obedecer ao seu empregador, do mesmo modo que Gladys. Mas aquilo não impediu Neemias de ir aonde Deus o enviara. Quase como que uma voz soando no lugar em que estava, ela ouviu: “Gladys Aylward, o Deus de Neemias é o seu Deus?” “Sim, é claro.” “Então faça o que Neemias fez, e vá.” “Mas eu não sou Neemias.” “Não, mas eu sou o Deus dele.” “Isso cou estabelecido”, ela disse mais tarde. “Cri que aquelas eram ordens para
marchar.”124
Mais tarde, em outro momento crucial de sua vida, bem no interior da China, Deus usaria palavras semelhantes para assegurar Gladys de seu eterno poder. Na ocasião seguinte, as palavras do Senhor seriam ditas a ela através de uma criança, quando Gladys havia perdido de vista a presença de Deus. Era animador receber ordens para marchar. Mas viajar para a China era caro. Gladys continuava pensando em um modo de chegar lá, mas cava desanimada. Ela não teria o endosso ou a recomendação da diretoria de uma missão; portanto, se ela fosse, teria de ir por sua própria iniciativa e provavelmente com seu próprio dinheiro. Visto que Gladys Aylward não tinha certeza se iria para a China ou onde caria naquele país, o que faria ali, e muito menos como pagaria por isso, ela estava muito consciente de que sua provisão
viria exclusivamente de Deus. Se Deus a estava chamando, Ele proveria suas necessidades. É irônico entender que sua nova posição de criada era na casa do senhor Francis Younghusband, um aventureiro legendário que havia explorado terras remotas da China e do Tibet. É duvidoso que ele tenha percebido haver uma nova serviçal em sua casa. E nem ele nem Gladys teriam imaginado que uma criada passaria por aventuras na China que rivalizariam às do senhor Francis.
CONFIRMAÇÃO Quando ela chegou à residência Younghusband, subiu para o seu quarto para acomodar-se. Ao desfazer as malas, espalhou sobre a cama todos os seus recursos. Eles constavam de uma Bíblia, uma cópia de Luz Diária,125 e três moedas que juntas somavam a quantia de dois pence e meio pêni, o que era todo o dinheiro que ela tinha e que era tão pouco quanto parecia. “Oh Deus”, ela orou, “aqui está tudo que tenho. Se Tu me quiseres, vou para China com isto”.126 Como uma resposta à sua oração, sua patroa a chamou no andar de baixo. Ela queria pagar o valor que Gladys havia gasto para chegar até lá. Gladys retornou ao seu quarto segurando rmemente três moedas equivalentes a 36 pence. Em um momento, sem que houvesse qualquer esforço da parte dela, Deus havia aumentado suas economias mais do que mil por cento.127 Para Gladys isto pareceu uma promessa de Deus de que Ele providenciaria todos os seus gastos para ir à China. Assim, na primeira oportunidade, ela foi até a agência de viagens para começar a efetuar pagamentos de sua passagem de navio para a China. O agente de viagem não estava acreditando. Uma mulher como Gladys nunca teria condições de pagar 90 libras pela passagem. Ele pensou que ela era louca. De alguma forma, ele deixou escapar que a jornada através da Europa e da Sibéria até a China, por trem, custava mais da metade daquele valor. Bem, é claro, Gladys agora sabia que viajaria de trem. Ela recusou-se a ouvir os argumentos dele de que era impossível por causa da
guerra entre a Rússia e a China. Sua “surdez” persistente venceu, e ele concordou com relutância em aceitar depósitos regulares, até que o valor total fosse pago. O primeiro modo como Deus providenciou sua passagem foi por meio do próprio trabalho árduo de Gladys. Depois de seus longos dias como criada, ela fazia um trabalho extra durante a noite, ajudando a servir em festas ou no que mais ela encontrasse para fazer. Ela economizava tudo que ganhava, e usava as mesmas roupas velhas muitas e muitas vezes. Deus providenciou recursos por meios inesperados, através da generosidade de outros. Um dia, a patroa de Gladys planejava ir a uma festa ao ar livre com uma amiga, mas esta amiga cou doente. Então, ela convidou Gladys para acompanhá-la. Gladys cou extremamente alegre, mas não possuía roupas apropriadas para um evento como aquele. Sua patroa emprestou-lhe algumas de suas próprias roupas. Depois, quando Gladys foi devolvê-las, aquela senhora pediu que casse com elas. Aquelas roupas eram de uma qualidade muito superior a qualquer coisa que Gladys jamais compraria para si mesma, e elas lhe serviram bem por bastante tempo. Outra inesperada providência foi que Gladys depositou todo o valor de sua passagem, de pouquinho a pouquinho, em menos de um ano, embora ela tenha esperado que isso fosse levar três anos completos. Isto signi cava que ela chegaria à China enquanto tinha ainda trinta anos, e não trinta e dois. Naquele tempo, isto parecia importante para ela. Deus tinha lhe concedido dois anos de “bônus”.
UMA MULHER TRANSPARENTE Que tipo de pessoa era esta candidata a missionária que havia passado pela escola personalizada de Deus para candidatas? Que ingredientes foram misturados para fazer a “Gladys Aylward”? Ela não era estudiosa, mas estudava pessoas. Conhecia as necessidades dos pobres de Swansea, e com freqüência
deu-lhes suas próprias roupas. Por outro lado, ela observava a família e os convidados das casas re nadas onde trabalhou, aprendendo como eles falavam e sobre o que conversavam. Ainda assim, ela permaneceu uma pessoa franca, sem sutilezas e simples. Phyllis ompson escreveu que seu comportamento não era o tipo que tentava causar impressão, ser aceita ou ganhar amigos. ompson disse que mais tarde, quando vivia na China, Gladys “sorria quando havia algo para sorrir, olhava xamente quando cava indignada, franzia as sobrancelhas quando cava confusa (o que ocorria sempre em conexão com as rami cações da aritmética) e ria como uma criança quando estava feliz. Ela era, de fato, tão transparente quanto a água”.128 Todavia, sua aspereza deve ter sido temperada com encanto. Que mulher naqueles dias consideraria uma empregada doméstica como sua igual – não como uma serva – como sua companhia na sociedade? No entanto, havia algo em Gladys que fez com que sua patroa, apesar da forte estrati cação social naquela época, na Inglaterra, a levasse como convidada a uma festa da alta sociedade, num jardim de uma residência particular. Gladys era simples e franca, ainda assim enfrentava o desa o de caminhar pelas ruas de Swansea no meio da noite, arriscando-se a encontrar homens embriagados que poderiam confundi-la com uma prostituta. Por outro lado, era reservada ao falar de si mesma. Muito tempo mais tarde, em 1949, quando Alan Burgess tentava escrever a história da vida de Gladys, ela não quis ser entrevistada. Dizia que jamais tinha acontecido com ela algo que fosse tão importante que merecesse ser escrito. Ele acreditou pouco nela. Uma missionária que falava com as pessoas a respeito de Deus – que história é essa? Isto é exatamente o que os missionários devem fazer. Ele persistiu em suas pesquisas durante meses, e ouviu história após história a respeito de pregação e de cidadelas, tal como ele havia esperado. Até que, um dia, ela casualmente mencionou um atraso por um problema na prisão. Prisão! Isto era algo fora do
comum. Frase por frase, evento após evento, Burgess extraiu dela a história de Gladys Aylward que, sozinha, conteve um tumulto em uma prisão. Mas não totalmente sozinha. Ela teria dito a qualquer um que tudo o que fez foi por meio dAquele que a fortalece (Filipenses 4.13). Depois de explicar como Gladys Aylward era transparente como a água, Phyllis ompson (que escreveu uma biogra a de Gladys Aylward intitulada e Transparent Woman) descreve a teologia dela. Sua teologia era também clara e simples. Existia um Deus vivo, e ela era sua serva. Existia uma criatura repugnante chamada Satanás, e ela era sua inimiga. Existia uma alma imortal em cada ser humano, que estava caminhando para a eternidade no céu ou para o inferno. Sua tarefa nesta vida era convencer as pessoas de que se elas colocassem sua con ança em Jesus Cristo, seu Senhor, que havia morrido na cruz por elas, então, elas iriam para o céu. E visto que Jesus Cristo tinha ressuscitado, e que havia prometido estar com aqueles que con assem nEle e O obedecessem, mesmo que a estrada para o céu fosse envolta em provações e tentações, eles nada teriam de temer, pois Ele nunca os deixaria.129
Ela era uma mulher de cabelos escuros, que falava o dialeto das regiões pobres de Londres com voz aguda; media apenas 1 metro e 45 centímetros. E ainda assim causaria um enorme impacto na Província Shanxi da China.
FAMÍLIA E AMIGOS Seus pais devem ter cado estupefatos com o constante progresso de sua lha, que era uma serviçal, em direção ao impensável. Logo depois que Gladys começara a olhar em direção à China e falava quase exclusivamente sobre isso, seu pai aparentemente ouviu demais, e um dia falou, rispidamente: “Vá em frente! Fale sobre ir para a China – fale, fale! Isso é tudo o que você pode fazer – apenas falar!”130 Gladys aceitou aquele desa o, e começou a dar passos
verdadeiros em direção à China. Talvez não tenha ocorrido a seu pai que alguma coisa poderia resultar daquela conversa. A mãe de Gladys foi indiretamente responsável por encontrar um lugar na China para Gladys. Quando Gladys teve certeza de que Deus a estava chamando para ir à China, uma pergunta permanecia: Em que lugar? Onde ela deveria ir quando chegasse ao país? A China é enorme. Quem ela encontraria? Havia alguém lá com quem pudesse trabalhar, alguém que pudesse ajudá-la a começar sua vida naquele lugar? Para solucionar estes problemas, Deus levou Gladys de volta à casa de seus pais. Tinha contraído pneumonia por ter passado noites como “irmã resgatadora” no cais, exposta ao ar úmido e frio. Então foi para casa, a m de recuperar-se. Em algum momento desses dias, Gladys foi com sua mãe a uma reunião dos Metodistas Primitivos, para orar por fortalecimento e cura. Naquela reunião, ela ouviu sobre Jeannie Lawson – uma anciã escocesa, viúva, na China, que estava orando por uma jovem mulher que fosse até lá para auxiliá-la. Um biógrafo escreve: Deus a impediu de melhorar para que ela fosse à reunião naquela noite, a m de orar por sua saúde. Deus queria que ela ouvisse a respeito da senhora Lawson. Ela estava certa o tempo todo. O Senhor queria que ela fosse para a China e tudo que havia acontecido foi para levá-la a esta reunião na Igreja Wood Green.131
Deus usou os próximos três anos para mudar as suposições do senhor e da senhora Aylward sobre o que uma menina de seu bairro poderia fazer e quão longe ela poderia ir. Gladys descobriu que sua família e seus amigos seriam grande apoio para o seu chamado. Quando Gladys terminou de pagar sua passagem, e estava pronta para viajar, disse: “Meu pai insistiu que eu fosse para casa por alguns dias, e todos ali zeram o melhor que podiam por mim. Ivy Benson, uma amiga que também era empregada doméstica, deu-me uma mala que eu precisava muito, embora eu não tivesse notado isso até mais tarde; nesta
época também descobri que o presente anônimo veio dela. Minha mãe costurou bolsos secretos em meu casaco e em meu velho corpete [roupa de baixo] para que eu colocasse minhas passagens, passaporte, Bíblia, caneta, e dois travelers’ checks, cada um no valor de uma libra. Outra amiga deu-me um velho casaco de pele, e a família me equipou com roupas quentes”.132 Naqueles mínimos presentes, vemos a família e os amigos envolvendo-a com todo o conforto material que podiam oferecer-lhe. Estavam longe de serem ricos, aquilo não era muito, mas era tudo o que podiam dar a ela. Cada item simbolizava o amor que tinham por ela. Aqueles itens eram necessários. De fato, aquele casaco de pele salvaria sua vida poucas semanas depois. Mais tarde ela escreveu, cheia de gratidão: Como eles foram bons comigo. Agora que olho para trás, posso compreender melhor. Que grande sacrifício meus pais estavam fazendo, ao deixarem sua lha viajar sozinha para um lugar a milhares de quilômetros de distância, sabendo bem que havia toda a probabilidade de que nunca mais voltassem a vê-la. Como tenho de agradecer-lhes, pois não tentaram me segurar.133
De fato, eles a veriam novamente, mas não antes que se passassem dezessete anos. Outros missionários daquele tempo tiravam licença, apesar de não o fazerem com tanta freqüência como hoje. Contudo, Gladys partiu sem esperança de que algum dia voltaria à Londres. Ela tinha dinheiro su ciente apenas para chegar lá, e nada mais. Se Deus a estava chamando para a China, ela ia sem pensar em retorno. Ela via a China como seu lar permanente.
EM MEIO AO DESCONHECIDO Em 15 de outubro de 1932, Gladys saiu de Londres. Sua mala estava preenchida com comida para toda a sua viagem, pois ela não tinha dinheiro para pagar refeições no caminho. Pendurados em sua mala estavam um pedaço
de material para ser usado como colchonete, uma chaleira, uma panela, um pequeno fogareiro para camping, e um cobertor, entrouxando algumas roupas. Esta mulher franzina, simples e inculta nunca tinha viajado para fora de seu país nem falado outra língua. Agora, se estabeleceria sozinha em um mundo totalmente novo, com uma vida diferente, podendo apenas imaginar o que haveria adiante. Mas ela sabia que Deus a preparara para isto e que Ele ia junto com ela e adiante dela. Entre Londres e e Hague, um casal de holandeses que estava no trem ouviu que ela ia para a China como missionária. Compraram-lhe um chocolate quente e biscoitos, uma doce bênção para uma mulher sem dinheiro. Prometeram orar por ela todas as noites, às 21 horas, enquanto vivessem, e que mais tarde a encontrariam no céu. Isto foi uma riqueza maior e mais doce do que o próprio chocolate. Era como o último toque dos dedos estendidos de seu lar, acenando com um adeus e dizendo: “Eu te amo”. Quando o trem chegou a e Hague, o casal deixou-a, abençoando-a e deixando-lhe uma nota de uma libra. Esta nota de uma libra mais tarde salvaria sua vida. Durante o caminho, Gladys podia ver a proteção e a provisão de Deus para suas necessidades. Em Berlim, uma menina que falava um pouco de inglês a ajudou a atravessar a alfândega e permitiu-lhe dormir em sua casa naquela noite. Viajando por Moscou, um polonês que não entendia inglês deu-lhe uma maçã e um selo, e postou-lhe uma carta. Em dez dias de viagem, um homem que falava um pouco de inglês viajava pela Rússia no trem. Ele serviu como um mensageiro providencial de Deus, quando avisou-a de que não havia trem para Harbin, onde ela esperava trocar de trem. Com este aviso, ela pôde procurar uma rota alternativa enquanto viajava. Ao passar por Chita, bem ao norte da Rússia, o trem parou à margem de uma zona de guerra. O trem não avançaria mais. Gladys não tinha outro lugar para ir, exceto voltar para o lugar de onde tinha saído, e nenhum modo de fazêlo, a não ser a pé, arrastando sua desajeitada bagagem entrouxada, sob a neve
pesada e o frio rigoroso. Finalmente, quando estava exausta, deitou-se e dormiu sobre sua mala. Seu “novo” casaco de pele, o presente de uma amiga, serviu-lhe de cobertor. Ela cou surpresa em ouvir o que pensou ser cães latindo e uivando ao derredor. Anos mais tarde, quando soube que na verdade eram lobos, ela reconheceu que a provisão bondosa de Deus para aquela noite foi a ignorância – se ela soubesse o que era, não teria conseguido dormir em paz. Ter acordado na manhã seguinte também foi outra dádiva. De acordo com as leis da natureza, ela provavelmente teria morrido de frio por exposição à neve, enquanto dormia ao ar livre no rigoroso inverno da Rússia. Depois de outro longo dia de viagem, ela chegou à Chita, o lugar de onde tinha saído muitos dias antes. Ela foi presa imediatamente em sua chegada. “Seu visto diz que você saiu de Chita. Por que está aqui?” Os o ciais locais lhe exigiam uma resposta. Ela não podia explicar, pois não falava russo. Na confusão, uma foto caiu de sua Bíblia. Era uma foto de seu irmão com o uniforme de músico de uma banda do exército britânico. Para os interrogadores de Gladys, ele pareceu ser uma pessoa muito importante. Aparentemente eles não queriam se arriscar a ofender um homem como aquele, portanto deram a Gladys um novo visto e uma passagem, e a enviaram em seu caminho. Na próxima parada do trem, Deus providenciou inglês novamente, quando ela precisou. Ela não sabia aonde ir, e não sabia como descobrir. Através da janela do trem ela avistou uma pessoa que não parecia russa. E gritou: “Como posso chegar a Harbin?” O estranho transeunte tinha este pedaço do itinerário de Deus para ela: “Vá para Vladivostok”. Em Vladivostok, o recepcionista do hotel pegou seu passaporte. Não o devolveu, mas o guardou na mesa dele, falando como se ela fosse car na Rússia. Quando Gladys saiu do balcão, uma moça que ela nunca tinha visto foi caminhando junto dela e cochichando em seu ouvido. Ela avisou a Gladys que saísse dali imediatamente. “Pegue seu passaporte de volta. Esta noite um senhor idoso baterá à sua porta. Vá com ele.”
Quem era aquela moça? Poderia Gladys con ar nela? Sim, ela deveria sair de Vladivostok o mais breve possível. Contudo, seria sábio sair à noite com um homem estranho? Além disso, como poderia reaver seu passaporte da “guarda” da administração do hotel? Naquela noite, o recepcionista do hotel foi até a porta do apartamento de Gladys e começou a mover o passaporte para cima e para baixo, fora do alcance dela, atormentando-a. Gladys deu um salto e conseguiu pegá-lo. Então, ele entrou no quarto, resmungando: “Você não pode me parar”. Não estava claro o que ele realmente queria: Gladys ou o passaporte. Ela se defendeu: “Deus está aqui. Toque em mim e você verá. Ele colocou uma barreira entre você e eu. Vá!” E o homem se foi. Mais tarde, naquela noite, o velho bateu na porta dela, e ela o seguiu. Ele a levou até a moça que lhe tinha dado o aviso mais cedo, naquele dia. A moça levou-a até um navio japonês. Gladys não tinha dinheiro, mas se Deus queria que ela escapasse naquele navio, Ele providenciaria o caminho. Por m, ela de alguma forma persuadiu os o ciais do navio a aceitarem-na como passageira. Enquanto ela corria para o navio, alguns russos pegaram-na e tentaram impedi-la de embarcar. No meio do tumulto, ela se lembrou da nota de uma libra que os amigos holandeses lhe tinham dado no trem. Ela conseguiu tirá-la e começou a abaná-la diante deles. Enquanto seus perseguidores se amontoavam em busca do dinheiro, ela correu para dentro do navio. Deus usou a moeda britânica – que não seria aproveitada fora da Inglaterra – para salvá-la. Gladys Aylward nunca tinha ouvido a frase “choque cultural”, porque ainda não tinha sido inventada. Mas ela conhecia esta realidade. Hoje em dia os candidatos à missão passam por treinamentos, a m de prepará-los para a nova vida numa localidade estranha. Gladys não teve esta oportunidade por parte de nenhuma diretoria missionária, mas Deus parece ter usado sua viagem transiberiana como um campo particular de treinamento.
Gladys estava realmente chocada com o que viu na Rússia – com as condições das pessoas e pelo modo como fora tratada. Depois de seu escape de Vladivostok, à meia noite, descobriu que seu passaporte havia sido alterado por alguém na Rússia. No espaço onde estava escrito sua ocupação como “missionária”, a palavra havia sido rasurada e mudada para “operária”. Os operários eram extremamente necessários na Rússia, e o regime não hesitava em levar à força pessoas que pudessem ser úteis para seus propósitos. Alguém tinha feito um sério esforço para mantê-la na Rússia. Se isto tivesse acontecido, nunca mais teriam ouvido falar dela. Segura no navio japonês, um pequeno acontecimento diário deve ter dado à Gladys pensamentos a respeito de sua vida futura. O arroz ocupava grande parte da dieta diária dos japoneses, bem como em grande parte da China. Mas Gladys achava que o arroz era muito difícil para ser engolido. O que isto signi caria para ela? Ela não sabia ainda que Deus estava reservando uma pequena doce providência para ela. Ele a estava levando para a Província Shanxi, onde o mercado principal não era o arroz, mas o painço e o talharim.
ENFIM: CHINA O navio atracou no Japão, e depois de alguns dias Gladys navegou de Kobe até Tientsin (atual Tienjin). Gladys Aylward, a antiga empregada doméstica, estava pisando em solo chinês! Não sabemos com precisão o que ela sentiu, mas uma coisa sabemos: ela olhou ao redor e percebeu que Deus a estava preparando para esse dia desde antes de seu nascimento. Muitos anos depois, Gladys contou a Elizabeth Elliot duas tristezas que teve na infância. Uma foi que todas as outras meninas tinham cachos dourados, ao passo que ela tinha cabelos pretos. A outra tristeza foi que todos os outros continuavam crescendo, enquanto ela parou em 1 metro e 45 centímetros. Agora em Tientsin, ela estava em meio ao povo para o
qual Deus a preparou. Todos tinham cabelos pretos e nenhum deles tinha crescido muito.134 A senhora Jeannie Lawson enviou o senhor Lu a Tientsin para encontrar-se com Gladys e acompanhá-la até Yangcheng. Ela ainda teria dez dias de viagem adiante, antes que chegasse em sua nova casa. Passou por Pequim (Beijing), viajou pelo país de trem, ônibus e charrete, atravessou três montanhas e numerosos rios. Em algumas cidades havia postos de missões onde eles podiam parar para descansar e revigorar-se. Em Tsechow, a última cidade antes de Yangcheng, a senhora Smith supriu-lhe com calças e casacos típicos das mulheres campestres. “Todos nós, missionários, vestimos roupas chinesas”, disse a senhora Smith. “Queremos nos parecer o máximo possível com as chinesas – e, de qualquer forma, as roupas delas são muito mais confortáveis do que as nossas!”135 Então, Gladys nalmente conseguiu trocar o vestido laranja que ela vestia desde que saíra de Londres, cinco semanas e meia antes. Gladys escreveu: “Quantas coisas tenho visto! O quanto tenho aprendido nestas semanas! E acima de tudo, como tenho adorado ao meu Deus!” Em Yangcheng, Gladys nalmente conheceu a senhora Jeannie Lawson. A senhora Lawson passara a maior parte de sua vida na China, primeiro com seu marido, e, então, como viúva. Recentemente, ela havia comprado uma hospedaria em mau estado, à beira da estrada. Seu sonho era que a Hospedaria das Oito Venturas se tornasse um local regular para pousada noturna de guias de mula, que passavam por Yangcheng, naquela estrada – a única estrada – de Hopeh para Honan. A cada noite, quando os guias de mula tinham se alimentado e descansavam, ela lhes contava histórias da Bíblia.
CHAMADA ÀS MULAS? A Rebelião Boxer tinha ocorrido trinta anos antes, mas a China rural ainda suspeitava de in uências externas. Seria um desa o fazer com que dirigentes de mulas cassem num local administrado por “demônios estrangeiros”. Isto se
tornou a primeira tarefa missionária de Gladys – persuadir aos guias de mula a pararem na Hospedaria das Oito Venturas. Todas as noites, ela cava de pé ao lado de fora do portão, gritando em chinês as palavras que o cozinheiro da senhora Lawson lhe havia ensinado, chamando as multidões em voz alta: “Aqui não há moscas! Aqui não há insetos! Bom, bom, bom! Venham, venham, venham!” E, quando os guias de mulas não iam ao portão da hospedaria, Gladys tinha de apanhar a rédea da primeira mula e puxá-la para dentro, pela própria força. Onde quer que a mula da frente fosse, as outras a seguiam. E onde as mulas iam, os guias de mula seguiam, embora sem disposição. Uma vez que as mulas se ajuntavam no pátio, era muito difícil pensar em fazer aquele trem de criaturas teimosas dar meia volta e sair. Ninguém ia a lugar nenhum até o amanhecer. Visto que Jeannie Lawson e o cozinheiro podiam falar chinês, eles eram os que serviam refeição aos homens e, então, assentavam-se ao redor da lareira para contar histórias da Escritura. Por causa disso, Gladys tinha de car do lado de fora, no frio, com as mulas. Alguém tinha de limpar a lama do dia e alimentar os animais. Isto proveu um incentivo inesperado para aprender chinês, a língua que parecia ser muito difícil para ela. Quando não estava cuidando das mulas, estava no vilarejo, ouvindo e tentando falar. Ela escreveu: “A língua é muito difícil, mas sou boa em mímica e tenho conseguido pegar um pouco, mesmo sem estudar”.136 Ao nal de apenas um ano, Gladys podia se fazer entender em chinês, e seu repertório de histórias crescia. Então, poderia parecer fácil para alguém apontar o dedo à direção da missão que a enviou de volta e dizer: “Vejam como vocês estavam errados!” Mas a própria Gladys disse mais tarde: Olhando para trás, não posso culpá-los. Eu sei, ainda que ninguém mais saiba, quão estúpida eu devo ter parecido para eles. O fato de que aprendi não somente a falar, como também a ler e escrever em chinês, como uma nativa, nos últimos anos, para mim é um dos maiores milagres de Deus.137
Jeannie e Gladys tiveram um relacionamento curto, porém tempestuoso. Elas tinham pouco em comum, exceto o amor a Deus e a certeza de que deviam estar na China. Todavia, quando a senhora Lawson estava morrendo, após somente um ano juntas, Gladys cuidou dela, e a senhora Lawson passou seu manto para ela: “Deus chamou você para estar ao meu lado, Gladys, em resposta às minhas orações. Ele deseja que você dê continuidade ao meu trabalho. Ele proverá. Ele a protegerá e abençoará”.138 De fato, Deus já havia abençoado e provido. Ele tinha providenciado a senhora Lawson, que foi a razão de Gladys ter viajado para a China. Ele havia providenciado tempo su ciente – tempo de aprendizado – com a senhora Lawson, a m de preparar Gladys para dar continuidade ao seu trabalho. Gladys era uma jovem mulher nos padrões chineses, a única ocidental naquela parte da China. Ela falava o chinês que aprendera com os guias de mula e as pessoas no mercado. Ela continuou na hospedaria, liderava cultos regularmente, visitava casas, e ofereceu os cuidados médicos que pôde. À medida que seu chinês melhorava, ela saía para falar nas regiões de comércio, junto com um evangelista chinês. Durante esses primeiros meses, ela permaneceu próximo à sua nova cidade, onde residia, Yangcheng. Mas, à medida em que ia se sentindo mais em casa, Deus usava meios inesperados para ampliar seu campo de ação.
INSPECIONANDO PÉS Quando Gladys chegou à China, em 1932, a redução dos pés das meninas deveria ser uma coisa do passado. Enfaixar os pés era um processo no qual os dedos das meninas pequenas eram dobrados para baixo e enfaixados com bastante pressão, para que os pés fossem mantidos no menor tamanho possível, talvez com oito ou dez centímetros de comprimento.139 Isso era considerado atraente, e um símbolo de que a família estava à procura de um bom marido.
Quando Sun Yat-sen estabeleceu a República Chinesa, em 1912, levando ao m a dinastia imperial na China, uma das primeiras ações do novo senado foi banir a redução dos pés. Contudo, a China é um país imenso, um lugar desa ador para se fazer cumprir novas leis, especialmente em um regime novo e incerto. E o que ainda era mais importante, uma tradição rmada por um milênio, não poderia acabar tão facilmente. Mesmo hoje, nos primeiros anos do século XXI, ainda existem senhoras idosas na China que se apóiam sobre bengalas ou sobre o braço de outros membros da família porque seus pés reduzidos a oito ou dez centímetros não lhes dão suporte su ciente. Deus usou os pés das chinesas para ampliar ainda mais o acesso de Gladys a outras áreas da China. Mais uma vez, o governo havia decretado que a redução de pés deveria ser banida, e colocou esta responsabilidade sobre os mandarins, os representantes locais do governo. O mandarim aproximou-se de Gladys e ordenou que ela encontrasse um inspetor de pés. Por ela não ter encontrado nenhum, ele a elegeu para a posição. O mandarim disse que ela seria um bom exemplo para as mulheres que tinham reduzido os pés, visto que ela tinha pés grandes (tamanho 32!). Ele providenciaria uma mula para transporte e alguns soldados para acompanhá-la. Gladys viu a mão de Deus nisto. Depois da morte da senhora Lawson, ela vinha enfrentando questões difíceis. Como ela se sustentaria? Não havia entradas nanceiras su cientes na hospedaria. Ela pensou que talvez Deus quisesse que ela levasse o evangelho além dos campos, mas ela devia fazer isso? Não era seguro viajar para além das montanhas. E como viajaria? Não conseguiria ir muito longe a pé, e não tinha como pagar por nenhum transporte. O mandarim estava lhe oferecendo permissão o cial para ir aonde ela desejasse, um sustento xo, transporte e proteção, enquanto viajava. Ela escreveu, mais tarde:
Ao olhar para trás, co admirada do modo como Deus abriu oportunidades para que eu O servisse. Eu ansiei ir para a China. No entanto, jamais, em meus sonhos, imaginei que Deus governaria as coisas de uma maneira tal que me daria entrada em toda casa do vilarejo [não apenas em cada vilarejo]; que tivesse autoridade para banir um costume cruel, horrível; que tivesse a proteção do governo; e que fosse paga para pregar o evangelho de Jesus Cristo enquanto inspecionava pés!140
Ela sabia que se fosse capaz de ir às vilas mais remotas, certamente levaria as boas-novas de Jesus. Sendo assim, ela não perguntou, mas disse ao mandarim que usaria a oportunidade para pregar o evangelho. Ele respondeu: “Do ponto de vista deste decreto, o seu ensino é bom, porque se uma mulher se tornar crente, ela não mais enfaixará seus pés”.141 Nos últimos anos, ela descreveu como eram aquelas visitas: Quando chegávamos a um vilarejo, os soldados convocavam cada pessoa a um espaço aberto e repetiam as instruções do Mandarim a respeito da redução de pés... Então, eu começava a falar com as pessoas. Contava-lhes uma história. Fazia com que todos rissem e cassem alegres e ensinava-lhes um corinho, após ter explicado o signi cado das palavras. Então, eu falava sobre os pés. “Vocês sabem que tanto os pés dos meninos quanto das meninas são iguais. Se Deus quisesse que as meninas tivessem pés pequenos e de nhados, Ele os teria feito assim. E agora o governo diz que quem enfaixar os pés de suas crianças para reduzilos, será punido.” Já era tarde demais para as mulheres mais velhas [se elas tentassem desenfaixar seus pés teriam uma dor excruciante, e elas não conseguiriam andar, de jeito nenhum, mas eu z com que as meninas desenfaixassem seus pés e ordenei-lhes que calçassem sapatos no tamanho certo para elas. A princípio elas odiaram a idéia e pensaram que isto arruinaria suas chances de arrumarem um marido. Mas os soldados lhes disseram: “Ou vocês desenfaixam os pés ou vão para a prisão. Faça como desejar, mocinha, a prisão é muito confortável!” À noite, os habitantes dos vilarejos vinham para a hospedaria, onde eu permanecia durante a noite. Eles pediam que eu contasse mais histórias e cantasse mais músicas.
Gradualmente, alguns se convertiam aqui e ali, e em cada vilarejo um pequeno grupo se reunia – o começo de uma pequena igreja. E nos anos seguintes, à medida que o evangelho ia sendo pregado, a prática de redução de pés cessava, o uso do ópio era reduzido, e um testemunho da graça salvadora de Jesus Cristo era estabelecido em muitos lugares.142
TUMULTO NA PRISÃO A amizade de Gladys com o mandarim era algo muito curioso para se considerar. O respeito era mútuo, conquanto eles fossem duas pessoas bem diferentes. Ele era altamente re nado e culto, totalmente inserido na tradição milenar e na civilização chinesa. Ela era uma serviçal das ruas de Londres, com uma voz estridente e sem re namento, e todo o vocabulário chinês que aprendera veio do estilo de falar dos guias de mula. Ela ia até o mandarim quando via algo que precisava de mudança. E ele dizia a ela porque aquilo podia ou não ser mudado. Muitas mudanças aconteceram por meio de seu trabalho juntos. O relacionamento dela com o mandarim aproximou-o dela e de seu Deus. Um dia, por exemplo, surgiu um tumulto na prisão. O primeiro momento em que ela ouviu sobre isto foi quando o mandarim a convocou para que resolvesse aquele problema. Ela estava atordoada. Nada conhecia a respeito de prisões. Contudo, ela foi até a prisão e lá encontrou o chefe da prisão como que perdido, ao lado de fora do portão, esperando por ela. Os soldados tinham muito medo de lidar com os criminosos. Seria justo dizer que Gladys estava hesitante. Mas o o cial da prisão respondeu: “Você prega o Deus vivo em todo lugar. Se você prega a verdade – se o seu Deus lhe protege de todo o dano – então, você pode parar esta rebelião”.143 Percebendo que a reputação de Deus estava em jogo, ela entrou na prisão e cou atordoada pelo que encontrou. Estando em meio a corpos de pessoas mortas e a sangue, esta mulher de 1 metro e 45 centímetros de altura – a
metade do tamanho de muitos homens ali – arrancou um machado da mão de um assassino. Então, começou a dar ordens a criminosos endurecidos, tal como uma mulher severa lidando com um bando de crianças rebeldes. Chocados, eles reagiram com obediência. Talvez ela tenha sido a primeira mulher que eles tinham visto desde que foram encarcerados. Certamente, ela foi a primeira a falar com eles daquele modo. Com o passar do tempo, à medida que ela aprendia mais sobre a situação na prisão, ela era comovida pela condição miserável de vida dos prisioneiros. Eles não tinham nada para fazer e pouco para comer. Quer o crime fosse pequeno, como uma falsi cação, ou grande, como um assassinato, todos os prisioneiros eram submetidos às mesmas condições. Ela prometeu-lhes um trabalho, e eventualmente conseguiu-lhes tear e algodão e outros meios de ocupação. Às vezes, eles tinham licença para ir até a hospedaria para participar de cultos. Numa prisão silenciosa, após a rebelião ter sido dominada, um homem a chamou: “Obrigada, Ai-weh-deh!” Ela teve de ir para casa e perguntar a alguém o que aquilo signi cava. “A Virtuosa” – este se tornou o seu nome.
CIDADANIA Ai-weh-deh não foi apenas um nome que ela adotou para dar a seus amigos chineses algo mais fácil de pronunciar do que “Gladys”. Este era seu nome pela lei, depois que ela se naturalizou como chinesa. Gladys escreveu: “Eu vivia exatamente como uma chinesa. Eu vestia roupas chinesas, comia a comida deles, falava seu dialeto e até mesmo me peguei pensando como eles. Este era o meu país; aqueles chineses do norte eram meu povo. Decidi que preencheria meu requerimento para ser naturalizada chinesa. Em 1936, [quatro anos após sua chegada] meu requerimento foi concedido e meu nome o cial passou a ser Ai-weh-deh”.144 Isto trouxe complicações à sua vida, conforme o tempo passou. Se ela tivesse permanecido como cidadã britânica, teria sido evacuada quando a guerra
progrediu. Mas como cidadã chinesa, ela não estava quali cada para a assistência britânica. No entanto, isto não era uma complicação para Gladys, pois ela não queria deixar a China. A China era a sua casa. Gladys não somente viveu na China. Ela tornou-se quase uma chinesa. Um jovem casal de missionários, ao menos, cou cheio de admiração por esta pequena, porém esforçada mulher que parecia entender tudo que os chineses diziam, e que às vezes, para admiração deles, fazia tudo que os chineses faziam. Ela podia cuspir como os melhores deles, e quando mordia um pedaço de cartilagem numa festa, o atirava de sua boca com total precisão onde o cão que estava debaixo da mesa esperava para abocanhar.145
Perto do m de seu tempo na China, dois exemplos mostram como Gladys chegou perto de tornar-se uma chinesa: Ela passou seus últimos quatro anos na China na cidade de Chengdu. Sabendo que precisava de um lugar para morar, amigos a indicaram à casa da Missão para o Interior da China (MIC). Ela foi para lá, mas, dentro de poucos dias, mudou-se para um pequenino quarto no pátio de um hospital chinês. Um médico crente, um chinês que ela havia a pouco conhecido, tinha um trabalho no qual ela poderia ajudar. Os outros missionários caram admirados: “Como ela pode conhecer as pessoas em tão pouco tempo, quando chega como uma total estranha?”146 Mais tarde, um chinês, pastor de uma igreja em Chengdu apontou-a como uma Mulher da Bíblia, uma posição única em muitos países. “O termo ‘Mulher da Bíblia’ era a designação comum de mulheres crentes nacionais que eram empregadas por uma ninharia, pelas igrejas nativas ou por missionárias, para a função de professora, intérprete, leitora da Bíblia e evangelista.”147 Talvez tenha sido a única mulher que não era chinesa e que trabalhou na China com aquela capacitação e que viveu o escasso estilo de vida que um salário tão pequeno permitia. Deram-lhe um pequeno cômodo atrás da igreja e ela
recebeu o pequeno sustento, o normal de uma “Mulher da Bíblia”. Ela se tornou uma serva da igreja – uma igreja chinesa, não uma igreja de missão. “Serva” não é uma metáfora. Ela realizava qualquer papel que a igreja e o pastor exigissem dela. Uma de suas tarefas era limpar o templo. Enquanto varria teias de aranha e pedregulhos de cada fresta, ela ao mesmo tempo invocava o Espírito do Senhor e expulsava o diabo. Embora Gladys tenha abraçado a vida de uma cidadã chinesa, ela escreveu certa ocasião: “Às vezes, eu anelava ter comunhão com alguém de minha própria raça. Orei durante anos para que alguém viesse da Inglaterra para compartilhar de meu trabalho, mas ninguém veio, então segui sozinha”.148
NOVE PENCE, E MENOS, E MAIS Deus nunca enviou uma colega do ocidente. Ao contrário, Ele providenciou companhia por meio inesperado. Um dia, quando Gladys ia da hospedaria para a sede do mandarim, passou por uma mulher suja e rude, sentada à beira da estrada. Conquanto a mulher usasse brincos de prata e prendedores de cabelo feitos de jade, a criança curvada sobre seus joelhos estava faminta, vestida em trapos, suja e doente. Quando a mulher tentou vender-lhe a criança, Gladys percebeu que aquela mulher era um dos “demônios” vendedores de crianças, dos quais ela ouvira rumores a respeito. Gladys desviou-se e continuou em seu caminho para o palácio do mandarim. Depois de cumprir o ritual de saudações e os negócios do dia, ela exigiu saber o que estava sendo feito em relação aos vendedores de crianças. O mandarim evitou uma resposta direta, e, nalmente, admitiu que era melhor deixá-los de lado. Eles eram criminosos tão perversos e desesperados que, se fossem confrontados, somente fariam coisas piores. “Sobre os vendedores de crianças”, ele pronunciou enquanto a despedia, “a lei diz que Ai-weh-deh, a Virtuosa, deve erguer sua cabeça e atravessar ao outro lado da estrada. E você não repetirá minhas palavras a ninguém!”
Pelo protocolo, ele deveria ter a última palavra. Mas Gladys, ao caminho da porta, virou-se e disse: “Tenho de informá-lo, Mandarim, que não vim à China apenas para observar as suas leis. Eu vim por amor a Jesus Cristo, e devo atuar sobre os princípios de seus ensinamentos, não importa o que você diga”. E saiu. Meses mais tarde o mandarim disse-lhe que aquele foi o começo de sua amizade e respeito por ela.149 Ao voltar pela mesma estrada, Gladys viu a mesma mulher com a criança. “Olhei para aquele fragmento magro e miserável de humanidade e meu coração se comoveu por seus sofrimentos. Coloquei minha mão no bolso e vi que tudo o que eu possuía eram cinco moedas chinesas, o equivalente a mais ou menos nove pence. E as tirei do bolso.”150 Gladys chamou aquela pequena menina de Mei-em, Bela Graça, mas seu apelido era Nove Pence. Nove Pence tornou-se sua lha, e ajudou-a a preencher o vácuo que lhe doía. Um dia, Nove Pence trouxe para casa um menino que tinha ainda “menos” do que elas tinham. Ele tornou-se parte da família, e foi chamado “Menos”. Com o passar do tempo, muitas crianças se tornaram dependentes de Gladys, e, então, ela deu início a uma escola para estas e outras crianças de Yangcheng. Contudo, apenas Nove Pence, Menos e mais dois ou três foram sua família pelo resto de sua vida.
SOLTEIRA Gladys e outras mulheres solteiras perceberam que a vida dedicada à missões provavelmente signi caria uma vida sem marido. Naturalmente, ainda havia momentos em que ela pensava em casamento. Elisabeth Elliot contou a conversa que teve com Gladys no início dos anos 60: Ela me contou como havia trabalhado com alegria, durante seis ou sete anos na China, sozinha, quando um casal de missionários veio para trabalhar num local próximo [dois dias de viagem distante]. Ela, então, começou a ponderar o privilégio
que eles tinham, e imaginou se estar casado não seria uma coisa maravilhosa. Ela falou com o Senhor sobre isto, pedindo-Lhe que chamasse um homem da Inglaterra, o enviasse direto à China, ao local onde ela estava, e que ele lhe zesse a proposta... “Elisabeth, creio que Deus responde às orações! Ele o chamou – mas ele nunca veio.”151
Havia uma época quando as coisas poderiam ter caminhado em outra direção. A guerra com os japoneses trouxe Colonel Linnan à vida dela. Enquanto ela e o alto, educado e bonito o cial chinês caminhavam e conversavam, ele revelou a ela uma faceta polida da China que ela não tinha conhecido nas ruas da Yangcheng rural. À medida em que aprendia a conhecer Linnan, ela também conhecia um lado mais amplo e rico da cultura chinesa. Isto fez com que tivesse mais convicção de que a China era de fato o seu país amado. Linnan e Gladys amavam um ao outro, e ele lhe fez uma proposta de casamento. Ela escreveu à sua família que planejava se casar com ele, mas disselhe que deveriam esperar até que a guerra terminasse. Eles vieram a separar-se por circunstâncias da guerra.
GUERRA No início de 1937, Yangcheng tinha ouvido relatos da guerra, mas ela ainda não tinha tocado aquele remoto vilarejo. E, em 1938, Yangcheng foi bombardeada, e a Hospedaria das Oito Venturas foi atingida. Gladys cou soterrada sob os escombros de uma parte da hospedaria e o local teve de ser escavado para que ela fosse retirada. Mais tarde, ela voltou e encontrou dependurado na parede quebrada de seu quarto, um fragmento do lema daquele ano: “Deus... escolheu as coisas fracas do mundo – tudo posso naquele que me fortalece” (1 Coríntios 1.27; Filipenses 4.13). Naquela mesma hora, descobriu que a promessa de Deus era verdadeira, quando, ao sair de baixo dos escombros da hospedaria, deparou-se com os
moradores do vilarejo, abismados. Ninguém sabia como reagir a uma emergência como aquela. Eles estavam numa cidade cercada por muros, e nunca tiveram de temer um ataque. Yangcheng deveria ser um lugar seguro. Contudo, não quando a guerra vinha pelos ares. Gladys os reuniu para retirar os mortos, cuidar dos feridos, socorrer os soterrados. Daí em diante, Yangcheng estava em estado de guerra. A vida que os chineses conheciam por um milênio, havia chegado ao m. Depois dos japoneses, viriam os Comunistas e a Revolução Cultural. É claro que ninguém podia enxergar como realmente seria o futuro, mas a devastação do presente foi clara. Na primavera de 1939, o mandarim convidou Gladys para uma festa, dizendo: “Esta provavelmente será a última festa realizada na cidade de Yangcheng, visto que estamos deixando pouca coisa útil. Tenho algo a dizer e desejo que você ouça”. Gladys cou surpresa por encontrar-se sentada em um lugar de honra, à mão direita do mandarim. Ela tinha participado de tantas festas durante os sete anos que viveu em Yangcheng, e sempre era a única mulher, mas nunca lhe fora dado um assento de honra. Ao seu redor estavam as pessoas mais importantes da cidade. Como o momento mais importante da noite, o mandarim falou do trabalho de Ai-weh-deh entre eles, pelo seu cuidado pelos doentes e pelos presos, e da fé cristã da qual sempre falavam a respeito. Após muitos minutos de louvor por Gladys, ele se virou para ela e anunciou que desejava abraçar a sua fé e tornar-se crente em Jesus. Do mandarim para baixo, todos os níveis da sociedade na região haviam sido tocados pelo Deus de Gladys Aylward. Os japoneses ordenaram a um guia de mulas que carregasse sua munição. Ele se recusou, porque, como crente em Jesus e paci sta, não poderia auxiliar naquela luta. Por causa de sua posição cristã, eles o amarraram num poste, de modo que ele podia ver sua casa, e os sons provenientes dela. Então lacraram as portas, e a incendiaram completamente, com sua esposa e seus lhos dentro.
A história de Gladys, durante aqueles anos de guerra, foi um ciclo de fugas e retornos – fuga para vilarejos que possuíssem cavernas nas montanhas, retorno para casa, mudança para um posto da missão em Tsechow ou em outro lugar, e então retorno à Yangcheng. A despeito do perigo contínuo e imprevisível, Gladys não quis sair da China. Durante os meses mais sombrios da guerra, sua mãe recebeu uma carta que verdadeiramente vinha do coração de Gladys Aylward: A vida é deplorável, a morte é tão familiar, o sofrimento e a dor tão comuns, e ainda assim eu não desejo estar em nenhum outro lugar. Não deseje que eu esteja fora daqui nem procure de qualquer modo me tirar daqui, porque não sairei, enquanto esta provação continuar. Este é o meu povo, Deus os tem dado a mim, e eu viverei ou morrerei com eles, por Deus e para sua glória.152
Sua vida estava tão longe da Inglaterra, que ela não soube, até 1941, que a Europa havia estado na guerra desde 1939. Foi durante esse tempo, mais do que em qualquer outro, que ela sentiu uma direção e proteção especial de Deus.
PROTEÇÃO Por exemplo: certa vez, enquanto caminhava sozinha pela trilha entre Yangcheng e as cavernas de refúgio da montanha, ela sentiu o perigo, mas não sabia o que fazer. Ela orou: “Oh, Senhor, por favor, decida por mim; por favor, faça-me escolher o caminho certo”. Ela fechou os olhos, deu uma volta, abriu os olhos e começou a ir pelo caminho íngreme que estava adiante de si, um lado pedregoso da montanha. Em alguns momentos, ela pôde ouvir as tropas japonesas se movendo junto à trilha em que ela poderia ter caído em armadilha.
Às vezes, Deus a advertia através de outras pessoas. Ela estava junto com outros missionários quando ouviram que os japoneses haviam tomado uma cidade próxima. Ela e os outros estavam prontos para fazer as malas e partir. Annie Skau era uma jovem missionária norueguesa que normalmente recebia ordens e não era uma pessoa que liderava os outros. Mas desta vez ela foi rme: “Não acho que o Senhor quer que deixemos este lugar. Ele falou comigo. Ele me deu esta palavra. Eu não estava procurando por ela – está no texto que eu estava lendo esta manhã. ‘Eis que meterei nele um espírito, e ele, ao ouvir certo rumor, voltará para a sua terra’... Não acho que devemos fugir”. Os missionários oraram e decidiram car, e os japoneses começaram a se retirar, em função de relatos de ações militares em outra área. Às vezes, Deus a guiava diretamente através da Escritura. Ela soube que os japoneses estavam oferecendo cem dólares pela captura dela. Foi seu amor pela China que a expôs a acusações dos japoneses de que ela era uma espiã, porque quando viajava de vilarejo a vilarejo e detectava a atividade japonesa, sentia-se justi cada em passar a informação às forças chinesas Nacionalistas. Agora que tinham oferecido um preço pela sua cabeça, alguns amigos instavam com ela para que fugisse, enquanto outros imploravam para que ela não os deixasse. Ela não tinha idéia do que fazer. Então, leu em sua Bíblia: “Fugi, desviai-vos para mui longe, retirai-vos para as cavernas, ó moradores de Hazor, diz o Senhor; porque Nabucodonosor, rei da Babilônia, tomou conselho e formou desígnio contra vós outros”.153 Ela correu em meio aos tiros para chegar a um lugar de segurança. Estava longe de casa naquele momento, e então voltou a Yangcheng.
FUGA COM 100 CRIANÇAS Em Yangcheng, na desintegrada Hospedaria das Oito Venturas, ela foi saudada por cem crianças que tinham sido levadas de um orfanato missionário em outra cidade, para refugiarem-se em Yangcheng. Gladys sabia que não demoraria muito até que os japoneses chegassem até lá, procurando por ela, e
por isso não pode permanecer ali. Por causa da guerra, tornava-se cada vez mais difícil cuidar das crianças e prover suas necessidades, mas, a m de protegê-las, Gladys sabia que não poderia deixá-las para trás. Ela tinha recebido uma notícia de que o orfanato em Xian cuidaria daquelas crianças – se ela os levasse até lá. No início de 1940, outro grupo de cem já tinha ido com uma colaboradora. Mas as estradas ainda estavam abertas. Contudo, agora que Gladys precisava ir, as estradas não estavam seguras por causa do movimento de tropas. Na manhã seguinte, ela disse adeus para sempre à Hospedaria das Oito Venturas, e à Yangcheng, que tinha sido seu lar durante oito anos. Nos últimos anos, quando alguém lhe perguntava de onde era, ela respondia “Yangcheng”, tal era a sua convicção de que aquele lugar tinha se tornado seu lar. Ela guiou uma la de crianças para fora da cidade, cada uma carregando seu próprio cobertor, tigela e pauzinhos. O mandarim, como último adeus à Gladys, deu-lhes o que pôde – comida su ciente para dois dias. E assim como Deus havia provido por meio do mandarim, continuou a prover o que eles necessitavam a cada dia – alguns dias, comida, alguns dias, fome. Pelas rudes montanhas, eles viajavam pelas trilhas estreitas, evitando todas as estradas, porque os soldados estavam lá. Um sacerdote budista convidou-os a dormir uma noite num templo quase abandonado. Um homem que conheceram nas montanhas convidou-os a dormir em seu pátio. Outras noites, eles dormiram ao ar livre. Nos primeiros dias parecia uma aventura, um longo piquenique. Então, seus sapatos de pano começaram a rasgar-se e seus pés caram feridos e sangraram. Estavam sujos e já não tinham mais comida. De repente, depois de sete noites ao ar livre, os soldados vieram sobre eles. O pânico transformou-se em alívio quando eles reconheceram as forças chinesas Nacionalistas. Cerca de cinqüenta soldados acamparam junto a eles e dividiram a comida de suas mochilas. Todos dormiram bem, naquela noite. Talvez aquilo tenha sido uma pequena pausa, antes que viessem coisas mais rigorosas. Às vezes, a superfície das pedras era tão
íngreme que eles tinham de passar os mais novos de uma pessoa para outra, descendo pelo caminho. O sol era tão forte sobre eles, que precisavam descansar a cada cem metros. Gladys e as crianças maiores carregavam os menores nas costas, junto com os cobertores, desde que pudessem agüentar o peso. Gladys sustentava-lhes as esperanças de alcançarem o vilarejo de Yuan Chu, próximo ao Rio Amarelo. “Lá teremos comida!”
MAS DEUS É DEUS Após doze longos dias, eles chegaram a Yuan Chu e encontraram o lugar deserto. Todos haviam fugido, por medo dos japoneses. E não havia botes para levá-los à outra margem do grande Rio Amarelo, porque foi assim que os habitantes do vilarejo escaparam para o outro lado. Exaustos, Gladys e as crianças sentaram-se à margem do rio e ali caram por quatro dias, cada vez mais famintos. Gladys começava a sentir-se enferma e sem esperança. Aquele parecia o m da estrada. O inimigo poderia cercá-los ali e capturá-los, ou fazer algo pior. Sualan, de treze anos de idade, interrompeu Gladys, enquanto sonhava acordada, e disse: “Ai-weh-deh, você se lembra de ter nos contado como Moisés levou as crianças de Israel a atravessarem o Mar Vermelho? E de como Deus ordenou que as águas se dividissem e como os israelitas atravessaram em segurança?” “Sim, eu me lembro”, replicou Gladys. “Então, por que Deus não abre as águas do Rio Amarelo, para que nós possamos atravessar?” Na resposta de Gladys, nós ouvimos a resposta que qualquer mãe exausta teria dado: “Eu não sou Moisés, Sualan.” “Mas Deus é sempre Deus, Ai-weh-deh. Você já nos disse isso centenas de vezes. Se Ele é Deus, pode abrir o rio para nós.”154
Constrangida, Gladys orou com as crianças, ainda sem enxergar nenhum meio como Deus os poderia ajudar ali. Um o cial chinês, que patrulhava as margens do rio, ouviu um canto e cou perplexo, pois pensava que ninguém mais restava naquele lado do rio. O o cial cou surpreso ao descobrir uma mulher estrangeira de baixa estatura, que parecia enferma, sentada em meio a cem crianças chinesas. Se eles permanecessem ali, morreriam, porque aquela área em breve se tornaria um campo de batalha. Mas aquele o cial tinha autoridade para ordenar que um barco, do outro lado da margem, os levasse. Ele apitou de modo bem peculiar. E dois homens do outro lado começaram a remar em direção a eles. Depois de três viagens de uma margem à outra do rio, todas as crianças estavam do outro lado. No vilarejo que cava à outra margem do rio, Gladys foi presa por ter atravessado o Rio Amarelo. Era impossível e ilegal atravessar o Rio Amarelo naquele momento; portanto, uma vez que ela atravessara, as autoridades presumiram que ela devia ser uma espiã. Em seu estado abatido, Gladys deve ter se sentido como que em delírio. Ela estava naquele vilarejo fugindo dos japoneses que a queriam porque achavam que ela era espiã dos chineses. E agora os chineses a acusavam de ser espiã do Japão. Enquanto a examinavam, as crianças permaneciam do lado de fora, protestando: “Deixem-na sair! Deixem-na sair!” Quando o Magistrado percebeu que prender Gladys signi cava ter de tomar sob seu cuidado as cem crianças, encontrou um bom motivo para soltá-la. De lá, Gladys e as crianças viajaram quatro dias em um trem de refúgio. Quando parecia impossível atravessar uma montanha imensa, Deus providenciou um trem onde não se esperava encontrar nenhum. As crianças, que não tinham idéia do que era um trem, a princípio caram aterrorizadas com o gigante monstruoso que apitava e fazia grande barulho. Era um trem que transportava carvão, e as crianças dormiram ali durante a noite, viajando sobre as pilhas de carvão.
Agora, tudo era obscuro para Gladys. Mesmo depois de acordar um pouco revigorada, após uma noite de sono, ela ainda estava fraca. Ela não conseguia lembrar quanto tempo tinham passado no vilarejo, após a viagem no trem que transportava carvão. Ela nem podia lembrar quantos dias viajaram no trem até Xian. Quando a febre quase tomou conta de seu corpo, veio a última e maior rajada. Os portões de Xian estavam fechados aos refugiados. Não havia mais lugar. Ela apoiou sua cabeça pesada e quente sobre a parede, desesperando-se. Depois de todo o caminho que zeram até chegar ali! O que seria de seus lhos? Ela mal tinha forças para regozijar-se ao descobrir que havia lugar em Fufeng, um vilarejo próximo. Num estado de torpor, ela e as crianças viajaram para lá em outro trem. Logo depois de ter entregue as crianças em segurança nas mãos de outros que cuidariam delas em Fufeng, Gladys teve um colapso com tifo e febre recorrente. Por mais de duas semanas, ela alternava entre delírio e inconsciência. Ninguém sabia quem era aquela mulher de baixa estatura, que delirava com intensidade, em uente chinês popular.
ADEUS Enquanto Gladys se recuperava, Colonel Linnan a encontrou após meses de procura, imaginando onde ela poderia estar. Eles estavam juntos novamente, e a guerra havia terminado. Ela estava tão certa, lá em Sanxi, de que com o m da guerra eles poderiam se casar. Ele implorou para que ela se casasse com ele, mas agora as coisas pareciam diferentes para Gladys. Alan Burgess explica: Agora, em vez de uma exultação interior, do deleite de saber que amava e era amada, havia a ansiedade de fazer o que era certo diante de seu Deus, seus lhos e do homem que amava.
Em alguma parte das montanhas entre Yangcheng e o Rio Amarelo, em alguma parte da planície entre o Rio Amarelo e a velha capital Sian, em algum lugar no mundo irreal do delírio e de febre por causa da enfermidade, a certeza que ela sentia antes foi substituída por ansiedade.155
Eles disseram adeus, e nunca mais viram um ao outro, novamente. A incerteza e a ansiedade que ela sentiu no relacionamento com Linnan pareciam ser um novo ingrediente em Gladys Aylward, depois de tudo o que aconteceu. Um pouco da força e da estabilidade pareciam ter sido consumidos pela febre e pela guerra, e pela destruição ao redor dela e de toda a sua amada China. Talvez a sensação de estar desarraigada foi devido à perda de sua casa em Yangcheng. Nunca mais sentiu que pertencia a algum lugar, como sentia que pertencia a Yangcheng. Ela nunca deixou de ter suas raízes em Deus e em seu salvador Jesus, mas tornou-se transeunte em todos os outros caminhos.
TRANSEUNTE Um de seus biógrafos escreveu que quando as pessoas diziam: “Apareça quando quiser – diga-nos quando precisar de ajuda”, ela levava a sério estas palavras. Ela voltaria sem avisar: “Sou eu”. “Como uma criança, certa de que seria bem-vinda, cando por um momento, e então desaparecendo novamente, por entre os chineses.”156 Até o m, seus amigos podiam perceber o sabor da solidão em Gladys, a mulher independente. Talvez era o fato de ter alguém para conversar em sua língua nativa, que signi cava mais para Gladys do que qualquer coisa. “Quando a senhora Jeffery sabe que Gladys Aylward está vindo, ela coloca tudo de lado e começa a tricotar!”, diziam os jovens missionários que moravam lá, enquanto faziam seu estudo lingüístico. “A senhora Jeffery tricota e sorri, e Gladys conversa e conversa! Isto é um salva-vidas para ela.”
Um dia ela levou um grande cartão de feliz aniversário. “Quero que todos vocês o assinem”, disse Gladys, “minha mãe pensa que estou aqui totalmente só, sem nenhum amigo, e isto vai animá-la in nitamente”. Mas depois de algumas horas, ela desapareceu novamente, de volta entre os chineses, de volta ao pequeno quarto com uma cama e uma mesa, uma espécie de cômoda com algumas gavetas, e uma ou duas cadeiras – e aquele grande cantil térmico no qual mantinha água quente, a m de prover a ela e a seus convidados com bebidas para o dia.157
Quando Gladys recobrou um pouco a saúde, mudou-se para um vilarejo nas montanhas remotas próximo a Lanchow, a cidade mencionada na história da revista que comoveu seu coração para com a China. Ela viveu ali por um ano, ensinando novos crentes. Então, sentiu que Deus a chamava à Chengdu, na Província Szechuan. Naquele lugar, ela foi designada para ser uma humilde Mulher da Bíblia, realizando os deveres de uma serva para a igreja Chinesa. Ela permaneceu quatro anos em Chengdu.
LAR Em 1949, Gladys voltou para a Inglaterra com a ajuda nanceira de amigos. Ela sempre pensou que viveria na China até a sua morte, porque não tinha dinheiro para viajar. Seus pais não a reconheceram quando ela desembarcou do trem. Alguém teve de apontá-la a eles – a pequena chinesa que permanecia confusa ao lado de sua bagagem. Ela cou na Inglaterra durante muitos anos, mas anelava pela China. Visto que naquele momento os comunistas tinham o controle, ela não podia voltar àquele continente. Então, mudou-se para Formosa (Taiwan), o único lugar na China aberto a ela, onde Deus a guiou num ministério com órfãos. Gladys, a empregada doméstica, não se sentiu em casa na Inglaterra. Em Yangcheng, ela se estabeleceu e teve uma casa, mas não foi permanente, e eventualmente foi-lhe tirada. Lugar nenhum parecia-lhe um lar, depois disso.
Mas, o seu verdadeiro e eterno lar a aguardava. No ano novo de 1970, Gladys Aylward mudou-se de Taipei para o lugar que Jesus havia preparado para ela. Seu corpo foi enterrado em Taipei, mas ela agora vive no lar que nunca terá de deixar. Gladys Aylward media apenas 1 metro e 45 centímetros. Era uma estudante pobre e deixou a escola aos quatorze anos. Tinha uma voz estridente, não tinha dinheiro, e nenhum apoio da diretoria de uma missão. Ela era, de fato, algo fraco – talvez a coisa da qual menos pensaríamos a respeito – para ir à China. Mas ela descobriu que Deus é forte e el à sua palavra. “Deus... escolheu as coisas fracas do mundo – tudo posso naquele que me fortalece.” A diretoria da missão cometeu um erro quando rejeitou a inscrição de Gladys? Não podemos realmente saber a resposta para esta pergunta. Mas parece improvável que ela teria sido bem-sucedida trabalhando ligada a uma agência missionária convencional. O que sabemos é que Deus tinha planos de enviá-la à China, e que Ele usou um meio não-convencional, um meio que foi adequado a ela e a preparou. Por exemplo, quem jamais imaginaria que uma empregada doméstica teria dinheiro su ciente para fazer uma viagem de trem à China? Nos dias atuais, muitos candidatos à missão são aconselhados pela diretoria de sua missão a respeito de como encontrar pessoas que se interessem por seus ministérios e que, portanto, orem e talvez façam doações nanceiras. Gladys, ao contrário, dispôs-se de seus próprios meios – trabalhando como empregada e em trabalhos extras onde pudesse ganhar e economizar. Mas não! Ela não estava sozinha; ela se lançou em Deus e conheceu sua provisão. Agora, para um candidato à missão, no remoinho de cartas, visitas, ensino bíblico e apresentações sobre ministério futuro – atividades que levantarão interesse e dinheiro – às vezes pode ser fácil perder a visão clara da verdadeira
fonte de sustento. E os missionários não são os únicos que podem se apoiar com força sobre sua própria habilidade, persistência e carisma. Nós podemos depender tanto de nossas habilidades, de nossa diligência e superioridade que chegamos a nos esquecer das palavras de Jesus em Mateus 6.31-33: Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.
Quer Deus nos providencie sustento por meio de nosso trabalho árduo ou através dos mantenedores de missões, nada temos sem Deus. Deus é Aquele que concede a cada um de nós vida e respiração e tudo o mais (Atos 17.25). Não apenas dinheiro e comida. Tudo! Eu pergunto a mim e a você: O que nos impede de aventurarmo-nos em algo que Deus tem colocado diante de nós? “Não posso fazer isso de maneira alguma!” O que é que nos faz dizer isto? De que eu tenho medo? O que me falta? Quais são minhas fraquezas? Gladys Aylward tinha todas as razões para dizer que não podia ir à China. Ela poderia não ter como pagar. Ela poderia não ter sobrevivido à viagem através da Rússia. Ela poderia não ter levado em segurança cem crianças por entre as montanhas e pelo Rio Amarelo. Não, ela não podia. Mas Deus podia. Se pensamos que não podemos fazer aquilo que Deus nos pede, estamos certos. Mas Deus pode. À despeito do começo desfavorável da vida de Gladys Aylward e da pessoa desfavorecida que ela parecia ser, ela pôde olhar para trás e ver como Deus havia trabalhado por meio dela. Ela tinha sua própria família de crianças
adotadas, e na Província Shanxi, ao sul, centenas de órfãos foram salvos e receberam alguma educação formal. Muitos deles também foram salvos espiritualmente. Ela podia antever o m da redução de pés. Mudanças produtivas foram feitas para os prisioneiros. Ela pôde se lembrar de pessoas doentes que caram curadas e bebês que ela ajudou a dar à luz. Um mandarim tradicional agora era seu irmão, e crentes e igrejas se espalharam nos vilarejos em toda parte, nas mais remotas montanhas. Com meu mapa da China diante de mim, sigo a rota da vida de Gladys. Sua casa, Yangcheng, ca em Shanxi (Shansi), a província onde visitei amigos, alguns anos atrás. Eles me levaram a um orfanato onde cem crianças ainda esperam libertação. Outros amigos estão espalhados pelo país, todos seguindo o chamado de Deus, assim como Gladys fez. E esta história de Gladys Aylward é dedicada aos meus amigos que estão (ou estiveram) na China por amor ao evangelho. Como eles desejam, não vou citar seus nomes. Mas Deus sabe quem são.
NOTAS DO CAPÍTULO 3 115 O relato de Fei Ch’i-hao, um crente na cidade de Fen Chou Fu, pode ser lido em
http://www.fordham.edu/halsall/mod/1900Fei-boxers.html (acessado em 16-02-05). O relato online é feito por Miner, Luella. Two heroes of cathay (N. Y.: Fleming H. Revell, 1907). p. 63-128, citado em Eva Jane Price, China Journal, 1889-1900 (N. Y.: Charles Scribner’s Sons, 1989). p. 245-247, 254-261, 268-274. 116 Aylward, Gladys e Hunter, Christine. e little woman. (Chicago: Moody Press,
1999). p. 7-8. 117 Idem. p. 8.
118 A Missão para o Interior da China (MIC) (agora OMF International – Overseas
Missionary Fellowship) foi fundada por Hudson Taylor em 1865. 119 Thompson, Phyllis. A transparent woman (Grand Rapids, Mich.: Zondervan
Publishing House, 1971). p. 18. 120 Aylward e Hunter. p. 9. 121 Idem. 122 Thompson. p. 18. 123 Aylward e Hunter. p. 11. 124 Idem. p. 11-12. 125 Luz Diária. Um livro de textos devocionais para cada dia do ano. Editora Fiel – 1ª
edição 1975. Por mais de cem anos, Luz Diária é mencionada nas biogra as de muitos missionários, em lugares distantes em todos os continentes. 126 Aylward e Hunter. p. 12. 127 O Reino Unido adotou seu sistema de moeda decimal em 1971. As moedas de
Gladys são do antigo sistema. Um xelim equivale a 12 pence antigos. 128 Thompson. p. 117. 129 Idem. 130 Idem. p. 16. 131 Swift, Catherine. Gladys Aylward (Minneapolis: Bethany House Publishers, 1989).
p. 13-14. 132 Aylward e Hunter. p. 15. 133 Idem. 134 Recontado por Elliot, Elisabeth. “Gateway to Joy”, divulgado em 22 de julho de
1999. Ela contou a história de Gladys Aylward de 19 a 30 de julho de 1999. http://www.backtothebible.org/gateway/today/1697 (acessado em 23/03/05).
135 Thompson. p. 39. 136 ompson. p. 42. 137 Aylward e Hunter. p. 8. 138 Idem. p. 42. 139 Em 1999, uma mulher nascida em 1920, oito anos depois que a redução de pés
havia sido banida, descreveu como era o processo. Dando continuidade ao costume das gerações passadas, meus pés foram enfaixados quando eu tinha seis anos. Talvez aos seis anos os pés de uma menina deviam ter o comprimento perfeito para serem atados. Minha avó pegava cerca de um metro de pano branco, que tinha sido tecido por ela mesma, em casa, e dividia em três tiras de um metro, e começava a enfaixar. Ela separava o meu dedão, e dobrava os outros dedinhos para baixo, sob a sola do pé, e então usava as tiras para enfaixá-los em muitas voltas... Você pode imaginar os pés de uma menina de seis anos e quão delicados eles são, sendo enfaixados com muita força e mudado o seu formato natural, como isto pode ser doloroso... Com a dor dos pés, eu era forçada a empurrar uma grande pedra usada como moenda para oprimir os dedos. Eu andava e andava, passo a passo, e dava muitas, muitas voltas, a m de dar o formato de cone e fazer com que o processo fosse mais e ciente. O sofrimento realmente vai além do que as pessoas podem imaginar. Quando os pés eram desenfaixados, minhas irmãs e eu chorávamos, por causa da dor causada pelo desenfaixar. E quando minha avó novamente enfaixava nossos pés, era ainda mais doloroso e nós chorávamos novamente. Minhas irmãs e eu suportamos a dor e gradualmente desenfaixamos nossos pés. Nos livramos das longas tiras e no lugar delas calçamos um par de meias bem apertadas. Gradualmente os pés começaram a crescer novamente. Quando me casei, em 1942, meus pés já haviam se tornado jie fang jiao (pés livres). Eu observava meus pés cuidadosamente. Eles eram muito menores que o normal. Eu tenho 1 metro e 70 centímetros, mas meus pés têm apenas 22 centímetros. O dedão parece normal, mas os outros dedos são bem achatados e dobrados debaixo da sola do meu pé. Há pequenas cicatrizes entre os dedos e o dorso do pé. As cicatrizes foram feitas à primeira vez que meus pés foram enfaixados. Os ossos dos dedos foram quebrados e caram in amados, por isso as cicatrizes permanecem até hoje. A dor já passou há muito tempo.
(O Museu Australiano, http://www.austmus.gov.au/bodyart/shaping/Footbiding.htm, acessado em 06-05-05.) 140 Aylward e Hunter. p. 47. 141 Idem. p. 45. 142 Idem. p. 46-47. 143 Burgess, Alan. e small woman. (Ann Arbor, Mich.: Servant Books, 1985). p. 89.
Esta é a edição usada como referência neste capítulo. Uma nova edição está disponível (Cutchogue, NY: Buccaneer Books, 1993). 144 Aylward e Hunter. p. 48. 145 Thompson. p. 49. 146 Idem. p. 109. 147 Tucker, Ruth e Liefield, Walter. Daughters of de church (Grand Rapids, Mich.:
Academic Books, Zondervan Publishing House, 1987). p. 340 – também inclui explicação adicional sobre o papel e a importância das Mulheres da Bíblia. 148 Aylward e Hunter. p. 49. 149 A história de Nove Pence, Menos e Bao Bao é contada em Burgess, p. 97-105. 150 Aylward e Hunter. p. 1. 151 Elliot, Elisabeth. “Foreword”, em Burgess, p. 6 152 Burgess. p. 149. 153 Este foi o modo como Gladys lembrou de Jeremias 49.30, quando olhou para trás,
para aquela ocasião. Havia uma diferença na citação, pois ela estava lendo numa Bíblia chinesa, o que continuou a fazer mesmo quando voltou para a Inglaterra. Quando lia para um auditório, ela fazia uma tradução instantânea do chinês para o inglês. 154 Burgess. p. 224-225. 155 Idem. p. 251-252.
156 Thompson. p. 94. 157 Idem. p. 110.
Falou Nabucodonosor e lhes disse: É verdade, ó Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que vós não servis a meus deuses, nem adorais a imagem de ouro que levantei? Agora, pois, estai dispostos e, quando ouvirdes o som da trombeta, do pífaro, da cítara, da harpa, do saltério, da gaita de foles, prostrai-vos e adorai a imagem que z; porém, se não a adorardes, sereis, no mesmo instante, lançados na fornalha de fogo ardente. E quem é o deus que vos poderá livrar das minhas mãos?
Responderam Sadraque, Mesaque e Abede-Nego ao rei: Ó Nabucodonosor, quanto a isto não necessitamos de te responder. Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, ca sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste.
Daniel 3.14-18
Esther Ahn Kim (AHN EI SOOK OU AHN I SOOK)
FIEL NO SOFRIMENTO
N
o começo do século XX, as crianças índias americanas que viviam em muitas partes dos Estados Unidos foram tiradas de suas casas e enviadas a internatos que cavam a muitos quilômetros de distância. Seu cabelo comprido era cortado. Suas roupas tradicionais eram substituídas por roupas “modernas”, padronizadas. Eles recebiam nomes americanos e europeus. Era-lhes exigido que falassem apenas inglês, e se falassem Ojibwe, Navajo ou Cherokee eram punidos. Nas décadas antecedentes, os pais e avós destas crianças foram transferidos às reservas, e suas casas e terras foram con scadas. Alguns brancos não concordavam com estes esforços de americanização. Contudo, por muitos anos, a política de governo americano prevaleceu. No início do século XX, do outro lado do globo terrestre, o Japão entrou em guerra contra a Rússia, a m de liberar a Coréia da ocupação das tropas russas. Naqueles dias, havia uma única nação coreana – e não as Coréias do Norte e do Sul, como são agora. Primeiro, os coreanos receberam bem os japoneses, pois achavam que eles eram melhores que os russos. Mas estas boas-vindas não duraram, pois a miragem de fraternidade não durou. Então, na década de 30, quando o Japão ocupou a Manchuria e deu início à guerra contra a China, a Coréia tornou-se um elo geográ co estratégico. Através da Coréia, o Japão tinha uma rota por via terrestre que ia até a Manchuria e a China. E assim eles intensi caram sua força sobre a Coréia,
realizando uma grande campanha japonesa. É por isso que muitos coreanos se referem ao período de 1937 a 1945 como a Era Negra. As autoridades japonesas con scavam tudo o que queriam, desde comida até instalações. Quase todos os homens e mulheres jovens da Coréia foram recrutados para trabalhar em campos de guerra. A todos foi exigido que se falasse japonês. Falar coreano era uma ofensa que requeria punição. Os coreanos foram ordenados a deixar seus nomes de família e adotarem nomes japoneses. A submissão era grande, pois a falta desta subserviência signi cava falta de trabalho para os adultos e de escola para as crianças. Havia japoneses crentes e outros que não concordavam com as medidas do governo japonês. Contudo, durante muitos anos, a política de governo japonês prevaleceu.
SEJA UMA GRANDE PESSOA No início da ocupação, na cidade de Bhak Chon, nasceu um bebê. Não era uma criança que um pai coreano tradicional desejasse. Em primeiro lugar, era uma menina. Além disso, era tão pequena e magra que os parentes a ridicularizavam. Seu pai, entretanto, olhou aquela pequena primogênita e murmurou: “Pobre bebê. Não morra, mas seja uma grande pessoa”.158 O nome de família era Ahn, e a criança chamou-se Ei Sook.159 O pai de Ei Sook foi o primogênito. E quando sua esposa deu à luz somente a meninas, houve estresse na família: Ele precisava de um herdeiro. Ele cedeu à pressão para ter lhos homens e tomou para si muitas concubinas. A mãe de Ei Sook era lha de um grande o cial do governo em Seul. Ela havia recebido a Cristo como seu Salvador aos oito anos. Por não ter nem igreja, nem Bíblia, ela lembrava e vivia de quatro princípios que a missionária lhe ensinara: 1. Jesus é o Filho unigênito de Deus e o único Salvador.
2. Jesus nunca rejeitará os que crerem nEle. 3. Jesus pode fazer com que todos os infortúnios dos crentes se tornem bem. 4. Jesus ouve as orações de seus lhos. Desde o começo da vida de Ei Sook, sua mãe era seu rme suporte. Suas palavras pareciam ser a voz de Deus, às vezes, gentil e consoladora, freqüentemente rme e fortalecedora, sempre aquilo que Ei Sook precisasse no momento. Em contraste, a matriarca da família, a avó paterna de Ei Sook sempre estava descontente e queixosa. A menina podia ver que os ídolos de sua avó – seus deuses – não lhe traziam felicidade. De fato, eles pareciam ser a raiz da tristeza. Certa vez, Ei Sook entrou discretamente na dispensa, onde pratos de comida estavam prontos para serem oferecidos aos deuses, num festival que estava para acontecer. Ela gritou aos ídolos: “Demônios! Porque vocês comem as melhores comidas e fazem a minha avó ser tão infeliz? Morram comendo esta comida misturada com meu cuspe!” Ela cuspiu no dedo e esfregou nas comidas.160 Sua mãe, sua irmã, e outros crentes começaram a observar o que viria desta pequena menina obstinada. A mãe de Ei Sook já lhe mostrava o verdadeiro Deus: “Como você pode ver, ídolos realmente não possuem poder. O Senhor Jesus é o Único que pode nos dar verdadeiro poder, felicidade e paz”.161 Quando se tornou adulta, Ei Sook lembrou-se da diferença entre sua mãe e sua avó: [Minha mãe] era uma pessoa que sempre vivia para os outros. Uma vez por semana ela enchia uma sacola com aspirina, bálsamo, balas e papel de seda, e visitava os pobres. Eu nunca a vi comer arroz fresquinho. Ela sempre cozinhava grande quantidade de arroz de uma só vez. “Se eu tiver arroz cozido o su ciente”, ela me disse, quando lhe perguntei sobre isso, “posso dar um pouco ao pedinte quando ele vier. Para seguir Jesus, penso que sempre devemos estar prontos a dar algo aos outros”.
Minha mãe era muito diferente dos membros da família de meu pai. Eles só doavam aquilo que não queriam para si mesmos. Eles pareciam odiarem-se uns aos outros e só viviam para o dia-a-dia. Eles não tinham Deus, nem dia do Senhor, nem verdadeira alegria ou con ança. Onde minha mãe estivesse, ao redor dela parecia existir um pedaço do céu.162
UMA PESSOA DE FÉ VERDADEIRA Quando Ei Sook era jovem, sua mãe deixou seu pai e as concubinas e mudou-se para Pyongyang. O pai de Ei Sook ainda supervisionava sua educação e exigiu que ela freqüentasse escolas que falavam exclusivamente o japonês. Depois, sua mãe quis enviá-la a uma universidade cristã nos Estados Unidos, mas seu pai insistiu que ela fosse à universidade no Japão. Mas, acima de tudo, a in uência piedosa diária de sua mãe superou em muito o impacto de seu pai em sua vida. Nós costumávamos nos levantar às quatro da manhã para irmos juntas à igreja e orar... Caminhávamos em silêncio até chegarmos a um relicário japonês situado ao longo da estrada. De repente, minha mãe parava e olhava para o céu. E, então, começava a bater os pés com força no chão, dizendo: “Pereça e desapareça! Em nome de Jesus Cristo que ressurgiu da morte para viver para sempre”. Ela repetia estas palavras três vezes. E no caminho de volta da igreja ela fazia o mesmo. “Mãe”, disse a ela, “agora os japoneses possuem tudo da Coréia que está em seus relicários, e sua nação está entre as mais fortes no mundo inteiro. O que você pensa que uma pessoa sozinha pode fazer?” “Aos olhos de Deus”, ela disse tranqüilamente, “uma pessoa com fé verdadeira nEle é bem mais importante do que mil pessoas sem fé. Abraão, Moisés, Davi, todos eles estavam sozinhos. Foram chamados para servir a Deus individualmente. Eu creio que Deus é o mesmo hoje”. As palavras de 2 Crônicas [16.9], pensei, de fato eram verdadeiras. “Porque, quanto ao Senhor, seus olhos passam por toda a terra, para mostrar-se forte para com aqueles cujo coração é totalmente dele.”163
O DILEMA Para a família de Ei Sook, assim como para todos os coreanos, a ocupação japonesa trouxe miséria nanceira, dor e confusão cultural. Mas o grande dilema moral foi causado por um regulamento em particular – a exigência para que todos participassem das cerimônias aos relicários de Xinto. Aí estava um dilema para os crentes. Se uma pessoa se curvasse perante um relicário, este ato seria considerado uma observância religiosa ou apenas um expediente político? Em cada relicário havia uma imagem da deusa japonesa do sol e uma foto do imperador do Japão. Para os orientais curvar-se é um sinal tradicional de respeito. Assim, curvar-se diante da foto do imperador pode signi car apenas um sinal de respeito e patriotismo – não voluntariamente concedido por um coreano oprimido, é claro – mas, ainda assim, ele apenas estaria motivado por atos políticos. Para justi car este ato como sendo algo puramente político, o coreano teria de ignorar a imagem da deusa ou considerá-la como uma mera gura cultural. Por outro lado, se curvar-se inclui a deusa do sol em seu círculo de reverência, tal evento torna-se espiritual e religioso. O que aumentou ainda mais as convicções foi a realidade histórica de que, até o m da II Guerra Mundial, o imperador era considerado por muitos japoneses como um ser divino – um deus. Em 1940, muitos missionários estrangeiros deixaram a Coréia, em parte porque os coreanos foram proibidos de manter contato com os estrangeiros. Assim, aqueles que eram amigos de missionários estariam correndo risco, se tivessem qualquer interação com eles. Mas a questão dos relicários de Xinto foi a principal razão para que os missionários partissem. O Japão estava pressionando a todos os líderes de igrejas, inclusive os missionários, a levarem os crentes aos relicários. Os relicários eram construídos em cada cidade e vilarejo. Miniaturas eram colocadas em cada escritório do governo e em cada escola. Os estudantes
recebiam pequenos relicários para levarem para suas casas, e eram ensinados a venerá-los diariamente. Não havia escape da exigência de adoração aos relicários. E, por m, eles eram colocados até nas igrejas cristãs. A polícia cava a postos a cada reunião para assegurar-se de que todos se curvavam diante do relicário antes que começassem os cultos cristãos. Todos os que se recusassem a fazê-lo eram levados presos. Os pastores eram vigiados de perto, por causa da in uência que tinham sobre sua congregação. Pastores insubordinados, ou os que eram resolutos em manterem uma atitude contrária, eram presos e torturados, e o fundo alimentício de suas famílias era cortado. Alguns grupos denominacionais logo concordavam e consentiam em freqüentar os relicários, explicando ao seu grupo que aquele era apenas um rito patriótico. Outras denominações resistiam mais tempo, mas por m cediam à pressão. Alguns tinham esperança de que Deus ignoraria seu ritual aos relicários, visto que estavam sendo forçados pelos japoneses a fazê-lo. No entanto, a despeito da rendição da liderança, um grande número de pessoas nas igrejas não se curvava. Aqueles que ocupavam posições públicas e de liderança suportavam o ímpeto do ataque de vingança do governo.
SE NÃO... Em 1939, quando a questão havia chegado a um ponto culminante, Ahn Ei Sook era professora de música para meninas, numa escola cristã na cidade de Pyongyang. Chegou o dia em que foi exigido que todo estudante e todo professor freqüentasse a convocação de escolas ao Monte Namsan, no centro de Seul. A diretora seria torturada, a não ser que todos na escola participassem. Mas Ei Sook lembrou-se das palavras de Jesus: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (João 14.6). Como poderia ela curvar-se diante de um ídolo? Quando foi pressionada pela diretora, ela com relutância se dispôs a ir até a montanha, mas não podia prometer que se curvaria quando chegasse lá.
Enquanto a diretora tentava persuadi-la, Ei Sook estava bastante ciente de que seus alunos estavam ouvindo e observando. Eles sabiam que sua consciência era contra o curvar-se diante daquele ídolo. Agora, eles veriam se as suas ações correspondiam às suas palavras. Ela pensou nas desa antes e con antes palavras de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego: Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, ca sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste. Daniel 3.17-18
Ei Sook sabia que mesmo que alguém faça o que é certo, não há garantia de que Deus responderá com socorro imediato. “Se não.” Mesmo que Deus não os salvasse da fornalha, eles morreriam honrandoO. Eu tomaria a mesma decisão. Com o auxílio de Deus, eu nunca me curvaria diante do ídolo dos japoneses, mesmo que Ele não me salvasse das mãos dos japoneses. Fui salva por Jesus, e só poderia me curvar diante de Deus, o Pai, e de meu Salvador. Eu sentia como se já pudesse ver a fornalha ardente se abrindo para mim. Enquanto caminhava, eu orava. Sabia o que ia fazer. “Hoje, na montanha, diante da grande multidão”, disse a mim mesma, “proclamarei que não há outro Deus além de Ti. Isto é o que farei pelo teu santo nome”.164
Por alguns momentos ela cava repleta de paz. E alternando entre aquela paz e a grande sensação de fraqueza e medo, ela chegou com os alunos à montanha. Eu era como uma criança diante do relicário, com medo até de fazer um ruído, por causa dos policiais. Enquanto um sentimento de intranqüilidade tomava conta de mim, eu tentava orar, mas minhas orações eram muito fracas... Eu confessei, gaguejando, minha própria falta de coragem e de força. “Oh, Senhor”, orei, “sou tão
fraca! Mas sou tua ovelha e tenho de obedecer-Te e seguir-Te. Senhor, toma conta de mim”.165
Em resposta, Deus trouxe à sua memória palavras que estavam gravadas em sua mente e em seu coração: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem” (João 10.27).
TOTAL REVERÊNCIA A... A cena era remanescente da antiga Babilônia, quando a multidão, inclusive todos os estrangeiros cativos, estavam reunidos e aguardavam o sinal musical para que se curvassem diante da imagem monstruosa de ouro do Rei Nabucodonosor.166 “Atenção!” Uma ordem estridente penetrou o murmúrio da multidão. As pessoas se en leiraram, linha por linha. Estávamos acostumados a ser subservientes, pois tínhamos sido cativos pelos japoneses por mais de trinta e sete anos. “Nossa mais profunda reverência à Amaterasu Omikami [a deusa sol]!” Como uma só pessoa, aquela enorme multidão seguiu a ordem dada em voz altissonante, curvando a metade de cima de seus corpos solene e totalmente. De todas as pessoas que estavam diante do relicário, fui a única que permaneci ereta, olhando diretamente para o céu.167
Ei Sook não era ingênua. Ser professora era ser líder, e líderes eram vigiados pelos o ciais. Agora, em sua obediência a Deus, ela havia se mostrado desobediente às autoridades ocupantes. O bebê fraco e magro havia se tornado uma mulher frágil e pálida – e não uma candidata ideal para resistir ao sofrimento e a tortura que ela sabia que estariam adiante. Caminhando para longe do relicário, ela pensava, estou morta. Ahn Ei Sook morreu hoje no Monte Namsan.168
Eu podia dizer honestamente que não tinha medo de morrer, mas eu temia a tortura antes da morte. Quanto tempo este corpo poderia suportar? E se eu apostatasse de minha fé sob a tortura implacável? Só de pensar nisto eu já me sentia desfalecer, tanto que mal podia ver para onde estava caminhando... “Não se turbe o vosso coração”, Jesus me dizia. “Credes em Deus, crede também em mim... Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós outros... Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize” (João 14.1, 18, 27). Uma luz foi acesa na escuridão do meu coração... E um hino me veio à mente:
A minha força nada faz, sozinho estou perdido. Um homem a vitória traz, por Deus foi escolhido. Quem trouxe esta luz? Foi Cristo Jesus, o eterno Senhor, outro não tem vigor. Triunfará na luta.
Martinho Lutero169
Quatro detetives a aguardavam em sua sala de aula. Seus alunos viram quando os homens a levaram. Ela escreve: “Meu medo de sofrer transformouse na emoção de começar uma esplêndida aventura. Minha mente estava tranqüila”.170 Ela foi levada ao escritório do chefe do distrito. Antes que ele pudesse tratar com ela, recebeu um telefonema e teve de sair às pressas. Quando ele saiu, Ei Sook caminhou para fora do escritório e correu para casa. Os crentes já estavam reunidos para orar por ela. Sua mãe ajudou-a a disfarçar-se com roupas velhas e sujas. Ela conseguiu um assento no primeiro trem que saía da estação e ia até Shin Ei Joo, no extremo norte, próximo à margem Manchuriana. Ela chorou e orou no frio, desesperando-se diante da perspectiva de algum dia ter de suportar a frigidez de uma cela na prisão. Em meio à solidão e o medo, clamou a Deus por auxílio. Naquele momento, lembrou-se que uma antiga aluna morava naquela cidade. Ela permaneceu com a aluna por um curto período de tempo e, então, viajou para a casa de sua irmã, em Jung Loo.
PREPARANDO-SE PARA SOFRER Ei Sook cou emocionada em ver que sua mãe tinha vindo de Pyongyang e estava esperando por ela. Sua mãe conhecia as fragilidades de Ei Sook. Mas também conhecia o poder de Deus, e não fez nada para tentar proteger Ei Sook do sofrimento. Ao contrário, ela a ajudou a preparar-se para isto. Eu sempre me sentia fortalecida quando conversava com minha mãe sobre Deus e sobre o grande amor dEle. Comecei a pensar que a vida podia ser melhor vivida nesse tempo de perseguição. Poderia até ser uma gura mais verdadeira do crente, o agonizar, o sofrer, o ser odiado e torturado e até ser morto em obediência às palavras de Deus, em lugar de ter uma vida comum e insigni cante.171
As duas acharam uma pequena casa deserta e isolada. A irmã de Ei Sook temia que elas se mudassem para lá, porque alguém naquela casa tinha morrido de tuberculose. Ei Sook respondeu: “Um dia eu serei uma prisioneira e morrerei numa cela, em algum lugar. Você pensa que apenas dois ou três morreram de tuberculose na cadeia? Nesta casa, eu me prepararei para ir àquela cela cruel”.172 Sua mãe era exatamente a companhia que ela precisava enquanto se escondia. Naquele lugar, Deus providenciaria um abrigo onde Ei Sook poderia revigorar-se e fortalecer-se, e juntas podiam se preparar para o que estava adiante. Morando naquela casa, ela se encharcou de serenidade e de força do ribeiro e do campo, das árvores e do céu ao seu redor. Temporais e o tempo carregado pareciam energizá-la. Por estarem isoladas, ela podia cantar hinos em voz alta. Durante as semanas que estiveram ali, ela decorou muitos hinos e mais de cem capítulos da Bíblia. Durante os anos por vir, este seria o último deleite em espaço aberto, natureza e doce isolamento.
Contudo, junto à doçura do fortalecimento estava a preparação para coisas difíceis. Ela dormia sem acolchoado. À meia-noite recebia visitas de crentes perseguidos que se escondiam nas montanhas, e ouvia suas histórias apavorantes. Eu sabia que seria impossível manter minha fé pelas minhas próprias forças. Deus teria de trabalhar em mim para que eu pudesse permanecer rme. Eu decidi jejuar.173
Ela jejuava por longos e longos períodos. Depois de uma semana de longo jejum, sem comer nem beber, ela diz: Embora não tenha esperado por isto, depois de jejuar eu fui capaz de entender melhor as Escrituras e senti uma nova força em minha oração. Agora eu sentia que podia deixar o medo da tortura nas mãos de Deus.174
Mas, o medo não pôde ser exterminado de uma vez por todas. Quando ela caiu em ansiedade novamente, decidiu jejuar por dez dias. Aqueles dez dias foram dez meses para mim. A cor dos meus olhos mudou, e meu hálito cou tão ruim que ninguém podia aproximar-se de mim. Minha circulação sangüínea estava tão baixa e fraca que eu tinha certeza que, daquela vez, morreria. Estou bem certa de que cheguei muito perto da morte. “Oh, Senhor”, eu continuava a dizer-Lhe, “isto é muito melhor do que a tortura”.175
FUGA
Quando sua irmã correu para contar-lhe a notícia de que os japoneses sabiam onde ela estava, ela teve de fugir novamente, cando em diferentes lugares. Quando Ei Sook deixou sua mãe, compreendeu que não são apenas os perseguidos que se rmam em Deus para ter forças. Foi difícil para minha mãe ver a minha partida... As lágrimas caíam enquanto eu pensava nela, que cou sozinha com seu coração em dor. Ela seria bem mais dependente de Deus do que era antes.176
Onde quer que Ei Sook estivesse, durante esses dias, ela via e ouvia tudo à luz da tortura que esperava para o futuro. Quando uma dor de cabeça incomum e excruciante a atormentou durante muitos dias, ela pensava que a dor da tortura seria como aquela. Quando cou próxima à porta de um hospital por alguns dias, os gemidos daqueles que sofriam a inundaram, e ela se sentiu como que no inferno – ou na prisão. Quando dormiu num cômodo sujo e pútrido, ela comparou-o com o que poderia esperar de uma cela na prisão. Então, uma noite, sozinha e muito longe de casa, ela acordou com uma voz como de alguém, dizendo: “Vá para Pyongyang.” Contudo, ela a ninguém viu. Ela imaginava o que viria a seguir. Esta foi a primeira direção apontada por Deus, ao caminho especí co que a esperava. Ela seguiu a voz de Deus e voltou para Pyongyang. Ei Sook experimentou um segundo direcionamento para o caminho que Deus lhe tinha reservado, quando desembarcou do trem em Pyongyang. Um trem cheio de soldados japoneses tinha acabado de chegar. Seus olhos foram captados por seus semblantes solenes e brancos. Todos os soldados tinham uma aparência estranha de morte, embora fossem enviados ao inferno por amor ao estado... Alguém tem de salvar estes milhares de excelentes jovens da estrada do inferno.
Eu pisei no chão com força e chorei em minha frustração e raiva. Se alguém de alta posição se levantasse entre os líderes dos japoneses, e zesse com que eles vissem que os jovens de todo o país estavam se tornando espíritos malignos no inferno, dia após dia... Aquele fardo me atormentava como um fogo que não se extinguia. Então, repentinamente ouvi uma voz falando ao meu coração: “É você! Você deve fazer isto!”177
PREPARANDO-SE PARA MORRER Ei Sook descobriu que sua mãe estava em Pyongyang, esperando por ela; então, contou-lhe sobre a experiência na estação de trem. A reação de minha mãe foi um choque para mim. “O tempo de preparar-se para morrer chegou”, ela disse. A morte estava chegando para mim!... Eu tinha de me preparar para o aprisionamento; tinha que praticar a morte.178
O primeiro passo era aprender a viver em grande pobreza. Ela e sua mãe se mudaram para uma casa próximo ao mercado aberto. Visitar o mercado não era algo considerado apropriado para damas daquela classe e educação. Mas a cada dia, elas iam lá, distribuíam cartões com versículos bíblicos e falavam de Jesus para as pessoas. E a cada dia, em casa, continuavam as disciplinas que começaram no campo: oração, hinos – agora mais silenciosamente – adoração e memorização de versículos. Ela criou o hábito de comprar estoques de produtos inferiores dos vendedores mais pobres – ao preço mais barato. Depois, ela os selecionava e dava o que era comestível à sua mãe e sua irmã; e comia o que sobrava. Ela estava se preparando para o feijão e o painço estragados que a aguardavam na prisão.
Outro tipo de preparação para a prisão foi acrescentada, quando elas descobriram e foram descobertas por “criminosos procurados” – ou seja, os cristãos que estavam se escondendo ao redor da cidade. Eles se encontravam secretamente à noite, numa casa distante. Nós jejuávamos em grupo e tínhamos o hábito de comer o mais simples possível, e dormir sem usar nenhum tipo de acolchoado. Conquanto fôssemos todos pobres, nunca passamos necessidade, e nossas casas e roupas eram limpas. Éramos todos cheios do Espírito Santo e estávamos convictos de que era mais do que uma honra morrer pelo Senhor. Vivíamos constantemente com medo da polícia, mas estávamos felizes e satisfeitos, e não invejávamos a ninguém. Tendo orado a noite toda, o Pastor Power Chae sempre se levantava alegre, dançando e cantando, enquanto lágrimas escorriam por seu rosto. Para nós era uma bênção termos nascido num lugar como este e neste tempo. Compreendi que foi por causa desta perseguição que experimentei a presença de Deus e suas promessas.179
Ela e os outros visitavam os pastores que tinham sido libertos recentemente da prisão. Nesses contatos, tinham esperança de aprender mais o que esperar e de ganhar mais forças para enfrentar aquilo que estava adiante. Eles ansiavam ouvir que Deus interviria com um milagre, quando a tortura fosse além do que poderiam suportar. Mas a resposta em si era quase a tortura. “O chicote cruel dilacera a carne”, [Pastor Joo] disse casualmente, como se estivesse descrevendo um passeio no parque. “Meus nervos cavam como que queimados no fogo. O único modo de escapar era desmaiando. Não tenho idéia de quanta tortura ainda nos espera adiante, mas não espere que um milagre aconteça. Os homens mataram a Cristo na cruz do mesmo modo.” [Ei Sook continua.] Eu estava perplexa, como se tivesse sido golpeada na cabeça. Chorei até não conseguir mais chorar.180
O CAMINHO QUE DEUS APONTOU A SEGUIR Então, veio a terceira direção para o caminho particular ao qual Deus a enviava. Numa manhã, um velho senhor chegou à casa em que ela estava morando. Seu nome era Elder Park. Assim como Ei Sook, ela tinha ouvido a Deus. Seu direcionamento foi ainda mais especí co – “Chegou o tempo de escolher os soldados selecionados de Cristo! Vá para Pyongyang e procure a senhorita Ahn”.181 Lembrando-se dos soldados de rosto pálido, na estação do trem, ela perguntou a Elder Park o que Deus desejava que ele zesse. Elder Park respondeu: “Deus quer alertar os japoneses. Você fala a língua deles de maneira excelente, mas quando a vi pela primeira vez, soube que era fraca na fé”.182 Sim, ela era. Ela sabia que Elder Park estava certo: Deus a tinha chamado para ir ao Japão com esta mensagem, mas ela confessou que tinha muito medo. “Não precisa ter medo. Deus certamente nos esconderá e cegará os olhos deles. A Bíblia é a promessa de poder do Deus vivo. O que ela diz? Deus é meu refúgio. Deus nos esconderá dos inimigos.”183 Mais tarde, ela disse: Este idoso senhor causou uma mudança tranqüila em mim. Eu vinha tentando como uma fanática obter a solução simplesmente por jejuar pela perseguição que eu sabia que estava vindo sobre mim. Que privilégio honorável seria, se alguém indigna como eu fosse capaz de morrer pelo Senhor! Agora eu sentia que o tempo tinha chegado... A diferença entre este idoso senhor e os outros crentes que eu conhecia era que ele se lançava com força em direção à morte, enquanto nós esperávamos por ela.184
Ninguém que olhasse para a vida dela teria concordado que ela estava apenas esperando pela morte. Teriam visto o quanto ela estava se preparando para o aprisionamento e para a morte. Mas talvez foi isso que ela quis dizer. Elder Park não estava se preparando para a morte; ele estava mergulhando nela.
Lutando penosamente por dentro, ela se levantou de uma cama em que estava com pneumonia, vestiu sua melhor roupa e foi até o centro da cidade procurando por um sinal. Ela parou num lugar evidente e abaixou a cabeça. Disse ao Senhor: “Se as pessoas pararem repentinamente e olharem surpresas para mim, então crerei que o Senhor me concedeu um brilho especial. E, então, seguirei a sua voz em direção à morte e irei ao Japão”.185 Ela abriu os olhos e viu que ninguém estava prestando a mínima atenção nela. Talvez este era o sinal de Deus de que ela não deveria ir ao Japão. Em casa, sua mãe foi compreensiva, mas rme. “Você quer fazer aquilo que a Bíblia não diz. Jonas não orou pedindo um sinal antes de ir para Nínive. Ester não pediu um sinal antes de aparecer na presença do rei. É errado e perigoso pedir a Deus aquilo que a Bíblia não nos manda pedir. A Bíblia é o nosso guia.”186
SE EU PERECER, PERECI Depois de três dias de jejum, uma passagem da Bíblia destacou-se com esplendor brilhante – novamente Deus dava a ela sua própria Palavra como guia. Filho do homem, põe-te em pé... eu te envio... às nações rebeldes que se insurgiram contra mim; eles... são de duro semblante e obstinados de coração; eu te envio a eles, e lhes dirás: Assim diz o SENHOR Deus.
Ezequiel 2.1-4187
Ela iria ao Japão e estava certa de que morreria nas mãos dos japoneses. Então, vendo sua determinação em seguir o direcionamento de Deus, sua mãe disse: “A respeito de sua ida para alertar as autoridades japonesas, posso
pensar em muitas coisas que me fazem sentir que Deus havia preparado isto para você desde que era criança”.188 Por causa de seus estudos no Japão, ela falava com uência o japonês. Tinha feito amigos no Japão e sentia-se em casa. Anos atrás, ela voltava para visitar o Japão o máximo que podia, após terminar seus estudos naquele país. De fato, quando era estudante na faculdade, apaixonou-se por um crente japonês. Mas sua mãe disse: “Casar-se com um japonês signi ca render-se aos ídolos que os japoneses adoram. Os japoneses em si podem ser crentes, mas, visto que o Japão e os japoneses são controlados pelos ídolos, não acredito que seria um bom casamento”.189 Ei Sook tinha voltado para a Coréia sozinha, triste, mas concordando com a sabedoria de sua mãe. Enquanto Ei Sook e Elder Park partiam para o Japão, ela disse que o coração de sua mãe estava “contente e feliz, e repleto do Espírito Santo”.190 Ei Sook se fortaleceu com as palavras da rainha Ester: “Irei ter com o rei, ainda que é contra a lei; se perecer, pereci” (Ester 4.16). Na mala de Ei Sook estavam as roupas que sua mãe e sua irmã guardaram para o seu casamento. Agora vinha o desa o de trabalhar em equipe com Elder Park. A fé exercida por eles se expressava em estilos bem diferentes. Ei Sook sentia que, o mais possível, eles deviam trabalhar dentro da lei. Mas Elder Park estava certo de que as leis não os deteriam, se eles estivessem seguindo a Deus. Por exemplo, ele não tentaria tirar um passaporte, porque sabia que as autoridades não lhe dariam. Mas ele também sentia que não precisava de passaporte, porque se Deus o quisesse em Tóquio, nenhum requerimento de passaporte obstruiria o caminho de Deus. Ei Sook comprou somente a passagem de ida para a costa, porque ela esperava ser lançada na prisão, uma vez que tivessem cruzado a fronteira do Japão; portanto, uma passagem de volta não teria utilidade. Mas Elder Park riu até por ela ter comprado a passagem. “Eu não preciso de uma passagem, algo feito pelo homem, pois Deus é o meu refúgio.”191 Ela não se sentou com ele, pois não queria ser prejudicada quando ele tivesse algum problema.
Próximo à costa, quatro policiais entraram no trem para checar as passagens. Quando ela olhou para trás, os policiais já tinham passado pelo assento de Elder Park. Ele se levantou para sentar-se perto dela, deixando os policiais para trás. Eles não olharam para Elder Park, apenas passaram adiante. Ele recordou a Ei Sook que Deus era, de fato, o seu refúgio. Antes de embarcarem no navio para o Japão, ela encontrou Elder Park vestindo suas melhores roupas, e um policial auxiliando-o. “Veja, este policial está me ajudando de bom grado. Preciso me vestir como um embaixador de Deus.”192 O policial não parecia nem ao menos ouvi-lo. À bordo do barco, foi-lhes permitido que passassem direto pelos policiais sem mostrarem os passaportes. E Deus assim os cobriu durante todo o trajeto para Tóquio –ambos eram a equipe na qual Elder Park era os pés e a fé que os poderia levar até lá, e Ei Sook era a voz que poderia falar em japonês.
ADOÇÃO? Em Tóquio, eles conversaram com muitas pessoas importantes, homens que eles oraram para que exercessem alguma in uência sobre as autoridades, as quais poderiam mudar as condições na Coréia. Um deles era o Major General Hibiki, o único o cial sobrevivente da guerra russo-japonesa. Ele estava na igreja, quando o encontraram. No nal do tempo que passaram juntos, ele pediu um favor a Ei Sook: “Você é amada e usada por Deus. Por favor, você se tornaria minha lha adotiva? Poderia estudar no seminário e servir mais a Deus.” Eu não sabia o que dizer a ele. Tornar-me lha deste amado General! Que maravilhoso seria! E ir para o seminário estudar sobre o Deus que eu amava. Isto seria mais do que tudo que sempre sonhei ter na vida. Mas ao mesmo tempo recordei-me das palavras que Satanás sussurrou a Jesus: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mateus 4.9).193
O General Hibiki continuou tentando persuadi-la a viver para o Senhor, ao invés de morrer por Ele. Desse modo, ela poderia permanecer no Japão e falar sobre Deus ali. Ela comoveu-se por aquele senhor solitário, mas respondeu: “Você pensa que estou viva, mas eu já morri. No momento em que me posicionei para realizar esta tarefa, eu, Ahn Ei Sook, já morri e me tornei um cadáver. O que pode fazer um cadáver?”194 E choraram juntos. Todos com os quais ela e Elder Park conversavam cavam chocados com o que ouviam sobre a condição dos crentes na Coréia e simpatizavam-se aos seus lamentos. Mas parecia, por várias razões, que nenhuma dessas pessoas estava em uma posição que pudesse fazer qualquer coisa para mudar aquela situação.
PRISÃO Elder Park, contudo, tinha outro trunfo em sua manga; na verdade, na perna de sua calça. Ele preparou um cartaz de papel com as seguintes exigências: O governo japonês deveria arrepender-se e deixar de tiranizar a Coréia. Examinar qual era a verdadeira religião – o xintoísmo ou o cristianismo. Atear fogo a uma estaca de madeira e colocar-me nela, junto com um xintoísta. Aquele que não se queimar provará estar na verdadeira religião.195 Em março de 1939, ele discretamente tirou o rolo de dentro da perna de sua calça, na galeria da Assembléia Imperial, o parlamento japonês. Num momento crucial, ele o desenrolou e jogou no chão. “Grande Comissão de Jeová”, gritou.196 Eles foram presos.
UMA NOVA CASA Era o começo de seis anos de aprisionamento para Ei Sook. Ela foi enviada de volta para a Coréia. A princípio, as condições eram toleráveis. De fato, no início ela estava sob um tipo de prisão em casa, vivendo com sua mãe. No entanto, seis anos deram bastante tempo para mudanças na política, para uma sucessão de cadeias em diferentes locais, e para que as coisas mudassem do ruim para o quase impossível. Para Ei Sook, parecia que a prisão era o lar que Deus lhe tinha dado até que chegasse o momento de morrer. Ela não desistiria da vida enquanto a morte não a chamasse. Como teria de fazer em qualquer lugar, ela dependeu de Deus e de sua Palavra para sustentá-la. A Palavra que Ei Sook tinha disponível era a vasta quantidade de passagens que havia armazenado na biblioteca de seu coração. Todas as partes da Escritura que tinha decorado estavam ali, para serem meditadas na prisão, tal como havia sido em todos os outros momentos de sua vida, para levá-la a relembrar as promessas da delidade de Deus. Como teria feito em qualquer lugar, ela orou pelas pessoas próximas a ela. Numa das prisões, emprestou uma Bíblia ao carcereiro chefe. Mais tarde, ele lhe disse que ia demitir-se e voltar para o Japão. Ele queria começar uma nova vida, porque odiava aquele trabalho. Ele disse: “O cialmente, estou saindo para férias, mas uma mudança aconteceu em meu coração. Quero viver por uma esperança galardoadora e verdadeira, como você está vivendo”. Quando Ei Sook lhe disse que esteve orando por ele, ele respondeu: “Você orou por mim? Agora entendo”.197 Como teria feito em qualquer lugar, às vezes ela era corajosa para falar o que estivesse pensando. Um dos guardas era extremamente imprevisível e cruel. Logo que ele cava a sós com os prisioneiros, exigia algo impossível – uma noite, em particular, forçou os prisioneiros a sentarem-se em posição reta sem que se movessem durante toda a noite. Todos cavam à espera dos golpes,
a nal, qualquer motivo o deixava furioso. Finalmente, ele escolheu a dedo um dos presos e o açoitou com seu cinto, até deixá-lo inconsciente. Ele sorriu ironicamente e disse: “Foi um bom exercício”. E ordenou que outro prisioneiro limpasse o chão ensangüentado, batendo-lhe quando não fazia o serviço rápido o su ciente.198 Mesmo vivendo em meio a este quadro infernal, Ei Sook louvava a Deus por lhe ter salvado do inferno eterno. Com a caneta e o papel que lhe foram concedidos, ela escreveu um relato de vinte páginas, descrevendo tudo que ela e seus colegas presos tinham visto e experimentado. Conseqüentemente, aquele guarda foi destituído de seu cargo, e o relato foi copiado e enviado a todos os departamentos policiais do país. Durante algum tempo depois, os guardas e policiais pareciam mais cautelosos em cumprir os regulamentos. Certa ocasião, ela ousou interromper a surra que um dos pastores presos levava. Ela ralhou com o guarda: “Vá em frente! Bata em mim o quanto quiser, mas deixe-o em paz!... No coração dele há apenas amor por Deus e pelas pessoas! Você gostaria que alguém lhe batesse cruelmente quando car mais velho? Vá para casa e bata no seu pai!”199 O guarda não tinha nada a dizer, como os leões cujas bocas foram fechadas diante de Daniel.200 Em setembro de 1940, Ei Sook e outros santos foram transferidos para a Prisão de Pyongyang. Eles estavam certos de que este seria o prelúdio de sua execução. Não posso descrever como foi aquele dia para os coreanos crentes. Durante um ano, os japoneses torturaram e subjugaram pela fome os líderes cristãos coreanos mais leais, numa tentativa cruel de aniquilar sua fé em Jesus Cristo. Agora, aqueles líderes – e eu, no meio deles – estavam prestes a serem executados. Como uma das vítimas da perseguição, eu cantaria para sempre que tinha nascido e vivido para este propósito... Eu acreditava... que as igrejas de Cristo seriam edi cadas através daquelas terras. Hinos de louvor ao Senhor seriam ouvidos e proclamados pelas montanhas, vales e
cidades. As poucas sementes que foram as vidas destes crentes cairiam na terra, morreriam e produziriam muito fruto.201
AMBAS ERAM IGUAIS PARA JESUS Mas, como se via, não era ainda o tempo designado para a morte de Ei Sook. A vida se prolongou neste novo lar infernal. Numa das noites de inverno rigoroso foi impossível dormir por causa do vento congelante que entrava por meio de uma rachadura no assoalho. As mulheres na cela se ajuntaram bem para que pudessem aquecer umas às outras. De outra cela, elas podiam ouvir o estranho lamento e resmungo de uma jovem chinesa insana – uma mulher suja que tinha as mãos amarradas para impedi-la de machucar-se. Ela tinha sido sentenciada à morte por matar o marido e cortá-lo em pedaços. Ei Sook cou pensando em como Jesus trataria uma pessoa assim. As outras mulheres caram chocadas quando Ei Sook pediu-lhes que orassem para que aquela mulher fosse transferida para a cela delas. Ela importunou os carcereiros até que isto foi realizado. Todas as outras mulheres se amontoaram no lado oposto, cando o mais longe que podiam daquele odor opressivo. Por trás, Ei Sook com persistência apoiava o corpo agitado daquela mulher, até que as duas caíram exaustas no chão. Quando a mulher dormiu, Ei Sook segurou seus pés cobertos de excremento contra seu peito para aquecê-los. A mulher dormiu por três dias sem acordar, e Ei Sook cou ali segurando contra si, o tempo todo, os pés e as pernas impregnados de odor daquela mulher. Quando a mulher acordou, Ei Sook persuadiu o guarda a trazer-lhe roupas limpas. E, então, Ei Sook alimentou-a com a comida dos três dias – congelada na cela fria – que ela tinha reservado para a mulher. O tempo todo, a mulher amaldiçoava Ei Sook. Ei Sook sabia que Jesus também estava naquela batalha. Somente a sua misericórdia podia ter segurado aquelas pernas e pés e podia ter amado uma mulher que odiava tanto.
Gradualmente, a mulher começou a escutar, quando ouviu “eu gosto de você”, dito por Ei Sook, entre lágrimas. “Por que você gosta de uma pessoa como eu?”, ela perguntou. “Porque nós estamos na mesma situação.” Ei Sook sabia que ambas igualmente precisavam de Jesus, e que sem Ele, ambas estavam destinadas ao inferno eterno. Uma noite, a mulher chorou amargamente pelo lho recém-nascido, que tinha sido tirado dela quando foi presa. Depois disso, Ei Sook falou-lhe sobre o Criador daquela mulher, que nesta hora também a chamava – o seu Criador, que também jamais esquecera do seu Filho que tinha vindo ao mundo. Um guarda que retornou, após algum tempo fora, mal podia acreditar que aquela era a mesma mulher que antes estava enfurecida. Um dia, para demonstrar sua gratidão, a mulher deu a Ei Sook a coisa mais valiosa que tinha, sua única posse, pedaços de papel higiênico que ela juntava de cada distribuição diária. E pediu que Ei Sook orasse por ela. Quando chegou o dia da execução da mulher, ela deixou a cela serenamente, dizendo: “Muito obrigada”.202
O DIA NA CORTE Os crentes da prisão de Pyongyang caram detidos por tempos variados, sem julgamento. Numa manhã fria de janeiro, foram levados de suas celas para comparecerem diante da corte. Ao passar pelos portões, Ei Sook olhou para o céu, que há muito cava escondido para ela, quando estava na cela. As poucas palavras que ela escreve a respeito desta vista podiam ser um poema oriental que, em uma idéia, ilustra o momento e a vida. Elevei os meus olhos. O sol se escondia atrás das nuvens. Orei serenamente.203
As famílias dos presos esperavam por eles do lado de fora do prédio da corte, saudando-lhes com um hino: “Deus é Meu Refúgio e Fortaleza”. Ei Sook viu sua mãe – “Ela parecia cheia de con ança.”204 Num esforço por silenciar a música, o carcereiro jogou água nas pessoas. A água congelou quase que imediatamente, mas isso só aumentou o volume do canto deles. Dentro da corte, o barulho abafava a voz do juiz. Ei Sook perguntou se poderia ir lá fora aquietá-los. Ele me deu permissão e corri para fora... “Agora eu preciso testemunhar do verdadeiro Deus”, disse-lhes, “mas o juiz não pode me ouvir por causa do canto de vocês. Por favor, vocês poderiam orar por mim, em vez de cantar?”... A grande multidão curvou a cabeça e falou em coro: “Amém”.205
Enquanto ela permanecia de pé diante do juiz admirado, ele disse: “Você deve ser capaz de liderar pessoas da maneira que quiser. Com que propósito você se iludiu a ponto de arruinar-se, causar desordem na sociedade e trazer grande perda à nação?” 206 Este era o momento pelo qual ela esperou durante meses – o momento de falar o cialmente. “Senhor Juiz... o que o senhor faria se visse alguém bebendo água de esgoto sem saber o quanto é suja, e se esta pessoa diz a outros que bebam também?... Independente de qualquer perigo ou desgraça que possa vir sobre mim, eu preciso... dizer a esta pessoa que não beba daquela água. Jesus Cristo, o Filho de Deus, em quem eu creio com todo o meu entendimento, morreu por um propósito e me ensinou a viver de acordo com este propósito. Portanto... preciso testi car a verdade e salvar a pessoa que está bebendo água de esgoto.” “Quem você diz estar bebendo água de esgoto?”, ele ordenou. “O Japão Imperial. A polícia, que espanca e mata os santos de Deus, está bebendo água de esgoto. Por esta razão eu fui a Tóquio e alertei os o ciais importantes na
Parlamento japonês... Deixe-me dizer-lhe como os o ciais do governo japonês são cegos e loucos. Eles con am nas pessoas mais maliciosas e hipócritas de duas caras; promovem, honram e fazem prosperar estas pessoas, a m de destruir a igreja de Cristo e trazer uma maldição sobre a nação.... Obviamente, o Japão está se rebelando contra o verdadeiro Deus... Deus me chamou, uma coreana, para alertar o governo japonês.”207
Ela irrompeu em lágrimas, quando de repente conscientizou-se da presença de Deus que havia mantido a corte em silêncio, durante tanto tempo, a m de que pudessem ouvi-la. Ei Sook foi levada para fora, e os outros presos apareceram, um a um, diante do juiz. Quando todos tinham deixado a corte, a multidão do lado de fora cantou com grande vigor, o hino: “Coroai”. Ao voltar para a prisão, ela olhou ao redor, para seus colegas presos, sabendo que, para alguns, os portões daquela prisão eram como os portões da morte e do céu. E quando eles estivessem no céu, “diriam a Jesus que foi por causa de seu amor e não por causa de suas próprias forças que eles não negaram a fé”.208
APENAS UMA MAÇÃ, POR FAVOR Depois de muitos anos de frio, enfermidade e fome, seu corpo relativamente jovem estava magro, curvado e atro ado. Até mesmo abrir os olhos parecia-lhe muito difícil. Inesperadamente, ela desejou com avidez comer uma maçã. “Oh, Jesus, eu gostaria de comer uma maçã. Tu conheces todo o meu organismo. És o único que podes realizar este desejo. Por favor, conceda-me uma maçã inteira.”209 Ela só conseguia pensar em maçãs. De repente, ela ouviu os carcereiros falando sobre um carregamento de maçãs estragadas que ninguém queria. Ei Sook implorou por aquelas maçãs, e elas foram deixadas em sua cela, para ela e para as outras mulheres que estavam presas com ela. Ela comeu e comeu.
Aquelas maçãs marrons, amolecidas, pareceram-lhe como o céu, como a fruta do céu. A dor deixou o seu corpo, e todas as funções de seu organismo reviveram. E ela louvou a Deus por lhe enviar maçãs estragadas, porque seus dentes estavam muito ruins para comer maçãs frescas. Ela se preparou para esta alegria naqueles dias passados, em que comera a parte mais estragada dos alimentos do mercado.
SEU PAI Na prisão, ela recebeu a notícia de que seu pai havia falecido. Perto de morrer, ele havia chorado durante dez dias por seus pecados, chamando o nome dela e de sua mãe, e pedindo perdão. E antes de morrer, clamou o nome de Jesus e arrependeu-se, e louvou a Deus. Até onde ela pôde se lembrar, tinha implorado a ele que se arrependesse. Agora suas orações haviam sido respondidas.210
O LEÃO DEVORADOR O ritual de adoração ao relicário de Xinto perseguiu os crentes até na prisão. Foi decretado que no oitavo dia de cada mês, cada pessoa, nos países dominados pelo Japão, tinha de curvar-se diante do relicário. Os prisioneiros não estavam isentos. Em suas celas, eles tinham de se curvar em direção ao grande relicário. O carcereiro chefe, sabendo que Ei Sook seria uma “má” in uência, tirou os prisioneiros que cavam em sua cela. Ei Sook jejuou e orou. Já esgotada sicamente, o medo seria quase su ciente para fazê-la ter um colapso e curvar-se. No oitavo dia, ela esperou com medo pelo sinal. Ela descreveu sua fé como sendo uma pequena borboleta em meio a um temporal. Sentiu que caminhava pelo vale da sombra da morte.
A hora chegou. E passou. Nenhum sinal! Uma hora mais tarde, eles descobriram que quando o comandante se levantou para falar às massas reunidas diante do relicário foi interrompido por um telefonema urgente. O avião do governador tinha sido bombardeado por um avião americano, e por isso nenhuma das resoluções daquele governador estavam se realizando. Ela registrou a oração: “Oh, Pai celeste, Tu me mostraste que és o Salvador. Eu quase fui devorada pelo leão, mas Tu me salvaste de suas presas. Tu és o Deus vivo... Eu temo e amo somente a Ti. Eu ouvirei e obedecerei a Ti para sempre”.211
A CORÉIA INTEIRA, UMA PRISÃO Chegou um dia em que o médico da prisão pediu que ela fosse solta, porque, sem tratamento, estava cando cega. E seus pés estavam queimados pelo frio. Suas emoções variavam ao extremo, desde a empolgação por estar com sua mãe até a lembrança da gratidão e honra que sentiu no passado, pela perspectiva de estar entre os mártires. Ela perderia esta honra se fosse para casa. Ela lutou consigo mesma a noite toda, mas não conseguiu decidir se era certo ou não sair de lá; então, deixou nas mãos de Deus. Na manhã seguinte, ela foi liberta, a m de que fosse para casa. Ela disse: “Estava tão feliz que queria cantar em voz alta; contudo, um peso, uma intranqüilidade me cercava”.212 Ela se encontrou com sua mãe no escritório externo. “Por que você está saindo? Por que só você teve este privilégio? Outros crentes não saíram.”213 Ei Sook, explicou: “Não estou completamente livre. Em casa, terei bom descanso e comida quente. Isso vai me curar. Depois voltarei para a prisão”.214 Então, as palavras ditas por sua mãe trouxeram uma dura realidade à luz. Todos os coreanos estavam vivendo na prisão, não apenas os que estavam atrás das grades.
“Você acha que pode conseguir comida nutritiva nesses dias? E onde pode encontrar um quarto aquecido?... Não podemos conseguir nada, a não ser o que é dado pelo racionamento. Nem mesmo um grão de arroz... Temos de comer casca de feijão, alho poró, ou qualquer coisa que conseguirmos. Por isso, estou cega agora; não posso ver o seu rosto... Não podemos conseguir gás. Meus pés estão tão queimados pelo frio que mal posso andar. Um cidadão que é leal a Deus não tem lugar neste mundo. Os crentes estão morrendo na prisão, e do mesmo modo, os crentes que estão aqui fora...” “Você não entregou tudo ao Senhor, inclusive seus olhos?”215
Ei Sook agradeceu à sua mãe por abrir-lhe os olhos para a realidade que estava além das paredes da prisão. Então, ela pediu ao guarda que lhe permitisse voltar à sua cela. “Nunca vi nada assim antes”, disse o o cial superior coreano. “A lha é nobre, e a
mãe mais nobre ainda.”216
Daí em diante, todas as noites Ei Sook olhava pela pequena janela e imaginava sua mãe, sub-nutrida e de pés queimados pelo frio, do outro lado do alto muro de tijolos vermelhos. Ela tinha dito a Ei Sook que vinha todas as noites orar por ela.
LIBERDADE Em 15 de agosto de 1945, o Japão assinou um documento de rendição incondicional. A Segunda Guerra Mundial havia acabado e a Coréia estava livre. Os presos dentro e fora das prisões estavam jubilosos. Não haveria mais recrutamento militar... Ouviriam o coreano ser falado novamente... Cada um
teria de volta o seu nome de nascimento... E não mais teriam de reverenciar relicários. Os relicários estavam todos sendo queimados. Trinta e quatro pessoas entraram na prisão de Pyongyang, em 1940. Em agosto de 1945, quando as celas foram abertas, havia quatorze sobreviventes. O carcereiro gritou para os que estavam do lado de fora: “Senhoras e senhores! Estes são os que durante seis longos anos se negaram a reverenciar os deuses japoneses. Eles lutaram contra a tortura severa, fome e frio, e venceram, sem curvar suas frontes ao ídolo de adoração do Japão. Hoje eles são os campeões da fé!”217 A multidão à espera gritou: “Louvado seja o nome de Jesus!” e cantaram juntos: Saudai o nome de Jesus! Arcanjos vos prostrai! Arcanjos vos prostrai! O Filho do glorioso Deus, Com glória, glória, glória, glória, Com glória, coroai!218
Os antigos presos foram escoltados em riquixás de duas rodas, puxados por um ou dois homens, e se tornaram parte de uma parada vitoriosa, cantando e louvando pelas ruas de Pyongyang.
ALGUM TEMPO DEPOIS, NA CORÉIA Os japoneses deixavam a Coréia o mais oportuna e rapidamente possível. E quarenta anos depois de os japoneses os terem banido em 1904, os russos voltaram à Coréia do Norte, que tinha sido separada da Coréia do Sul, no paralelo 38. Os coreanos mais antigos se lembraram da ocupação russa como sendo ainda pior do que a japonesa. Por isso, um grande número de coreanos preferiu abandonar sua propriedade e fugir para o sul, e não permanecer em território comunista.
A família de Ahn Ei Sook foi forçada a tomar esta decisão depois que Ei Sook foi seqüestrada por comunistas que planejavam transportá-la para Moscou e forçá-la a servir como ferramenta do governo tirânico da Coréia. Mais uma vez, Deus miraculosamente deu a ela a oportunidade de simplesmente sair e fugir, como já havia feito uma vez antes. Com a ajuda de muitos crentes, ela escapou e foi para Seul, na Coréia do Sul. Lá conheceu Kim Dong Myung, um engenheiro a quem ela descreveu como “ardente de amor por Deus”.219 Ele se tornou seu marido. Ela sempre quis se casar com um engenheiro. Sua mãe sempre orou para que ela se casasse com um pastor. Ei Sook disse: “Minha mãe e eu temos competido uma com a outra em nossas orações. Nós duas rimos de nossa predição”.220 Mais tarde, o marido de Ei Sook deixou a engenharia para tornar-se pastor.
ALGUM TEMPO DEPOIS, NOS ESTADOS UNIDOS A história de Ei Sook havia se difundido, e os americanos queriam ouvir mais a respeito. Os crentes dos Estados Unidos pagaram a viagem dela, para que ela pudesse ir até lá e dar o seu testemunho. Ela esperava voltar à Coréia em três meses. Mas os Estados Unidos tornaram-se sua nova casa. Ela e seu marido americanizaram seus nomes para Don e Esther Ahn Kim. Depois de se formar no seminário, Don tornou-se o pastor fundador da igreja Berendo Street Baptist Church, em Los Angeles. Esta era a segunda congregação coreana dos batistas no sudeste dos Estados Unidos. O apartamento em que moravam serviu de centro de visitas e de acolhida para muitos jovens que estavam longe de casa e que precisavam de um lar e um alicerce cristão. Durante os anos em que serviram em Berendo Street Baptist Church, eles voltaram a Coréia muitas vezes, para trabalhar em implantação de igrejas, assim como nos Estados Unidos. Esther viajou ao redor do mundo, falando da delidade e do poder de Deus.
Até a sua morte, quando era quase centenária, ela ainda admoestava as pessoas e orava por elas. E ainda decorava versículos da Escritura, agora em inglês, a m de acrescentar à sua biblioteca do coração, que já existia em coreano e em japonês. A primeira crise pública da vida de Ei Sook foi no dia em que esperavam que ela se curva-se no Monte Namsan. Quando penso em sua experiência interior durante aquelas horas, percebo que existiu um padrão semelhante que compôs sua vida ao longo dos anos subseqüentes. E nós, também, freqüentemente trilhamos este mesmo padrão em nós mesmos quando estamos com medo. 1. Ela se lembra do exemplo de alguém em uma situação semelhante – neste caso, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, na fornalha. 2. O efeito é que a con ança deles em Deus produz con ança nela: “Com o auxílio de Deus, nunca me curvarei”. 3. Ela ora. 4. Em resposta, Deus enche seu coração de paz. 5. Esta paz a leva a um comprometimento maior do que apenas para esta circunstância em particular: “Não viverei para mim mesma. Oferecerei minha vida ao Senhor”. 6. Ela se lembra de uma promessa de Deus: “Ninguém pode arrebatar as minhas ovelhas da minha mão”. 7. O medo vem sobre ela novamente quando se aproxima o momento. Uma oração e uma promessa não são su cientes para afastar permanentemente o medo. 8. Ela confessa sua fraqueza e seu medo a Deus. 9. Deus faz com que ela se lembre novamente de sua promessa: “Eu conheço as minhas ovelhas e elas me seguem”. Precisamos das promessas de Deus o
tempo todo. Quanto maior o nosso medo, mais ainda precisamos da certeza que vem de Deus. 10. Ela age. Ela continua seguindo com sua intenção con ante de permanecer rme. 11. Mas ainda não é o m. A incerteza volta. “E se eu não conseguir suportar as conseqüências?” 12. Uma vez mais, ela encontra consolo na Palavra de Deus, em sua promessa: “Não vos deixarei órfãos... A minha paz vos dou”. Este tipo de oscilação é muito comum em nós. Temos medo. Oramos. Deus nos dá con ança. Mas não permanecemos con antes. Caímos novamente no medo. E novamente Ele nos resgata, dando-nos coragem para continuarmos seguindo em frente para aquilo que nos dá medo, e que nos espera adiante. De fato, este é o padrão da vida. Nós apenas experimentamos isto de modo mais intenso nas horas de crise. Na história de Ei Sook, o pêndulo da vida se move de maneira ampla: para um lado, sucumbindo ao medo e quase desistindo; para o outro lado, com palavras e ações destemidas. Não podemos ignorar o incrível armamento que ela empunhou nesta batalha pela fé, a quantidade de versículos que ela já tinha decorado. Ela não precisou de tempo ou recursos para pesquisar uma concordância ou uma Bíblia para encontrar uma palavra apropriada de Deus. A Palavra estava na ponta de sua língua exatamente no instante em que ela precisava pregar para si mesma e quando precisava ouvir Deus falar. Os versículos decorados tiveram um papel importante no estágio seguinte da vida de Ei Sook – a preparação para o sofrimento. Penso que se Ahn Ei Sook estivesse aqui, ela nos diria que é bom que nos preparemos para o que quer que venha adiante, seja perseguição ou martírio, ou alguma coisa menos drástica. Provavelmente, ela começaria a nos ajudar a ver que o sofrimento é normal:
Eu sempre me sentia fortalecida quando conversava com minha mãe sobre Deus e o amor dEle por nós. Comecei a pensar que a vida podia ser melhor vivida nesse tempo de perseguição. Poderia até ser uma gura mais verdadeira do crente, o agonizar, o sofrer, o ser odiado, e torturado e até ser morto em obediência às palavras de Deus, em lugar de ter uma vida comum e insigni cante.221
Alguns de seus recursos de preparação deveriam ser padrões para nós, independentemente da situação em que vivemos no momento. Oração Adoração Prática de uma vida simples Generosidade com as coisas boas, não apenas com sobras Memorização da Escritura Ouvir as histórias de outras pessoas sobre as provações delas e a solução de Deus Talvez ela desejaria deixar-nos estas palavras de Deus a respeito do sofrimento e da perseguição: Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós. Mateus 5.11-12
Digo-vos ainda: todo aquele que me confessar diante dos homens, também o Filho do Homem o confessará diante dos anjos de Deus. Lucas 12.8
Pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando. Se, pelo nome de
Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus. 1 Pedro 4.13-14
Então, ele [Deus] me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. 2 Coríntios 12.9
Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. Romanos 8.18 Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. Romanos 8.35-39
Ela provavelmente acrescentaria as palavras de um hino, dentre os muitos hinos que tinha guardado em seu coração: Se temos de perder os lhos, bens, mulher, Embora a vida vá, por nós Jesus está, E dar-nos-á Seu reino.222
Quando Deus nos chama ao sofrimento, está nos oferecendo o privilégio de entendermos mais claramente a encarnação de Cristo. Passar o Natal na prisão ofereceu a Ei Sook um vislumbre do contraste que deve ter sido para Jesus, vir dos lugares celestiais para este mundo.
Chegou o Natal na prisão. Chegou em meio à fome severa, o frio rígido e à tortura dolorosa por parte dos carcereiros mais vulgares. O Natal era também uma ocasião alegre. Como cantei louvores a Deus em outros Natais, e regozijei com a santidade que se derramava no meu coração! Mas agora eu fora tocada por uma verdade que jamais havia conhecido antes. Deus verdadeiramente tinha enviado seu Filho a este mundo sombrio e imundo. Ele se humilhou para nascer como homem. Experimentou a pobreza, o cansaço, a dor, o sofrimento e grande perseguição. Ele foi odiado e rejeitado, batido e cuspido, e pendurado numa cruz para morrer! E sua morte teve como propósito a salvação de uma pecadora indigna como eu.223
Em outro tempo, uma jovem colega de cela estava enfraquecida pelo medo. Enquanto Ei Sook a confortava, ela mesma viu mais claramente a Jesus. Toda vez que ouvíamos um carcereiro vindo, ela pensava que havia chegado o momento em que seria levada para a execução. “Tente não se preocupar com isso”, disse a ela. “Pode ser que eu seja executada junto com você. Porque não vivemos juntas como amigas e morremos juntas?” Ela pareceu ter cado muito confortada com minhas palavras, e por m conseguiu se aproximar de mim sem nenhuma reserva. Descobri que ser o mesmo tipo de pessoa teve um efeito especial sobre ela. Foi isso que Jesus fez por nós. Ele se tornou ser humano como nós e andou entre nós. Se Ele não tivesse se tornado um homem, não teria sido capaz de nos salvar.224
O sofrimento de Ei Sook nos deixou outra lição. Quando o sofrimento é grande, camos vulneráveis à dúvida. Ela escreveu a respeito de outro período particular de tortura agonizante: Eu implorei a Deus que me tirasse os sentidos e me deixasse morrer. Certamente, se eu tivesse sido uma crente forte, um milagre teria ocorrido para tirar a dor, ou eu teria recebido a força que precisava para suportar aquilo calmamente. Em minha oração desesperada eu estava reclamando. Percebendo minha fraqueza, tive medo. Pensei que tinha fé; porém, eu realmente a possuía ou estava apenas me enganando?
Jesus rejeitaria uma pessoa assim tão pecadora? Seria eu uma lha pecadora, sem valor, sem importância para Deus? Eu estava confusa. Por causa da dor excruciante, não pude recitar nenhum versículo da Escritura.225
Esta última frase tem a chave para o seu desespero. Naquele momento, ela não tinha a Palavra de Deus – nenhuma espada para empunhar contra os dados in amados do maligno. Ela foi capaz, entretanto, de fazer uma débil oração, e Deus provou estar perto. Enquanto olhamos para a força que Deus demonstrou através da vida de Ahn Ei Sook, também devemos tirar lições do exemplo de sua mãe. Oro para que todas nós que somos mães e mentoras (quer o cialmente ou apenas pela virtude de ter mais experiência), saibamos ter o equilíbrio que a mãe de Ei Sook possuía. Ela foi gentil com sua lha enferma, e transformou sua fé infantil em uma fé madura. Mas aquele espírito que nutria estava envolto em seu amor à verdade e na sinceridade ao falar esta verdade. Ela não foi dominada pelo medo, quando sua lha esteve numa situação apavorante. A simpatia não fez dela uma pessoa débil. Ela deve ter derramado muitas lágrimas por amor a Ei Sook. Mas, suas lágrimas e temores parecem ter sido reservados para momentos particulares entre ela e Deus. Não quero dizer que devemos ser como pedras estóicas. Quero dizer que o medo e a doença devem andar junto com a coragem e a força, não com o tipo de simpatia que aumenta o senso de abandono. A mãe de Ei Sook nos dá um exemplo em outro sentido também – ela sofre, sofre a perda de sua lha. Enquanto Ei Sook ia para o Japão, esperando ser presa e executada, ela disse que sua mãe estava “contente e feliz, e repleta do Espírito Santo”.226 Que modelo para nós: enviar nossos lhos e amigos aonde Deus os guia!
A cidade natal de Ei Sook, Bhak Chon, ca ao lado do Rio Tarung, um rio de águas cristalinas. Como um torre, atrás da cidade, está a Montanha Won Su Bong. Por serem lindíssimos, tanto o rio como a montanha, as pessoas da cidade sempre disseram que um herói nasceria ali. Após conhecer Esther Ahn Kim e sua história, em meio ao cristianismo na Coréia, freqüentemente pensava em meus amigos aqui nos Estados Unidos, vindos do contexto coreano, imaginando como sua vida e a vida de seus familiares devem ter sido tocadas por essa história. E esta história de Esther Ahn Kim, na Coréia, é dedicada a estes amigos, de modo especial à Sam e Shua Shin que primeiramente deram razão para voltar meus olhos à Coréia... A John e Sung Kim, cuja paixão é para com corações apaixonados por Jesus... e a Charles Park, que tem sido como um lho à nossa mesa.
NOTAS DO CAPÍTULO 4 158 Kim, Esther Ahn. If I perish. Chicago: Moody Press, 1977. p. 228. Contei apenas
uma pequena fração da história de Ei Sook. Incentivo que as pessoas leiam este livro para um conhecimento mais abrangente sobre a vida dela. 159 Esther Ahn Kim era seu nome americano de casada. 160 Kim, Esther Ahn. p. 95. 161 Idem. p. 96. 162 Idem. p. 144.
163 Idem. p. 146-147. 164 Idem. p. 14. 165 Idem. p. 115. 166 Daniel 3. 167 Kim, Esther Ahn. p. 15-16. 168 Idem. p. 18. 169 Idem. p. 16-17. 170 Idem. p. 19. 171 Idem. p. 27-28. 172 Idem. p. 28. 173 Idem. p. 34. 174 Idem. 175 Idem. p. 35. 176 Idem. p. 38. 177 Idem. p. 47-48. 178 Idem. p. 50. 179 Idem. p. 53. 180 Idem. p. 54. 181 Idem. p. 57. 182 Idem. p. 58. 183 Idem. 184 Idem. p. 59.
185 Idem. p. 60-61. 186 Idem. p. 61. 187 Idem. 188 Idem. p. 60. 189 Idem. p. 167. 190 Idem. p. 65. 191 Idem. 192 Idem. p. 67. 193 Idem. p. 83-84. 194 Idem. p. 84. 195 Idem. p. 86. 196 Idem. p. 89. 197 Idem. p. 116-117. 198 Idem. p. 107-108. 199 Idem. p. 124-125. 200 Daniel 6.22. 201 Kim, Esther Ahn. p. 137-138. 202 Idem. p. 171-180. 203 Idem. p. 155. 204 Idem. p. 156. 205 Idem. p. 157. 206 Idem. p. 158.
207 Idem. p. 158-159. 208 Idem. p. 160. 209 Idem. p. 225. 210 Idem. p. 228-230. 211 Idem. p. 235. 212 Idem. p. 239. 213 Idem. 214 Idem. p. 240. 215 Idem. 216 Idem. 217 Idem. 257. 218 Ellor, James. “All Hail the Power of Jesus’ Name”. 219 Kim, Esther Ahn. p. 275. 220 Idem. p. 175. 221 Idem. p. 27-28. 222 Lutero, Martinho. “Castelo Forte”. 223 Kim, Esther Ahn. p. 169. 224 Idem. p. 211-212. 225 Idem. p. 219. 226 Idem. p. 65.
Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé; para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte; para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos. Filipenses 3.7-11
Helen Roseveare FIEL NA PERDA
E
m 1482, dez anos antes que Colombo iniciasse sua navegação em direção ao ocidente pelo grande mar, Diogo Cão navegou do sul de Lisboa, sendo ele o último de uma seqüência célebre de aventureiros portugueses. Navegando cuidadosamente ao lado da costa, cada explorador sonhava ir mais longe ao sul desconhecido do que qualquer outro jamais fora antes. Assim, quando Diogo Cão deu a volta ao redor do cabo ocidental do continente africano, e descobriu que seu navio estava em uma maré de águas novas, amareladas e turvas, tornou-se o primeiro europeu a navegar pela corrente do poderoso Rio Congo, que lançava meio milhão de metros cúbicos de água por segundo no Oceano Atlântico. Um dos nomes do rio é Nzere, “O rio que engole todos os outros rios”. Ele também engoliu pessoas que tentaram seguir seu curso turbulento através da selva densa e malárica e passar pelas tocas de pessoas isoladas e descon adas. Depois de Diogo Cão ter descoberto o rio, quase 400 anos se passaram até que um europeu, Henry Morton Stanley, completasse a jornada em toda a extensão do Rio Congo, em 1877, partindo de canoa, do interior para o Atlântico. Ele se tornou famoso alguns anos antes, depois de sua busca bem-sucedida pelo missionário-explorador com quem o mundo inteiro perdera o contato – “Dr. Livingstone, eu presumo!”a A travessia do Congo feita por Stanley despertou o interesse dos europeus e americanos naquele gigante escondido. No ano seguinte, missionários
protestantes começaram a chegar no Congo.227 Mas o rio e os quilômetros de oresta impenetrável não eram, de modo algum, abertos ao público. A área ainda permanecia misteriosa e de difícil acesso em 1925, quando Helen Roseveare nasceu em Haileybury, na Inglaterra, apenas quarenta e oito anos depois da expedição de Stanley naquele rio, e vinte e um anos depois de sua morte. A família de Helen vivia em um país onde os cidadãos estavam de alguma forma cientes a respeito das nações e dos povos com os quais a Inglaterra tinha um relacionamento colonial. Isto parece ter sido particularmente verdadeiro no lar dos Roseveares. Helen não foi a única entre eles que foi para a África. Seu irmão, Robert, lecionou por mais de uma década em várias partes da África do Sul.228 Seu pai, o senhor Martin Roseveare, mudou-se para Malawi aos cinqüenta e nove anos, e “estabeleceu o sistema educacional de Malawi, onde viveu até a sua morte”,229 aos oitenta e seis anos. Helen ainda se lembra de sua professora de escola dominical falando a respeito de povos e lugares distantes: Lembro-me vividamente do dia maravilhoso (meu aniversário de oito anos), quando ela nos falou sobre a Índia, e nós recortamos guras de crianças indianas e colamos em nosso “Livro de Oração Missionário”. Foi quando a resolução silenciosa foi feita. Quando crescer, vou falar com outros meninos e meninas sobre o Senhor Jesus – uma determinação de infância que nunca mudou.230
Helen amava o “ar de mistério que pairava aos domingos”. Freqüentando a igreja anglicana,231 ela era despertada pelo ...edifício frio e escurecido, com seus altos bancos talhados em madeira... os meninos do coral com suas vestes brancas rendadas e de golas franzidas... a cruz e o incenso... o órgão ressoante e a música incomum e rica que preenchia o edifício até a grande cúpula esculpida... o sermão com seus tons graves de voz; tudo isso eu amava,
absorvendo quase que inconscientemente uma impressão duradoura de beleza e solenidade.232
Contudo, o lugar da igreja na família era ofuscado pelas ocupações escolares, especialmente nos complicados campos matemáticos. Desde a mais tenra infância, Helen levava o peso da “incessante necessidade de ser amada e querida”233 – de ser boa o su ciente. Enquanto crescia, isto se desenvolveu em relação a se sobressair na escola – e não apenas sobressair, mas ser a número um. “Eu sentia, lá no fundo, que se não fosse bem na escola, falharia em receber amor e respeito de meus pais e de meu irmão, que eram tão importantes para mim.”234 Conseqüentemente, era raro que ela falhasse nos resultados. A pequena Helen já estava contaminada pelas próprias dúvidas, insegurança e orgulho que se tornariam o cerne da maioria de suas lutas espirituais como adulta. De algum modo, em meio a isso, tornei-me consciente sobre Deus... Eu precisava de alguém muito grande, muito maior do que eu! E assim Deus se introduziu em minha vida – e z a con rmação [com os outros que também tinham 12 anos de idade]... Tenho certeza de que não entendi o verdadeiro ou o completo signi cado disso... Esse foi o início de minha busca consciente, mas vacilante, por Ele... Deus sabia – e me aceitou – e inclinou-Se para mim, a m de atrair-me constantemente a Ele.235
Durante os anos de ensino médio, sua fome por Deus se expressou em esforços determinados “em ajudar os outros, em ser boa, em ser sincera”.236 Esses esforços levaram-na a ser mais perfeccionista. Ela “esforçava-se em busca do Poder Invisível que satis zesse todas as suas necessidades. E ainda assim... as necessidades aumentavam; a desesperança era mais desesperada; a futilidade da vida cava, às vezes, quase insuportável... E em todo o tempo Deus me direcionava para que eu visse que em mim mesma não havia nada,
absolutamente nada de valor... Como poderia encontrá-Lo... e perder-me nEle?”237 Em julho de 1944, Helen começou a estudar medicina no Newnham College da Universidade de Cambridge. Cheia de timidez e do medo da inferioridade, foi levada sob as asas de algumas moças, cujas “vidas e rostos irradiavam uma felicidade e paz quase que contagiante, e obviamente bem satisfatória”.238 Elas eram membros da União Cristã Inter-colegial de Cambridge, e Helen começou a freqüentar estudos bíblicos, preleções cristãs e outras atividades, junto com aquelas moças. Ainda hoje posso me lembrar da primeira vez que cantei “Mais de Cristo eu quero ter...” Todo o meu ser foi profundamente despertado. Uma noite, estávamos sentadas ao redor da lareira no quarto de Sylvia para um estudo bíblico, no m de outubro. Não me lembro do estudo, mas as palavras do hino continuaram ressoando em minha mente. Quando as outras se dispersaram, continuei sentada no tapete, olhando xamente para o fogo, com um grande anseio no âmago de minha alma. “Mais de Cristo eu quero ter...” Era como se uma janela se abrisse e, lenta e surpreendentemente, atordoada em admiração, vislumbrasse através dela – um graveto estalou no fogo, e o vislumbre se foi. Outra vez, insistentemente, agarrei-me ao momento, desejosa de que a presença de Jesus se tornasse real em minha alma, a glória pareceu resplandecer, uma luz de grande esplendor. Eu mal ousava respirar; senti como se a vida estivesse suspensa, arrebatada, sem fôlego. Meu coração fora preenchido com alegria e admiração – e passou.239
Helen começou a ler as Escrituras avidamente. Suas amigas acreditavam que ela tinha se convertido, mas ela diz: “Ainda assim eu não tinha paz, não tinha satisfação no coração... Estava certa de que era real e verdadeiro; mas também tinha consciência de que me faltava alguma coisa”.240 Durante o Natal de 1945, a irmã mais nova de Helen teve caxumba, e ela não pôde ir para casa. Suas amigas cuidaram para que ela participasse de um grupo familiar de treinamento para obreiros cristãos. Em preparação para uma
classe, ela estudou com toda a atenção o livro de Romanos e cou tão imersa que, sem perceber, passou a noite toda acordada. No dia seguinte, ela caiu daquele estado de elevada espiritualidade, por causa uma discussão com alguém na mesa do jantar. Eu... subi correndo, amargamente envergonhada por ter me deixado levar a uma discussão e perder o controle de mim mesma. De repente, lancei-me sobre minha cama, numa enxurrada de lágrimas e solidão. Com um sentido esmagador de desesperança, clamei a Deus (se é que havia um Deus) que me viesse ao encontro e que Ele se zesse real e vital para mim. Levantei os olhos e, através de minhas lágrimas, li o texto na parede: “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus” (Salmos 46.10). Isso foi tudo. Imediatamente todo o fardo se desfez. Aquietar-me e conhecer a Deus, cujo nome é “Eu Sou”... Parar a luta que procura entender com o intelecto. Apenas aquietar-me e conhecê-Lo. Naquele momento, uma grande paz, alegria e felicidade in nitas me inundaram, e eu recebi mais de Cristo e compreendi que Ele e eu entramos em um novo relacionamento.241
Ela também sabia que isso não tinha acontecido do nada. Deus a tinha preparado e usado sua busca para ajudá-la a encontrá-Lo. A leitura constante das Escrituras nos meses anteriores, a escuta cautelosa do ensino doutrinário, tanto no grupo familiar quanto nas reuniões da União Cristã, tinham preparado o caminho. Durante anos o Espírito Santo vinha abrindo os meus olhos para a consciência do pecado, convencendo-me de minha indignidade diante de um Deus Santo. Mas agora chegara o maravilhoso dom do arrependimento. Deus derramou sua graça em perdão, em puri cação de toda a impureza do pecado, e em revelação, nesse tempo, do maravilhoso milagre da amizade com Cristo.242
E Deus ainda não tinha terminado a obra. Quando Helen voltou a reunir-se com o grupo e disse o que lhe tinha ocorrido, um veterano professor da Bíblia escreveu Filipenses 3.10 na nova Bíblia de Helen: “Para o conhecer, e o poder
da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte”. Ele me disse: “Esta noite você entrou na primeira parte do verso, ‘para o conhecer’. Este é apenas o começo, e há uma longa jornada adiante. Minha oração é que você persevere até a segunda parte do verso, para que conheça ‘o poder da sua ressurreição’, e também, se Deus quiser, quem sabe um dia ‘a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-se com ele na sua morte’”.243
Helen voltou para seu quarto naquela noite, e leu este versículo em seu contexto. E assim, no próprio dia em que Deus a atraiu para Si mesmo, também mostrou-lhe suas palavras, em Filipenses 3.7-11, que vinte anos mais tarde dariam sentido ao evento mais doloroso e aparentemente mais irracional de toda a sua vida.
MAS O QUE, PARA MIM, ERA LUCRO, ISTO CONSIDEREI PERDA POR CAUSA DE CRISTO Mesmo antes desta experiência com Cristo, Helen sabia que tinha um chamado para missões. Ela sentia esse chamado tão fortemente que era difícil entender porque todo crente não se preparava para missões. Ainda como estudante de medicina, ela aceitava convites para ser médica de acampamentos de verão, liderar estudos bíblicos, dar seu testemunho em público. Acima de tudo, ela pesquisava a Escritura para preencher grandes vácuos em seu conhecimento e para conhecer Deus mais intimamente. Em meio ao seu ministério crescente e muitas horas de treinamento pro ssional intenso, estava também um incômodo senso de dúvida e insegurança.
Eu tinha a tendência de chamar certos pecados de fraqueza – ou fragilidades humanas – e, portanto, desculpá-los. Era melhor falar de exagero... do que de mentira. No entanto, senti que estava praticando a desonestidade em minha mente, ao permitir tais desculpas a mim mesma... Então, lentamente começou a surgir uma sensação de exaustão. A alegria e o entusiasmo dos primeiros três anos de repente pareciam estar sumindo... O trabalho começou a desnortear-me; infelicidade, solidão, temor, inferioridade, tudo isso tomou conta de mim. Ao mesmo tempo, o estudo bíblico e a oração se tornaram algo super cial e mecânico ao invés de prazeroso... O testemunho continuou, mas sem fé real ou expectativa de ver resultados. Olhando para trás é fácil perceber que pelo menos parte da explicação está no fato de que, como muitos de meus colegas da faculdade de medicina, eu sofria com o trabalho excessivo e a extenuação resultante de um programa muito cheio... Eu... pensava que esta exaustão era falha espiritual.244
Suas dúvidas também afetaram seu trabalho pro ssional. Nas alas do hospital e na frente de outros médicos, eu estava muito ciente de minha inferioridade, ou do medo do que os outros pensavam. Esta timidez enfraquecida apenas teria de ser subjugada e vencida pela morte diária do eu, através de um esforço vigoroso e dolorido. Ainda assim, havia pouco sucesso.245
Anos mais tarde, ela escreveu que naqueles primeiros anos tinha entendido mal o que era crescer na vida cristã. Ela pensava que este crescimento deveria ser uma escalada constante, buscando maiores alturas, até que nalmente se alcançasse o pico da montanha. Mais tarde, naquele tempo, com a perspectiva dos anos e a maturidade, ela entendeu que a vida não é apenas um pico, mas uma cordilheira, com vales entre as montanhas. Freqüentemente, eu achava que havia atingido um glorioso esplendor do sol... e me preparava resolutamente para o próximo cume que pudesse contemplar. Quando o alcançava, eu me regozijava com o senso de realização e vitória e com a gloriosa
visão... Então, lentamente minha imaginação era cativada pelo próximo cume... e a determinação se prepararia para subir novamente... Enquanto eu descia deste topo para o vale entre as montanhas, freqüentemente caminhava à sombra do cume com o qual acabara de regozijar-me. Eu interpretava isto como um fracasso, o que freqüentemente me levava ao desespero... Agora percebo que estava errada... A descida era apenas um movimento inicial em direção à próxima elevação, e nunca, por assim dizer, um retorno a um nível inferior. A sombra surgia apenas depois do esplendor do sol; o vale poderia proporcionar um período de descanso, para desenvolver as experiências aprendidas anteriormente, e um tempo de refrigério que me preparava para a próxima subida árdua. Se eu tivesse entendido o signi cado do esplendor do sol e da sombra em minha vida, em vez de interpretar minhas diversas experiências na jornada da vida como “altos” e “baixos”, teria me poupado de muitas tristezas profundas.246
No último ano da faculdade de medicina, Helen perdeu a voz, o que providenciou uma ocasião para que Deus demonstrasse seu poder e propósito. Após uma cirurgia para remover nódulos benignos de suas cordas vocais, ela foi proibida de falar durante alguns dias. Em uma manhã, na quietude do seu quarto no hospital, ela experimentou a presença iluminadora de Deus – invisível, mas como se ela pudesse quase vê-Lo. A partir daquela manhã, o ódio pelo pecado surgiu. Até então, eu odiava as conseqüências do pecado, a vergonha por falhar, o medo de ser exposta... Agora, subitamente eu conheci um ódio intenso por tudo aquilo que cruci cou o meu Senhor. Era um ponto de mudança para mim. A trilha de descida do pico da felicidade, com seus questionamentos e confusões, foi levada. De repente, o próximo cume colocou-se claramente diante de mim... Ele, que me chamava para servi-Lo além-mar, estava diante de mim, sorrindo, prometendo-me sua presença, companheirismo e capacitação, dizendo-me para olhar adiante e para cima, e não para trás e para dentro de mim. De repente, todos os meses de lutas e anseios se foram; eu estava satisfeita. Não que minhas dúvidas tivessem sido totalmente esclarecidas; elas apenas não precisavam mais de explicação.247
Esta segurança cou abalada quando chegou o momento de tentar falar: ela só conseguiu emitir um som como um cachorro ao latir ou sussurrar com rouquidão. O que isto signi caria em sua carreira médica e em missões? Lentamente outra voz começou a forçar-se, durante a noite, dentro de meu coração. “Você não pode con ar em Mim?” Parecia um sussurro... “Você não usou sua voz para seus próprios objetivos, para sua própria glori cação, durante anos? Eu te darei uma nova voz, para usar a Meu serviço.”248
Helen teve alta do hospital na sexta-feira, antes da Páscoa. Naquela noite de Páscoa, ela e algumas antigas amigas ouviram um sermão a respeito de deixar o Espírito Santo tomar posse de suas vidas e enchê-las da santidade de Deus. Quando as amigas questionaram se isto seria possível, Helen respondeu em alto e ressonante tom: “Sim!” Deus tinha curado a sua voz. Depois de formar-se em medicina, Helen passou algum tempo candidatando-se ao treinamento na WEC (Worldwide Evangelization Cruzade). Depois, seguiram-se oito meses de aprendizado de francês, em Bruxelas, e de estudos na cidade de Antuérpia, sobre doenças comuns na região tropical. Também durante esses meses, ela foi mordida por um cão, teve icterícia e caxumba. Após isso, durante três meses ela precisou levantar suporte nanceiro e de oração, fazer compras de suprimentos médicos e pessoais, preparar as malas, conseguir o visto, vacinar-se, e completar outras preparações para a viagem, a m de estabelecer-se a milhares de quilômetros de casa. Sábado, dia 14 de fevereiro de 1953, ela navegou de Londres, passando pelo estreito de Gibraltar, ao longo do Mediterrâneo; atravessou o Canal de Suez e chegou em Mombasa, no Quênia, na costa da África. À bordo do trem para Nairobi, esta mulher de 27 anos estava impaciente como uma criança: Entusiasmo? Eu não conseguia comer ou falar. Mal podia pensar nisso! Eu corria de lado a lado do vagão, para não perder nada. Em cada estação na longa e lenta
subida de 1.500 metros acima do nível do mar, eu desembarcava para pisar em solo africano, ler o nome da estação e saber a que altura estávamos, para ter a “sensação” de estar na África, sentir seus cheiros, e jeitos e climas.249
Permanecendo com missionários ao longo do caminho, Helen viajou de trem, de navio à vapor e de caminhão, metade do caminho que cruzava a África, a m de chegar em sua nova casa, o que aconteceu na noite de terçafeira, 17 de março de 1953, quatro semanas depois de ter saído de Londres. Sua tarefa era estabelecer serviço médico e treinamento no distante vilarejo de Ibambi ao nordeste do Congo Belga.250 Não seria este o modo como os médicos britânicos recém-formados teriam escolhido iniciar sua carreira, após anos de treinamento.
CONSIDERO TUDO COMO PERDA, POR CAUSA DA SUBLIMIDADE DO CONHECIMENTO DE CRISTO JESUS, MEU SENHOR Ela e seus companheiros viajantes – missionários reenviados – entraram em Ibambi passando sob um arco de ores, e cercados por uma multidão entusiasmada. Então, o Pastor Ndugu, antigo ancião da igreja africana, deu um passo à frente para nos desejar boas vindas em nome da igreja, e a mim em particular como a “nova” missionária. “A igreja de Jesus Cristo, no Congo, e nós, anciãos desta igreja, queremos lhes dar boas vindas, nossa lha, em nosso meio.” Nunca me esqueci daquele momento e daquelas palavras. Que privilégio para uma jovem missionária ser “ lha deles”, ser uma deles, ser cuidada, nutrida, amada e ensinada por eles.251
Com o passar dos anos, em vários livros, Helen contou muitas histórias sobre o impacto do Pastor Ndugu em sua vida. E desde esse primeiro dia em Ibambi,
a esposa do pastor envolveu Helen com um amor que a surpreendeu e quebrantou sua natureza reservada. Minhas lágrimas transbordaram com o in nito sentido de alegria que enchia meu coração. Eles surgiam ao nosso redor, apertando nossas mãos centenas de vezes, conversando e rindo... E lentamente eu me retirei para os fundos da varanda, apoiando-me contra a parede, impactada emocionalmente... De repente, tranqüilamente, ali estava a querida Tamoma... seus olhos gentis olhando profundamente nos meus... “Ninakupenda”, ela disse – “Eu te amo” – e me abraçou!... Ela nunca tinha me visto antes... Mas me amava! Durante anos, Tamoma havia orado para que Deus lhes enviasse um médico... Quando ouviu falar que uma estudante de medicina estava interessada, redobrou suas orações a Deus... [para] que desse a ela sucesso em seus exames... Quando... os exames terminaram, e a jovem médica estava na sede da Missão, sendo preparada... Tamoma orou para que não houvesse nenhum empecilho entre a chamada e a viagem. E, por m, eu cheguei. E ela me amou! Daquele momento em diante, Tamoma e [seu marido pastor] Ndugu tomaram-me em seus corações... como uma própria lha deles... Foi a primeira vez que conheci uma família cristã que obedecia literalmente o mandamento de Jesus a seus discípulos: “Amai uns aos outros”, pois “nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros” (João 13.35). Que uma senhora mais velha, de cultura e língua diferentes... estivesse disposta a oferecer-me o amor de Cristo sem primeiramente “me conhecer”, para avaliar se valia a pena me amar ou não, foi uma experiência extraordinária. Sinceramente, nada mais me causou um choque cultural, em meu primeiro mês ali, do que este ato – um caloroso abraço... e um comentário gentil: “Eu te amo” – isto me fez sondar muito meu coração. Teria eu amado Tamoma com o mesmo ardor inquestionável, se nossas situações fossem opostas? Isto era apenas uma questão de timidez dos britânicos... ou era realmente algo mais fundamental, uma falta de semelhança a Cristo de minha parte? “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Romanos 5.8). Cristo me amou o su ciente para morrer por mim, enquanto eu era ainda sua inimiga. Se Deus tivesse esperado que eu aprendesse a amá-Lo antes que Ele
morresse, eu jamais teria sido salva. Eu sabia isso na mente, mas quando conheci alguém que se comportou de modo tão completamente semelhante a Cristo, quei admirada.252
Mais tarde em sua vida, alguém de fato sugeriu a Helen que Deus a tinha enviado à África, porque havia coisas que ela não poderia aprender sobre Ele na Inglaterra – como por exemplo, compreender o tipo de amor à semelhança do amor de Cristo que Tamoma demonstrou a ela. Alguns dos outros ajustes à cultura foram fáceis. Adaptar-me à cultura e a novas dietas alimentares foi realmente um problema pequeno para mim. Estava tão entusiasmada por estar lá e desejava tornar-me uma com aquele povo o mais rápido que pudesse, que não notei nenhuma barreira ou algum tipo de choque cultural. Talvez a nossa criação extremamente rigorosa durante os anos de racionamento da Segunda Guerra Mundial, e o fato de termos passado muitos de nossos feriados acampando nas montanhas, tenham realmente ajudado a desenvolver uma facilidade para adaptação em quaisquer circunstâncias. E eu estava tão emocionada por ter chegado à África, que admirava praticamente tudo.253
POR AMOR DO QUAL PERDI TODAS AS COISAS A adaptação pro ssional de Helen naquela área longínqua e não desenvolvida foi bem mais difícil do que sua adaptação à dieta alimentar. Ela imediatamente descobriu que teria de deixar os padrões da medicina que foram incutidos nela durante anos, particularmente a importância de praticar somente a melhor medicina possível. Ela não queria fazer de seus pacientes cobaias, enquanto aprendia a trabalhar neste novo lugar. Ao começar com nada a não ser uma caixa com divisórias para chá, uma mesa de camping e um banquinho, um fogareiro à querosene e uma pequena panela, descobri o que é estar cercada de di culdades... Muito do que eu devia fazer para manter os
padrões médicos provou-se impossível. O bom treinamento me dizia que um paciente com febre alta e calafrio, olhos doloridos e suor abundante provavelmente estaria sofrendo de malária. O tratamento... era feito com quinina em dose su ciente de acordo com o peso do paciente, mas somente depois de con rmar-se o diagnóstico em laboratório... Este procedimento microscópico... podia ser realizado por um técnico bem treinado em apenas cinco minutos. Com cinqüenta pacientes ou mais, diariamente, mostrando sinais de malária, isto acrescentaria mais quatro horas ao trabalho do dia. Sem eletricidade, estas quatro horas teriam de ser... durante o dia. Além destes cinqüenta pacientes com malária, havia provavelmente [mais 150 com outros sintomas]... O dia simplesmente não era longo o bastante. Os sintomas da malária levaram ao tratamento com quinina, com uma ligeira estimativa de peso e sem con rmação de laboratório... Quando comecei a perceber que mais de duzentos pacientes eram tratados diariamente... e que 75% ou mais estavam respondendo imediatamente ao tratamento inicial dado, comecei a ver que isto não signi cava rebaixar os padrões para tratamento de sintomas de malária sem con rmação laboratorial: antes, isto era uma adaptação necessária às circunstâncias... Estes mesmos duzentos pacientes diários, tendo recebido algo que aliviasse sua dor física, estavam muito mais abertos a ouvir a pregação do evangelho.254
AS CONSIDERO COMO REFUGO, PARA GANHAR A CRISTO E SE ACHADO NELE
Helen também havia sido designada para começar um programa de treinamento para trabalhadores na área médica. Os primeiros alunos começaram a chegar para aprender enfermagem. Suas idades variavam de dezoito a vinte e quatro anos, e sua base educacional era o equivalente à do Ensino Fundamental.255 Entre os alunos da primeira classe estava John Mangadima, que passaria a ser um amigo e colega durante os anos que Helen passou no Congo. Helen não foi treinada como professora ou enfermeira. Não havia um currículo pronto. Todo o ensino era em francês e em suaíli. Nenhuma dessas
línguas era a língua nativa de Helen ou de qualquer dos alunos. Deus me ensinou a ensinar conforme a necessidade que surgisse... Um paciente vinha ardendo em febre, então passávamos a uma palestra sobre como usar, ler e entender um termômetro... Um bebê era trazido com bronco-pneumonia, e eu demonstrava o uso do estetoscópio e como chegar a um diagnóstico. Um uxo interminável de pacientes, com um ilimitado conjunto de sintomas abdominais, nos proporcionava material para descobrir o uso do microscópio e aprender a reconhecer todas as espécies possíveis de parasitas.256
Servir de mentora aos alunos de enfermagem signi cava separar um tempo adicional para cada procedimento médico. Isso teve de se encaixar nos dias que já eram muito curtos. O excesso de trabalho e a conseqüente impossibilidade de ter uma noite de folga, ou de sair no m de semana, trouxe-me uma certa irritabilidade e falta de paciência que sempre me causavam uma considerável perda de sono. Eu sempre tive um temperamento impetuoso, mas que a maioria das vezes estava sob controle... desde a minha conversão a Cristo. Agora a palavra irada e furiosa escaparia novamente, antes que eu pudesse controlá-la, para minha vergonha. Pacientes que vinham até a janela da sala de jantar, enquanto estávamos fazendo a refeição do meio-dia recebiam uma palavra a ada de minha parte: “Vá ao dispensário, e não traga seus germes para a nossa casa” – e um olhar triste surgiu nos rostos dos missionários mais antigos, que tratavam cada visitante em sua casa com gentileza e respeito. O evangelista Danga... me deu uma lição por causa desse comportamento anticristão. “Não desculpe a si mesma. Chame pecado de pecado e cólera de cólera. Então, encare o fato de que sua pele branca não faz de você alguém melhor do que nós. Você precisa da puri cação de Deus e de seu perdão, de ser preenchida e habitada por Ele, dá mesma forma que nós precisamos. Se você pode nos mostrar apenas a Doutora Helen, é melhor voltar para casa: as pessoas precisam ver a Jesus.”257
Após dezoito meses em Ibambi, a diretoria da missão a transferiu para Nebobongo, porque era necessário que ela tomasse a frente do trabalho médico lá. Então, os alunos de enfermagem e o programa de treinamento foram com Helen para Nebobongo, a onze quilômetros de Ibambi.
NÃO TENDO JUSTIÇA PRÓPRIA, QUE PROCEDE DE LEI, SENÃO A QUE É MEDIANTE A FÉ EM CRISTO, A JUSTIÇA QUE PROCEDE DE DEUS, BASEADA NA FÉ
Ela permaneceu em Nebobongo por dez anos, supervisionando o leprosário e o orfanato. Ela fundou quarenta e oito postos de saúde rurais, nas imediações próximas, um centro de treinamento para a formação de paramédicos e um hospital com cem leitos e uma maternidade. O hospital e o centro de treinamento foram construídos literalmente do chão, e as únicas pessoas que puderam fazer isso foram Helen e sua colega européia Florence Stebbing, juntamente com os alunos. Aprendemos a fazer tijolos... aprendemos a lidar com a complexidade do forno de olaria... como utilizar o nível de bolha, e a mistura certa de cimento e areia para fazer o concreto... como serrar as vigas de um tronco... como medir e erguer essas vigas, para montar o telhado... e transportar as onduladas telhas de amianto...258
Quando a tarefa parecia-lhes muito grande, Deus providenciava soluções inesperadas. Por exemplo, uma viga era pesada e perigosa para ser erguida pelos alunos e por Helen, novatos naquela função. Eles oraram por um construtor de telhados que fosse experiente. Naquele momento, uma missionária foi trazida para que casse de repouso até o nal de sua gravidez de risco. Inesperadamente, Helen perguntou ao marido dela: “Você faz telhados?” Sim, ele fazia.
A construção não era o único desa o. Cada necessidade tinha suas próprias di culdades. Aprendemos mecânica de automóvel... em função da necessidade... Precisávamos de um veículo que funcionasse como ambulância... caminhão para a construção... e caminhonete para carregar comida... O único modo de fazer consertos era entrar debaixo ou dentro daquele carro junto com um colega africano e, em meio a tentativas e erros, trabalhar até que tivéssemos algum sucesso. Aprendemos suaíli e francês e alguma noção de bangala e kibudu; e então assumimos a tarefa de expressar verdades médicas sem um jargão cientí co... Escrevemos nosso primeiro livro-texto em suaíli... Fizemos matrizes, e logo cem cópias foram reproduzidas em uma máquina duplicadora antiga, na qual as páginas eram friccionadas individualmente e colocadas para secar. Histórias desagradáveis poderiam ser contadas dos dias em que o vento entrava pelas venezianas e espalhava as páginas, numa avalanche desastrosa!259
Escrever livros-texto deve ter sido um trabalho de tempo integral, assim como a construção do hospital e do centro de treinamento médico. E a demanda médica ia, em si mesma, além do tempo integral. Helen não podia esquecer que sentia o chamado para missão médica, mas os vários outros papéis continuavam a pressionar, competindo pela prioridade nas limitadas horas do dia. Uma manhã, por exemplo, ela estava no forno da olaria, suas mãos ásperas e cortadas pelo trabalho, quando foi chamada para ir ao hospital fazer uma cirurgia de emergência. Comecei a esfregar minhas mãos e os braços: minhas mãos doíam intensamente debaixo da escova. Estendi minhas mãos para que a enfermeira colocasse álcool antiséptico. Segurei minha respiração com força ao sentir a dor aguda. E comecei a murmurar em minha mente. Por que Deus não chamou outro missionário... para car encarregado da construção... e assim eu poderia car livre para dar às pessoas o melhor tratamento
médico do qual creio ser capaz?... Na quarta-feira seguinte, contei tudo isto ao conselho da igreja e pedi que orassem, para que eu não casse ressentida. Um homem piedoso, depois de conduzir o grupo em oração, sorriu para mim e me repreendeu gentilmente. “Doutora”, ele disse, “quando você é a médica, em seu uniforme branco, o estetoscópio ao redor de seu pescoço, falando francês, você está a quilômetros de distância de nós. Nós a tememos e lhe dizemos: “Sim, sim”, mesmo quase não ouvindo o que você disse. Mas quando você está na olaria conosco, e suas mãos estão ásperas como as nossas... quando você está nos mercados, falando e cometendo seus erros na linguagem, nós todos rimos com você: é aí que nós te amamos, con amos em você e ouvimos o que você nos fala de Deus e de seus caminhos”.260
Dentro de um ano a construção do hospital foi concluída. Agora não havia mais construção para tomar o tempo e a energia de Helen. Era isto que ela esperava, mas, infelizmente, ainda não estava satisfeita. Minha reclamação foi invertida. O hospital estava pronto e funcionando, e a notícia estava se espalhando... E começou um uxo de pacientes... Eu não tinha tempo para mais nada, a não ser para medicina, medicina, medicina... Não tinha como cessar... não havia folga. Eu esperava ser uma boa missionária, e poder... sentar ao lado de pessoas acamadas... para falar das boas-novas da salvação. Mas não havia tempo para nada, senão para a medicina... Felizmente, outra vez, levei meu problema aos anciãos da igreja, pedindo suas orações. E novamente eles não só oraram e me consolaram, como também, graciosamente, me repreenderam. “Doutora, quantos pacientes vêm ao hospital diariamente?”... “Cerca de duzentos, duzentos e cinqüenta”... “Certamente eles vêm porque você está lá! Eles não viriam, se não houvesse médico lá. E o que estamos fazendo?... O dia todo, a cada dia, onde você vai, nós vamos... Doutora, você percebe que estamos tendo alegria... de levar cinco, dez, às vezes até mais de dez pessoas ao Senhor a cada semana? Se você não estivesse aqui eles não viriam!”... Deus teve de me ensinar a estar disposta a ser parte de um time.261
Também havia lições a serem aprendidas a respeito da oração. Algumas delas eram sobre algumas orações que pareciam impossíveis e que foram respondidas. Uma mulher morreu ao dar à luz, deixando um recém-nascido prematuro e uma menina de dois anos. Não tínhamos incubadoras, porque não havia energia, e uma bolsa de água quente era a maneira de manter um bebê tão pequenino aquecido durante as noites de ventos frios. Mas nas regiões tropicais e úmidas, a borracha deteriora facilmente. Portanto, quando a última bolsa de água foi enchida para o bebê, ela rompeu. Uma enfermeira foi incumbida de segurar aquele bebê e mantê-lo aquecido com o próprio calor de seu corpo. No dia seguinte, Helen encontrou-se com as crianças do orfanato, para o momento regular de oração. Ela lhes contou sobre o bebê que precisava car aquecido e sobre a irmãzinha, que chorava porque sua mãe tinha morrido. Helen registrou a oração de Ruth, com dez anos de idade, e sua própria resposta àquela oração “impossível”. Deus, por favor... envie-nos uma bolsa de água quente. Não será bom amanhã, Deus, porque o bebê já estará morto, então, por favor, mande uma nessa tarde... E enquanto se encarrega disso, o Senhor, por favor, enviaria uma boneca para a menininha? Assim ela saberá que o Senhor realmente a ama”... Poderia eu sinceramente dizer “Amém”? Eu apenas não acreditava que Deus faria isso... O único modo como Deus poderia responder a esta oração tão especí ca seria enviando-me um pacote da minha terra. Eu estava na África há quatro anos, e até aquele momento não tinha recebido nada de casa... Quando cheguei em casa... lá, na varanda, estava um pacote de dez quilos... com selos do Reino Unido... Levei-o para o orfanato... Cerca de trinta ou quarenta pares de olhos focalizavam-se na grande caixa de papelão. [Depois de tirar muitos itens], quando coloquei minha mão dentro da caixa novamente, senti a... Será que era? Agarrei e puxei para fora – sim, uma bolsa de borracha para água quente, novinha! Eu chorei... Ruth... correu em minha direção, gritando: “Se Deus enviou a bolsa, Ele deve ter mandado também a bonequinha!” Ao rebuscar até o fundo da caixa, ela puxou para
fora a pequena boneca vestida com uma linda roupinha. Os olhos de Ruth brilharam! Ela nunca duvidara... Aquele pacote tinha sido enviado cinco meses antes... em resposta à oração de fé daquela menina de dez anos, para que chegasse “naquela tarde”.262
Algumas outras lições sobre a oração foram relacionadas a orações que pareciam não ser respondidas. Ao menos, não foram respondidas do modo como Helen desejou. Helen fora treinada para ser médica, mas não para ser cirurgiã. Era uma coisa assustadora pensar em aprender a operar através da própria prática, quando a vida de alguém dependia de sua pro ciência. Ela se recusou a fazer cirurgias até que foi confrontada pela realidade. Algumas pessoas morreriam sem a cirurgia, e se ela não a zesse, quem faria? Durante todo o restante do tempo que passou no Congo, ela orou para que Deus tirasse aquele medo dela, mas este não foi o modo que Deus escolheu para manter sua mente alerta e sua mão rme.
PARA O CONHECER, E O PODER DA SUA RESSURREIÇÃO Helen lidava continuamente com as conseqüências espirituais da exaustão e do trabalho em excesso. Aparentemente, esta foi uma outra lição para a qual Deus a trouxe para a África, para que ela estivesse ao alcance dos colegas africanos que Deus usava para ensiná-la. Em pelo menos dois de seus livros, ela menciona um período em que sente chegar ao extremo da exaustão, sendo erguida por John Mangadima e pelo pastor Ndugu. Este evento ocorreu cerca de quatro anos após ela ter iniciado seu serviço no Congo. As coisas estavam dando errado em Nebobongo. Eu estava ciente de que minha vida não era o que devia ser. Ficava irada com as enfermeiras, perdia a paciência com os doentes, cava irritada com os operários... Estava extremamente cansada, com uma carga imensa de trabalho e inúmeras responsabilidades.
Chegou um dia que, enquanto passava pela enfermaria, explodi com uma paciente. Um pequeno incidente cresceu em toda a proporção... Todos... horrorizados ouviram a missionária cristã, enquanto se irava em suaíli uente. Saímos da enfermaria do hospital... E John Mangadima, falou comigo de modo muito gracioso e humilde. Ele tinha sido meu primeiro aluno... e [agora era] meu primeiro assistente médico. “Doutora”, ele disse, “não acho que o Senhor Jesus teria falado desse jeito”. Oh, como ele estava certo... e, agora, para onde eu iria? Eu queria chorar, fugir... mas não podia. Voltamos à enfermaria feminina, e me desculpei... Lutei com aquilo durante mais algumas semanas irritantes e frustrantes. Sabia que Deus estava falando comigo, mas eu não ouvia... Eu alistava minhas desculpas – minha exaustão extrema, meus nervos tensos, o excesso de responsabilidades... Então, uma manhã, durante nosso período de estudo bíblico, fui quebrantada. O Espírito Santo estava trabalhando no coração dos estudantes africanos, dos operários e dos órfãos, mas não em meu coração frio e endurecido, e eu já não suportava mais isso. De repente, percebi que deveria retirar-me, e buscar o perdão e a restauração de Deus, se eu quisesse continuar no trabalho. [O pastor Ndugu] tinha visto minha necessidade espiritual e planejou tudo para que eu passasse um longo m de semana em seu vilarejo... Lá, ele me deu um quarto, e deixou-me a sós. Busquei a face do Senhor por dois infelizes dias, mas não pude encontrar a paz... Eu sabia que era muito indigna para ter o título de “missionária”. No domingo à noite, o pastor Ndugu me chamou para a lareira, onde ele e sua esposa, Tamoma, estavam sentados... Oramos. Um grande silêncio nos envolveu... Gentilmente, ele se curvou em minha direção. “Helen... porque você não consegue esquecer por um momento que você é branca? Você tem ajudado tantos africanos a encontrar a puri cação, o encher e a alegria do Espírito Santo, por meio do sangue de Jesus Cristo. Por que você não deixa Ele fazer por você o que fez por tantos outros?” Ele... abriu para mim as áreas escondidas do meu coração que eu mal podia suspeitar que existiam, particularmente esta do preconceito racial. Eu estava horrorizada... Eu estava lá para compartilhar... as boas-novas do evangelho. Eu amava os meus irmãos africanos... Será mesmo? O Espírito forçou-me a admitir que em minha mente eu não acreditava que de fato um africano poderia ser um crente tão bom quanto eu, ou que poderia conhecer o Senhor Jesus ou entender a Bíblia tão bem quanto eu. Minha preocupação com eles tinha em si um elemento de condescendência, de superioridade, de paternalismo...
Abrindo sua Bíblia em Gálatas 2.20, ele escreveu a palavra “eu” no chão empoeirado, com o calcanhar. “Eu,” ele disse, “o Eu com letra maiúscula em nossas vidas, o Ego, é o grande inimigo”... “Helen... o problema com você é que nós podemos ver tanto a Helen que não conseguimos ver Jesus”. Meus olhos encheram-se de lágrimas. “Percebo que você bebe muito café”, ele continuou... aparentemente se desviando do assunto. “Quando alguém lhe traz uma caneca... você ca segurando, até que esteja frio o su ciente para beber. Posso sugerir que cada vez, enquanto você espera e segura a caneca, você eleve seu coração a Deus em oração...” e, enquanto falava, desenhou uma cruz sobre o “eu” traçado no chão, “...por favor, Deus, cruci ca o meu eu”. Ali, naquele chão empoeirado, estava sua lição de teologia simpli cada – a Cruz – a vida cruci cada... “Estou cruci cado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2.19-20).263 Voltei para Nebobongo... Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, John Mangadima exclamou: “Oh, Doutora, aleluia!... Você não precisa contar-nos, a expressão do seu rosto nos diz tudo. Nós temos orado por você há quatro anos!” E eu tinha ido àquela terra como missionária e professora.264
Deus usou a enfermidade para ensinar ainda mais profundamente a Helen sobre a humildade e a dependência. A médica não era um ser todo-poderoso. Ela também, com freqüência, cava doente. Durante aqueles anos na África, eu cava doente com freqüência, e sempre gravemente. Durante os primeiros cinco anos, além dos periódicos contágios de... malária, tive grande disenteria provocada por ameba e complicada por hepatite... Então, em 1957... quei muito doente, com meningite ou malária cerebral. Então... contraí malária cerebral e quei doente por 3 meses... Depois, tive febre tifóide e exaustão nervosa... Cada vez que eu cava doente, outra pessoa, um africano ou missionário, que já tinha uma grande carga de trabalho, tinha de gastar tempo comigo, para me tratar. Uma outra pessoa tinha de adicionar todo o meu trabalho ao seu. Depois de cada
enfermidade, eu cava muito deprimida e desanimada, sentindo que era um fardo para a equipe e que deveria ir para casa. O que Deus estava tentando me dizer?... Por que Deus não me mantinha em boa saúde? É claro que Ele podia, mas porque Ele não fazia isso?... Durante anos, eu era a única missionária médica naquela área, e sempre precisavam de mim. Eu era a que doava e o africano era o que recebia, sempre dizendo “obrigado”. Isto... logo poderia se tornar desmoralizador. Eu não percebi que os papéis precisavam ser invertidos para que os africanos conhecessem o mesmo sentido de realização e alegria em ser solicitado, que eu conhecia. Somente quando eu estava doente é que, obviamente, precisava deles... Eles cuidavam de mim, me alimentavam, me banhavam. E eu dizia “obrigada” – com sinceridade.265
A casa de Helen no Congo era um grande contraste quando comparada aos lugares que seus antigos colegas de medicina escolheram como campo de trabalho. E ainda assim, para ela era sua casa, talvez ainda mais pelo fato da obra profunda que Deus realizava nela, ali. Ela descreveu como Nebobongo era em 1962: O cenário é uma pequena clareira na margem nordeste da poderosa e úmida oresta Ituri na África Central, apenas alguns graus acima da linha do Equador... Chuva, sol e umidade formam o clima: raízes e folhas verdes, mergulhadas em óleo de palmeira, compõem a dieta alimentar. Os complementos normais – arroz, amendoim e milho – estão em falta, pois as chuvas chegaram tarde esse ano... A pobreza é a sorte de todos... O sofrimento tem aumentado muito através dos séculos. Supuram as feridas causadas pelo machado; gripes viram pneumonia; mulheres morrem ao dar à luz; crianças morrem antes de aprenderem a andar. No entanto, as pessoas estão surpreendentemente felizes, aceitando com resignação estóica que a vida deve incluir sofrimento diário. Aqui neste pequeno e quase desconhecido vilarejo, um hospital foi erguido... Não há eletricidade. A água é ajuntada em barris de petróleo de duzentos litros, enquanto cai do telhado durante as chuvas diárias. A equipe médica procura servir a... meio milhão de pessoas... em um raio de 800 quilômetros... Eles podem fazer tão pouco
em função de seus recursos extremamente limitados... Mas eles podem e oferecem um serviço amoroso com bom cuidado de enfermagem. Um vilarejo de um quilômetro e meio ca à margem da estrada de terra... Ao sudoeste deste vilarejo, duas leiras de pequenas casas se posicionam umas de frente às outras, formando um pátio ensolarado que abriga [os alunos e] as famílias dos quinze operários. Entre as dependências dos operários e o pátio quadrangular do hospital estão os “cômodos” onde as famílias e amigos dos pacientes do hospital podem car, para preparar as refeições e lavar as roupas e ataduras de seus parentes enfermos. O hospital em si consiste de um conjunto de tijolos diferentes, algumas paredes permanentes e alas com paredes de barro, uma sala para cirurgias e uma grande área aberta ao ar livre e coberta, onde são clinicados os pacientes que não estão internados. A casa do médico, que ca de fundos para o hospital, é o foco de todas as atividades da comunidade. A frente... a praça do vilarejo, com sua pequena igreja à direita e a escola primária à esquerda... Cercando todo o espaço ao redor estão... gramados inclinados, radiantes de jasmins e poinséttias, e todas as outras partes rodeadas por uma oresta sem m. ...Embora possa parecer aos de fora que este lugar deve estar em estado precário e ermo, para a equipe, cujas vidas deram seu próprio sangue para o desenvolvimento deste lugar, ele é uma contínua fonte de milagres. Assim como também para mim, a médica, Nebobongo é a minha vida.266
Com exceção da inclusão do hospital e da escola de treinamento de paramédicos, a cidade continuava do mesmo modo como era, desde que a tetravó de alguém pode lembrar-se. É fácil presumir que a vida continua sendo com sempre foi.267
E A COMUNHÃO DOS SEUS SOFRIMENTOS, CONFORMANDO-ME COM ELE NA SUA MORTE Mas, os acontecimentos políticos estavam mudando e afetariam as tendências de Nebobongo. Em 30 de julho de 1960, a Bélgica concedeu
independência ao Congo Belga. “Belga” foi tirado do nome, e a nação tornouse o cialmente Congo. Pouco antes disso, re etindo o novo espírito de nacionalismo, John Mangadima tornou-se o primeiro africano apontado como Diretor Administrativo do centro médico. O Congo tornou-se verdadeiramente um país africano, portanto, era importante que aquela escola de treinamento ganhasse credencial do governo. Os não-africanos que viviam no Congo sentiram-se deslocados nesse tempo de mudança de autoridade belga para africana. O governo europeu removia seu povo do país a m de protegê-lo de uma possível reação negativa. Mas nem todos os europeus saíram. Helen permaneceu. Em julho de 1960, três semanas após a declaração de independência e doze horas depois da grande desocupação dos “estrangeiros brancos” da província nordeste, subitamente lembrei-me da realidade do amor de Deus nos crentes ao meu redor. Eu fui a única européia que permaneceu no vilarejo de Nebobongo, e... as tropas do Exército Nacional passavam ao entardecer... ameaçando, com um sorriso debochado, voltar durante a noite “para gozar a companhia da dama branca”. O medo adentrou a minha casa. Eu me agitava em minha cama, permitindo que o medo... se apossasse de minhas faculdades mentais. Um rato correu no forro da casa, e eu me assustei, certa de que havia alguém em casa... Em desespero... coloquei-me de joelhos, e simplesmente pedi a Deus que me segurasse junto a Si. À medida que a tranqüilidade retornava à minha vívida imaginação, pedi... que, se fosse possível, Ele enviasse alguém... para car em casa comigo... Bangue! Eu quase morri! ... “É isto!... Eles chegaram!” Então, ouvi uma suave batida na porta... depois, parecia um tiro de pistola... “Quem está aí?” Esforcei-me em perguntar. “Somos nós!” sussurram duas vozes evidentemente femininas... Abri a porta com grande alívio, recebi Taadi, a esposa de nosso evangelista, e Damaris, nossa parteira chefe. “Entrem”, eu as apressava, fechando a porta rapidamente... atrás delas... Sentei-me com a cabeça entre as mãos... tentando recuperar-me... da onda de choque... e então,
tonta, perguntei-lhes porque tinham vindo. “Bem,” disse Taadi, “eu acordei no meio da noite e o Senhor me disse bem claramente: ‘Vá até a doutora, ela precisa de você’. Então, levantei-me e vim”. “Isto foi exatamente o que aconteceu comigo!”, exclamou Damaris... Nós três nos prostramos humildemente admiradas por sermos parte da obra maravilhosa da vontade de Deus.268
Quatro anos depois da independência, houve uma rebelião no governo. Forças de guerrilha, chamando-se a si mesmas “Simbas”, leões, tentaram destruir o governo do Congo. Era o ano de 1964. Os rebeldes [os Simbas] tomaram a... província... expulsando o Exército Nacional e impondo um regime militar austero sobre os assustados moradores do vilarejo. As forças ocupantes eram severamente violentas por causa de drogas, bebida e feitiçaria. Eles sentiam-se invencíveis, e destruíam cruelmente à menor suspeita de resistência. Um aluno de nossa escola de enfermagem para homens em Nebobongo voltou de um m de semana com seus pais.... Ele estava apavorado... perturbado... E nos contou que “as ruas estavam inundadas de sangue” e de... túmulos comunitários para mais de quinhentas pessoas... O medo e a revolta travavam batalhas em minha mente durante o dia, e em meus sonhos durante a noite. Uma mulher grávida foi capturada de nossa maternidade, amarrada e jogada num caminhão. Enquanto os soldados saíam, não pudemos deixar de ouvir seu choro apavorado... A vida tornou-se um pesadelo vivo, mas tínhamos de continuar vivendo. Sempre que podíamos, nos reuníamos... para orar, ler a Palavra de Deus e cantar seus louvores. Assim nos mantínhamos sãos e Deus graciosamente substituía nosso medo por paz. Depois de dez semanas apavorantes, a maré de guerra baixou. O presidente nativo... assim chamado entre os soldados mercenários... O exército recomeçou a assumir seu lugar no país, repelindo as guerrilhas, e muitos desses soldados morreram neste novo ataque.
“Como podemos morrer?”, eles se perguntavam. Eles não foram assegurados de que, pela força de seus rituais de iniciação, nenhuma bala lhes podia causar dano?... O único modo pelo qual os médicos podiam explicar sua perda de poder era pela suposição de um feitiço mais forte nas mãos do Exército Nacional em avanço.... Esta reversão ocorreu com a chegada das tropas mercenárias dos brancos. Não é necessário ser muito ingênuo para se chegar à conclusão de que os “doutores” brancos zeram a [mágica] necessária para quebrar o poder das forças de guerrilha. Portanto, os rebeldes eram contra todo médico branco em seu território, com uma violência aterrorizante.269
Uma vez mais, quando Helen foi discriminada por causa de atenção importuna e perigosa, Deus usou a igreja – o corpo de Cristo – para demonstrar à ela o seu cuidado. O caminhão do centro médico havia sido roubado pelos guerrilheiros jovens, que forçaram Helen a dirigi-lo. Entre os dezessete jovens violentos e armados, John e Joel subiram na parte de trás do caminhão que eu fui forçada a dirigir, levando estes rebeldes para Wamba... O veículo não possuía faróis, nem ignição automática, nem limpadores de pára-brisa. Segurando nervosamente o pino de uma granada, o... “tenente” da gangue, que ainda era adolescente, me ordenou que dirigisse até o pátio de uma fábrica, para procurar por petróleo e óleo... Depois de me mandar sair do caminhão, quei a alguns metros dele, sozinha no escuro. Foi somente aí que percebi que John e Joel estavam comigo. Senti a presença deles... de cada um dos meus lados. “Saiam de perto de mim”, sussurrei a eles. “Eles vão me matar. Não quem comigo.” “Doutora... é por isso que estamos aqui. Você não pode morrer sozinha!” Meia hora mais tarde, quando os rebeldes se foram... deixando-nos... sozinhos na chuva,... Joel... disse: “Senti-me como um dos três amigos de Daniel, na fornalha ardente. Certamente uma quarta pessoa, cuja forma era como a do Filho de Deus, esteve conosco!” Eles passaram por aquela experiência junto comigo, unicamente por amarem como Cristo amou. Eles não precisavam estar ali!270
Numa noite de outubro, em 1964, a casa de Helen foi atacada por Simbas, que destruíram, rebuscaram e saquearam. Quando ela tentou escapar, foi espancada com tanta força que alguns de seus dentes caíram! Com uma arma pressionada sobre sua cabeça, ela orou para que Deus apenas a deixasse morrer. Quando todos os homens saíram, exceto um, este a capturou, aprisionou e violentou. Ela escreve, comovida, como se sentiu abandonada naquela noite. “Meu Deus, meu Deus, porque me desamparaste?” A resposta de Deus a ela foi a remoção do medo, como que tirando-o completamente – e uma forte sensação de seus braços ao redor dela, segurando-a e confortando-a. Ela sentiu como se Ele dissesse: “Quando eu te chamei, chamei para a comunhão dos meus sofrimentos (Filipenses 3). Eles não estão atacando você. Estão atacando a Mim. Apenas estou usando você para mostrar-Me às pessoas ao seu redor”. Nas dez semanas que se seguiram, Helen esteve com várias outras pessoas e passou por muitos lugares diferentes, inclusive um convento. Uma jovem freira tinha sido violentada e sentia como se tivesse traído a Deus e suas promessas a Ele. Por causa de sua experiência semelhante, Helen pôde quebrar a barreira de desespero daquela mulher, de um modo como ninguém mais poderia. Um pouco antes de seu resgate, os soldados rebeldes começavam de um lado de um grande cômodo até o outro, levando as mulheres, uma a uma, e trazendo-as de volta quando tinham terminado de abusar delas. O primeiro impulso de Helen foi esconder-se e não ter de suportar esta humilhação novamente. Então, ela pensou em Jesus. Ele se colocou como nosso substituto – “a comunhão dos seus sofrimentos”. Ela deu um passo à frente, tentando proteger algumas das outras mulheres de passarem por um novo trauma do qual elas poderiam bem possivelmente escapar. Mais tarde, ela olhou de volta para este período de sua vida e escreveu: Nós aprendemos porque Deus nos deu seu nome como Eu Sou (Êxodo 3.14). Sua graça sempre provou ser su ciente no momento de necessidade, mas nunca antes do
momento de necessidade... Como que antecipando o sofrimento em minha imaginação, pensei a respeito do que estes soldados cruéis fariam a seguir e tremi de medo... Mas quando chegou o momento da ação... Deus me encheu com uma paz e segurança sobre o que dizer e fazer que me surpreenderam e que freqüentemente derrotaram as táticas imediatas do inimigo.271
Mais tarde, quando ela voltou à Inglaterra, uma mulher – uma estranha – perguntou a Helen se, no meio de todo aquele problema, uma noite de outubro em particular, teve qualquer signi cado. Foi a própria noite quando Helen foi atacada. A mulher havia sido despertada com uma forte vontade de orar intensamente por Helen, de quem ela só ouvira falar. Ela orou e não se sentiu livre para parar, até uma certa hora, a qual ela mencionou para Helen. Calculando a diferença nos fusos horários, aquela foi a mesma hora em que Helen tinha sido inundada pela paz de Deus e soube que não fora abandonada por Ele.
PARA, DE ALGUM MODO, ALCANÇAR A RESSURREIÇÃO DENTRE OS MORTOS
No começo de 1965, Helen e outros foram resgatados pelo Exército Nacional, e ela retornou à Inglaterra. Era como se tivesse ressuscitado da morte. Mas ela se lembrava dos seus colegas que não sobreviveram para retornar à seus países. Ela pensou em Hebreus 11, compreendendo que “pela fé” ela foi tirada do Congo para que retornasse à sua família; e igualmente “pela fé” muitos amigos foram tirados do Congo para viverem imediatamente e para sempre com Cristo. Após um ano, em casa, na Inglaterra, ela não conseguiu car longe. Em 1966, voltou ao Congo (agora chamado Zaire), o qual lutava para recuperar-se da devastação dos Simbas. Cinco organizações missionárias colaboraram a m de criar o Centro Médico Evangélico de Nyankunde. Novamente, Helen estava
na área nordeste do país. Ela era encarregada de estabelecer o treinamento e a educação médica do Centro. Depois de sete anos, ela voltou a morar na Inglaterra. Ela escreve: Desde 1973, tenho vivido no Reino Unido, e tenho procurado tornar conhecida a necessidade desesperada de três bilhões de pessoas, que vivem hoje, e que nunca ouviram falar do Senhor Jesus Cristo, e da redenção que Ele consumou por estas pessoas no Calvário. Estes são os “povos escondidos” em mais de dez mil grupos étnicos ao redor do mundo. Enquanto tento tornar conhecida a necessidade desses povos, oro com determinação para que o Espírito Santo desperte corações que respondam. Parece tão óbvio para mim que os jovens crentes... devem levantar-se e ir...”
Porque a resposta é tão insigni cante?... É porque os crentes de hoje têm um entendimento inadequado sobre a santidade de Deus e, portanto, de sua ira contra o pecado e sobre o terror da eternidade sem Cristo? Se fôssemos tomados por estes dois fatos – a necessidade do julgamento do pecado, porque Deus é santo; e a necessidade de santi cação no crente, para que possa apresentar este Deus aos outros – não sentiríamos “fome e sede de justiça” e, independentemente do custo, não deixaríamos que os outros vissem Cristo em nós, e fossem atraídos a Ele? Em outras palavras, se [entendêssemos] o ensino da Escritura sobre a necessidade de santidade na vida de cada crente, não haveria necessidade de suplicar por missionários.272
Helen Roseveare voltou mais de uma vez ao seu antigo habitat africano. O vídeo Mama Luka Comes Home273 registra a sua visita nos anos 80. Sua antiga agência missionária, a WEC, registrou sua visita em 2004:
A nova sala de cirurgia em funcionamento em Nebobongo foi aberta na metade do mês de novembro, com grande júbilo e fanfarra. Foi nomeado o “Centro Cirúrgico Mama Luka”, em honra à Doutora Helen Roseveare (Reino Unido) [que fez sua primeira cesariana aqui a cinqüenta anos atrás]... Na terça-feira seguinte à abertura, Philip Wood e os jovens médicos de Nebobongo inauguraram a nova sala de cirurgia, operando um bebê de nove meses com lábio leporino. A criança é o neto de Joshua, que trabalhou muitos anos na grá ca de Ibambi. A cirurgia foi tranqüila e na manhã seguinte a notícia era de que o bebê estava se alimentando bem.274
O trabalho continua em Ibambi e Nebobongo. Hoje, Helen Roseveare vive na Inglaterra, escrevendo e testemunhando.275 Em 1987, recordou um encontro com um vaqueiro africano que não podia ler e outro com uma mulher britânica. Numa manhã, em 1972, um pouco antes deixar o campo missionário, tive o momentoso privilégio de conhecer um africano, no acostamento da estrada de Uganda. Após os cumprimentos costumeiros e cortesias, enquanto ele continuava ali olhando para mim, perguntei o que ele queria. Ele me disse em suaíli: “Você é uma enviada?” Surpreendida por esta pergunta, rapidamente pensei que é isso que signi ca a palavra missionária, e disse-lhe: “Sim, sou, mas depende. Enviada por quem e para quê?” Ele me disse: “Você é uma enviada do grande Deus para me dizer sobre alguém chamado Jesus?” Eu confesso que suspirei. “Você sabe ler?” Perguntei-lhe. “Não”, ele respondeu... Peguei... o livro colorido sem palavras, que usamos para ajudar aqueles que não podem ler sobre o plano de salvação. E ao sol do início da manhã sentei-me ao lado dele e tive a alegria ímpar de levá-lo ao Senhor Jesus Cristo... Alguns anos atrás [na Inglaterra]... Enquanto, estava na plataforma da estação do trem com minha sombrinha aberta, uma mulher... não tinha sombrinha, então ofereci dividir a minha... Pensei rapidamente: “Como posso começar uma conversa com ela?”
Do outro lado da linha do trem estava um grande anúncio de cigarros. Disse a ela: “Aquilo me deixa irada... Aquele pôster faz com que os jovens queiram fumar. Fumar causa câncer de pulmão. Câncer de pulmão leva à morte”. E bem ali, naquela estação, ela se emocionou e começou a chorar. O trem chegou... e sentando-me ao lado dela, perguntei se podia ajudá-la. Ela disse: “Acabo de sair do hospital da cidade... eles me disseram que estou morrendo de câncer nos pulmões por ter fumado a vida toda”. Enquanto percebia Deus direcionando nossa conversa, eu a ouvi acrescentar: “E não sei para onde estou indo”... Eu peguei... uma pequena cópia do mesmo livro colorido sem palavras. De fato, eu quei vermelha, de orelha a orelha, porque todos os passageiros do vagão ouviram enquanto eu compartilhava das boas-novas com ela... o mesmo caminho de salvação que ensinei ao boiadeiro analfabeto na estrada africana. Não havia diferença. Não importa se viajo dez mil quilômetros ou apenas vinte minutos de casa... O que realmente importa é que as pessoas que encontramos sejam valiosas para nós do mesmo modo como são para Jesus.276
As circunstâncias exteriores da vida de Helen Roseveare podem ser diferentes de muitas em nossas vidas, mas suas batalhas interiores eram as mesmas. E como todos nós sabemos, as batalhas internas não cam dentro de nós. Elas escapam para fora e ferem as pessoas inocentes ao nosso redor, freqüentemente as pessoas com quem mais nos importamos. Observar as batalhas na vida de outra pessoa – Helen Roseveare, neste caso – pode nos dar a perspectiva para entendermos mais claramente nossas próprias lutas. Uma coisa que tenho observado aqui é que raramente há apenas uma causa para nossos vales. Vemos quão entrelaçadas são as causas de aridez espiritual, tais como Helen descreve um período durante seu treinamento médico.
A alegria e o entusiasmo dos primeiros três anos subitamente pareciam estar sumindo... O trabalho começou a desnortear-me; infelicidade, solidão, temor, inferioridade, tudo isso tomou conta de mim. Ao mesmo tempo, o estudo bíblico e a oração se tornaram algo super cial e mecânico ao invés de prazeroso... O testemunho continuou, mas sem fé real ou expectativa de ver resultados. Olhando para trás é fácil perceber que pelo menos parte da explicação está no fato de que, como muitos de meus colegas da faculdade de medicina, eu sofria com o trabalho excessivo e a extenuação resultante de um programa muito cheio... Eu... pensava que esta exaustão era falha espiritual.277
Ela se sentia como um fracasso espiritual. E de alguma maneira, isso era verdade. Ela lia a Bíblia e orava por obrigação. Falar de Cristo parecia não ter sentido. Ela provavelmente se sentia uma hipócrita quando o fazia, pois quem desejaria o tipo de vida espiritual experimentado por Helen? No entanto, aquela insensibilidade não vinha do nada. Ela trabalhava e estudava muitas horas por dia, o que signi cava que ela não estava dormindo o su ciente. Sua vulnerabilidade à “infelicidade, solidão, temor, inferioridade” resultava de dois fatores: de sua exaustão e de sua falta de vigor espiritual. Sua vida espiritual se arrastava porque estava exausta, e estava exausta por causa de seu baixo nível de vida espiritual. Em outras palavras, tudo era uma confusão. É uma boa lição para nos lembrarmos. Sempre que pudermos fazer uma escolha, devemos fazer boas escolhas com relação a dormir e comer, e a outras coisas que afetam nossa saúde, para que não quemos expostos ao pecado que mina nosso bem-estar espiritual. Por outro lado, através da Palavra de Deus e de nossa oração, precisamos nos esforçar muito para mantermos fortalecida a nossa conexão com Deus, a m de que tenhamos discernimento para ver quando estamos caindo em más atitudes e na probabilidade de encobrir e justi car o pecado em nossas vidas. Deus freqüentemente usa outras pessoas para nos trazer de volta, quando caímos em pecados que trazem aridez espiritual. Vemos isto acontecer na vida de Helen. Quando outras pessoas nos apontam nossas fraquezas, nossos
pecados, isto nos faz humildes. Minha inclinação é me justi car, pensando que eles apenas não conhecem todos os fatores que me zeram falar ou fazer como z. Fui encorajada de modo especial ao ver Helen voltar-se para seu pastor africano e seus colegas de trabalho, para receber a exortação e a correção deles. Mesmo que não queiramos ser racistas ou preconceituosos, e embora não admitamos, é difícil acreditar que alguém de outra cultura possa entender ou mesmo ter o direito de nos admoestar. Isto é verdade, especialmente como no caso quando Helen exclamou: “E eu tinha ido àquela terra como missionária e professora!”278 É uma dádiva abençoadora quando Deus nos concede corações e mentes para entender, sentir e compreender que irmãos e irmãs vêm em todas as cores, “pois todos vós sois lhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.26-28). Aprendi mais uma coisa com Helen Roseveare. Talvez não seja “aprendi”, mas “lembrei” aquilo que já sabia. Quando as coisas estavam se desmoronando em Nebobongo, e Helen entendeu que precisava mudar, como ela expressou isso? Ela disse: “De repente, percebi que deveria retirar-me, e buscar o perdão e a restauração de Deus, se eu quisesse continuar no trabalho”.279 Quando as coisas vão mal, tentamos dar um tempo e relaxar. Mas isso é tudo que fazemos? De fato, dar um tempo fará pouco bem, a não ser que, além de nos tirar da confusão, este tempo nos direcione a Deus. Talvez o fator subjacente pessoal mais profundo, na tensão que Helen sentia, era a necessidade que tinha de dar o seu melhor e, se possível, ser a melhor. Deus a chamou para a África, onde isto não seria possível. Lá havia mais lições para ela, tais como aprender a tratar malária pelos sintomas em vez de fazê-lo por meio de testes laboratoriais; ter de operar sem ter sido treinada como cirurgiã; fazer tijolos em lugar de passar o dia com os pacientes.
Talvez esta seja uma questão para alguns de nós – lutar com a realidade de que Deus nos chamou para fazermos menos do que queremos fazer, ou menos do que aquilo que acreditamos ser o melhor. Isto pode acontecer em qualquer ambiente. Para mim, isto tem sido verdadeiro, especialmente nos anos em que tive crianças pequenas – “Eu me formei na faculdade, para isso?” Talvez o nosso problema seja o modo como nos vemos. Talvez pensemos de modo mais elevado sobre nós mesmos do que deveríamos. Se alguém foi bom demais para morrer, este foi Jesus. Se alguém devia ter feito coisas maiores do que andar por estradas poeirentas e conversar com pessoas muito ignorantes para entendê-Lo, este alguém foi Jesus. Em Filipenses 3, a passagem que norteia a história de Helen, está o versículo “para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com Ele na sua morte” (verso 10). Quando Deus chamou Helen para fazer menos do que ela esperava, Ele a estava ajudando a tornar-se como Cristo, em vez de tornar-se como a melhor médica ou missionária que ela conhecesse. Com quem queremos nos parecer? Em 1989, 120 jovens assentaram-se de pernas cruzadas na sala de estar e de jantar dos Pipers, cobrindo quase cada centímetro do espaço do chão. Eles aceitaram o convite público que zemos a todos que pensavam que missões poderia estar em seu futuro. Helen Roseveare cou de pé perto da lareira, olhou os rostos de cada um deles, e se dirigiu a um jarro do qual tirou, vagarosamente, um comprido botão de rosa vermelho. Enquanto falava, ela quebrou os espinhos, as folhas, as pétalas, a casca verde do talo – cada elemento que compõe uma rosa. Tudo o que ela deixou foi uma haste reta e lisa. As partes que caíram no chão não eram ruins. Mas, ela explicou, estas partes tiveram de ser removidas para que ela pudesse fazer uma echa. Deus faz isso conosco, ela disse. Ele tira tudo — até
as boas coisas, inocentes — que nos impedem de ser as echas que Ele atirará em seu alvo planejado e por seus próprios propósitos. Fui comovida por semelhanças entre a vida de Helen Roseveare e a vida de uma de minhas irmãs. O chamado de Julie para a África começou com uma viagem missionária, há mais de trinta anos. Sua casa tem sido no Quênia (República Centro-Africana), Camarões, Congo Brazzaville, e, de novo, Camarões. Ela sobreviveu a quatro golpes e tentativas de golpes políticos; foi expulsa duas vezes com sua família, e tratou de um estresse que permaneceu posteriormente. Ela tem retornado cada vez porque não consegue car longe. Portanto, esta história de Helen Roseveare, no Congo Kinshasa, é dedicada a Julie Anderson, em Camarões, com Steve e seu lho, Luke. Julie, ouço com gratidão, enquanto você canta,280 as palavras do hino de autonegação que acredito também poderiam ser as palavras de Helen Roseveare. Seja Cristo e não eu, honrado, amado, exaltado, Seja Cristo e não eu, visto, conhecido, ouvido, Seja Cristo e não eu, em cada olhar e ação, Seja Cristo e não eu, em cada pensamento e palavra.
Seja Cristo e não eu, a confortar na dor, Seja Cristo e não eu, a enxugar a lágrima dos olhos, Seja Cristo e não eu, a levar o fardo cansativo, Seja Cristo e não eu, a banir todo temor.
Seja Cristo e não eu, a proferir nenhuma palavra ociosa, Cristo, somente Cristo, e nenhum som inútil e inquietante. Cristo, somente Cristo, e nenhuma atitude egoísta, Cristo, somente Cristo, e nenhum vestígio de mim.
Seja Cristo e não eu, que supre todas as minhas necessidades, Seja Cristo e não eu, minha força e saúde, Cristo, somente Cristo, para o corpo, a alma e o espírito, Cristo, somente Cristo, viva a Sua vida em mim.
Cristo, somente Cristo, em breve encherá minha visão; A Glória excelente em breve eu verei Cristo, somente Cristo, o único desejo que me satisfaz – Cristo, somente Cristo, meu tudo em tudo.281
NOTAS DO CAPÍTULO 5 a (Nota da revisão: Esta frase tornou-se famosa, por ter sido este o modo como Henry
Morton Stanley dirigiu-se ao missionário Dr. David Livingstone, quando o viu pela primeira vez entre os habitantes nativos da África. Não poderia ser outro, visto ser ele o único homem de pele branca que Stanley vira naquela região.) 227 http://www.pcusa.org/pcusa/wmd/ep/country/demireli.htm, acessado em 18/02/05. 228
http://www.timesonline.co.uk/article/0,,60-1428343_1,00.html. Obituário de Robert Roseveare, postado em 07/01/05. Acessado em 18/02/05. 229 Correspondência pessoal de Helen Roseveare, 19 de fevereiro de 2005. 230 Roseveare, Helen. Give me this mountain: an autobiography. London: InterVarsity
Fellowship, 1966. p. 15. 231 Uma paróquia anglicana (Church of England) que tem forte inclinação às crenças e
liturgia do Catolicismo Romano. 232 Roseveare, Helen. Give me this mountain. p. 14-15.
233 Idem. p. 15. 234 Idem p. 18. 235 Idem. p. 18. 236 Idem p. 22. 237 Idem. p. 22-23. 238 Idem. p. 29. 239 Idem. p. 30-31. 240 Idem. p. 31. 241 Idem. p. 35. 242 Idem. p. 35-36. 243 Idem. p. 36-37. 244 Idem. p. 56-57. 245 Idem. p. 60. 246 Idem. p. 10. 247 Idem. p. 64. 248 Idem. p. 65. 249 Idem. p. 76. 250 Ainda que este país tenha recebido muitos nomes através da história, ele é sempre
familiarmente conhecido como Congo. Nos dias antigos, esta região era parte do Reino do Congo e eventualmente cou conhecida como Congo. Foi renomeado Estado Livre do Congo, em 1895, quando o rei da Bélgica, agindo independentemente, persuadiu outros líderes europeus a reconhecê-lo como rei do Congo. Quando o governo belga tomou o país, em 1908, ele tornou-se Congo Belga. Ao ganhar a independência em 1960, o país tornou-se Congo. Em 1971, o governo nacional mudou o nome do país para Zaire. Seguindo uma rebelião interna, o nome atual foi adotado, em 1997, República
Democrática do Congo. Uma nação vizinha mas separada é a República do Congo, conhecida familiarmente como Congo Brazzaville. 251 Roseveare, Helen. Give me this mountain. p. 78. 252 Roseveare, Helen. Living holiness. Minneapolis: Bethany House Publishers, 1986.
p. 82-84. 253 Roseveare, Helen. Living sacri ce. Minneapolis: Bethany House Publishers, 1979.
p. 28. 254 Roseveare, Helen. He gave us a valley. Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press,
1976. p. 14-15. 255 Correspondência pessoal de Helen Roseveare, 19 de fevereiro de 2005. 256 Roseveare, Helen. He gave us a valley. p. 15-16. 257 Idem. p. 16-17. 258 Roseveare, Helen. Living Sacri ce. p. 40. 259 Idem. p. 40-41. 260 Idem. p. 71-72. 261 Idem. p. 72-74. 262 Roseveare, Helen. Living faith. Minneapolis: Bethany House Publishers, 1980. p.
44-45. 263 “Estou cruci cado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em
mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gálatas 2.19-20). 264 Estas citações foram reunidas dos relatos em Living holiness, p. 67-68, e de Living
sacri ce, p. 45-48. 265 Roseveare, Helen. Living sacri ce. p. 98-101. 266 Roseveare, Helen. Living holiness. p. 11-13.
267 Depois do insurreição, em meio aos anos 60, a vida voltou à normalidade. Ao
visitar Ibambi, lugar da primeira casa de Helen, em 2004, uma missionária escreveu sobre a vida diária ali. Esta seria muito parecida com a vida em Nebobongo, que cava apenas a alguns quilômetros. “Os adolescentes têm de buscar água do córrego e ajuntar gravetos todos os dias, assim como também ajudar a cultivar alimento nos campos de sua família. Eles cozinham num fogão feito de pedras no chão. A refeição da noite, em geral a única refeição do dia, pode levar pelo menos quatro horas para ser preparada.” (http://www.marpleparish.co.uk/Mission/sarah0104.htm, acessado em 18/02/05). 268 Roseveare, Helen. Living holiness. p. 84-86. 269 Idem. p. 71-72. 270 Idem. p. 86-87. 271 Roseveare, Helen. Living sacri ce. p. 95. 272 Roseveare, Helen. Living holiness. p. 32. 273 Vision Video, 1992. 274
Wec, Janeiro usa.org/prayer/africa.html.
de
2005,
Online
Newsletter,
http://www.wec-
275 Outros livros escritos por Helen Roseveare não mencionados nestas notas são:
Living fellowship. London: Hodder and Stoughton, 1992; Doctor among Congo rebels. London: Lutterworth Press, 1965; Doctor returns to Congo. London: Lutherworth Press, 1967. Seus livros não são fáceis de achar. Alguns estão disponíveis em sua antiga agência missionária: WEC International, P. O. Box 1707, 709 Pennsylvania Ave., Ft Washington, PA 19034-8707, 888-646-6202; http://www.wec-int.org/. 276 http://www.urbana.org/_articles.cfm?RecordId=534 (acessado em 18/02/05). 277 Roseveare, Helen. Give me this mountain. p. 56-57. 278 Roseveare, Helen. Living sacri ce. p. 48. 279 Roseveare, Helen. Living holiness. p. 67 (ênfase acrescentada).
280
Anderson, Julie. In His Grip, CD de produção particular (2002),
[email protected]. 281 Simpson, A. B. “Christ, Only Christ”.
O Ministério Fiel visa apoiar a igreja de Deus, fornecendo conteúdo el às Escrituras através de conferências, cursos teológicos, literatura, ministério Adote um Pastor e conteúdo online gratuito. Disponibilizamos em nosso site centenas de recursos, como vídeos de pregações e conferências, artigos, e-books, audiolivros, blog e muito mais. Lá também é possível assinar nosso informativo e se tornar parte da comunidade Fiel, recebendo acesso a esses e outros materiais, além de promoções exclusivas. Visite nosso website www.ministerio el.com.br