LIVRO PROPRIETARIO - HISTORIA DA ARTE E DA ARQUITETURA IV

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HISTÓRIA DA ARTE E ARQUITETURA IV

autores

IGOR FREIRE DE VETYEMY FRANCISCO PALMEIRA DE LUCENA

1ª edição SESES rio de janeiro  2017

Conselho editorial  roberto paes e luciana varga Autores do original  igor freire de vetyemy e francisco palmeira de lucena Projeto editorial  roberto paes Coordenação de produção  luciana varga, paula r. de a. machado e aline karina rabello Projeto gráfico  paulo vitor bastos Diagramação  bfs media Revisão linguística  bfs media Revisão de conteúdo  igor freire de vetyemy e francisco palmeira de lucena Imagem de capa  sam strickler | shutterstock.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2017. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) V591h Vetyemy, Igor Freire de

História da arte e da arquitetura IV. / Igor Freire de Vetyemy; Francisco Palmeira de Lucena.



Rio de Janeiro: SESES, 2017.



184 p: il.



isbn: 978-85-5548-447-6



1. Modernismo. 2. Pós-modernismo. 3. Contemporaneidade. 4. Arquitetura.



5. Arte. I. Lucena, Francisco Palmeira de. II. SESES. III. Estácio.

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063

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Sumário Prefácio 7 1. Depois da Revolução Industrial – O nascimento do movimento moderno 11 Contexto, causas e condições para o estabelecimento do movimento moderno 13 A Revolução Industrial 13 O Iluminismo 14 A Revolução Francesa e a crise no campo da arte e da arquitetura 14 Exposições universais: novas tecnologias e novas possibilidades 15 Vanguardas artísticas e o Protomodernismo 17 Art Nouveau e Art Déco 17 Escola de Glasgow e Secessão de Viena 20 Escola de Chicago, “Ornamento e Crime” e o Neoplasticismo 20 Consolidação do movimento moderno A fundação da Bauhaus Política e sociedade: arte e arquitetura como atividades subversivas Menos é mais: Mies van der Rohe, as casas pátio e o super-homem de Nietzsche CIAM – Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna Le Corbusier, seus cinco pontos e a máquina de morar Philip Johnson e o International Style

2. Tupi or not Tupi – Modernismo à brasileira Contexto e condições para o estabelecimento do Modernismo no Brasil O Brasil da virada do século Semana de Arte Moderna de 1922 Olhar estrangeiro e sangue mestiço

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A chegada da Arquitetura Moderna no país Gregori Warchavchik e a importação do vocabulário moderno Lúcio Costa e a busca de uma identidade nacional As visitas inspiradoras de Le Corbusier e Frank Lloyd Wright Palácio Gustavo Capanema: Brasil como paradigma da boa arquitetura

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Consolidação e auge da Arquitetura Moderna no Brasil A Escola Carioca, Afonso Eduardo Reidy e os Irmãos Roberto Vilanova Artigas, a Escola Paulista e Lina Bo Bardi Oscar Niemeyer, o poeta do concreto armado Consolidação, internacionalização e legado da obra de Niemeyer

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3. Revisão do Modernismo Preâmbulo crítico à arquitetura moderna Tradição e monumentalidade na obra de Louis Kahn Team X e a revisão do movimento moderno Jane Jacobs: diversidade e a crítica ao urbanismo moderno

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83 85 85 89 92

Perspectivas contemporâneas 96 História e formalismo: o moderno sob a óptica de Tafuri, Rossi e Rowe 96 Utopias hodiernas: Archigram e o metabolismo japonês 104 Eisenman e o pós-funcionalismo na arquitetura 110

4. Pós-Modernismo 115 A condição pós-moderna

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A propaganda, a comunicação e os limites da arte Arte Pop Andy Warhol

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Linguagem arquitetônica Rossi e Venturi: Contingências da linguagem arquitetônica O novo ecletismo na arquitetura

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Minimalismo e Pós-Minimalismo: literalidade e contexto na obra de arte

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5. Contemporaneidade na arte e arquitetura

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Arte e Arquitetura Conceitual Arte Conceitual Arquitetura conceitual

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Desconstrutivismo Desconstrução em Eisenman

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Prefácio Prezados(as) alunos(as), O mito da modernidade Creio que a tônica para pensar a relação complexa entre Arte, História e Arquitetura neste livro é sem dúvida sobre a palavra modernidade, ou melhor, uma correção sobre o marco temporal modernidade, ou seria melhor dizer, sobre o conceito modernidade. Continuo na dúvida... A brincadeira serve para pensarmos o quanto este termo é corriqueiro, comum, de definição tão simples, mas absolutamente complexo de entendimento. Moderno em qualquer dicionário aparece como sinônimo de “novo.” E esta pequena apresentação trata sobre a busca desse novo, conceitual, definitivo e necessariamente perene na nossa forma de compreensão da sociedade. A modernidade representa contextualmente a inauguração de uma ideia de rompimento, normalmente associada à superação de algo que fora considerado ultrapassado. Na prática ela é perfeitamente contraditória na sua compreensão. Afirmo isso pois áreas diferentes enxergam em momentos diferentes da história o que seria o momento de sua modernidade. Historiadores, por exemplo, reconhecem no termo um marco histórico-didático tradicional estabelecido na transição entre o século XV e XVI e que inaugura a concepção de uma ruptura das estruturas feudo-vassálicas e a implementação de uma estrutura política conhecida como Antigo Regime, ou as chamadas monarquias absolutas, que de absolutas não tinham nada. É interessante notar que esse marco que estudamos com tanto afinco ainda nos bancos escolares se encontra para lá de superado. Que as estruturas não se modificam da maneira como são normalmente propaladas, e muito, mas muito das características do que seria a Europa medieval permanecem vivas inclusive nos novos modelos coloniais. O conceito de modernidade não foi construído pelos seus contemporâneos; assim como todo marco histórico, é uma construção posterior, gestada em um movimento filosófico-intelectual europeu que ficou conhecido como Iluminismo. Este movimento pretendia explicar, dar sentido a todo universo. Em especial demonstrar que o homem com seu intelecto poderia tudo estruturar, explicar e quem sabe controlar. No que tange ao tempo, inventaram a própria linha histórico-temporal, uma vez que balizam o tempo a partir de seus referenciais escolhidos. É dessa forma que o início da história da humanidade passa a ser creditada a sumérios, e sociedades greco-romanas passam a ser entendidas como o auge do homem, antes de seu período de atraso, de meio, de trevas, na visão deles, conhecido com o provocativo nome de Idade Média. Como fugir desse atraso? Recuperar as relações políticas, sociais, mas

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principalmente artísticas e arquitetônicas, dando a ideia de que o novo recuperava, de forma melhorada, aquilo que o mundo havia esquecido. Contra o atraso, a modernidade era constituída como a solução definitiva da humanidade, uma vez que trazia de volta gregos e romanos, repaginados, com novas técnicas. Tudo bem que esse era um novo muito velho, em que as sociedades do século XVI-XVIII, período conhecido por Era Moderna na história, tinha um discurso que se legitimava no passado, em uma retomada do mundo conhecido como clássico, mas superando-o. A razão afinal havia chegado, o cogito de Descartes anunciava, “penso logo existo.” Tudo emana da capacidade inventiva do homem. Somos bons, somos maus, como viver em sociedade, qual o papel do governo, e o mundo todo passa a ser ensinado, treinado, para ser Europa. Outras tradições? Outras culturas? Civilização deriva da “romanidade” e só pode ser representada pelos seus dignos sucessores, posso ser negro, índio ou de qualquer etnia, desde que saiba que o ideal é ser europeu. O mundo, seja onde for, se quisesse passar como finalmente crescendo, melhorando, experimentando os ideais do que era entendido como berço da civilização, deve, no mínimo imitá-la. O neoclássico e suas manifestações ecléticas se multiplicam, se repetem em qualquer capital; o olhar era o mesmo, o sentido era o mesmo, a modernidade histórica era europeia. Caem os reis, que venha o capital e as indústrias e o moderno passa ser a cidade e a tecnologia. O governo monárquico passa a ser chamado de velho, Antigo Regime, e a República era o futuro, o progresso. O século XIX ainda acreditava plenamente na capacidade racional do homem para conduzi-lo à modernidade. A Revolução Francesa inaugura o que os historiadores chamam de Era Contemporânea, mas na prática, a busca, a discussão era ainda a mesma: a modernidade. Os caminhosdos positivistas explicavam, demonstravam, precisamos de ordem para alcançar o progresso. O modelo era indiscutível, tentar de todas as formas copiar a Europa. Se a Inglaterra crescia com suas indústrias, a França apaixonava o mundo com sua belle époque. Na segunda metade do século XIX as grandes cidades do mundo sonhavam em ser Paris, era sua chance de ser novo, agora definitivo, eterno. O sonho das novas repúblicas, como a jovem República dos Estados Unidos do Brasil, era tornar suas cidades uma definitiva reedição da França. De Barata Ribeiro, passando por Pereira Passos e Carlos Sampaio, o modelo pensado para o Rio de Janeiro era copiar essa França da segunda metade do XIX, os trajes caucasianos em meio ao calor tropical, eram um detalhe menor. O mesmo ocorre em Florianópolis, São Paulo, na criação de Belo Horizonte e Salvador, essas cidades sonham em ser a nova França. Ruas largas, passeios públicos, teatros e novas construções, principalmente nova e grandiosas construções. As formas consagradas eram substituídas por novas linhas artísticas gestadas nas academias europeias, como o Art Nouveau, a arte nova que inovava nas formas, aparecia em uma nova estrutura de glamour que

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passava a ser experimentada como marco da nova arquitetura das cidades, claro, sem esquecer nosso imenso potencial de misturar elementos. Nos anos de 1920, a busca de inovar trouxe ao Brasil o Art Déco. Era a fase do concreto armado e da ampliação das discussões sobre qual é a identidade do brasileiro. Nessa busca, nosso Déco ganhou formas marajoaras, estruturas peculiares que davam a indicação do que passará a ser nossa busca. Era o nosso novo surgindo, a ideia de que uma inovação poderia partir de nossa própria forma de olhar o mundo. Voltamos ao mundo. Afinal, no início do século XX o mundo estava pronto, porém para se destruir. A ideia era que em nome do controle do mundo a luta constante era a busca. Valia tudo, usaremos a arte, a arquitetura, as armas e principalmente o capital. O que vale é dominar o mundo. A modernidade torna-se uma peça icônica, era a busca e o fim, um elemento estruturante poderoso em um mundo que pretendia usar o passado para legitimá-lo ao construir o novo. Sempre minha nação, minha cultura, representando tudo e a cultura do outro, só poderiam ser as marcas do atraso, logo devem ser extirpadas do mundo. Essa realidade leva o mundo a perceber a necessidade de uma nova modernidade, afinal cada uma das grandes nações em disputa tinham que erigir de maneira mais clara e mais gigantesca o seu poder. O novo chegava a reboque de uma disputa de nações, pois junto com as armas e o desenvolvimento de marcas próprias de arquitetura eram fundamentais. Seja Alemanha, Espanha, Inglaterra ou suas cópias espalhadas pelo mundo, mas com algo novo, já que a modernidade exige a formação de novas identidades nacionais. Problema? Mas e nós? Qual a nossa identidade? Afinal nós éramos portugueses, sonhamos em ser ingleses, mas rapidamente lutamos, construímos um ideal: convencer o mundo que nós éramos franceses. E agora? A década de vinte viu São Paulo propor uma nova brasilidade, uma revolução nas artes, na cultura; vamos assumir nossa antropofagia ritual tupi, assumir que guardamos uma parte da alma de todos os nossos algozes para nos sentirmos mais fortes, além de um profundo sinal de respeito à nossa multiplicidade. Era o Brasil da década de 1930, da chegada de Vargas ao poder, da ode ao concreto armado e dos grandes prédios. Nossa crise de identidade resolvida? Nem perto disso. De modismos e planos, realizados pela metade, construímos, pensamos, estruturamos um novo jeito de pensar nossa cultura, nossa arte, nossa identidade e isso se refletiu na arquitetura. O mundo e o Brasil respiravam novamente a modernidade. O motivo? O mesmo de sempre, a necessidade de negar um passado que me incomoda. O mundo, passa pela Segunda Guerra sem desacelerar, sem deixar de ter como busca um caminho que marcasse sua diferença, sua face alternativa, enquanto o velho, travestido de novo, lutava, o moderno, tentando provar sua jovialidade, apesar do desgaste do termo, se atrevia a pensar o Novo Mundo em um Velho Mundo depressivo.

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Afinal não eram poucas as mudanças. Velhas ideologias caíram por terra, as novas emergiram em um mundo dividido entre o capitalismo e o comunismo. A propaganda se espalhou pelas novas cidades, que explodiam de gente, o mundo tornava-se mais urbano, mais apinhado, mais sujo, mais sem sentido. O espaço precisa ser repensado, reocupado, realocado. Arte e arquitetura não eram feitas apenas para servir, mas principalmente para afirmar novos símbolos de poder, e não quiseram mais aceitar esse papel. Era necessário repensar o conforto do homem, para que ele tivesse direito à sua individualidade e à sua terra, que estava serpenteada de ruelas. As torres da nova solução, o conforto, a coletividade recuperada. E junto nossa identidade, curvas, desenhos, em busca de um novo Brasil. Não ia ter jeito. De tanta modernidade, repetida e repetida, uma hora ela definitivamente iria cair em desgraça, em desuso. A virada linguística veio provocar o mundo a notar seu diálogo de surdos. As soluções de todas as formas se tornaram patéticas. O culpado não poderia ser outro, só poderia ser ela, a modernidade. Sonhamos tanto, mas tanto com o novo, que surge a necessidade de superá-lo. Sem mais olhares iluministas, sem mais linhas conceituais, o mundo de novos discursos, das individualidades, das percepções que fluem e se dissolvem no ar. Como chamar, como pensar esse novo mundo? Só uma alcunha o atenderia em plenitude: pós-modernidade. A noção do não ter absoluta noção onde se encontra, mas uma profunda certeza de não se estar mais onde se pretendeu estar para eternidade. O moderno envelheceu, mas até sua superação, ou reflexão sobre ela não resistiu a trazer a modernidade à sua reflexão. Filosofia meus caros, filosofia. Nossas discussões neste texto são uma chamada a filosofar sobre o tempo, a arte e a arquitetura. Esse texto nada mais é do que uma provocação. Uma proposital provocação. Essa é a busca da educação na sociedade da informação. Os professores, os livros, o contexto educacional não servem, já há longo tempo, para serem processos puramente informativos. O conhecimento está na construção, no estímulo, na busca. Nesse livro vocês serão constantemente provocados de forma a estimular sua busca. Quem construirá seu conhecimento serão vocês. Então, fundamentalmente, divirtam-se! Bons estudos! Prof. Rodrigo Rainha

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1 Depois da Revolução Industrial – O nascimento do movimento moderno

Depois da Revolução Industrial – O nascimento do movimento moderno No final do século XIX, em uma sociedade em profunda transformação como consequência da Revolução Industrial, forjava-se um terreno fértil para o surgimento de uma quebra de paradigma no campo das artes e da arquitetura. A lógica da produção em massa impactou todas as áreas da sociedade, criando uma nova dinâmica de pensamento e testemunhando invenções que iriam transformar totalmente o mundo construído e o ambiente em que se vivia. A sociedade passava por um momento de muitas novidades e antecipação pelas transformações cada vez mais rápidas no espaço em que habitava. A nova maneira de morar, em cidades industriais, era uma realidade absolutamente diferente dos modos de viver de até então, para o bem e para o mal. Os impactos em todas as áreas do saber se sucediam em velocidade sem precedentes. Enquanto o uso da energia a vapor permitia vencer barreiras de distância e tempo antes inimagináveis, a invenção do elevador em breve libertaria o ser humano das proximidades do solo, criando possibilidades de reorganizar a cidade de uma maneira que não poderia sequer ser imaginada antes. O Iluminismo, movimento que surgira na França durante o século anterior, fornecia base intelectual para essa nova maneira de viver, ao afirmar a supremacia da ciência e da racionalidade sobre qualquer crença. O objetivo do movimento, ao buscar leis e princípios universais que governam todas as coisas, era “iluminar” os cantos “obscuros” do conhecimento, representados pelo pensamento religioso e pelas monarquias absolutistas, ambos fundamentados na aceitação da limitação humana para entender o porquê de tudo ser como é. A Revolução Francesa de 1889, descendente direta dessa nova maneira de pensar, assume como lema a famosa tríade da “liberdade, igualdade e fraternidade”, instituindo um novo modelo de governo. A percepção de que era possível organizar a sociedade de uma maneira diferente cria um efeito dominó na Europa, derrubando e enfraquecendo a monarquia e a Igreja, até então as grandes patronas da arte em geral e da arquitetura em particular. O campo profissional enfrenta um momento de crise em que precisa se reinventar, seguindo o caminho das diversas outras áreas do conhecimento já afetadas por essa nova forma de organização societária. Dentro deste contexto e com o advento de novos materiais e meios de produção, surge ao redor do mundo uma série de movimentos. Mais tarde, esses

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movimentos viriam a ser percebidos como um prenúncio do movimento moderno, que em breve uniria praticamente todos com uma linguagem universal e onipresente. Embora os dicionários definam a palavra moderno como sinônimo de “novo, atual”, na arquitetura e na arte o movimento do século XX se apropriou da palavra, o que levou à necessidade de usar a palavra “contemporâneo” para se referir à arquitetura e à arte atuais.

OBJETIVOS •  Relacionar as transformações sociais causadas pela Revolução Industrial, pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa com o advento do movimento moderno; •  Reconhecer os principais movimentos de vanguarda que pavimentaram o caminho do Modernismo; •  Compreender o processo de consolidação do Modernismo e o papel de seus principais personagens neste processo.

Contexto, causas e condições para o estabelecimento do movimento moderno A Revolução Industrial

Com início na segunda metade do século XVIII na Inglaterra, rapidamente a Revolução Industrial se espalhou pela Europa, tendo sua pedra fundamental a transição dos métodos de produção artesanais para a produção com o uso de máquinas. Essa transição acontece por meio de uma série de pequenas revoluções na cadeia produtiva como: o uso crescente de energia a vapor; a substituição da matriz energética de madeira e outros biocombustíveis para o carvão; novos processos de produção de ferro; a fabricação de novos produtos químicos e a produção de máquinas que produzem máquinas. O surgimento dessas transformações em um espaço de tempo relativamente curto impactou praticamente todas as áreas do conhecimento humano. Segundo McCloskey (2004), existe um consenso entre historiadores econômicos de que o

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início da Revolução Industrial é o evento mais importante na história da humanidade desde a domesticação de animais e a agricultura. A Segunda Revolução Industrial, com o uso crescente de navios a vapor, ferrovias e fabricação em larga escala, sucedeu à Primeira em meados do século XIX, e antes da próxima virada de século já haveria indícios notáveis da revolução da arte e da arquitetura que estava por vir. O Iluminismo

Um século antes, o chamado “século das luzes”, a sociedade viu o surgimento, na França, do Iluminismo: a crença de que os seres humanos têm condição de tornar este mundo um lugar melhor com a busca do conhecimento profundo e apurado da natureza, como forma de torná-la útil para o ser humano moderno e progressista. Era a utopia da razão. O final de uma era de medo e escuridão, em que o próprio homem impôs limite para sua sabedoria, como colocou Immanuel Kant11: “O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutela que estes mesmos se impuseram a si”. Representou o fim de uma era, segundo ele, de “falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! – Esse é o lema do Iluminismo” Uma das heranças mais importantes deste período é a primeira Enciclopédia Moderna, editada por Denis Diderot e Jean Le Rond d'Alembert com contribuições de líderes filosóficos como Voltaire e Montesquieu. Ela materializa o sentimento geral de que o homem sabe – e tem o direito, e por isso quase o dever de saber – tudo. A Revolução Francesa e a crise no campo da arte e da arquitetura

Fortemente apoiada nos preceitos iluministas, a Revolução Francesa teve um impacto político e social rápido e devastador. As velhas instituições que durante séculos dominaram a cena no mundo eurocêntrico, perderiam rapidamente a maior parte de seu poder. A Igreja e as monarquias acumularam quedas em reformas e revoluções pela Europa. Sem seus patronos históricos, a arte e a arquitetura, em uma primeira reação à crise em que se viram, buscaram refúgio na releitura de estilos anteriores, voltando-se 1  Immanuel Kant, 1724-1804, filósofo prussiano amplamente considerado como o principal filósofo da era moderna.

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para o passado em um momento em que todos os outros campos do saber se voltavam para o futuro. A referência, que já não era mais apenas a do passado clássico, marcou o século XIX pelo historicismo eclético. O estilo de cada obra passou a depender única e exclusivamente do gosto do arquiteto ou do contratante, não mais de um produto e expressão de um determinado tempo em determinado local. E uma profusão de releituras começou a dividir espaço na cidade do século XIX. Neoclássicos, neorromânicos, neogóticos, neobarrocos e muitos outros “neos” surgiam lado a lado, não raro no mesmo edifício. Fachadas recriando fielmente o estilo clássico francês ostentavam janelas neogóticas e balaustradas neorrenascentistas. Esse uso indiscriminado de referências, não mais como representante de uma cultura específica de um tempo e de um local, mas simplesmente como algo decorativo, no entanto, não resistiu diante das possibilidades trazidas pelos novos materiais e técnicas construtivas. Em uma cidade onde fábricas, pontes e trens determinavam o paradigma do mundo moderno, a arquitetura do ferro surgiria como maior expressão imediata dessa adesão ao espírito do tempo industrial. A possibilidade de se produzir todas as peças em velocidade e escala industrial transforma a técnica até então artesanal de se construir em uma atividade limpa, racional, rápida, econômica e eficiente, absolutamente alinhada com os tempos modernos. Exposições universais: novas tecnologias e novas possibilidades

Criadas com o objetivo de compartilhar os novos conhecimentos e divulgar as criações da nova era, como o elevador que revolucionaria o skyline das cidades, permitindo o uso com conforto de um edifício de múltiplos andares, as exposições universais trouxeram também as primeiras grandes heranças arquitetônicas dessas novas possibilidades nos próprios edifícios que abrigaram algumas dessas exposições. Em 1851, na primeira exposição universal, em Londres, o arquiteto Joseph Paxton, famoso por projetar enormes estufas públicas, cria o suntuoso Palácio de Cristal, com a leveza e transparência de uma arquitetura puramente de aço e vidro e o uso do efeito, literalmente, de uma estufa para manter o calor concentrado no interior do edifício, protegendo seus usuários do clima frio de Londres.

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Figura 1.1  –  Leve, etéreo e ainda assim suntuoso: o Palácio de Cristal de Londres, do arquiteto Joseph Paxton, de 1851.

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Em 1889, em Paris, o engenheiro Gustave Eiffel emprega todo seu conhecimento e experiência com pontes para construir a Torre Eiffel, mais alta construção humana até então e considerada como o maior símbolo da Revolução Industrial.

Figura 1.2  –  Símbolo da Revolução Industrial, a Tour Eiffel, construída entre 1887 e 1889 para ser temporária, acabou eternizando a marca do engenheiro Gustave Eiffel na paisagem de paris.

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Nesse momento, em que os maiores acontecimentos arquitetônicos estão intimamente ligados às grandes novidades tecnológicas que são apresentadas nas Feiras Universais, movimentos de vanguarda começam a se distanciar mais convictamente das referências historicistas. As possibilidades trazidas por novos materiais começam a criar uma nova expressividade em cada região, absorvendo aspectos vernaculares de cada país em determinados movimentos, passando, mais tarde, a ser reunidos sob a alcunha de Movimentos Proto-Modernistas. Ou seja, ainda que bem diferentes entre si, todos eles possuem características que reconhecidamente foram relevantes na pavimentação do caminho rumo ao Modernismo.

Vanguardas artísticas e o Protomodernismo Sem deixar de reconhecer a importância dos movimentos Arts & Crafts (ou “Artes e Ofícios”, em tradução pouco utilizada), Cubismo, Abstracionismo, Expressionismo, construtivismo russo e futurismo italiano, alguns outros movimentos que eclodiram na Europa na virada do século XIX para o século XX e que viriam a ter uma contribuição ainda maior para o surgimento do Modernismo merecem um olhar um pouco mais aprofundado. ©© WIKIMEDIA.ORG

Art Nouveau e Art Déco

O Art Nouveau (francês para “Arte Nova” e também conhecido por seu nome em alemão, Jugendstil, ou “Estilo da Juventude”) foi considerado essencial na transição entre o Historicismo e o Modernismo. Fazia uso das novas possibilidades do ferro para criar, com fortes referências às formas orgânicas da natureza, um estilo “total”, incluindo todas as escalas do design: arquitetura, design de interiores, artes decorativas e têxteis, joias, móveis, prataria e artes visuais. A arte deveria ser um modo de vida.

Figura 1.3  –  O Art Nouveau no design gráfico: um dos famosos cartazes de Mucha que viraram ícones do movimento.

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Figura 1.4  –  O Art Nouveau no design de interiores: escadaria da Casa Tassel (1892-1893),

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de Victor Horta, em Bruxelas, na Bélgica, onde nasceu o movimento.

Figura 1.5  –  O Art Nouveau na arquitetura: fachada de Jules Lavirotte em Paris, de 1909

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Tendo se espalhado rapidamente pela Europa e atingido escala global durante a chamada belle époque, o Art Nouveau foi amplamente utilizado na virada do século, entre 1890 e os anos 1910, mas perdeu força com o início da Primeira Guerra Mundial. O alto custo de produção do Art Nouveau levou o estilo a ser substituído por um estilo com estética mais simples, mais ágil e retilíneo, que era mais barato e mais fiel à indústria: o Art Déco (do francês Arts Decoratifs, ou “Artes Decorativas”). ©© JUD MCCRANIE | WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.6  –  LeVeque Tower, projetada em 1924 por Howard Crane, em Ohio, nos Estados Unidos.

Sem perder a intenção da “Arte total”, o Art Déco vai se utilizar de formas geométricas e com simetria bem marcada, sem apresentar grandes intenções filosóficas ou políticas, ao contrário da maioria dos outros estilos dessa época. O objetivo era simplesmente decorativo. Considerado então como uma maneira elegante, funcional e ultramoderna de representar a sociedade, o Art Déco viria a utilizar materiais simples (concreto, madeira, mármore, bronze, prata e marfim) em requintadas decorações geométricas na arquitetura, escultura, design de moda, de mobiliário, de joias, luminárias e objetos decorativos em geral. Teve seu ápice durante os anos 1920, mas continuou com bastante força nos Estados Unidos até os anos 1930. capítulo 1

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Escola de Glasgow e Secessão de Viena

Outro movimento da virada do século que teve grande importância na preparação do terreno para o advento do Modernismo foi a chamada Escola de Glasgow, por sua rejeição às artes do passado. Ao contrário do Art Nouveau, as novas possibilidades do ferro aqui não eram utilizadas na arquitetura com objetivo decorativo, mas para permitir uma maior racionalidade na organização das plantas. As paredes são lisas, em pedra, sem qualquer ornamentação ou volumetria não racional. As possibilidades de concentração de carga oferecidas pela estrutura em ferro já permitem a abertura de grandes vãos na fachada, com grandes superfícies de vidro. Enquanto na Escócia Mackintosh e “Os quatro de Glasgow”, literalmente, “faziam escola”, um grupo de jovens artistas austríacos buscava romper com as normas tradicionais, artísticas e étnicas da época, representadas pela Cooperativa dos Artistas das Artes Decorativas da Áustria. Um dos líderes deste movimento, que ficou conhecido como Secessão de Viena, o pintor Gustav Klimt escreveu o primeiro documento em que o grupo descreve suas concepções sobre a arte e seus objetivos. Seu texto enfatiza a necessidade de “unir a vida artística de Viena ao progresso da arte em outros países”. Entre os arquitetos, Otto Wagner, viria a exercer grande influência, inclusive com diversos seguidores renomados, incluindo Josef Hoffmann, Joseph Maria Olbrich e Koloman Moser, que participaram com ele da fundação da Secessão de Viena. Já em 1896, Otto Wagner publica um livro, com base em sua aula inaugural de dois anos antes para a Academia de Belas Artes de Viena, chamado “Arquitetura Moderna”, no qual afirma que “novas tarefas humanas e novos pontos de vista clamavam por uma mudança ou reconstrução das formas existentes”. Otto Wagner incorporava o uso de materiais e formas que refletiam o fato de que a sociedade estava mudando e respondiam claramente à sua função (ou seu programa). Foi um de seus pupilos, Rudolph Schindler quem disse que “a Arquitetura Moderna começou com Makintosh na Escócia, Otto Wagner em Viena e Louis Sullivan em Chicago”. Escola de Chicago, “Ornamento e Crime” e o Neoplasticismo

Louis Sullivan, considerado por seus conterrâneos “o pai da arquitetura moderna”, foi o maior expoente da chamada Escola de Chicago. Ele e seus colegas foram pioneiros na utilização da estrutura em aço leve (steel frame) para construir os primeiros

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arranha-céus do mundo, ainda em meados da década de 1880, pouco depois da invenção, nos Estados Unidos, do elevador elétrico, em 1853. Elisha Graves Otis, ao inserir um sistema de segurança antiqueda, como uma evolução das plataformas elevatórias – hoisting plataforms – possibilitou o uso dessa tecnologia em grande escala e com segurança, permitindo esse uso em edifícios comerciais e residenciais. Pouco depois, em 1896, Sullivan escreve que “a lei que governa todas as coisas, orgânicas e inorgânicas, físicas e metafísicas, tudo, se reconhecia nessa expressão” (que ele atribuía a Vitruvius, mas que ficou marcada como sua): “a forma segue a função”. Mais tarde, essa viria a se tornar uma das principais máximas do Modernismo, o que levaria Sullivan a ficar conhecido como “o profeta da arquitetura moderna”. Curiosamente, a Escola de Chicago e Louis Sullivan viriam a influenciar mais um importante arquiteto austríaco do que os colegas de sua terra. Depois de passar um tempo nos Estados Unidos, Adolf Loos retorna a uma agitada Viena trazendo ideias diferentes que ecoariam mais forte do que o movimento de contestação das normas tradicionais que vinha sendo promovido por seus conterrâneos, criticados por ele. Em 1908, Loos escreve um ensaio ao qual dá o título de “Ornamento e Crime”. Esse manifesto representa o ponto culminante de uma oposição teórica ao movimento Art Nouveau. Loos considerava a ornamentação na arquitetura algo inaceitável naqueles tempos por causa do desperdício de trabalho e de materiais da civilização industrial moderna. Ele dizia que a arquitetura deve servir à necessidade prática, e não à arte. Esse discurso de Loos seria recebido com entusiasmo pela vanguarda francesa. Walter Gropius e Le Corbusier, dois dos principais responsáveis pela consolidação do movimento moderno, que serão objeto de estudo mais adiante neste capítulo, viriam a ser muito influenciados pelas ideias de rejeição à ornamentação de Adolf Loos. Mas antes disso, na terra de Petrus Berlage2, o artista, designer, poeta e arquiteto holandês Theo van Doesburg funda, juntamente com o pintor Piet Mondrian e outros artistas, o Neoplasticismo (ou De Stijl, no original em holandês). Em um curto espaço de tempo, de 1917 até 1931, este movimento deixaria uma herança de riqueza imensurável. No campo da pintura, Mondrian influenciou uma série de outras correntes abstratas contemporâneas e gerações subsequentes. Na arquitetura e no design, o intercâmbio com a Bauhaus, na Alemanha, na qual van Doesburg lecionou, foi uma parceria extremamente frutífera. 2  Hendrik Petrus Berlage (1856-1934), arquiteto holandês, também considerado pelos conterrâneos como o pai da arquitetura moderna. Um dos membros-fundadores do CIAM, tem grande influência em sucessivas gerações de arquitetos nos Países Baixos, desde os próprios neoplasticistas até estrelas da arquitetura contemporânea, como Rem Koolhaas e os grupos MvRdV e Mecanoo.

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Figura 1.7  –  O quadro "Grande Composição A", de Piet Mondrian, de 1920, que exemplifica o abstracionismo do movimento relacionado ao espírito urbano, progressista, daquele momento histórico na Europa.

©© DINGDONGCHATHAN | WIKIMEDIA.ORG

Um dos grandes expoentes do Neoplasticismo, Gerrit Rietveld, só passa a ser membro dois anos depois da gênese do movimento. Habilidoso filho de carpinteiro, influenciado pelas publicações do grupo em 1917, projetou a cadeira Vermelha e Azul, que conferia uma terceira dimensão ao “Mais puro dos movimentos abstratos”. O uso das três cores primárias e a valorização da independência de cada ponto, reta ou plano era, junto com os quadros de Mondrian, a mais completa materialização do discurso do grupo até então.

Figura 1.8  –  Cadeira vermelha e azul, desenhada por Gerrit Rietveld em 1917 sob influência dos primeiros escritos do neoplasticismo.

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“Até então" porque poucos anos mais tarde, em 1924, Rietveld cria mais uma peça que entraria para a história, a Casa Schroeder. Uma versão maior, mais complexa e mais completa do seu rigoroso abstracionismo. Novamente o volume é explodido em linhas e planos autônomos, que enfatizam essa independência indo além do seu destino estrutural final, destacados uns dos outros também pelo uso preciso de cores primárias. A inovação plástica era gritante em relação à arquitetura tão tradicional dos Países Baixos. O contraste pode ser percebido muito claramente na relação da casa com seus vizinhos. Além disso, a casa inaugura um conceito que jamais deixará de estar presente na arquitetura: a polivalência e a versatilidade dos espaços. ©© HAY KRANEN / CC-BY | WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.9  –  A casa Schroeder, construída em 1924 por Gerrit Rietved, em Utrecht, na Holanda. Foto de autoria do autor do livro, de 2016.

Toda fundamentada em técnicas de encaixe de madeira próprias de um antigo artesão, a Rietveld-Schroederhuis funciona como um grande loft durante o dia, enquanto à noite, dependendo da atividade que esteja sendo exercida, se configura, por meio de diferentes possibilidades de arranjo de suas paredes deslizantes e dobráveis, como uma casa de um, dois ou três quartos. O engenhoso deslocamento de um pilar da sala de jantar cria a primeira janela de canto da história.

Na década de 1930, Rietveld e seus companheiros embarcam no movimento moderno, mas a herança daquele movimento em campos como o da pintura, escultura, arquitetura, design gráfico e moda atravessou o movimento moderno e é presente em releituras e apropriações até hoje.

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Consolidação do movimento moderno A fundação da Bauhaus

Com essa série de movimentos eclodindo simultaneamente em diversos lugares, não é tarefa muito simples delimitar o começo exato da produção modernista. Um dos marcos que pode ser considerado para essa delimitação é a fundação, na Alemanha, da Staatliches-Bauhaus. A revolucionária Escola de Design, Artes e Arquitetura de vanguarda foi fundada em 1919 por aquele que viria a ser o seu primeiro diretor, o Arquiteto Walter Gropius. Seu manifesto continha uma declaração apaixonada e envolvente dos seus princípios: “o objetivo final de todas as artes visuais é o edifício completo (...) hoje as artes existem em um isolamento do qual só podem ser resgatadas pelo esforço cooperativo e consciente de todos os artistas”. Gropius defendia a formação de um profissional total, que pudesse atuar em todas as escalas do design, do objeto ao edifício e à cidade. Na Bauhaus, a arquitetura passa a ser entendida como uma resultante da convergência de várias disciplinas. A máquina, a produção industrial e o desenho de produtos se destacavam na formação deste profissional, que só viria a ter contato com o ensino de história depois de alguns anos de estudo, para que os padrões herdados do passado não influenciassem o processo criativo. Este deveria ter base apenas em princípios racionais e funcionais. Antes de tudo, se aprendia a lidar com os materiais modernos e inovadores e a refletir sobre a produção e o design no novo contexto da industrialização e das novas demandas da sociedade. Cento e cinquenta estudantes logo se inscreveram, muitos deles profissionais atuantes com a esperança de um novo começo, mais alinhado com os novos tempos, na primeira escola reformada depois da Primeira Grande Guerra. Em busca do objetivo primordial do seu manifesto original, de unir as artes e os grandes artistas para produzir o artesanato e a tecnologia do novo tempo, uma das tarefas mais importantes era conseguir angariar os nomes de maior destaque mundial para que participassem dessa construção coletiva de um novo mundo. Os professores foram substituídos por mestres e os alunos passaram a ser chamados de aprendizes. Personalidades que viriam a lecionar na Bauhaus, como o pintor e poeta suíço Paul Klee, o pintor russo Wassily Kandinsky, o arquiteto, poeta e artista holandês Theo van Doesburg e o arquiteto alemão Mies van der Rohe (que mais tarde viria a imigrar para os Estados Unidos, a exemplo de Gropius) fariam com que a influência daquela escola alcançasse os quatro cantos do planeta e atravessasse gerações.

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Política e sociedade: arte e arquitetura como atividades subversivas

Ao longo da história da Bauhaus, a política conturbada de seus tempos foi sempre um personagem importante nos seus destinos. Acusada de bolchevismo e judaísmo pelo conservador governo de Weimar, em 1925 a escola se muda para Dessau, onde Gropius projeta um edifício para a nova sede da escola que sintetizava suas ideias. Com formas radicalmente simplificadas, organizado em pavilhões de características ditadas pelo programa de cada um deles, o novo edifício respirava racionalidade, funcionalidade e a ideia de que a produção em massa podia conviver com o espírito artístico individual.

Figura 1.10  –  A revolucionária sede da Bauhaus em Dessau, de autoria de Walter Gropius, em 1925. Disponível em: .

Em 1928, sofrendo forte pressão de todos os lados, Gropius deixa a direção da Bauhaus e aponta Hannes Meyer para o substituir, embora não fosse essa a sua primeira opção. A partir deste momento, Meyer traz para a escola seu ponto de vista radicalmente funcional que ele vai chamar, em 1929, de Neue Baulehre, a “nova forma de construir”. Para ele, a arquitetura era uma tarefa puramente organizacional, sem qualquer relação com a estética. Edifícios deveriam ser baratos e projetados para atender as necessidades sociais. Durante seus dois anos na direção da escola, em meio à crescente tensão política da República de Weimar3, Meyer é acusado de permitir uma organização estudantil comunista e depois escreve uma carta aberta em um jornal de esquerda. 3  República estabelecida na Alemanha entre 1919 e 1933. Prestes a perder a Primeira Guerra Mundial, a autocrática e conservadora liderança militar alemã atirou o poder para as mãos dos democratas, que acabaram por ter de negociar a rendição na guerra. Com isso, ficava no ar o saudosismo de uma nação poderosa nos tempos do imperador, em comparação com a nova realidade democrática, cheia de derrotas e humilhações. Essa situação política acabou por lançar os fundamentos que permitiram mais tarde a Adolf Hitler posicionar-se como o arauto de um regresso ao passado imperial e antidemocrático da Alemanha e implantar o nazismo.

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Sob acusações de comunismo, Hannes Meyer é substituído na direção da escola por outro personagem central na consolidação do Modernismo. Menos é mais: Mies van der Rohe, as casas pátio e o super-homem de Nietzsche

Com o afastamento de Meyer por questões políticas em 1930, o lendário arquiteto alemão Ludwig Mies van der Rohe, autor de famosas máximas como “Menos é Mais” e “Deus está nos detalhes”, assume por um curto período de tempo, a pedido de Gropius, uma já vacilante Bauhaus. A esperança era de que sua autoridade pudesse influenciar o radicalizado corpo estudantil, acalmando os ânimos na escola. A exemplo de Gropius quando fundou a escola, ao assumir a direção, Mies van der Rohe já era o mais importante arquiteto da Alemanha. Porém, com o nazifacismo chegando ao poder em Dessau, Mies se vê obrigado a privatizar a escola, que até então era sustentada pelo governo, e não pôde mais manter Bauhaus em seu edifício-sede. Apesar de sua tentativa de continuar as atividades em Berlim, a chegada do nazismo ao poder forçou o fechamento da escola, acusada de ser um centro de intelectuais comunistas, em 1933. Como consequência, alguns de seus integrantes, incluindo Mies e Gropius, migram para os Estados Unidos, onde viriam a ampliar ainda mais sua influência, mas não necessariamente a influência dos ideais da Bauhaus, que acabam ficando relativamente para trás. O novo contexto os levou a desenvolver outros aspectos de suas obras. O racionalismo formal de Mies, transliterado em arranha-céus, é uma inversão radical da horizontalidade marcante de seus projetos, a serviço não mais de uma economia preocupada “apenas” com a otimização espacial e barateamento dos edifícios – face à reconstrução da Alemanha – mas, principalmente, com a representação de uma imponência formal e dominante do capitalismo norte-americano, totalmente adverso aos princípios sociopolíticos da Bauhaus. A influência de Mies van der Rohe, portanto, transcende o período da Bauhaus, tanto para frente quanto para trás. Antes de assumir a direção da escola, Mies já acumulava uma série reconhecida de projetos inovadores, culminando com o simbólico Pavilhão Alemão na Feira Universal de Barcelona de 1929. Ápice de uma corrida para melhorar a qualidade dos produtos industriais alemães, considerados inferiores aos franceses, ingleses, belgas e americanos, o Pavilhão de Barcelona é o símbolo desse esforço, que foi decisivo na fundação do movimento moderno. O Pavilhão sintetizava a intensa interação de Mies com movimentos arquitetônicos como o Neoplasticismo e o construtivismo soviético.

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©© ASHLEY POMEROY | WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.11  –  O pavilhão de Barcelona reconstruído.

Com apurado rigor minimalista, o pavilhão se configura como um conjunto de planos independentes, horizontais e verticais, revestidos de diferentes mármores. A esses planos, se adicionam panos de vidro e lâminas d’água, além dos famosos pilares metálicos em cruz, dispostos em grid regular independente dos planos de “fechamento”. Estes, ao invés de fechar, ou delimitar o “dentro” e o “fora”, se encaixam com delicadeza e fluidez, orientando o olhar para vistas exteriores. Passada a experiência na Bauhaus e com o advento do nazismo e a consequente necessidade de se exilar nos Estados Unidos da América, Mies van der Rohe dá sequência a sua carreira com algumas das obras mais importantes da História da Arquitetura. Entre elas, se destacam o pavilhão do Crown hall, sede do departamento de Arquitetura da Universidade de Illinois que viria a dirigir, a icônica casa da Senhora Farnsworth, nos arredores de Chicago (1946 a 1951) e o Seagram Building, de 1958, considerado por muitos o auge da arquitetura funcionalista para arranha-céus. A casa da Senhora Farnsworth se tornaria referência da arquitetura moderna com sua planta fluida ao redor da lareira. Segundo Iñaki Ábalos, em seu livro A boa vida: visita guiada às casas da modernidade, a verticalidade dessa lareira é praticamente anulada, como se voluntariamente evitasse qualquer referência a uma representação simbólica de transcendência. Essa acabou se tornando uma marca dos projetos de Mies van der Rohe: a substituição da simetria vertical (presente, por exemplo, nas catedrais góticas, que levam o usuário automaticamente a olhar para os céus) por uma simetria horizontal, através da fixação do pé direito em 3,20 m (o dobro da altura média dos olhos) e do

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uso de grandes panos de vidro de piso a teto, que obrigam a luz penetrar e refletir de maneira homogênea nos planos horizontais do piso e do teto.

©© MIESBARCELONACHAIR | WIKIMEDIA.ORG

Entre seus principais projetos de design de mobiliário, o destaque é a Cadeira Barcelona, que revela tantos aspectos importantes de suas ideias. A exemplo da casa da Senhora Farnsworth, com sua mistura de materiais industriais – como o aço, o vidro e o concreto – e materiais vernaculares – como o tijolo, o couro e a pedra – a Cadeira Barcelona também joga com essa mistura de aço e coro, presente e passado, tecnologia e tradição e sugere a postura do ser contemplativo nietzscheniano, nem relaxado nem ereto. Confortável, elegante, seguro.

Figura 1.12  –  A Cadeira Barcelona, criada para o pavilhão, que se tornou uma das marcas de Mies van der Rohe e é sucesso de vendas até hoje.

O último de seus trabalhos mais relevantes é a Neue Nationalgalerie, em Berlim, de 1958, considerado uma das mais perfeitas expressões de sua abordagem. O pavilhão superior, parte do museu que pode ser vista da rua, é uma caixa de vidro com mais de 2.000 metros quadrados, sem qualquer apoio interno, apoiada num rígido grid periférico de colunas metálicas para as quais as cargas da cobertura são levadas por uma malha de vigas de aço aparentes. O filósofo Friedrich Nietzsche era uma forte referência para Mies van der Rohe. Seus textos, especialmente sua obra Assim falou Zaratustra, influenciaram bastante Mies van der Rohe. O “Super homem” de Nietzsche serviu, conscientemente ou não, de inspiração

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para o homem que habitaria seus estudos das famosas casas pátio (1931 a 1938), que não tinham um cliente real e jamais viriam a ser construídas. Construí-las não era a intenção, mas os estudos tiveram muitos desdobramentos facilmente reconhecíveis na obra de Mies van der Rohe.

CIAM – Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna

Em 1928, na Suíça, um grupo de 28 arquitetos de diversos países, entre alguns dos mais influentes da Europa, se reúne no primeiro de 11 encontros que aconteceriam em diferentes cidades europeias até 1959. Tratava-se de um Congresso no qual se buscou o diálogo entre representantes das tendências dispersas da arquitetura Pós-Revolução Industrial para entender suas semelhanças e diferenças e formalizar os princípios da arquitetura moderna. Entre os arquitetos fundadores estavam Le Corbusier, Sigfried Gideon, Hannes Meyer, Hendrik Berlage e Gerrit Rietveld. Outros membros de importância vital para o movimento moderno se juntaram ao grupo em edições posteriores, como Walter Gropius e Alvar Aalto, perfazendo provavelmente o grupo mais influente da história da arquitetura. O grupo via a Arquitetura e o Urbanismo como uma ferramenta política e econômica capaz de transformar o mundo por meio do design e planejamento das cidades. Ao primeiro congresso na Suíça seguiram-se encontros com focos mais específicos, como o de Frankfurt em 1929, em que se discutiu a habitação mínima e o Congresso de 1933, que discutiu a cidade funcional, levando o foco principal para o urbanismo. Com base no estudo de 33 cidades, o grupo propunha que os problemas sociais encarados pelas cidades poderiam ser resolvidos com a segregação rigorosa das funções de uma cidade e da distribuição da população em altas torres residenciais separadas por grandes superfícies verdes, inspiração nas cidades-jardim de Le Corbusier. Este quarto encontro deveria ter acontecido em Moscou, mas acabou se dando a bordo de um navio, no trajeto de Marseille à Grécia, por conta da rejeição do projeto de Le Corbusier para o concurso do Palácio Soviético, que seria um divisor de águas ao apontar o abandono soviético aos princípios do CIAM.

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Le Corbusier, seus cinco pontos e a máquina de morar

Le Corbusier foi uma das figuras centrais deste grupo e da consolidação do Modernismo, provavelmente o seu maior porta-voz. Talvez o produto mais influente de todos os encontros do CIAM tenha sido a sua Carta de Atenas, com base nas discussões ocorridas nessa quarta conferência da organização. A Carta praticamente definiu o urbanismo moderno, traçando diretrizes e fórmulas que deveriam poder ser aplicáveis internacionalmente. A Carta endereçava a cidade como um organismo a ser planejado de modo funcional. Cada necessidade do homem deveria estar em um lugar específico e lógico, com cada desafio identificado claramente e resolvido tecnicamente. Entre outras propostas revolucionárias da Carta está a de que toda propriedade de todo o solo urbano pertence à cidade e, portanto, deve ser de domínio público. Era o que ele chamava de “Rue Libre”, ou “rua livre”, afirmando que o homem não deveria limitar sua liberdade de ir e vir às direções determinadas pelas ruas e calçadas. A cidade de Brasília, cujo plano piloto é de autoria do arquiteto e urbanista Lúcio Costa, extremamente influenciado por Le Corbusier, é considerada como o mais avançado experimento urbano no mundo que tenha aplicado integralmente todos os princípios da Carta.

Sua proposta de libertar a edificação do solo também foi investigada a fundo em seus projetos de arquitetura. Em seu manifesto “Por uma Arquitetura”4, Le Corbusier clama pela criação uma “Máquina de Morar” que fizesse a arquitetura abandonar o passado e se juntar ao novo tempo. Um tempo de máquinas para cozinhar e máquinas para transportar, máquinas para lavar e máquinas para voar. Um tempo de dominação do homem sobre a natureza. Um tempo de domínio da razão.

4  No original em Francês, Vers une Architecture, livro de 1923, que virou um clássico da arquitetura, com uma compilação de artigos de Le Corbusier durante os anos anteriores na revista L’Esprit Nouveau, da qual era editorchefe.

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Figura 1.13  –  "Villa Savoye, a casa-manifesto de Le Corbusier, de 1929 em Poissy, na França." Fonte: Foto de autoria do autor do livro, de 2006.

Em seu manifesto, ele coloca a questão com as seguintes palavras: “Se eliminarmos de nossos corações e mentes todos os conceitos mortos a propósito das casas e examinarmos a questão a partir de um ponto de vista crítico e objetivo, chegaremos à “Máquina de Morar”, a casa de produção em série, saudável (também moralmente) e bela como são as ferramentas e os instrumentos de trabalho que acompanham nossa existência”. A partir desta vontade e da liberdade cada vez maior que as novas tecnologias possibilitavam, Le Corbusier formulou o que ficou conhecido como os 5 pontos corbusianos, colocando a teoria em prática com uma espécie de “residência-manifesto”, a Villa Savoye. Praticamente todos os pontos têm relação com a libertação das paredes de sua função estrutural, com a criação da estrutura independente. Le Corbusier já havia elaborado, entre 1914 e 1917, um estudo libertador chamado casa dom-ino, em que seu protótipo da construção moderna foi desnudado, representado apenas por lajes, pilares, fundações e circulação vertical para demonstrar que os demais elementos da edificação poderiam ser absolutamente livres.

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Figura 1.14  –  Sistema construtivo da Casa Dom-ino, criado por Le Corbusier em 1915, em parceria com o engenheiro suíço Max du Bois. Disponível em: .

Com isso, na Villa Savoye, em 1929, Le Corbusier aplicou e mostrou ao mundo seus cinco pontos:

PILOTIS

Em consonância com sua ideia da Rue Libre, a casa é elevada sobre um conjunto de pilares em um espaço aberto, embora coberto, com apenas um pequeno núcleo fechado em volta de um hall para controle de acesso e circulação vertical.

PLANTA LIVRE

Uma vez que um rígido grid de pilares independentes, já sustenta as lajes, as paredes podem ser colocadas onde for mais conveniente e no formato que mais interessar

FACHADA LIVRE

Analogamente, as paredes das fachadas também são libertadas da função de sustentação, podendo ter aberturas do tamanho que se desejar.

JANELAS EM FITA

Consequência direta do ponto anterior, permite janelas contínuas que atravessam ambientes e dobram esquinas da edificação.

TERRAÇO JARDIM

Com a nova tecnologia do concreto armado, os velhos telhados não eram mais necessários e toda essa superfície poderia se tornar um espaço de lazer (e socialização, como bem demonstram suas “Unités D'habitation”, construídas em diferentes cidades da Europa entre as décadas de19 40 e 1960).

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Para deixar clara sua intenção de que o sistema estrutural independia de qualquer organização das paredes, o arquiteto, numa atitude firme e – porque não – quase irreverente, chega a colocar um pilar no meio do banheiro, entre a pia e o vaso sanitário. A relação da máquina de morar com outras máquinas também é deixada clara na curvatura do bloco menor, que encosta no térreo, cujo raio corresponde exatamente à curvatura que um dos símbolos da vida moderna, o automóvel Citroën do proprietário, podia fazer para estacionar. O caminho para chegar a essa vaga de estacionamento também não poderia ser feito sem antes dar a volta na residência, no que o próprio Le Corbusier chamava de “Promenadearchitecturale”, uma espécie de passeio arquitetônico “guiado” pelos gestos do arquiteto ao definir a implantação e acesso, momento em que deveria imprimir sua intenção em relação às possibilidades de aproximação da casa. A eloquência com que discursava, suas constantes viagens de divulgação da nova arquitetura, cujo financiamento se credita à então jovem e promissora indústria do aço e sua constante busca de documentar suas ideias e torná-las compreensíveis, fez de Le Corbusier uma figura tão importante para o movimento, que o Modernismo que mais vem a influenciar a criação do movimento moderno brasileiro é chamado de modernismo corbusiano. Philip Johnson e o International Style

A partir de um determinado momento, historiadores passam a classificar o movimento moderno em duas correntes principais: o Organicismo de Frank Lloyd Wright, sobre o qual nos debruçaremos mais adiante, no próximo capítulo; e o funcionalismo, com base na afirmação de Adolf Loos de que “A forma segue a função”, já revisitada neste capítulo. Do Funcionalismo, nascem diversas correntes, entre as quais uma vai se afirmar cada vez mais, o chamado “International Style” (ou Estilo Internacional, em tradução usada com menos frequência). Embora o nome tenha se tornado universal, existe certa contradição nele, uma vez que o objetivo era justamente de se evitar os estilos, que, considerados ornamentação (portanto, um crime em tempos de entreguerras) remontam ao historicismo, que tanto combatiam com o intuito de criar uma arquitetura livre, que pudesse estar em qualquer lugar e qualquer tempo. Mas independente do nome – principalmente pela força dos seus principais personagens, os já citados Le Corbusier, Walter Gropius e Mies van der Rohe – o Estilo Internacional se tornou cada vez mais hegemônico e não é raro o seu uso inclusive como sinônimo do movimento moderno. capítulo 1

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Outro personagem essencial que viria a contribuir muito para a consolidação do Estilo Internacional como movimento hegemônico da primeira metade do século XX é o arquiteto, crítico e historiador Philip Johnson, parceiro de Mies van der Rohe no lendário projeto do Seagram Building e primeiro ganhador do Prêmio Pritzker, considerado o “Oscar da arquitetura”. Foi dele e de seu parceiro Henry-Hussel Hitchcock o livro de 1932 em cujo título os autores cunharam a própria expressão “International Style”. Neste livro, os autores definiam três principais características formais do Modernismo, que se tornariam cânones do Estilo Internacional: a ênfase no “volume arquitetônico”, não na massa (planos no lugar de solidez); rejeição à simetria; e a já comentada rejeição à ornamentação. O livro acompanhava uma exposição que ajudou muito a dar visibilidade ao movimento e que se chamava “Moder Architecture – International Exhibition” (em tradução livre: “Arquitetura Moderna – Exposição Internacional”). Neste momento Philip Johnson era diretor do MoMA (Museum of Modern Arts, o respeitado Museu de Arte Moderna de Nova York), no qual organizou esta exposição. Bem mais tarde, em 1988, Johnson tornaria a organizar outra exposição no mesmo museu que ajudaria a solidificar o conceito do desconstrutivismo, como veremos mais adiante neste livro. Isso mostra como se tratava de uma pessoa à frente do seu tempo, um visionário, considerado um dos pais do Estilo Internacional e autor de uma das suas obras mais emblemáticas, a “Casa de Vidro”, que construiu em 1949 em New Canaan, também nos Estados Unidos, como tese de mestrado quando estudava em Harvard com o célebre Marcel Breuer, da primeira geração de formandos da Bauhaus.

Figura 1.15  –  A casa de vidro de Philip Johnson, de 1949, que materializa os preceitos do Estilo Internacional.

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Philip Johnson morou por 58 anos nessa casa, cuja maior influência foi a casa Farnsworth, de Mies van der Rohe, exibida com destaque na exposição do MoMA em 1947. A casa de vidro, a exemplo da casa Farnsworth, também se tornaria uma das maiores referências do Estilo Internacional. A particularidade de ter sido concebida como uma tese de mestrado, fez o projeto ser permeado por preciosas lições sobre geometria e estrutura minimalista, sobre proporção e sobre os efeitos da transparência e dos reflexos que vinham do uso de grandes panos de vidro. Também se tornou referência em relação ao uso de materiais industriais, como o aço e o vidro, em projetos residenciais. Exemplos como esses, junto com a força e influência dos CIAMs e da Bauhaus, do discurso corbusiano e de todos os movimentos vistos neste capítulo, tornaram o Modernismo – e o Estilo Internacional, em particular – um dogma com extrema penetração em diferentes culturas. Após a Segunda Guerra Mundial, especialmente, fazia muito sentido a busca por uma arquitetura “industrial”, produzida em escala e, para tal, replicável em qualquer contexto, como forma de mitigar o déficit habitacional produzido pela guerra. Mas um país em particular iria começar a se destacar no mundo arquitetônico a partir de uma versão particular e local do Modernismo, criada justamente por uma flexibilização desses dogmas, digeridos e transformados pela cultura local. O Brasil entraria em cena, com alcance internacional, a partir do revolucionário edifício do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, em 1936. Naquele momento, o país daria início a um ciclo que passaria pela grande exposição “Brazil Builds”, também no MoMA de Nova York, em 1943 e culminaria com a construção da nova capital, Brasília, inaugurada em 1960. Tudo isso, que será analisado mais detalhadamente no próximo capítulo, teria início no episódio marcante da Semana de Arte Moderna de 1922.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GOODWIN, Philip; SMITH, Kidder G. E. Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1942. Nova York: MOMA, 1943. BARNES, Rachel. The 20th-Century art book. London: Phaidon Press, 2001. CORBUSIER, Le. Por uma Arquitetura . São Paulo: Perspectiva, 2004 (Original Vers une Architecture, Paris, 1923) DROSTE, Magdalena. Bauhaus: Bauhaus archiv.Taschen, 2011. GROPIUS, Walter. “Bauhaus Manifesto and Program”. Bauhaus, 1919.

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McCLOSKEY, Deidre. Review of the Cambridge Economic History of Modern Britain. Cambridge: Times Higher Education Supplement, 2004. SARNITZ, August. Otto Wagner: Forerunner of Modern Architecture. Berlin: Taschen, 2005. SULLIVAN, Louis. The Tall Office Building Artistically Considered. Chicago: Lippincott's Monthly Magazine (March 1896).

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2 Tupi or not Tupi – Modernismo à brasileira

Tupi or not Tupi – Modernismo à brasileira Neste capítulo voltaremos um pouco no tempo para ver como todas as mudanças pelas quais o mundo estava passando na primeira metade do Século XIX se refletiam no Brasil às vésperas da revolução que colocaria o país no centro das atenções mundiais, principalmente no campo da arquitetura. Em um mundo ainda distante da globalização que vivemos atualmente, novidades tecnológicas demoravam para chegar ao Brasil, o que postergava alterações substanciais no nosso cotidiano, especialmente em obras arquitetônicas, que via de regra demoram alguns anos para ficar prontas. Por outro lado, esse tempo diferente oferecia uma oportunidade de digerir assuntos de acordo com a nossa perspectiva. A “antropofagia cultural” proposta por Oswald de Andrade e uma geração genial de artistas brasileiros se apoiava justamente nessa adaptação das novidades estrangeiras ao nosso contexto cultural, aos nossos costumes, ao nosso modo de ser e de viver. Por ser um recorte temático diferenciado, no sentido que o Período Moderno no Brasil extrapola o tempo do movimento moderno europeu, este capítulo terá sua própria lógica em relação à cronologia "universal" do moderno. Some-se a isso a importância dos grandes mestres modernistas brasileiros e temos um capítulo pouco ortodoxo em um livro de história. O tempo cronológico, neste capítulo, ficará um pouco em segundo plano enquanto contamos a história de alguns desses mestres até o fim de suas vidas, para então passarmos a outro personagem, retornando ao início do Período Moderno no nosso país e perpassando diversos momentos de sua trajetória, para então, num ciclo contínuo, retornar no tempo enquanto o leitor se familiariza com mais e mais personagens dessa trama.

OBJETIVOS •  Compreender o contexto brasileiro na primeira metade do século XX e as condições para a chegada do Modernismo ao país; •  Relacionar a Semana de Arte Moderna de 1922 e as influências estrangeiras ao aspecto singular que definiu o modernismo brasileiro; •  Compreender o processo de consolidação do Modernismo no país e o papel de seus principais personagens neste processo; •  Reconhecer os principais eventos e projetos que contribuíram para o sucesso da geração de arquitetos modernistas brasileiros.

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Contexto e condições para o estabelecimento do Modernismo no Brasil O Brasil da virada do século

Como explicado na apresentação deste capítulo, o contexto do final do século XVIII no Brasil seguia com algum atraso as tendências europeias que analisamos no capítulo anterior. Uma crescente penetração do Neoclassicismo só foi atingir seu ápice por aqui no início do século XIX, com a presença do arquiteto francês Grandjean de Montigny, como parte da bem-sucedida "Missão Artística Francesa". Tratava-se de um grupo de artistas do país que neste momento era a grande inspiração para o mundo inteiro. Convidados pelo imperador português D. João VI para introduzir a educação superior em Belas Artes no Brasil e desenvolver uma nova geração de artistas brasileiros, eles deram início à construção de um grande número de projetos neoclássicos por aqui. O sucesso dessa empreitada deixou as portas abertas para um historicismo que acomodava também, a exemplo do contexto europeu, neogóticos, neorromânicos, neorrenascentistas, neobarrocos, e ainda, entre tantos outros “neos”, os neocolonialistas, primeira “autorreferência” na curta história do nosso país. Com tantas influências, também por aqui essa época acabou sendo conhecida como a era do Ecletismo. Na capital federal da época, o Rio de Janeiro, centro político e cultural do país, neste momento se importava praticamente por inteiro exemplos estrangeiros emblemáticos. A cidade se encontrava imersa em uma disputa não declarada com Buenos Aires pela alcunha de “Paris dos trópicos". Enquanto os argentinos criavam "a avenida mais larga do mundo"5, os brasileiros criavam "o boulevard mais charmoso do mundo" na orla de Copacabana6. Um dos maiores exemplos desse período no Rio é o Theatro Municipal7, na Cinelândia, “fortemente inspirado” na Opera de Paris8. Esse cenário trouxe à nação uma preocupação crescente sobre a necessidade de adaptar esses exemplos importados ao contexto nacional. O Brasil já começava a exigir uma identidade própria, uma vez que as primeiras gerações de mestiços passavam a representar uma parcela cada vez mais significativa da população dessa jovem nação. 5  Avenida 9 de Julho, Buenos Aires, 1912-1930; 140 metros de largura total, contando as pistas marginais. 6  - Avenida Atlântica, construída entre 1905 e 1906. 7  "Theatro Municipal do Rio de Janeiro", obra do arquiteto francês Albert Guilbert em parceria com o arquiteto brasileiro Francisco Pereira Passos, filho do prefeito; construído entre 1905-1909. 8  Opera de Paris, por Charles Garnier, construída entre 1862 e 1875.

capítulo 2

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Semana de Arte Moderna de 1922

Foi nesse contexto que, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, essa crescente vontade de criar uma identidade cultural nacional explode com a realização, em uma São Paulo que se industrializava rapidamente e ganhava protagonismo econômico no país, da famosa Semana de Arte Moderna de 22. A coesão central em torno do movimento fundamentou-se numa completa ruptura com qualquer conexão com o que podemos chamar, resumidamente, de "neo-qualquer coisa". Trata-se de um marco de rompimento do meio artístico brasileiro com o academicismo predominante até então. As novas possibilidades na maneira de se fazer arte tornaram o estilo anterior intragável e forçaram a adoção de uma linguagem bem mais livre, sem formalismos. Mais do que isso, muitos autores afirmam que a Semana de 22 serviu como uma redescoberta do Brasil, apresentando o país como fruto de uma cultura mestiça, que transita entre a barbárie e a civilização, um conflito presente desde a chegada dos europeus no território brasileiro. Cada dia dessa semana histórica foi dedicado a uma forma de arte. Na primeira noite, artes plásticas: Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, pintoras controversas "influenciadas pelas extravagâncias de Picasso e seus companheiros", como escreveu Monteiro Lobato – à época colunista do jornal Estado de São Paulo9 – foram apresentadas juntamente com muitos outros artistas até então praticamente desconhecidos do grande público, diante de uma plateia atônita e sem palavras. Essa crítica de Monteiro Lobato, publicada poucos anos antes, foi inclusive o estopim do movimento, liderado por filhos da oligarquia paulista, que não tiveram dificuldades em conquistar a confiança do curador do Teatro Municipal, Paulo Prado, que foi também quem angariou recursos para o evento. Anita Malfatti descreveu mais tarde sua empolgação naquela noite com as seguintes palavras: "Era a noite das surpresas. As pessoas estavam incomodadas com aquilo, mas não vaiaram. Os ingressos estavam completamente esgotados. O clima estava ficando tenso. As pessoas não sabiam como reagir a aquilo, como reagir a nós. Foi o anúncio da tempestade que viria na noite seguinte!"10 9  Artigo de Monteiro Lobato no jornal O Estado de S.Paulo em 20 dez. 1917: "Há duas espécies de artistas. Uma é representada por aqueles que vêm as coisas normalmente e, como consequência, criam arte pura... Se Anita pinta uma senhora com cabelos geométricos verde-e-amarela, ela só pode estar sob a influência extravagante de Picasso e seus companheiros." 10  Voltaire Schilling em especial para o portal Terra. Disponível em: .

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Na segunda noite, a literatura foi representada por alguns dos maiores poetas brasileiros da história, como Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. Os artistas apresentaram pela primeira vez no país, "a poesia falada", declamada no teatro (até então uma arte exclusivamente escrita). O ápice desta noite foi quando, durante o discurso do multiartista Paulo Menotti del Picchia sobre os "novos artistas dos novos tempos", vaias e sons semelhantes a animais vieram do meio da plateia para desorientar o público. Essa noite terminou com uma confusão generalizada, muito diferente do clima formal e comportado que se costumava ver nessa época em um palco de tamanha importância. Mas a semana ainda não tinha terminado e uma última cena antológica, que marcaria nossa história, aconteceu no último dia daquela Semana de Arte Moderna. O compositor clássico Heitor Villa Lobos, o respeitado compositor brasileiro da história, no país e no exterior, era esperado por uma multidão menor e mais tranquila, disposta a, pelo menos, testemunhar uma atitude clássica nessa semana tão controversa. No momento em que o compositor apareceu no palco, no entanto, as vaias e protestos do público começaram e foi sob protestos que ele apresentou sua composição "O Guarani", que se tornaria quase um segundo hino para o Brasil, sendo até hoje a música que toca na abertura da “Hora do Brasil”, programa diário oficial do governo transmitido em todas as estações de rádio. A razão para os protestos foi o fato de que apesar de toda a natureza formal de um concerto clássico, Villa Lobos, estava vestindo um sapato clássico em um pé e uma sandália no outro. Mesmo tendo dito mais tarde que era simplesmente por causa de uma bolha, todo mundo entendeu a mensagem. A questão mundial de como se portar em um novo mundo moderno, passava, no Brasil, a ir mais fundo com a investigação sobre como ser moderno e brasileiro ao mesmo tempo. Daí a frase que virou lema da Semana de 22 e que dá nome a este capítulo, tirada do “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade, um dos líderes do movimento. Trata-se de um trocadilho com a famosa frase do personagem Hamlet, de Shakespeare, “Ser ou não ser, eis a questão” (no original em inglês: “To be or not to be, that is the question”) transformando o verbo “to be” (“ser”, em inglês) em “Tupi”, referência a uma das maiores tribos indígenas brasileiras que à época da chegada dos europeus no país era usada para denominar todos os índios da costa brasileira. Assim, o trocadilho “Tupi or not Tupi”, se tornou um lema não só da Semana de Arte Moderna, mas também da grande questão que nos rondava sobre como ser moderno e brasileiro ao mesmo tempo.

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Olhar estrangeiro e sangue mestiço

Este questionamento e a investigação constante em busca dessa identidade foram o estopim de um período incrivelmente fértil para todos os campos da arte no Brasil, em especial na arquitetura, em que os frutos do Modernismo perdurariam por muito mais tempo do que no resto do mundo. Esse período testemunhou o nascimento de uma geração que iria mudar drasticamente a paisagem urbana do país, em um processo que viria a culminar com a construção de Brasília, no incrível prazo de cinco anos, de 1956 a 21 de abril de 1960, data de sua inauguração. A nova capital se configuraria como uma “cidade-manifesto”, símbolo do auge e do ponto de inflexão do movimento moderno, marcando também o final dos seus tempos áureos no Brasil, como veremos mais adiante. Mas são as condições e a cadeia de acontecimentos para chegarmos até aquele ponto que serão analisadas neste capítulo. Durante a primeira metade do século XX, importantes nomes começariam a formar as bases para o surgimento do período de ouro da arquitetura brasileira, em que ela passaria a ser reconhecida no mundo inteiro como exemplo de vanguarda. Mas essa forte influência para a criação da tão sonhada identidade nacional precisaria se valer do que o Brasil tem de mais específico na formação de seu povo: a pluralidade e a mistura de influências. Praticamente todos os grandes nomes que tiveram um papel importante para o estabelecimento dessas condições têm algo em comum na sua história: nasceram no exterior, migraram para o Brasil por um motivo ou outro, assim como parte considerável da nossa população nessa época. Gregori Warchavchik (nascido no Império Russo), Lina Bo Bardi (na Itália), Lucio Costa e Afonso Eduardo Reidy (ambos nascidos na França) são alguns dos personagens cuja história de vida se confunde com a da arquitetura moderna brasileira. Apesar da origem estrangeira, um traço comum na biografia de todos esses arquitetos, naturalizados brasileiros, é a busca por uma identidade nacional, como veremos mais adiante. E mesmo os arquitetos nascidos no Brasil que iriam ajudá-los a tecer nossa história, escreveriam com orgulho sobre a sua ascendência miscigenada. Oscar Niemeyer, por exemplo, em sua biografia “Minha arquitetura” viria a escrever: “Meu nome deveria ser Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares. Minhas origens são muitas, o que me agrada particularmente: Ribeiro e Soares, portugueses, Almeida, árabe, e Niemeyer, alemão. E isso sem levar em conta algum negro ou índio."

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Pois é a partir desses personagens, cujas origens explicam a história do nosso povo, que vamos analisar a partir de agora a consolidação da Arquitetura Moderna no Brasil.

A chegada da Arquitetura Moderna no país Gregori Warchavchik e a importação do vocabulário moderno

Um primeiro personagem de origem estrangeira que é essencial nessa história é Gregori Warchavchik, nascido em 1896 em Odessa (cidade ucraniana, à época parte do Império Russo). Em sua trajetória cheia de reviravoltas e exílios em meio à turbulência política do início do século XX, Warchavchik acabou por vivenciar de perto importantes movimentos que serviram de inspiração para o surgimento do próprio Modernismo. Ele costumava dizer que quando chegou por aqui encontrou no Brasil um terreno perfeito para suas ideias e seus sonhos. Depois de crescer com contato (e sob influência) do construtivismo russo, aos 18 anos de idade ele teve a primeira mudança radical em sua vida: por causa da perseguição antissemita e da Revolução Bolchevique, ele acabou pedindo para ser preso no lugar do pai e quase foi baleado, sendo salvo no último momento. Em 1918 vai morar e completar seus estudos na Itália, onde, apesar de trabalhar durante dois anos com o arquiteto neoclássico Marcello Paicencini, trava um primeiro contato não apenas com o futurismo italiano, mas também com as primeiras ideias de Walter Gropius, Mies van der Rohe e Le Corbusier. Em 1923, mais uma vez a situação política do país provoca uma reviravolta em sua vida e ele chega ao Brasil para trabalhar como operário em São Paulo, onde logo estabelece contato com a elite intelectual. Um ano após a Semana de Arte Moderna, o grupo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e Vila Lobos imediatamente se interessa pelos novos pensamentos que ele trazia da Europa e entre os participantes desse grupo ele conhece Mina Klabin, filha de uma família tradicional e abastada, com quem acaba se casando. Em um país onde a profissão de arquiteto ainda não era sequer reconhecida surge então a oportunidade de construir para si mesmo, em um terreno da família da esposa, a Casa da Vila Mariana. Esta casa, finalizada em 1928, é considerada o primeiro exemplar modernista no país e, mais uma vez, ela é construída tal qual um manifesto da nova arquitetura, seguindo os preceitos de um texto que ele escrevera três anos antes, chamado

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“Acerca da Arquitetura Moderna”. Como alguns materiais essenciais àquela visão da nova arquitetura ainda não podiam ser encontrados no Brasil, o arquiteto precisou improvisar e esconder alguns detalhes, como o telhado cerâmico por trás da platibanda lisa, sugerindo para quem via de fora que a casa tinha uma laje plana de concreto. Além disso, para conseguir a licença de obras da prefeitura, Warchavchik precisou apresentar um projeto um pouco camuflado, com ornamentos para driblar a rigidez da análise da equipe que tinha o poder de “censurar” uma fachada em desacordo com o que se entendia até então como boa arquitetura. Quando a casa foi construída, ele justificou a diferença em relação ao projeto aprovado dizendo que era por falta de recursos financeiros para tais detalhes, e que futuramente, quando tivesse condições, ele os adicionaria. Mas a verdade é que sem tais ornamentos a casa estava muito mais próxima aos ideais modernistas, sem muitos afrescos, cornijas e outros detalhes que não têm qualquer função além da decorativa. De acordo com José Tavares de Lira, autor de uma das mais importantes biografias de Warchavchik, esta casa é "a peça mais emblemática da mudança completa na arquitetura brasileira da época. A casa é, ao mesmo tempo, urbana e suburbana, moderna e clássica, provincial e cosmopolita – a negação de todos os estilos, em suma". Essa ambiguidade era reforçada por alguns ornamentos neoclássicos que chegaram a ser construídos e permaneceram na fachada até 1934, ano de uma reforma que apagou esses traços de historicismo de uma vez por todas. Mas o fato é que o debate causado pela casa trouxe para Warchavchik bastante atenção e importantes projetos, como a casa da Rua Itápolis, que chegou a ficar em exposição em 1930 e recebeu diversos visitantes ilustres. Um dos mais importantes foi Le Corbusier, que, impressionado com o jogo volumétrico e com a plasticidade alcançada pela parede curva que separava o jardim da área de serviço, convidou Warchavchik para ser representante da América Latina nos famosos CIAM (Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna), que vimos no capítulo anterior. Outro personagem que já dispunha de enorme destaque na nossa arquitetura e que viria a ser fundamental para o estabelecimento do Modernismo no Brasil foi Lúcio Costa. Ao conhecer o trabalho de Warchavchik, o Doutor Lúcio, como era chamado, fez dois convites. O primeiro, essencial para o estabelecimento de um arcabouço teórico para o movimento moderno brasileiro, foi para lecionar na Escola Nacional de Belas Artes, em que ambos influenciariam estudantes que

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se tornariam grandes nomes do modernismo brasileiro, como Affonso Eduardo Reidy, os Irmãos Roberto e Jorge Machado Moreira. O segundo convite, essencial para desenvolver exemplos que influenciariam essa geração, foi para se tornar seu sócio, em parceria que mudou para sempre o trabalho de Lucio Costa e, consequentemente, a arquitetura brasileira. Só para citar um exemplo da importância desse escritório, foi nele que um estudante chamado Oscar Niemeyer trabalhou como desenhista antes de se formar e iniciar a carreira ímpar que será objeto de estudo ainda neste capítulo.

Figura 2.1  –  Lúcio Costa, Frank Lloyd Wright e Warchavichik, em sua "casa na Tonelero", construída no Rio de Janeiro em 1931. Disponível em: .

Lucio Costa frequentemente levava visitantes importantes para conhecerem o primeiro projeto de Warchavchik no Rio de Janeiro, a casa da Rua Tonelero,

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construída em Copacabana em 1931. Um dos visitantes dessa casa foi ninguém menos do que Frank Lloyd Wright, que chegou a declarar que esta foi uma das maiores influências para a lendária Casa da Cascata, que construiria no ano seguinte nos Estados Unidos. Lúcio Costa e a busca de uma identidade nacional

Lúcio Marçal Ferreira Ribeiro Lima Costa, nascido em Toulon, França, em 1902, foi um dos mais influentes intelectuais na década de 1920 do Rio de Janeiro (onde viveu até o fim de sua vida, em 1998). Por causa da profissão do pai, almirante, na juventude Lúcio Costa viveu em muitos países, o que lhe rendeu uma formação plural. Ele estudou no Royal Grammar School, em Newcastle (Reino Unido) e no Collège National em Montreux (Suíça). Chegando ao Brasil em 1917, estudou na Escola Nacional de Belas Artes. Talvez influenciado pela experiência pessoal dessas constantes mudanças, Lucio Costa sempre buscou uma identidade nacional, genuinamente brasileira, para a nossa arquitetura. Ele já foi ferrenho defensor do Neocolonialismo, declaradamente por ser a única das referências historicistas que reproduzia uma arquitetura nossa, ou ao menos desenvolvida aqui. Considera-se inclusive que Lucio Costa tenha sido o responsável por cunhar a própria expressão “neocolonial”. No entanto, em sua busca por algo que pudesse expressar o frescor desse jovem país, encontrou na ruptura com o passado proposta pelo Modernismo um discurso que fazia muito mais sentido do que aquela referência à arquitetura colonial, que não era exatamente nossa, mas uma arquitetura portuguesa com referências árabes e espanholas com apenas algumas poucas adaptações para o nosso clima. Depois de mergulhar de cabeça no movimento moderno, Lucio Costa foi convidado para ser Diretor da Escola Nacional de Belas Artes com o desafio de revolucionar o curso de artes plásticas e implantar um curso de arquitetura com um programa progressista. Lá, se tornou um dos mentores de toda uma geração de arquitetos no Brasil. Entre seus principais projetos estão o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Nova York, em 1939, do qual falaremos mais adiante; o Park Hotel São Clemente, em Nova Friburgo, de 1944, uma bela investigação sobre o Modernismo com materiais vernaculares; o Parque Guinle, em Laranjeiras, incluindo alguns dos seus edifícios residenciais que cercam o parque; e a Casa do Brasil, edifício estudantil na Cidade Universitária de Paris.

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Na segunda metade da sua carreira, Lucio Costa, com toda sua influência, teve a oportunidade de pôr em prática projetos urbanos modernistas de escalas monumentais, experimentos de dar inveja aos maiores delírios modernistas de Le Corbusier quando planejava colocar Paris abaixo para construir suas propostas de cidade contemporânea, com altas torres isoladas no meio de grandes áreas verdes. Essas referências de Le Corbusier certamente estariam muito presentes no projeto mais emblemático de Lucio Costa: o plano piloto da nova capital Brasília, que será objeto de análise mais adiante neste livro. O plano piloto do bairro da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, maior em extensão do que o da capital, com suas altas torres espaçadas lembra ainda mais as perspectivas de Le Corbusier para seus estudos da Ville Contemporaine. Le Corbusier era uma inspiração extremamente presente desde muitos anos antes, em visitas que influenciaram de maneira crucial toda a arquitetura de um país. As visitas inspiradoras de Le Corbusier e Frank Lloyd Wright

Como no capítulo anterior já conhecemos a figura de Le Corbusier e o discurso do dogmático estilo internacional e da arquitetura funcionalista, cabe aqui nos concentrarmos em uma explicação um pouco mais cuidadosa da outra tendência também dominante no movimento moderno: o organicismo de Frank Lloyd Wright. O arquiteto norte-americano era uma figura de importância comparável à de Le Corbusier ou Mies van der Rohe. Wright escreveu vinte livros, muitos artigos e era um palestrante popular. Tendo estudado engenharia, Wright trabalhou como aprendiz de Louis Sullivan antes de abrir seu próprio escritório, no qual projetou mais de mil obras, tendo construído aproximadamente metade. Criou o que ficou conhecido como casas de pradaria, algo intimamente ligado à paisagem do entorno de Chicago. Eram casas baixas, com a horizontalidade enfatizada por jogos volumétricos simples e materiais rústicos. Assim como as plantas fluidas de Mies van der Rohe e a planta livre de Le Corbusier, as casas de pradaria de Frank Lloyd Wright também utilizavam o sistema de estrutura independente das paredes, permitindo múltiplas possibilidades de compartimentação interna. A diferença é que na virada do século, em 1901, Wright já construíra aproximadamente 50 casas durante os sete anos anteriores, motivo pelo qual ele é o arquiteto considerado pioneiro na exploração dessa técnica revolucionária. Com essa liberdade, Wright teve a oportunidade de desenvolver abundantes exemplares das suas ideias sobre o que chamamos de “Arquitetura Orgânica”. E

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aqui cabe uma explicação etimológica: embora hoje em dia a expressão nos remeta à ideia de edifícios com formas curvas e complexas como exemplifica a obra de Zaha Hadid – originalmente o termo “arquitetura orgânica”, se refere a uma atitude e um processo projetual no qual a forma do edifício nasce do ordenamento das atividades a serem desenvolvidas ali, ou seja, de dentro para fora, a exemplo de qualquer organismo vivo que possamos encontrar na natureza (daí a origem da expressão). “Trocando em miúdos”, isso significa que enquanto a vanguarda europeia explorava as possibilidades da planta livre para tentar criar uma arquitetura racionalista, uma máquina de morar, lógica e fria, Frank Lloyd Wright buscava criar um organismo vivo, nascido do seu entorno e extremamente conectado a ele. Acreditava que os edifícios têm influência demais sobre a vida das pessoas para serem tratados como máquinas. Isso, em sua visão, aumentava a responsabilidade dos arquitetos, pois quando se projeta uma casa, o arquiteto está, em algum grau, sendo um modelador de homens.

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O exemplo maior da arquitetura orgânica é a Casa Kaufmann, mais conhecida como Casa da Cascata e considerada a casa mais famosa do mundo. A relação da casa com a paisagem materializada pela cachoeira sobre a qual se debruça deixa muito clara a sinergia entre o objeto arquitetônico e o seu entorno. As pedras que compõem seus poucos planos verticais parecem se erguer da própria cascata e os grandes planos horizontais se assentam sobre as pedras como se fizessem parte daquela paisagem desde sempre.

Figura 2.2  –  Casa da Cascata, de Frank Lloyd Wright, 1939.

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A exemplo do estilo internacional, o Funcionalismo ainda tem um papel central no projeto orgânico; a forma, aqui, ainda segue a função. Mas embora esteja sob o mesmo guarda-chuva do movimento moderno, a arquitetura orgânica tem características diametralmente opostas ao estilo internacional quando o assunto é o approach projetual, que vem de dentro para fora, e não do limite da “caixa modernista” para dentro. A forma orgânica, então, vai aparecer mais fragmentada, pois ao contrário da forma universal do estilo internacional, ela não pretende servir ao homem padrão. Pelo contrário, ela é criada e se desenvolvida a partir de dentro, gerada pelos hábitos específicos daquela família, com aquela cultura, com aqueles costumes e com aquelas vistas em cada canto do terreno, com aquela temperatura característica da sua terra e com as cores e a intensidade de luz daquele lugar específico. Na Europa, essas ideias encontrariam eco principalmente no arquiteto e designer Alvar Aalto, que imprimiu em sua obra o forte diálogo com a natureza presente na cultura finlandesa. Alvar Aalto: outro arquiteto que desenvolveria uma extensa e importante obra com base no conceito da Arquitetura Orgânica é o finlandês Hugo Alvar Hendrik Aalto, que também ficou eternizado como um dos mais importantes designers da história. Ganhou, entre muitos prêmios, as medalhas de ouro do RIBA (Instituto Real de Arquitetos Britânicos) e da AIA (Associação Internacional de Arquitetos) tendo dado nome, inclusive, à Medalha Alvar Aalto. Entre seus projetos mais importantes estão o Auditório Finlândia, o campus da Universidade de Tecnologia de Helsinki, seus cristais, como o famoso vaso Aalto e suas cadeiras apoiadas na exploração de técnicas industriais que permitem, a partir da colagem de inúmeras camadas finas, a materialização de suas curvas em peças de mobiliário em madeira.

Diante disso, vale pontuar que embora a visita que Frank Lloyd Wright fez ao Brasil em 1931 não seja tão lembrada quanto a de Le Corbusier pela maioria dos autores, sua influência ajudou a moldar uma característica essencial do nosso Modernismo: a adaptação dos preceitos do movimento às características locais. Há quem considere que um dos motivos para as visitas de Le Corbusier deixarem uma impressão mais registrada é o fato de que a língua mais comum para se comunicar internacionalmente à época era o francês, ao contrário de hoje em dia, em que o inglês costuma ser opção da maioria dos brasileiros que fala uma segunda língua. Relatos do próprio Frank Lloyd Wright dão conta de que por vezes ele tinha a impressão de que sequer o tradutor fazia ideia do que ele estava falando, tamanha era a empolgação do rapaz para explicar frases curtas e simples que ele falava. Mas o fato é que as visitas de Le Corbusier, em 1929 e, especialmente, em 1936 de fato marcaram profundamente a geração de arquitetos brasileiros que

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viria a brilhar nas décadas seguintes. Na primeira visita, teve a oportunidade de sobrevoar o Rio de Janeiro no avião de seu conterrâneo Antoine de Saint-Exupéry.

Figura 2.3  –  Croquis do projeto utópico de Le Corbusier para o Rio de Janeiro, de 1929. Disponível

em:

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O aspecto da cidade, espremida entre as montanhas verdes e o mar, o fez conceber uma ideia bastante extrema de uma cidade-edifício, suspensa do chão serpenteando entre as montanhas com dez andares de habitação abaixo de uma grande avenida para circulação pública no topo. Uma semente da Unitée d’Habitación que ele viria a desenvolver anos mais tarde e inspiração clara para os projetos habitacionais do Pedregulho e da Gávea, desenvolvidos por Afonso Eduardo Reidy. Mas a segunda visita de Le Corbusier, em 1936, teve desdobramentos bem mais diretos e imediatos, especialmente pelas circunstâncias em que ocorreu. Dessa vez, a viagem aconteceu atendendo a um convite muito especial. Palácio Gustavo Capanema: Brasil como paradigma da boa arquitetura

Durante o governo do Presidente Getúlio Vargas, o ministro Gustavo Capanema – um intelectual muito ligado ao discurso modernista – foi encarregado de construir o novo Ministério da Educação e Saúde do Brasil, que mais tarde, com a mudança do nome para Ministério da Educação e Cultura, adquiriu sua alcunha mais popular até hoje, MEC, apesar do nome oficial atualmente ser Palácio Gustavo Capanema. Aberto um concurso para seleção do projeto, o júri, composto por acadêmicos tradicionalistas, eliminou de antemão todas as propostas modernistas inscritas com a justificativa de que elas não obedeciam ao Plano Agache, o qual definia

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que os edifícios da recém-criada Esplanada dos Ministérios, no Centro do Rio de Janeiro, deveriam ser implantados ocupando toda a quadra e mantendo acesso público a pátios centrais no interior da quadra. Capanema, modernista convicto, não ficou satisfeito com o projeto vencedor, de estilo eclético “com influências marajoaras” (uma forma de o autor, Archimedes Memória, um dos mais respeitados arquitetos ecléticos daquele tempo, defender a relação do projeto com a cultura local). O ministro então, fazendo uso de um dispositivo do edital do concurso, pagou-lhe o prêmio, mas não contratou o projeto para ser construído. Gustavo Capanema então decidiu dar a Lúcio Costa a tarefa de montar uma equipe jovem e progressista para criar um edifício moderno, um ícone dos novos tempos. Lúcio Costa reuniu então os arquitetos que tinham apresentado propostas modernistas no concurso com alguns colegas também já envolvidos com o movimento. A equipe foi formada por Carlos Leão (sócio de Lucio Costa àquela altura), Ernani Vasconcellos, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira e o jovem Oscar Niemeyer. Apesar do enorme entusiasmo da equipe, a tarefa não se mostrava fácil e em determinado momento Lucio Costa convenceu Gustavo Capanema a convidar Le Corbusier para ser um consultor para o time de arquitetos, aproveitando a oportunidade de uma nova viagem do mestre que já estava marcada para outros compromissos profissionais. O objetivo seria discutir ideias e fazer os primeiros esboços do edifício em conjunto, cercado pela jovem equipe. O resultado desta interação foi a construção de um edifício que fez história, sendo considerado o primeiro edifício modernista público dessa escala no mundo. Isso porque pela primeira vez os "cinco pontos corbusianos", vistos no capítulo anterior, foram aplicados em um projeto daquela escala. Além disso, neste edifício todos os pontos são potencializados por uma aplicação inteligente e alguns deles chegam a ganharam novos significados. A "Fachada livre", permitida pela separação entre função estrutural e vedação, sofreu uma adaptação ao clima brasileiro com precisão cirúrgica, uma aula de como se implantar um edifício no nosso clima. Apesar de os croquis originais de Le Corbusier sugerirem uma implantação com o maior eixo do bloco mais alto no sentido norte-sul, a equipe brasileira inverteu essa lógica, implantando a lâmina de 16 andares com seu eixo longitudinal no sentido leste-oeste. Além de criar um sombreamento extremamente bem-vindo para a praça que essa implantação gerava, esse gesto fez com que as fachadas leste e oeste, que são as que recebem mais carga solar, passassem a ser as menores fachadas da lâmina mais alta. Além disso,

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para evitar a troca de calor mesmo com essas sendo as menores superfícies, elas foram feitas totalmente cegas (sem janelas ou qualquer abertura). Embora em um primeiro momento possa parecer estranho que a Fachada Norte, que recebe sol durante a maior parte do dia no Hemisfério Sul, fique sendo uma das duas maiores fachadas do edifício, o sol que incide nesta fachada é o mais alto, do meio do dia, e por isso é mais simples proteger o edifício dele. O que aliás foi extremamente bem feito neste projeto, pois os “Brise-Soleis”11 que ocupam essa fachada inteira foram implantados com uma distância significativa do plano de vedação para evitar uma transferência de calor por convecção, uma vez que os brises viriam a ser os únicos elementos a ficar diretamente expostos ao sol nessa fachada. Por outro lado, a Fachada Sul, mesmo em um clima tropical, quente e úmido como o do Rio de Janeiro, ganha a liberdade de estar sempre na sombra. Com isso, um grande pano contínuo de vidro, que seria impensável nas três fachadas que têm incidência direta do sol (pelo efeito de estufa que ele causaria), pôde ser colocado nessa fachada inteira, indo um passo além das tais janelas horizontais, dos cinco pontos de Le Corbusier.

Figura 2.4  –  Palácio Gustavo Capanema, de 1936: Fachada Norte (coberta de Brise-soleis). Disponível em: . 11  Trecho extraído de tese da professora Marise Machado. Escritório Edison Musa, 1963-1983, Rio de Janeiro, 2010.

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Figura 2.5  –  Palácio Gustavo Capanema, de 1936: Fachada Sul do Palácio Gustavo Capanema, sempre sombreada e por isso capaz de receber a 1a cortina de vidro do mundo. Disponível em: .

E assim criou-se a primeira “cortina de vidro” do mundo. Uma fachada enorme com vidro e um sistema de esquadrias metálicas formando uma grande superfície transparente que se estende do primeiro ao último pavimento. Como Lucio Costa conta, com muito orgulho, no documentário “O risco: Lucio Costa e a Utopia Moderna”, as cortinas de vidro, com o passar dos anos, se tornariam um símbolo da arquitetura norte-americana, em cujo clima predominantemente frio, elas passariam a fazer sentido em todas as fachadas, justamente para aquecer o edifício. Mies van der Rohe criou sua obra-prima em Nova York, o Seagram Building com base neste princípio, para aquecer naturalmente o edifício na fria Nova York e o sucesso mundial daquele projeto foi tão grande que as reproduções de “caixas de vidro” se tornariam onipresentes mundo afora. Uma ironia, inclusive, que essa tecnologia tenha retornado ao Brasil, durante as décadas seguintes e até hoje, como uma cópia daquilo que se tornou o modelo norte-americano, sem o espírito crítico de utilizar a cortina de vidro apenas na fachada onde o nosso clima permite, a Sul, com a equipe brasileira demonstrou com tanto sucesso no longínquo ano de 1936.

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Em relação à planta livre, a curta distância entre as fachadas norte e sul permitiu explorar sabiamente o espaço deixado inteiramente vazio, sem qualquer parede além dos núcleos de elevadores e escada. Cada posição de trabalho no edifício é separada das demais apenas por divisórias baixas. Isso, aliado ao engenhoso sistema de esquadrias, que permite abrir a parte de cima em separado, garante no edifício uma ventilação cruzada que renova o ar, sem que o vento venha a varrer a mesa dos trabalhadores, cheias de papel (vale lembrar que na década de 1930 não existia computador e a quantidade de papéis em um ambiente de trabalho era infinitamente maior do que hoje). Os pilotis de Le Corbusier também vão ganhar outra dimensão nesse edifício, tanto literal quanto metaforicamente. Literalmente porque a equipe triplicou a altura proposta por Le Corbusier, chegando a 15 metros e permitindo que a praça, já sombreada, passasse a receber também uma ventilação maior. E metaforicamente porque esse gesto libertador, que materializava o ideal da rue libre do Le Corbusier, subvertia o até então intocável Plano Agache, que definia que os edifícios dessa “Esplanada dos Ministérios” deveriam ser implantados nos limites do terreno com pátios internos de acesso público (uma receita dos edifícios neoclássicos e ecléticos). Ao implantar os blocos em cruz e levantar ambos, um deles a 15 metros de altura, o que sobrava era exatamente o oposto do que propunha o plano Agache. Mas um oposto que se configurava como uma praça super agradável, ventilada e sombreada e, portanto, com uma temperatura consideravelmente mais baixa do que as demais quadras do seu entorno. Por fim, o “terraço jardim” preconizado por Le Corbusier para criar um espaço de convívio entre os usuários do edifício, aqui vai ganhar nova significação com os jardins do grande Roberto Burle Marx, considerado o pai do paisagismo tropical. Neste projeto, a cobertura habitada passa a ter muito mais do que alguns vasos de planta. Grandes superfícies vegetais, com jardins em formatos ameboides, se espalham pelas lajes de cobertura dos dois blocos, criando verdadeiros jardins suspensos, em um design precursor do telhado-verde como conhecemos hoje. Entre diversos benefícios dessa estratégia estão o sombreamento da cobertura, isolamento térmico da laje, resfriamento do ar por evapotranspiração e a recuperação de parte da área permeável que se perde no solo da cidade quando se constrói qualquer edifício.

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Burle Marx, o grande paisagista e artista plástico, completaria a equipe de autores junto com alguns outros artistas, entre os quais estava o pintor Cândido Portinari, autor dos enormes painéis de azulejo que recobrem praticamente todas as superfícies que encostam no chão. Seus painéis, a exemplo das esculturas presentes no conjunto, integram arte e arquitetura, sublinhando outra característica que viria a afastar o modernismo brasileiro (conhecido na Europa como “modernismo tropical”) do estilo internacional.

Consolidação e auge da Arquitetura Moderna no Brasil A Escola Carioca, Afonso Eduardo Reidy e os Irmãos Roberto

A Escola Carioca, que teria seu início muito ligado ao episódio do Edifício do MEC, seria eternizada por grandes obras de muitos grandes mestres. Do grupo que participou desse projeto, além da liderança original de Lucio Costa, Niemeyer atingiria o status de um dos maiores nomes da arquitetura mundial, mas outros também chegariam a posições de destaque na arquitetura nacional e internacional. Jorge Machado Moreira iria receber muitos prêmios por seus edifícios no novo campus que projetou para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, na década de 1950, na Ilha do Fundão. Affonso Eduardo Reidy iria fazer história com uma série de obras-primas, como o Aterro do Flamengo, que usou a terra do desmanche de grandes morros no Centro do Rio para criar um o parque linear à beira-mar em mais uma parceria notável com Burle-Marx, e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM, 1948), que se localiza no próprio aterro do Flamengo. Posicionado entre a cidade e uma vista deslumbrante do Pão de Açúcar, o Museu é projetado como uma estrutura totalmente porosa visualmente, com muito vidro e poucos planos horizontais e verticais de concreto aparente. Acontece que criar uma caixa de vidro no clima quente e úmido do Rio de Janeiro com um programa que demanda cuidados climáticos especiais não é tarefa das mais simples. A solução de Reidy, já ensaiada em projetos anteriores, era extremamente inovadora por tornar a própria estrutura do museu em seus brise-solieis verticais.

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Figura 2.6  –  Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Affonso Eduardo Reidy, na época de sua construção, durante a década de 60. Disponível em: http://www.archdaily. com.br/br/758700/classicos-da-arquitetura-museu-de-arte-moderna-do-rio-de-janeiro -affonso-eduardo-reidy/5483c737e58ece0cb300005a-centro_de_documentacao_e_ pesquisa_do_mam_17-jpg>.

E se para isso era necessário afastar os pilares da pele de vidro, Reidy tiraria mais um coelho da cartola e criaria um quadro estrutural, em concreto aparente, que seria repetido ao longo do edifício, sempre apoiando por baixo a primeira laje e por cima a última. A laje do meio, que ficava sem qualquer contato com os pilares de concreto ficou atirantada, ou seja: pendurada por tirantes de aço à laje superior. Com esse gesto, Reidy criou, abaixo, um pavimento inteiro livre de pilares, com um teto que parece flutuar acima das cabeças dos visitantes. A base inclinada dos quadros estruturais permitiu ainda criar um excelente espaço público livre abaixo do museu e sombreado por ele. Além disso, esse espaço é especialmente ventilado pela brisa que vem da Baía da Guanabara e é capturada pela forma curva da laje acima, feita assim para ajudar a descarregar seus esforços na parte lateral, no encontro com a peça inclinada dos quadros que a suportam. Reidy construiu diversos outros projetos relevantes, com destaque para seus complexos de habitação social, o conjunto habitacional do Pedregulho

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e o da Gávea, que poderiam ser considerados uma versão brasileira das Unités d'habitatión de Le Corbusier. A forma dos seus volumes, por ser curvarem para se adaptar à topografia local, criaram uma plasticidade especial e prestam certa reverência ao desenho que Le Corbusier fizera em sua primeira visita ao Rio de Janeiro em 1929.

Figura 2.7  –  Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, de Affonso Eduardo Reidy, mais conhecido como “Pedregulho”. Disponível em: .

São casos de extremo sucesso, cuja importância transcende a arquitetura e exemplifica o viés social que marcaria essa geração e tornaria ainda mais nobre seu legado. O caráter social desses edifícios ecoa um interesse de Reidy que perpassa toda sua obra. Só para ficar em um exemplo, seu primeiro projeto, de 1931, foi vencedor de um concurso para um abrigo para moradores de rua. Mas embora esse grupo envolvido com o episódio do MEC fosse o centro da atenção de todos, para além deste grupo, antes mesmo daquele episódio, outros importantes personagens cariocas já faziam experimentos super relevantes em edifícios modernistas em grande escala. Os Irmãos Roberto também são considerados pioneiros do modernismo brasileiro. São deles algumas obras emblemáticas e originais que representam uma via alternativa para a escola carioca. Em 1935 os jovens irmãos Marcelo e Milton venceram concurso para a sede da Associação

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Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio de Janeiro, se tornando responsáveis pela primeira grande obra da arquitetura moderna no Brasil. O projeto é levemente anterior ao do MEC e sua conclusão, em 1938, é bem anterior à do ministério. No prédio da ABI, caracterizado pelo volume austero, já podem ser identificados alguns dos elementos vernaculares do modernismo corbusiano como a planta livre, brises fixos e pilotis. A dupla, que mais tarde se tornaria trio com a chegada do irmão Maurício (quando o escritório estabelece o nome como ficaria conhecido, MMM Roberto) seguiria trilhando um caminho paralelo ao do grupo liderado por Lucio Costa, com importante pesquisa formal em uma série de projetos com soluções cada vez mais interessantes. O projeto do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, de 1937, evolui em relação à forma do edifício da ABI, pesada por conta das soluções investigadas para proteger a grande carga solar a que ficamos expostos no Rio de Janeiro. De acordo com o historiador Yves Bruand, o projeto do aeroporto é “mais aberto e principalmente mais leve, aliando habilmente força, equilíbrio e elegância”. Um mérito desse projeto, que vai ecoar durante toda a carreira dos irmãos Roberto é a forma como eles se utilizam das possibilidades da técnica construtiva moderna para resolver os diferentes problemas funcionais de cada projeto. Embora não fizessem parte do badalado grupo de arquitetos que ganharia o mundo em torno da figura de Lucio Costa, com destaque para Niemeyer, os Irmãos Roberto também teriam sua obra reconhecida internacionalmente, com importantes prêmios como a escolha do seu projeto para o Instituto de Resseguros do Brasil pela Enciclopédia Britânica como uma das melhores construções do mundo em 1941 e a Medalha do Riba (Royal Institute of British Architects) por seu projeto para uma colônia de férias da Tijuca, encomendado pela própria Enciclopédia Britânica. A partir da segunda metade da década de 1950, o trabalho dos Irmãos Roberto migra para uma escala urbanística. Entre os principais projetos dessa fase estão os planos para um conjunto residencial na Penha e para a cidade proletária de Ricardo Albuquerque. O mais notável, no entanto, não chegou a ser construído: a proposta deles para o concurso do plano piloto de Brasília. Apesar de ser considerado por muitos como o melhor projeto, por prever possibilidades para o crescimento da cidade, a proposta ficou classificada em terceiro lugar. Enquanto o projeto ganhador, de Lucio Costa, que será abordado no próximo capítulo, congelava o plano, não prevendo essa expansão e levando, futuramente, ao estabelecimento

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das chamadas “cidades-satélites”, o projeto dos Irmãos Roberto previa sete unidades urbanas – que poderiam se multiplicar até 14 com 72 mil pessoas cada uma. Cada núcleo teria como centro um departamento governamental e uma série de atividades que viabilizariam uma cidade “plurinuclear”, uma das premissas da atual busca por uma cidade sustentável, principalmente no que tange à mobilidade urbana (a premissa de que nenhum transporte de massa é suficientemente bom para ser mais eficiente do que a possibilidade de a população não precisar se deslocar, vivendo próximo a seus locais de trabalho, lazer, comércio e serviços). O júri, no entanto, à luz do que era considerado como ideal em uma época da utopia da máquina e da razão, considerou que o trabalho não era masterplan para uma capital, com toda a simbologia que isso demanda, apesar de apresentar o melhor estudo sobre utilização da terra e de ser prático e realista. Vilanova Artigas, a Escola Paulista e Lina Bo Bardi

Enquanto no Rio esses diferentes grupos viriam a compor uma escola profícua e relativamente plural, em São Paulo, onde o movimento artístico moderno teve seu berço, o processo de criação de uma linguagem própria na arquitetura seria mais convergente, uníssona e centralizada na figura de um grande mestre: Vilanova Artigas. Nascido em Curitiba e formado engenheiro-arquiteto na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, em 1937, Artigas é considerado um dos maiores nomes da arquitetura paulista não só pelo número de obras-primas que projetou e construiu por lá, mas também por seu forte posicionamento político, a qual iria nortear sua produção prática, didática e teórica, que teria enorme influência na formação de toda uma geração. Grande crítico de Warchavichik, Artigas prezava pela “verdade estrutural”, uma arquitetura marcada pela ênfase na técnica construtiva, pela extensa utilização do concreto armado aparente e pela valorização da estrutura como protagonista na obra arquitetônica. Artigas, tanto metafórica quanto literalmente, fez escola em São Paulo. Responsável pela reforma curricular que estabeleceria o perfil do profissional formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Artigas foi também o arquiteto responsável, junto com seu parceiro Carlos Cascaldi, pelo projeto da sede da escola, um edifício revolucionário em diversos sentidos. Vilanova Artigas era um humanista, socialista e extremamente envolvido na luta por justiça social, igualdade de oportunidades e democracia. O edifício da FAU USP incorpora essas preocupações sociais em gestos arquitetônicos claros,

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coerentes e relevantes. O volume em concreto aparente, todo fechado, é suspenso, pesado em cima, mas quase flutuando, apoiado em delicados pilares em forma de duas pirâmides em sentidos opostos, que se interseccionam de cima abaixo. O contraste desse peso com a fluidez do térreo, absolutamente aberto, sem qualquer barreira, torna-o quase uma extensão da calçada, convidando o transeunte a entrar e participar das atividades de reflexão e concentração que acontecem dentro daquela caixa tão simbólica.

Edifício da FAU-USP (1966-69), de Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi: Caixa bruta de concreto poeticamente apoiada sobre delicados pilares esculturais.

Este gesto convida o cidadão a buscar o espaço de produção do saber, a única forma de libertar-se da ignorância e da exploração dos poderosos. Dentro do edifício, todos os espaços se desenvolvem ao redor de um grande átrio aberto de um nível abaixo do térreo até o topo da edificação. Na cobertura uma malha de vigas sustenta inúmeras claraboias, espaço por onde entra toda a luz, a se distribuir homogênea pelo edifício, entrando por cima e por baixo, mas não pela pesada pele de concreto da caixa quase flutuante, delicadamente posada no chão.

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O Átrio Central do edifício da FAU-USP, perfeita materialização da Ágora Moderna, onde as lutas sociais e assembleias participativas de docentes e discentes encontrariam espaço durante os duros anos da ditadura militar.

Os ateliês de projeto, que a exemplo dos outros espaços acontecem ao redor do átrio, não têm portas ou sequer paredes até o teto. Uma série de divisórias de concreto, brutas em sua essência, mas leves em sua organização fluida, se erguem apenas até um pouco mais do que a altura dos olhos, dividindo espaços que são democraticamente compartilhados por estudantes de todos os períodos. O átrio central, logicamente, se torna um ponto de encontro onde estudantes e docentes iriam ocupar durante os tensos anos de ditadura militar. Os amplos espaços abertos ao redor do pátio e a comunicação entre os diferentes setores, ligados por suaves e generosas rampas, passam a impressão de que tudo se desenvolve em um pavimento único e sublinham a necessidade de convivência. Artigas diz que o edifício foi concebido como uma materialização da democracia, com ambientes dignos, sem portas de entrada. Seu desejo era que o edifício funcionasse como um templo onde todas as atividades fossem permitidas. Segundo Igor Fracalossi, a liberdade de experimentação e movimento que o edifício propõe, dialoga de perto com a concepção de ensino de arquitetura defendida por Artigas. A escola é concebida como um grande laboratório de ensaios, que articula arte, técnicas industriais e atividades artesanais, em um espírito de formação ampla para um profissional completo, de acordo com a filosofia da

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Bauhaus. Cadeias de disciplinas de desenho e de projeto estruturam o curso, que se desenvolve em torno de estúdios ou ateliês, pensados como espaços de aula e também de discussão. Os espaços comunitários indicam a necessidade de aprendizado político; afinal, é nas grandes assembleias que ali se dão, que devem ser tomadas, em conjunto – por professores, alunos e funcionários – as decisões pedagógicas. Com toda essa carga simbólica deste espaço, a exemplo do edifício do MEC no Rio, é a partir do edifício da FAU USP que as linhas mestras da chamada Escola Paulista vão se solidificar. Suas características de introversão, continuidade espacial e iluminação zenital, se multiplicarão por São Paulo, bem como o uso de grandes vãos, que demandará a aplicação e desenvolvimento de técnicas construtivas mais elaboradas, como o concreto protendido. Mais do que uma pesquisa puramente estética, formal, isso vai representar um projeto político para o país, uma aposta na industrialização como saída para a condição de subdesenvolvimento. Por essa relação com a técnica construtiva e a verdade dos materiais, a Escola Paulista também vai ser chamada de Brutalismo Paulista. Curiosamente, Artigas, o “pai” dessa escola não era entusiasta nem de uma nem da outra denominação, pois recusava tanto a impressão de oposição à escola carioca que uma sugeria quanto a proximidade ao brutalismo inglês que a outra imputava. O modernismo brasileiro, até pelo nível de sucesso que viria a alcançar, continuaria em voga por aqui por muito mais tempo do que no resto do mundo, especialmente o modernismo paulista, que levaria mais tempo que o carioca para se estabelecer. Com isso, importantes obras do próprio Artigas iriam ser construídas em um momento histórico que, como veremos mais adiante, o mundo já estava em um processo de revisão do Modernismo e até estabelecimento do Pós-Modernismo. Importantes exemplos são o Estádio do Morumbi, de 1960, e a Estação Rodoviária de Jaú, mais uma parceria com Carlos Cascaldi, de 1973. Neste projeto modernista tardio, o arquiteto cria um gesto sutil que mostra a sensibilidade poética com que a Escola Paulista enfrentava os desafios estruturais. No ponto mais tenso de uma estrutura, o encontro do pilar com a laje, os pilares da rodoviária se abrem como uma flor e um óculo se abre na laje, permitindo que a luz, entre exatamente sobre as colunas, aliviando a tensão daquele encontro estrutural e convidando uma luz dramática a invadir o espaço. Sua influência para o amadurecimento de toda uma geração, como vimos, seria imensurável. Mas ironicamente, o nome da arquitetura paulista daqueles tempos que ficaria marcado no exterior não era o dele, mas o de uma arquiteta que, a exemplo dos irmãos Roberto no Rio de Janeiro, se colocava à margem do grupo representado pela Escola Paulista: Lina Bo Bardi. capítulo 2

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Nascida Achillina Bo, em Roma, em 1914, Lina Bo Bardi foi mais uma das fortes figuras brasileiras nascidas no estrangeiro, que depois desenvolveram uma ligação forte e intensa com o nosso país. Depois de trabalhar clandestinamente no partido comunista da Itália, a arquiteta foge do regime fascista e escolhe o Brasil como a terra ideal para a sua vida no exílio. Ela e seu marido, o historiador e crítico de arte Pietro Maria Bardi, migram primeiramente para o Rio de Janeiro, mas a falta de oportunidades de trabalho e o convite para que ele criasse o novo Museu de Arte de São Paulo, em 1947, fez o casal se mudar para o novo centro financeiro do país, onde se tornariam figuras centrais do métier artístico e cultural. Ela se naturaliza brasileira em 1951, mesmo ano da construção de seu primeiro projeto, sua própria “casa de vidro” no novo bairro do Morumbi. Nesse ponto, o racionalismo italiano ainda influencia bastante seu trabalho, apesar das concessões à exuberante natureza brasileira, que abre espaços na caixa modernista de vidro e atravessa a sala em dois grandes vãos abertos em reverência às preexistências naturais do terreno. Imersa na cultura brasileira, seu pensamento criativo começa a se tornar mais expressivo. Ela torna-se famosa pelos generosos espaços que concebeu e construiu. Seu projeto para a sede do Museu de Arte de São Paulo se tornaria uma de suas obras de mais visibilidade. Famoso pela extensão de mais de 70 metros entre os pilares gigantes nos extremos do terreno, o museu é um dos ícones mais populares da cidade. Mais importante do que a plasticidade alcançada pela ideia da imensa caixa de vidro suspensa, no entanto, é o caráter contextual desse gesto, que define a principal diferença entre o modernismo brasileiro e os movimentos contemporâneos na Europa e nos Estados Unidos. O Museu fica na principal avenida de São Paulo, que se situa no ponto mais alto da cidade. O gesto arquitetônico de levantar o edifício sem qualquer pilar a interromper seus 70 metros de vão criou uma enorme praça sombreada no coração da metrópole, promovendo sombra no verão e um espaço protegido da chuva no coração da chamada “terra da garoa”. Além disso, permitiu que a Avenida Paulista mantivesse pelo menos em um ponto sem qualquer edifício em frente, o que viabiliza uma rara vista ampla na cidade. A potência desse gesto é tão grande que se torna responsável por um hábito importante no cotidiano de São Paulo e de seus quase 12 milhões de habitantes até os dias atuais. É sob esse vão protegido que a interação entre população e museu começa e é lá que algumas das maiores manifestações populares do mundo se concentram antes de tomar a grande avenida onde o museu se situa. Foi lá, por exemplo, que se concentraram manifestantes em defesa da democracia contra os capítulo 2

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golpes de estado de 1964 e de 2016. E foi também lá que nasceram algumas das maiores passeatas do mundo pelos direitos da comunidade GLBT, das mulheres e pelos direitos humanos em geral, além de comemorações esportivas e das surpreendentes jornadas de junho de 2013, quando a população se levantou contra o sistema político vigente.

Figura 2.8  –  MASP –Museu de Artes de São Paulo, de Lina Bo Bardi, e a materialização de sua função social. Disponível em: .

Com um estopim inicial de protestar contra o aumento abusivo das passagens em transportes públicos, o movimento cresceu e se tornou mais amplo com reivindicações e protestos contra uma série de injustiças históricas que têm como ponto de convergência o fato de nascerem e se potencializarem como consequência de um sistema político endemicamente corrupto no país, um dos causadores da enorme diferença social que privilegia poucos e impede a construção coletiva de cidades mais justas e igualitárias. Tamanha generosidade, no entanto, não é uma exclusividade deste projeto de Lina Bo Bardi. Sua obra tem, invariavelmente, essa dimensão do diálogo entre as ideais modernistas e o estilo de vida da população local. Quando Bo Bardi chega ao Brasil, ela desenvolve uma grande admiração pelo país e sua cultura popular, que se torna uma das principais influências de seu trabalho. A atenção extrema e

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o cuidado com os usuários são um forte traço de seu trabalho. Quando Bo Bardi descreve seu próprio trabalho, ela fala de um espaço a ser construído pelos próprios usuários. Para ela, o arquiteto é responsável apenas por um esboço inacabado de espaço, que deve ser preenchido pelo usuário, dia após dia. Sua interação com os usuários começa antes mesmo do projeto, como ela mostra em uma obra muito sensível em seus últimos anos. Com a encomenda de construir um complexo de habitação comunitária em Camurupim, uma das regiões mais pobres do país, ela iria passar um bom tempo na comunidade rural, produzir um grande número de esboços da paisagem, estudos sobre o local e questionários detalhados sobre o estilo de vida dos moradores. O resultado é um projeto extremamente sensível, em que os princípios funcionalistas modernistas são trabalhados de modo a servir aos hábitos daquela comunidade específica com seus hábitos e sua relação com o ambiente ao seu redor.

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Figura 2.9 – Croquis e manuscritos de Lina Bo Bardi extraídos do livro Lina Bo Bardi – Obra construída, de Olivia de Oliveira (São Paulo, 2014).

Em 1977, Lina projeta uma de suas obras mais paradigmáticas, o centro cultural do SESC Pompéia. Ao visitar o terreno destinado ao projeto, que tinha uma fábrica de tambores abandonada, a arquiteta encontrou um belo edifício. Pesado, com estrutura de concreto em seu estado bruto, bem como as paredes de tijolos aparentes dos armazéns. A arquitetura de uma fábrica não demandava gastos com retoques finais. O que mais chamou a atenção da arquiteta, no entanto, foi o fato de que, durante todos esses anos de abandono, nos fins de semana famílias vizinhas aproveitavam o espaço para tomar sol, relaxar, um espaço onde seus filhos podiam brincar e correr à vontade. A arquiteta, compreendendo a espontaneidade e honestidade daquela ocupação, considerou que tudo deveria permanecer daquele modo, “com toda aquela alegria" em suas próprias palavras. As intervenções de Lina foram cirúrgicas, com recortes ameboides e passarelas assimétricas criando um ar mais lúdico aos austeros volumes de concreto e unindo os armazéns.

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Figura 2.10  –  SESC Pompéia, de Lina Bo Bardi, construído entre 1977 e 1986.

O centro cultural foi aberto com um programa que incluía oficinas para a comunidade, instalações esportivas, um restaurante popular e manteve a mesma aspereza dos tijolos aparentes e do concreto, agora com seus volumes austeros perfurados por formas ameboides, criando um diálogo mais estreito com as crianças que continuavam a brincar nos jardins. A produção de Lina manteve-se forte até o final de sua vida, em 1992, quando ela morreu aos 77 anos. Ela morreu, no entanto, tornando seu velho sonho: ela sempre disse que ela queria morrer de trabalho; e assim ela fez, deixando projetos inacabados para outra cultural. Oscar Niemeyer, o poeta do concreto armado

Nesse contexto, em que a atuação de grandes mestres permitiria o nascimento de uma geração que elevaria o Brasil ao posto de potência arquitetônica mundial, surge um dos responsáveis diretos por esse feito. Oscar Niemeyer, descendente direto dos personagens e fatos tratados nesse capítulo, criou obras importantes em

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todo o mundo: mais de 2 000 projetos, mais de 600 deles construídos. Ganhou inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Pritzker em 1988, tido como o mais importante de todos, frequentemente chamado pela imprensa de “o Oscar da arquitetura”, em referência à premiação do cinema. Tendo participado do nascimento dessa geração desde aquele episódio que ficou como marco referencial do início da Escola Carioca, Niemeyer viria a se tornar a personificação da aura que se formou em torno da arquitetura brasileira. Nos primeiros anos de sua carreira, trabalhou com alguns dos grandes mestres daqueles tempos, como Lúcio Costa, Gregori Warchavichik, Carlos Leão e Le Corbusier. No episódio do Ministério, inclusive, ele teve papel fundamental ao propor a mudança no sentido da lâmina principal e a triplicação da altura do pé-direito dos pilotis, de 5 para 15 metros, duas das características mais importantes do edifício. São elas que tornam possível a criação de microclimas agradáveis tanto na praça pública quanto no interior do próprio edifício, como vimos nas páginas anteriores. Depois dessa experiência, impressionado com o jovem, Lucio Costa generosamente o convida para uma viagem a Nova York, onde Oscar Niemeyer o acompanha como corresponsável pela construção do Pavilhão Brasileiro na Feira Universal de 1939. O projeto de Niemeyer ficara em segundo lugar, o de Lucio Costa, em primeiro. Neste pavilhão, simbólico, o Brasil começa a mostrar que a tecnologia do concreto armado não apenas possibilita a arquitetura “reproduzível”, em série, que vinha sendo desenvolvida no exterior, mas também permite a criação de uma arquitetura mais delicada, única, local, curvilínea, com certo “gingado” brasileiro. Esse que foi, inclusive, um dos destaques do júri em seu parecer sobre o projeto de Lucio Costa: O “espírito de brasilidade”, aliado à resposta eficiente ao princípio da feira o de estabelecer “uma visão do amanhã”. O que remonta ao ponto inicial deste capítulo, “Tupi or not Tupi” ou, “como ser moderno e brasileiro ao mesmo tempo”.

Figura 2.11  –  A caixa explodida do pavilhão Brasileiro na Feira Universal de 1939. Disponível em: .

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O pavilhão de Lucio Costa e Niemeyer, que novamente colaborou com mudanças importantes no projeto, explode a “caixa modernista” de Le Corbusier com leveza e sensualidade. Enquanto uma fachada se curva adaptando-se ao limite do terreno, outras são quase “desmaterializadas”, ora pela transparência do vidro, ora pela porosidade de elementos vazados. Uma rampa dramática e sinuosa vai buscar o público fora do pavilhão e o conduz para um mezanino que, dentro da caixa explodida, serpenteia entre os pilares herdados do rígido grid corbusiano, ora se apoiando nos pilares que sustentam a cobertura, ora passando ao largo delas. A mesma tecnologia trazida pela Revolução Industrial que criou condições para o surgimento do estilo internacional, curiosamente também criava condições, no Brasil, para o surgimento de uma maneira bem brasileira de ser moderno. E Niemeyer aprenderia a explorar como ninguém as não apenas as possibilidades práticas, mas também as possibilidades plásticas do concreto armado. Em documentários, textos e entrevistas, o arquiteto costumava associar a busca por essa arquitetura mais curvilínea, mais suave e “sensual”, à referência das nossas montanhas, nossas praias e da “beleza da mulher brasileira". Por sua investigação formal e pela surpresa e emoção causadas por seus volumes platônicos esculturais Niemeyer também ficou conhecido com o “poeta do concreto armado”.

Figura 2.12  –  Obra do Berço, de Oscar Niemeyer. Disponível em: .

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Em 1937, antes ainda do Pavilhão de Nova York, Niemeyer já construíra seu primeiro projeto próprio, a Obra do Berço: uma instituição de assistência social a bebês no Rio de Janeiro, cuja sede foi projetada por ele voluntariamente, de graça. Esse foi o primeiro edifício a utilizar brise-soleil verticais, uma importante adaptação da tecnologia à nossa realidade. No Brasil, ao contrário da Europa, o sol da manhã e, principalmente, o sol da tarde, que incidem, respectivamente na fachada leste e oeste, são muito quentes e a incidência direta de seus raios dentro do edifício não pode ser bloqueada com elementos horizontais, por ser um sol baixo, quando surgiu há pouco tempo no horizonte ou quando falta pouco para se pôr. O “problema” é que a despeito da necessidade de bloquear esse sol, em cidades como o Rio de Janeiro, muitas vezes a vista é tão deslumbrante, que fazer uma fachada cega, sem aberturas, simplesmente não é uma opção. Esse é exatamente o caso da Obra do berço, que fica de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, de onde se vê a cidade aos pés de uma linda cadeia de montanhas, cobertas de Mata Atlântica, incluindo o Corcovado, com sua estátua do Cristo Redentor majestosa, de braços abertos no topo.

CURIOSIDADE Reza a lenda que diante desse dilema, num terreno em que a busca por uma solução era imperativa, a solução Niemeyer de instalar os brise-soleis no sentido vertical foi tão original, que os operários, sem acreditar nas instruções, achando que era um equívoco do desenho, chegaram a montá-los na direção errada. O arquiteto então, além de não receber, preferiu pagar do próprio bolso para que o equívoco fosse corrigido e os painéis instalados no sentido vertical. E um novo vocábulo estava criado especificamente para o nosso contexto.

Nos anos seguintes, já muito próximo de Lucio Costa, Niemeyer é apresentado pelo mestre a muitas pessoas importantes, como o ministro Gustavo Capanema, que mais tarde o introduziria para uma das figuras centrais da vida de Niemeyer: Juscelino Kubitschek. Com um passado de jogador de futebol amador e médico guerra, Kubitschek tornou-se um político muito popular por meio de seu colega Benedito Valadares, que lutou com ele contra as tropas revolucionárias de São Paulo. No momento em

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que Kubitschek tornou-se prefeito da cidade de Belo Horizonte, em 1940, ele já estava familiarizado com o trabalho promissor do jovem arquiteto. Quando Juscelino Kubitschek, um visionário, também com um discurso modernista, conhece o trabalho de Niemeyer, ele vê no arquiteto a possibilidade de uma parceria frutífera. No mesmo ano em que se torna prefeito, imediatamente o convida para conceber um conjunto de edifícios ao redor do lago artificial da Pampulha, uma região da cidade que precisava se desenvolver. O programa incluía um cassino (hoje transformado em museu), um clube, uma igreja, um salão de baile e um hotel (o único edifício que não chegou a ser construído). Com a liberdade criativa que Niemeyer teve para conceber esse conjunto, mais uma vez trabalhando com Burle Marx e Portinari, o arquiteto constrói mais um marco internacional em outra cidade brasileira. ©© PRANDRADE | WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.13  –  Igreja da Pampulha, de Oscar Niemeyer, 1943.

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©© SÉRGIO MOURÃO | WIKIMEDIA.ORG

Este projeto, que ficou conhecido como conjunto da Pampulha, construído entre 1942 e 1944, inclui aquela que é considerada a primeira obra-prima com uma das principais marcas de Niemeyer: a exploração das curvas com uma finalidade estrutural. Na Igreja de São Francisco de Assis, de 1943, Niemeyer faz novas experiências com o concreto armado, deixando para trás os pilotis corbusianos para usar uma espécie de casca autoportante, em que trabalha a intensificação da rigidez do material a partir da forma que cria.

Figura 2.14  –  Painel de Portinari na fachada posterior da Igreja da Pampulha.

Para isso ele utiliza uma série de troncos de cone elípticos, criando volumes em forma de túneis parabólicos de concreto, parecidos com o que até então era utilizado apenas em hangares de dirigíveis. A busca dessa “rigidez pela forma” pode ser mais facilmente entendida com uma experiência simples: pegue um papel e curve-o para cima, como a grande superfície de concreto armado da Igreja da Pampulha. Seu papel ganhará uma rigidez muito maior, podendo receber uma carga (digamos, o peso de uma caneta ou uma borracha) que em sua forma plana não conseguiria receber sem se deformar, ceder. Niemeyer cria ali outro conceito que perpassaria sua obra, a de unicidade entre estrutura e arquitetura. Uma vez finalizada a estrutura, a arquitetura já aparecia – e parecia pronta. A ousadia do gesto de Niemeyer, em 1943, no entanto, foi recebida como uma provocação pela Igreja Católica. Aos olhos de Dom Antônio dos Santos Cabral a igreja era "apenas um hangar" e um templo, para ser sagrado, mereceria uma forma mais nobre que a de um galpão. Para completar o drama, o painel

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de Portinari que se tornaria um clássico da arte modernista brasileira também soou ofensivo para a igreja, com um cão representando um lobo ao lado de São Francisco de Assis. Durante anos as autoridades eclesiásticas proibiram culto na igreja, mas 14 anos depois, entenderam a importância e o legado daquela inovação e consagraram a igreja. Hoje em dia, ela é protegida pelos três níveis de Patrimônio Histórico e Artístico Brasileiro (municipal, estadual e federal) e em 2016 a Unesco reconheceu como Patrimônio Cultural da Humanidade o conjunto da Pampulha, que conta com outros gestos ousados e inovadores nos edifícios do cassino, da casa de baile e do clube. Esta primeira obra de grande escala de Niemeyer foi apenas mais uma das muitas razões para a atenção do mundo se voltar para a arquitetura brasileira nos anos seguintes. Ainda em 1943, o MoMA (Museu de Arte de Nova York, na sigla em Inglês) apresentou ao mundo aquela geração brasileira com a exposição 'Brazil builds’ (em tradução literal, ‘Brasil constrói’, mas que pode ser interpretado neste contexto também como Brasil produz). Logo depois essa mesma exposição rodou por alguns países da Europa e deu uma visibilidade à produção local que nunca existira até então. É nela que a expressão “Brazilian Style” é cunhada para denominar o nosso Modernismo. Curiosamente, também neste momento uma crítica de Mário de Andrade sobre a importância da exposição cria a expressão Escola Carioca, o que leva muita gente a tomar equivocadamente a produção carioca como a totalidade da produção nacional. Consolidação, internacionalização e legado da obra de Niemeyer

Surpreendido pelo projeto da Pampulha, Le Corbusier, escreve ao antigo pupilo: "Oscar, você tem de fato montanhas do Rio de Janeiro em seus olhos". De acordo com Bernardo Mota, anos mais tarde, Le Corbusier, que era considerado um ortodoxo da disciplina e do ângulo reto, admitiu o valor das curvas de Oscar. Ele considerou Oscar um arquiteto barroco (o que nunca foi aceito por ele exatamente como um elogio), mas o fato é que houve um reconhecimento das transgressões que estavam ocorrendo e uma reverência à imprevisibilidade delas. A relação entre os dois arquitetos teria um grande ponto de inflexão alguns anos depois, por ocasião de um concurso especial que colocou os dois, pela primeira vez, em lados opostos. Não sem grandes esforços de Le Corbusier para evitar essa concorrência. Anos mais tarde Niemeyer, em sua biografia "Minha Arquitetura", escreveria que em 1947 ele foi convidado por Wallace Harrisson

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para apresentar um projeto no concurso para novo o edifício das Nações Unidas em Nova York. Assim que chegou, no entanto, Oscar foi convidado por Le Corbusier para participar como colaborador em seu projeto, que estava recebendo muitas críticas até então. Niemeyer inicialmente atendeu à solicitação do antigo mestre, mas logo foi chamado por Harrisson, que pediu para ele desenvolver a sua própria proposta, objetivo original do convite. Ele teve então duas semanas para trabalhar em seu projeto. Niemeyer confessa que não gostava nada do projeto de Le Corbusier, que lhe parecia ter sido concebido para outro lugar. Ele criticava a posição do bloco proposto, que dividia o terreno em duas áreas desconectadas. Em seu projeto, Niemeyer concebe um bloco horizontal mais curto, colocado ao lado do rio e o mais alto na esquina do terreno, criando com esse gesto a Praça das Nações Unidas. Depois da apresentação dos projetos, Harrisson propôs que o projeto de Niemeyer fosse construído, o que foi aprovado por unanimidade pelo júri. No entanto, na manhã seguinte Le Corbusier pediu para falar com Niemeyer novamente e pediu-lhe para alterar a posição do volume maior, levando-o para uma posição central como na sua ideia. Wallace Harrisson discordou, mas com a insistência de Le Corbusier, Niemeyer aceitou elaborar um projeto final com poucas mudanças em colaboração com seu antigo mestre. O projeto final construído para sede da NY Nações Unidas, de 1947, foi assinado por Niemeyer e Le Corbusier. Foi quando a relação "mestre-aprendiz" se tornou uma relação entre iguais, dois dos maiores personagens da história da arquitetura, sem qualquer hierarquia. De acordo com Niemeyer, a generosidade de que o gesto foi reconhecido anos mais tarde por seu velho mestre em um jantar em seu apartamento na França. A explosão da caixa cartesiana, que Niemeyer já ensaiara com Lucio Costa em 1939 no pavilhão brasileiro em NY, foi retomada em 1951, em uma versão bem mais radical, no projeto para a sua própria casa na Estrada das Canoas, no Rio de Janeiro, construída dois anos mais tarde. Niemeyer dizia que sua intenção era conceber essa residência com total liberdade, adaptá-la às mudanças de nível do terreno sem modificar a sua forma, com as curvas da casa permitindo que a natureza penetrasse na edificação, sem a separação arbitrária da linha reta. A Casa das Canoas tornou-se uma das obras mais reconhecidas de Niemeyer, incluída na lista de Patrimônio Nacional no mesmo ano em que o arquiteto completou, vivo, 100 anos de idade. A casa de fato materializou uma integração sem precedentes entre espaços fechados e abertos, naturais e artificiais.

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Figura 2.15  –  Casa Canoas, de Oscar Niemeyer, em 1951, em total integração com a natureza. Disponível em: .

Finos pilares metálicos pintados em preto desaparecem sob a sombra da laje sensualmente curvilínea, que parece flutuar sobre o espaço interno da casa. O espaço só é separado da natureza por uma camada discreta de vidro. Uma enorme pedra cercada por uma piscina natural penetra a casa sem qualquer conflito entre o ambiente construído o natural. Enquanto mais obras primas brotavam da prancheta de Niemeyer e a admiração internacional continuava a crescer, internamente Juscelino Kubitschek, cliente vip do arquiteto, nunca parou de fazer encomendas. Em 1956, no momento em que ele foi eleito presidente do Brasil, imediatamente fez a Niemeyer uma encomenda que seria considerada a maior já feita a um arquiteto: todos os grandes edifícios públicos de Brasília, a nova capital, a ser construída do zero dentro do prazo impressionante de apenas cinco anos. O entusiasmo do presidente obstinado a construir uma cidade moderna, para ser exibida ao mundo todo, se justificava: o Brasil passava por um momento especial de otimismo e valorização de sua cultura, simbolizada pelo sucesso internacional da criação da bossa-nova. E a cidade foi construída como um completo manifesto, seguindo o plano piloto funcionalista de Lúcio Costa – vencedor do concurso estabelecido para isso – e projetos dos edifícios de Niemeyer.

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Novamente recorrendo à autobiografia de Niemeyer, uma passagem interessante mostra o espírito que ele viria a imprimir em todos os edifícios oficiais. Ele narra um diálogo na ocasião de sua primeira visita ao planalto onde seria construída a cidade, na companhia do presidente e de seus ministros. Representando o setor mais conservador da sociedade, o Ministro da Guerra, Comandante Lott, perguntou-lhe se os edifícios para o Exército seriam construídos em um grandioso estilo clássico, “como se poderia esperar”, ou seriam modernos como o arquiteto costumava fazer seus projetos. A resposta de Niemeyer foi no tom que o presidente Kubitschek esperava: "Quando você entra em uma guerra, você prefere usar armas clássicas ou modernas?" Segundo Niemeyer, o comandante compreendeu imediatamente a mensagem, sorriu com simpatia e nunca falou sobre isso. Além da confiança absoluta do presidente no arquiteto, ele tinha muita pressa para cumprir a promessa de campanha de desenvolver "50 anos em 5". Com isso a liberdade de Niemeyer, mais uma vez, foi imensa. A ideia, que já existia desde o século anterior, de mudar a capital para a parte central do país, tinha dois objetivos principais: levar o centro político do país para uma cidade mais protegida, que correria menos riscos de ataques militares externos; e, principalmente, levar o desenvolvimento ao interior, já que as maiores cidades eram todas na costa. O local escolhido, além de ser próximo à fonte das principais bacias hídricas o país (rios Paraná, São Francisco e Tocantins), teve uma forte simbologia: ficava exatamente no centro geográfico do país e, para completar, em um enorme planalto, exatamente mil metros acima do nível do mar. Esse conjunto de fatos ajudou a definir o tom de fantasia e as expectativas de que o projeto da nova capital gerou. E o objetivo de concluí-lo em cinco anos fez o presidente pedir a Niemeyer, funcionário público, para elaborar o plano piloto ele mesmo. Mas Niemeyer recusou e insistiu na elaboração de um concurso. Reza a lenda que Lúcio Costa nem chegou a entregar sua proposta completa, sem tempo para completar seus estudos. Indícios apontam que sua filha pegou o projeto inacabado e entregou em seu nome, achando que tais ideias não poderiam ser jogadas fora só porque o estudo não foi concluído a tempo. O fato é que, mesmo com uma proposta incompleta, o projeto de Lúcio Costa ganhou o concurso e causou muita discussão no cenário arquitetônico à época. O Instituto Nacional de Arquitetos sugeriu que o governo organizasse um novo concurso, mas Israel Pinheiro, responsável pelas decisões no governo, foi imediatamente pedir a opinião de Niemeyer, um ex-pupilo de Costa, que respondeu: "No que depender de mim, você vai encontrar todos os obstáculos possíveis!"

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E, com sua proximidade com o presidente, Niemeyer ajudou a manter o projeto de Lucio Costa como o escolhido para a nova capital. As obras começaram rapidamente e depois de construir, em 15 dias, uma residência temporária de madeira para o presidente (Conhecido como Catetinho, em referência à então residência oficial do presidente no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro), o primeiro edifício permanente a ser construído em Brasília foi Palácio da Alvorada, entregue em 1958. Projetado para ser a residência oficial e local de trabalho do presidente, o maior mérito do palácio de dois andares, segundo o próprio arquiteto, é o “entrelaço” dos dois programas sem perder a independência de cada um. Plasticamente, chama atenção pela grande varanda do andar inferior, apenas um metro acima do chão, o que permite que não se use guarda-corpo ou corrimão, com a extensão dos pilares servindo de limite. Essa colunata virou um clássico da arquitetura brasileira, sendo copiada nos por outros arquitetos nos EUA, na Grécia, na Líbia. Figura 2.16  –  Palácio da Alvorada, de Oscar Niemeyer (1958). Disponível em: .

Figura 2.17  –  Sede do Superior Tribunal Federal, de Oscar Niemeyer (1958).

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Em frente ao Palácio, ficaria a Praça dos Três Poderes: o Executivo, representado por ele; o Legislativo representado pelo Congresso Nacional; e o Judiciário, representado por Supremo Tribunal Federal. Por sua escala, é o Congresso Nacional, entregue ainda em 1958, que chama atenção não só de quem está na praça, mas de qualquer pessoa dentro do chamado "Eixo Monumental”, que começa ali e atravessa a cidade, com todos os ministérios e edifícios públicos ao seu redor.

Figura 2.18  –  As torres e cúpulas invertidas da sede do Congresso Nacional, de Oscar Niemeyer (1958)

Lauro Cavalcanti, um dos mais respeitados críticos de arquitetura do país, escreveu sobre o edifício e sua relação com a praça em seu livro "Quando o Brasil era Moderno". Ele descreve: "Os únicos elementos verticais na praça são as torres gêmeas do Congresso. Elas surgem da mesma superfície que suporta duas cúpulas, uma côncava e outra convexa, correspondentes ao Senado e a Câmara Federal. As torres delgadas em vidro têm os lados em mármore, repetindo a solução Niemeyer já havia utilizado no projeto da sede da ONU em Nova York, em 1947”. Sobre os outros dois edifícios da Praça, Cavalcanti escreve que, ao contrário experiências brutalistas de Le Corbusier, Oscar Niemeyer buscava leveza nas suas estruturas, que, nesta praça, parecem quase não tocar o chão. Analisa ainda que estes edifícios são variações do Palácio da Alvorada. O módulo para eles é metade da coluna do Palácio, seccionada no seu eixo vertical e colocados ortogonalmente aos lados mais compridos das caixas de vidro. No gabinete presidencial, a altura do eixo subiu ao nível do primeiro andar.

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Outro edifício de Brasília que se consolidou como uma das bem-sucedidas experiências de Niemeyer é o da Catedral. É impressionante como um arquiteto ateu, agnóstico, consegue estabelecer, com gestos tão simples, tamanha simbologia e conexão com a representação do Divino. Quando descreve a arquitetura de Brasília, o próprio arquiteto cita a Catedral como exemplo: "A ideia de fazer uma arquitetura diferente me permite afirmar hoje aos que visitam a nova capital: 'Vocês vão ver os palácios de Brasília, deles podem gostar ou não, mas nunca dizer terem visto antes coisa parecida. E isso se verifica na Catedral de Brasília, diferente de todas as catedrais do mundo, uma expressão da técnica do concreto armado e do pré-fabricado. Suas colunas foram concretadas no chão, para depois criarem juntas o espetáculo arquitetural." E o projeto é, de fato, um espetáculo da arquitetura. Com duas curvas, Niemeyer cria uma espécie de coluna que ao mesmo tempo é viga e é praticamente o único elemento que compõe o edifício. Repetida 16 vezes, rotacionando 360° em torno de um eixo central, as colunas/vigas, criam a moldura para um belíssimo vitral moderno. Este conjunto se torna a cobertura de um grande vão no nível térreo que delimita uma nave escavada, de planta circular, ao contrário da clássica forma de cruz feita pelo encontro da nave principal com o transepto. Para acessar esse espaço, o usuário precisa descer à escuridão de um corredor de acesso e quando chega ao salão redondo, a luz zenital colorida o convida a olhar para cima e estabelecer contato com o céu onde acredita estar seu Deus, uma possibilidade sem precedentes na história da arquitetura religiosa. Brasília mudaria para sempre não só a vida de Niemeyer, mas a arquitetura de Brasil e, em certa escala do mundo. Além do pico do Modernismo, Brasília foi apontada por muitos como também um ponto de inflexão e marco inicial do processo de decadência do Modernismo no Brasil. Nos próximos capítulos veremos que no resto do mundo esse processo já estava acelerado neste momento, com o movimento pós-moderno próximo da maturidade. O plano do mestre Lúcio Costa, sem considerar alternativas para a expansão futura em um projeto racionalista e “fechado”, como uma máquina, em breve começaria a estimular o nascimento das chamadas “cidades-satélites”. E o Distrito Federal, projetado e construído a partir da premissa de seu tempo de que o automóvel deveria ser seu personagem principal, rapidamente se torna obsoleto quando confrontado com as ideias de Jane Jacobs que veremos nos próximos capítulos. Outro personagem importante da segunda metade deste livro, o grande arquiteto, professor e crítico holandês Rem Koolhaas, chegaria a explicar a relação

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confusa entre o ciclo do Modernismo e a construção de Brasília: "Brasília não é uma decepção, mas também não é um reencontro espetacular com um antigo ideal solista. Mais um último espasmo do que uma nova alvorada. Uma confirmação que este ideal, por agora, não é mais crível." A arquitetura de Niemeyer ainda teria importantes momentos depois de Brasília, ajudando a perpetuar outros “pequenos espasmos modernos” até sua recente morte, em 2012, aos 104 anos de idade. O exílio após o golpe de 64 ajudou a internacionalizar sua herança, levando o espanto e admiração característicos de sua obra a diversas cidades da Europa e África. Em seu retorno, ainda produziria no Brasil muitos edifícios importantes, como o conjunto do MAC e Caminho Niemeyer em Niterói, ou o Museu Niemeyer de Curitiba. Seguiria até o fim de sua vida lutando por uma cidade mais justa, se tornando um dos últimos grandes defensores da utopia comunista ou, como ele chamava, humanista, e influenciando seguidas gerações no Brasil e no mundo. O peso de sua influência seria ainda um dos responsáveis diretos pelo prolongamento do uso do vocabulário modernista no país. No Brasil, como veremos nos próximos capítulos, a linguagem moderna, ao contrário do resto do mundo, seguiria fortemente presente ao menos até meados da década de 1980, especialmente em São Paulo, onde a “Escola Paulista” só se estabelecera tardiamente, em meados da década de 1940. Enquanto isso, no resto do mundo, o movimento moderno já começaria a sofrer uma revisão desde os anos 1950, com o surgimento do Team X, como veremos nos próximos capítulos.

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3 Revisão do Modernismo

Revisão do Modernismo Este capítulo se configura como uma análise de projetos e textos de teor crítico aos ditames paradigmáticos da arquitetura moderna. Tratam-se de obras, entre as décadas de 1960 a 1970, que se estabeleceram na história enquanto promotoras de um revisionismo do modernismo arquitetônico. Num primeiro momento, apresentamos as obras que provocaram uma retomada de alguns aspectos da tradição arquitetônica. No caso do arquiteto Louis Kahn, por exemplo, a monumentalidade; no movimento do TEAM X, surgido dentro dos próprios CIAM (congressos dedicados às formulações das premissas da arquitetura e do urbanismo modernos), a busca de reatar o laço entre o indivíduo e a rua, com projetos que combatiam as setorizações funcionais do espaço urbano relatados na carta de Atenas; em seu argumento crítico, Jane Jacobs, em seu texto “A morte e Vida das Grandes Cidades”, defende a diversidade e a complexidade, condições, segundo ela, inerentes ao espaço urbano e eliminadas nos axiomas do urbanismo moderno. A segunda parte do capítulo lida com propostas de ultrapassar as fronteiras, sejam históricas ou formalistas, da modernidade arquitetônica. Manfredo Tafuri, Aldo Rossi e Colin Rowe são discutidos dentro de uma contextualização histórica que aborda o modo como cada uma lida com a questão da crise da arquitetura moderna. Tafuri, na crítica dos mecanismos pelos quais a arquitetura vinha se vinculando e se apropriando dos novos materiais e novos meios de produção assim como a relação entre este contexto e a arte de vanguarda moderna. Rossi na identificação de uma continuidade histórica de tipos e arquétipos arquitetônicos e Rowe, na análise diagramática da forma arquitetônica moderna e do espaço urbano, indicando, a partir de seus estudos – que constatam fragmentações e superposições de formas e temporalidades históricas tanto da arquitetura como das cidades – o colapso da noção de espírito do tempo, mais especificamente, do tempo moderno.

OBJETIVOS •  Apontar as primeiras obras e teorias arquitetônicas após a segunda metade do século XX que refletem criticamente as premissas ideológicas do movimento moderno;

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•  Identificar a produção de arquitetos de relevância histórica atuantes no pós-guerra e apontar, nas obras destes, características de diferenciação com o modernismo arquitetônico; •  Consolidar as questões colocadas pelas obras e teorias comentadas como um ponto de partida para um entendimento mais abrangente da produção das gerações seguintes, de arquitetos contemporâneos.

Preâmbulo crítico à arquitetura moderna Tradição e monumentalidade na obra de Louis Kahn

A princípio, para um entendimento claro dos deslocamentos críticos à arquitetura moderna, promovidos pela obra do arquiteto norte-americano Louis Kahn, se faz necessária antes uma compreensão do contexto histórico no qual Kahn se encontrava e ao qual sua arquitetura reagia. De modo geral, o cenário no qual a arquitetura de Kahn se inicia e se desenvolve abrange o período de final da década de 1930 até meados da década de 1960. O ponto de inflexão deste período é a transição New Deal para a retomada da monumentalidade e da tradição arquitetônica, anterior à arquitetura modernista. “New Deal” foi uma série de programas socioliberais criada pelo então presidente norteamericano Franklin Roosevelt em resposta à Grande Depressão econômica de 1929. O programa tinha como lema os três “erres [R]”: Relief, Recovery e Reform [Redução, Recuperação e Reforma].

O programa de Roosevelt se valia de uma intelligentsia europeia representada por arquitetos que migraram para os Estados Unidos da América e recursos destinados a obras de infraestrutura de caráter de bem-estar social. Citando alguns dos mais importantes projetos do programa, estão entre eles o Tennessee Towns Valley Authority e as Greenbelt New Towns, de Clarence Stein – embora, segundo Frampton, estas obras não tivessem qualquer “distinção arquitetônica”12. Neste sentido, a vilas operárias financiadas pela Farm Security Administration, e o conjunto habitacional Aluminum City Terrace de 1941, projetado por Walter Gropius e Marcel Brauer, para aos trabalhadores de New Kensington na Pensilvânia tiveram soluções projetuais bem mais satisfatórias – e, no caso do último projeto, foi possível a realização, em continente americano, de algumas das premissas sociais da Bauhaus. 12  TAFURI, Manfredo. Architecture and Utopia: Design and Capitalist Development. Cambridge,

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Por esta razão chegou-se a falar de uma Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade) americana. A Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit) foi um movimento artístico alemão que sucedeu ao Expressionismo e tinha como característica a simplificação dos objetos de arte por meio da sua forma, materiais e representação. O período da Nova Objetividade, não por acaso, coincide com o período da república de Weimar, da reconstrução da Alemanha após a Primeira Grande Guerra, da Deutscher Werkbund e da Bauhaus. Todos estes eventos históricos estavam interligados com uma nova atitude do indivíduo alemão diante do mundo que buscava a racionalização, a economia e a socialização dos recursos e dos modos de produção artística e arquitetônica.

No entanto, o frisson da Nova Objetividade não perduraria por muito tempo. Frampton conta que “o ano de 1945 aparece como divisor de águas entre o etos socialmente comprometido do New Deal e um impulso incipiente para a monumentalidade.” Essa transição do etos da objetividade modernista para a retomada de um expressionismo arquitetônico teve como aspecto capital a valorização do concreto como material de maior expressividade que o ferro e, portanto, de maiores possibilidades compositivas para forma arquitetônica. O arquiteto de maior notoriedade nos Estados Unidos da América, neste momento de virada revisionista do moderno, foi o arquiteto de origem russa, Louis Kanh (1901-1974). Imigrando ainda criança para o estado norte-americano da Filadélfia, Kahn teve sua formação em arquitetura orientada pelos estudos de Paul Cret. Paul Cret (1876-1945) foi um arquiteto francês educado segundo os preceitos da École des Beaux Arts [Escola de Belas Artes] de Paris. Em 1903, ele migra para os EUA para lecionar no departamento de arquitetura da Universidade da Pensilvânia, no qual Louis Kahn havia estudado.

Kahn veio assim a se inteirar de todo sistema clássico, “sinceramente e sem ironia”. Ele chegou mesmo a trabalhar no ateliê de Cret em 1930, ajudando-o a detalhar um dos seus edifícios clássicos. No entanto, com a depressão de 1929, ele tanto perdeu o emprego como se desiludiu com o Classicismo, e passou a se dedicar ao modernismo europeu.

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Este foi um período em que Kahn trabalhou em parceria com George Howe – arquiteto que projetou, junto com William Lescaze, o P.S.F.S. (Philadelphia Savings Fund Society). Hoje operando como Loews Philadelphia Hotel, este foi o primeiro arranha-céu americano classificado como Estilo Internacional (International Style). Kahn desenvolveu, ao logo de sua carreira, um forte interesse na ordem formal da arquitetura e por esta razão cultivou por um tempo, certo fascínio pela geometria modular de Buckminster Fuller – arquiteto atrelado às premissas projetuais do New Deal e que acreditava que o “novo” e uma linguagem arquitetônica livre podem ser realizados a partir de princípios geométricos abstratos. De 1930 até meados da década de 1950, Kahn tentou em vão suprimir os reflexos de sua educação apoiada na École des Beaux Arts buscando obstinadamente o ideal modernista, mas sem atingir resultados satisfatórios. Foi apenas quando ele resolveu cessar sua contenda contra sua formação clássica que ele encontrou sua própria arquitetura. Isso se deu de modo acidental, em 1951 – embora não totalmente por acaso – durante o curso oferecido pela American Academy em Roma. Ali ele revisitou a Antiguidade Clássica que era o centro e origem de seu conhecimento em arquitetura. Esta experiência o levou, para além da tradição europeia, a investigar outras culturas antigas de construção, como a grega e a egípcia. Disso emergiu em sua arquitetura um senso mais arcaico transliterado na retomada de ambientes isolados – contrariando um dos cinco pontos da arquitetura moderna de Le Corbusier, a paradigmática planta livre – e também no uso de paredes e invólucros mais sólidos, possibilitando uma monumentalidade, do mesmo modo, revogada pela arquitetura moderna. Em 1957, ele projetou o Richards Medical Research Laboratory para Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, um modesto edifício que desafiou a doutrina imaculada do modernismo miesiano. No lugar do “espaço universal” do Modernismo, o espaço de Kahn foi insistentemente e impiedosamente particular. Ele dividiu o edifício em blocos de laboratórios e os shafts de ventilação e instalações (torres verticais) em espaços segregados e distintos de áreas de serviços e áreas assistidas, criando uma hierarquia que o Estilo Internacional modernista buscou demonstrar.

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Figura 3.1  –  Richards Medical Research Laboratory [Louis Kahn].

Tanto a ordem hierárquica quanto a monumentalidade incipiente do Richards Medical Research Laboratory de Kahn podem ser observadas no modo pelo qual suas torres monolíticas de tijolos abrigam as instalações, ventilação e circulação vertical comum, se destacando notoriamente da translucidez dos ambientes de gabarito menor destinados a usos específicos. Em meados da década de 1960 foi quando Kahn, próximo de se aposentar, finalmente encontrou sua expressão arquitetônica. Sua produção nesta época, dedicada mais aos edifícios comerciais e públicos, revisitava as lições que Cret lhe havia passado aplicando-as agora como princípios abstratos e aparando as colunas e cornijas clássicas assim como todos os excessos do seu vocabulário formal calcado na Beaux-Arts. Um desses elementos abstratos foi o eixo formal, que os modernistas haviam abolido como uma relíquia da formalidade da Escola das Belas-Artes. No seu projeto em La Jolla, Califórnia, para o Salk Institute, ele organizou todo um centro de pesquisa por meio de um único eixo que se estende por toda sua implantação até o mar, inspirando no olhar observador, como na Stonehenge, o infinito, atingindo uma nota de valor eterno e atemporal, que se perdeu, boa parte, no funcionalismo moderno.

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Figura 3.2  –  Salk Institute [Louis Kahn].

Kahn retomou a tradição pela abstração. Essa abstração, embora revisitasse as proporções clássicas, áurea e de simetria, ia além, para uma tradição mais antiga, de inclinação panteísta – cultura egípcia (mesopotâmica, persa), a qual admitia que a divindade estava nas coisas, em todas as coisas e, portanto, implicando que os objetos de arte e arquitetônicos deveriam se projetar e se desdobrar em espaços de maior monumentalidade, na crença de que estes objetos iriam os proteger. Sua arquitetura, ainda que não se conforme historicamente como uma arquitetura contemporânea radical, como a desconstrutivista, que retoma a querela de desmembramento hierárquico dos elementos semânticos da arquitetura, de certo, se posiciona como uma arquitetura que se estabelece como uma alternativa ao modernismo arquitetônico, corroborando assim, para as novas possibilidades formais e discursivas na arquitetura que estavam por vir. Team X e a revisão do movimento moderno

A revisão do moderno promovida pelo Team X é historicamente determinada como uma reação deste grupo aos CIAM. O grupo se constituía de arquitetos ingleses que eram membros e representantes das últimas edições dos CIAM.

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Liderado por Alison e Peter Smithson e Aldo van Eyck, o grupo atacou de modo contundente as quatro categorias funcionalistas da Carta de Atenas: moradia, trabalho, lazer e transporte. Falar do Team X, portanto, implica um entendimento básico a respeito dos CIAM. Sumariamente, podemos revisar os anos de existência dos CIAM mostrando que eles basicamente tiveram três etapas distintas, categorizadas pelo historiador Kenneth Frampton da seguinte forma: A primeira etapa: de 1929 a 1933, compreendeu os congressos de Frankfurt, em 1929 e de Bruxelas em 1930. Foi, sob muitos aspectos, a mais doutrinária. Dominados pelos arquitetos alemãs da Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), em sua maioria de tendências socialistas, “esses congressos voltaram-se num primeiro momento, em Frankfurt, sob o título de Die Wohnung für das Existenzminimum (alojamentos para unidade mínima de habitação), para os problemas de padrões mínimos de vida, e em seguida, em Bruxelas (CIAM III) sob o título Rationelle Bebaungsweisen (práticas de desenvolvimento racional), que abordava questões de gabarito (altura ideal) e do espaçamento entre blocos, visando à eficiência tanto da terra quanto do material”; A segunda etapa: “1933 a 1947, foi dominada pela personalidade de Le Corbusier, que deliberadamente alterou a ênfase predominante, fazendo-a incidir sobre o planejamento urbano”. A terceira etapa: quando ocorreu uma ruptura decisiva com o CIAM IX, realizado em Aix-en-Provance em 1953, foi também quando os Tem X se organizaram contra ao funcionalismo proposto pela Carta de Atenas ao urbanismo moderno. Neste sentido, o Team X trouxe, enquanto proposta, um conjunto alternativo de abstrações. Os Smithson, Van Eyck, Jacob Bakema, George Candilis, Shadrach Woods, John Voelcker e Willian e Jill Howell analisaram criticamente os princípios estruturais do desenvolvimento urbano consolidados por Le Corbusier na etapa anterior do CIAM. O fruto desta análise revelou o descontentamento com o funcionalismo “da velha guarda” – com o “idealismo” de Le Corbusier, Van Eesteren, Sert, Ernesto Rorgers, Alfred Roth, Kunio Mayekawa e Gropius – e teve seu reflexo justo na reação do grupo ao relatório do CIAM VIII. Neste sentido, veio a resposta dos membros do Team X, manifestando um padrão urbano que atendia a uma nova sensibilidade contemporânea, que compreendia uma necessidade e urgência de “identidade” para o espaço citadino. Escreveram: “Pertencer é uma necessidade emocional básica – suas associações são da ordem mais simples. Do pertencer – identidade – provém o sentido enriquecedor da urbanidade. A

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ruazinha estreita da favela funciona muito bem exatamente onde fracassa com frequência o redesenvolvimento espaçoso”. Assim, o elã crítico de encontrar uma “relação mais precisa entre a forma física e a necessidade sociopsicológica tornou-se o tema do CIAM X”. O CIAM X ocorreu em Dubrovnik, em 1956 – último encontro dos CIAM. Foi nele que este grupo de arquitetos passou a ser denominado de Team X. Também definiu a extinção oficial dos CIAM e teve a indicação o Team X como o sucessor confirmado em 1959, quando do novo encontro do grupo no cenário melancólico do Museu de Otterlo, de Van de Velde, com assessoramento do mestre belga. A reação do Team X às premissas dos CIAM se dava, para além do campo teórico, nas ações projetuais de seus integrantes. Temos como exemplo notório, de relevância histórica, o Golden Lane dos Smithson. Alison e Peter Smithson, em idos de 1950, representantes do brutalismo inglês com influência do existencialismo francês, buscaram na obra do fotógrafo inglês Nigel Henderson inspiração para o projeto do Golden Lane. Grosso modo, o arquivo fotográfico de Henderson representa a realidade física e social de Londres. Um ensaio de Henderson em especial foi importante para a dupla de arquitetos, a do East End Londres – que retratava o cotidiano da comunidade de Bethnal Green. Foi com uma descrição imagética que Henderson foi capaz realizar fotograficamente, o que ficou patente foi que ele havia captado a expressividade da “vida das ruas” da população de Bethnal Green – e foi a partir desta “expressividade do cotidiano das ruas” que os Smithson começaram a elaborar as ideias de identidade e associação. Assim, desta relação com a obra de Henderson, os arquitetos propuseram – a partir de uma análise, ainda que por demais racionalizada, da Bye Law Street – o projeto do conjunto habitacional Golden Lane, de 1952. “Apesar de toda sua semelhança com o projeto Ilot Insalubrede Le Corbusier, de 1937, Golden Lane tinha a nítida intenção de ser uma crítica à Ville Radieuse e ao zoneamento das quatro funções da cidade em habitação, trabalho, lazer e transporte”. Os Smithson claramente objetaram a essas quatro funções uma proposta mais fenomenológica de reconhecimento do lugar mais imediato: a casa, a rua, o bairro e a cidade. O ponto criticável da proposição dos Smithson reside na diferença de escala do espaço que abrange o ensaio fotográfico de Henderson e daquela que um projeto como o Golden Lane engloba – isto é, o espaço do bairro e da cidade. A presença da Bye-Law Street podia ser identificada nos primeiros esboços dos

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Smithson, “mas a natureza de Golden Lane – alta densidade num lugar pequeno –e a aceitação dos postulados funcionalistas por parte dos Smithson impediam uma solução que pudesse dar sustentação a tal vida”. A escala da Golden Lane, sua proposta de acomodar o adensamento do lugar, levou a solução programática a comprometer a proposta inicial e recair em alguns preceitos urbanos de Le Corbusier defendido pelos CIAM. Havia, dentro do próprio Team X, uma contradição de diretrizes projetuais, que pode ser encontrada na obra de Jacob Bakema. Sua proposta de uma megaconstrução como o “determinante psicológico da posição” para paisagem metropolitana era um paradoxo, uma proposta diametralmente oposta à dos Smithson, que eram, justamente, reticentes quanto à viabilidade de tais estruturas. Ainda, a diversidade do Team X era também representada pela abordagem insólita de Aldo van Eyck, que acreditava na evolução nas cidades da ideia de uma “forma lugar” adequada às vicissitudes do espaço urbano ao fim da Segunda Guerra Mundial. Apoiado na sua bagagem de pesquisas antropológicas de culturas primitivas, Van Eyck estava, em relação aos outros membros do Team X, mais apto a combater o desvario abstrato moderno, apontando já uma continuidade histórica cognitiva das formas construídas encontradas nos ambientes das tais culturas que ele havia investigado – neste sentido, van Eyck apresenta para arquitetura uma autonomia atemporal das formas arquitetônicas, descoladas de uma representação escrava da tecnologia de um determinado momento histórico. Jane Jacobs: diversidade e a crítica ao urbanismo moderno

Qualquer abordagem sobre Jane Jacobs deverá passar invariavelmente pelo conteúdo de sua obra mais relevante: A Morte e a Vida das Grandes Cidades. O livro de Jacobs trata de uma crítica direta ao urbanismo moderno. A esse respeito ela nos conta já nas primeiras linhas introdutórias de sua obra: “O livro é um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização ora vigentes [...] é uma ofensiva contra os princípios e os objetivos que moldaram o planejamento urbano e a reurbanização modernos e ortodoxos”. Sua crítica, assim, recai mais fortemente sobre os princípios urbanos lançados por duas figuras definidoras dos preceitos do planejamento para as cidades modernas: Ebenezer Howard e Le Corbusier.

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Segundo Jacobs, Howard detestava a cidade, seus erros e seus equívocos. A cidade para ele era a encarnação dos desvios e enganos da humanidade refletidos no adensamento e aglomeração urbana. “Sua receita para salvação das pessoas era acabar com a cidade”. O desejo de Howard era poder criar espaços de vivência autossustentáveis, bucólicos e agradáveis nos quais seus habitantes poderiam viver livres do stress das metrópoles e das ambições profissionais do mundo moderno. Um projeto utópico destinado a um estilo de vida simples e despretensioso. Nada despretensioso, no entanto, era a empreitada de se realizar pequenos espaços citadinos apoiados na ideia inovadora de Cidade-Jardim na qual um cinturão verde, reservado à produção agrícola, deveria circunscrever seu território. No intuito de descolar a superposição de funções num mesmo espaço, foi proposto para estas Cidades-Jardins a segregação dos usos industriais – a serem implantados em áreas residenciais predeterminadas –, comerciais, esportivos e culturais – estes últimos destinados ao território central do plano. Para Howard, “a melhor maneira de lidar com as funções da cidade era selecionar e separar completamente os usos simples e dar a cada um deles uma independência relativa”. As cidades de Howard não deveriam exceder o número de trinta mil habitantes e precisar, justamente com o intuito de conter qualquer expansão demográfica, ser gerida e administrada sempre por um poder público local, diretamente ligado à fundação da cidade. Não se tratava apenas de um novo espaço e um novo estilo de vida, mas principalmente, segundo a crítica de Jacobs, “de uma sociedade política e economicamente paternalista”. Embora utópicas, as Cidades-Jardins de Howard foram viabilizadas em Letchworth e Welwyn. Depois da Segunda Guerra Mundial, algumas cidades da Inglaterra e da Suécia adotaram os princípios da Cidade-Jardim. Desse modo, a Cidade-Jardim de Howard é entendida por Jacobs como uma “anticidade” e para ela o homem que foi capaz de aplicar a desconcertante ideia da anticidade dentro dos próprios centros urbanos foi o arquiteto franco-suíço Le Corbusier. O exemplo mais relevante disto que Jacobs está chamando de anticidade foi a cidade imaginária de Corbusier denominada Ville Radieuse. O projeto de Corbusier se erguia a partir de um parque na parte central da antiga Paris como uma miríade de arranha-céus se contrapondo a toda cidade preexistente.

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Figura 3.3  –  Villa Radieuse [Le Corbusier]. Disponível em:

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Sobre este aspecto Jacobs cita Corbusier: Imagine que estamos entrando na cidade pelo grande parque [...]. Nosso carro veloz toma a rodovia elevada especial entre os majestosos arranha-céus; ao chegar mais perto, vemos contra o céu a sucessão de vinte e quatro arranha-céus; à esquerda e à direita, no entorno de cada área específica, ficam os edifícios municipais e administrativos; e circundando esse espaço, os prédios universitários e os museus. A cidade inteira é um parque. Assim como Howard, o que Le Corbusier tinha em mente e projetava era utopia social. É nesse sentido que Jacobs diz que a Ville Radieuse é oriunda da Cidade-Jardim. Porém, embora adote seus princípios, a estratégia de Le Corbusier se diferencia da Cidade-Jardim de Howard por idealizá-la dentro de um perímetro urbano demograficamente adensado. Como disse Corbusier: “a solução está na Cidade-Jardim vertical”. A crítica de Jacobs a esta “utopia social moderna” recaía justo no que ela identificou como sendo um “mito nostálgico”. O mito de que o progresso econômico e o acúmulo de “uma centena de bilhões de dólares”, realizaria o projeto moderno e suprimiria a degradação e a degeneração dos espaços urbanos – dando vida aos sítios suburbanos ora vazios, ora mal ocupados e decadentes. A esse respeito ela nos conta: “Mas veja só o que construímos com os primeiros vários bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinquência, vandalismo

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e desesperança social generalizada, piores do que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são verdadeiros monumentos à monotonia e à padronização, fechados a qualquer tipo de exuberância ou vivacidade da vida urbana; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade, ou tentam atenuá-la, como uma vulgaridade insípida. Centros comerciais que são fracas imitações das lojas de rede suburbanas padronizadas; passeios públicos que vão do nada a lugar nenhum e nos quais não há gente passeando; vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isso não é urbanizar as cidades, é saqueá-las”. O ponto de sua teoria é que existe uma incapacidade por parte do planejamento urbano moderno, com toda sua cultura tecnomecanicista, de conter o declínio e a falta de presença das cidades. Avessa ao culto da aparência das cidades imaginárias perfeitas, ela nos conta que a construção das cidades e de seu espaço se dá como um “imenso laboratório de tentativa e erro” e que arquitetos e urbanistas deveriam ficar atentos mais a essa dinâmica empírica latente das cidades (de tentativa e erro) do que se dedicarem à corrida progressista e frívola de um futuro idealizado – descolado muitas vezes das verdadeiras vicissitudes do espaço citadino. “... precisamos urgentemente adquirir e aplicar o mais rápido possível todo conhecimento sobre as cidades que seja útil e verdadeiro”. Ainda neste sentido, Jacobs comenta que ... ... “planejadores, arquitetos do desenho urbano e aqueles que os seguem em suas crenças não desprezam conscientemente a importância de conhecer o funcionamento das coisas. Ao contrário, esforçam-se muito para aprender o que os santos e os sábios do urbanismo moderno ortodoxo disseram a respeito de como as cidades deveriam funcionar e o que deveria ser bom para o povo e os negócios dentro delas. Eles se aferram a isso com tal devoção, que, quando uma realidade contraditória se interpõe, ameaçando destruir o aprendizado adquirido a duras penas, eles colocam a realidade de lado”. Jacobs defende, assim, uma consciência dos aspectos complexos dos espaços urbanos – suas diversidades, provenientes da vida real das cidades. Propõem com isso que os urbanistas estimulem em suas diretrizes urbanas mais a densidade das relações funcionais observadas na urbe e menos a sua idealização. O comportamento social da população no espaço urbano, o desenvolvimento econômico e a observância dos processos de decadência e revitalização são os três tópicos fundamentais do estudo de Jacobs que dão suporte à sua argumentação da gestão das cidades enquanto manejo ordenado das suas complexidades,

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especialmente no que diz respeito à habitação, ao trânsito, ao projeto, ao planejamento e à administração. “Não estudadas, desprezadas, as cidades têm servido de cobaia”.

Perspectivas contemporâneas História e formalismo: o moderno sob a óptica de Tafuri, Rossi e Rowe

A crítica ideológica de Manfredo Tafuri (1935-1994) nos leva a refletir a possibilidade de uma independência da produção arquitetônica moderna em relação às vanguardas dos anos 1920, ou seja, uma autonomia que diz mais respeito às delimitações entre a arte de vanguarda e a arquitetura. A Arte Moderna, agora ligada às práticas sociais, acabou se tornando um modelo de ação de acordo com as novas leis de produção, isto é, o elo entre arte e vida (ou numa analogia com os termos de George Simmel (1858-1918): cultura subjetiva e cultura objetiva) teria se rompido como consequência do crescimento do capital para se tornar o balizador soberano dos valores de troca nas grandes cidades. Arte e vida, embora associadas pelas vanguardas do início do século XX, eram ainda vistas por Tafuri como opostas – justo por esta relação se dar estritamente por meio dos novos meios produção. Assim, para ele, qualquer mediação entre elas deveria ser encontrada – ainda que isso viesse a comprometer a própria concepção de arte, isto é, viesse a obscurecer as delimitações de seu campo, predizendo a ideia de fim da arte do filosofo alemão George Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Entretanto, o caminho da construção do argumento histórico hegeliano sobre o fim ou aporia da arte e da arquitetura moderna em Tafuri se faz de forma indireta, por meio de um texto de Simmel chamado As grandes cidades e a vida do espírito, escrito entre 1900 e 1903, que parte da perspectiva do rompimento irreparável entre a subjetividade e objetividade cultural. As considerações de Simmel sobre as grandes cidades contêm, de forma concisa, os problemas que foram o centro das preocupações dos movimentos das vanguardas históricas. O ponto de ancoragem do argumento histórico está na perspectiva de que todas as formas sofisticadas e sutis observadas em uma relação entre a subjetividade e objetividade rompem-se radicalmente com a chegada do capitalismo. Esse seria um momento de choque característico da modernidade, presente na poesia de Charles Baudelaire ou de Edgard Allan Poe, nas quais as impressões da realidade ocorrem abruptamente,

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promovendo um colapso na percepção do indivíduo, tornando-o um sujeito apático e blasé, desconectado das coisas do mundo e imerso num universo de excentricidades. As consequências deste momento de choque são deletérias e geram uma hipertrofia da sensibilidade e a criação de um distanciamento intelectual. Por um lado, o conceito e a vida intelectual, tornam, supostamente, a experiência concreta em algo indiferenciado; por outro, a economia monetária insiste em retirar a substância das coisas, nivelando-as a um mero valor de troca. Neste contexto, todos os objetos flutuam sobre o mesmo plano, com a mesma importância específica, no movimento constante da economia monetária, e nele, a cidade seria também como um produto a ser consumido, como parte da ideologia de consumo. Tal ideologia era servida ao público como um modus operandi da cidade, ou seja, como um modo de se fazer o uso correto da cidade. Para Tafuri, este novo universo de convenções, regido pelos meios de produção, foi um dos principais motivos pelos quais os movimentos de vanguarda estabeleceriam uma ruptura com o passado, interpretando tudo que é novo como algo da ordem do universal. Isso implicou um caráter totalizante das vanguardas construtivas, ou positivas, da primeira metade do século XX. Na visão de Tafuri, as colagens, as técnicas de construção e montagem cubista e neoplasticista contribuíram para modelar um universo absoluto para a civilização mecanicista. O primitivismo e o anti-historicismo seriam as consequências e não as causas das ações de artistas como Picasso, Braque, Gris e, mais tarde, Mondrian e Rietveld. Os métodos de análise crítica do Cubismo e do De Stijl conduziam, através de uma dinâmica da forma, a uma fetichização do objeto artístico e seus mistérios. A aura posta em ação nestes objetos funcionaria de forma a superar a passividade do indivíduo blasé e do flâneur, e os introduziria num universo de precisões dominado pelas leis de produção. Podemos, assim, considerar alguns pontos de tangência entre os mais construtivos e os mais destrutivos movimentos de vanguarda do século XX. Segundo Tafuri, a decomposição do material linguístico do Dadaísmo estaria promovendo a sublimação do automatismo e da comercialização dos valores expandidos pelo avanço do capitalismo. O panorama da produção industrial, que espiritualmente empobrece o mundo, foi disseminado como um universo sem qualidade, sem valor. Mas isso foi retomado após ter sido transformado, assumindo um novo valor por meio de sua sublimação. A técnica do De Stijl de decomposição geradora de formas complexas a partir de outras, elementares, correspondeu à descoberta de que a nova riqueza

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de espírito não poderia ser encontrada fora da nova pobreza assumida pela civilização mecânica. Desse modo, não é surpresa que a anarquia dadaísta e a ordem do De Stijl convergiram para uma prática na qual o caos e a ordem foram aprovados pelos movimentos das vanguardas históricas como os valores, no próprio sentido do termo, da nova cidade capitalista. Aqui, o caos é um datum e a ordem é um objetivo. Esta é a ordem que confere importância ao caos e ganha o valor de liberdade. O uso sistemático do inesperado e a técnica de construção formam juntos as premissas de uma nova linguagem não verbal, com base na improbabilidade, a mesma que o formalismo russo chamou de distorção semântica. A deformidade e o caos da cidade são a razão a ser redimida pela exclusão de todas as suas virtudes progressistas. A necessidade de um controle da produção tecnológica foi claramente apontada pelos movimentos de vanguarda. Esse é o ponto em que a arquitetura parece ter se posicionado como o único mecanismo de produção da sociedade capaz de suprir as necessidades indicadas pelo Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, De Stijl e o Construtivismo, uma vez que todos estes movimentos haviam sido lançados na crise. Neste sentido, a Bauhaus pode ser vista dentro de um projeto industrial e de um método de organização da produção. A ideologia, agora não estava mais sobreposta às operações artísticas – o moderno havia se tornado concreto, por ter sido conectado a um ciclo real de produção, e tornou-se também uma parte interna das próprias operações processuais. Dessa forma, Tafuri afirma que existe na arquitetura e no urbanismo, uma nova ordem utópica distinta das vanguardas históricas que está agora a serviço dos objetivos de reorganização da produção e em que o planejamento dos movimentos arquitetônicos revela uma contradição: os ideais adotados pelas vanguardas referiam-se mais aos processos econômicos e, desse modo, o planejamento anunciado pelas teorias arquitetônicas e urbanas estava determinado por algo além delas. Esta determinação derivava da reestruturação da produção e do consumo em geral; em outras palavras, a coordenação de uma produção planejada. Assim, a arquitetura mediou realismo e utopia. A utopia de que a ideologia de planejamento poderia controlar processos técnicos escondia o fato de que na esfera da reorganização da produção, a arquitetura e o urbanismo se tornariam meros objetos subsidiais e não os agentes fundamentais do plano. Tafuri está, a princípio, alinhado com a ideia de que a prática social seria uma especificidade da arquitetura que configura uma noção de autonomia diferente das outras disciplinas artísticas, uma vez que a faz depender de sua finalidade de

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uso. A pintura, por exemplo, pode ser vista como uma forma de prática social. Então, o que a difere da arquitetura? Residiria mais no fato de que, por um lado, na pintura não haveria problemas, dentro de uma análise crítica, de distinguirmos sua autonomia de sua prática social; por outro, no caso da arquitetura, sua práxis vital seria um condicionante da disciplina. O ponto é que as vanguardas absolutistas, positivas (Cubismo, De Stijl), operariam como uma subversão geradora de novos contextos e a modalidade experimental, das vanguardas negativas (Dadaísmo, Surrealismo), estaria decompondo e recompondo o material linguístico em uma atitude crítica. Esta distinção e articulação de Tafuri entre vanguarda e atitude crítica – na qual, a primeira está sempre comprometida com o novo e o com o espírito do tempo (com uma noção de constante transformação) e a segunda com a delimitação do trabalho experimental – seria a condição para uma vanguarda arquitetônica. Diferentemente desta ideia de Tafuri de que todas as formas de execução são cúmplices em alguma medida do ciclo produtivo do capital, o pensamento de Colin Rowe (1920-1999) aponta para uma análise mais formal do cenário citadino. Com base no argumento de Tafuri já apresentado, analisaremos brevemente a concepção de Rowe. Rowe vê a cidade como uma colagem, isto é, ele analisa e julga as fragmentações do espaço urbano segundo preceitos formais sob o pretexto de se descolar do contextualismo das vanguardas arquitetônicas. Assim, a crítica ao modernismo de Rowe, ao contrário de Tafuri e Aldo Rossi (1931-1997), é descolada dos aspectos históricos, embora seja paradoxalmente historicista na medida em que está associada a um certo tipo de tradição de formalista ligada à arquitetura de Andrea Palladio (1508-1580) e aos preceitos de Rudolf Wittkower (1921-1971). A crítica ao modernismo de Rowe pode ser vista como um contraponto à postura de Tafuri, embora ambos ataquem a maneira pela qual toda ideologia e cultura técnico-mecanicista se vê refletida na forma da arquitetura moderna. Rowe vai dizer que a cultura moderna é uma expressão do Zeitgeist, isto é, do “espírito do tempo” modernista da primeira metade do século XX, e propõe uma potencialização da abstração formal para arquitetura, uma mais ligada às estratégias formais da arte, especialmente a colagem cubista. Por sua vez, Tafuri entende que tal expressão técnico-mecanicista é mediada por uma estética representativa do poder capitalista, e defende o discurso crítico das ideologias históricas despreocupado com resultados estéticos.

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A ruptura da ideia de Zeitgeist (espírito do tempo) coincide com o colapso do movimento arquitetônico moderno. A princípio, Rowe entende a arquitetura moderna como uma arquitetura das boas intenções13, isto é, uma arquitetura que sob influência do historicismo hegeliano e equipada de todas inovações e transformações dos últimos séculos, embora tenha falhado na buscada conexão entre arte e vida, entre arquitetura e sociedade, tinha lá uma boa causa, ainda humanista e romântica. Rowe retorna ao século XV para indicar que a partir de 1400, a noção de tempo linear, que marca os períodos cronologicamente, “tem sido frequentemente a bandeira de advertência para importantes mudanças de estilo”.14 Seriam exemplos disto a arte de Brunelleschi, Donatello e Masaccio na Florença renascentista; a exuberância barroca de Caravaggio e Carracci na Roma de 1600; e a turbulência cultural e artística parisiense de 1800, caracterizada por uma explosão das vanguardas. A partir de 1900, o que se tem é uma variedade de estímulos – a psicologia freudiana, a música atonal, a relatividade, o balé russo, o verso livre, a pintura cubista, o jazz15. A arquitetura, por sua vez, se manifestou neste período como uma resposta às inovações tecnológicas e mecanicistas, procurando se adaptar ao temperamento da época. Logo se tornou áspera, esplêndida, metálica, claramente fria e exata. Sua conexão com os movimentos de vanguarda artística se daria graças a herança do Romantismo do binômio arte e vida, no qual Rowe já podia estipular uma conexão intrínseca entre a forma dos edifícios e a condição da sociedade. Arquitetura e sociedade tornaram-se possíveis por meio da conjunção do pensamento determinista da tecnologia de produção com o pragmatismo social. Isso quer dizer que o aspecto técnico à serviço do programa de necessidades sociais era o que viabilizava a forma arquitetônica. Havia, neste momento, um espírito cético e classicista de orientação claramente utópico e voltado para o futuro, no qual a arquitetura deveria se adaptar a uma estratégia de inovação constante por meio da objetividade e abstração. Uma vez que a ideia da arte como reflexo da sociedade se tornou o novo paradigma, não era difícil supor que a arquitetura viria a se estabelecer na efetivação desta regra. Rowe então coloca a pergunta: [...] “deveria ser surpresa que, apesar de um antagonismo geral inicial, a nova arquitetura rapidamente descobrisse um apoio poderoso e devotado?” 16Nestes termos, a consagração da arquitetura pode 13  ROWE. Colin. The Architecture of Good Intentions, towards a possible retrospect. Italy: Academy Editions, 1994., p. 8. 14  Idid., p. 10. 15 Ibid. 16  Ibid. [tradução nossa]

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ser entendida por apresentar uma explícita vocação para trabalhar a serviço da sociedade e para assimilação da tecnologia das máquinas na construção. A partir de 1950, o movimento moderno começa a desmoronar. Com o fim da Segunda Guerra e a ida dos principais arquitetos do modernismo para os EUA – principalmente a figura de Walter Gropius – seus ideais foram questionados em meio ao capitalismo avassalador da indústria de construção americana. Neste contexto, a arquitetura começa a se tornar um produto, uma mercadoria altamente vendável que reduziu toda competição a um estado de impotência criativa, silenciando a hostilidade dos críticos. 17Neste sentido, a arquitetura das boas intenções não teria sido, em seus 40 anos, uma bênção absoluta.

Figura 3.4  –  La Chaux de Fonds [Le Corbusier]. Disponível em: .

Em defesa de um formalismo para arquitetura e principalmente contra a ideia de Zeitgeist, Rowe diz que o uso da narrativa histórica – produto da especulação hegeliana – como justificativa para arquitetura moderna é contrário ao etos almejado pelo Modernismo. Exemplo disso é o comentário de Rowe de que a tensão criada pelo painel em branco no centro da fachada da Villa Schwob, de Le Corbusier18, em La Chaux de Fonds, estaria supondo um estado a priori ou alguma condição normal de menor tensão, que poderia tanto ser um princípio clássico quanto um dado convencio17  Ibid., p.13. 18  EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004., p.xii.

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nal. A contrapartida pode ser tomada da fala anterior de Le Corbusier de que arquitetura acontece quando uma janela é muito grande ou muito pequena para um cômodo ou fachada. Há, nessa ideia, uma suposição de alguma regra clássica ou normativa. Os dois exemplos parecem apontar para alguma forma de condição interior da arquitetura, para um formalismo irrefutável da arquitetura. Até aqui, reconhecemos historicamente dois projetos teóricos da arquitetura que não podem mais ser classificados como meramente formalistas. Os dois surgiram simultaneamente nos anos 1960. Um foi o projeto italiano, concentrado nas figuras de Aldo Rossi e Manfred Tafuri; o outro, que buscava uma analogia arquitetônica na linguística e nas estruturas profundas (deep structure) envolvendo os arquitetos Colin Rowe e Peter Eisenman. Rossi e Tafuri, a despeito das diferenças entre suas teorias, invocaram de modo contundente uma reintrodução da história no discurso arquitetônico. O projeto de Rossi, mais preocupado com desenvolvimento dos elementos arquetípicos que se repetem no decorrer da história – cúpulas, frontões, cilindros e outros –, enquanto Tafuri ocupava-se da história como uma condição autônoma fora do projeto arquitetônico. Para os italianos, isso acontece no momento em que eles estabelecem uma ligação, rejeitada pelo Modernismo, entre a arquitetura e a história. Isto é, os aspectos históricos da arquitetura são reconhecidos como um caráter de continuidade interna, autônoma, no sentido de algo mais permanente, essencial e universal.19 Por sua vez, o projeto estruturalista da arquitetura de Eisenman, tinha a linguagem como um jogo autorreferencial dos signos arquitetônicos que buscava uma profundidade estruturante descolada do tempo histórico e se autoproclamava atemporal. E neste sentido, ambos projetos – italiano e estruturalista – negavam a energia propulsora do Zeitgeist. Entretanto, as concepções de tais projetos seriam ainda convencionais em relação ao discurso contemporâneo, embora conservem o mérito de terem ido além do formalismo modernista. Podemos entender, a partir destas considerações, que os dois projetos citados anteriormente eram calcados na relação da arquitetura com outras disciplinas – história e formalismo (estruturalismo). Até este ponto, tais projetos, embora equivalentes no sentido de que rompiam, ao menos teoricamente, com a temporalidade histórica, com a ideia de Zeitgeist, eram distintos quanto à sua natureza. Eram na verdade projetos, por vezes, de natureza opostas. 19  EISENMAN, P. Autonomy and the Will to the Critical. In: EISENMAN. Written Into the Void, p. 98. [tradução nossa]

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Tafuri tinha na autonomia da história um fundamento crítico para arquitetura. Isso significa que as transformações na arquitetura se davam por imperativos históricos, de fora para dentro; por exemplo, na ideia de que o desenvolvimento capitalista havia removido da arquitetura um elemento fundamental: sua ideologia.20 O argumento é que, enquanto neomarxista, o arquiteto italiano pontuava a importância de uma utopia que perdurasse a ligação entre arquitetura e sociedade, independente de tendências estilísticas – ou, em outras palavras, das determinantes estéticas. Para ele, sem uma prévia condição ideológica o drama contemporâneo “é ver a arquitetura obrigada a retornar à arquitetura pura, à forma sem utopia; no melhor dos casos, à inutilidade sublime.”21 Neste sentido, Tafuri combatia diretamente a redução da forma arquitetônica à pureza formal dos arquitetos modernos. Dado que a tarefa tradicional da crítica arquitetônica se desenvolveu a partir das suas estruturas internas, estruturando-se de um modo reflexo, falando de si mesma, analisando sua própria linguagem, a arquitetura modela-se na forma de um discurso contínuo e cerrado22. Tafuri diz: “a arquitetura que fala da arquitetura recusa, no fundo, entrar num diálogo profundo com a crítica.” 23Novamente, o aspecto crítico defendido por Tafuri é de fora para dentro e contra o hermetismo autônomo dos modernos. O posicionamento de Rossi era mais positivo comparado ao de Tafuri. Rossi buscava nos tipos históricos arquétipos formais passíveis de continuidade, isto é, buscava uma abstração de modelos histórico da arquitetura, uma abstração com carga semântica, capaz de ser utilizada em novos projetos e novos materiais. O posicionamento de Rossi não era crítico como o Tafuri, mas teve a importância deixar em aberto um caminho possível de ligação entre forma e história. Sobre sua obra Rossi nos conta em sua “Autobiografia Científica”: [...] continuo a minha arquitetura com a mesma obstinação e parece-me que este oscilar entre uma geometria rígida e histórica e o quase naturalismo dos objetos seja uma condição para este tipo de trabalho. 24 Esta ideia de oscilação entre forma histórica e forma literal de Rossi, ou mesmo o pensamento neomarxista de Tafuri, cada um à sua maneira, se apresenta enquanto crítica ao movimento modernista da arquitetura, especialmente naquilo que concerne à exclusão dos seus aspectos históricos, seja ele formal ou ideológico. 20  21  22  23  24 

TAFURI, Manfredo. Architecture and Utopia, p., ix. Ibid. [tradução nossa] TAFURI, Manfredo. Teorias e Histórias da Arquitetura, p. 165. Ibid. p. 159. ROSSI, Aldo. Autobiografia Científica, p. 126.

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A figura de Rossi nesse contexto, se não foi revolucionária, ao menos foi embrionária, tendo apontado uma possibilidade de se trabalhar a forma historicamente, porém descolado do historicismo. Essa é uma distinção importante cuja diferença reside na ideia do historicismo modernista, que Rossi acreditava ser um obstáculo para criatividade projetual. A respeito dessa questão em Rossi, Eisenman comentou: “Historicismo lida com causas e imperativos enquanto que a história centra-se nos efeitos ou fatos”.25 Utopias hodiernas: Archigram e o metabolismo japonês

“um limite não é aquilo em que algo se detém, mas, como reconheceram os Gregos, o limite é aquilo a partir do qual alguma coisa inicia sua presença”26 Heidegger O Archigram foi um grupo inglês de arquitetos ativos principalmente da década 1960 a 1970 cuja ironia característica era relativa à “obsolescência das construções” diante da velocidade das inovações tecnológicas e de como elas afetavam a vida humana. Embora irônicos, o movimento não era fundamentalmente crítico, essa característica se reforça pelo fato do grupo não ter um posicionamento político definido em seu discurso. Influenciados pelo The Independent Group – círculo de pintores, escultores, arquitetos, escritores e críticos atuante em Londres entre 1952 a 1955 e ligados ao ICA (Institute of Contemporary Arts), eles fundaram em 1961 a revista Archigram, que deu nome ao grupo, adotado definitivamente em 1963 – o epíteto refere-se à combinação das palavras inglesas Architecture e Telegram (arquitetura e telegrama), que já revela em si a verve comunicativa da expressão arquitetônica da vanguarda inglesa. O Archigram era formado principalmente por seis arquitetos: Peter Cook, Warren Chalk, Ron Herron, Dennis Crompton, Michel Webb e David Green. Seus projetos tinham uma forte característica comum de apelo ao um universo espacial e de ficção científica. Num momento histórico de grandes avanços tecnológicos na área da comunicação, que também vai definir parte da sua estética POP iniciada pelo The Independent Group, o que, no entanto, veio a mexer mais 25  EISENMAN, Peter. House of Memory. In: EISENMAN. Inside Out, p. 136. 26  Citado em: Frampton, Kenneth. A História Crítica da Arquitetura Moderna.

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com o imaginário destes arquitetos foi a corrida espacial da Guerra Fria, advinda na ressaca do fim da Segunda Guerra Mundial. Por um lado, o Archigram emergia de um contexto artístico POP, refletido em seus projetos com uma linguagem de metáforas complexas que se referiam às imagens do cotidiano – nas quais equipamentos eletrônicos (televisão, computadores e satélites) e o colorido do mundo das revistas em quadrinhos eram especialmente adotados, de modo superposto, na representação dos projetos. Por outro, o grupo buscava criar um mundo futuro, hipotético, apoiado na sofisticação técnica para uma projeção imaginária de cidades capazes de se autossustentarem num day-after (pós-armagedom). Projetavam, assim, megaestruturas que já haviam sido, à sua maneira, idealizadas pelo designer tecnocrata norte-americano Buckminster Fuller. O crítico de arquitetura inglês Reyner Banham disse ter sido Fuller o “paladino” e o “redentor” do futuro. Um exemplo paradigmático da adjetivação Banham foi a proposta de 1960 de Fuller para construção de uma cúpula translúcida gigante sobre a parte central de Manhattan que funcionaria como um escudo geodésico da cidade contra eventuais transformações da qualidade do ar. Embora o grupo inglês não tivesse uma preocupação específica com a questão social ou ecológica, em termos formais, o influxo das ideias de Fuller sobre os arquitetos do Archigram se viam retratadas em suas estruturas arquitetônicas pelo emprego de soluções high-tech (se apropriando do uso das tecnologias de ponta da época) que possibilitaram a projeção de um ideário futurista para a arquitetura e as cidades. O paradoxo do Archigram foi justamente buscar na tecnologia – visando à subsistência humana num suposto pós-armagedom – um meio de imaginar e projetar um universo espacial que não era adaptável às cidades e ao modo de vida existente, não estando, portanto, sujeito à execução. Em outras palavras, o projeto do Archigram, como um todo, foi um projeto teórico e utópico. Entre os que ganharam notoriedade podemos citar o Sin Center (Centro do Pecado – Mike Webb, 1959-62); Plug-in City (Cidade conectável – Peter Cook, 1964-66); e a Walking City (Cidade andante – Ron Herron, 1964). A Sin City, também chamada de Entertainment Palace tem em seu programa uma pista de boliche, um cinema, teatro, cafés e pistas de dança. Conta ainda com uma grande loja de departamentos e escritórios na parte superior. Os espaços, ainda que distintos, foram pensados para permitir a circulação por toda instalação. Para isso foi projetado um sistema de rampas que permitisse o trânsito de carros e

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estacionamento por todo complexo arquitetônico. Sua estrutura é composta por cabos de aço que suportam todo o corpo do edifício e os pisos são sustentados por vigas protendidas engastadas nas torres das escadas. Plug-in City – como o próprio nome sugere, o projeto de Cook é uma grande estrutura em rede, isto é, um enorme sistema de módulos arquitetônicos interligados, conectados por vias de acesso multifuncionais, ora suspensas, ora vinculadas ao solo, ao longo das quais serviços essenciais são distribuídos. Segundo Cook, “nesta rede são inseridas unidades que atendem a todas as necessidades [...]. Elas são servidas e manobradas por meio de guindastes que operam em trilhos situados no ápice da estrutura. O interior contém diversas instalações eletrônicas e mecânicas destinadas a substituir as atuais operações de trabalho”.

Figura 3.5  –  Plug-in City [Peter Cook]. Disponível em: .

Walking City – a cidade andante de Herron pode ser definida por uma descrição quase que literal da imagem de um préstito de edificações que se deslocam sobre a extensão territorial da cidade após uma catástrofe nuclear, como se fossem insetos mecânicos gigantes.

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] Figura 3.6  –  Walking City [Herron]. Disponível em: .

Outros projetos, como Instant City (Cidade Instantânea – Peter Cook, 196870) e a Inflatable Suit-Home (Casa Inflável – David Greene, 1968), também compunham o registro projetual de um esforço, mais do que progressista, de índole futurista, na medida em que se apresentavam mais proféticos e apocalípticos do que realísticos. Uma das exibições do grupo que refletia esse universo foi a Cápsula Archigram para a Expo’70 em Osaka, no Japão – em que foi possível reunir grupos e arquitetos que testavam as possibilidades de seus projetos para arquitetura e a cidade diante do novo contexto histórico que vinha se conformando no pósguerra. Assim, membros do Archigram, do Team X – como Giancarlo de Carlo – Christopher Alexander, Yona Friedman, junto com os principais representantes do metabolismo japonês, estavam ali reunidos expondo e testando suas idealizações megaestruturais. A afinidade do Archigram com a vanguarda japonesa se dava justo na idealização projetual de megaestruturas para arquitetura e as cidades. No entanto, diferentemente do grupo inglês, o metabolismo japonês tinha uma preocupação social que se apoiava, já em final da década de 1950, na superpopulação do país. Isto

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é, se por um lado o Archigram pensava a cidade pós-apocalíptica, as propostas do metabolismo refletiam a inquietação dos japoneses com o espaço urbano existente e sua alta densidade demográfica. Assim, os projetos eram pensados no sentido de suprir uma demanda espacial emergente – buscando uma verticalização modular na forma de arranha-céus e megaestruturas. Os principais membros do metabolismo japonês, dez anos antes da Expo’70 de Osaka, já eram representados pelos arquitetos que participaram do World Design Conference de 1960 em Tóquio, a saber: Noboru Kawazoe, Kiyonori Kikutake, Masato Otaka, Fumihiko Maki, Noriaki (Kisho) Kurokawa. Como dito, as concepções do movimento metabolista davam uma atenção especial à questão habitacional, e por esta razão mesma, suas formas e suas estruturas eram inspiradas nas tecnologias navais e aeronáutica. Não se tratava apenas de uma inspiração estética do transatlântico ou da aeronave, e sim do estudo da possibilidade de se criar estruturas arquitetônicas dentro do mar, isto é, que suportassem as variantes físicas marinhas – assim como aeronáuticas, no caso dos arranha-céus. Embora se diferenciasse do Archigram por terem um posicionamento político definido, de esquerda, a releitura que o metabolismo fazia do Construtivismo, apoiada nas novas tecnologias, acabavam por fim denotando também um caráter estético futurista de suas estruturas. Porém, o futuro do metabolismo não era apocalíptico e sim um progressismo marcado pela abdicação da fixação japonesa com a memória e a identidade. A esse respeito Noboru Kawazoe disse: “Nossa era construtiva será uma era de intenso metabolismo. A ordem nasce do caos, e o caos da ordem. A extinção é o mesmo que a criação [...], esperamos criar alguma coisa que, mesmo na destruição, conduza a uma nova criação. Essa ‘alguma coisa’ deve ser encontrada na forma das cidades que vamos fazer – cidades em constante processo de metabolismo”.27

27  KAWAZOE, Noboru. Metabolism 1960: The Proposal for New Urbanism. Bijutsu Shuppansha, p. 49, abr. 1960. Citado em: Cohen, Jean-Louis. O Futuro da Arquitetura desde 1889. São Paulo: Cosacnaif, 2013, p. 387.

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Figura 3.7  –  Nakagin CapsuleTower [Kisho Kurokawa].

Os projetos do metabolismo não foram, em sua maioria, construídos. Salvo exemplos como a torre de cápsulas Nakagin (1972), construída em Tóquio, (imagens), o Hotel Tokoen (1964) em Yonago de Kiyonori Kikutake, também de Kikutake a Casa no Céu (Sky House – 1958) e o Miyakonogo Civic Center (1966) de Kiyonori Kikutake. Podemos incluir também a obra de um arquiteto da geração anterior ao movimento Kenzo Tange, que conta, ao menos, com dois projetos reconhecidamente de tendência metabolista: as torres de imprensa e televisão Yamanashi (1961), em Kofu, e Shizuoka Broadcasting Center (1967), em Tóquio. Dos projetos não construídos se destacam a estrutura flutuante da Cidade no Mar (1958-59), de Kikutake; a Cidade Oceânica (1960), de Kurokawa e a Cidade Hélice (1964), de Kurokawa – cujas torres lembram espirais gigantescas de uma cadeia de DNA.

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Figura 3.8  –  Casa do Céu [Kiyonori Kikutake]. Disponível em:

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Eisenman e o pós-funcionalismo na arquitetura

Num ensaio dedicado especificamente à função na arquitetura, O Pós-Funcionalismo, de 1976, Peter Eisenman [1932-] parte da crítica a dois eventos que anunciaram euforicamente ao metiér da teoria da arquitetura de que acabávamos de entrar na era do pós-modernismo. Os dois eventos citados por Eisenman foram a Architettura Razionalle, na Trienal de Milão de 1973, e a École des BeauxArts, no MoMA de Nova York em 1975. O ponto crítico incide para o arquiteto no modo pelo qual tais eventos insistiam ainda manter seus discursos numa relação

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direta do par dialético forma (tipo) e função (programa). A primeira, em defesa de uma autonomia pura, portanto formal, contra um funcionalismo moderno ultrapassado; e a última, a favor de um resgate de estilos históricos do século XIX numa “afirmação implícita de que o futuro reside paradoxalmente no passado.”28 O que está em jogo na crítica de Eisenman aos detratores do funcionalismo moderno é justamente que estes ainda regulam, tal qual os modernistas o fizeram, seus argumentos dentro de uma dialética humanista. Isto é, o tipo de dialética que atua no projeto arquitetônico modernista – assim como naqueles defendidos na Trienal de Milão e na exposição da Beaux-Arts, e, ainda dirá Eisenman, no neofuncionalismo de Reyner Banham e do grupo Archigram – é de índole humanista e não moderna. O problema, na concepção do arquiteto, é que o projeto arquitetônico humanista havia encontrado seu limite já na era pré-industrial. A esse respeito ele diz: “No interior da prática humanista pré-industrial conseguiu-se preservar um equilíbrio entre eles (forma e função) porque tanto a função como o tipo (forma) foram investidos de uma visão idealista da relação entre o homem e o mundo objetivo. [...] O advento da industrialização parece ter rompido a essência desse equilíbrio. Devido à necessidade de compatibilizar problemas de natureza funcional mais complexa principalmente no que diz respeito ao atendimento a uma clientela de massa, a arquitetura foi se tornando uma arte cada vez mais social ou programática. E, à medida que as funções adquiriram maior complexidade, a capacidade de manifestar a forma-tipo pura foi erodindo”.29 Eisenman identifica dois impasses fundamentais que resultaram no “fracasso do humanismo”: o primeiro, de que as composições formais passaram, na era industrial, a deixar de obedecer a um imperativo moral para seguirem “fundamentos de natureza mais formal”; o segundo, de que o positivismo atrelado à ideia de funcionalismo também estava fortemente ligado a uma visão idealista da realidade. A consequência foi que esta ambição idealista do funcionalismo passou a ser a ética do form-giving30 por meio das “formas radicalmente desnudas da produção 28  EISENMAN. O Pós Funcionalismo. Em: Nesbitt. Uma nova agenda para Arquitetura, p. 97. 29  Ibid., pp. 97-98. 30  O termo form-giving, é relacionado tanto ao design quanto à engenharia, tendo no primeiro um caráter estético e no segundo a elaboração da forma, levando-se em conta as propriedades funcionais dos materiais. Em Eisenman, o termo está sendo utilizado para apontar a relação destes dois aspectos no funcionalismo da arquitetura moderna: o estético como resultante objetiva da funcionalidade estrutural das formas e dos materiais aparentes. Ver: ZAINAL ABIDIN, Shahriman; SIGURJÓNSSON, Jóhannes; LIEM, André; KEITSCH, Martina. On The Role of Formgiving in Design. EISENMAN. Post-Functionalism. In: EISENMAN, Inside Out, p. 85.

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tecnológica.”31 Tal ideia pode ser referida tanto à eliminação dos ornamentos, ética manifestada por Adolf Loos em seu ensaio paradigmático Ornamento e Crime, como à transparência e objetividade alemã, características do funcionalismo arquitetônico moderno. Para Eisenman a sensibilidade modernista não deveria estar apoiada neste novo modelo ético do funcionalismo uma vez que este nunca foi uma alternativa ao humanismo, mas sim sua “expressão tardia”. Eisenman está interessado em identificar um pathos legitimamente moderno para arquitetura, um que não seja o da pura objetividade (sachlichkeit) e do funcionalismo. Pathos é o elã de uma expressão artística, sua verdadeira vocação, seu apelo a um sentimento – no caso descrito anteriormente, a um sentimento de modernidade.

Neste sentido, ele considera que a arquitetura estava atrasada quando comparada a outros campos do conhecimento, pois ainda não havia promovido uma mudança de atitude cultural radical – isto é, atingido o tal pathos moderno – e entenda-se por atitude cultural o modo pelo qual uma disciplina lida com a dialética da forma/função. A esse respeito ele comenta: “[o] abandono das atitudes humanistas que prevaleceram nas sociedades ocidentais por mais de quatrocentos anos ocorreu em momentos distintos do século XIX e em áreas tão diversas quanto a matemática, a música, a pintura, a literatura, o cinema e a fotografia. Revela-se na pintura abstrata, não objetiva de (Casimir) Maliêvitch e de (Piet) Mondrian; na escrita atemporal e não vernacular de (James) Joyce e de (Guillaume) Appoliaire; nas composições atonais e politonais de (Arnold) Schönberg e (Anton) Webern; no cinema não narrativo de (Hans) Richter e de (Viking) Eggling”.32 Todavia, o arquiteto não está defendendo que abstração, atonalidade e atemporalidade sejam a essência do Modernismo. Com essas manifestações estilísticas o que podemos inferir é um “deslocamento do homem do centro do seu mundo.” É isso que estaria no cerne da questão para Eisenman. Isto é, o artista assumindo a crise do sujeito em meio à complexidade das linguagens preexistentes: “Derivado de uma postura não humanista com respeito às relações entre um indivíduo e seu ambiente físico, o Modernismo rompe com o passado histórico, 31  EISENMAN. O Pós Funcionalismo. In: Nesbitt. Uma nova agenda para Arquitetura, p. 99. 32  EISENMAN, P., loc. cit, p. 99.

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quer com as concepções do homem como sujeito, quer com o positivismo ético de forma e função. Por isso, não pode ser associado ao Funcionalismo. É por esse motivo que o Modernismo não foi até o presente elaborado arquitetonicamente”.33 O que podemos entender desse deslocamento do homem e da crise do sujeito moderno anunciado por Eisenman está na maneira pela qual o homem reage ao mundo em que vive – no modo pelo qual o indivíduo resiste e absorve a multiplicidade de linguagens que o mundo contemporâneo lhe impõe a cada momento de sua existência. No caso do sujeito arquiteto, na forma como ele elabora seu processo projetual face a essa multiplicidade de linguagens culturais possíveis, sem perder os laivos linguísticos da arquitetura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COHEN, Jean-Louis. O Futuro da Arquitetura desde 1889. São Paulo: Cosacnaif, 2013. EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004. EISENMAN, Peter. Written Into the Void. New Haven and London: Yale University Press, 2007. FRAMPTON, Kenneth (1997). Arquitetura Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997. JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo, Martin Fontes, 2007. KAWAZOE, Noboru. Metabolism 1960: The Proposal for New Urbanism. Bijutsu Shuppansha, p. 49, abr. 1960. LEWIS, Michael J. American Art and Architecture. New York: Thames & Hudson, 2006. NESBITT, Kate. Uma nova agenda para Arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006. ROSSI, Aldo. Autobiografia Científica. Lisboa: Edições 70, 2013. ROWE. Colin. The Architecture of Good Intentions, towards a possible retrospect. Italy: Academy Editions, 1994. TAFURI, Manfredo. Architecture and Utopia: Design and Capitalist Development. Cambridge, MA: The MIT Press,1979. TAFURI, Manfredo. Teorias e Histórias da Arquitetura. Lisboa: Presença, 1985.

33 

Ibid., p. 100.

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4 Pós-Modernismo

Pós-Modernismo O desafio de apreender as manifestações artísticas e arquitetônicas do período que vai de final da década de 1950 até início da década de 1990, chamado de pósmoderno, são fundamentalmente dois: O primeiro é o de entendermos os parâmetros socioculturais que, caso não definam, ao menos nos conscientizam da diversidade e heterogeneidade próprias do pós-moderno. O segundo, já consciente da diversidade coexistente das expressões socioculturais deste tempo histórico, é o de compreender justamente as diferenças entre os principais movimentos artísticos. Isto é, como a pluralidade pós-moderna se revela no modo da Arte Pop, do Novo Ecletismo Arquitetônico e do Minimalismo se apropriarem de aspectos distintos da vida pós-moderna: O Pop, se ocupando dos mecanismos da vida cotidiana em sua contemporaneidade. O Novo Ecletismo na identificação de uma linguagem interna da arquitetura e propondo novas composições a partir de tipos históricos. E o Minimalismo, na contracorrente da arquitetura, buscando a literalidade do objeto artístico e sua relação não histórica de presença com o contexto imediato.

OBJETIVOS •  Apresentar os parâmetros do pensamento sobre a sociedade pós-moderna; •  Expor as manifestações pós-modernas no campo da arte e da arquitetura: a arte e os novos meios de comunicação, a linguagem histórica da arquitetura e a relação do contexto com a obra de arte; •  Mostrar, por meio da organização tópica dos temas, que as manifestações artísticas e arquitetônicas pós-modernas se dão, cada qual; por vias distintas.

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A condição pós-moderna Pós-moderno: Designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. Jean-François Lyotard Este “estado da cultura” anunciado por Lyotard pode, grosso modo, ser antecipadamente interpretado, neste breve prólogo, como um estado das artes cuja diversidade, pluralidade e heterogeneidade cultural se tornam características marcantes de uma nova condição da vida em sociedade, a condição pós-moderna. O que está em jogo na ideia de uma pós-modernidade é todo um conjunto dentro do qual diversas posições passam a ser consideradas concomitantemente sem uma ordenação hierárquica de uma posição em relação à outra. trata-se mais de uma nova consciência do estado das coisas em relação à sociedade moderna do que a inauguração, propriamente dita, da diversidade cultural. A pluralidade já estava ali no moderno, basta nos lembrarmos dos “ismos” que coexistiam no período em suas contradições e oposições – capitalismo, socialismo, Cubismo, Dadaísmo, entre outros. O que parece ter mudado é a condição cultural da sociedade, que passou de uma pulsão totalizante, da crença de um ideal absoluto – próprio dos manifestos modernos – à resignação pós-moderna na qual uma posição já se coloca ciente da sua diferença. Isto é, ciente de que seu deslocamento em relação ao “outro” irá em direção mais a uma coexistência das multiplicidades latentes do que uma superação de classe de uma posição sobre a outra. Em termos acadêmicos, o pós-moderno tem uma forte relação com o pensamento norte-americano, embora tenha seu correlato no pós-estruturalismo europeu, mais especificamente o francês. No entanto, esta correlação guarda diferenças culturais significativas. Por exemplo, se por um lado o pós-moderno americano está lidando com a nova conjuntura na ciência e na cultura de massa, condições provenientes da modernidade – sempre a tomando como partido, ora de modo crítico, ora de forma irônica –; por outro, o pós-estruturalismo francês carrega uma forte índole filosófica cuja agenda é a desconstrução de toda uma tradição interna apoiada no estruturalismo, também francês, iniciado por Ferdinand Saussure (1857-1913). Em suma, o que os diferenciam é justo a vocação historicista do pós-moderno face ao caráter filosófico/linguístico do pós-estruturalismo.

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Não obstante, a questão da diversidade, pluralidade e da heterogeneidade cultural pode ser encontrado em ambos os discursos. Neste sentido, as formulações mais relevantes sobre a ideia de pós-moderno – a saber: as obras The Structures of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas)34 do físico norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), La Condition Postmoderne (O Pós-moderno)35 do filósofo francês Jean-François Lyotard (19241998) e The Condition of Postmodernity (Condição Pós-moderna)36 do também norte-americano e teórico sociopolítico David Harvey (1935-) – nos serviram de base conceitual para todo discurso que se segue nos campos específicos da arte e da arquitetura. Thomas Kuhn, na qualidade de físico, de homem da ciência, busca mostrar um conceito de ciência com base nos registros históricos da própria atividade de pesquisa. Segundo ele, sendo a ciência uma coleção de “fatos, teorias e métodos” registrados em textos o papel dos cientistas, para além da relevância de suas experiências, seria de colaborar para a construção deste acervo específico da cultura. “... a história da ciência torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos sucessivos a como os obstáculos que inibiam a sua acumulação”. No trecho anterior, Kuhn fala da importância das anotações das experiências científicas, não importando se foram ou não bem-sucedidas, como elementos necessários para a composição da história da ciência enquanto disciplina. Neste sentido, o novo historiador teria duas tarefas principais; uma seria a identificação histórica, determinação de datas e personagens, das conquistas e descobertas mais recentes no campo científico; e a outra, seria a descrição dos equívocos, “mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico”. O ponto de relevância de se registrar também os “erros” científicos seria o de esclarecimento às dúvidas quanto à contextualização do processo cumulativo – isto é, quanto à investigação do modo pelo qual cada contribuição individual havia sido formulada. Kuhn aponta que afinal estas dúvidas resultaram no que ele entende como sendo uma “revolução historiográfica no estudo da ciência”. Sobre esta nova abordagem historiográfica, ele diz: “Em vez de procurar as contribuições permanentes de uma ciência mais antiga para nossa perspectiva privilegiada, eles (os novos historiadores) procuram apresentar a integridade histórica daquela ciência, a partir de sua própria época”. 34  KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 35  LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. 36  HARVEY, David. Condição Pós-Moderna.

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O exemplo que ele traz é o dos estudos sobre a obra de Galileu. Os historiadores, neste caso, não teriam estabelecido uma relação das concepções de Galileu com as da ciência moderna e sim com as dos cientistas e professores contemporâneos ao mestre do século dezessete. Como dito, os novos historiadores estudam as opiniões sob a perspectiva de um grupo relacionado ao momento do fato histórico original. O que é significativo nesta ideia é que é geralmente estes relatos divergem dos realizados a partir da ciência moderna, e como consequência o que se é construído é uma ampliação contextual, uma narrativa que acaba por se consolidar com um alto grau adequação e coerência interna justo por terem sido expostas as contradições e resoluções das experiências científicas de seu tempo. Essa nova abordagem histórica insinua, na concepção de Kuhn, uma contingência para uma nova representação da ciência. A partir disso, uma questão é colocada pelo físico americano: “Que aspectos da ciência revelar-se-ão como proeminentes no desenrolar desse esforço”? A indagação recai sobre as consequências desta nova historiografia e a resposta dada pelo autor é que fundamentalmente se evitaria a insuficiência das diretrizes metodológicas que ditam uma única conclusão substantiva para várias espécies de questões científicas. Ou seja, é muito mais rico para o campo da ciência a ampliação do contexto histórico estudado, englobando as experiências “malsucedidas” do período, do que tentar esquadrinhar as conquistas científicas da época às realizadas na contemporaneidade. Ganhamos com isso, no panorama historiográfico, uma diversidade de problemáticas antes oculta pela história universal. O que é desconcertante no argumento de Kuhn é que o fato de ele ter identificado precisamente na história uma maneira de se trazer um maior esclarecimento para ciência praticada nos dias de hoje – justo para ciência, a mais progressista das disciplinas. Esse esclarecimento implica que é exatamente no momento em que os membros da comunidade científica não são mais capazes de se esquivarem “das anomalias que subvertem a tradição existente da prática científica” que as investigações extraordinárias aparecem, conduzindo a ciência a um novo grupo de “compromissos, a uma nova base para prática da ciência”. “Os episódios extraordinários nos quais ocorre essa alteração de compromissos profissionais são denominados (...) de revoluções científicas. Elas são os complementos desintegradores da tradição à atividade da ciência normal, ligada à tradição”. As revoluções de Kuhn podem ser relacionadas a princípio com o modo como Lyotard nos alerta, a respeito do conceito de pós-moderno, sobre a condição do

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saber nas sociedades mais desenvolvidas. Isto é, a ideia desta condição está diretamente ligada ao estado da cultura científica e seu estágio de desenvolvimento. Embora filósofo contemporâneo ligado ao pensamento linguístico, Lyotard entende que as transformações que tocaram de forma decisiva a arte e a literatura, assim também o fizeram com a ciência a partir de uma ideia similar ao argumento de Kuhn, através da crise dos relatos: “... a ciência entra em conflito com os relatos. Do ponto de vista de seus próprios critérios, a maior parte destes últimos revelam-se como fábulas. Mas, na medida em que não se limite a enunciar regularidades úteis e que busque o verdadeiro, deve legitimar suas regras de jogo. Assim, exerce sobre seu próprio estatuto um discurso de legitimação, chamado filosofia. Quando este metadiscurso recorre explicitamente a algum grande relato, como a dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza, decide-se chamar “moderna” a ciência que a isso se refere para se legitimar. É assim, por exemplo, que a regra do consenso entre o remetente e destinatário de um enunciado com valor de verdade será tida como aceitável, se ela se inscreve na perspectiva de uma unanimidade possível de mentalidades racionais: foi este o relato da Luzes, em que o herói do saber trabalha por um bom fim ético-político”. [...] Legitimando o saber por um metarrelato, somos conduzidos a questionar a validade das instituições que regem o vínculo social: elas também devem ser legitimadas. A justiça relaciona-se assim com o grande relato, no mesmo grau que a verdade. [...] Simplificando ao extremo, considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos”. Fica claro no trecho anterior que para Lyotard o pós-moderno se dá na crítica dos grandes discursos da filosofia tradicional, dos grandes metarrelatos, no sentido de que eles se posicionam como totalizantes e universais num momento em que a verdade na pós-modernidade se revelava cada vez plural e relativa. Lyotard aponta esta pluralidade e relatividade dizendo que as combinações de linguagem que formulamos não são absolutamente estáveis, e que seus atributos, por nós construídos, não são necessariamente comunicáveis. Para ele, no pósmoderno existe uma ampla diversidade de jogos de linguagem possíveis devido à heterogeneidade dos elementos. Neste contexto, ocorreu o desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação. Essa perda refere-se sobre tudo “à crise da filosofia metafísica e a da instituição universal que dela dependia. A função narrativa perde [...] os grandes heróis [...] e

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o grande objetivo”. O que está sendo indicado é a passagem de um estruturalismo para uma “pragmática das partículas de linguagem”, isto é, perdido então o elo semântico que atava de forma absoluta o ser e as coisas, passamos a este pragmatismo de fragmentação da linguagem na narrativa moderna. Assim, essa ideia de pragmática linguística levou a sociedade a um mecanismo de otimização das performances do sistema apoiado na concepção de eficiência e eficácia. O ponto crítico para o pensador francês é que esta pressão sobre o desempenho não se deu sem suas contradições: “Esta lógica do melhor desempenho é, sem dúvida, inconsistente sob muitos aspectos, sobretudo no que se refere à contradição no campo socioeconômico: ela quer, simultaneamente, menos trabalho (para baixar os custos da produção) e mais trabalho (para aliviar a carga social da população inativa)”. Essa contradição era latente à vida moderna, isto é, sem solução – até mesmo para o alemão Karl Marx (1818-1883), um dos maiores pensadores da modernidade. Isso implica que a resultante deste pragmatismo linguístico está carregada de dúvidas, de uma incredulidade irresolúvel. Face a esse contexto, a condição pós-moderna se posicionou numa nova perspectiva na qual se encontra deslocada tanto da utopia como da mera literalidade das coisas, dos fenômenos per se. Isto é, se posiciona numa atopia em relação à tradição narrativa, num estado intermediário entre os metarrelatos e as coisas em si. “A condição pós-moderna é, todavia, tão estranha ao desencanto como à positividade cega da deslegitimação. Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a legitimidade? O critério de operatividade é tecnológico; ele não é pertinente para se julgar o verdadeiro e o justo”. Diferentemente de Lyotard e Kuhn, o americano David Harvey aponta seu discurso sobre a pós-modernidade – não a partir das narrativas filosóficas/liguísticas ou científicas – mas diretamente à cultura artística: “Algo chamado pós-modernismo emergiu de sua crítica do antimoderno para estabelecer-se por si mesmo como estética cultural.” Neste sentido, o argumento de Havey ganha relevância para o campo da arquitetura e do urbanismo. Ele parte da análise da obra Soft City de Jonathan Raban: “Raban opôs a imagem da cidade como “enciclopédia” ou “empório de estilos” em que todo o sentido de hierarquia e até de homogeneidade de valores estava em vias de dissolução. Raban respondia com um quadro da cidade como labirinto, formado, como uma colmeia, por redes tão diversas de interação social orientadas para metas tão diversas que “a enciclopédia se torna um livro de rabiscos de um

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maníaco, cheio de itens coloridos sem nenhuma relação entre si, nenhum esquema determinante, racional ou econômico”. Embora sua abordagem se apoie evidentemente numa leitura das cidades, podemos identificar, em sua interpretação de obra de Raban, traços do que temos visto até aqui como “aspectos do pós-moderno”. Quando ele diz que “o sentido de hierarquia e até de homogeneidade de valores estava em vias de dissolução” esta anunciando a mesma fragmentação e heterogeneidade própria do pós-moderno – segundo, também, as formulações teóricas de Kuhn e Lyotard. As cidades nas palavras de Raban:37 “As cidades, ao contrário dos povoados e pequenos municípios, são plásticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos moldam por meio da resistência que oferecem quando tentamos impor-lhes nossa própria forma pessoal. Nesse sentido, parece-me que viver numa cidade é uma arte, e precisamos do vocabulário da arte, do estilo, para descrever a relação peculiar entre homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana. A cidade como tal a imaginamos, a suave cidade da ilusão, do mito, da aspiração, do pesadelo, é tão real, e talvez mais real, quanto a cidade dura que podemos localizar nos mapas e estatísticas, nas monografias de sociologia urbana, de demografia e de arquitetura”. Para Harvey, o momento crítico do discurso de Raban foi identificar a problemática por trás da mistura estilística do pós-moderno que não deixava de ser certo modismo, o qual sempre supõe um ‘imperialismo do gosto’. Na arquitetura pós-moderna, mais especificamente, isso se deu na tentativa de recriar significados de formas preexistentes e suas respectivas hierarquia de valores. “As próprias qualidades plásticas que fazem da grande cidade o libertador da identidade humana também a tornam especialmente vulnerável à psicose e ao pesadelo totalitário”. Refletindo sobre a etimologia da palavra no campo da arquitetura, Harvey está de acordo com Rabana respeito do “pós-modernismo” representar “alguma espécie de reação ao “modernismo” ou de “afastamento dele”. Para ele o próprio termo “modernismo” já é em si confuso – por sua ampla possibilidade de abordagem e significação dentro da história – e, neste sentido, não seria difícil de imaginar que a reação ou afastamento ao termo “pós-modernismo” o seria duplamente. Esta reação, Harvey demonstra em uma citação de Terry Eagleton, que transcrevemos aqui na íntegra: 37  Trecho citado por Harvey.

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“Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato pós-moderno típico é travesso, autoironizador e até esquizoide; e que ele reage à austera autonomia do alto modernismo ao abraçar impudentemente a linguagem do comércio e da mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e sua falta de profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas, por vezes com uma brutal estética da sordidez e do choque”. Outra citação, mais positivista em relação ao termo, é relativa aos editores da revista de arquitetura PRECIS 6 (1987, 7-24) que veem o pós-modernismo como uma reação legítima ao fastio do universalismo moderno: “Geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o modernismo universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção”. O pós-moderno, em contraste, privilegia “a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural”. Embora os argumentos de Kuhn, Lyotard e Harvey apresentem abordagens distintas sobre o pós-moderno, é importante retomar os parâmetros gerais de nossa breve introdução tópica sobre a ideia de pós-moderno e apontar como os aspectos da diversidade, da pluralidade e da heterogeneidade permeiam suas teorias. A partir destas, outras características se desdobram, como a fragmentação e a indeterminação, concepções que consolidam o pensamento pós-moderno enquanto um vigoroso ceticismo, crítico dos discursos totalizantes dos “ismos” modernos, indicando o arrefecimento das suas metanarrativas – da quimera de uma história universal.

A propaganda, a comunicação e os limites da arte Arte Pop

Inspirada e apoiada nos meios de comunicação de massa na cultura popular – como revistas em quadrinhos, magazines e a recém-chegada televisão, a Arte Pop contribuiu para mudar o rumo arte, ou melhor dizendo, da Arte Moderna, chegando ao ponto de teóricos como Arthur Danto38 (1924-2013) entender este momento como o sendo o fim da Arte Moderna – justo num período no qual 38  DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História.

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o expressionismo abstrato norte-americano havia atingido sua consolidação enquanto movimento artístico moderno de relevância internacional. Num sentido amplo, a Arte Pop surge na contramão da consagração da arte modernista, buscando a diluição das fronteiras entre a “alta cultura”, ligada ao sistema de arte das galerias, museus e às grandes obras da Arte Moderna, e a “baixa cultura”, associada ao conteúdo veiculado pelos novos meios de comunicação de massa, desenhos em quadrinhos, desenhos animados, o imaginário do universo espacial das histórias de ficção científica, as propagandas comerciais e as figuras públicas recorrentes nas manchetes de jornal – celebridades representadas por artistas e políticos. Embora mais ligada às obras dos artistas como Andy Warhol (1928-1987), Roy Lichtenstein (1923-1997), James Rosenquist (1933-) e Claes Oldenburg (1929-), que atuavam em Manhattan na década de 1960, quem iniciou o processo de trabalhar com uma imagética referente ao universo popular dos quadrinhos, da vida cotidiana e das figuras públicas foram os artistas, a partir da década de 1950, do The Independent Group em Londres.

Figura 4.1  –  Brushstroke, 1965. Roy Lichtenstein. Disponível em: .

The Independent Group, criado em 1952, foi uma reunião de artistas que se dedicava a debater tópicos relacionados ao ready-made, à ciência, à tecnologia e ao lugar da cultura de massa nas belas artes.

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Figura 4.2  –  Interior, 1964-5. Richard Hamilton. Disponível em: .

O grupo inglês contava com a presença, entre seus principais integrantes, dos arquitetos Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003), mais tarde membros fundadores da revista (e movimento arquitetônico) Archigram, os críticos Reyner Banham (1922-1988) e Lawrence Alloway (1926-1990), assim como, os artistas Eduardo Paolozzi (1924-2005) e Richard Hamilton (1922-2011). Outros artistas, como Peter Blake (1932-), Patrick Caulfield (1936-2005), David Hockney (1937-) e Allen Jones (1937-) foram, também, expressões importantes da Arte Pop na Inglaterra. A Arte Pop, assim, surge, especialmente na Inglaterra, da inquietação dos artistas ao refletirem sobre o conteúdo dado nas escolas de arte e as premissas das belas artes com o universo cotidiano à sua volta. Cotidiano este contaminado por imagens de propagandas, novas tecnologias, novos meios de comunicação (cinema, televisão, quadrinhos, entre outros) e pelo imaginário de ficção cientifica estimulado pela corrida espacial entre a os Estados Unidos e a União Soviética. Em Nova York, a característica mais marcante, que veio a diferenciar a Arte Pop americana da inglesa, foi a sua querela com o expressionismo abstrato. Se por um lado a pintura de Jackson Pollock (1912-1956), com seu drip – técnica de

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pintar sem tocar o pincel na tela –, promovia o que o crítico de arte norte-americano Clement Greenberg veio a chamar de all-over painting (pintura integral), isto é, uma pintura cuja superfície era não diferencial no que diz respeito à definição dos limites da forma; por outro, a Arte Pop americana tinha como aspecto de expressão pictórica a delimitação da forma por meio de linhas de contornos fortes e bem definidos. No entanto, seja em Londres, seja em Manhattan, o que está em jogo na estratégia “pop” da arte é o olhar crítico sobre uma tradição cultural, se apropriando, de um modo um tanto irônico, dos meios da cultura de massa, na medida em que, ao mesmo tempo que se apoderam das novas técnicas de produção, também lançam sua crítica ao novo modo de vida, tanto das celebridades como do cidadão comum – o ponto é que a Arte Pop se propõe a retratar o cotidiano contemporâneo, e não a sua celebração, partindo das novas técnicas de representação. Isto é, quando um artista como Warhol retrata a Marilyn Monroe ou o Elvis Presley, ele não o faz no sentido de uma reiteração de um mito, mas com o modo como ele próprio apreende estas personalidades – e nesse movimento, desvela e desfaz o mito mais do que o celebriza. Andy Warhol

Pelo que vimos no tópico anterior, podemos afirmar que a Pop Art tem um caráter urbano. Surgido nos anos de 1950, se desenvolve nas décadas seguintes tendo como principais representantes nos Estados Unidos Japers Johns e Andy Warhol, artistas que se inspiraram nos temas e imagens do cotidiano da sociedade como forma de expressão, criticando a massificação da cultura popular capitalista americana e fixando-se na estética das massas. O contexto cultural de Manhatan no qual Warhol vivia, era, naquele momento – devido ao deslocamento de Paris para Nova York de artistas como Piet Mondrian, Marcel Duchamp, e mesmo pela consolidação do expressionismo abstrato – o centro da Arte Moderna. Suas experimentações e exposições de certa forma puseram fim na história da arte vigente, num sentido de uma razão, de uma narrativa preexistente. O crítico de arte Artur Danton coloca Warhol sob o contexto de Manhatan, e reflete quanto ao fim da arte, segundo o preceito hegeliano, e a relação deste com a obra do artista. A tese de Danto diz que quando o tempo de suas obras passou, isto é, na posteridade das obras, Warhol pôde ser entronizado como artista, pois ninguém poderia agora repetir sua experiência artística, seu olhar sobre os acontecimentos

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de sua época – da Jacqueline Onassis no enterro do Kennedy, das latas de sopas Campbell – e os meios que adotou para transformar essa visão em arte.

Figura 4.3  –  Campbell’s Soup Cans, 1962. Andy Warhol. Disponível em: .

O que a Arte Pop de fato anuncia é que a verdade da produção não está no consumo, nem em toda tradição construtiva da Bauhaus, dos arquitetos, dos artistas, preocupados em espiritualizar o cotidiano através da produção em massa de objetos que semanticamente representam a abstração projetual do ato criativo. O Pop entendeu esse mecanismo e o converteu em expressão artística. No Pop, o que se consome na verdade é a imagem, não o objeto. A imagem para Warhol está ligada a um processo do consumo; nele, o que é consumido não é o produto e sim a imagem do produto, tanto que o produto vai recebendo imagens diversas. Isso, do ponto de vista racionalista do pintor abstrato Piet Mondrian e do arquiteto Walter Gropius, é a perversão absoluta do ideal de espiritualização, isto é, do elo das coisas com aquilo que elas representam. Em outras palavras, no Pop, o significado da coisa, do produto, da obra, é assumidamente diverso. Um exemplo disso é o fato de os quadros de Jaspers Johns terem alcançado o valor de 25 milhões de dólares no mercado da arte. O ponto é que um quadro nessa escala de valores desmente sua origem Pop porque vira um ícone, vira uma outra coisa, de espírito consolidado. Warhol, por outro lado, não tinha propriamente obras-primas, no sentido de que o que ele fazia era de uma outra natureza que se confundia, em certos casos, com o universo da propaganda. Durante muitos anos,

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qualquer pessoa com 10 mil dólares entrava em sua Factory e era fotografada. O próprio artista, ou quem quer que estivesse disponível, fazia o retrato.

Figura 4.4  –  Flag, 1954-55. Jasper Johns.

Warhol não democratizou a arte, mas trouxe o mundo da publicidade, o mundo da cidade, o mundo Pop, que se passava ao redor de todos, para dentro do processo da arte. Ele foi um inovador. Comparativamente, Roy Lichtenstein – pintor de excelência e contemporâneo de Warhol – era muito mais tradicional, no sentido de que muitas de suas telas, embora não transpareçam, eram pintadas a óleo. Por sua vez, Warhol dominava o silk-screen, entre outras técnicas, de um modo que obtinha destes mecanismos uma expressividade artística. Ele dizia que o “erro” da máquina era o gesto expressivo dele, sua assinatura – o “erro” se dava na repetição mecânica de impressão da imagem, quando a tinta, já no final e rala, fazia com que a imagem resultante fosse ficando tremida e esmaecida – este era seu gesto expressivo, “queria ser o Matisse, mas como eu não posso, quero ser uma máquina”39. Warhol tinha uma inteligência sobre a arte, sobre o processo da arte, e um conceito de arte, que fez com que muitos achassem ter sido ele quem melhor entendeu a obra de Marcel Duchamp, que entendia a arte já como o mundo da arte, isto é, inerente ao sistema da arte. Era a operação e o jogo que ele fazia com o conceito de sistema de arte, entre a peça e o espaço de exposição, que levou 39  WARHOL, Andy. The Philosophy of Andy Warhol (from A to B and Back Again). New York, London: Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1975.

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alguns a considerarem este movimento como sendo a própria arte contemporânea, pois toda sequência insólita e polêmica de seus ready-mades se mostrava estranhamente bela. ©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.5  –  Fountain 1917 – réplica 1964. MarchelDuchamp.

Duchamp era um gênio ético, um personagem invisível, um jogador de xadrez altamente intelectualizado e Warhol era frívolo, o anti-intelectual. Mas havia algo de duchampiano nele, pois seu momento era justamente a época da releitura americana de Duchamp. A estratégia desses dois artistas era de nunca estar onde esperavam que eles estivessem, nunca fazer o que era esperado pela sociedade e pela instituição. Se por um lado Duchamp problematizou o espaço da galeria de arte expondo nele objetos pré-fabricados, ready-mades como La Fountain (O Urinol), por outro, Warhol o fez de modo análogo na vernissage em que apresentou ao mundo sua Brillo Box – um bloco de caixas de sabão em pó que poderia ser encontrada, assim como as latas de sopa Campbell, na estante de um supermercado.

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Figura 4.6  –  Brillo Box, 1964. Andy Warhol. Disponível em: .

No entanto, o mundo em que Warhol vivia já era diferente. Isto é, na esfera pública, o American way of life das décadas de 1950 e 1960 era saturado mercadologicamente, se comparada à Paris da primeira metade do século XX – ambiente cultural de Duchamp. Também, a notoriedade da figura pública de Warhol, diferia da atitude reservada da vida pessoal de Duchamp. Todavia, a influência da obra do artista de origem francesa sobre as estratégias artísticas de Warhol é inegável. Duchamp procurou furtar da realidade comum objetos de pronta identificação em nosso cotidiano e colocá-los em um ambiente artístico. Porém, o estranhamento causado pelo ready-made duchampiano é distinto da obra de Warhol. O artista polonês, naturalizado americano, não se apropria literalmente de um objeto de uso comum do cotidiano, ele cria estes objetos. O que Warhol se apropria são imagens públicas e gera, a partir delas, a imagem da imagem, mexendo assim de forma inversa com os princípios da estética tradicional, rompendo a fronteira do mundo real (cotidiano) com o do artístico, em que tudo pode ser arte e passível de uma atenção desinteressada. O reconhecimento imediato do público no domínio do familiar se faz por meio da transfiguração do banal e da introdução de imagens publicitárias e ícones da cultura de massa no circuito de arte. Warhol buscava sempre surpreender. Entretanto, esta

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surpresa não era assim grandiosa, como a que promovia o movimento dadaísta de Duchamp, que era um escândalo. Se por um lado a personalidade de Warhol era exuberante diante da figura de Duchamp, o inverso pode ser dito a respeito de suas obras. A obra de Warhol se adaptava mais à realidade cotidiana, chocava menos que a de Duchamp, embora tratar-se também de arte experimental, de arte contemporânea, explorando e tensionando os limites do próprio conceito de arte.

Linguagem arquitetônica Rossi e Venturi: Contingências da linguagem arquitetônica

Em 1966, os livros A Arquitetura da Cidade, de Aldo Rossi (1931-1997), e Complexidade e Contradição, de Robert Venturi (1925-), apresentaram uma leitura das cidades e dos edifícios com base numa interpretação da arquitetura sob a óptica da linguística. No entanto, tal linguagem se diferenciava da linguagem clássica da arquitetura, isto é, uma linguagem arquitetônica independente daquela determinada pelos estilos de época. [...] “em Rossi e Venturi é a primeira vez que a ideia de um conceito linguístico específico da arquitetura, autônomo e descolado da ideia clássica de uma linguagem arquitetônica, é introduzido no contexto americano. Isso não é a simples ideia da linguagem como um conceito abstrato, mas, principalmente, a ideia de uma linguagem contínua da arquitetura, que num sentido existe fora – e portanto, autonomamente – de qualquer estilo, seja esse estilo Classicismo ou Modernismo. O que Rossi e Venturi estão dizendo é que a linguagem histórica, a qual havia sido perdida no impulso modernista, foi de fato constituída contra o vetor propulsor do Zeitgeist e, assim, ficou de fora tanto do tempo narrativo quanto do Zeitgeist”.40 Zeitgeist (do alemão – espírito do tempo) é um conceito filosófico desenvolvido no século XIX, mais conhecido pelas formulações do pensador germânico Georg Wilhelm Hegel que basicamente defendia a ideia de cada período histórico tinha seu espírito do tempo que determinava, no campo da arte, os estilos. Isso significava que cada época desenvolvia sua própria “linguagem” de tipos arquitetônicos e estilos artísticos.

Com isso, Peter Eisenman (1932-) indica que a linguagem arquitetônica proposta por Rossi e Venturi pode ser entendida como autônoma e descolada do 40  EISENMAN. Autonomy and Avant-Garde: The Necessity of an Architectural Avant-Garde in America. In: Autonomy and Ideology: Positioning an Avant-Garde in America, p. 73. [tradução nossa]

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“vetor propulsor do zeitgeist”. Isso implica o fato de que que Rossi e Venturi começaram a identificar alguns aspectos mais universais e atemporais da linguagem arquitetônica. Isto é, reconheciam e apresentavam arquétipos da forma arquitetônica que perduravam e atravessavam os tipos históricos. No entanto, o pensamento do século dezenove, embora trate da efemeridade dos estilos, dos modismos, também se pretendia um pensamento universal. Em outras palavras, se os tipos arquitetônicos eram tidos como reflexo de uma época ou período histórico, a teoria que assim os determinava era de índole totalizante, absoluta. Nesse sentido, Eisenman lançar um olhar crítico as obras de Rossi e Venturi apontando que os argumentos de ambos, contra as tendências progressistas modernistas, acabavam por ser “similares às várias teorias do século dezenove,”41 na medida em que tratavam mais das polêmicas progressistas do moderno, no sentido de resgatar o dado histórico como dado atemporal para valer de conteúdo “consolidado” para arquitetura. De todo modo, Rossi e Venturi podem assim ser entendidos enquanto arquitetos relevantes no contexto da arquitetura mundial a partir da década de 1960, cujas teorias influenciaram os caminhos da geração desconstrutivista, por ressaltarem o aspecto autônomo e a validade de algumas características históricas dos modos prévios de representação da arquitetura, descolados da tipologia moderna. A esse respeito Rossi diz: “Desprezava as recordações e simultaneamente valia-me das impressões urbanas, procurava por detrás dos sentimentos leis imutáveis de uma tipologia sem tempo [...]. O tempo da arquitetura não estava já na sua natureza de luz e sombra ou de envelhecimentos das coisas, mas propunha-se como um tempo desastroso que retoma as coisas”.42 O modo com que Rossi interpreta as organizações espaciais urbanas relatando que “os claustros e pátios, as galerias, a morfologia urbana dispunham-se na cidade com a pureza da mineralogia”43; nos leva a refletir sobre uma atemporalidade dos tipos arquitetônicos por meio de uma transliteração abstrata dos modelos históricos da arquitetura. Esses dois modos num mesmo pensamento – da pura abstração e dos tipos arquitetônicos – foram importantes para a arquitetura desconstrutivista, se não para todos, ao menos para alguns dos seus arquitetos, tais como Daniel Libeskind (1946-) e Eisenman. Em termos gerais, ambos reconhecem a importância e a permanência de certos tipos arquitetônicos e expandem a lição de Rossi, da leitura dos tipos, e de Venturi, 41  EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out, p. xi. [tradução nossa] 42  ROSSI, A. Autobiografia Científica, p. 42-43. 43 Ibid.

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no que concerne ao potencial da comunicação da forma arquitetônica. A questão da autonomia da linguagem arquitetônica em Venturi se encontra elaborada no seu livro Complexidade e Contradição, no qual defende a legitimidade da construção linguística da arquitetura como forma de ampliação do sentido. Num outro, posterior, Aprendendo com Las Vegas, uma análise dos modos de representação da arquitetura de Las Vegas demonstrou que sua comunicação pode se dar também pela persuasão propagandística, numa imagética de signos e simbolismos por meio da forma. O ponto de inflexão da lição de Vegas é compreender que o conteúdo das mensagens pop e o modo como ele é projetado não implicam a concordância com ele – aprová-lo ou reproduzi-lo. Se as persuasões comerciais que piscam de modo reluzente na Strip são uma manipulação materialista e uma subcomunicação insípida, que apela astuciosamente aos nossos impulsos mais profundos, operando através do engodo de mensagens superficiais com o intuito de que outras, subliminares, afetem nossos desejos mais básicos, isso não implica que nós, arquitetos, que aprendemos com suas técnicas, devamos reproduzir o conteúdo ou a superficialidade de suas mensagens – levando-se em conta o caráter permanente da arquitetura face a efemeridade da comunicação comercial.44 Quando a arquitetura assim se propõe a uma abordagem direta do simbolismo arquitetônico, sua comunicação serve ora às especulações pós-modernas para uma variedade de imagens meramente de cunho mercadológico e corporativo –expresso no “pós-modernismo” arquitetônico, como um pastiche de estilos históricos. Em outros casos, como em Libeskind e Eisenman, esta comunicação é elevada a um certo grau de complexidade cujo conteúdo não se revela de modo evidente na forma arquitetônica. Isso significou para arquitetura que sua forma pode conter discursos de outras áreas do conhecimento – embora, diferentemente de Venturi, os discursos que incidem na forma desconstrutivista sofram invariavelmente um processo de decomposição do seu sentido anterior tornando-se um signo de presença ausente – fragmentado e desmotivado. Retomaremos estas questões no próximo capítulo. O novo ecletismo na arquitetura

Entende-se por ecletismo arquitetônico na era pós-moderna uma nova atitude projetual em reação à arquitetura moderna. Grosso modo, o arquiteto do novo ecletismo retoma o espírito do século XIX da mistura dos estilos em reação à repetição monótona do revivalismo dos “neos”– neoclássico, neogótico, neobarroco, 44  VENTURI, R.; BROWN, D. S.; IZENOUR, S. Aprendendo com Las Vegas, p. 201.

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entre outros. Assim, a arquitetura eclética pós-modernista investigava e adotava elementos e sistemas oriundos da própria história da arquitetura, com o propósito de criar novas composições formais e novas relações estéticas a partir de uma articulação histórica de estilos. Depois da publicação em 1966 dos livros Arquitetura da Cidade, de Aldo Rossi e Complexidade e Contradição em Arquitetura, de Robert Venturi – nos quais a ideia de arquétipos tipológicos imanentes da arquitetura, em Rossi, e a identificação de uma tensão positiva nos maneirismos arquitetônicos e na integração de estilos, em Venturi –, a teoria da arquitetura passou reconhecer um tipo de autonomia ligada a certos elementos linguísticos da disciplina. O que estava em jogo era uma noção de continuísmo, de alguns princípios históricos da arquitetura. Tal noção levou a geração da década de 1970 e de início da 1980 a uma tendência ao que estamos chamando aqui de novo ecletismo arquitetônico. Sem linguagem ou estilo próprio, apoiado fundamentalmente na cultura arquitetônica, o novo ecletismo se propôs, na mesma medida em que se subjugou, a um anacronismo próprio da condição pós-moderna, de diversidade e heterogeneidade, por meio da investigação e opção de múltiplos momentos da história e da teoria da arquitetura. Dentro do próprio discurso teórico pós-moderno da arquitetura, já concomitante à vigência da produção do novo ecletismo arquitetônico, temos a figura do teórico e historiador norte americano Charles Jenks (1939-), que identificou parte importante dos arquitetos dedicados a esse tipo de arquitetura classificada por ele de radical ecletism (ecletismo radical). Em um dos seus livros, The Languageof Post-Modern Architecture, de 1991, Jencks anuncia a morte da arquitetura moderna e apresenta uma classificação que buscou enquadrar a ampla produção da arquitetura contemporânea de meados da década de 1970 até final de década 1980 (a primeira edição deste livro foi publicada em 1977, e não contava com parte da produção apresentada sobre o ecletismo radical).45 Para Jecks, a morte da arquitetura moderna teve data, hora e lugar marcados: Saint Louis, Missouri, 15 de julho de 1972, às 15h32m. Este foi o momento da implosão do edifício Pruitt-Igoe, um dos principais ícones, na América do Norte, da habitação popular. Nele haviam sido empregados os preceitos fundamentais da arquitetura moderna. Neste sentido, a implosão do Pruitt-Igoe, para Jecks, foi a metáfora da implosão do ideário modernista da arquitetura – isto é, da morte da arquitetura moderna. 45  O tópico Towards Radical Eclectism (Rumo ao ecletismo Radical – tradução nossa) foi publicado na terceira edição do livro em 1981.

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Figura 4.7  –  Edifício Pruitt-Igoe.

O Pós-Moderno de Jencks ia além da sua vertente eclética radical. Antes, ele reconhece, justamente na década de 1960 (década da publicação dos livros de Rossi e Venturi), o início de uma retomada historicista na arquitetura – e não devemos nos esquecer aqui da negação veemente a toda e qualquer expressão historicista da sua forma, desde a ojeriza de Adolf Loos aos ornamentos passando pelo modernismo arquitetônico. Essa retomada dos aspectos históricos da arquitetura nos anos de 1960 marcaria assim o início do período pós-moderno não só na concepção de Jencks, mas em todo um corpo de teóricos da arquitetura que naquele momento se manifestavam por meio de periódicos como a Perspecta, da Yale University e mais tarde, no final da década, na Oppositions, oriunda do IAUS (Institute for Architecture and Urban Studies). Em seu livro ele identifica e classifica a princípio os Modes of Architectural Communication [Os Modos de Comunicação Arquitetônica], abordando aspectos linguísticos das construções como a metáfora, o simbólico, o índice, o icônico, o sentido, o significado, a sintaxe e a semântica. Este primeiro momento do livro dá embasamento para a compreensão dos aspectos expressivos da arquitetura e, assim, para um entendimento das várias vertentes da produção pós-moderna entre os anos de 1960 a 1990: historicism (historicismo); straightr vivalism (revivalismo direto); neovernarcular (neovernarcular); ad-hocurbanism (ad-hoc urbanismo); metaphor metaphysical (metáfora metafísica) e post-modern space (espaço pós-moderno).

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Figura 4.8  –  The Portland Building, 1982. Michael Grave . Disponível em: .

Uma vertente em especial, o já citado radical ecletism (ecletismo radical) é que vai de forma mais contundente constituir uma reflexão mais ampla dos tipos consagrados da arquitetura compondo uma mistura, com citações – ora direta, ora indireta – de arquétipos formais que caracterizaram este momento da arquitetura. É importante dizer que essa vertente mais historicista foi defendida de modo notório por Jencks em seu livro, pela razão mesma dele próprio ser um representante da arquitetura pós-moderna de índole eclética. Dentro da produção do que chamamos de novo ecletismo e que guarda uma relação direta com o ecletismo radical, temos a arquitetura do próprio Charles Jencks e de outros como Ulrich Frazen, Leon Krier, James Stirling, Christian Portzamparc, ArataIsozaki, Michael Graves, Hans Hollein e Charles More. No texto de Jencks, todo o pós-modernismo arquitetônico foi classificado segundo sua visão. Uma visão paradigmática e que virou referência do pós-moderno principalmente dentro desta clave criada, defendida e denominada por ele de ecletismo radical, ou como adotamos aqui, de um novo ecletismo. Muitas outras expressões contemporâneas da arquitetura existiam na arquitetura naquele momento, algumas até citadas no livro de Jencks como subcategorias do que ele chamou de modos de comunicação arquitetônica. Uma delas, no entanto, muito importante do período – e que será abordada no próximo capítulo –, o desconstrutivismo arquitetônico, não foi contemplado em sua análise classificatória.

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Figura 4.9  –  Piazza d’Italia, 1978. Charles Moore. Disponível em: .

Minimalismo e Pós-Minimalismo: literalidade e contexto na obra de arte Minimalismo é mais uma classificação reducionista e coloquial direcionada a um mercado consumidor por um sistema de arte e acolhido pelo senso comum. Nenhum artista reconhecido como minimalista aceita este rótulo. Tais artistas estão de acordo que o caráter autoexplicativo da América é ser iludido por entretenimento e publicidade de toda sorte em uma sociedade de ilusões direcionadas. O questionamento, de cunho social, colocado pelo Minimalismo é o grau de impacto das obras face à inércia de uma sociedade consumidora. Seria este um apelo de comprometimento com valores de resistência a um sistema de produção de massa e a uma economia volátil. Apesar da abrangência que o termo possa alcançar, designar o que é arte minimalista, ou melhor, falar sobre Minimalismo, buscando identificar conceitos, características comuns ou os seus verdadeiros representantes é em si uma árdua tarefa que pode se ver frustrada em sua jornada. A dificuldade começa com as várias denominações atribuídas às primeiras obras do início dos anos 1960 como ABC Art, Rejective, Literalism. No entanto, dentro de uma perspectiva histórica, o termo Minimalismo é referido pela primeira vez à arte em 1937 pelo americano, nascido na Russia, John Graham. E foi o ensaio de Richard Wolhein, intitulado de “Minimal Art”, publicado em 1965 que deu notoriedade ao termo. Aqui, adotamos um critério em que o Minimalismo é visto como um período histórico mais do que um estilo artístico – embora guarde, entre a produção artística, capítulo 4

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algumas características comuns que as diferenciam da Arte Pop, por exemplo. A condição, assim, é a identificação de um grupo em um período determinado, por meio da avaliação do contexto em que tais obras de austeridade estilística se apresentam. Todavia, a coisa se torna complexa quando percebemos que cada artista neste período específico cria seu próprio contexto, isto é, cria seu próprio discurso, sua própria teoria artística. A razão desta mudança de atitude do artista minimalista foi a crise no campo da história, teoria e crítica de arte que se viu desprovida de argumentos diante de obras que se situavam nos limites dos campos artísticos. Levando em conta o radicalismo dos novos processos de elaboração da forma e os materiais utilizados por Donald Judd, por exemplo, poderíamos, afinal, considerar uma peça minimalista sua uma escultura? O que tínhamos então era uma carência de corpo crítico que pudesse validar esta produção. A consequência direta disto se viu retratada na forma de textos conceituais que acompanhavam os processos construtivos destas obras. Tais textos revelavam muito da intenção do artista nos seus processos de trabalho. Essa intencionalidade não se via refletida como um controle da resultante formal, mas como modos diferenciados de cada artista do processo de elaboração da forma – daí a razão de dizer que cada artista cria seu próprio discurso, seu próprio contexto, fugindo radicalmente de qualquer contexto preestabelecido ou preexistente. O efeito deste movimento é sabido enquanto característica fundamental dos objetos minimalistas, a saber, uma literalidade desconcertante na qual o vazio semântico da presença estrita da peça instala toda sua frivolidade no ambiente no qual se encontra.

Figura 4.10  –  Untitled, 1965. Donald Judd. Disponível em: .

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Nestes novos contextos podem-se identificar duas vertentes: uma que está referenciada às obras de caráter tridimensional com figuras geométricas espaciais simples e com um grau zero de expressividade e ornamentação, em que Donald Judd e Tony Smith são alguns dos seus representantes; e outra, que diz respeito à condição de não arte na utilização de objetos pré-fabricados como no caso de Carl André, Dan Flavin e Robert Morris. Estas tendências revelam em sua presença distinções óbvias que podem ser discutidas quanto à sua pertinência do ponto de vista da narrativa do artista para o esclarecimento da obra. O que está em jogo é: estas obras precisam ser esclarecidas? Ou se encerram na sua literalidade frívola, carente de significado? De um ponto de vista formalista como o de críticos como Michael Fried e de Clement Greenberg, tais distinções não servem a seus propósitos, uma vez que toda a produção minimalista, como a da pintura Frank Stella, dilui a fronteira formal existente entre pintura e escultura. Para Fried uma obra deve comunicar algo que está embutido em sua forma física, então, por sua posição em seu ensaio “Art and object hood”, o que lhe interessa é que estes novos artistas estão desafiando os paradigmas modernistas, os mesmos defendidos por ele, cuja presença de um objeto por si só, destituída de toda carga semântica, não o credenciaria como objeto de arte. Mesmo assumindo a distinção das duas vertentes supracitadas, Fried não vai abrir mão de suas “convicções”; para os trabalhos de Flavin e André que guardam características dos ready-mades duchampianos, Fried faz uma analogia direta das luminárias de Flavin e das cerâmicas de André com os ready-mades, classificando-os de meros objetos sem relevância artística. Da mesma forma, ele critica as obras da vertente de Judd e Smith dos objetos tridimensionais, apontando que estes não realizam uma transcendência de sua literalidade para o estado pictórico. Para Fried a escultura não pode ser um ready-made, a exemplo das lâmpadas de Flavin, e um objeto tridimensional literal não pode ser pictórico, como os quadros de Stella e os cubos de Judd. Já o ponto de vista de Rosalind Krauss, crítica de arte mais próxima dos conceitos desenvolvidos pelos minimalistas, vem a colocar Flavin e Judd, aqui apresentados em correntes distintas, em pé de igualdade no sentido em que, segundo Kraus, podemos perceber na obra dos dois uma permanência pictórica ainda modernista e acadêmica, o que explicaria seu fracasso como arte. O que é relevante ser analisado aqui não são as razões procedentes nos dois casos e sim a constatação irrefutável de que o contexto criado pelo artista está sujeito aos critérios de

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abordagem crítica do observador. Esta liberdade já se encontra institucionalizada e neste caso Krauss demonstra estar mais consciente desta nova condição analítica do que seus predecessores, não por sua análise específica da obra de Flavin e Judd, mas quando propõe uma leitura distanciada e deslocada do objeto para construção de uma nova sintaxe que redefina o significado e reposicione o espectador. Ela entende que o observador já não reconhece o significado no objeto, como pressupõem os próprios artistas, mas que, no entanto, o significado emerge agora de sua relação com outros objetos, com o próprio lugar específico em que se encontra. Nos escritos originais de artistas como Judd, Stella, Sol Le Witt e Morris o texto se desenvolve numa elaboração de conceitos que tentam justificar os processos construtivos de suas obras. No cerne da discussão das narrativas desses artistas sobre suas obras está a ideia de que eles produziam objetos de arte que impugnavam um caráter singular, estrito e inacessível da experiência comum. Esta contestação repercutia, no âmbito das artes visuais, às questões próprias dos filósofos interessados na linguagem verbal e a forma como ela comunica uma experiência interna, pessoal. Segundo Krauss46,o filósofo Ludwig Wittgenstein interrogou-se quanto à possibilidade de haver algo que pudéssemos classificar como uma linguagem particular, uma linguagem em que o caráter único da experiência interna do indivíduo pudesse determinar um significado. Assim, entende-se que não se pode conhecer verdadeiramente o que uma pessoa designa com as palavras que usa para descrever algo, já que aos outros não é dado ter essa experiência. Na impossibilidade de, por meio da palavra, expressar e exteriorizar uma experiência interna em que ela possa ser compreendida da mesma forma por todos, a linguagem estaria, assim, imersa em uma espécie de solipsismo no qual o significado verdadeiro das palavras seria dado a elas distintamente por cada indivíduo. Trazendo este conceito para escultura, mais do que uma mera presença, o objeto vai agora fazer parte do ambiente trabalhando com outras entidades de maneira descentralizada e redefinindo até mesmo a própria noção de espaço arquitetônico pela ampliação dos limites da escultura. Esta nova perspectiva “piagetiana”47 se refere à estrutura como algo que existe através das interações e são construídas pelos sujeitos, não sendo necessário que estes tenham consciência da obra construída. Mantém-se assim, para as obras minimalistas, uma esperança de inteligibilidade da realidade, em que uma estrutura exibe um caráter autônomo em relação a algo 46  KRAUSS, E. Rosalind. Caminhos da escultura moderna. Martins Fontes. São Paulo, 2001. Págs,: 291 à 33. 47  Jean Piaget (1896-1980). Estudou biologia e trabalhou nas áreas de educação, epistemologia e psicologia ficou conhecido por organizar o desenvolvimento cognitivo em uma série de estágios.

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externo a sua natureza. Isso pode ser exemplificado no modo como uma das obras de Morris, na qual peças idênticas em forma de “L” são dispostas aleatoriamente em um mesmo ambiente, permite ao observador presenciar visões diferenciadas destes objetos, seja pela sua luminosidade seja pelas suas relações espaciais com o entorno. Percebe-se assim o lado positivo da produção minimalista por rejeitar um centro ilusionista no interior de uma obra de arte, revendo a lógica de uma fonte particular de significado para novas possibilidades de leitura do objeto.

Figura 4.11  –  Untitled – Three “L” Beams, 1965. Robert Morris. Disponível em: .

Assim o campo da escultura é expandido e nela está implícito um duplo negativo referente à arquitetura e à paisagem como uma não arquitetura e uma não paisagem. Seguindo o raciocínio matemático estruturalista, esse conjunto binário negativo se desdobra em um quaternário no qual será possível, nesta equação, haver uma troca lógica de sinais, em sentido oposto, na qual a arquitetura passa da condição neutra48 de não paisagem para se tornar um complexo “arquitetura” e da mesma forma uma condição neutra de não arquitetura passa a ser alternativamente a condição complexa de paisagem.

48  A condição de neutro aqui exposta corresponde ao neutro do grupo matemático de Klein encontrado em seu texto conhecido como "Reflexos no espelho". O neutro é representado pelo numero zero designando seu contato ele próprio onde nada faz, se anula.

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Figura 4.12  –  Diagrama de Klein do Campo Ampliado, 1979. Rosalind Krauss. Disponível em: .

Esta lógica está associada ao Grupo Klein criado pelo matemático prussiano Felix Klein (1849-1925) e se caracteriza por ter uma função de transformação. O psicanalista francês Jacques Lacan, com sua lógica quaternária, exposta no seminário “A identificação”, transformará os laços cartesianos entre o pensamento e o ser (Penso, logo existo (Cogito ergo sum) – de Descartes). Mais tarde, no seminário “A lógica do fantasma” de 1967 (La logique Du fantasme) o cogito cartesiano é novamente retomado agora sob o prisma dos grupos Klein. Com a lógica da alienação (ou... ou...), Lacan encontrou uma alternativa de escritura para a falta original do sujeito. "O interesse desta teoria dos conjuntos é que ela introduz no pensamento matemático, sob uma forma mascarada, o sujeito da enunciação que vem, assim, se igualar à função de conjunto vazio. Isso justifica no cogito a passagem do "penso, logo sou", à sua negação "não penso, não sou", sob forma de uma reunião: reunião daqueles que negam a conjunção das duas proposições"49. Neste sentido, Krauss50 diz que Morris é o artista minimalista responsável por atingir essa condição de lógica inversa assumida na escultura: 49  VICTORIA, Ligia Gomes. Os grupos de Klein na obra de Lacan. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2006. 50  KRAUSS, Rosalind. The Anti-Aesthetic – Essays on Post Modern Culture. Sculpture in the Expanded Field. Washington, Bay Perss, 1984.

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“Os exemplos mais cristalinos do início dos anos 1960 que nos ocorrem, são ambos de Robert Morris. Um deles foi exposto em 1964 na Green Galery: dígitos quase arquiteturais cuja condição como escultura se reduz simplesmente a ser aquilo que está no quarto que não é realmente um quarto; o outro trabalho são caixas espelhadas expostas ao ar livre – caixas cujas formas diferem do cenário no qual se encontram somente porque, apesar da impressão visual de continuidade com relação à grama e às árvores, não fazem parte da paisagem.”51 O “complexo” arquitetura e paisagem é agora admitido dentro do problematizado campo ampliado da escultura, no qual são adicionadas duas categorias: locais demarcados em oposição às estruturas axiomáticas e local de construção em oposição à escultura. Isso é proposto no diagrama de Krauss como uma consequência lógica em que artistas como Robert Smithson com seus Earthworks, confirmam o raciocínio de Krauss ao trabalhar com a negação escultórica no campo expandido, ou seja, o local de construção.

Figura 4.13  –  Spiral Jetty, 1970. Robert Smithson. Disponível em:



A partir de 1968 tanto Smithson como Morris e outros artistas tais como Michael Heizer, Richard Serra e Walter Maria começam a ocupar estes novos campos de possibilidades para realizar trabalhos que já diferem muito dos primeiros 51  Tradução de Elizabeth Carbone Baez da “A escultura no campo ampliado”, Sculpture in the Expanded Field. Washington, de Rosalind Krauss para revista Gávea.

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trabalhos minimalistas do início dos anos 1960, e há naturalmente uma nova necessidade de classificação para esta nova condição artística, Krauss a chama de pósmoderna enquanto outros preferem pós-minimalismo. O Minimalismo e a Arte Conceitual aparecem aqui como duas linhas artísticas distintas que, cada uma à sua maneira, conseguiram ampliar as possibilidades para uma condição artística. Isso se deu tanto pelos caminhos apontados pelos diagramas de Krauss como pela crítica severa do artista conceitual Joseph Kosuth ao formalismo moderno apoiado na nova filosofia analítica. É importante frisar o fato de que nos dois casos isso se realiza por meio de uma abordagem linguística. Isto é, embora sejam abordagens diferenciadas, transpassam um mesmo campo do conhecimento, a linguística. Este caráter de abordagem linguística existente no Minimalismo e na Arte Conceitual mudou o rumo da arte até nossos dias. Parece que toda uma geração resolveu seguir os passos de Duchamp, em seu viés subversivo contra uma sociedade de valores arcaicos e inexoráveis diante do abismo existencial do mundo moderno. A reação destes artistas acabou criando um ambiente de efervescência intelectual e filosófica, no mundo das artes de Nova York, preocupada com as novas questões da linguagem e de como a arte assume seu lugar no mundo. É no ponto de intersecção da Arte Minimalista com a Arte Conceitual que temos uma pulsão para encontrar o conteúdo da arte fora do objeto. O Minimalismo e Arte Conceitual, assim, se valem mais pela sua capacidade de nos mantermos antenados a uma nova raison d'etre (razão de ser), não mais dada por virtuosismos segregados no indivíduo, mas na ideia da busca vanguardista do sentido inusitado que emerge da relação do objeto artístico, seja ele físico ou conceitual, no contexto cultural no qual está inserido.

EXERCÍCIO RESOLVIDO EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. JENCKS, Charles. The Language of Post-Modern Architecture. London: Academy Editions, 1991. KRAUSS, E. Rosalind. Caminhos da escultura moderna. Martins Fontes. São Paulo, 2001. KRAUSS, Rosalind. The Anti-Aesthetic – Essays on Post Modern Culture. Sculpture in the Expanded Field. Washington, Bay Perss, 1984. KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.

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LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Edições José Olympio, 1988. ROSSI, A. Autobiografia Científica. Lisboa: Edições 70, 2013. VENTURI, R.; BROWN, D. S.; IZENOUR, S. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo: Cosac&Naify, 2003. WARHOL, Andy. The Philosophy of Andy Warhol (from A to B and Back Again). New York, London: Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1975. SOMOL, R. E. Autonomy and Ideology: Positioning an Avant-Garde in America. New York: The Monacelli Press, 1997.

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5 Contemporaneidade na arte e arquitetura

Contemporaneidade na arte e arquitetura A noção de contemporaneidade, diferente da pós-modernidade, como pretendemos abordá-la aqui, se dá em dois movimentos. Estes se desdobram dentro do período da década de 1960 até inícios dos anos 1990. E suas características se distinguem tanto da revisão estilística pós-moderna dos “neos” e do novo eclético proposto pelo arquiteto e crítico Charles Jecks, assim como da literalidade fenomenológica e contextual das obras minimalistas e pós-minimalistas, analisadas no capítulo anterior. O primeiro está apoiado na ideia de conceito aplicado à Arte e à Arquitetura – na qual, ambos buscaram trabalhar, na virada da década de 1960 para 1970, em seus respectivos campos, jogos de linguagens com o intuito de se gerar novas possibilidades de sentidos da obra, seja artística, seja arquitetônica. Dentro de uma perspectiva histórica, do momento em que o conceito passa a ser relacionado mais conscientemente com a linguagem, identificamos algumas personalidades determinantes para esta estratégia específica, como os artistas Sol Le Witt (19282007), Henry Flynt (1940-), Joseph Kosuth (1945-) e o arquiteto Peter Eisenman (1932-) – cujo conceitualismo arquitetônico foi baseado na gramática gerativa de Noam Chomsky (1928-). Eisenman, é ainda a figura principal do nosso segundo movimento, o desconstrutivismo – que se inicia em finais da década de 1970 e vai até início dos anos 1990, tendo como corolário a exposição Deconstructivist Architecture do MoMA em 1988. Embora mantenha a referência no campo linguístico, a referência teórica agora é a desconstrução literária do pensador franco-magrebino Jaques Derrida, ele vai buscar a decomposição da forma arquitetônica por meio do que ele chamou de desmotivação do signo arquitetônico preexistente. Ou seja, no lugar da tentativa “pós-moderna” de se trazer para o presente o sentido de uma tradição, por meio da repetição tipológica, Eisenman partirá do estudo desta mesma tradição para desconstruí-la, rearticulá-la em outros sentidos. Nos dois movimentos a questão linguística está presente. Mas de um modo diferente daquela pós-moderna, da reutilização de tipos históricos. O que veremos aqui é a busca, por meio da linguagem, de novos processos de elaboração das expressões artísticas e arquitetônicas.

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OBJETIVOS •  Apresentar as estratégias da arte e da arquitetura contemporâneas como sendo distintas do movimento pós-moderno; •  Apontar a questão da linguagem como característica fundamental dessas vertentes; •  A partir da produção da arte e arquitetura conceituais e do desconstrutivismo, expor as problemáticas e avanços que essas tendências colocaram para o campo da arte em geral.

Arte e Arquitetura Conceitual Arte Conceitual

Sempre que a arte americana feita nos anos 1960 é abordada, mais especificamente a produção dos artistas de Nova York, encontra-se uma arte submersa em um mar de termos e tendências que é derivada de uma multiplicidade de artistas que ao mesmo tempo guardam algumas similaridades formais entre si e estão concomitantemente determinados por uma pluralidade artística que remonta à época das vanguardas históricas do início do século XX, que tinha Paris como seu centro artístico. A relevância de se indicar tal deslocamento histórico/geográfico, do centro mundial da arte, reside no fato de que as atividades artísticas ocorridas em Nova York na década de 1960 são frutos de um mesmo contexto social, cultural, político e econômico local, quando surge a reboque de acontecimentos políticos de mobilização internacional e de uma reação radical à assim chamada Arte Moderna. Mesmo antes da Segunda Guerra já havia na Europa um sentimento coletivo de pessimismo com relação ao mundo marxista e tecnicista. Dos últimos anos do romantismo alemão, no qual a filosofia de Hegel já anunciava o fim de uma época em que o mundo era regido pela vontade divina, até as primeiras décadas do século XX, pouco tempo se passou para que o homem europeu visse frustrado todo um universo iluminista defendido por ele. A tecnologia armamentista que dentro de um imaginário bélico e mecânico apontava para um futuro positivista da sociedade, mostrou muito cedo sua fragilidade com o evento e os resultados da Primeira Guerra Mundial iniciada em 1914. Muitas revoluções se deram neste momento. Com o surgimento do pensamento freudiano, a ideia de sujeito entra em crise, se transforma e isso se reflete

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tanto nas vanguardas positivas como nas negativas, mas não ainda ao ponto de chegar a comprometer definitivamente o legado iluminista e racional da cultura ocidental. Embora as vanguardas negativas – Surrealismo, Dadaísmo, Futurismo – tenham se aproximado mais desta ruptura, o impacto alcançado por suas atividades artísticas ainda não foi suficiente para atuar como transformação irrevogável do conceito de arte. Não obstante, o caráter conceitual das ações do artista Marcel Duchamp, por exemplo, mais do que sua obra propriamente, pode ser visto como uma semente de algo que veio florescer alguns anos mais tarde. A Arte Conceitual como movimento de vanguarda surge na Europa e nos Estados Unidos no final da década de 1960 e se desenvolve até meados dos anos 1970. A manifestação desta tendência é marcada pelo ensaio de Henry Flynt52 (1940), músico e matemático, chamado “Conceptual Art” escrito em 1961 e publicado 1963. Em seu texto Flynt diz (em tradução livre dos autores): “Arte Conceitual é, antes de tudo, uma arte cuja matéria é o “conceito,” por exemplo, para a música a matéria é som. Uma vez que os “conceitos” estão intimamente ligados com a linguagem, a Arte Conceitual vem a ser um tipo de arte em que a matéria é a linguagem. Isto é diferente, por exemplo de um trabalho de música, no qual a música é propriamente apenas o som, a Arte Conceitual envolverá a linguagem.”53 Neste contexto, da linguagem como matéria-prima para artes visuais, as possibilidades expandem-se, não só para “escultura”, “pintura” e arquitetura, que agora são passíveis de uma abordagem linguística, mas também para outras mídias como cinema, fotografia, performances e até mesmo a dança – já que todas carregam ao menos alguma característica da arte visual. Todavia, não é este o foco da Arte Conceitual, seu objeto está a serviço de uma ideia na mente do artista, e é nela em que ocorre seu sentido. Outra personalidade que se destaca neste contexto iniciado por Flynt, é a figura de Joseph Kosuth (1945), proeminente artista de tendência conceitual que trabalhou em colaboração com grupo Arte & Linguagem (Art and Language), surgido na Inglaterra entre 1966 e 1967 e que teve um papel importante tanto na divulgação como no desenvolvimento da noção de arte como conceito. O grupo composto inicialmente por Terry Atkinson (1939), Michael Baldwin (1945), David Bainbridge (1941) e Harold Hurrel (1940), publica em 1969 a primeira edição da revista ArtLanguage. Nela investiga-se uma nova forma de atuação crítica da arte e, assim como Kosuth, se beneficia da tradição analítica da filosofia – mais voltada para análise 52  Participava das reuniões de George Maciunas, idealizador do grupo Fluxus. 53  FLYNT, Henry. Concept Art. 1961. (tradução nossa)

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linguística dos textos do legado filosófico – para o fazê-lo. Neste sentido, Kosuth chama atenção para natureza tautológica da arte, declara o fim da filosofia tradicional e anuncia uma nova era marcada pela análise linguística: “O século XX trouxe à tona uma época que poderia ser chamada o fim da filosofia e o começo da arte. Não afirmo isso de maneira estrita, claro, mas sim como uma tendência da situação. Certamente a filosofia da linguagem pode ser considerada herdeira do empirismo, mas é uma filosofia de uma só marcha.54 E certamente existe uma condição artística para a arte que precedeu Duchamp, mas as suas outras funções ou razões de ser são tão pronunciadas, e a sua habilidade de funcionar claramente como arte limita a sua condição artística tão drasticamente, que ela é apenas minimamente arte”.55 Kosuth reconhece que não há um sentido de consequência entre o que ele considera o fim da filosofia e começo da arte, esta conexão realizada por ele é assumidamente uma arbitrariedade sua. Se por um lado, Kosuth estabelece esta ligação, por outro, nega haver uma conexão conceitual entre arte e estética. Ele levanta a questão da relação entre arte e estética, ou seja, toma emprestado o discurso da arte formalista para depois derrubá-la denunciando nela a perpetuidade de uma função estática da arte, relacionada a representações de valores de uma sociedade estratificada, que é mascarada por uma modernidade representacional que se renova em suas transformações de modelos formais. Assim, pode-se dizer que para ele a relação da estética com a arte seria a mesma da estética com a arquitetura, em que um pensamento estético seria estabelecido como uma função, função estética. Ele exemplifica a arquitetura das pirâmides do Egito que não trazem em si nenhuma relação com a “arte”. Desse modo, ele conclui que a estética não agrega as verdadeiras funções do objeto de arte – que Kosuth chama de “razão de ser” –, a não ser que sua função seja puramente estética como acontece com os objetos decorativos. A intenção do artista é fundamental para Kosuth, como ele (artista) articula suas ideias é o que estaria em jogo na Arte Conceitual, mais do que sua aparência estética. Kosuth chega a chamar a arte formalista da pintura e da escultura de vanguarda da decoração, entendendo que sua condição artística é tão reduzida que não se trata de arte e sim de “puros exercícios no campo da estética”.56 54  Kosuth afirma que tal filosofia assumiu é a única “função” que ela poderia realizar sem fazer afirmações filosóficas. 55  KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escrito dos Artistas, anos 60/70. p. 212 e 213. 56  KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escrito dos Artistas, anos 60/70. p. 215.

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O crítico de arte norte-americano Clement Greenberg aparece nesse contexto de Kosuth como um mero crítico do gosto, relacionando seu juízo estético como sendo simplesmente seu juízo de gosto, relacionado tão somente ao gosto em voga na década de 1950. Ele continua detratando o juízo de gosto de Greenberg por seu descaso com os quadros de artistas contemporâneos – minimalistas, mas já com certo teor conceitual – como Frank Stella e Ad Reinhardt, por não poderem ser aplicáveis dentro do esquema histórico/formalista do crítico. O ponto para Kosuth é que há uma consideração de que tal esquema formalista tem uma condição artística que é dada por um “conceito” formulado pelo artista minimalista Donald Judd que diz “se alguém chama de arte é arte”. Ele parece querer enfatizar assim a força de um conceito no processo de consolidação de uma obra enquanto arte por acreditar ser esta a única condição para tal. Está ao mesmo tempo enfatizado sua crítica a um suposto baixo grau de esforço usado pelos artistas, ditos formalistas, na realização de suas obras. Outro crítico formalista, Michael Fried, estaria, segundo Kosuth, do mesmo modo que Greenberg, alinhando a morfologia da arte formalista a uma arte tradicional por não levar sua crítica ao ponto de questionamento quanto à natureza artística de um objeto. Deixando o elemento conceitual de fora do processo analítico de uma obra, a justificação morfológica deste objeto estaria sendo realizada por meio de um “conceito a priori”, preexistente, que necessariamente mina a raison d’etre (razão de ser) crítica da arte, isto é, reprime a função crítica da arte. O que está sendo colocado é que o reconhecimento da natureza da obra é um caminho importante para o entendimento da função da arte. Nesse ponto retornamos a Duchamp em reconhecimento de ter sido ele o primeiro artista a levar para sua obra, de modo proeminente, a preocupação com a identidade da obra, mudando radicalmente a linguagem artística. Não se tratava de uma mesma linguagem que se renovava constrita em questões morfológicas, a questão agora é a função, mudando o foco da “aparência” para “concepção”. A obra de Willem de Kooning Erased (Apagado), apresentado por Robert Rauschenberg em 1953 aparece aqui também como um precedente histórico mais próximo a Flynt e a Kosuth que deflagra uma ideia conceitual de arte, a obra se constitui de um desenho realizado por Kooning – artista ligado ao expressionismo abstrato – a partir do qual Rauschenberg, com a permissão de seu colega, apaga e desfaz o gesto original. O resultado é um papel vazio quase em branco que questiona a noção moderna de arte quanto à sua materialidade e sua frivolidade conceitual. Nesse sentido o

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pensamento de Kosuth é consonante com o gesto de Rauschenberg e com rompimento da ideia da materialidade do objeto como condição sine qua non para a obra de arte. Começa-se assim ver a arte como uma tautologia na qual o que vale é a intenção do artista, e o objeto é sua mera apresentação de uma condição artística, sua estética não importa necessariamente, o que importa é a comunicação do conceito, esta podendo ser “realizada” de diversas maneiras – sendo uma delas a própria materialização do conceito. Assim entende-se que na Arte Conceitual, a atitude intelectual tem prioridade em relação à materialidade da obra, à sua aparência e ao seu meio de expressão. Sua realização não implica uma ação necessariamente direta do artista na produção do objeto, ela pode ser confeccionada pelas mãos de outra pessoa ou mesmo por uma máquina, como no caso de Duchamp e Warhol. O mais importante é a invenção da obra, o conceito. Diferentemente do caso minimalista no qual o mais importante era o processo, a ideia aqui já está pronta antes de virar obra. Arquitetura conceitual

A abordagem sobre a ideia de uma Arquitetura Conceitual – especialmente no período iniciado nos anos de 1960, que tinha como lugar de convergência das artes o distrito mais denso de Nova York, Manhattan – passa invariavelmente pela figura do arquiteto norte-americano Peter Eisenman. Arquiteto com escritório montado em Manhattan, Eisenman estava atento às vertentes artísticas do seu ambiente cultural – mais especificamente a Arte Minimalista, de caráter serial, mais ligada aos processos e a Conceitual. A influência desses processos em sua obra estão repercutidos tanto na sua arquitetura como na sua obra escrita. Desde os seus primeiros trabalhos, Eisenman vem processando a arquitetura como um sistema de significado cultural. Isso quer dizer que todo o processo de identificação da forma arquitetônica estaria apoiado no paradigma linguístico. Nesse sentido, a principal referência teórica do arquiteto foi a concepção do linguista americano Noam Chomsky de estrutura superficial e estrutura profunda, publicada no livro Syntactic Structures no ano de 1957. Segundo a sintaxe de Chomsky, uma estrutura superficial é a estrutura literal da palavra (o aspecto sensível da fonte usada, seu tipo e tamanho) enquanto a estrutura profunda é o desdobramento semântico da palavra (da estrutura superficial). Assim, uma estrutura superficial seria o caráter perceptual da estrutura e a estrutura profunda seria o seu caráter conceitual. Em termos gerais, uma estrutura profunda pode ser

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entendida como o significado por trás da palavra; isto é, aparece como uma estrutura conceitual predeterminada. O modelo de Chomsky serviu para descrever o processo no qual o ambiente físico da arquitetura é gerado a partir de uma série de regularidades abstratas formais que ocorrem num outro nível, no qual as relações formais interagem. O uso de Eisenman deste modelo tem implicações específicas que estão diretamente ligadas à concepção de interioridade arquitetônica já abordada. A interioridade arquitetônica deve ser entendida aqui como uma estrutura profunda, um conceito predeterminado, um datum. Podemos dizer que o trabalho de Eisenman busca o deslocamento da estrutura profunda da arquitetura – dos seus aspectos interiores. Partindo do paradigma linguístico, Eisenman lança duas propostas teóricas e similares: a Cardboard Architecture (arquitetura de papelão) e a Conceptual architecture (arquitetura conceitual). Ambas são teorias conceituais que trabalham com relações formais na arquitetura e já têm uma relação intrínseca com suas estratégias projetuais. A ideia de cardboard surge no texto Cardboard Architecture: House I and House II57, no qual Eisenman relaciona seu conceito às duas primeiras casas de uma de suas séries. O texto foi escrito para o livro Five Architects, publicado em 1972, resultado de uma reunião do grupo CASE (Conferência de arquitetos para estudo do ambiente, na sigla em inglês: Conference of Architects for the Study of the Enviroment que ocorreu em 1969 no MoMA. Peter Eisenman, Michael Graves, Charles Gwathmey, John Hejduk e Richard Meier compunham o que ficou conhecido como a Escola de Nova York: The New York Five (ou os cinco de Nova York). O grupo defendia uma proposta de continuidade do caráter inovador das vanguardas, como crítica aos preceitos do movimento moderno. Isto é, promovia um tipo de continuidade diferente das propostas por Aldo Rossi e Robert Venturi. Estes últimos, embora trabalhassem também a ideia da arquitetura como linguagem, buscavam a identificação de tipos arquitetônicos passados no contexto urbano real. Por sua vez, os Cinco Arquitetos queriam levar o discurso modernista (seu tipo específico) a uma etapa avançada, ampliando suas possibilidades a partir do interior das premissas formais do Modernismo, e não como resgate de tipos históricos, como proposto pelo pós-moderno – ainda que Michael Graves tenha, mais tarde, se tornado um importante representante da arquitetura pós-moderna. Em Eisenman, este avanço ocorreu por meio da ideia de cardboard, adotada por seu teor irônico dentro do contexto da arquitetura. O termo teria uma 57  EISENMAN, Peter. House I, House II. In: Row, Collin (Org.). Five Architects: Eisenman, Graves, Gwathmey, Hejduk, Méier. New York: Oxford University Press, 1975, p.15.

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conotação depreciativa no campo de debate crítico da arquitetura, “assim como foram o Barroco e o gótico quando usados pela primeira vez”.58 Muita coisa mudou nos anos que separam a tese de doutorado de Eisenman do ensaio Cardboard Architecture. O modelo para o novo discurso era claramente linguístico e oposto ao histórico-arquitetônico – o termo cardboard sugeriu tanto uma expressão estilística quanto a relativização da materialidade da arquitetura a fim de superar a presença. O conceito de cardboard59 foi importante na época porque incluiu o status do material na discussão sobre o formal e como aspecto crítico da interioridade arquitetônica. Eisenman60 resume o conceito de cardboard em três características fundamentais: 1. Cardboard questiona a natureza da nossa percepção da realidade e dos significados atribuídos a ela. Assim, não é tanto uma metáfora descrevendo as formas do edifício, mas sim sua intenção. Por exemplo: modelos são frequentemente feitos de cardboard (papelão), então o termo levanta a questão da forma em relação aos processos de projeto: isto é um edifício ou uma maquete? 2. Cardboard muda o nosso entendimento da forma existente, de um contexto estético e funcional para uma concepção da forma como uma marca ou sistema notacional, da forma como linguagem. 3. Cardboard é o resultado de um modo particular de transformação de uma série de relações primitivas, em um conjunto mais complexo de relações específicas, as quais conformam o edifício construído. Assim, Cardboard é a definição do espaço em uma série de finas camadas verticais e planares geradas por meio de uma representação diferenciada e particular de colunas, paredes e vigas. A ideia não é a percepção literal da superfície real como cardboard, mas da estratificação virtual produzida pela configuração particular do processo. Cardboard seria, enfim, a transposição de um conjunto de regras interiores da arquitetura para estruturas sintáticas, no sentido de gerar outra estrutura formal. Dentro desse conceito, a forma arquitetônica não é nem meramente forma e 58  EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004., p. 28. (tradução nossa) 59  EISENMAN, Peter. Inside: Peter Eisenman. Yale CriticalTexts: Peter Eisenman. Ed. Mark Rakatansky. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 20. 60  EISENMAN, Peter. Cardboard Architecture. In: Eisenman, Peter. Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004, p. 28.

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nem meramente signo funcional (portas, janelas, paredes) – mas um conjunto de relações arquetípicas que afetam nossa sensibilidade primitiva sobre o ambiente. Essas relações existem independentemente do estilo ou da forma superficial e são manifestadas e apenas entendidas em certas justaposições de sólidos e vazios. Esse foi um momento em que o modelo linguístico operava menos como uma analogia e mais como algo já existente na arquitetura, reprimido pelo caráter natural atribuído ao material, à função e à estética. “Neste sentido, a interioridade arquitetônica estaria operando entre a linguagem e o tipo”.61 A linguagem estaria propondo algo diferente de uma arquitetura com base apenas no estilo e na imagem. O modelo linguístico do cardboard seria distinto do adorado pelos outros integrantes do Five Architects – cujos trabalhos eram vistos como um revival americano do modernismo europeu. A linguagem compreenderia um conjunto de estruturas sintáticas preexistentes que poderia fazer referência a qualquer arquitetura. Essas relações são diferentes da ideia de uma norma arquitetônica e da ideia clássica de uma essência formal. Entretanto, poderiam ser consideradas como possibilidades informes a serem organizadas, ou seja, um caráter visual superficialmente desestruturado e aberto para diversas interpretações que se desdobram a partir de uma forma básica. A forma básica em si não se constitui de um estilo, tipo ou imagem arquitetônica previamente estabelecida. Assim, as tais possibilidades informes, que não são visíveis no espaço real da arquitetura, introduziram a ideia de conceptual (conceito). Em seus ensaios sobre Arquitetura Conceitual, Eisenman consolida a ideia da arquitetura como linguagem. Três versões são desenvolvidas sobre este tema: Notes on Conceptual Architecture, Noteson Conceptual Architecture II e Notes on Conceptual Architecture IIa (Notas sobre Arquitetura Conceitual, Notas sobre Arquitetura Conceitual II, Notas sobre Arquitetura Conceitual IIa). Cada uma pode ser encontrada em outras versões com subtítulos diferenciados, de acordo com a publicação. Essa é uma característica presente em alguns textos de Eisenman, mesmo nos mais recentes. Na definição do termo conceitual dada pelo arquiteto, temos, em primeira instância, uma distinção entre os aspectos formal e perceptual (definidos pelas relações de proporção de simetria e eixos) e os aspectos de ordem mental e não perceptual (que trabalham com noções como compressão e tensão); em segunda instância, a distinção entre os aspectos abstratos e materiais. 61  EISENMAN, Peter. Inside: Peter Eisenman. Yale Critical Texts: Peter Eisenman. Ed. Mark Rakatansky. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 22.

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Essa diferenciação feita feita a partir de duas questões conceituais na arte: uma, ligada à Art Language (Arte Linguagem), cujo objeto tem sua importância relativizada, podendo operar como uma abstração geométrica na representação de uma condição de não objeto; e outra, cujo objeto é autorreferencial – o objeto representando o próprio objeto – tal como manifestado nas pinturas de Frank Stella, Jasper Johns e nas estruturas primárias da Minimal Art (Arte Minimalista). A questão da autorreferencialidade é posta por Eisenman por meio de um pensamento sobre a relação entre a pintura e arquitetura. Para o arquiteto, existem dois tipos de pintura que sugerem uma condição de autorreferencialidade: de um lado, as abstrações de Mondrian, Malevich e Albers; de outro, as telas abstratas de Frank Stella e Jasper Johns. No primeiro ensaio de Notes on Conceptual Architecture há um argumento dizendo que tanto a pintura preta com linhas cinzas de Stella quanto a bandeira e o alvo de Johns estariam operando um tipo de autorreferencialidade, diferente do que existia no Modernismo do pré-guerra. No caso de Mondrian, Malevich e Albers, a autorreferencialidade seria uma abstração da forma figurativa62. Já nos quadros de Stella, a abstração diria respeito ao aspecto de condição imanente da tela que implica, no ato da pintura, o trabalho das bordas e das superfícies. No caso da bandeira de Johns, estaria implícito um movimento de abstração mais complexo, por envolver elementos de significado e valor icônico. Neste caso, Johns operaria uma tensão das proporções e das bordas tanto da tela quanto da bandeira. Reside nesta dupla autorreferencialidade crítica de Johns – entre a tela em si e o signo do objeto representado – a ideia de conceitual a ser transposta da arte para a arquitetura. No entanto, é importante dizer que o signo autorreferente se manifesta de forma diferenciada em cada disciplina. Na arquitetura, o signo figurativo é também imanente; ou seja, a representação de uma coluna (construída ou pintada) é vista como um signo da arquitetura além do seu caráter estrutural imanente. Por sua vez, uma bandeira não pode ser vista como signo da pintura e, a tela, entendida como signo da pintura, não é capaz (em sua autorreferência) de representar nada além de si mesma. A ideia é que mesmo as abstrações de Stella não poderiam ser classificadas como signo da pintura, muito embora tirem partido da configuração imanente da tela para a definição de sua forma. Notes on Conceptual Architecture, de 1970, foi um dos primeiros trabalhos críticos de Eisenman. O texto se constitui de um diagrama de treze pontos 62 

Ibid., p. 24.

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enumerados aleatoriamente em três páginas em branco; cada ponto corresponde numericamente a uma nota de rodapé. As notas funcionam como um índice conceitual daqueles pontos. Nas notas de rodapé, há uma referência bibliográfica à Arte Conceitual, à Arte Minimalista, à Linguística, entre outros. A questão a ser discutida reside agora na transição da Arte Conceitual para uma arquitetura conceitual. Em Notes on Conceptual Architecture: Towards a definition, de1971, esta transição é ainda desenvolvida como uma teoria. Como dito, Eisenman parte da linguística para viabilizar a ideia de arquitetura conceitual identificando, a despeito de suas diferenças, que tanto linguagem quanto arquitetura podem ser vistas em três categorias semióticas distintas: pragmática, semântica e sintática63: 1. Pragmática relaciona forma e função; 2. Semântica relaciona forma e iconografia; 3. Sintática distingue entre as relações das formas físicas de um espaço ou construção e os espaços conceituais de uma estrutura. A sintaxe faz o papel de mediadora entre o significado pretendido, derivado da estrutura conceitual (profunda), e as distorções possíveis desse significado operadas pelo observador. Dessa forma, o principal era a importância dada pelos estruturalistas à estrutura, o que nos leva além da função da estrutura ou da ordem imanente das coisas. O arquiteto pôs este jogo linguístico em contraste com a ordem hierárquica, mecânica e determinista dos últimos 300 anos na arquitetura, criando a partir daí duas ideias fundamentais para uma arquitetura conceitual: 1. que é possível (necessário) separar semântica e sintaxe; 2. que é com a sintaxe que podemos discernir entre sintaxe de superfície e sintaxe profunda. Notes on Conceptual Architecture é, obviamente, uma clara resposta às posições do artista minimalista Sol Le Witt a respeito da arquitetura expostas no texto Paragraphson Conceptual Art (Parágrafos sobre Arte Conceitual), de 1967, conhecido como o primeiro ensaio sobre conceitualismo. Le Witt argumenta que o papel utilitário da arquitetura e previne de se tornar uma forma de arte conceitual: 63  EISENMAN, Peter. Notes on Conceptual Architecture: Towards a Definition. In: Eisenman, Peter. Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004, p.11-27.

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“O que a arquitetura faz, seja um trabalho de arte ou não, precisa ser utilitário, senão ela fracassa completamente. A arte não é utilitária. Quando a arte tridimensional começa a assumir algumas das características da arquitetura, tais como formar áreas utilitárias, ela enfraquece a sua função como arte. Quando o observador é diminuído pelo tamanho de uma peça muito grande, essa dominação enfatiza a força física e emotiva da forma, pondo a perder a ideia da peça”.64 Eisenman está, a princípio, de acordo com o ponto de vista de Le Witt quando este diz que a diferença fundamental entre arquitetura e arte está no caráter funcional de utilidade apresentado pela arquitetura. Contudo, discorda que a presença de utilidade subtraia o conceito de um edifício. Seu ponto de vista é similar às propostas da Art and Language e das proposições de Joseph Kosuth, nas quais uma obra de arte conceitual relativiza a necessidade da confecção de objetos. Em Le Witt, o valor do objeto é o que dá entendimento sobre o conceito que, por sua vez, é gerado no processo de execução da peça. Já o arquiteto, assegura que as qualidades formais do trabalho não são importantes na medida em que contribuem para qualquer coisa menos para o entendimento do conceito. Assim, seguindo o paradigma linguístico, Eisenman acredita que arquitetura conceitual é legítima. A presença física de elementos funcionais não diminuiria a qualidade conceitual do trabalho; por exemplo, “se a Fountain de Duchamp funcionasse como urinol, conservaria sua qualidade conceitual desde que a relação da peça e o contexto da galeria permanecesse intacta”.65 A funcionalidade pode ser um elemento contido no processo de se fazer arquitetura sem que desempenhe um papel determinado dentro de uma escala hierárquica, da mesma forma que o componente perceptual da Arte Conceitual pode ser um aspecto presente. Isto é, pode-se transformar o signo de um edifício de tal forma que seu conceito é manifestado em sua leitura primária, enquanto sua função é perceptível após o conceito. O principal desafio para um arquiteto conceitual está em encontrar o método transformacional que gera espaço com esses significados profundos exclusivamente por meio da manipulação da forma.66 Neste sentido, a busca de Eisenman por alternativas estratégicas do modo de fazer e ver (ler) a arquitetura se traduz, a princípio, em uma série de projetos de casas entre finais das décadas de 1960 e 1970. As casas publicadas com textos e 64  LEWITT, Sol. Parágrafos sobre arte conceitual. In: Cotrim, Cecília; Ferreira, Glória (Org.). Escrito dos Artistas, anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 80. 65  HICKERSON, C. R. Three Essays on Concept in Art. London: Architectural Association School of Architecture, 16 January 2004, p. 7 (tradução nossa) 66  EISENMAN, Peter D. Notes on Conceptual Architecture: Towards a Definition. Casabella, December 1971, p. 359-360.

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imagens são as numeradas a seguir: Houses I, II, III, IV, V, VI, VIII, X e XIa. Destas, iremos analisaras duas primeiras cujos projetos participaram da exposição do The New York Five no MoMA de 1969: Houses I, II.

Figura 5.1  –  House I: perspectiva e diagramas axonométricos. 1968 (Peter Eisenman)

A House I foi a primeira da série de casas de Eisenman, projetada em 1968. Este projeto foi uma ampliação da casa de um colecionador de brinquedos em Princeton. Nestas primeiras casas (House I, II) o projeto releva a influência sofrida por Eisenman em seus estudos sobre a obra do arquiteto italiano GiuseppeTerragni na maneira pela qual decompõe o cubo. Sobre esta relação o crítico e arquiteto Rafael Moneo diz: “A malha estrutural abstrata que suporta esta casa é rarefeita – assim como em Terragni, em que não é produzido tal emprego irrestrito da estrutura corbusiana, mas o plano é submetido a uma cuidadosa elaboração das malhas que o geram e o estruturam, bem mais complexa que a simples condição homogênea da malha originária. Não são malhas indiferentes. Ao contrário, trata-se de malhas ativadas

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por aqueles primeiros movimentos – deslocamentos, translações – que permitem o começo do processo”.67 A House I parte da criação de duas retículas distintas sobre o cubo tripartido para a marcação da estrutura no espaço, gerando assim, duas estruturas simultâneas que se sobrepõem e interagem. Eisenman promove um deslocamento lateral entre as duas retículas dando lugar tanto a pontos de intersecções quanto a postos residuais. Dentro da configuração de cada grade existem elementos como pilares, vigas e janelas, que não podem ser mais identificados de imediato como agentes de sua função estrutural. Isso acontece porque a sobreposição das grades gera tanto elementos estruturais quanto elementos sem função; estes por sua vez, geram uma ambiguidade na percepção daquilo que aparentemente desempenha o papel de suporte, revelando o enfraquecimento de sua capacidade cognitiva enquanto significantes. Dessa forma, indaga-se: quais são os elementos estruturais?68 Esta ambiguidade de sentidos ocorre de forma autônoma com a relação formal entre signo e significante de um elemento arquitetônico (um pilar ou uma viga); isto é, independente do programa e da função estrutural. A função não deixa de existir, mas perde seu caráter de causalidade, na qual a forma segue a função; ou seja, ela existe, mas não corresponderá necessariamente à forma que tradicionalmente a simboliza. Assim, podemos encontrar elementos na casa que não desempenham função estrutural, embora pareçam como tal. Três destes elementos são colunas cilíndricas entendidas como os pontos de intersecção entre as duas grades geradas enquanto as colunas retilíneas (de base retangular) são vistas como elementos residuais deste encontro. É importante ressaltar que as marcações tanto cilíndricas quanto retilíneas das colunas não determinam se estas cumprem ou não seu suposto papel estrutural. Na verdade, as vigas expostas e as colunas de posicionamento livre – todo aparato de estrutura aparente encontrado na casa – são definidas como non-structural (sem função estrutural). Essa foi uma estratégia utilizada por Eisenman para induzir uma leitura que evidencia o aspecto semântico do sistema estrutural aparente; isto é, seu significado estrutural sendo tomado como imanente à forma, mesmo sendo non-structural. Um exemplo disso é a existência de duas vigas paralelas entre si e suspensas horizontalmente. Uma viga surge de uma parede e a outra de um pilar retangular; cada uma das vigas termina em uma das colunas cilíndricas existentes. Nesse caso, 67  MONEO, Rafael. Inquietação Teórica e Estratégia Projetual. São Paulo, Cosac Naif, 2008, p.146. (tradução Flávio Coddou) 68  EISENMAN, Peter. Cardboard Architecture, House I and House II. In: ROW, Collin (Org.). Five Architects. New York: Oxford University Press, 1975., p.16. (tradução nossa)

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nem as vigas nem a coluna cilíndrica exercem função de suporte da casa – ou seja, o complexo da coluna com as vigas mal suportam a si mesmos. 69

Figura 5.2  –  House I: sketches e fotos (pilar sem função estrutural).

Figura 5.3  –  House I: sketches e fotos (pilar sem função estrutural).

House II foi construída em Hardwick, entre 1969-70. A House II também segue o processo inicial da House I. No caso da House II, a diferença ocorre no processo de deslocamento diagonal e vertical das grades (na House I o deslocamento 69  EISENMAN, Peter. Misreading Peter Eisenman. In: EISENMAN, Peter. House of Card. New York: Oxford University Press, 1987, p. 174.

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é lateral). Se na House I Eisenman buscou o signo na redução da forma aparente a elementos non-structural (não estrutural) na House II, embora também exista essa preocupação, esse aspecto se fará por uma redundância explícita não funcional.

Figura 5.4  –  House II: deslocamento vertical da estrutura. 1970 (Peter Eisenman).

Figura 5.5  –  House II: perspectiva axonométrica.

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Figura 5.6  –  House II: fotos e diagramas axonométricos.

Figura 5.7  –  House II: fotos e sketches.

A casa tem dois sistemas de suporte: um de colunas; o outro, de paredes. Cada um destes sistemas estaria além de sua capacidade de cumprir suas funções estruturais. Desta forma, o excesso gerado pela sobreposição dos dois sistemas estruturais criou uma ambiguidade intrínseca: “[1] cada sistema estava suportando uma parte da casa; [2] os dois sistemas estavam suportando completamente a casa;

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ou [3] um sistema era o signo do suporte”. 70No excesso, surge a redundância e, a partir dela, um signo arquitetônico foi criado: “a função de cada sistema significou sua própria falta de função”. 71

Desconstrutivismo Pensar retrospectivamente o movimento desconstrutivista na arquitetura, implica lembrar dois periódicos de arquitetura encerrados em 2000, as revistas Assemblage e ANY, fundadas respectivamente por Michael Hays (1952-) e Peter Eisenman (1932-). O que é importante dizer sobre estas revistas, especialmente sobre o fechamento simultâneo das duas, é que ambas deram continuidade, durante a década de 1990 , à crítica teórica iniciada em 1973 pela revista Oppositions72 – na qual foram publicados uma diversidade de ensaios de tendências distintas que só por coexistirem já representavam um cenário de debate e abertura para a desconstrução arquitetônica. Não é, portanto, exagero dizer que o fim concomitante dos dois periódicos foi sintomático de uma crise da teoria na arquitetura. Não estamos iniciando aqui uma história contada de trás para frente. Apenas começando nossa exposição apontando o meio mais importante, a partir do qual foi possível a pluralidade e diversidade – própria da desconstrução – na narrativa arquitetônica. Também serve, desde já, para anunciar que este é um movimento que vem sendo duramente questionado, desde os finais da década de 1990. A Oppositions teve o mérito de concentrar todo o debate crítico da arquitetura contemporânea, contribuindo para o mapeamento da costa leste dos Estados Unidos, mais precisamente Nova York, como o lugar de convergência dos principais teóricos da disciplina. Eisenman, como fundador do IAUS (Instituto de Arquitetura e Estudos Urbanos, na sigla em inglês: Institute for Architecture and Urbans Studies) e editor-chefe da Oppositions, atraía as atenções para o seu trabalho e ganhava projeção de liderança no debate internacional. Autores de ideias distintas e antecessores do arquiteto, como Colin Rowe (1920-1999), Manfredo Tafuri (1935-1994), Aldo Rossi (1931-1997), eram postos na discussão ao lado de 70  EISENMAN, Peter. Misreading Peter Eisenman. In: EISENMAN, Peter. Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004, p. 215. (tradução nossa) 71 Ibid. 72  Em 1967 foi fundado o IAUS (Institute for Architectureand Urbans Studies), tendo Eisenman como primeiro diretor executivo. Em 1974, o instituto publica a primeira edição da Oppositions, uma revista de ideias e crítica na arquitetura. A revista foi publicada até o ano de 1984.

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teóricos contemporâneos como Rem Koolhaas (1944-), Anthony Vidler (1941-), Bernard Tschumi (1944), Kenneth Frampton (1930), entre outros. O debate levantado pela Oppositions, também abordado nas publicações da Perspecta73 e sucedido pelas revistas Assemblagee Any, transcorreu sob a influência inevitável do estruturalismo francês e do pensamento desconstrutivista – em voga no debate cultural da época. A ideia de ‘desconstrução’, importante no nosso enredo, estava alinhada aos principais argumentos de seus críticos e teóricos. A esse respeito, podemos dizer de forma sucinta que a palavra ‘desconstrução’ está diretamente ligada à teoria de Jacques Derrida (1930-2004), assinalando uma operação de indecisão dos limites da metafísica ocidental, na articulação de duas impossibilidades: de se estar plenamente dentro ou inteiramente fora; sustentando assim, um obscuro espaço intermédio. “[...] abandonar a referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a uma hierarquia absoluta”.74 Este era ponto nevrálgico da desconstrução para Derrida. Entretanto, a obra de Derrida não foi a única a ter forte influência entre o grupo de críticos que atuavam na Oppositions. O pensamento daqueles que contribuíram para o desenvolvimento e o uso da linguagem como possibilidade crítica à fenomenologia existencial – Ferdinand de Saussure (1857-1913), Roman Jakobson (1896-1982), a escola vienense de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o estruturalismo de Noam Chomsky (1928-), o pragmatismo de Charles Sanders Peirce (1839-1914) e o estruturalismo e pós-estruturalismo francês de Roland Barthes (1915-1980), Michael Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (19251995) e do próprio Derrida – era de alguma forma usado pelos autores da revista. Neste contexto, o problema do uso indiscriminado da linguagem na formulação teórica da arquitetura pode ser explicado através de um princípio básico do pensamento de Saussure75 na qual a linguagem é vista como um sistema estabelecido por um conjunto de diferenças. Isto implica que não podemos imaginar o resultado da linguagem como mero fruto de sua relação com as coisas que nomeia. O significado não seria assim produto de uma correlação predeterminada entre o signo e o significante – objeto que ele representa –, e sim decorrência de um sistema de diferenças entre os elementos que o compõe, que no caso de Saussure 73  Perspecta: The Yale Architectural Journal é uma revista criada pelo departamento de arquitetura da Yale University – YSOA (Yale School of Architecture) – no qual Peter Eisenman atua como educador. Editada hoje pelo MIT Press, a revista teve sua primeira edição em 1952. Ela tem contribuído ao longo dos anos de forma relevante para o desenvolvimento prático e teórico da arquitetura contemporânea. 74  DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença, p. 232. 75  SAUSSURE, Ferdinand. Course in General Linguistics.

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é dado pelos fonemas. É aí que reside a questão; o espaço em que ocorre esse jogo de diferenças é um campo indeterminado onde uma enorme variedade de significações é possível. É face a este aspecto de indeterminação e abertura, próprio da linguagem e da desconstrução, que se observa o arrefecimento e o fastio do discurso crítico na arquitetura. É a partir desta abertura que a crítica Sarah Whiting indaga: “[...] se uma multiplicidade de posições é permitida ou mesmo exigida, então como se julga o que constitui uma posição?”76 Diferentemente de Whiting, Michael Hays77 defende a desconstrução e a abertura que ela promove afirmando que a teoria da arquitetura está apoiada em: primeiro, numa perda de sentido da unidade daqueles objetos arquitetônicos e textos críticos da tradição modernista; segundo, numa tentativa de romper com a distinção entre arquitetura, objeto de arte e texto crítico; e ainda, numa promessa de desordem da “alta hegemonia monolítica do Modernismo e do dispositivo de autoafirmação ideológica”.78 Há então uma mudança de paradigma na teoria arquitetônica, na qual os objetos se tornam estruturas textuais, múltiplos e diferenciados. Surge, a partir desta consciência, o que Hays chama de object-text (texto-objeto), no qual o jogo intertextual de construção interna dos sentidos é evidenciado. Desse modo, o texto crítico deixa “de ser uma mera descrição interpretativa para alcançar o status de um object-text, uma ampla combinação de signos e códigos aberta a novas interpretações, jogos e reescrita”.79 De meados da década de 1970 à de 1990, é que estas teorias da desconstrução entram mais fortemente no discurso teórico dos arquitetos e abrem o campo disciplinar da arquitetura para uma complexidade maior para novas possibilidades formais. No projeto desconstrutivista não só a linguagem e a história puderam ser agregadas simultaneamente em projetos arquitetônicos, como também as áreas da filosofia, ciência, arte e outras narrativas que sugeriam um campo disciplinar de abertura extrema no qual a questão da sua autonomia começou a ser questionada até os dias atuais. A questão é que ficou difícil identificar num objeto arquitetônico desconstrutivista um sentido que faça referência aos limites internos do seu campo. E neste contexto de alteridade semântica da arquitetura, o que passa a ter importância e a ser identificado 76  WHITING, Sarah. Critical Refletions. Assemblage no 41, p. 88-89. (tradução nossa) 77  HAYS, K. Michael. Editorial. Assemblage no 5. The MIT Press, 1988, p. 4. 78  Ibid. (tradução nossa). 79  Ibid.

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como próprio do campo são os seus procedimentos de elaboração da forma. Isto é, o processo como ponto convergente das narrativas e das possibilidades formais. Quando da exposição Deconstructivist Architecture realizada no MoMA em 1988, que marcou a reunião de sete arquitetos – Peter Eisenman (1923-), Frank Gehry (1929-), Zaha Hadid (1950-), Coop Himmelbau, Rem Koolhaas (1944-), Daniel Libeskind (1947-) e Bernad Tschumi (1944-) –, ficou patente o ímpeto crítico às normativas formais, no qual o distanciamento estilístico se revelava em insólitas resultantes formais. Isso de certo implicou uma crise da autonomia enquanto autonomia estética, mas não o seu fim.

Figura 5.8  –  City Edge1987 (Daniel Libeskind). Disponível em: .

Segundo Philip Johnson, diferentemente da exposição de 1932 chamada Arquitetura Moderna – que reuniu grandes nomes do movimento modernista como Mies van der Rohe (1886-1969), Le Corbusier (1887-1965), Walter Gropius (1883-1969) e J. J. P. Out (1890-1963) em prol de um estilo de caráter internacional, o International Style – a exposição da Arquitetura Desconstrutivista não tinha um objetivo de estabelecer novas regras para arquitetura vigente. A esse respeito Johnson declara: “Arquitetura desconstrutivista não é um novo estilo”.80 Ainda, Mark Wigley [1956-] diz: “Desconstrução não é um método, uma crítica, uma análise ou uma fonte de legitimação. Não é estratégia. Não há um objetivo prescrito, o que não quer dizer que é sem objetivo. Ele se move de modo muito preciso. Mas não há um fim definido”.81 80  JOHNSON, Philip. Deconstructivist Architecture, p. 7. (tradução nossa) 81  WIGLEY, Mark. Architecture of Deconstruction, p. 29. (tradução nossa).

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A posição Wigley sobre a ideia de desconstrução arquitetônica é mais elaborada e vai além da mera ideia de negação dos estilos de Johnson. É justo nessa ideia de que o arquiteto desconstrutivista se move de modo muito preciso, mas sem um fim definido, que ele chama a nossa atenção para os processos de elaboração da forma e, portanto, para a questão dos procedimentos internos da disciplina. Mais do que uma questão formal, embora ainda fundamental, a ideia de processo se estabelece como meio de distinção entre os modos possíveis de se fazer arquitetura. Seja como referência ao construtivismo russo, seja como a transliteração do pensamento pós-estruturalista, o desconstrutivismo arquitetônico trata da crítica logocêntrica das suas formas e de seus fundamentos e isso se dá precisamente por meio do processo projetual. Crítico a qualquer polarização binária – ausência/presença, prática/teoria – o desconstrutivismo está alinhado às formulações da teoria linguística pós-moderna nas quais os signos perdem sua posição hierárquica de significante primordial, são desmotivados e passam a pertencer à categoria do excesso. Isto é, juntos, vários signos desmotivados e de temporalidades distintas são justapostos de forma a gerarem uma resultante formal de temporalidade própria, de um sentido singular. Sobre o aspecto autônomo e de continuidade da arquitetura desconstrutivista, o teórico Andrew Benjami (1952-) diz: “A história da filosofia poderia ser entendida como a reposição contínua de questões que raramente variam, tal que a história é a continuidade do always-the-same (sempre o mesmo). Entretanto, uma vez que um interesse crítico entra, então qualquer prática, enquanto continuidade, o realiza com o reconhecimento que a continuidade é em si um compromisso com sua própria possibilidade. Em outras palavras, não pode ser simples continuidade, nem pode a continuidade ser entendida como uma repetição dos mesmos elementos ideais. Continuidade surge, assim, como uma forma de descontinuidade”.82 Segundo Benjamim, uma obra, enquanto resultante de um processo, é um tipo de formalismo cujo potencial de transformação ao novo é dado no modo pelo qual a criticalidade se torna evidente com as contingências formais à continuidade. Isto é, o interesse crítico no processo, lugar das possibilidades formais, só ganha expressão na forma final se estiver lidando com a decomposição de uma continuidade histórica em prol de outra, livre de sua carga metafísica. Insistir na 82  BENJAMIN, Andrew. Passing Throught Deconstruction: Architecture and the Project of Autonomy. In: BENJAMIN. Architectural Projections, p. 118. (tradução nossa)

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criticalidade da forma em termos de continuidade, por um lado, reafirma o aspecto estético da autonomia; por outro, este aspecto ganha dimensão relativa à crítica da continuidade histórica dentro do processo, no caso da arquitetura, projetual. A esse respeito, da resultante contínua e autônoma da forma desconstrutivista, Wigley se manifesta de modo similar dizendo que a forma desconstrutivista é “uma condição estrutural estranha, um evento estrutural contínuo, um deslocamento contínuo de uma estrutura que não pode ser avaliada nos termos tradicionais, justamente, por ser a frustração desses termos.”83 Ainda, segundo ele, a arquitetura desconstrutivista: “não é a fonte de um tipo particular de arquitetura, mas uma investigação do papel discursivo contínuo da arquitetura. Como a tradição da metafísica é a definição da arquitetura como mera metáfora, qualquer rompimento do papel da arquitetura como uma figura é já um rompimento da metafísica. Isso não é o mesmo que dizer que este rompimento ocorre fora do reino dos objetos materiais. Ao contrário, isso é o rompimento da linha entre discurso e materialidade por meio da qual o sentido de um objeto material é entendido para ser um efeito discursivo. Não é que as distinções tradicionais, organizadas ao redor dessa linha, que são tão evidentes no discurso arquitetônico (teoria/prática, ideal/material, projeto/edifício, entre outros), desaparecem. Ao contrário, elas são complicadas em modos que transformam o status das operações discursivas familiares e expõe outras operações que são contínuas e produzem certos efeitos visuais, mas que não podem ser reconhecidas pelos discursos institucionalizados da filosofia e da arquitetura”.84 Pensar a arquitetura desconstrutivista como uma investigação do papel discursivo contínuo da arquitetura é pensar complexamente. É derrubar alguns preceitos históricos sobre autonomia, mas sem intenção de negá-la. E é precisamente este não negar a ideia de uma arquitetura preexistente que reside a possibilidade de crítica, de um objeto existente passível de crítica. [...] autônomo é aquilo que sempre se esforça para superar a resistência cognitiva entre signo e figuração.85 Desconstrução em Eisenman

Como vimos no tópico sobre a Arquitetura Conceitual, Eisenman, munido da definição de Chomsky de estruturas de superfície como a manifestação 83  WIGLEY, Mark. Architecture of Deconstruction, p. 29. (tradução nossa) 84  Ibid., p. 30. 85  EISENMAN, Peter. Autonomy and the Will to the Critical. In: EISENMAN. Written into the Void, p. 99. (tradução nossa)

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perceptual externa das estruturas profundas fundamentais, conclui que existe uma contingência para um estado de originalidade da estrutura, na qual pode produzir significado a partir de si próprio e assim tornar disponível um novo nível de informação. Sobre este tópico o professor inglês Clive Knights argumenta: “O projeto, então, propõe abrir as possibilidades de significado, explorando as estruturas profundas sintáticas inerentes, trazendo-as à superfície do trabalho arquitetônico de tal maneira que ele se apresente como fenômenos primários organizados”.86 O objeto não é o mais importante, pois é ele quem vai agora apresentar o projeto, um projeto virtual em processo, de formas inacabadas e sem ênfase na função utilitária, invertendo o sentido e a finalidade do desenho de mera ferramenta de execução, de um objeto encarnado, de um sentido determinante, de uma época, uma cultura e uma história. O colapso dos sentidos na nova linguística estrutural se diferenciava das verdadeiras intenções puristas e construtivas de Eisenman. Enquanto Chomsky buscava alcançar uma competência linguística levando em conta estruturas universais preexistentes, Eisenman rejeitava qualquer contexto ou intencionalidade expressiva, mesmo em uma matriz subjetiva de sentido. Uma vez avaliadas as casas em série produzidas por Eisenman, pode-se concluir que se trata de outra gramática, diferente de Chomsky, uma gramática que não remete a nada, apenas se autorreferencia no andamento dos processos nos quais ela está inserida. Dessa forma, Eisenman vai entrando em contato com o pós-estruturalismo francês, que por sua crítica ao racionalismo moderno, serve de fundamentação para o anticlassicismo do arquiteto. A linguagem da arquitetura de Eisenman é decomposta e os signos seguem à deriva, em significações oscilantes rumo à desconstrução. Segundo Diane Ghirardo87, Jaques Derrida (1930-2004), com sua teoria da desconstrução, teve uma influência sem precedentes na arquitetura, apesar de concordar em essência com os estruturalistas a respeito das fontes do significado. Seus argumentos passaram a abordar criticamente a tradição ocidental que, segundo ele, sempre funcionara de maneira tal que as bases estruturais do significado podem ser elucidadas fundamentando-se na existência de Deus, da natureza, da história ou da ciência. Isto, para ele, não se constitui como verdade, apesar dos estudos filosóficos sempre terem sido realizados com base nessas possibilidades. Sua crítica desconstrutivista propõe uma estratégia de análise serial e constante das grandes obras da tradição ocidental, focando a incoerência fundamental dos 86  Ibid. (tradução nossa) 87  GHIRARDO, Diane. Arquitetura Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26-35.

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textos, em detrimento de uma ordem estabelecida e rejeitando a clara e direta relação entre os objetos e a linguagem usual. O significado, assim, seria gerado pela ausência de estabilidade na linguagem e não pela intencionalidade humana. Knights diz que no contexto do estruturalismo, Eisenman e Derrida utilizaram a instabilidade para seus próprios fins criativos e problemáticos como uma proposta de desconstrução da metafísica ocidental: a renúncia da validade da identidade transcendental e uma justaposição inativa de inúmeros termos neutralizados negaram a possibilidade de um fundamento no mundo. Num mundo globalizado, no qual a inércia tecnológica domina como um remanescente contemporâneo da filosofia ocidental, Eisenman e Derrida estão desconstruindo a linguagem a fim de atingir um domínio em que não há começo, não há limites e, fundamentalmente, uma ideia absoluta de história linear não pode ser mais concebida – uma história que só pode ser sequencial e progressiva com início, meio e fim. Há um paradoxo surgindo a cada instante e que continua nesta discussão como algo obscuro e incompreensível. Eisenman, questionando o valor da representação, substitui a condição do modelo, pela condição de não modelo. Acreditando que ao não representá-lo, estaria, assim, movendo-se para a liberdade de não representar modelo algum. Isto é, o livre representar per se (por si mesmo), como uma atividade pura em seu próprio direito, não exigindo nenhum incentivo externo. “A inferência é que a arquitetura tem uma realidade legítima [...] – sua condição como um meio representativo – e que sua nova tarefa é representar essa realidade. Assim, tem-se que acolher o paradoxo; tem que reconhecer sua realidade como uma mera representação, mas ao mesmo tempo nos dizer sobre o seu lado obscuro, sua realidade escondida [...]. Uma representação de si mesma, de seus próprios valores e experiência interna. A arquitetura como representação é afirmada e negada ao mesmo tempo”.88 A ideia de desconstrução em Eisenman parte de uma nova consciência que problematiza, mais do que nega, a origem histórica dos aspectos interiores da arquitetura. Ou seja, uma consciência crítica que questiona o caráter de condição natural e irrefutável dos conteúdos racionais e programáticos tanto dos tratados arquitetônicos quanto do idealismo moderno da arquitetura. Eisenman parece não apenas gozar de uma consciência crítica em relação à arquitetura moderna, mas ainda demonstra estar direcionado a uma investida projetual, na qual assume a impossibilidade de se poder traduzir uma teoria ou proposta em uma 88  KNIGHTS, Clive R. The fragility of structure, the weight of interpretation: Some anomalies in the life and opinions of Eisenman and Derrida. In: BORDEN, Iain; RENDELL, Jane. Intersections: Architectural Histories and Critical Theories. UK: Routledge, 2000, p. 71. (tradução nossa)

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materialidade física da arquitetura e vice-versa. Entretanto, ele confere ao texto arquitetônico uma importância ímpar na sua estratégia projetual. Se o texto não pode ser representado pela forma ou mesmo representá-la, será, no entanto, parte da leitura do que ele veio a se chamar de arquitetura não clássica. No texto O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim89, Eisenman toma como principal argumento a questão da periodização histórica. Recorrendo ao conceito de corte epistemológico90 de Michael Foucault, ele dirá que tal ruptura histórica ainda não ocorreu na arquitetura. Por essa razão, a arquitetura manteria assim três instâncias clássicas na disciplina: representação, razão e história. Na primeira, a ficção da representação está relacionada com a simulação do significado, na qual Eisenman identifica uma excessiva concentração de energias criadoras no objeto representacional; na razão, com base no valor clássico, é atribuída à ideia de verdade, ou seja, a simulação da verdade; e a terceira relata a ficção simulada da história do movimento arquitetônico moderno como reflexo do presente e do zeitgeist que poderia remeter simultaneamente ao atual, ao eterno e ao universal. Assim, Eisenman, com a sua crítica ao realismo e ao funcionalismo, propaga o fim do clássico e o fim destas três ficções convencionais. Para isso, Eisenman vai deslocar o sentido do termo episteme encontrado em Foucault, invertendo o sentido atribuído ao clássico e ao moderno. A ideia é quebrar com a estratégia de composição clássica, sua proporção e a tradição figurativa da arquitetura. Eisenman elege então uma secção na episteme dita clássica para uma não clássica, uma vez que julga ser a instrumentalidade entre forma e função, um aspecto determinante da arquitetura clássica que operaria como elemento limitador para a geração de novas formas arquitetônicas. Este corte epistemológico é identificado por meio de uma análise crítica distinta das três ficções citadas acima: representação, razão e história. Eisenman não estaria assim propondo um modelo alternativo e sim buscando uma estrutura de ausências, uma estrutura que não estaria a serviço da reconstituição de algo previamente concebido. A ideia é de uma criação arbitrária, de uma artificialidade isenta de significação, diferente da qual Baudrillard chamou de simulação. Esta outra concepção de criação seria da ordem da dissimulação. A diferença entre simulação e dissimulação é dada da seguinte forma: a simulação tentaria esconder a diferença entre o real e o imaginário, enquanto a dissimulação 89  EISENMAN, Peter. O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim. Publicado em: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006, p. 233-252. 90  Ibid., p. 233.

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deixaria intocada a diferença entre a realidade e a ilusão. Ou seja, a dissimulação91 assume conscientemente a condição artificial da ficção, não pretendendo mais representar ou simular uma verdade anterior como sendo uma verdade universal. Esta dissimulação seria: o não-clássico. Assim, o que Eisenman está propondo é uma arquitetura como dissimulação, como não clássico, em que se mantém os simulacros aparentes entre realidade e ilusão, sem mitigá-los. Os signos, então, seriam autorreferentes e a arquitetura tal como ela é. A arquitetura não clássica, neste sentido, não deve ser confundida como sendo o oposto da arquitetura clássica; ela seria simplesmente diferente, de outra natureza, uma ficção autoconsciente que representa a si mesma, seus valores e experiência interna.92 A ideia de ficção de uma arquitetura não clássica, de uma arquitetura ficcional, nos remete a uma noção de artificialidade, a qual Eisenman vai chamar de enxerto. A esse respeito Jacques Derrida diz: “[...] deveria explorar sistematicamente não apenas o que parece ser uma simples coincidência etimológica unindo o enxerto (graft) e a grafia (graph) (ambas do grego graphion: instrumento para escrever, estilete), mas também a analogia entre as formas de enxertia textual [...] não seria suficiente compor um catálogo enciclopédico de enxertos [enxerto de aproximação, [...] enxertos de emenda, enxertos em sela, enxertos em fenda, [...] enxerto em ponte, enxerto de arco, enxerto de reparo [...] etc.; deve-se elaborar um sistemático tratado sobre o enxerto textual.” (La dissémination,1972,p.230-202)93 O termo faz referência às enxertias textuais derridianas94 que partem da concepção de suplemento de Jean Jacques Rousseau.95 Podemos dizer de forma sucinta que em Rousseau, a escritura serve apenas de suplemento à fala. Na desconstrução literária de Derrida, a ideia de suplemento destrói a presença – a presença entendida como fala; neste caso, o suplemento seria a substituição da fala pela escrita. O suplemento, em Rousseau, lida com enxertos de descrição tanto logocêntrica como antilogocêntrica; isto é, trata-se de uma teoria sistemática dos atos de fala que vai buscar na sua multiplicidade de enxertos aqueles que são inteligíveis, que progredirão dentro de uma razão lógica e disseminarão. Por sua vez, às enxertias 91  Ibid., p. 241. 92 Ibid. 93  Jaques Derrida citado em: CULLER, Jonathan. On descontruction. (tradução Patrícia Burrowes) 94  Ver: DERRIDA, Jacques. La Dissémination. Paris: Seuil, 1972; ou, La Double Séance. Paris: Telquel, 1971. 95  No livro Gramatologia de Derrida, há um capítulo com dois tópicos que fazem referência a questão do suplemento: [1] Este perigoso suplemento; [2] Gênese e escritura do Essaisurl’origine dês langues. Ensaios sobre as origens da língua é o texto no qual Rousseau concebe a ideia de suplemento.

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textuais de Derrida demandam um tratado sistemático que leve em conta justamente esta condição heterogênea do suplemento. Neste contexto, a desconstrução trabalha na identificação e análise de enxertos nos textos – pontos de conexões e tensões – a fim de revelar seu caráter heterogêneo.96 Em Eisenman, o enxerto é proposto e introduzido como estratégia projetual, como um artifício criado pelo arquiteto. O enxerto é como um lugar inventado que possui mais características de um processo do que de um objeto. Podemos entender melhor a proposta do arquiteto através do ele chamou de twoness (duplicidade) e de betweeness (condição de estar entre).97 Da mesma forma que Derrida identifica uma duplicidade do suplemento (logocentrismo e antilogocentrismo) a ser desconstruído, Eisenman procura gerar uma estrutura de equivalências – twoness – como forma de quebrar o endereçamento hierárquico encontrado nas relações binárias do projeto arquitetônico, entre forma e função; forma e sentido. Assim, a hierarquia é substituída por incerteza, criando um espaço de indecidibilidade e de excesso. O excesso seria a culminação da presença imediata, que em sua multiplicidade desmotiva o direcionamento do signo a uma única origem ou a uma razão semântica determinante. O espaço “entre” seria a condição betweeness do enxerto, na qual se dá o excesso. O enxerto, dessa forma, seria apenas um local contingente da ação – o lugar onde se inicia um processo. O processo, por outro lado, está ligado à ideia da arquitetura como uma escrita – ou texto. Sendo assim, ao considerar a arquitetura como escrita, devemos fazer a distinção de que ela não é um objeto arquitetônico em si, sua massa e volume; mas sim, o ato de dar forma, dando um corpo metafórico ao fazer arquitetônico. Isso demanda outro sistema de signos para leitura da arquitetura. O sistema adotado por Eisenman tem base na concepção de traço (trace)98 de Derrida.99 Em Derrida, o traço é visto como algo distinto que surge daquela condição de excesso, multiplicidade e da imediatez da presença. A imediatez é derivada daquilo que começa de um estágio intermediário, por isso não pode ser 96  CULLER. Jonathan. On descontruction: Theory and Criticism after Structuralism. New York: Cornell University Press, 1982, p. 134. 97  EISENMAN. Peter. En Terrror Firma: In Trails of Grotextes. In: Deconstruction, Omnibus Volume. Editado por Andrea Papadakis, Catherine Cooke e Andrew Benjamin. Londres, AcademyEditions, 1989, p.152-153. 98  Trace é o termo original em francês usado por Derrida em Gramatologie. Na tradução para o inglês do Gramatology o termo permanece trace, tal qual é usado por Eisenman. No Brasil, no Gramatologia, trace foi traduzido como rastro. Entretanto, na tradução brasileira do texto de Eisenman O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim; trace, foi traduzido como traço. Adotamos aqui traço como o termo referente à concepção de trace tanto em Derrida como Eisenman. 99  EISENMAN, Peter. O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006, p. 246.

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concebida pela razão. A presença per se implica uma marca originária no tempo; entretanto, seu contexto múltiplo e de excesso, no qual o traço aparece (se origina), não permite nenhuma associação válida ou verdadeira auma determinação lógica. “[...] se tudo começa pelo rastro (trace) acima de tudo, não há rastro originário”.100 O que está em jogo – tanto em Derrida quanto em Eisenman – é a impossibilidade de um objeto ou realidade ser representado. Isso torna a arquitetura um sistema de diferenças, não podendo mais ser vista como um objeto ou uma imagem de presença isolada. Isto é, a presença a agora estará sempre em relação à outra presença, e na coexistência de ambas, aquilo que pode ser aproveitado como passível de representação são traços da presença de cada um – o que esta em jogo é que nessa condição nunca uma presença se impõe de modo absoluto. Segundo Eisenman, “o traço é a manifestação visual desse sistema de diferenças, um registro do movimento (sem direção) que nos induz a ler o objeto presente como um sistema de relações, com outros movimentos prévios ou subsequentes”.101 Assim, podemos descrever traço como sendo parcial, fragmentário, uma ação em processo, uma dissimulação de sua antiga realidade. O traço ainda, em uma estratégia projetual, implicaria a quebra da hierarquia entre presente, passado e futuro, no movimento-registro de uma ação em processo contínuo – o registro da motivação – em que um objeto jamais seria temporal pré ou pós determinado. Estas concepções de enxerto e traço serviram de base teórica para os primeiros projetos de sobreposição (desconstrutivista) de Eisenman. Um exemplo deste processo é projeto para o Wexner Center – centro de artes visuais da Ohio State University. O resultado deste projeto é a sobreposição, no site do campus da universidade, de outros sites históricos da cidade de Columbus. Robert Somol102 diz que o Wexner Center já não pode ser visto como objetos ou formas nem mesmo como estruturas. Somol faz uma associação com o texto em Terrror Firma: In Trails of Grotextes, de Eisenman, ao dizer que o projeto se parece com things (coisas), referindo ao aspecto informal do grotesco; para ele, tais coisas frustrariam as análises formais e marcariam a transição do estruturalismo para a teoria do excesso de George Bataille. 100  DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 75. (tradução Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro – observação nossa) 101  EISENMAN, Peter. O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006, p. 251. (tradução Vera Pereira) 102  SOMOL, Robert E. Dummy text, or The Diagrammatic Basis of Contemporary Architecture. In: EISENMAN, Peter. Diagram Diaries. New York: Universe Publishing, 1999, p. 18-19.

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Figura 5.9  –  Wexner Center: maquete; vista da implantação. 1989 (Peter Eisenman). Disponível

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Figura 5.10  –  Wexner Center: fachada (fragmento da chaminé e do arco como traços). Disponível

em:



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Figura 5.11  –  Wexner Center: traço da forma anterior. Disponível em: .

Em seu sistema de reconhecimento por meio das permanências da interioridade arquitetônica, Eisenman aposta no processo de estranhamento e deslocamento na apreensão da realidade, apontando o processo de dissimulação como a única possibilidade de absorção de uma realidade que não se mostra, em nenhum de seus aspectos, apreensível como verdade. Para Eisenman, a arquitetura não é capaz de traduzir um sentido legítimo do lugar. O lugar agora é um lugar inventado, uma ficção. Antes, a linguagem arquitetônica era capaz de gerar relações de significado com a topografia, com a tipologia circundante, com as tradições culturais, enfim, com a história, enquanto estas podiam ainda ser consideradas como verdades. Uma vez que nenhum destes paradigmas pode ser mais fixados como valor estável dentro desta realidade contemporânea – e isso se estende à Era Moderna – não caberia mais à arquitetura o compromisso com tal representação ontológica. Nos casos em que Eisenman retira das qualidades de sua locação referências para servir de estímulo para a ação projetual, ele não está pretendendo a recuperação de um estado original de solo, de um sentido de lugar. Tais referências surgem como fragmentos que enunciam e insinuam um passado que se apresenta, não como um resgate de uma realidade perdida, mas antes, como uma ficção que disputa uma existência simultânea com a ficção do presente. Como um arqueólogo, Eisenman escava a temporalidade do presente para produzir múltiplas origens

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ficcionais, pois considera ser esta a única forma de romper com a ideia progressiva do tempo, fazendo do topos o lugar da invenção. Derrida afirma que a única condição para que um texto não produza um único sentido é por meio do que ele chama de excesso, que é a capacidade de um “trabalho produzir muitos significados simultaneamente, incluindo os contraditórios, não intencionais e os indesejáveis”.103 Neste sentido, o trabalho de Eisenman produz uma condição de excesso fazendo com que o discurso arquitetônico seja afetado por processos estranhos à sua linguagem convencional. Ele utiliza, portanto, de princípios deslocados da natureza tradicional da disciplina para que estes, a partir do seu estado entre, contaminem, aduzam e distorçam o processo de conformação arquitetônica. É importante dizer que Eisenman, ao falar de referenciais deslocados, não pretende uma simples incorporação de elementos externos à sua obra, e sim, discutir a possibilidade ou a impossibilidade de se afirmar a existência de padrões ou valores legítimos à prática arquitetônica. Sua busca não é mais nos fatos urbanos existentes e visíveis, mas nas ausências, ficções ou lembranças artificiais da lógica de estruturação do espaço. Ela aponta para uma arquitetura que esteja livre da nostalgia por sistemas que tiveram um sentido no passado. Com isso, propõe que se aceite a ausência de sujeito, história, lugar e de significado, da ideia de verdade a priori.

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LIVRO PROPRIETARIO - HISTORIA DA ARTE E DA ARQUITETURA IV

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