TEOLOGIA PURITANA - JOEL R. BEEKE & MARK JONES-919

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T e o l o g ia P u r it a n a □□aaaaaaaaaaaooQDDDDDoannaannaaDDnDDaanDaaDDaaDaoannaoaooaaaaDaDi

DOUTRINA PARA A VIDA ^□□□□□□□□aaaaaDaDaaaaoaaDanaaaaaaaaaanaDaaanaannaaaaanaaaaaDaaaaa

J oel R. B eeke & M ark J ones VIDANOVA

Por mais de meio século, tem havido intensas pesquisas originais sobre teólogos pu­ ritanos e seus ensinamentos. Aqui está um compêndio volumoso dessas descobertas, compiladas em sessenta vívidos capítulos. A habilidade de exposição dos autores manterá os leitores constantemente atentos, e a preocupação dos próprios puritanos por uma vida em santidade, que perpassa todas as coisas, levará os leitores a dobrar os joelhos. Esse livro é um marco em todos os sentidos. J. I. Packer, professor de Teologia e membro do Conselho Diretivo da Regent College A obra de Joel Beeke e Mark Jones estabelece um marco significativo no estudo da teologia puritana e reformada do início da Idade Moderna, desencadeando, por meio de artigos eruditos atualizados, uma investigação de todo um corpas do estudo teológico do século 17. A obra demonstra compreensão notável de fontes primárias e excelente entendimento da literatura secundária. Ela oferece uma boa introdução à teologia puri­ tana, assim como desfaz certos mitos de um sistema de pensamento rígido, racionalista, monolítico e divorciado da vida cristã. Talvez o tema mais constante e unificador no livro seja a profunda ligação entre fé e prática que, para os puritanos e outros refor­ mados do início da modernidade, fundamentou a exposição de toda doutrina. Teologia puritana: doutrina para a vida proporcionará um ponto de partida para pesquisas mais aprofundadas sobre o pensamento dos puritanos para os próximos anos. Richard A. Muller, professor de Teologia Histórica da cátedra P. J. Zondervan no Calvin Theological Seminary Os puritanos são indubitavelmente uma das fontes mais importantes de teologia, tanto doutrinária quanto prática, na mesma proporção. Esse enorme volume de Joel Beeke e Mark Jones oferece ao leitor uma introdução abrangente ao pensamento puritano. É uma obra notável de síntese histórico-teológica e um livro ao qual recorrerei muitas vezes, tanto como referência acadêmica quanto para devoção pessoal. É simplesmente um trabalho impressionante. Cari R. ITueman, professor de História da Igreja da cátedra Paul Woolley no Westminster Theological Seminary A teologia experiencial começa com isto: Cristo Jesus veio ao mundo salvar os pecadores. Portanto, refere-se a uma teologia personalizada: ele me amou e se en­ tregou por mim. A teologia não pode ser estudada a sangue frio, por causa da graça que nos livrou da ignorância, da vergonha e do inferno. Quem é o Deus que fez isso? Quem sou eu para que ele fizesse isso por mim? A teologia responde a essas questões. Respostas equivocadas levarão a uma vida equivocada. Nenhum grupo de homens é mais profícuo em ensinar a teologia mais profunda e ao mesmo tempo mais acessível do que os puritanos. Eles foram lúcidos e passionais ao explicar e aplicar o que é verdadeiro. Esse livro desencadeará um conhecimento mais profun­ do; também provocará um amor mais sublime por aquele que é o objeto de toda a verdadeira teologia, o Deus vivo. Geoff Thomas, pastor da igreja Alfred Place Baptist Church, em Aberystwyth, País de Gales

Joel Beeke e Mark Jones estão de parabéns pela publicação desse volume. Eles contri­ buíram para a produção de uma obra que estava faltando no estudo sobre os puritanos: uma sistematização dos temas e tópicos da teologia puritana. Essa coleção de estudos representa tanto um trabalho de amor espiritual quanto um amor pelo trabalho espiri­ tual. A obra demonstra extensa compreensão da literatura relevante e logo se tornará a primeira parada para toda investigação séria sobre as diversas visões dos puritanos a respeito de assuntos teológicos. Mais do que isso, o livro se tornará um instrumento devocional por si só, uma vez que a teologia puritana dizia respeito tanto a inflamar a alma quanto a informar a mente. Que ela seja usada por Deus para nos capacitar a amá-lo de coração, mente, alma e forças, assim como amamos nossos antepassados puritanos como a nós mesmos! lain D. Campbell, ministro da igreja The Free Church of Scotland, em Point, Isle of Lewis, Escócia Esse é um livro admirável, inestimável para nosso estudo dos puritanos, porém, mais do que isso, inestimável para que nós mesmos nos tornemos puritanos, usando a Bíblia e sua teologia como nosso Pai a designou, para a transformação de nosso coração e vida. De modo muito claro e sucinto, a obra organiza os principais temas puritanos em contextos e sequências que podemos reconhecer. A obra nos atualiza nas pesquisas relevantes sobre os temas mais controvertidos e nos conduz a uma avaliação criterio­ sa dessas pesquisas. Considero esse livro particularmente útil em nos mostrar como pensar de forma cristocêntrica — algo de que falamos muito, ainda que geralmente não saibamos do que estamos falando. D. Clair Davis, professor emérito de História da Igreja no Westminster Theological Seminary Todo cristão sério reconhecerá com gratidão a dedicação demonstrada pelos drs. Beeke e Jones na compilação de Teologia puritana. O livro se tornará excelente fonte de referência para todos os que estudam ou lecionam teologia ou mesmo para quem deseja compreender o que os puritanos pensavam e que contribuição deram a aspec­ tos específicos da teologia. Agora, uma vez que foi muito bem escrito, também será edificante para qualquer pessoa que simplesmente o leia capítulo após capítulo. Joseph A. Pipa Jr., diretor e professor de Teologia Sistemática e Histórica no Greenville Presbyterian Seminary Em Teologia puritana, Joel Beeke e Mark Jones nos ajudam a provar em uma única porção alguns dos melhores pratos do buffet da teologia puritana sobre a vida cristã. Muitos de nós que já se regalaram suntuosamente nesses seletos servos de Deus ficam atônitos quando veem a prodigiosa produção deles, imaginando como poderiam ex­ perimentar toda a sua culinária. Eis a resposta de nossas orações! O tamanho do livro não deve intimidar o leitor e afastá-lo do banquete. Antes, que a leitura possa lhe abrir 0 apetite para que você se envolva ainda mais no tipo de refeição que transformou muitos bebês espirituais em adultos maduros em Cristo. Conrad Mbewe, pastor da igreja Kabwata Baptist Church, em Lusaka, Zâmbia

Finalmente, um livro que trata não simplesmente de um único autor puritano ou uma única doutrina, mas expõe a amplitude da teologia puritana, e não o faz somente visan­ do aos teólogos profissionais, mas a fodo crisfão que deseja conhecer a bênção dessa “doufrina para a vida” em sua própria vida. Os autores fazem isso não resumindo o pensamenfo puritano, mas apresentando uma larga variedade de pensadores puritanos, deixando que eles mesmos falem por si, recorrendo às fonfes primárias e citando-as amplamente. Esse enorme volume representa uma vida de pesquisa e reflexão por autores que compartilham a fé purifana. É realmente uma obra magna que logo se tornará texto de referência sobre o assunto. Robert B. Strimple, professor emérito de Teologia Sistemática no Westminster Seminary, na Califórnia Uma feologia sisfemática que cobre os tópicos principais de doutrina de uma perspec­ tiva puritana, com comentários e análises pertinentes de dois consagrados estudiosos puritanos da atualidade. O que mais poderia ser dito a título de recomendação? Um texto necessário para seminaristas e todo estudante que leva a sério a teologia. Derek W. H. Thomas, professor de Teologia Sisfemáfica e Histórica no Reformed Theological Seminary Esse volume é a obra magna do extraordinário renascimento dos estudos puritanos que ocorre desde a década de 1960. É uma fonte realmente fabulosa para todos os que se interessam pelos puritanos e os amam. Apesar de ser quase tão exaustivo quanto possível, é também repleto de capítulos que detalham o pensamento de alguns pu­ ritanos individualmente. Sem dúvida, será um guia indispensável ao pensamento e prática puritanos por muitos anos. Michael A. G. Haykin, professor de História da Igreja e Espiritualidade Bíblica no The Southern Baptist Theological Seminary Nenhuma expressão da fé cristã sobressaiu mais do que a dos renomados puritanos e daqueles que seguiram seus passos. Esse excelente volume escrito pelo dr. Beeke e pelo dr. Jones apresenta ao leitor um vasto banquete de teologia tanto acadêmica quan­ to prática. Merece ser lido, estudado e relido por todos os que têm fome de conhecer mais a Deus e saber como glorificá-lo ainda mais. Maurice Roberts, ministro emérito da igreja Free Church of Scotland (em exercício), Inverness, Escócia Por sua perspicácia exegética, precisão teológica e devoção apaixonada, os puritanos con­ tinuam sendo uma mina de ouro. Há importantes edições modernas de muitos clássicos puritanos, antologias que reúnem citações suas referentes a vários assuntos e grande quantidade de estudos a respeito do movimento. Por isso, não é de surpreender que uma teologia sistemática puritana como essa nunca tenha sido escrita. Fico contente que foi escrita por dois especialistas que também são pastores com familiaridade incomparável com as fontes primárias e secundárias. Não consegui parar de ler e recorrerei a ela muitas vezes. É um empreendimento ambicioso, mas o esforço dos autores resulta em ganho para nós. Será uma obra de referência permanenfe, assim como uma fonte devocional. Michael Horton, professor de Teologia Sistemática e Apologética da cátedra J. Gresham Machen no Westminster Seminary, da Califórnia

Joel Beeke e Mark Jones se unem aos principais especialistas em estudos puritanos para oferecer uma análise abrangente e impressionante do ensino puritano sobre os principais temas ou tópicos de teologia, que vão desde os prolegômenos até a escatologia. Esse livro é um feito singular, pois supera todos os livros anteriores sobre teologia puritana em virtude de seu vasto escopo e da riqueza tanto em detalhes históricos quanto em perspicácia teológica. Esse livro será de interesse para um amplo público desde teólo­ gos a historiadores, passando por pastores e leigos instruídos que desejem aprender como os puritanos procuraram renovar a teologia aliando-a à prática da devoção. Ao mesmo tempo, mostra ao leitor contemporâneo que na teologia puritana a atividade racional está incrustada em uma profunda receptividade escriturística e espiritual que raramente encontramos na teologia contemporânea. Realmente, a teologia puritana é uma teologia para a vida. Willem J. Van Asselt, professor de Teologia Histórica no The Evangelical Theological Faculty de Leuven, Bélgica Essa é, indubitavelmente, a obra magna de Joel Beeke e Mark Jones: sua mais importante contribuição ao estudo de nossos antepassados calvinistas, os puritanos. Com esse volumoso corpus, os autores fazem uma enorme contribuição à nossa compreensão da teologia puritana ao compilar esse repositório dos ensinos desses homens. A obra é de grande valor acadêmico, bem pesquisada, precisa e de escopo abrangente, mas de estilo acessível. Essa teologia em um volume permite que nos assentemos aos pés de personagens ilustres e sejamos ensinados por seus escritos impregnados das Escrituras e saturados de Deus. Steven J. Lawson, pastor titular da igreja Christ Fellowship Baptist Church, em Mobile, Alabama Uma óbvia labuta de amor. Teologia puritana é, ao mesmo tempo, um estudo com­ petente, equilibrado e impressionante de teologia histórica. Deverá contribuir muito para dissipar equívocos atuais entre aqueles que, por concordância ou por desprezo, acham que conhecem o que os puritanos disseram. Em minha leitura, fiquei nova­ mente impressionado com os profundos e cordiais elementos de continuidade exis­ tentes entre Calvino — a principal corrente da ortodoxia reformada do século 17, do qual esse estudo mostra que os puritanos eram parte constituinte — e o melhor das percepções histórico-redentoras da teologia bíblica reformada mais recente. Um vasto público leitor, desde especialistas até leigos interessados, lerá com grande proveito essa lúcida e encantadoramente escrita “doutrina para a vida” (conforme o subtítulo). Recomendo-a fortemente. Richard B. Gaffin, Jr., professor emérito de Teologia Bíblica e Sistemática no Westminster Theological Seminary

P u r ita n a

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica llacqua CRB-8/7057

Beeke, Joel R. Teologia puritana: doutrina para a vida /Joel R. Beeke e Mark Joncs; tradução de Mareio Loureiro Redondo. - São Paulo: Vida Nova, 2016. 1504 p. Bibliografia ISBN 978-85-275-0668-7 Título original: A Puritan theology: d octrine fo r life 1. Teologia 2. Puritanos I. Título II. Jones, Mark III. Redondo, Marcio Loureiro.

16-0276

CDD 20,5.59 Indices para catálogo sistemático: 1. Teologia - Puritanismo

T eo lo g ia P u r ita n a DOUTRINA PARA A VIDA

J oel R. B eeke & M ark J ones

T radução M arcio L oureiro R edondo

VIDANOVA

'2012, de Joel R. Beeke e Mark Jones Título do original: A Puritan theology: doctrine for life, edição publicada por R eformation H eritage B ooks (Grand Rapids, Michigan, EUA). '2004, de Kelly M. Kapic e Randall C. Gleason Os capítulos 3 e 14 foram extraídos em parte, com permissão, de: The devoted life: an invitation to the Puritan classics, organização de Kelly M. Kapic e Randall C. Gleason, edição publicada pela I nter Varsity P ress (Downers Grove, Illinois, EUA). Todos os direitos em lingua portuguesa reservados por S ociedade R eligiosa E dições V ida N ova

Rua Antônio Carlos Tacconi 75, São Paulo, SP, 04810-020 vidanova.com.br | [email protected] 1." edição: 2016 Reimpressão: 2017 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / Printed in Brazil As citações bíblicas sem indicação da versão foram extraídas da Almeida Século 21. As citações com indicação da versão in loco foram extraídas da Almeida Revista e Atualizada (ARA), Almeida Revista e Corrigida (ARC), Nova Versão Internacional (NVl). Algumas citações foram traduzidas diretamente da King James Version (KJV).

G erência

editorial

Fabiano Silveira Medeiros E dição

de texto

Valdemar Kroker Arthur Wesley Dück R evisão

dã tradução

William Lane P reparação

de texto

Gustavo Bonifácio Tânia S. Medeiros R evisão

de provas

Mauro Nogueira C oordenação

de produção

Sérgio Siqueira Moura D iagramação

Luciana Di lorio C apa

original e fotografia

By studiolOdesign.net. Vania Carvalho (adaptação)

Dedicado a David P. M urray,

irmão espiritual, amigo cuidadoso, colega leal, pregador que exalta a Cristo e mestre talentoso, e aos alun os de teologia,

a quem tenho tido o privilégio de lecionar teologia puritana em diversos seminários: Puritan Reformed Theological Seminary Reformed Theological Seminary Westminster Seminary California V/estminster Theological Seminary (Filadélfia) Grand Rapids Theological Seminary e outros em mais de uma dezena de países ao redor do mundo. Àquele que é poderoso para fazer hem todas as coisas, além do que pedim os ou pensam os, pelo poder que age em nós, a ele seja a glória na igreja e em Cristo Jesus, p or todas as gerações, para todo o sempre. Amém. (Ef 3.20,21) — Joel R. Beeke

Dedicado a Barb,

esposa, amiga, grande jogadora de futebol e mãe de nossos amados filhos, ea Robert J . M cK elvey, Ja m e s F. W righ t, M ark A. H erzer, Jo h n L. Ronning e P atrick Stevenson,

que me ensinaram a “doutrina para a vida”. Ao que está assentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o dom ínio pelos séculos dos séculos! (Ap 5.13) — Mark Jones

Sumário

Prefácio...........................

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A gradecim entos...........................................................................................................19 Introdução.................................................................................................................... 23 PROLEGÔMENOS

1. O pensamento puritano sobre a teologia natural e a teologia sobrenatural....................................................................................... 35 2. Hermenêutica e exegese puritanas............................................................... 57 3. O erudito doutor William Ames e The marrow o f theology [O âmago da teologia] .....................................................................................77 TEOLOGIA PROPRIAMENTE DITA

4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

Stephen Charnock e os atributosde D eu s..................................................101 Os puritanos e a Trindade..............................................................................139 John Owen ea comunhão com o Deus triúno..........................................163 William Perkins e a predestinação..............................................................185 Thomas Goodwin e Johannes Maccovius e a justificação desde a eternidade.......................................................................................... 207 O supralapsarismo cristológicode Thomas Goodwin............................. 231 Os puritanos e a providência........................................................................ 247 Os puritanos e os anjos...................................................................................273 Os puritanos e os demônios..........................................................................289

ANTROPOLOGIA E TEOLOGIA DA ALIANÇA

13. 14. 15. 16.

Ospuritanos e a pecaminosidade do pecado............................................ 307 Os puritanos e a aliança das obras..............................................................327 Os puritanos e a aliança da redenção.........................................................355 Os puritanos e a aliança da graça............................................................... 385

TEOLOGIA PURITANA

12

17. Os puritanos e a antiga e a nova alianças: um Moisés gracioso?...... 413 18. A posição minoritária: John Owen e o Sinai...........................................431 19. Os puritanos e as condições da aliança.................................................... 447 CRISTOLOGIA

20. 21. 22. 23. 24. 25. 26.

Os puritanos e a lei e o evangelho............................................................. 469 Cristologia puritana...................................................................................... 487 Os puritanos e os ofícios e estados de Cristo...........................................503 O sangue de Cristo na piedade puritana....................................................519 Anthony Burgess e a intercessão de Cristo por n ó s............................... 537 Thomas Goodwin e o amoroso coração de Cristo...................................559 Os puritanos e a compreensão e o uso das promessas de Deus.........577

SOTERIOLOGIA

27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38.

Os puritanos e o Espírito Santo....................................................................603 Os puritanos e a graça preparatória...........................................................635 Os puritanos e a regeneração....................................................................... 663 Os puritanos e a união com Cristo, a justificaçãoe a regeneração....689 John Owen e a justificação pela fé som ente............................................ 701 Os puritanos e a vinda a Cristo....................................................................723 Os puritanos e o viver em Cristo................................................................. 749 Os puritanos e a adoção................................................................................ 765 Os puritanos e o terceiro uso da Lei........................................................... 791 Richard Sibbes e o acolhimento do Espírito Santo..................................815 William Perkins e sua maior questão de consciência............................ 833 Os puritanos e a perseverança dos santos.............. 853

ECLESIOLOGIA

39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47.

Os puritanos e o governo da igreja............................................................. 879 Os puritanos e os ofícios na igreja............................................................. 907 John Owen e o sábado e a adoração/o culto cristãos........................... 923 A pregação puritana (1 )................................................................................ 963 A pregação puritana (2 )................................................................................ 987 A pregação de John Bunyan ao coração..................................................1005 Os puritanos e o batismo infantil.............................................................. 1025 Os puritanos e a ceia do Senhor............................................................... 1049 Orações puritanas por missões mundiais................................................ 1073

ESCATOLOGIA

48. “A cidade situada sobre um monte”: a ideia otimista dos puritanos da América do Norte sobre o fim dos tempos...................1089

Sumário

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49. Thomas Manton e o julgamento segundo as obras.............................. 1113 50. Como a história molda o historicista: a interpretação de Apocalipse de Thomas Goodwin.............................................................. 1135 51. Christopher Love e as glórias do céu e os pavores do inferno..........1157 TEOLOGIA NA PRÁTICA

52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59.

Teologia puritana moldada por uma mentalidade peregrina..............1191 Os puritanos e a vida piedosa no lar...................................................... 1215 Matthew Henry e um método prático de oração diária..................... 1241 A prática puritana da meditação............................................................... 1257 Os puritanos e a consciência..................................................................... 1283 Casuística puritana....................................................................................... 1309 O zelo sacrificial puritano.......................................................................... 1337 Lições práticas da teologia puritana para h o je ...................................... 1357

POSFÁCIO

60. Uma palavra final..........................................................................................1375 Bibliografia............................................................................................................... 1381 índice rem issivo...................................................................................................... 1463

Prefácio o o □□□□□ □□ □□ □ □□ □□ □ □□ □ □ □ □ D a aaa aaa anaa aaD a aaa aaa aaa aaa nan aann a

As mil e tantas páginas e mais de meio milhão de palavras que você tem em mãos agora constituem a maior e mais abrangente exposição feita até hoje da teologia dos puritanos ingleses. É uma façanha notável, fruto de muitas décadas de leitura, pesquisa e reflexão por seus autores. O doutor Joel R. Beeke e o doutor Mark Jones são ambos especialistas em teologia puritana, tendo publicado inúmeros textos sobre o assunto. Aqui uniram suas respectivas bagagens para produzir uma obra com exposição e análise de tanta envergadura que, com certeza, levará muitos anos até que se tente algo semelhante de novo. Nesta obra há algo para todos. Teologia puritana é uma verdadeira obra biográfica sobre os principais pensadores da era puritana. Aqui o leitor do século 21 pode se imaginar voltando às cidades de Londres, Cambridge e Oxford do século 17 para estar em contato com uma das mais surpreendentes irmandades espirituais da história do cristianismo de fala inglesa. Encontra­ mos William Perkins, cuja pregação causou um impacto tão grande na cidade e na universidade de Cambridge que quando, dez anos depois da morte de Perkins, Thomas Goodwin, ainda jovem, se matriculou na universidade, “a cidade ainda estava tomada pela pregação [de Perkins]”. E isso é apenas o início, pois logo encontramos os dois gigantes do congregacionalismo, Thomas Goodwin e John Owen, bem como o mestre da exposição da lei de Deus, Anthony Burgess; o expositor textual sistemático e capelão do rei, Thomas Manton; o “doce encorajador”, Richard Sibbes; o homem imerso em Deus, Stephen Charnock; o comentarista Matthew Henry; e muitos outros. Quando voltamos ao mundo da igreja do século 21, é impossível deixar de sentir qne naqueles dias havia gigantes na terra. São demasiados os aspectos de destaque neste livro para relacioná-los adequadamente. A vasta gama da teologia abrangida — cada tópico do saber teológico é abordado — é de tirar o fôlego. A atenção dedicada a alguns dos mais importantes pensadores, pregadores e escritores (homens que em nível

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TEOLOGIA PURITANA

surpreendente eram as três coisas ao mesmo tempo) deixa marcas profundas. Mas neste amplo contexto, certos destaques estão destinados a causar impacto até mesmo no leitor apressado destes sessenta capítulos. O primeiro é a profundidade com que esses homens — que passaram a maior parte da vida no ministério pastoral — estudavam e conheciam as Escrituras. Com frequência, fica a sensação de passagens e textos estarem sendo expostos contra a luz tal como um diamante recém cortado que é vira­ do lentamente a fim de que cada faceta reflita a luz. Eram teólogos bíblicos nos dois sentidos do termo: tanto no sentido de que extraíam sua teologia da Bíblia quanto no sentido mais moderno de compreender e estar interessados em expor o fluxo unificado da história da salvação, vendo cada um de seus elementos em seu devido lugar na história. Para muitos que nunca leram os puritanos detalhadamente, pode parecer incompreensível a afirmação recente de um estudioso de que como teólogo bíblico, John Owen está no mesmo nível [se não superior!) de Geerhardus Vos;* mas quem leu detalhadamente as obras desses homens jamais pensaria neles como meros “catadores de textos-prova” interessados apenas numa declaração aqui e numa expressão ali. Seu entendimento de que as Escrituras estão basicamente interconectadas é de fato impressionante. Por esse motivo, neste livro a análise da teologia da aliança ocupa cerca de cem páginas. Em segundo lugar, no entanto, embora fossem biblistas no melhor sen­ tido da palavra (afinal, acreditavam que as Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos são a Palavra de Deus), também tinham profunda consciência de que foram chamados a compreender junto “com todos os santos” a lar­ gura, 0 comprimento, a altura e a profundidade do amor de Deus (Ef 3.18). Assim, embora com frequência se pensasse neles como apenas “calvinistas”, eles mesmos tinham profunda consciência de que pertenciam a uma tradição mais antiga e mais ampla do que apenas aquela de Genebra. Aliás, um exem­ plo disso é que é bem mais provável encontrá-los citando Agostinho do que Calvino. Tinham consciência, assim como Bernard de Chartres, de que eram “anões sentados nos ombros de gigantes para que pudessem enxergar mais longe do que estes’? Além disso, fica claro, no entanto, que a “irmandade puritana” era forma­ da por homens que pensavam de forma teológica, profunda e com devoção à oração. Ler suas obras — seja sobre a Trindade, sobre a pessoa de Cristo ou sobre a santidade do cristão — é entrar numa atmosfera diferente e mais 'Veja Richard Barcellos, The family tree o f Reformed biblical theology (Palmdale: Reformed Baptist Academic Press, 2010). Uohn of Salisbury, The metalogicon o f John o f Salisbary: a twelfth-century defense o f the verbal and logical arts o f the trivium, tradução para o inglês, introdução e notas de Daniel E. McGarry (Berkeley: University of California Press, 1955), p. 167.

Prefácio

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rarefeita do que aquela a que, em geral, estamos acostumados. Quando, por exemplo, descobrimos que a origem de On the mortification o f sin,^ um dos mais famosos estudos de John Owen, são sermões pregados a uma congre­ gação formada em grande parte por jovens estudantes da Universidade de Oxford, com menos de vinte anos de idade, é provável que fiquemos pasmos. Mas então, ao considerarmos o assunto, começamos a entender que Owen e seus companheiros agiram corretamente: deve-se ensinar aos crentes em Cristo sobre como lidar com o pecado antes de sermos engolidos pelo pecado em virtude de nossa ingenuidade acerca da nossa própria força espiritual e de nossa ignorância por falta de ensino bíblico. Estas páginas não estão repletas de complexidades e obscuridades, tampou­ co são leitura fácil. Somos lembrados, mais uma vez, de algumas palavras do jovem John Owen [um tanto ferino aos trinta anos de idade) quando introduz sua obra The death o fd ea th in the death ofC hrist [A morte da morte na morte de Cristo] com alguns comentários para o leitor: Se pretendes ir além, suplico-te que permaneças um pouco aqui. Se és, como muitos desta era dissimulada, um adm irador de títulos acadêm icos, e vens aos livros como Cato vai ao teatro, para logo ir de novo embora — tiveste tua diversão; adeus!“

Contudo, se você partilha do interesse dos puritanos em pensar biblicamente a fim de viver para a glória de Deus, estas páginas se revelarão uma mina de ouro e um exemplo daquilo que Paulo chamou de “pleno conhecimento da verdade, que leva à [i.e., está de conformidade com a] piedade” (Tt 1.1). Aqui há, então, um raro achado: um tesouro de riqueza teológica, inte­ lectual, espiritual e prática. Tornamo-nos devedores ao doutor Beeke e ao doutor Jones, e somos gratos por isso. De maneira que, visto que no fundo os puritanos se consideravam seguidores de Agostinho, tudo que resta a ser dito pode ser expresso nas palavras que levaram à grande mudança na vida dele: Tolle lege — apanhe o livro e leia-o! B. F erg uso n First Presbyterian Church Columbia, South Carolina, EUA S in c la ir

T s se estudo pode ser encontrado em William H. Goold, org., The works of John Owen (Edin­ burgh: Johnstone and Johnstone, 1850-1853), 6:1-86 [edição em português: A mortificação do pecado, tradução de Gordon Chown (São Paulo: Vida, 2005)]. “In: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (Edinburgh: Johnstone and Johnstone, 1850-1853), 10:149.

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Agradecimentos □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□aDaaaDaaDDDDDaDDDDDDDDDDDD

Em qualquer livro deste tamanho seus autores precisam agradecer profun­ damente a um bom número de pessoas. Eu, Joel Beeke, quero agradecer ao Mark Jones, meu coautor, sua notável cooperação na redação deste livro. Há bem poucos estudiosos reformados no mundo com quem é fão fácil trabalhar como Mark Jones! Originalmente, ele me enviou vários capítulos sobre a ideia puritana das alianças das obras e da graça, pedindo que eu as considerasse para publicação. Quando compartilhei com ele minha visão de escrever uma espécie de “teologia sistemática puritana”, a qual pensava fazer depois de me aposentar de lecionar, ele demonstrou entusiasmo em escrever o livro comigo. Esbocei uma proposta de setenta e poucos capítulos, o que o deixou atônito (e também a mim!). Reduzimos para trinta capítulos, mas, depois, o projeto cresceu para sessenta. Em todo o processo, Mark foi diligente e prestativo. Mark, sem você, dez ou vinte anos mais teriam sido necessários para que este livro visse a luz do dia, e ele não teria saído tão bom. Também tenho profunda gratidão ao meu professor assistente. Paul Smalley, por sua ajuda na redação de vários capítulos, além de ser coautor comigo de quatro capítulos [6, 11,12 e 28). Sou grato em particular pelos nossos momen­ tos diários de oração juntos, que incluíram muitas súplicas de bênção divina sobre esta obra. Paul, seu coração de servo, seu amor pela teologia puritana e seu crescente conhecimento dos puritanos têm sido para mim uma fonte de grande alegria e força. Agradeço também a meus outros amigos coautores: Jan Van Vliet (capítu­ lo 3), Sinclair B. Ferguson (capítulo 10), James A. La Belle (capítulos 26 e 56), Tim Worrell (capítulo 37) e Matthew Westerholm (capítulo 44). Também agra­ deço ao Sinclair seu excelente prefácio. Todos vocês têm sido uma enorme fonte de encorajamento. Esses capítulos foram lidos, revisados e/ou editados (todos ou em parte) por Kate DeVries, Tammy Ditmore, Annette Gysen, Ray B. Tanning, Phyllis

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TEOLOGIA PURITANA

Ten Elshof e Irene VandenBerg. Agradeço de coração a cada um de vocês o excelente trabalho. Vocês foram persistentes e brilhantes em sua dedicação. Tanto Mark quanto eu queremos agradecer à equipe da editora Reformation Heritage Books a ajuda inestimável que nos prestou. Steve Renkema, a empolgação que, como gerente da editora, você demonstrou com a publicação deste livro evitou que fôssemos atrás de outra casa publicadora. Jay Collier, sua lealdade e atenção com os detalhes nos ajudaram a tornar este livro melhor. Agradecemos à Laura Mustafa por levantar informações bibliográhcas de algumas notas de rodapé “rebeldes” e ao Jonathon Beeke por compilar a bibliografia. Também agradeço ao Gary e à Linda den Hollander, minha fiel equipe de conferência de texto e de composição tipográfica, e à Amy Zevenbergen a arte da capa. Os livros antigos que aparecem na capa são amostras de obras bastante usadas, que pertencem ao nosso Puritan Resource Center, sediado no Puritan Reformed Theological Seminary. Às minhas equipes no Puritan Reformed Theological Seminary [PRTS) e na Reformation Heritage Books e à Heritage Netherlands Reformed Congregation de Grand Rapids, onde sirvo como pastor, agradeço o encorajamento e a paciência durante o perío­ do em que estou escrevendo algum livro. Um agradecimento em particular vai para meus colegas de seminário Gerald Bilkes, David Murray e William VanDoodewaard, e para meus colegas de ministério Foppe VanderZwaag e Maarten Kuivenhoven. Eu não poderia ter melhores colegas como companheiros de trabalho, nem uma equipe melhor. Também agradeço a todos os nossos alunos e ex-alunos do PRTS, junto com alunos de outros seminários ao redor do mundo, bem como a participantes de conferências, aos quais lecionei teologia puritana. Vários destes capítulos se desenvolveram a partir de aulas de seminário em minha disciplina de Teologia Puritana ou a partir de palestras sobre aspectos do pensamento puritano dadas em conferências em vários países. Mary, minha querida e fiel esposa, é fonte constante de inspiração. Agradeço-lhe sua notável devoção a mim e a meu trabalho. Sem ela, eu não conseguiria fazer metade daquilo que tenho o privilégio de realizar. Sou grato a meus amorosos filhos, Galvin, Esther e Lydia, cuja bondade para comigo me causa profunda humildade. Acima de tudo, sou grato a meu Deus (triúno) e Salvador, que, à medida que envelheço, se faz cada vez mais amável para comigo. Gom certeza, posso concordar com Samuel Rutherford (1600-1661) que não sei qual pessoa divina amo mais — o Pai, o Filho ou o Espírito Santo — mas sei que amo cada um deles e preciso de todos eles. Algo que me atraiu para os puritanos, sobre os quais comecei a ler cinquenta anos atrás aos nove anos de idade, é a obsessão deles pelo Deus triúno. Cada vez mais cobiço seu centrismo trinitário, tanto como teólogos quanto como crentes em Cristo.

Agradecimentos

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Quanto às influências passadas que despertaram em mim o amor pela leitura dos puritanos, minha maior dívida é para com meu pai, John Beeke, e as conversas práticas que tivemos em minha adolescência. Tais conversas reforçaram o ensino dos livros com as obras dos puritanos na estante dele, as quais devorei. Também agradeço a lain Murray e ao Banner of Truth Trust pelos livros aos quais tive acesso, a Sinclair B. Ferguson e sua paixão por John Owen e a D. Clair Davis e seu incentivo enquanto eu estudava a ideia puritana da certeza da salvação para minha tese de doutorado no Westminster Seminary.

Eu, Mark Jones, quero agradecer a várias pessoas que direta ou indiretamente tornaram possível esta obra. Estudiosos que têm tido grande influência sobre mim incluem os professores Ernestine van der Wall, Michael A. G. Haykin, Richard A. Muller, Willem J. van Asselt e Crawford Gribben. Quero reconhecer minha dívida intelectual para com todos eles. Qs seguintes amigos se destacam como os que de alguma maneira ajudaram neste projeto; Ruben (e Heidi) Zartman, D. Patrick Ramsey, Rowland Ward, Benjamin Swinburnson, Ryan Kelly, Jed Schoepp, Paul Walker, Jonathan Bos, Michael Dewalt e Cornelius Ellebogius. Alguns dos capítulos meus neste livro foram escritos em coautoria. Tive 0 privilégio de escrever dois capítulos com meus mentores: Mark Herzer (29) e Bob McKelvey (51). Foram meus professores no seminário e, nesta vida, sempre estarão acima de mim na doutrina e na vida. Michael Haykin (27), Danny Hyde (41), Ryan Kelly (39), Gert van den Brink (8) e Ted van Raalte (45) também foram coautores de capítulos comigo. Não é nenhum exagero dizer que os capítulos em coautoria estão muito melhores do que estariam caso eu os tivesse escrito sozinho. Leitores tirarão proveito do alto valor acadêmico deles, assim como eu. Agradeço igualmente ao Hunter Powell toda sua ajuda. Devo muito a meu coautor, Joel Beeke. Anos atrás, eu jamais teria sonhado em escrever com ele uma obra tão importante sobre a teologia puritana. Por meio de vários acontecimentos providenciais, porém, recebi este privilégio maravilhoso, e só espero que meu trabalho não esteja fora de lugar ao lado do dele. Ele é um puritano contemporâneo tanto no conhecimento quanto na piedade. Não foi pouco 0 tempo despendido na escrita deste livro. Sou profunda­ mente grato aos membros de minha igreja, a Faith Vancouver Presbyterian Church. Parte do tempo que dediquei a este livro poderia talvez ter sido gasto com eles. De coração, agradeço o sacrifício que fizeram em tornar realidade este projeto.

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Com O nascimento de nossos gêmeos, Thomas e Matthew, em julho de 2010, tive minhas dúvidas se este livro chegaria a ser publicado. Junto com as responsabilidades já importantes de criar meus outros dois filhos da aliança, Katie e Josh, reconheço com alegria a ajuda de minha esposa. Barbara, cujo amor, paciência e encorajamento são, humanamente falando, as principais razões de este livro estar agora concluído. Ao Deus triúno, que me amou com amor eterno e que continuará me amando para sempre por causa de Jesus Cristo, uno-me ao apóstolo Paulo na doxologia: “Porque todas as coisas são dele, por ele e para ele. A ele seja a glória eternamente! Amém” (Rm 11.36). Joel R. Beeke e Mark Jones

Introdução □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□D

A palavra “puritano” teve origem na década de 1560 de forma um tanto pe­ jorativa, aplicada a pessoas que desejavam uma reforma mais abrangente e profunda na Igreja da Inglaterra. Embora alguns historiadores sociais enten­ dam que se deva abandonar o termo por causa das várias formas como foi empregado durante os séculos 16 e 17, outros que se identificam como refor­ mados ou calvinistas defendem que se continue a usar os termos “puritano” e “puritanismo”. Este livro trata de teologia puritana. Seus capítulos examinam várias áreas da teologia sistemática do puritanismo. Já existem excelentes estudos sobre a teologia puritana. Alguns tratam dos puritanos em geral,' outros se concentram na obra de um determinado teólogo puritano.^ Mas até a presente data não há nenhuma obra específica que apresente uma visão panorâmica, tanto histórica quanto sistemática, do pensamento puritano sobre as principais doutrinas das Escrituras. Esperamos que este livro preencha essa lacuna. Iniciaremos dizendo 0 que cobriremos e o que não cobriremos — e as razões para isso.

Os puritanos e o puritanismo Uma das tarefas mais difíceis para o historiador da igreja é definir puritanismo.^ Não é exagero afirmar que uma definição exaustiva dobraria o tamanho desta introdução. Assim mesmo, cabem algumas observações. ’Veja, p. ex., Geoffrey Nuttall, The Holy Spirit in Puritan faith and experience (Chicago: University of Chicago Press, 1992); Ernest Kevan, The grace o f law: a study in Puritan theology (1964; reimpr., Grand Rapids; Reformation Heritage Books, 2011). ^Veja, p. ex., J. 1. Packer, The redemption an d restoration o f m an in the thought o f Richard Baxter: a study in Puritan theology (Vancouver: Regent College, 2000). ^Sobre essa questão, veja Joel R. Beeke, The quest for full assurance: the legacy o f Calvin and his successors (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1999), p. 82, n. 1; Joel R. Beeke; Randall J. Pederson, Meet the Puritans: with a guide to m odem reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), p. xiii-xtx [edição em português: Paixão pela pureza: conheça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES,2010)]; Ralph Bronkema, The essence of Puritanism (Goes: Oosterbaanand

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De acordo com John Coffey e Paul C. H. Lim, “O puritanisme foi um tipo de protestantismo reformado alinhado com as igrejas calvinistas da Europa continental e não com as luteranas”.'’ Afirmam que o puritanisme foi uma “forma especial e bastante vigorosa do início do protestantismo reformado moderno, tendo se originado na Igreja da Inglaterra, como produto daque­ le ambiente peculiar e suas tensões. No reinado de Elizabeth I, a Igreja da Inglaterra era amplamente considerada uma Igreja Reformada’A Sem dúvida, teólogos puritanos eram em sua maioria reformados ou calvinistas. Assim mesmo, não insistimos que os puritanos eram exclusivamente reformados. Definir ortodoxia reformada é algo complexo, mas documentos confessionais — tais como As Três Formas de Unidade® e as Normas de Westminster’’, estas últimas sendo mais relevantes para este livro — nos fornecem um resumo preciso da teologia reformada. Richard Baxter (1615-1691) era, com certeza, puritano, mas não reformado à maneira de William Perkins (1558-1602), Thomas Goodwin (1600-1680) e John Owen (1616-1683). Debates teológicos vigorosos entre Baxter e Owen revelam que suas diferenças iam bem além de questões semânticas. Baxter achava que podia aceitar os Cânones de Dort, mas não nutria semelhante simpatia pelos documentos de Westminster, que excluíam várias de suas idéias, em especial LeCointre, 1929); Jerald C. Brauer, “Reflections on the nature of English Puritanism”. Church His­ tory 23 (1954): 98-109; A. G. Dickens, The English Reformation (University Park: Penn State Press, 1991), p. 313-21; Basil Hall, “Puritanism: the problem of definition”, in: G. J. Gumming, org.. Studies in church history (London: Nelson, 1965), 2:283-96; Charles H. George, “Puritanism as history and historiography”. Past and Present 41 (1968): 77-104; Richard Mitchell Hawkes, “The logic of assurance in English Puritan theology”, Westminster Theological Journal 52 (1990): 247; William Lamonl, “Puritanism as history and historiography: some further thoughts”. Past and present 42 (1969): 133-46; Richard Greaves, “The nature of the Puritan tradition”, in: R. Buick Knox, org.. Reformation, conformity and dissent: essays in honour o f Geoffrey Nuttall (London: Epworth, 1977), p. 255-73; John Morgan, Godly learning: Puritan attitudes towards reason, le­ arning, and education, 1560-1640 (Cambridge; Cambridge University Press, 1986), p. 9-22; D. M. Lloyd-Jones, “Puritanism and its origins”, in: The Puritans: their origins and successors (Edinburgh: Banner of Truth, 1987), p. 237-59 [edição em português: Os puritanos: suas origens e seus sucessores (São Paulo: PES, 1993)]; J. I. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision o f the godly life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 21-36; Tae-Hyeun Park, The sacred rhetoric o f the Holy Spirit: a study o f Puritan preaching in pneumatological perspective (Apeldoorn: Theologische Universiteit Apeldoorn, 2005), p. 73-5; Leonard J. Trinterud, “The origins of Puritanism”, Church History 20 (1951): 37-57. Uohn Coffey; Paul C. H. Lim, “Introduction”, The Cambridge companion to Puritanism (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), p. 2. ’^Coffey; Lim, “Introduction”, The Cambridge com panion, p. 3. '’Normas doutrinárias das igrejas reformadas holandesas e as denominações-irmãs fora dos Países Baixos: a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort. '’Normas principais (Confissão de Fé, Catecismos Maior e Menor) e secundárias (Normas para o Culto Público a Deus, Forma de Governo Eclesiástico Presbiterial e The sum o f saving knowledge [A essência do conhecimento salvífico]).

Introdução

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aquelas sobre a expiação e a justificação. E, conquanto tenha contribuído com outros pastores na redação de A new confession o f faith, or the first principles o f the Christian religion necessary to bee laid as a foundation by all such as desire to build on unto perfection (1654) [Uma nova confissão de fé, ou os primeiros princípios da religião cristã que devem ser lançados como alicerce por todos aqueles que desejam neles edificar rumo à perfeição], Baxter não aprovou sua forma final. E mais, acusou Owen, Goodwin e Thomas Manton (1620-1677) de não possuírem o discernimento exigido para tal empreitada. Considerado em retrospectiva, o puritanismo era mais diversificado do que podia parecer. É preciso entender com cuidado o emprego do vocábulo como termo teológico neste livro. Não é apenas Baxter que desafia uma classificação; isso também ocorre com John Goodwin (1594-1665), arminiano; John Milton (1608-1674), possivelmente ariano; John Bunyan (1628-1688), batista; e John Eaton (c. 1575-c. 1631), antinomiano — todos com frequência considerados puritanos. Coffey e Lim propõem que “batistas calvinistas eram, por exemplo, amplamente reconhecidos como ortodoxos e piedosos, e a igreja nacional puritana do período de Cromwell incorporou alguns batistas lado a lado com presbiterianos e congregacionais”.® Entretanto, a imensa maioria dos puritanos fazia parte do movimento teológico mais amplo denominado ortodoxia reformada.^ É certo que o Parla­ mento inglês desejava que a fé da nação fosse entendida como reformada e protestante. O propósito maior da convocação da Assembleia de Westminster foi assegurar “uniformidade de religião” nos três reinos da Inglaterra, Escócia e Irlanda. Mas isso não significou que os puritanos sempre concordaram em questões de teologia. Mantiveram debates acalorados sobre várias doutrinas (para não mencionar questões de liturgia e governo eclesiástico), conforme se verá nos capítulos seguintes.“ Mas estavam unidos no esforço de derrotar os erros do semipelagianismo católico-romano, do antitrinitarismo sociniano e do livre-arbítrio arminiano. Opuseram-se a católicos romanos tais como o pregador jesuíta Roberto Bellarmino (1542-1621). Rejeitaram o socinianismo. ®Coffey; Lim, “Introduction”, Cambridge com panion, p. 5. ’ Falando acerca do Estatuto da Uniformidade de 1662, pelo qual os puritanos foram expul­ sos da Igreja da Inglaterra, Carl Trueman observa que isso “assegurou que a teologia reformada defendida pela maioria deles deixaria de ser uma força importante nessas três esferas [política, educacional e eclesiástica] “Puritan theology as historical event: a linguistic approach to the ecumenical context”, in: Willem J. van Asselt e Eef Dekker, orgs.. Reformation and scholasticism: an ecum enical enterprise (Grand Rapids: Baker, 2001), p, 253. Para uma breve análise da ortodo­ xia reformada, veja Richard A. Muller, After Calvin: studies in the development o f a theological tradition (New York: Oxford University Press, 2003), p. 33ss. ‘“Sobre esse assunto, veja tb. Michael A. G. Haykin; Mark Jones, orgs.. Drawn into controversie: Reformed theological diversity and debates within seventeenth-century British Puritanism (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011).

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em particular as idéias de Lélio (1525-1562) e Fausto (1539-1604), e o Catecis­ mo Polonês Racoviano (1605). E combateram os arminianos, em especial suas idéias errôneas sobre as doutrinas da predestinação, de Deus, da expiação, da Trindade e da justificação.” Além da acirrada polêmica com os grupos mencionados anteriormente (e também outros), os puritanos revelam indícios de um distanciamento cada vez maior entre teólogos reformados e luteranos. O luteranismo havia sido muito influente nos primórdios da Reforma inglesa, mas, conforme assinalado por Coffey e Lim, os luteranos não faziam parte do movimento puritano. Em escritos puritanos existem algumas referências a Martinho Lutero (1483-1546) e a Filipe Melâncton (1497-1560), mas em geral as referências à teologia lute­ rana são negativas, em especial nas áreas da cristologia e da ceia do Senhor. No enorme corpus literário de autoria de John Owen é notável a ausência de citações de autores luteranos, embora pareça fazer citações de quase qualquer o u t r o O s puritanos acreditavam que o culto luterano mantivera um número demasiado de práticas pré-reformadas não bíblicas.*^ Essa é talvez a principal razão de os luteranos serem considerados teologicamente suspeitos, apesar de terem contribuído para a compreensão da justificação pela fé somente e estarem em geral de acordo com ela. É preciso entender o puritanismo como um movimento que procurou reformar de modo mais amplo e profundo a Igreja da Inglaterra em conformi­ dade com a Palavra de Deus. Por algum tempo, os puritanos tiveram êxito em atingir esse objetivo, como fica evidente no trabalho feito pela Assembléia de Westminster, na introdução da ordenação e do governo eclesiástico presbite­ rianos em vários lugares e na ascensão de puritanos a posições de influência na igreja e no Estado e nas antigas universidades de Oxford e Cambridge. Mas, conforme assinalado por Carl Trueman, o puritanismo sofreu um duro golpe como movimento de reforma dentro da Igreja da Inglaterra: “Em 1662, com a aprovação do Estatuto da Uniformidade, aqueles que faziam parte da Igreja da Inglaterra e desejavam uma reforma mais ampla de suas práticas e que achavam impossível aceitar aquilo que consideravam aspectos papistas do Livro de Oração Comum, foram forçados a fazer uma escolha difícil: ou se conformavam e abandonavam suas profundas crenças sobre a igreja ou a “Veja Aza Goudriaan, “Justification by faith and the early Arminian controversy”, in: Maarten Wisse; Marcel Sarot; Willemien Otten, orgs.. Scholasticism reformed: essays in honour of Willem J. van A sset (Leiden: Brill, 2010), p. 155-78. ’^Por acaso, ele adota, porém, um ponto de vista “luterano” sobre a relação entre a antiga e a nova aliança, '^“Acompanhando os reformados, os puritanos acreditavam que a igreja luterana permane­ cia demasiadamente ‘p^pista’ em sua liturgia, em sua teologia sacramental e em seu governo eclesiástico.” Coffey; Lim, “Introduction”, Cambridge companion, p. 2.

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deixavam em protesto. Quase dois mil escolheram a segunda opção, e assim 0 puritanismo fez a transição para o não conformismo”.** O que ocorreu com o puritanismo? Em certa ocasião, Norman Sykes apre­ sentou este conciso resumo: Em comparação com o século anterior, o século 18 testemunhou em todas as igrejas um acentuado declínio do fervor religioso. Com a acessão da dinastia de Hanôver,'*’ teve início uma era de moderação, sobriedade e acordos. A igreja estabelecida tinha as salvaguardas da Lei do Teste*'’ e da Lei das Associações;*^ e os dissidentes protestantes,*® com a garantia da tolerância’“* e muito divididos por controvérsias teológicas, conformaram-se, adotando uma posição de aquiescência passiva. Em termos políticos, o fato de terem criado a comissão dos delegados dissidentes“ lhes permitiu preservar o status quo no que diz respeito à tolerância garantida pela lei, mas não conseguiram ampliá-la; e o fato de aceitarem doações reais, o regirnn donum,^' como contribuição anual para suas entidades filantrópicas, significou que se acomodaram e assim viveram “sossegados em Sião”.“

Alguns, como é o caso de Trueman, propõem que 1662 foi o final da era puritana, visto que as tentativas de reformar a Igreja da Inglaterra terminaram com a tríplice restauração da monarquia, do episcopado histórico e do Livro de Oração Comum. Outros, como Sykes, sustentam que a transição do puritanismo '“'Trueman, “Puritan theology as historical event”, p. 253. "'Em 1714, George Louis, príncipe-eleitor de Hanover, assumiu o trono britânico com o tí­ tulo de rei George 1. "'Série de leis inglesas do século 17, também chamada Ato de Prova, que revogavam di­ versos direitos cívicos, civis ou de família para os católicos e outros dissidentes religiosos não anglicanos. (N. do E.) "“Aid 1828, a Lei do Teste e a Lei das Associações estabeleciam um teste religioso como condição para as pessoas ocuparem cargos públicos, exigindo, entre outras coisas, que anual­ mente autoridades e funcionários públicos recebessem a Santa Comunhão na Igreja da Inglaterra. "'Em pouco tempo o movimento e seus membros seriam conhecidos apenas como “não conformismo” e “não conformistas”. ’’Em 1689, o Estatuto da Tolerância concedeu liberdade de culto a dissidentes protestantes trinitários, desde que se reunissem em casas de culto registradas junto às autoridades. “ Iniciando por volta de 1732, cada igreja batista, congregacional e presbiteriana existen­ te num raio de dezesseis quilômetros de Londres nomeava delegados para agirem de comum acordo como um comitê de ação política ou lobby para proteger os direitos e interesses do não conformismo. A derrubada dos Estatutos da Conformidade e das Corporações foi em grande parte fruto do esforço desses delegados. ^'A partir de 1721, passou a haver uma “doação régia” de fundos públicos para ajudar mi­ nistros não conformistas pobres e suas viúvas, distribuída por representantes das igrejas batista, congregacional e presbiteriana. Essa doação cessou em 1857. “ Norman Sykes, The English religious tradition: sketches o f its influence on church, State, and society (London: SCM, 1953), p, 66,

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para a dissidência protestante ocorreu depois de 1689 com a Lei da Tolerância. E alguns preferem dizer que o puritanisme terminou com a morte de John Howe (1630-1705), pastor da igreja Silver Street Presbyterian Church, em Londres. Qualquer que tenha sido o ano, o puritanisme diz respeito especialmente a questões de igreja e Estado, de teologia e culto nos séculos 16 e 17. Depois de 1689, todas as partes envolvidas nos grandes conflitos de décadas anteriores depuseram armas e começaram a coexistir mais ou menos pacificamente. Isso é importante porque, embora Jonathan Edwards (1703-1758) fosse puritano em sua teologia e piedade e às vezes seja considerado o último dos puritanos, não era puritano no sentido histórico estrito. Por isso, este livro não inclui capítulos sobre a teologia de Edwards, por mais fascinantes que sejam. Os homens de Marrow e os separatistas da Escócia, os ilustres teólogos da “Antiga Escola de Princeton”, Thomas Chalmers (1780-1847), Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), John Charles Ryle (1816-1900), Martyn Lloyd-Jones (1899-1981), James I. Packer (1926-) e outros eruditos, embora com uma mente profundamente aberta aos puritanos, não podem ser considerados puritanos no sentido dos teólogos de Westminster. Caso fossem, o puritanisme perderia qualquer sentido histórico específico. Para entendermos os puritanos, devemos reparar naquilo que Tom Webster afirma sobre os três aspectos distintivos de um puritano. Em primeiro lugar, os puritanos tinham uma comunhão dinâmica com Deus que moldava sua mente, afetava suas emoções e penetrava sua alma. Estavam fundamentados em algo e em alguém fora de si próprios: o Deus triúno das Escrituras. Em segundo, os puritanos adotavam e partilhavam um sistema de crenças fundamentadas nas Escrituras. Hoje nos referimos a esse sistema como ortodoxia reformada. Em terceiro, com base em sua experiência espiritual comum e sua unidade na fé, os puritanos estabeleceram uma rede de relacionamentos entre crentes e m inistros.E ssa comunhão de irmandade cooperativa nasceu na Inglaterra elizabetana do século 16 e se desenvolveu na Inglaterra e na Nova Inglaterra do século 17. A característica distintiva do puritanismo foi sua busca de uma vida reformada pela Palavra de Deus. Os puritanos estavam comprometidos a examinar as Escrituras, organizar e analisar suas descobertas e então aplicá­ -las a todas as áreas da vida. Tinham uma abordagem confessional, teológica e trinitária que instava à conversão e à comunhão com Deus na vida pessoal, familiar, eclesiástica e nacional. Assim, quando, por exemplo, chamamos Thomas Goodwin de puritano, queremos dizer que fez parte de uma rede espiritual de líderes alicerçados em crenças reformadas e na comnnhão vivencial com Deus. Puritanos como

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^^Tom Webster, Godly clergy in early Stuart England: the Caroline Puritan movement, c. 1620­ (Cambridge: Cambridge University Press, 1997), p. 333-5.

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Goodwin trabalharam pela reforma baseada na Bíblia e pelo avivamento no po­ der do Espírito nas esferas pessoal, familiar, eclesiástica e nacional na Inglaterra a partir da década de 1560 até a de 1660 e mesmo depois. Seus escritos e os de seus contemporâneos tratavam de “doutrina para a vida”, sustentando a crença, mais tarde ratificada por presbiterianos norte-americanos, “de que a verdade era o meio para se chegar à bondade, e o grande meio de avaliar a verdade é sua tendência em promover a santidade”. Em resumo, o movimento do puritanismo, ocorrido no final do século 16 e no 17, foi uma espécie de um vigoroso calvinismo. No aspecto experiencial, era caloroso e contagiante; no aspecto evangelístico, era agressivo e ao mesmo tempo terno; no aspecto eclesiástico, buscava praticar a autoridade de Cristo sobre a fé, o culto e o governo de seu corpo, a igreja; no aspecto político, era ativo, equilibrado e guiado pela consciência perante Deus no relacionamento com 0 rei, o Parlamento e os cidadãos.^^ Packer o expressa bem: “O puritanis­ mo foi um movimento evangélico de santidade que procurou implantar sua visão de renovação espiritual — nacional e pessoal — na igreja, no Estado e no lar; na educação, na evangelização e na economia; no discipulado pessoal e na devoção, e no cuidado e competência pastorais”.“

Objetivos do livro e dos capítulos Alguns capítulos deste livro tratam de muitos puritanos; alguns, de uns poucos; e alguns, só de um. Por vários motivos, isso foi intencional de nossa parte. Capítulos que analisam muitos puritanos apresentam um quadro daquilo que se pode chamar de “posição puritana” ou “consenso puritano”.^^ Quando se analisam uns poucos puritanos, podemos examinar mais detalhadamente 0 pensamento de cada autor, mas também assinalar diferenças, nuanças e ênfases de cada um. Por fim, capítulos que se concentram principalmente em um único puritano, ainda que em interação com seus contemporâneos, permitem-nos oferecer uma ideia razoavelmente abrangente acerca do que um teólogo específico pensava sobre uma doutrina específica. Os autores tratados como o principal assunto de um capítulo refletem, de forma típica, a teologia puritana básica, ou, no caso do capítulo sobre o supralapsarismo cristológico de Thomas Coodwin, uma posição que era aceitável dentro da ^‘‘“Preliminary principles”. Form o f governm ent o f the Presbyterian Church in the U.S.A. (Philadelphia: Presbyterian Board of Publication, 1839), livro 1, cap. 1, seção 4. ^‘‘Beeke; Pederson. Meet the Puritans, p. xviii-xix. ^'"J. 1. Packer, “An Anglican to remember — William Perkins: Puritan popularizer”, St. Antholin’s Lectureship Charity Lecture, 1996, p. 1-2. “^Por exemplo, nos capítulos sobre a aliança das obras e a antiga e a nova alianças vemos unidade e diversidade.

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tradição reformada. Em alguns casos, um capítulo dedicado a um único autor puritano nos proporciona um exame mais próximo de puritanos que outros ignoraram, como é o caso de Thomas Manton, Christopher Love (1618-1651) e Stephen Charnock (1628-1680). Alguns capítulos também interagem com teólogos da Europa continental. Isso também é intencional de nossa parte. Qualquer um familiarizado com os escritos dos puritanos descobrirá que citaram centenas de autores de muitas tradições diferentes e de todos os períodos da história eclesiástica. Optamos por interagir principalmente com teólogos reformados do continente, visto que os puritanos que analisamos se consideravam parte do movimento internacio­ nal mais amplo de ortodoxia reformada. João Calvino (1509-1564), Johannes Maccovius (1588-1644), Johannes Cocceius (1603-1669), Francis Turretin (1623-1687), Herman Witsius (1636-1708) e outros são, com frequência, in­ cluídos na análise para mostrar as semelhanças ou ocasionais diferenças entre os puritanos e teólogos reformados do continente. Em muitos capítulos sentimos que mal tocamos na superfície. Por exemplo, é quase impossível oferecer em um único capítulo uma visão panorâmica da gigantesca obra de Stephen Charnock, The existence and attributes o f God [A existência e os atributos de Deus]. Nossa esperança é que esses capítu­ los apresentem um quadro geral, e também preciso, de várias doutrinas, ao mesmo tempo que abram o apetite dos estudantes do puritanismo para que se dediquem a um estudo mais aprofundado e detalhado dessas doutrinas. Nosso objetivo foi ser bem abrangente, mas temos de reconhecer que não cobrimos todas as áreas da teologia puritana.^® Obras grandes de um único vo­ lume tipicamente sofrem do seguinte mal: não têm a amplitude e profundidade de uma obra com vários volumes. Mesmo assim, quase todas as principais doutrinas puritanas são analisadas, e alguns capítulos cobrem tópicos que com facilidade poderíam ser expandidos e transformados em uma monografia ou em uma tese (p. ex., a visão beatífica ou a pregação puritana). Neste livro, também tivemos o propósito de fazer teologia histórica res­ ponsável. Os capítulos foram planejados para apresentar um quadro preciso daquilo que os puritanos disseram, não daquilo que gostaríamos que tivessem dito. Reconhecemos que houve pontos fortes e fracos na teologia puritana. Não há nenhuma dúvida de que, por mais fascinante que fosse, a escatologia de Thomas Goodwin tinha muitos problemas. Próximo ao fim de sua vida. “ Também não introduzimos muito material biográfico sobre os autores puritanos aqui exa­ minados nem relação bibliográfica daqueles seus livros que foram reimpressos, visto que isso foi feito por Beeke e Pederson em Meet the Puritans [Paixão pela pureza]. Esse livro conta a his­ tória de todos os quase 150 puritanos cujas obras foram reimpressas desde o ressurgimento da literatura puritana na década de 1950 e fornece breves descrições dos quase setecentos títulos puritanos reimpressos, servindo como uma espécie de complemento a este livro.

Introdução

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Goodwin lamentou ter estabelecido uma data para o início do milênio (su­ postamente 1666). Os puritanos não se destacaram na escatologia. Teólogos reformados dos séculos 20 e 21 têm apresentado à igreja uma posição exegeticamente mais defensável na compreensão, por exemplo, de Apocalipse. Feita essa ressalva, cremos que os puritanos não apenas estavam corretos na maioria das áreas da teologia, mas também se distinguiram na maior parte delas. Antes dos puritanos, poucos teólogos conseguiram escrever com tanta precisão teológica e ao mesmo tempo também aplicar a teologia ao coração e à mente daqueles que ouviam seus sermões e liam seus livros. “Doutrina para a vida” foi uma ênfase contínua nos escritos dos puritanos, que eram quase todos teólogos altamente treinados, bem como pastores de igrejas. Muitos se esquecem de que a maioria dos maiores teólogos que Deus deu à igreja também foram pastores e mestras na igreja local. Temos também a esperança de que este livro sepultará muitas ideias er­ rôneas acerca dos puritanos. Isso explica o destaque dado em cada capítulo às fontes primárias. Somos gratos por boa literatura secundária a respeito dos puritanos, mas, ao escrevermos este livro, nossa dependência foi maior (de longe) de documentos primários dos séculos 16 e 17. Por exemplo, aparente­ mente nunca desaparece a crítica de que os puritanos eram legalistas.^“’ Mas, se as pessoas prestassem atenção ã teologia puritana no seu todo, é provável que repensariam essa crítica. Também esperamos, com este livro, lançar em descrédito a historiografia denominada “Calvino versus calvinistas”, se é que já não foi desacreditada há muito tempo. E esperamos que uma leitura cuida­ dosa dos capítulos deste livro apresentará a você aquilo que os puritanos de fato disseram sobre determinada doutrina, o que poderá ser então comparado com aquilo que outros talvez pensem ou afirmem que os puritanos disseram. Este livro termina com oito capítulos que mostram várias maneiras que os puritanos empregaram para colocar em prática a sua teologia. Embora a “doutrina para a vida” esteja presente ao longo de todo o livro, consideramos que seja apropriado e fiel à teologia puritana oferecer uma conclusão assim. (Os puritanos não conseguiam deixar de ter suas “práticas habituais” para cada doutrina, nem nós poderíamos deixar de mencioná-las na exposição das suas crenças.) Na introdução de sua excelente obra A quest for godliness [Busca da ^‘’Pelo visto, Coffey e Lim deixam implícito que os puritanos eram legalistas: “E, à seme­ lhança dos reformados, era típico fazerem ressalvas à antítese de Lutero entre lei e evangelho, destacando o papel da lei de Deus na vida cristã e na comunidade local e, na Inglaterra e nos Estados Unidos, procurando (às vezes com visível êxito) recriar Genebras piedosas, Esse legalismo provocou dentro do movimento uma ‘reação antinomiana’, mas, mesmo quando puritanos radicais rejeitaram idéias reformadas ortodoxas sobre a lei moral, a predestinação ou o batismo infantil, ainda se definiam do ponto de vista da relação com a tradição reformada”. “Introduction”, Cambridge com panion, p. 3.

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santidade], J. I. Packer comentou que os capítulos de seu livro “não são ape­ nas história e teologia histórica; são, pelo menos no objetivo, espiritualidade, assim como tudo mais que tenho escrito”.^“ Fazemos eco a esse sentimento e oramos para que esta obra afete não apenas a mente, mas também o coração dos leitores. Para os puritanos, esse seria um resultado muito desejado. Temos a expectativa de que este livro sobre teologia puritana atrairá o interesse de muitos tipos de pessoas. Eruditos o acharão útil por causa da atenção que dedicamos a fontes primárias e do esforço que fizemos por refletir com precisão aquilo em que os puritanos acreditavam sobre várias doutrinas. Mas 0 público-alvo deste livro não é basicamente acadêmico. Pelo contrário, esperamos que este livro também atraia o interesse de cristãos de todo tipo: leigos, estudantes de teologia, seminaristas e líderes eclesiásticos ordenados, como pastores, presbíteros e diáconos. Não é fácil atingir esses grupos variados, mas fizemos o possível para preparar um livro que permite — para citar uma expressão conhecida — que “elefantes nadem e crianças brinquem na água”. Quase todas as palavras, expressões e frases em latim, grego e hebraico foram traduzidas para o leitor. Concluindo, lembramo-nos do comentário feito pelo arcebispo James Ussher (1581-1656) de que todo nosso conhecimento é exigido para tornar claras essas coisas. Fizemos o possível para atingir esse objetivo. Escrevemos a maioria dos capítulos especialmente para este livro. Alguns foram republicados, e somos gratos a várias editoras por permitirem que os incluíssemos aqui. No entanto, em quase todos esses casos reescrevemos e editamos — na maioria dos casos de forma substancial — aqueles capítulos publicados anteriormente. Também é preciso assinalar que tomamos a liberdade de atualizar a grafia de citações tiradas de livros antigos.

“ Packer, A quest for godliness, p. 16.

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P R O LE G Ô M E N O S □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□O

Capítulo 1 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□D

O pensamento puritano sobre a teologia natural e a teologia sobrenatural □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□D

Naquele tempo, Jesus exclamou: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e eruditos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim 0 quiseste. Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar. Mateus 11.25-27

0 conceito de revelação natural e sobrenatural não aparece entre os temas principais nos escritos dos puritanos, mas também não foi algo que ignoraram.^ Várias obras notáveis foram escritas sobre a natureza da revelação, tratando dos conceitos de teologia natural e revelação sobrenatural. Uma premissa básica do pensamento reformado em geral e daqueles puritanos que se identificavam como teólogos reformados em particular era a ideia de que não é possível nenhum conhecimento de Deus a menos que proceda dele. Ele é a fonte de todo conhecimento e, em particular, do conhecimento dele. O conhecimento de Deus só é possível em virtude da autorrevelação de Deus. Para os puritanos, a teologia natural estava intimamente ligada à criação de Adão à imagem de Deus, e, por isso, ele foi abençoado com uma teologia natural [theologia naturalis], ou conhecimento de Deus tanto inato quanto ‘Veja 0 artigo de J. V. Fesko; Guy M. Richard, “Natural theology and the Westminster Confession of Faith”, in: J. Ligon Duncan, org.. The Westminster Confession into the 2lst century: essays in remembrance o f the 350th anniversary o f the Westminster Assembly (Fearn, Escócia: Mentor, 2003), 3:223-66.

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adquirido nas obras das mãos de Deus ao seu redor. Os teólogos puritanos debateram entre si se todo conhecimento de Deus antes da Queda do homem era natural ou sobrenatural, mas todos concordavam que Adão possuía uma teologia natural. Depois da Queda, a teologia natural não cessou, mas por causa do pecado o hom em é incapaz de conhecer devidamente a Deus. Pro­ testantes ortodoxos chegaram inclusive a defender uma teologia natural dos regenerados {theologia naturalis regenitorum] que era útil no contexto de uma vida regenerada, mas a teologia natural desempenhou um papel decididamente subserviente à teologia sobrenatural {theologia supematuralis) no contexto da redenção. Para os teólogos puritanos reformados, a teologia sobrenatural tinha em vista a revelação de Deus, que não se limita às Escrituras, mas certam ente as inclui como a Palavra escrita de Deus, em particular na era pós-apostólica, quando cessou toda revelação especial. Os puritanos sustentavam que apenas mediante Cristo, por meio do Espírito Santo, é que, no que diz respeito a Deus, alguém pode chegar ao conhecimento que é suficiente para a salvação — daí 0 conceito de conhecimento duplo de Deus {duplex cognitio D ei) . A teologia natural é suficiente para deixar os seres humanos sem desculpas (Rm 1.18-21), mas não pode salvá-los, pois o conhecimento salvador é encontrado somente em Cristo. O conhecimento que o próprio Cristo tem de Deus o habilita a re­ velar Deus; assim, a revelação sobrenatural tem um foco cristocêntrico explí­ cito. Mas, conforme assinalado por John Owen (1616-1683), o Espírito Santo proporciona o testemunho que capacita os crentes a reconhecer e receber as Escrituras como Palavra de Deus. Apesar da natureza autoautenticadora da Palavra de Deus, sem o Espírito Santo ela é incapaz de levar seres humanos pecadores à fé e à salvação. Com essa ênfase em Cristo e no Espírito, teólogos puritanos como Owen abraçaram um a sólida teologia trinitária da revelação. Por fim, a revelação de Deus por meio de Cristo aconteceu no contexto da aliança com Deus. O relacionamento de Deus com suas criaturas sempre foi por meio de aliança, e, desse modo, sua revelação a eles tem de ser entendida não apenas como cristológica, mas tam bém como pactuai. Os elementos an­ teriormente mencionados não retratam totalm ente o quadro, mas com certeza fornecem os componentes básicos para a compreensão das teologias natural e sobrenatural no pensamento de teólogos reformados britânicos no século 17.

Teologia natural É certo que teólogos cristãos nem sempre têm concordado sobre o tópico da teologia natural. Mas entre os puritanos encontramos concordância geral sobre a veracidade e, portanto, a utilidade da teologia natural quando devidamente entendida. Destacam-se várias obras desse período: Systeme, or body o f divinity (1654), de Edward Leigh; Life etem all (1631), de John Preston; The living

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tem ple (1675), de John Howe; Natural theology (1 6 7 4 ), de Matthew Barker; e vários estudos de autoria de John Owen, em particular aqueles encontrados nos volumes 4, 5 e 17 de The works o f John Owen, D.D. [As obras de John Owen, doutor em divindade]. Além disso, muitos outros autores puritanos trataram do conceito de teologia natural, especialmente Samuel Rutherford, William Twisse, Stephen Charnock e Thomas Goodwin. Vários estudiosos examinaram 0 conceito de teologia natural nos puritanos, sendo que a obra de Sebastian Rehnman se destaca por sua análise perspicaz do texto de Owen intitulado

Theologoumena p a n ta d a p a J Ademais, a obra de Richard Muller sobre os prolegômenos, que inclui uma seção sobre teologia natural, fornece uma visão minuciosa dos teólogos reformados da Europa continental durante o período da pós-Reforma.^ Em seus escritos, os teólogos reformados ortodoxos continentais deram mais atenção ao conceito de teologia natural, o que em parte explica por que Rehnman frequentemente com para Owen com Amandus Polanus, Francis Turretin e Petrus van Mastricht. De modo análogo, a análise de Muller trata quase que exclusivamente de escolásticos protestantes da Europa continental. A primeira geração de reformadores nem sempre concordou com o valor e os limites da teologia natural.“ Posteriormente, os reformados ortodoxos analisariam os limites da teologia natural com mais precisão do que, por exemplo, João Calvino havia feito. Entre os puritanos, com frequência o papel da teologia natural era exposto em contraste com idéias arminianas, papistas e socinianas que conflitavam com a ortodoxia reformada. Por exemplo, os socinianos defendiam que Deus pode exigir de seres humanos apenas aquilo que ele dá; se Cristo não é dado aos pagãos, então estes podem ser salvos sem Cristo.^ Em resposta a isso, puritanos de convicções teológicas reforma­ das declararam energicamente que a teologia natural é incapaz de salvar, mas pode preparar um hom em ou uma mulher para a graça. Matthew Barker (1619-1698) assinala que o evangelho cham a as pessoas a crer em Cristo e que a ideia de Deus no coração das pessoas pode “estimular e influenciar as pessoas” a crer.^ Mas, quando puritanos como Barker desenvolveram sua própria teologia natural, sempre o fizeram no contexto mais amplo de seu

Weja Sebastian Rehnman, Divine discourse: the theological methodology o f John Owen (Grand Rapids: Baker, 2002). Weja Richard Muller, Post-Reformation Reformed dogmatics: the rise and development of Reformed orthodoxy, ca. 1520 to ca. 1725 (Grand Rapids: Baker, 2003), 4 vols. '‘Muller, Posi-re/brmation, 1:278. ®Owen se refere com frequência aos erros básicos dos socinianos em sua obra Theologoumena. “Fungum primum hominem et stipitem, vixdum rationis compote fuisse fingunt Sociniani; tanquam Dei, sui, uxoris, aliarumque creaturarum ignarum, deridendum quasi propinant”, in: The Works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 17:40 (1.4.4). ^Matthew Barker, Natural theology (London: N. Ranew, 1674), p. 70.

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sistema de teologia sobrenatural. Assim sendo, o conhecimento de Deus é, de acordo com John Owen, em parte natural e em parte sobrenatural;^ é inato e adquirido. Conforme Barker defendeu adicionalmente, embora as Escrituras sejam autoautenticadoras [autopistos) e o testemunho do Espírito Santo na consciência humana produza a confiança na Palavra de Deus, “assim mesmo alguma força adicional pode ser tom ada de empréstimo da Luz da N atureza”.® Contudo, apesar do fato de a teologia natural e a sobrenatural se reforçarem mutuamente — afinal, um axiom a básico do pensamento reformado é a crença de que a graça não se opõe à natureza — é preciso distinguir as duas. De acordo com Barker, a teologia consiste em duas partes: revelação na­ tural e revelação sobrenatural. A primeira é o conhecimento de Deus que está disponível por meio da criação. Adão foi feito à imagem de Deus, e, dessa maneira, seu conhecim ento de Deus foi obtido tanto pela palavra implantada

(tòv e/jcpuTov Xóyov, Tg 1.21) quanto, conforme assinalado por Barker, “por aquilo que o grande poder de suas faculdades intelectuais pudesse colher das obras da criação ”.^ Juntas, a palavra implantada e a revelação de Deus na criação levaram Adão a conhecer e a am ar a Deus. Com esse conhecimento básico de Deus, que tam bém é conhecido como a “percepção do divino” [se n ­ sus divinitatis), os reformados ortodoxos ensinaram que a teologia natural é

em parte natural e em parte adquirida.“ Surge, porém, uma pergunta importante sobre se antes da Queda Adão possuía revelação sobrenatural. Rehnman assinala que Owen é “vago quanto à restrição da teologia sobrenatural para depois da Queda, pois sustenta que originalmente a revelação era em parte sobrenatural e que o propósito era que essa parte crescesse a cada dia”.“ Se a teologia antes da Queda era em parte natural e em parte sobrenatural, isso tem forte relação com a maneira que vários teólogos entendiam a exata natureza da aliança das obras, em particular com 0 “fim” de Adão. Mas mesmo aqui deparamos com alguns problemas. Alguns teólogos reformados (como Thomas Goodwin [1600-1680]) susten­ tavam que 0 fim de Adão teria sido vida contínua no jardim do Éden; ele não teria a recompensa da vida no céu, a qual só Cristo podia possuir. Qutros (p. ex., Francis Turretin [1623-1687]) criam que o fim sobrenatural de Adão seria a vida no céu, de conformidade com as condições estabelecidas na aliança. E ainda

'Owen, Theologoumena, in: Works, 17:27-31 (1.4.1). “Barker, Natural theology, p. 68. ^Barker, Natural theology, p. 4. '“De acordo com Francis Hirretin, “Os ortodoxos [...] ensinam, de modo uniforme, que existe uma teologia natural, em parte inata [...] e em parte adquirida”. Institutes o f elenctic theology, edição de Jam es Dennison Jr., tradução para o inglês de George Musgrave Giger (Phillipsburg: P&R, 1992), 1.3.4. "Rehnman, Divine discourse, p. 79.

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outros (como Owen) hesitaram em definir sua posição sobre o assunto.'^ É interessante que Goodwin acreditava que a teologia de Adão antes da Queda era puramente natural, o que se harm oniza bem com sua ideia de que o fim de Adão não seria sobrenatural. Turretin, que de fato defende um fim sobre­ natural para Adão (caso este tivesse permanecido obediente], também limita a revelação sobrenatural para depois da Queda. Voltando à posição de Qwen, Rehnman conclui que, no que diz respeito a esse puritano, a teologia antes da Queda “não era de todo natural, pois desde o início era passível de ampliação mediante revelação adicional visto que a revelação especial era necessária para a obediência”.'^ Ademais, o fato de que Adão esteve debaixo da aliança das obras, que incluía preceitos sacram entais, parece harm onizar melhor com a ideia de que a revelação antes da Queda foi em parte sobrenatural. Owen e Goodwin discordaram com frequência em pontos de doutrina, e cada um adotou um a abordagem diferente nesse ponto específico. Em meu ponto de vista, 0 supralapsarismo cristológico de Goodwin explica por que ele limita a revelação sobrenatural ao período pós-lapsariano. Para Goodwin, a revelação sobrenatural é explicitamente cristocêntrica, e só Cristo pôde m erecer um fim sobrenatural devido à dignidade de sua pessoa, algo que Adão jamais poderia m erecer em sua condição de “hom em da terra”, em contraste com o “homem do céu ”, Jesus Cristo. A posição de Goodwin sobre os limites da teologia natural, que se estendem muito além dele, exige análise adicional posterior. Goodwin explica a distinção (“tão empregada por todos os grupos, tanto por estudiosos quanto por nossos próprios teólogos”) entre retidão natural e graça sobrenatural com o a diferença entre o conhecim ento de Deus que é natural ao hom em e o conhecimento de Deus que vem de modo sobrenatural e que vai “além da natureza”.''* Goodwin tece considerações sobre essas duas maneiras de conhecer a Deus no estado da inocência. Defende uma ideia or­ todoxa da teologia natural de Adão de forma muito parecida com a de Owen e Barker. Mas Goodwin também fala daquilo que “é concedido ao homem além de seu dever natural e vai su p ra e x ig e n tia m [além da necessidade imediata da] criatura, mais do que aquilo que era apropriado que Deus lhe concedesse ao criá-lo com a razão — isso, digo, é sobrenatural e é, portanto, denominado graça, uma dádiva gratuita além e acim a daquela necessariam ente devida a

'^Acerca de Goodwin, veja Of the creatures, and the condition o f their estate by creation, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Re­ formation Heritage Books, 2006), 7:44-69. Quanto a Ttirretin, veja Institutes, 8.6.3; cf. 8.3.15. Sobre Owen, veja Theologoumena, in: Works, 17:42 (1 .4 .7 ): “Quo verb demum spatio temporis decurso, Adamo sub ratione praemii Deo frui contigisset, cum id Deus ipse tanquam futurum nunquam prassciverit, subtilis et periculosa est disceptatio”. '^Rehnman, Divine discourse, p. 84. Cf. Carl Trueman, John Owen: Reformed Catholic, Renaissance m an (Aldershot: Ashgate, 2007), p. 67-70. ‘“Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:44.

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tal criatura”.^® Por isso. Deus guardar Adão de cair em pecado teria sido algo que estava acim a do dever natural de Adão. Com essas distinções em mente, Goodwin defende que o meio ordinário de Adão conhecer a Deus e se alegrar nele ocorria no âmbito natural; sua felicidade era uma felicidade natural. Goodwin descreve assim esse conhecim ento natural:

[A pessoa tem] inicialmente uma luz fraca e oscilante, e princípios e vislumbres comuns, embora obscuros, das noções de coisas semeadas na mente pela natureza. Então, mediante observação e concatenação, e deste modo deduzindo uma coisa a partir de outra, a mente depura e amplia tais princípios e vislumbres, até chegar a um conhecimento específico, claro, distinto e perfeito daquelas coisas que procura conhecer [...] E, com esse objetivo, no instante da criação, Deus semeou na mente do homem noções e princípios santos e santificadores que dizem respeito tanto à sua própria natureza, que tipo de Deus ele era, quanto também à sua vontade [...] e esses princípios deviam, pela razão agora retificada, ser depurados, ampliados e confirmados, elucidados e dignificados — a partir da observação das criaturas e das obras da providência, bem como da aliança das obras — até chegarem a um conhecimento pleno, claro e distinto de Deus.'^ Nesse estado, Adão teve a capacidade natural de conhecer a natureza de Deus (seus atributos, como sabedoria, poder e eternidade) e a vontade de Deus para o homem. A maneira de Goodwin se expressar encaixa-se precisamente na descrição de Muller acerca da posição ortodoxa reformada básica sobre a teologia natural de Adão:

A semente da religião {semen religionis] ou percepção do divino {sensus divinitatis; sensus numinis] não é conhecimento inato {cognitio innata), num sentido platônico, não é conhecimento infundido {cognitio infusa] — tão estranho à mente, que sem ele ela é um espaço em branco, uma tabula rasa — nem é como o conteúdo da disciplina da teologia, que é um conhecimento adquirido.'^ Então, citando TUrretin,'® Muller mostra que teólogos reformados ensina­ ram que a teologia natural é em parte inata e em parte adquirida do livro da criação, o que se encaixa muito bem na citação de Goodwin mencionada ante­ riormente.'® Goodwin afirma que Adão não tinha conhecimento inato completo dos atributos de Deus e, por esse motivo, precisou ampliar seu conhecimento

'^Goodwin, Of the creatures, in; Works, 7:44. “’Goodwin, Of the creatures, in; Works, 7:45-6. '^Muller, PosM?e/bí77iaíion, 1:284. '®“De fato, os ortodoxos ensinam constantemente que a teologia natural é em parte implantada {insitam}, sendo derivada, por meio de intuições comuns ou básicas, do livro da consciência, e em parte adquirida {acquisitam], surgindo, racionalmente, do livro das criaturas”. Huretin, Institutes, 1.3.4. '^Muller, Posí-Reformarion, 1:285.

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“inerente e obscuro” de Deus.^° De modo análogo, Adão tinha o conhecimento da vontade de Deus semeado em seu coração, o que incluía a lei moral. Quando confrontado com uma decisão moral, Adão tinha um a percepção inata daquilo que devia fazer em qualquer situação específica. Após a Queda, essa lei moral continua presente nos seres humanos, mas está reduzida a uma mera sombra, “uma representação imperfeita”.^' Ademais, em concordância com o que foi assinalado anteriormente, Adão ampliou seu conhecimento ao observar a cria­ ção. Com a instituição do sábado, Adão pôde contemplar as obras de Deus, o que, “debaixo da aliança das obras, era o principal dever no sábado” (SI 42).^^ No pensam ento de Goodwin, se Adão possuía ou não conhecim ento sobrenatural era algo que dependia do tipo de fé — natural ou sobrenatural — que a aliança das obras exigia dele. De acordo com Goodwin, a fé sobre­ natural capacita os seres humanos a conhecer, da parte de Deus, revelação superior àquela requerida pela natureza. A fé é infundida por esse motivo, e a maioria dos teólogos se refere à fé como um dom sobrenatural. Adão teve não somente a “luz inata da natureza”, mas tam bém “outra janela e entrada de conhecim ento, a saber, a revelação da parte de Deus e a com unicação com ele”.^^ Por esse motivo, cônscio de que alguns teólogos afirmavam que Adão possuía revelação sobrenatural da parte de Deus, Goodwin procura provar que a fé que Adão tinha era natural — em oposição à fé sobrenatural que os crentes recebem na aliança da graça — , o que significa que tudo que Adão teve debaixo da aliança das obras foi teologia natural.

“ Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:46. ^'Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:47. ^^Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:48. “ Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:54. “ Goodwin estabelece, repetidamente, um forte contraste entre a aliança das obras e a alian­ ça da graça. “Aquele melhor conhecimento e prazer de Adão eram inferiores, e de uma categoria menor, do que o conhecimento e a comunhão com Deus, de que em Cristo, mediante a fé, desfru­ tamos aqui, nesse estado de graça em que o evangelho nos coloca”. (Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:43.) Também, frente aos papistas, que defendiam que Adão recebeu dons sobrena­ turais como parte de ter sido feito à imagem de Deus, Goodwin responde assim: “Mas, então, fazem essa interpretação absurda de nossa afirmação, de que não se pode perder aquilo que é natural e de que aquilo que, por um ato sobrenatural de Deus, foi dado aos anjos e a nós tem de ser necessariamente sobrenatural”. Goodwin responde a essa objeção, assinalando que três coisas pertencem a homens e a anjos. Em primeiro lugar, a alma em si, uma propriedade essen­ cial que, caso seja tirada, significa que um homem deixa de ser homem. Em segundo, homens e anjos também possuem entendimento, vontade e sentimentos. Estes também são essenciais ao ser das pessoas e dos anjos. Em terceiro, também existem várias disposições naquelas faculdades que aperfeiçoam a alma, “mediante as quais ela pode alcançar felicidade e bem-aventurança e nestas ser preservada”. Entre elas acha-se a santidade, em que a alma pode ser aperfeiçoada ao mesmo tempo que também está sujeita ao pecado. Assim, Goodwin argumenta: “Pois isto era e é apenas um aperfeiçoamento na alma ou no anjo, que, abesse vel adesse sine subjective interitu, pode ser perdido, e pode deixar de existir, sem que o ‘objeto’ a quem pertencem deixe de existir” [Of the creatures, in: Works, 7:33).

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TEOLOGIA PURITANA Goodwin reconhece que sua posição, que “nega que Adão tinha um co­

nhecimento revelado sobrenatural de Deus”, parece um a “assertiva audaciosa e difícil de entender”. A f i n a l , Adão falava com Deus, e Deus revelava sua vontade a Adão; acrescentem -se a isso os sacram entos da aliança das obras, e, como Owen parece sugerir, estão presentes os ingredientes para a coexistência de uma teologia sobrenatural com um a teologia natural no jardim do Éden. Apesar disso, Goodwin insiste em que esses elementos da aliança das obras pertencem à teologia natural, pois aquilo em que se exigia que Adão cresse era característico de um a fé natural. Na defesa de sua posição, Goodwin per­ mite ver até onde, de uma perspectiva reformada, ele está disposto a forçar os limites da teologia natural. O homem, mesmo em sua condição caída, confia e crê “naquele que é fiel”, 0 que significa que “crer” não é necessariam ente um ato sobrenatural. No Éden, a capacidade de Adão de conversar tanto com Deus quanto com sua mulher era uma capacidade natural. Desse modo, quando Deus disse a Adão 0 que exigia dele no jardim, “o que quer que tenha sido revelado não estava acima do dever natural [...] Pois sabia, a partir dos m esmos princípios e pres­ crições da natureza, que Deus era verdadeiro, fiel e justo em sua palavra”.^® Quanto às duas árvores, esses objetos não eram sobrenaturais; ao contrário, Adão as recebeu em sua própria esfera e, pela luz da natureza, teve a capaci­ dade natural de discernir que essas árvores prometiam vida e o advertiam de sua mutabilidade. O propósito de todos esses argumentos é mostrar que uma fé natural era tudo de que, no contexto da aliança das obras, Adão precisava para conhecer a Deus e nele crer. Goodwin entende que sua opinião é um a rejeição da doutrina medieval da dádiva adicional [d o n u m su p ern á d itu m )

De fato, ao contrário da maioria

de seus contemporâneos,^® Goodwin também rejeita a ideia de graça (propria­ mente falando) no jardim devido à sua ideia de que a recompensa de Adão não envolvia seu traslado para o céu. Se Adão tivesse recebido a promessa de vida eterna no céu, teria precisado de fé sobrenatural, mas, visto que não

“ Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:54. ^^Goodwin, O f the creatures, in: Works, 7:55. “ 0 donum superadditum é contrastado com o donum concreatum (dádiva criada com) on donum naturale (dádiva natural) pelos escolásticos protestantes. Como assinala Richard Muller, “0 argumento protestante era que o donum gratuitum, a dádiva totalmente gratuita, de iustitia originalis era parte da constituição original do homem e, portanto, um donum concreatum, na­ tural, ou intrinsecum em vez de algo adicional à constituição do homem original.” Dictionary o f Latin and Greek theological terms: drawn principally from Protestant Scholastic theology (1985; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 2 006), p. 96. “ Veja neste livro o capítulo 14, que trata da aliança das obras. Cf. Richard Muller, After Calvin: studies in the development o f a theological tradition (New York: Oxford University Press, 2003), p. 183.

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a recebeu, um a fé sobrenatural teria sido “supérflua e sem sentido”.^® Uma fé sobrenatural teria levado Adão a ansiar pelo céu, mas, um a vez que não houve promessa de céu, tal fé “o deixaria desalentado”. Aqui Goodwin faz eco da posição de John Cameron (1579?-1625), que defendia que é preciso distinguir entre a fé sob a aliança da natureza e a fé sobrenatural que é outorgada aos eleitos na aliança da graça.^° Para Goodwin, mas não necessariam ente para Tlirretin, uma fé natural era proporcional a um a recom pensa que não ia além da promessa de vida no Éden. Em resum o, não há nenhum a dúvida de que os puritanos acreditavam na teologia natural. Mas não havia concordância sobre se, antes da Queda, a teologia natural coexistia com a sobrenatural. Pelo visto, Owen dava a entender que coexistiam, ao passo que Goodwin rejeitava a ideia. Essa discordância surgiu em parte devido à existência, entre os puritanos, de diferentes idéias sobre a natureza da recom pensa de Adão.

Teologia natural depois da Queda Assim como desde a época de Calvino os reformados nem sempre concordaram sobre os limites da teologia natural antes da Queda, de igual forma também não concordaram em todos os detalhes quanto ao papel da teologia natural no estado de pecado.^^ Mas entre os puritanos havia unanimidade em torno da convicção de que a teologia natural continuou existindo após a Queda no pecado. Em sua obra profundamente perceptiva sobre o conhecimento de Deus, Stephen Charnock (1 6 2 8 -1 6 8 0 ) assinala que depois da Queda os homens “chegam a alguma conclusão sobre Deus, embora não concluam nada sobre Cristo”.^^ Por natureza, os pecadores, “sem enxergar direito em decorrência do obscurecimento causado por sua corrupção”, são incapazes de apagar totalmente da memória o conhecimento de que Deus existe.” Não apenas a noção implantada de Deus, mas tam bém a criação (o mundo visível) age nos pecadores para torná-los cônscios dos atributos de Deus ao mesmo tempo que tais atributos são percebidos pela “visão tapada e borrada” do homem (Rm 1 . 2 0 ) Charnock relaciona dez atributos de Deus que podem ser reconhe­ cidos pela luz da natureza: (1) o poder de Deus ao criar um mundo a partir do ^’Goodwin, Of the creatures, in: Works, 7:57. ^“Veja Samuel Bolton, The true bounds o f Christian freedome. [...] Whereunto is annexed a discourse o f the learned John Cam eron’s, touching the three-fold covenant o f God with man, faithfully translated (London: para P. S., 1656), p. 361-2 (tese 14). ^'Veja Muller, Post-Reformation, 1:300. ^^Stephen Charnock, The knowledge o f God, in: The works o f Stephen Chamock (Edinburgh:

James Nichol, 1865), 4:16. “Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:114-5. “Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:115.

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nada; (2) a sabedoria de Deus na ordem, variedade e beleza da criação; (3) a bondade de Deus na provisão que faz para suas criaturas; (4) a imutabilidade de Deus, pois, caso fosse mutável, não tefia a perfeição do sol e dos corpos celestes, “nos quais nenhum a m udança se tem observado”; (5) sua eternida­ de, pois é necessário que existisse antes daquilo que foi feito no tempo; (6) a onisciência de Deus, visto que, na condição de Criador, tem necessariamente de conhecer tudo que fez; (7) a soberania de Deus, “na obediência que suas criaturas lhe prestam, ao cumprirem suas respectivas ordens e ao se moverem nas esferas em que as colocou”; (8) a espiritualidade de Deus, visto que Deus não é visível e que, “quanto mais espiritual for qualquer criatura do mundo, mais pura será”; (9) a suficiência de Deus, pois deu início a todas as criaturas e, assim, a existência delas não era necessária, o que significa que Deus não tinha nenhuma necessidade delas; e, por fim, (10) sua majestade, vista na glória dos céus.^^ Charnock conclui que, mediante a observação do mundo natural, 0 homem pecador pode conhecer todos esses atributos de Deus. Contudo, de acordo com Goodwin, esse conhecimento que as pessoas têm de Deus é um conhecim ento falso (IJo 2 .3 ,4 ). A diferença entre o conheci­ mento dos regenerados e o dos não regenerados é imensa e categórica e, ainda segundo Goodwin, não apenas um a diferença de grau, embora haja alguma verdade nisso.^® Charnock acrescenta: “Pela razão os homens sabem que existe um Deus, mas esse conhecim ento é tão obscuro na descoberta das perfeições divinas que não enxerga luz suficiente para conseguir chegar próximo de um ato de dependência confiante nele”.^^ A diferença entre o conhecimento de alguém não regenerado acerca de Deus e o daquele que é regenerado é a di­ ferença entre o conhecimento natural de Deus e o conhecimento sobrenatural de Deus conforme revelado em seu Filho, Jesus Cristo.^® Os crentes podem conhecer verdadeiramente a Deus por meio de Jesus Cristo como mediador, ao passo que, sem a m ediação de Cristo, os não crentes nunca podem conhecer verdadeiramente a Deus. Num raciocínio parecido, Charnock sustenta que seres humanos caídos só podem conhecer a Deus a partir do livro da criação, e, sem um mediador, isso se dá de uma forma “terrível” [aterrorizante]. Como resultado da transgressão de Adão, ele e sua posteridade são incapazes tanto de conhecer a Deus quanto de se alegrar nele. Consequentemente, é possível conhecer verdadeiramente a Deus somente por meio de Jesus Cristo. Charnock explica: “Portanto, em seu secreto conselho. Deus escolhe Cristo e nele arm azena todos os tesouros ^^Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:115-6. ^‘^Thomas Goodwin, A n unregenerate m a n ’s guiltiness before God, in respect o f sin and p u ­ nishment, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2005), 10:159. ’^Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:31. “Veja Goodwin, A n unregenerate m a n ’s guiltiness, in: Works, 10:162-3.

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da sabedoria e do conhecim ento, a fim de, por meio dele, lançar seus raios de luz sobre os hom ens”.” Em Cristo, o Pai se torna visível, pois ele é a imagem do Deus invisível. A natureza divina não pode ser compreendida por criaturas finitas e muito menos por criaturas finitas e pecadoras. Conforme assinala­ do por Owen, em sua essência Deus é incompreensível; noções intuitivas e diretas sobre a essência de Deus são “maravilhosas demais para n ós”.'‘° Mas, conforme defendido por Charnock, a natureza divina “brilha e reluz no rosto de Cristo” porque o Filho encarnado de Deus assum e a natureza humana, tanto corpo quanto alma.^' Então, sem negar a teologia natural, os puritanos em geral falavam das limitações dela no contexto da cristologia, em particular quando comparada com a maneira que, mediante sua encarnação, o Filho torna possível o conhecimento de Deus. A teologia natural não pode salvar, mas a teologia sobrenatural pode. Conforme assinala Barker, as obras da criação não conseguem dar a conhecer o caminho da redenção em Cristo. “Nessas obras da natureza, Adão pôde ver a Deus com o Criador, não como Redentor. Ele podia ver um Poder, uma Sabedoria e um a Bondade infinitas reluzindo ali. Mas não pôde ver aquela Segunda e melhor Expressão desses Atributos, que seriam apresentados na obra da Redenção

Revelação sobrenatural De modo geral, durante o século 17 os teólogos reformados escolásticos da Europa continental podem ter superado seus colegas reformados das ilhas bri­ tânicas no que diz respeito à natureza da revelação sobrenatural, mas a obra de John Owen sobre a revelação se destaca entre os puritanos.'*^ Sem dúvida J. I. Packer está certo em assinalar que Owen empregou o termo “com unica­ çã o ” para “abranger toda outorga divina de favor ao hom em ”. M a s , de modo parecido com a abordagem de Packer, a análise a seguir do pensamento de Owen sobre a revelação sobrenatural vai se ocupar da compreensão que ele

^’ Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:110-1. “ John Owen, The person o f Christ, in: The works o f John Owen, D.D. {Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 1:65. Veja tb. Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:39-40. “"Charnock, The knowledge o f God, in: Works, 4:112. “'^Barker, Natural theology, p. 111. “^Uma das melhores análises da posição de Owen sobre a doutrina da revelação é o texto de J. I. Packer “John Owen on communication from God”, in: A quest for godliness: the puritan vision o f the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 81-96. Veja tb. alguns textos mais re­ centes: Carl Ihiem an, The claims o f truth: John Owen’s Trinitarian theology (Carlisle: Paternoster, 1998), p. 47-101; Henry M. Knapp, “Understanding the mind of God: John Owen and seventeen­ th-century exegetical methodology” (tese de doutorado, Calvin Theological Seminary, 2002); e Barry H. Howson, “The Puritan hermeneutics of John Owen: a recommendation”, Westminster Theological Journal 63, n. 2 (2001): 351-76. ““Packer, Quest for godliness, p. 82.

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tinha da Palavra de Deus e do papel do Espírito Santo na apropriação, por parte do hom em , do conhecim ento do Deus triúno. A essa análise se seguirá uma consideração de um elemento de imensa importância no conceito de revela­ ção: a fonte do conhecimento verdadeiro de Deus e do contexto divinamente determinado para esse conhecim ento, a saber. Cristo e a aliança.

A inspiração das Escrituras O que se tem em vista é a Palavra de Deus, que para Owen possui um signifi­ cado tríplice: “hypostatikos, endiathetos e prophorikos”.*^ A palavra hipostática (“pessoal”) diz respeito à pessoa de Cristo. Os dois outros termos gregos, comumente encontrados na literatura patrística e empregados por Filo de Alexandria, falam da palavra “interna” ou “inerente” {endiathetos) e da palavra “falada” ipw phorikos) . O logos prophorikos é a Bíblia, revelação sobrenatu­ ral de Deus, expressa em palavras e registrada de forma escrita. A revelação sobrenatural fornece uma base objetiva para a iluminação sobrenatural, e Owen constantem ente conecta o fato da revelação divina e o conceito de se apropriar da revelação. Desse m odo, as Escrituras são “o único meio externo de iluminação divina sobrenatural, pois são o único repositório de toda reve­ lação divina sobrenatural”.^^ A fé surge a partir da autoridade e verdade de Deus nas Escrituras, e o Espírito Santo dá testemunho acerca da verdade da Palavra de Deus porque o Espírito é verdade.^^ O testemunho interno do Espírito Santo assegura infalivelmente aos crentes de que as Escrituras são a Palavra de Deus.'*® A relação da Palavra externa de Deus com o testemunho interno do Espírito exige análise adicional posterior, mas um exam e da doutrina puritana da inspiração, em especial a posição de Owen, proporcionará a introdução necessária tanto ao conceito de autoautenticação interna e externa da Bíblia quanto ao papel que o Espírito Santo desempenha para os crentes com preen­ derem a mente de Deus. Conforme fica claro na Confissão de Fé de Westminster (veja 1.8), “o Antigo Testamento em hebraico [...] e o Novo Testamento em grego [...] sendo inspi­ rados imediatamente por Deus [...] são por isso autênticos”.'*^ Mesmo quando

'•^Owen, Pro sacris Scripturis, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 16:427. '“’Owen, The reason o f faith, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 4:12. ‘‘^Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:72. ‘‘“Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:61. ‘‘T ara um apanhado das ideias dos teólogos de Westminster sobre a inspiração das Escrituras, veja o texto de Richard Muller ‘“ Inspired by God — pure in all ages’: the doctrine of Scripture in the Westminster Confession”, in: Richard A. Muller; Rowland S. Ward, orgs.. Scripture and worship: biblical interpretation and the directory for worship (Phillipsburg: P&R, 2007), p. 31-58.

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traduzida para outro idioma, a Bíblia continua sendo a Palavra de Deus. De acordo com Richard Vines (1600-c. 1655), a Palavra de Deus traduzida ainda são as Escrituras, “pois as Escrituras não ficam em cortice verhorum [na casca das palavras] mas na m edulla sensus [no cerne daquilo que elas significam]; 0 vinho deste vaso é o mesmo que foi tirado daquele. Traduções não passam de vasos ou torneiras [...] As Escrituras expressas em inglês são a Palavra de

Deus”.^° De modo parecido, Samuel Rutherford (1600-1661) sustenta que ne­ nhum autor de nenhum livro da Bíblia escreveu “Escrituras canônicas da sua própria cab eça”; em vez disso, as Escrituras foram escritas por “inspiração imediata, o que em essência incluiu até cada sílaba e palavra que os após­ tolos e profetas deviam escrever”. O w e n associa a inspiração das Escrituras à obra do Espírito Santo, que preparou e fez a mente dos vários autores das Escrituras ascenderem a um novo patamar. O Espírito “agiu e os dirigiu até nos próprios órgãos de seus corpos pelos quais expressaram a revelação que mediante inspiração haviam recebido da parte dele [...] Dirigiu suas línguas na declaração de suas revelações, assim com o a m ente de alguém dirige sua mão quando escreve para exprimir suas idéias [...] Pois, o que quer que te­ nham recebido por revelação, eles foram apenas tubos pelos quais as águas da revelação foram conduzidas, sem a m enor mistura com quaisquer de suas susceptibilidades ao erro”.“ Não há nenhum a dúvida de que Owen tinha um conceito elevado da inspiração; a Bíblia não é nada menos do que a revelação da mente de Deus; é um livro que, embora redigido por hom ens pecadores, foi mantido puro de suas próprias falhas inatas. Owen elabora sobre com o isso aconteceu. Ele assinala que três coisas atuaram conjuntam ente enquanto Deus revelava sua vontade aos homens e à medida que estes escreviam as palavras de Deus. Em primeiro lugar, “o ato de inspirar com conhecim ento a mente dos profetas”; em segundo, “o ato de sugerir-lhes [i.e., aos autores bíblicos] palavras para expressarem o que suas mentes concebiam ”; e, em terceiro, o ato de o Espírito guiar suas mãos “enquanto colocavam por escrito as palavras sugeridas”.“ De acordo com Owen, se faltasse qualquer um dos três elementos anteriormente mencionados, as Escrituras não seriam divinas nem infalíveis. Alguns talvez sejam da opinião de que Owen apresenta um a ideia excessivam ente mecânica da inspiração, mas ele também afirma que a obra do Espírito na mente dos “Richard Vines, The authours, nature, an d d anger o f haeresie laid open in a serm on preached before the honorable House o f Com m ons... (London: W. Wilson para Abel Roper, 1647), p. 68-9. ^'Samuel Rutherford, The divine right o f church governm ent and excommunication (London: impressão de John Field para Christopher Meredith, 1646), p. 66. “Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 3:134. “Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, in: Works, 3:144.

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homens “não os força nem age neles de forma diferente do que são em sua própria natureza”. D e fato, as palavras que o Espírito emprega com cada autCi são aquelas a que “estão acostum ados e faz com que empreguem aquelas expressões com que estão familiarizados”.” Consequentemente, aqui Owen destaca a denominada natureza “orgânica” da inspiração, mas talvez não com a mesma im portância dada por Calvino. Owen utiliza três palavras-chave para descrever a forma como Deus se revelou aos autores das Escrituras, a saber, vozes, sonhos e visões, havendo ainda dois adjuntos: ações simbólicas e m utações locais. Com a palavra “vo­ zes” Owen mostra que às vezes Deus empregou uma voz claramente expressa, como no caso de Moisés. Owen sustenta que “a totalidade da revelação feita a Moisés se deu mediante vozes externas, audíveis, claramente expressas, cujo sentido o Espírito Santo imprimiu na mente dele; pois uma voz externa sem um enlevo e uma disposição internos da mente não é suficiente para dar se­ gurança e certeza da verdade àquele que a recebe”.” Em seguida, além de sua voz audível, às vezes Deus utilizou sonhos, que vieram por meio da operação não mediada do Espírito, confirmando de modo infalível as impressões que esses sonhos causaram na mente de hom ens (At 2 .1 7 ), um fenômeno visto especialmente no Antigo Testamento. Em terceiro. Deus se revelou mediante visões que foram percebidas pelos sentidos internos e externos dos profetas. Dessa maneira, por exemplo, acerca de revelações externas, profetas às vezes viram anjos, como aconteceu com Abraão (Gn 1 8 .1 ,2 ). Quanto à revelação interior, Isaías viu Deus assentado no trono divino (Is 6).^^ Em todos esses modos diversificados de revelação, o Espírito Santo capacitou os profetas a preservarem com fidelidade “e declararem com infalibilidade aquilo que lhes fora apresentado”.” Conforme mencionado acim a, Owen fala de dois “adjuntos” a esses meios diversificados com que Deus se revelou aos profetas, a saber, “ações simbólicas e mutações locais”. As ações simbólicas são as várias ações visíveis realizadas

^“Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, in: Works, 3:144. Com a expressão “excessi­ vamente m ecânica” tenho em mente os comentários de Owen em seu texto “The divine original of the Scripture” (1 6 :2 9 9), em que defende que os profetas do Antigo Testamento “não adqui­ riram nada por estudo nem por meditação, nem por investigação nem por leitura (Am 7.15). Quer consideremos o assunto ou a forma daquilo que receberam e transmitiram ou o próprio ato de 0 receberem e transmitirem, não passaram de um instrumento musical, que soa de acordo com a mão, o objetivo e a habilidade daquele que o toca”. Acerca das idéias de Calvino sobre a inspiração, veja David L. Puckett, Jo h n Calvin’s Westminster John Knox, 1995), p. 26-37. ^^Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, “ Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, ^'Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, “ Owen, A discourse concerning the Holy Spirit,

exegesis o f the Old Testament (Louisville: in: in: in: in:

Works, Works, Works, Works,

3:144-5. 3:135. 3:137-8. 3:138.

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pelos profetas que foram formas de revelação, tais com o Isaías andando nu (Is 20.1-3) ou Oseias se casando com um a prostituta (Os 1.2). É interessante que Owen sustente que ambas as ações vão contra a lei de Deus e, por esse motivo, não chegaram a ser praticadas. Em vez disso, foram “apresentadas a eles em visões”. N o entanto, nos casos em que a lei de Deus não foi trans­ gredida, como o fato de Ezequiel deitar-se do lado esquerdo por 390 dias, eles de fato aconteceram diante do povo de Deus (Ez 4 .4 ,5 ; veja tb. 12.4-6). Com a expressão “mutações locais” Owen tem em mente acontecimentos em que os profetas foram transportados de um lugar para outro, como nos casos registrados em Ezequiel 8.3 e 11.24. Quando isso aconteceu, os sentidos de Ezequiel foraTu suspensos, e ele caiu em transe, uma espécie de "arrebatamento sagrado” ei i que Ezequiel foi levado de um determinado lugar a outro. Owen se refere a essas ações simbólicas e mutações locais com o “acidentes de profecia”, parte da diversidade de revelações mencionadas em Hebreus 1.1. No entanto, esses vários modos de revelação cessaram quando o cânon das Escrituras ficou completo. Para os crentes da nova aliança, as Escrituras são a única norma para entender a mente de Deus. Conforme Owen assinala, no passado “era na palavra falada que se devia crer; e agora é na palavra escrita que se deve crer”.®° Assim mesmo, só é possível compreender de verdade a mente de Deus caso a pessoa tenha recebido o Espírito Santo prometido, o que traz à tona o tópico importantíssimo de como nos apropriamos da revelação de Deus.

Apropriação da verdade da Bíblia Para Owen e, aliás, para todos os teólogos reformados é axiom ática a ideia de que existe uma correspondência entre Deus e o hom em no que diz respeito ao homem ter a capacidade de entender a mente de Deus. É certo que, de acordo com a m áxim a fin itu m n o n ca p a x infin iti (o finito não consegue conter o infi­ nito), o homem nunca poderá compreender plenamente a Deus, mas, conforme assinala Packer, “à medida que nossos pensamentos acerca dele correspondem àquilo que ele diz de si m esm o, os pensam entos humanos acerca de Deus são verdadeiros e constituem conhecimento real sobre ele [...] e mediante seu próprio autotestemunho verbal ele mesmo nos dá esse conhecim ento”.®' Tal conhecimento de Deus por meio das Escrituras se torna possível mediante a iluminação sobrenatural do Espírito Santo. Mas antes da formação do cânon houve maneiras pelas quais Deus se revelou mediante revelações externas, e Owen as explica. Essas revelações tinham um propósito duplo, a saber, de um lado, a edificação e a instrução da pessoa que recebia a “palavra vinda

®’Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, in: Works, 3:139. “ Owen, The divine origincd o f Scripture, in: Works, 16:319. “ Packer, Quest for godliness, p. 82-3.

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de Deus” e, de outro, a edificação e a instrução da igreja.“ Aqui, mais uma vez, 0 papel do Espírito Santo nessas revelações fornece a Owen a base para fazer distinção entre a Palavra de Deus e os enganos de Satanás. Palavras vindas de Deus, como aquelas dirigidas a Abraão, ordenando-lhe que sacrificasse seu único filho, tinham “poder e eficácia divinos” que asseguraram infalivelmente a Abraão que as palavras vinham de Deus.“ Entretanto, Deus exigiu de Abraão 0 exercício de sua “fé, consciência, obediência e razão ” a fim de que soubesse que Deus havia de fato falado a ele.“ Segundo Owen, esse meio de revelação era, no entanto, imperfeito e tinha certas desvantagens. A revelação comunicada a indivíduos jamais poderia fornecer um conhecimento incessante de Deus no mundo. Como consequência, as Escrituras forneceram ao mundo a mente e a vontade divinas expressas de forma permanente, de modo que, quando a lei foi dada. Deus “obrigou a igreja ao uso dela so m e n te ”.^^ Deus continuou dando revelação adicional à igreja, em épocas diferentes, de diversas maneiras, para ser preservada de forma escrita, até que a “plena revelação da totalida­ de da mente de Deus [...] foi confiada a Jesus Cristo e por ele aperfeiçoada” (Hb 1.1,2). A revelação feita por Jesus Cristo — quer de forma não mediada, quer pelo Espírito Santo aos apóstolos — foi posta por escrito nas Escrituras do Novo Testamento. Por esse motivo — e aqui observa-se a polêmica de Owen com os quacres de sua época, que aceitavam revelação que ia além da Palavra escrita de Deus®® — para Owen, um a vez completadas, as Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos se tornaram para a igreja o “único m eio extern o d e ilu m inação d iv in a so b ren a tu ra l”.^^

Voltando ao exam e da fé sobrenatural, Owen afirma — como também Goodwin o fez — que é preciso uma fé sobrenatural para crer numa revelação sobrenatural.®® Uma fé natural é incapaz de ascender a um ponto tão elevado e infalível para crer no testemunho de Deus sobre si mesmo e, em particular, sobre a pessoa e obra de Jesus Cristo. Assim sendo, Owen sustentava que, “se não crermos com um a fé divina e sobrenatural, na verdade não crem os”.®®

“ Owen, The reason o f faith, in; Works, 4:8. “ Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:8. “ Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:9. “ Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:11. “ Para uma análise breve e particularmente bem elaborada da polêmica de Owen com os quacres, veja Michael A. G. Haykin, “John Owen and the challenge of the Quakers”, in: Robert W. Oliver, org., John Owen: the m an a nd his theology (Phillipsburg; P&R, 2002), p. 131-55. Cf. Trueman, Claims o ftm th , p. 56-84. “ Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:12. “ A obra de Goodwin, Of the creatures, in: Works, vol. 7, mostra em especial a exaltação de Jesus sobre Adão e a superioridade da condição do povo de Deus em Cristo em comparação com a condição de Adão no Éden. “ Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:49.

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Owen conclui que a obra interna e eficaz do Espírito Santo tem necessariamente de iluminar a mente dos crentes, de modo que não apenas reconheçam a auto­ ridade divina das Escrituras, mas também aceitem sem restrições as verdades ali contidas. Goodwin fala da fé sobrenatural dos eleitos de Deus como a fé mediante a qual o Espírito Santo ilumina os crentes e lhes sela a verdade das Escrituras. Aliás, o “testemunho eficaz do Espírito é o alicerce de toda nossa fé” 7o Q (jg Q Espírito Santo ser necessário para crer na Palavra de Deus mostra que os “filósofos mais sábios” precisam do testemunho interno do Espírito tanto quanto as “pessoas mais humildes e sem instrução’7 ' De modo semelhante a Calvino, Owen assinala a dupla maneira com a qual o Espírito Santo confirma para a igreja a verdade da Palavra de Deus, a saber, seus tes­ temunhos interno e externo. O testemunho interno do Espírito persuade os crentes de que as Escrituras são, de fato, as próprias palavras de Deus. Mas a ênfase dada por Owen ao testemunho externo do Espírito torna “explícito aquilo que está implícito nas afirmações de Calvino sobre o assunto’7^ A autoridade da Palavra de Deus procede dela própria como Palavra de Deus. Assim, para Owen as Escrituras corroboram a si mesmas e possuem eficácia inata por causa de seu autor. Luz e poder constituem a natureza autocorroborante das Escrituras como Palavra de Deus. A luz, assim como Deus e as Escrituras, não exige prova de autenticidade. As Escrituras são cham adas de “luz”, aliás, “uma luz gloriosa, brilhante [...] um a luz iluminadora, à qual se dá preferência quando comparada com a luz do sol”.^^ Como consequência, a igreja precisa oferecer a “luz” ministerialmente e não de modo autoritário; em outras palavras, a igreja “pode erg u e r alto a luz [mas] ela n ão é a lu z ”7 ‘^ Aqueles na igreja que não foram cegados por Satanás, aqueles que receberam do Espírito Santo, que neles habita, uma fé sobrenatural, prontamente reconhecerão as Escrituras como a Palavra de Deus porque, como luz, ela se autentica. Owen prossegue: “Mediante essa luz autocorroboradora [...] as Escrituras se apresentam de tal maneira como palavra de Deus que qualquer um que as rejeitar corre o risco de destruição eterna’7^ O outro aspecto que mostra que as Escrituras são a própria Palavra de Deus é seu poder inato. As Escrituras não são lidas nem pregadas

™Goodwin, O f the creatures, in: Works, 7:63. ^'Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:92. '^Packer, Quest for godliness, p. 90. Quanto ao ensino magistral de Calvino acerca do tes­ temunho interno do Espírito Santo, veja John Calvin, Institutes o f the Christian religion, edição de John T. McNeill, tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Louisville: Westminster John Knox, 2008), 1.7.S [edições em português: João Calvino, As institutos, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 200 6 ), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradu­ ção de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Editora UNESP, 2008), 2 vols.], ” Owen, The divine original o f Scripture, in: Works, 16:320. '“‘Owen, The divine original o f Scripture, in: Works, 16:320. ” Owen, The divine original o f Scripture, in: Works, 16:322.

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como mera palavra, mas como palavra revestida de poder; a Palavra de Deus opera mudanças porque é poderosa (Tg 1.21; At 20.32; Cl 1.6). As Escrituras penetram o coração dos homens; elas os julgam e os sentenciam; convencem, convertem, dão sabedoria e consolam; em suma, seu poder de operar mudanças nos homens é prova de que são revelação da parte de Deus.^® Voltando ao papel do Espírito Santo na apropriação das Escrituras com o a Palavra de Deus, Owen explica que o Espírito não fala aos crentes num teste­ munho vocal interno ou externo. Em outras palavras, o Espírito não fala aos crentes “a cerca d a Palavra, mas p e la P a l a v r a Q u a n d o o Espírito e a Palavra caminham lado a lado no coração e na mente dos crentes, a escuridão natu­ ral é dissipada e a resistência pecam inosa é vencida, de modo que eles são capazes de ver a luz e render-se ao poder da Palavra de Deus. Owen conclui vigorosamente: “Aquele que separa com pletam ente o Espírito da Palavra deve também queimar sua Bíblia’7® Em resum o, quando o Espírito Santo dá aos crentes segurança externa de que as Escrituras são a Palavra de Deus, ao mesmo tempo ele os capacita a entender a mente de Deus por meio da iluminação dada por seu testemunho interno.^® Para os puritanos as Escrituras eram, então, o p rin cip ia m cogn oscen d i theologiae (fundamento cognitivo para a teologia), conforme o demonstra o

primeiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster. Seu propósito principal é registrar a revelação de Deus em Jesus Cristo, o qual proclama a vontade de Deus para nossa salvação (Catecismo Menor de Westminster, pergunta 24). Assim, Deus é conhecido som ente por meio de Cristo, e por esse motivo os puritanos, à sem elhança de seus contem porâneos reformados ortodoxos na Europa continental, sempre fundamentaram a revelação sobrenatural numa base explicitamente cristológica.

Cristo, a fonte do conhecimento Owen fala de Cristo com o o “repositório sagrado” de toda a verdade.“ De modo parecido, Edward Reynolds (1599-1676) reconhece que Cristo é “a soma e o centro de toda verdade revelada por Deus”.®' Porque é Deus encarnado.

^^Owen, The divine original o f Scripture, in: Works, 16:324-5. ” Owen, The divine original o f Scripture, in: Works, 16:326. ™Owen, A discourse concerning the Holy Spirit, in: Works, 3:192. ” Owen, The reason o f faith, in: Works, 4 :14. Em outro texto ele diz: “Para alcançar esse propósito, a obra do Espírito Santo consiste na iluminação salvadora da mente; e o resultado disso é uma luz sobrenatural, pela qual a mente é renovada: veja Rm 12.2; Ef 1.18,19; 3.1 6 -1 9 ”. Owen, The reason o f faith, in: Works, 4:57. ®“Owen, The person o f Christ, in: Works, 1:79. “ Edward Reynolds, A n explication o f the hundred and tenth Psalm ... (1656; reimpr., London: Religious Tract Society, 1837), p. 1.

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Cristo torna possível a teologia.®^ Aliás, Owen faz distinção entre a teologia do Deus-homem, Jesus Cristo, e a teologia de todos os demais. A teologia de Cristo é inata, estando nele mesmo (Cl 2 .3 ), e, por esse motivo, essa teologia supera em muito a de qualquer outra pessoa cujo conhecim ento de Deus tem de ser obtido de fora. Somos incapazes de entender a teologia de Cristo, por isso Owen se abstém de analisar a teologia de “Jesus Cristo, ‘em quem estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e da ciência’ (Cl 2 .3 ), bem como aquele conhecimento que mediante união pessoal ele possuía e possui, as revelações que 0 Pai lhe deu (Ap 1.1) e [a ideia] de que toda a plenitude do Espírito habita nele sem medida (Jo 3 .3 4 ) ”.®® Conquanto o conhecimento do próprio Cristo a respeito de Deus seja algo totalm ente além do alcance dos crentes, assim m esm o, na glória de sua pessoa na condição do Deus-homem, ele pro­ porciona a base ontologica para que a revelação seja com unicada por Deus à humanidade; ele é o mediador não somente na salvação, mas também em toda com unicação entre Deus e a humanidade caída.®^ Charnock afirmou, de forma parecida, que só Cristo possuía tal conhe­ cimento; pois ele é o facho de luz por meio do qual as perfeições de Deus são manifestadas aos crentes. Aliás, conforme Charnock expõe, “tudo aquilo que visa à glória de Deus [...] é revelado plenamente por Cristo”.®®Antes que qualquer homem pudesse vir a conhecer a Deus e a fim de torná-lo conhe­ cido a nós. Cristo já tinha uma posição única e a prerrogativa exclusiva de conhecer a Deus. Cristo tinha com o Pai um a intimidade que nenhum simples mortal poderia reivindicar (Jo 3 .1 3 ). Só Cristo entendia desde a eternidade os mistérios secretos de Deus, porquanto, conforme Charnock assinala adiante, “só Cristo estava interessado neles”.®®Mais do que isso. Cristo foi o “meio do primeiro descobrir de Deus na criação ” (Jo 1 .3 ,4 ; Hb 1.2; Pv 8 .2 2 ). Cristo é a sabedoria e o poder de Deus não somente na criação, mas também na reden­ ção. Charnock escreve:

Assim como na criação, agora o Filho comunicou a todas as criaturas alguma semelhança de Deus, e, como a finalidade da criação é declarar Deus à criatura “ Veja Owen, Theologoumena, in: Works, 17:36 (1.3.2). “ ‘“ Quae de Jesu Christi, in quo absconditi sunt omnes thesauri sapientiae et scientiae,’ Col. ii.3, theologia, deque scientia ilia, quam per unionem personalem habuit, habetque, atque revelationibus ei a Patre datis, Apoc. i. 1., utque in illo habitet omnis plenitude Spiritus, Joh. iii. 34 [ ...] .” Owen, Theologoumena, in: Works, 17:38 (1 .3 .6 ). “ Sobre o possível papel do Espírito Santo como mediador na aliança das obras, veja os inte­ ressantes comentários de Willem J. van Asselt sobre as tendências que Johannes Cocceius tinha nessa direção, The federal theology o f Johannes Cocceius (1603-1669) (Leiden: Brill, 2001), p. 262. “ Charnock, A discourse o f the knowledge o f God in Christ, in Works, 4:131. A segunda parte do livro de Charnock examina mais especificamente o conhecimento de Deus “em Cristo”; por isso, a ligeira mudança de título em relação às referências anteriores. “ Charnock, The knowledge o f Christ, in: Works, 4:131.

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TEOLOGIA PURITANA racional, era mais do que apropriado que o Filho de Deus — que no princípio fez com que o Pai fosse manifestado na constituição do mundo — fizesse aquelas declarações adicionais e necessárias acerca de Deus. Assim como a bela imagem que a razão imprime na mente — imagem que emerge com a autodescoberta da mente em falas e palavras — é a mais apta para expressar realidades interiores do sentido, pensamentos, conceitos, natureza e postura da mente, de igual forma a Palavra essencial de Deus se veste de carne, provém de Deus para nos manifestar a natureza e os pensamentos de Deus. Aquele que é a Palavra de Deus é o mais apto para manifestar a natureza de Deus.®^

Ninguém além do Deus-homem tem a capacidade de declarar perfeitamente a revelação de Deus. De sorte que o “sumo fim” da vinda de Cristo foi revelar Deus (Mt 13.35; Jo 1.18). Para os puritanos, tais como Charnock, Owen e Goodwin, esse conceito cristológico deixava implícito que, no que diz respeito a seu conteúdo, as Escrituras dependem de Cristo. Cristo revela Deus não somente a hom ens, mas também a anjos. Os anjos têm conhecimento de Deus por meio de Cristo, que foi o instrumento mediante 0 qual foram criados. Na verdade, quando os anjos viram Cristo crucificado na cruz, abandonado pelo Pai, sepultado no túmulo, ressuscitado dos mortos e ascendendo aos céus, “aprenderam mais acerca de Deus e sua natureza, mais acerca da profundidade de sua sabedoria, da riqueza de sua graça e do poder de sua ira, do que haviam aprendido mediante todas as ações de Deus no mundo [...] em todos aqueles quatro mil anos em que já tinham existido”.®®Em Cristo, todos os atributos de Deus se manifestam e recebem glória. A teologia natural pode dar ao hom em um conhecim ento obscuro dos atributos de Deus, mas em Cristo os atributos de Deus “reluzem ” porque têm em vista a redenção. “Cristo é o palco”, diz Charnock, “em que todos os atributos de Deus atuam em seus papéis”. Há um sentido profundo em que o evangelho revela a Deus de uma maneira que a Lei jamais poderia fazer.®® À luz disso, os protestantes ortodoxos se referem tipicamente à teologia dos crentes na terra como “nossa teologia” [theologia n o s tm ), a qual é dada por Cristo ou dele obtida. Essa teologia revelada é apenas teologia derivada ou ectípica [theologia ectypa] e, por essa razão, é finita, em contraste com a teologia original ou arquetípica [theologia arch ety pá ) , que é o conhecimento infinito que Deus tem de si mesmo e que somente ele possui. O conteúdo da autorrevelação de Deus é comunicado por meio de Jesus Cristo, mas essa com unicação acontece no contexto de um a aliança.

“'Charnock, The knowledge o f Christ, in: Works, 4:132. ““Charnock, The knowledge o f Christ, in: Works, 4:135. ““Charnock, The knowledge o f Christ, in: Works, 4:139.

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Contexto pactuai do conhecimento de Deus Deus se revelou a Adão no contexto de uma aliança (a aliança das obras). Se isso foi real com Adão no jardim, quanto mais não seria para os eleitos na aliança da graça? Owen defendia que toda teologia verdadeira se baseia numa alian­ ça, 0 que significa que a melhor maneira de entender a teologia sobrenatural é no contexto da aliança.^“ A doutrina da aliança foi importante para teólogos reformados do século 17, pois permitia que expressassem a natureza relacional da teologia, que é o propósito da revelação. Conforme Trueman assinalou, a doutrina da aliança “permite que se estabeleça uma ponte que transpõe o abismo ontológico que existe entre, de um lado, um Criador infinito e autoexistente e, de outro, uma criação finita e dependente”.^' Na aliança da graça, a revelação cresce por etapas, algo que John Bali (1585-1640) destacou em sua bem conhecida obra A treatise o f t h e covenant o fg ra c e (1645) [Tratado sobre a aliança da graça]. Para os puritanos. Cristo era

0 grande tem a das Escrituras, mas foi revelado no contexto das várias alianças encontradas na Bíblia, até mesmo na aliança das obras, em que Adão foi um tipo de Cristo. Em outras palavras, a palavra hipostática (Cristo) proporciona o fundamento para a palavra falada [logos p rop ho riko s) no contexto da história da redenção, que trata da revelação da glória de Deus por meio da pessoa e obra de seu Filho, Jesus Cristo. Na aliança da graça. Deus revela seu am or e graça para com seu povo. Mas aquelas verdades são, em Cristo e por meio dele, todas elas apresentadas ao povo de Deus nas várias alianças pós-lapsarianas. De fato, “não existe nas Escrituras nem um único texto que insista em nosso dever diante de Deus e que consigamos entender tão bem a ponto de cumpri-lo aceitavelmente sem uma relação real com Cristo, que é o único a nos dar a capacidade de desempenhar tal dever e o único em quem ou por meio de quem o desempenho de tal dever é aceito por Deus”.®^ Conforme Owen demonstraria em seus próprios escritos, a revelação foi progressiva ao longo das várias alianças, mas na nova aliança Deus fala definitiva e mais gloriosamente na pessoa de Jesus Cristo. Trueman assinalou com precisão que no pensamento de Owen acerca das Escrituras como revelação há duas vertentes que dizem respeito à doutrina da aliança:

Em primeiro lugar, existe a vertente vertical da vontade divina e graciosa de salvar, a qual, graças à consubstancialidade do Filho com o Pai e à sua participação na aliança da redenção, se revela na pessoa de Jesus Cristo por meio do Espírito Santo, cuja tarefa é dar testemunho com relação à vontade do Pai revelada no Filho. *Veja Owen, Theologoumena, in: Works, 17:43-4 (1.4.10). ’’Trueman, John Owen, p. 67. “ Owen, The person o f Christ, in: Works, 1:82.

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Em segundo, existe a vertente horizontal, que é a revelação gradual da vontade salvífica de Deus na história, revelação que inicia no jardim do Éden e culmina com o nascimento, vida e morte de Cristo.” O que Trueman ressalta nessas duas vertentes são os vários elementos da autorrevelação divina à igreja, a cristocêntrica e a pactuai — sendo a primeira vertical, e a segunda, horizontal; a primeira proporcionando o alicerce para a segunda. Além do mais, todos os elementos de revelação sobrenatural estão presentes no modelo anteriormente mencionado, que contém elementos de cristologia, de pneumatologia, de um trinitarismo completo, e da aliança como contexto para a com preensão da mente de Deus.

Conclusão A doutrina da revelação entre os puritanos pode ser entendida como constituída de duas partes: a teologia natural e a teologia sobrenatural. Deus se revela nas duas. Nem sempre os teólogos puritanos concordaram sobre detalhes específi­ cos da revelação, mas a discordância talvez seja mais formal ou sem ântica do que real. É certo que os puritanos defendiam comumente a teologia natural, e na Confissão de Fé de W estminster a expressão “luz da natureza” ocorre cinco vezes (1.1, 6; 10.4; 2 0 .4 ; 21.1). Mas os teólogos estavam todos conscientes de que a teologia natural foi insuficiente para a salvação após a Queda, mesmo que, conforme defendido por Goodwin, a teologia natural fosse suficiente para Adão no jardim. Assim, todos os puritanos defendiam um conhecimento dúplice de Deus após a Queda. Q conhecimento salvífico é sobrenatural e vem por meio do Mediador, Jesus Cristo. O Filho revela o Pai aos crentes por meio do Espírito, de modo que venham a conhecer a Deus corretamente, o que é impossível alcançar apenas pela teologia natural. Daí a necessidade de teologia sobrenatural e fé sobrenatural, produzida pelo Espírito, para crer nas Escrituras e obedecer-lhes. Sem o testemunho interno e externo do Espírito, as Escrituras são inúteis para criaturas pecadoras, o que explica por que, para Qwen e os puritanos, a teologia cristã tem de ser concebida em termos sobre­ naturais; de outra m aneira, não é teologia. E, é claro, a teologia sobrenatural também precisa ter um a ênfase trinitária, que é justamente o que encontramos em Qwen e nos outros principais teólogos puritanos. Deus se revela mediante Cristo nas Escrituras por meio do Espírito Santo — sendo que o meio inclui não apenas o registro escrito da Palavra de Deus, mas tam bém a apropriação da Palavra por parte de crentes que pela fé são unidos a Cristo.

“ Ih iem an, Claims o ftm th , p. 74.

Capítulo 2 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□D

Hermenêutica e exegese puritanas □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□

Nada podemos fazer bem sem alegria e uma boa consciência, a qual é o fundamento da alegria. William Whitaker*

Analisar e comparar as Escrituras são excelentes meios de se familiarizar com a mente e a vontade de Deus nelas. John Owen^

Teólogos reformados na Inglaterra puritana precisaram tratar de uma grande variedade de heresias e erros teológicos. Basicamente, esses problemas resulta­ vam de deficiências na interpretação adequada das Escrituras. No pensamento puritano, a interpretação correta das Escrituras não era apenas uma questão de emprego das ferramentas interpretativas corretas, mas também de domínio e utilização das ferramentas espirituais corretas, tais como a dependência, em oração, da iluminação do Espírito Santo. De modo análogo, a interpretação sem a aplicação era uma ideia inteiramente estranha à mente dos puritanos. Embora cada um desses aspectos fosse importante para eles, este capítulo se concentrará basicamente na questão das ferramentas interpretativas; outros capítulos deste livro tratarão das ferramentas espirituais. 'William Whitaker, Disputations on Holy Scripture, tradução para o inglês de William Fitzgerald (London, 1588), p. 402. "John Owen, A day o f sacred rest, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 19:462.

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Recentemente, têm aparecido ótimas obras baseadas na literatura secundá­ ria sobre a hermenêutica puritana.^ Em seu notável estudo sobre a metodologia exegética de John Owen (1616-1683), Henry Knapp refutou a ideia de que o século 17 foi um período de retrocesso em estudos da Bíblia e hermenêutica. Quem quer que tenha dedicado tempo para ler as obras dos melhores autores puritanos sabe que eram altamente sofisticados em sua interpretação bíblica. Os puritanos estavam tão distantes de caçar e utilizar irrefletidamente textos -prova que o emprego que fizeram de ferramenfas hermenêuticas resultou em vários avanços na exegese em comparação com o período da Reforma. Teólogos britânicos que tiveram a vantagem de sentar nos ombros de seus antecessores escreveram comentários notáveis sobre vários livros da Bíblia. Basta pensar nas obras de Paul Baynes (1573-1617) sobre Efésios e Colossenses, de John Owen sobre Hebreus, de Thomas Goodwin (1600-1679) sobre Efésios — embora talvez se queira ignorar seu comentário sobre Apocalipse — e de Joseph Caryl (1602-1673) sobre seu volumoso comentário sobre Jó. Alguns puritanos (p. ex., John Bunyan [1628-1688]) caíram numa alegorização excessiva das Escrituras, mas mesmo nessas ocasiões sua motivação era basicamente pastoral. Este capítulo examinará algumas das principais pressuposições hermenêuticas de vários teólogos puritanos, bem como alguns dos princípios exegéticos básicos que utilizaram na interpretação de vários textos das Escrituras.

Duas alianças A doutrina da aliança desempenhou um papel de destaque na teologia puri­ tana. Na área de hermenêutica bíblica os puritanos defendiam duas alianças históricas entre Deus e o homem, a saber, a aliança das obras e a aliança da graça. É claro que existem outras alianças nas Escrituras, mas essas duas ^Obras um pouco mais antigas incluem: Leland Ryken, Worldly saints: the Puritans as they really were (Grand Rapids: Zondervan, 1986), p. 145-9; Thomas D. Lea, “The hermeneutics of the Puritans”, The Journal o f the Evangelical Theological Society 39, n. 2 (June 1996): 271-84; e J. 1. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision o f the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 97-105. Quanto a textos mais recentes, veja o excelente trabalho de Henry Knapp sobre John Owen “Understanding the mind of God: John Owen and seventeenth-century exegetical methodology” (tese de doutorado, Calvin Theological Seminary, 2002); Barry Howson, “The Pu­ ritan hermeneutics of John Owen: a recommendation”, Westminster Theological Journal 63, n. 2 (Fall, 2001): 351-76; Mark Jones, Why heaven kissed earth: the Christology o f the Puritan Refor­ m ed orthodox theologian, Thomas Goodwin (1600-1680) (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2010), p. 86-97; Robert J. McKelvey, Histories that M ansoul and her wars anatomize: the drama o f redemption in John B anyan’s holy war (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011); Richard A. Muller, “Either expressly set dow n...or by good and necessary consequence”, in: Richard A. Muller; Rowland S. Ward, orgs.. Scripture and worship: biblical interpretation and the directory for worship (Phillipsburg: P&R, 2007), p. 59-92; Carl Trueman, The claims o f truth: John Owen’s Trinitarian theology (Carlisle, Reino Unido: Paternoster, 1998), p. 84-101.

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fornecem a estrutura para entender como Deus se relaciona com a humani­ dade; a aliança das obras se refere ao homem no estado de inocência original e a aliança da graça se refere ao homem no estado de pecado. Essas alianças não são totalmente antitéticas, como se não tivessem nada em comum, mas ao mesmo tempo existem diferenças importantes entre elas. Algumas das semelhanças e diferenças serão destacadas aqui a fim de mostrar de que maneira essas duas alianças funcionam como categorias hermenêuticas no pensamento puritano. Um teólogo puritano que escreveu amplamente sobre a doutrina da alian­ ça foi Patrick Gillespie (1617-1675). Em The Ark o f the Testament opened [A explicação da Area do Testamento] (1681) ele dedica muitas páginas para ressaltar as semelhanças e diferenças entre as alianças das obras e da graça. Antes de passar a analisar as diferenças entre as duas, primeiro ele considera várias semelhanças. Em ambas, Deus foi a causa eficaz. Ou seja, é o autor das duas alianças. Em ambas, a causa motora é a graça de Deus. Alguns puritanos (p. ex., Francis Roberts [1609-1675]) não estavam muito dispostos a empregar as palavras “obras” e “graça” como a principal maneira de designar essas duas alianças pelo simples motivo de que “em ambas havia muitíssimo de graça e favor”.'* À semelhança de todos os reformados ortodoxos daquela época, Gillespie admite que na aliança das obras a condição era a obediência e que a recompensa era resultado das obras; entretanto, “mesmo aquela aliança era até aquele ponto uma aliança da graça’A Não somente é fato que a graça de Deus forneceu a razão para o estabelecimento da aliança no Éden, mas também que Deus “dotou livre e perfeitamente o homem com todos os hábitos da graça”.*’ Além do mais, a recompensa prometida foi graciosa porque a obediência de Adão era incapaz de fazer por merecer qualquer coisa da parte de Deus. O alvo das duas alianças é a glória de Deus. Ou seja, ao acompanhar a tradição reformada, a teologia puritana sempre considerou a glória de Deus como 0 sumo fim de todas as ações de Deus. Se na primeira aliança a graça de Deus foi glorificada, na segunda aliança o foi ainda mais na pessoa de seu Filho, a qual, para demonstrar sua importância, tem o privilégio do título “aliança da graça”. Nos dois casos. Deus entra em aliança com o homem. No entanto, mais especificamente, em cada aliança Deus entra em aliança com uma “pessoa pública”, um “representante” (Gatecismo Maior de Westminster, pergunta 22); na primeira com Adão como cabeça federal [representante] e na segunda com Cristo como o cabeça federal [representante] daqueles incluídos ‘‘Patrick Gillespie, The Ark o f the Testament opened [London, 1681), p. 221. “Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 221. '’Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 221.

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na aliança da graça. Adão é o cabeça de sua descendência natural; Cristo é o cabeça de sua descendência espiritual — daí o termo “federalismo”.^ Em cada aliança, Deus proporcionou força ou capacidade àqueles que estavam em aliança com ele para satisfazer as condições das alianças. Em virtude de Adão ter sido criado ã imagem de Deus, este o dotou de um poder ou força que era natural a ele. A força de Adão era natural, mas a força dada à posteridade espiritual de Cristo é sobrenatural, a saber, o poder da graça de Deus e do Espírito Santo. Embora entre os puritanos não houvesse pleno acordo sobre o papel que a teologia natural e a sobrenatural tiveram tanto antes quanto depois da Queda, todos concordavam que, para satisfazer as condições da aliança da graça, os pecadores precisavam da ajuda sobrenatural de Deus. As duas alianças também concordam no aspecto de que são eficazes em alcançar a finalidade para as quais Deus as fez. A aliança das obras ainda é eficaz após a Queda, não no sentido de que pecadores possam se justificar de acordo com as condições dadas a Adão, mas como maneira de amaldiçoá-los e condená-los. A aliança da graça possui uma eficácia inexistente na aliança das obras porque o Filho de Deus se sujeita a uma aliança de obras — para alguns, especificamente, a aliança da redenção — em favor dos eleitos. Por esse motivo, as promessas da aliança são eficazes para a descendência de Cristo, pois, juntas, a pessoa e obra de Cristo proporcionam um fundamento inabalável em que repousam as bênçãos da aliança da graça.® As alianças das obras e da graça também exigem a mesma coisa, a saber, uma justiça perfeita que capacite a pessoa a permanecer inabalável diante do tribunal de Deus. Por exemplo, no caso de Adão, na primeira aliança sua justiça foi verdadeira e inteiramente sua, mas na segunda aliança sua justiça foi sua somente mediante imputação. Nas duas alianças, as condições são estabelecidas por Deus e não pelo homem. De fato, em termos gerais, em ambas exigem-se fé e obras. Qbras eram a condição da primeira aliança, mas a fé estava presente em Adão, mes­ mo que fosse uma fé natural, conforme defendido por Thomas Goodwin. Na aliança da graça, exige-se fé no mediador para a justificação, mas as obras não são excluídas como condição dessa aliança. Na primeira aliança, as obras antecedem a recompensa, ao passo que, na segunda aliança, as obras seguem a recompensa (justificação). Ambas as alianças possuíam sacramentos como sinais e selos.® Por fim, Gillespie assinala que nas duas alianças os “confederados, para satisfazer as condições dessas alianças e perseverar num estado de vida em aliança. ^Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 222-3. *Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 223-4. ’Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 225-30.

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precisavam de algo mais do que a graça habitual”.“ Para perseverar no jardim — a duração e o tipo de recompensa eram assuntos abertos ao debate entre os puritanos“ —, Adão precisava de mais do que graça habitual; precisava das “influências do Espírito para ser confirmado, as quais não lhe foram prometi­ das”.“ Em outras palavras, a perseverança no jardim deve ter sido uma graça sobrenatural dada a Adão. Da mesma maneira, na aliança da graça os crentes precisam de graça sobrenatural para perseverar na aliança. Depois de analisar as semelhanças entre as duas alianças, Gillespie volta a atenção para as diferenças “que são múltiplas e significativas”.“ Embora as duas alianças tenham o propósito de promover a glória de Deus, mesmo assim diferem em suas finalidades específicas. A primeira aliança foi feita com 0 homem em inocência; ele devia, por meio de obediência, perseverar no jar­ dim. A segunda aliança foi feita com o homem pecador, a fim de restaurá-lo à felicidade. A felicidade original que Adão possuía é bem inferior à felicidade de que os santos da aliança da graça desfrutarão. Era comum os puritanos afirma­ rem que os santos desfrutam de privilégios bem maiores na aliança da graça do que Adão desfrutou no Éden. Não apenas Gillespie, mas também Thomas Goodwin em sua exposição da aliança das obras destaca decididamente o estado superior dos crentes na aliança da graça, os quais desfrutam de graças sobrenaturais, em contraste com os privilégios naturais de Adão na aliança da natureza.“ No entendimento de Gillespie, aqueles da segunda aliança possuem uma certeza de perseverança que Adão jamais teve. Um argumento importante em favor da posição de Gillespie é que a união mística e espiritual com Gristo — na qual existem a promessa e a garantia das bênçãos — que ele obteve para seu povo e que foi dada na aliança da graça é muito superior à mera união moral (isto é, uma união de afeições) que Adão teve com Deus.“ Além disso, 0 crente possui a Deus e a Cristo, que habita nos eleitos (Jo 14.20; G1 2.20), um privilégio que Adão não teve. O objetivo da aliança das obras era a glória de Deus como Criador, mas na aliança da graça o alvo é a glória de Deus como redentor. Assim sendo, os atributos de Deus se manifestam em maior abundância na aliança da graça “ Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 231. "Veja neste livro o capítulo 14, “Os puritanos e a aliança das obras”. “ Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 231. “ Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 232. É muito grande o número de diferenças para alistá-las neste capítulo específico, de modo que nos concentraremos em algumas das diferenças mais importantes entre as duas alianças. “ Veja Thomas Goodwin, Of the creatures, and the condition o f their state by creation, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin, D.D. (1861-1856; reimpr., Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006], 7:1-128. “ Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 233-5.

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porquanto sua graça e misericórdia refulgem na salvação dos homens. Em Jesus Cristo, os atributos de Deus recebem um “novo e glorioso lustro [...] São muito mais glorificados do que eram ou poderiam ter sido na aliança das obras (Jo 12.28; 17A)V^ Voltando à questão da “força para perseverar”, Gillespie observa como a aliança das obras dependia mais de Adão e de sua força natural, ao passo que na aliança da graça os crentes dependem bem mais de Deus e de sua graça. Os mandamentos da primeira aliança não exigiam nada além de obras, e até a fé que Adão tinha no jardim era considerada uma obra; na segunda aliança, a fé é uma graça evangélica, isto é, “fé considerada como instrumento que é, não como um ato gracioso da alma”.'^ Dito isso e com um olhar sempre consciente na teologia antinomiana, Gillespie defende que tudo que a aliança das obras ordena, a aliança da graça também ordena (“embora com finalidades bem diferentes”). De fato, a aliança da graça é mais exigente que a aliança das obras, pois ordena conversão, arrependimento, fé em Cristo, autonegação, mortificação e levar a cruz de Cristo.'** Apesar disso, a aliança das obras exige obediência perfeita e perpétua, enquanto a aliança da graça admite obediência sincera. Por esse motivo, quando fala das condições de cada aliança, Gillespie comenta que, embora as duas alianças exijam certas condições, são “opostas”, quer dizer, “a aliança das obras se mantinha pelas obras como sua condição, mas a aliança da graça se mantém pela fé como sua condição”,'“’ em particular na esfera da justificação; “Pois as obras não fazem parfe da justiça da segunda aliança como a fé fazia parte da justiça da primeira. Tampouco é a fé a nossa justiça na aliança da graça como as obras o eram na aliança das obras, mas um instrumento apenas pelo qual uma justiça perfeita é recebida em Cristo’? “ Esse tipo de linguagem cuidadosa foi necessário a fim de proteger a doutrina protestante da justificação pela fé somente, salvaguardando-a de tendências legalistas neonomianas que estavam se infiltrando sorrateiramente na igreja pela porta dos fundos, enquanto os puritanos lutavam firmemente contra ideias antinomianas que entravam pela porta da frente. Com base nisso, Gillespie postula que as condições da primeira aliança não eram um ato isolado de obediência, mas múltiplos atos de obediência (i.e., perfeita e perpétua). Mas na segunda aliança o ato inicial de uma fé viva em Gristo cumpre a condição da aliança. Gom certeza, os crentes continuarão a exercitar sua “fé viva”, mas, assim que creem em Cristo, têm direito à vida no céu, 0 que não foi o caso de Adão. Na aliança das obras, a capacidade de ’'’Gillespie, ’'Gillespie, ’“Gillespie, ’“Gillespie, ' “Gillespie,

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237-8. 248. 248. 256. 257.

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cumprir as condições era inata em Adão, mas na aliança da graça as condi­ ções cumpridas pelos crentes não são propriamente suas (Ef 2.8; Jo 15.5).-^' Ao argumentar dessa maneira, Gillespie tem em mente não apenas os erros dos antinomianos, que negam condições, mas também os dos teólogos arminianos, que transformam a fé numa obra. Ao expor as semelhanças e diferenças entre as alianças das obras e da graça, Gillespie oferece uma estrutura de como teólogos puritanos entendiam o alcan­ ce da história bíblica. Existem duas maneiras pelas quais o homem encontra aceitação em Deus: pelas obras ou pela fé. A primeira era possível na primeira aliança, mas com a entrada do pecado no mundo os pecadores precisam não conhar em si mesmos, mas colocar sua fé naquele que se sujeitou à aliança das obras ou então ser condenados por deixarem eles mesmos de satisfazer as condições da aliança das obras. A obra de Gillespie se destaca como análise perspicaz de como os puritanos explicavam sua leitura dicotômica da Bíblia. Reconheciam plenamente as semelhanças entre as duas alianças ao mesmo tempo que insistiam vigorosamente numa antítese absoluta na questão de como um pecador pode ser justificado diante de Deus.

Foco cristológico Um importante princípio de interpretação usado pelos puritanos era a ideia, com sólidas raízes nas Escrituras, de que a totalidade da Palavra de Deus apon­ ta para Cristo. Conforme defendido por John Owen, qualquer pessoa que lê as Escrituras deve ter sempre em mente esse princípio fundamental, a saber: que a re v e la çã o e a d o u trin a da p e sso a de C risto e seu ofício são o a lice rce sob re

0 qual e stã o co n stru íd o s to d o s o s d em ais en sin o s d os p ro fetas e ap ó sto lo s p ara a ed ificação da igreja e no q ual se cu m p re m [...] P o rta n to , do co m e ç o ao fim das E scritu ra s e x iste m re v e la çõ e s p re cio sa s de u m a tal e sp é cie so b re a p e sso a e glória de Cristo q ue n e ste m u n d o elas p o d em e x e rc ita r a fé e a c o n te m p la ç ã o d os cren tes e ain d a a ssim n e sta vid a n u n ca se r to ta lm e n te d e sco b e rta s e en ten d id as.

Uma vez que Cristo não está apenas aqui ou ali nas Escrituras, mas é encon­ trado em cada página, Owen afirma que em sua vida terrena os crentes nunca entenderão plenamente tudo que há na Bíblia sobre a pessoa e obra de Cristo. Mas com certeza devem se empenhar o máximo para isso. Thomas Adams (1583-1652) comenta que Cristo é a “soma de toda a Bíblia, profetizado, tipificado, prefigurado, exibido, demonstrado, a ser encontrado em ^'Gillespie, The Ark o f the Testament, p. 262. “ John Owen, The glory o f Christ, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 1:314-5.

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cada página, quase em cada linha [...] Cristo é a parte principal, o centro para onde todas essas linhas conduzem De modo semelhante, ao comentar sobre como Cristo é o alvo e a extensão das Escrituras, Richard Sibbes (1577-1635) observa: “Cristo é a pérola daquele anel. Cristo é o tem a, o centro em que convergem todas aquelas linhas: remova Cristo e o que sobra? Portanto, em todas as Escrituras cuidemos para que Cristo não nos escape; sem Cristo, tudo é nada’?^ Isaac Ambrose (1604-1664) ahrm a que antes da encarnação Cristo vinha sendo apresentado em “cerimônias, rituais, símbolos, tipos, promessas [e] alianças”.“ À semelhança da maioria de seus antecessores e contemporâneos puritanos, Ambrose entende a história da salvação não apenas da perspectiva das alianças, mas também da cristologia. Em cada dispensação da revelação de Deus a seu povo, mais e mais de Cristo é apresentado por meio dos vários meios relacionados por Ambrose. De sorte que, quando se lê o Antigo Testa­ mento, existe em mente um objetivo claro: notar a revelação progressiva de Jesus Cristo encontrada em cada página das Escrituras. Isso explica em parte por que os puritanos insistiam em 1er Cântico dos Cânticos como alegoria que ressaltava a com unhão que Cristo tem com sua igreja.^'’ Visto que Cristo, na condição de Deus-homem, torna a revelação possível a criaturas pecadoras e hnitas, ele tam bém se torna o fundamento e o centro da Bíblia. Cristo é, por assim dizer, o fu n d a m e n t u m Scriptu ra e (princípio básico das Escrituras). Mas nem sempre teólogos reformados têm concordado sobre como Cristo funciona como o scopos S criptu ra e (alvo para o qual as Escrituras apontam ). Compare-se, por exemplo, a exegese que João Calvino faz do salmo 8

^^Thomas Adams, Meditations upon some part o f the creed, in: The works o f Thomas Adams (Edinburgh: Jam es Nichol, 1862], 3:224. ^“Richard Sibbes, God m anifested in the flesh, in: The works o f Richard Sibbes (Aberdeen: J. Chalmers, 1809], 1:153. ^4saac Ambrose, Looking unto Jesus: a view o f the everlasting Gospel (London: Edward Mottershed para Nathanael Webb e William Grantham, 1658], p. 131. “ J. 1. Packer cita ainda outra passagem de Ambrose: “Na leitura das Escrituras deves manter os olhos fixos em Jesus Cristo como aquele que é o fim, o propósito e o conteúdo delas: que são as Escrituras em sua totalidade se não o cueiro espiritual do santo menino Jesus? 1. Cristo é a verdade e o conteúdo de todos os tipos e sombras. 2. Cristo é o conteúdo e o tema da aliança da graça e de todas as administrações de tal aliança; no Antigo Testamento, Cristo está velado, no Novo Testamento está revelado. 3. Cristo é o centro e o ponto de encontro de todas as promessas, pois nele as promessas de Deus são o sim e o amém. 4. Cristo é a coisa representada, selada e exibida nos sacramentos do Antigo e do Novo Testamentos. 5. As genealogias das Escrituras de­ vem tornar conhecidas para nós as épocas e estações de Cristo. 6. As cronologias das Escrituras devem tornar conhecidas para nós as épocas e estações de Cristo. 7. As leis das Escrituras são nossos mestres para nos levar a Cristo: a lei moral, mediante correção; a cerimonial, mediante direção. 8. O evangelho das Escrituras é a luz de Cristo, mediante a qual somos atraídos para a doce união e comunhão com ele; sim, é o próprio poder de Deus para salvação de todos aqueles que creem em Cristo Jesus. E, por isso, pensa em Cristo como o próprio conteúdo, cerne, alma e propósito da totalidade das Escrituras”. Quest for godliness, p. 103.

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com a exegese mais cristocêntrica do mesmo salmo feita por Johannes Cocceius (1603-1669).^^ Apesar da fama de Calvino na Inglaterra do século 17, os puri­ tanos tendiam mais para a abordagem de Cocceius do que para a de Calvino/® A teologia puritana da aliança requeria uma leitura mais explicitamente cristológica de textos do Antigo Testamento, mediante tipologia ou mesmo alego­ ria/® Conforme assinalado por Richard Muller, “a teologia federal [teologia da aliança], como ensinada por Cocceius e seus seguidores, era bem mais aberta à exegese alegórica e tipológica do que outras vertentes do pensamento refor­ mado, e, por isso, mais sujeita a leituras cristológicas do Antigo Testamento"/“ O mesmo se pode dizer dos puritanos ingleses. Tendo tratado dos princípios hermenêuticos gerais da teologia da aliança e de Cristo como o fundamentam Scnpturae, voltamo-nos, agora, para ferramentas exe­ géticas mais específicas que os puritanos utilizaram para interpretar as Escrituras.

Sensus literalis

(Sentido literal)

A Confissão de Fé de Westminster faz algumas afirmações importantes sobre a interpretação das Escrituras, inclusive no parágrafo 1.9: “A regra infalível de interpretação das Escrituras são as próprias Escrituras; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto das Escrituras (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e com­ preendido por outros textos que falem mais claramente”. Por trás das palavras da Confissão de Westminster está a rejeição protestante do método exegético medieval conhecido como quadriga ou “sentido quádruplo”. Edward Leigh (1603-1671) observa que nessa abordagem o sentido literal “é aquele colhido imediatamente das palavras”, o qual é, então, combinado com o “sentido es­ piritual”, que é dividido em alegórico, tropológico e anagógico.®' Do mesmo modo, William Perkins (1558-1602) faz vários comentários críticos à Igreja de ^^Veja Willem J. van Asselt, ‘“ Quid est homo quod m em or es ipsiusî’ Calvin and Cocceius (1603-1669) on Psalm 8 ”, Church History and Religious Culture 91, n. 1-2 (2011): 135-47. ^“Edward Leigh, que no sentido estrito não era um teólogo federalista, elogia Calvino como intérprete protestante das Escrituras; “Gostaria de afirmar que estou entre os novos autores juntamente com o senhor Calvino, o qual se sai melhor do que todos os demais na exposição daquilo que ele próprio professa, exposição de cuja leitura as pessoas se beneficiam, pois, devido à brevidade que emprega, não se afasta do próprio texto”. Leigh, A treatise o f divinity: consisting of three bookes (London: E. Griffin para William Lee, 1647], p. 186. ^’Por exemplo, William Perkins associa Cristo à aliança quando escreve: “A obra que é fun­ damento e alicerce da aliança é Cristo Jesus, o Mediador, em quem todas as promessas de Deus são o sim e o am ém ”. The workes o f that fam ous and worthy m inister o f Christ in the Universitie o f Cambridge, Mr. William Perkins (London, 1626), 1:165. “ Richard Muller, Post-Reformation Reformed dogmatics: the rise and development o f Reformed orthodoxy, ca. 1520 to ca. 1725. Volume 2: Holy Scripture: the cognitive foundation o f theology, 2. ed. (Grand Rapids: Baker, 2003), p. 222. ^'Leigh, A treatise o f divinity, p. 172.

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Roma por utilizar a quadriga. Ele examina como aqueles que empregam esse recurso interpretam a dádiva de pão e vinho feita por Melquisedeque a Abraão (Gn 14.18): “O sentido literal é que o rei de Salém, com a carne que trouxe, revigorou os soldados de Abraão, que estavam cansados da viagem. O alegó­ rico é que na missa o sacerdote oferece Cristo concretamente em sacrifício. O tropológico é, portanto, que se deve dar algo aos pobres. O anagógico é que Cristo, estando de igual maneira nos céus, será o pão da vida para os fíéis’A^ Perkins afírma, porém, que tal método de interpretação “tem de ser refutado e rejeitado [porque] existe apenas um único sentido, e esse é o literal”.” Um texto pode exigir uma interpretação alegórica porque é de fato uma alegoria, mas os teólogos não devem abordar o texto com o método quádruplo em mente como pressuposição básica para interpretação da Bíblia. As próprias Escrituras precisam determinar como devem ser interpretadas. Nessa mesma linha, Leigh afirma que nas Escrituras encontram-se alegorias, anagogias e tropologias. “Ainda assim”, escreve Leigh, “estas não constituem muitos e diversos sentidos das Escrituras, mas diversas coleções de um úni­ co sentido”.” Como consequência, Leigh afirma que as Escrituras têm, com frequência, dois sentidos, “um dos quais os teólogos modernos chamam de literal, gramatical ou histórico, e o outro, de místico ou espiritual”.” Thomas Goodwin, que apoia o sensus literalis, fornece um exemplo em seu comentário sobre Mateus 26.29 (“Mas digo-vos que desde agora não mais beberei deste fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo convosco, no reino de meu Pai”.): “É verdade que isso também é interpretado num sentido místico, mas não existe nenhum motivo pelo qual não possamos interpretar o texto literalmente”.” Em outras palavras, o sentido único da passagem tem de ser sempre defendido, mesmo que, a partir do sentido literal do texto, seja possível coletar ou inferir uma gama mais ampla de aplicações. ^^William Perkins, The arte o f prophecying, or, a treatise concerning the sacred and onely true m anner and m ethode o f preaching first written in latine... (London: Felix Kyngston para E. E., 1607), p. 30-1. Leland Ryken destaca que teólogos católicos entendiam que o significado real do ato de Rebeca tirar água do poço para o servo de Abraão era que os crentes têm de vir à Bíblia para encontrar Cristo. Worldly saints, p. 145. ^Perkins, The arte o f prophecying, p. 31. ^‘‘Leigh, A treatise o f divinity, p. 174. Whitaker também apresenta argumento parecido: “Quanto àqueles três sentidos espirituais, é de fato tolice dizer que nas Escrituras existam tantos sentidos quantos é possível fazer que as palavras suportem. Pois, embora seja possível aplicar e adaptar as palavras de uma maneira tropológica, alegórica, anagógica ou de outra qualquer, assim mesmo não existem vários sentidos, várias interpretações e explicações das Escrituras, mas existe apenas um sentido, e esse é o literal, o qual pode ser de diversas maneiras adaptado e do qual várias coisas podem ser tiradas”. Disputations, p. 405. ^^Leigh, A treatise o f divinity, p. 171. ^“^Thomas Goodwin, A glim pse o f Sions glory (London, 1640), p. 13-4. Existe algum debate sobre se Goodwin escreveu essa obra, mas o argumento continua válido pelo fato de os purita­ nos defenderem um sentido literal e místico.

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Os puritanos são bem conhecidos por sua interpretação alegórica de Cântico dos Cânticos. Mas no geral os puritanos rejeitavam abordagens alegóricas na in­ terpretação das Escrituras, mesmo que de tempos em tempos alguns deles tenham caído em demasiada alegorização.^^ Por exemplo, ao comentar que os salmos 48 e 149 confirmam uma era milenar, Goodwin defende que, “se adotarmos sentidos alegóricos, existe a possibilidade de estarmos descartando qualquer passagem das Escrituras que seja; mas, se a interpretarmos literalmente, por que não deveríamos fazê-lo?’C® Apesar disso, há ocorrências, ainda que poucas, em que interpretar literalmente a passagem ou o livro exige que o leitor o interprete alegoricamente. Em seu comentário sobre Cântico dos Cânticos, James Durham (c. 1622-1658) defende seu sentido literal (“um único sentido”), mas também assinala que 0 se n tid o lite ra l, aq u e le q u e su rg e p rim e iro , n ã o é im e d ia to , c o m o n as E scritu ras h istó rica s ou o u tra s q u e n ão são fig u rad as. M as o sen tid o q u e essas falas a le g ó rica s e fig u rad as q u erem esp iritu al e e sp e cia lm e n te in d ica r é o sen tido literal d este C â n tico d os C â n tico s. De m o d o q u e seu sen tid o literal é m ed iato , re p resen tan d o o sig n ificad o , n ã o p ro ce d e n d o im e d ia ta m e n te d as p a la v ra s, m as m e d ia ta m e n te do p ro p ó s ito , isto é, d a in te n ç ã o do E sp írito , q u e e s tá o cu lta d ebaixo d as figuras e a leg o rias aqui e m p re g a d a s. Pois u m sen tid o literal [...] é aquele q ue flui de u m a p a ssa g e m d as E scritu ra s tal c o m o e ssa de a co rd o co m o que 0 E spírito quis d izer co m as p a la v ra s , q u er em p re g a d a s de m o d o literal, quer figurado, d ev en d o se r o b tid o a p a rtir d a to ta lid a d e d a e x p re ssã o co m p le x a , co m o fica claro n a e x p o s içã o e a p lica çã o de p a rá b o la s, a leg o rias e te x to s fig u rad o s; e seria tã o im p ró p rio e ab su rd o n e g a r u m sen tid o fig u rad o (e m b o ra literal) a essas p a ssa g e n s q u a n to o seria im p o r in te rp re ta çõ e s fig u rad as a E scritu ra s co m u n s, que d ev em se r a p ro p ria d a m e n te interpretadas.®'^

Não querendo se afastar do ensino da Confissão de Fé de Westminster (1.9), Durham defende claramente que afirmar o sentido literal de Cântico dos Cânticos significa necessariamente afirmá-lo como alegoria — a alegoria sendo, é claro, um retrato da comunhão de Cristo com os crentes.

Tipologia O uso de tipologia aparece com proeminência na teologia puritana, especialmen­ te no que diz respeito a sua implicação para a hermenêutica das duas alianças e 0 anseio de entender a Bíblia como um livro sobre a pessoa e obra de Jesus ®®Veja John Bunyan, Solom on’s temple spiritualiz’d (London: para George Larkin, 1688). Veja tb. McKelvey, Histones that Mansoul and her wars anatomize, p. 205-10. “ Goodwin, Sions glory, p. 17. “ Jam es Durham, Clavis Cantici, or, an exposition o f the Song o f Solomon (London: J. W., 1669), p. 6.

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Cristo. Em seu estudo sobre Owen, Henry Knapp defíne tipologia como “um método de interpretação em que se explicam acontecimentos, pessoas e práticas do Antigo Testamento como prefiguração da pessoa e ministério vindouros do Messias e de seu povo da aliança”.“ Na mente dos puritanos, isso não era uma rejeição da abordagem de interpretação literal. O sentido tipológico era muitas vezes um componente necessário para a compreensão do texto literal de modo que interpretar tal texto literalmente era interpretá-lo tipologicamente. Além do mais, não se deve confundir tipologia com alegoria. James Durham relaciona várias diferenças entre essas duas maneiras de interpretação das Escrituras. Em primeiro lugar, os tipos pressupõem história. Assim, no exemplo de Jonas, que era um tipo de Cristo (Mt 12.40), ele de fato ficou três dias na bar­ riga do peixe. Por outro lado, diferentemente do que acontece com os tipos, as alegorias não exigem uma base histórica firme.'*' Em segundo, tipos tratam da comparação de fatos (p. ex., Jonas com Cristo), ao passo que alegorias “interpretam palavras, frases e doutrinas, tanto de fé quanto de prática”.“*^ Relacionado a isso, tipos fazem comparações entre pessoas e fatos do Antigo Testamento, e pessoas e fatos do Novo Testamento. As alegorias não têm essas limitações. De modo análogo, tipos podem ser aplicados apenas a algumas coisas, tais como pessoas e acontecimentos (p. ex.. Cristo e a expansão do evangelho), mas alegorias “interpretam tudo que diz respeito à doutrina ou à instrução na fé ou às práticas para disciplinar a vida das pessoas”.“ Por tais razões, as alegorias têm sentido e âmbito mais abrangentes do que as tipologias. Em sua teologia, Thomas Goodwin fez amplo uso de tipologias. Ele trabalha segundo uma regra geral de que “aquilo que é atribuído ao tipo (sua sombra) tem de ser atribuído de forma mais perfeita e muito mais destacada àquele que é a essência. Pois se tão excelentes pessoas em sua mais elevada excelência não foram mais que tipos dele, que são, então, essas excelências nele, uma pessoa tão sublime?’A'* Por esse motivo, a interpretação apostólica do Antigo Testamento mostra que “qualquer excelência eminente e extraordinária que foi encontrada em qualquer um de seus antepassados de renome no Antigo Testamento, ou na lei cerimonial, tudo isso prefigurava o Messias que havia de vir como a perfeição e o centro daquelas coisas Tipos de Cristo no Antigo Testamento incluíam Davi, Salomão, José, Noé, Sansão, Melquisedeque e. ‘•“Knapp, “Understanding the mind of God”, p. 264. ‘“Durham, Exposition o f the Song o f Solomon, p. 8. •••Durham, Exposition o f the Song o f Solomon, p. 9. •“Durham, Exposition o f the Song o f Solomon, p. 9. ••Thomas Goodwin, Christ the Mediator, in: Thomas Smith, org., The works o f Thomas Goodwin, D.D. (1861-1865; reimpr., Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 5:148-9. •“Thomas Goodwin, Christ set forth, in: Thomas Smith, org., The works o f Thomas Goodwin, D.D. (1861-1866; reimpr., Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 5:150.

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em especial, Adão, que foi o “mais eminente tipo de Cristo”.“*®Com respeito a Adão, Goodwin defende que, em virtude de Adão ser um tipo de Cristo, outros aspectos específicos também são considerados: Sabeis que a Queda de Adão aconteceu num jardim. Ali Satanás o encontrou e prevaleceu sobre ele, levando a ele e a toda a humanidade para o cativeiro do pecado e da morte. Deus agora escolhe um jardim para ser o lugar em que o grande redentor do mundo, o segundo Adão, deve primeiro se encontrar com a ira de seu Pai e ali deve ser amarrado e levado embora cativo, tal como aconteceu com Adão [...] Por causa de uma tentação que entrou pelo ouvido, o homem foi condenado e, por conseguinte, pelo ouvir da palavra os homens serão salvos. “Do suor do teu rosto comerás o teu pão”: isso foi parte da maldição de Adão. Cristo suou gotas de sangue como consequência disso; foi o poder daquela maldição que 0 fez suar assim. “A terra [...] te produzirá espinhos”: Cristo foi crucificado com uma coroa de espinhos. A desobediência de Adão aconteceu num jardim; e boa parte da obediência tanto ativa quanto passiva de Cristo também aconteceu num jardim. E, por fim, assim como o início de sua humilhação foi num jardim, o final também foi: embora não tenha sido naquele, foi sepultado num jardim. Assim, o tipo e a coisa tipificada se correspondem.“^

Para Goodwin, portanto, não apenas pessoas, mas também circunstâncias servem para confirmar a relação típica entre Adão e Cristo. O paralelo ex­ plícito em ICoríntios 15 entre os dois Adãos possibilita outros paralelos. Os puritanos estavam tão absortos com Cristo — uma ênfase da qual Thomas Goodwin é ótimo exemplo — que a tipologia foi um aspecto de grande peso na hermenêutica puritana, na verdade, um dos princípios mais importantes na sua leitura cristológica do Antigo Testamento.

Analogia da fé Voltando de novo à Confissão de Fé de Westminster, outro importante princípio de interpretação é apresentado no parágrafo 1.9, a saber, que as Escrituras interpretam as Escrituras, de modo que, “quando houver questão sobre o ver­ dadeiro e pleno sentido de qualquer texto das Escrituras [...] esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente”. A analogia da fé [analogia fideí) é resultado do fato de que a Bíblia é a Palavra de Deus e, portanto, possui consistência e unidade intrínsecas. Quer dizer, as Escrituras não se contradizem. Por isso, a analogia da fé era um aspecto crucial do método hermenêutico e exegético dos puritanos. Com respeito ao conceito ““Goodwin, Christ set forth, in: Works, 5:198. “^Goodwin, Christ set forth, in: Works, 5:198.

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de unidade das Escrituras, Knapp explica que a analogia da fé “não ditava a interpretação de nenhum texto em particular. O que fazia era limitar as opções que o exegeta podia considerar como explicações apropriadas de uma passa­ gem”.“®De acordo com John Owen, na busca da verdade os cristãos devem dar primordial atenção à analogia da fé, pois na Bíblia existe “uma harmonia, uma correspondência e um equilíbrio em todo o sistema de fé ou das coisas em que se deve crer. Passagens específicas devem ser interpretadas de uma maneira tal que não quebrem nem perturbem essa ordem nem comprometam a devida relação que há entre elas”.“^ Assim sendo, além de limitar as opções disponíveis ao exegeta, a analogia da fé mantém a consistência interna das Escrituras, que não se contradizem. A analogia da fé difere da analogia das Escrituras [analogia Scriptume) à medida que a analogia da fé é um princípio em que o teólogo emprega “o sentido geral do significado das Escrituras, elaborado a partir dos loci [pas­ sagens] claros e sem ambiguidade como base para interpretar textos obscuros ou ambíguos”.“ A analogia das Escrituras, no entanto, tem em vista mais especificamente a interpretação de passagens obscuras mediante comparação com passagens mais claras que têm relação com o texto difícil em questão. Ao destacar as verdades básicas da analogia da fé e da analogia das Escrituras, John Flavel (1628-1691) observa que os cristãos não devem interpretar um texto que não está de conformidade com a “proporção da fé”; quer dizer, os intér­ pretes não podem “tomar a liberdade de apanhar um texto isolado e arrancá-lo do corpo de verdade a que pertence e lhe impor uma interpretação peculiar que é incongruente com o restante das Escrituras e discordante delas”.®* Por essa razão, a fim de evitar as heresias dos papistas e socinianos, passagens como Tiago 2.24 e João 14.28 devem ser comparadas com outras passagens das Escrituras. Contra os antipedobatistas, Flavel defende que, visto que a palavra “santo” é usada mais de quinhentas vezes para falar da separação para Deus, “fazê-la significar [em ICo 7.14] nada além de que [os filhos são legítimos] é uma prática ousada e desafiadora às Escrituras”.®^ No prefácio ao comentário de Goodwin sobre Efésios, Thankful Owen (1620-1681) e James Baron (1649-1683) alertam o leitor de que “se a qualquer tempo ele [o autor] pisa fora do caminho, ele o faz com devida consideração "'“Knapp, “Understanding the mind of God”, p. 63. '"’John Owen, A n exposition o f the Epistle to the Hebrews, edição de William H. Goold (reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1991), 20:315. “ Richard Muller, Dictionary o f Latin and Greek theological terms: drawn principally from Protestant Scholastic theology (1985; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 2006), p. 33. “‘John Flavel, The occasions, causes, nature, rise, growth, and remedies o f mental errors, in: The works o f the Rev. Mr. John Flavel (1820; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1968), 3:445. “ Flavel, Mental errors, in: Works, 3:446.

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à analogia da fé e a uma justa veneração à Religião Reformada”.®^ Goodwin estava o tempo todo interagindo com teólogos de várias tradições e de todas as épocas e, em sua exposição de Efésios 1.5, indaga se Deus Pai predestinou os eleitos para si ou para Cristo. Goodwin admite que no início ele defendia que Deus predestinou os eleitos para Cristo como parte da glória mediadora de Cristo. Contudo, Goodwin mostra que mudou a maneira de pensar e, com isso, revela não apenas sua adesão à analogia da fé, mas também seu método interpretativo de entender passagens em seu sentido mais completo, o que pode significar “sentidos” múltiplos. Ao falar das palavras gregas eis auton, escreve: Mas, da mesma maneira, visto que a leitura da palavra grega com uma variação na aspiração permite que seja traduzida por “para si mesmo” e, desse modo, se refira a Deus Pai; e descobrindo que as Escrituras muitas vezes expressam nossa eleição por Deus com a ideia de ele nos escolher para si — como descobri quando recentemente tratei da doutrina da eleição (ao examinar Rm 2.4-6] — e que aquela expressão incluía e continha um assunto tão vasto e tão importante, fui levado a aceitar também aquela interpretação, pois, conforme muitas vezes tenho declarado, uma regra que sempre usei na interpretação das Escrituras é ler as expressões e palavras das Escrituras no sentido mais abrangente e, isso mesmo, nos dois ou mais sentidos que harmonizem com o contexto e a analogia da fé.^'*

Goodwin está entendendo o texto como tendo, na sua opinião, o seu sentido mais completo, mesmo que isso signifique “dois sentidos”, em que os eleitos são predestinados não apenas para Cristo, mas também para Deus. Alguns poderão alegar que nesse caso Goodwin abandona o princípio de “um único sentido”, mas nesse contexto, com base na analogia da fé, esse “um único sentido” significa que “para si mesmo” se refere tanto a Cristo quanto ao Pai. Além de outras coisas, isso mostra como vários elementos da interpretação cooperam como parte do complexo método hermenêutico e exegético empre­ gado por Goodwin.

Conclusão válida e inescapável O capítulo 1 da Confissão de Fé de Westminster prossegue no parágrafo 6 com 0 tema da interpretação bíblica e afirma que “Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado nas Escrituras ou ^^Thankful Owen; Jam es Baron, “Preface”, Exposition o f Ephesians, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 1:32. ^‘‘Goodwin, Exposition o f Ephesians, in: Works, 1:90.

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pode ser lógica e necessariamente delas deduzido”.^^ Da última expressão — “lógica e necessariamente deduzido” — depreende-se o aspecto da “conclusão válida e inescapável”, que tem sido desde a época da Reforma uma ferramenta hermenêutica importante para teólogos reformados. Fazendo um parêntese, a Confissão de Fé Batista de Londres (1677/1689) omite as palavras “nas Escrituras ou pode ser lógica e necessariamente delas deduzido” e as substitui por “ou então necessariamente contido nas Sagradas Escrituras”, o que tinha óbvia ligação com sua rejeição do pedobatismo. Para os teólogos reformados, inclusive os de Westminsfer, a doutrina da aliança pré-lapsariana das obras era resultado da “conclusão válida e inescapável”. Não se usou nem um único texto das Escrituras para provar a aliança das obras, mas, em vez disso, com base na totalidade dos dados das Escrituras, teólogos puritanos concluíram que “a aliança das obras” e outras tais expressões (p. ex., aliança da natureza) descreviam com precisão o contexto de Adão em Gênesis 2. George Gillespie (1613-1648) fornece uma ideia mais precisa e aprofundada do princípio de interpretação mencionado anteriormente na sua polêmica contra várias tradições teológicas, como papistas, arminianos, arianos e socinianos — que em sua totalidade ou abusam desse princípio ou até mesmo deixam de usá-lo. Por exemplo, de acordo com Gillespie, os arminianos “não admitem como prova escriturística senão textos explícitos claros ou então consequên­ cias nulli non obvie [objetadas por ninguém], que não são nem podem ser rebatidas por ninguém que seja rationis compos [capaz de raciocinar] Foi necessário um grau mais elevado de refinamento teológico para refutar vários erros teológicos trazidos pelos papistas, e, por esse motivo, a visão arminiana a respeito da “conclusão válida e inescapável” deixa de proporcionar uma salvaguarda adequada contra o erro. Assim, a conclusão inescapável — e não um texto explícito — demonstrará que as mulheres podem participar da Ceia e que crianças pequenas devem ser batizadas. Acerca da prática do pedobatismo, teólogos reformados empregaram o princípio interpretativo da conclusão válida e inescapável junto com seus ou­ tros métodos hermenêuticos e exegéticos. Conforme fica claro na estrutura das duas alianças — uma estrutura que até mesmo “tricotomistas” como Goodwin e Owen aceitaram —, existe uma unidade entre o Antigo e o Novo Testamen­ tos, sendo que a maioria dos teólogos puritanos utiliza a expressão teológica “aliança da graça” para descrever o grandioso plano redentor divino que se ^Tara um texto pertinente sobre esse aspecto da Confissão de Westminster, veja C. J. Williams, “Good and necessary consequences in the Westminster Confession”, in: The faith once delive­ red: celebrating the legacy o f Reformed systematic theology, essays in honor o f Dr. Wayne Spear (Phillipsburg: P&R, 2007), p. 171-90. “ George Gillespie, A treatise o f miscellany questions: wherein many useful questions and cases o f conscience are discussed and resolved... (Edinburgh: University of Edinburgh, 1649), p. 238.

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inicia em Gênesis 3 e culmina com o juízo final. Da perspectiva hermenêutica, aqueles teólogos que defendiam o pedobatismo davam bastante importância à aliança feita com Abraão e a sua contínua importância para a era da nova aliança. Como consequência disso, Flavel, cuja polêmica com antipedobatistas como Philip Cary (falecido em 1710) é bem conhecida, sustenta que os dois Testamentos devem lançar luz um sobre o outro. De um modo específico, os cristãos não devem “minimizar ou rejeitar um texto do Antigo Testamento, considerando-o sem nenhuma utilidade para esclarecer e determinar uma dou­ trina neotestamentária sobre a fé ou o dever”.^^ Em outras palavras, entender a totalidade da lei (i.e., a Bíblia) ajuda a conhecer o sentido de leis especíhcas (p. ex., 0 pedobatismo).

O Espírito e a razão John Owen não mediu palavras para falar sobre outro aspecto fundamental da interpretação da Bíblia. A tentativa que pessoas fazem de interpretar as Escri­ turas “com formalidade, sem pedir a Deus que sejam ensinadas e instruídas por seu Espírito, é uma grande provocação contra ele; nem espero a descoberta da verdade por quem quer que, com tanto orgulho e ignorância, se envolve numa tarefa tão acima de sua capacidade de realização’A® Owen declarou que 0 Espírito Santo opera na mente dos eleitos de modo a capacitá-los a entender as Escrituras, visto que ele é o autor imediato de toda iluminação espiritual. Os cristãos não devem pressupor que isso vai acontecer como se fosse um privilégio espiritual líquido e certo; pelo contrário, têm de orar para que Deus os capacite a entender sua mente e vontade, o que é impossível sem o Espírito. Isso era em parte necessário devido às limitações da razão humana.®® Conforme Knapp mostrou, “rejeitou-se invariavelmente que a razão ocupasse a posição de critério; em vez disso, ocupava um papel de apoio, subserviente às Escrituras, oprincipium cognoscendi theologiae”.^° Na Inglaterra puritana, o papel da razão na teologia foi importante motivo de discórdia entre teólogos reformados e socinianos. Os teólogos reformados acusavam os socinianos de darem à razão um papel superior ao das Escrituras. Por isso, os puritanos discordaram dos socinianos em quase todo detalhe doutrinário. E os arminianos também atri­ buíram à razão um papel que fazia dela a regra de fé, o que explica muitos de seus erros teológicos. Os luteranos e papistas também foram criticados pelos ^Tlavel, Mental errors, in: Works, 3:446. “ Owen, Causes, ways, and m eans, in: Works, 4:204. “ Sebastian Rehnman apresenta uma boa análise do emprego e papel da razão no pensa­ mento de John Owen. Veja Divine discourse: the theological methodology o f John Owen (Grand Rapids: Baker, 2002), p. 109-28. “ Knapp, “Understanding the mind of God”, p. 108.

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teólogos reformados por abandonarem a razão, por assim dizer, no que diz respeito à compreensão da ceia do Senhor. Para os puritanos, portanto, a razão era útil, mas tinha seus limites. O mis­ tério do evangelho apresenta várias verdades que, à primeira vista, parecem contradições, mas o Espírito Santo capacita os cristãos a receber todas essas verdades sem deixar que a razão os controle de um modo que os conduza a vários erros teológicos. Goodwin cita vários mistérios contidos no evangelho: que Deus teve um filho tão idoso quanto ele [...] e igual Jesus Cristo estava nos céus enquanto estava na terra fez a lei se sujeitou à lei [...] Que Deus, que é apenas assim redimir os homens [...] Que ele, que é bendito

a ele [...] Que esse homem [...] Que aquele Deus que espírito, teve sangue para por Deus para sempre, se

tornou maldição [...] Que Deus nunca esteve mais irado com seu Filho do que quando mais se alegrou nele.“

Goodwin afirma, então, que a causa de todos os erros teológicos “tem sido a falta de conciliar essas coisas”.“ Fica claro que ele tem em mente aqueles que exaltam a razão acima da revelação, o que significava que um número tão grande de verdades, tais como as relacionadas acima, eram rejeitadas em favor da razão. Ele então se refere a vários adversários da ortodoxia reformada que não conseguem aceitar que o mistério do evangelho soluciona aquelas aparentes contradições: Qs arianos encontraram grandes coisas ditas sobre a humanidade de Cristo, como de um homem divino e, por isso, negaram que ele era Deus. Foram incapazes de conciliar esses dois [...] portanto, ao aceitarem um, excluem o outro [...] Quanto aos socinianos, dizem que não existe expiação pelos pecados, pois, se Deus perdoa livremente, qual a necessidade de expiação? [...] Vede o antinomianismo, que é como 0 chamais. Todas aquelas verdades gloriosas do evangelho, de que alguém é justificado desde a eternidade [...] Antes de crer, alguém não está justificado; por isso se diz que é justificado pela fé e que, até que creia, é filho da ira [...] [Qs antinomianos aceitam] uma verdade em detrimento da outra, enquanto as duas têm de ser consideradas [...] Vede o arminianismo. Qual é a base de seu erro? É apenas uma falta de conciliação de contradições aparentes — embora não verdadeiras — no evangelho. Por exemplo, não sabem como conciliar o livre-arbítrio com o decreto absoluto de Deus.“

“ Goodwin, A discourse o f the glory o f the Gospel, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1864; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 4:274-5. “ Goodwin, Glory o f the Gospel, in: Works, 4:276-7, “ Goodwin, Glory o f the Gospel, in: Works, 4:276-7.

Hermenêutica e exegese puritanas

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A razão não consegue explicar esses mistérios. Adão possuía consciência natural e razão, mas uma fé sobrenatural vai além desses dois princípios que eram inatos em Adão no jardim do Éden. Se a razão, e não a fé, for o princípio básico, “não entendereis nada ou quase nada dos mistérios da salvação”.^'* Da mesma forma, Flavel propõe que a razão não passa de um usurpador, “quando ela ousa decidir sobre assuntos que pertencem à fé e à revelação”.®^ Em vez disso, a razão se assenta aos pés da fé. Na verdade, as obras de Deus não vão confra a razão, “mas muitas delas estão acima da razão”.*’*’ Assim sendo. Deus dá o Espírito Santo aos santos para que creiam na­ quelas verdades bíblicas que a razão, por si mesma, não consegue aceitar. Com propriedade, Francis Turretin (1623-1687) resume a posição de teólogos reformados durante o século 17, afirmando que, “embora a razão seja incapaz de demonstrar todas as verdades (pois os limites da verdade vão muito além dos da razão), ainda assim nenhuma mentira contra a verdade pode ficar ao abrigo da verdadeira razão, nem uma determinada verdade pode ser destruída por outra”. O Espírito Santo, que é o autor das Escrituras, também é o agente pelo qual os eleitos chegam a compreender verdades espirituais. Sozinha a razão não consegue ascender à altura do mistério do evangelho, e, por esse motivo, exige-se uma fé sobrenatural para entender e aceitar as verdades contidas na Palavra de Deus.

Conclusão Poderíamos dizer muito mais sobre como os puritanos interpretavam as Escri­ turas. Mas, lendo autores puritanos como, por exemplo, John Owen, Thomas Goodwin, John Howe (1630-1705) e Stephen Charnock (1628-1680), é impossí­ vel não se impressionar com o enorme conhecimento que tinham das Escrituras. Os puritanos não tinham dificuldade em 1er a Bíblia nas línguas originais, e seus escritos mostram que conheciam outras línguas, como aramaico — com frequência citavam os targuns — e copta. Owen insistia constantemente na importância de 1er a Bíblia nas línguas originais, em especial o hebraico. Teó­ logos puritanos também interagiam constantemente com teólogos da Europa continental, tanto ortodoxos quanto heréticos. Tinham excelente conhecimento de história eclesiástica, e seus comentários sobre vários livros da Bíblia estão repletos de citações de autores pagãos e cristãos. “ Goodwin, Glory o f the Gospel, in: Works, 4:304. “ Flavel, Mental errors. In: Works, 3:465, “ Flavel, Mental errors, in: Works, 3:465. “ Francis Turretin, Institutes o f elenctic theology, edição de Jam es T. Dennison Jr., tradução para o inglês de George Musgrave Giger (Phillipsburg: P&R, 1992), 1.13.3.

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Desse modo, sua leitura da Bíblia da perspectiva da aliança, pela qual a história é dividida em duas alianças básicas (i.e., alianças das obras e da graça), significava que estavam lendo conscientemente as Escrituras com uma lente cristocêntrica, o que se via em seu uso de tipologia e, às vezes, alegoria. Rejeitavam que as Escrituras tivessem muitos “sentidos” (i.e., a denominada quadriga) , mas seus escritos certamente mostram que com frequência tinham um grande desejo de deixar claro o “sentido pleno” de certas passagens, que podia ter múltiplas camadas de sentido e era uma aplicação legítima do senti­ do literal [sensus literalis). Sua posição de que as Escrituras tinham coerência interna e que a maioria das verdades teológicas precisava ser colhida em mais de uma passagem da Bíblia fez com que os princípios básicos da analogia da fé e da “conclusão válida e inescapável” se tornassem um elemento indispensável de sua hermenêutica. Esses princípios são importantes, mas, se o cristão tentar entender o mistério do evangelho apenas com a razão, vai sempre incorrer em erros e heresias. Só uma fé sobrenatural e trabalhada pelo Espírito permite que 0 cristão creia que Deus teve um Filho tão idoso quanto ele mesmo! E, mesmo assim, para chegar a formular tal verdade foi necessário um número imenso de técnicas de interpretação.

Capítulo 3 □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ D

O erudito doutor William Ames e The m a rro w o f th eo lo g y [O âmago da teologia]

Teologia é a doutrina ou o ensino de viver para Deus [...] Os ho­ mens vivem para Deus quando vivem de acordo com a vontade de Deus, para a glória de Deus e com Deus agindo neles. William Ames*

Poucos homens tiveram tanta influência na teologia reformada dos dois lados do canal da Mancha e dos dois lados do Atlântico quanto William Ames (1576­ 1633). Hoje quase não se conhece seu nome fora dos círculos acadêmicos, mas em sua época seus escritos eram considerados fundamentais para o preparo ministerial na Nova Inglaterra e foram muito admirados por algumas gerações após sua morte. Ames foi o primeiro a elaborar todo um sistema de teologia reformada da aliança. Embora Calvino e outros reformadores tenham incorporado a alian­ ça como um aspecto importante da teologia,^ Ames foi além deles, fazendo da aliança a estrutura geral da teologia. John Eusden afirmou que a aliança da graça “é claramente um dos conceitos centrais da teologia amesiana [...] Na tra­ dição calvinista-puritana, nenhum pensador antes dele havia analisado a alian­ ça da graça com perspicácia comparável à do professor de Franeker”, William 'William Ames, The marrow o f theology, tradução para o inglês e edição de John D. Eusden (1968; reimpr., Grand Rapids: Baker, 1997), p. 77. Este capítulo é uma versão editada de Joel R. Beeke; Jan van Vliel, “The marrow of theology by William Ames (LS76-1633)”. in: Kellv M. Kapic; Randall C. Gleason, orgs.. The devoted life: an invitation to the Puritan classics (Downers Grove: InterVarsity, 2004), p. 5 2 -6 5 . Weja Peter A. Lillback, The binding o f God: Calvin’s role in the development o f covenant theology (Grand Rapids: Baker, 2001).

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Ames.’ Dentro da estrutura da teologia da aliança, Ames casou a doutrina com a vida, a fim de promover a piedade no dia a dia e a pureza da igreja. Neste capítulo, apresentaremos um rápido esboço da vida e carreira docente de Ames, examinaremos sua obra clássica, The marrow o f theology [O âmago da teologia] (obra doravante chamada abreviadamente de Marrow), fazendo alguma referência à obra subsequente. Conscience with the pow er and cases thereof [A consciência firme e alguns de seus exemplos] (obra doravante chamada abreviadamente de Conscience), e analisaremos a influência desses livros em teólogos e pastores reformados.

Esboço biográfico William Ames (cujo sobrenome foi latinizado para Amesius) nasceu em 1576 em Ipswich, a principal cidade do condado inglês de Suffolk, que na época era centro de um puritanismo vigoroso.'’ John Winthrop (1588-1649), um zeloso cristão reformado e o primeiro governador da Colônia da Baía de Massachusetts, na Nova Inglaterra, também havia nascido no condado de Suffolk. O pai de Ames, que também se chamava William, era um rico comercian­ te, simpatizante do puritanismo; sua mãe, Joan Snelling, era aparentada com 9o h n D. Eusden, introdução a William Ames, The marrow o f theology, p. 51-2. “O relato biográfico definitivo de Ames é The learned Doctor William Ames: Dutch backgrounds o f English and Am erican Puritanism, de Keith L. Sprunger (Chicago: University of Illinois Press, 1972). Esse texto é uma revisão de Sprunger, “The learned Doctor Am es” (tese de doutorado. University of Illinois, 1963). Também é útil Benjamin J. Boerkoel Sr., “William Ames (1576-1633): Primogenitor of the Theologia-Pietatis in English-Dutch Puritanism” (dissertação de mestrado em teologia, Calvin Theological Seminary, 1990). Para relatos mais breves sobre a vida e obra de Ames, veja Eusden, introdução a William Ames, The marrow o f theology, p. 1-66; Lee W. Gibbs, introdução a William Ames, Technometry (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1979), p. 3-17; Jan van Vliet, “William Ames: marrow of the theology and piety of the Reformed tra­ dition” (tese de doutorado, Westminster Theological Seminary, 2002), p. 15-40. As melhores fontes em holandês são Hugo Visscher, Guüielmus Amesius, zijn Leven en Werken (Haarlem: J. M. Stap, 1894); Willem van’t Spijker, “Guilielmus Amesius”, In: De N adere Reformatie en het Gereformeerd Piêtisme (’s-Gravenhage: Boekencentrum, 1989), p. 53-86. Três obras biográficas sobre Ames foram fraduzidas e editadas por Douglas Horton e publi­ cadas em um único volume com o título William Am es by Matthew Nethenus, Hugo Visscher, and Karl Reuter (Cambridge: Harvard Divinity School Library, 1965). Essas obras são Matthias Nethenus, Introductory preface in which the story o f Master A m es is briefly narrated and the ex­ cellence and usefulness o f his writings shown (Amsterdam: John Jansson, 1668); Hugo Visscher, William Am es: his life and works (Haarlem: J. M. Stap, 1894); e Karl Reuter, William A m es: the leading theologian in the awakening o f Reformed Pietism (Neukirchen: Neukirchener Verlag des Erziehungsvereins, 1940). Nas notas em que mencionamos essas biografias, as referências são ao volume publicado por Horton. Veja também Horton, “Let us not forget the mighty William Ames”, Religion in Life 29 (1960): 434-42, e o manuscrito não publicado “leones sacrae anglicanpae”, de autoria de John Quick (1636-1706), o qual se encontra na Dr. Williams’s Library, em Londres, e inclui o capítulo “The life of William Ames, dr. of Divinity”.

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famílias que ajudaram a fundar a Colônia Plymouth, no Novo Mundo. Visto que os pais morreram quando Ames ainda era novo, foi criado por um tio materno, Robert Snelling, um puritano de Boxford, cidade situada não muito longe dali. Desde a infância, Ames esteve imerso numa forma pujante de cristianismo doutrinário e prático. O tio de Ames não poupou recursos em sua educação, enviando-o em 1593/94 para o Christ’s College, faculdade que pertencia à Universidade de Cambridge e era conhecida por seu puritanismo e filosofia ramista. Ames demonstrou rapidamente seu gosto pelo aprendizado. Em 1598, completou seu bacharelado na área de humanidades e em 1601 colou o grau de mestre na mesma área, sendo eleito membro docente do Christ’s College e ordena­ do ao ministério. Passou por uma experiência dramática de conversão com a “pregação inspiradora” de William Perkins (1558-1602), o pai da teologia experimental reformada inglesa.^ Depois dessa profunda transformação espiritual, Ames declarou que “alguém pode ser bonus ethicus e ainda assim não ser bonus theologus, isto é, pode ser exteriormente alguém bem comportado, expressando tanto o co­ nhecimento quanto a prática da religião, e ainda assim não ser um cristão de coração sincero”.® Essa experiência pessoal levou Ames a buscar, pelo resto da vida, um cristianismo prático que expressasse a piedade interior de um coração redimido e renovado. Dando ênfase à piedade pessoal e coletiva e opondo-se a qualquer prática eclesial que não tivesse sido explicitamente instituída pelas Escrituras, Ames logo se tornou a bússola e a consciência morais da faculdade. Ele se via como 0 atalaia de Ezequiel (Ez 33), com o dever de advertir os estudantes acerca do pecado e de promover uma fé e pureza mais profundas entre eles, mas esse papel teve curta duração. Com o Édito de Tolerância, que o rei Tiago promulgou em 1604 na Conferência de Hampton Court, eliminou-se qualquer atividade puritana que envolvesse críticas à Igreja da Inglaterra. O rei achava que a Igreja havia sido suficientemente reformada. No entanto, o grupo puritano em Cambridge continuou em sua oposição implacável ao Acordo Elizabetano. Essa violação do édito do rei teve con­ sequências sérias. Logo as autoridades suspenderam os títulos acadêmicos daqueles que criticavam a igreja oficial e os demitiram. Em 1609, nomearam Valentine Cary diretor no lugar de William Ames, embora Ames fosse muito mais capacitado para o cargo. O tratamento que Cary dispensou ao puritanismo ^Com a palavra “experimental” queremos dizer a averiguação da experiência humana por meio das doutrinas da Bíblia, a fim de determinar se e até que ponto a graça salvadora de Deus afetou aquela pessoa. '’William Ames, A fresh suit against hum an ceremonies in Gods worship (Rotterdam, 1533], p. 131.

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foi decididamente antagônico. As censuras de Ames à Igreja da Inglaterra e sua recusa em vestir roupas clericais como a sobrepeliz causavam cada vez mais ressentimento. Em 21 de dezembro de 1609, quando Ames pregou um sermão sobre o Dia de São Tomé — uma festa anual que era celebrada em Cambridge e ao longo dos anos havia se caracterizado por tumulto e desordens cada vez maiores — e ministrou o “vinagre salutar da repreensão”,^ denunciando a jogatina, as autoridades da faculdade mandaram prendê-lo e suspenderam seus títulos acadêmicos. Embora Ames não tenha sido formalmente expulso, viu que deixar a fa­ culdade era mais atraente do que enfrentar a desagradável perspectiva de um futuro incerto em Cambridge, deixando assim seu cargo de professor titular. Depois de passar um curto período como professor da cidade de Colchester, Ames foi proibido de pregar pelo bispo de Londres, George Abbott. Em 1610, Ames decidiu buscar o clima acadêmico e eclesiástico mais aberto existente nos Países Baixos. Ali permaneceu no exílio pelo restante da vida. Primeiro Ames foi a Roterdã, onde encontrou John Robinson (1575-1625), pastor da congregação separatista inglesa em Leiden. Alguns dos membros da congregação logo fundariam a Colônia Plymouth, no Novo Mundo, e se tornariam conhecidos como Pilgrims [Peregrinos]. Ames não conseguiu per­ suadir Robinson a abandonar seus sentimentos separatistas, a saber, que as igrejas puritanas deviam se separar “totalmente” da Igreja da Inglaterra, mas teve êxito em abrandar algumas de suas idéias mais radicais. Depois de uma breve estada em Roterdã e Leiden, Ames foi empregado entre 1611 e 1619 por sfr Horace Vere como capelão militar das forças inglesas estacionadas em Haia. Ali Ames escreveu prolificamente contra o arminianismo, 0 que logo desencadearia uma crise eclesiástica. Por fim, essa crise entre os holandeses foi tratada num sínodo internaciònal realizado na cidade holandesa de Dordrecht (1618-1619). Devido à sua perícia em refutar o arminianismo, Ames, um inglês e membro do Sínodo de Dort, mas sem direito a voto, foi chamado para ser o principal conselheiro teológico e secretário de Johannes Bogerman, que presidia o sínodo. Para grande satisfação de Ames, os membros do Sínodo de Dort decidiram a favor da posição reformada his­ tórica em todos os cinco pontos levantados pelos arminianos. Indesejado na Inglaterra, viu-se em casa ali, com a acolhida calorosa do calvinismo oficial da República Holandesa. Às decisões do Sínodo de Dort seguiu-se um expurgo antiarminiano em círculos eclesiásticos, políticos e acadêmicos, o que levou à vacância de um cargo de professor na Universidade de Leiden. Ames foi eleito para ocupar a cadeira, mas o influente governo inglês prevaleceu. Ames, recentemente ^Horton, Am es, p. 4.

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despedido de seu cargo em Haia devido a pressões das autoridades inglesas, também viu a porta se fechar na Universidade de Leiden. Por volta de 1618, Ames se casou com sua segunda esposa, Joan Fletcher, que lhe deu três filhos, Ruth, William e John. Sua primeira esposa, filha de John Burgess, o antecessor de Ames em Haia, havia morrido logo depois de se ca­ sarem, sem deixar filhos. Para sustentar a família, durante três anos após o Sínodo de Dort deu aulas particulares e mentoreou estudantes universitários. Tinha uma pequena “faculdade doméstica” particular, que se assemelhava, ainda que em escala menor, ao Staten College, presidido por Festus Hommius (1576-1642). Alunos de teologia viviam na casa de Ames, e ele lhes ensinava puritanismo e teologia sistemática de acordo com o método lógico de Petrus Ramus. Mais tarde, desenvolveu algumas dessas aulas, reunindo-as em seu famoso Marrow.^ Em 1622, dirigentes da Universidade de Franeker, uma instituição rela­ tivamente nova na remota província setentrional de Friesland, ignoraram as autoridades inglesas e nomearam Ames professor de teologia. Em 7 de maio de 1622, Ames deu sua aula inaugural, falando sobre o Urim e Tumim, ba­ seando-se em Êxodo 28.30. Quatro dias depois de sua posse como professor, recebeu o título de doutor em teologia, ao defender com êxito 38 teses e 4 corolários sobre “a natureza, a teoria e a ação prática da consciência”. A de­ fesa foi feita diante de Sibrandus Lubbertus, professor titular a faculdade. Em 1626, foi nomeado Rector Magnificus, o mais elevado cargo honorífico acadêmico da universidade. Durante seus onze anos de trabalho em Franeker, Ames se tornou conhe­ cido como 0 “doutor erudito” que tentou “puritanizar” toda a universidade. Ames reconhecia que a universidade era ortodoxa na doutrina, mas sentia que na prática a maioria dos membros dos corpos docente e discente não era su­ ficientemente reformada. A fé deles ainda não se traduzia numa prática cristã adequada. No pensamento de Ames, o corpo docente, em particular, dependia em demasia da lógica aristotélica e destacava inadequadamente a responsabi­ lidade humana e o exercício da vontade humana na vida cristã. Diante disso, Ames organizou de novo, em sua casa na universidade, uma espécie de lar de acolhida, ou “faculdade”, onde aconteciam aulas particulares, preleções e inúmeros debates teológicos.® O objetivo de Ames era “ver se pelo menos em nossa universidade eu conseguia de alguma maneira fazer a teologia se afastar de questões e controvérsias obscuras, confusas e não muito essenciais “Horton, Ames, p. 13. ''Veja Sprunger, The learned Doctor Am es, cap. 4; Sprunger, “William Ames and the Franeker link to English and American Puritanism”, in: G. Th. Jensm a; F. R. H. Smit; F. Westra, orgs., Universiteitte Franeker, 1585-1811 (Leeuwarden: Fryske Academy, 1985), p. 254-85.

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e introduzi-la na vida e na prática, de modo que os alunos começassem a pensar seriamente acerca da consciência e de tudo aquilo que diz respeito a ela’’d“ Com esse objetivo, Ames, na posição de Rector Magnificus, promoveu a piedade, implementou a observância do dia de descanso, encurtou os feria­ dos prolongados de Natal e Páscoa e intensificou a disciplina estudantil. Suas reformas, marcadas pela austeridade, produziram aquilo que foi chamado de “a Reforma” da década de 1620 na universidade. Durante os anos em que passou em Franeker, em suas aulas e em seus incontáveis escritos, Ames manteve uma postura fortemente antiepiscopal e antiarminiana, mas sua maior contribuição foi no campo da teologia e da ética, que ele via como um sistema unificado que ajudava o cristão a viver uma vida de piedade genuína. Ali escreveu suas duas maiores obras, Medulla theologiae [O âmago da teologia; traduzido para o inglês sob o título The marrovü o f theology] e De conscientia [Sobre a consciência; traduzido para o inglês sob 0 título Conscience with the pow er and cases thereofl. Em seu sistema ético-teológico, Ames incorporou a filosofia e o método ramistas que havia aprendido em Cambridge. O ramismo era uma filosofia que procurava corrigir a sofística artificial do aristotelismo da época, o qual se caracterizava por uma ruptura entre vida e pensamento, entre saber e fazer e, no caso da vida religiosa, entre teologia e ética. O ramismo foi desenvolvido por Petrus Ramus (Pierre de la Ramée, 1515-1572), um filósofo e pedagogo reformado francês do século 16 que foi morto como mártir em Paris no massacre do dia de São Bartolomeu. “ Ames incorporou em sua própria obra o pensamento desse huguenote, unindo teologia e ética de forma consistente e sem emendas num programa de vida obediente e firmada na aliança. Por meio de seu ensino, Ames estabeleceu sua própria reputação bem como também a da academia onde lecionava. Alunos vinham de todos os cantos da Europa para estudar a seus pés. Seu aluno mais famoso foi Johannes Cocceius (1603-1669), que mais tarde desenvolveria a teologia da aliança a patamares mais elevados do que Ames. Mas Ames não estava satisfeito em Franeker, pois nem tudo ia bem na universidade. Alguns alunos e professores não apreciavam os esforços de Ames em realizar uma reforma mais profunda ou completa. Um grupo de professores, liderado por Johannes Maccovius (1588-1644), sabotou os esforços de Ames. Além disso, debates contínuos entre Ames e seu colega aristotélico Maccovius arruinaram o clima intelectual em Franeker, ao mesmo tempo que o ar úmido '“Ames, “Pamenesis ad stndiosos theologiae, habita Fm nekerae” (1623), tradução para o in­ glês de Douglas Horton com o título “An exhortation to the students of theology” (1958). "Sprunger, Am es, p. 107; Eusden, introdução, p. 37.

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do mar em Friesland deteriorava a saúde de Ames. Aqueles problemas, aliados ao desejo de sua mulher de estar junto de seus patrícios, convenceram Ames a procurar um novo local para servir. Em 1632, Ames aceitou um convite de seu amigo Hugh Peters (1598-1660) para ser seu copastor na igreja congregacional de língua inglesa de Roterdã. Ames se sentiu muito atraído pelo convite por causa do projeto de Peters de uma congregação independente, centrada na aliança e determinada a ter um rol de membros composto de crentes que confessavam e verdadeiramente praticavam a sua fé. Fazia muito tempo que, dentro e fora de círculos puritanos, Ames vinha defendendo esses princípios congregacionalistas.'^ Também foi atraído pela ideia de ajudar a igreja a fundar uma faculdade puritana em Roterdã. No final do verão de 1633, Ames finalmente foi para Roterdã, no sul. Seu tempo ali foi curto. No outono, o rio Maas transbordou, e Ames, que já não estava bem, piorou depois que sua casa foi inundada. Faleceu de pneumonia em 11 de novembro, com a idade de 57 anos, nos braços de seu amigo Hugh Peters. Até o final permaneceu firme na fé e vitorioso na esperança.'^ Logo antes de morrer, Ames havia considerado seriamente trabalhar com seu amigo John Winthrop na Nova Inglaterra, mas Deus tinha em mente outro “Novo Mundo” para Ames. Embora tenha tido grande influência na história teológica e intelectual da Nova Inglaterra — em particular com sua obra Marrow —, nunca chegou a pôr os pés ali. Será que, como muitos histo­ riadores têm especulado, teria se tornado o primeiro diretor de Harvard?''* Em sua história sobre a Nova Inglaterra, o puritano Cotton Mather (1663-1728) ponderou que o “angélico doutor” Ames “na sua intenção foi um homem da Nova Inglaterra, mas isso acabou não se concretizando”."’ Quatro anos de­ pois da morte de Ames, sua mulher e filhos foram morar na colônia puritana de Salém, em Massachusetts. Embora seja improvável que a biblioteca toda de Ames tenha ido com sua família para o Novo Mundo, é provável que pelo menos alguns dos livros de Ames tenham atravessado o Atlântico e se tornado a base da biblioteca original do Harvard College [que mais tarde se tornaria '-Ames, Marrow, livro 1. cap, 32, parágrafos 6 e 15 (daqui em diante as referências a essa obra aparecerão entre parênteses no texto, p. ex., 1.32.6, 15]; cf. suas obras A reply toDr. Mortons generall defence o f three nocent ceremonies (1622), A reply to Dr. Mortons particular defence of three nocent ceremonies (1623) e A fresh suit. Increase Mather disse que Ames nos deu um “congregacionalismo perfeito”. A disquisition concerning Ecclesiastical Councils (Boston: para N. Boone, 1716], p. v-vi. '^Sprunger, The learned Doctor Ames, p. 247. '“Nathaniel Eaton, um discípulo de Ames, tornou-se o primeiro diretor da Universidade de Harvard. '"Cotton Mather, The great works o f Christ in America or Magnalia Christi americana, 3. ed. (1853; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1979], 1:236,

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a Universidade de Harvard], embora em 1764 um incêndio tenha destruído a maioria dos livros.*®

A obra The m arrow

o f theology [O âmago da teologia]

Embora a obra The marrow o f theology, de William Ames, tenha sido origi­ nalmente publicada em latim com o título Medulla theologiae em 1627, suas principais ideias foram expressas antes dessa data. As aulas de teologia que Ames ministrou entre 1619 e 1622 como mentor de alunos em Leiden foram retrabalhadas enquanto estava “ocioso à espera de emprego”. Foram inicial­ mente tornadas públicas em latim (1623) de forma fragmentada, enquanto estava em Franeker. Quatro anos mais tarde, depois de ter encontrado segurança financeira no ambiente acadêmico da universidade, concluiu por fim aquela publicação que se tornaria o marco pelo qual é hoje lembrado. O livro tinha o propósito de servir de compêndio prático de teologia para leigos e seminaristas. Logo a obra foi reconhecida e aclamada em círculos acadêmicos e eclesiásticos e em pouco tempo traduzida para vários idiomas. As primeiras traduções em inglês foram publicadas em 1642 e 1643.

Tema principal: a vida voltada para Deus A afirmação introdutória de Marrow é de uma simplicidade e concisão notáveis: “Teologia é a doutrina de viver para Deus” [theologia est doctrina Deo vivendi) (1.1.1). Essa afirmação, ainda que pareça muito simples, está repleta de signifi­ cado. Declara a tendência prática do sistema amesiano de cristianismo — uma fé exercida pelo homem todo, não apenas por seu intelecto, vontade ou senti­ mentos. Ela demonstra a paixão de Ames por um cristianismo prático e vivo que integra pensamento e ação. Ames tentou mostrar que a teologia não trata apenas de afirmações a respeito de Deus, mas de conhecimento de como “viver para Deus”. Ele afirmou que “os homens vivem para Deus quando vivem de acordo com a vontade de Deus, para a glória de Deus e com Deus neles agindo” (1.1.6; citando IPe 4.2,6; G1 2.19,20; 2Co 4.10; Fp 1.20). Em outro contexto escreveu: “A vontade revelada de Deus deve ser a regra de nossa vida”.’*’ existência de um catálogo de leilão da biblioteca de Ames indica que houve esforços para levantar recursos para a família de Ames, que estava empobrecida à época de sua morte. Veja Cataloguslibrorum D. Guilielmi Amesii (Amsterdam: Jansson, 1634), reimpresso com in­ trodução de Keith L. Sprunger, edição de R. Breugelmans, The auction catalogue of the library of William Am es, Catalogi Redivivi (Utrecht: HES Publishers, 1988), vol. 6. ’’William Ames, A sketch of the Christian’s Catechism, tradução para o inglês de Todd M. Rester, Classic Reformed theology, vol. 1 (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2008), p. 214 (Lord’s Day 49).

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Embora Calvino tenha expressado sua teologia mais em termos mais re­ lacionados ao conhecimento — conhecer a Deus e conhecer a si mesmo'® —, essa diferença manifesta entre as formulações de Ames e de Calvino não deve nos levar a ignorar a unidade fundamental do pensamento deles. O Catecis­ mo de Calvino (1545) diz que “o sumo fim da vida humana” é “conhecer a Deus” e que esse conhecimento é nosso “bem supremo”, sem o qual somos deploráveis.'“' Em seguida, o Catecismo expõe o conceito de Calvino sobre o conhecimento de Deus com o fim de glorificá-lo mediante confiança e sub­ missão postas em prática: 6. M[inistro]: Qual é o verdadeiro e correto conhecimento de Deus? C[riança]: Conhecê-lo a fim de honrá-lo. 7. M.: Como o honramos corretamente? C.: Quando dependemos inteiramente dele, servindo-o em obediência à sua vontade, clamando a ele em todas as nossas necessidades, buscando nele a salvação e todas as boas coisas e reconhecendo com o coração e com a boca que todo o nosso bem procede dele.^®

Está claro que, para Calvino, o conhecimento de Deus inclui mais do que o intelecto e envolve a totalidade do ser. Ele não chamaria de verdadeiro conhe­ cimento de Deus nada que existisse à parte da piedade, ou seja, sem amor e reverência por Deus.^' “Deus não é conhecido”, afirmou Calvino, “onde não existe religião nem piedade”.''^ Assim, aquilo que Calvino chama de conheci­ mento de Deus e aquilo que Ames chama de viver para Deus expressam na verdade a mesma realidade vista de ângulos diferentes. Nesse aspecto, Ames estava indo numa direção estabelecida por seu men­ tor, William Perkins, e refletindo a influência de Petrus Ramus, que afirmou: “Teologia é a doutrina de viver bem”. Para Perkins, a teologia era “a ciência de “ John Calvin, Institutes o f the Christian religion, edição de John T. McNeill, tradução para

0 inglês de Ford Lewis Battles (Louisville: Westminster John Knox, 2008), 1.1.1 [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Editora UNESP, 2008), 2 vols.]. '"^Reformed confessions o f the 16th and 17th centuries in English translation, volume 1, 1523-1552, compilação de Jam es T. Dennison Jr. (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2008), p. 469. “ Dennison, Reformed confessions o f the 16th and 17th centuries in English translation, 1:469. ^‘Calvin, Institutes, 1.2,1. “ Calvin, Institutes, 1.2.1.

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viver bem-aventurado para sempre”/^ De acordo com Perkins, essa vida bem­ -aventurada é alcançada mediante o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo. Nesse detalhe, a teologia de Perkins era uma combinação da teologia de Calvino com a metodologia de Ramus. Em Marrow, Ames manifes­ tou reservas a essa ideia, reconhecendo que a vida eterna inclui “viver bem” e “viver feliz”, mas dizendo que é mais excelente viver para a glória de Deus do que para a nossa felicidade (1.1.8). John Dykstra Eusden escreve; “Para Ames, 0 objetivo da teologia nunca era produzir bem-aventurança, que, na opinião dele, estava ligada principalmente à aspiração e ao desejo supremos do homem. Na busca de sua própria bem-aventurança o homem pode esquecer­ -se de Deus, o próprio ohjeto de seu viver corretamente’A'* Mas a afirmação peremptória de Eusden precisa ser contrabalançada pela declaração de Ames sobre a busca da felicidade (2.1.27-28; 2.16.13). Em seus sermões sobre o Catecismo de Heidelberg, Ames escreveu: “Deve-se ter em conta e buscar o bem supremo mais do que qualquer outra coisa de toda nossa vida [...] Além do mais, ‘bem supremo’ é especificamente entendido como aquilo em que consiste nossa bem-aventurança”.^^ Essas duas ramificações de santidade e felicidade vistas em Calvino, Perkins e Ames foram, por fim, entrelaçadas na declaração inicial do Catecismo Menor de Westminster, segundo a qual o fim principal do homem é glorificar a Deus e alegrar-se nele para sempre”.

Ênfase na vontade humana habilitada p o r Deus Ames escreveu que “a vontade é a causa fundamental e verdadeira dessa graça [regeneradora]; a conversão da vontade é o princípio eficaz na conversão de todo 0 homem” (1.26.23). Tamhém afirmou que “a causa principal da obser­ vância [obediência] é a vontade, como acontece na fé viva (Fp 2.13)” (2.1.35). A ênfase dada por Ames à vontade foi um dos pontos principais da contro­ vérsia que teve com Johannes Maccovius (1588-1644), seu colega de docência em Franeker. Maccovius enfatizava a primazia do intelecto na mente rege­ nerada; ou seja, a vontade é renovada por meio do intelecto. O intelecto é o terminus a quo, i.e., o ponto inicial de um processo; a vontade é o terminus ad quem, i.e., o objetivo final de um processo. Mas Ames defendia a primazia da vontade. Escreveu que a fé envolve “um ato da totalidade do homem — o que não é de modo algum um simples ato do intelecto”, mas o ato da vontade em crer no evangelho é aquele que, pela graça do Espírito, torna o conhecimento ^^William Perkins, A golden chaîne, in: The workes o f that famous and worthy m inister of Christ in the Universitie o f Cambridge, Mr. William Perkins (London: John Legatt and Cantreii Ligge, 1612], 1:11. ^“Eusden, introdução, p. 47. “ Ames, A sketch o f the Christian’s Catechism, p. 6 (Lord’s Day 1).

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salvífico. Portanto, o conhecimento que salva difere do simples conhecimento por envolver um compromisso integral da vontade. Ames afirma que, “embora a fé sempre pressuponha um conhecimento do evangelho, assim mesmo não existe em ninguém conhecimento algum que salve [...] com exceção do co­ nhecimento que se segue a esse ato da vontade e que dela depende” (1.3.3-4; cf. 2.5.11-16). Essa posição divergia de boa parte da ortodoxia oficial do início do século 17, que dizia que a fé procedia da compreensão e então moldava a vontade. Como consequência, a posição de Ames sobre a fé e a vontade veio a ser investigada pelos reformados ortodoxos. É interessante que Gisbertus Voetius (1589-1676), seguidor de Ames e um dos líderes do desenvolvimento do sistema reformado de teologia e piedade nos Países Baixos da pós-Reforma, afirmou que atribuir fé à voníade era algo desconhecido na teologia reformada, com a exceção de Ames, que foi o único que, até onde ele sabia, defendeu a ideia em público. Quando Abraham Kuyper Jr. examinou a controvérsia entre Ames e Maccovius, chegou à conclusão de que Ames havia se desviado da posição reformada tradicional defendida por M accovius.Robert T. Kendall chega a ponto de dizer que, devido à influência de Ames, “a doutrina de Calvino acer­ ca da fé estava agora, para todos os propósitos práticos, morta e sepultada. Ames defendeu uma doutrina voluntarista da fé dentro de uma tradição que de qualquer maneira já vinha se livrando da influência de Calvino”. Kendall eníão conclui que “aparentemente o voluntarismo de Ames é a chave para tudo 0 que ele crê”.^® Por “voluntarismo” ele quer dizer a ideia de “fé [salva­ dora] como um ato da vontade em contraste com uma persuasão passiva na mente”.^^ Kendall viu isso como um afastamento da ideia calvinista de fé por iluminação divina na direção de uma ideia arminiana de fé como escolha do livre-arbíírio humano.®“ Embora Ames tenha feito declarações ocasionais que soavam como se ele fosse um voluntarista que havia se desviado do caminho da ortodoxia reforma­ da, os esíudiosos que acusam Ames de voluntarismo não estão familiarizados com a amplitude de sua obra nem com as categorias filosóficas fundacionais “ Gisbertus Voetius, Selectam m theologicae (Utrecht: Joannem à Waesberge, 1569), 5:289. ^Abraham Kuyper Jr., Johannes Maccovius (Leiden: D. Donner, 1899), p. 315-96. Abraham Kuyper Jr. (1872-1941) foi filho do famoso Abraham Kuyper (1837-1920), teólogo reformado ho­ landês e lider político que foi primeiro-ministro dos Países Baixos de 1901 a 1905. “ Robert T. Kendall, Calvin and English Calvinism to 1649 (Oxford: Oxford University Press, 1979), p. 151, 154. “ Kendall, Calvin and English Calvinism, p. 3. O termo “voluntarista” também pode designar 0 debate teológico medieval que nominalistas e realistas travaram sobre a liberdade da vontade de Deus. Aqui não estamos nos referindo àquele debate. ^“Kendall, Calvin and English Calvinism, p. 151-2.

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que empregou. Dentro dos parâmetros da teologia reformada ortodoxa, Ames ressaltou que o cristianismo é uma fé operada pelo Espírito, viva e sincera, a qual produz um caminhar cristão autêntico. Quando Deus chama um homem a Cristo, 0 homem é “passivo”, mas “um princípio espiritual de graça é gerado na vontade do homem (Ef 2.5)” (1.26.21). Ames destacava que o esclareci­ mento da mente era insuficiente para produzir conversão, pois a corrupção da vontade tinha de ser vencida (1.26.24). Como resultado da conquista da vontade, homens chamados por Deus confiam em Cristo “de forma livre, mas também segura, inevitável e imutavelmente. João 6.37: ‘Todo aquele que o Pai me dá virá a mim’” (1.26.28). Em sua definição de fé, Ames deu uma ênfase diferente à de Calvino, mas hca claro que continuou dentro da perspectiva teológica deste último. Embora definisse fé como “um conhecimento firme e indubitável da benevolência de Deus para conosco, baseada na verdade da promessa gratuitamente dada em Cristo”, Calvino destacava que “ela não nos ajudaria em nada a conhecer que Deus é verdadeiro a menos que ele misericordiosamente nos atraísse para si”.^^ Ao se aprofundar no papel das afeições no encontro divino-humano, Calvino indaga: “Mas como a mente pode ser despertada para provar a bondade divi­ na, sem ao mesmo tempo ser totalmente estimulada a, como resposta, amar a Deus?”. Ele responde: “Assim que alguém é tocado por ela, ela o domina e 0 atrai para si”.^^ Calvino — e Ames o segue nisto — também ratificou as dimensões afetivas e volitivas tanto em sua definição de fé quanto em seu ensino sobre a conversão. Ao dirigir a atenção para a vcntade como o centro da fé, Ames quis de­ monstrar que a piedade verdadeira acontece num relacionamento de aliança entre a criatura pecadora e o Criador redentor. A fé como ato da vontade é um ’’Calvin, Institutes, 3.2.7. ’’ Calvin, Institutes, 3.2.41. ” 0 contexto filosófico medieval dos conceitos de “intelectualismo” e “voluntarismo”, en­ tendidos mais tecnicam ente e na sua relação com a fé, fala da primazia relativa deles como os elementos constitutivos das duas faculdades da alma — o intelecto e a vontade. A primazia do intelecto, um ato mais contemplativo ou especulativo, ressalta a ideia de Deus como ser e ver­ dade, ao passo que, de um ângulo mais prático, atribui-se a primazia à vontade quando Deus é visto, em última instância, como o objeto supremo do amor humano. Com base nesse contexto medieval, pode-se ver que nenhuma das duas ideias tem em mente a noção do pensamento, vontade ou ação humanos fora da graça. Além do mais, quando Calvino trata da vontade, não 0 faz num sentido filosófico, mas numa perspectiva soteriológica em que aborda o antiquíssimo problema teológico da incapacidade humana. Com base nisso, Richard A. Muller conclui que na doutrina de Calvino acerca da fé a primazia pertence à vontade e não ao intelecto. Veja a obra de Muller The unaccomm odated Calvin: studies in the foundation o f a theological tradition (New York: Oxford University Press, 2000), p. 159-73. Pelo fato de Ames fazer uso das mesmas categorias filosóficas e soteriológicas de Calvino, a relação entre a ideia de Calvino sobre a fé e a de Ames é quase direta.

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sinal verdadeiro de obediência pactuai à medida que se pede à criatura que reaja com fé e obediência às promessas pactuais oferecidas gratuitamente em Cristo. A teologia da aliança é o centro do sistema teológico de Ames.

Organização e conteúdo da doutrina de Ames The marrow o f theology está estruturado de acordo com o sistema ramista de dicotomias,^'* em que se desenvolve a ideia de que a teologia, a doutrina de viver para Deus, consiste, em primeiro lugar, em “fé” (livro 1), ou em que crer e, em segundo, em “observância” (livro 2), ou como praticar a fé e fazer boas obras em obediência a Deus. Essas duas categorias principais — fé e observân­ cia — constituem a nascente de onde flui todo o sistema teológico de Ames. Partindo desse fundamento, ele passou a explicar seu sistema teológico por meio de várias dicotomias em que expõe as características do viver para Deus. Depois de definir a fé como “o repousar do coração em Deus” (1.3.1) e apresentar a fé como um ato da totalidade do homem, em especial da vontade, Ames analisou o objeto da fé, que é Deus. Ensinou sobre o conhecimento de Deus (1.4.1-7), dividindo-o em “suficiência” e “eficiência” de Deus (1.4.8). O primeiro conhecimento ensina que Deus é tudo de que ele e suas criaturas precisam, o que se vê de forma clara, em primeiro lugar, em sua “essência” conforme expressa em múltiplos atributos (1.4.12-67) e, em segundo, em sua “subsistência” trinitária como um só Deus em três pessoas (1.5). O segundo conhecimento exposto por Ames é a “eficiência” de Deus, a qual definiu como 0 “poder operante de Deus mediante o qual ele opera todas as coisas em todas as coisas (Ef 1.11; Rm 11.36)” (1.6). O decreto de Deus, Ames ensi­ nou, é 0 primeiro exercício da eficiência de Deus (1.7). Ele demonstrou que tudo acontece devido ao regozijo eterno de Deus conforme efetivado em sua Criação e providência (1.8.9). A graça preservadora de Deus abarca toda a ordem criada, ao passo que o governo especial que Deus exerce em favor do homem como “criatura inteligente” é a aliança das obras (1.10). Ao violar essa aliança condicional, a humanidade caiu tragicamente no pecado. Essa Queda teve consequências sérias e eternas, inclusive a morte física e espiritual e a propagação do pecado original (1.11-17). Porém, ainda há esperança. A condenação é subvertida pela graça res­ tauradora mediante a redenção. Por meio da pessoa e obra de Cristo, a hu­ manidade caída pode voltar a ter comunhão com Deus (1.18-23). Tudo isso acontece exclusivamente para o regozijo de Deus e devido ao seu “propósito misericordioso” (1.18.2). Deus enviou Cristo com o tríplice ofício de profeta, ” Para um esboço do livro todo num enfoque ramista, veja Ames, “Method and chart of the marrow”, in: The marrow o f theology, p. 72-3.

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sacerdote e rei, a fim de que fosse nosso mediador e redentor (1.19).^^ Ele ofereceu “satisfação [mediante pagamento] ” a Deus por nossos pecados e para obter “mérito” para nossa justiça (1.20). Ames descreveu a morte de Cristo pelos pecadores com reverente simpli­ cidade. Escreveu que “a morte de Cristo é o ato final de sua humilhação, em que suportou dor extrema, horrível e excruciante pelos pecados dos homens” (1.22.1). Sua morte incluiu a perda do consciente “regozijo em Deus”, “a ex­ perimentação da ira de Deus” e “tristeza, medo e profundo pavor” (1.22.7-11). Experimentou “o abandono, a negação e a traição por seus discípulos mais íntimos”; acusações falsas e injustiça; “zombaria, açodamento e crucificação”; “o abandono pelo seu Pai”; e “a plena consciência do juízo de Deus sobre os pecados dos homens” (1.22.20-24). A humilhação de Cristo se completou, então, quando “sua alma expirou com tormento e dor física excruciantes”, sendo sepultado e permanecendo morto por três dias (1.22.25, 29, 30). Em seguida, Ames escreveu a respeito da exaltação de Cristo, a saber, sua ressurreição, sua ascensão e seu sentar-se à destra de Deus (1.23.9). Mediante sua morte. Cristo mereceu a vitória; sua exaltação é “a coroa e a manifestação dessa vitória” (1.23.3). O Mediador passou a participar da “glória régia”, que é “a plenitude de poder e majestade mediante as quais ele governa todas as coisas para o bem de si mesmo” e será “juiz de homens e de anjos” (1.23.28-29, 31). Ames disse; “Essa glória régia de Cristo transborda em seus outros ofícios, de maneira que exerce um sacerdócio régio e uma função profética régia” (1.23.32). Desde o início, a teologia de Ames está implicitamente estruturada segundo moldes da aliança. No livro 1, capítulo 24 (intitulado “A aplicação de Cristo”), a teologia da aliança de Ames se torna mais óbvia. O meio pelo qual a aliança da redenção entre Deus e Cristo atinge seus objetivos é a aliança da graça, que as Escrituras chamam de “nova aliança”. Em outras palavras, a “aplicação de Cristo” ocorre no contexto de aliança. Depois de explicar como a nova aliança difere da antiga, Ames afirma que a essência da aliança da graça permanece ao longo de diferentes dispensações históricas até que, por fim, no último dia, os crentes serão arrebatados à glória, e a aliança da graça, que teve início por ocasião da Queda, se consumará. A aliança da graça é tanto condicional, pois a fé é exigida, quanto absoluta, pois a condição exigida na aliança também é prometida na mesma aliança. De ^^Uma ilustração da vasta e reconhecida influência de Ames são os primeiros batistas parti­ culares ingleses. Quando, em 1644, prepararam a Primeira Confissão de Fé Batista de Londres, boa parte do que escreveram sobre o ofício de Cristo consiste em longas citações extraídas de The marrow o f theology, de Ames. Comparem-se o artigo 12 da Primeira Confissão Batista de Londres com 1.14.3-7 da obra de Ames, o artigo 14 com 1.14.10-11, o artigo 15 com 1.14.14, o artigo 16 com 1.14.16 e o artigo 18 com 1.14.18-19. Veja Jay T. Collier, “The sources behind the First London Confession”, Am erican Baptist Quarterly 21, n. 2 (2002): 197-214.

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um lado, Ames diz que uma pessoa não pode ter certeza de que é salva pela graça “sem [a pessoa] notar a fé e o arrependimento” em si mesma (1.30.16). De outro lado, para Ames, conforme assinalado por John von Rohr, “a promessa de cumprimenfo de condições da aliança era ela própria uma promessa da a l i a n ç a N a s palavras de Ames, a fé — a condição da aliança — é prometida “como dádiva da graça como meio para alcançar a graça” (1.24.19). Assim, em última análise, a graça faz fudo, e o crente aprende a descansar num Deus que promete e decreta. Vale assinalar que na teologia de Ames os decretos de eleição e condenação eterna não são analisados senão no capítulo 25, na seção sobre a aplicação da redenção. Não aparecem nos capítulos anteriores que falam do decreto de Deus (1.7) ou do governo divino sobre as criaturas inteligentes (1.10). Ames segue de perto a carta de Paulo aos Romanos, quando, ao examinar a ordem da salvação [ordo salutis], situa a eleição divina no início de sua considera­ ção sobre a “união mediante chamado”, justifícação, adoção, santificação e glorificação (1.26-30). Ames dedica então dois capítulos ao objeto da aplicação da redenção, que é a igreja. Depois de elaborar sobre a igreja mística e invisível (1.31) e a igreja instituída ou visível (1.32), trata da maneira ou m eio da aplicação da redenção, dedicando capítulos às Sagradas Escrituras (1.34), ao ministério (1.33, 35), aos sacramentos (1.36, 41) e à disciplina eclesiástica (1.37). Por fim, Ames explica a adm inistração da aplicação da redenção, ou seja, como Deus administra a aliança da graça (1.38-39,41). Ele divide a história em períodos de administração da aliança, mostrando como houve uma progressão “do imperfeito para o mais perfeito” e “do geral e obscuro para o mais específico e claro” (1.38.2-3). De Adão até Abraão, a aliança da graça foi administrada por promessas genéricas, como Gênesis 3.15 (1.38.14). De Abraão a Moisés, a aliança foi administrada principalmente dentro da linhagem de uma família: Abraão e sua posteridade (1.38.20). De Moisés a Cristo, a igreja estava, sob a aliança, em sua infância, e o ministério era “quase sempre extraordinário e dirigido por profetas” (1.38.12). A partir da vinda de Cristo em carne até seu retorno nas nuvens, o crente recebe gratuitamente, por meio do Espírito de adoção, a aplicação da aliança na condição de herdeiro espiritual e não na de um filho terreno no espírito de temor e escravidão (1.38.8-9; 1.39.9). Com a volta de Cristo, “a aplicação, que apenas teve início nesta vida, será completada” (1.41.1). Ames analisa como, na administração da aliança da graça. Deus manifestou sua eleição, redenção, chamado, justificação, adoção, santificação e glorificação ^'’John von Rohr, “Covenant and assurance in early English Puritanism”, Church History 34 (1965): 201.

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por meio das instituições e acontecimentos de cada período (1.38.14-35). Em outras palavras, os aspectos temporais e eternos da história da salvação se fundem. Os elementos lógicos e existenciais da ordo salutis são integrados aos períodos cronológicos da ordo temporum. O movimento horizontal e a progres­ são vertical estão o tempo todo num estado de interseção; os receptores do poder eletivo de Deus recebem benefícios da aliança com clareza e segurança cada vez maiores, visto que a predestinação e a aliança se unem numa mistura harmoniosa de teologia decretatória e doutrina da aliança. Por exemplo, na era mosaica a redenção foi manifesta no Êxodo do Egito; a justificação, nos sacrifícios expiatórios; a adoção, na dedicação dos primogênitos; a santificação, nas leis de purificação; e a glorificação, na herança da terra e na comunhão com Deus em seu santuário. Desse modo, Ames evitou a discrepância óbvia entre o decreto eterno e as administrações históricas da aliança, discrepância essa que com frequência tem atormentado a teologia reformada. Ele oferece um sistema internamente consistente de teologia da aliança que faz justiça tanto à atividade decretatória de Deus quanto às suas revelações segundo a aliança.

Organização e conteúdo da ética de Ames Vimos que o ensino teológico de Ames começa com a fé, o que é explicado, seguindo uma estrutura de aliança, no livro 1 de Marrow. O livro 2 oferece a segunda metade do sistema ramista de teologia proposto por Ames: a observân­ cia ou obediência que acompanha a fé. Nas palavras de Ames, “a observância é a execução submissa da vontade de Deus para a glória de Deus” (2.1.1). No que diz respeito à “prontidão da mente”, os cristãos devem obedecer a Deus como “filhos”, mas, no que diz respeito ao dever, obedecemos como “servos” (2.1.7). Com 0 adjetivo “submisso” Ames quer dizer uma disposição para obedecer (2.1.4) “com temor reverente que é resultado do reconhecimento da autoridade e do poder de Deus” (2.1.11). A observância submissa também envolve sinceridade e zelo (2.1.34). Ames relaciona a obediência à fé salvadora, desse modo associando sua ética à sua doutrina. Afirma que “a fé produz obediência” ao se apropriar de Cristo, “a fonte de vida e a nascente de todo poder para fazer o bem”, e ao rece­ ber as promessas e ameaças de Deus, as quais motivam a obediência (2.1.15). A obediência da fé é dirigida e motivada pelo poder da “graça santificadora” procedente de Deus, a qual opera tanto o nosso querer quanto o nosso realizar (2.1.16), ou seja, tanto a virtude interior de um hábito santo [habitus] e de uma inclinação para o bem (2.2) quanto as boas obras exteriores produzidas por essa virtude, da mesma maneira que uma árvore produz frutos (2.3). O restante de Marrow consiste em seu estudo dos Dez Mandamentos. Seguindo o exemplo de Cristo (Mt 22.37-40), Ames analisa a Lei, dividindo-a em duas partes: “religião” centralizada em Deus e “justiça” centralizada no

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homem (2.4.1-4). Recorrendo às três virtudes teológicas da fé, esperança e amor a Deus, ele explica a religião ou piedade (2.5-7). Mediante o ouvir da Palavra e a oração, essas virtudes religiosas colocam o homem em comunhão com Deus (2.8-12). O segundo mandamento estabelece os limites da adoração por meio da “adoração instituída” por Deus, ou seja, “o meio ordenado pela vontade de Deus”, em oposição a qualquer meio de adoração inventado pelos homens (2.13). Essa questão, mais tarde denominada princípio regulador, foi 0 ponto central da crítica puritana aos rituais da Igreja da Inglaterra. O ter­ ceiro mandamento estabelece o modo da adoração, e o quarto, a ocasião da adoração (2.14-15). Ames analisa a segunda tábua da Lei sob a ótica da “justiça”, palavra que usava com o sentido de cumprir nosso dever para com o próximo pelo fato de querermos o seu bem (2.16). Os mandamentos direcionam esse amor a promo­ ver 0 bem de nosso próximo — honra, vida, pureza sexual, propriedade legíti­ ma de bens e crença na verdade — tendo alegria no bem-estar dele (2.17-22). Esse décimo mandamento, de grata alegria com a prosperidade de nosso próximo, sintetiza nosso amor por ele, assim como o primeiro mandamento sintetiza nosso amor por Deus (2.22.19). A esta altura, devemos observar a relação entre Marrow e Conscience (publicada em latim em 1630; em inglês em 1639), livro também escrito por Ames e que se tornou um marco da teologia moral, obra que teve quase 20 edições no período de uma única g e r a ç ã o . A unidade entre esses dois livros fica evidente no assunto tratado e também na maneira como Conscience brota naturalmente de Marrow e serve, por assim dizer, de comentário ao livro 2 de Marrow. Aliás, foi propósifo declarado de Ames que, “se existem alguns que desejam uma explicação melhor de assuntos práticos, especialmente aqueles da segunda parte de Marrow, tentaremos, se Deus quiser, satisfazer o desejo deles num estudo especial, que pretendo escrever e que tratará de assuntos ge­ ralmente denominados ‘questões de consciência’”.^®Por esse motivo, em nossa explanação da segunda parte de Marrow também faremos comentários sobre Conscience. À medida que deixamos de lado a teologia formal de Ames para nos concentrar na dimensão mais prática de seu pensamento, estamos entrando na esfera da ética cristã ou da teologia moral reformada em seus primórdios. A ética cristã era um assunto de extrema importância para Ames. Isso é perfeitamente compreensível, pois sabemos da ênfase dada por Ames à vida cristã prática. Visto que o viver para Deus se caracteriza por uma piedade ’^Acerca de Ames como um puritano casuísta, veja George L. Mosse, The holy pretence: a study in Christianity and reason o f State from William Perkins to John Winthrop (Oxford: Basil Blackwell. 1957), p. 68-87. ^®Ames, “Brief forewarning”, in: Marrow, p. 70.

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viva e prática, os cristãos precisam de respostas para as questões éticas mais difíceis da vida cristã. Essa preocupação é tratada em Conscience, uma co­ leção de cinco livros que começa com uma abordagem bastante teórica da natureza da consciência e termina com aplicações bem práticas. As idéias básicas desse livro vieram a lume pela primeira vez na defesa que Ames fez das suas 38 teses e 4 corolários, na ocasião da obtenção de seu título de doutor em teologia na Universidade de Franeker em 1622. Oito anos depois, Ames publicou esse material na forma de obra de diversos volumes sobre teologia moral que preencheu uma lacuna no sistema, em desenvolvimento, do pensamento reformado. Richard Baxter (1515-1691), que preparou seu Christian Directory [Diretório cristão] com base na casuística de Ames, disse que Perkins prestou um serviço de grande valor ao promover a casuística reformada, mas que a obra de Ames, embora mais curta, era superior. “Ames excedeu a todos”, afirmou Baxter. O primeiro livro em Conscience define consciência como “o juízo que o homem faz de si mesmo, de acordo com o juízo a seu respeito feito por Deus”.'“’ Apresenta um estudo teórico daquilo que constitui a consciência, antes de entrar em detalhes sobre o funcionamento dela. No livro 2, Ames descreve o que é uma questão de consciência: “um assunto prático sobre o qual a consciência pode estar em dúvida”. Essa seção explica o pecado, a entrada no estado da graça, a batalha contínua entre a carne e o espírito, e a conduta na vida cristã. O livro 2 pode facilmente servir de compêndio de teologia reformada. O livro 3, intitulado “O dever geral do homem”, fala sobre “as ações e os relacionamentos da vida [do homem] ”. Ames diz que o sinal da obediência verdadeira é, com submissão, colocar a vontade de Deus acima da vontade da criatura, mesmo quando aparentemente a vontade divina não traz vantagens para ela. Isso se alcança exercitando-se nas disciplinas de uma vida obediente — humildade, sinceridade, zelo, paz, virtude, prudência, paciência, temperança — e evitando práticas que atrapalham um andar obediente, como embriaguez, pecados do coração e pecados da língua. Esses três livros ocupam cerca de um terço das páginas de Conscience. Em seguida a essas questões preliminares de definições e elaborações conceituais sobre a consciência e a obediência, Ames se concentra em seu verdadeiro ob­ jetivo — ética ou teologia moral — indagando como questões de consciência devem ser decididas. A resposta simples é: mediante a correta compreensão e aplicação da lei moral. É aí que Conscience desenvolve o tema do livro 2 de Marrow. ^'’Richard Baxter, The practical works o f Richard Baxter {\j3nàow.} ames Duncan, 1838), 1:3-4. “ Ames, preâmbulo de Conscience with the power and cases thereof [\ 6i9; reimpr., Norwood: W alter!. Johnson, 1975), 1.1.

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Os livros 4 e 5 elucidam a lei moral sobre o dever para com Deus e para com 0 próximo. O dever do homem para com Deus cobre todo o espectro do andar cristão obediente, desde o amor a Deus na adoração pública e particular até a guarda do dia de descanso. Ames analisa tópicos gerais, como a igreja, mas também cobre tópicos específicos, como orar e cantar. Ao tratar de qualquer incerteza que o crente tenha sobre seu relacionamento com Deus, Ames prepara apropriadamente o leitor para o livro 5, que trata de relações interpessoais. No livro 5, que possui 57 capitulos e tem o dobro do tamanho do livro 4, Ames analisa questões de consciência que podem surgir em relações interpessoais. Ele fundamenta todo o seu ensino nos seis últimos dos Dez Mandamentos. Os textos de Ames são permeados de cristianismo prático. Ele apresenta um mapa detalhado para a piedade generosa e sincera dos redimidos. Deixa claro que a obediência a Deus segundo a aliança e a justiça com o próximo nos termos da aliança são cruciais a uma fé viva. Essa obra formal sobre ética é um desenvolvimento necessário e uma conclusão apropriada daquilo que Ames escreveu sobre teologia moral no livro 2 de Marrow (observância), que é por sua vez a consequência lógica de sua teologia formal exposta no livro 1 (fé). Os livros Marrow e Conscience, junto com o comentário de Ames sobre o Catecismo de Heidelberg, mostram que ele não mediu esforços em sua busca de explicar a caminhada da fé. Juntas, essas obras demonstram que a resposta ao amor soberano de um Deus gracioso no relacionamento de aliança deve ser a obediência submissa nos termos da aliança do redimido filho de Deus.

A influência de Ames The marrow o f theology teve enorme influência na Nova Inglaterra, onde em ge­ ral foi considerado o melhor resumo já escrito sobre a teologia calvinista. Tanto Marrow quanto Conscience eram leitura obrigatória nos seminários teológicos de Harvard e Yale até boa parte do século 18, época em que o currículo teológico também exigia o estudo do Compendium o f Christian theology [Compêndio de teologia cristã], escrito por Johannes Wollebius (1585-1629), contemporâneo de Ames, e de Institutes o f elenctic theology [Institutas de teologia elêntica], obra de Francis Turretin (1623-1687).“*' Thomas Hooker (1586-1647) e Increase Mather (1639-1723) recomendaram The marrow o f theology, dizendo que, com exceção da Bíblia, era o livro mais importante para quem desejasse se tornar teólogo com boa base. Em seu exemplar de Marrow, Jonathan Edwards “'S. E. Morison, Harvard College in the seventeenth century (Cambridge: Harvard University Press, 1936), p. 267, e Richard Warch, School o f the prophets: Yale College, 1701-1740 (New Haven: Yale University Press, 1973), p. 191.

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(1703-1758) fez inumeráveis notas marginais, estudou o trecho de Conscience em que Ames trata do Dia de Descanso e reconheceu sua dívida para com eled^ Contudo, a influência de Ames na Nova Inglaterra foi além de seu sistema de teologia e ética. Seus escritos eclesiológicos lançaram o alicerce para o congregacionalismo não separatista na Nova Inglaterra, um movimento que defendia que as igrejas congregacionais da Colônia da Baía de Massachusetts deviam dar o exemplo na busca pela reforma da Igreja da Inglaterra em vez de separar-se dela. Em particular a Plataforma de Cambridge, de 1648, reflete 0 pensamento de Ames. E seu ramismo puritano também foi avidamente aco­ lhido e se tornou característico do puritanismo da Nova Inglaterra.''^ Puritanos da Nova Inglaterra, como John Cotton (1585-1652), Increase Mather e Cotton Mather (1663-1728), citavam Ames com mais frequência do que citavam Calvino. Increase Mather afirmou: “É raro um acadêm ico de notável capacidade ter um coração entusiasm ado com a religião, mas Ames era assim”. Cotton Mather chamou Ames de “aquele profundo, aquele sublime, aquele habilidoso, aquele irrefutável — sim, aquele divino doutor”.'''* O segundo maior impacto de Ames e seu Marrow aconteceu nos Países Baixos. Matthias Nethenus (1618-1686), colega de Voetlus na Universidade de Utrecht, comentou que “na Inglaterra [...] o estudo da teologia prática expe­ rimentou um florescimento maravilhoso; e nas igrejas e escolas holandesas, desde a época de Willem Teellinck e de Ames vem se difundindo bastante e cada vez mais, embora nem todos o vejam com igual interesse”.'"’ Keith L. Sprunger assinala que Ames considerou os holandeses demasiadamente intelectuais e não suficientemente práticos e, por esse motivo, promoveu a piedade puritana com até considerável êxito com o objetivo de “fazer com que os holandeses se fornassem puritanos”.''® Além da influência em Voetius, Ames causou grande impacto em Peter van Mastricht (1630-1706), um pietista holandês cuja teo­ logia sistemática, conforme avaliação feita por Jonathan Edwards, superou, do ponto de visto do proveito tanto teórico quanto prático, até mesmo a de Turretin. Van Mastricht se baseou consideravelmente em Ames, em especial no pensamento da aliança e na casuística.'"’ Quase todos os livros de Ames foram impressos nos Países Baixos, muitos em latim para a comunidade acadêmica internacional. The marrow o f theology e Conscience with the pow er and cases thereof foram logo traduzidos para o ‘‘^Eusden, introdução, p. 1-2, e Warch, School o f the prophets, p. 191. ‘‘^Keith L. Sprunger, “Ames, Ramus, and the method of Puritan theology”. Harvard Theolo­ gical Review 59 (1966): 133-51. '‘‘•Mather, Great works o f Christ in America, 1:245, 236. ‘‘^Horton, Ames, p. 15. ‘‘^Sprunger, The learned Doctor Am es, p. 260. ‘“’Van Vliet, “William Ames”, p. 346-75, e Adriaan C. Neele, Petrus van Mastricht (1630­ 1706), Reformed orthodoxy: method and piety (Leiden: Brill, 2009), p. 7.

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holandês e tiveram pelo menos quatro tiragens no século 17.'^® Mas seus escritos eclesiológicos não foram impressos com tanta frequência, o que dá a entender que nos Países Baixos sua teologia e casuística causaram mais impacto do que suas idéias congregacionais. É irônico que Ames tenha tido menos influência em sua terra natal, a In­ glaterra, embora ali também fosse considerado o discípulo mais influente de Perkins e seu verdadeiro sucessor. As principais obras de Ames tiveram ampla circulação e influenciaram a feologia calvinista inglesa ao longo do século 17. Seu The marrow o f theology era, em particular, tido em alta consideração pelos puritanos. Thomas Goodwin (1600-1680) disse que “depois da Bíblia e considerava The marrow o f theology, do dr. Ames, o melhor livro do mundo”.

Conclusão: graça soberana, fé e obediência Quando recapitulamos a vida e o ensino de Ames, temos de fazer esta pergunta: será que Ames de fato se desviou da teologia reformada ortodoxa, conforme Kuyper e Kendall sustentam? A resposta tem de ser negativa. Ames foi instru­ mental na revitalização da ortodoxia reformada quando ela estava começando a perder o dinamismo prático. A obediência baseada na aliança é uma espécie de ativismo cristão. Esse tipo de ativismo não é um mero voluntarismo. É ver­ dade que Ames dava ênfase à vontade: “O objetivo verdadeiro e particular da teologia é a vontade” (1.1.9). Mas Ames, como filho fiel da Reforma, continuou enfatizando que, “por designar o ato de crer, em última instância a fé depende da operação e persuasão interna do Espírito Santo” (1.3.12). Além do mais, a atenção que Ames deu à vontade deve ser vista pelo que é: uma combinação de fé com obediência que expressa compromisso com Deus. Ames desenvolveu isso em batalhas filosóficas e teológicas com seus colegas de Franeker, à medida que tentava reintroduzir um cristianismo vibrante e sincero na igreja holandesa do século 17, a qual havia perdido suas raízes piedosas. Nem a fé nem a prática são suficientes em si mesmas. Divorciada da prática, a fé leva à “ortodoxia fria”, ao passo que uma ênfase isolada na vontade e nas boas obras conduz ao arminianismo. A história da vida de Ames e a ideia básica de seu pensamento — conforme vistas em Marrow, Conscience e outros escritos — mostram que ele lutou pelo correto equilíbrio entre ambas.“ “ C. W. Schoneveld, Intertraffic o f the m ind: studies in seventeenth-century Anglo-Dutch translation with a checklist (Leiden: E. J. Brill, 1983). “’ Conforme citado por Increase Mather, “To the reader”, in: Jam es Fitch, The first principles of the doctrine o f Christ (Boston, 1679). “ Para um exemplo de exposição doutrinária e prática das Escrituras por Ames, veja seu livro Analytical exposition o f both the Epistles o f the Apostle Peter (London: E. G. para John Rothwell, 1641).

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TEOLOGIA PURITANA

A chave para a combinação correta entre, de um lado, a graça soberana e, de outro, uma fé dada gratuitamente e uma obediência responsável precisava ser encontrada no contexto da aliança com Deus. É no contexto da aliança da graça que Ames expôs a harmonia entre fé e obediência, entre o evangelho de Cristo e os Dez Mandamentos, entre ortodoxia e ortopraxia. Em vez de isolar declarações de Ames acerca da vontade e acusá-lo de “voluntarismo”, temos de interpretar cada um de seus ensinamentos à luz da totalidade de sua teo­ logia — uma teologia reformada da religião sincera e da obediência humilde. The marrow o f theology apresenta “a ideia geral do pensamento puritano sobre Deus, a igreja e o mundo” de uma forma mais clara e sistemática do que qualquer outro livro puritano.^' É uma obra essencial para a compreensão da ideia puritana de aliança, santificação e ativismo, e é altamente recomendada tanto para leigos quanto para teólogos. Ainda hoje vale a pena consultar o Marrow, que deve fazer parte da biblioteca de todo pastor e estar disponível entre os recursos educacionais de toda igreja.

’'Douglas Horton, Prefácio de William Ames, Marrow, p. vii.

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TEO LO G IA PRO PRIAM EN TE DITA □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□D

Capítulo 4 □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ D

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[Assim com o] a im ensidão é a difusão d a essência [d e Deus], a eternidade é a duração d e sua essência [ ...] Sua duração é tão interm inável quanto sua essência é ilimitada.

Stephen Charnock*

Há pouquíssimo material sobre Stephen Charnock (1628-1680) disponível na literatura secundária.^ Os que ouviram a seu respeito tendem a conhecer sua obra magna D iscourses u p o n the ex isten ce a n d attributes o f God [Estudos sobre a existência e os atributos de Deus]. Não há dúvida de que não é pequeno o número de pessoas que, diante do tam anho descomunal da obra de Charnock, foram se dedicar à leitura de outros textos. Isso é lamentável por várias razões, entre as quais se destaca a capacidade de Charnock de combinar um rigoroso discurso sobre a doutrina de Deus com a ênfase puritana típica de “práticas” da doutrina (estabelecendo a relação entre doutrina e vid a). Sua obra é muito valiosa no nível prático, o que deve ser o objetivo de toda teologia. Charnock estudou em Cambridge e mais tarde foi nom eado deão princi­ pal de Oxford, posição que ocupou entre 1652 e 1656. Em Oxford, pertenceu 'Stephen Charnock, Discourses upon the existence and attributes o f God (London: Thomas Tegg, 1840), p. 175-6. Essa edição é a adotada ao longo de todo este capítulo. ^Mas observe-se o texto de Carl Uueman “Reason and rhetoric: Stephen Charnock on the existence of God”, in: M. W. F. Stone, org.. Reason, faith and history: philosophical essays for Paul Helm (Aldershot: Ashgate, 2008), p. 29-46. Trueman situa a obra de Charnock no contexto da cultura intelectual e política do século 17. Minha abordagem ao examinar a obra de Charnock será menos histórica e mais de acordo com o interesse doutrinário, num estilo parecido com o da abordagem de Richard Muller, que em sua obra sobre a doutrina de Deus faz frequentes re­ ferências a Charnock. Veja Muller, Post-Reformation Reformed dogmatics: the divine essence and attributes (Grand Rapids: Baker, 2003), vol. 3.

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a uma “igreja congregada”, junto com outros baluartes puritanos; Thomas Goodwin (1 6 00-1680), Thankful Owen (1620-1681) e Theophilus Gale (1 6 2 8 ­ 1678). Depois de Oxford, Charnock foi para a Irlanda, onde serviu a várias igrejas, tornando-se um dos clérigos mais bem pagos da Irlanda. Em 1660, retornou à Inglaterra, mas, com o desdobramento da Restauração, não rece­ beu nenhum salário pastoral durante quinze anos. De acordo com Richard Greaves, Gharnock se sustentou exercendo a medicina.^ Depois de ministrar às escondidas, o que incluiu viagens secretas à Holanda e à França, em 1675 Charnock tornou-se copastor com Thom as Watson (c. 1620-1686), que havia sido um dos teólogos de Westminster, de uma congregação não conformista em Crosby Hall, Londres. Nos anos finais da vida, escreveu D iscourses u po n the ex isten ce a n d attributes o f God [Estudos sobre a existência e os atributos

de Deus], talvez a mais extensa e perspicaz investigação puritana sobre a doutrina de Deus. Charnock revela notável habilidade exegética, familiaridade com teólogos protestantes e católicos romanos da Europa continental e uma graciosa maneira de se expressar (em particular com metáforas e analogias). Quando todos esses fatores são considerados em conjunto, não há dúvida de que Charnock pertence ao alto escalão de teólogos puritanos. Este capítulo se concentrará quase exclusivam ente na maneira que Charnock entendia os atributos de Deus. A doutrina de Deus foi um tem a [locus] importantíssimo entre os reforma­ dos ortodoxos.'' Na Inglaterra do século 17, vários teólogos puritanos escreveram estudos de assuntos polêmicos em que refutavam inúmeros erros de outras tradições teológicas, em particular dos socinianos. A doutrina de Deus era o ponto de partida fundacional da dogmática reformada e tinha tipicamente uma estrutura que se dividia em cinco tópicos: os nom es de Deus, o ser de Deus, os atributos de Deus, as obras de Deus e as pessoas da divindade. As três primeiras categorias tratam da doutrina de Deus no sentido estrito. O quarto tópico diz respeito à operação do decreto divino e tem relação óbvia com os três precedentes. A TTindade (i.e., as três pessoas da divindade) tem sua própria categoria porque era frequente teólogos reformados falarem de “Deus” num sentido duplo: como essência e como pessoa. Como essência, “Deus” se refere ^Oxford dictionary o f national biography, s.v. “Charnock, Stephen (1628-1680)”. ■•Na literatura que estuda a doutrina de Deus na ortodoxia reformada, entre as obras mais marcantes encontram-se Muller, Post-Reformation; Dolf te Velde, Paths beyond tracing out: the connection o f method and content in the doctrine o f God, examined in Reformed orthodoxy, Karl Barth, and the Utrecht School (Delft; Eburon, 2010); e Andreas Beck, Gisbertus Voetius (1589­ 1676): sein Theologieverstãndnis and seine Gotteslehre (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2007). No que diz respeito aos puritanos, a obra de Edward Leigh também se destaca como va­ lioso estudo sistemático da doutrina de Deus no século 17. Veja A treatise of divinity: consisting of three bookes... (London; E. Griffin para William Lee..., 1647), em especial o livro 2.

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à essência ou substância divina; como pessoa, “Deus” se refere a cada uma das três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo — ou a todas elas.^ Ligadas a essas categorias encontra-se a série de perguntas humanistas que eram comuns ao estudo acadêmico nos séculos 16 e 17: an sit? (porventura existe?), q u id sít? (o que é isso?) e q u a le sit? (de que tipo é isso?). Conforme observação útil feita por te Velde, os escolásticos reformados normalmente empregavam qualis (e não q u ale) porque Deus é pessoal e não neutro.® Neste texto, a atenção

estará voltada para o ser e os atributos de Deus — ou seja, o que Deus é e que tipo de ser ele é. A análise sobre “se Deus existe” [a n D eu s sit?) está fora do escopo deste capítulo. A doutrina de Charnock sobre Deus com eça respondendo à pergunta se Deus existe. Ele então passa para a pergunta sobre o tipo de ser que Deus é, seguindo-se uma análise dos atributos mais importantes de Deus. É claro que os atributos de Deus têm íntima relação com a questão do ser de Deus, pois, se os atributos são perfeições de Deus, então a partir deles temos condições de deduzir que tipo de ser Deus é.

O que Deus é {Q uid

Deus sit?)^

O ser de Deus está necessariam ente atrelado aos conceitos de essência e existência. O primeiro é analisado na exposição de Charnock sobre João 4 .2 4 , “Deus é Espírito”. “Ele não possui nada corpóreo, nenhuma mistura de matéria, não é uma substância visível, não é corporiform e”.® Charnock com enta que João 4.24 é 0 único lugar em toda a Bíblia em que Deus é explicitamente descrito como Espírito, pelo menos nessas exatas palavras {totidem v erbis). Se Deus existe, tem de ser necessariam ente imaterial ou incorpóreo, pois aquilo que é material é por natureza imperfeito. Aqui Charnock, numa linha de raciocínio parecida com a de muitos teólogos reformados ortodoxos, emprega a via da negação. Charnock afirma que Deus pode ser descrito de duas maneiras: por afirmação (p. ex.. Deus é bom) e por negação (p. ex.. Deus não possui corpo). “A primeira lhe atribui tudo que seja excelente; a outra o separa de tudo que seja imperfeito”.’ No entendimento de Charnock, a via da negação é a melhor via para entender a Deus; aliás, é a via pela qual costumeiramente entendemos a Deus. Para descrever a Deus, a palavra “m utável” se torna “imutável”; ou seja. Deus não pode mudar. ^Veja Charnock, Existence and attributes, p. 107. ^Te Velde, Paths, p. 96, n. 4. ^Veja Catecismo Menor de Westminster, pergunta 4. “Charnock, Existence and attributes, p. 107. “Charnock, Existence and attributes, p. 109.

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Quando se afirma que Deus é espírito, afirma-se, ao mesmo tempo, aquilo que ele não é (i.e., ele não tem corpo algum ). Em contraste com uma existência material, o ser de Deus não é com posto. Ademais, pelo fato de Deus ser um espírito, Charnock consegue m ostrar com o isso é necessariam ente prova de outros atributos divinos. Por exemplo, mantendo-se fiel ao aforismo reformado de que fin itu m n o n ca p a x infin iti (o finito não consegue conter o infinito), Charnock explica que, se Deus não fosse um espírito, não poderia ser infinito; ou, em termos positivos, porque é um espírito, também é um ser independente que é ilimitável e imutável, e sua imutabilidade depende de sua simplicidade. A ideia central de Charnock nessa parte de sua exposição é que tem de haver consistência entre a essência de Deus e seus atributos; doutra forma, ele não pode ser Deus.'“ Ao com eçar pela espiritualidade de Deus, Charnock está em estrita conformidade com a Confissão de Fé de Westminster, segundo a qual a espiritualidade é o primeiro dos atributos de Deus: “Há um só Deus vivo e verdadeiro, o qual é infinito em seu ser e perfeições; é um espírito puríssimo, invisível, sem corpo” (2 .1 ). Por esses motivos, a defesa que Charnock faz de Deus com o Espírito é um ponto de partida apropriado para a análise dos atributos de Deus, a principal parte do estudo de Charnock.

A simplicidade de Deus Esse tópico pode parecer um tanto estranho, visto que o estudo de Charnock sobre os atributos de Deus não contém um a seção dedicada explicitamente à simplicidade de Deus {sim plicitas D ei). Aliás, conforme assinalado por Richard Muller, embora “o conceito de simplicidade divina fosse defendido por pratica­ mente todos os teólogos ortodoxos dos séculos 16 e 17, em seus sistemas teo­ lógicos nem sempre era analisado com o um atributo independente”.“ Mas não há dúvida alguma de que em muitos lugares Charnock afirma a simplicidade de Deus. O conceito de simplicidade divina — de que Deus não é constituído de múltiplas partes — é afirmado por teólogos da Reforma e da pós-Reforma.'^ Ele não é um ser com posto, resultado da som a de suas partes: “Deus é o ser mais simples; pois aquilo que por natureza vem primeiro, não tendo nada por trás, não pode de modo algum ser entendido como algo com posto”.’^ Francis Turretin (1623-1687) explica a simplicidade divina quando refuta os socinianos, que rejeitavam esse conceito a fim de rejeitar a doutrina da Trindade, e os remonstrantes, que negavam que se deva declarar a doutrina como artigo de fé, visto que, conforme a entendiam, as Escrituras não falam a respeito ‘“Charnock, Existence and attributes, p. 111-3. "Muller, Post-Reformation, 3:275. ‘Tara uma breve descrição desse conceito no pensamento de John Owen, veja Carl TVueman, John Owen: Reformed Catholic, Renaissance man (Aldershot: Ashgate, 2007), p. 38-9. '^Charnock, Existence and attributes, p. 210.

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dela.'“ A simplicidade de Deus é um conceito de difícil com preensão, mas uma maneira de entender o que os teólogos reformados queriam dizer com ela é por negação e afirmação. Em term os negativos, a simplicidade nega que existam duas coisas diferentes em Deus. Em term os positivos, a simplicidade afirma que tudo que esteja em Deus é Deus. A simplicidade é, então, “o atri­ buto [divino] incomunicável mediante o qual concebem os a natureza divina não apenas como livre de qualquer com binação e de qualquer divisão, mas também como insuscetível de com binação e divisão”.'® O entendimento de Charnock acerca da simplicidade de Deus reflete a posição básica dos reformados ortodoxos. Em primeiro lugar, a simplicidade reflete a consistência dos atributos de Deus.'® A mutabilidade é “totalmente inconsistente com a simplicidade”, pois, se Deus “pudesse ser transformado por qualquer coisa dentro de si m esm o, tudo em Deus não seria Deus”.'^ O poder de Deus também está ligado à sua simplicidade. Quanto mais simples é uma substância, mais poderosa ela é. Como consequência, Charnock acrescenta que, “onde está a maior simplicidade, aí está a maior unidade, e, onde está a maior unidade, aí está o maior poder”.'® Por isso, é errado argum entar que Deus é a soma de todos os atributos divinos. Em vez disso, os atributos são idênticos à essência de Deus. Charnock afirmou que a simplicidade divina é absolutamente essencial para entender os demais atributos divinos; de fato, todos os outros atributos divinos dependem desse conceito. Ao analisar os atributos divinos (p. ex., sua imutabilidade e eternidade), o conceito de simplicidade divina é axiomático para o entendimento de Charnock sobre a doutrina de Deus, assim como 0 foi para os teólogos escolásticos reformados.'®

A eternidade de Deus Em sua análise da eternidade de Deus, Charnock faz várias distinções impor­ tantes a fim de m ostrar que a eternidade, quando devidamente considerada, “Francis T\irretin, Institutes o f elenctic theology, edição de James T. Dennison Jr., tradução para o inglês de George Musgrave Giger (Phillipsburg: P&R, 1992], 3.7.1. '^Hiiretin, Institutes, i.7 3 . Acerca dos atributos comunicáveis e incomunicáveis, veja Leigb, Treatise of divinity, 2:22-3. “Leigb também sustenta que, pelo fato de ser um ser simplicíssimo. Deus também tem de ser incorpóreo. Treatise o f divinity, 2:24. '^Cbarnock, Existence and attributes, p. 210. “Cbarnock, Existence and attributes, p. 415. “Te Velde responde à pergunta se o conceito de simplicidade divina é consistente com a IHndade: “Não é a existência de três pessoas em Deus uma forma de composição? Os autores reformados ortodoxos são unânimes na negativa: as pessoas não formam um agrupamento, mas apenas se distinguem {personae non component, sed distinguant). As três pessoas não se rela­ cionam entre si como seres diferentes, mas como modos distintos de ser {modi subsistentiae) ou modificações”. Paths, p. 126.

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implica que em Deus não existe princípio, nem fim, nem sucessão temporal. Charnock inicia observando que a noção de eternidade é difícil de entender.“ Assim como Agostinho (354-430) teve dificuldade em explicar o que é o tempo, da mesma maneira a eternidade é “entendida com dificuldade e formulada com ainda mais dificuldade”.“ Na tentativa de entender a eternidade, Charnock con­ trasta esse atributo de Deus com o conceito de tempo. Eternidade é a duração perpétua, sem com eço nem fim, mas o tempo tem tanto um com eço quanto um fim. Aquilo que com eça possui necessariam ente um a sucessão de partes. Mas a eternidade é “contrária ao tempo e, portanto, é um estado permanente e imutável”.C h a r n o c k acrescenta que a eternidade é uma posse perfeita da vida, sem variação alguma; abrange em si mesma todos os anos, todas as épocas, todos os períodos de épocas; nunca começa; perdura depois de cada período de tempo e nunca cessa; até excede o tempo, pois existia antes do início dele. O tempo pressupõe algo antes dele; mas não pode existir nada antes da eternidade.^^ Ele associa a Deus esse conceito de eternidade, ao explicar que, por ser Deus, Deus tem de ser eterno, e essa eternidade pertence devidamente somente a Deus. De modo característico, Charnock fala da eternidade com o um atributo negativo, ou seja, é a negação de medidas de tempo em Deus, numa aborda­ gem bastante parecida com a do atributo da imensidão, que é a negação de que Deus tenha limitações de espaço. Assim com o “a imensidão é a difusão de sua essência, assim a eternidade é a duração de sua essência [...] Sua dura­ ção é tão interminável quanto sua essência é ilimitada”.^“' As Escrituras falam constantem ente de Deus com o alguém sem com eço nem fim; ele é o Deus eterno (Gn 21.33; Rm 1 6 .2 6 ). Nada pode dar existência a si mesm o. Ações, quaisquer que sejam, dependem de existência. Em outras palavras, uma causa precede um efeito. A existência de Deus prova que seu ser não procede de outrem — doutra forma não seria Deus — e, assim , necessariam ente é eterno. Charnock explica ainda mais: “Por esse motivo, quando dizemos que Deus é a causa de si mesmo e que procede de si m esm o, não queremos dizer que Deus deu existência a si m esm o, mas que deve ser negativamente entendido que fora do próprio Deus não há causa para sua existência”.“ Em primeiro “Sobre as diferenças de opinião entre teólogos reformados sobre como relacionar a eternida­ de com a ordem criada (quer positiva quer negativamente), veja Muller, Post-Reformation, 3:346. ^‘Charnock, Existence and attributes, p. 174. “Charnock, Existence and attributes, p. 175. “Charnock, Existence and attributes, p. 175. “Chamock, Existence and attributes, p. 175-6. “Charnock, Existence and attributes, p. 176.

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lugar, a eternidade de Deus prova, então, que ele não teve com eço. De modo semelhante. Deus não tem fim. Aqui tam bém são abundantes as passagens escriturísticas que dão testemunho dessa verdade (veja SI 9 . 7 ; Ap 4 .9,10; SI 102.27). Pelo fato de Deus não precisar de nada, não existe nenhum motivo para ele deixar de existir. Charnock acrescenta que Deus não pode abandonar a si mesmo, “pois nada pode fazer a não ser am ar a si mesmo como o bem melhor e suprem o”.“ Voltando à doutrina da simplicidade, Charnock defende que na natureza divina não existe nenhum a fraqueza que poderia introduzir corrupção ou m udança, “porquanto ele [Deus] é infinitamente simples”.^^ Por fim, como em Deus não há com eço algum nem fim algum, não existe sucessão alguma em Deus. Céu e inferno existem para sempre, mas não é apropriado chamá-los de eternos, visto que tiveram com eço. Só Deus é eterno porque só ele não tem com eço nem fim. Teólogos reformados também tiveram 0 cuidado de afirmar que Deus não está sujeito à sucessão temporal, ou seja, em Deus não existe nenhum antes e nenhum depois. Hirretin mostra que a eternidade verdadeira (i.e., aquela que pertence som ente a Deus) “exclui tanto sucessão temporal quanto term inação e deve ser concebida com o algo estável, não como algo que flui [...] Deus possui cada momento simultaneamente, não importando o que possuam os em partes divididas pela sucessão do tem ­ po”.“ Para Deus não existe passado nem futuro, apenas o presente.“ A ideia de eternidade envolve não apenas a ausência de início e fim, mas também a ausência de sucessão temporal, pois, de acordo com Charnock, “não possuir nenhuma sucessão, nada primeiro nem último, indica mais precisamente a perfeição de um ser em relação à sua essência”.^® Ademais, devido à perfeição (simplicidade) do seu ser. Deus “não recebe nada com o acréscim o ao que era antes”.^' O resumo que Charnock faz desse axiom a da doutrina reformada de Deus é apresentado de uma maneira que o leigo mediano — que deve ter ouvido esses sermões pregados por Charnock — conseguia entender: Em sua essência, [Deus] não é hoje o que não era antes e não será amanhã e no próximo ano o que não é agora. Todas as suas perfeições são em cada momento “Charnock, Existence and attributes, p. 177. ^^Charnock, Existence and attributes, p. 177. “Tirretin, Institutes, 3.10.6. “Nesse sentido, Johannes Maccovius diz o seguinte: “Em Deus não existe nenhuma sucessão de passado, presente e futuro, mas para ele todas as coisas são o presente [in Deo nulla datur succesio, prasentis, prateriti et future, sed omnia illi prasentiá)”. Conforme citado em Willem J. van Asselt; Michael D. Bell; Gert van den Brink; Rein Ferwerda, Scholastic discourse: Johannes Maccovius (1588-1644) on theological and philosophical distinctions and rules (Apeldoorn: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2009), p. 115. “Charnock, Existence and attributes, p. 177. ^'Charnock, Existence and attributes, p. 177

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absolutamente perfeitas nele, antes de todas as eras, depois de todas as eras. Assim como a totalidade de sua essência é indivisa em todo lugar bem como num espaço imenso, da mesma forma ele tem o seu ser todo num único momento de tempo bem como em infinitos intervalos de tempo [...] Ele é o que sempre foi e é 0 que sempre será.^^ Portanto, embora a ideia de criaturas desfrutarem vida celeste pela eternidade vindoura esteja firmemente arraigada na narrativa bíblica, mesmo assim é blasfêmia atribuir a criaturas o atributo de eternidade absoluta, que pertence somente a Deus. Só Deus vê e conhece todas as coisas ao mesmo tempo, pois em Deus não existe nem passado nem futuro, mas apenas o presente. Por esse motivo, esse atributo de Deus não é “com unicável”, ou seja, não pode ser partilhado com suas criaturas.

A imutabilidade de Deus Ao afirmar a eternidade de Deus, os teólogos reformados estavam em essência afirmando a imutabilidade de Deus. À sem elhança da eternidade, a doutrina da imutabilidade é um atributo necessário de Deus devido ã sua simplicidade; ou seja, uma vez que Deus não consiste em muitas partes, não pode mudar e não muda. Ele é o que sempre foi e sempre será. Charnock defende a imuta­ bilidade de Deus recorrendo à sua eternidade: “pois aquilo que perdura, não muda, e o que m uda, não perdura” (SI 102.26).^^ Na Confissão de Fé de Westminster, a seção sobre Deus nega que ele tenha “paixões”^^ e assevera sua imutabilidade. Muller propõe que os teólogos refor­ mados ortodoxos, inclusive Charnock, não trataram a impassibilidade como um atributo de Deus. Em vez disso, falaram do atributo da imutabilidade. Assim mesmo Muller assinala que “não [existe] grande diferença entre os termos, e aqueles autores que se abstêm de empregar o termo im passibilitas também são bem categóricos em declarar que Deus não possui paixões’?^ Ao negar que Deus tenha paixões, os reformados pretendiam mostrar, entre outras coisas e por exemplo, que a felicidade ou glória de Deus não podem ser aumentadas ou diminuídas por criaturas finitas. A eternidade de Deus requer sua imutabili­ dade: “Ele é verdadeira e intrinsecamente eterno e, portanto, imutável”.“ Mas “Charnock, Existence and attributes, p. 178. “Charnock, Existence and attributes, p. 199. “Ou seja, em Deus não há nada que o sujeite a ou o torne passível de ser levado a agir de alguma forma por coisas externas ou estranhas à sua verdadeira natureza. Veja Webster’s third new international dictionary, s.v. “passion”, definição 4a. “Muller, Post-Reformation, 3:310. “Leigh, Treatise of divinity, 2:45.

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esses dois atributos são diferentes, à medida que a eternidade fala da duração de um estado enquanto a imutabilidade é o estado em si. 0 conceito de imutabilidade não é, contudo, necessariam ente uma per­ feição, uma vez que os anjos caídos são imutáveis em sua maldade para com Deus. Por isso, Edward Leigh (1603-1671) faz distinção entre aquela imutabi­ lidade que é “independente e absoluta”, que pertence apenas a Deus, e aquela que é “dependente e relativa”, que pode pertencer a criaturas.’^ Fica claro que Charnock, quando fala de anjos caídos, tem em mente a imutabilidade que é dependente e relativa. Mas em Deus a imutabilidade é um a perfeição, visto que ele é “infinito na essência, infinitamente bom , sábio, santo; de modo que ser imutavelmente tudo isso é uma perfeição necessária à sua natureza”, caso contrário, ele seria um ser imperfeito e, com o consequência, não seria Deus de modo algum.^* A imutabilidade em Deus é um a “glória que pertence a todos os atributos de Deus’?^ Deus possui atributos e perfeições que são diferentes, “mas a imutabilidade é o centro em que todos se u nem ”.'*“ Aquilo que Deus é, ele é eterna e imutavelmente. Isso levanta uma questão importante com relação à distinção nos atribu­ tos de Deus. Autores reformados sustentavam tipicamente que as distinções que postulamos entre os atributos de Deus não possuem existência objetiva em Deus, mas são apenas o resultado de nossa limitada capacidade de com ­ preensão.'“ Por isso, todos os atributos de Deus são “a manifestação da mesma essencialidade absolutamente simples de Deus”, e, desse modo, “pode-se dizer justificadamente (Braun I, ii, 2, 19) que ‘a justiça de Deus é sua bondade, é seu conhecim ento, é sua vontade [...] Mas para mim seria errado dizer que o conceito que tenho de justiça é o mesmo que tenho da divindade, da miseri­ córdia ou da eternidade’”.''^ Em sua obra perspicaz sobre a Trindade, Francis Cheynell (1608-1665) afirma que, embora os atributos sejam “muitíssimos”, ainda assim “não são nada mais do que a essência única e indivisa de Deus”; ou seja, os atributos de Deus pertencem à essência de Deus e, por esse motivo. ^Teigh, Ti-eatise o f divinity, 2:44. ^“Charnock, Existence and attributes, p. 200. "Charnock, Existence and attributes, p. 200. “Charnock, Existence and attributes, p. 200. Veja Heinrich Heppe; Ernst Bizer, Reformed dogmatics: set out and illustrated from the sources, tradução para o inglês de G. T. Thomson (Grand Rapids: Baker, 1978), p. 58. ‘‘^Heppe; Bizer, Reformed dogmatics, p. 59. Maccovius defende que os atributos de Deus não diferem dentro dele, mas apenas em nossa maneira de concebê-los. Os teólogos fazem distinção entre os atributos de Deus e a essência de Deus devido à nossa concepção inadequada. “Causa, quare distinguimus in Deo attributa ab essentia, est inadaequatus noster conceptus” (Van Asselt, et al.. Scholastic discourse, p. 110-1).

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não podem ser corretam ente separados sem dividir a essência de Deus.^^ Leigh também se refere aos atributos de Deus como totalm ente essenciais a Deus, “pois nele não existe acidente algum; o que quer que esteja em Deus é Deus. Todos esses tam bém são um só nele; sua misericórdia é sua justiça, e sua justiça é sua misericórdia, e cada um é sua essência; apenas diferem em nossa compreensão

De forma parecida, Charnock sustenta que as perfeições

de Deus são idênticas ã sua essência, “pois, embora — de acordo com nosso modelo frágil — concebam os a essência de Deus como o objeto, e os atributos de Deus como faculdades e qualidades daquele objeto [...], na verdade e na realidade não existe nenhum a distinção entre sua essência e seus atributos. Um é inseparável do outro. Seu poder e sabedoria são sua e s s ê n c i a A s s i m sendo, quando Charnock afirma que a imutabilidade de Deus não é seu poder, está falando dessa maneira apenas para benefício de seus ouvintes. Voltando à doutrina da imutabilidade, os escolásticos reformados falaram de Deus como um ser necessário que não pode mudar, um linguajar que o próprio Charnock emprega. Aquilo que é imutável por natureza é Deus. Oponentes da doutrina reformada de Deus poderão alegar que algumas criaturas (p. ex., os anjos) também são imutáveis, mas, conforme assinalado por Charnock, se uma criatura é imutável, isso acontece apenas pela graça e poder de Deus, não pela natureza da criatura. Assim, por exemplo, quanto a outras perfeições Deus é “por sua essência santo, alegre, sábio, bom ; anjos e hom ens são feitos santos, sábios, alegres, fortes e bons por meio de qualidades e graças”.''*’ TTatando-se do conhecimento de Deus, sua imutabilidade, junto com sua eternidade, re­ quer que ele saiba todas as coisas de uma só vez. O atributo da eternidade, propriamente dito, implica que não existe nenhuma sucessão em Deus. Assim, não existe sucessão no seu conhecim ento. A imutabilidade de Deus impede qualquer m udança em seu conhecim ento. Charnock afirma, então, que Deus sabe todas as coisas desde a eternidade porque seu conhecimento é infinito. Ele conhece todas as coisas de uma só vez porque não existe passado nem futuro em Deus, apenas o presente. Se Deus é imutável no que diz respeito à existência e ao conhecim ento, por que as Escrituras dizem que Deus “se arrepende”? Essa foi uma pergunta que Charnock, Leigh e outros teólogos puritanos e da Europa continental procuraram responder em suas obras sobre a doutrina de Deus. Leigh propõe "Francis Cheynell, The divine THunity o f the Father, Son, and Holy Spirit (London: T. R. e E. M. para S. Gellibrand, 1650), p. 111. ■“Leigh, Treatise o f divinity, 2:21. “^Charnock, Existence and attributes, p. 242. Muller apresenta uma análise bem proveitosa dos problemas associados com a afirmação e descrição de atributos em Deus. Veja Post­ Reformation, 3:195-205. “ Charnock, Existence and attributes, p. 201.

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que Deus não se arrepende “no sentido estrito [propriam ente]”, mas, em vez disso, “segundo a maneira dos hom ens, não de forma afetiva, mas efetiv a ”.*^ De modo parecido, Charnock defende que o arrependimento não está “pro­ priamente em Deus”, que é um “Espírito puro e incapaz daquelas paixões, que são sinais de fraqueza e im potência”.‘‘®O arrependimento indica tanto um erro cometido pela pessoa que se arrepende, e que não foi previsto, quanto a tristeza pelo pecado. Afirmar que Deus se arrepende no sentido estrito seria negar seu pré-conhecimento e, assim, afirmar que existe mal nele. A explicação para a razão de as Escrituras falarem de Deus “se arrepender” se baseia no princípio de adaptação: “Nas Escrituras, Deus se adapta à nossa l i m i t a ç ã o E m outras palavras, uma vez que criaturas finitas não conseguem compreender o Deus infinito, às vezes Deus se veste de nossa natureza e emprega certas expressões “para que o compreendamos segundo a nossa capacidade e, examinando a nós mesmos, aprendamos algo da natureza de Deus”.^° Assim, quando se diz que Deus se arrepende de haver feito o hom em [Gn 6 .6 ), existe algo a se aprender sobre a aversão que Deus tem ao pecado. Em outras palavras, as Escrituras usam esse tipo de expressões antropomórficas para que os cristãos “atribuam a Deus a perfeição que nelas imaginamos e imputem a imperfeição à criatura”.^' Em resumo, o atributo divino da imutabilidade é claro e importante de­ mais para ser declarado com hesitação ou reservas. Se a essência de Deus é mudada, então só pode ser mudada por um ser mais poderoso do que Deus. Para Charnock e aqueles que partilhavam de sua doutrina de Deus tal ideia estava claramente fora de questão. É verdade que nas Escrituras há passagens que parecem deixar implícito que Deus pode m udar de ideia, mas há um nú­ mero bem maior de textos que asseveram a imutabilidade de Deus no que diz respeito a seu ser e a seu conhecim ento. Mediante a com paração de textos aparentemente contraditórios, os reformados desenvolveram acerca da imu­ tabilidade divina um a com preensão que estava em harmonia com todos eles. Como consequência, mediante o emprego de distinções, teólogos reformados falaram de arrependimento “estrito” e “não estrito”. No que diz respeito a Deus, é certo que Charnock e os teólogos reformados negavam o primeiro uso, mas asseveravam o segundo porque reflete o linguajar de adaptação aos seres humanos, para que sejam realmente levados a ver na expressão tanto suas pró­ prias imperfeições quanto as perfeições de Deus. Em seguida, Charnock passa da análise da imutabilidade de Deus para a defesa da onipresença de Deus. "Leigh, Treatise of divinity, 2:46. “Charnock, Existence and attributes, p. 216. “Charnock, Existence and attributes, p. 216. “Charnock, Existence and attributes, p. 216. ^'Charnock, Existence and attributes, p. 216.

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A onipresença de Deus A melhor maneira de entender o atributo divino da onipresença é, certamente, ai ilisá-Io no contexto dos atributos acima mencionados. Deus é onipresente devido à imensidão de sua essência. Imensidão {im ensitas] e onipresença [pm nipraesentia) não são estritamente sinônimos, mas Charnock os usa basicamente de modo intercambiável.^^ Em termos específicos, a imensidão de Deus se refe­ re à espacialidade, ao passo que a onipresença fala da relação de Deus com o espaço concreto/preenchido. Conforme assinalado por te Velde, isso “pode ser expresso mediante a distinção entre imensidão como uma propriedade absoluta de Deus e onipresença como a relação de Deus com lugares”.B a s e a n d o -s e no pensamento de Rijssen, Muller comenta que, “enquanto a im m en sita s D ei se refere a Deus distinguindo-o da ordem criada, a o m n ip ra esentia D ei se refere a ele numa relação positiva com o mundo, a qual é indicada na afirmação de que ele ‘habita’ em todos os lugares do mundo”. L e i g h fala da imensidão (e infinidade) tanto no sentido amplo quanto no estrito. Em sentido amplo. Deus não está limitado pelo espaço nem pelo tempo nem por qualquer outra coisa; em sentido estrito, a imensidão é uma propriedade de Deus “segundo a qual ele não pode ser restringido nem limitado a qualquer lugar, mas enche todos os lugares sem multiplicação ou extensão de sua essência”.^^ Em outras palavras. Deus “não pode ser contido em nenhum lugar nem mantido fora de nenhum lugar”.“ Charnock explica Jerem ias 2 3 .2 4 (“Não sou eu o que enche os céus e a terra?, diz o S enhor”), a passagem clássica {locus classicus) sobre a onipre­ sença de Deus, para afirmar a posição reformada típica contra os ataques dos teólogos socinianos, que asseguravam que a onipresença de Deus era uma extensão de seu poder e não de sua essência.®^ Ele também relaciona esse atributo aos demais atributos de Deus já analisados em seu estudo: “Assim como a eternidade é a perfeição que o leva a não ter nem com eço nem fim e assim com o a imutabilidade é a perfeição que o leva a não experimentar nem aumento nem diminuição, a imensidão ou onipresença é o que o leva a não experimentar limites nem limitações [em relação a espaço] ”.“ Ao falar da “Charnock: “Assim a imensidão ou onipresença é a negação da limitação de lugar”. Exis­ tence and attributes, p. 234. Em seus comentários sobre a infinitude de Deus, Leigh escreve: “Deus é imenso ou onipresente”. Treatise o f divinity, 2:36. Mas posteriormente ele altera isso, assim como o faz Charnock, ao propor que o motivo da onipresença de Deus é a infinitude de sua natureza. Treatise o f divinity, 2:39-40. “Te Velde, Paths, p. 137. “Muller, Post-Reformation, 3:338. “Leigh, Treatise o f divinity, 2:36. “Leigh, Treatise o f divinity, 2:36. Catecismo Racoviano, um documento sociniano do século 17, refere-se à imensidão de Deus como a “perfeição suprema de seu domínio, poder e sabedoria”. The Racovian Catechism, tradução para o inglês de Thomas Rees (London: Longman, 1818), p. 32. “Charnock, Existence and attributes, p. 233.

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onipresença de Deus, Charnock afirma que há três maneiras de dizer que algo existe ou está num lugar: circunscritam ente (a m ão, que pertence ao corpo, não está no mesmo e exato lugar do pé), definitivamente (anjos estão num local e não em outro ao mesmo tempo) e de forma plena (enchendo todos os lugares) Deus está presente de forma plena porque não é limitado pelo espaço. Por ser infinito. Deus enche todas as coisas: “Ele está desde o alto dos céus até 0 fundo das profundezas, em cada lugar do mundo e em todo o seu redor, e ainda não é limitado por ele, mas o exced e”.®“ Quando se fala da onipresença de Deus, é preciso asseverar várias verda­ des a fim de entender corretam ente essa doutrina, em particular porque cs socinianos também falavam sem dificuldade da onipresença de Deus. Mas el;. s entendiam a onipresença de Deus principalmente com o referência ao poder e à energia de Deus, ao passo que os reformados tam bém incluíam a ideia de providência divina. Com certeza, este era o caso de Charnock, que apresenta várias proposições a fim de entender o que se quer dizer com onipresença de Deus. Charnock fala da onipresença in flu en te de Deus. Todas as coisas no céu e na terra estão sujeitas a Deus pelo seu poder e conhecim ento, pois ele sustém todas as coisas porque as conhece: “Seu poder alcança tudo, e seu conhecimento penetra tudo”.®' Na Bíblia, a Criação tem um sentido um pouco mais amplo do que apenas a ação divina de criar a terra e todos os seres vi­ ventes a partir do nada. Quer dizer, “a preservação não se distingue totalmente da Criação”, de modo que Deus tem de ser onipresente a fim de preservar todas as coisas.®^ A presença de Deus é um a presença íntima em todas as suas criaturas, sustendo a própria existência de cada um a, o que é uma vigorosa negação de que Deus está presente apenas mediante sua excelência moral, como se apenas o efeito de seu poder e sabedoria criadores estivesse presente no mundo. Também há tipos de m anifestações da presença de Deus: “ele tem uma presença de glória no céu, com a qual consola os santos; uma presença de ira no inferno, com a qual atorm enta os condenados”; isso mostra que a providência e a presença estão necessariam ente ligadas entre si.®" Deus é oni­ presente tanto na providência quanto na essência. Ele enche todas as coisas. Com um jeito caracteristicam ente lúcido de se expressar, Charnock propõe que, assim como “todos os tempos são um instante para a eternidade dele, da Muller, Post-Reformation, 3:244. “Charnock, Existence and attributes, p. 233. “Charnock, Existence and attributes, p. 234. “Charnock, Existence and attributes, p. 234. “Charnock, Existence and attributes, p. 235. Leigh observa que os escolásticos falam de cinco maneiras em que Deus está presente em suas criaturas: “1. Na humanidade de Cristo, me­ diante união hipostática. 2. Nos santos, mediante conhecimento e amor. 3. Na igreja, mediante sua essência e direção. 4. No céu, mediante sua majestade e glória. 5. No inferno, mediante sua justiça vingativa”. Leigh, Treatise o f divinity, 2:39

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mesma maneira todos os lugares são um ponto para sua essência. Assim como ele é maior do que todo o tempo, da m esm a maneira ele é mais vasto do que todos os lugares”.“ Se Deus está em todo lugar — ou seja, está tão presente no inferno com o está no céu — é importante afirmar que ele está presente sem mistura. Voltando mais um a vez à simplicidade de Deus, Charnock associa essa ideia à ideia de que a essência dele não pode ser misturada com nenhuma coisa e, portanto, uma parte de sua essência não pode ser separada de outra parte; “caso houvesse tal divisão de seu ser, não seria o ser mais simples e não composto [...] Não seria um espírito”.®^ Mas, por ser espírito e também por ser onipresente, é correto afirmar que “nada é mais presente do que Deus, e ao mesmo tempo nada é mais oculto”.“

A oníscíêncía de Deus A doutrina do conhecim ento abrangente de Deus {o m n iscien tia ) foi um dos principais temas de debate entre teólogos reformados e seus oponentes nos séculos 16 e 17. Se Deus possui conhecim ento infalível de todas as coisas passadas, presentes e futuras, então, de acordo com os oponentes da teologia reformada, os seres humanos não são criaturas livres.^^ Os teólogos reformados, responderam a seus vários críticos, mostrando que, por sua vez, estes eram incapazes de defender adequadam ente a onisciência de Deus.“ O que segue é uma maneira bem simples de entender o debate. Quando se leva em conta todos os detalhes, não há dúvida de que esse atributo divino era o aspecto mais problemático da doutrina reformada sobre Deus.“ O pensamento de Charnock sobre a onisciência divina se inicia, no estilo típico da abordagem geral da sua obra, com a exegese de um bem conhecido texto bíblico que trata do assunto. Com frequência, teólogos reformados citavam Salmos 147.5 — “Grande é o nosso Senhor, forte em poder; não há limite para seu entendim ento!” — a fim de provar a onisciência de Deus.^° Depois de apresentar uma exegese daquele “Charnock, Existence and attributes, p. 236. “Charnock, Existence and attributes, p. 238. “Charnock, Existence and attributes, p. 252. “A fim de se livrar da acusação de determinismo, teólogos reformados fizeram uma distinção importante entre necessitas consequentiae (necessidade das consequências) e necessitas consequentis (necessidade do consequente). Sobre essa distinção, veja Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek theological terms: drawn principally from Protestant Scholastic theology (1985; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 2006), p. 200, 238-9. “Sobre a maneira como teólogos reformados defenderam a liberdade da vontade no con­ texto da soberania e onisciência divinas, veja Willem J. van Asselt; J. Martin Bac; Roelf T. te Velde, orgs.. Reformed thought on freedom: the concept o f free choice in early modem Reformed theology (Grand Rapids: Baker, 2010). “Veja te Velde, Paths, p. 151-4. ™Veja Muller, Post-Reformation, 3:393.

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texto, Charnock passa para a doutrina e afirma que Deus possui conhecimento infinito. Tal declaração precisa ser analisada mais detalhadamente, e, por isso, com 0 intuito de chegar a um a melhor com preensão da onisciência de Deus, Charnock considera, por exem plo, que tipo de conhecim ento existe em Deus, 0 que Deus sabe e com o Deus conhece as coisas. O tipo de conhecimento que Deus possui é descrito nas Escrituras em as­ sociação com coisas passadas, presentes e futuras. Em term os específicos, no que diz respeito a coisas futuras, o conhecim ento de Deus é pré-conhecimento ou “presciência” [p ra escien tia D ei): “quanto à universalidade dos objetos, é denominado onisciência; quanto ao entendimento simples das coisas, é denominado conhecim ento; quanto ao agir e ao determinar as maneiras de agir, é denominado sabedoria e prudência”.^' O conhecimento em Deus não é mero conhecimento de todas as coisas, mas tam bém a sabedoria de Deus ou seu entendimento de todas as coisas. Ao saber. Deus está agindo; e, ao agir, a sabedoria de Deus se manifesta. O conhecim ento de Deus pode ser analisado ainda do ponto de vista do entendimento visionário e do entendimento simples [visionis et sim plicis intelligentiae) 7^ Quanto ao primeiro. Deus não somente conhece de forma infalível todas as coisas passadas, presentes e futuras, mas também conhece a si mesm o. Esse conhecim ento diz respeito a coisas que na realidade têm relação com o decreto de Deus e com o conhecimento que ele tem de si mesmo. Mas este último tem relação com o entendimento simples de Deus, envolvendo coisas fora do decreto de Deus, ou seja, “coisas que são possíveis de serem realizadas pelo poder de Deus, embora jamais venham a existir, mas estejam para sempre envoltas em trevas e nada m ais”.^^ Essa distinção é parecida com aquela entre o poder ordenado de Deus [potentia ordinata) e seu poder absoluto {po ten tia a b so lu ta ), entre o poder de Deus para executar aquilo que ordenou e decretou e o poder absoluto de Deus para fazer todas as coisas.^“* Charnock baseia boa parte de seu entendimento sobre 0 conhecimento de Deus numa analogia com seres hum anos que têm não apenas a capacidade de conhecer e ver o mundo tal com o é, mas também a capacidade de conceber outros mundos possíveis. No entanto, seres humanos finitos não conseguem com preender a visão e o conhecim ento de Deus, “pois 0 nosso, em com paração, não passa de um grão de areia”. ^'Charnock, Existence and attributes, p. 262-3. Leigh menciona a distinção que os escolás­ ticos faziam entre “scientia visionis, um conhecimento de todas as coisas futuras, e simplicis inteUigentiae, um conhecimento absoluto de tudo e de todas as coisas que podem ser feitas”. Treatise of divinity, 2-.hS. '^Cf. John Owen, Vindicta evangélica, in: William H. Goold, org., The works o f John Owen, D.D. (1965-1968; reimpr., Edinburgh: Banner of ILuth, 1999), 12:127. ^Charnock, Existence and attributes, p. 263. '“•Sobre essa distinção, veja Muller, Dictionary, p. 231-2. "Charnock, Existence and attributes, p. 263.

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Conforme assinalado acim a, Deus conhece a si m esm o, o que tem relação com seu conhecim ento especulativo e prático. Nas palavras de Charnock, o conhecimento é especulativo “quando a verdade de algo é conhecida sem que haja relação com qualquer ação ou operação prática’7® Por isso, o autoconhecimento de Deus é somente especulativo, “porque não existe nada para Deus trabalhar em si m esm o”. Charnock acrescenta: e, embora ele se conheça, ainda assim esse conhecimento de si mesmo não termina ali, mas floresce num amor a si mesmo e prazer em si mesmo; ainda assim, esse amor a si mesmo e esse prazer em si mesmo não são suficientes para torná-lo um conhecimento prático, porquanto esse conhecimento é natural e de modo natural e necessário flui do conhecimento de si mesmo e de sua própria hondade: como resultado do conhecimento que tem de si mesmo. Deus não pode deixar de amar a si mesmo e de ter prazer em si mesmo. Esse conhecimento especulativo ou natural que Deus possui difere de seu co­ nhecimento prático. O conhecim ento prático é o entendimento que Deus tem das coisas que decretou. Em outras palavras, esse conhecimento terminou no ato da Criação e, por esse motivo, ao contrário do conhecimento especulativo, não é nem natural nem necessário. Mas o amor próprio de Deus é tanto natural quanto necessário. O conhecim ento prático de Deus se estende à essência, às qualidades e às propriedades de tudo que criou; aliás, o conhecimento prá­ tico de Deus tam bém se estende a coisas que poderia ter feito, mas não fez. Charnock tam bém m enciona um tipo adicional de conhecim ento: o conheci­ mento de aprovação e com preensão. Assim, no caso de seu povo, seu povo particular. Deus tem não somente um conhecimento prático, mas também um conhecimento de afeição (Am 3 .2 ], o que inclui o cuidado especial que dispensa a seu povo. Feitas essas distinções, Charnock passa para a questão de até onde o co­ nhecimento e 0 entendimento de Deus se estendem. A base para a onisciência absoluta de Deus encontra-se no conhecimento perfeito que ele tem de si mesmo, que é “o conhecim ento primordial e original’7® De modo sem elhan­ te, Leigh com enta: “Deus conhece todas as coisas porque primeiro ele tinha conhecimento direto de si mesmo A infinitude do conhecimento de Deus se fundamenta em seu autoconhecim ento. De fato, o autoconhecim ento divino é essencial para o seu ser. Ele não é ignorante de nada e, com certeza, também

'‘^Charnock, Existence and attributes, p. 263. Aqui Charnock está citando o teólogo católico Francisco Suárez (1548-1617), que foi citado frequentemente por teólogos reformados no século 17. "Charnock, Existence and attributes, p. 263. ^®Charnock, Existence and attributes, p. 265. "Leigh, Treatise o f divinity, 2:60.

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não de si mesmo. A bem -aventurança e felicidade essenciais de Deus têm raízes em seu entendimento perfeito de sua essência e atributos. Charnock acrescenta que, se Deus não se conhecesse com perfeição, não poderia criar, pois “desconheceria seu próprio poder e sua própria capacidade”, e não po­ deria governar, porque “não teria o conhecim ento de sua própria santidade e justiça”.® Em resum o. Deus se conhece de modo perfeito, um pré-requisito necessário para seu conhecim ento abrangente de coisas criadas e de coisas que poderiam ser criadas. Charnock defende, então, um conceito elevado da onisciência de Deus: Deus conhece todas as outras coisas, sejam coisas possíveis, passadas, presentes ou futuras, sejam coisas que ele tem capacidade para fazer, mas nunca fará, sejam coisas que fez, mas agora já não existem; coisas que existem agora ou coisas que não existem agora, que estão no ventre de suas causas devidas e não mediadas. Se o entendimento divino é infinito, então ele conhece todas as coisas, conhece o que quer que possa ser conhecido. Caso contrário seu entendimento teria limites, e 0 que possui limites não é infinito, mas finito.®' Se Deus tem conhecimento de todos os mundos possíveis, então tem conhe­ cimento deste mundo, que criou. O seu conhecim ento não está limitado a um entendimento infalível do presente, embora em Deus exista apenas o presente, “porque Deus vê todas as coisas num único instante”.® Aliás, Leigh acrescenta que pré-conhecimento e lem brança não pertencem realmente a Deus, pois “todas as coisas, tanto as passadas quanto as vindouras, [estão] presentes diante dele”.® Ele possui pré-conhecimento perfeito de todos os acontecimentos futuros porque foram decretados por ele, o que explica por que os profetas puderam prever coisas futuras.® A exposição de Charnock sobre o conhecim ento de Deus é um a das seções mais exaustivas de sua obra sobre a doutrina de Deus, e seria possível dizer muito não apenas acerca de sua defesa da liberdade hum ana, mas também de sua posição sobre a onisciência divina em resposta às ideias de teólogos jesuítas, socinianos e remonstrantes sobre o “conhecim ento médio” (scientia

®“Charnock, Existence and attributes, p. 266. “'Charnock, Existence and attributes, p. 267. ““Charnock, Existence and attributes, p. 281. Conforme assinalado por Leigh, “Deus conhece todas as coisas juntas e isso por um único, simplicíssimo, imutável e eterno ato de percepção”. TYeatise of divinity, 2:63. ““Leigh, Treatise o f divinity, 2:67. “‘‘Van Asselt, et al.. Reformed thought on freedom, fornece uma análise de como certos es­ colásticos protestantes entendiam a liberdade humana em relação a uma doutrina reformada de Deus. Esse é um tópico proveitoso no qual Charnock se aprofunda um pouco, mas omite cons­ cientemente os termos técnicos encontrados nas escolas. Veja Existerwe and attributes, p. 287-90.

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m ed ia ) . É claro que teólogos reformados e os grupos acima citados entendiam

diferentemente a doutrina da liberdade hum ana, o que se devia em grande parte ao fato de que os reformados rejeitavam as idéias de Luís de Molina (1535-1600) sobre o conhecim ento médio, as quais foram subsequentemente adotadas por Jacó Armínio (1560-1609).®* Quase todas as idéias de Charnock sobre o conhecimento de Deus envolvem a rejeição explícita ou implícita do conhecimento médio, e a seção em que trata de com o Deus conhece todas as coisas comprova isso. Em poucas palavras, a doutrina do conhecim ento médio deve sua de­ signação ao fato de que afirma encontrar um meio termo entre o que foi mencionado anteriormente como conhecimento natural [scientia naturalis) e o conhecimento livre ou conhecimento visionário e definitivo [scientia libera s e u visionis et d efinite) — daí o nome “conhecimento m édio”. Conforme assinala

Eef Dekker, “o ponto de vista de Molina deixa implícito que para Deus, antes de ele escolher, é possível saber quais possibilidades se concretizarão, o que seres humanos (totalmente livres) farão, tendo em vista certas circunstâncias”.®^ Assim, na soteriologia desse modelo Deus elege certas pessoas não de for­ ma livre mas contingente, dependendo de se a pessoa irá ou não escolher a Cristo. É isso 0 que torna a doutrina do conhecimento médio tão repulsiva a teólogos reformados do século 17. De acordo com essa doutrina. Deus não decreta soberanamente o que quer que venha a acontecer; pelo contrário, em seu pré-conhecim ento ele respondeu às escolhas possíveis de seres finitos e contingentes. Conforme Muller com enta, a ideia de pré-conhecimento divino baseado em condições futuras “é um conceito bem instável; para Deus conhecer condicionalmente o que é condicional, ele teria de desconhecer o resultado na prática”.®®A ideia “molinista” de fato afirma que Deus conhece condicionalmen­ te 0 que é condicional. Essa ideia é totalm ente inconsistente com a doutrina de Charnock acerca do conhecimento de Deus. Deus conhece por sua própria essência, ou seja, vendo-se a si m esm o, “e, desse modo, conhece todas as coisas em sua causa primordial e original, o que não é nada mais do que sua própria essência desejando e sua própria essência executando aquilo que ele deseja”.®®Além disso, Francis Turretin argum enta que os molinistas entendem “®Cf. Muller, Post-Reformation, 3:411-32. “Quanto a indícios de que Armínio era um molinista, veja Eef Dekker, “Was Arminius a Molinist?”, The Sixteenth Century Journal 27, n. 2 (Summer 1995): 337-52. '^Dekker, “Was Arminius a Molinist?”, p. 339. “Muller, Post-Reformation, 3:421. “Charnock, Existence and attributes, p. 291. A aversão de Charnock a qualquer forma de conhecimento médio é analisada adiante na p. 662. Respondendo à ideia arminiana, Charnock afirma que “a eleição é a causa da fé, e não a fé, a causa da eleição [...] Os homens não são es­ colhidos porque creem, mas creem porque são escolhidos”.

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que 0 pré-conhecimento de Deus sobre acontecim entos condicionais futuros é uma verdade que “não depende do livre decreto de Deus (que é anterior aos acontecim entos), mas da liberdade da criatura (a qual certam ente Deus antevê), seja em si m esm a, seja na coisa (com o ela decidirá se colocada em certas e determinadas circunstâncias)”.®“ De acordo com Charnock e outros teólogos reformados, uma tal reação divina deixaria necessariamente implícita uma limitação ao conhecimento divino.®' Existem, então, de acordo com Charnock, o entendimento simples de Deus e seu entendimento definitivo, sendo que o primeiro diz respeito a todas as coisas e acontecimentos possíveis e o segundo, a respeito de todas as coisas e acontecimentos que de fato acontecem de acordo com a vontade de Deus. Assim sendo, assevera-se uma dupla distinção no conhecim ento de Deus [scientia necessária e scientia d efin ita ], mas não um a distinção tríplice (i.e., uma que

inclua scientia m ed ia ] , o que teria implicações prejudiciais para outras doutrinas da dogmática cristã bem com o para a própria doutrina de Deus.

A sabedoria de Deus Alguns talvez situem a sabedoria de Deus no contexto de seu conhecimento e entendimento. Embora não se possa considerar, de um a forma adequada, nenhum atributo isoladamente de um a ratificação de todos os atributos divi­ nos, para Charnock a sabedoria de Deus m erece sua própria análise porque sabedoria é diferente de conhecim ento. Essa seção da obra de Charnock é extremamente minuciosa, e aqui serão destacadas apenas algumas das ideias mais proeminentes. Em primeiro lugar, sabedoria é aquela qualidade mediante a qual alguém age visando um fim justo. Além do mais, a sabedoria tem em vista não apenas 0 fim, mas também o meio que produz aquele fim. Quando Deus age, ele o faz de acordo com o conselho de seu próprio e infinito entendimento. Ninguém é conselheiro de Deus. Charnock fala da vontade divina com o algo que não é imprudente, mas segue “as proposições da mente divina; ele escolhe aquilo que é mais apropriado para ser feito ”.®^ Conhecimento e sabedoria diferem no fato de que conhecimento é “a apreensão [assimilação] de uma coisa, e sabedoria é a designação e ordenação de coisas”.®^ Deus possui um a sabedoria essencial e abrangente [o m n isa p ie n tia ]. O Filho de Deus é, contudo, a sabedoria pessoal ’“Veja Ttirretin, Institutes, 3.13.2-3; O argumento de Turretin contra o conhecimento médio é, na minha opinião, o mais convincente argumento do século 17 que temos hoje traduzido para o inglês. ”Cf. Hirretin, Institutes, 3.13.12. ’^Charnock, Existence and attributes, p. 328 ”Charnock, Existence and attributes, p. 329.

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de Deus. A sabedoria, na condição de perfeição necessária em Deus, se mani­ festa no Filho de Deus, que “abre para nós os segredos de Deus”.^'^ A sabedoria é um atributo; pertence à essência de Deus, e, devido à simplicidade, ela não é algo adicionado a Deus. Por esse motivo, em termos estritos, só Deus é sábio (Rm 16.27) de um a forma perfeita, universal, perpétua, incompreensível e infalível. A sabedoria de Deus tem de ser consistente com seus outros atribu­ tos, 0 que é outro motivo de, no sentido estrito, só ele ser sábio, embora suas criaturas, feitas à sua imagem, sejam sábias por derivação. Charnock assinala que, uma vez que Deus possui sabedoria infinita, alguns (p. ex., Suárez) afir­ maram que Deus “não somente é sábio, mas está acim a de toda sabedoria”.®^ Deus manifesta sua sabedoria na Criação e no governo de suas criaturas, mas a sabedoria de Deus na redenção “faz a mente ficar ainda mais perplexa”.®®Em seu estilo típico e esplêndido de descrever as glórias da redenção, Charnock se refere à Criação como as “pegadas” da sabedoria de Deus, mas a obra de redenção como o “rosto” da sabedoria de Deus.®^ Na pessoa e obra de Jesus Cristo, a sabedoria reluz de um a forma tal que não se vê em nenhum outro aspecto da relação de Deus com a criação (Cl 2 .3 ). No evangelho, a sabedoria de Deus é descrita de várias maneiras, sendo que todas servem para confirmar a afirmação de Charnock de que a sabedoria é um atributo essencial de Deus mediante o qual todos os atributos de Deus são regulados. A sabedoria manifesta no evangelho é uma sabedoria oculta (ITm 1 .1 7 ), também conhecida como mistério. Na redenção existem, em vez de um único ato, inúmeros fins e meios que mostram a glória de Deus em sua sabedoria. Por exemplo, no evangelho aprende-se sobre a “conjunção de duas naturezas [...] a união da eternidade com o tempo, da mortalidade com a imortalidade: a morte se transform a no caminho para a vida; e a vergonha, a vereda para a glória”.®® A sabedoria de Deus é exibida no fato de que tanto a justiça quanto a misericórdia de Deus são satisfeitas: “a justiça, no castigo, e a misericórdia, no perdão”.®® De forma semelhante, Thomas Goodwin fala da redenção como “a obra prima [de Deus], em que ele decide pôr todos os seus atributos em cen a”.“ ° A obra de Cristo manifesta a sabedoria de Deus, mostrando-o como justo e tarnbém como o justificador dos ímpios; mas a pessoa de Cristo também revela Existence and attributes, p. 329. Existence and attributes, p. 334. Existence and attributes, p. 359. Existence and attributes, p. 359. Existence and attributes, p. 360. Existence and attributes, p. 360. '“’Thomas Goodwin, Christ the Mediator, in: Thomas Smith, org.. The works of Thomas Goodwin, D.D. (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 5:16. '’‘‘Charnock, ’“Charnock, ’“Charnock, ’ ’Charnock, ’’Charnock, ’’ Charnock,

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a sabedoria preeminente de Deus, pois na encarnação o finito se une ao infinito, a imortalidade se une à mortalidade, e um a natureza que fez a lei se une a uma natureza sob a lei, tudo em um a única pessoa.“ ' Essa união “transcende todas as uniões visíveis entre criaturas” e, por esse motivo, é incom preensível.'“ E, embora o finito jamais possa conter o infinito, nem mesmo na união das duas naturezas, mesmo assim a natureza divina se une em cada parte da natureza humana de Cristo. Por causa da encarnação, o Filho de Deus é capaz, de fazer mediação entre Deus e a humanidade pecadora. Charnock expressa-o muito bem com as seguintes palavras: Ele é um verdadeiro Mediador entre pecadores mortais e o Justo imortal. Ele esteve próximo de nós mediante a fragilidade de nossa natureza e de Deus mediante as perfeições da divindade; tão próximo de Deus em sua natureza quanto de nós em nossa natureza; tão próximo de nós em nossa natureza quanto de Deus na natureza divina. Não há nada que pertença à divindade e ele não possua; não há nada que pertença à natureza humana com que ele não esteja vestido. Ele possuía tanto a natureza que ofendera quanto a natureza que fora ofendida; uma natureza para agradar a Deus e uma natureza para agradar a nós; uma natureza mediante a qual ele conhecia por experiência a excelência de Deus, que foi insultada, e entendia a glória que lhe era devida e, por consequência, a enormidade da ofensa, que devia ser medida com base na dignidade de sua pessoa; e uma natureza mediante a qual podia sentir as aflições experimentadas pelo ofensor e suportar a miséria merecida pelo ofensor, para que pudesse tanto ter compaixão do ofensor quanto fazer a devida reparação por ele.'“ Em resumo, a encarnação revela a sabedoria que Deus empregou ao designar 0 Filho como mediador. Só o Deus-homem poderia efetuar reconciliação entre Deus e o homem, e a comunhão com Deus só nos é possível porque Deus se tornou homem. Aliás, a encarnação da segunda pessoa da Trindade lhe deu uma experiência de com paixão da qual a natureza divina não era capaz, e, assim, a eficácia do ofício sacerdotal de Cristo depende em todos os aspectos da união das duas naturezas em um a única pessoa. A encarnação é, então, uma das muitas maneiras com que Deus revelou sua sabedoria aos homens. Mas a sabedoria de Deus, que com bina, entre outras coisas, a misericórdia e a justiça, não seria eficaz se Deus não fosse poderoso. '“Charnock, Existence and attributes, p. 364. '“Charnock, Existence and attributes, p. 365. Maccovius faz afirmação parecida; “A união das duas naturezas de Cristo é incompreensível para nós {unio naturarum Christi rwbis est incomprehensibilis)”. Van Asselt, et al.. Scholastic discourse, p. 223. '“Charnock, Existence and attributes, p. 366.

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A onipotência de Deus Não é de surpreender que Charnock afirme que o atributo de poder [potentia] é essencial à natureza de Deus. De fato, embora misericórdia e justiça sejam

essenciais à natureza divina, o poder é mais “evidentemente essencial”, pois, por exemplo, sem poder é impossível exercer a misericórdia e a justiça.*“ A simplicidade de Deus, inclusive a harmonia de seus atributos, requer que seu poder seja ilimitado, o que explica por que um dos nomes usados para Deus é “Poder” [“Poderoso”] (Mc 14.62). É possível entender o conceito de poder como autoridade ou como força. Pode-se ter autoridade sem poder ou poder sem autoridade. Para entender esse atributo divino, Charnock deixa claro que tem em mente a força de Deus e não a sua autoridade.*®^ Em seguida, faz a distinção bem conhecida entre poder absoluto {potentia absoluta] e poder “ordenado” {potentia ordinata) (i.e., poder aplicado a um determinado fim). O poder absoluto é a capacidade de Deus “para fazer aquilo que ele não fará, mas é possível de ser feito; poder ordenado é aquele poder mediante o qual Deus faz aquilo que decretou fazer, ou seja, aquilo que ordenou ou decidiu que acon tecesse”.'®® É claro que esses não são poderes distintos ou diferentes, mas diferentes maneiras de entender a aplicação — ou não aplicação — do poder de Deus. Mas o poder absoluto tem de ser entendido com o aquele poder que tem limitações impostas pela natureza de Deus (i.e.. Deus não pode m entir). Ou, caso Deus tivesse feito o mundo e então o tivesse desfeito, seria eternamente verdade que Deus havia feito 0 mundo, “pois é impossível que aquilo que um a vez foi verdade fosse falso algum dia”.*®^ Na esteira desse pensam ento, Leigh assinala que não se deve conceber o poder divino como se Deus pudesse contradizer sua nature­ za, como mentir, mudar ou negar a si m esm o, pois essas coisas “se opõem à essência divina, imutável, simples e de absoluta verdade e perfeição”.*®® Os teólogos reformados também estavam constantem ente falando dos atributos divinos de um a maneira que era consistente com a simplicidade de Deus. '“ Charnock, Existence and attributes, p. 400. '“Muller faz a seguinte observação: “Os escolásticos do século 17 fazem distinção entre, de um lado, o poder de Deus como potentia ou poder inerente à essência divina para fazer confor­ me quer e, de outro, o poder de Deus como potestas ou poder de Deus sobre todas as coisas, que é 0 jus e authoritas absolutos de Deus de controlar aquilo que é seu. Este último, o direito do criador sobre a criação, não é uma categoria tão examinada quanto a potentia Dei, o ‘poderio’ ou poder eficaz de Deus”. Post-Reformation, 3:537. Maccovius também faz distinção em Cristo entre poder e autoridade: “Autoridade denota um ofício; poder denota uma natureza {Potestas officium, potentia naturam notat)”. Van Asselt, et al.. Scholastic discourse, p. 119. '“Charnock, Existence ami attributes, p. 401. Cf. Leigh, TYeatise o f divinity, 2:106. '“Charnock, Existence and attributes, p. 401. '“Leigh, Treatise of divinity, 2:108.

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0 poder ordenado é a operação do decreto divino; ainda que de acordo com seu poder absoluto Deus possa operar um a m udança, ele escolhe não fazê-lo por causa do decreto que já fez. Assim, por exemplo, em Mateus 26 .5 3 ,5 4 , Cristo fala de poder absoluto (“Ou pensas que eu não poderia rogar a meu Pai, e ele me enviaria agora mesmo mais de doze legiões de anjos?”) e poder ordenado (“ [Mas] como se cumpririam as Escrituras, que dizem ser necessário que assim aconteça?”). O poder absoluto de Deus é um poder necessário porque pertence à sua essência, mas seu poder ordenado é livre, pois é um ato de sua vontade. A relação entre a vontade e o poder de Deus é ainda outra maneira de conceber a grandeza do poder dele. As criaturas possuem vontade, mas muitas não têm a capacidade de fazer o que gostariam. Mas o poder de Deus não é menor do que sua vontade; afinal, seu poder de agir não se distingue de sua vontade de agir. Embora, de conformidade com seu poder ordenado. Deus não queira fazer certas coisas, “ainda assim, supondo que queira, ele é capaz de realizar isso, de maneira que em tua noção de poder divino tens de ampliá-la ainda mais e não imaginar que Deus pode fazer apenas aquilo que decidiu fazer”.'® Os seres humanos concebem os atributos de Deus, observando a relação que os atributos divinos têm entre si. O conhecim ento de Deus diz respeito a coisas possíveis; a sabedoria de Deus fala da propriedade com que as coisas são feitas; a vontade de Deus decide que coisas devem ser feitas; e o poder de Deus capacita-o a fazê-las. Em outras palavras, o poder de Deus “é sua capacidade de agir, e sua sabedoria é a diretora de sua ação; sua vontade de­ termina, sua sabedoria dirige e seu poder efetua”." “ Por esse motivo, Charnock subordina o poder ordenado de Deus ao entendimento e à vontade de Deus: “sua vontade é a causa suprema de tudo que resiste ao tempo, e todas as coi­ sas passam a existir conforme ele quer que existam. Seu poder é apenas sua vontade agindo perpetuamente e se desenrolando no tempo que sua vontade havia estabelecido desde a eternidade”."' Contudo, o poder absoluto de Deus é maior do que sua vontade determinante. Charnock observa que alguns sus­ tentam que o entendimento e a vontade divinos são maiores do que seu poder absoluto, “pois Deus entende os pecados e decide permiti-los, mas é incapaz de cometer qualquer mal ou praticar qualquer ação injusta nem tem o poder de fazê-lo”."^ Se Deus fosse capaz de realizar esses atos imperfeitos (p. ex., praticar o m al), isso indicaria impotência ou fraqueza em Deus. O paradoxo é que faz parte do poder de Deus não ser capaz de fazer o mal. Qualquer que “‘’Charnock, Existence and attributes, p. 402. '“Charnock, Existence and attributes, p. 402. "'Charnock, Existence and attributes, p. 402. "^Charnock, Existence and attributes, p. 403.

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seja a vontade de Deus, ela será consistente com seu poder, pois ele é incapaz de querer fazer coisas contrárias à sua natureza e, desse modo, esses dois atributos estão em harmonia. O poder de Deus não é algo distinto da essência de Deus, mas pertence essencialmente à sua natureza. Assim, ser onipotente é ser Deus, o que faz da onipotência outro atributo incom unicável, até mesmo para a natureza hu­ mana de Jesus Cristo. Charnock argum enta, em oposição à ideia luterana de “compartilhamento de propriedades” [co m m u n ica tio id io m a tu m ), que se a natureza hum ana de Cristo possuía de fato a onipotência, então a “essência de Deus também teria sido com unicada à sua humanidade e, então, a eternidade teria sido com unicada. Assim, sua humanidade não lhe foi dada no tempo; sua humanidade não seria com posta, ou seja, seu corpo não seria corpo e sua alma não seria alm a”.“^ Esse foi um desdobramento natural do axiom a refor­ mado de que o finito era incapaz de conter o infinito. Assim sendo, o poder de Deus é infinito, visto que nem mesmo a natureza hum ana de Cristo é ca ­ paz de conter ou possuir o poder de Deus, propriamente dito. Ou, em outras palavras, “Ser infinito e ser Deus são exatam ente a mesm a coisa. Nada pode ser infinito senão Deus; nada senão Deus é infinito. Mas o poder de Deus é infinito, porque pode produzir resultados infinitos”.^'“ Embora, pelo seu poder absoluto. Deus possa produzir resultados infinitos e mundos infinitos, o exercício de seu poder está subordinado ao decreto — daí a expressão “poder ordenado”. Goodwin cham a a atenção para o fato de que alguns teólogos afirmam que, conquanto Deus seja onipotente, “ainda assim não é onivolente [querendo fazer todas as coisas]; embora possa fazer todas as coisas em quantidade infinitamente maior do que aquilo que tem feito, ainda assim não quer fazer todas as coisas de que é capaz, pois seu po­ der está limitado por sua vontade”.“^ Mas, ainda que o exercício do poder de Deus esteja subordinado ao decreto, Charnock tem o cuidado de destacar que a essência de seu poder não está subordinada ao decreto, visto que o poder de Deus é eterno (Rm 1.20). Leigh assinala que o poder de Deus é apropria­ damente denominado onipotência porque é perpétuo, assim como o é a sua “’Charnock, Existence and attributes, p. 405. Sobre a communicatio idiomatum (e a communicatio operationum] veja Muller, Dictionary, p. 72-4; Mark Jones, Why heaven kissed earth: the Christology o f the Puritan Reformed orthodox theologian, Thomas Goodwin (1600-1680) (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2010j, p. 160-5. "‘‘Charnock, Existence and attributes, p. 406. "’Thomas Goodwin, Exposition o f Ephesians, in: Works, 1:216-7. Quanto a esse assunto, Heppe cita Heidan e alude a Ames: “A natureza da vontade não é a mesma do conhecimento e do poder em Deus. Seu conhecimento conhece tudo, que é cognoscível, e seu poder pode fazer tudo 0 que é possível. Mas com seu querer ele não quer tudo o que ele pode querer. As coisas que ele decretou precisavam de um querer e são futuras na concretização. Por conseguinte, em­ bora seja chamado de onisciente e onipotente, não é onivolente”. Reformed dogmatics, p. 84.

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essência.“®Tanto Leigh quanto Charnock ligam um atributo de Deus ao outro e, assim, mostram que são consistentes. O poder de Deus tem necessariamente de ser poder onipotente porque Deus é um Deus eterno e infinito. Acerca da simplicidade de Deus, Charnock com enta, conforme assinalado anteriormente, que “quanto mais espiritual cada substância é, mais poderosa será. Todas as perfeições estão mais unidas em um ser simples do que num ser composto [...] Onde está a maior simplicidade, aí está a maior unidade, e, onde está a maior unidade, aí está o maior poder”.“ ^ O poder de Deus pode ser percebido a partir da totalidade de suas obras a d extra (aquelas que acontecem fora dele ou são distintas dele), seja Criação, seja governo, seja redenção. Nessas obras é possível, por meio da lente da fé, chegar a ver a sabedoria de Deus, mas um elemento importante que falta até agora é a pureza das obras de Deus. Com isso, Charnock quer dizer que se pode imputar a Deus os atributos de infinitude, eternidade, onipotência etc., e tudo isso está certo; m as, “se o concebermos sem essa perfeição excelente [i.e., a santidade] e o imaginarmos com uma ínfima contam inação de mal, nós o tornam os nada menos do que um monstro infinito”.“®Na mente de Charnock, a santidade é um atributo que “possui uma excelência acima de todas as outras perfeições divinas”.“’

A santidade de Deus O atributo da santidade foi um tem a proeminente nos escritos de teólogos reformados da pós-Reforma. Numa linguagem parecida com a de Charnock, Leigh fala de santidade com o a “beleza de todos os atributos de Deus, sem a qual sua sabedoria não passaria de astúcia: sua justiça, de crueldade; sua soberania, de tirania, sua misericórdia, de piedade sem nexo”.*^° Longe de ser um monstro infinito. Deus possui um a “liberdade perfeita e não contaminada por nenhum mal ”. E m termos positivos, Charnock descreve a santidade de Deus como “a retidão ou integridade da natureza divina [...] nas emoções e ações da vontade divina [...] mediante a qual atua de um a maneira apropriada à sua própria excelência”.'^^ Em termos mais simples. Deus am a o bem e odeia 0 mal, imutavelmente. Entre os teólogos reformados não havia dúvida alguma de que a santida­ de era um atributo divino essencial.'^® Ao passar de um atributo para outro. "®Leigh, Treatise of divinity, 2:107. "'Charnock, Existence and attributes, p. 415. "'Charnock, Existence and attributes, p. 468. "'Charnock, Existence and attributes, p. 468. ‘'"Leigh, Treatise o f divinity, 2:104. ‘"Charnock, Existence and attributes, p. 470. ‘"Charnock, Existence and attributes, p. 470. ‘"Veja, p. ex., Leigh, Treatise o f divinity, 2:102-3.

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Charnock está o tempo todo trançando-os, a fim de pintar um quadro mais completo de Deus em sua essência. E, quando o assunto é santidade, Charnock defende que é um atributo tão necessário ao ser de Deus com o também o são, por exemplo, a onisciência e a imutabilidade. É interessante que, no contexto de defesa da santidade essencial de Deus, Charnock também proponha (citando Turretin) que Deus também é essencialm ente gracioso, misericordioso e justo, “embora nenhum a de suas criaturas tivesse sido feita para nela ele manifestar sua graça, misericórdia, justiça ou santidade”.*^“ Em outras palavras, a justiça é um atributo essencial de Deus, mas é preciso haver uma condição para que 0 ato de justiça seja necessário. De forma parecida, a santidade não é apenas um ato da vontade de Deus. Se fosse, ele poderia querer am ar a injustiça ou odiar a justiça. Em vez disso, por um a necessidade livre — não compelida — , isto é, por causa da perfeição de seus atributos. Deus é necessariamente santo. Deus é não apenas necessariam ente santo, mas também absoluta e infi­ nitamente santo. Devido à mutabilidade inata de todas as criaturas, nenhuma pode ser santa em sua essência, mas Deus, que é imutável, é absolutamente santo, o que está de conformidade com seus outros atributos. Quando se trata do pecado. Deus precisa necessariam ente abominá-lo. Charnock observa que, um a vez que Deus am a a si m esm o, “então tem ne­ cessariamente de odiar tudo que é contra ele”.'^® E, dessa m aneira, seu ódio ao pecado é um ódio intenso. As Escrituras descrevem de modo m arcante que Deus vê 0 pecado com o algo que lhe causa repulsa: “ele fica impaciente ao ver o pecado; até mesmo avistá-lo o afeta com repulsa (Hc 1 .1 3 ); ele odeia a primeira fagulha do pecado na imaginação humana (Zc 8 .1 7 ) ”.'“ Aliás, “o pe­ cado é 0 único e principal alvo de seu desprazer”.'^'’ A natureza do homem procede de Deus, e, por isso, não é a natureza do hom em que Deus odeia, mas a corrupção da natureza do homem. Se Deus fosse aprovar o pecado, antes teria de negar a si m esm o, o que é totalm ente impossível. Deus, portanto, odiará para sempre o pecado e manifestará para sempre seu desprazer com 0 pecado, o que entre os teólogos reformados fornece a base para a doutrina do castigo eterno. Pelos méritos de Jesus Cristo, os pecadores podem escapar do castigo que m erecem , m as, ao reconciliar pecadores consigo, em harm onia com seus atributos essenciais. Deus ainda assim mostra seu ódio contra o pecado, castigando-o com a m orte de seu único Filho. Charnock emprega imagens marcantes para descrever esse ponto importantíssimo da teologia cristã: “Nem '“Charnock, Existence and '“Charnock, Existence and '“Charnock, Existence and '“Charnock, Existence and

attributes, attributes, attributes, attributes,

p. p. p. p.

471. 473. 473. 473.

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as pragas todas que foram ou serão derramadas sobre o mundo perverso, nem a fornalha ardente da consciência de um pecador, nem a sentença irreversível pronunciada contra os demônios rebeldes, nem os gemidos das criaturas con­ denadas ao castigo eterno oferecem um a dem onstração tão clara do ódio de Deus contra o pecado quanto a ira de Deus que é derramada sobre seu Filho Tendo em vista que o salmo 22 se cumpriu perfeitamente na morte de Jesus Cristo na cruz, Charnock destaca que o versículo 3 fala da santidade de Deus enquanto Cristo dava seus gemidos de morte. “A justiça de fato deu o golpe, mas a santidade foi quem o determ inou”.*^’ Reafirmando o ódio de Deus ao pecado como demonstração de sua santidade essencial, Charnock explica que 0 Pai “quis que a pessoa mais excelente, aquela que vinha logo em seguida a ele e era igual a ele em todas as perfeições gloriosas de sua natureza (Fp 2 .6 ), morresse numa cruz desgraçada e ficasse exposta às cham as da ira divina, para que o pecado não vivesse, e sua santidade perm anecesse para sempre denegrida pelas violações de sua lei [...] Pelo visto. Deus pôs de lado a ternura de um pai e colocou as vestes de um inimigo irreconciliável”.*“ Conforme aludido anteriormente, a santidade essencial de Deus é um fator importante para a concepção que Charnock tem da justiça essencial de Deus. Nem sempre teólogos reformados têm concordado sobre a necessidade da expiação.*^* Aparentemente Charnock adota a posição defendida por John Owen (1616-1683) e Airretin, contrariam ente à de teólogos como Goodwin e William Twisse (1 578-1646), de que existe “a necessidade de que a santidade de Deus seja satisfeita por um mediador adequado”.*“ Charnock admite que, entre os teólogos reformados, nenhum nega que Deus odeia essencialmente toda injustiça, mas o debate diz respeito a se a única maneira de o pecado ser perdoado era mediante reparação ou se bastaria um ato da vontade de Deus. Citando Türretin e concordando com o que Owen afirma, Charnock escreve: “Alguns questionam, sim, o fato de que a justiça de Deus é tão essencial para ele a ponto de o pecado não poder ser perdoado sem reparação, embora pareça que, em termos lógicos, a reparação é decorrência da justiça”.*“ Na reparação providenciada por Cristo, mediante a qual Deus é capaz de perdoar pecadores, a ’^'Charnock, Existence and attributes, p. 484. '“Charnock, Existence and attributes, p. 484. '“Charnock, Existence and attributes, p. 484. '“Veja Carl Trueman, “The necessity of the atonement”, in: Michael A. G. Haykin; Mark Jones, orgs.. The diversity o f a tradition: intra-Reformed theological debates in Puritan England (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, no prelo); Jones, Why heaven kissed earth, p. 131-4. '“Charnock, Existence and attributes, p. 517. Cf. p. 648, onde Charnock escreve: “Será que, com base em seu poder absoluto. Deus não poderia ter perdoado a culpa do homem e posto para fora de suas criaturas o pecado que as invadiu? [...] No que diz respeito à sua justiça, que exigia reparação. Deus não poderia”. '“Charnock, Existence and attributes, p. 517.

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santidade e a misericórdia de Deus se manifestam conjuntamente, “para que a misericórdia nem sempre suspire pela destruição da criatura e a santidade ne a sempre lamente o desapreço de sua honra”. Assim como a santidade de Deus se manifesta na morte de Cristo, da mesma maneira ela se mostra na pessoa de Cristo. Cristo é a imagem da santidade de Deus. Uma vez que Deus em sua glória é “dem asiadamente ofuscante para que seja por nós contem plado”, a encarnação torna possível aos eleitos não apenas verem a santidade de Deus no rosto de Jesus Cristo, mas também se tornarem santos com o Deus por meio de Jesus Cristo.'^® Aliás, tornar-se santo como Cristo é a maneira suprema de honrar a Deus. “Assim como esse é o esplendor de todos os atributos divinos, é também a flor de todas as graças cristãs, a coroa de toda a religião”.'“ Assim, ao contrário, por exemplo, do atributo da eternidade, a santidade de Deus é um atributo comunicável. Mas deve-se ter em mente que todos os atributos comunicáveis são primeiramente revelados de um a forma perfeita na pessoa de Jesus Cristo, e então os crentes, mediante a união com o Salvador, são feitos participantes desses atributos de Deus. A aplicação da santidade tem , então, um foco cristológico.

A bondade de Deus A bondade de Deus [bonitas D ei) é identificada como um atributo essencial de Deus, ou seja, a bondade é idêntica à essência divina, de modo que o poder e a misericórdia de Deus, por exemplo, são aspectos de sua bondade. Deus é bom, bom em sua essência, de sorte que “o que quer que seja bondade perfeita, é Deus; o que quer que seja verdadeiramente bondade em qualquer criatura é um a sem elhança de Deirs”.'^^ Este último pensamento fala de dois aspectos básicos da bondade de Deus. O primeiro diz respeito à bondade essen­ cial de Deus; o segundo tem relação com a com unicação de sua bondade em suas obras a d extra. Na seção de seu livro em que trata da bondade de Deus, Charnock não se concentra na bondade da essência de Deus ou na perfeição de sua natureza, nem usa a palavra “bondade” com o sentido de santidade de Deus. Em vez disso, seu estudo trata da “em anação de sua vontade, m e­ diante a qual ele faz o bem às suas criaturas”.'“ Nesse sentido, a bondade se estende a mais objetos do que o faz a misericórdia de Deus. Deste modo, a criação e a providência são efeitos da bondade de Deus. Um tópico fascinante debatido não apenas entre teólogos medievais, mas também entre vários escolásticos protestantes era se o Filho de Deus teria

'^“Charnock, '“ Charnock, '^^Charnock, ’“ Charnock, ’“ Charnock,

Existence and attributes, Existence and attributes, Existence and attributes, Existence and attributes, Existence and attributes,

p. p. p. p. p.

518. 529. 529. 538. 540.

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encarnado, caso o homem não tivesse pecado. Charnock emprega esse exemplo para mostrar que, caso o Filho tivesse se tom ado carne, isso teria sido um ato da bondade de Deus e não de sua misericórdia, pois suas criaturas não eram caídas.*’®Diante disso, aparentemente Muller pinta um quadro preciso, afirmando que, embora teólogos reformados defendam tanto a bondade divina essencial ad intra (“para dentro”) quanto a manifestação da bondade divina com suas

criaturas a d extra (“para fora”), apesar disso “sistemas reformados indubitavel­ mente dão ênfase à segunda e não à primeira”.*'“* Não obstante, a bondade de Deus com suas criaturas está fundamentada em sua bondade essencial. Charnock afirma que os atributos de Deus são abarcados por sua bondade. Portanto, Deus é bom por sua própria essência. Ademais, com o consequên­ cia, tudo que Deus criou era bom. E, assim , qualquer coisa boa que exista na criatura é algo que vem de Deus. Contudo, a bondade não é um a qualidade em Deus, mas um a natureza; “não um a disposição da mente acrescentada à sua essência, mas a própria essência; ele não é primeiramente Deus e, depois disso, bom; mas é bom porque é Deus; sua essência, sendo um a só, é formal e igualmente Deus e b o a”.*'** A bondade de Deus, à sem elhança de seus outros atributos, é infinita, mas o exercício de sua bondade pode ser limitado de acordo com o exercício de sua vontade. Aqueles que recebem benefícios por causa da bondade de Deus estão tam bém em posição de serem eles mesmos bondosos, o que m ostra que, ao contrário da onipotência ou da imutabili­ dade, esse atributo específico é com unicável. Na verdade, Charnock propõe que a bondade “inclui difusividade [a tendência de se propagar ou transpor limites]; sem bondade ele deixaria de ser um a divindade, e sem difusivida­ de deixaria de ser b om ”.*'*^ Assim com o Deus é necessariam ente imutável, eterno, onipotente etc., de igual m aneira é necessariam ente bom. E, como Deus é bom por si m esm o, ele se alegra em si m esm o. Essa alegria pessoal é a base para sua alegria em suas criaturas; “se ele se am a, não pode deixar de am ar a sem elhança de si m esm o e a im agem de sua própria bondade”.*'*’ Aqui Charnock está empregando a distinção entre, de um lado, a m o r naturalis ou a m o r co m p la cen tia e e, de outro, a m o r v o lu n ta riu s. O a m o r naturalis (amor inato) refere-se ao am or de Deus a si m esm o, fora de sua relação com 0 mundo criado, e esse é um am or necessário. Mas o a m o r v o lun tariu s (amor intencional) fala do exercício do am or de Deus para com sua criação. Ao criar. Deus necessariam ente am a sua criação, pois em sua bondade essencial a criação se assem elha a ele. '^’Charnock, Existence and attributes, p. '“Muller, Post-Reformation, 3:506. ""Charnock, Existence and attributes, p. '“Charnock, Existence and attributes, p. ‘“Charnock, Existence and attributes, p.

541. 542. 544. 546. Veja tb. Leigh, Treatise o f divinity, 2:71.

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TEOLOGIA PURITANA Isso, contudo, não indica que Deus não seja livre. Conforme Charnock deixa

claro, “a necessidade da bondade de sua natureza não atrapalha a liberdade de suas ações; a ação em si não é absolutaménte necessária, mas é necessário que sua ação ocorra de maneira boa e generosa e também livre”. E m outras palavras, a decisão de criar foi livre, mas, ao criar, ele necessariamente fez bons suas criaturas e o mundo. Nas palavras de Charnock, “Na condição de perfeição de sua natureza, é necessária; na condição de com unicação de sua generosida­ de, é voluntária”.'''^ Mesmo em seu am or próprio. Deus necessariam ente am a a si m esm o, mas isso não é por coerção, mas de acordo com a liberdade que é resultado de seu autoconhecim ento. Citando Amyraut, Charnock propõe que, na com unicação do am or de Deus às suas criaturas, a bondade de Deus foi “o motivo e o objetivo de todas as suas obras de criação e providência”.'''® O motivo para criar tem de vir de dentro de Deus, não de fora. A sabedoria está associada ao direcionamento do ato criador, o poder capacita Deus a criar, mas a bondade fornece o motivo. De fato. Deus não poderia ter outro fim senão a si mesmo, que é o bem supremo [s u m m u m h o n u m ), de modo que ele deseja necessariamente o bem com o um fim, mas os meios que levam ao fim são definidos livremente pela vontade. A bondade de Deus se revela em suas obras de criação e redenção. No estu­ do de Charnock está implícita a distinção tripla que surge do a m o r voluntárias de Deus: a boa vontade ou am or benevolente {a m o r h en ev o len tia é) de Deus para com os eleftos na eternidade; o bom procedimento ou am or beneficente [a m o r b en eficen tia e) de Deus em sua vontade de redimir os eleitos; e o amor de alegria e amizade [a m o r co m p la cen tia e vel am icitiae] de Deus, o qual tem como finalidade as recompensas que resultam da r e d e n ç ã o .E s s e s aspectos do amor de Deus têm correlação com suas obras a d extra imanentes, transientes e aplicativas. Antes de considerar a bondade de Deus na redenção, Charnock mostra a bondade de Deus na criação. No que diz respeito à condição de Adão no jardim do Éden, Deus mostrou sua bondade a Adão na recompensa graciosa pelo cumprimento de um a obrigação devida. Adão devia obediência a Deus, mas “a estipulação de Deus dar bênção perpétua a um hom em inocente não se baseava em regras de justiça e retidão estritas, pois a implicação disso é que Deus estaria em dívida com o hom em ”.'“® A recom pensa oferecida por Deus — imortalidade ou vida eterna — excedia em muito o que Adão era capaz de merecer, o que é testemunho da bondade de Deus na criação. A bondade também foi “a fonte da redenção”; aliás, foi “bondade pura”, pois Deus não ‘““Charnock, Existence and attributes, p. ‘“'^Chamock, Existence and attributes, p. “‘^Charnock, Existence and attributes, p. '■ ‘^Veja Muller, Post-Reformation, 3:567. "“Charnock, Existence and attributes, p.

546. 546. 547. 566.

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precisava redimir a humanidade caída. Sua bondade fornece o motivo para Deus realizar a obra de redimir homens e mulheres por meio de seu Filho.'“’® Essa bondade supera a bondade revelada na criação, pois “aquele único ver­ sículo, ‘Porque Deus am ou tanto o m undo, que deu o seu Filho unigénito’ (Jo 3 .1 6 ), expressa mais a respeito da generosidade divina do que tudo que está na obra da criação: é um tanto incompreensível, um tanto que os anjos do céu não conseguem cap tar”. O fato da redenção leva Charnock à provocadora conclusão de que a bondade dem onstrada aos eleitos foi “para nós um a bondade maior do que aquela que por algum tempo foi manifestada ao próprio Cristo”.’®’ Deus deu um valor tão elevado à redenção dos eleitos que sentenciou seu próprio Filho à humilhação na terra a fim de que todos que pertencem a Cristo sejam exal­ tados no céu. Charnock acrescenta: Ele desejou ouvi-lo gemer e vê-lo sangrar para que não gemamos debaixo de seu olhar de reprovação e não sangremos debaixo de sua ira; ele não o poupou para poder nos poupar; recusou-se a não feri-lo para poder se alegrar sobremaneira em nós; encharcou sua espada no sangue de seu Filho para que ela jamais fique molhada com o nosso e para que sua bondade triunfe para sempre em nossa salvação; estava disposto que seu Filho fosse feito homem e morresse para que não morresse o homem — que havia tido prazer em se arruinar; por algum tempo pareceu degradá-lo daquilo que era.’®^ Os crentes deveriam dar grande valor aos méritos e obra de Cristo em seu favor, mas foi a bondade de Deus que, antes de mais nada, proporcionou um Mediador.’®®Aliás, Charnock declara que, ao dar seu único Filho para ser reden­ tor de seus eleitos. Deus deu “o mais sublime presente que a bondade divina poderia conceder”.’®^ Na exaltação de Cristo, a bondade de Deus se estende às suas criaturas. Cristo, na condição de salvador exaltado, empenhou-se em obter inúmeras dádivas e graças que, ao ascender ao céu, outorgou à igreja. Assim como a santidade de Deus tem um centro cristológico no que diz res­ peito à sua com unicação aos crentes, o mesmo acontece com sua bondade. Cristo passa a ser o centro da atenção na exibição da bondade absoluta divina, a qual Deus demonstra às criaturas na redenção. Mas, além da redenção, a “’Charnock, Existence and attributes, p. 568. '“Charnock, Existence and attributes, p. 569. ""Charnock, Existence and attributes, p. 572. '“Charnock, Existence and attributes, p. 572. '“Veja no capítulo 15, “Os puritanos e a aliança da redenção”, uma análise mais extensa da ideia de que a natureza trinitária da salvação tem raízes na eternidade. '“Charnock, Existence and attributes, p. 573.

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bondade de Deus se manifesta em todas as áreas da criação, porque o Deus que é a própria bondade precisa exibir necessariam ente, em suas obras a d extra, a sua bondade.

A soberania de Deus Em contraste com a primeira e a segunda geração de reformadores, teólogos reformados da pós-Reforma dedicam bastante atenção à soberania {d o m in iu m ou potestas] ou majestade de Deus {m aiesta s D e i). Esse atributo, à semelhança

de todos os outros considerados anteriormente, é um a propriedade interior que pertence essencialm ente a Deus. Apesar disso, com frequência os estudos deles sobre a m aiestas D ei cham am atenção para a manifestação exterior desse atributo. Charnock utiliza a palavra “soberania” com mais frequência do que “m ajestade”, mas é certo que se sente à vontade para empregar a palavra “majestade” para descrever esse aspecto do ser de Deus. Em sua exposição sobre a soberania de Deus, Charnock inicia asseverando a existência de uma soberania tríplice em Deus: a natural e, consequentem ente, absoluta sobre todas as coisas; a espiritual ou graciosa, que é a soberania que Deus tem so­ bre a igreja; e a gloriosa (i.e., escatológica), designando o reino de Deus em seu reinado sobre os santos no céu e os pecadores no i n f e r n o . “A primeira soberania está baseada na natureza; a segunda, na graça; a terceira, no que diz respeito aos bem -aventurados, na graça e, no que diz respeito aos conde­ nados ao castigo eterno, no demérito que há neles e na justiça que há nele”.'^® Deve-se fazer distinção entre a soberania de Deus e o seu poder. Este último faz referência à sua capacidade de efetuar certas coisas, ao passo que a primeira designa sua prerrogativa régia de fazer o que lhe agrada. O poder físico de Deus é mais bem descrito como onipotência, mas o poder moral de Deus precisa ser entendido como sua soberania ou senhorio. Ao exercer seu poder soberano. Deus faz com que todas as criaturas lhe estejam sujeitas; ao exercer sua soberania. Deus possui um direito soberano de subjugá-las. Como no sentido estrito não existe nenhum a distinção de atributos em Deus, não se pode entender a soberania de Deus a menos que os atributos sejam todos associados à perfeição da soberania. Assim, por exemplo, a bondade de Deus tem relação com sua soberania à medida que “ele jamais pode usar sua auto­ ridade senão para o bem das criaturas e para conduzi-las até seu verdadeiro objetivo”, d e modo que sua bondade se manifesta em sua soberania. Ainda mais relevante é o fato de que reconhecer Deus como Deus é reco­ nhecer sua soberania, pois ele não pode ser Deus se não possuir soberania na ‘^^Charnock, Existence and attributes, p. 639. '^‘’Charnock, Existence and attributes, p. 639. '^^Charnock, Existence and attributes, p. 640.

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essência do seu ser. Conforme observado por Charnock, “é tão possível para ele não ser Deus quanto o é não ser supremo [...] Imaginar um poder infinito sem uma soberania suprema é imaginar um a estátua m ajestosa e desprovida de sentidos, apta para ser contem plada, mas inapta para ser obedecida”.'^® A soberania de Deus é, portanto, um atributo essencial e incom unicável porque nenhum a criatura consegue exercer devidamente todos os aspectos anteriormente mencionados da soberania. A natureza divina fornece a base para a soberania, pois naquela natureza Deus é infinito, imutável, poderoso, santo, onisciente, eterno etc. Esses atributos requerem a soberania de Deus sobre todas as coisas. Ao contrário dos hom ens, que derivam sua soberania de Deus (Gn 1.26; Rm 13.1), em sua soberania Deus é totalm ente independente, visto que ele mesmo é independente, Como consequência de sua independência, a sobe­ rania de Deus é necessariam ente absoluta, ou seja, é ilimitada a autoridade que Deus possui com o Deus.^^® À medida que Deus exerce sua soberania, seus outros atributos (p. ex., sabedoria, justiça e bondade) estão todos presentes no exercício dessa soberania, o que significa que sua soberania não é tirânica, opressiva ou impiedosa, mas perfeitamente boa, justa e sábia. Conforme as­ sinalado por Charnock, “Todas as vezes que exerce seu direito soberano, ele nunca está desacompanhado daquelas perfeições de sua natureza”.^“ Por esse motivo, à medida que Deus exerce soberania sobre suas criaturas, inclusive sobre a vontade dos hom ens, é um a soberania que nunca deve ser entendida como poder bruto, mas como poder revestido da beleza do ser santo de Deus, visto que nele não existe nenhuma divisão de atributos. Por essa mesma razão, é eterna a soberania de Deus, inclusive sua soberania sobre os seres humanos no céu e no inferno. Há um a necessidade ontológica de que o hom em perma­ neça sob a lei moral de Deus.““ As obras divinas a d extra são uma exibição de sua soberania. Se alguns homens creem e outros não, isso ocorre porque em sua soberania Deus decretou que devia ser assim. Se alguns homens possuem certos dons que outros não possuem, o motivo é a prerrogativa divina de Senhor soberano que faz o que lhe agrada em quem ele quer. Até a exaltação de Cristo manifesta a soberania de Deus. A outorga de autoridade total a Cristo (Mt 2 8 .1 8 ; Ef 1.22; Ap 3.21; Jo 5.22), de acordo com a determinação e a vontade de Deus, foi o ato de alguém que em virtude de sua soberania tem liberdade de fazer algo assim. O ato de dar ou recom pensar é testemunho da soberania da pessoa que dá e '^*Charnock, Existence and attributes, p. 640. '^’Charnock, Existence and attributes, p. 645-6. “^“Charnock, Existence and attributes, p. 648. '^’Veja Charnock, Existence and attributes, p. 658.

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recompensa (Hb 11.6). Assim, há um a distinção entre a soberania essencial de Deus e a soberania econôm ica que pertence a Cristo. Além do mais, o ato de castigar o pecado é inevitável por causa da soberania de Deus. Ele possui autoridade para lançar pecadores impenitentes para sempre no inferno, onde 0 caráter terrível do castigo divino será consistente com sua soberania supre­ ma.'®^ Mas 0 motivo de Deus não lançar imediatamente pecadores no inferno é sua demora em se irar, ou seja. Deus é paciente. Esse é o último atributo que Charnock analisa em sua obra magna.

A paciência de Deus A paciência {patientia} é um atributo que difere da bondade e da misericórdia. A misericórdia de Deus tem relação com sua atitude frente a criaturas pecadoras, mas sua paciência diz respeito ao castigo que os pecadores merecem, seja para adiá-lo, seja para abrandá-lo. No entendimento de Leigh, a paciência de Deus é aquele atributo “em que ele suporta o insulto de pecadores e adia seu castigo ou é a generosíssima vontade de Deus em que ele suporta por muito tempo o pecado que ele odeia, poupando pecadores, não buscando sua destruição, a fim de trazê-los ao arrependimento”.’“ Nesse enfoque há um duplo entendimento sobre a paciência de Deus, sendo que o segundo tem em vista a redenção. Logo de início Charnock tem o cuidado de assinalar que com a palavra “paciência” não está atribuindo a Deus a ideia de “sofrimento” ou “passibilidade”. Por esse motivo, o termo não é particularmente adequado, mas ainda assim pode-se atribuir a Deus a virtude da paciência. Em poucas palavras, teólogos reformados em geral entendiam a paciência de Deus como aquele atributo mediante o qual a execução do juízo divino em sua forma mais am ­ pla é adiada por Deus. Charnock assim expressa essa ideia: “ [A paciência] significa a disposição de adiar e a inexistência da disposição de despejar a ira sobre criaturas pecadoras; [Deus] abranda sua justiça, que foi provocada, e se abstém de vingar as ofensas que sofre a cada dia no mundo”.’“ Num estilo típico, com muita destreza, Charnock reúne harmonicamente os atributos de Deus, o que é o resultado lógico da simplicidade essencial de Deus. “A bondade leva Deus ao exercício da paciência, e a paciência leva muitos peca­ dores a se lançar nos braços da misericórdia”.’“ Com isso em mente, Charnock adota a posição de que a paciência de Deus não se estende aos anjos caídos — só porque são poupados do castigo total por determinado tempo — , pois não existe nenhuma possibilidade de se arrependerem e voltarem a experimentar '“Charnock, Existence and attributes, p. 704-7. '“Leigh, Tbeatise of divinity, 2:99. '“Charnock, Existence and attributes, p. 717. '“Charnock, Existence and attributes, p. 717.

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0 favor divino. Aqui se observa a íntima relação entre misericórdia e paciên­ cia. Quanto à atitude de Deus com os pecadores, ser paciente é uma atitude misericordiosa. Mesmo assim, a paciência de Deus não o torna leniente nem frágil. A demora de Deus em se irar não significa que seja incapaz de se irar.'“ O adiamento do cumprimento de promessas feitas a seu povo não é reflexo de uma “falta de firmeza” em Deus; da mesm a maneira, “o fato de Deus adiar o castigo não é resultado de ignorância das afrontas que lhe são feitas”, visto que Deus é onisciente e tem conhecimento total dos pensamentos e ações de seres humanos pecadores.'®'' Em conexão com isso, como a paciência é entendida em combinação com a bondade e a misericórdia de Deus — na verdade, em combinação com todos os seus atributos, mas especialmente esses dois — , ela não está restringida. Em Deus não existe falta de poder para castigar criaturas pecadoras. Aliás, Charnock sustenta que é por causa do poder de Deus que ele pode ser paciente com pecadores, citando Naum 1.3: “O S enhor demora para se irar, tem grande poder”. A demora de Deus em se irar (capacidade de controlar a ira) é mais reveladora de seu poder do que sua criação do mundo. Nesta última, ele tem soberania sobre criaturas, mas na primeira ele manifesta soberania sobre si mesmo. Charnock expressa-o de forma memorável: “O po­ der de Deus é manifesto de forma mais evidente em sua paciência com uma multidão de pecadores do que o seria na criação de milhões de mundos a partir do nada”.'®® A paciência de Deus tem, então, um a relação óbvia não somente com sua misericórdia e bondade, mas também com seu poder. Fundamental, então, para a compreensão da paciência divina é a morte de Cristo. Sem uma consideração da expiação sacrificial de Cristo, não é possível explicar o fato de Deus ter paciência com os seres hum anos, mas não com os anjos. Cristo assumiu a natureza dos seres hum anos (“a descendência de Abraão”), e não dos anjos, para que os seres hum anos se beneficiassem da paciência de Deus. A paciência com a humanidade é fruto do evangelho e da aliança da graça. Sem a designação de Cristo com o Mediador, não existe nenhum motivo para Deus ser paciente com os pecadores.'®® Mesmo sem Cris­ to, Deus pode ser bom para com suas criaturas — embora alguns pudessem questionar isso — , mas sem a pessoa e obra do Filho de Deus ele não pode ser misericordioso e paciente para com a humanidade pecadora. Na destruição dos ímpios. Deus age assim com “algum pesar” e executa seus juízos aos p ou cos."’®Ele “belisca” em vez de destroçar com violência.""' '“Chcirnock, Existence and attributes, p. '^'Charnock, Existence and attributes, p. '“Charnock, Existence and attributes, p. ‘“Charnock, Existence and attributes, p. '™Chamock, Existence and attributes, p. '^'Charnock, Existence and attributes, p.

718. 719. 720. 720. 728. 729.

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Em tudo 0 que Deus faz há equidade, mas não há igualdade naquilo que merecemos. Até mesmo os ímpios prosperam por algum tempo; “Deus não apenas castiga, mas ainda continua dispensando seus benefícios; o velho bê­ bado continua vivo’?^^ A perversidade do hom em é uma afronta a Deus, mas apesar disso Deus exercita paciência, ao adiar e abrandar sua ira. A pergunta que inevitavelmente tem de ser feita é por que Deus age assim. A resposta dada anteriormente tem em vista a obra mediadora de Cristo. Com certeza, essa é a razão principal, mas a paciência que, por causa de Cristo, Deus tem com os pecadores também m ostra que Deus pode ser apaziguado. Deus deseja a reconciliação com suas criaturas e, por isso, não as destrói de imediato, mas lhes dá tempo para se arrependerem. Em termos práticos, a paciência de Deus tam bém permite a propagação da raça humana. A humanidade seria incapaz de crescer numericamente, caso Deus m atasse todos os seres humanos quando entrassem no mundo (ou mesmo no momento em que fossem gerados). Em term os mais específicos, a paciência de Deus permite a continuação e o crescimento da igreja. Deus leva em consideração os eleitos que às vezes nascem a hom ens maus, como no caso de Acaz e Ezequias. À luz disso, Charnock faz a seguinte observação: “Se não fosse por essa perfeição [i.e., paciência], não haveria um único santo na terra nem, consequentemente, no céu ”.'^^ Isso explica, então, por que Deus é paciente, mesmo com homens perversos. E quanto àqueles que não são levados ao arrependimento pela paciência divina. Deus “manifestará neles a equidade de sua justiça vindoura”.*^'* Tudo isso dá a entender que a paciência de Deus gira direta ou indiretamente eih terno da cristologia. Em Cristo, por meio de Cristo e por causa de Cristo, Deus é paciente com suas criaturas.

Conclusão Muitas outras coisas poderiam ser ditas sobre o estudo de Charnock acerca dos atributos de Deus. Este capítulo abordou apenas os principais pontos doutrinários que ele identificou em cada atributo e deixou de lado dois outros aspectos da obra de Charnock: a exegese de passagens relevantes das Escri­ turas e a aplicação da doutrina à vida. A doutrina de Deus não é de modo algum subserviente a outras doutrinas, como a cristologia e a soteriologia. Pelo contrário, a base da cristologia e da soteriologia, por exemplo, é a doutrina de Deus. Teólogos reformados divergiam de teólogos luteranos, socinianos e arminianos exatam ente pelo fato de terem um a ideia diferente de quem Deus é. O que este capítulo tentou mostrar, ainda que de forma um tanto superficial. '^Teigh, Treatise of divinity, 2:100. '^Charnock, Existence and attributes, p. 735. ‘'‘'Charnock, Existence and attributes, p. 736.

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é como um teólogo puritano entendia os atributos de Deus. Não há dúvida de que aqui e ali existiam pequenos pontos de diferença — observe-se o debate sobre a justiça divina vingativa — , mas no geral os teólogos puritanos refor­ mados pensavam concordem ente sobre a doutrina de Deus [veja Confissão de Fé de Westminster, 2.1-2). Conforme ficou claro neste capítulo, para Charnock e outros teólogos reformados, a divisão dos atributos de Deus reflete a debilidade humana em entender Deus. A misericórdia de Deus é sua bondade, sua bondade é sua justiça, sua onisciência é sua onipotência, e assim por diante. Isso acontece porque os atributos de Deus nunca entram em conflito entre si, pois ele é o ser mais simples que existe. No entanto, por meio da criação e da revelação Deus tem mostrado às criaturas quem ele é, e a igreja tem um a dívida incal­ culável para com pessoas com o Charnock, que usaram seus dons para dar a pecadores condições de entender as glórias do Deus triúno. É uma lástima que tantas pessoas saibam da obra de Charnock sobre a existência e os atri­ butos de Deus, mas tão poucos a tenham de fato lido. Podemos até mesmo dizer que é ainda mais lastimável que tantos tenham ouvido acerca de Deus, mas bem poucos no mundo de hoje o conheçam com o ele realmente é ou o reconheçam com o Deus.

Capítulo 5 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□on

Os puritanos e a Trindade □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□

Cremos que Deus é uno, individualíssima e singularissimamente uno, e único: A unidade d a divindade é [...] uma unidade pe­ culiaríssima [...] As três pessoas têm uma e a mesma divindade individual e infinita e, portanto, precisam necessariamente subsistir uma na outra, pois são as três' um e o mesmo Deus infinito [...] unidas em sua natureza una, não confundidas em suas subsistências distintas; embora a subsistência delas esteja uma na outra, ainda assim suas respectivas subsistências são distintas, mas a natureza é singularíssimamente a mesma. F rancis Cheynell'

A doutrina de Deus pode ser entendida de duas maneiras: Deus como essência ou Deus com o pessoa. Entendida do ponto de vista da essência, a doutrina trata da essência e dos atributos de Deus; o entendimento do ponto de vista da pessoa trata da doutrina da tripessoalidade da divindade, ou da doutrina da Trindade.^ A Confissão de Fé de Westminster segue essa dem arcação básica, sendo que a essência de Deus recebe mais atenção do que a Trindade, pelo menos no capítulo 2 (“Sobre Deus e a Santíssima Trindade”). T. F. Torrance e Robert Letham criticaram a Confissão por causa dessa assimetria. Letham chega a dizer que a Confissão “não tem o foco adequado para fornecer ferramentas que permitam confrontar eficazmente o Islã”.^ Mas ele observa que o Catecismo 'Francis Cheynell, The divine Diunity of the Father, Son, and Holy Spirit (London, 1650], p. 42. ^Quanto a entender a “essência” de Deus, veja o capítulo 4, “Stephen Charnock e os atri­ butos de Deus”. ^Robert Letham, The Westminster Assembly: reading its theology in historical context (Phillipsburg: P&R, 2009), p. 165.

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Maior tem uma forte ênfase trinitária. Não importa o que se diga a respeito do ensino da Confissão sobre a doutrina da Trindade; o fato claro é que não faltava nos escritos de teólogos puritanos um a ênfase trinitária. Este capítulo analisará os escritos dos puritanos sobre a doutrina da Trindade, dando atenção em particular às várias questões específicas envolvidas na teologia trinitária. Tendo em vista os muitos ataques que inúmeros hereges fizeram contra ela ao longo dos séculos, não causa surpresa descobrir que a doutrina da Trindade é a que recebe definição mais cuidadosa entre todos os dogmas teológicos que constituem a ortodoxia cristã ecum ênica ou católica, conforme definida pelos credos ecumênicos da igreja antiga, tais com o o Credo de Niceia, o Credo dos Apóstolos e a Definição de Calcedônia. Conforme se vê no trinitarismo niceno de Westminster, os teólogos puritanos explicavam e defendiam seu ensino sobre a Trindade num diálogo consciente com os credos e concílios ecumênicos da igreja antiga. Devido à crescente influência antitrinitária dos socinianos no século 17, foi necessária a defesa da doutrina da Ttindade. Assim, várias obras foram publicadas para proteger a ortodoxia trinitária, escritas não somente por figuras de destaque com o John Owen (1616-1683) e Francis Cheynell (1608­ 1665), mas também por hom ens como Nicholas Estwick, reitor da igreja em Warkton, que escreveu livros volumosos em que atacava o socinianismo de John Biddle (1615-1662). Em meados do século 17, a defesa oficial da doutrina da Tlindade coube a Francis Cheynell. Membro da Assembleia de Westminster, Cheynell tinha um dom todo especial para debates sobre assuntos controversos (no que era bastante contundente), confonhe seus adversários descobriram. Suas obras The rise, growth an d danger o f Socinianism e [O surgimento, crescimento e perigo do socinianismo] (London, 1643) e The divine THunity o f the Father, Son, and Holy Spirit [A triunidade divina do Pai, Filho e Espírito Santo] (London, 1650) são seus ataques mais conhecidos contra o socinianismo. Thomas Goodwin (16 0 0 -1 6 8 0 ), outro teólogo de W estminster que também escreveu amplamente sobre a doutrina da Trindade,^ juntou-se a Cheynell nessa tarefa. A obra de Goodwin The knowledge o f God the Father, and his Son Jesus Christ [ 0 conhecim ento de Deus Pai e seu Filho Jesus Cristo]^ é, entre os estudos sobre a doutrina da TTindade publicados no século 17, um dos mais detalhados. Seus escritos sobre a Trindade são ao mesmo tempo uma ''Ch^uno a atenção para o “robusto trinitarismo” de Goodwin, conforme análise feita em Mark Jones. Why heaven kissed earth: the Christology o f the Puritan Reformed orthodox theologian, Thomas Goodwin (1600-1680) (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2010). ^Neste capítulo, todas as referências às obras de Goodwin são extraídas de The works of Thomas Goodwin D.D. Sometime president o f Magdalen College in Oxford (London: J. D. e S. R. para T. G., 1681-1704), 5 vols. Sobre o trinitarismo de Goodwin, veja Ephesians, vol. 1, pt. 1:18-32; Of the knowledge o f God the Father, vol. 2; Of election, 2:130-44; Man’s restauration by grace, vol. 3; Of the Holy Ghost, vol. 5.

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defesa da ortodoxia cristã conforme expressa nos credos ecumênicos e uma refutação do antitrinitarismo altamente biblicista dos socinianos. Mas os escri­ tos de Goodwin sobre a Trindade não são um a simples reiteração da teologia trinitária patrística. Sua defesa da Tt-indade tem rigor exegético e tem proemi­ nência sua ênfase na união e com unhão das três pessoas entre si, bem como sua aplicação prática para nossa própria com unhão com Deus.® Além dos escritos dos dois teólogos de Westminster mencionados anterior­ mente, tam bém existe a gigantesca obra teológica de John Owen, outro que escreveu consideravelmente sobre a doutrina da Trindade, com o objetivo de combater o racionalismo teológico dos socinianos e talvez também os platonistas de Cambridge. Para todos esses teólogos puritanos, a doutrina da Trindade era um a parte essencial da fé cristã, a ponto de Cheynell requerer que juízes punissem aqueles que escreviam contra essa doutrina.^ À luz dos muitos debates que aconteceram na Inglaterra do século 17, é um tanto surpreendente que não tenha havido muita análise acadêm ica da teologia trinitária dos puritanos.® Richard Muller com enta que “as heresias têm sido objeto de análises importantes em monografias e artigos acadêm icos, mas com poucas exceções a ortodoxia tem sido negligenciada”.®De modo análogo, Philip Dixon com enta em sua recente obra sobre a Trindade que “a ausência de pesquisas sobre o século 17 é um a séria lacuna em estudos contem po­ râneos sobre a história da doutrina da Trindade”. A maioria das pesquisas salta esse período.'“ A escassez de pesquisas se explica em parte pelo fato de que os reformados ortodoxos do século 17 não se desviaram do trinitarismo ortodoxo histórico, mas, em vez disso, desenvolveram o pensamento tanto dos credos ecumênicos quanto das contribuições dos reformadores e lhes de­ ram fundamentação exegética. Este capítulo contem plará como os puritanos entendiam a doutrina da Trindade. Por esse motivo, considerações teológicas e exegéticas receberão mais destaque do que as circunstâncias históricas em que eles escreveram. *^Veja Goodwin, Of election, in: Works, 2:140-4; Of the knowledge o f God the Father, in: Works, vol. 2. ^Cheynell, The divine Triunity, p. 463-5. Veja a Confissão de Fé de Westminster, 20.4 e 23.3, que adota a mesma posição. ®Veja Richard Muller, Post-Reformation Reformed dogmatics (Grand Rapids: Baker, 2003), 4:22-5. Em sua obra The Holy Trinity: in Scripture, history, theology and worship (Phillipsburg: P&R, 2004), Robert Letham passa do século 16 diretamente para o 20, assim omitindo totalmente qualquer desenvolvimento ocorrido no século 17. ’Muller, Post-Reformation, 4:24. P. ex., veja a obra de Sarah Mortimer, que examina a dou­ trina da Trindade principalmente em relação ao socinianismo. Reason and religion in the English Revolution: the challenge o f Socinianism (Cambridge: Cambridge University Press, 2010). “Philip Dixon, Nice and hot disputes: the doctrine o f the Trinity in the seventeenth century (London: T & T Clark, 2003), p. 208.

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A triunidade de Deus: um só Deus, três pessoas Os puritanos eram monoteístas porque as evidências das Escrituras simples­ mente os levavam a isso (p. ex., ICo 8.6; Dt 6 .4 ; 3 2 .3 9 ; Is 4 4 .8 ). Sobre esse assunto concordavam com os socinianos de que existe um só Deus.” Mas essa concordância era apenas aparente, porque não era toda a verdade sobre a identidade de Deus. Acompanhando a igreja antiga, os puritanos defendiam a singularidade de “Deus” e a unidade da “divindade”, enquanto ao mesmo tempo asseveravam que existem três pessoas na divindade una. Por isso, nas palavras de Goodwin, “podemos dizer com segurança acerca de cada pessoa, quanto ao Pai que ele é D eus, quanto ao Filho que ele é D eus e quanto ao Espírito Santo que ele é D e u s ”}^ Em linguagem quase idêntica, Owen assinala “que Deus é uno; que esse Deus uno é Pai, Filho e Espírito Santo; de modo que o Pai é Deus, assim tam bém é o Filho, e o Espírito Santo da mesm a m aneira”.’^ Esse é um assunto que não está aberto ao debate, visto que, caso isso seja negado, “não tem os nenhum a base para [...] falar sobre a unidade da essência divina ou sobre a distinção das pessoas”.'^ Asseverando que há um só Deus em três pessoas, teólogos puritanos explicaram como as Escrituras identificam cada pessoa como Deus. Por exemplo, Cheynell observa como a Bíblia atribui divindade ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo; “Ao Pai (Rm 7.25; 8 .3 2 ), ao Filho (At 20.28; Tt 2.13 [...]), ao Espírito Santo (At 5 .3 ,4 ; SI 9 5 .3 ,8 ,9 em com paração com Hb 3.1; ICo 3 .1 6 ,1 7 )”.'® Cheynell passa, então, a defender a divindade das três pessoas, mostrando com o cada um a delas possui os m esmos atributos in­ comunicáveis, tais como eternidade, onipotência, imutabilidade e imensidão.“’ Pelo fato de defenderem essa ideia da Trindade, os puritanos foram com frequência acusados de triteísm o."' Também foram criticados por introduzirem “Acerca do monoteísmo sociniano, veja The Racovian Catechism, tradução para o inglês de Thomas Rees (London, 1818), p. 26-8. ■ ^Goodwin, Of the knowledge of God the Father, in: Works, 2:2. Veja tb. John Owen, The doctrine o f the Trinity vindicated, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 2:385-6. '^Owen, The Trinity vindicated, in: Works, 2:380. Esses usos não são peculiares a Goodwin ou Owen. Têm origem no Credo de Atanásio {Quicunque Volt), que fazia parte da Liturgia da oração matutina no Livro de Oração Comum e devia ser usado em todos os dias de festas im­ portantes e diversos dias de santos destacados. '“Owen, The Trinity vindicated, in: Works, 2:380. '^Cheynell, The divine Triunity, p. 20-1. “Cheynell, The divine THunity, p. 28-39. *'No final do século 17, essa crítica foi feita com frequência aos ortodoxos. John Howe (1630-1705) utiliza parte considerável de suas obras refutando a acusação de triteísmo: A calm and sober enquiry concerning the possibility o f a Trinity in the Godhead in a letter to a person of worth (London, 1694) e A view of that part o f the late considerations addrest to H. H. about the Trinity which concerns the sober enquiry, on that subject: in a letter to the former friend (London, 1695), esp. p. 9.

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palavras que não estavam nas Escrituras, com o, por exemplo, “pessoa”. Vale a pena considerar um pouco as duas acusações. Cheynell reconhecia que fazer distinção entre as pessoas da Trindade era da mais alta importância, visto que os erros do triteísmo e do sabelianismo resultam quando não se fazem essas distinções.'® Teólogos reformados evitaram definir “p essoa” como uma essência individual, caso contrário a acusação de triteísmo teria fundamento. Na Europa continental, Francis Turretin (1623-1687] afirmou que as três pes­ soas são distintas da essência de Deus “porque a essência é apenas um a, ao passo que as pessoas são três. Aquela é absoluta, estas são relativas; aquela é comunicável ([...] quanto à identidade); estas são i n c o m u n i c á v e i s É co­ mum encontrar autores que, na tentativa de proteger o monoteísmo trinitário bíblico, empregam palavras como “subsistência” ou “hipóstase” (Hb 1.3] em vez de “p essoa”. Cheynell assevera a multiplicidade de pessoas/subsistências na divindade, empregando a expressão “oposição relativa” (não “oposição absoluta”].^“ Essa oposição relativa/am igável mostra que “o Pai não gerou a si m esm o, mas gerou seu Filho. Mas então tornam os a considerar que esse Filho é um filho eterno e, portanto, é Deus, e tem os certeza de que Deus não gerou outro Deus, pois o poder de Deus não é nem pode ser exercido para criar qualquer coisa repugnante à natureza de Deus, e nada é mais repugnante à divindade do que um a pluralidade de deuses”.^' Outra maneira de teólogos como Cheynell atacarem esse problema foi recorrer aos atributos essenciais de Deus, a fim de m ostrar que o triteísmo é contrário à natureza de Deus. Por causa da simplicidade de Deus (i.e., porque ele não é um ser com posto], “não existe”, conforme assinalado por Muller, “nenhuma distinção real entre as três pessoas e a essência divina, como se a essência fosse um a coisa e as três pessoas fossem outra, pois Deus é um ser simples ou não composto É por isso que Cheynell sustenta que as três pessoas “subsistem real, positiva e verdadeiramente na essência divina, ainda assim essas três subsistências e a essência divina não constituem quatro nem mesmo duas coisas realmente distintas; da m esm a maneira que entidade, verdade, bondade e unidade não constituem quatro coisas realmente distintas, mas são um a única e nada mais do que única coisa real’?® Em outras palavras, a simplicidade de Deus deixa implícito que, no sentido estrito, não existe em Deus nenhuma distinção entre seus atributos. Faz-se distinção entre os atributos '“Acerca desses dois erros em relação à ortodoxia trinitária, veja Muller, Post-Reformation, 4:190; Francis Hirretin, Institutes of elenctic theology, edição de James T. Dennison Jr., tradução para o inglês de George Musgrave Giger (Phillipsburg: P&R, 1992), 3.22.9. '“Ilrrretin, Institutes, 3.22.1. ^“Cheynell, The divine Tnunity, p. 102. ^'Cheynell, The divine Triunity, p. 102. “Muller, Post-Reformation, 4:191. “Cheynell, The divine Triunity, p. 105.

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de Deus apenas para se adaptar às limitações da com preensão hum ana finita. A simplicidade de Deus significa que a onisciência de Deus é sua onipotência, é sua infinidade, é sua imutabilidade etc.^^ Além do mais, não pode haver multiplicidade da essência divina. Conforme assinalado por Turretin, “em Deus não existe com posição porque com posição resulta somente de coisas diversas. Aqui não tem os um a coisa e outra, mas uma coisa e os modos dessa coisa, pelos quais ela não é com posta, mas distinguida’?^ Para os teólogos reformados, as duas maneiras de conceber a Deus, quer como essência quer como pessoa, não deviam ser divorciadas um a da outra. A doutrina de Deus, quando considerada da perspectiva da essência, evitava a perigosa heresia do triteísmo, mostrando que é inconsistente com a simplicidade de Deus. A outra crítica significativa que os teólogos puritanos ortodoxos tiveram de refutar dizia respeito ao emprego de terminologia extrabíblica para analisar e considerar conceitos encontrados na Bíblia. E aqui observamos a relação entre o emprego de term os com o “pessoa” ou “hipóstase” numa tentativa de enfrentar a acu sação de triteísm o. Owen reconhecia que os cristãos têm de confessar que Deus é uno “no que diz respeito à sua natureza, substância, essência, divindade ou ser divino” e que esse Deus uno, “sendo Pai, Filho e Espírito Santo, [subsiste] nessas três pessoas ou hipóstases distintas”.^® Mas, ao utilizar essa linguagem, estava empregando palavras que não eram encon­ tradas diretamente na Bíblia (embora hypostasis possa ser usada em mais de um sentido no Novo Testamento, sendo em Hebreus 1.3 traduzida por “ser” na A21, como “pessoa” na ARC e como su bstan tia na Vulgata). A resposta de Owen é que afirmar a verdade da Trindade significa afirmar um significado ou sentido daquilo de que as Escrituras estão falando. Em nossa mente entendemos a Trindade empregando palavras como “p essoa”. Negar esse privilégio aos cristãos é “nos tornar irracionais”.^^ Assim sendo, “na declaração da doutrina da Trindade podemos legitim a m en te, ou melhor, devemos n ecessa ria m en te empregar outras palavras, expressões e ditos que são diferentes daquelas palavras que estão literal e silabicamente nas Escrituras, mas não ensinam quaisquer outras coisas”.^® É importante que, se palavras “Veja Heinrich Heppe; Emst Bizer, Reformed dogmatics: set out and illustrated from the sources, tradução para o inglês de G. T. Thomson (Grand Rapids: Baker, 1978), p. 58. Johannes Maccovius (1588-1544) defende que a distinção nos atributos de Deus não está nele, mas apenas na concepção que temos deles. Teólogos fazem distinção entre os atributos de Deus e a essência de Deus devido à nossa compreensão inadequada: “Causa, quare distinguimus in Deo attributa ab essentia, est inadaequatus noster conceptus”. Willem J. van Asselt; Michael D. Bell; Gert van den Brink; Rein Ferwerda, Scholastic discourse: Johannes Maccovius (1588-1644) on theological and philosophical distinctions and rules (Apeldoorn; Instituut voor Reformatieonderzoek, 2009), p. 110-1. ^^Turretin, Institutes, 5.27A. “Owen, The Uinity vindicated, in: Works, 2:378. “Owen, The Trinity vindicated, in: Works, 2:379. “ Owen, The Trinity vindicated, in: Works, 2:379.

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além das usadas nas Escrituras transmitem precisa e verdadeiramente o senti­ do das Escrituras, então “tudo que necessariam ente decorre daquilo que está revelado nas Escrituras não é menos verdadeiro e divino do que aquilo que está essencialmente revelado e claram ente expresso’? * Quanto à doutrina da Tlrindade, então, Owen conclui que, “quando as Escrituras revelam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, seguese necessária e inevitavelmente que são um só em essência [...] e três em suas distintas subsistências [...] — isso é revelação divina tanto quanto o primeiro princípio de que essas coisas decorrem ”.^“ Esse é um aspecto importantíssimo para a compreensão da teologia reformada. O que Owen está defendendo (e ele não está dizendo nada de que seus contem porâneos puritanos discor­ dariam) é a ideia de que aquilo que a Confissão de W estminster cham a de “conclusão válida e inescapável” das Escrituras — ou seja, conclusão que reflete com exatidão o ensino das Escrituras — faz parte de todo o conselho de Deus revelado nas Escrituras. O conteúdo da frase “Deus é uma essência em três pessoas” é infalivelmente verdadeiro porque é um a verdade deduzida da Palavra escrita de Deus.^' É claro que os socinianos reagiram ferozmente a esse tipo de raciocínio porque o biblicismo crasso dos teólogos socinianos não permitia esse tipo de raciocínio teológico. À sem elhança de Owen, que reconhecia que “essência” e “pessoa” não são term os usados explicitamente nas Escrituras, Thom as M anton (1620­ 1677) afirma que esses termos são “o melhor que podemos empregar num assunto tão profundo e servem para evitar os erros e equívocos daqueles que preferem multiplicar a essência ou anular as pessoas O uso de certos termos extrabíblicos ajuda teólogos a evitar e refutar, por exemplo, a heresia do triteísmo. Ademais, Manton faz distinção entre “essência” e “existência”: “Hido que se diz acerca da essência vale para cada pessoa [...] Mas [...] tudo que se afirma acerca da existência [...] não pode ser dito acerca da essência; cada um que é Deus não é Pai, Filho e Espírito Santo Manton está respon­ dendo ao erro, já mencionado anteriormente, do sabelianismo (modalismo), que postula que a pessoa do Filho é a m esm a do Pai. Antitrinitaristas mais antigos defendiam que, se Cristo é Deus, sendo da m esm a substância com 0 Pai, então o Pai tam bém foi encarnado. Contudo, Manton defende que. ^’Owen, The THnity vindicated, in; Works, 2:379. “Owen, The THnity vindicated, in: Works, 2:379. ’‘Esse entendimento pode ser útil como ponto de partida no debate entre os que defendem que se cantem apenas salmos da Bíblia e os que creem que os cristãos podem cantar hinos não inspirados. “Thomas Manton, Sermons upon John XVII, in: The complete works o f Thomas Manton, D.D. (London: J. Nisbet, 1870), 10:159. “Manton, Sermons upon John XVII, in: Works, 10:159. Para Manton “existência” e “subsis­ tência” são termos sinônimos.

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embora as pessoas compartilhem a m esm a essência {o u siá ), não compartilham a mesma subsistência.^'^ Assim com o Manton, Goodwin defende que, embora as pessoas tenham um a única essência, possuèm subsistências distintas, o que fica demonstrado nas obras externas {a d extra) de Deus.^^ Como as pessoas possuem subsistências diferentes, seria errado dizer, por exemplo, que o Pai foi encarnado. Isso é consistente com o testemunho ecumênico mais antigo, como, por exemplo, a Definição de Calcedônia e o Credo de Atanásio. Assim, além de justificar o emprego de termos não encontrados nas Escrituras, esses teólogos puritanos também refutaram a acusação de triteísmo, distinguindo entre essência e subsistência. Cheynell ratifica várias das ideias mencionadas anteriormente e, assim, fornece um resumo útil da doutrina da TTindade: Cremos que Deus é uno, individualíssima e singuiarissimamente uno, e único: A unidade da divindade é [...] uma unidade peculiaríssima [...] As três pessoas têm uma e a m esm a divindade individual e infinita e, portanto, precisam necessariamente subsistir uma na outra, pois são as três um e o mesmo Deus infinito [...] unidas em sua natureza única, não confundidas em suas subsistências distintas; embora a subsistência delas esteja uma na outra, ainda assim suas respectivas subsistências são distintas, mas a natureza é singuiarissimamente a mesma.^^

Cheynell, Coodwin, Owen e Turretin, por exemplo, faziam, todos, a distinção entre linguagem própria da essência e linguagem própria da pessoa (afirmação essencial versus relativa). Quer dizer, quanto às suas pessoas, tanto o Filho quanto o Espírito procedem do Pai (a Patre), mas, no que diz respeito à es­ sência, são autossubsistentes (a s e ). Assim, m antém -se a unidade da essência de Deus (“tudo o que é essencial e absoluto em Deus é o próprio Deus”) com uma ordem relacional do ponto de vista das três pessoas (“tudo que é pessoal, relativo e modal em Deus pode nem sempre ser de forma imediata e de todas as maneiras identificado com a essência divina”) .C o m o o Pai não é o Filho, o Filho não é o Espírito e o Espírito não é nem o Pai nem o Filho, surgem várias considerações com respeito às relações entre as três pessoas.

Comunhão intratrínitáría (circum-íncessão) Os puritanos atribuíam muita im portância à com unhão que, com base em sua união com Cristo, os crentes desfrutam com Deus. A união e a comunhão com ”Manton, Sermons upon John XVII, in: Works, 10:159. ^Goodwin, Ephesians, in: Works, vol. 1, pt. 1:401. ’^Cheynell, The divine THunity, p. 42. ’Tlirretin, Institutes, 3.27.5.

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0 Deus triúno eram reflexo de um a união e com unhão muito mais íntimas, a saber, a que existe entre as pessoas da Trindade (“inclusão recíproca” ou m u tu a circum plexio , também denominada “habitação m útua” ou circum cessio ). A distinção típica e excessivam ente simplista entre a ênfase ocidental na

essência divina e a ênfase oriental no relacionamento entre as três pessoas se desfaz quando se analisa a doutrina da Trindade no pensamento puritano.^® Com a definição de Trindade como um só Deus que subsiste em três pes­ soas, sendo que todas compartilham a m esm a essência divina [très p erso n a e in u n a essentia d iv in a ), existe com unhão eterna e alegria mútua entre as três

pessoas. Edward Leigh (1603-1671) trata rapidamente desse aspecto da vida trinitária, referindo-se a ela como um a “comunidade da divindade” em que “as três pessoas perm anecem juntas e são para si m esm as alegria coeterna”.®®Essa comunhão está restrita às três pessoas e não pode ser com unicada a criaturas.“® Goodwin se refere às três pessoas como um a “sociedade entre elas”, em que há felicidade plena entre elas, em que há regozijo nelas, em que glorificam um ao outro e falam um com o outro.“' Essa com unhão — “incomunicável a qual­ quer simples criatura”“^ — está no âmago não som ente da doutrina trinitária esposada por Goodwin, mas tam bém na distinção que ele faz entre Criador e criatura. A com unhão entre as três pessoas na eternidade — comunhão que Goodwin descreve com o “suprema e independente” — envolve interesses mútuos e correspondentes que têm relação com a natureza divina.“®As idéias de Goodwin sobre a com unhão entre as pessoas da Trindade e também a maneira com o expõe a aliança da redenção [p a ctu m salutis) podem dar aos leitores a impressão de que Goodwin adotava um trinitarismo social, um tipo de triteísmo. É claro que Goodwin rejeitaria tal acusação, mas uma terminologia como a usada acim a talvez explique por que Owen foi tão cauteloso quando falou da “circum-incessão divina”, um termo que ele cham a de “bárbaro”.““ Autores puritanos descrevem de diferentes maneiras a relação mútua entre as três pessoas, mas todos concordam que, pelo fato de cada uma possuir vida ^®Por ocasião da defesa de minha tese de doutorado na Universidade de Leiden, o prof. dr. Gijsbert van den Brink comentou que Goodwin dava uma impressão de trinitarismo “oriental”. ^’Edward Leigh, A treatise o f divinity consisting o f three bookes... (London, 1647), 2:136. “Veja Goodwin, Of the knowledge, in: Works, 2:14. “"Goodwin, Of election, in: Works, 2:141. Goodwin assinala que “teólogos dão [a isso] o nome de circum-incessão” (lat., circnmincessio), palavra que é usada como sinônimo do grego perichoresis e se refere à coexistência das pessoas da Trindade. Veja tb. James Ussher, Body of divinitie (London, 1645), p. 87. ‘‘^Goodwin, Of the knowledge, in: Works, 2:15. “’Goodwin, Of the knowledge, in: Works, 2:15. ““O termo latino também pode ser lido erroneamente como “ataque recíproco”. John Owen, Vindiciae evangelicae, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 12:73.

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inata e existir em união um a com a outra, elas partilham interesses mútuos. Conforme assinalado por Cheynell, o Pai, o Filho e o Espírito Santo “subsistem na unidade da divindade, habitam um no outro, mutuam ente se possuem, amam e glorificam de eternidade a eternidade”.'*® Uma passagem a que os puritanos frequentemente recorriam era Provérbios 8.3 0 (“Eu estava ao seu lado como arquiteto; a cada dia eu era o seu prazer, alegrando-me perante ele em todo o tem po”), que no entendimento deles descrevia cristologicamente as relações intratrinitárias existentes desde a eternidade. Goodwin recorre a essa passagem a fim de destacar o regozijo mútuo que cada pessoa encontra nas outras.'*® Em especial o Pai se alegrava em ter gerado um Filho como o Filho de Deus, alguém coeterno com ele.^*’ Da m esm a m aneira, Thomas Manton cita essa passagem e fala da “familiaridade, alegria e satisfação mútuas que as pessoas divinas têm umas com as outras”.'*® Não somente há conhecim en­ to total um as das outras e alegria total umas com as outras, mas as pessoas da TYindade partilham igualmente da soberania divina que é sua por direito (Ap 3.21). Em resum o, essa com unhão entre as três pessoas diz respeito à coabitação, à coexistência e à interpenetração mútua das três pessoas; cada uma partilha com pletam ente da vida das outras duas.

{ad extra) da Trindade são indivisas (opera Trinitatis ad extra sunt indivisa)

As obras externas

A doutrina da com unhão intratrinitária m útua ou circum -incessão tem impli­ cações importantes para o entendimento da vontade de Deus. Depois de falar rapidamente sobre a circum-incessão, Cheynell afirma que em cada obra divina existe um a “atuação com binada das três [pessoas] Em outras palavras, as obras externas ou exteriores da Trindade são indivisas (opera Trinitatis ad extra sunt indivisa) . Ou seja, as três pessoas concordam e cooperam nas obras feitas por qualquer um a delas. Em sua obra On comm union with God [Sobre a comunhão com Deus], Owen trata desse princípio; “Quando atribuo peculia­ ridade a algo em que m antenho com unhão distinta com alguém, não excluo as demais pessoas de terem com unhão íntima nessa m esm a coisa” porque “comumente se diz que as obras que exteriormente são de Deus (denominadas Trinatatis ad extra) são comuns e indivisas”.^° Goodwin tam bém assinala esse ‘‘^Cheynell,

The divine THunity, p. 62.

“ Goodwin, Of election, in: Works, 2:141. “ Thomas Goodwin, A sermon on Hebrews 10:4-7, in: Works, 1:94. “ Manton, Sermons upon Romans VIII, in: The complete works o f Thomas Manton (London: J. Nisbet, 1870), 12:338. “ Cheynell, The divine THunity, p. 60. “ John Owen, On communion with God, in: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 3:18.

The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh:

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princípio da ortodoxia: “É regra inequívoca que o p era THnitatis a d extra su n t indivisa, ou seja, que todas as obras trinitárias de criação e redenção em nosso favor e todas as demais obras são obras de cada pessoa em cooperação com

as demais. Visto que eles têm som ente um ser, um a essência, tam bém têm apenas um a obra”.*^ No entanto, pelo fato de terem subsistências distintas {m o d a s su b sis ten d i), as pessoas possuem diversas m aneiras de operar. Assim, embora a Bíblia diga que o Pai ressuscitou a Cristo (Rm 4 .2 4 ; Cl 2 .1 2 ,1 3 ), tam bém é verdade que Cristo ressuscitou a si m esm o (Jo 2 .1 9 ; 10.17,18) e que o Espírito Santo ressuscitou a Cristo dentre os m ortos (Rm 8.11). Uma vez que “as três pessoas cooperam em toda obra”, é possível afirmar que o Pai, o Filho e 0 Espírito Santo ressuscitaram Cristo dentre os mortos.^^ Contudo, na ressurreição de Cristo dentre os m ortos, seu corpo “não teve participação alguma, pois estava m orto, mas o Filho de Deus, a segunda pessoa, participou e ressuscitou aquele corpo e alm a”.®^ John Arrowsmith (1 602-1659) faz um resumo da natureza das obras externas {a d extra ) com relação à Trindade, in­ sistindo que essas obras são comuns às três pessoas. O Pai, o Filho e o Espírito Santo — todos eles — criam ; a vontade de Deus é a m esm a nas três pessoas porque partilham da m esm a essência. Entretanto, “porque têm subsistências diferentes, sendo o Pai distinto do Filho e o Filho distinto do Espírito Santo, com o consequência possuem m aneiras distintas de operar”. C o m base na ideia de subsistência, m antêm -se a unidade de Deus e tam bém a distinção entre as três pessoas. De modo parecido, Goodwin propõe que, embora as pessoas partilhem da m esm a essência, pelo fato de terem personalidades distintas a operação de cada pessoa “está de conformidade com a existência da respectiva pessoa e tem sem elhança com essa existência”.®^ Assim, o Pai, na condição de fonte das outras duas subsistências, inicia a obra, o Filho dá continuidade ao processo, e o Espírito, que procede de ambos, “aperfeiçoa, consum a e execu ta” (IC o 8 .6 ).

^'Goodwin. Ephesians, in: Works, vol. 1, pt. 1:401. Veja tb. William Bucanus, Body of divi­ nity, tradução para o inglês de Robert Hill (London, 1659), p. 13. “Goodwin, Ephesians, in: Works, 1:401. “Goodwin, Ephesians, in: Works, 1:402. Veja tb. Owen, On communion with God, in: Works, 3:18-9. “John Arrowsmith, Theanthropos, or, God-Man Being an exposition upon the first eighteen verses o f the first chapter o f the Gospel according to St John (London, 1660), p. 61. *®Goodwin, Mans restauration, in: Works, 3:9. William Ames igualmente escreve: “Quanto aos limites da ação, aquele aspecto em que a atuação ou forma de atuação de alguém se des­ taca com mais clareza é atribuída principalmente àquela pessoa”. Marrow of theology, edição e tradução para o inglês de John D. Eusden [1968; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 1997), 1.6.31. “Goodwin, Mans restauration, in: Works, 3:9. Muitos teólogos, inclusive Goodwin, dividem a obra das três pessoas com base nas denominadas “preposições diferenciadoras” (i.e., ek, dia, en], as quais possuem uma antiga tradição trinitária.

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TEOLOGIA PURITANA Apesar desse princípio básico de atribuir obras a d extra a todas as pessoas

da Trindade, Goodwin sustenta que, dependendo do que são, certas obras ex­ ternas podem ser mais especificamente atribuídas a uma das pessoas.^^ Esse princípio permite a Owen dizer que temos comunhão “p rim a ria m e n te, de forma não mediada e num sentido especial” com uma pessoa em particular “e assim secu n d a ria m e n te com as demais”.^®Isso dá a entender que as três pes­ soas da Trindade partilham de um a prerrogativa com um , mas com frequência uma determinada obra será atribuída, por exemplo, ao Pai, a fim de m ostrar sua singularidade. Desse m odo, os crentes comungam com Deus em am or e com Cristo na graça. Tanto Goodwin quanto Owen se esforçam por esclare­ cer como isso se relaciona com a encarnação do Filho de Deus. De maneira que, por exemplo, enquanto alguns teólogos atribuem ao Espírito “a honra especial de realizar os laços de casam ento ou união entre o Filho de Deus e esse homem Jesu s”, Goodwin acredita que “essa ação deve ser mais especi­ ficamente atribuída ao próprio Filho, com o segunda pessoa, que assumiu em si mesmo, numa única pessoa, aquela natureza hum ana” (Hb 2.16).^® É claro que Goodwin concorda que não existe nenhum conflito, caso aqueles teólogos defendam sua posição com base no pressuposto de que as obras externas da TTindade são indivisas. Mas, na mente de Goodwin, “assumir [nossa nature­ za hum ana]” foi “o ato especial do Filho”.“ Owen defende que, “no que diz respeito à eficácia o rig in á ria ”, foi um ato externo (ad extra) do Deus triúno. Mas, “no que diz respeito à d esig n a çã o oficial, foi ato do Pai [...] No que diz respeito à form ação d a n a tu rez a h u m a n a , foi ato específico do Espírito [...] No que diz respeito à en ca rn a çã o , ou adoção da nossa natureza em si m esm o, foi ato específico da pessoa do Filho”.®' Goodwin e Owen estão, em essência, afirmando que com frequência as obras indivisas a d extra manifestam um a *'Essa ideia também pode ser chamada de doutrina das apropriações. Em outro texto, Goodwin faz eco a esse princípio: “Nisto temos a ajuda daquele axioma comum dos teólogos sobre as obras que as três pessoas fazem ad extra por nós. Embora todas estejam envolvidas nessas ativi­ dades, ainda assim elas são mais especificamente atribuídas a uma pessoa e não a outra. Como sabeis, a santificação é atribuída mais especificamente ao Espírito Santo; a redenção, ao Filho; a Criação, ao Deus Pai, embora as três pessoas estejam envolvidas”. Ephesians, in: Works, 1:439. ^®Owen, On communion with God, in: Works, 3:18. ^^Goodwin, Of the Holy Ghost, in: Works, 5:8. É possível que Goodwin tivesse em mente James Ussher (1581-1656), que atribui ao Espírito a “realização dos laços de casamento”. Ussher es­ creve: “Aquele ventre bendito [de Maria] foi a câmara nupcial em que o Espírito Santo realizou a união indissolúvel entre nossa natureza humana e a divindade [do Filho]: o Filho de Deus apropriando-se na unidade de sua pessoa daquilo que anteriormente ele não era”. Immanuel, or, the mystery of the incarnation of the Son o f God (London, 1647), p. 5. “Owen, Discourse on the Holy Spirit, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 5:8. “Owen, Of the person o f Christ, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 1:225.

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das pessoas como “foco de operação” ou term in u s o perationis. No exemplo abordado, a encarnação é concluída no Filho, embora o ato seja da vontade das três pessoas da Trindade.

Geração eterna Leigh contrasta a doutrina de que as obras externas da Trindade são indivisas com a doutrina da geração eterna do Filho; “O pera Trinitatis a d extra su n t indivisa [...] pertencem a um a pessoa e também às outras [...] mas o pera ad intra su n t divisa, [ou seja] as propriedades pessoais das obras internas se

distinguem, de modo que, enquanto o Pai gera, o Filho é gerado do Pai e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho”.“ Ao contrário da dupla procedência do Espírito, a geração eterna do Filho foi amplamente aceita entre teólogos da igreja antiga. Entre teólogos reformados, houve algumas diferenças quanto ao sentido exato da geração do Filho; mas, de todo m odo, a doutrina da geração do Filho foi associada à ideia de que o Pai é a fonte de toda a divindade [fons totius D eitatis). Goodwin faz uso explícito dessa expressão, mas, à semelhança de seus contem porâneos reformados, sempre teve o cuidado de insistir em

que 0 Filho e o Espírito eram “verdadeiro Deus de verdadeiro Deus”.“ Leigh fala, portanto, da ordem das pessoas para explicar essa doutrina: “o Pai é a primeira pessoa [procedente] de si m esm a, não de outra no que diz respeito tanto à sua essência quanto à sua pessoa. O Filho é a segunda pessoa, [pro­ cedente] de seu Pai no que diz respeito à sua pessoa e filiação, existindo por geração eterna de forma inefável (e, desse m odo, é cham ado Deus de Deus). Devido à sua essência ele mesmo é Deus. O Espírito Santo é, com respeito à sua pessoa [...] a terceira pessoa, procedendo [...] do Pai e do Filho”.“ Aqui Leigh cita o Credo Niceno (“Deus de Deus”) para falar da geração eterna do Filho. De forma análoga, Goodwin defende a “condição gerada” ou “geração eterna” do Filho com base em o Pai com unicar ao Filho toda a substância in­ divisível da divindade.“ Conforme o assinalou o m atem ático e teólogo inglês John Wallis (1616-1703), ser o Filho mediante geração eterna deixa implícita a com unicação da m esm a essência.“ Uma das mais extensas defesas da geração eterna do Filho é de autoria de Cheynell. Nela ele refuta a afirmação sociniana de que a essência divina é “Leigh, Tteatise of divinity, 2:127. “Goodwin, Ephesians, in: Works, 11:285. “ Leigh, Treatise of divinity, 2:137. “Goodwin, Sermons on Hebrews 1:1, 2, in: Works, 1:145; Ephesians, in: Works, 1:285; Of the knowledge, in: Works, 2:110. Hirretin apresenta uma análise exaustiva da posição ortodo­ xa reformada acerca da geração eterna do Filho. Institutes, 3.29.1-30. Veja tb. Owen, Vindiríae evangelicae, in: Works, 12:213-4, 275. “John Wallis, Three sermons concerning the Sacred Trinity (London, 1691), p. 22.

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incomunicável, e, portanto, a ideia da geração do Filho pelo Pai mostra que a essência divina não é una, o que criaria a necessidade de uma multiplicidade de deuses. Cheynell inicia a resposta, dando exemplos bíblicos que provam a geração do Filho pelo Pai. Tal qual aqueles que elaboraram a Confissão Belga, Cheynell cita como prova o salmo 2, em que as palavras “TU és meu filho, hoje te gerei” (v. 7) são prova “incontestável” desse ponto fundamental da doutrina cristã.®^ Cheynell cita outra passagem; “Pois assim com o o Pai tem vida em si m esm o, assim também concedeu ao Filho ter vida por si m esm o” (Jo 5 .26). Ele fala da “vida” que o Pai comunicou ao Filho “mediante geração eterna e inefável”.“ Nesse contexto, o Filho declara seu poder de comunicar vida ressurreta mediante sua palavra de ordem (Jo 5 .2 5 ). À sem elhança do Pai, ele tem vida por si mesmo e é o Filho do Deus vivo (Mt 16 .1 6 ). Em outras palavras, diferentemente dos seres humanos, cuja vida procede de Deus, Deus­ -Pai comunicou ao Filho o atributo de ter vida por si mesmo (veja tb. Jo 1 .4 ), 0 que significa que mesmo antes de sua ressurreição o Filho possuía o poder de dar vida a outros. O fundamento para essa autoridade deve, portanto, ser algo que o Filho possuía na eternidade (veja Jo 1.1-14; 17.5). Assim sendo, é possível que a terminologia econôm ica reflita relações intratrinitárias imanen­ tes, que são a maneira com o os reformados ortodoxos conseguiram defender, com bases bíblicas, a doutrina da geração eterna do Filho. Diante da afirmação sociniana de que a geração do Filho deixa implícita uma divisão da essência de Deus, Cheynell responde: O Pai gerou, sim, seu Filho sem mudança ou mutação de uma forma totalmente gloriosa e maravilhosa; não pode haver nenhuma mudança, mutação ou sucessão nessa geração eterna e perfeitíssima. A essência de Deus é espiritual, João 4.24, e, portanto, o Filho não é gerado da semente do Pai nem de qualquer substância material, porquanto Deus é um ato único e puro, que gera dentro de si um Filho que é essencialmente um com ele, e, portanto, seu Filho não subsiste fora dele, João 14.10; João 10.30, pois uma natureza infinita não pode transbordar para fora de si. Com essa geração não pode existir nenhuma mudança essencial no Filho, pois a geração é eterna, e a natureza comunicada pela geração é imutável; o Pai gerou imutavelmente seu Filho, e seu Filho foi imutavelmente gerado.^®

A geração do Filho é tanto eterna quanto perpétua {a e te m a et p e rp e tu a ). E, como a geração do Filho é sobrenatural (“hiperfísica”), os reformados ortodoxos puderam, em oposição aos socinianos, defender que a geração ‘’’’Cheynell, The divine THunity, p. 192. “Cheynell, The divine THunity, p. 192, “Cheynell, The divine THunity, p. 195.

e

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eterna não é um a passagem de não existência ou não ser [n o n esse] para a existência {es se), mas a consequência de um a atividade imutável dentro da essência d iv in a/“ De acordo com Goodwin, aquelas “coisas tod as” que o Pai deu ao Filho “não excluem n ada” (Jo 17.7,10; 16.15).^' Se o Pai possui onipotência, imen­ sidão e eternidade, o Filho e o Espírito também as possuem. Ou seja, os atos internos da divindade {o p era D ei a d intra] são com uns às três pessoas, com a necessária exceção de que as propriedades distintivas de cada pessoa não são partilhadas por todas. Como pessoa, o Pai não é o Filho nem é o Espírito. A geração eterna afirma, portanto, que a pessoa do Filho “procede d a” pessoa do Pai e opera da parte do Pai (Jo 5 .1 7 -4 7 ). Goodwin utiliza a linguagem eco­ nôm ica de João 5.17 para entender a Trindade imanente. Em outras palavras, a aplicação da redenção com o um a das obras a d extra das pessoas divinas é reflexo das “operações” a d intra do Deus triúno. Além do mais, o Deus triúno não se tornou assim, mas é assim. Desse m odo, o Filho “depende” do Pai para ser Filho da mesm a maneira como o Pai “depende” do Filho para ser Pai. O ato em que o Pai gera o Filho é necessário e não voluntário. Além do fato de que as três pessoas são todas essencialm ente Deus, o ato em que o Pai gera e a condição gerada do Filho são relações necessárias devido a suas personalidades distintivas. Não é de surpreender que a Confissão de Fé de W estminster mantenha a terminologia nicena quando afirma a geração eterna do Filho: “Na unidade da Divindade há três pessoas de um a m esm a substância, poder e eternidade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. O Pai não é de ninguém, nem é gerado, nem é procedente; o Filho é eternam ente gerado do Pai; o Espírito Santo é eternamente procedente do Pai e do Filho” (2 .3 ).

O Deus que procede de si mesmo (autotheos) Todos os teólogos reformados concordavam sobre a geração eterna do Filho. Mas aquilo em que não havia concordância plena era o sentido exato da gera­ ção do Filho pelo Pai. De modo que era possível ser niceno e assim mesmo ter idéias um tanto divergentes sobre o que quer dizer o Filho ser “Deus de Deus”. Como consequência, todos os reformados ortodoxos defendiam a asseidade (autoexistência) de Deus Filho, mas com diferentes nuanças. A maioria dos reformados ortodoxos sustentava que o Filho, considerado a segunda pessoa ™Maccovius defende que em Deus a geração é hiperfísica e não física: “Generatio qua in Deo est, etsi sit hyperphysical, tamen non est metaphorica, sed proprie dicta”. Conforme citação em Willem van Asselt et al.. Scholastic discourse, p. 128. Veja tb. James Durham, A commentarie upon the book o f the Revelation... (Edinburgh, 1658), p. 6-8. ^'Goodwin, Of election, in: Works, 2:136.

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da Trindade, é “Deus de Deus” ou D eu s a se ipso, não apenas uma criatura de origem divina [d iv in a s a se ip so ); ou seja, ele é autotheos (Deus de si m es­ m o). O Filho é Deus autoexistente [D eus a se ipso), mas recebe do Pai a sua divindade. Essa era seguramente a posição puritana predominante, conforme mostram os escritos de Cheynell, Goodwin e Leigh. A asseidade do Filho tinha sido tem a de debate no século 16, em particu­ lar no debate entre Calvino e Pierre Caroli. No século 17, o debate ressurgiu na Assembleia de Westminster.^^ Calvino sustentava que, “quando falamos apenas do Filho sem referência ao Pai, é justo e apropriado declararmos que ele procede de si mesmo e, por esse motivo, denominá-lo a origem única. Mas, quando destacam os a relação que tem com o Pai, é correto entender o Pai como a origem do Filho”.^^ Em outra passagem , Calvino argumenta que dizer que o Filho “recebeu do Pai a sua essência nega que ele tenha o ser por si m esm o’7^ Por conseguinte, para Calvino a geração do Filho da parte do Pai diz respeito à sua condição de Filho e não à sua divindade.^® Ao com entar a posição de Calvino sobre a asseidade do Filho, Chad van Dixhoorn sustenta que os “adversários [de Calvino] criam que a divindade ou essência de Cristo procedia do Pai mediante geração eterna’7® Muller assinalou que a posição de Calvino “não encontra eco em todos os primeiros teólogos '^Escreví sobre as diferenças entre Calvino e a Assembléia de Westminster quanto à asseidade do Filho. Veja Mark Jones, “John Calvin’s reception at the Westminster Assembly (1643-1649)”, Church History and Religious Culture 91, n. 1-2 (2011): 215-27. ”John Calvin, Institutes o f the Christian religion, edição de John T. McNeill, tradução para 0 inglês de Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 2008), 1.13.19 [edições em portu­ guês: João Calvino, As institutos, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: UNESP, 2008), 2 vols.]. "Calvino, Institutes, 1.13.23. ^Calvino escreve: “Pois para que serve questionar se o Pai gera o tempo todo? Aliás, é tolice imaginar um ato contínuo de gerar, visto que está claro que as três pessoas subsistem em Deus desde a eternidade” ^Institutes, 1.13.29). Com base nisso, alguns defendem que Calvino rejeita a geração eterna do Filho. Calvino defendeu, contudo, a geração eterna. O que ele pretende nes­ sa seção é certificar-se que fosse entendida como geração da pessoa e não como comunicação da essência. Na citação acima, Calvino procurou desestimular especulações infrutíferas sobre o “modo” da geração. Aliás, a citação de Calvino sobre geração contínua não faz sentido fora do contexto das diferenças entre termos originais latinos empregados por Agostinho e a tradição agostiniana (diferenças entre, p. ex., semper natus, natus est e natum], com os quais Calvino está em debate aqui. Para Calvino, a geração eterna não era assunto de grande importância; pelo contrário, ele defendia que é preciso moderação quando se fala a respeito. Sou grato a Brannan Ellis pelas contribuições que fez para a compreensão do assunto. Quanto a Calvino e seu pensa­ mento sobre a geração eterna, veja Jones, “John Calvin’s reception”, ou Paul Helm, John Calvin's ideas (Oxford: Oxford University Press, 2004), p. 35-57. "Chad van Dixhoorn, “Reforming the Reformation: theological debate at the Westminster Assembly 1642-1652” (tese de doutorado. University of Cambridge, 2004), 1:242.

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reformados ortodoxos”/^ Por exemplo, Muller m enciona Zacharias Ursinus (1 5 3 4-1583), teólogo alemão do século 16, que defendia que, embora o Filho partilhe da mesm a essência do Pai, ele não é Deus “por si m esm o, mas por causa do Pai”/® Num meio termo entre Calvino e Ursinus, surgiram várias po­ sições híbridas sobre a asseidade de Cristo (p. ex., Teodoro Beza [1519-1605], Hirretin). A maioria dos teólogos reformados ortodoxos parece estar mais alinhada com Turretin e Beza do que com Calvino. B. B. Warfield resume o debate sustentando que, “apesar da influência de Calvino, os mestres refor­ mados perm aneceram , em grande maioria, bons nicenos. Mas assim mesmo também foram, como tinham todo o direito de ser, bons ‘autoteonistas’”.” Cheynell faz um a concisa defesa de Calvino e Beza contra a acusação que alguns tinham chamado de “nova heresia [...] o a u to teo n ism o ”.^° Cheynell acrescenta: “Genebrardus, Canisius [...] Faber Fevardentius e os demais estão profundamente equivocados quando afirmam que Calvino e Beza negam que 0 Pai tenha de fato gerado o Filho na unidade de sua própria essência divina”.®* Assim Cheynell, além de equiparar a posição de Calvino à de Beza, defende que os dois representavam a opinião majoritária existente entre os reforma­ dos ortodoxos acerca da asseidade do Filho. Essa questão continuou obscura na Assembleia de Westminster, ocasião em que o polemista religioso Daniel Featley (1582-1645) esteve no centro do debate sobre se o Credo Niceno era compatível com a posição de Calvino sobre a asseidade do Filho.®^ De acordo com van Dixhoorn, nem sempre Featley (que fez vários discursos sobre o as­ sunto) apresentou suas ideias de forma clara ou convincente. Embora tenha declarado que a explicação do autotheos por Calvino era consistente com a sua, Featley finalizou seu discurso com um a citação de Agostinho — “com referência a si mesmo Cristo é cham ado Deus; com referência ao Pai é cha­ mado Filho” [Christus a d s e D eus, d icitu r a d p a tre m filius) — que se revelou “uma afirmação suficientemente abrangente para que praticamente qualquer participante do debate a adotasse”.®® No final, os detalhes do debate sobre a asseidade de Cristo ocorridos na Assembleia de Westminster, em especial aqueles do debate sobre o Filho como autotheos, continuam sendo um mistério por conta de registros incompletos. "Muller, Post-Reformation, 4:326. ^“Muller, Post-Reformation, 4:325. ”B. B. Warfield, Calvin and Calvinism (New York: Oxford University Press, 1931), p. 275. ^‘'Cheynell, The divine Triunity (London, 1650), p. 232. A obra de Cheynell talvez seja a defesa clássica da Trindade entre os puritanos ingleses. “Cheynell, The divine Triunity, p. 232. Gilbertus Genebrardus (1537-1597) e Peter Canisius (1521-1597) foram teólogos católico romanos do século 16. ®^Quanto à posição que, na Assembléia de Westminster, Featley expressou sobre o Filho como autotheos, veja Daniel Featley, Sacra nemesis, the levites scourge, or, Mercurius Britan... (Oxford: impresso por Leonard Lichfield, 1644), p. 13-9. ®^Chad van Dixhoorn, “Reforming the Reformation”, 1:248.

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TEOLOGIA PURITANA Os fatos indicam que, na questão da asseidade do Filho, os puritanos não

ficaram do lado de Calvino. A doutrina puritana da geração eterna do Filho não era apenas pessoal, mas também essencial. Conforme muitos deles a expressaram, foi de um a forma “inefável” (i.e., de um a maneira que é impos­ sível expressar com palavras) que o Pai comunicou a natureza divina ao Filho. Como consequência, tal com o Calvino, eles afirmaram que o Pai é a fonte da divindade, mas para Calvino isso ocorreu apenas de um modo estritamente pessoal. Goodwin, por exemplo, afirma que o Pai comunica ao Filho a totalidade da divindade: “pois essentiae comm unicatio facit om nia com m unia [qualquer com unicação da essência é necessariam ente a com unicação de toda ela]; a divindade é com unicada pelo Pai; todas as coisas da divindade [são comuni­ cadas ...] com exceção apenas da distinção das pessoas”.®'' Não há geração de uma nova essência. Consequentemente, sendo com unicada pelo Pai, a divin­ dade do Filho não deriva de outra essência, mas é idêntica à essência do Pai, e, portanto, o Filho é Deus por ele [de si] mesmo (a se). Sobre essa questão, embora a posição de Goodwin difira da de Calvino, ela tem muito em comum com a de Turretin, que defende que, embora o Filho proceda do Pai, ainda assim pode ser cham ado de “Deus por si [de si] m esm o”, ou seja, “não no que diz respeito à sua pessoa, mas à sua essência; não relativamente com o Filho (pois procede do Pai), mas absolutamente como Deus, visto que possui a essência divina, que é autoexistente e não dividida nem produzida de outra essência (mas sem ter aquela essência por [de] si m esm o). Assim, o Filho é Deus por [de] si mesmo embora não o Filho por [de] si m esm o”.®®Turretin está fazendo distinção entre “asseidade de personalidade” {aseitas personalis), uma heresia trinitária, e “asseidade de essência” {aseitas essentialis). Pelo visto, essa é a melhor maneira de entender a afirmação de Leigh de. que o Filho procede do Pai “no que diz respeito à sua pessoa e filiação e existe por geração eterna ocorrida de maneira inefável (e é assim chamado de Deus de Deus); em virtude de sua essência é Deus m esm o”.®®Howe partilha desse ponto de vista quando assevera que o Filho possui a “natureza divina que foi com unicada a ele (pois é Filias, o Filho) mediante geração eterna e, quanto à natureza divina pode, em certo sentido, ser cham ado de autotheos, i.e.. Deus por [de] si m esm o”.®'’ “‘‘Goodwin, Of election, in: Works. 2:136. Veja tb. Ephesians, in: Works, 1:285. Com base na distinção sistemática entre o Filho em sua divindade essencial e o Filho como segunda pes­ soa na sua relação com a primeira pessoa (i.e., o Paij, Girolamo Zanchi também define o Filho como igual (i.e., autotheos) ao Pai [De tribus Elohim aetemo Patre, Filio, et Spiritu Soneto, uno eode mque lokoua, in: Operum theologicorum D. Hieronymi (Geneva: Excudebat Stephanus Gamonetus, 1605), l:col. 540. ““Hirretin, Institutes, 3.28.40. ““Leigh, TYeatise of divinity, 2:137. “Uohn Howe, Christ, God-Man, p. 3.

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Essa é a posição da maioria dos puritanos sobre a asseidade de Cristo, ainda que não fosse exatam ente a de Calvino.

A dupla procedência do Espírito A procedência do Espírito está relacionada com as obras a d extra da divindade. Aliás, Muller defende que entre os reformados ortodoxos “a procedência ad intra do Espírito é espelhada e seguida pela procedência ou ‘m issão’ a d extra do Espírito”.®® De forma bastante parecida com a maneira como a geração eterna do Filho é deduzida a partir de textos que falam basicamente (embora não necessariamente de modo exclusivo) de papéis trinitários econômicos, a procedência do Espírito foi baseada em textos que com frequência tratavam de papéis econômicos entre as pessoas da THndade. As igrejas ocidentais e orientais têm tido entendimentos variados sobre a procedência do Espírito. A divergência entre Oriente e Ocidente se tornou um a ruptura total quando a Igreja Ocidental, de fala latina, acrescentou as palavras “e do Filho” {filioqué) ao artigo do Credo Niceno que afirma que o Espírito procede do Pai, para declarar a denominada “dupla procedência” do Espírito, procedendo “do Pai e do Filho”. Mas a Igreja Oriental sustenta que o Espírito procede apenas do Pai.®® Novamente, Muller entende que os reformados ortodoxos “não apenas defendem a doutrina agostiniana da dupla procedência, mas também insistem nela como um conceito bíblico que se opõe aos ensinos dos ortodoxos gregos”.®®Ao insistir no acréscimo de filioqae ao Credo com o argumento de que o Espírito procede tanto do Pai quanto do Filho, a Igreja Ocidental procurou manter a coigualdade de ambos. Para os reformados ortodoxos em particular, a ideia de que o Espírito procede apenas do Pai deixaria implícita a subordinação ontológica do Filho ao Pai. A Confissão de Fé de W estminster confirma explicitamente a expressão filioqué, afirmando que o Espírito “é eternamente procedente do Pai e do Filho” (2 .3 ). Leigh explica o debate a partir de seu ponto de vista: Por esta razão, surgiu o cisma entre as igrejas Ocidental e Oriental, a primeira afirmando que o Espírito procede do Pai e do Filho, a segunda, que procede apenas do Pai.

®®Muller, Post-Reformation, 4:378. Em outra passagem, Muller, ao falar da congruência entre a vida ad intra da divindade e a manifestação e obra ad extra, escreve: “A relação entre o Pai e o Filho é tal que, dado o caráter da primazia do Pai, o Filho em unidade com o Pai é, junto com o Pai, o principiam do Espírito Santo — e esse principiam particular na vida interna da divindade espelha a maneira como a obra ad extra também é una, as três pessoas juntas sendo o princi­ piam único da criação”. Post-Reformation, 4:58. “’Para apreciações recentes sobre o filioqae, veja Bernd Oberdörfer, Filioqué: Geschichte and Theologie eines ökamenischen Problems (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2001); Dennis Ngien, Apologetic for filioqae in Medieval theology (Milton Keynes: Paternoster, 2005). ’“Muller, Post-Reformation, 4:374.

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TEOLOGIA PURITANA Negar que o Espírito Santo proceda do Filho é um sério erro teológico e, caso a Igreja Grega tivesse mesmo negado que o Espírito Santo procede do Filho, seria a base para estabelecer uma desigualdade entre as pessoas. Mas, visto que, em sua maneira de se expressar, ela declara que o Espírito Santo procede do Pai por meio do Filho e é o Espírito do Filho, e visto que ela não estabelece nenhuma diferença de consubstancialidade das pessoas, é uma igreja verdadeira, embora incorreta neste detalhe em particular.”

A forte convicção de Leigh — embora ainda reconheça que a Igreja Oriental é uma parte verdadeira da Igreja Católica visível — reflete inquestionavelmente as idéias de seus contemporâneos puritanos e de teólogos reformados da Europa continental. Por isso, Hirretin declara que, assim como “a geração [gennêsis] é atribuída ao Filho, a procedência {ekporeusis) é atribuída ao Espírito Santo Conquanto afirme que o Espírito “é na divindade uma pessoa igual ao Pai e ao Filho”,” Goodwin defende que, pelo fato de ser o último na ordem das pessoas divinas, o Espírito necessariamente procede das outras duas pessoas.®^ Na condição de “vínculo da Trindade” [vinculum THnitatis), ele vem por via do amor.” O Espírito atua com o o vínculo do am or {vinculam caritatis] entre 0 Pai e 0 Filho. É claro que Goodwin está fazendo eco a Agostinho, que de­ fendia que 0 Espírito é “aquele que une o Pai e o Filho” {patris et filii copula). Cheynell reconhece o mistério dessa doutrina, mas procura explicá-la des­ tacando quatro pontos fundamentais sobre a dupla procedência do Espírito. Em primeiro lugar, é preciso entender que a procedência é espiritual e não corpórea. Em segundo, como esse processo diz respeito à atividade intratrinitária, a procedência é eterna. Em terceiro, a procedência é imutável, “não uma mudança em que o Espírito passa de não ser para ser ou de um ser imperfeito para um ser mais perfeito. Sabemos que a procedência não pode ser um deslocamento de um lugar para outro, pois o Espírito é onipresente, preenche todos os lugares e, portanto, não pode mudar seu lugar”.” Em quarto, assim como a geração do Filho pelo Pai é necessária, o mesmo acontece com a dupla procedência do Espírito. Ao afirmar a dupla procedência, Cheynell destaca que o Pai e o Filho “desde a eternidade sopraram o Espírito na unidade da divindade, não ”Leigh, A Treatise o f divinity, 2:138. Concordando com Leigh, HirTetin defende que, “embora os gregos não devessem ser acusados de heresia por causa de sua opinião nem isso devesse ser motivo para o surgimento ou continuação de um cisma, ainda assim pode-se afirmar acertadamente que a opinião dos latinos está mais de conformidade com as palavras das Escrituras e é a mais verdadeira” (Institutes, 3.31.5). “Turretin, Institutes, 3.31.1. ^Goodwin, Of the Holy Ghost, in: Works, 5:1. ’■ •Goodwin, Of the Holy Ghost, in: Works, 5:2, 46. ’’Goodwin, Of the Holy Ghost, in: Works, 5:33, 43. ’’Cheynell, The divine Triunity, p. 220.

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por um a separação divina de si m esm os, mas por um a com unicação indes­ critível da m esm a natureza divina a um a terceira pessoa da divindade. E essa com unicação é natural e, portanto, necessária, mas não involuntária”.®^ É claro que, embora a dupla procedência seja necessária, Cheynell nega que o Pai e o Filho tenham sido forçados a soprar o Espírito; mas de qualquer maneira não foi um ato arbitrário. É um ato interno da divindade que é ao mesmo tempo necessário e natural, pois “a perfeição da divindade é tal que precisa ser co­ municada às três pessoas”.®* Caso se negue que o Espírito procede do Pai e do Filho, então, de acordo com Cheynell, não se pode m anter a igualdade das três pessoas. Como o Pai e o Filho não estão em oposição, mas são naturalmente um, 0 Espírito procede igualmente de ambos. A defesa que Cheynell faz da dupla procedência do Espírito é um corolário de sua maneira de provar a geração eterna do Filho. Por exemplo, Cheynell ressalta que é necessário fazer distinção entre a procedência eterna do Espírito e sua missão no tempo. Há um a diferença entre ontologia e econom ia. Ainda assim ele liga atos trinitários a d intra a obras trinitárias a d extra, sugerindo que “a procedência natural e eterna do Espírito pode ser demonstrada pela missão temporal do Espírito”.®® Por conseguinte, o fato de as Escrituras afir­ m arem claram ente que o Filho envia o Espírito ao mundo — que é a esfera do tempo e do espaço — é prova de que o Espírito procede eternamente também do Filho. Esse raciocínio era com um entre teólogos reformados. Conforme as­ sinalado por Muller, “a procedência a d intra do Espírito é espelhada e seguida pela processão a d extra [...] do Espírito”.'“ Para os teólogos reformados, textos com o João 15.26 — “Quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai” — foram, portanto, de enorme importância na defesa da dupla procedência. Mas esses teólogos nem sempre estiveram de acordo sobre se a econom ia sempre espelhava a ontologia. Os com entários de Owen sobre João 15.26 são quase idênticos aos feitos por Goodwin, com a exceção de que este encontra tanto ontologia quanto econo­ mia no versículo 26. Para Owen, o Pai é cham ado de “fonte”. Há, no entanto, uma dupla procedência do Espírito: a primeira diz respeito à substância e à personalidade, e a segunda, à dispensação ou econom ia.'“' No primeiro caso, “ele é o Espírito do Pai e do Filho, procedendo eternam ente de am bos”.'“ Mas, de acordo com Owen, as palavras de João 15.26 se referem à “procedência ’'Cheynell, The divine THunity, p. 220. ’’Cheynell, The divine THunity, p. 221. ’’Cheynell, The divine THunity, p. 225. ““Muller, Post-Reformation, 4:378. “'Owen, On communion with God, in: Works, 2:226. '“Owen, On communion with God, in: Works, 2:227.

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econôm ica ou dispensadora”.^“ De modo parecido, Willem van Asselt defende que, na interpretação de Johannes Cocceius (160 3-1669), João 15.26 se refe­

re à procedência econômica do Espírito e não à sua existência ontológica.'“ Tdiretin, embora reconheça que João 15.26 fala de o Espírito proceder do Pai, sustenta que a passagem “não nega que ele proceda do Filho. Na verdade, isso está implícito porque a m issão do Espírito é atribuída a ele [i.e., ao Filho], e a Bíblia diz que tudo que o Pai tem o Filho também tem (Jo 16.15)

De

modo parecido, Ussher assinala que, enquanto se afirma explicitamente que o Espírito procede do Pai (Jo 1 5 .2 6 ), o fato de que procede do Filho “é uma consequência necessariam ente implícita, pois João 14.26 afirma que o Filho 0 enviará. O texto diz que o Pai o enviará em nome do Filho, o que indica claramente a ordem das pessoas da Trindade”,“ ® de maneira que, embora alguns teólogos reformados não concordassem que certos textos sobre ações trinitárias econôm icas tam bém indicassem ontologia, a maioria achava que era uma maneira legítima de entender as relações eternas dentro da divindade.

Conclusão Os puritanos se viam com o parte de uma tradição trinitária ocidental ininter­ rupta e baseada na ortodoxia nicena e procuraram refutar as afirmações dos socinianos, que constituíam um a crescente influência antitrinitária na Europa. Da mesm a forma, os puritanos, em oposição aos remonstrantes, defendiam que a doutrina da Tlindade era um artigo essencial de fé. Na realidade, essa doutrina apresenta a estrutura ontológica necessária para uma teologia cristã consistente. Ao defender a doutrina da Trindade, os puritanos eram zelosos em manter que, em virtude de partilharem da m esm a essência, o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram coiguais em poder e glória, coeternos e consubstanciais, assim resistindo a qualquer forma de subordinação ontológica entre as pessoas. Existe, no entanto, um a “ordem de relações entre as pessoas” (ordo p erson aru m sive rela tio n u m ]. Na ordem de subsistência, o Pai é a primeira pessoa

da divindade, a “fonte da divindade” {fo n s deitatis), que gera eternamente o '“Owen, On communion with God, in: Works, 2:227. '“Willem van Asselt, The federal theology o f Johannes Cocceius (1603-1669) (Leiden: Brill, 2001), p. 184. '“Hirretin, Institutes, 3.31.7. '“Ussher, Body ofdivinitie, p. 85. Pedro Mártir Vermigli (1499-1562) adota a mesma posição, ao defender a dupla procedência do Espírito. Escreve: “No mesmo Evangelho de João está bem claro que essa terceira pessoa procede do Pai e do Filho [...] Ao ver o que o Filho diz — que en­ viará 0 Espírito — e (conforme dissemos anteriormente) ao ver que o Filho afirma que recebe [o Espírito], ninguém duvide que o Espírito procede do Filho. E agora [o Filho] expressamente acrescenta ‘que procede do Pai’” (Jo 14.26; 15.26; 16.13). The common places o f Peter Martyr, tradução para o inglês de Anthony Marten (London, 1583), 1:12.7.

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Filho, a segunda pessoa. O Espírito, o terceiro em subsistência, procede tanto do Pai quanto do Filho. Porque são “distintas mas não separadas” [distinctio sed n o n sep a m tió ), as três pessoas perm anecem um a na outra e subsistem uma por meio da outra {circu m in cessio ). A doutrina da Trindade forneceu aos puritanos a estrutura ontológica necessária para a com preensão da história da salvação, a qual tem um fundamento eterno que é inteiramente trinitário. As pessoas da Trindade tam bém devem ser conhecidas, amadas e experienciadas pelos crentes. Rutherford (1600-1661) confessou que era incapaz de dizer qual pessoa divina ele am ava mais, mas sabia que precisava de cada uma e amava todas. No próximo capítulo, mediante exam e da obra magistr ■ ! de Owen sobre esse assunto valioso e prático, concentrarem os a nossa atençé.) em como o crente tem com unhão com cada pessoa da divindade.

Capítulo 6 □□□□□□□□□□□□□□

John Owen e a comunhão com o Deus triúno □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□D

Os santos têm inequívoca comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. J ohn Owen'

A doutrina da Santíssima Trindade foi fundacional para a teologia de John Owen (1616-1683) — o que na observação de Richard Muller é em geral uma verdade entre teólogos reformados ortodoxos. Owen asseverou que quando se remove a doutrina da Trindade "a alma perde o fundamento de todos os frutos de am or e bondade”.^ Sinclair Ferguson cham a Owen de “um teólogo profundamente trinitário”.^ Carl TYueman escreveu: “Em todas as suas obras — quer tratem de Deus, quer da redenção, quer da justificação — a doutrina da Trindade é sempre fundacional”.“ O que John Owen queria dizer com THndade? Em seu catecism o menor, Owen escreveu: “ [Pergunta] Existe apenas um Deus? [Resposta] Apenas um 'John Owen, Communion with God, in: William H. Goold, org.. The works of John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of TVuth TVust, 1965), 2:9. TVechos deste capítulo foram adaptados de The quest for full assurance: the legacy o f Calvin and his successors, de Joel R. Beeke (Edinburgh: Banner of TVuth Thist, 1999), p. 173-87, e de Paul M. Smalley, “Sweet mystery: John Owen on the Ittnity", Puritan Reformed Journal 3, n. 1 (2011): 81-112. "Richard A. Muller, Post-Reformation Reformed dogmatics, the Triunity o f God (Grand Rapids: Baker, 2003), vol. 4, p. 145, 148. "Sinclair Ferguson, “John Owen and the doctrine of the person of Christ”, in: Robert W. Oliver, org., John Owen: the man and his theology (Phillipsburg: P&R, 2002), p. 82. ‘‘Carl R. Trueman, John Owen: Reformed Catholic, Renaissance man (Aldershot: Ashgate, 2007), p. 124.

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no que diz respeito a sua essência e ser, mas um em três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo”.^ Em seu catecism o maior, Owen definiu “pessoa” como “um modo distinto de subsistência ou ser, diferenciado das outras pessoas com base em suas próprias propriedades”. Owen apresentou essas propriedades diferenciadoras com o: • O Pai é a “única fonte da divindade (Jo 5 .2 6 ,2 7 ; Ef L S ) ”.® • O Filho é “gerado por seu Pai desde a eternidade (SI 2 .7 ; Jo 1.14; 3 .16) ”. • O Espírito “procede do Pai e do Filho (Jo 14 .1 7 ; 16.14; 15.26; 2 0 .2 2 )’7 Em outra passagem , Owen apresentou o seguinte resumo da doutrina da Tlindade: “que Deus é um ; que esse Deus uno é Pai, Filho e Espírito Santo; que 0 Pai é 0 Pai do Filho; e o Filho é o Filho do Pai; e que o Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho; e que, no que diz respeito às suas relações m útuas, distinguem-se um do outro”.® Quanto às três pessoas divinas, escreveu que “são princípios de operação ou atuação distintos, vivos, divinos, inteligentes e voluntários e isso em atos internos e por meio destes de um com os demais e em atos que externam ente dizem respeito à criação e a várias partes dela. Ora, essa distinção originariamente está nisto: que o Pai gera o Filho, e o Filho é gerado pelo Pai, e o Espírito Santo procede de am bos”.® Embora Owen tenha defendido meticulosamente a doutrina da Tl-indade,“ ele não a considerava um a simples questão de debate ou fidelidade confes­ sional. Cari Trueman escreveu: “Owen exibe aquele aspecto mais aprazível da teologia pré-crítica: seu propósito essencialm ente eclesiástico e prático [...] Era teologia feita dentro da igreja para o benefício da igreja”.^' Trueman ^Owen, Huo short catechisms, in: William H. Goold, org.. The works of John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Trust, 1965), 1:467. “^Com frequência Owen se referia ao Pai como a “fonte” ou “manancial” na divindade, mas não como a “causa” das outras pessoas divinas. Nesse aspecto ele continuou na tradição de Tomás de Aquino e dos pais latinos, em oposição a Atanásio, Basílio e Teodoreto. Aquino re­ conheceu que a linguagem de “causa” poderia deixar implícito que o Filho foi criado, ao passo que “fonte” indicava substância idêntica. Muller, Post-Reformation, 4:46. ^ Owen, Tivo short catechisms, in: Works, 1:472 ®Owen, A brief declaration and vindication o f the doctrine o f the Trinity as also o f the person and satisfaction o f Christ, in: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of TTuth Hust, 1965), 2:377. ’Owen, Doctrine o f the Trinity, in: Works, 2:405. “Owen, Doctrine o f the Trinity, in: Works, 2:366-419; Vindiciae evangeUcae; or, the mystery of the Gospel vindicated and Socianism examined, in: William H. Goold, org.. The works of John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Truth TTust, 1965), 12:169-333. “Trueman, John Owen, p. 128.

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observou que isso foi especialmente válido no caso da doutrina da Trindade; “a Tt-indade estava no âmago da soteriologia cristã e, por esse motivo, precisa estar tam bém no âmago da adoração cristã”.'^ Deus se revelou com o Trindade a fim de que os hom ens pudessem andar com ele em obediência, amor, tem or e felicidade, conforme exigiu deles.” Enquanto os remonstrantes viam a Trindade com o um a doutrina que não era nem fundamental nem proveitosa,” Owen a via com o fundamental à fé sal­ vadora e tam bém como muito proveitosa à experiência espiritual dos crentes. Pois Owen via a experiência cristã com o com unhão com o Deus misterioso, e, desse modo, sua teologia era, nas palavras de Robert Letham , “um exemplo magnífico de síntese de construtos m etateóricos, exegese e dogma católicos e piedade pastoral p rática”.” É provável que Owen tenha influenciado a Declaração de Savoia (1658) no trecho que acrescenta a seguinte afirmação à Confissão de W estminster (2 .3 ): “A doutrina da Trindade é a base de toda a nossa comunhão com Deus e de nossa tranquila dependência nele”.” Ferguson escreveu que, na teologia de Owen, “a vida cristã não é nada menos do que com unhão com Deus como Trindade, conduzindo à plena cer­ teza da fé”.” O que Owen quis dizer com com unhão com Deus? É a permuta de benefícios espirituais entre Deus e seu povo, com base no vínculo entre Cristo e 0 povo de Deus. Owen escreveu: Ora, comunhão é a comunicação mútua dessas coisas boas em que se regozijam as pessoas que, baseadas em alguma união entre elas, estão nessa comunhão [...] Nossa comunhão com Deus, então, consiste em sua comunicação de si mesmo a nós, com nossa retribuição a ele daquilo que ele exige e aceita, como resultado dessa união que, em Jesus Cristo, temos com ele.” lan Hamilton com entou: “Na com unhão. Deus se dá a seu povo e este dá a ele aquilo que ele exige e aceita — seu amor, confiança, obediência e fideli­ dade”.” Owen fez um a distinção cuidadosa entre união com Cristo (a relação '^Trueman, John Owen, p. 123. '^Owen, Doctrine o f the Trinity, in: Works, 2:378, 406. ‘‘‘Muller, Post-Reformation, 4:154-5. ‘^Robert Letham, “John Owen’s doctrine of the TWnity in its Catholic context and its signifi­ cance for today”, in: Where reason fails (London: Westminster Conference, 2006), p. 14. ‘“Declaração de Savoia, cap. 2, seção 3, citada em Kelly M. Kapic, Communion with God: the divine and the human in the theology of John Owen (Grand Rapids: Baker, 2007), p. 156. “’Sinclair B. Ferguson, John Owen on the Christian life (Edinburgh: Banner of Tmth Trust, 1987), p. 74. '®Owen, Communion with God, in: Works, 2:8. “Tan Hamilton, “Communion with God”, in: Joseph A. Pipa Jr.; J. Andrew Wortman, orgs.. Reformed spirituality (Taylors: Southern Presbyterian Press, 2003), p. 63.

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imutável de nossa salvação) e com unhão com Deus (a experiência variável dessa relação).“ Owen retomou um tem a encontrado em Agostinho, a saber, comunhão como “p razer” ou a fruição do Deus triún o e o deleite nele. Na obra “Sobre a doutrina cristã”, de Agostinho, um dos capítulos tem o título “A Tf-indade, 0 verdadeiro objeto de p razer”. Ali, Agostinho escreveu que “os verdadeiros alvos do nosso deleite são, então, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, que são ao mesmo tempo a Trindade, um único ser, supremos acim a de todos e comuns a todos os que nela encontram satisfação”.^' Owen acolheu essa ideia de ter prazer na TTindade e a ampliou por meio do conceito da com unhão distinta com cada pessoa divina.^^ Owen encontrou base escriturística para “com unhão distinta” em textos com o João 1 4 .23; ICoríntios 1.9; 12.4-6; 2Coríntios 13.13 ; IJoão 1.3; 5.7 e Apocalipse 3.20. Ao escrever do uso de tais passagens por Owen, Sinclair Ferguson afirma que “Owen acrescenta o axiom a de que toda a atividade de fé diz respeito a uma pessoa distinta da Trindade da m esm a maneira como acontece com todos os recebimentos da graça. É isso o que ele quer dizer com comunhão. Assim o Pai com unica por meio de autoridade própria; o Filho, por meio de um tesouro adquirido; e o Espírito com eficácia imediata. Essa é a doutrina clássica das a pro pria çõ es”}^ Owen preservou cuidadosam ente a unidade da divindade,

esclarecendo que com unhão distinta não é com unhão exclusiva com qualquer pessoa específica, mas com unhão da qual, de acordo com seus atributos e papéis distintos, aquela pessoa basicam ente se apropria}'^ J. I. Packer explicou: “A com unhão com Deus é um relacionamento em que os cristãos recebem am or das três pessoas da TTindade e correspondem com amor às três”.“ Quanto a isso, Owen evitou a tendência problemática de cristãos, em especial os do Ocidente, destacarem a “divindade não diferen­ ciada” em oposição a um relacionam ento com cada pessoa da Trindade.^® Em vez de tentar se relacionar com uma essência impessoal ou, pior ainda, com uma coleção abstrata de atributos, os crentes devem se relacionar de forma distinta e pessoal com cada pessoa da divindade. “Kelly M. Kapic, “Communion with God by John Owen (1616-1683)”, in; Kelly M. Kapic; Randall C. Gleason, orgs.. The devoted life: an invitation to the Puritan classies (Downers Grove: InterVarsity, 2004), p. 169. ^'Augustine, “On Christian doctrine” (1.5), in: Marcus Dods, org.. The works o f Aurelias Augustine (Edinburgh: T&T Clark, 1892), 9:10. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:9. “Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 75-6. “Owen, Communion with God, in; Works, 2:18-9. “J. I. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision o f the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 204. Cf. Owen, Communion with God, in: Works, 2:10-6. “Kapic, Communion with God, in: The devoted life, p. 148.

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Owen desenvolveu com profundidade razoável sua ideia de comunhão com a Trindade num estudo específico conhecido com o C o m m u n io n with God [Comunhão com Deus] (1657). Neste capítulo, examinaremos esse estudo em seu contexto histórico e teológico e, então, exploraremos o ensino específico de Owen sobre comunhão com cada pessoa divina da Trindade.

Comunhão com Deus no contexto histórico O tem a da com unhão com Deus foi de importância crítica para os teólogos puritanos da geração de Owen. Mas a preocupação deles com o assunto da com unhão entre Deus e seu povo não era um a tentativa de humanizar a Deus ou deificar o homem.^^ Pelo contrário, Owen e seus colegas queriam explicar, segundo um a estrutura trinitária, com o Deus trata pecadores necessitados. Os teólogos estavam mais interessados na experiência religiosa com o revelação acerca de Deus e de sua graça surpreendente do que na experiência religiosa com o um fim em si m esm o. Packer declara acertadam ente que “nas autobio­ grafias espirituais contem porâneas [por exemplo] o herói e ator principal é em geral o próprio autor; ele é o ponto de convergência, e Deus entra apenas com o parte da história do autor. Seu tem a é, na prática, ‘E u — e Deus’. Mas na autobiografia puritana. Deus está no centro o tempo todo. Ele, e não o autor, é 0 ponto de convergência; o assunto do livro é, na prática, ‘D eu s — e eu”’.^® A com unhão com cada um a das pessoas divinas, tem a tratado por Owen, era também muito conhecido na literatura puritana.^^ Por exemplo, em T he object a n d acts o f justify in g faith [O objeto e os atos da fé justificadora], Thomas

Goodwin (1600-1680) escreveu sobre um a conexão íntima entre certeza da salvação e com unhão com a Hindade: Às vezes a comunhão e a conversa do cristão são com um, às vezes com outro; às vezes são com o Pai, depois com o Filho e em seguida com o Espírito Santo. Às vezes seu coração é levado a considerar o amor do Pai em escolher, depois o amor de Cristo em redimir e em seguida o amor do Espírito Santo, que perscruta "Dale Arden Stover, “The pneumatology of John Owen: a study of the role of the Holy Spirit in relation to the shape of a theology” (tese de doutorado, McGill University, 1967), p. 304-5. ^®J. 1. Packer, “The Puritan idea of communion with God”, in; Press toward the mark: papers read at the Puritan and Reformed studies conference, 19th and 20th December, 1961 (London: 1962), p. 7. "Veja qualquer comentário puritano sobre Cântico dos Cânticos (Richard Sibbes; John Dove; Nathaniel Homes; James Durham e John Collinges). Este último escreveu 909 páginas de comentário sobre o capítulo 1 e 530 sobre o capítulo 2 para examinar a comunhão de Cristo com sua igreja conforme representada pela comunhão entre o noivo e a noiva de Cântico dos Cânticos. John Collinges, The intercourses o f divine love betwixt Christ and the church (London: A. Maxwell para Tho. Parkhurst, 1676).

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TEOLOGIA PURITANA as coisas profundas de Deus e as revela para nós, sofrendo todas as dores conosco. E assim a pessoa vai nitidamente de uma testemunha a outra [...] Jamais devemos estar satisfeitos até que as três pessoas recebam a mesma atenção em nós e todas façam habitação em nós e nos assentemos, por assim dizer, no meio delas, enquanto todas manifestam seu amor por nós.’“

Contudo, a obra C o m m u n io n w ith God de Owen é ímpar porque é um tratado sistemático completo desenvolvido a partir da ideia de comunhão com pessoas distintas da Trindade. É isso que levou Daniel Burgess a escrever que “esse tratado [...] é o único existente sobre esse assunto grandioso e essencial”.’* Brian Kay afirma: “Owen é um desbravador [...] mostrando como a resposta devocional do cristão a Deus assum e um a forma distintamente trinitária”.” C o m m u n io n w ith God foi bem recebido desde sua publicação em 1657,

mas a reimpressão de 1674 ocasionou um a crítica bastante inadequada por parte de William Sherlock (c. 1641-1707).” Owen respondeu com A vindication [Uma defesa],” mas pareceu estar deveras surpreso que sua obra recebesse tal crítica, visto que era “totalm ente voltada para questões práticas, com o propósito da edificação do povo, sem envolvimento direto com elementos controversos”. Ele acrescentou: “Sei até m esm o que multidões de pessoas tem entes a Deus e desejosas de andar com sinceridade diante dele estão prontas, caso a ocasião exija, a dar testem unho do benefício que receberam por meio dela [da obra] ”.” C o m m u n io n w ith God foi popular também entre os cristãos reformados

holandeses. A tradução para o holandês foi feita por J. H. Hofman e publicada em 1717.” Para muitos de origem inglesa e holandesa, foi merecido o elogio que a obra recebeu de Daniel Burgess: “O melhor do alimento celestial está posto diante de ti”.” Não há dúvida de que esse livro foi alimento celestial ’“Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (Edinburgh: James Nichol, 1864), 8:378-9. ’'Daniel Burgess, “To the reader”, in: Of communion with God, por John Owen, in: Works, 2:4. ’’Brian K. Kay, Trinitarian spirituality: John Owen and the doctrine o f God in Western devo­ tion (Eugene: Wipf & Stock, 2008), p. 113-4. ’’William Sherlock, A discourse concerning the knowledge of Jesus Christ and our union and communion with him (London: J. M. para Walter Kettilby, 1674). Mais tarde, Sherlock publicou outras obras sobre a Ttindade, bem como um livro bem popular. Practical discourse concerning death (London: impresso para W. Rogers, 1689). ’■ 'Owen, A vindication o f some passages in a discourse concerning Communion with God, in: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1965), 2:275-365. ’’Owen, Vindication... concerning communion with God, in: Works, 2-.177. “J. van der Haar, Van Abbadie tot Young, een Bibliografie van Engelse, veelal Puritaanse, in het Nederlands vertaalde Werken (Veenendaal: Uitgeverij Kool, 1980), p. 89. ’’Burgess, “To the reader”, in: Communion with God, por John Owen, in: Works, 2:4.

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tam bém para Owen, que na época em que o escrevia estava extremamente ocupado em seu trabalho de reitor da Universidade de Oxford.^® A crítica, feita por Andrew Thomson, de que a ideia de Owen de comunhão distinta entre o crente e cada um a das pessoas da Trindade ia além das Escri­ turas®^ não fez justiça à erudição cuidadosa e bíblica de Owen. A avaliação de Reginald Kirby foi mais correta: “Owen está apenas expondo aquilo que é a experiência daqueles que chegam a entrar em com unhão com Deus e mostra que a doutrina da Trindade está baseada na experiência hum ana bem como na revelação divina”.'“’ O conceito de Owen de com unhão com “pessoas distintas” foi alvo da crítica de Dale Stover: “quando Deus é conhecido dessa forma filosófica, então a epistemologia é inevitavelmente separada da soteriologia’U’ Mas essa acusa­ ção era improcedente. Conforme veremos, a C o m m u n io n w ith God de Owen na verdade combinou espiritual e biblicamente o conhecimento de Deus e a história dos atos salvíficos de Deus. Seu estudo foi muito mais um sermão do que um a aula de filosofia. Para Owen, a comunhão entre um crente e qualquer pessoa da Trindade era um relacionamento vivo e de troca m útua. Essa com unicação mútua tem de acontecer em Cristo e por meio dele, pois sem Cristo não pode existir nenhuma com unhão entre Deus e o hom em . Dewey Wallace escreveu que, para Owen, “entra-se [nesse tipo de] com unhão apenas através da ‘porta’ da ‘graça e da misericórdia perdòadora’, que foram com pradas para os eleitos pelos méritos de Cristo”.'’^ Desde o início, Owen deu ênfase cristológica a sua estrutura trinitária. Afirmou que a com unhão com Deus “consiste em sua co m u n ica çã o d e si m esm o a nós, co m n ossa retribuiçã o a ele daquilo que ele exige e aceita,

como resultado dessa u n iã o que, em Jesus Cristo, tem os com ele”.'*® Ferguson observou que, para Owen, “tanto a união com Cristo, que dá ao cristão sua posição diante de Deus, quanto sua com unhão com Deus, que é fruto dessa posição, são assim incluídas na noção de com unhão, e esse é o sentido com que Owen em geral emprega a expressão”.^'’ ^®Veja Andrew Thomson, “Life of dr. Owen”, in: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Thith TTust, 1965), l:Lxxii-lxxiii; Reginald Kirby, The threefold bond (London: Marshall, Morgan, and Scott, s.d.), p. 25. ^Thomson, “Life of dr. Owen”, in: Owen, Works, l:lxxii. “ Kirby, Threefold bond, p. 25. “'Stover, “The pneumatology of John Owen”, p. 304. “^Dewey D. Wallace Jr., “The life and thought of John Owen to 1660: a study of the signi­ ficance of Calvinist theology in English Puritanism” (tese de doutorado, Princeton University, 1965), p. 265. “^Owen, Communion with God, in: Works, 2:8. ““Ferguson, John Owen on the Christian Life, p. 75.

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Contudo, Owen não destacou Cristo à custa do Pai e do Espírito com um cristomonismo falso e desequilibrado. Para Owen, o teocentrismo e o cristocentrismo cam inhavam juntos com o amigos, não com o rivais. E R. Entwistle assinalou: “Às vezes propõe-se a ideia de que a teologia cristológica moderna honra mais a Cristo do que o trinitarismo do passado e é com tal proposta que tal teologia atrai o cristão. Mas não é assim. O trinitarismo pleno de Owen não honra menos a Cristo: dar glória ao Pai e ao Espírito não diminui a glória do Filho”.^^ Conforme Richard Daniels com entou, “parece que o verdadeiro pensamento trinitário precisa ser cristocêntrico, e o pensamento cristocêntrico, trinitário ”.‘‘® Em conformidade com essa estrutura, Owen ensinou que há papéis ou economias distintas para o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ele disse que a pri­ meira pessoa, 0 Pai, é in iciad ora, aquele que escolhe quem e com o irá salvar. A segunda pessoa é o Filho e Verbo/Palavra de Deus, que espelha a nature­ za do Pai e, como Mediador, faz a vontade paterna para re d im ir pecadores. A terceira pessoa procede das duas primeiras na condição de executivo delas, comunicando aos eleitos de Deus a certeza de sua salvação. Owen ensinou repetidas vezes que há um a econom ia divina de operação em que cada pessoa assum e um papel na obra de Deus, um papel que reflete as relações pessoais na Trindade. O Pai atua como origem, autoridade, fonte, iniciador e enviador; o Filho com o executor da vontade do Pai, tesouro das riquezas paternas, fundamento, trabalhador, adquiridor e realizador; o Espírito como completador, acabador, eficácia imediata, fruto e aplicador. Isso não sig­ nifica dividir as obras de Deus e distribuí-las entre as três pessoas — as obras externas da Tf-indade são indivisas — , m as reconhecer que em cada obra de Deus as três pessoas cooperam de maneiras distintas.“!’ Uma vez que as três pessoas estão ativas na salvação, outorgando benefícios distintos de acordo com seus papéis, o crente deve reconhecer claramente cada pessoa. “Não há nenhum a graça em que nossa alma vá até Deus, nenhum ato de adoração prestado a ele, nenhum dever cumprido, nenhum a obediên­ cia prestada — que não sejam distintamente dirigidos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”.“® Tendo situado o estudo de Owen nesse contexto, examinaremos em seguida 0 ensino específico de Owen sobre a com unhão com o Deus triúno. R. Entwistle, “Some aspects of John Owen’s doctrine of the person and work of Christ”, in: Faith and a good conscience ([London]: Puritan and Reformed Studies Conference, 1962), p. 51. “ Richard Daniels, The Christology o f John Owen (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2004), p. 5. ^^Owen, Works, 1:219-20; 2:15-9, 198-9, 228; 3:92-4, 393; 10:163-79. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:15.

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Comunhão distinta com Deus em três pessoas Ao formular as maneiras de comunhão que os crentes desfrutam distintamente com cada pessoa da Trindade, Owen se baseou em 2Coríntios 13.13: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o am or de Deus e a com unhão do Espírito Santo sejam com todos v ó s”.

Comunhão com o Pai: am or Os santos têm com unhão especial com o Pai em “seu am or — amor livre, imerecido e eterno” (IJo 4 .8 ,9 ; 2Co 13.13; Jo 1 6 .2 6 ,2 7 ; Rm 5 .5 ,6 ).“®O amor do Pai é “a fonte de onde fluem todas as demais doçuras” e o manancial de toda graça.“ Owen destacou a natureza soberana e divina do am or do Pai como um am or que está acim a de todo am or humano e assim o descreveu: • “E terno. Foi um am or estabelecido em nosso favor antes da fundação do mundo. Antes de existirmos ou antes de term os feito qualquer bem, os pensamentos de Deus já estavam voltados para n ó s.” • “Livre. Ele nos am a porque quer. Em nós não havia nem há nada pelo qual devamos ser am ados.” • “Im utável. Embora mudemos a cada dia, ainda assim seu am or não m u d a.” • “Distintivo. Ele não am ou assim todo o mundo [...] Por que deveria decidir nos am ar e ignorar milhões de quem, por natureza, não somos diferentes...?”“ Dessa maneira, Owen disse que o am or do Pai é diferente do nosso, até mesmo de nosso am or espiritual por ele. Owen escreveu: “É o am or daquele com total suficiência em si m esm o, daquele infinitamente satisfeito consigo mesmo e com suas excelências e perfeições gloriosas, daquele que não tem nenhum a necessidade de levar a outros seu am or nem de procurar fora de si um objeto para seu am or [...] Ademais, tinha seu Filho, sua Sabedoria eterna, com quem podia se regozijar e se alegrar desde toda a eternidade”.“ O Pai não am a os santos por causa de solidão ou de necessidade, mas por causa de sua total suficiência abundante e do regozijo que tem em seu Filho. O am or do Pai é “um am or de generosidade”, mas nosso am or a Deus é “um am or de dever”. O am or do Pai é “am or antecedente”, sempre existindo ‘‘^Owen, Communion with God, in: “Owen, Communion with Cod, in: ®'Owen, Communion with God, in: “Owen, Communion with God, in:

Works, 2:19. Works, 2:22. Works, 2:33-4. Works, 2:32.

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antes do nosso; nosso am or pelo Pai é “am or consequente”, é sempre nossa resposta a ele. Mesmo quando Deus repreende e disciplina seus filhos, ele os ama da m esm a maneira. E Owen antecipou a objeção: “Mas então ele am a seu povo enquanto este peca? Sim, am a seu povo, não o seu p ecar”.” Tendo o cuidado de não apresentar o am or de Cristo como um amor que foi conquistado de um Pai relutante, Owen insistiu que as raízes mais profundas do amor divino estão no seio do Pai. Também afirmou que o Pai se alegra em conferir am or divino aos eleitos (Fp 1.28). E as referências bíblicas ao amor de Deus tratam com mais frequência do am or do Pai. As palavras de Cristo “o próprio Pai vos am a” (Jo 16.27) dão ao crente a certeza do papel de Deüs Pai em sua s a l v a ç ã o .K a y escreve: “O Pai não am a seu povo por causa da mediação de Cristo. Pelo contrário, a m ediação de Cristo é o desdobramento do amor anterior do Pai. Para Owen o am or do Pai é o impulso para todo o plano de salvação, incluindo o envio do Filho”.” O am or do Pai requer que os crentes respondam “com uma comunhão total com o Pai em am or”, recebendo o am or paterno e “retribuindo apropria­ damente ao Pai”. Recebem o am or “pela fé”. Aqui Owen, citando João 1 4 .6 ,” tem 0 cuidado de fazer as devidas ressalvas à sua afirm ação, de modo a não incentivar “um a ação imediata de fé no Pai senão por meio do Filho”. Mediante um constante reconhecim ento de Cristo com o o único Mediador entre Deus e os homens, a teologia trinitária de Owen perm anece cristocêntrica. Contudo, olhando para o Filho, vemos o Pai, assim como vemos o sol nos raios de luz que brilham dele. Owen escreveu: “No que diz respeito ao amor do Pai, Jesus Cristo é apenas o feixe, o raio, em que de fato repousa toda nossa luz, todo nosso refrigério. Mas, ainda assim , por meio dele somos conduzidos à fonte, ao sol do am or eterno em si [i.e., o Pai]. Dessa forma, sendo a alma mediante a fé por meio de Cristo [...] levada ao seio de Deus, assim adquirindo uma convicção serena, um a percepção espiritual e uma sensação de seu amor, e ali repousa e d escansa”. Assim sendo, os crentes devem sempre confiar no Pai como alguém “benigno, bondoso, terno, amoroso e imutável [...] como 0 Pai, como a grande fonte e nascente de todas as com unicações graciosas e frutos de am or”.^^ Ao receber o amor do Pai por meio de Cristo, o crente, que tem o amor do Pai no coração, devolve esse am or ao coração do Pai, de onde o am or se originou. ®^Owen, Communion with God, in: Works, 2:28-30. ®‘‘Owen, Communion with God, in: Works, 2:20. ^^Kay, Trinitarian spirituality, p. 127. ®^Owen, Communion with God, in: Works, 2:22. 5^0wen, Communion with God, in: Works, 2:23. 0 sol e a fonte são exemplos raros de Owen empregando metáforas trinitárias patrísticas. Cf. Kapic, Communion with Cod, p. 169-70.

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Esse am or retribuído consiste em descanso, alegria, reverência e obediência.^® Owen afirmou que, ao enfrentar obstáculos para am ar a Deus, o cristão deve contem plar a natureza do am or do Pai. Primeiro, o crente deve lembrar-se de não inverter a sequência que Deus estabeleceu para o amor, achando que o am or do crente vem primeiro. Segundo, deve m editar na natureza eterna e na imutabilidade do am or do Pai. Terceiro, deve se lembrar de que a cruz de Cristo é o sinal e o selo do am or de Deus, assegurando-lhe que o am or a n te­ ce d e n te do Pai conquista por meio do Mediador o am or c o n seq u e n te do fiel.®®

Aquele que retribui ao Pai com tais m editações terá a certeza do am or do Pai. Conforme escreveu Owen, “desde a fundação do mundo nunca alguém que chegou a crer em tal am or do Pai, e a lhe retribuir tal amor, foi enganado [...] Se crês no Pai como am or e assim o recebes, ele infalivelmente será para ti Pai de am or”.“ O fervor com que Owen expõe o am or do Pai deve acabar com a visão distorcida de que a teologia reformada é um exercício estéril de lógica aristotélica em que o am or de Deus tem pouca importância.®'

Comunhão com o Filho: graça Como os santos desfrutam da comunhão com Cristo? Owen retom a a 2Coríntios 13.13: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o am or de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vó s”. Ao passo que os crentes comungam com o Pai em amor, com o Filho com ungam em “graça”. Cristo é o Mediador da nova aliança, e a nova aliança é a aliança da graça. A graça está nele e é em todo lugar atribuída a ela (Jo 1.14). Ao receber a Cristo, o crente recebe a graça. Conforme diz João 1.16, “Pois todos recebem os da sua plenitude, graça sobre graça”. A missão de Cristo é a essência da graça. Cristo convida os crentes a ter com unhão com ele. Owen citou as palavras de Cristo: “Estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele com igo” (Ap 3 .2 0 ). Sentar-se à m esa com Cristo, com Cristo se alegrando em ver suas graças nos santos e os santos se banqueteando com a glória de Cristo — isto era para Owen o auge do prazer espiritual, m erecedor das expressões poéticas mais sensuais de Cântico dos Cânticos.®® A com unhão com Cristo alimenta a alma com doçura, alegria, segurança e consolo.®^ Owen fez um a análise mais específica da graça ^*Owen, Communion with God, in: Works, ™Owen, Communion with God, in: Works, “ Owen, Communion with God, in: Works, ^'Kapic, Communion with God, p. 168. “Owen, Communion with God, in: Works, “Owen, Communion with God, in: Works, “Owen, Communion with God, in: Works,

2:28. 2:29. 2:36-7. 2:47; 3:414. 2:40. 2:44.

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de Cristo, fazendo distinção entre “graça pessoal”, concentrando-se na pessoa de Cristo, e “graça com prada”, concentrando-se na obra de Cristo.®^ 1. C o m un hã o co m Cristo e m su a g ra ça p esso a l

Com “graça pessoal” Owen não queria dizer a divindade de Cristo considerada em termos abstratos ou a aparência física de seu corpo hum ano, m as a beleza espiritual do Deus-homem com o nosso Mediador cheio de graça (cf. SI 4 5 .2 ).“ Em seguida, com base em Cântico dos Cânticos, ele passa a explicar tanto a encarnação e a “plena capacidade [de Cristo] para salvar [...] mediante a unção do Espírito” (citando Jo 1.16; 3.34) quanto o “seu mérito para granjear a simpatia, por ter plena condição de atender a todas as necessidades das almas dos hom ens”.*^ Os santos desfrutam da com unhão com Cristo em sua graça pessoal “por meio de um a relação conjugal [...] em que existem sentimentos conjugais apropriados”, ou seja, marido e mulher espirituais.“ Ela inicia quando “Cristo se dá à alm a”, e os santos “recebem o Senhor Jesus, acolhem -no e subme­ tem-se a ele, tratando-o com o seu m arido, senhor e salvador”.“ Isso desperta sentimentos de prazer mútuo, de “apreciação” (estima) m útua. A “piedade ou com paixão” de Cristo estimula a reação de “castidade” na igreja; a “gene­ rosidade” de Cristo, a reação de “dever” ou de um a vida de santidade.^“ Um aspecto notável desse ensino puritano é a ênfase que Owen dá ao prazer que o Senhor tem com seu povo: “A ideia de ter com unhão com os santos foi, desde a eternidade, a alegria de seu co ração ”.^' Assim como ocorre em sua exposição do amor do Pai, o exame que Owen faz da comunhão com Cristo em sua graça pessoal deve destruir qualquer ideia errônea de que a ortodoxia reformada é uma empreitada emocionalmente árida e hiperintelectual. Kay afirma: “Owen deseja de alguma forma enfatizar que as ações forenses e pactuais de Cristo estão, no final das contas, a serviço de um relacionamento pessoal, face a face, entre dois amantes, um noivo e uma noiva.^^ Owen usou a doutrina para insuflar as afeições em cham as de amor a Cristo. ®^Owen, Communion with God, in: Works, 2:47-8. Adiante em seu estudo, Owen voltou a se referir às "duas fontes” da graça de Cristo, “a graça de sua pessoa e a graça de seu ofício e obra”. Communion with God, in: Works, 2:263. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:48. ^'Owen, Communion with God, in: Works, 2:51-2. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:54. Owen citou Ct 2.16; Is 54.5; 61.10; 62.5; Os 2.19,20; 2Co 11.2; Ef 5.25. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:56, 58. ™Owen, Communion with God, in: Works, 2:118. Cf. p. 118-54 para explicação completa que Owen dá acerca de cada elemento dos sentimentos. ''Owen, Communion with God, in: Works, 2:118. "Kay, Trinitarian spirituality, p. 161.

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Ao explicar a relação conjugal entre Cristo e seu povo, Owen utilizou a poesia de Cântico dos Cânticos. Acerca desse livro da Bíblia, Owen escreveu; “A convicção mais generalizada entre os estudiosos é que o livro todo é uma única e santa declaração daquela com unhão misticamente espiritual que existe entre o grande noivo e sua esposa, o Senhor Cristo e sua igreja e cada alma crente que pertence a ela’7^ Isso não quer dizer que Owen tenha baseado em Cântico dos Cânticos sua cristologia, ou mesmo os aspectos práticos dela. Pelo contrário, ele via a poesia desse livro com o ilustração da experiência cristã de com unhão com Cristo. Essa experiência é definida por outras passagens, em especial aquelas que revelam a obra objetiva de redenção. Ferguson assinalou: “Ele não subjetiviza Cristo a ponto torná-lo místico, m as, antes, procura des­ crever a experiência subjetiva do Cristo objetivo, acerca de quem o restante das Escrituras dá testem unho”.^'* Cristo corteja e conquista sua noiva num relacionamento que se torna cada vez mais profundo. Nesse casamento espiritual, os crentes preservam seu prazer em Cristo quando impedem que seus corações descansem em qualquer outra coisa que não “o S enhor, nossa J ustiça ” (Jr 2 3 .6 ). Owen escreveu: “Aquele que tem com unhão com Cristo age assim: vigia diária e diligentemente seu próprio coração para que nada penetre sorrateiramente em seus sentimentos e somente Cristo lhe dê qualquer paz ou segurança diante de Deus”.” 2. C o m u n h ã o co m Cristo e m su a g ra ça co m p ra d a Graça com prada é, para Owen, “toda aquela justiça e graça que Cristo obteve [...] por qualquer coisa que fez ou sofreu ou por qualquer coisa que continua a fazer com o m ediador”.” Temos com unhão com Cristo em sua obra porque “não há praticamente nada que Cristo — que é a fonte daquela graça de que falamos — faça que nós não façam os junto com ele”, seja sofrer crucificação, morrer, ressuscitar ou sentar nos lugares celestiais.*'*' A “graça com prada” em particular consiste nas três graças de (1) “aceitação com [diante de] Deus” (justificação), (2) “santificação da parte de Deus” e (3) “privilégios com Deus e perante ele” (adoção e seus benefícios).*'® Para adquirir ”John Owen, "To the reader”, in: James Durham, The Song o f Solomon (reimpr., Edinburgh: Banner of Ttuth Thist, 1997), p. 21. ^“Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 78. ”Owen, Communion with God, in: Works, 2:146. '^Owen, Communion with God, in: Works, 2:154. Quanto ao uso que Owen faz da expressão “graça comprada” e de salvaguardas que adotou em seu emprego, veja Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 86-8. "Owen, Communion with God, in: Works, 2:155. Citou Rm 6.4; G1 2.20; Ef 2.5,6; Cl 2.12,13; 3.1,3; 2Tm2.11. ^®Owen, Communion with God, in: Works, 2:169. O Catecismo Menor de Westminster (per­ gunta 32) apresentou uma definição parecida de que nesta vida os principais benefícios da chamada eficaz são “justificação, adoção e santificação”.

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nossa aceitação diante de Deus, Cristo obedeceu não para seu próprio benefí­ cio, mas por nós; sofreu não por seus próprios pecados, mas pelos nossos. No m:-mento presente Cristo oferece com “muita bondade” as “mais sublimes” picm essas do evangelho e envia seu Espírito Santo para que os mortos ouçam sua voz e vivam.^® Os santos respondem com pesar pelo pecado, abandonando a esperança em sua própria justiça, regozijando-se com a justiça de Cristo e fazendo uma troca consciente da própria justiça pela de Cristo.“ Dessa forma, nas palavras de Hamilton, estão “aprovando e adotando a forma divina de salvação” que é revelada no evangelho de Cristo.®' Quanto à graça da “santificação”, o Senhor Jesus intercede junto ao Pai, com base na aquisição que realizou para obter o Espírito Santo para os seus e envia esse Espírito aos corações dos crentes para que produza neles a graça habitual e também toda verdadeira boa obra.®^ Os santos olham para Cristo como seu “grande Jo sé ”, que lhes distribui comida celeste.®® Olham para seu sangue derramado no Calvário não apenas para expiação, mas também purifi­ cação de toda impureza; olham o sangue aspergido sobre suas almas por meio das promessas; e anseiam que seu Espírito habite neles para continuamente despertá-los ou vivificá-los e para agir por meio deles em cada santa ação da alma.®^ Owen disse que Cristo “deve ser neles com o um a fonte de água que brota para a vida eterna [...] Esse é o caminho deles, essa é sua comunhão com Cristo; essa é a vida de fé no que diz respeito à graça e à santidade”.®® Na graça com prada do “privilégio”. Cristo conduz seus seguidores para a fruição das liberdades espirituais dos filhos de Deus.®® Owen escreveu: “A adoção é a transferência oficial do crente, feita por Jesus Cristo, da famí­ lia do mundo e de Satanás para a família de Deus, sendo investido de todos os privilégios e benefícios daquela família”.®'’ Por meio de Cristo, o cristão experimenta o livramento do castigo do pecado e de seu poder escravizador. Também experimenta a liberdade em seus novos privilégios familiares, como 0 poder dinâmico de obedecer com prazer, o direito às regras da família da fé, a esperança de um a herança futura, as provisões de um Pai am oroso, ousadia junto a Deus e correção pela disciplina paternal.®® Embora a adoção seja um ^Owen, Communion with God, in: Works, 2:173-5. ®°Owen, Communion with God, in: Works, 2:187-94. As páginas 176-87 são respostas de Owen a objeções à expiação substitutiva e à justiça imputada de Cristo. “'Hamilton, “Communion with God”, in: Reformed spirituality, p. 68. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:197-202. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:203. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:203-7. ““Owen, Communion with God, in: Works, 2:206. ““Owen, Communion with God, in: Works, 2:207-15. Cf. 2:173; Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 89-90, 97. “^Owen, Communion with God, in: Works, 2:207. ““Owen, Communion with God, in: Works, 2:211-22.

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ato de Deus Pai (IJo 3 .1 ), Owen a incluiu na com unhão com Cristo porque o crente obtém a adoção pela união com Cristo.®® Na conclusão de seu estudo sobre a com unhão com o Filho, Owen esboçou 0 que Kelly chamou de “a plenitude de comunhão com o Filho possibilitada me­ diante a ad oção”.®“ Owen escreveu que com o Filho de Deus temos o seguinte: • “comunhão no n o m e ; somos (assim como ele é) filhos de Deus”; • “comunhão nas prerrogativas e nos direitos; somos herdeiros, coerdeiros com Cristo”; • “com unhão na se m elh a n ç a e na conformidade; somos predestinados a ser como o primogênito da família”; • “com unhão na h o n ra ; ele não se envergonha de nos cham ar de irm ãos”; • “com unhão nos so frim en to s; ele aprendeu a obediência com aquilo que sofreu, e cada filho recebido deve ser açoitado”; • “com unhão em seu rein o; reinaremos com ele”.®' Em outro trecho, Owen explicou que a ceia do Senhor oferece aos crentes uma oportunidade especial de comungar com seu Senhor. Escreveu: “Na ordenança da ceia do Senhor há uma comunhão especial e peculiar que se deve alcançar com Cristo mediante seu corpo e sangue”.®^ O propósito de Deus com a ceia é levar nossa fé a se concentrar especificamente no sofrimento humano do Filho de Deus e em sua morte — Filho que foi enviado pelo amor do Pai e morte que é exigida pela justiça de Deus e foi planejada para tom ar conhecida a glória de Deus.®® Dois terços do estudo de Owen sobre a comunhão com Deus tratam do tema da com unhão específica com o Filho. Embora toda com unhão entre Deus e o hom em envolva as três pessoas divinas, o Filho recebe probminência especial. Isso está de conformidade com o entendimento de Owen de que o Filho é o Mediador designado na aliança. Cristo é o Deus-homem, e toda comunhão com Deus foi com prada por ele e é mediada por ele somente.

Comunhão com o Espírito: consolo Owen escreveu: “O alicerce de toda nossa com unhão com o Espírito Santo [consiste] em sua missão, isto é, seu envio por Jesus Cristo para ser nosso ®SinclairB. Ferguson, “Doctrine of the Christian life in the teaching of Dr John Owen (1616-83)” (tese de doutorado. University of Aberdeen, 1979), p. 175-6. ™Kapic, Communion with God, in: The devoted life, p. 177. ®'Owen, Communion with God, in; Works, 2:222. “Owen, Sacramental discourses, in; William H. Goold, org.. The works of John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Tïuth Thist, 1965), 9:523. “Owen, Sacramental discourses, in: Works, 9:525-6.

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consolador”.®'* Owen entendia que o título p a m k leto s significava “consolador”, a resposta de Cristo à tristeza dos discípulos em face da partida iminente dele (Jo 16.6,7). Embora os eleitos experimentem passivamente a regeneração pelo Espírito como se fossem muitos ossos secos (Ez 3 7 .1 -1 4 ), os crentes colocam a confiança nas promessas do consolo do Espírito e oram para recebê-lo e in­ tercedem por sua obra neles (G1 3 .2 ,1 4 ; Jo 7.37-3 9 ; Lc 11.13).®^ Desse modo, os crentes têm a responsabilidade de buscar o Espírito. Owen fez um a lista dos efeitos do Consolador na vida dos crentes, m os­ trando repetidas vezes que o Espírito ensina os crentes sobre o am or e a graça de Deus para com eles. Owen identificou nove maneiras em que o Espírito tem comunhão com o crente. O Espírito; (1) ajuda o crente a se lembrar das palavras de Cristo e ensina o que elas significam; (2) glorifica a Cristo; (3) derrama o am or de Deus no coração do cristão; (4) dá testemunho ao crente de que ele é filho de Deus; (5) sela a fé no cristão; (6) na condição de penhor de nossa herança, dá ao crente certeza da salvação; (7) unge o crente; (8) na condição de Espírito que habita no crente, derrama abundantemente o am or de Deus no coração do crente ; e (9) torna-se para o crente o Espírito de súplica.®® Essas obras do Espírito Santo produzem nos crentes consolação, paz, alegria e esperança.®*' O Espírito Santo produz resultados concretos na expe­ riência dos crentes, experiência que gira em torno de Cristo conforme revelado nas Escrituras. Assim Owen rejeitou tanto os racionalistas que descartavam a experiência operada pelo Espírito quanto os fanáticos cujo “espírito” descon­ siderava a Palavra e Cristo.®® Um exemplo da obra do Espírito é seu testemunho no “tribunal da cons­ ciência”, testificando de que o crente é filho de Deus (Rm 8 .1 6 ). Owen explicou isso, ilustrando com o trabalho da acusação e da defesa num tribunal. A alma, impelida por sua própria consciência, é levada à presença da lei de Deus. Ali a pessoa coloca em sua petição que é filha de Deus, que pertence à família de Deus e, para isso, apresenta todas as suas provas, todas as coisas mediante as quais a fé lhe dá benefícios junto a Deus. Nesse mesmo tempo, Satanás se opõe com toda sua força; o pecado e a lei o ajudam; muitas deficiências são encontradas nas provas; a veracidade de todas é posta em dúvida; e a alma aguarda em suspense a decisão. Em meio à petição e à contestação, o Consolador vem e, com uma palavra de promessa ou alguma outra palavra (e derrubando todas as objeções), subjuga o coração com uma convicção encoraj adora de que sua súplica é boa e ele é filho de ^‘‘Owen, Communion with God, in: Works, 2:222. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:224-5, 231-2. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:236-49. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:250-3. Ele citou At 9.31; Rm 14.17; 15.13; G1 5.22; ITs 1.6. “Owen, Communion with God, in: Works, 2:254-8.

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Deus [...] Quando nossos espíritos estão suplicando aquilo a que têm direito, ele vem e dá testemunho em nosso favor e, ao mesmo tempo, nos capacita a executar atos de obediência filial, ou seja, atos bondosos e próprios de um filho. É isso que significa “clamar: Aba, Pai” (G14.6).” Owen explicou que o processo judicial pode ser longo antes de ser decidido — pode durar até anos, com o o próprio Owen experimentou*“ — , mas quando “o Espírito Santo com uma única palavra silencia as agitações e tempestades que surgem na alm a, dando-lhe direito e segurança imediatos, a alma conhece 0 poder do Espírito Santo e se regozija em sua presença”.*“ Considere-se tam bém a descrição que Owen faz de com o o Espírito Santo é p e n h o r/g a ra n tia para o crente (2Co 1.22; 5 .5 ; Ef 1 .1 3 ,1 4 ). Ele definiu penhor com o aquela “parte do preço de qualquer coisa ou parte de qualquer direito [que é] dada antecipadam ente para assegurar à pessoa a quem é dada de que na data estipulada receberá a totalidade daquilo que lhe é prometido”.*“ Deus dá o Espírito Santo aos crentes com o garantia de que receberão a herança de vida eterna. Owen explicou: “A herança integral prometida é a plenitude do Espírito no prazer em Deus”. Recebemos o Espírito agora “para nos preparar para termos certa medida de prazer em Deus”, um a porção ou antegozo de nossa herança.*“ No Espírito Santo nossa graça presente é parte integrante de nossa glória futura. A garantia subjetiva do Espírito com plem enta as prom essas objetivas das Escrituras na prom oção da segurança dos crentes.*“* Owen escreveu: "De modo que em todos os aspectos ele é um penhor absoluto — dádiva divina que recebem os como primeira parte de nossa herança e com o certeza dela. O tanto que tem os do Espírito já tem os do céu ”.***^ Tendo em vista a ampla e variada obra do Espírito Santo nos eleitos de Deus, 0 que significa ter com unhão com o Espírito? Qual é a essência de seu ’’Owen, Communion with God, in: Works, 2:241. '“Owen comentou: “Eu mesmo preguei Cristo durante alguns anos em que não tive ne­ nhuma ou quase nenhuma experiência pessoal de acesso a Deus por meio de Cristo, até que o Senhor se agradou de me visitar com dura aflição em que quase morri e na qual minha alma foi esmagada por pavor e trevas. Mas em sua graça Deus deu alívio a meu espírito, aplicando com poder Salmos 130.4, ‘Mas o perdão está contigo, para que sejas temido’. Nessa passagem, recebi orientação, paz e consolo especiais ao me aproximar de Deus por meio do Mediador”. Citado na nota do prefácio de “A practical exposition upon Psalm CXXX”, in; William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Hust, 1965), 6:324. ""Owen, Communion with God, in: Worfes, 2:242. A ilustração do tribunal da consciência também foi empregada por teólogos holandeses, tais como Alexander Comrie (1706-1774). '“Owen, Communion with God, in: Works, 2:243-4. '“Owen, Communion with God, in: Works, 2:245. '“ Owen, Communion with God, in: Works, 2:245. '“Owen, Communion with God, in: Works, 2:246.

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consolo e amparo? O Espírito consola os crentes, pondo-os em com unhão com 0 Pai e com o Filho. Owen escreveu: Todas as consolações do Espírito Santo consistem em ele nos familiarizar com o amor do Pai e a graça do Filho e em nos comunicar esse amor e graça. E não existe nada nem no Pai nem no Filho que ele não torne motivo de consolação para nós, de maneira que, pela operação do Espírito Santo, temos, de fato, comunhão com 0 Pai em seu amor e com o Filho em sua graça.'“ Isso explica a descrição b in á ria de com unhão nas Escrituras com a qual Owen iniciou seu estudo sobre a com unhão trinitária: “a nossa com unhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (IJo 1.3b; veja tb. Jo 14.23; 17.3). O Espírito Santo está implícito e não excluído. Ele é o agente imediato de comunhão com o Pai e com o Filho. Embora Owen não o diga explicitamente, aparentem ente isso trata do terceiro elemento da passagem bíblica que citou acerca da com unhão com o Pai e com o Filho: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a co ­ munhão do Espírito Santo sejam com todos vó s” (2Co 13 .1 3 ). Ao passo que temos com unhão com o Pai em seu “am or” e com o Filho em sua “graça”, a comunhão com o Espírito é cham ada apenas de “com unhão”, pois no Espírito os crentes com ungam com o Pai e com o Filho. Assim, conforme Ferguson, o Espírito possibilita a oração ao Pai por meio do Filho, de modo que a oração cristã penetra “na própria natureza da Trindade econôm ica e no caráter da relação intertrinitária”.'“'' Em termos ontológicos, a operação em que o Espírito leva crentes à com unhão com o Pai e o Filho deriva de sua procedência eterna ou de ser soprado (Jo 2 0 .2 2 ), por assim dizer, por am bos.“ ®O Espírito Santo vem até nós com o o Espírito de Deus Pai e o Espírito de Deus Filho. Podemos representar visualmente esse princípio do ponto de vista da des­ cida e da subida, tal com o Owen fez em sua análise sobre o Espírito Santo. Owen afirmou que a graça de Deus desce até nós da parte do Pai por meio do Filho e, finalmente, na obra do Espírito Santo em nós. Da mesm a m aneira, a obra do Espírito Santo nos crentes é o início de sua subida, por meio do Filho, até 0 Pai. O crente não pode depender apenas do Espírito Santo, pois o Espírito 0 leva a clam ar “Aba, Pai” !'“ Não se deve ver esses passos de descida e subida como se referindo a diferentes níveis de existência dentro da divindade nem a diferentes etapas cronológicas, mas como um a ordem nas relações dentro '“Owen, Communion with God, in: Works, 2:262. '“Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 228. '“Owen, Pneumatologia, or, a discourse concerning the Holy Spirit, in: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Triist, 1965), 3:55. '“ Owen, Pneumatologia, in: Works, 3:200.

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da Trindade, visto que as três pessoas cooperam no empreendimento divino de salvação. Desse modo, o Espírito Santo comunga com os crentes de acordo com a promessa do Senhor Jesus em João 16.14,15: “Ele me glorificará, pois receberá do que é meu e o anunciará a vós. Tlido quanto o Pai tem é meu; por isso eu vos disse que ele, recebendo do que é meu, o anunciará a vós”. Owen assim explicou esse texto: “Assim, então, ele é um consolador. Revela às almas dos pecadores as coisas boas da aliança da graça, a qual o Pai proporcionou e o Filho comprou”.'“ Owen apresentou três maneiras gerais de com o alguém deve responder ao Espírito. Não deve “entristecer” o Espírito (Ef 4 .3 0 ; Is 6 3 .1 0 ), mas, antes, “bus­ car em tudo a santidade” a fim de agradá-lo. Nem deve “apagar” as operações graciosas do Espírito em sua alma (ITs 5 .1 9 ), mas ser “cuidadoso e atento para empregá-las proveitosamente para que atinjam seu objetivo”. Por fim, não deve “resistir” (At 7.51) à “grande ordem da Palavra” dada pelo Espírito, m as, em vez disso, sujeitar-se com humildade ao ministério evangélico da igreja, ou seja, “curvar-se diante da Palavra”."' Desse modo, o crente oferece ao Espírito Santo um a submissão tão profunda que só pode ser cham ada de verdadeira adoração. Owen orienta os crentes a que “peçam todos os dias ao Pai em nome de Jesus Cristo [que lhes dê o Espírito]. Essa é a tarefa diária dos crentes: [...] pedi-lo ao Pai assim com o os filhos pedem aos pais o pão de cada dia [cf. Lc 11.11-13]”."^ Owen prosseguiu: “E, assim com o nesse pedir e receber o Espírito Santo temos com unhão com o Pai em seu amor, de quem o Espírito é enviado, e com o Filho em sua graça, mediante a qual o Espírito é obtido para nós, da mesm a maneira temos com unhão com o próprio Espírito por causa de sua condescendência voluntária para com esta dispensação. Cada pedido pelo Espírito Santo deixa implícito nosso envolvimento com todos eles. Quão abundante é a graça de D eus!”."^

Conclusão: a doçura de um relacionamento pessoal com a Trindade A Trindade é, portanto, um a doutrina a ser desfrutada pessoalmente na ex­ periência cristã. Owen escreveu: “Que vantagem tenho se eu sei debater que Cristo é Deus, mas não tenho em meu coração a percepção ou a doçura de que ele é um Deus em aliança com a minha alm a?”."'' '“Owen, Communion with God, in: Works, 2:239. "'Owen, Communion with God, in: Works, 2:264-8. ii^Owen, Communion with God, in: Works, 2:272 ”^Owen, Communion with God, in: Works, 2:272. "‘‘Owen, “The preface to the reader”, in: Vindiciae evangelicae, in: Works, 12:52.

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TEOLOGIA PURITANA Com bastante propriedade, Packer fez um a síntese do ensino de Owen;

“De acordo com Owen, esse deve ser, então, o padrão de nossa comunhão regular com as três pessoas da divindade em m editação, oração e uma vida devidamente disciplinada. Devemos dedicar tempo à misericórdia e ministério específicos que cada pessoa [da Trindade] tem conosco e dar distintamente a cada uma a resposta apropriada de am or e com unhão. Assim havemos de m anter uma com unhão plena com Deus”.“® Além do mais, a experiência de Deus como Trindade confirma e fortalece a fé na doutrina da Trindade. Owen escreveu: E esta é a natureza de todas as verdades do evangelho: são próprias e adequadas para serem experimentadas por uma alma que crê. Não há nada tão sublime e elevado [...] quanto uma alma graciosa que tem uma experiência de excelência, realidade, poder e eficácia em tudo isso [...] O que é tão elevado, glorioso e misterioso quanto a doutrina da sempre bendita TYindade? Alguns homens instruídos têm considerado sábio mantê-la oculta de cristãos comuns, e outros a têm apresentado com expressões tais que os cristãos comuns não conseguem entender nada. Mas reparemos na experiência do crente que (1) provou a grandeza da graça do Senhor no amor eterno do Pai, o grande empreendimento do Filho na obra de mediação e redenção, com a poderosa obra do Espírito gerando graça e consolo na alma, e (2) teve uma experiência com o amor, a santidade e o poder de Deus com todos eles, e com confiança ainda maior ele se apegará a essa verdade misteriosa, sendo a ela conduzido e nela confirmado por alguns poucos testemunhos diretos da Palavra mais do que por milhares de polemistas que só têm uma ideia sobre o assunto na sua mente.'“’ Por outro lado, Owen insistia em que a experiência que o cristão tem de Deus deve ser moldada pela autorrevelação trinitária de Deus. Por que a doutrina bíblica da Trindade é crucial para a experiência cristã? Em primeiro lugar, a doutrina da Trindade norm atiza nossa a doração a Deus. Se nossa adoração deve agradar a Deus, então tem de ser nossa resposta fiel àquilo que Deus fa­ lou sobre si. Essa é nossa adoração espiritual de Deus: comunhão com as três pessoas divinas. Owen parafraseou Efésios 2.1 8 assim: “Por meio dele (isto é, Jesus Cristo, o Filho de Deus) temos acesso por um Espírito (aquele santo e bom Espírito, o Espírito Santo) a Deus, que é o Pai”.'“' Ele advertiu: “Se não chegarmos a ela por meio de Jesus Cristo, ou se não a realizarmos na força do "^Packer, “The Puritan idea of communion with God”, p. 12. ii^owen, “A practical exposition upon Psalm CXXX”, in: Works, 6:459. "'Owen, “The nature and beauty of Gospel worship”, in: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1965), 9:57. Para facilidade na leitura, removemos as aspas com que Owen destaca expressões bíblicas.

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Espírito Santo, ou se nela não formos a Deus com o Pai, transgredimos todas as regras dessa adoração”.“® Em segundo, a espiritualidade trinitária é a única espiritualidade verda­ deiramente evangélica . Embora talvez possam os conceber um Criador sem fazermos referência à Trindade, de imediato a econom ia da salvação traz à luz as interações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo porque o Filho veio inigualavelmente na condição de Mediador encarnado. Owen disse que as obras de Deus em geral (com o a Criação) “são todas elas resultado das propriedades essenciais da m esm a natureza divina, que está em todos eles, ou, melhor, que é a natureza una de todos eles”.“®As pessoas da Trindade cooperam neces­ sariamente nas obras da Criação e da providência, porém não são manifestas exteriormente nas relações trinitárias. Mas isso não acontece com o evangelho da nossa salvação. O ofício de Cristo com o Mediador tanto revela a TOndade quanto estabelece com o deve ser nossa resposta ao evangelho de acordo com a Tírindade. Não conseguimos nos aproxim ar do Pai senão por meio do Filho mediante a capacitação dada pelo Espírito.^“ Owen afirma: “E essas coisas precisam ser prontamente observadas se queremos que nossa fé e am or e de­ veres de obediência sejam evangélicos”.'^' Em outras palavras, espiritualidade sem a Trindade é espiritualidade sem o evangelho — mera religião natural. Em terceiro, a doutrina da liindade torna a espiritualidade profundamente relacional e protege-a de se tornar uma experiência mística com uma divindade

impessoal ou até mesmo panteísta. Essa doutrina de um único Deus em três pessoas torna nossa relação com Deus profundamente pessoal. Isso é essencial

para uma comunhão verdadeira, pois Owen definiu comunhão como o comparti­ lhamento de coisas boas e prazerosas entre pessoas unidas entre si.'^® A doutrina de Owen sobre a comunhão divina realça as interações mútuas entre Deus e seu povo. Nessas interações o Senhor soberano dirige e os crentes respondem, mas tanto Deus quanto os homens andam juntos numa união pessoal. A doutrina da com unhão trinitária elaborada por Owen nos apresenta um excelente modelo de cristianismo reformado: profunda e ardorosamente bíblico. iisQwen, “The nature and beauty of Gospel worship”, in: Works, 9:57. "®Owen, Pneumatologia, 3:198. ‘“Owen, Pneumatologia, 3:199-200. Veja a análise desse texto em Kay, Prinitarian spirituality, p. 103-6. ‘^‘Owen, Pneumatologia, 3:200. ‘“Owen defendia que, visto que o conhecimento humano atual de Deus sem a revelação especial “não passa de uma partícula minúscula do conhecimento desfrutado pelo homem recém criado em seu estado inicial de inocência”, e visto que, antes da Queda, Adão conhecia apenas a aliança das obras e nada da promessa de Cristo, “então a conclusão inequívoca é que a salva­ ção não pode vir da teologia natural”. John Owen, Biblical theology, tradução para o inglês de Stephen P. Westcott (Morgan: Soli Deo Gloria, 1994), p. 45 (1.6). ‘23Qwen, Communion with God, in: Works, 2:8.

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doutrinário, empírico e prático. Kay, escrevendo que a teologia da aliança em Owen estava carregada de interações emocionais com Deus, descreveu a doutri­ na da com unhão trinitária de Owen com um a expressão talvez surpreendente: “escolasticismo protestante exercido com piedade”.'^“ Conforme disse Owen, Não houve nenhum outro mistério mais glorioso trazido à luz em Jesus Cristo e por meio dele do que aquele da Santíssima TTindade, isto é, da subsistência das três pessoas na unidade da mesma natureza divina [...] E recebemos essa revelação não para que nossas mentes estejam tomadas de noções sobre a THndade, mas para que saibamos perfeitãmente como colocar nossa confiança nele, como obedecerlhe e viver para ele, como obter e exercitar comunhão com ele até que cheguemos à fruição plena dele.'^®

'^■ 'Kay, Trinitarian spirituality, p. 124. i^sQwen, Pneumatologia, in: Works, 3:158.

Capítulo 7 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□a

William Perkins e a predestinação □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□aaaaanDaaaDaaaaDaaDaaa

Seu decreto determina o que será feito [...] Pois não existe nada superior à sua vontade. William Perkins'

William Perkins (15 58-1602), com frequência cham ado de “pai do puritanism o”, lançou os alicerces da piedade puritana ao aprofundar-se significativa­ mente na doutrina bíblica da predestinação divina. Para ele e para gerações de puritanos depois dele, aquilo que muitos têm descartado como doutrina irrelevante ou até mesmo irreverente era o sólido fundamento sobre o qual ergueram sua fé. Esse sólido fundamento era, na opinião de Perkins, nada menos do que o próprio Cristo. Com essa doutrina, chegamos perto do cerne da ideia puritana do evangelho, lain Murray afirma: “A doutrina da eleição era vital para os puritanos; acom ­ panhando Zanchi, acreditavam que ela ‘é o fio dourado que perpassa todo o sistema cristão’ e afirmavam que afastar-se dessa verdade poria a igreja visível sob o juízo e a indignação divinos”.^ Para os puritanos, a predestinação não era uma mera teologia ortodoxa; era fundamental para o evangelho e a piedade.^ 'William Perkins, The workes of that famous and worthy minister o f Christ in the Universitie o f Cambridge, Mr. William Perkins (London: John Legatt, 1612-13), 1:723 (doravante. Works). Este capítulo é uma versão revisada e condensada de Joel R. Beeke, “William Perkins on pre­ destination, preaching, and conversion”, in: Peter A. Lillback, org.. The practical Calvinist: an introduction to the Presbyterian and Reformed heritage, in honor ofD. Clair Davis (Fearn: Christian Focus, 2002), p. 183-213. ^lain Murray, “The Puritans and the doctrine of election”, in: D. Martyn Lloyd-Jones, org., Puritan papers. Volume one, 1956-1959 (Phillipsburg: P&R, 2000), p. 5. Veja Girolamo Zanchi, The doctrine o f absolute predestination (Perth: R. Morison Jr., 1793), cap. 5. ^Dewey D. Wallace Jr., Puritans and predestination: grace in English Protestant theology, J 525-J695 (ChapeTHill: University of North Carolina Press, 1982), p. 43-4.

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TEOLOGIA PURITANA Perkins tem sido avaliado por muitos teólogos.“ Eles têm apresentado co­

mentários tanto positivos quanto negativos acerca de seus interesses nas áreas de política, ética, avivamento e igreja. Alguns têm feito afirmações contradi­ tórias sobre a posição teológica dele, em particular na área da predestinação.^

‘Textos acadêmicos, dissertações e teses que contribuem para a compreensão da teologia de Perkins incluem lan Breward, “The life and theology of William Perkins” (tese de doutorado. University of Manchester, 1963); William H. Chalker, “Calvin and some seventeenth century English Calvinists” (tese de doutorado, Duke University, 1961); Lionel Greve, “Freedom and discipline in the theology of John Calvin, William Perkins, and John Wesley: an examination of the origin and nature of Pietism” (tese de doutorado, Hartford Seminary Foundation, 1976); Ro­ bert W. A. Letham, “Saving faith and assurance in Reformed theology: Zwingli to the Synod of Dort” (tese de doutorado. University of Aberdeen, 1979), 2 vols.; R. David Lightfoot, “William Perkins’ view of sanctification” (dissertação de mestrado em teologia. Dallas Theological Semi­ nary, 1984); Donald Keith McKim, Ramism in William Perkins’s theology (New York: Peter Lang, 1987); C. C. Markham, “William Perkins’ understanding of the function of conscience” (tese de doutorado, Vanderbilt University, 1967); Richard Alfred Muller, “Predestination and Christology in sixteenth-century Reformed theology” (tese de doutorado, Duke University, 1976); Charles Robert Munson, “William Perkins: theologian of transition” (tese de doutorado. Case Western Reserve, 1971); Willem Jan op’t Hof, Engelse piëtistische geschriften in het Nederlands, 1598­ 1622 (Rotterdam: Lindenberg, 1987); Joseph A. Pipa Jr., “William Perkins and the development of Puritan preaching” (tese de doutorado, Westminster Theological Seminary, 1985); Victor L. Priebe, “The covenant theology of William Perkins” (tese de doutorado. Drew University, 1967); Mark R. Shaw, “The marrow of practical divinity: a study in the theology of William Perkins” (tese de doutorado, Westminster Theological Seminary, 1981); Paul R. Schaefer Jr., The spiritual brotherhood on the habits o f the heart: Cambridge Protestants and the doctrine o f sanctification from William Perkins to Thomas Shepard (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2011); Rosemary Sisson, “William Perkins” (dissertação de mestrado. University of Cambridge, 1952); C. J. Sommerville, “Conversion, sacrament and assurance in the Puritan covenant of grace to 1650” (dissertação de mestrado. University of Kansas, 1963); Young Jae Timothy Song, Theology and piety in the Reformed federal thought o f William Perkins and John Preston (Lewiston: Edwin Mellen, 1998); Lynn Baird Tipson Jr., “The development of a Puritan understanding of conver­ sion” (tese de doutorado, Yale University, 1972); J. R. Hifft, “William Perkins, 1558-1602” (tese de doutorado, Edinburgh, 1952); Jan Jacobus van Baarsel, William Perkins: eene bijdrage tot de Kennis der religieuse ontwikkeling in Engeland ten tijde, van Koningin Elisabeth (’s-Gravenhage: H. P. De Swart & Zoon, 1912); William G. Wilcox, “New England covenant theology: its precur­ sors and early American exponents” (tese de doutorado, Duke University, 1959); James Eugene Williams Jr., “An evaluation of William Perkins’ doctrine of predestination in the light of John Calvin’s writings” (dissertação de mestrado em teologia. Dallas Theological Seminary, 1986); Andrew Alexander Woolsey, “Unity and continuity in covenantal thought: a study in the Refor­ med tradition to the Westminster Assembly” (tese de doutorado. University of Glasgow, 1988). “Tanto os crfticos quanto os defensores de Perkins concordam que no pensamento reformado ele serviu de elo importante entre Beza e a Confissão de Westminster. Entre os que entendem que esse elo foi em grande parte negativo estão M. M. Knappen {Tador Puritanism: a chapter in the history of idealism [Chicago: University of Chicago Press, 1939], p. 374-6); Perry Miller (Errand into the wilderness [Cambridge: Belknap, 1978]); Karl Barth (Church Dogmatics, III/4 [Edinburgh: T & T Clark, 1961], p. 8); Chalker (“Calvin and some seventeenth century English Calvinists”); Basil Hall (“Calvin against the Calvinists”, in: G. E. Duffield, org., John Calvin [Appleford: Sutton Courtney, 1966], p. 19-37); Robert T. Kendall (Calvin and English Calvinism to

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Por exemplo, existe confusão quanto à ênfase cristológica dada por Perkins à predestinação. Marshall M. Knappen critica Perkins de seguir demais Calvino na predestinação cristológica, ao passo que lan Breward acredita que Perkins se afastou de Calvino nesse aspecto. Breward afirma que “a obra de Cristo foi analisada no contexto da predestinação em vez de fornecer a chave para os decretos de Deus”.* Na verdade, Perkins andou na corda bamba da teologia reformada empíri­ ca, equilibrando sua doutrina para não cair nem no abismo do fatalismo nem no precipício da religião centrada no homem. Embora Perkins não consiga escapar de todas as acusações de promover confusão com sua teologia, sua síntese de predestinação decretatória e experiencial é cristologicamente estável e um desdobramento natural do calvinismo primitivo. É, em particular, fiel à teologia de Teodoro Beza, que promove uma com binação saudável de teologia reformada e piedade puritana.^ William H. Chalker erra ao afirmar que Perkins destrói a teologia de Calvino, como também está equivocada a opinião de Robert T. Kendall de que Beza e, por tabela, Perkins divergem substancialmente do reformador genebrino. Pelo contrário, conforme afirma acertadam ente Richard Muller, “o pensamento de Perkins não é um a distorção da teologia reformada

1649 [Oxford: Oxford University Press, 1979]; “Living the Christian life in the teaching of William Perkins and his followers”, in: Living the Christian life [London: Westminster Conference, 1974]; “John Cotton — first English Calvinist?”, in: The Puritan experiment in the New World [London: Westminster Conference, 1976]; “The Puritan modification of Calvin’s theology”, in: W. Stanford Reid, org., John Calvin: his influence in the Western world [Grand Rapids: Zondervan, 1982], 199-214). Entre os estudiosos que avaliam Perkins positivamente estão F. Ernest Stoeffler [The lise of Evangelical Pietism [Leiden: Brill, 196S]); Ian Breward (“William Perkins and the origins of Puritan casuistry”, in: Faith and a good conscience [London: Puritan and Reformed studies conference, 1962]; “The significance of William Perkins”, Journal of Religious History 4, n. 2 [1966]; 113-28; “William Perkins and the origins of Puritan casuistry”. The Evangelist Quarterly 40 [1968]: 16-22); Richard Muller (“Perkins’ A golden chaine: predestinarian system or schema­ tized Ordo Salutis?”, Sixteenth Century Journal 9, n. 1 [1978]: 69-81; “Covenant and conscience in English Reformed theology”, Westminster Theological Journal 42 [1980]: 308-34; Christ and the decree: Christology and predestination in Reformed theology from Calvin to Perkins [Grand Rapids: Baker, 1988]); Mark R. Shaw (“Drama in the meeting house: the concept of conversion in the theology of William Perkins”, Westminster Theological Journal 45 (1983) : 41-72; “William Perkins and the New Pelagians: another look at the Cambridge Predestination Controversy of the 1590s”, Westminster Theological Journal 58 [1996]: 267-302); Joel R. Beeke (T/ie quest for full assurance: the legacy o f Calvin and his successors [Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1999]); Greve; Markham; Munson; op’t Hof; Pipa; Priebe; Schaefer; Sommerville; Song; van Baarsel e Woolsey, nos textos indicados na nota 4. Veja um resumo das interpretações do pensamento de Perkins em Shaw, “The marrow of practical divinity”, p. 4-29. ^M. M. Knappen, Tudor Puritanism, p. 374-6; Ian Breward, org.. Introdução, The work of William Perkins, The Courtenay Library of Reformation Classics (Abingdon; Sutton Courtenay, 1970), 3:86. ^Breward, Introdução, Work o f Perkins, p. xi.

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de um período mais antigo, mas um desdobramento positivo dos primórdios da sistematização do pensamento protestante”.® Este capítulo se concentrará em três das principais contribuições de Perkins à área da predestinação: seu foco cristológico supralapsariano, sua ideia de predestinação com o um a corrente de ouro que vai da eternidade passada à eternidade futura e sua ênfase na pregação como meio de trazer e incorporar os eleitos.

Predestinação supralapsaríana cristocêntrica Interessado principalmente na conversão das almas e no subsequente cresci­ mento na piedade, Perkins acreditava que um a experiência bíblica da graça soberana de Deus na predestinação era vital para o consolo e a segurança espirituais. Acreditava que a salvação operada experiencialmente na alma dos crentes era inseparável da predestinação soberana em Cristo. Longe de ser fria e cruel, a predestinação soberana era o alicerce sobre o qual a fé experien­ cialmente podia ser edificada.® Ela oferecia esperança ao verdadeiro crente. Na introdução de seu A rm illa a u re a (1590), obra que foi traduzida para o inglês com o título de A g o ld e n ch a în e [Uma corrente de ouro] (1591)'° e na qual pela primeira vez sistematizou sua doutrina da predestinação, Perkins identificou quatro pontos de vista sobre o assunto: • Os antigos e os novos pelagianos, que atribuem ao hom em a causa da predestinação, levando Deus a determinar que os homens vivessem ou morressem de acordo com o prévio conhecimento que ele tinha de como eles, tendo livre-arbítrio, rejeitariam ou aceitariam a graça oferecida. • Os luteranos, que ensinam que apenas por sua misericórdia Deus es­ colheu alguns, mas rejeitou os demais porque anteviu que rejeitariam sua graça. “Muller, "Perkins’ A golden chaîne”, p. 69-71, 79-81. termo experienáal vem de experimentum, que significa “teste” e deriva do verbo experior, conhecer por experiência, que por sua vez leva à palavra “experiencial”, cujo sentido é empí­ rico, ou seja, o conhecimento adquirido mediante experimento. Calvino empregou as palavras experimental e experiencial/empírico como sinônimos, visto que as duas indicam a necessida­ de de se avaliar com base no ensino das Escrituras o conhecimento adquirido pela experiência. Os capítulos 42 e 43 tratam da pregação experiencial, que procura explicar do ponto de vista da verdade bíblica como as coisas devem andar, como de fato andam e qual deve ser o objetivo da vida cristã. Cf. Kendall, Calvin and English Calvinism to 1649, p. 8-9; Joel R. Beeke, “The lasting power of Reformed experiential preaching”, in: Don Kistler, org.. Feed my sheep: a passionate plea for preaching (Morgan: Soli Deo Gloria, 2002), p. 94-128; Living for God’s glory: an intro­ duction to Calvinism (Orlando: Reformation Trust 2008), p. 255-74. ’“Para uma lista dos escritos de Perkins, veja Munson, “William Perkins: theologian of tran­ sition”, p. 231-4; McKim, Ramism in William Perkins, p. 335-7.

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• Os católicos romanos semipelagianos, que atribuem a predestinação divina em parte à misericórdia e em parte a preparativos humanos an­ tevistos e obras meritórias igualmente antevistas. • Por fim, aqueles que ensinam que Deus salva alguns apenas por causa da misericórdia que tem por eles e condena outros inteiramente por causa do pecado do hom em , mas que a predestinação divina a respeito de ambos não possui nenhum a outra causa senão a vontade divina. Perkins concluiu: “Dessas quatro ideias, empenho-me por contrariar as três primeiras como errôneas e por defender a última como verdade que revelará seu peso na balança do santuário”.“ Aqui “b alan ça” é um a expressão aplica­ da figuradamente à determinação do peso de cada verdade de acordo com as Sagradas Escrituras. Com. isso, Perkins declarou seu propósito de apresentar um a teologia equilibrada da predestinação. A teologia decretatória exalta a Deus e rebaixa o hom em. Irvonwy Morgan afirmou que a teologia empírica identifica os salvos mediante a concretização da eleição em um a vida de fé e crescente santidade, “um a vida consoante à escolha de Deus”.'^ Na teologia de Perkins, o decreto em Cristo e a experiência em Cristo estão conceituai e realisticamente ligados.

Predestinação para a glória de Deus somente Os term os su p ra la p sa rism o e in fra la p sa rism o dizem respeito à sequência lógica do decreto de Deus acerca do estado eterno do hom em. Às vezes o supralapsarismo é cham ado de “hipercalvinismo”. Supralapsarismo significa “acim a/antes da queda”, e infralapsarismo, “abaixo/depois da queda” {su pra [lat.] = acim a; infra = abaixo; lapsus = queda). Os supralapsarianos creem que, para que se preserve a soberania absoluta de Deus, o decreto da predes­ tinação divina tem de preceder logicamente o decreto da Criação e da Queda do hom em. Os infralapsarianos defendem que o decreto da predestinação tem de vir logicamente após o decreto da Criação e da Queda, pois creem que é inconsistente com a natureza de Deus que ele decrete a condenação eterna de alguém sem primeiro considerá-lo alguém criado, caído e pecador.'^ "Breward, Work o f Perkins, p. 175-6. Cf. Michael T. Malone, “The doctrine of predestina­ tion in the thought of William Perkins and Richard Hooker”, Anglican Theological Review 52 (1970): 103-17. '^Irvonwy Morgan, Puritan spirituality: illustrated from the life an d times o f the Rev. Dr. John Preston (London: Epworth, 1973), p. 25. ‘Weja Joel R. Beeke, “Did Beza’s supralapsarianism spoil Calvin’s theology?”. Reformed Theological Journal 13 (Nov. 1997): 58-60; William Hastie, The theology o f the Reformed church (Edinburgh: T & T Clark, 1904); Klaas Dijk, D e Strijd over Infra- en Supralapsarisme in de Gereform eerde kerken van N ederland (Kämpen: Kok, 1912).

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TEOLOGIA PURITANA Perkins era supralapsariano mais por motivos práticos do que metafísicos.

Ao adotar o hipercalvinismo com o estrutura de sua predestinação e teologia prática, Perkins acreditava que ressaltar a soberania e o decreto divinos dava a Deus 0 máximo de glória e ao cristão o máximo de consolo. Ele achava que essa ênfase também era o melhor argumento contra luteranos, católicos romanos semipelagianos, como Robert Bellarmine (1542-1621), e antipredestinacionistas ingleses, como Peter Baro (1534-1599) e William Barrett (c. 1561-c. 1630). Em­ bora seu pensamento estivesse construído fortemente sobre Calvino, Perkins também se baseou em teólogos como Teodoro Beza (1519-1605), Girolamo Zanchi (1516-1590), Zacharias Ursinus (1534-1583) e Gaspar Olevianus (1 5 3 6 ­ 1587).*“ Admitindo abertam ente que usou textos desses autores (até mesmo acrescentou um a obra de Beza a seu G olden c h a in e ], ainda assim Perkins utilizou sua capacidade para aum entar o cabedal do hipercalvinismo. É impossível entender a predestinação sem perceber que os decretos de Deus procedem da vida íntima do Deus triúno. Perkins definiu a glória de Deus como “a excelência infinita de sua simplíssima e santíssima natureza divina”.*® Procedente dessa glória interna, o decreto de Deus e sua execução têm como objetivo “a manifestação da glória de Deus”.*® Perkins escreveu: “O decreto de Deus é aquele pelo qual Deus em si mesmo e desde a eternidade determi­ nou necessária, mas tam bém livremente todas as coisas (Ef 1.11; Mt 10.29; Rm 9 .2 1 )”.*^ A predestinação, que é apenas um decreto divino no que diz res­ peito ao hom em, é aquele decreto “por meio do qual Deus, para sua própria glória, ordenou todos os homens a um estado determinado e eterno, ou seja, ou para a salvação ou para a condenação”.*® Predestinação é o meio pelo qual Deus manifesta sua glória à raça humana. A eleição é o decreto divino “mediante o qual Deus, por sua própria e livre vontade, determinou certos homens para a salvação, para o louvor da glória da sua graça”.*^ Condenação é “aquela parte da predestinação em que Deus, de '“'W. Stanford Reid, org., John Calvin: his influence in the Western world (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p. 206-7; Kendall, Calvin and English Calvinism, p. 30-1, 76; Otto Grundler, "Thomism and Calvinism in the theology of Girolamo Zanchi” (tese de doutorado, Princeton Theological Seminary, 1960), p. 123; Wallace, Puritans and predestination, p. 59; Lyle D. Bierma, German Calvinism in the confessional age: the covenant theology of Caspar Olevianus (Grand Rapids: Baker, 1996), p. 176-81. Cf. C. M. Dent, Protestant Reformers in Elizabethan Oxford (Oxford: Oxford University Press, 1983), p. 98-102. '^William Perkins, A golden chaine, or, the description o f théologie, containing the order of the causes of salvation and damnation, in: Works, 1:13. '^Perkins, A golden chaine, in: Works, 1:15. '^Perkins, A golden chaine, in: Works, 1:15. '“Perkins, A golden chaine, in: Works, 1:16. '"Perkins, A golden chaine, in: Works, 1:24.

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acordo com o mais livre e justo propósito de sua vontade, decidiu rejeitar certos homens para a destruição e sofrimento eternos para o louvor de sua justiça”.“ À sem elhança de Beza, Perkins mantinha uma posição supralapsariana de negar que Deus, ao condenar, considerava os homens caídos. Ele substanciava essa crença com o argumento de Beza de que a finalidade está em primeiro lugar na intenção do agente. Assim, Deus primeiramente decidiu a finalidade — a manifestação de sua glória ao salvar e condenar — antes de considerar os meios, tais como a Criação e a Queda. Em última instância, a predestinação não deve ser entendida no âmbito daquilo que ela faz pelo hom em , mas no âmbito de seu objetivo mais elevado — a glória de Deus. Soberania absoluta na dupla predestinação para a exclusiva glória de Deus; esse é o fio condutor da teologia de Perkins.

Resposta a objeçôes: o Deus predestinador é justo Como um equilibrista que andava numa corda bam ba teológica, Perkins sa­ bia que seu ponto de vista levava a duas objeçôes: (1) torna Deus o autor do pecado; (2] diminui o papel de Cristo.'^' Ao tratar da primeira objeção, Perkins rejeitou categoricam ente a ideia de que Deus é o autor do pecado. Deus decre­ tou a Queda do hom em , mas ele não levou o hom em a pecar. Perkins insistiu que as Escrituras ensinam que Deus determina tudo que há de acontecer.“ Não devemos pensar que a Queda do hom em foi por acaso ou porque Deus falhou em antevê-la, ou porque quase não deu atenção suficiente ao assunto, ou ainda porque permitiu que acontecesse contra sua vontade. Pelo contrá­ rio, 0 hom em deu as costas a Deus “não sem a vontade de Deus, mas ainda assim sem a completa aprovação disso”.^^ Em outras palavras. Deus tinha um propósito bom para a Queda, embora não a visse com o algo bom. Q decreto de Deus não levou ao pecado de Adão. O decreto de Deus “não colocou em Adão nada que o levasse a pecar, mas o deixou com liberdade para decidir, não impedindo que caísse quando isso pudesse vir a acontecer’?'* Diante da possível objeção de que, se Deus decretou a Queda, o homem não podería ter liberdade para não pecar, Perkins fez distinção entre a necessidade “Perkins, A golden chaîne, in: Works, 1:106 ^‘Teólogos do século 20 também acusaram a predestinação supralapsariana de subordinar Cristo ao decreto, rebaixando-o a um mero “transportador de salvação”, de modo que ele não desempenha nenhum papel ativo, visto que o decreto de predestinação é pronunciado antes do da graça. J. K. S. Reid, “The office of Christ in predestination”, Scottish Journal of Theology 1 (1948): 5-19,166-83; James Daane, The freedom o f God (Grand Rapids: Eerdmans, 1973), cap. 7. “Perkins, A golden chaine, in: Works, 1:15. “ Breward, Work o f Perkins, p. 197-8. “William Perkins, A treatise o f the manner and order o f predestination, and o f the largenesse o f Gods grace, in: Works, 2:619.

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da infalibilidade e a necessidade da coação. Como consequência do decreto de Deus, aquilo que ele decretou acontecerá infalivelmente. Mas os atos voluntá: os da criatura não são de modo algum coagidos ou forçados pelo decreto secreto de Deus. Deus opera por meios que são causas secundárias. Não lida com homens como se fossem pedras estúpidas, mas move suas vontades ao operar por meio do entendimento deles.^^ O diabo e Adão — e não Deus — são responsáveis pelo pecado. De acordo com Perkins, a causa real da Queda foi “o diabo em sua tentativa de nos derrotar e a vontade de Adão, que, quando com eçou a ser provada por tentações, não desejou a ajuda de Deus, mas vo­ luntariamente cedeu para dar as cosas a Deus”.“ Isso levanta a questão de como Deus executou seu decreto de que o homem iria cair sem forçá-lo a pecar. A resposta de Perkins é que Deus se absteve de dar a Adão a graça da perseverança. Deus lhe deu uma vontade hum ana justa, uma revelação do mandamento divino e a capacidade íntima de desejar e fazer 0 que é bom. Mas Deus não deu a Adão a graça de, quando tentado, perseverar em querer e fazer o bem. Não se pode culpar a Deus por não conceder essa graça porque Deus não deve graça alguma a hom em algum, além de ter bons motivos para não concedê-la.^^ Perkins utilizou a ilustração de um a casa não escorada em meio a um a tempestade. Assim como um a casa não escorada cai com 0 vento que sopra, da m esm a maneira o hom em sem a ajuda de Deus cai. Desse modo, a causa da Queda não é o proprietário, mas o vento.“ De acordo com Perkins, aí está, então, o equilíbrio bíblico. Embora o de­ creto divino “de fato determine com pletam ente cada acontecim ento, em parte inclinando e gentilmente predispondo a vontade em todas as coisas que são boas e, em parte abandonando-a em todas as coisas que são más, ainda assim a vontade da criatura abandonada à sua própria sorte é executada de maneira desenfreada, não por necessidade intrínseca, mas de modo contingente de acor­ do com a maneira como o decreto de Deus determinou desde a eternidade”.^®

Respostã a objeções: Cristo é o centro da predestinação Quanto à acusação de que o supralapsarismo subordina Cristo, Perkins defende com firmeza que a linha de separação entre os eleitos e os condenados não é estabelecida pela eleição considerada em termos absolutos, mas pela eleição em Cristo. Contrariamente a acusações feitas, Perkins destaca a predestinação

“Perkins, Manner and order o f predestination, in: Works, 2:619. “Perkins, Manner and order o f predestination, in: Works, 2:607. “William Perkins, An exposition o f the symbole or Creed o f the Apostles, in: Works, 1:160; Cf. 1:16; 2:611. ^“Munson, “William Perkins: theologian of transition”, p. 79. “Perkins, Manner and order o f predestination, in: Works, 2:621.

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cristocêntrica. Para Perkins, a salvação nunca é resultado de um mero decreto, mas sempre do Cristo decretado e decretador. A eleição e a obra de Cristo não são ordenadas pelo decreto de Deus; pelo contrário, são escolha voluntária do Filho. Franciscus Gomarus (1563-1641) disse no Sínodo de Dort que “Cristo, de conformidade com sua natureza divina, também participou da obra de eleição”, mas não pode ser chamado de “fundam ento” da eleição.^“ Perkins foi ainda mais longe e não hesitou em afirmar que Cristo é o fundamento, o meio e o fim da eleição: A eleição é o decreto divino mediante o qual Deus, por sua própria e livre vontade, determinou certos homens para a salvação, para o louvor da glória da sua graça [...] Tãês coisas estão diretamente ligadas à execução desse decreto: a primeira é o fundamento; a segunda, os meios; a terceira, os níveis. O fundamento é Cristo Jesus, a quem desde a eternidade seu Pai chamou para desempenhar o ofício do Mediador, a fim de que nele todos aqueles que deviam ser salvos pudessem ser escolhidos. Pergunta. Como Cristo pode estar subordinado à eleição de Deus uma vez que, junto com o Pai, ele decretou todas as coisas? Resposta. Sendo o Mediador, Cristo não está subordinado ao próprio decreto da eleição, mas apenas à sua execução.^' Em outra passagem , Perkins escreveu sobre “o alicerce real ou concreto da eleição divina, e esse é Cristo, e, por isso, se diz que somos escolhidos ‘em Cristo’. Ele tem de ser considerado de duas maneiras. Por ser Deus, somos predestinados p o r ele, ao mesmo tempo que somos predestinados pelo Pai e pelo Espírito Santo. Por ser nosso Mediador, somos predestinados n eleV ^ Perkins prosseguiu dizendo que esse ato de predestinação “não tem nenhuma causa motivadora interna acima ou além do bel-prazer de Deus e diz respeito a Cristo, 0 Mediador, em quem todos são eleitos para a graça e para a salvação. E imaginar qualquer eleição fora dele vai contra toda a razão, pois no que tange ao início, ao meio e ao fim da eleição a ser executada ele é seu alicerce”.” Perkins escreveu: “A decretação de um Mediador significa que, pelo fato de a segunda pessoa ser o Filho de Deus, ele é nom eado desde a eternidade para ser um Mediador entre o próprio Deus e os homens. E por esse motivo “G. C. Berkouwer, Divine election, tràduçâo para o inglês de Hugo Bekker (Grand Rapids: Eerdmans, 1960], p. 143. ^'Breward, Work o f Perkins, p. 197-8. ^^Perkins, Creed o f the Apostles, in: Works, 1:282. ^Perkins, Creed o f the Apostles, in: Works, 1:283.

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é que Pedro disse que Cristo foi conhecido antes da fundação do mundo. E bem disse Agostinho que Cristo foi predestinado para ser nosso cabeça. Pois, embora seja o Verbo/a Palavra [logos] substancial do Pai, isto é, embora seja 0 Filho, ele predestina, sim, com o Pai e o Espírito Santo; no entanto, sendo 0 Mediador, ele mesmo está predestinado Perkins citou Cirilo de Alexandria (c. 376-444) e concordou com ele, no que este escreveu: “Cristo conhece suas ovelhas, elegendo-as e antevendo-as para a vida eterna”. Também citou Agostinho de Hipona, que escreveu: “Cristo, mediante sua dispensação secreta, de um povo infiel predestinou alguns para a liberdade eterna, vivificando-os pela livre misericórdia que ele tem, e con­ denou outros à morte eterna, abandonando-os pelo juízo oculto que dispensa à impiedade deles Perkins era mais cristocêntrico em seu predestinacionismo do que a maioria dos estudiosos reconhece. Breward está certo em afirmar que “a definição de teologia era [de acordo com Perkins] um a com binação de Petrus Ramus e João Cal vino, e a organização de toda a obra [A g o ld en c h a în e ), prefaciada, por assim dizer, por um diagrama de aparência impressionante, devia grande parte a categorias ramistas de organização e lógica aristotélica”.^®Mas Breward erra quando deixa de reconhecer o quanto Perkins centrou em Cristo a predes­ tinação. Com maior precisão, Muller observa que, antes da época de Perkins, ninguém havia colocado o Mediador de forma tão m eticulosa numa relação tão central com o decreto e sua execução. A ordem da salvação [ordo salutis] tem origem e é efetuada em Cristo.

Uma corrente de ouro que vai do prazer ou à glória soberanos Em sua mais afam ada obra, A rm iU a a u re a [A g o ld en ch a în e, 1591), Perkins ressaltou que a vontade de Deus em Cristo é imutável não apenas no decreto soberano, mas tam bém na execução do decreto soberano. A página de rosto expressa essa convicção ao dar a A g o ld e n ch a în e o subtítulo de “A descrição da teologia, contendo a ordem das causas da salvação e da condenação de acordo com a palavra de Deus”.^® O “Diagrama” mostra que Perkins ensinava que Deus não apenas decretou o destino do hom em , mas também os meios pelos quais os eleitos podem alcançar a vida eterna e sem os quais os réprobos não podem ser salvos. No alto do diagrama, encontra-se o Deus triúno como fonte do decreto. Na parte inferior, está a glória de Deus como alvo do decreto. ^"'Perkins, Manner and order o f predestination, in: Works, 2:608. ^Terkins, Manner and order o f predestination, in: Works, 2:607. ^^Breward, Introdução, Work o f Perkins, p. 85-6. ^^Muller, “Perkins’ A golden chaine”, p. 71, 76. ^“Perkins, Golden chaine, in: Works, 1:9.

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À esquerda, há um a linha ou corrente com etapas mediante as quais Deus salva seus eleitos. À direita, há um a linha ou corrente com etapas mediante as quais os réprobos descem à condenação devido a seus pecados. No centro, há um a linha que representa a obra de Cristo, o Mediador, em sua humilhação e exaltação. Perkins traçou linhas ligando a obra de Cristo a cada etapa da ordem da salvação, a fim de m ostrar que tudo está em Cristo.”

O

fundamento da execução do decreto: Jesus Cristo

Sem a obra de Jesus Cristo, a predestinação não afeta ninguém. Sem Cristo, 0 hom em está totalmente sem esperança. Cristo é o fundamento da eleição, conforme mostrado no centro do diagrama de Perkins. Cristo está predestinado a ser Mediador. É prometido aos eleitos. É pela graça oferecido aos eleitos. E, por fim, em todos seus benefícios, qualidades essenciais, ofícios e estados Cristo é aplicado pessoalmente à alma dos crentes.'“* Esse cristocentrismo é o que distingue o diagrama teológico de Perkins da Tabula de Beza. O diagrama de Perkins é parecido com o de Beza ao mostrar

os seguintes contrastes: • O am or de Deus por seus eleitos v ersus seu ódio pelos réprobos. • Chamado eficaz versus cham ado ineficaz. • O amolecimento do coração versus o endurecimento do coração. • Fé versus ignorância. • Justificação e santificação versus injustiça e corrupção. • A glorificação dos eleitos versus a condenação dos réprobos. Kendall erra ao afirmar que “a contribuição de Perkins ao diagrama de Beza foi apenas torná-lo mais atraente e mais compreensível”. A

maior di­

ferença entre o diagrama de Beza e o de Perkins está no centro. No diagrama de Beza, a coluna central está vazia entre a Queda e o Juízo Final. Contraria­ mente, 0 centro do diagrama de Perkins está ocupado com a obra de Cristo como “mediador dos eleitos”. Cristo ocupa, dessa forma, posição central na ^’Veja o diagrama de Perkins em Golden chaîne, in: Works, 1:11. Para uma explicação do diagrama de Perkins, veja Cornelis Graafland, Van Calvijn tot Barth: Oorsprong en Ontwikkeling van d e leer d er Verkiezing in het Gereformeerd Protestantisme (’s-Gravenhage: Boekencentrum, 1987), p. 72-84. Tanto o diagrama de Beza quanto o de Perkins foram recentemente reproduzidos em Lillback, org., The practical Calvinist, p. 580-3. Pode-se ver o diagrama de Perkins também em Breward, Work o f Perkins, p. 169. “ Cf. Perkins, M anner and order o f predestination, in: Works, 2:608. “"Reid, John Calvin, 204-5.

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predestinação e sua consecução por meio do chamado, justificação, santificação e glorificação dos eleitos.''^

O

meio de execução do decreto: as alianças

Depois de introduzir Cristo com o o fundamento da eleição, Perkins explica como a predestinação é levada a efeito por meio das alianças. Embora seu diagrama não mostre essa ligação, um a parte importante de sua análise apa­ rece nos títulos e subtítulos que tratam da aliança.''^ Perkins ensinava que no Paraíso Deus estabeleceu um a aliança das obras com Adão, definindo assim um contexto pactuai para a Queda.'*'‘ De modo análogo, estabeleceu a aliança da graça com o o contexto para a salvação dos eleitos. Em um enfoque bilateral da aliança da graça, o pacto entre Deus e o hom em implica interação mútua e voluntária entre Deus e o homem. Esse enfoque é consistente com a ênfase de Perkins em compreender Cristo com o o que abre a porta para a aplicação dos benefícios dele. A isso Perkins acrescentou um enfoque monolateral da aliança como um testam ento em que pecadores se tornam herdeiros mediante a dádiva divina, graciosa e imerecida da salvação em Cristo. Perkins apresentou essa ideia sobre a aliança como forma de aliviar a tensão entre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Sem a aliança da graça, o homem é incapaz de cumprir as exigências de Deus, ao passo que, com ela, o hom em descobre que sua vontade é renovada pelo Espírito Santo a ponto de ser capaz de escolher o arrependimento. No diagrama de Perkins, o homem se torna ativo na “mortificação e vivificação”, o que conduz “ao arre­ pendimento e a um a nova obediência”. Para Perkins, a conversão é o ponto de reconciliação em que os aspectos monolateral e bilateral da teologia da aliança podem se amalgamar. Isso permitiu que a vida cristã fosse sistematizada e declarada como uma enorme série de “questões de consciência”. Também permitiu que a aliança fosse apresentada na forma de um ato voluntário em que os regenerados buscam certeza pessoal. Obviamente, a maior questão de consciência é “se um hom em é ou não filho de Deus”, ou seja, se a pessoa é, mediante a salvação, trazida à aliança da graça e convertida.''^ Como consequência, Perkins podia dizer que, embora a fé e o arrependi­ mento sejam condições da aliança da graça, o hom em é totalm ente incapaz de iniciar ou m erecer a relação de aliança por meio de qualquer bondade ou obediência em si mesmo. Em última instância, o decreto da eleição e a aliança “^Muller, “Perkins’ A golden chaîne”, p. 76-7. “^Shaw, “The marrow of practical divinity”, p. 124. Shaw conclui que “no pensamento de Perkins os antecedentes da aliança da graça eram a eleição em Cristo como sua causa formal e a obra de Cristo como sua causa material”. ^Perkins, Golden chaîne, in: Works, 1:32. “'Muller, “Covenant and conscience”, p. 310-1.

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da graça dependem do bel-prazer de Deus, que escolheu estar em aliança com 0 hom em ; Deus dá início à relação de aliança; de forma livre, isto é, com base apenas em sua vontade soberana. Deus traz o hom em à aliança da graça ao lhe dar as condições necessárias de fé e arrependimento. A decretação, o esta­ belecimento e a m anutenção da aliança dependem todos da livre graça divina. Ao contrário do que Perry Miller deixou implícito, com a aliança o homem não cria obrigações para Deus nem consegue domá-lo.'‘®Pelo contrário. Deus se obriga ao hom em em aliança. Para Perkins, a aliança da graça é, da perspectiva divina, monolateral e iniciada pela graça. O procedimento de Deus com Abel e Caim, com Isaque e Ismael, e com Jacó e Esaú exemplificam seu papel como iniciador divino da aliança. Com eles, aprendemos que, “quando Deus recebe qualquer pessoa numa aliança de vida eterna, não é por resultado de qualquer excelência no hom em a quem Deus cham a, mas apenas de sua misericórdia e bel-prazer [...] Quanto à opinião daqueles que dizem que a fé e as boas obras antevistas são a causa que levou Deus a escolher homens para a salvação, ela é frívola, pois a fé e as boas obras são os frutos e os efeitos da eleição de Deus”.“*^ Visto que a aliança de Deus é estabelecida com o hom em sem que este faça esforço algum, “nessa aliança não nos concentram os em oferecer nem fazemos nenhuma grande promessa a Deus, pois, em certo sentido, apenas recebem os”. Em sua manifestação mais completa, a aliança é o próprio evangelho e também “o instrumento e, por assim dizer, o veículo condutor do Espírito Santo para criar e trazer fé à fosse com a m ão, divina assegura ao graciosa complete

alma. Por meio dessa fé, os que creem seguram, como se a justiça de Cristo”.'*® Longe de ser imprevisível, a aliança homem que é possível contar com Deus para que de maneira no coração dos eleitos a corrente dourada da salvação (Rm

8 .2 9 ,3 0 ). Assim a aliança da graça é a essência da própria salvação. Perkins escreveu: “Temos de conhecer Deus não com o ele é em si m esm o, mas como ele se revelou a nós na aliança da graça, e, por isso, devemos reconhecer que 0 Pai é nosso Pai, que o Filho é nosso redentor e que o Espírito Santo é nosso consolador e procurar crescer no conhecim ento e na experiência disso ”.'*'’ Sem abandonar a ideia calvinista dos decretos eternos de Deus, a ênfase pactuai de Perkins nos ajuda a concentrar a atenção no relacionamento de Deus com 0 homem. Ao concentrar a atenção na aliança, Perkins e outros puritanos reduziram o mistério inescrutável das ações divinas a leis que nos são relati­ vamente compreensíveis. Viam eles, embora através de um vidro escuro, tanto ““^Miller, Errand into the wilderness, p. 48-98. ‘‘Terkins, Creed o f the Apostles, in: Works, 1:279, 281. “®Perkins, Golden chaine, in: Works, 1:70. “’William Perkins, A commentarie or exposition upon the five first chapters of the Epistle to the Galatians, in: Works, 2:258.

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0 movimento dos conselhos secretos de Deus nas alianças reveladas quanto a preocupação divina com o homem, em particular na aliança da graça. Embora mantivesse a preocupação de Calvino com a glória de Deus, Perkins deu mais ênfase à conversão do homem. F. Ernest Stoeffler expressa isso desta forma: “De mãos dadas com essa reorientação segue a [...] preocupação dele com os aspec­ tos práticos do cristianismo, o que é típico de todo puritanismo pietista”.^“ Isso é particularmente visível em G olden ch a în e, de Perkins, obra que em sua maior parte é dedicada a questões práticas em vez de a aspectos teóricos da teologia.

As gradações da execução do decreto: chamado, justificação, santificação, glorificação De acordo com Perkins, Deus mostra “gradações de am or” ao executar a eleição em Jesus Cristo por meio da aliança, isto é, são passos mediante os quais ele põe em ação seu am or eterno. Com a palavra “gradação” Perkins não quis dizer que Deus am a um cristão mais do que outro, mas que ele opera a salvação de cada um em etapas distintas do pecado à glória. O cham ado eficaz, a primeira parte do processo, representa a graça sal­ vadora “por meio da qual um pecador é arrancado do mundo e recebido na família de Deus”.^' A primeira parte do cham ado eficaz é o ouvir correto da Palavra por parte daqueles que estavam mortos no pecado; a mente deles é iluminada pelo Espírito com verdade irresistível. A pregação da Palavra realiza duas coisas: “a Lei mostra ao hom em seu pecado e o consequente castigo, que é a morte eterna, [e] o evangelho m ostra a salvação por meio de Cristo Jesus àqueles que creem ”. As duas coisas se tornam tão reais que “os olhos da mente são iluminados, o coração e os ouvidos são abertos, para que ele [o pecador eleito] veja, ouça e entenda a pregação da palavra de Deus”.^^ A segunda parte desse processo é o quebrantar do coração do pecador. Sob a pregação da Palavra, o coração é “despedaçado para que esteja pronto para receber a graça divina salvadora que lhe é oferecida”. Para realizar isso. Deus emprega quatro “martelos principais”: • O conhecimento da lei de Deus; • O conhecimento do pecado, tanto original quanto presente, e seu devido castigo; • O coração aflito com uma sensação da ira de Deus contra o pecado; • O desespero devido à incapacidade hum ana de alcançar a vida eterna.^^ “Stoeffler, The rise o f Evangelical Pietism, p. 55. ^'Perkins, Ckilden chaine, in: Works, 1:77. ^^Perkins, Golden chaine, in: Works, 1:78. “Perkins, Golden chaine, in: Works, 1:79.

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0 resultado do chamado eficaz é a fé salvadora, que Perkins define como “uma faculdade milagrosa e sobrenatural do coração, que tem uma compreensão de Cristo Jesus mediante a operação do Espírito Santo e o recebe para si”.^'* O ato de receber a Cristo não é algo que o homem faça por sua própria força; pelo contrário, mediante a fé criada pelo Espírito o eleito recebe a graça que Cristo traz, colocando assim o crente em união com cada aspecto da obra salvadora de Cristo por meio da fé. Nas palavras de Charles Munson: “A fé, então, salva o eleito, não porque ela seja uma virtude perfeita, mas porque obtém um objeto perfeito, que é a obediência de Cristo. Não importa se a fé é fraca ou forte, pois a salvação depende da misericórdia e das promessas de Deus”.” De acordo com Perkins, Deus “desde o início aceita as próprias sementes e rudimentos da fé e do arrependimento, embora sejam em parte como um grão de mostarda”.” Uma vez que o pecador recebe o chamado eficaz, ele é justificado. A justifi­ cação, na condição de “declaração do amor de Deus”, é o ato “pelo qual aquele que crê é considerado justo perante Deus por meio da obediência de Cristo Jesus”. O fundamento da justificação é a obediência de Cristo, expressa “em seu sofri­ mento na vida e na morte e, como consequência, em seu cumprimento da Lei estabelecida”. Cristo liberta os eleitos da dupla dívida de cumprir a lei “a cada instante, desde o momento em que com eçam os a viver no que diz respeito tan­ to à pureza de nossa natureza quanto à pureza de nossa a ção ”, libertando-os também de fazer “satisfação [reparação] pela quebra da lei”. Nessa dívida. Cristo é nossa fiança, e Deus aceita em lugar da nossa obediência a obediência de Cristo, “que é plena satisfação”. A justificação consiste, então, na “remissão de pecados e na imputação da justiça de Cristo”.” Ela ocorre quando um pecador é levado ao tribunal de Deus por sua consciência, declara-se culpado e recorre a Cristo como sua única esperança de absolvição.” A justificação é claramente um ato judicial e soberano do eterno bel-prazer de Deus. A justificação tam bém inclui outros benefícios. Externam ente, oferece reconciliação, aflições que servem para disciplinar e não para castigar, e vida eterna. Internamente, oferece paz, tranquilidade de consciência, admissão ao favor divino, ousadia diante do trono da graça, um a sensação duradoura de regozijo espiritual e conscientização íntima do am or de Deus.” A santificação, a terceira parte desse processo, recebeu da parte de Perkins mais atenção do que qualquer outro aspecto. Ele definiu santificação como ^‘'Perkins, Golden ckaine, in: Works, 1:79. ^^Munson, “William Perkins: theologian of transition”, p. 100. 5'^Perkins, Golden chaine, in: Works. 1:79-80. ^Terkins, Golden chaine, in: Works, 1:81-82. ^“Perkins, Galatians, in: Works, 2:204. ^’William Perkins, A treatise tending unto a declaration, whether a man be in the estate of damnation, or in the estate o f grace, in: Works, 1:368.

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aquela obra “em que em sua mente, em sua vontade e em seus sentimentos o cristão é libertado da escravidão e tirania do pecado e de Satanás e, por meio do Espírito de Cristo, é pouco a pouco capacitado a desejar e aprovar o que é bom e a andar nisso”.“ A santificação tem duas partes. “A primeira é a mortifi­ cação, quando o poder do pecado é continuamente enfraquecido, esvaziado e diminuído. A segunda é a vivificação, em que a justiça inerente é de fato posta neles e, depois disso, é continuamente aum entada”.“ A santificação inclui uma vida mudada, arrependimento e um a nova obediência — em resum o, todo o campo da “batalha cristã”.“ Todos os benefícios da salvação que com eçam com a regeneração estão ligados a um relacionamento vivo com Jesus Cristo, a quem o crente está atado pelo Espírito Santo.®^ Perkins ensinava que, assim como um fogo sem combustível logo se extin­ guirá, da mesm a forma os filhos de Deus esfriarão e se desviarão, a menos que Deus os aqueça com suprimentos novos e diários de sua g r a ç a .V ic to r Priebe afirma: “A santificação depende, então, momento a m om ento, de um a renova­ ção à medida que o crente desvia o olhar de si e de seus feitos e o dirige para a pessoa e obra de Cristo. A mortificação e a vivificação são indícios daquela realidade vitalíssima e definitiva — a união com Cristo, da qual depende todo 0 recebimento da graça [...] É de uma clareza inquestionável que a santificação é 0 resultado da atuação da graça divina no homem Depois da santificação vem o último passo: a glorificação. Essa parte do amor de Deus é, nas palavras de Perkins, “a transformação perfeita dos santos, quando passam a ser a imagem do Filho de Deus”. A glorificação aguarda o cumprimento do Juízo Final, quando os eleitos desfrutarão a “bem-aventurança [...] por meio da qual o próprio Deus será tudo em todos os seus eleitos”. Como resultado da graça soberana, os eleitos serão introduzidos na glória perfeita, algo “excelente e maravilhoso” que inclui vislumbrar a glória e a majestade de Deus, conformar-se plenamente a Cristo e herdar “os novos céus e a nova terra”.“

A descida dos réprobos para o inferno O diagrama de Perkins revela que ele desenvolveu a ideia de condenação com tanta atenção quanto a de eleição. Aliás, da perspectiva hum ana a corrente “Perkins, Whether a man, in: Works, 1:370. ^'Perkins, Whether a man, in: Works, 1:370. “Perkins, Golden chaîne, in: Works, 1:85. “Perkins, Golden chaîne, in: Works, 1:83; Whether a man, 1:370. “Thomas F. Merrill, org., William Perkins, 1558-1602, English Puritanist—his pioneer works on casuistry: “A discourse o f conscience” and “the whole treatise o f cases o f conscience” (Nieuwkoop: B. DeGraaf, 1966), p. 103. “Priebe, “Covenant theology of Perkins”, p. 141. “Perkins, Golden chaîne, in: Works, 1:92, p. 94.

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escura da condenação é, na verdade, um a corrente de ouro da perspectiva divina, pois por fim ela tam bém resultará na glória de Deus. A condenação envolve dois atos. O primeiro é a decisão de Deus de glorifi­ car sua justiça, abandonando certos hom ens a si m esm os. Esse ato é absoluto, baseado em nada no hom em , mas apenas na vontade de Deus. O segundo ato é a decisão de Deus de condenar esses homens ao inferno. Esse segundo ato não é absoluto, mas baseado em seus pecados. É o ato do justo ódio de Deus contra pecadores. Por esse motivo, Perkins não ensinava que Deus con­ dena os homens arbitrariamente; ninguém irá para o inferno exceto aqueles que 0 m erecem por causa de seus pecados.®^ Perkins via a condenação como um concom itante lógico da eleição. Escre­ veu: “Se há um decreto eterno de Deus em que ele escolhe alguns homens, então é preciso haver outro em que ele ignora outros e os rejeita”.^® Existem, contudo, duas diferenças de ênfase entre condenação e eleição. Em primeiro lugar. Deus, pela sua vontade, determinou o pecado e a condena­ ção de hom ens, mas não com a vontade de aprovação ou de ação. A vontade de Deus em eleger pecadores consistiu em seu prazer em demonstrar graça e seu propósito de operar graça neles. Mas a vontade de Deus em condenar pecadores não incluiu nenhum prazer no pecado deles nem qualquer propó­ sito de operar o pecado neles. Ao contrário, pela sua vontade, determinou não impedir que pecassem porque tinha prazer na glorificação de sua justiça.® Em segundo, quando executa a condenação. Deus basicam ente ignora os réprobos ao não lhes conceder sua graça especial e sobrenatural da eleição. Perkins até mesmo fala em Deus permitir que os réprobos caiam em pecado. Ao empregar termos infralapsarianos, como “ignorar” e “perm itir”, de novo Perkins mostra sua tendência de passar de um a ideia supralapsariana do decreto de Deus para um a concepção infralapsariana da execução desse decreto.^® De acordo com Perkins, há dois tipos de réprobos: os que não são cham a­ dos e os que são cham ados, mas não de modo eficaz. Os que não recebem nenhum chamado se movem da “ignorância e futilidade dos pensam entos” para o “endurecimento do co ração ”, passando a “um juízo depravado”, avan­ çando à “cobiça no pecado”, até chegarem à “plenitude do pecado’7 ' Os que são cham ados podem ir até o ponto de “render-se ao chamado divino” — o que pode incluir “um a iluminação geral, arrependimento, fé temporária, uma pequena experiência [e] zelo” — antes de “recaírem ” no pecado mediante •^Terkins, Golden chaîne, in: Works; 1:105; Galatians, 2:612. , 11:44. ^“John Owen, The duty of pastors and people distinguished, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 13:1-49. ^^Owen, Duty o f pastors, in: Works, 13:5, 18-9. “Cotton, Keyes o f the kingdom of heaven, p. 12. ^'Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, p. 12-3.

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Mas os presbíteros também não podem fazê-lo sozinhos, mesmo que a única razão seja a de que têm de “dizê-lo à igreja”.^“ Alguns leitores talvez fiquem surpresos que em Keyes Cotton não se opo­ nha aos sínodos. “Em caso de dissensão interna, a igreja tem liberdade de recorrer a um sínodo”.” De modo semelhante, cada igreja em particular tem a “liberdade de com unhão com outras igrejas”. Pessoas de uma igreja podem ocasionalmente ir a outra igreja para “com unhão”. Essas igrejas em comunhão devem se com unicar entre si, em especial na m ovimentação de membros entre elas, mas também para trocar idéias e “receber auxílio e socorro m útuos”.**’ Essa com unicação entre igrejas também pode envolver a deliberação sobre a “propagação e multiplicação de igrejas”, com o a divisão de uma igreja grande em duas ou a fusão de duas igrejas vizinhas pequenas em uma única.*’ Uma das secções da obra de Cotton defende que existe um aspecto das chaves que está peculiarmente sob os cuidados dos presbíteros de determi­ nada igreja. De acordo com Cotton, a “chave” do poder foi dada às pessoas, mas a “chave” da autoridade pertencia aos presbíteros. Esta última chave diz respeito principalmente à convocação e à direção das assembléias públicas da igreja.*” Observe-se a particularidade da posição de Cotton entre seus irmãos congregacionais. Embora praticamente todos os congregacionais cressem na liderança peculiar de pastores e presbíteros dentro do corpo, a maioria deles, não sendo influenciada pela ideia de Cotton, não chegou a essa posição, que separava para os presbíteros uma parte das chaves. Outra secção de Keyes é dedicada ao poder e à autoridade dos sínodos. Ali Cotton insiste que a autoridade coletiva dos presbíteros é derivada e de­ legada por cada igreja representada, estando sujeita às determinações dela. Mas, de acordo com Cotton, isso não significa que os presbíteros “reunidos num sínodo não tenham autoridade alguma para decidir ou deliberar sobre qualquer resolução compulsória para as igrejas, mas [apenas] de acordo com as determinações que haviam recebido previamente das igrejas”.*^ Ao mesmo tempo, ele ressalva que nenhum sínodo tem o poder de “im por” coisas “irre­ levantes” para suas igrejas — mas apenas aquelas coisas que estão de acordo com “a verdade e a paz do evangelho”.*“ Na a d ia p h o m de “culto” e “ordem”. “Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, “Cotton, Keyes o f the kingdom of heaven, “Cotton, Keyes o f the kingdom of heaven, *'Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, “ Cotton, Keyes o f the kingdom of heaven, “Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, “Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven,

p. p. p. p. p. p. p.

16. 16-7. 18. 19. 20-3. 26. 26-7.

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OS sínodos não têm “poder algum desse tipo”'’^ visto que “Cristo nunca esti­ pulou uniformidade, mas tão som ente unidade”.“ Também relacionado com a questão dos limites da autoridade do sínodo é se ele tem “o poder de ordenação e de e x c l u s ã o C o n f o r m e assinalado acima, esse é o verdadeiro divisor de águas entre a eclesiologia congregacional e a presbiteriana. Cotton é prudente ao abordar o assunto, sem dúvida por receio de que a posição dos congregacionais fosse tratada indistintamente junto com

as formas menos requintadas de “independência” e “separatism o”. Apesar disso, ele reconhece que uma decisão sinodal sobre ordenação ou exclusão é assunto que não deve ser “apressadam ente” conduzido por um sínodo. Um sínodo poderia escolher “determinar, divulgar e anunciar” uma “deliberação” sobre tais assuntos, mas “a administração de” quaisquer deliberações devia ser deixada “para o presbitério [i.e., os oficiais locais] das várias igrejas”.“ Em outras palavras, só com relutância um sínodo congregacional se envolvería numa questão de ordenação ou exclusão, e, caso isso acontecesse, “a delibe­ ração” do sínodo seria apenas “divulgada”. A “execu ção ” ou implementação de qualquer “deliberação” desse tipo seria deixada para a liderança das igrejas locais envolvidas, visto que a autoridade dos sínodos é apenas declarativa.“

A natureza da igreja: católica visível? Conforme assinalado acim a, tanto presbiterianos quanto congregacionais criam firmemente na existência da igreja católica, ou universal, invisível — ou seja, a igreja vista como “a totalidade dos eleitos” de todas as épocas (CFW, 25.1]. Questão diferente era afirmar ou rejeitar a existência de uma igreja católica visível. Esse assunto se tornou um dos principais pontos de conflito nos debates eçlesiológicos entre os puritanos ingleses.™ As opiniões sobre a *^Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, p. 27. ‘'■’Cotton, Keyes of the kingdom of heaven, p. 28. '’’Cottoti, Keyes o f the kingdom o f heaven, p. 28. ‘‘'’Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, p. 28. “ No dizer do Goodwin “sínodos ocasionais” têm poder “secundário”. Seu estudo dc síno­ dos em Government o f lhe churches, in: Works, 11:232-84, é muito mais exaustivo do que o de Cotton em Keyes, e seu ponto de vista, em relação ao pensamento de Cotton, é que os sínodos têm um papel ligeiramente mais limitado. No prefácio da obra de Cotton, Keyes of the kingdom, Goodwin c Nye expressam sua discordância com Cotton quanto a usar Atos IS e o Concilio dc Jerusalém como fundamento para os sínodos (não paginado). O ponto de vista de Goodwin e Nye sobre o papel dos sínodos é mais representativo da corrente predominante no congregacionalismo inglês de meados do século 17 do que o ponto de vista de Cotton. Uma abordagem semelhante da questão dos sínodos era encontrada já na edição de 1629 de Medulla theologica, de William Ames (Amsterdam: apud Robertum Allottum), cap. 39.27. ”Veja Powell, “October 1643”, p. 71-82, para uma análise desse assunto na Assembléia de Westminster. Powell defende que essa foi uma controvérsia exclusivamente britânica no que diz. respeito à eclesiologia reformada.

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categoria “católica-visível” nem sempre se enquadravam adequadamente nos respectivos cam pos presbiterianos e congregacionais, pois com certeza havia mais de duas opiniões sobre o assu n to /' Por exemplo, alguns congregacio­ nais negavam totalmente essa categoria. Veja-se, por exemplo, o prefácio que Isaac Chauncy (1632-1712) escreveu para a obra póstuma de Owen, T h e trne natuxe o f a g o s p e l ch u rch [A verdadeira natureza de uma igreja do evangelho].

“As Escrituras não falam de uma igreja católica visível”, afirma Chauncy. “A coisa em si não passa de quimera da cabeça de alguns hom ens”.''^ Cotton também rejeitava totalmente a ideia.” Mas a maioria dos congregacionais afirmava a existência de uma igreja católica visível, mas negava que qualquer autoridade político-estrutural estivesse associada a ela.'"' A posição de Owen foi consistente desde 1657, quando tratou pela primeira vez e em profundidade a questão, e daí para frente até o final da vida, mas sua posição não era igual à adotada por Chauncy no prefácio que escreveu para a obra de Owen.” À sem elhança da maioria de seus irmãos congregacionais, Owen define a categoria católica-visível com o a igreja “em sua profissão de fé exterior [...] à qual pertencem todos aqueles que professam [...] a Cristo”. Ela “abrange todos aqueles que em todo o mundo aceitam exteriormente o evan­ gelho”.” À sem elhança de outros congregacionais e assumindo uma posição inflexível, Owen defende que, com o se trata de uma categoria universal e não particular, ela não tem “nenhuma lei ou regra de ordem e governo que assim lhe tenham sido dadas; [...] assim é [impossível]” para a igreja “colocar em prática quaisquer dessas leis ou regras”. Aliás, não há “um ou vários dirigen­ tes homogêneos que, por vocação, têm sob seus cuidados, por incumbência dada por Jesus Cristo, a responsabilidade da administração da direção e do governo do todo”.” Ou, dito de outra m aneira, não existe a intenção de que algum “oficial ordinário da igreja” (sem dúvida fazendo distinção com o caso ''Isso está bem demonstrado em Powell, “October 1643”, p. 71-9. '^Isaac Chauncy, "Preface” a John Owen, The true nature o f a gospel church and its gover­ nment, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 16:4. Chauncy faz vários outros comentários retóricos parecidos nas p. 3 e 5. 'hohn Cotton, The way o f the congregational churches cleared (London: Matthew Simmons para John Bellamie, 1648), 2:5-6. '■ •Assim, a Declaração de Fé de Savoia afirma: “0 conjunto todo de homens em todo o mun­ do que professam a fé no evangelho e obediência a Deus por meio de Cristo de acordo com o evangelho [...] é e pode ser chamado de igreja católica visível de Cristo, embora, como tal, não lhe tenha sido confiada a administração de quaisquer ordenanças nem tenha quaisquer oficiais para dirigir ou governar cada congregação ou o corpo todo” (1658; reimpr., London: Evangelical, 1971), cap. 26.2. '^Acerca da aprovação da categoria por Owen, veja Of schism, in: Works, 13:156, 160, 248. '"John Owen, A discourse concerning evangelical love, church peace, and unity, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 15:81-2. "Owen, Of schism, in: Works, 13:152.

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extraordinário dos apóstolos) se relacione com “mais igrejas [...] ou qualquer outra igreja senão com uma única igreja específica”.™ A questão de uma igreja católica visível estava intimamente ligada e jus­ taposta à questão — debatida no século 17 — de quem recebeu as chaves. Conforme assinalado, os presbiterianos acreditavam que as chaves haviam sido dadas à igreja católica visível, conforme representada em seus oficiais.™ Por isso, era necessário haver o exercício nacional, político e sinodal daquela autoridade sobre os crentes em múltiplas paróquias.“ Por outro lado, os congregacionais insistiam que não existia autoridade e poder eclesiástico algum fora de assembleias na igreja local. Nas palavras da Declaração de Savoia, Cristo deu a “sociedades ou igrejas distintas” o “poder para a instituição, ordem e governo da igreja” (artigos 1-4) e essa dádiva procede “diretamente” do próprio Cristo e não por intermediários (artigo 5). Assim, “além de cada uma dessas igrejas distintas, não existe instituída por Cristo igreja alguma mais ampla ou católica a quem tenha sido confiado o poder de administrar as ordenanças dele ou 0 exercício de qualquer autoridade em seu n om e” (artigo 6).®' Pastors a n d p eo p le [Pastores e povo], a obra eclesiológica mais antiga de Owen, emprega a palavra “igreja” basicam ente para se referir à igreja uni­

versal ou católica visível. De forma parecida, nas breves referências que faz naquela obra às chaves do reino, ele atribui o poder delas aos “oficiais” ou “ministros”. Ele até mesmo dá a entender que, se as chaves foram dadas ao “povo”, este poderia usá-las para “trancar [os clérigos] fora da igreja”.®^ Por razão desconhecida, os escritos eclesiológicos de Owen de 1646 a 1648 não fazem referência alguma à questão das chaves em Mateus 16, mas clara e repetidamente expressam a natureza e com posição da igreja. Em suas obras “Country essay” [Ensaio sobre o país] e Eshcol [Escol], ele define a igreja quase exclusivamente no que diz respeito a sua manifestação particular de igrejas locais reunidas. Seus membros deviam ser pessoas regeneradas e voluntárias, constituindo uma sociedade visível de santos em aliança que nom eiam seus próprios presbíteros e que, com esses presbíteros, admitem novos membros e ^*Owen, Of schism, in: Works, 13:126 (grifo do autor). O exame que Goodwin faz deste assunto e das questões correlatas de autoridade, ofício e natureza da igreja é o mais completo dos congregacionais puritanos. Veja Goodwin, Government o f the churches, in: Works, 11:1-298. ”Veja Samuel Rutherford, The due right o f Presbyteries (London: E. Griffin para Richard Whittaker e Andrew Crook, 1644), p. 9-19. “Veja Rutherford, The due right o f Presbyteries, p. 54-62; The divine right of church-govern­ ment, p. 13-8. *'Para os congregacionais, a autoridade do magistrado era assunto distinto, não estritamente eclesiástico, não estritamente uma função das chaves. Veja o exame desse assunto em John Owen, An inquiry concerning... Evaitgelical churches, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 15:238-47. “Owen, Duty of pastors, in: Works, 13:5.

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exercem disciplina. Todos os indícios são de que, caso Owen tivesse tratado da questão das chaves em seus escritos congregacionais mais antigos, teria defendido, como outros congregacionais, que quem recebe as chaves é a igreja dos crentes e não os pastores ou oficiais. Mas as obras posteriores e mais mi­ nuciosas em que Owen se ocupa da eclesiologia certam ente tratam da questão das chaves, mas nelas vemos uma nova ideia na eclesiologia de Owen.

A autoridade da igreja: quem tem as chaves? Não é fácil determinar a posição de Owen sobre quem recebeu as chaves. Dito de modo simples, ele não se enquadra nos moldes típicos da interpretação congregacional: às vezes parece enfático de que as chaves de Mateus 16 foram dadas aos presbíteros, e não ao povo, e em outras horas parece insistir com igual ênfase que elas forãm dadas ao povo e não aos presbíteros. Para complicar ainda mais, no cálculo de qualquer pessoa existem inúmeros usos das chaves, isto é, várias áreas em que as chaves devem ser usadas, por exemplo, a nom ea­ ção de presbíteros, a admissão de novos m embros, o exercício da disciplina, o ministério da Palavra (seja na profecia leiga, seja na pregação pastoral), o culto da igreja e a liderança ou “governo” geral da igreja. Já nos referimos à abor­ dagem de Cotton, que fazia distinção entre o poder e a autoridade das chaves — 0 primeiro era dado aos m embros; a segunda, aos presbíteros. Goodwin e Nye propuseram uma distinção entre “autoridade doutrinária pastoral” (auto­ ridade para pregar e ensinar) e o “poder de exclusão”, que é responsabilidade da “igreja como um todo”.**^ Outros propuseram distinguir entre o “primeiro recipiente” [proton d ek tik o n ) e “recipientes secundários” das chaves, ou entre “autoridade” e “jurisdição”.*^ Outra ideia era que primeiramente a igreja rece­ beu as chaves, mas agora os presbíteros “atuam com o seus representantes”.** E, então, havia aqueles que se posicionaram mais claram ente de um lado do que de outro. Por exemplo, embora Rutherford cresse numa igreja nacional abrangente, afirmava que “as chaves foram dadas a Pedro como representante dos apóstolos e dos sucessores dele em sua responsabilidade pastoral, não como representante de todos os crentes”.** No caso de Owen, porém, parece que não havia nem um a aceitação clara e total de um ponto de vista específico, nem uma descrição categórica e con­ sistentemente m atizada entre as duas idéias principais. Também não parece que essa seja uma daquelas ocasiões em que Owen muda de posição. Pelo contrário, sua abordagem das chaves é exposta de forma bem complexa, até "^Goodwin; Nye, “To the reader”, in: Ke)>es o f the kingdom, de John Cotton, não paginado. “Veja Powell, “October 1643”, p. 54-82. “Powell, “October 1643”, p. 81. “ Rutherford, The due right o f Presbyteries, p. 18-9 (veja tb. p. 9-17).

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mesmo confusa, em várias obras espalhadas ao longo de muitos anos. Seus estudos mais minuciosos das chaves se encontram em T h e tru e n a tu re o f a gospel ch u rch (1689) e em A b rie f instruction in th e w orship o f God a n d disci­ p line o f the ch u rch es [Uma breve instrução sobre o culto a Deus e a disciplina

das igrejas] (1667).*^ O extenso estudo de Owen sobre as chaves em Thie n atu re o f a gospel church inicia defendendo que a confissão de Pedro em Mateus 16 “foi o fundamento sobre o qual [Cristo] concedeu as chaves do reino”; portanto, “todo poder da igreja [foi dado] aos crentes”.®®Owen sugere que esse poder e o lugar que tem no corpo da igreja devam ser exercidos de várias maneiras: (1) como lugar de privilégio concedido pela adoção espiritual em Cristo; (2) em reuniões con­ juntas para “edificação m útua”; (3) na prática de “todos os deveres da igreja” ordenados por Cristo, com o confessar uma única fé ; (4) na “administração de suas normas solenes de culto”; (5) na ordenação e nom eação de “oficiais”; e (6) numa afirmação de esclarecim ento de que é a igreja a quem “são con­ cedidos 0 direito e o poder de chamar, escolher, nom ear e separar pessoas” para esses ofícios.®’ Algumas páginas depois Owen reitera: “Esse poder, sob 0 nome de ‘as chaves do reino dos céu s’, foi originalmente concedido a toda a igreja de crentes professantes”. Aqui ele sugere que o uso das chaves pela igreja é “um duplo exercício: primeiro, no cham ado ou escolha dos oficiais; segundo, em sua ação voluntária com eles e sob a liderança deles em todas as responsabilidades de governo”.’®Essa dualidade do chamado de oficiais pela igreja e a subsequente submissão desta àqueles oficiais é, conforme veremos, importante para a maneira de Owen entender a autoridade eclesiástica. Owen com enta que, até aí, havia tratado do assunto apenas “objetivamen­ te”, mas que também precisava ser tratado “subjetivam ente”. Não está claro o que ele quer dizer com essa distinção, exceto que o aspecto subjetivo envolve os “oficiais da igreja” no “exercício” do “governo que Cristo designou para ela”.” Posteriormente, ele faz distinção parecida. O cham ado de presbíteros, segundo ele, “é um ato do poder das chaves do reino dos céu s” e essas “ch a­ ves foram original e propriamente dadas à igreja toda”.’^ E, contudo, também são dadas “aos presbíteros [...] para o exercício do ministério”. Ou, de forma ligeiramente diferente, “a outorga do poder da igreja” é “feita à igreja toda. ®’Owen, in; The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 16:1-208 e 15:445-530 respectivamente. “Owen, Gospel church, in: Works, 16:15. “Owen, Gospel church, in: Works, 16:36-7. ”Owen, Gospel church, in: Worfes, 16:40. ’’Owen, Gospel church, in: Works, 16:40. ’^Owen, Gospel church, in: Works, 16:63.

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embora fdeva] ser exercido apenas por seus presbíteros”.'^^ Essa distinção já começa a mostrar a dificuldade de determinar a exata posição de Owen. Quando ele passa a apresentar explicações sobre o que disse anteriormente, o quadro pode se tornar ainda mais obscuro. Primeiro, Owen insiste que a igreja é sempre uma “sociedade voluntária”, e, desse modo, a relação entre “o pastor e o rebanho” consiste necessariamente numa relação “voluntária m útua” de “um com o outro”. Por isso, a “sujeição da igreja” àqueles “qualificados para o ofício” tem sempre de ser por “con­ sentimento”. O u , como escreve de forma sem elhante em B rie f instruction in the worship o f God:

A eleição, pelo sufrágio e consentimento cia igreja, é exigida para chamar um jrastor ou mestre [...1 Nada é mais contrário a essa liberdade do que seus guias, dirigentes e superintendentes lhes serem impostos sem seu consentimento. Além disso, 0 corpo da igreja tem a obrigação de se desincumbir de seus deveres com Cristo cm cada uma de suas instituições, o que não conseguem fazer, caso não possam consentir com liberdade na escolha de seus pastores ou presbíteros, mas sejam considerados pessoas mudas ou criaturas irracionais.” Owen é inflexível em afirmar que as igrejas individuais precisam ser livres para escolher seus pastores e presbíteros. Ele é claro e consistente nesse ponto. Às vezes expressa isso recorrendo à terminologia do poder das chaves. Sua segunda explicação sobre o consentim ento da igreja vai numa dire­ ção ligeiramente diferente. Agora Owen acrescenta que a escolha e a eleição voluntárias de seus líderes pela igreja “não com unica um poder procedente daqueles que escolhem para aqueles que são escolhidos, como se tal poder [...] fosse formalmente inerente aos que escolhem ”. O processo de nomeação “é apenas um meio instrumental e ministerial de instituí-los naquele poder e autoridade que são dados a tais oficiais”.'^^ Em B rie f instruction o mesmo princípio é explanado, aí de forma mais extensa e matizada. Vale a pena deixar que por vários parágrafos Owen fale por si mesmo sobre o governo e o poder dos presbíteros;

Ou seja, o governo e a direção da igreja são, nas coisas que dizem respeito ao culto a Ueus, entregues a eles. E, portanto, o que quer que façam como presbíteros no governo da igreja, não o fazem em nome ou na autoridade da '’•'Owen, Cospet church, in: Works, 16:63 (grifo do autor). '’■’Owen, Gospel church, in: Works, 16:67. '’-Owen, Brief instruction, in: Works, 15:495-6. '”’Veja Owen, Gospel church, in: Works, 16:63-5. ‘’'Owen, Ciospel church, in: Works, 16:67.

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TEOLOGIA PURITANA igreja da qual procede o seu poder, nem como meros membros da igreja por seu próprio consentimento ou aliança, mas em nome e na autoridade de Jesus Cristo, de quem, em virtude de sua lei e ordem, recebem seu ofício e poder ministerial. De maneira que, quando qualquer poder eclesiástico é exercido com 0 consentimento da igreja, há uma obrigação derivada desse consentimento, a qual surge diretamente daquela autoridade que receberam de Jesus Cristo, a qual é a fonte de todo governo e autoridade na igreja (...] em consequência do que os presbíteros da igreja vêm a participar do poder e da autoridade que Cristo estabeleceu para serem exercidos em sua igreja [...] Embora recebam o poder pela igreja, ainda assim não o recebem da igreja. Nem, conforme foi dito, esse poder, do qual foram feitos participantes, residia formalmente no corpo da igreja antes de participarem dele, mas na realidade no próprio Cristo somente e moralmente em sua Palavra ou lei. E a partir daí o governo e a direção da igreja são entregues a eles por Cristo [...]. Quando, na condição de presbíteros, fazem ou afirmam qualquer coisa em nome da igreja, não manifestam autoridade alguma procedente da igreja e entregue a eles por ela, mas apenas afirmam o consentimento e a decisão da igreja no exercício de sua própria liberdade e privilégio [...] entregues a [eles...] por Jesus Cristo. Por isso, exige-se o consentimento da igreja para a atuação imbuída de autoridade dos presbíteros na própria igreja não porque o consentimento lhes acrescente alguma nova autoridade, a qual potencial e inerentemente não possuíam antes, mas, em virtude do preceito do evangelho, exige-se isso para a atuação ordeira de seu poder, o qual sem o consentimento seria contrário ao preceito e, portanto, ineficaz.’* Owen afirma que a autoridade dos presbíteros não é recebida do povo, mas

apenas e diretamente de Cristo. Eles são exclusivam ente seus “m ordom os” no ministério da igreja. O “consentim ento” da igreja é “exigido” (Owen não diz sobre quais assuntos], mas esse consentim ento não deriva da autoridade da congregação. É simplesmente um “preceito do evangelho”. É necessário ser “ordeiro”; qualquer outra coisa seria “ineficaz”. As chaves não são mencio­ nadas na citação anterior, mas a ênfase parece recair sobre a autoridade dos presbíteros e sobre o exercício exclusivo de poder por eles. Posteriormente em sua obra, Owen volta a esses assuntos, especificamente no que diz respeito ao importante precedente da disciplina na igreja e da ex­ clusão. Aqui a expressão das chaves reaparece. Novamente uma longa citação ajudará a demonstrar as possíveis peculiaridades da sistem atização de Owen;

Foi demonstrado que esse poder [de exercer a disciplina] é concedido à igreja em virtude da lei e da determinação de Cristo. Ora. essa lei tanto designa os meios e ‘’®Owen, Brief instruction, in: Works, 15:499-501.

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a maneira pelos quais qualquer pessoa adquire o direito a esse poder quanto faz as devidas provisões para todos os envolvidos nele. O que essa lei, determinação ou palavra de Cristo define com relação a quaisquer pessoas nessa condição é que, pela maneira ou meios com que foram incumbidos, eles têm a responsabilidade da direção. Assim, esse poder ou autoridade dados aos presbíteros da igreja não residem formal e primeiramente no corpo da igreja não estruturada ou distinta deles [...] mas eles próprios são intrinsecamente os primeiros sujeitos ao poder do ofício [...] Também, no que diz respeito a esse poder de disciplina — seja como for concebido — a igreja não recebe dos presbíteros o direito a esse poder, mas este lhe é concedido diretamente pela vontade e lei do Senhor Jesus [...] Dessa forma, a autoridade anteriormente descrita é entregue, em primeiro lugar, aos presbíteros da igreja. E esse poder de ofício pelo qual são capacitados a se desincumbir de todo seu dever [...J é denominado “o poder das chaves”.’’ Em suma, pelo menos nesse parágrafo Owen vê os presbíteros como os “pri­ meiros a receber” (proton d ek tik on ) as “chaves”. O exercício da disciplina está basicamente nas mãos deles. Prosseguindo, Owen deixa claro que não concorda com as distinções, que outros propuseram, entre “ordem ” e “jurisdição” ou entre “ministério” e “dis­ ciplina”. Pelo contrário, ele acredita que o “poder” é dado ao “ofício” todo e é em sua totalidade “ministerial”, proveniente da “autoridade de Cristo confiada” a eles.*“ Ele esclarece sim que “o corpo da igreja” também tem direitos na “administração desse poder de disciplina”. Ele relaciona duas maneiras como isso acontece: (IJ quando “consideram, examinam e julgam ” casos de discipli­ na; (2) quando dão seu “consentimento em todos os atos de poder da igreja”. Esclarecendo esta segunda maneira, Owen escreve que, “embora [o poder de disciplina] não pertença form alm ente” à sua “autoridade”, o consentimento das pessoas é “necessário p ara” a “validade e eficácia” da disciplina como um todo.'®' Ademais, Owen insiste que as pessoas têm a “liberdade de discordar, quando seja proposto fazer” algo sem “fundamentação [...] na Palavra”. Em T m e n a tu re o f a gosp el ch u rch , os tópicos “admissão e exclusão” de membros são tratados em conjunto. Nessa obra, Owen deixa claro que a base e 0 exercício de autoridade são os m esmos tanto para a porta da frente da igreja quanto para a dos fundos. “Ambas são atos de poder da igreja [...] que devem ser exercidos apenas pelos presbíteros”.""^ Isso mesmo, o corpo da igreja tem um “poder inerente” de “receber em seu seio” e também de “rejeitar ou ’’Owen, Brief instruction, in; Works, 15:514. ““Owen, Brief instruction, in: Works, 15:513-4. '“'Owen, Brief instruction, in: Works, 15:515-6. '“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:516. '“Owen, Gospel church, in: Works, 16:136.

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recusar” seus privilégios, mas nesses “ato s” da igreja, “não existe nenhum exercício do poder das chaves”.“’“ Por outro lado, os “presbíteros ou dirigentes” possuem uma “autoridade ímpar entregue” a éles “para esses ato s” de “admis­ são e exclusão de m em bros”. Em resum o, “a chave do governo é entregue aos presbíteros da igreja, para ser aplicada com o consentimento do grupo todo”.'®^

Análise da posição de Owen O que se pode dizer da abordagem de Owen acerca das chaves nessas duas importantes obras eclesiológicas posteriores? Algumas observações se apre­ sentam para consideração. Em primeiro lugar, precisamos assinalar as situações em que parece haver uma possível incoerência ou pelo menos incerteza. O exemplo mais notável é que às vezes as chaves são atribuídas por Owen ao corpo da igreja corn base na fé professada pelo corpo da igreja e outras vezes atribuídas diretamente por Cristo aos presbíteros, não sendo intermediadas pelos santos. Às vezes, essas afirmações recebem , no contexto, matizes, explicações e ressalvas adicionais, mas não de forma coerente ou uniforme. Com frequência, seus contem po­ râneos adotaram suas próprias taxonom ias para decom por a estrutura da autoridade e repetidas vezes m encionavam essas distinções quando falavam das chaves. Não foi o caso de Owen. Assim sendo, não está claro se sua ideia é que as chaves foram dadas à igreja e são exercidas pelos presbíteros ou se foram dadas à igreja, da qual os presbíteros são representantes, ou se existem chaves distintas ou partes distintas das chaves, as quais são distribuídas entre os oficiais e o povo. Estudos adicionais talvez ajudem a aclarar o pensamento de Owen sobre as chaves. Mas, a esta altura, parece que Owen, ao contrário de muitos outros do século 17 que expressaram com clareza suas idéias sobre 0 poder eclesiástico, nunca chegou a uma descrição das chaves que fosse clara, expressa com coerência e explicitamente matizada. Em segundo, quando Owen afirma que as chaves foram entregues direta­ mente aos presbíteros para o exercício da “admissão e exclusão” de membros, ele está se identificando, em term os gerais, mais com a corrente interpretativa presbiteriana do que com seus irmãos congregacionais. É surpreendente que ele também esteja revelando que sua posição posterior é basicam ente coerente com as referências concisas em sua obra eclesiológica mais antiga, escrita quando era presbiteriano declarado; ali ele atribuiu as chaves aos “ohciais” em vez de ao “p ovo”. O exemplo da disciplina e da exclusão é revelador. Quase todos os congregacionais reconheciam o necessário papel '"■’Owen, Gospel church, in: Works, 16:136-7. ‘®Owen, Gospel church, in: Works, 16:137.

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de liderança que os presbíteros tinham na adm oestação e exclusão, mas a chave da disciplina (ou aquela função das chaves) era geralmente associada à congregação com o um todo em vez de a ministros.'®* Owen atribui essa parte das chaves aos presbíteros e só sucintam ente reconhece a necessidade de obter 0 “consentim ento” pela congregação. É o oposto de Keys de Cotton.'®’ É possível que na prática o funcionam ento do modelo de Owen não fosse diferente do de Cotton ou do de Goodwin, mas a linha teológica/exegética e as ênfases são diferentes. Nisso a cam inhada de Owen para o congregacionalismo não seguiu de modo uniforme um cam inho e modelo únicos. No entanto, é igualmente necessário assinalar que provavelmente sua abordagem das chaves está mais próxim a da de Cotton do que da de qualquer outro, visto que Cotton tam bém atribuiu diretam ente aos presbíteros uma porção significativa das chaves.'®® Em terceiro, à luz disso, tam bém é preciso afirm ar com toda firmeza que nas obras eclesiológicas posteriores de Owen não existe nada que se desvie das doutrinas básicas do congregacionalism o. A entrega das chaves aos “ir­ m ãos” era um dos argum entos a favor do congregacionalism o — e que era usado com frequência pelos contem porâneos de Owen — , mas a outra ideia substancial, de que as chaves foram dadas aos ministros, por si só não exigia uma ideia presbiteriana de igreja. Owen é prova disso porque, com eçando em 1648 e pelo resto de sua vida, para ele a natureza da igreja era de um grupo local ou particular de crentes reunidos, voluntários e regenerados. Ele também tinha posição clara e coerente de que a designação de oficiais deveria ser tratada na igreja local e sem pre precisava estar sujeita ao consen­ timento da igreja. É revelador que no pensam ento de Owen não exista nada que contradiga diretam ente qualquer coisa dos docum entos da Assembléia de Savoia.'“®Ele nunca associa as chaves à igreja católica [universal] visível nem vislumbra um corpo de oficiais exercendo autoridade sobre múltiplas igrejas. Por isso, ao contrário do que alguns têm afirmado, não há motivo para crer que a última obra publicada de Owen sobre eclesiologia, T h e tru e '“'’Outro exemplo seria o documento da Nova Inglaterra A platform of church discipline \The Cambridge platform] (Cambridge: S(amuel] G[reen|, 1649), cap. 5. '“’Cotton, Keyes o f the kingdom o f heaven, p. 12-6. '““P. ex., veja John Cotton, The doctrine o f the church... (London; para Ben. Allen, 1644): “Pergunta .SO: A quern Cristo entregou o governo de sua igreja? Resposta: Em parte ao corpo, no que diz respeito à sua organização e estrutura, mas principalmente ao presbitério [ou grupo de anciãos], no que diz respeito à sua ordem e administração’’ (p. 10). À luz disso, a avaliação de Geoffrey Nuttall acerca da Assembleia de Savoia é infeliz: “Muitos deles passaram adiante a tradição mais radical e separatista, que descendia de Browne e Robinson e não de Cotton” [Visible saints: the congregational way. 1640-1660 [Weston Rhyn: Quinta Press, 2001 j, p. 19). ""’Embora a Ordem Eclesiástica de Savoia fale muito de “poder”, não há nenhuma referên­ cia explícita às chaves de Mateus 16.

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nature o f a go sp el ch u rc h , tenha sido uma volta ao presbiterianism o.’“ Em

certos aspectos, Owen pode ser um congregacional peculiar, tendo um m o­ delo ligeiramente m enos dem ocrático de congregacionalism o e, por isso, pode de fato ter pontos de concordância com o presbiterianismo, mas isso não 0 torna presbiteriano. Em quarto, não está claro, de acordo com Owen, como esse “consenti­ mento” da congregação aconteceria na vida e nas atividades de uma igreja congregacional ideal.'" De fato, parece que ele reconhece sua intenção de evitar esses detalhes quando escreve: “Não estabelecerei até onde o governo da igreja, com base no consentim ento necessário do povo para os atos prin­ cipais do exercício desse governo, pode ser cham ado de dem ocrático”."^ Em outras palavras, ele não se manifestará sobre exatam ente quão democrática deve ser a governança da igreja — por exemplo, se uma simples opinião da maioria é suficiente, ou em quais assuntos é preciso haver consentimento. Pelo contrário, ele insiste em apenas dois princípios bíblicos para o governo da igreja: (1) que ele seja "voluntário quanto à forma como é exercido” e (2) que ele “esteja em concordância respeitosa com a orientação das regras”."^ De um lado, ao longo de seus escritos eclesiológicos Owen fala, com relativa frequência, de “consentim ento” — às vezes mesmo quando faz as declarações mais enérgicas sobre o poder e a autoridade dos presbíteros. Ele também vê claramente o “sufrágio” (consentimento expresso mediante votação) como algo essencial para determinar aquele consentim ento."'' Por outro lado, ele critica regularmente aquilo que é meramente “dem ocrático”."® Ele também insiste que “quando qualquer coisa na igreja é executada e determinada por sufrágio ou pela pluralidade de vozes, o voto da fraternidade não é determinante e oficial, mas apenas declarativo de consentimento e obediência”."* Parece que essa dis­ tinção entre “consentim ento” e “autoridade” para o povo da igreja é peculiar a "“Contra Francis Nigel Lee, John Owen represbyterianized (Edmonton: Still Waters Revival Books, 2000); cf. os comentários de William Goold sobre o assunto em sen prefácio a John Owen, Gospel church, in: Works, 16:2. '"Embora infelizmente não dê quase atenção alguma à experiência eclesiástica de Owen, a recente obra de Halcomb oferece uma excelente descrição de como era a vida de uma igreja congregacional durante a Revolução Inglesa. Veja Halcomb, "Congregational religious practice”, esp. cap. 2-4. '"'Owen, Gospel church, in: Works, 16:131. "^Owen, Gospel church, in: Works, 16:131. "^Owen, Gospel church, in: Works, 16:131. Muito raramente Owen emprega o termo "voto”, preferindo usar em seu lugar os termos menos específicos “consentimento” e "sufrágio”. "Weja, p. ex., John Owen, An inquiry into the original, nature, institution, power, order, and communion o f Evangelical churclws, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 15:194. "(■ Owen, Gospel church, in: Works, 16:131.

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Owen: o consentimento do povo é necessário “por natureza”, mas o seu “voto” não é um exercício de autoridade."^ Também revelador é o conselho que dá a oficiais quando a assembleia da igreja se recusa a dar seu consentimento às decisões ou atividades deles. Os pastores precisam: (1) instruir; (2) advertir; (3] aguardar; e, se necessário, (4) aconselhar-se com outras igrejas."® Isso é revelador para os dois lados da relação entre oficiais e membros da igreja. Os oficiais não podem governar de forma autocrática, soberana ou absoluta, mas precisam liderar “naturalm ente”; os membros não podem destruir a “bela ordem que o Senhor Jesus determinou”, o que tenderia à “desordem” ou até mesmo à “anarquia”. " ’ Em sum a, não está bem claro onde o caminho da autoridade ministerial e o do consentim ento congregacional se cruzam , se sobrepõem e às vezes entram em conflito na eclesiologia e prática de Owen, mas ele está decidido a manter os dois em tensão — uma tensão peculiar base.tda em sua própria combinação de argumentos exegéticos, doutrinários, históricos, práticos e escolásticos.

Conclusão Uma eclesiologia bem refletida é uma das contribuições mais importantes que os puritanos deram às gerações que vieram depois deles na igreja. Mas, à se­ melhança da maioria das outras contribuições na história da igreja, não foram tanto suas áreas de concordância, mas, antes, suas profundas discordâncias e seus acalorados debates que têm se mostrado mais instrutivos para os que seguem seus passos. Em meados do século 17, “os piedosos” estavam unidos quanto à necessidade de uma “reforma adicional” na forma de governo da igreja. A Assembleia de Westminster na década de 1640 e as tentativas de um acordo eclesiástico cromwelliano na década de 1650 são excelentes exemplos dessa esperança de “unir os piedosos” em uma única igreja nacional.'“ Mas, no final das contas, as diferenças eclesiológicas — em especial entre os dois grupos principais, os presbiterianos e os congregacionais — constituíram uma barreira intransponível para essa unidade visível."" Apesar disso, em seu de"'Quanto aos argumentos de Owen de que o consentimento é necessário simplesmente por natureza, veja Owen, Gospel church, in; Works, 16:131-6. "®Owen, Brief instruction, in: Works, 15:502. O contexto trata, com mais detalhes, de cada um desses quatro pontos. "'’Owen, Gospel charcii, in: Works, 16:131. '“Veja Ryan Kelly, “Reformed or reforming: John Owen and the complexity of theological codification for mid-seventeenth-century England”, in: Kelly Kapic; Mark Jones, orgs., Ashgate research companion to John Owen (Aldershot: Ashgate, 2012]. '-'Na Inglaterra, os presbiterianos e os congregacionais permaneceram separados uns dos outros até 1972, quando a Igreja Presbiteriana da Inglaterra e a Igreja Congregacional da Inglaterra e do País de Gales se fundiram para formar a Igreja Reformada Unida.

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sejo de uma unidade reformada, no entusiasmo de suas convicções e em suas exaustivas análises e debates, encontramos um modelo para que seus herdeiros e sucessores sigam. Esperam os que este capítulo tenha mostrado que, se há algum tema teológico repleto de complexidades para os crentes reformados, esse tema é a eclesiologia.

Capítulo 40 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□QDDaaDaDDaüDDDDDODDDDODDDDD

Os puritanos e os ofícios na igreja □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□aaDaaanaDaaDnaDDDnaDnnona

O [mestre] tem a Bíblia e a estrutura, ou disposição d e pala­ vras proveitosas, para lhe servir d e texto; o outro estuda mais os hom ens e procura a dequa r a Palavra a eles. E o pastor é a quele capaz d e d iscernir o q u e é sin gularm ente adequado ao espírito dos hom ens e, p o r esse motivo, fala com sabedoria aos hom ens, ao passo q u e o outro fala com p ertinência sobre verdades. Um coloca Escritura ao lado d e Escritura e com para um a passagem com a outra; o outro separa e divide a Palavra, e u n e as Escrituras à consciência dos hom ens [ ...] O pastor trata mais d e assuntos práticos, d e coisas q u e se deve fazer; o outro, d e assuntos d e fé, d e coisas q u e se dev e crer [ ...} O pastor trata mais dos pecados dos hom en s; o mestre, m ais dos erros dos hom ens; u m trata d e inform ação; o outro, d e mortificação. Um exam in a mais o ofício sacerdotal d e Cristo, m atando o velho hom em [ ...} o outro se ocupa m ais do ofício profético d e Cristo d e revelar verdades, assim como o presbítero trata mais do ofício real d e Cristo d e governar a consciência dos hom ens.

T homas Goodwin'

A questão a respeito da forma correta de governo que Cristo determinou para sua igreja gerou um intenso debate e resultou em divergências duradouras entre teólogos puritanos. O capítulo anterior examinou alguns desses debates e divergências entre presbiterianos e congregacionais. Apesar das diferenças 'Thomas Goodwin, The constitution, right order, and government o f the churches o f Christ, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Re­ formation Heritage Books, 2006), 11:338-9.

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entre os dois grupos, os puritanos concordavam na rejeição do “papism o”, a reivindicação do papa ou bispo de Roma de ser o cabeça da igreja católica visí­ vel, e da “prelazia”, a ideia de que um único hom em deve ser “promovido” ou colocado sobre outros, exercendo sozinho o poder com o bispo de uma diocese ou arcebispo de uma província. Havia também uma concordância geral sobre quais ofícios Cristo tinha dado à igreja, tanto aqueles que foram concebidos para sempre existirem na igreja quanto aqueles que não o foram. Jeremiah Burroughs (c. 1600-1646) sintetiza a posição puritana básica, afirmando que “a igreja não pode ter nenhuma pessoa ocupando um cargo senão aqueles que existem por designação divina, que são presbíteros ou diá­ conos ou, mais especificamente, mestres, presbíteros e diáconos, mediante os quais Cristo cuida de todas as necessidades da igreja’? Os teólogos puritanos empregavam vários nomes para denotar as pessoas que ocupavam esses cargos, mas estavam unidos na rejeição de que o ofício de bispo implicasse o direito ao episcopado. Por exemplo, os apologistas (congregacionais) na Assembleia de Westminster, John Owen (1616-1683) e os presbiterianos escoceses, pensa­ vam todos eles basicam ente da mesma maneira acerca dos ofícios da igreja. Os presbiterianos ingleses, como Lazarus Seaman (m. 1675) e Cornelius Burgess (c. 1589-1665), tinham uma ideia mais hierárquica das assembleias da igreja do que os escoceses ou os apologistas, mas ainda assim se opunham conscien­ temente ao episcopado. A bem conhecida obra presbiteriana Ja s d iv in u m regiminis ecdesiastici, or, the d iv in e right o f ch u rch -g o v em m en t [Jus d iv in u m regim inis ecdesiastici, ou o direito divino do governo da igreja] (1 6 4 6 ), afirma

estar de acordo com os independentes no que diz respeito aos ofícios da igreja: “Onde está a superioridade da forma de governo dos independentes? Não têm eles somente aqueles ofícios que o próprio Cristo designou: pastores e mestres, presbíteros regentes e diáconos? Assim tam bém com os presbiterianos”.^ Como parte de seus argumentos contra a prelazia e o papismo, os puritanos elaboraram a natureza e a função básicas de cada ofício na igreja local. Quer presbiteriana, quer congregacional, a igreja local requeria pastores, presbíte­ ros e diáconos para funcionar de acordo com o padrão encontrado no Novo Testamento. Pelo fato de os teólogos puritanos serem teólogos da aliança, o conceito de igreja não se limitava à dispensação da nova aliança, mas teve seu início com Adão, em Gênesis. Assim, os ofícios da igreja não são totalmente Ueremiah Burroughs, The petition for the prelates briefly examined. Wherein you have these pleas forpraelacy, discussed, and answered, etc. (London, 1641), p. 31-2. Veja tb. Hunter Powell, “The Dissenting Brethren and the power of the keys, 1640-44” (tese de doutorado, University of Cambridge, 2011), p. 29. ^Assembleia Provincial de Londres], “Preface”, Jus divinum ministerii evangelici. Or the divine right o f the gospel-ministry: divided into two parts... (London: John Legal and Abraham Miller, 1654).

Os puritanos e os ofícios na igreja

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novos na era das boas-novas da igreja, mas têm raízes no Antigo Testamento. Dito isso, a nom enclatura específica dos vários ofícios perpétuos (isto é, pastor/mestre, presbítero regente, diácono) é peculiar à nova aliança e será 0 propósito deste capítulo. Além do mais, este capítulo procurará apresentar a posição puritana básica sobre os ofícios, mas a atenção estará concentrada principalmente em John Owen e Thomas Goodwin (1 6 0 0 -1 6 8 0 ), embora sem excluir outros pensadores importantes sobre o tema.

Eclesiologia trinitária À semelhança de John Owen, Thomas Goodwin insistia numa teologia to­ talmente trinitária, não apenas uma doutrina trinitária da salvação. Por esse motivo, Goodwin defende que os oficiais da igreja e a sua necessária capacita­ ção “são a obra conjunta e distinta das três pessoas” da divindade.'* De modo parecido, Owen cham a a atenção para o fato de que Cristo foi chamado a seu ofício por seu Pai mediante a unção do Espírito Santo, o que ressalta o contex­ to trinitário do ministério do próprio Cristo.^ Goodwin cita ICoríntios 12.4-6, que mostra que o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm um papel na distribui­ ção de dons — inclusive de oficiais da igreja — à igreja. Os ofícios na igreja são dons dados pelo Cristo que ascendeu ao céu; são seu legado (Ef 4.11).* A partida de Cristo foi também seu retorno à medida que a descida do Espírito é a vinda do Espírito de Cristo para apoderar-se dos crentes e neles habitar (Rm 8.9; Ef 3 .1 7 ). Ao edificar a igreja, por meio do Espírito Santo, Cristo dá dons a seus oficiais. De acordo com Goodwin, a dádiva do Espírito concedida por Cristo edifica a igreja não só extensam ente (i.e., mais m em bros), mas também intensamente (i.e., mais graças).*' Os vários ofícios (p. ex., apóstolo, profeta, pastor/m estre) são dados à igreja de acordo com a vontade de Deus (ICo 12.18). Longe de ser um ato aleatório, a escolha que Deus faz de oficiais para a igreja reflete sua sabedoria e depende de seu poder para equipar cada pessoa para o ofício divino.* Mas quais ofícios Deus quis que continuassem existindo na igreja ao longo das eras?

Ministros extraordinários e ordinários Em sua famosa obra T h e m arrow o f theology [O cerne da teologia], William Ames analisa a diferença entre duas classes de ministérios na igreja: extraordinário ■’Goodwin, Government o f the churches, in: Works, 11:309. ’John Owen, The true nature o f a gospel church and its government, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 16:56. ‘Goodwin, Government o f the churches, in: Works, 11:310. ^Goodwin, Government o f the churches, in: Works, 11:310. “Goodwin, Govemmeru o f the churches, in: Works, 11:315.

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e ordinário.’ Essa distinção era com um entre os puritanos, e pelo visto a obra de Ames influenciou Owen, Goodwin e também os presbiterianos de Londres.'’ De acordo com Ames, um ministério “extraordinário” possui “um a direção mais elevada e mais perfeita do que a que pode ser alcançada com meios ordinários”." Assim, um “ministro extraordinário” é alguém que ministra sem erro e recebe sua autoridade diretamente de Deus por intermédio de Jesus Cristo e do Espírito S a n to .C o m “diretam ente” Ames não quer dizer que isso necessariamente exclua o uso de meios humanos, pois Eliseu e Matias foram chamados por homens. No entanto, ainda assim no cham ado deles estava envolvida uma direção infalível. Assim, os profetas, apóstolos e evangelistas do Novo Testamento foram ministros extraordinários que, de forma extraordi­ nária, instituíram igrejas, conservaram -nas ou restauraram -nas depois de sua ruína.'^ Homens como João Wycliffe (c. 1328-1384), Martinho Lutero e Ulrico Zuínglio não foram, contudo, “ministros extraordinários no sentido estrito”. Mas não é totalmente errado cham á-los de extraordinários, pois “realizaram algo semelhante àquilo que foi feito pelos ministros extraordinários do passado”.'’ Contudo a igreja não foi edificada sobre o alicerce desses homens, mas sobre 0 alicerce dos apóstolos e profetas e sobre o próprio Cristo, que é a principal pedra de esquina (Ef 2 .2 0 ). Os ministros extraordinários não apenas proclamaram a palavra divina, mas também instruíram perpetuamente a igreja com seus escritos. Esses escritos “estabeleceram a regra de fé e conduta” para a igreja e são “livres de todo erro por causa da direção direta e infalível que tiveram de Deus”.'’ De outro lado, o ministério ordinário se baseia na vontade de Deus conforme revelada naqueles escritos, preservados com o Sagradas Escrituras. As Escrituras são agora uma “regra perm anente” para os ministros ordinários, e estes têm permissão de fazer somente aquilo que está prescrito na Palavra de.Deus. Além do mais, os ministros ordinários são cham ados por Deus apenas de forma indireta, não direta. “São chamados ordinários porque é de acordo com a ordem estabelecida ’William Ames, The marrow o f theology, tradução para o inglês e edição de John Dykstra Eusden (Grand Rapids: Baker, 1997), p. 183. “Veja John Owen, The duty o f pastors and people distinguished, in; The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone &Hunter, 1850-1855), 13:29-49; John Owen, Eshcol: a cluster o f the fruit o f Canaan, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 13:73; Goodwin, Government o f the churches, in: Works, 11:320,499; Jus divinum, p. 96. Veja tb. J. I. Packer, A quest for godliness: the puritan vision o f the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 227-8. "Ames, Marrow, p. 183. “Ames, Marrow, p. 183-4. “Owen afirma que Cristo chamou “os apóstolos e evangelistas, em quem aquele chamado cessou" (Thue nature o f a gospel church, in: Works, 16:56); veja tb. p. 73. '’Ames, Marrow, p. 185. '^Arnes, Marrow, p. 185-6.

Os puritanos e os ofícios na igreja

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por Deus que podem ser e geralmente são cham ados a ministrar”. O propósi­ to deles é “preservar, propagar e renovar a igreja por meios regulares”.'* Por essa razão, na igreja da nova aliança agora existem três ofícios permanentes: ministros da palavra (pastores e m estres), presbíteros e didconos."" Deve-se observar que, com base no Novo Testamento, os puritanos defendiam que, à semelhança dos apóstolos, os ministros da palavra também eram presbíteros ou anciãos (IPe 5.1) e, além disso, que “presbítero” {presbyteros) e “bispo” {episkopos) eram duas palavras que designavam o mesmo ofício.

Pastores/bíspos De acordo com Owen, na igreja local Cristo colocou a autoridade nas mãos de bispos (presbíteros) e diáconos. Existem dois tipos de presbíteros: aqueles que ensinam, pregando a Palavra e ministrando os sacram entos, aos quais Owen se refere pela expressão “poder de ordem ”, e aqueles que dirigem, que é um “poder de jurisdição”.'* Embora haja uma distinção entre presbíteros docentes e regentes, ela não é tão absoluta ou categórica quanto a distinção entre presbítero e diácono. Os puritanos estavam unidos na rejeição do ofício de bispo conforme enten­ dido de uma perspectiva episcopal.'’ Ao refutar as afirmações dos prelatistas, os puritanos sustentavam que os termos “presbítero” e “bispo” são sinônimos. Edmund Calamy (1600-1666) relata que defendeu “perante uma comissão do parlamento” que “os bispos não apenas não eram um a ordem distinta dos presbíteros, mas que nas Escrituras bispo e presbítero eram a mesm a coisa”.“ '“Ames, Marrow, p. 190. '^Observe-se, no entanto, a exegese que Goodwin faz de Romanos em Government of the churches, in: Works, 11:326-33. ■ ®Owen, TYue nature o f a gospel church, in: Works, 16:42. '’Veja Smectymnuus, an answer to a book entituled. An humble remonstrance. In which, the originall o f liturgy episcopacy is discussed... (London: para 1. Rothwell, 1641). “Smectymnuus” se refere aos teólogos smectymnuanos e era um acrônimo de Stephen Marshall, Edmund Calamy, Thomas Young, Matthew Newcomen e William Spurstowe. “Edmund Calamy, A just and necessary apology against an unjust invective published by Mr. Henry Burton... (London: para Christopher Meredith, 1646), p. 9. Comentando sobre Petition examined, um manifesto congregacional, Powell observa: “A ênfase do panfleto gira em torno de dois temas relacionados. Primeiro, que no Novo Testamento cada grupo de crentes que se reúne é a igreja básica. Citando Cipriano, Burroughs afirma: ‘O tamanho de uma igreja não era maior do que toda uma multidão que um bispo poderia reunir para tratar dos assuntos dessa igreja’. O outro tema, comum a todos os panfletos do grupo de Calamy, era — conforme pala­ vras que, de acordo com Burroughs, foram ditas pelo ‘doutor Whitaker’ — ‘que por jure divino, um presbítero e um bispo são a mesma coisa’. Também citou Johan Gerhard, teólogo da Europa continental que influenciou significativamente o pensamento dos apologistas sobre a forma de governo. Baseado no uso de Atos 20.17,18 por Gerhard, Burroughs afirmou: ‘Não reconhecemos nenhuma desigualdade de jurisdição em que os bispos estejam acima dos presbíteros”’ (Powell, “The Dissenting Brethren”, p. 30).

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Owen assinala que as afirm ações de prelazia no que diz respeito à autoridade e ao controle específicos do bispo diocesano são “adm inistradas de formas muito distintas”; e, qualquer que seja a m aneira de se entender o papel do bispo, não há dúvida de que os “prelatistas” afirmam a “superioridade dos bispos sobre os presbíteros tanto em ordem quanto em grau ”.^‘ Owen entende, porém , que o Novo Testam ento m ostra “de forma incontestável” que são um único ofício, “têm a m esm a função, sem distinção de ordem ou grau”.^^ Para prová-lo, ele recorre a Tito 1.5-9 , que fala das qualificações dos presbíteros e emprega a palavra “bispo” com o sinônimo de “presbíte­ ro ”. E na congregação de Filipos havia vários bispos e não apenas um só (Fp 1 .1 ), 0 que refuta a ideia de que um único bispo possua autoridade sobre os p resb íteros/an ciãos. Owen argum enta incisivam ente que, como no tribunal de Cristo, os bispos terão de prestar contas de seu cuidado das almas (Hb 1 3 .1 7 ), talvez devessem pensar com m ais cuidado sobre “lutar pela am pliação de seus cu rato s”.^^ “O primeiro oficial ou presbítero da igreja é o pastor [...] o presbítero que alimenta e dirige o rebanho [...] que é o m estre e bispo do rebanho”.^“' Owen defende que um pastor — que é um título m etafórico — precisa exibir “amor, cuidado, ternura [e] vigilância” à medida que alimenta o rebanho confiado ao seu cuidado. No ofício pastoral, há duas partes envolvidas no “alim entar”, a saber, ensinar e dirigir. Em bora, no que diz respeito aos pres­ bíteros se faça distinção entre aqueles que ensinam e aqueles que dirigem, 0 pastor precisa tanto ensinar quanto d ir ig ir.E n s in a r e dirigir bem exigem dons e capacidades especiais transm itidas pelo Espírito Santo, com o aquelas concedidas a Cristo com o o Supremo Pastor. À sem elhança de Cristo, um pastor precisa demonstrar com paixão e am or pelo rebanho, manter constante vigilância sobre todo o rebanho, ser zeloso para a glória de Deus e ter uma vida santa e inculpável.^* Nenhum hom em pode assumir esse ofício sem um chamado legítimo e externo (Hb 5 .4 ). Se isso se aplica a Cristo, quanto mais para aqueles que são pastores a seu serviço! Os puritanos insistiam que o chamado da igreja era essencial para uma ordenação legítima. Por esse motivo, os pastores da Igreja da Inglaterra William Bridge (1600-1671), John Ward (c. 1599-c. 1658) e Sydrach Simpson (c. 1600-1655) renunciaram à sua ordenação “prelacial” e foram “ordenados de novo” com o pastores das igrejas a que foram chamados ^'Owen, 'Ihie nature o f a gospel church, in: -^Owen, True nature o f a gospel church, in: ^*Owen, Thte nature o f a gospel church, in: ^‘Owen, TYue nature o f a gospel church, in: “Owen, TYue nature o f a gospel church, in: “Owen, TYue nature o f a gospel church, in:

Works, Works, Works, Works, Works, Works,

16:43. 16:44. 16:43. 16:47. 16:48. 16:50-1.

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a servir.^^ A maioria dos puritanos teria visto essas reordenações como desne­ cessárias, mas todos eles eram incisivos em que o poder de cham ar um pastor pertence à igreja local e não ao proprietário das terras do lugar, ao magistrado ou ao bispo. Owen destaca que no cham ado de pastores exigem-se duas coisas: eleição e ordenação. Antes da eleição, os candidatos ao ministério devem ser examinados quanto à sua “aptidão”, ou qualificação e preparo, para a obra, e testados quanto a seus dons para edificação, “aquelas capacitações espirituais que, com esse objetivo, o Senhor Cristo concede e o Espírito Santo opera na mente de hom ens’?® No que concerne à igreja da nova aliança, que Owen cham a de “igreja fundamentada no evangelho”, o direito de cham ar ministros pertence à igre­ ja toda. Owen observa que, no que diz respeito à eleição de oficiais, aquilo que é descritivo no livro de Atos é prescritivo para a igreja na era pós-apostólica.^’ A eleição de presbíteros e diáconos na igreja tem uma ligação óbvia com a maneira como se devem entender as chaves do reino em relação a Cristo, aos oficiais de sua igreja e aos crentes. No entendimento dos apologistas, de Owen e de presbiterianos com o Samuel Rutherford (1600-1661), o povo tinha uma espécie de poder partilhado com os presbíteros. Conforme assinalado por Powell, “A peculiar elaboração das chaves, feita por Cotton e os apologistas, significava que podia haver um poder investido nos presbíteros e um poder no povo, mas aqueles poderes eram distintos. Os presbíteros eram o primeiro objeto do poder dos presbíteros, e a igreja era o primeiro objeto do poder da igreja. Rutherford cria que o povo podia ter o direito de votar na escolha de seus pastores, m as não cham ava isso nada mais do que um ‘poder popular das chaves’. Assim somos introduzidos em conceitos lógicos complexos de poder ‘virtual’ e ‘formal’”.“ Owen com certeza tinha a ideia de que os crentes são responsáveis por eleger presbíteros e diáconos, o que deve ocorrer sob a supervisão dos presbíteros, com o os apóstolos em Atos 1, que “presidiram 0 evento, dirigiram-no e confirmaram-no com seu consentim ento”.” Owen observa que o cham ado de presbíteros é um exercício do poder das chaves e que essas chaves são dadas à igreja toda. Assim, os presbíteros empregam ^'Keith L. Sprunger, Dutch Puritanism: a history o f English and Scottish churches o f the Netherlands in the 16th and 17th centuries (Leiden: Brill, 19821, P- 325. Escrevendo acerca da “reordenação, a Assembleia Provincial de Londres em 1654 assevera: “Sobre essa verdade, temos 0 consentimento da igreja universal, que não apenas não permite, mas condena uma segunda ordenação. Nem temos conhecimento de alguma igreja reformada que tenha tal ensino ou prá­ tica, mas sabemos de muitas que ensinam e praticam o oposto” (Jus divinum, p. 147). “ Owen, Thie nature o f a gospel church, in: IVorlcs, 16:55. “Owen, Thie nature o f a gospel church, in: Works, 16:56-7. “Powell, “The Dissenting Brethren”, 175-6. ’’Owen, Due nature o f a gospel church, in: Worfes, 16:61.

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as chaves apenas de uma perspectiva ministerial, isto é, os presbíteros são “os olhos para a igreja. Mas Deus e a natureza intentam [...] luz para o corpo todo, para a pessoa toda; para isso é concedida de forma intrínseca e irrever­ sível, mas na verdade está situada singularmente nos olhos. O mesmo ocorre com a concessão do poder eclesiástico; é dado à igreja toda, embora deva ser exercido apenas por seus presbíteros”.^^ Embora o corpo todo tenha o direito de eleger presbíteros e diáconos, o poder de ordená-los pertence exclusivam ente aos presbíteros.^^ Ao ordenar oficiais, os presbíteros — agindo de com um acordo como presbitério da igreja local — devem jejuar, orar e então de forma visível impor as mãos sobre o ordenando. A ideia de Owen, sem dúvida, era coerente com a dos Irmãos Dissi­ dentes, mas, conforme já assinalado, a posição de Owen também era coerente com a de muitos presbiterianos escoceses.^“ Conforme Packer observa, “o fato de Owen adotar princípios dos ‘independentes’ quanto à forma de governo não afetou em nada sua adesão a princípios presbiterianos de ordem, caráter e autoridade ministerial”.^^ À sem elhança de Owen, Rutherford faz distinção entre eleição e ordenação. Aliás, Powell mostra que George Gillespie (1613­ 1648), presbiteriano escocês, defendeu na Assembléia de W estminster que “a eleição ‘ordinariamente pertence à igreja local’, porque, ao contrário da exclusão e da ordenação, a eleição pelo povo não era assunto de ‘jurisdição e autoridade”’.^* Além disso, Powell observa que o presbiteriano inglês Lazarus Seaman “redarguiu, dizendo que ‘em todos esses detalhes o povo não tem absolutamente nenhum poder, mas é apenas passivo, isto é, tem certa liberdade e privilégio de consentim ento, mas o poder está somente no presbitério”’.^^ Observamos aqui que os presbiterianos ingleses e escoceses não estavam de acordo sobre os detalhes da eleição de oficiais. Os escoceses estavam, na reali­ dade, mais próximos dos apologistas e de Owen do que pessoas como Seaman e outros presbiterianos ingleses.^® Também é significativo que sobre esse assunto os presbiterianos escoceses concordavam com idéias reformadas da Europa ^^Owen, Thie nature o f a gospel church, in: Works, 16:63. ^^Owen, Thie nature o f a gospel church, in: Works, 16:64, 73. “Veja Samuel Rutherford, The due right o f presbyteries (London: E. Griffin para Richard Whittaker e Andrew Crook, 1644], p. 191-4; George Gillespie, An assertion o f the government of the Church o f Scotland... (Edinburgh: para James Bryson, 1641), p. 2. ^’Packer, A quest for godliness, p. 226. ^‘Powell, "The Dissenting Brethren”, p. 240. ^Towell, "The Dissenting Brethren”, p. 240. ^'Powell observa que “o escocês David Calderwood, um dos signatários da Liga e Aliança Solenes de 1643, censurou os delegados escoceses em Westminster por se parecerem demais com os ‘independentes’ no texto que escreveram no início de 1644 sobre o governo da igreja” (“The Dissenting Brethren”, p. 248). Veja também a análise, por Powell, das idéias de Gisbertus Voetius e John Cotton sobre o papel da congregação na eleição de presbíteros ("The Dissenting Brethren”, p. 183-5).

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continental, com o aquelas expressas no artigo 4 da Constituição Eclesiástica de Dort. É claro que tanto Rutherford quanto Owen diriam que a ordenação devia ser realizada pelo presbitério, m as discordavam sobre quem devia ser participante daquele presbitério, se apenas o presbitério da igreja local (Owen) ou 0 presbitério coletivo de várias igrejas de uma cidade ou região agrupados num “governo presbiteral” (Rutherford e os teólogos de Westminster).^^ O vigoroso debate sobre a relação entre eleição e ordenação revela muito sobre as tensões e discordâncias não apenas entre o presbiterianismo e o congregacionalismo, mas também entre os próprios presbiterianos. Dito isso, os presbiterianos e os congregacionais concordavam com a necessidade tanto de eleição quanto de ordenação, mesmo que suas ideias divergentes sobre a igreja visível levassem a discordâncias inevitáveis sobre esse assunto. Polly Ha observa que para os presbiterianos a ordenação é para o ofício de pastor, mas a eleição é para um corpo específico de pessoas.'*® Ela acrescenta: “O fato de a ordenação ser realizada por congregações específicas não conflitava com a autoridade de ordenar conferida à igreja universal visível, visto que ‘algo pode ser dado à igreja em geral e, ainda assim, sua execução ter de ser feita por pessoas específicas’ ”.'" Em outras palavras, para os presbiterianos a or­ denação significava mais do que simples eleição para servir a uma igreja em particular, visto que a igreja local estava atuando no interesse da igreja maior, representada pelo presbitério. Havia, contudo, concordância geral quanto aos múltiplos deveres dos pas­ tores na igreja local. Owen destaca 11 responsabilidades, incluindo; • Alimentar o rebanho mediante a pregação da Palavra. Antes de poder pregar com poder as verdades das Escrituras à sua congregação, o pastor precisa pregar à sua própria alma. • Orar contínua e fervorosamente por seu rebanho. Um sinal da sinceri­ dade do pastor em seu ofício pode ser sintetizado por sua vida — ou falta de vida — de oração pelo povo. Além do mais, a oração tem liga­ ção importante com a pregação da Palavra, pois “pregar a palavra [...] e não acom panhá-la com oração constante e fervorosa pelo seu êxito é descrer de seu uso, desconsiderar sua finalidade e jogar ao acaso a semente do evangelho”.“^ ”Veja Rutherford, Due right, p. 199. ‘“’Polly Ha, English Presbyterianism, 1590-1640 (Stanford: Stanford University Press, 2011), p. 107. ■ "Ha, English Presbyterianism, p. 107. O capítulo sobre governo da igreja explica com de­ talhes as diferenças entre presbiterianos e congregacionais sobre a natureza da igreja visível. “Ovt'en, lYue nature o f a gospel church, in: Works, 16:78.

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• Administrar os sacram entos. A principal finalidade dos sacramentos “é a confirmação e aplicação individuais da Palavra pregada”.^^ • Preservar e defender a doutrina do evangelho. O pastor precisa ter um “conhecimento claro, são e abrangente” da Palavra de Deus; precisa am ar tanto a verdade a ponto de dem onstrar cuidado e tem or quando estimula novas ideias/opiniões. Owen observa que “a curiosidade vã, as suposições audaciosas e a prontidão em ventilar suas próprias idéias têm causado grandes problemas e danos à igreja”.'*“ • Trabalhar com afinco pela conversão de almas. Owen defende que os meios ordinários de conversão pertencem à igreja visto que a causa instrumental de conversões é a pregação da Palavra de Deus, que é um dever dos pastores.“^ • Cuidar das necessidades dos crentes. Desde problemas espirituais até os físicos, 0 pastor deve cuidar das necessidades de seu rebanho, quaisquer que sejam (p. ex., visitar os enfermos, cuidar dos pobres e demonstrar compaixão pelos membros que sofrem) .'** • Ter uma vida piedosa. Owen afirma: “Se os pastores de [igrejas...] não são modelo de obediência e santidade baseadas no evangelho, a religião não avançará nem se aperfeiçoará entre o povo”.“*' As ênfases de Owen são bastante reveladoras sobre as m arcas de um fiel ministro do evangelho. O que foi dito aqui é totalm ente consistente com a incumbência dada por Paulo a Timóteo: “Tem cuidado de ti mesmo e do teu ensino; persevera nessas coisas. Dessa forma, salvarás tanto a ti mesmo como os que te ouvem ” (IT m 4 .1 6 ). Os escritos puritanos citam frequentemente esse texto quando m encionam que as m arcas que necessariamente devem ser buscadas num pastor são a piedade pessoal e a firmeza na fé.

Mestres A vasta maioria de teólogos puritanos postulava uma distinção entre pastores e mestres, mas, conforme Owen reconhece, “são bem variadas as idéias de homens doutos sobre quem as Escrituras cham am de m estres”.“* Alguns de­ fendiam o ofício de “doutor da igreja” ou “professores de teologia”, seguindo ‘*^Owen, TLue nature o f a gospel church, in: Works, 16:79. Observe-se que Goodwin afirma que "ensinar é uma ordem superior ao sacramento” (Goodwin, Government o f the churches, in: Works, 11:337). “^Owen, T)-ue nature o f a gospel church, in: Works, 16:82. “^Owen, TYue nature o f a gospel church, in: Works, 16:83. “^Owen, TTue nature o f a gospel church, in: Works, 16:87-8. “'^Owen, TTue nature o f a gospel church, in: Works, 16:88-9. ■“'Owen, line nature of a gospel church, in: Works, 16:97.

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Calvino e a Constituição Eclesiástica de Dort (artigo 2 ). Outros preferiam situar tanto mestres quanto pastores dentro do ministério da igreja local como dois tipos diferentes de ministros da palavra. Os que adotavam esta última posição eram bastante pressionados a mostrarem uma diferença categórica entre eles, mas assim mesmo se esforçavam por fazê-lo. Normalmente esses autores expunham a distinção apresentando as seme­ lhanças entre os dois ofícios e então as diferenças. Na análise que Goodwin faz desse tópico, ele assinala primeiramente que não existem coisas, como os sacramentos, que um pastor possa ministrar e que um mestre não possa. Além do mais, os pastores e mestres são m erecedores do mesmo respeito e honra (ITm 5.17). Contudo, há diferenças entre os dois ofícios.“’ Owen é panidário da ideia de que um mestre é um oficial distinto do pastor, porém, “seu ofício é do mesmo tipo que o do pastor, embora distinto em gradação, em aspectos tanto materiais quanto form ais”.^® Tanto Owen quanto Goodwin ressaltam primeiro a diferença entre pastor e mestre, assinalando os diferentes dons que cada oficial possui. Goodwin, por exemplo, assinala que doutrina e exortações são exigências de ambos os ofícios. Apesar disso, há uma ênfase diferente no tratamento dessas duas partes. O pastor, “mediante consolo e exortação, transforma todos os seus serm ões em aplicações, o [mestre] se empenha em ensinar a revelação divina”

Goodwin acrescenta:

O [mestre] tem a Bíblia e a estrutura ou disposição de palavras proveitosas para lhe servir de texto; o outro estuda mais os homens e procura adequar a Palavra a eles. E o pastor é aquele capaz de discernir o que é singularmente adequado ao espírito dos homens e, por esse motivo, fala com sabedoria aos homens, ao passo que o outro fala com pertinência sobre verdades. Um coloca Escritura ao lado de Escritura e compara uma passagem com a outra; o outro separa e divide a Palavra, e une as Escrituras à consciência dos homens [...] O pastor trata mais de assuntos práticos, de coisas que se deve fazer; o outro, de assuntos de fé, de coisas que se deve crer [...] O pastor trata mais dos pecados dos homens; o professor, mais dos erros dos homens; um trata de informação; o outro, de mortificação. Um examina mais 0 ofício sacerdotal de Cristo, matando o velho homem [...] o outro se ocupa mais do ofício profético de Cristo de revelar verdades, assim como o presbítero trata mais do ofício real de Cristo de governar a consciência dos homens.’-* Fica claro que o que Goodwin quer dizer é que pastores e mestres com ­ partilham os dons exigidos para seus respectivos ofícios como ministros da ■'’ Goodwin, Government of the churches, in: Works, 11:337-8. “Owen, 'lYue nature of a gospel church, in: Works, 16:103. ^'Goodwin, Government of the churches, in: Works, 11:338. ’^Goodwin, Government of the churches, in: Works, 11:338-9.

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Palavra. Mas sobressaem ou têm mais dons numa área do que em outra. Os dons que Cristo deu à igreja (Ef 4.11) resultam na distinção entre pastor e mestre, mas ambos os ofícios são de grande importância para as variadas necessidades do povo de Deus.

Presbíteros regentes Em sua fascinante obra sobre o presbiterianismo inglês, Polly Ha observou que em geral o debate era entre a forma episcopal de governo de igreja e a forma reformada ou presbiteriana: “Mais uma vez os presbiterianos associaram os abusos na prática episcopal à natureza do ofício de bispo, ao mesmo tempo que defendiam um plano prático de reforma mediante a instituição de sua própria forma de governo eclesiástico, especificamente mediante o papel do presbítero leigo O conceito de presbítero leigo não tinha lugar algum na estrutura da Igreja da Inglaterra. Assim, a reforma que os puritanos propuseram para a Igreja da Inglaterra incluía a introdução do presbítero regente como uma parte vital do governo da igreja de Cristo. De acordo com os teólogos de Westminster, “assim com o na igreja judaica havia anciãos do povo unidos com os sacerdotes e os levitas no governo da igreja, da m esm a maneira em sua igreja Cristo [...] supriu, além dos ministros da palavra, alguns com dons para governo, os quais devem se unir ao pastor no governo da igreja. As igrejas reformadas em geral dão a esses oficiais o nome de presbíteros”.®“ Os puritanos insistiam que o governo da igreja de Cristo pertence aos presbí­ teros ou anciãos. Embora nem todos os presbíteros sejam pastores ou mestres, a todos foi confiada autoridade para governar em nome de Cristo. Os presbíteros têm as chaves do reino, e, de acordo com Owen, essas chaves são “em geral classificadas sob dois títulos, a saber, ordem e jurisdição”.®® Somente pastores e mestres possuem a chave da ordem, a qual envolve pregar, inclusive “ligar e desligar” [Mt 18.19] a consciência dos homens, e a administração dos sacra­ mentos. A chave da jurisdição se refere “à direção, ao governo ou disciplina da igreja”.®^’ Presbíteros leigos têm direito à chave da jurisdição, assim como acontece com pastores e mestres. Owen apresenta as diferenças entre pastores e presbíteros regentes em relação a seus diferentes dons: “Alguns homens, que não têm nenhuma habilidade prática para o exercício de governo, são equipa­ dos com dons para dispensarem a Palavra e a doutrina de modo a alimentar o rebanho, e outros, que não têm nenhum dom para o desempenho do trabalho pastoral de pregar, são equipados para dirigir; aliás, é bem raro que esses dois ^^Ha, Eiiglish Presbyterianism, p. 38. ^■’“The form of presbyterial church-government" (Westminster Confession of Faith [Glasgow: Free Presbyterian, 1994], p. 402). ^^Owen, TYue nature of a gospel church, in: Works, 16:106. ^'’Owen, TTue nature of a gospel church, in: Works, 16:106.

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tipos de dons existam concomitante e destacadamente na mesma pessoa ou sem alguma deficiência bem perceptível”.^^ Isso não os desobriga de governar, pois o dever de governar é indispensável para o ofício de presbítero. Mas presbíteros regentes são aqueles homens que “acom panham com autoridade a conduta ou comportamento dos membros da igreja, exortando, consolando, admoestando, reprovando, encorajando, orientando-os, conforme as circunstâncias exigirem”.®® Isso não é sugerir que o pastor não deva fazer essas coisas, mas seus deveres de pregar e orar, inclusive a administração dos sacram entos “com todas as responsabilidades que são próprias da aplicação de tais coisas [...] ao rebanho, são geralmente suficientes para ocupar o homem todo, absorver o máximo da capacidade daqueles que são cham ados ao ofício pastoral na igreja”.®’ A evidência exegética que permite a distinção de presbíteros em dois gru­ pos — pastores e presbíteros regentes — se fundamenta em ITimóteo 5.17, um texto a que Owen dá profusa atenção. Em síntese, Owen afirma que esse texto prova a qualquer “ser racional sem preconceitos” que existem dois “tipos” de presbíteros, a saber, aqueles que se esforçam incansavelmente na Palavra e na doutrina e aqueles que não o fazem. Para o benefício da igreja. Cristo determinou que cada igreja tenha mais de um presbítero. Uma pluralidade de presbíteros em cada igreja requer uma pluralidade de dons, e os dons de cada presbítero são necessários para o trabalho a que foram cham ados. Os pres­ bíteros não devem governar de forma autocrática ou legislativa, mas de uma maneira ministerial, anunciando a vontade de Cristo conforme ensinada nas Escrituras. Só Cristo é o legislador da igreja, e, assim sendo, “nenhuma outra lei é eficaz [...] para os objetivos ou finalidades do governo da igreja”.®“ Essas prerrogativas pertencem a todos os presbíteros de cada igreja em particular. Não há dúvida alguma de que direção, governo e disciplina são responsabili­ dades dos presbíteros regentes tanto quanto dos pastores e mestres. Presbíteros regentes são responsáveis por “acom panhar com diligência” e “disposição” a vida dos membros da igreja, assegurando-se de que os mandamentos de Cristo sejam obedecidos por aqueles que o reconhecem com o Senhor.®* Mais do que isso, os presbíteros regentes devem “estar atentos contra toda insubordinação ou manifestação daquelas discordâncias e divisões” que ocorrem tipicamente em igrejas.®^ O grande mandamento do am or deve ser obedecido por amor a Cristo e à sua igreja. Como decorrência disso, os presbíteros regentes também devem lembrar os membros acerca de suas responsabilidades específicas na Works, 16:109. *^Owen, Drue nature of a gospel church, ^*Owen, 7^ue nature of a gospel church, in: Works, 16:109. Works, 16:110. ®’Owen, D-ue nature of a gospel church, Works, 16:135. “Owen, D'ue nature of a gospel church, Works, 16:138. *'Owen, D-ue nature of a gospel church, “Owen, D'ue nature of a gospel church. Works, 16:138.

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igreja, as quais dependem de seus talentos, quer espirituais, quer temporais. Outras responsabilidades incluem, por exemplo, visitar os enfermos, dar con­ selhos e orientações aos diáconos e familiarizar o pastor com a condição do rebanho. Tlido isso dá a entender que, para Owen, o trabalho do ministério é um trabalho participativo. O pastor tem suas responsabilidades, mas não consegue realizar todos os deveres necessários para o crescim ento, equilíbrio e saúde da igreja. Lado a lado com os pastores e mestres, a igreja precisa de presbíteros regentes que administrarão de forma eficaz as diversas necessidades da igreja.

Diáconos O ofício de diácono foi estabelecido para os pobres e necessitados. Tanto Owen quanto Goodwin citam Atos 6 como o relato da instituição desse ofício na igreja da nova aliança.^^ O diaconato não foi uma instituição temporária, mas, ao contrário e à sem elhança do presbiterato, uma instituição perpétua na igreja (ITm 3 .1 5 ). As qualificações para os diáconos estão expostas em ITimóteo 3.8-13. Conforme Paulo deixa claro para Timóteo, as exigências espirituais tanto para os presbíteros quanto para os diáconos são quase idênticas. Por esse motivo, como no caso do presbítero, o ofício do diácono é espiritual, um ofício de grande importância para a saúde e o bem -estar da igreja. Mediante a exposição de ITimóteo 3 .8 -1 3 , em seu catecism o sobre os ofícios da igreja, Goodwin trata das exigências para os diáconos. A descrição paulina daquilo que um diácono deve ser permite que os diáconos entendam aquilo que é exigido deles a fim de que “se desincumbam fielmente dos encargos que Deus e sua igreja lhes deram ”, e os membros da igreja estão em condições de saber “que tipo de homens devem escolher para esse ofício”.'^ A função do diaconato é não apenas cuidar das necessidades dos pobres e necessitados, mas também receber as ofertas da igreja. Eles, por sua vez, distri­ buem as ofertas ao pastor ou pastores da igreja e a membros com necessidades (At 6.3,4). O diaconato foi instituído porque naquela época os apóstolos estavam atuando como mestres, presbíteros e diáconos. Por causa disso, estavam sobre­ carregados e, dessa maneira, se desobrigaram da “parte menos importante de seu trabalho espiritual”, isto é, servir às mesas.*^ Com isso surgiu na igreja um ofício ou ordem de ministério diferente. Owen defende que a diferença entre um presbítero e um diácono “não é de grau, mas de ordem. Um diácono que se torna presbítero não chega a um grau mais avançado em sua própria ordem. “Owen, Thie nature of a gospel church, in: Works, 16:143-51; Goodwin, Government o f the churches, in: Worfes, 11:510-21. ^Goodwin, Government of the churches, in: Works, 11:512. “Goodwin, Government of the churches, in: Works, 11:512.

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mas deixa essa ordem por outra”.“ Aliás, Owen passa a defender que, longe de ser um “trampolim” para o presbiterato, na realidade o cumprimento diligente dos deveres diaconais impede que a pessoa seja pastor ou presbítero, “porque [o diaconato] reside totalmente em fornecer e entregar coisas terrenas, servindo às mesas da igreja e às particulares, e servindo aos pobres, mas a preparação para o ministério consiste em o homem se entregar ao estudo, à oração e à meditação”.®^

Conclusão Após sua ascensão, o Cristo ressurreto deu dons à igreja, inclusive uma série de ofícios, tanto extraordinários quanto ordinários (Ef 4.10-12). Os ofícios extraor­ dinários foram temporários, estando associados às necessidades particulares de seu tempo e lugar; mas os ofícios ordinários designados por Cristo continuam existindo na igreja até o fim desta era. Esses ofícios incluem os ministros da Palavra (pastores e m estres), presbíteros regentes e diáconos. O texto que um presbiteriano convicto escreveu para um dos números da revista semanal M ercurius B rita nn icu s mostra que presbiterianos e congregacionais estavam de acordo sobre vários assuntos, inclusive sobre os ofícios permanentes da igreja. De acordo com Powell, o autor do texto escreve; “Há um livro recente [...] escrito por nossos irmãos reverendos — , m as não por nenhum dos ‘inde­ pendentes’ — a saber, mestre Goodwin, m estre Nye, m estre Bridges, mestre Simpson, m estre Burroughs, no qual se pode ver o quão longe nos seguram pela mão, quando a soltam e nos pegam pelo dedo”.“ No que tange ao governo da igreja, têm estas sem elhanças: “ o mesmo culto, pregação, oração e forma de sacram ento, os m esmos oficiais da igreja, doutores, pastores e diáconos, e as mesmas punições, mas que não passam do âmbito local”.“ Apesar das diferenças existentes entre os puritanos acerca do governo da igreja, todos criam que era necessária a existência de cada um dos ofícios per­ pétuos e ordinários para a m anutenção, o crescim ento e o bem -estar da igreja. Cada oficial, quer pastor, presbítero ou diácono, precisa ser primeiramente um homem piedoso; também precisa ter os dons necessários para cumprir seu ofício na igreja, seja pregar, ensinar, dirigir ou servir às mesas. Quando homens devidamente qualificados são legitimamente eleitos pela igreja e ordenados pelos presbíteros para desempenhar os três ofícios que Cristo instituiu para sua igreja, esses “ministros ordinários” são, nas palavras de Ames, suficientes para “preservar, propagar e renovar a igreja por meios com uns” para a glória de Deus e do Senhor Jesus Cristo.™

“Owen, lYue nature o f a gospel church, ‘^’Owen, TYue nature o f a gospel church, “ Powell, “The Dissenting Brethren”, p. “ Powell, “The Dissenting Brethren”, p. ”Ames, Marrow, p. 190.

in: Works, 16:149. in: Works, 16:149. 101. 101.

Capítulo 41 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□OnDDDDDanODDODnDDODDDGDDD

John Owen e o sábado e a adoração/o culto cristãos □□□□□□□□□□nnaoDn□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□oaaaaaDa□□□□□□□□□□□□□□□

A luz da natureza mostra que existe um Deus, o qual é senhor e soberano sobre todas as coisas, é justo, bom e faz o bem a todos, e, por isso, deve-se temê-lo, amá-lo, louvá-lo, invocá-lo, confiar nele e servi-lo de todo o coração, de toda a alma e de toda a força. Mas o modo aceitável de adorar o Deus verdadeiro foi instituído por ele mesmo e, desse modo, está limitado por sua própria vontade revelada: que não seja adorado de acordo com a imaginação e os esquemas dos homens ou com qualquer representação visível instigada por Satanás, nem de outra ma­ neira qualquer não prescrita nas Sagradas Escrituras.

D eclaração

de

Savoia,22.1

Para John Owen (1616-1683), defender a validade ininterrupta do quarto man­ damento e 0 sábado cristão como o dia semanal de descanso espiritual era um aspecto de imensa importância para suas idéias sobre adoração e culto. Teólogos protestantes nem sempre estiveram de acordo quanto ao quarto mandamento. Luminares como João Calvino e Johannes Cocceius (1603-1669) defendiam um sábado para os cristãos, mas não entendiam a guarda do sábado de maneira exatamente igual à dos puritanos.* E nem para Calvino nem para Cocceius as raízes do sábado estavam na criação. Para ambos, o dia semanal de descanso 'Para uma análise e avaliação crítica da doutrina de Calvino sobre o sábado, veja Richard B. Gaffin, Calvin and the Sabbath (Fearn, Escócia; Mentor, 1998). Em nossa opinião, a ideia de que Calvino era um “latente defensor do sábado” no sentido puritano da expressão simplesmen­ te não resiste a um exame mais cuidadoso das evidências, em particular quando se consideram seus comentários sobre Hebreus 4 e o fato de que guardar o sábado era algo que podia ser feito em outros dias da semana porque o crente está descansando em Cristo.

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TEOLOGIA PURITANA

não foi instituído no jardim do Éden, mas era algo peculiar à nação de Israel, instituído no Sinai quando receberam a Torá.^ Na Holanda, houve controvérsia significativa sobre esse assunto entre os seguidores de Cocceius e os de Gisbertus Voetius (1589-1676).^ Owen tinha plena consciência das diferenças existentes entre teólogos reformados acerca do sábado, e sua defesa minuciosa do conceito não apenas responde às várias objeções levantadas contra a posição que ele defende, mas também constitui um forte argumento em favor da continuidade da guarda de um dia santo de descanso para o culto cristão. O título de sua obra sobre o assunto mostra que isso é verdade: Exercitations concerning the name, original, nature, use, and continuance o f a day o f sacred rest: wherein the original of the Sabbath from the foundation o f the world, the morality o f the fourth commandment, with the change o f the seventh day, are inquired into; together with an assertion of the divine institution o f the Lord’s Day, and practical directions for its due observation [Reflexões sobre o nome, origem, natureza, uso e a continuidade de um dia de descanso sagrado, examinando-se a origem do sábado desde a fundação do mundo e a moralidade do quarto mandamento com a mudança do sétimo dia, junto com uma declaração da instituição divina do dia do Senhor e orientações práticas para sua devida observância] É certo que, quando insistia num dia específico (i.e., o primeiro dia da semana) como dia de descanso e culto, Owen falava em nome da imensa maioria dos puritanos.^ Um estudo minucioso e completo da posição de Owen ^Como resposta a Cocceius, veja a obra de Johannes Hoornbeeck, Heyliginghe van Cods Noam en dagh... (Leiden, 1655). ’Veja H. B. Visser, De geschiedenis van den sabbatsstrijd onder de gereformeerden in de seventiende eeemv (Utrecht: Kemink, 1939). “John Owen, Exercitations concerning the name, original, nature, use, and continuance of a day of sacred rest..., in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 19:265-546. Além da longa defesa do sábado cristão por Owen, outras obras importantes da época incluem: Nicholas Bownd, The doctrine of the Sabbath plainely iayde forth... (London: Widdow Orwin para lohn Porter e Thomas Man, 1595); William Twisse, Of the morality of the fourth commandement as still in force to binde Christians... (London: E. G. para John Rothwell, 1641); e Thomas Shepard, Theses Sabbaticae... (London: S. G. para John Rothwell, 1655). A defesa mais detalhada de que temos conhecimento é de autoria dos teólogos de Westminster Daniel Cawdrey e Hebert Palmer: Sabbatum redivivum: or the Christian Sabbath vindicated: the first part (London: Robert White para Thomas Underhill, 1645); e Sabbatum redivivum: or, the Christian Sabbath vindicated, the second part (London: Thomas Maxey para Samuel Gellibrand e Thomas Underhill, 1651). *Na literatura secundária, a obra de James T. Dennison sobre o sábado na Inglaterra puritana oferece uma análise fascinante da ideia puritana sobre esse dia em relação à posição de teólogos do século 16, bem como mostra as várias ameaças à doutrina na Inglaterra durante o século 17 {The rnarket day of the sotd: the Puritan doctrine of the Sabbath in England, 1S32-1700 [Lanham: University Press of America, 1983]). Veja tb. Kenneth L. Parker, The English Sabbath: a study of doctrine and discipline from the Reformation to the civil war (Cambridge: Cambridge University

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em seu contexto político-religioso continua sendo bastante necessário na lite­ ratura secundária. Este capítulo se concentrará especificamente em aspectos do fundamento teológico de Owen para o dia do Senhor, ou sábado cristão, e no que se fazia nesse dia no culto cristão. Mas antes disso cabe uma rápida contextualização da denominada “ascensão do sábado puritano”.

Contexto histórico J. I. Packer atribui aos puritanos a criação do “domingo cristão inglês — isto é, a conceituação e a observância do primeiro dia da semana como aquele em que tanto os labores quanto os divertimentos organizados deviam ser suspensos e a totalidade do tempo deve permanecer livre para o culto, a comunhão e as ‘boas obras’”.^ A guarda do sábado no estilo puritano pode ter sido mais forte na Grã-Bretanha, mas mesmo assim havia na Europa continental muitos teólogos reformados que tinham a mesma posição dos teólogos ingleses e escoceses. Conforme Keith Sprunger observou, vários “proeminentes teólogos reformados [...] (Tïemellius, Zanchi, Junius, para citar apenas alguns) defendiam a vali­ dade de aspectos de reservar um dia da semana para descanso. Contudo, em suas regiões eles não desencadearam um movimento de observância total do sábado’7 A guarda estrita do sábado foi, com certeza, uma marca característica dos puritanos em sua busca de ampliar a reforma da Igreja da Inglaterra du­ rante o final do século 16 e boa parte do século 17. Os comentários de Thomas Shepard (1605-1649) sobre esse fenômeno são reveladores: “Mas por que o Senhor Cristo haveria de desejar que seus servos na Inglaterra e na Escócia esclarecessem e vindicassem esse assunto do sábado e o tratassem com mais amor do que alguns diletos servos em igrejas no estrangeiro? Nenhum homem consegue imaginar nenhuma outra causa senão a livre graça e o terno amor do próprio Deus, cujo vento sopra onde e quando quer”.®Em resumo, a causa do sábado na Europa continental não chegou a alcançar o fervor que se via na Inglaterra durante o século 17. Um dia semanal de descanso do trahalho não era assunto controverso na vida civil, mas os puritanos foram além disso. Charles E. Hambrick-Stowe oferece um relato exato do sábado como uma marca muito característica do puritanismo: Press, 1988); Keith L. Sprunger, “English and Dutch Sabbatarianism and the development of Puritan social theology (1600-1660)”, Church history 51, n. 1 (March 1982): 24-38; Patrick Collinson, “The beginnings of English Sabbatarianism”, in: C. W. Dugmore; C. Duggan, orgs.. Studies in church history, vol. 1 (London: Nelson, 1964), p. 211-4; e Winton U. Solberg, Redeem the tittle: the Puritan Sabbath in Early America (Cambridge: Harvard University Press, 1977). U. I. Packer, A quest forgodliness: the Puritan vision of the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 235. 'Sprunger, “English and Dutch Sabbatarianism", p. 25. "Shepard, Preface to the reader, in: Theses sabbaticae.

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TEOLOGIA PURITANA Embora o descanso do trabalho fosse uma norma social aceita havia muito tempo, a noção de dedicar o dia ao culto, à família e a devoções pessoais e a outras práticas religiosas nunca havia sido exigida dos leigos, que tinham o direito de passar pelo menos uma parte do dia em atividades físicas recreativas. Os puritanos eram ridicularizados como fanáticos, por adotarem para si um regime espiritual rigoroso mais típico dos mosteiros. Foram zombados com mais veemência quando fizeram lobby em favor de uma reforma na política nacional sobre o sábado. No Livro de Esportes, promulgado por Tiago I em 1617 (e reeditado por Carlos I em 1633) e por lei anunciado em cada paróquia, a Igreja da Inglaterra rejeitou o programa puritano para o sábado, endossando oficialmente atividades como arco e flecha e dança para recreação aos domingos. Quando os puritanos tiveram a oportunidade de planejar suas próprias atividades para o domingo [...] tipicamente se dedicavam a seis horas inteiras de culto público, sendo três horas de manhã e três à tarde. A seriedade com que os santos tratavam da obra de glorificar a Deus no “sábado” fazia com que fossem um povo à parte. Aliás, foi esse rigor que fez com que recebessem o epíteto depreciativo de “puritano” no período inicial do movimento.’

Foi nesse contexto que os puritanos tentaram reformar a Igreja da Inglaterra. Eles foram em grande parte bem-sucedidos em conseguir não apenas um dia de descanso por semana — afinal, isso era algo que já existia desde o século 7, muito antes do surgimento do puritanismo —, mas um dia de descanso de­ dicado à adoração do Deus triúno de acordo com as exigências de sua Palavra. A partir de aproximadamente 1600 até 1650, a maneira puritana de entender o sábado ganhou popularidade, embora houvesse reações contrárias vindas de vários grupos (p. ex., os que defendiam a guarda do sétimo dia). O puritanismo pode ter falhado em muitos aspectos, mas Packer ressalta que em 1677, bem depois da Grande Expulsão (1662), o parlamento antipuritano aprovou o Estatuto da Guarda do Domingo. Esse estatuto “estabelecia que todos deviam dedicar o domingo não ao comércio, a viagens, ‘ao labor, atividades e afazeres mundanos de suas ocupações comuns’, mas ao ‘exer­ cício pessoal [...] dos deveres de piedade e da religião verdadeira, tanto em público quanto em particular’”.’®Não se deve subestimar a aprovação desse estatuto. Antipuritanos, inclusive aqueles que não acreditavam que o domingo devia ser um dia que, segundo as Escrituras, devia ser dedicado à adoração, ainda assim defendiam um dia puritanesco de descanso. Esse foi um avanço em relação à ideia anterior de que o dia de descanso devia ser determinado por razões sociais e políticas. Nas palavras de Leland Ryken, "Os puritanos ’Charles E. Hambrick-Stowe, “Practical divinity and spirituality”, in: John Coffey; Paul C. H. Lin, orgs.. The Cambridge companion to Puritanism (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), p. 199. ‘“Packer, Quest for godliness, p. 236.

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forneceram a base teológica para a guarda do domingo. Assim, embora todos os puritanos guardassem rigorosamente o dia de descanso sabático, nem todos os que guardavam rigorosamente o dia de descanso sabático eram puritanos”.’* Quais eram aquelas bases teológicas? Para responder a essa pergunta, a defesa acurada que John Owen faz do “sábado do dia do Senhor” será examinada, dando-se atenção especial a alguns de seus argumentos principais.

Uma ordenança da Criação Uma expressiva fonte de controvérsia entre a ideia puritana esposada por Owen e seus colegas puritanos, de um lado, e, de outro, a ideia denominada “continental” era se o sábado foi ou não instituído no jardim do Éden.’^ Por exemplo, William Gouge (1575-1653) inicia seu breve estudo sobre o sábado recorrendo a Gênesis 2 e indicando a Criação como a origem da doutrina.'^ De modo semelhante, John Prideaux (1578-1650) dedica bastante tempo a contestar os vários argumentos contrários à ideia de que Gênesis 2 era a ori­ gem do sábado. No ponto de vista de Owen, a instituição do sábado por ocasião da Criação se baseia em dois textos da Bíblia, um do Antigo Testamento e outro do Novo. "E”, escreve Owen, "ambos me parecem uma prova tão irrefutável que com frequência ponderei como pessoas sensatas e doutas se lançaram a evitar a força ou robustez que [essas passagens] têm nesta questão”.'® Está claro que esses dois textos são Gênesis 2.1,2 e Hebreus 3 e 4. Acerca de Gênesis 2.1,2, Owen observa que Deus “santificou” esse dia; “Não que ele próprio o tenha preservado santo, algo de que a natureza divina não é capaz em nenhum sentido; nem que — da mesma maneira como santificamos o nome de Deus, que é 0 ato de um inferior a um superior — ele tenha consagrado aquilo que por sua natureza já era santo; mas que ele o separou oficialmente para uso sagrado, exigindo que obedientemente o santifiquemos nesse uso”.'^ Alguns "homens doutos” postulam que na realidade Gênesis 2.3 não fazia parte da "Leland Ryken, Worldly saints: the Puritans as they really were (Grand Rapids: Zondervan, 1986), p. 129 [edição em português: Santos no mando: os puritanos como realmente eram, 2. ed., tradução de João Rentes (São José dos Campos: Fiel, 2013}]. ‘^Embora os puritanos quase unanimemente defendessem o “sábado do dia do Senhor", havia bem mais diversidade entre os teólogos da Europa continental. Assim, qualquer análise sobre a posição “continental” relacionada ao sábado precisa ser cautelosa, talvez até mesmo descarta­ da. Dito isso, com base no estudo de Owen sobre o sábado e nas obras de outros puritanos fica claro que eles estavam dialogando com muitos teólogos reformados da Europa continental, com os quais tinham pontos de concordância e discordância sobre esse tópico bastante controverso. ‘’William Gouge, The Sabbaths sanctification... (London, 1641). ‘“John Prideaux, The doctrine of the Sabbath... (London: E. P. para Henry Seile, 1634), p. 5ss. ‘’Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:294. “Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:298.

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narrativa histórica, mas que o texto (“E Deus abençoou o sétimo dia...”) foi inserido “à guisa de prolepse ou antecipação”.'^ Quer dizer, esses autores de­ fendem que Deus descansou depois do sétimo dia, ou seja, no dia seguinte (o “oitavo”), que pode ser um tempo indefinido depois da semana inicial de sete dias de criação. Owen simplesmente não conseguia entender como homens tão estudados podem fazer uma leitura tão desnatural do texto: “essa seria uma prolepse tão grotesca e desconhecida [...] que é impossível encontrar nas Escrituras um exemplo [parecido]”.'^ Em sua exposição de Hebreus 4, Owen desenvolve esse argumento de modo mais detalhado. Contudo, ele compreende com clareza os inúmeros argumentos que foram apresentados contra sua posi­ ção, por isso, com efeito devastador, responde com sua precisão característica, frequentemente sem mencionar especificamente pelo nome aqueles que está refutando, em parte por respeito àqueles que eram luminares reformados por méritos próprios. Alguns teólogos defendiam que o sábado foi introduzido em Israel como parte da instituição da lei. Nesse caso, segundo Owen, ele teria sido introdu­ zido com uma “estranha brusquidão”.'* Conforme assinalado, ele tinha pleno conhecimento dos argumentos de teólogos reformados que sustentavam que 0 mandamento do sábado foi dado pela primeira vez aos israelitas no Sinai, porque esse mandamento, ao contrário dos outros nove, era em parte cerimo­ nial.^® Owen responde, sugerindo que esse mandamento teria sido “adaptado à condição pedagógica da igreja dos israelitas”.^' Owen defende que, não importa que modificações (i.e., leis positivas) tenham sido feitas no quarto mandamento, isso não é motivo para sugerir que a essência do mandamento não tinha sido dada a Adão e aos patriarcas depois dele. Richard Gaffin mostra que para Calvino “parece que o significado da instituição do sábado antes da Queda não passou por sua mente”.^^ Para Calvino, o sábado foi dado como antídoto para o pecado, e os crentes guardam o quarto mandamento descan­ sando de suas obras pecaminosas. Em contraste com isso, Owen vê o sábado de forma mais positiva do que Calvino e com certeza como um aspecto mais fundamental da lei da criação. Ao defender que o sábado era uma ordenança da criação recebida por Adão no Éden, Owen considera a diferença entre leis positivas e leis morais. Leis ‘’’Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:299. Prideaux menciona o assunto e cita o exegeta papista Tostatus Abulensis, que defendia que Moisés afirmou em Gênesis 2.1-3 “à guisa de an­ tecipação" (The doctrine of the Sabbath, p. 10). '*Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:300. ’’Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:298. “Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:313. ‘“Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:314. “Gaffin, Calvin and the Sabbath, p. 146.

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positivas são aquelas que “em si mesmas não têm razão de ser”; são ordenadas por Deus por sua mera vontade, como os sacrifícios no Antigo Testamento Por outro lado, as leis morais estão fundamentadas na natureza do próprio Deus e não podem ser revogadas, ao passo que as leis positivas, que são estabele­ cidas por determinação de Deus, podem ser mudadas se Deus assim quiser. Na controvérsia sobre o sábado, Owen afirma que seus oponentes defendem que 0 mandamento do sábado é, de forma geral, uma lei positiva e, de modo específico, uma lei tanto cerimonial quanto tipológica. Mas Owen entende que esse mandamento é uma lei moral em sua essência, o que significa que a obrigação de guardá-la é universal. No entanto, o dia específico que se d ev. santificar é positivo, assim explicando como o sábado pode ser passado d : sétimo para o primeiro dia da semana. Owen fundamenta sua defesa do sábado na lei natural. Em primeiro lugar, 0 sábado é, para ele, um tempo separado para o culto solene a Deus, designa­ do de acordo com a lei da natureza. Aliás, havia concordância universal entre os puritanos de que essa lei ou luz da natureza exige que os seres humanos separem certas horas para a adoração e culto. Owen passa, então, a mostrar que 0 princípio de um dia em cada sete é um mandamento perpétuo porque o sábado é uma lei moral, baseada no próprio Deus. Ao instituir o mandamento. Deus lembra seu povo de que, tendo concluído sua obra de criação, descansou de seu trabalho no sétimo dia (Êx 20.11). A obra de Deus pode ser entendida de forma tanto natural (os efeitos de seu poder e sabedoria) quanto moral (a gló­ ria que ele recebe da obediência de criaturas racionais). Assim, quando Deus “descansa” no sétimo dia, ele não deixa de trabalhar completamente. Pelo contrário, seu descanso “tem significado moral e não natural, pois consiste na satisfação e prazer que teve em suas obras”.^^ Consequentemente, os homens têm o dever de glorificar a Deus “de acordo com a revelação que ele faz de si mesmo a nós, seja por suas obras da natureza, seja por suas obras da graça Teólogos puritanos que discorriam sobre o assunto normalmente sustentavam que a guarda do sábado por Adão no jardim consistia em meditar sobre as obras da criação e agradecer a Deus por elas. Após a Queda, o propósito básico da guarda do sábado é que pecadores adorem a Deus à luz da redenção (Dt 5.15). Não apenas Adão e Eva, mas também seus descendentes têm o dever de guardar os mandamentos de Deus, inclusive o do sábado, porque a lei da na­ tureza é constante. Todas as outras leis “não passam de deduções e aplicações dela”.^®Por esse motivo, o sábado (i.e., um dia da semana separado para adorar ^^Owen, Day of sacred rest, ^^Owen. Day of sacred rest, ^^Owen, Day of sacred rest, “Owen, Day of sacred rest,

in: in: in: in:

Works, 19:328. Wor/cs, 19:334. Works, 19:335. Works, 19:339.

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a Deus) é um mandamento que é natural e, portanto, moral. Mas também pode ser entendido como uma “lei moral-positiva”, porque em certos contex­ tos, como o Antigo Testamento, fazem-se acréscimos aos deveres exigidos por Deus.^^ Assim Owen recorre ao significado do quarto mandamento conforme escrito no Decálogo para complementar seu argumento a favor do sábado.

O

Decálogo

O Decálogo teve um inquestionável uso político e fazia parte da antiga aliança sob a qual os israelitas estavam. Nesse contexto histórico-redentor específi­ co, a lei funcionava como um guia a fim de conduzir os israelitas a Cristo. Além do mais, alguns dos mandamentos (primeiro, quarto e quinto) tinham acréscimos peculiares à situação da igreja naquele tempo. Apesar disso, as aplicações acrescentadas a esses mandamentos não provam que eram apenas mandamentos positivos, sujeitos a mudança ou abolição. Com esse contexto em mente, Owen apresenta as razões por que pensa que o quarto mandamento tem “igual participação com os outros nove mandamentos em todos os privilé­ gios” do Decálogo, assim mostrando a perpetuidade do quarto mandamento.“ Ele oferece vários motivos para mostrar que o quarto mandamento se dis­ tingue, junto com os outros nove, das leis cerimoniais dadas a Israel. Vale a pena relacionar alguns desses motivos. Uma razão é que os Dez Mandamentos, ao contrário das leis cerimoniais ou das judiciais, foram proferidos pela pró­ pria voz de Deus. Além disso, o quarto mandamento foi, junto com os outros nove, escrito duas vezes pelo “dedo” de Deus nas tábuas de pedra. Deus agiu assim primeiro para republicar de forma objetiva a lei que foi primeiramente implantada no coração de Adão no estado de inocência. Isso foi necessário porque a intrusão do pecado significou que a lei escrita no coração de Adão e no de seus descendentes havia sido apagada. Além do mais, a lei objetiva de Deus escrita em tábuas de pedra apontava para a realidade espiritual da lei que seria escrita pelo Espírito no coração dos eleitos. A promessa da nova aliança inclui a inscrição da lei de Deus no coração do povo de Deus. E, uma vez que o mandamento do sábado faz parte da lei moral, ele é necessaria­ mente escrito no coração dos eleitos que estão debaixo da nova aliança. Por fim, ao contrário das leis cerimoniais, os Dez Mandamentos eram guardados na arca da aliança. “E o motivo do arranjo diferente — a lei moral na arca e a cerimonial num livro ao lado da arca — era expressar [...] o cumprimento e a conformidade a essa uma lei por Cristo e a remoção e a abolição da outra também por ele”.“ Aqui Owen não pode apresentar meras conjecturas sobre "Owen, Day o f sacred rest, in: Works, 19:355. "Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:366. "Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:368.

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esses pontos, pois todo seu argumento repousa nessa premissa, a saber, que o sábado é intrinsecamente moral e não cerimonial e, portanto, dever perpétuo dos seres humanos em todas as dispensações. Os "doutos” que se opunham à posição de Owen geralmente defendiam que, desde que Cristo veio, o tipo foi revogado. Agora os crentes têm descanso em Cristo, descansando de suas obras más e descansando nele e vivendo para ele. J. 1. Packer sintetiza a posição básica de Owen e seus contemporâneos puritanos, afirmando que eles “insistiam de modo quase unânime que, embora os reformadores estivessem certos em ver um significado apenas tipológico e temporário em algumas das detalhadas prescrições do sábado judaico, ainda assim 0 princípio de um dia de descanso para adoração pública e privada de Deus no final de cada seis dias de trabalho era uma lei da criação, feita para 0 homem na sua condição de criatura e, por isso, compulsória para o homem enquanto viver neste mundo. Eles destacavam que, por estar no Decálogo ao lado de nove leis indubitavelmente morais e sempre compulsórias, dificilmente ela mesma poderia ser de natureza apenas tipológica e temporária”.^® Esse argumento é muito forte, mas em si mesmo não é completo. Owen recorria a Hebreus 4 para consolidar sua posição e, desse modo, provar que 0 sábado, que passou por uma mudança de dia da semana, era compulsório para os cristãos na igreja sob a nova aliança.

Hebreus4 Tanto os que defendem quanto os que são contra o sábado cristão com fre­ quência têm recorrido a Hebreus 4 para comprovar sua posição.^' É claro que em seu comentário sobre Hebreus 4 Owen dá continuidade a seu argumento a favor do sábado cristão. Uma análise completa de seu argumento exegético está fora do escopo deste capítulo, mas várias de suas afirmações nos oferecem um quadro geral de seu argumento sobre o tema baseado no Novo Testamento. Do ponto de vista histórico, a interpretação de Hebreus 4.3 tem causado um impacto significativo na posição adotada sobre o sábado. A questão diz ^“Packer, Quest for godliness, p. 237. ’'Leitores interessados podem consultar o artigo de Andrew T. Lincoln “Sabbath, rest, and eschatology in the New Testament”, in: D. A. Carson, org., From Sabbath to Lord’s Day: a biblical, historical, and theological investigation (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p. 197-220 [edição em português: Do Shabbath para o dia do Senhor, tradução de Susana Klassen (São Paulo: Cultura, Cristã, 2006)]. Lincoln usa Hebreus 3.7—4.13 para tentar mostrar que o dia do Senhor não é o sábado. Respondendo a isso, Richard .Gaffin apresenta o que talvez seja o melhor tratamento de Hebreus 3—4 de uma perspectiva sabatista. A propósito, a exegese de Gaffin difere da de Owen em vários pontos, embora estejam defendendo a mesma posição. Veja “A Sabbath rest still awaits the people of God”, in: Charles G. Dennison; Richard C. Gamble, orgs.. Pressing toward the mark: essays commemorating fifty years of the orthodox Presbyterian church (Philadelphia: The Committee for the Historian of the Orthodox Presbyterian Church. 1986), p. 33-51.

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respeito a se, com o início da nova aliança por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo, os crentes entraram em seu descanso sabático — ainda que de uma forma “já, mas ainda não” — oU se esse descanso ainda é futuro. A forma enfática deve ser entendida como algo concreto no presente ou como algo futuro? Com verbos de movimento talvez prefiramos entender que eiserchometha tem sentido futuro, o que significa que um sábado de descanso semanal continua existindo (v. 9) para o povo, servindo de tipo do descanso sabá­ tico futuro que o aguarda na eternidade. John Owen examinou cuidadosamente esse versículo quando apresentou sua defesa do sábado cristão. Owen adota o ponto de vista de que o descanso mencionado no versículo 3 é “aquele descanso espiritual de Deus, descanso ao qual os crentes obtêm acesso por Jesus Cristo mediante a f é e a adoração do evangelho e não deve ser limitado ao descanso . eterno deles no céu”.*^ Para haver um descanso, são necessárias três coisas: (1) um trabalho que Deus realiza e termina, de modo que ele próprio descansa; (2) um descanso espiritual em que os crentes entrem e que reflita o descanso do próprio Deus; e (3) um novo ou renovado dia de descanso “para expressar o descanso de Deus para nós e para ser um meio e garantia de nossa entrada nele”.” De acordo com Owen, a igreja tem estado sob três tipos diferentes de descanso: a igreja no jardim do Éden, a igreja na antiga aliança, com Canaã servindo de tipo do descanso do evangelho, e o descanso em que a igreja entra estando debaixo do evangelho. No evangelho estabelece-se um novo descanso por causa da nova obra que Deus realizou. Dessa maneira. Cristo, que descansou depois de sua obra, capacita os crentes a entrarem no descanso dele. Agora o novo ou renovado dia de descanso é o sábado cristão. Aconteceu uma nova criação, e um novo estado da igreja foi fundado. Antes de comentar sobre o versículo 10 — “Pois assim como Deus descan­ sou de suas obras, aquele que entrou no descanso de Deus também descansou das suas” — , Owen reafirma, com base em Hebreus 4.9, que bem no início da Criação Deus estabeleceu um dia de adoração e descanso do trabalho, o qual restabeleceu formalmente na terra de Canaã, a fim de que seu povo pudesse adorá-lo no período designado da semana, o sétimo dia. Owen não tem dúvida alguma de que o apóstolo Paulo, que Owen considera o autor de Hebreus, “comprova e assevera a outorga de um sábado baseado no evangelho, ou dia de descanso, para ser constantemente observado para a adoração de Deus”.” Nos três estados da igreja sempre existe um descanso prometido aos crentes para que possam adorar a Deus; daí a “invariabilidade” do sábado na nova aliança. “John Owen, “An exposition of the Epistle to the Hebrews with preliminary exercitations”, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-18SS), 21:256. “Owen, Exposition of Hebrews, in: Works, 21:276. ”Owen, Exposition of Hebrews, in: Works. 21:327.

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Owen sustenta que o versículo 10 não se refere aos crentes, embora mui­ tos expositores divirjam dele nesse ponto. Se o versículo 10 está tratando de crentes, Owen indaga de quais obras eles estão descansando. Alguns defendem que os crentes estão descansando de suas obras pecaminosas ao encontrarem descanso em Cristo, que os capacita a fazerem boas obras. Owen rejeita essa posição porque os crentes não descansam de suas obras “como Deus descansou das suas”, visto que Deus teve prazer em suas obras, ao passo que os crentes não têm prazer em suas obras pecaminosas. Deus “tanto descansou delas quanto nelas e as abençoou e abençoou e santificou o tempo quando foram terminadas”.^^ Sugerir que os crentes entrem nesse descanso apenas no céu seria excluir o restante daquilo de que Paulo está falando, que é o descanso do evangelho. Por esse motivo, o versículo 10 faz referência a Deus e a Cristo, não a Deus e os crentes. Cristo descansou de suas obras, o que está em har­ monia com a analogia de Deus por ocasião da criação descansar de suas obras e ter prazer nelas. Isso fornece a base para a mudança do dia de sábado, do sétimo para 0 primeiro dia da semana; “Pois, assim como aquele descanso que todo o mundo devia observar estava alicerçado nas obras e no descanso daquele que construiu ou fez o mundo e todas as coisas que nele existem, da mesma forma o descanso da igreja [da era] do evangelho precisa estar alicerçado nas obras e no descanso daquele por quem a própria igreja foi edificada, a saber, Jesus Cristo; pois ele, por causa de suas obras e descanso, também é Senhor do sábado, para revogar um dia de descanso e instituir outro”. Com sua ressurreição. Cristo entrou em seu descanso; ele cessou seu tra­ balho, e “o alicerce da nova criação [foi] lançado e aperfeiçoado”.^^ Por isso, quando no versículo 9 o apóstolo anuncia a seus leitores que continua existindo um descanso sabático para o povo de Deus, Owen sustenta que Paulo não os exorta a entrar nesse “repouso sabático” {sabbatismos). Com o emprego de “repouso sabático” o apóstolo quer “designar o descanso do evangelho não em termos absolutos, mas no que diz respeito à promessa disso no dia de des­ canso” mediante o qual adoram a Deus no sábado cristão.^® Se a intenção de Paulo tivesse sido falar do descanso celeste eterno, teria empregado a palavra grega katapausis, que é encontrada em Hebreus 3.11,18 e 4.1,3,5,10. Com o uso de sabbatismos em 4.9, Paulo tem em mente o sábado cristão.^’ ’^Owen, Exposition of Hebrews, in: Works, 21:332. “Owen, Exposition of Hebrews, in: Worics, 21:332-3. ^'Owen, Exposition of Hebrews, in: Works, 21:335. Em Day of sacred rest, in: Worfes, 19:409, Owen explica como Cristo descansou de sua obra depois de sua ressurreição e mesmo assim continua trabalhando por meio de suas graças e do Espírito Santo. ^®Owen, Exposition of Hebrews, in: Works, 21:338. ’’Owen, Exposition of Hebrews, in: Works, 21:327.

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Visto que resta um descanso para o povo de Deus, esse não é um mero dia de descanso depois de seis dias de trabalho, mas um tempo designado para adoração coletiva e privada. No sábado cristão a visão puritana de ado­ rar a Deus não se limitava a participar dos cultos públicos na igreja, mas o dia inteiro era separado para adorar a Deus em público como igreja, como família estendida ou nuclear, e na vida privada, com a necessária ressalva de que obras de necessidade e de misericórdia eram permitidas, de acordo com o ensino e exemplo do próprio Cristo. Com isso, os puritanos acreditavam que aqueles que queriam encontrar textos-prova em defesa de recreação no sábado estavam procurando em vão.

Santificação do sábado Peter Heylyn (1599-1662), capelão do rei Carlos e historiador da Igreja da Inglaterra, escreveu contra o entendimento dos puritanos sobre o sábado, censurando o zelo exagerado na aplicação de deveres espirituais a serem cumpridos naquele dia.*“ Ele estava reagindo ao esforço puritano de santificar 0 dia inteiro como dia de adoração. Respondendo à pergunta de se o sába­ do é um momento para assuntos seculares ou temporais, George Swinnock (c. 1627-1673) escreve; “Leitor, assim como teu dever é descansar o dia inteiro da impiedade e do trabalho mundano, também é empregar o dia inteiro na adoração a Deus, seja orando, lendo, ouvindo, cantando, meditando ou con­ versando com outros sobre as obras de Deus ou sobre sua Palavra. Procura estar sempre ocupado com deveres públicos, privados ou secretos”.*' E John Flavel (1628-1691) faz eco aos pensamentos de Swinnock, sustentando que no sábado “a mente está mais ativa e ocupada na obra de Deus, embora o corpo esteja descansando”.*^ Não resta dúvida de que Swinnock e Flavel estão defendendo a posição puritana predominante sobre a aplicação do sábado. Mesmo antes do sábado os cristãos devem preparar o coração e a mente para adorar e cultuar a Deus. Conforme a Confissão de Fé de Westminster deixa claro, 0 sábado do dia do Senhor “é santificado ao Senhor quando homens, depois de prepararem devidamente o coração e colocarem previamente em ordem seus negócios comuns, não apenas guardam o dia inteiro para um santo descanso de suas próprias obras, palavras e pensamentos a respeito de seus empregos seculares e divertimentos, mas também se ocupam o tempo todo ■“Peter Heylyn, The history o f the Sabbath. In two books (London, 1636). ^'George Swinnock, The Christian m an’s caliing, in: The works of George Swinnock (Edinburgh: James Nichol, 1849), 1:245. “John Flavel, An exposition of the Assembly's Catechism, in: The works of John Flavel (Edinburgh: Banner of TYuth TVust, 1968), 6:235.

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com as atividades públicas e privadas de culto e com os deveres de necessidade e misericórdia” (21.8).''^ Owen estava consciente de que alguns homens “doutos” se queixavam de que "tem havido alguns excessos na orientação que muitos têm dado acerca da devida santificação do dia do Senhor”.'^ E ele francamente reconhece que é possível ser demasiadamente zeloso nesse assunto. Owen deseja evitar o erro dos fariseus, bem como o erro de uma ideia antinomiana do dia do Senhor. Entretanto, ele entende que o mundo não acolhe naturalmente os mandamentos de Deus, em particular a guarda do sábado. “Mas”, escreve Owen, “a maneira de acabar com esse declínio não é adaptar os mandamentos de Deus à conduta e procedimento corruptos dos homens”.'*®O que Owen defende é a guarda do sá­ bado (e a adoração e o culto nesse dia) que esteja alicerçada em nada mais nada menos que a Palavra dè Deus. Com base em várias passagens das Escrituras, Owen postula que a guarda do sábado deve ser “da mesma magnitude do uso de nossa força física em qualquer dia desde a manhã até a noite”.“^ Ele apresenta várias diretrizes práticas para os cristãos que procuram cumprir seu dever perante Deus no que diz respeito à guarda do quarto mandamento. O sábado é um dia em que os santos têm o privilégio e o dever de adorar e cultuar a Deus porque ele é Deus. Nesse dia, o povo de Deus, refletindo seu Criador, descansa; em termos específicos descansam em Deus e usam o dia para meditar no descanso sabático eterno que os aguarda. Os eleitos também descansam na condição de participantes da aliança divina da graça. O próprio Deus “descansa e experimenta refrigério em Cristo, em sua pessoa, em suas obras, em sua lei [...] em todas essas coisas sua alma tem grande satisfação”.'**' Como consequência, aqueles que foram comprados pelo sangue do Cordeiro têm 0 dever de descansar e experimentar refrigério nele, exatamente como Deus o faz. Owen também fala dos deveres específicos dos cristãos no sábado. Em pri­ meiro lugar, devem se preparar. Na mente de Owen, a noite anterior não faz parte do sábado, mas Owen propõe — não com base em um mandamento, mas apenas para ajudar os santos de Deus — a meditação, a oração e a instrução como deveres úteis que preparam a alma para adorar a Deus no dia do Senhor. Owen divide os deveres do dia de adoração em deveres públicos e privados, sendo que aqueles ‘'*Flavel fala das recreações do corpo, que de outra forma são legítimas no restante da sema­ na, como pecaminosas. As obras permissíveis são os deveres de necessidade e de misericórdia de acordo com o exemplo de Cristo (Mt 12.3,4). Veja An exposition, in; Works, 6:236. ''‘'Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:438. “"Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:440. “"Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:443. “'Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:448.

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têm precedência sobre estes.“®Os deveres privados, que podem ser cumpridos antes ou depois da adoração pública, incluem praticar a “oração, a leitura das Escrituras, a meditação, a instrução em família cora base nas ordenanças públicas (...] que devem ser recomendadas à consciência, à capacidade e à oportunidade de todos conforme encontrarem força e ajuda para isso”.““

Adoração pública: introdução Um dos grandes temas que delineia a teologia de John Owen sobre a adoração é a suficiência das Escrituras {sufficientia Scriptumé) Como teólogo orto­ doxo ultracalvinista, Owen via as Escrituras como o principiam cognoscendi, ou fundamento do conhecimento da verdadeira teologia.®' Amandus Polanus von Polansdorf (1561-1610), o antigo teólogo ortodoxo da Basiléia, foi quem o expressou da forma mais sucinta; Principiam theologiae nostrae est Verbum Dei (O fundamento de nossa teologia é a Palavra de Deus).®^ Johannes Maccovius (1588-1644), teólogo de Franeker, escreveu em sua obra Distinctiones et regalae theologicae ac philosophicae (1652), publicada postumamente, que a Palavra de Deus era “a primeira verdade” {prima veritas) e “a primeira regra de todas as coisas em que se deve crer e que se deve fazer” (regula prima omnium credendorum et faciendorum).®® Owen via as Escrituras da mesma maneira: elas eram “o ponto central de integração de sua vida intelectual”.®“ Ele usava a imagem de uma fonte para descrever o papel das Escrituras como principiam cognoscendi: “Nossa crença de que as Escrituras são a palavra de Deus, ou uma revelação divina, junto com nossa compreensão da mente e da vontade de Deus conforme reveladas ^®Cf. David Clarkson, “Public worship to be preferred before private”, in: The works of David Clarkson (1864; reimpr., Edinburgh: Banner of TVuth, 1988), 3:187-209. ■‘’Owen, Day of sacred rest, in: Works, 19:460. Veja tb. Flavel, An exposition, in: Works, 6:236-7. “Acerca da teologia litúrgica de Owen, veja Daniel R. Hyde, "‘Of great importance and of high concernment’: the liturgical theology of John Owen (1616-1683)” (dissertação de mestrado, Puritan Reformed Theological Seminary, 2010). ^'Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek theological terms: drawn principally from Protestcmt Scholastic theology (Grand Rapids: Baker, 1985), p. 245-6; Richard A. Muller, Post■ Reformation Reformed dogmatics (Grand Rapids: Baker, 2003), 2:151-223. “Amandus Polanus von Polansdorf, Syntagma theologiae christianae (Hanau, 1615), Synopsis, libri 1. A respeito de Polanus. veja Robert W. A. Letham, “Amandus Polanus: a neglected theo­ logian?” (Sixteenth Century Journal 21, n. 3 [1990]: 463-76). “Johannes Maccovius, Scholastic discourse: Johannes Maccovius ( 1588-1644) on theological and phibsophical distinctions and rules, tradução para o inglês de Willem J. van Asselt; Michael D. Bell; Gert van den Brink; Rein Ferwerda (Apeldoom: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2009), p. 57. “Carl R. TVueman, “John Owen as a theologian”, in: Robert W. Oliver, org., John Owen: the man and his theology (Phillipsburg: P&R, 2002), p. 47. Acerca da doutrina de Owen sobre as Escrituras, veja T-ueman, The claims of truth: John Owen’s THnitarian theology (Carlisle, Reino Unido: Paternoster, 1998), p. 64-101.

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nelas são as duas fontes de todo nosso interesse na religião cristã. Delas provêm todos aqueles ribeiros de luz e de verdade mediante as quais nossas almas são regadas, revigoradas e tornadas frutíferas para Deus”.” O papel fundamental que as Escrituras têm no pensamento de Owen pode ser visto em Theologoumena pantodapa (1661), em que as Escrituras forneceram não apenas o conteúdo, mas também a estrutura de todo seu projeto, como ele descreve essas “afirmações teológicas de todo tipo” de acordo com as alianças que Deus fez com o homem.” Para os reformados em geral e para Owen em particular, as Escrituras são suficientes para determinar e regulamentar a adoração e o culto da igreja. Isso se aplicava ao período do início da ortodoxia, como expresso em documentos como a Confissão Belga: “Cremos que essas Sagradas Escrituras contêm com­ pletamente a vontade de Deus e que tudo aquilo que o homem deve crer para a salvação está suficientemente ensinado ali. Nelas está escrita extensamente toda a maneira de adoração que Deus exige de nós” (art. 7).®^ No período do hipercalvinismo, Thomas Watson (c. 1620-1686) declarou no seu estilo típico e memorável que as “ [Escrituras] mostram a Credenda, aquilo em que devemos crer, e a Agenda, aquilo que devemos praticar”.” Owen cria nessa doutrina da suficiência das Escrituras para a adoração, conforme se demonstrará prin­ cipalmente com base em seus Lesser catechism [Catecismo menor] e Greater catechism [Catecismo maior]” bem como em A brief instruction in the worship of God [Uma breve instrução sobre a adoração a Deus] '^yohn Owen, The causes, ways, and means o f understanding the mind o f God as revealed in his word, with assurance therein..., in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone &Hunter, 18S0-18SS), 4:121. “Tlueman, “John Owen as a theologian”, p. 52-3. Para um tratamento semelhante da doutrina cristã feito a partir da revelação das alianças de Deus com o homem, veja John Bali, A treatise of the covenant o f grace... (London: Simeon Ash, 1645). Acerca da questão da metodologia teoló­ gica nos séculos 16 e 17, veja Sebastian Rehnman, Divine discourse: the theological methodology o f John Owen (Grand Rapids: Baker, 2002), p. 155-77. ”0 texto em latim afirma "Credimus sacram hanc Scripturam Dei voluntatem perfecte complecti et quodcumque ab hominibus, ut salutem consequantur, credi necesse est, in ilia sufficienter edoceri. Nam cum illic omnis divini cultus ratio, quern Deus a nobis exigit, fusissime descripta sit” (De Nederktndse belijdenisgeschriften, edição de J. N. Bakhuizen van den Brink [Amsterdam: Uitgeverij Ton Bolland, 1976], p. 79). '“Thomas Watson, A body o f divinity (1692; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1986), p. 30. Acerca de Watson, veja Barry Till, “Watson, Thomas (d. 1686)”, in: H. C. G. Matthew; Brian Harrison, orgs., Oxford dictionary o f national biography (Oxford; Oxford University Press, 2004), 57:671-2. Para um sermão puritano típico sobre a suficiência da Palavra, veja Thomas Manton, "The Scripture sufficient without unwritten tradition”, in: The complete works of Thomas Manton (London: James Nisbet, 1870), 5:487-500. "John Owen, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 1:465-94. “"John Owen, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 15:447-530.

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Uma doutrina puritana? Será que essa convicção de que as Escrituras são suficientes tanto para a sal­ vação quanto para a adoração é uma doutrina apenas puritana? Seria Owen herdeiro de uma crença sui generis em relação ao restante da ortodoxia re­ formada? Recentemente R. J. Gore e J. I. Packer explicaram que, no que diz respeito à adoração, a doutrina de Owen sobre a suficiência das Escrituras é peculiarmente uma "abordagem puritana da adoração”.“ Packer, por exemplo, defende que “a ideia de que era necessária uma autorização bíblica direta [...] para aprovar cada elemento incluído no culto público a Deus foi uma inovação puritana”.“ Antes de examinarmos a doutrina de Owen, é preciso contextualizá-lo a fim de refutar essa leitura simplista da parte de Gore e Packer. É incontroverso que, nesta doutrina, Owen estava em sintonia com a “irmandade espiritual” dos puritanos. Por exemplo, em seu livreto polêmico English Puntanism [Puritanismo inglês], escrito em 1605, William Bradshaw (1571-1618) resumiu a preocupação puritana de que, pelo fato de serem a Palavra de Deus, as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos deviam ser vistas como suficientes para servir a Deus no culto público, pois “eles sustentam e defendem que a Palavra de Deus contida nos escritos dos profetas e dos apóstolos é absolutamente perfeita, a qual Cristo, o cabeça da igreja, lhes deu para ser o único cânon e regra de todas as questões de religião e de todo e qualquer assunto relacionado à adoração e ao culto a Deus. E que tudo aquilo que nesse culto e adoração não possa ser justificado nessa Palavra é ilegítimo. E, portanto, que é pecado forçar qualquer cristão a realizar qualquer atividade de religião ou culto divino que não possa claramente ser demonstrado nela”.“ O argumento de Bradshaw era um argumento convencional dos puritanos. Era, positivamente falando, argumento convencional porque Cristo deu sua Palavra à sua Igreja; ela é “perfeita”, ou seja, é suficiente para “a adoração e o culto a Deus”. Negativamente falando, o que não é ordenado na Palavra é “ilegítimo” no culto público. O resultado prático é que os cristãos são libertados de servir a Deus em maneiras contrárias à sua Palavra. Em 1601, William Perkins (1558-1602) escreveu A waming against tke idolatry o f the last times [Advertência contra a idolatria dos últimos tempos] com 0 intuito de instruir uma “multidão ignorante acerca da verdadeira ado­ ração a Deus. Pois o resíduo de papismo ainda está preso à mente de muitos “R. J. Gore, Covenantal worship: reconsidering theParitan regulative principle (Phillipsburg: P&R, 2002), p. 93-5; Packer, Quest for godliness, p. 245-57. “Packer, Quest for godliness, p. 247. “William Bradshaw, English Puritanism, containing the main opinions o f the ridgedest sort o f those called Puritans in the realm o f England, 1.1, in: Several treatises o f worship & ceremonies (London: impresso para Cambridge e Oxford, 1660), p. 35.

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deles, e acham que servir a Deus é tão somente agir corretamente com os homens e balbuciar umas poucas palavras de manhã e à noite, em casa ou na igreja, mesmo sem entendê-las”.'^'* A fim de instruir os ignorantes, Perkins tinha primeiro de advertir contra a idolatria. Além da idolatria de falsas con­ cepções de Deus e de Cristo, Perkins afirmou que o segundo tipo de idolatria era “quando Deus é adorado de uma maneira diferente e com o uso de meios diferentes do que ele revelou na Palavra. Pois, quando os homens prescrevem uma adoração inventada, também prescrevem um Deus inventado”.“ Para Perkins, adorar de acordo com a Palavra era adorar o Deus verdadeiro; adorar contrariamente à Palavra era adorar um Deus completamente diferente. Depois de advertir contra tal idolatria, Perkins concluiu seu estudo sobre a regra de adoração divina com o ensino prático de “que não pode receber o nome de adoração a Deus nada que ele não tenha ordenado em sua própria Palavra e não nos tenha determinado como sua autêntica adoração”.“ Então, de acordo com Perkins, a Palavra de Deus é a fonte e a regra da verdadeira adoração. Outro exemplo procede de Thomas Watson. Ao explanar a resposta à pri­ meira pergunta do Catecismo Menor — “o fim maior do homem é glorificar a Deus e se alegrar nele para sempre” — , Watson afirmou que “glorificar a Deus consiste em adorar ou cultuar”. E s s a adoração era dúplice: ou era reverência secular a pessoas de honra ou, então, era adoração divina dada a Deus. Acerca da adoração divina, Watson escreveu com eloquência e empolgação: Deus é muito ciumento dessa adoração divina; ela é a menina dos seus olhos, é a pérola de sua coroa, a qual ele guarda — como fez com a Árvore da Vida — com querubins e uma espada flamejante, a fim de que ninguém se aproxime para profaná-la; a adoração divina precisa ser exatamente como o próprio Deus determinou, se não, é oferecer fogo estranho (Lv 10.2). O Senhor fez Moisés construir o tabernáculo “conforme o modelo [...] mostrado no monte” (Êx 25.40); ele não deve deixar fora nem acrescentar nada ao que está no modelo. Se Deus foi tão preciso e específico quanto ao local do culto, quanto mais preciso será quanto à questão de sua adoração! Cora certeza aqui tudo deve ser de acordo com o modelo prescrito em sua Palavra.“

Para Watson, a regulamentação divina da adoração era um prolongamento do ciúme divino. Isso levou Watson a indagar retoricamente: se Deus se importa “William Perkins, A warning against the idolatry o f the last times, in; The workes o f that fa­ mous and worthy minister o f Christ... (London: John Legatt and Cantrell Ligge, 1612-13), 1:670. ‘^Perkins, Warning against idolatry, in: Workes, 1:672, col. 2. '^'^Perkins, Warning against idolatry, in: Workes, 1:698, col. 2. Watson, A body o f divinity, p. 7. **Watson, A body o f divinity, p. 8.

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com O lugar de sua adoração, não irá se importar muito mais com a essência de sua adoração? No assunto adoração, Owen partilhava desta linha de tradição puritana. Embora sua maneira de entender a suficiência das Escrituras conforme aplicada à adoração estivesse em consonância com seus irmãos puritanos, ela não era peculiar a ele ou a eles. Reconhece-se que João Calvino não foi referência norma­ tiva da ortodoxia reformada nesse período nem em qualquer outro,®’ mas, visto que Gore e Packer recorrem a Calvino para mostrar a suposta descontinuidade entre a teologia reformada inicial e a teologia de Owen e dos puritanos, é preciso enunciar sucintamente a doutrina de Calvino. Nesse assunto havia unanimidade entre Calvino, os reformadores, Owen e os puritanos. Estudiosos têm analisado em detalhe a doutrina de Calvino sobre a adoração, mas, de qualquer maneira, serão úteis alguns poucos e breves trechos escolhidos de seus escritos.™ Quanto aos motivos pelos quais a adoração precisava ser reformada e como essa reforma devia acontecer, a posição básica de Calvino a respeito foi expressa da melhor maneira em sua carta de 1544 escrita ao imperador Carlos V e intitulada The necessity o f reforming the church [A necessidade de reformar a igreja]: Sei como é difícil convencer o mundo de que Deus desaprova todas as formas de adoração que não são expressamente sancionadas por sua Palavra. A convicção oposta, que se agarra a eles — estando, por assim dizer, em suas entranhas — é de que qualquer coisa que façam recebe boa aprovação, desde que exiba algum zelo para a honra de Deus. Mas, visto que Deus considera não apenas infrutífero mas também absolutamente abominável qualquer coisa que, por motivo de zelo, façamos para adorá-lo, porém em desacordo com seu mandamento, o que ganhamos se seguirmos um caminho contrário? As palavras de Deus são claras e inconfundíveis: “obedecer é melhor que oferecer sacrifícios”; “em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos humanos” (ISm 15.22; Mt 15.9). Todo Veja Richard A. Muller, “Was Calvin a Calvinist? Or, did Calvin (or anyone else in the Early Modem Era) plant the ‘TULIP’?” (Calvin College, disponível em: http://www.calvin.edu/ meeter/lectures/Richard %20Muller%20- %20Was %20Calvin %20a %20Calvinist.pdf, acesso em; 10 mar. 2011). ™Acerca da doutrina de Calvino, veja W. Robert Godfrey, “Calvin and the worship of God”, in: The worship o f God: Reformed concepts o f biblical worship (Fearn, Escócia: Christian Focus, 2005), p. 31-49; e John Calvin: pilgrim and pastor (Wheaton: Crossway, 2009); Hughes Oliphant Old, “Calvin’s theology of worship”, in: Philip G. Ryken; Derek W. H. Thomas; J. Ligon Dun­ can 111, orgs.. Give praise to God (Phillipsburg: P&R, 2003), p. 412-35; John D. Witvliet, “Images and themes in John Calvin’s theology of liturgy”, in: David Foxgrover, org.. The legacy o f John Calvin: Calvin Studies Society Papers 1999 (Grand Rapids: Calvin Studies Society, 2000), p. 130­ 52. Acerca da doutrina de Calvino em comparação com a dos puritanos, veja William Young, “The Puritan principle of worship”, in: D. Martyn Lloyd-Jones, org., Puritan papers, Volume 1: 1956-1959 (Phillipsburg: P&R, 2000), p. 141-53.

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acréscimo à sua Palavra, especialmente neste assunto, é uma mentira. “Adoração voluntariosa” é futilidade. Essa é a decisão. E, assim que o juiz decidir, não há mais tempo para debater.”

Para Calvino, assim como para os puritanos, toda adoração não ordenada na Palavra de Deus era desaprovada, infrutífera, abominação e “adoração voluntariosa”. Mais tarde, em seu comentário sobre Colossenses, ele definiu “adoração voluntariosa” como “uma adoração voluntária que os homens escolhem por sua própria vontade sem um mandamento da parte de Deus’7^ Sem mandamento divino, a adoração é mera invenção da mente dos homens. Em seu comentário sobre Salmos 9.11, ele afirmou: Além disso, vemos que os santos pais, quando recorreram a Sião para oferecer sacrifícios a Deus, não agiram apenas de acordo com o que sua própria mente lhes sugeria, mas o que fizeram procedia da fé na Palavra de Deus e era feito em obediência ao seu mandamento, e por suas práticas religiosas foram, portanto, aprovados por Deus. Segue-se daí que não existe absolutamente base alguma para usar o exemplo deles como argumento ou desculpa para as práticas religiosas que, por sua própria imaginação, homens supersticiosos inventaram para si [...] Saibamos e estejamos plenamente convictos de que sempre que os fiéis — que o adoram pura e devidamente de acordo com a determinação de sua Palavra — estão reunidos para participar de atos solenes de adoração religiosa, pela sua graça ele está presente e preside no meio deles.’’’

Mais uma vez, Calvino estabeleceu claro contraste entre a adoração segundo a mente dos homens e a adoração que procede da fé na Palavra de Deus. Aquela é superstição, enquanto esta é aprovada por Deus. Isso levou Calvino a instar seus ouvintes do século 16 a adorar a Deus de acordo com os mandamentos de sua Palavra e a receber as bênçãos espirituais dessa adoração. Nisso fica claro ”John Calvin, “The necessity of reforming the church”, in: Henry Beveridge; Jules Bonnet, orgs., Selected works o f John Calvin: tracts and letters (Grand Rapids: Baker, 1983), 1:128-9. ”John Calvin, Galatians, Ephesians, Philippians, and Colossians, tradução para o inglês de T. H. L. Parker, in: Calvin’s New Testament commentaries, edição de David W. Torrance; Thomas F. Torrance (1965; reimpr.. Grand Rapids: Eerdmans, 1972), 11:343. Cf. John Calvin, Institutes o f the Christian religion, edição de John T. McNeill, tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), 2.8.17 [edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Editora UNESP, 2008), 2 vols.]. '’John Calvin, Commentary on the book o f Psalms, tradução para o inglês de James Anderson, in: Commentaries (1845-1849; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 1996), 4:121-2 [edição em português: João Calvino, Comentário de Salmos (São Paulo: Fiel, 2009, 2011, 2012), 4 vols.].

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que Calvino se preocupava em aplicar as Escrituras à adoração pública tanto quanto qualquer um dos puritanos, inclusive Owen, que numa obra póstuma afirmou: “A adoração religiosa que não é divínamente instituída e estabele­ cida é adoração falsa, não aceita por Deus”/'* Para Owen, essa abordagem de Escrituras e adoração fazia parte de sua herança como teólogo reformado internacional e não era uma doutrina peculiar a ele ou ao puritanismo inglês. Isso será visto com mais detalhes a partir de um exame de Lesser Catechism e Greater Catechism de Owen, bem como de seu catecismo pós-1662, A brief instniction in the worship o f God.

Os antecedentes dos catecismos de Owen Depois de se tornar pastor da paróquia de Fordham em 16 de julho de 1643, John Owen deparou com o problema pastoral de ignorância doutrinária. Suas impressões foram bem negativas: Fordham estava "repleta de pessoas totalmente ignorantes’?^ Além da pregação em público, sua solução foi ca­ tequizar seu povo de casa em casa. Essa era uma estratégia pastoral clássica arraigada no ministério de Paulo entre os efésios (At 20.20) e no método de catequizar usado na Idade Média e pela Reforma. Em 1645, ele escreveu Lesser Catechism e Greater Catechism, publicados conjuntamente com o título Two short catechisms: wherein the principles o f the doctrine of Christ are unfolded and explained [Dois breves catecismos em que os princípios da doutrina de Cristo são revelados e explicados]. Mais de vinte anos depois escreveu outro catecismo, com 53 perguntas e respostas. As dezoito primeiras perguntas de A brief instruction in the worship o f God dizem respeito à adoração instituída, enquanto as perguntas 19 a 53 tratam da disciplina instituída. Ainda que esses três documentos sejam catecismos, são muitas as dife­ renças entre, de um lado Lesser Catechism e Greater Catechism e, de outro, A brief instruction. Os dois primeiros foram escritos para “pessoas ignorantes” em Fordham, ao passo que o último foi preparado para um público nacional. Os dois primeiros continham o conhecimento mínimo necessário para participar da Ceia, ao passo que o último foi escrito como um estudo doutrinário em meio à turbulência política. Esse fato esclarece bastante A brief instruction. Apesar do Código de Clarendon, igrejas dissidentes estavam crescendo nos primeiros anos de reinado de Carlos II. A brief instruction se tornou uma das fontes em que igrejas congregacionais buscavam orientação. Como síntese da doutrina e governo eclesiástico congregacionais, essa obra tornou-se tão popular que era '"John Owen, “An answer unto two questions: with twelve arguments against any conformity to worship not of divine institution”, in: The works o f John Owen. D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 16:249. ”Owen, Lesser Catechism, in: Works, 1:465.

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conhecida como “Independent’s Catechism” [Catecismo dos independentes]/^ A reação negativa que recebeu também permite ver sua influência. Em 1688, Benjamin Cainfield, pároco de Whitby, no condado de Derbyshire, atacou o ca­ tecismo com A serious examination o f the Independents’ Catechism, and therein of the chief principles of nonconformity to, and separation from, the Church of England [Um exame criterioso do Catecismo dos Independentes e de seus princípios mais importantes de não conformismo com a Igreja da Inglaterra e de separação dela], uma obra de 347 páginas de tamanho meio-ofício.^^ Mais tarde, em 1670, outro ataque veio na forma de A letter to a friend concerning some of Dr Owen’s principles and practices [Carta a um amigo acerca dos princípios e práticas do dr. Owen], escrita por George Vernon (c. 1638-1720).^®

O fim

principal do homem

Em A brief instruction in the worship of God Owen inicia no ponto em que Calvino e a Assembleia de Westminster iniciaram,” a saber, a questão do fim principal ou supremo do homem: “O que Deus exige de nós em nossa de­ pendência dele para que seja glorificado por nós e sejamos aceitos por ele?”. Observe-se que essa pergunta está formulada na linguagem do relacionamento pactuai. Embora o termo aliança não seja usado explicitamente, Owen, quan­ do falou daquilo que Deus exige de nós “para que seja glorificado por nós e sejamos aceitos por ele”, está aludindo à ideia básica da aliança: “E vós sereis 0 meu povo, e eu serei o vosso Deus” (Jr 30.22). A resposta de Owen a essa pergunta era dupla. Em primeiro lugar, os crentes devem adorar a Deus. Em segundo, os crentes devem fazê-lo "com os meios que ele mesmo designou”. Essa adoração não era a adoração “natural ou moral” refletida no primeiro mandamento — natural porque dependia da natureza do próprio Deus e porque estava “substanciada com a natureza do homem”. Em vez disso, o estudo de Owen tratava “daqueles métodos e meios externos designados por Deus mediante os quais a fé, o amor e o temor dele devem ser exercitados e expressados para sua glória [...] conforme sua livre e absoluta direção”.*“ Essa adoração instituída não era só um ato interior; também ’’^Não deve ser confundido com um catecismo anterior com o mesmo título e escrito por J. C.: The independants catechism (London, 1654). "Benjamin Cainfield, A serious examination o f the Independents' Catechism, and therein of the chief principles of nonconformity to, and separation from, the Church o f England (London: J. Redmayne, 1668). ^*George Vernon, A letter to a friend, concerning some o f Dr. Given’s principles and practices (London: J. Redmayne para Spencer Hickman, 1670). "Veja pergunta 1, Catecismo da Igreja de Genebra, Catecismo Maior, Catecismo Menor. ^‘’John Owen, A brief instruction in the worship of God and discipline of the churches of the New Testament, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 15:447.

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exigia ações exteriores. Conforme ele afirmou em seguida, os pecadores não conseguem ser aceitos por Deus caso façam pouco caso da adoração exterior qv'i Deus explicitamente determinou. Caso ajam assim, são como Adão, que também infringiu uma instituição divina. Além disso, por meio da adoração exterior os crentes são ajudados e auxiliados em sua adoração natural, resul­ tando no fortalecimento do hábito da adoração natural e no crescente aumento de sua prática.®'

A adoração e a Palavra Em seu Greater catechism Owen ensinava claramente no capítulo 1, “Das Escrituras”, que as Escrituras eram o principiam cognoscendi. Ele descreveu a religião cristã como “a única maneira de conhecer corretamente a Deus e de viver para ele”, ou seja, de adorá-lo (Greater catechism, pergunta 1). Nessa descrição, Owen segue a linha de pensamento de puritanos ingleses como William Ames (1576-1633), que concebia a teologia de forma prática: theologia est doctrina Deo vivendi (teologia é a doutrina de viver para Deus).®^ Como deviam os homens conhecer corretamente a Deus e viver para ele? No Lesser Catechism, Owen iniciou com essa pergunta bem básica: “Onde se deve aprender toda verdade acerca de Deus e de nós mesmos?” Sua resposta foi: “Nas Escrituras Sagradas, a Palavra de Deus”.®® Escrevendo em inglês para aqueles que ele descrevia como “totalmente ignorantes”, ele exprimiu de forma catequética que as Escrituras são o principiam cognoscendi. É o que também ocorre no Greater catechism: “Onde se deve aprender isso? Somente nas Escrituras Sagradas” (pergunta 2). Mas, nos catecismos de Owen, a des­ crição mais completa está em A brief instruction in the worship of God, que indagava: “Como, então, ficamos sabendo quais são os meios e os métodos da adoração a Deus? Somente na Palavra escrita e por meio dela, a qual contém uma revelação completa e perfeita da vontade de Deus quanto à totalidade da sua adoração e a tudo que diz respeito a ela” (pergunta 3). Essas perguntas e respostas mostram sua crença de que tanto o conhecimento de Deus quanto 0 conhecimento de como viver para ele numa vida de adoração provinham ex Scriptura sola. Isso levava à questão da natureza das Escrituras. Era essa nature­ za que lhe permitia falar sobre as Escrituras no que diz respeito a conhecimento ®‘Owen, Brief instruction, in: Worfcs, 15:448. '^William Ames, Medulla theologica (Amsterdam: apud Robertum Allotum, 1627), p. 1. So­ bre esse aspecto prático da teologia, veja A. C. Neele, "Post-Reformation Reformed sources and children” [Hervormde Tèologiese Studies 64, n. 1 [2008]: 653-64). ®^Owen, Lesser Catechism, in: Works, 1:467. Para uma história parcial dos catecismos, veja Fred H. Klooster, The Heidelberg Catechism: origin and history (Grand Rapids: Calvin Theological Seminary, 1981), p. 171-2; Gottfried G. Krodel, “Luther’s work on the catechism in the context of Late Medieval catechetical literature” (Concordia Journal 25, n. 4 [October 1999]: 364-404).

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e adoração: “O que são as Escrituras? Os livros do Antigo e Novo Testamentos, dados por inspiração de Deus, que contêm tudo que é necessário para crer e fazer a fim de que Deus seja adorado e nossas almas sejam salvas” {Greater catechism, pergunta 3). Ele não apenas restringia as Escrituras aos livros canônicos dos dois Testamentos, mas também restringia o alcance de sua suficiência aos objetos da fé que conduzem à salvação e aos objetos do dever que conduzem à adoração correta.*^ Dignas de menção são suas notas margi­ nais acerca da suficiência das Escrituras na adoração. Acerca da pergunta 3, ele escreveu: “Todas as invenções humanas são ajudas desnecessárias na ado­ ração a Deus”. Ele pôde dizer isso por causa do que disse sobre a natureza d.' o Escrituras. Ele também chegou a esta conclusão: “A palavra que procede d. í é a única norma de fé, adoração e vida”.*^ Longe de ser uma fonte escassa ou parcial de conhecimento da adoração, ele afirmou que sola Scriptura implica­ va sufficientia Scriptume, visto que a Palavra era "completa” e “perfeita” no que diz respeito à adoração {Brief instruction, pergunta 3). A suficiência total das Escrituras mostrava, então, o local onde encontrar o assunto e a forma da verdadeira adoração. Conforme havia anteriormente afirmado na Declaração de Savoia (21.1), num texto tirado da Confissão de Fé de Westminster: A luz da natureza revela que existe um Deus, o qual é senhor e soberano sobre todas as coisas, é justo, bom e faz o bem a todos, e, por isso, deve-se temê-lo, amá-lo, louvá-lo, invocá-lo, confiar nele e servi-lo de todo o coração, de toda a alma e de toda a força. Mas o modo aceitável de adorar o Deus verdadeiro foi instituído por ele mesmo e, desse modo, está limitado por sua própria vontade revelada: que não seja adorado de acordo com a imaginação e as invenções dos homens ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, nem de outra maneira qualquer não prescrita nas Sagradas Escrituras.

O propósito de Deus ao dar sua Palavra foi que seu povo pudesse conhecer a mente e a vontade divinas no que tange à adoração e à obediência que Deus exige deles. Essa instrução era necessária por causa do estado obscurecido da mente do homem caído, pois “por nós mesmos somos ignorantes [de] como Deus é e de como ele deve ser adorado”.** Para Owen, as raízes do direito de Deus de determinar sua própria adoração estão no fato de que ele é um Deus ciumen­ to, 0 que Owen descreveu como “aquela condição santa que é parte de sua natureza e está relacionada, de forma especial, com sua adoração”.®^ *”Para uma breve introdução sobre a amplitude da suficiência das Escrituras, veja Muller, Post-Reformation, 2:318-22. “Owen, Greater Catechism, in: Works, 1:470. “ Owen, Brief instruction, in: Works, 15:450. “ Owen, Brief instruction, in: Works, 15:450.

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De acordo com a Palavra, o que exatamente a igreja deve fazer no culto? Owen mencionou que os crentes são chamados a se congregar para a adoração, a oração, o cântico de salmos, a pregação, òs sacramentos e a disciplina — estas são as principais instituições do culto da nova aliança [Brief instruction, pergunta 17).®® Quanto ao cântico de salmos, Owen juntou-se a 24 outros líderes na redação do prefácio de The Psalms o f David in meeter (Os salmos de Davi metrificados] (1673).®'’ De acordo com esse prefácio, “E embora cân­ ticos espirituais de autoria meramente humana possam ter utilidade, mesmo assim nossa devoção está mais bem garantida quando o assunto e as palavras são inspiradas diretamente por Deus, e parece-nos que os Salmos de Davi são claramente o que a expressão usada pelo apóstolo ‘salmos, hinos e cânticos espirituais’ (Ef 5.19; Cl 3.16) queria dizer”.’®

Criação, adoração e a Palavra Depois dos capítulos sobre Deus, a Tlrindade e as obras internas de Deus [opera ad intra), o capítulo 5 do Greater catechism passa a tratar “Das obras externas de Deus”. Nesse capítulo, Owen se ocupou da criação do homem e de seu propósito: adorar seu Criador. Com relação a isso, Owen explicou por que a Palavra era necessária para conduzir o homem em sua adoração mesmo antes da Queda. Ele rapidamente escreveu acerca das obras da criação e da providência [Greater catechism, perguntas 1 e 2) e acerca da relevância delas para a adoração e a Palavra: “Para que Deus fez o homem? Para sua própria glória em seu serviço e obediência” [Greater catechism, pergunta 3). O Lesser catechism segue essa mesma linha de ensino, aplicando a pergunta inicial so­ bre a Palavra à verdade de que em sua totalidade a vida do homem deve ser uma vida de adoração: “Pergunta: O que se exige de nós em relação ao Deus todo-poderoso? Resposta: Obediência santa e espiritual de acordo com sua lei que nos foi dada”.’* Fomos feitos para obedecer e glorificar a Deus (cf. Cate­ cismo Maior de Westminster e Catecismo Menor de Westminster, pergunta 1). Em Lesser catechism a expressão-chave é “de acordo com sua lei que nos foi dada”. A Palavra dirige a vida de adoração. Para os membros de sua igreja. *®Owen, Brief instruction, in: Works, 15:477. “•Alista de signatários é: Thomas Manton, Henry Langley, John Owen, William Jenkyn, James Innés, Thomas Watson, Thomas Lye, Matthew Poole, John Milward, John Chester, George Cokayn, Matthew Meade, Robert Francklin, Thomas Doolittle, Thomas Vincent, Nathanael Vincent, John Ryther, William Tomson, Nicolas Blaikie, Charles Morton, Edmund Calamy, William Carslake, James Janeway, John Hickes e John Baker. ”T/ie Psalms o f David in Meeter. Newly translated and diligently compared with the original text, and former translations: more plain, smooth and agreecdrle to the text, than any heretofore (London: para a Company of Stationers, 1673). ’’Owen, Lesser catechism, in: Works, 1:467.

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essa era uma discussão elementar não apenas contra o catolicismo romano, mas também contra os quaeres, um dos outros alvos das polêmicas de Owen. Conforme Owen explicou com alguns detalhes em Theologoumena pantodapa, os quaeres rejeitavam as Escrituras como sua norma para a adoração.’^ O homem foi criado para glorificar a Deus por meio do serviço e da obe­ diência, ou seja, a adoração em seu sentido mais amplo. No jardim, a adoração do homem se encontrava no “estado de natureza pura e incorrupta”.” Ele foi feito para ser um servo totalmente dedicado a seu Criador, “em sua pessoa — em sua alma e em seu corpo — em todas as suas faculdades, poderes e sentidos — em tudo que lhe foi dado ou confiado”.’“ Cada aspecto de seu es­ tado como alguém criado devia estar envolvido na adoração. Owen utilizou as categorias aristotélicas clássicas sobre a constituição do homem: mente, vontade e sentimentos.’^ Nas palavras de Owen, originalmente todas essas partes ou faculdades estavam em uma “conformidade habitual com Deus [...] numa disposição habitual de cumprir todos os deveres daquela obediência que era exigida dele [i.e., do homem]”.’* O fato de que Deus devia ser adorado de acordo com sua própria vontade e ordem era “uma parte importante da lei de nossa criação”, que estava escrita no coração e que foi reafirmada e confirmada no segundo mandamento {Brief instruction, pergunta 2). Aqui Owen ligou a adoração tanto à lei da natureza, citando os textos básicos pertinentes (Rm 1.21; 2.14,15; At 14.16,17; 17.2331),’^ quanto também à lei mosaica, no segundo mandamento (Êx 20.4-6). Conforme Owen afirmou, não importava qual ideia as pessoas tivessem de “John Owen, Biblical theology, tradução para o inglês de Stephen P. Westeott (Morgan: Soli Deo Gloria, 1994), p. 823-4, 833-5. Para a refutação por Owen veja p. 824-5. Sobre a data de A defense o f Sacred Scripture, veja Donald K. McKim, “John Owen’s doctrine of Scripture in histo­ rical perspective” {The Evangelical Quarterly's (Fall 1973]: 198). “John Owen, Christologia: or, a declaration o f the glorious mystery o f the person o f Christ— God and Man, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 1:48. No estado original, a religião era "ordeira, bela e gloriosa”. ”Owen, Person o f Christ, in: Works, 1:206. “ Kelly M. Kapic, Communion with God: the divine and the human in the theology o f John Owen (Grand Rapids: Baker, 2007), p. 45-56. “John Owen, Discourse on the Holy Spirit, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 3:285. Cf. Sinclair B. Ferguson, John Owen on the Christian life (Edinburgh: Banner of Tluth TVust, 1987), p. 274. ’'Acerca do emprego dessas e outras passagens em que a lei natural é vista como sedes doctrinae, veja J. V. Fesko; Guy M. Richard, “Natural theology and the Westminster Confession of Faith”, in: J. Ligon Duncan, org.. The Westminster Confession into the 21st century. Volume 3; essays in remembrance o f the 350th anniversary o f the Westminster Assembly (Fearn, Escócia: Christian Focus, 2009), p. 223-66; David VanDrunen, “Medieval natural law and the Reforma­ tion: a comparison of Aquinas and Calvin” (American Catholic Philosophical Quarterly 80, n. 1 [2006]: 77-98).

e

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Deus, O fato era que pela sua própria natureza sabiam que Deus devia ser “adorado com alguma adoração exterior solene” e que deveriam fazê-lo não apenas como indivíduos, mas como sociedades.*® Embora isso fosse válido pela própria natureza, assim mesmo Owen especificou uma maneira em que a lei da antiga aliança se distinguia da lei natural: o meio de conhecer exatamente como adorar a Deus. Esse aspecto era primordial para ele: “Os modos e os meios dessa adoração dependem apenas do agrado e da determinação de Deus”.** Ao explicar o segundo mandamento, Owen seguiu o raciocínio convencional reformado de que o homem foi “rigo­ rosamente proibido” de acrescentar elementos de adoração “de nossa própria invenção”.’“ O propósito divino com esse mandamento foi enviar os crentes até Jesus Cristo como o nosso principal profeta, aquele a quem Deus “conce­ deu autoridade soberana para revelar sua vontade e ordenar sua adoração”. Uma das provas que Owen apresentou para fundamentar essa declaração foi João 1.18: “Ninguém jamais viu a Deus. O Deus unigénito, que está ao lado do Pai, foi quem o revelou”.'“’ Nas notas marginais da pergunta 3 de Greater catechism, Owen explicou uma das implicações de o homem ter sido criado com o propósito de adorar, afirmando: “O aproximar-se de Deus em seu serviço é a maneira como nossa natureza mais se exalta acima dos animais irracionais, que perecem”.’“^ Owen ligou à imago Dei no homem, a qual o distinguia dos animais, a capacidade natural humana de prestar esse serviço ou culto: “Será que o homem era capaz de prestar o culto e a adoração que Deus exigia dele? Sim, ao máximo, tendo sido criado retamente à imagem de Deus em pureza, inocência, justiça e santidade” {Greater catechism, pergunta 4). Deus deu ao homem a capaci­ dade de adorar como resultado de sua natureza criada.’“ Recentemente Kapic afirmou que, à semelhança de muitos pais da igreja, Owen fazia distinção entre a imagem de Deus e a semelhança de Deus, mencionadas em Gênesis 1.26. Ele afirma que, enquanto “imagem” denotava as faculdades do homem original e devidamente voltadas para Deus, “semelhança” denotava justiça e a capacidade de responder obedientemente a Deus.’“ No entanto, as citações de Kapic extraídas de Works de Owen (10:80; 12:156-8; 22:158) não mostram claramente essa distinção, uma constatação que McDonald fez numa resposta ’®Owen, Brief instmctíon, in: Works, 15:448, 449. ” Owen, Brief instruction, in: Works, 15:448. "’"P. ex., 0 Catecismo de Heidelberg, perguntas 96-98; o Catecismo Maior de Westminster, perguntas 108-109. “”Owen, Brief instruction, in: Works, 15:449. '“Owen, Brief instruction, in: Works, 1:474. ‘“Veja Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 156-8. '“ Kapic, Communion with God, p. 37-42.

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à afirmação de Kapic.'“ Evidências mostrando que Owen empregou esses termos como sinônimos se encontram em seu estudo Christologia, de 1679: “Pelo pecado, perdemos a imagem de Deus e, com isso, toda graciosa aceitação por ele — perdemos todo direito ao seu amor e favor. Em nossa recuperação, conforme já declaramos, essa imagem precisa nos ser restaurada ou, em outras palavras, precisamos ser renovados à semelhança de Deus”.'“ A questão da importância disso para a adoração e a suficiência das Escrituras é então levada à conclusão com estas palavras: “Qual era a norma pela qual o homem foi primeiramente orientado em sua obediência? A lei moral ou eterna de Deus, que foi implantada em sua natureza e escrita em seu coração pela criação que é o propósito geral da aliança entre Deus e ele, sacramentalmente tipificada pela Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal” (Greater catechism, pergunta 5)."”’ De acordo com Owen, mesmo no estado de inocência a adoração praticada por Adão era dirigida por Deus mediante uma norma que ele deu. Conforme afirmou em seu comentário à margem, “Desde 0 início Deus nunca permitiu que a vontade da criatura fosse o padrão de sua adoração e honra”.'“ Em virtude de sua criação, o homem tinha a lei moral escrita em seu coração para orientá-lo na glorificação de Deus. Estando em aliança com Deus, o homem devia seguir a lei de seu Senhor. Mais tarde, Owen iria afirmar em seu comentário sobre Hebreus que sempre houve uma adoração externa associada à aliança entre Deus e o homem.'“ Por trás desse ensino há uma distinção chave. Os reformados ortodoxos adotaram uma distinção tomada da igreja medieval para descrever a teologia fazendo uso da terminologia da theologia archetypa (teologia arquetípica] e da theologia ectypa (teologia ectípica). Franciscus Junius (1545-1602) foi o primeiro a empregar esses termos."“ Essa distinção é entre teologia conforme Deus a conhece [theologia archetypa), como a original, e a teologia confor­ me 0 homem a conhece [theologia ectypa), como uma cópia. Essas categorias expressam não apenas a natureza do conhecimento teológico, mas também '“Suzanne McDonald, ‘The pneumatology of the ‘lost’ image in John Owen’’ (Westminster TheologicalJoumal. 71, n. 2 [Fall 2009]: 324-5]. '“Owen, Person o f Christ, in: Works, 1:218. '“Owen, Greater Catechism, in: Works, 1:474. '“Owen, Greater Catechism, in: Works, 1:474. '“Owen, Exposition o f Hebrews, in: Works, 6:185. Em Brief instruction, in: WorArs, 15:473, ele afirmou: “Então, em nenhuma situação ou condição da igreja Deus chegou a aceitar a obe­ diência moral sem a observância de alguma adoração instituída, adaptada em sua sabedoria às suas várias situações e condições” (cf. Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 22). "“A. Kuyper, ed.. De vera theologia IV-V, in: Opera selecta (Amsterdam, 1882), p. 51-6; cf. H. Bavinck, ed.. Synopsis purioris theologiae..., 6. ed. (1625; reimpr., Leiden: D. Donner, 1881), 1:3-4; Francis Turretin, Institutes ofelenctic theology, edição de James T. Dennison Jr., tradução para o inglês de George Musgrave Giger (Phillipsburg: P&R, 1992), 3.2.6.

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como O homem vem a adquiri-lo."' Owen também adotou essa terminologia."^ Rehnman afirma que "estudiosos reformados consideram que o conhecimen­ to que 0 homem tem de Deus é intrinsecamente ectípico, nâo uma cópia do conhecimento divino infinito, e, visto que o conhecimento humano depende da iniciativa reveladora de Deus, isso parece deixar implícito que o homem é incapaz de conceber uma teologia por meio da analogia entis" (a analogia do ser) Essa afirmação esclarece a tese de Owen de que mesmo antes da Queda, antes do pecado original e de seus efeitos na mente, o homem ainda assim precisava de revelação para orientá-lo em seus deveres para com Deus, pois o conhecimento que o homem tem de Deus, de sua vontade e de como adorá-lo é sempre um conhecimento de criatura, um conhecimento derivado."'' Antes da Queda, essa revelação era a percepção inata de Deus, a qual provinha da criação ou da providência. Após a Queda, esse conhecimento diminuiu muito e, portanto, se tornou insuficiente para conduzir a humanidade à adoração correta. Assim sendo, houve necessidade de revelação adicional sobre a ver­ dadeira adoração."® Essa necessidade está no fato de que a Queda apagou a imagem de Deus nos seres humanos, os quais agora são injustos; desfigurou a imagem e tornou o homem incapaz de adorar naturalmente como poderia fazer anteriormente. Ao mesmo tempo, as faculdades que capacitaram Adão a se relacionar com Deus permaneceram na humanidade."*

A adoração e os patriarcas Em sua obra The duties o f pastors and people distinguished [Distinção entre os deveres dos pastores e do povo], de 1643,"^ Owen delineou o tema da "'Veja Muller, Post-Reformation, 1:225-38; Willem van Asselt, “The fundamental meaning of theology: archetypal and ectypal theology in seventeenth-century thought” (Westminster Theo­ logical Journal 64, n. 2 (Fall 2002]: 319-35); R. Scott Clark, “Janus, the well-meant offer of the Gospel and Westminster theology”, in: David VanDrunen, org.. The pattern o f sound words: a festschrift for Robert B. Strimple (Phillipsburg: P&R, 2004), p. 149-80; e Recovering the Reformed confession: our theology, piety, and practice (Phillipsburg: P&R, 2008), p. 142-50. "^TVueman, “John Owen as a theologian”, p. 49-51; cf. Trueman, The claims o f truth, p. 54­ 6; Rehnman, Divine discourse, p. 57-71. "’Rehnman, Divine discourse, p. 63. "^Cf. John Owen, Of communion with God the Father, Son, and Holy Ghost, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 2:150. "’Acerca disso, veja Rehnman, Divine discourse, p. 73-89; Trueman, The claims o f truth, p. 56-60. "*John Owen, Vindiciae Evangelicae; or the mystery o f the Gospel vindicated and Socianism examined, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 12:143; John Owen, An exposition o f the Epistle to the Hebrews, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 18:387. "’Embora a página de rosto diga 1644 (Works, 13:1), Owen corrigiu isso em The duty of pastors and people distinguished, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 13:222.

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adoração desde Adão até Cristo, mostrando a necessidade da Palavra para o culto a Deus. Uma das perguntas que procura responder acerca dos patriarcas antes da entrega da lei era como adoravam, visto que não tinham cânon al­ gum das Escrituras. Sua resposta era que famílias e vizinhos se reuniam para “realizar aquelas coisas que sabiam que — pela lei da natureza, pela tradição ou pela revelação especial (a palavra não escrita daqueles tempos) — eram exigidas no culto a Deus”."* Ele não via essas três como fontes divergentes de revelação, mas como modos diferentes da revelação única mediante a qual a humanidade adorava seu Criador, mesmo sem ordem ministerial alguma, pois “Deus jamais permitiria que, em qualquer aspecto, a vontade da criatura fosse 0 padrão de sua honra e adoração”."® Quanto à lei da natureza, afirmou que a família mais antiga adorava com a ajuda da instrução oral de Adão, ao passo que posteriormente a igreja fazia o que havia se tornado tradição, cujo desenvolvimento era esporadicamente “ajudado por aqueles que recebiam revelações específicas, como foi o caso de Noé”.‘“ Depois da entrega da lei, a adoração foi regulamentada de forma bem mais clara pela revelação especial da Palavra de Deus. Em contraste, durante 0 período anterior à lei, “procuramos descobrir na prática dos homens a forma da adoração a Deus”. Quando a aliança com Deus começou a ser administrada de uma maneira diferente na época de Israel, o conteúdo e as formas de ado­ ração foram determinados “com base na prescrição divina”. Owen chegou a afirmar que imediatamente após a Queda de Adão e até Moisés, a humanidade, raciocinando a posíeriori, “conjecturava o que era ordenado com base naquilo que era feito”. De Moisés em diante, “aquilo que era feito [era determinado] por aquilo que era ordenado”, num raciocínio a priori.'^' Embora no período mosaico boa parte da adoração fosse composta da adoração cerimonial de sacrifícios e ofertas feitos por sacerdotes no tabernáculo ou templo, o povo de Deus ainda tinha direito de participar da adoração de duas maneiras básicas: ouvir a Palavra lida e exposta e meditar nela.'^^

A adoração: da antiga para a nova aliança Outra questão central para Owen era a continuidade e a descontinuidade entre adoração sob a antiga aliança e sob a nova. Ele perguntou se “esses modos e "“Owen, Pastors and people, in: Works, 13:7. "’Owen, Pastors and people, in: Works, 13:8. '“Owen, Pastors and people, in: Worfes, 13:8. '"Owen, Pastors and people, in: Works, 13:11. Afirmando que "não vale a pena discutir a respeito”, Owen rejeita as especulações de Agostinho, Josefo, Sixtus Senesis e Crisóstomo so­ bre se teria havido uma Palavra escrita de Deus no período patriarcal (Pastors and people, in: Worfcs, 13:11). '“Owen, Pastors and people, in: Works, 13:12-3.

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meios têm sido sempre os mesmos desde o princípio”.’" Sua resposta foi que, enquanto os atos “internos” da adoração permaneciam os mesmos, havia grande diferença nas formas “externas” de adoração.'" Essa era uma distinção comum entre os puritanos. Thomas Manton (1620-1677), contemporâneo de Owen, se fundamentou na mesma distinção quando expôs Filipenses 3.3: “Nós é que somos a circuncisão, nós, os que servimos a Deus em espírito”. Manton afirmou que isso deixava implícito que os crentes adoravam a Deus “com as afeições íntimas e espirituais de um coração renovado”.’" Essa adoração interior consistia em fé, reverência, amor e prazer em Deus.’^® Em contraste, a adoração exterior são “aqueles ofícios e deveres mediante os quais nossa honra e nosso respeito a Deus são simbolizados e expressos”. Ela consiste na Palavra, oração, louvor, ações de graças e os sacramentos, bem como na to­ talidade da vida cristã, que era “um hino constante a Deus, um ato contínuo de adoração”.’^^ Essa distinção mostrava, “portanto, que um cristão não deve pôr sua confiança numa forma exterior”, ' " mas deve perceber que “a adoração exterior é apenas um meio de chegar à interior”.'^® Manton ofereceu com uma expressão em latim uma forma retórica de lembrar essa ideia: finis est nobilior mediis (o fim é mais excelente do que o meio). O que Owen extraiu das Escrituras era que, ao longo da história da reden­ ção, Deus operou de diferentes maneiras em diferentes épocas (cf. Hb 1.1,2). Depois de a promessa ter sido feita em Gênesis 3.15, nos dias de Caim e Abel prestava-se adoração por meio de sacrifício (Gn 4), depois nos dias de Abraão por meio da circuncisão (Gn 17.10), posteriormente por meio da Páscoa (Êx 12), finalmente, por meio da Lei e de todas as suas diretrizes (Êx 20).’" Visto que por sua autoridade Deus determinou todas essas formas exteriores de adoração, por essa mesma autoridade elas cessaram após a vinda de Cristo.’“ Visto que Deus havia mudado uma vez a forma exterior de adoração, será que haveria ainda outras mudanças sob o evangelho? Não, porque a revelação final que Deus fez de sua vontade veio em seu Filho encarnado e por meio dele, e "todos as suas ordens e preceitos devem ser observados com absoluta obediência até o fim do li^Owen, Brief instruction, in: Worfes, 15:450. John Owen, A discourse concerning liturgies, and their imposition, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone &Hunter, 1850-1855), 15:8, onde ele afirma: "A adoração a Deus ou é moral e interior ou então é exterior e instituída de forma soberana ou autocrática”. '^’Thomas Manton “A description of the true circumcision”, in: The complete works of Thomas Manton (London: James Nisbet, 1870), 2:24. ‘2*Manton, “Tïue circumcision", in: Works, 2:24-5. '^^Manton, “Thie circumcision", in: Works, 2:25; cf. 2:29. '“Manton, “Tïue circumcision”, in: Wor/cs, 2:24. ‘“Manton, “Tïue circumcision”, in: Works, 2:27. ’“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:450-1. '*'Owen, Brief instruction, in: Works, 15:451-2.

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mundo, sem alteração, diminuição ou acréscimo”.'“ As antigas formas de ado­ ração foram abolidas visto que apontavam para Cristo, “o fim da lei” (Rm 10.4), e porque ele veio como Senhor sobre a casa de Deus, tendo plena autoridade, ao contrário daqueles que vieram antes dele. Aqui Owen passou a explicar as palavras de Hebreus 3.1-6, atribuindo a autoridade que Cristo tem para mudar a adoração na casa de Deus ao fato de ele ser o Filho. Cristo veio como aquele que é maior que os anjos, os profetas e o próprio Moisés.'“ A cristologia era e continua sendo, então, a chave para a adoração da nova aliança.'“

A adoração e o antinomianismo À luz da distinção entre a adoração na antiga aliança e a adoração na nova, uma pergunta chave para os puritanos era se a abolição da antiga aliança e de suas formas de adoração significaram que os cristãos da nova aliança estão livres de todas as obrigações. Em sua tese de doutorado, Chad van Dixhoorn mostrou que um dos grandes desafios que a Assembleia de Westminster e as igrejas reformadas do século 17 enfrentaram foi o antinomianismo.'“ A exata pergunta que Owen fez era se os crentes podiam entrar “num estado de fé e perfeita obediência” e, com isso, ficar livres da “observância dos preceitos do evangelho” (Brief instruction, pergunta 6). Em sua resposta, ele recorreu à teologia da aliança.'“ Sua rejeição de tal possibilidade se ba­ seava no fato de que as normas da adoração baseadas no evangelho estavam “inseparavelmente ligadas à administração da aliança da graça baseada no evangelho”, e qualquer rejeição dessas normas era uma rejeição não apenas ’“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:452; cf. p. 7, 217. '“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:453-4. Quanto à exposição de Hebreus 3.1-6 por Owen, veja An exposition o f the Epistle to the Hebrews, edição de W. H. Goold (1855; reimpr., Grand Rapids: Baker, 1980), 3:487-572. '“Veja Owen, Hebrews, 3:521. '“Chad B. van Dixhoorn, “Reforming the Reformation: theological debate at the Westmins­ ter Assembly, 1642-1652” (tese de doutorado. University of Cambridge, 2004), 1:276-96, 302-3, 307-9,342-44; cf. David R. Como, Blown by the spirit: Puritanism and the emergence o f an antinomian underground in pre-civil-war England (Stanford: Stanford University Press, 2004); “Radical Puritanism, c. 1558-1660”, in: John Coffey; Paul C. H. Lim, orgs.. The Cambridge companion to Puritanism (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), p. 241-58; Theodore Dwight Bozeman, The precisionist strain: disciplinary religion and antinomian backlash in Puritanism to 1638 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004). '“Em Hebrews, 6:71-3, Owen contrastou de cinco maneiras a adoração na antiga aliança com aquela na nova aliança. Cf. Ferguson, John Owen on the Christian life, 29-30): 1. A maneira distinta como o amor de Cristo é declarado; 2. A maneira distinta como a graça é comunicada; 3. A maneira distinta como o acesso foi aberto até Deus; 4. A maneira distinta como a adoração tinha caráter legal na antiga aliança e é graciosa na nova; 5. A maneira distinta como o evangelho é espalhado universalmente na nova aliança.

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da aliança, mas também da “sabedoria e autoridade de Jesus Cristo”. E m seguida, Owen fez os seguintes destaques. Em primeiro lugar, a vida cristã é andar com Deus na aliança da graça. Toda fé e obediência pertencem a essa aliança e “neste lado do céu e da glória ele não designou nem revelou outra forma de comunhão com ele, de obediência a ele, de desfrutar dele”.'^® Owen citava Hebreus 8.9-12 como a essência dessa aliança, a qual consiste em a lei ser colocada na mente do povo de Deus e inscrita em seus corações.’*’ Contudo nesta vida não há promessa de graça alguma que "os leve a um estado de perfeição antes da glória”.”® Em segundo, ligadas a essa aliança se encontram as normas da adoração baseadas no evangelho. Se essas normas fossem “omitidas ou abandonadas”, a própria aliança e sua graça seriam rejeitadas e largadas.”* Owen não conseguia imaginar uma situação em que cristãos pensassem que não precisavam da “graça de Deus, nem da misericórdia de Deus, nem do sangue de Cristo nem do Espírito de Cristo”. Os que não pensavam assim não eram bem vistos por Owen: “O que pensam sobre as normas da adoração não é tanto uma questão de argumento [...] Seu orgulho e impiedade [...] logo serão sua ruína”.*^* Em terceiro, Owen citou de novo Hebreus 3.3-6 para demonstrar que “o Senhor Cristo é o Senhor absoluto ‘sobre sua própria casa’ [...] e ele entregou as leis com as quais ele a dirigirá e governará enquanto ela estiver neste mundo”. O resultado de defender “a isenção da obrigação de obediência àquelas leis (...] não é nada mais nada menos do que repudiar o senhorio e a autoridade absoluta do próprio Cristo”.'“* Para Owen, recusar-se a adorar de acordo com os mandamentos de Cristo é, então, uma recusa concreta em se submeter ao senhorio de Cristo, senhorio que é revelado em sua Palavra.

A adoração e a experiência do crente Sendo Owen um puritano, sua doutrina da suficiência da Palavra para a ado­ ração não era um mero exercício intelectual, mas tinha o propósito de operar mudança nas igrejas da Inglaterra e estimular a devoção no coração dos crentes. Em A brief instruction ele ensinava que os crentes deviam ter vários objetivos na adoração. '"Owen, Brief instruction, in; Works, 15:454. ‘"Owen, Brief instruction, in: Works, 15:454. Acerca da doutrina de Owen sobre a graça pactuai, veja "n-ueman, John Owen, p. 76-80. '"Veja em Hebrews, 6:147-51, os comentários de Owen sobre a lei ser colocada na mente e escrita no coração. '“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:454. '^‘Owen, Brief instruction, in: IVorfes, 15:454-5. ‘“ Owen, Brief instruction, in: Works, 15:455. '“ Owen, Brief instruction, in: Works, 15:455.

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0 primeiro objetivo era santificar o nome de Deus (Brief instmction, per­ gunta 8). Os crentes deviam reverenciar a autoridade soberana de Deus como Deus. Essa reverência devia brotar da consideração de que em sua Palavra Deus determinou sua própria adoração e levar à submissão e não àquela adoração que é consentimento com forma, costume ou preceitos de h o m e n s .O u tro motivo pelo qual o nome de Deus deve ser santificado é que Deus colocou sua presença especial ali onde determinou que aconteça a adoração. Deus fez “ao seu povo benditas promessas de estar presente no meio deles e de abençoá-los no uso” de suas normas [Brief instmction, pergunta 15). Em seguida, usou a ilustração do casamento para descrever essa presença especial e suas bênçãos, visto que as normas da adoração eram “os símbolos da relação matrimonial que existe entre ele e eles”."*^ A obediência do crente às normas de Deus faz parte da "aliança conjugal” que em Cristo ele estabeleceu com o crente. Quando este vem adorar, mostra que está casado com Cristo, mas, quando desdenha da adoração ou a profana “por meio de invenções ou acréscimos” que ele mesmo faz, ele comete “infidelidade, prostituição e adultério espiritual, os quais sua alma abomina e devido aos quais ele lançará fora qualquer igreja ou pessoa, e isso para sempre”.'“'’ Os crentes também santificam o nome de Deus quando creem nas pro­ messas que ele associou às suas normas. A fé é necessária. Owen recorreu à teologia reformada dos sacramentos para explicar “aquela relação sagrada existente, em virtude de instituição divina, entre os elementos sacramentais, de um lado, e, de outro, as graças especiais da aliança que eles exibem e também confirmam” e “a combinação dessas promessas com a fé”.*'"’ Os cristãos tam­ bém santificam o nome de Deus, fruindo de sua “vontade, sabedoria, amor e graça” conforme manifestos nas normas do evangelho.'“" Essa fruição não deve ser ura ato de “agradar-se carnalmente” nem de “satisfazer-se com as formas ou maneiras exteriores de execução da adoração divina”. Aqui Owen procurou eliminar qualquer ideia de que a adoração era para o prazer pessoal, quer ser­ vindo às emoções, quer servindo até mesmo aos olhos, como na missa católica ou nas cerimônias associadas com o Livro de Oração Comum. Em vez disso, a fruição na adoração traz santificação ao nome de Deus quando os crentes se envolvem na “contemplação da vontade, sabedoria, graça e condescendência "•‘'Owen, Brief instruction, in: Works, 15:456. '"’Owen, Brief instmction, in: Wor/cs, 15:471. Essa presença especial e as bênçãos procedem, mais uma vez, de todas as Escrituras: na antiga aliança, Owen as via no tabernáculo, e, na nova aliança, em Cristo [Brief instmction, in: Works, 15:475). "»«Owen, Brief instruction, in: Works, 15:475. '"’Owen, Brief instmction, in: Wbrfcs, 15:458. Quanto à teologia de Owen sobre a ceia do Senhor, veja Jon D. Payne, John Owen on the Lord’s Supper (Edinburgh: Banner of Truth trust, 2004). '"«Owen, Brief OTSiruciion, in: Wbr/cs, 15:456.

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de Deus”, o qual, “por sua própria, exclusiva e soberana vontade e graça [teve 0 prazer] de se manifestar a miseráveis criaturas pecadoras como nós, de con­ descender com nossa fraqueza, de se comunicar conosco, de instigar e atrair nossa alma para si e nos fazer essas promessas de se relacionar graciosamente conosco por intermédio de Jesus Cristo”.''’'^ Por fim, perseverar na obediência às normas divinas santifica o nome de Deus. Pode-se ver nesse enfoque o coração pastoral de Owen. A perseverança era necessária na época em que os congregacionais viveram. Eles buscavam a adoração pura de Deus, eram perseguidos por causa dela e foram tentados a se desviar para uma senda mais fácil.'®“ Aqueles que perseverassem como Antipas (Ap 2.13), carregassem sua cruz (Mt 10.38,39) e ficassem firmes naquilo que haviam feito (2Jo 8) iriam “receber plena recompensa”.‘®‘ O segundo objetivo do crente na adoração é “apossar-se de uma declaração de Cristo como Senhor” (Brief instruction, pergunta 9). Os puritanos emprega­ vam 0 termo “apossar-se” para designar a apropriação pessoal das promessas feitas por Deus no evangelho, de modo a torná-las deles próprios. Os crentes “se apossavam” ou acolhiam de todo o coração sua declaração quando se sujeitavam a Cristo mediante a observância de suas normas do evangelho.'“ Essa decla­ ração, “tão mal usada e mal entendida no mundo, consiste na guarda de seus mandamentos”.'®®Pelo fato de ele ser o Senhor da igreja e as normas de adoração "serem suas ordens mais preciosas”, a obediência dos crentes a elas é uma de­ claração de seu senhorio e de que estão sujeitos a ele.'®'' Em The duties ofpastors and people distinguished, Owen fez um contraste notável entre a submissão de crentes sinceros e a de falsos declarantes. Ele afirmou: “Existem muitos Uzás entre nós, que não param de querer tocar na arca”. Estes, ele lembrou, queriam adorar a sua própria maneira. Ele advertiu, no entanto, que ninguém, “sob o pretexto de liberdade cristã e de consciência devia jogar fora toda a amizade fraternal e se desligar da comunhão da igreja”.'®® Para Owen, a submissão às ordens de Deus na adoração era, então, uma marca de verdadeira piedade. O terceiro objetivo é a edificação da fé. Quando os crentes observam as normas de Cristo, Deus edifica a fé de seu povo {Brief instraction, pergunta 10). Adiante nesse catecismo, ele afirma que a devoção verdadeira resulta da fé — fé nos preceitos e nas promessas de Deus. Esse é um ponto crucial. Só quando usadas com fé é que as normas de Deus edificam a fé. Por outro ”’Owen, Brief instruction, in: ’“Owen, Brief instruction, in: ’’’Owen, Brief instruction, in: ’“Owen, Brief instruction, in: ’“Owen, Brief instruction, in: ’“Owen, Brief instruction, in: '“Owen, Brief instruction, in:

Works, Works, Works, Works, Works, Works, Works,

15:458. 15:458. 15:459. 15:459. 15:460. 15:460. 15:45.

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lado, não se pode fundamentar a fé verdadeira em acréscimos humanos à adoração que não possuem nenhuma base na Palavra de Deus e, desse modo, são incapazes de edificar a verdadeira fé e a verdadeira d e v o ç ã o .O w e n de­ monstra claramente que as normas da adoração baseadas no evangelho são causas instrumentais da edificação. Ele afirmou que “nelas e por meio delas” a fé dos crentes era edificada. Mas a causa eficaz da edificação era "a prática daquela comunhão com Deus em Cristo Jesus, à qual, quando existe a devida observância por parte deles, ele graciosamente nos convida e nos acolhe”. Conforme Owen afirmou em seguida, toda a eficácia dessas normas depende do próprio Deus.'“ O quarto objetivo é amor e comunhão mútuos entre os crentes. Por dois motivos as normas de Deus alcançam isso. Primeiro, porque Deus determinou que tivessem esse desígnio. Por exemplo, o fato de que a ceia do Senhor tem o propósito de unir os crentes como um só pão. Segundo, por sua natureza elas colocam os crentes em comunhão com determinada pessoa da Santa Tfindade.'“ Os crentes devem ter o cuidado de adorar de acordo com a Palavra (Brief instribction, pergunta 12). Isso significa observar tudo que o Senhor ordenou (cf. Mt 28.18-20), visto que, “se somos seus amigos e discípulos, guardaremos seus mandamentos”.'“ Owen extraiu dos dias da Reforma uma lição para sua própria época, afirmando que, apesar da “corrupção de todas as normas do evangelho debaixo da apostasia anticristã, ainda assim o templo e o altar de­ verão ser novamente medidos (Ap 11.1), e o tabernáculo de Deus deverá ser novamente erguido no meio dos homens (Ap 21.3)”.'®' Cada membro da igreja de Cristo deve, então, “examinar as Escrituras, investigar a mente de Cristo e descobrir tudo o que ele determinou, ou tudo que é exigido de seus discí­ pulos, e deve fazer isso com o coração e a mente preparados para observar devidamente tudo o que venha a ser descoberto que é sua vontade”.'®^ No seu comentário de Hebreus 8.3 — “Pois todo sumo sacerdote é constituído” —, Owen expressou de forma negativa a injunção de adorar de acordo com a Pala­ vra; “Todo aquele que realiza qualquer coisa na religião ou na adoração divina sem isso [i.e., sem a designação ou a ordem de Deus], fora disso, além disso, é um transgressor, e nisso adora a Deus em vão. Aquele que Deus não ordena '“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:467-8, '^'’Owen, Brief instruction, in: Works, 15:460. '“Owen, Brie/tnsiruciion, in: Works, 15:461. '“Owen, Brief instruction, in: Works,. 15:461-2. '“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:463. ’^'Owen, Brief instruction, in: Works, 15:463. Sobre as corrupções da adoração na missa caiólica, veja John Owen, The work of the Holy Spirit in prayer..., in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 4:241-9. ‘“Owen, Brief instruction, in: Works, 15:464.

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para o seu serviço é um intruso, e aquilo que ele não determina é uma usur­ pação. Ele também não aceitará nenhum dever senão aquilo que ele mesmo estabeleceu como dever”.*“ Para o crente, a adoração a Deus é assunto sério, pois, ao oferecer adoração de acordo com a Palavra de Deus, ele será aceito; mas a adoração contrária à Palavra fará com que seja rejeitado. Owen também apelou aos cristãos sinceros para que tivessem em mente que estão vivendo nos últimos dias e que ajam de modo apropriado na adoração. Sua expectativa escatológica se vê não apenas em A brief instruction, que preparou após a Grande Expulsão (1662), mas também nos estudos publicados antes desse acontecimento. Conforme demonstrado por Jeffrey Jue, esse entendimento escatológico permeou a era dos puritanos e foi uma expectativa ininterrupta mesmo depois do Estatuto da Uniformidade e da Grande Expulsão, ocorrida no dia de São Bartolomeu de 1662.'“ Como exemplo, em The duty of pastors and people distinguished o prefácio de Owen iniciou com as seguintes palavras: “A ampulheta de nossas vidas parece correr e estar no mesmo ritmo do fim dos tempos. O fim daqueles ‘fins do mundo’ que tiveram início com o evangelho está, sem dúvida, se aproximando [...] Não pode existir ainda muita areia, e Cristo está sacudindo a ampulheta; não podem restar muitos minutos daquela hora”.'“ Sua expectativa de fim dos tempos pode ser vista de novo no título do sermão que pregou em 1649 ao Parlamento; “The shaking and translating of heaven and earth” [O estremecimento e a transformação do céu e da terra].'“ Acerca da relação entre escatologia e adoração, Owen afirmou: “A grande apostasia da igreja nos últimos dias [...] consiste principalmente em falsa adoração e num afastamento do que Cristo instituiu (Ap 13.4,5; 17.1-5)” {Brief ■“Owen, Hebrews, 6:25 ‘“Jeffrey K. Jue, “Puritan millenarianism in Old and New England”, in: John Coffey; Paul C. H. Lim, orgs., The Cambridge companion to Puritanism (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), p. 257-6. Sobre a escatologia no protestantismo dos séculos 16 e 17, veja Irena Backus, Reformation readings of the Apocalypse: Geneva, Zurich, and Wittenburg (Oxford: Oxford University Press, 2000); Bryan W. Ball, Great expectation: eschatological thought in England Protestantism to 1660 (Leiden; E. J. Brill, 1975); Richard Bauckhain, Tudor Apocalypse (Oxford: Sutton Courtenay, 1978); Bernard Capp, The fifth monarchy men: a study in seven­ teenth-century English millenarianism (London: Faber and Faber, 1972); Katherine Firth, The apocalyptic tradition in Reformation Britain 1530-1646 (Oxford: Oxford University Press, 1979); Crawford Gribben, The Puritan millennium (Dublin: Four Courts, 2000); Howard B. Hotson, Paradise postponed: Johann Heinrich Alsted and the birth of Calvinist millenarianism (Dordrecht: Kluwer, 2001); Jeffrey K. Jue, Heaven upon earth: Joseph Mede (1586-1638) and the legacy of millenarianism (Dordrecht: Springer, 2006). ‘“ Owen, Pastors and people, in: Works, 13:5. '“John Owen, “The shaking and translating of heaven and earth", in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 8:247-79.

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instruction, pergunta 16).'*^ Em seu estudo de 1676 intitulado The nature of apos­ tasy from the profession of the gospel and the punishment of apostates declared [Declaração sobre a natureza da apostasia da profissão de fé no evangelho e 0 castigo dos apóstatas], ele afirmou que a apostasia da adoração baseada no evangelho era “aquela grande deserção predita por nosso apóstolo (2Ts 2.3-12), a qual também está profetizada em Apocalipse e que no devido tempo veio a acontecer”.'** Veio a acontecer porque os homens perderam a fé no evangelho. Isso levou Satanás a ardilosamente fazer com que homens “introduzissem uma adoração carnal, visível, pomposa, própria daquele princípio e luz interior com que agiam”.'*® Em A brief instruction, ele descreveu essa falsa adoração como “relações sexuais ilícitas” e “prostituição” que consistiam na “adultera­ ção da adoração a Deus e na instituição de uma adoração falsa e de invenção própria”."'* Por causa disso, afirmou ele, “é fácil, então, concluir como isso é uma preocupação tão grande para nós, especialmente nestes últimos dias”."’'

A verdadeira beleza da adoração Em associação com a mudança na adoração da antiga para a nova aliança, Owen analisa a beleza da adoração. Uma das objeções à qual procurou respon­ der em A brief instruction in the worship o f God era que, uma vez que alguns dos mandamentos de Cristo, tais como o ósculo santo e o lava-pés, cessaram, isso significava que a igreja estava livre para determinar novos rituais a fim de promover a devoção, tornando a adoração “mais apropriada, bela e siste­ matizada” {Brief instruction, pergunta 14).'^^ No entanto, para Owen a beleza da adoração baseada no evangelho não deve ser encontrada nas cerimônias e rituais humanos e exteriores, mas no próprio Deus triúno: "[A beleza] consiste na relação que [a adoração] tem com Deus por intermédio de Jesus Cristo, como 0 sumo sacerdote misericordioso sobre sua casa, com a gloriosa ministração do Espírito nela”."’* Em seu sermão “The nature and beauty of gospel worship” [A natureza e a beleza da adoração baseada no evangelho], ele citou Efésios 2.18 como confirmação dessa beleza. Anteriormente em seu ministério ele havia i«Owen, Brief instruction, in: Works, 15:476; cf. o sermão de Owen sobre 2Timóteo 3.1 em The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 9:320-34. '“ John Owen, The nature of apostasy from the profession o f the Gospel and the punishment of apostates declared, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850­ 1855), 7:217.

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'*’Owen, Nature o f apostasy, in: Works, 7:221. '™Owen, Brief instruction, in: Works, 15:477. '^'Owen, Brief instruction, in: Works, 15:477. ’^^Owen, Brief instruction, in: Works, 15:467. '’’^Owen, Brief instruction, in: Works, 15:467.

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descrito essa passagem como "normas celestiais”. " N a adoração espiritual do evangelho, a totalidade da bendita Trindade e cada pessoa distintamente aK — naquela economia e dispensação em que atuam de várias e peculiares mcueiras na obra de nossa redenção — concedem à alma dos adoradores co­ munhão distinta consigo mesmas”.”’^ Se a adoração não é trinitária, então não é adoração cristã. A natureza trinitária da salvação não pode ser divorciada da adoração. Ambas estão organicamente relacionadas de modo que nossa adoração ao Deus triúno é um reflexo de nossa salvação trinitária. Em seu estudo Communion with God, Owen apresentou a explicação mais abrangente dessa comunhão com o Deus triúno. O ápice da comunhão do cristão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo estava na adoração segundo as normas das Escrituras. Mas Owen advertiu que o Espírito Santo não devia ser adorado sem que se adorasse a Trindade. Em sua polêmica contra o Livro de Oração Comum, ele afirmou: “É por esse motivo que orar à Ttindade por meio de repetição da mesma petição às diversas pessoas (como na litania) não tem fundamento, se é que não é ímpia”.‘^* Ademais, ele defendia que adorar 0 Pai por meio de Cristo no Espírito, de acordo com a linguagem de Efésios 2.18, era “a grande marca de nosso culto”, e "esse é o grande cânon; caso seja negligenciado, não existe nada apropriado em qualquer outra coisa que se faça nessa questão”.’’’^ Owen citou passagens como Hebreus 9.1, 2Coríntios 3.7-11, Efésios 2.18 e Hebreus 10.19-21 para fazer contraste entre a adoração mundana e carnal da antiga aliança e a adoração celestial e espiritual da nova aliança.*^* De imediato, Owen conclui: “Essa é a glória da adoração baseada no evangelho e é também a sua beleza. Quando a mente dos homens se desvia de consi­ derar isso para procurar beleza nos preparativos exteriores de cerimônias, eles perdem o privilégio que o sangue de Cristo adquiriu para os crentes”.*” Assim Owen ligou a beleza da adoração àquela que é espiritual, simples e celestial.

'”Owen, Communion with Cod, in: Works. 2:269; cf. Works, 9:57; Ferguson, John Owen on the Christian life, p. 275. '^Úohn Owen, “The nature and beauty of Gospel worship”, in: The works of John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 9:56-7; cf. 9:73-4. Sobre a comunhão com Deus, veja J. I. Packer, “The Puritan idea of communion with God”, in: J. I. Packer, org., Puritan papers, volume two: J960-J962 (Phillipsburg: P&R, 2001), p. 103-18. i«owen, Communion with God, in: Worfes 2:268. ‘^'Owen, “Gospel worship”, in: Works 9:57. ”®Para comentários ampliados de Owen sobre a adoração “mundana” da antiga aliança em contraste com a adoração celeste da nova aliança, veja Owen, Hebrews, 23:186-9, 498-509. '”Owen, Brief instruction, in: Works, 15:469.

John Owen e o sábado e a adoraçãolo culto cristãos

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Conclusão Na nossa análise do sábado e da adoração no pensamento de John Owen, abordamos dois aspectos distintivos da teologia puritana do século 17. Talvez em nenhuma outra época da história encontremos um interesse tão profundo pela santificação do dia do Senhor. Esse interesse brotava da crença puritana de que o dia do Senhor era o sábado cristão, com raízes na criação e, como consequência, uma norma universal que foi confirmada no segundo manda­ mento e consolidada na redenção, o que explica a mudança de dia. Assim como no caso do sábado cristão, para Owen o culto coletivo naquele dia era o auge da experiência cristã. Na nova aliança os crentes têm a luz das Escrituras concluídas para fornecer a norma para adorar a Deus de uma forma espiritual e não carnal. Conforme assinalado, as idéias de Owen sobre a adoração se formaram no contexto de debates com católicos romanos, laudianos, antinomianos e quaeres. Mas esses debates não se prestavam a uma apologética da adoração reformada numa abordagem apenas negativa. Pelo contrário, nesse contexto Owen pôde apresentar com notável clareza a natureza, o conteúdo e a forma da adoração bíblica na nova aliança, refletindo a totalidade da gloriosa beleza da revelação final de Deus em Cristo.

Capítulo 42 □□□□□□□DO□□□□□□□□□□□□□□□□□□□DDa□□□□□□□DD□□□□□□□□□□□□□□DO□□□

A pregação puritana (1 ) □□□□□□□□□□□□□□□□

A pregação é norma de Deus santificada para gerar fé, para abrir o entendimento, para atrair a vontade e as afeições para Cristo. W illiam Ames'

O movimento puritano, desde meados do século 16 até o final do século 17, foi denominado a idade de ouro da pregação/ Por meio da pregação e da publi­ cação de sermões, os puritanos procuraram reformar a igreja e o dia a dia das pessoas/ Embora tenham fracassado em reformar a igreja, foram bem sucedi­ dos em reformar a vida diária das pessoas, introduzindo, conforme Alexander F. Mitchell afirma, “uma época com o mais amplo e profundo reavivamento espiritual que já houve na história das igrejas britânicas”/ Com raras exceções, os pastores puritanos eram grandes pregadores que, com amor e paixão, proclamavam todo o conselho de Deus apresentado nas Sagradas Escrituras. Na história da igreja, nenhum grupo de pregadores se iguala a eles em sua pregação abrangente e poderosamente bíblica, doutrinária, experiencial e prática.®

'William Ames, The marrow of theology, tradução para o inglês e edição de John D. Eusden (Boston: Pilgrim, 1968), p. 194. ^Tae-Hyeun Park, The sacred rhetoric of the Holy Spirit: a study of Puritan preaching in a pneumatological perspective (Apeldoom: Theologische Unversiteit, 2005), p. 4. ^J. I. Packer, “Preface”, in: Edward Hindson, org.. Introduction to Puritan theology: a reader (Grand Rapids: Baker, 1976). "Alexander R Mitchell, Introdução, in: Alexander F. Mitchell; John Strothers, orgs., Minutes of the sessions of the Westminster Assembly of Divines (Edmonton: Still Waters Revival Books, 1991), p. xv. ’Partes deste capítulo são adaptações de Joel R. Beeke, Puritan evangelism: a biblical approach (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2007). Quanto a outros livros e artigos sobre a pre­ gação puritana, veja R. Bruce Bickel, Light and heat: the Puritan view of the pulpit (Morgan: Soli

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O povo de um modo geral ouvia com prazer a pregação puritana. Henry Smith (1560-1591), às vezes chamado de Crisóstomo [i.e., boca de ouro] dos

Deo Gloria, 1999); J. W. Blench, Preaching in England in the late fifteenth and sixteenth centuries (Oxford: Basil Blackwell, 1964); John Brown, Puritan preaching in England (London: Hodder and Stoughton, 1900); J. A. Caiger, “Preaching—Puritan and Reformed", in; J. I. Packer, org., Puritan papers, volume 2 (1960-1962) (Phillipsburg: P&R, 2001), p. 161-85; Murray A. Capill, Preaching with spiritual vigour (Fearn, Escócia; Mentor, 2003); Horton Davies, The worship of the English Puritans (Morgan: Soli Deo Gloria, 1997), p. 182-203; Eric Josef Carlson, “The boring of the ear; shaping the pastoral vision of preaching in England, 1540-1640”, in: Larissa Taylor, org.. Preachers and people in the Reformations and Early Modem period (Leiden: Brill, 2003), p. 249-96; Mariano Di Gangi, Great themes in Puritan preaching (Guelph; Joshua, 2007); Alan F. Herr, The Elizabethan sermon: a survey and a bibliography (New York: Octagon, 1969); Babette May Levy, Preaching in the first half century of New England history (New York: Russell & Russell, 1967); Peter Lewis, The genius of Puritanism (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2008); D. M. Lloyd-Jones, The Puritans: their origins and successors (Edinbui^h: Banner of TVuth Thist, 1987), p. 372-89 [edição em português: Os puritanos: suas origens e seus sucessores, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 1993)]; Irvonwy Morgan, The godly preachers of the Elizabethan church (London: Epworth, 1965); Hughes Oliphant Old, The reading and preaching of the Scriptures in the worship of the Christian church, volume 4, The age of the Reformation (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), p. 251-79, e The reading and preaching of the Scriptures in the worship of the Christian church, volume 5. Moderatism, pietism, and awakening (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), p. 170-217; J. 1. Packer, A quest for godliness (Wheaton; Crossway, 1990), p. 163-76, 277-308; Park, The sacred rhetoric of the Holy Spirit; Joseph A. Pipa Jr., “Puritan preaching”, in: Peter A. Lillback, org.. The practical Calvinist (Fearn, Escócia: Mentor, 2002), p. 163-82; John Piper, The supremacy of Cod in preaching (Grand Rapids: Baker, 1990) [edição em português: A supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do ministério de púlpito, tradução de Augustus Nicodemus (São Paulo: Shedd, 2003)]; Caroline F. Richardson, English preachers and preaching 1640-1670 (New York: Macmillan, 1928); Michael F. Ross, Preaching for revitalization (Fearn, Reino Unido: Mentor, 2006); Leland Ryken, Worldly sairUs (Grand Rapids; Zondervan, 1986), p. 91-107 [edição em português: Santos no mundo: os puritanos como realmente emm, 2. ed., tradução de João Bentes (São José dos Campos: Fiel, 2013)1; Harry S. Stout, The neW England soul: preaching and religious culture in colonial New England (Oxford: Oxford University Press, 1986). Teses de doutorado que tratam da pregação puritana incluem Ruth Beatrice Bozell, “English preachers of the 17th century on the art of preaching” (Cornwell University, 1939); Ian Breward, “The life and theology of William Perkins 1558-1602” (University of Manchester, 1963); Diane Marilyn Darrow, “Thomas Hooker and the Puritan art of preaching” (University of California, San Diego, 1968); Andrew Thomas Denholm, “Thomas Hooker: Puritan preacher, 1568-1647” (Hartford Seminary, 1972); M. F. Evans, “Study in the development of a theory of homiletics in England from 1537-1692” (University of Iowa, 1932); Frank E. Farrell, “Richard Sibbes: a study in early seven­ teenth century English Puritanism” (University of Edinburgh, 1955); Anders Robert Lunt, “The reinvention of preaching: a study of sixteenth and seventeenth century English preaching theories” (University of Maryland College Park, 1998); Kenneth Clifton Parks, “The progress of preaching in England during the Elizabethan Period” (Southern Baptist Theological Seminary, 1954); Joseph Pipa Jr., “William Perkins and the development of Puritan preaching” (Westminster Theological Seminary, 1985); Harold Patton Shelly, “Richeu'd Sibbes: Early Stuart preacher of piety” (Temple University, 1972); David Mark Stevens, “John Cotton and Thomas Hooker: the rhetoric of the Holy Spirit” (University of California, Berkeley, 1972); Lynn Baird Tipson Jr., “The development of Puritan understanding of conversion” (Yale University, 1972); Cary Nelson Weisiger III, “The doctrine of the Holy Spirit in the preaching of Richard Sibbes” (Fuller Theological Seminary, 1984).

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puritanos, era tão popular como pregador que, conforme Thomas Fuller escreve, “pessoas de posição traziam seus próprios bancos consigo, quero dizer, suas pernas, para ficar de pé nos corredores”.* Não é de admirar que esse pastor puritano tenha sido chamado de “o herói do puritanismo do século 16”.^ O que, então, tornava a pregação puritana tão eficaz e tão distintiva? Cre­ mos que era uma combinação de intenso amor que os pregadores tinham por Deus e pelas almas, seu estilo de pregação, sua lealdade à Palavra, seu zelo pela pregação, sua dependência do Espírito e seu estilo de vida santo. De sorte que este capítulo concentra a atenção basicamente em como o amor levou os pregadores puritanos a sobressaírem na motivação e no aperfeiçoamento da pregação. Nós nos restringiremos a dois capítulos, em que trataremos de cinco áreas influenciadas por esse amor: a primazia da pregação entre os pregadores puritanos, seu poder na pregação, sua simplicidade na pregação, seu progra­ ma de pregação e sua paixão pela pregação. Se pudéssemos cultivar apenas metade do amor que os puritanos tiveram pela pregação, a igreja logo havería de conhecer dias melhores. Oremos sinceramente a Deus para que, nestes dias de tantas necessidades, reavive em toda a igreja por todo o mundo, nos pregadores e nos ouvintes, esse amor pela pregação. John F. N. New faz uma observação inteligente: "Para os puritanos, a pregação, com a boca ou com a caneta, era vida”.® Consideremos como isso se tornou realidade.

Primazia da pregação Os puritanos estavam profundamente conscientes de que Deus edificava sua igreja basicamente com o instrumento da pregação. Esse entendimento criou um éthos em que a pregação estava no centro do culto e da devoção. Essa atitude ou psique puritana sobre a pregação envolvia várias coisas. Comentaremos quatro das mais importantes.

A natureza da pregação Para os puritanos, a pregação era o ato em que o servo ordenado por Deus ecoava e explicava aos salvos e aos não salvos a santa e divina Palavra, ten­ do em vista mudar o pensamento e transformar a vontade deles, de modo a converter os pecadores e santificar os santos. John Preston (1587-1628) nos ofereceu uma definição simples — porém, tipicamente puritana — e também ^Citado em Winthrop S. Hudson, “The ministry in the Puritan Age”, in: H. Richard Niebuhr; Daniel D. Williams, orgs.. The ministry in historical perspectives (New York; Harper and Brothers, 1956), p. 185. 'Michael Walzer, The revolution of the saints: a study in the origins of radical politics (Cambridge: Harvard University Press, 1965), p. 119. “John F. H. New, Anglican and Puritan (Stanford: Stanford University Press, 1965), p. 71.

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funcional da palavra pregação: “uma interpretação ou subdivisão pública da Palavra, realizada por um embaixador ou ministro que fala ao povo em lugar de Deus, em nome de Cristo”.’ Os puritanos insistiam que a pregação precisa estar delimitada pela Palavra. John Mayer (1583-1664) escreveu: “Cada pregador da Palavra fala apenas aquilo que Deus coloca em sua boca e ao mesmo tempo o protege para que pregue de acordo com a Palavra. E, por isso, o apóstolo Paulo elogia os tessalonicenses por receberem sua pregação como Palavra de Deus, como de fato era (ITs 2 .1 3 )”.*® É por isso que com frequência os puritanos colocavam após seu nome os dizeres “pregador do evangelho” ou “pregador da Palavra” em vez de uma lista de tftulos acadêmicos.'* Ministros são embaixadores de Deus e “conselheiros a serviço de Deus”*^ mediante sua Palavra por meio do púlpito. Num estilo tipicamente puritano, Anthony Burgess (m. 1664) destacou que pastores “devem trajar cada sermão no [espelho] da Palavra: devem pregar assim como leem nas Escrituras”.*^ Burgess afirmou que os pastores devem pregar apenas a Palavra por três razões: (1) por causa de Deus — porque é a Palavra dele que os pastores estão proclamando, é a honra dele que está em jogo, e Deus não reage com indiferença ao fato de os pensamentos de um pastor substituírem seus próprios pensamentos; (2) por causa do homem — porque, se a palavra pregada não é a Palavra de Deus, ela perde todo seu poder e valor nutritivo e se torna apenas palha e restolho; e (3) por causa do pastor — porque o pastor recebe um ministério, não um “magistério”, ou seja, recebe um chamado para ser servo e não o Senhor, por isso não deve pôr em perigo sua própria alma, comunicando suas próprias palavras, mas deve se lembrar de que Deus, e não ele, é quem melhor pode determinar aquilo de que seus ouvintes precisam.*’ Os puritanos contavam que a pregação tivesse resultados bíblicos, os quais, de acordo com Nicholas Byfield (1579-1622), incluem abrir o coração dos ho­ mens (At 16.14), produzir fé (Rm 10.14), conceder o Espírito Santo (At 10.44), levar os ouvintes a terem por Deus o temor como de uma criança (At 13.16), fazer o coração altivo tremer e se humilhar (Is 66.2) e falar às igrejas por meio ’Citado em 1. D. E. Thomas, The golden treasury of Puritan quotations (Chicago: Moody, 1975), p. 221. '“John Mayer, Praxis Theologica: or the Epistle o f the Apostle St. James... expounded (London: R. Bostocke, 1629), p. 127. "Lewis, Genius of Puritanism, p. 35. 'Mohn Wells, The practical Sabbatarian: or Sabbath holiness crowned with superlative happiness (London, 1668), p. 274. ‘“Anthony Burgess, The Scripture directory, for church officers and people... (London: Abraham Miller para T. U., 1659), p. 141. ‘^Burgess, The Scripture directory, p. 142-4.

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do Espírito (Ef 1.13). Os puritanos confiavam que a Palavra de Deus não vol­ taria vazia para ele (Is 55.10,11). À semelhança de João Calvino, acreditavam que cada sermão tinha dois ministros pregando — o ministro exterior, que “discursa com a palavra falada, a qual é recebida pelos ouvidos”, e também 0 ministro interior, que é o Espírito Santo, que é quem “comunica de verdade a coisa proclamada, [que] é Cristo”.'^

A necessidade da pregação Os puritanos viam a pregação como o “principal trabalho” do pastor e o “principal benefício” dos ouvintes.'® Eles afirmavam que pregar é a grande “determinação divina para a conversão”. Raramente alguém se convertia sem ela. William Ames (1576-1633) escreveu: “A pregação é a determinação da parte de Deus santificada para gerar fé, abrir o entendimento, atrair a vontade e as afeições para Cristo”.'^ Por isso, não causa surpresa que por experiência própria soubessem o que Paulo quis dizer com a afirmação “E ai de mim, se não anunciar o evangelho!” (ICo 9.16) e amassem citá-la. Thomas Hall (1610­ 1665) expressou-o da seguinte maneira: “Os pastores precisam ser pregadores. Não somente podem mas devem pregar. Existe uma necessidade reforçada por um ‘ai’ (ICo 9.16). De modo que ou pregam ou perecem: isso precisa ser feito ou eles estarão desfeitos”.'® “Um pastor que não prega é uma espécie de contradição”, concluiu Robert Tl^aill (1642-1716).*’ Thomas Cartwright (1535-1603) afirmou que a pregação é vitalmente necessária, mais do que uma mera leitura da Bíblia. Ele escreveu: “Assim como o fogo atiçado gera mais calor, da mesma maneira a Palavra, como que insuflada pela pregação, arde mais nos ouvintes do que quando lida”.“ John Owen (1616-1683) escreveu: “A Palavra é como o sol no firmamento [...] Ela tem em si praticamente toda luz e calor espirituais. Mas a pregação da Palavra é como 0 movimento do sol e seus raios, os quais comunicam de forma concreta e eficaz aquela luz e calor a todas as criaturas”.^' Nehemiah Rogers '®John Calvin, TYacts and treatises, tradução para o inglês de Henry Beveridge (Grand Rapids: Eerdmans, 1958), 1:173. “ Robert TVaill, Select practical writings of Robert 'Praill (Edinburgh: impresso para Assembly’s Committee, 1845), p. 120; Arthur Hildersham, CLII Lectures upon Psalm LI (London: J. Raworth para Edward Brewster, 1642), p. 732; Lewis, Genius of Puritanism, p. 37-43. '’Ames, The marrow o f theology, p. 194. ‘“Thomas Hall, A practical and polemical commentary...upon the third and fourth chapters of the latter Epistle of St. Paul to Timothy (London: E. lyier para John Starkey, 1658), p. 329. “ Tlraill, Select practical w ritir^, p. 126. “ Citado em Horton Davies, The worship o f the English Puritans (Morgan: Soli Deo Gloria, 1997), p. 186. ’'John Owen, An exposition of the Epistle to the Hebrews, edição de William H. Goold (Edinburgh: Banner of TVuth TYust, 1991), 7:312-3.

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(c. 1594-1660) assim o expressou: “O texto é a Palavra de Deus resumida; a pregação é a Palavra de Deus ampliada”.“

A dignidade da pregação Os puritanos ficavam maravilhados com o fato de que um simples homem pudesse ser o porta-voz e embaixador do Deus todo-poderoso triúno. Richard Baxter (1615-1691) escreveu: “Não é coisa insignificante ficar de pé diante de uma igreja e entregar — como que vinda do Deus vivo em nome de nosso Redentor — uma mensagem de salvação ou condenação”.“ Fora 0 Espírito Santo, o Cristo que ascendeu ao céu não concede nenhum dom mais sublime na terra do que o chamado para pregar à sua igreja neotestamentária, afirmou Richard Sibbes (1577-1635). “Esse é o dom de todos os dons, 0 mandato da pregação. Deus considera assim. Cristo considera assim, e igualmente nós devemos considerar assim”.“ Thomas Goodwin (1600-1680) escreveu: “Deus teve apenas um único Filho no mundo e ele o fez ministro”. Para acentuar a centralidade da pregação, os puritanos colocavam o púlpi­ to, não 0 altar, no centro de suas igrejas. No púlpito, ficava uma Bíblia aberta para indicar a fonte de toda verdadeira pregação. Os puritanos consideravam a pregação bem mais importante do que os sacramentos e a liturgia.^* Com a respeitabilidade da pregação em jogo, os puritanos diziam, era fun­ damental um chamado pessoal e divino para o pastorado.“ Também era crucial que houvesse a santificação contínua na vida do pastor: quem ele é e o que ele faz precisam ser consistentes com seus sermões.“

A seriedade da pregação Os puritanos criam que, cada vez que sobe ao púlpito, o pregador deve subir como se fosse a primeira vez e pudesse muito bem ser a última, e orar para que fosse o melhor sermão que já tinha pregado. William Gurnall (1616-1679) afirmou: “A Palavra de Deus é algo sagrado demais e a pregação é uma tarefa solene demais para ser levada na brincadeira e de modo irresponsável”.“ “Não “ Nehemiah Rogers, The true convert (London: George Miller para Edward Brewster, 1632), p .7 1 . “ Richard Baxter, Christian economics, in: The practical works o f Richard Baxter (Ligonier: Soli Deo Gloria, 1990-1991). 4:383. “ Citado em Ryken, Worldly saints, p. 94. “ Uoyd-Jones, The Puritans, p. 380. “ Acerca da ideia puritana sobre o chamado para o pastorado, veja Owen C. Watkins, The Puritan experience (London: Routledge & Kegan Paul, 1972), p. 61-3. “ Gardiner Spring, The poiuer o f the puZpii (Edinburgh: Banner of ThithlVust, 1986), p. 154. “ Citado em John Blanchard, The complete gathered gold (Darlington: Evangelical, 2006), p. 487.

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há um só sermão ouvido que não nos coloque mais perto do céu ou do infer­ no” — escreveu John Preston." Um dos ouvintes de John Cotton (1585-1652) escreveu o seguinte como resposta a um sermão: “O senhor Cotton prega com tamanha autoridade, clareza de raciocínio e vida que fico com a impressão de que, quando ele prega a mensagem de qualquer profeta ou apóstolo, eu não escuto Cotton, mas aquele próprio profeta e apóstolo. Na verdade, ouço 0 Senhor Jesus Cristo falando ao meu coração”.^® Os puritanos eram pregadores sérios cujo objetivo era agradar a Deus e não 0 povo. Deus era testemunha deles. Todas as máscaras eram removidas; toda adulação era abominada. Ouça Richard Baxter; “Em nome de Deus, irmãos, esforçai-vos por despertar vosso coração antes de virdes ao trabalho, e, quan­ do estiverdes trabalhando, que estejais preparados para despertar o coração dos pecadores. Lembrai-vos; eles precisam ser despertados ou condenados à perdição. E um pregador sonolento dificilmente os despertará [...] Falai a vos­ so povo como se estivésseis falando a homens que precisam ser despertados aqui ou no inferno Tildo na pregação é tão grandioso que dificilmente alguém consegue dar demais de si. John Flavel (1628-1691) captou o éthos da pregação puritana quando escreveu: “Quantas verdades precisamos estudar! Quantos ardis de Satanás e mistérios de corrupção precisamos descobrir! Quantos casos de consciência precisamos resolver! Sim, precisamos lutar pela defesa das verdades que pregamos, bem como estudá-las até ficarem bem claras e pre­ gá-las com fidelidade, mas é recompensado o esforço da cabeça, do coração, dos pulmões e de tudo o mais. Bem-vindos peitos doloridos, costas pesadas e pernas trêmulas, se tão somente pudermos ser aprovados como servos fiéis de Cristo e ouvir aquela voz alegre vinda de sua boca: ‘Muito bem, servo bom e fiel’! ”.^^

O poder da pregação A melhor maneira de entender o poder da pregação puritana é, primeiramente, examinar como a abordagem puritana diferia da ideia anglicana e, em segundo, considerar como os puritanos pregavam, com base em uma estrutura bíblica, para falar à mente, à consciência e ao coração. ^’Citado em Christopher Hill, Society and Puritanism in pre-revolutionary England (New York: Schocken, 1964), p. 46. •'“Citadoem Alden T. Vaughan; Francis J. Bremer, Puritan New England: essays on religion, society, and culture (New York: St. Martin’s, 1977), p. 70. ’’Baxter, Christian economics, in: Works, 4:412,426. “John Flavel, "The character of a complete evangelical pastor, drawn by Christ", in: The works of John Flavel (Edinburgh: Banner of TVuth TVust, 2001), 6:569.

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Pregação puritana vs. pregação anglicana Os anglicanos, representando a igreja oficial da Inglaterra, sentiam que os puritanos exageravam em muito o papel do sermão na salvação e no correto entendimento de Deus ao mesmo tempo que solapavam os outros meios de graça. Horton Davies afirmou que os anglicanos consideravam que “a con­ versa no seio da igreja, a educação religiosa, a leitura de livros escritos por eruditos, a informação recebida em reuniões denominacionais, bem como a leitura pública e privada das Escrituras e de homilias eram outros métodos que conduzem a um conhecimento salvador de Deus”.^* Para a rainha Elizabeth e outros anglicanos, livros de homilias (basicamente sermões lidos) eram preferíveis a sermões pregados extemporaneamente porque eram elaborados com mais cuidado e era possível controlar seu conteúdo. Por outro lado, os puritanos se queixavam de que os sermões anglicanos eram demasiadamente rebuscados, eloquentes, metafísicos e moralistas e não suficientemente baseados no evangelho, experienciais e práticos. Que imenso contraste existia entre a descrição premente de Richard Baxter sobre a pregação como “um homem moribundo [falando] a homens moribundos”^“' e sermões anglicanos descritos críticamente como “discursos sobre a excelente estrutura de sua igreja, ou sobre a obediência passiva, ou protestos contra dis­ sidências, ou falas sobre a moralidade, ou apenas clamores contra perversões como aquelas que a própria luz da natureza condena”.“ Depois de descrever 0 estilo ornamentado e retórico da pregação anglicana, John Owen escreveu: “Tais coisas não são apropriadas para a autoridade, a majestade, a grandeza e a santidade do Deus que fala por meio deles. Um monarca que as usasse em seus editos, leis ou declarações apenas desonraria sua autoridade, levando-a ao desprezo, e, com isso, convidaria seus súditos à desobediência. Quanto mais essas coisas tornariam inadequada a proclamação, feita a pobres vermes, da mente e da vontade de Deus, que é o grande possuidor dos céus e da terra!”.“ Os anglicanos achavam que os sermões puritanos eram veementes demais e caracterizados por “entusiasmo”, o que naquela época significava fanatismo. Mas sua hostilidade à pregação puritana só reforçou a tendência puritana de enfatizar a pregação. Ao mesmo tempo, os puritanos julgavam que os sermões anglicanos não tinham premência e zelo santo e estavam por demais concentra­ dos em exibir o conhecimento da cultura clássica do pregador. Pregar se tornou “Davies, The worship of the English Puritans, p. 16. “Richard Baxter, The dying thoughts of the reverend learned and holy Mr. Richard Baxter, condensação de Benjamin Fawcett (Salop: J. Cotton and J. Eddowes, 1761), p. 167. “Plain reasons for dissenting from the Church of England, 3. ed. (London, 1736), p. 6. “John Owen, An exposition of Hebrews (Marshalltown: The National Foundation for Christian Education, 1960), 1:52.

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uma apresentação de oratória, mas carecia de poder operado pelo Espírito. Os sermões anglicanos se tornaram meras homilias moralistas e discursos filo­ sóficos que dependiam da dialética aristotélica a ponto de embrutecer a alma. Os puritanos lamentavam que a pregação anglicana não incluísse observação alguma do tipo “assim diz o Senhor”, nenhuma proclamação imbuída de au­ toridade da Palavra e da vontade de Deus. Ela continha demasiado número de paralelismos forçados e subdivisões fantasiosas. Recursos retóricos — inclusive repetições, grande número de exemplos, matização de palavras e inúmeras citações de pais da igreja e de várias fontes seculares, muitas das quais eram apresentadas no original em grego ou latim — tudo isso contribuía para uma falta de urgência e objetividade na pregação, de modo que a espada afiada de dois gumes da pregação bíblica ficava embotada.’^ Foi sem dúvida como reação a essa pregação anglicana que Thomas Brooks (1608-1680) escreveu: “A oratória formal pode estimular o cérebro, mas é a doutrina simples que ensina a razão, convence a consciência, dobra a vonta­ de e conquista o coração”.^® Bem no final da era puritana, Jonathan Edwards (1703-1758) afirmou: “Prefiro ser bem entendido por dez a ser admirado por dez mil”.”

Pregação à mente, à consciência e ao coração Foi nesse contexto que os puritanos desenvolveram sua teologia de uma pregação que tratava poderosamente do homem todo. Os pregadores de hoje precisam recuperar três características daquela pregação. (1) A pregação se dirigia à mente com clareza. Essa pregação era dirigi­ da a pessoas na condição de seres racionais. Para os puritanos, a mente era 0 palácio da fé. Eles se recusavam ao antagonismo entre mente e coração, ensinando que o conhecimento era o terreno em que o Espírito plantava a semente da regeneração. John Preston destacava que na conversão a razão é colocada num nível mais elevado, e Cotton Mather (1663-1728) acrescentou que a ignorância, e não o zelo religioso, é a mãe das heresias. Assim sendo, os puritanos pregavam que precisamos pensar a fim de sermos santos. Eles questionavam a ideia de que a santidade é apenas uma questão de emoção. Pregadores puritanos se esforçavam por mostrar aos pecadores a irracionali­ dade de persistir no pecado. Eles demoliam qualquer desculpa do incrédulo para permanecer não regenerado, quer fosse sua incapacidade ou relutância, quer fosse a soberania e eleição divinas. Conforme John Owen falou a seus ouvintes. ^^Para um estudo da pregação anglicana na Inglaterra elizabetana, veja Pipa, “William Perkins and the development of Puritan preaching", p. 28-67. Cf. Lloyd-Jones, The Puritans, p. 375,381-3. ’*Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 475, 484. ’’Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 480.

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a eleição não é desculpa para permanecer na incredulidade. Ele destacava que, embora a eleição primeiramente aconteça do lado de Deus, é conhecida por último do lado do crente.'“’ Joseph Alleine (1634-1668) acrescentou; Estás começando na ponta errada se indagas a respeito de tua eleição. Demonstra a tua conversão e, depois disso nunca duvides de tua eleição [...] Quaisquer que sejam os propósitos de Deus, que são secretos, suas promessas são claras. Quão desesperadamente os rebeldes raciocinam: “Se sou eleito, serei salvo, não importa 0 que eu fizer. Se não sou, estou condenado, não importa o que eu faça”. Pecador perverso, vais começar por onde deves terminar? A Palavra não está diante de ti? O que ela diz? “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que os vossos pecados

sejam apagados”. “Se pelo Espírito mortificardes as práticas do corpo, vivereis". “Crê no Senhor Jesus e serás salvo” (At 3.19; Rm 8.13; At 16.31). Impossível ser mais claro. Não fiques parado questionando tua eleição, mas começa a te arrepender e a crer. Clama a Deus pela graça da conversão. As coisas reveladas te pertencem; ocupa-te delas.^'

Assim, os puritanos raciocinavam com os pecadores mediante pregação sim­ ples, empregando lógica bíblica para persuadir cada ouvinte de que, devido ao valor e ao propósito da vida, bem como à certeza da morte e da eternidade, era loucura não buscar nem servir a Deus. Deus nos deu o intelecto por uma razão, afirmavam os puritanos. É cru­ cial que nos tornemos como Cristo na maneira como pensamos. Nossa mente precisa ser iluminada pela fé e disciplinada pela Palavra e então colocada a serviço de Deus no mundo. Devemos ser desafiados pelos puritanos a usar nosso intelecto para promover o reino de Deus por meio de evangelização bíblica. Sem pensar com clareza, não conseguimos evangelizar nem nos opor à cultura em que vivemos, trabalhamos e ministramos. Somos vazios, im­ produtivos e narcisistas quando deixamos de desenvolver uma vida interior baseada na Palavra. Para os puritanos, um cristianismo sem a mente promove um cristianismo débil. Um evangelho anti-intelectual fomenta um evangelho irrelevante que fica aquém das necessidades sentidas. Tememos que é isso que está acontecendo em nossas igrejas atualmente: perdemos nossa compreensão intelectual da fé e, de um modo geral, não vemos necessidade de recuperá-la. Não entendemos que, quando não somos diferentes dos não cristãos naquilo que pensamos e ““Cf. John Owen, Pneumatologia or, a discourse concerning the Holy Spirit, in: William H. Goold, org.. The works of John Owen (1850-1855; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith TVust, 1965), 3:595-604. Veja tb. Christopher Love, A treatise of effectual calling and election (Morgan: Soli Deo Gloria, 1998). ^'Joseph Alleine, A sure guide to heaven (Edinburgh: Banner of TVuth Thist, 1995), p. 30.

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cremos, em pouco tempo não seremos diferentes dos incrédulos na maneira que vivemos. (2) A pregação puritana confrontava clara e diretamente a consciência. Os puritanos consideravam a consciência dos pecadores a “luz da natureza”. A pregação franca e direta mencionava pelo nome pecados específicos, então fazia perguntas para deixar bem clara na consciência de homens, mulheres e crianças a culpa por aqueles pecados. Conforme um puritano escreveu: “De­ vemos ir com a vara da verdade divina e bater em cada arbusto atrás do qual se esconde um pecador até que, como Adão, que se escondia, ele esteja nu diante de Deus”. Os puritanos criam que esse confronto era necessário porque, até que o pecador saia detrás daquele arbusto, ele jamais clamará para ser vestido com a justiça de Cristo. Assim, os puritanos pregavam prementemente à consciência, crendo que muitos de seus ouvintes estavam a caminho do inferno. Eles também prega­ vam diretamente, confrontando os ouvintes com a morte em Adão e a vida em Cristo. Pregavam também especificamente, levando a sério a ordem de Cristo de que, “em seu nome, se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados” (Lc 24.47, ARC). Hoje muitos pregadores relutam em confrontar a consciência. Precisamos aprender com os puritanos que o amigo que mais me ama me dirá as maiores verdades a meu respeito. À semelhança de Paulo e dos puritanos, precisamos, com sinceridade e lágrimas, dar testemunho da necessidade do “arrependimento para com Deus e [da] fé em nosso Senhor Jesus” (At 20.21). (3) A pregação puritana procurava ardentemente conquistar o coração. Sua pregação era afetuosa, zelosa e otimista. Walter Cradock (c. 1606-1659) afirmou a seu rebanho: “Não somos enviados para mandar escravos remar numa galera nem para enviar homens brutos para execução na fogueira; mas ele nos envia para conquistar-vos para serdes cônjuges, para casar-vos com Cristo”.'*^ Atual­ mente não é comum encontrar um ministério que nutra a mente com conteúdo bíblico sólido e mova o coração com ternura, mas essa combinação era típica dos puritanos. Eles não apenas argumentavam com a mente e confrontavam a consciência; também apelavam ao coração. Eles pregavam por amor à Palavra de Deus, para a glória de Deus e para a alma de cada ouvinte. Pregavam com terna gratidão pelo Cristo que os salvara e faziam de suas vidas um sacrifício de louvor. Apresentavam Cristo em sua amabilidade, esperando deixar os não salvos com ciúmes daquilo que o crente tem em Cristo. Os puritanos criam que alcançar o coração é a parte mais importante da pregação. Assim, Jonathan Edwards escreveu: “Nosso povo não precisa tanto que suas cabeças sejam abastecidas, mas que seus corações sejam tocados. ■ •^Citado em Thomas, Puritan quotations, p. 222.

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e está com extrema necessidade daquele tipo de pregação que tende a fazer isso”.'*^ Os puritanos usavam pregação persuasiva, súplica pessoal, oração fervoro­ sa, argumentação bíblica, advertência solene e vida alegre — quaisquer meios possíveis — para fazer pecadores se desviarem da estrada da destruição e se voltarem para Deus por meio da mente, da consciência e do coração — nessa sequência. Samuel Willard (1640-1707) expressou-o da seguinte maneira: As verd ad es da Palavra sã o p rim eiram en te ap licad as a o en ten d im en to , m ed ian te o qual p o d e m o s co n h e c e r o significado e d iscern ir a s ra z õ e s d e ssas v erd ad es, pois aí se iniciam to d a s as a ç õ e s h u m a n a s. E , sen d o ap ro v ad o p ela ra z ã o , o en ten d im en to precisa se r transm itido à v o n tad e p ara su a eleição [d ecisão ], q uan do aco lh e a verdade re co m e n d a d a e é co n q u istad o p o r ela. E d aí é g rav ad o n as afeiçõ es do co ração."“

Os puritanos confiavam que Deus usaria a pregação poderosa deles como arma para conquistar e converter pecadores. Confiavam que Deus “com a sua destra” exaltou Cristo, para ser “Príncipe e Salvador, para conceder a Israel o arrependimento e o perdão de pecados” (At 5.31). Com base nas Escrituras e por experiência sabiam que só um Cristo onipotente consegue capturar um pecador que está casado com desejos pecaminosos, levá-lo a se divorciar do amor princi­ pal de seu coração, criar nele o desejo de abandonar seu pecado de estimação e fazê-lo se voltar para Deus plenamente decidido a obedecer-lhe e honrá-lo. Eles pregavam que somente o estar em Cristo seria suficiente para essas coisas. Por isso, William Ames escreveu: “A pregação não deve, portanto, ser morta, mas viva e eficaz, para que, quando entrar na igreja dos crentes, um incrédulo seja abalado e, por assim dizer, traspassado pela Palavra ouvida, a fim de dar glória a Deus”.^®

Simplicidade na pregação No que diz respeito ao estilo, os puritanos acreditavam num estilo de pregação simples. William Perkins, destacado proponente dessa ideia, escreveu que a pregação “precisa ser simples, clara e óbvia [...] É uma máxima entre nós: Foi um sermão bem simples. E digo de novo: quanto mais simples, melhor”.*^ ^’Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 476. *'Citado em Perry Miller, New England mind: the seventeenth century (Boston; Beacon, 1961), p. 295. Cf. Catecismo Maior de Westminster, pergunta 68. ■ **Citado em Ryken, Worldly saints, p. 107. ^William Perkins. A commentarie or exposition upon the five first chapters of the Epistle to the GalcUians, in: The works of William Perkins (London: John Legatt, 1613), 2:222. Cf. William Perkins, The art of prophesying, ed. rev. (Edinburgh: Banner of Tiruth TTust, 1996), p. 71-2; Charles H. George; Katherine George, The Protestant mind of the English Reformation 1570-1640 (Princeton; Princeton University Press, 1961), p. 338-41.

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Mais tarde, Thomas Fuller escreveu acerca da pregação de Perkins: “Seus ser­ mões não eram tão simples a ponto de os eruditos na piedade não os admira­ rem, nem tão eruditos a ponto de os simples não conseguirem entendê-los”/^

Definição de sim plicidade Essa simplicidade não significava anti-intelectualismo. Henry Smith afirmou: “Pregar com simplicidade não é pregar com ignorância ou desordenadamente, mas de forma acessível e clara, para que o ouvinte mais simples possa enten­ der 0 que é ensinado como se estivesse ouvindo seu nome”/® Em seu tributo a John Eliot (1604-1690), um grande missionário puritano entre os indígenas norte-americanos, Cotton Mather escreveu que “seu modo de pregar era bem simples, de modo que os próprios cordeiros podiam mergulhar em suas men­ sagens sobre aqueles textos e temas, e elefantes podiam nadar neles ”/^ O estilo simples não era monótono e seco, mas comunicação majestosa. Os puritanos empregavam o estilo simples de pregação porque desejavam alcançar todo mundo, a fim de que todos conhecessem o caminho da salva­ ção. Na Nova Inglaterra, Increase Mather (1639-1723) escreveu a respeito da pregação de seu pai, Richard: “Seu modo de pregar era simples, buscando atirar suas flechas não acima das cabeças do seu povo, mas na direção de seus corações e consciências”.“ O objetivo era ensinar, não deslumbrar. A sabedoria humana precisa estar oculta tanto no conteúdo do sermão quanto na maneira como é pregado. Nesse sentido Perkins escreveu: “A pregação da Palavra é o testemunho de Deus e a afirmação do conhecimento de Cristo e não da habilidade humana. Além do mais, os ouvintes não devem atribuir sua fé aos dons dos homens, mas ao poder da Palavra de Deus”.®' A pregação puritana procurava alcançar pessoas com vocabulário no nível de alunos do ensino fundamental, mas isso não significa que deixassem de cobrir os grandes termos teológicos da Bíblia, como justificação e santificação. A simplicidade não sacrifica o rico conteúdo doutrinário; antes, tais termos, os puritanos afirmavam, precisam ser periodicamente definidos pelo pregador. Tanto “'Citado em Ryken, Worldly saints, p. 105. “"Henry Smith, “The art of h earing”, in: The works of Henry Smith (Stoke-on-Trent; Tentmaker, 2002), 1:337. ““Cotton Mather, The great works of Christ in America: Magnalia Christi Americana, book 3 (London: Banner of Tl-uth TVust, 1979),. 1:547-8. Para uma bibliografia de sermões e escritos de Eliot, veja Frederick Marling, "A biography of John Eliot” (tese de doutorado, Boston University, 1965), p. 259-61. ““Increase Mather, The life and death of that reverend man o f God, Mr. Richard Mather (Cambridge: S. G. and M. J ., 1670), p. 31-2. “'Perkins, The art of prophesying, p. 71.

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a falta de clareza quanto a eloquência devem ser evitados em favor da comuni­ cação da Palavra de Deus de tal maneira que qualquer um consiga entendê-la.

Exposição bíblica sim ples De acordo com Perkins, em geral a pregação simples seguia três etapas na exposição. • Dava 0 sentido de um texto das Escrituras em seu contexto: • Ensinava uns poucos pontos doutrinários importantes extraídos do sentido natural do texto; • Aplicava, em linguagem simples, as doutrinas “inferidas correta e logi­ camente à vida e à conduta dos homens”.’^ A primeira parte de um sermão puritano era exegética e expositiva; a segunda, doutrinária e didática; e a terceira, aplicativa.” Em geral a primeira parte era concisa e mostrava que os puritanos eram excelentes na exegese das Escrituras. A segunda parte do sermão podia ser bastante longa, pois os pas­ tores puritanos eram competentes em usar numerosos testemunhos, provas e argumentos tirados das Escrituras para reforçar as doutrinas que encontravam em seus textos. Para eles, a doutrina era um assunto essencial do ponto de vista tanto bíblico quanto prático. Eles não viam tensão alguma entre sermões doutrinários e práticos; a doutrina era simplesmente o desdobramento do sig­ nificado das Escrituras. Os puritanos criam que, para viver bem, as pessoas precisavam conhecer a doutrina. A simplicidade ponderada e bibliocêntrica da pregação puritana era refor­ çada pela hermenêutica puritana. J. I. Packer afirma que a pregação simples ajudava os puritanos a interpretar a Bíblia de forma literal e gramatical; consistente e harmoniosa; doutrinária e teocêntrica; cristológica e baseada no evangelho; experiencial e experimental; e com aplicação fiel e realista.” Thomas Lea afirma que os pastores puritanos usavam os seguintes princípios na preparação de um sermão, todos eles totalmente em harmonia com a teo­ logia reformada: • Enfatizavam a importância das palavras no texto das Escrituras. • Reconheciam a importância do contexto de um texto. “ William Perkins, The arte o f prophecying, or, a treatise concerning the sacred and onely true m anner and methode o f preaching, in: The works o f William Perkins (London: John Legatt, 1613), 2:662. Cf. The art o f prophesying, p. 79; Packer, Quest for godliness, p. 284. “ Miller, The New England m ind: the seventeenth century, p. 332-3. *^Packer, Quest for godliness, cap. 6.

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• Demonstravam pensamento lógico na compreensão e aplicação das Escrituras. • Usavam as Escrituras para interpretar as Escrituras, ressaltando a analogia da fé, segundo a qual cada parte das Escrituras precisa ser interpretada em harmonia com o todo. • Concentravam-se no sentido literal do texto a menos que o contexto lhes indicasse outra direção. • Lidavam judiciosamente com as figuras de linguagem das Escrituras. • Insistiam na clareza das Escrituras em todas as questões relacionadas à fé. • Dependiam da iluminação do Espírito Santo para a interpretação correta.”

Doutrina sim ples Para William Perkins, a doutrina era "a ciência de viver para sempre numa bem-aventurança”;“ William Ames falava da “doutrina ou ensino de viver para Deus”.” Ferguson escreve acerca dos puritanos: “Para eles a teologia sistemática era para o pastor aquilo que o conhecimento de anatomia é para o médico. Só à luz de todo o corpo de divindade (conforme gostavam de chamar) é que um pastor podia oferecer um diagnóstico, prescrever uma receita e, em última instância, cura para a doença espiritual dos que estavam atormentados pelo corpo do pecado e da morte”.“ Os puritanos tinham o objetivo de pregar todo o conselho de Deus em todas as suas numerosas doutrinas. Eles sentiam a assombrosa responsabilidade de lidar com a verdade eterna e tratar de almas imortais de uma maneira doutrinariamente correta (Ez 33.8). Packer descreve a convicção deles: “À pergunta ‘Deve-se pregar doutrina?’, a resposta puritana teria sido: ‘Por quê? Que outro assunto existe para pregar? A pregação doutrinária certamente aborrece os hipócritas, mas é somente a pregação doutrinária que salvará as ovelhas de Cristo. A tarefa do pregador não é dar entretenimento para os incrédulos, mas proclamar a fé”.“

“ Thomas Lea, “The hermeneutics of the Puritans”, Journal o f Evangelical Theological Society 39, n. 2 (June 1996): 276-82. “ William Perkins, A golden chaîne: or, the description o f théologie, containing the order of the causes o f salvation and damnation, according to Gods Word, in: The works o f William Perkins (London: John Legatt, 1613), 1:11. “ Ames, The marrow o f theology, p. 77. “ Sinclair B. Feiguson, “Evangelical ministry: the Puritan contribution”, in: John H. Armstrong, org.. The compromised church: the present Evangelical crisis (W heaton: Crossway, 1998), p. 266. “ Packer, Quest for godliness, p. 284-5.

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TEOLOGIA PURITANA Seguem três exemplos de como os puritanos pregavam a doutrina;

1. Quando tratavam da doutrina do pecado, eles chamavam o pecado de pecado e declaravam enfaticamente que era rebelião moral contra Deus, a qual resultava em culpa eterna. Eles pregavam acerca dos pecados tanto de comissão quanto de omissão em pensamentos, palavras e ações. Obras como The evil of evils: the exce&iing sinfulness of sin [0 mal dos males: a extraordinária pecaminosidade do pecado], de autoria de Jeremiah Burroughs (c. 1600-1646), destacavam a odiosidade do pecado. Em 67 capítulos. Burroughs desnudou o pecado e afirmou que o menor dos pecados envolve mais mal do que a maior das aflições, que o pecado e Deus são contrários um ao outro, que o pecado se opõe a tudo que é bom, que o pecado é o veneno de todos os males, que o pecado revela uma dimensão e uma natureza infinitas e que o pecado nos debca à vontade com o Diabo.“ 2. Os puritanos pregavam a doutrina de Deus sem ambiguidade. Procla­ mavam 0 ser majestoso de Deus, sua personalidade trinitária e seus atributos gloriosos.®' Os puritanos afirmavam que as doutrinas da expiação, da justifica­ ção e da reconciliação não faziam sentido sem uma verdadeira compreensão de Deus, o qual condena o pecado e faz expiação pelos pecadores, justifica-os e reconcilia-os consigo. 3. Os puritanos também enfatizavam a santificação.®^ Com gratidão, ser­ viço, obediência, amor e autonegação os crentes devem andar na estrada real da santidade.®’ É preciso que ponham em prática as graças gêmeas da fé e do arrependimento.®^ É preciso que aprendam as artes da meditação, do temor a “ Jeremiah Burroughs, The evil of evils (Morgan: Soli Deo Gloria, 199S). Cf. Ralph Venning, The plague of plagues (London: Banner of Thith Thist, 1965); Thomas Watson, The mischief of sin (Morgan: Soli Deo Gloria, 1994); Samuel Bolton, Sin: the greatest evil, in: Puritans on con­ version (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1990), p. 1-69. , “ A obra clássica sobre os atributos de Deus é o texto colossal de Stephen Chamock, Discourses on the existence and attributes of God, 2 vols. (Grand Rapids: Baker, 1996). Veja tb. William Bates, The harmony o f the divine attributes in the contrivance and accomplishment of man's re­ demption (Harrisonburg: Sprinkle, 1985). “ A obra puritana clássica sobre santificação é Walter Marshall, The gospel mystery of sanctifi­ cation (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 1999). Com competência, Marshall fundamenta a doutrina da santificação na união do crente com Cristo e ressalta a necessidade de santidade prática na vida diária. Veja tb. Lewis Bayly, The practice of piety (Morgan: Soli Deo Gloria, 1996); Henry Scudder, The Christian’s daily walk, in holy security and peace, 6. ed. (Harrisonburg: Sprinkle, 1984); Henry Scougal, The life of God in the soul of man (Harrisonburg: Sprinkle, 1986). "Veja Thomas Brooks, The crown and glory o f Christianity: or holiness, the only way to hap­ piness, in: The works of Thomas Brooks (Edinburgh: Banner of Thith Thist, 1980), vol. 4; George Downame, The Christian’s freedom: the doctrine of Christian liberty (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1994); Samuel Bolton, The true bounds of Christicm freedom (London; Banner of Thith Thist, 1964); Jonathan Edwards, Charity and its fruits (London: Banner of Thith Thist, 1969); Thomas Watson, The duty o f self-denial (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995), p. 1-37. “ Veja Samuel Ward, The life of faith, 3. ed. (London: Augustine Mathews, 1622); Thomas Watson, The doarine of repentance (Edinburgh: Banner of Thith Thist, 1987).

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Deus e da oração com atitude de criança.*' É preciso que, pela graça de Deus, avancem, buscando assegurar-se de seu chamado e eleição.** Ao pregar doutrina, os puritanos promoviam o seguinte. 1. As Escrituras precisam ditar a ênfase de cada sermão. Os puritanos não pregavam sermões que comparavam uma diversidade de doutrinas. Pelo contrário, deixavam que o texto bíblico determinasse o conteúdo e a ênfase de cada mensagem. Por exemplo, quando Jonathan Edwards pregava sobre

0 inferno, ele não fazia nem uma só referência ao céu. Quando mais tarde pregava sobre o céu, não incluía palavra alguma sobre o inferno.*' 2. A pregação precisa instilar uma apreciação por cada doutrina bíblica. O membro de uma congregação puritana típica podia numa semana ouvir um sermão sobre Gênesis 19.17 (“Foge, salva tua vida”), que advertia os ouvintes a fugir da perversidade e seguir a Deus, e, na semana seguinte, uma mensagem sobre como é impossível seguir a Deus a menos que Deus nos atraia para si (Jo 6.44). Puritanos, tanto pastores como membros de igrejas, davam grande valor à verdade divina em toda sua extensão em vez de a apenas passagens favoritas ou doutrinas específicas pelas quais avaliavam um sermão. 3. A pregação precisa cobrir uma ampla variedade de tópicos homiléticos. Um reconhecimento do valor de toda doutrina bíblica permitia que os puritanos cobrissem quase todo tópico imaginável. Por exemplo, um único volume de sermões puritanos inclui o seguinte: C o m o p o d e m o s e x p e rim e n ta r em n ó s m e s m o s e d e m o n s tra r p ara os o u tro s q u e a p ied ad e sin ce ra n ã o é m e ra fan tasia? Q ual é a m e lh o r p ro te ç ã o c o n tra a m ela n co lia e a triste z a e x ce ssiv a ? C o m o p o d e m o s c r e s c e r n o c o n h e cim e n to d e C risto? O q u e p re cisa m o s fazer p a ra e v ita r e c u r a r o o rg u lh o esp iritu al?

“ Veja Nathanael Ranew, Solitude improved by divine meditation (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995); Jeremiah Burroughs, Gospel fear (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1991); Thomas Gobbet, Gospel incense, orapractical treatise on prayer (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1993); John Bunyan, Prayer (London: Banner of TTuthlVust, 1965); John Preston; Nathaniel Vincent; Samuel Lee, The puritans on prayer (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995). “ William Perkins, A Christian and plain treatise on the manner and order of predestination, and of the largeness of God's grace, in: Works, 2:687-730; Anthony Burgess, Spiritual refining (Ames: International Outreach, 1990), p. 643-74.

*'Cf. The wrath of Almighty God: Jonathan Edwards on God's judgment against sinners, edição de Don Kistler (Morgan: Soli Deo Gloria, 1996); Jonathan Edwards, “Heaven”, in: The works of Jonathan Edwards (1834; Edinburgh: Banner of Thith TTust, 1974), 2:617-41; John H. Gerstner, Jonathan Edwards on heaven and hell (Grand Rapids; Baker, 1980).

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Como podemos fazer bom uso daquelas doutrinas e atos da providência divina que transcendem a nossa compreensão? Até que ponto devemos evitar as estranhas maneiras de vestuário que surgem nos dias em que vivemos? Qual a melhor maneira de conhecermos o valor da alma?“

Aplicação sim ples A terceira parte de um sermão, com frequência denominada “usos” do texto, podia ser bem longa à medida que o pastor aplicava as Escrituras aos vários ouvintes. Aquelas aplicações podiam ser incisivas em suas advertências para “reformar a vida, abandonando a impiedade”, conforme Perkins se expressou,^’ ou perceptivas em sua palavra de consolo.^ O objetivo era sempre deixar bem clara a Palavra de Deus ou, no dizer de Baxter, parafusá-la nos homens para que cresçam em santidade. Um excelente resumo desses usos ou aplicações aparece num curto capítulo intitulado “Sobre a pregação da Palavra”, nas Normas para o Culto Público, elaboradas pelos teólogos puritanos de Westminster: Embora sempre haja algo mais a esclarecer e a confirmar, [o pregador] não deve ficar apenas na doutrina em geral, mas debcá-la clara para usos específicos, mediante aplicação aos seus ouvintes. Embora tais usos se revelem um trabalho de grande dificuldade para ele, exigindo muita prudência, zelo e meditação e sejam muito desagradáveis ao homem natural e corrompido, ainda assim o pregador deve se esforçar por realizar esse trabalho de tal maneira que seus ouvintes sintam que a Palavra de Deus é viva e poderosa, que discerne os pensamentos e propósitos do coração e que, se algum incrédulo ou ignorante estiver presente, os segredos de seu coração se tomem manifestos e tal pessoa dê glória a Deus.^‘

Os teólogos de Westminster identificaram seis tipos de aplicação: 1. Instrução: aplicação doutrinária. 2. Confutação: refutação de erro existente. 3. Exortação: compelir e admoestar as ovelhas a obedecerem aos impera­ tivos e deveres sugeridos no texto que está sendo pregado, bem como expor “os meios que ajudam ao seu cumprimento”. “ Jam es Nichols, org., Puritan sermons: 1659-1689: being the m orning exercises at Cripplegate (Wheaton: Richard Owen Roberts, 1981), vol. 3. “ Perkins, The art o f prophesying, p. 64-8. ^Packer, A quest for godliness, p. 278. ^'Westminster confession o f faith (Glasgow: Free Presbyterian Publications, 1994), p. 380.

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4. Despersuasão: repreender o pecado, despertar convicção de sua execrabilidade e ódio por ele, bem como declarar suas terríveis consequências e mostrar como evitá-lo. 5. Consolo: encorajar os crentes a avançar no bom combate da fé, apesar das várias dificuldades e aflições. 6. Exame: pregar normas e marcas da graça com o propósito de permitir 0 autoexame e a correção dos crentes, para estimulá-los a cumprir, de acordo com sua condição espiritual, seu dever, ser humilhados por seu pecado e ser fortalecidos mediante consolo.’'^ A essa lista podemos acrescentar a aplicação doxológica, isto é, a aplicação daquelas verdades das Escrituras que ajudam as pessoas a perceber a beleza e a glória de Deus e de sua verdade e as levam a louvá-lo conforme ele se revelou nas Escrituras. Esse tipo de pregação eleva nosso coração e nossas afeições para que se maravilhem da beleza, da glória e do amor do Deus triúno em Jesus Cristo nosso Senhor e por meio dele.” Essas aplicações precisam ter o público certo como alvo, caso contrário poderão causar mais dano espiritual do que bem. William Perkins falou sobre como dirigir as aplicações das Escrituras a sete categorias de ouvintes. 1. Incrédulos ignorantes e não ensináveis. Esses incrédulos precisam ou­ vir a doutrina da Palavra em um ensino claro e lógico, bem como mediante repreensão e despertamento de culpa de sua consciência. 2. Incrédulos ignorantes, mas ensináveis. Esses incrédulos precisam ser ensinados sobre as doutrinas basilares da religião cristã. Perkins recomendava que aprendessem a respeito em seu livro Fàundations ofthe Christian religion [Fundamentos da religião cristã], que cobre o arrependimento, a fé, os sacra­ mentos, a aplicação da Palavra, a ressurreição e o juízo final. 3. Os que têm algum conhecimento, mas não se humilham. Para esses ouvintes, o pregador precisa proclamar a lei, a fim de instigar tristeza e arre­ pendimento pelo pecado; depois disso deve pregar o evangelho. 4. Os que se humilharam. O pregador não deve oferecer consolo a essas pessoas cedo demais, mas primeiro precisa determinar se a humildade delas é resultado da obra salvadora de Deus arraigada na fé ou de mera convicção usual. Àqueles que se humilharam apenas em parte e ainda não se despiram da justiça própria, Perkins afirma que a lei precisa ser apresentada ainda mais, mesmo que atenuada pelo evangelho, de maneira que, “estando aterrorizados por causa de seus pecados e meditando no juízo divino, recebam ao mesmo tempo e junto com isso [i.e., junto com o terror e a meditação] consolo pelo evangelho”. Para ^^Westminster confession o f faith, p. 380. ” Sou grato ao dr. Joseph Pipa, presidente do Greenville Presbyterian Theological Seminary, que numa conversa me sugeriu essa ideia.

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OS que se humilharam completamente, “a doutrina da fé e do arrependimento e os consolos do evangelho devem ser proclamados e ofertados”. 5. Os que creem. Deve-se ensinar aos crentes as doutrinas-chave da justifi­ cação, santificação e perseverança, junto com a lei como a norma de conduta em vez de como aguilhão e maldição. “Antes da fé, deve-se pregar a lei com a maldição; depois da conversão, a lei sem a maldição”, Perkins escreveu. 6. Os que caíram da fé ou em comportamento pecaminoso. Esses são os que largam a fé ou estão errados no conhecimento da verdade ou deixam de assimilar a Cristo. Se errarem por falta de conhecimento, devem ser instruídos na doutrina específica em que erraram. Se deixarem de assimilar a Cristo, devem examinar a si mesmos pelos sinais da graça e então correr a Cristo como o remédio do evangelho. Os que se envolveram em comportamento pecaminoso precisam ser levados ao arrependimento mediante a pregação da lei e do evangelho. 7. Um grupo misto. Isso pode se referir tanto a crentes quanto descrentes numa igreja ou pode se referir a pessoas que experimentem dentro de si uma combinação dos seis primeiros tipos de ouvintes. Se Perkins quis indicar o segundo grupo, é necessária muita sabedoria para discernir quanta lei e quanto evangelho levar a eles.^“ Os pregadores puritanos se dirigiam a todos os sete tipos de pessoas ao longo de certo período, mas não em cada sermão. As Normas de Westminster para o Culto Público aconselhavam os pastores a não esgotarem “todos os usos” contidos no texto que está sendo pregado. Entretanto, cada sermão incluía orientações tanto para crentes quanto para incrédulos. Em geral, o incrédulo era chamado a examinar como estava vivendo e que comportamento precisava de mudança, então era admoestado a correr para Cristo, que é o único que pode satisfazer suas necessidades. Para o crente, os usos geralmente continham palavras de consolo, orientação e autoexame.” A parte da aplicação é “a vida da pregação”, escreveu James Durham (c. 1622-1658). “Por isso, a pregação é denominada persuasória, testificadora, suplicante, imploradora ou insistente, exortadora’7^

Estilo sim ples de pregação A maioria dos pastores puritanos pregava por cerca de uma hora e levava ao púlpito um esboço com extensas anotações. Alguns escreviam o sermão ^‘ Perkins, The art of prophesying, p. 56-63. Para uma análise de algumas das principais dou­ trinas pregadas por puritanos da Nova Inglaterra, veja Levy, Preaching in the first half century of New England history, p. 25-40. "M urray A. Capill, Preaching with spiritual vigour: including lessons from the life and practice of Richard Baxter (Fearn, Escócia: Christian Focus, 2003), p. 153-6. "Ja m e s Durham, A commentary upon the book of the Revelation (Amsterdam: John Frederickszoon Stam, 1660), p. 260-6.

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inteiro — em particular suas aplicações — , mas usavam apenas uma parte delas. Outros não levavam nada escrito, dependendo totalmente da memória. Levy comenta que na Nova Inglaterra os puritanos inicialmente achavam que 0 melhor para um pastor era pregar extemporaneamente. Mas, quando John Warham, um pregador popular que atuou de 1636 a 1670 em Windsor, estado de Connecticut, usou extensas anotações durante a pregação dos sermões, outros começaram a imitar essa prática.^^ Em geral, eles escreviam sermões muito mais longos, em particular suas aplicações, do que de fato pregavam. O estilo puritano simples de pregação evitava tudo que não estivesse claro ou fácil de entender para um ouvinte comum. Visto que o pastor era o intér­ prete da Palavra designado por Deus, nenhuma preocupação com a oratória devia obscurecer a verdade e a clareza do evangelho. Por amor à simplici­ dade, 0 pregador devia negar a si mesmo em seu estilo de pregação a fim de que Cristo e o evangelho fossem exaltados. “Um estilo crucificado é o mais apropriado aos pregadores de um Cristo crucificado”, escreveu John Flavel. “As palavras não passam de servas do tema. Uma chave de ferro, que entra perfeitamente na fechadura, é mais útil do que uma de ouro, que não abrirá a porta do tesouro’7® O coração de um cristão verdadeiro, afirmou Robert Bolton (1572-1631), “sente-se mais perfeitamente consolado e verdadeiramente cris­ tianizado por um único sermão elaborado por uma alma que é compassiva por força da meditação, mais sustentado pelo sentido verdadeiro, natural e necessário da Palavra da vida, mais ministrado pela eloquência poderosa e incomparável das Escrituras [...] do que com um mundo de [discursos] gené­ ricos, embora estejam recheados de adornos e requintes de todas as ciências na área de humanidades e filosofia”.” Essa pregação é mais desafiadora e envolve estudo intenso e demorado. É provável que Thomas Shepard (1605-1649) tenha sido um típico pregador puritano, passando três dias inteiros por semana preparando os dois cultos do dia de descanso.“ Cotton Mather afirmou que todos os sermões de John Cotton “tinham o cheiro de lamparina”.®’ Os puritanos menosprezavam a preguiça no pastor; ensinavam que penetrar a mente de Deus nas Sagradas Escrituras envolvia oração fervorosa, a tarefa árdua de identificar a etimolo­ gia das palavras, entender as complexidades da gramática e desenvolver com afinco tópicos que refletissem o texto em mãos da maneira mais completa e precisa possível. Depois de toda essa oração, reflexão e embate com o texto, o ''Levy, Preaching in the first half century o f New England history, p. 82-3. '*Flavel, “Evangelical pastor”, in: Wbrks, 6:572. '’ Robert Bolton, The works o f the reverend, truly pious, and judiciously learned Robert Bolton (London: George Miller, 1641), 4:161. "T h om as Shepard, Four necessary cases o f conscience (London, 1651), p. 5. “ Citado em Miller, Seventeenth century, p. 352.

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pastor puritano devia buscar com toda sua força expor a mente de Deus ao seu povo com uma simplicidade tal que até mesmo crianças em idade escolar do ensino fundamental conseguiriam entender boa parte da mensagem. Richard Baxter escreveu; “Não é fácil falar de forma tão simples que os ignorantes nos entendam, tão séria que os corações mais endurecidos se sintam tocados por nós e tão convincente que os críticos arrogantes sejam silenciados”.®^ À medida que o pregador procurava alcançar diferentes grupos de sua igreja, a forma de sua pregação precisava confirmar a seriedade de sua men­ sagem. Os teólogos de Westminster entendiam esse vínculo vital entre estilo e conteúdo. Nas Normas para o Culto Público a Deus, eles concluem sua análise sobre a pregação determinando que tanto a pregação quanto o trabalho pastoral devem ser realizados de maneira: 1. penosa, isto é, com diligência, não com descaso: 2. simples, a fim de que a maioria das pessoas sem instrução consiga en­ tender 0 ensino das Escrituras; 3. fiel, ansiando a honra de Cristo, a salvação dos perdidos e a edificação dos crentes: 4. sábia, ensinando e admoestando da maneira mais apropriada e, assim, convencendo os paroquianos; 5. séria, conforme é próprio da Palavra; 6. amorosa, com zelo piedoso e desejo genuíno pelo bem-estar das almas; 7. fervorosa, estando intimamente convencido da verdade de Cristo e an­ dando piedosamente diante do rebanho, tanto em privado quanto em público.®® . Se essas sete marcas da pregação verdadeira fossem apresentadas mais plena­ mente na pregação e no pastorado atualmente, não veríamos mais do poder transformador da Palavra de Deus em suas igrejas?

Dependência sim ples O estilo simples precisa destacar a natureza espiritual da pregação, Perkins afirmou. A obra do Espírito fica evidente quando a fala do pastor é espiritual e permeada pela graça de acordo com o texto que ele está usando, e as evi­ dências da graça de Deus são recebidas no coração.®^ “ Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 475. ^^Westminster Confession o f faith, p. 381. “ Perkins, The art o f prophesying, p. 72-3.

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Os pastores precisam demonstrar uma profunda dependência do Espírito Santo em tudo que dizem e fazem. Eles precisam sentir intensamente sua incapacidade de trazer qualquer pessoa a Cristo, bem como a magnitude da conversão. “Deus nunca colocou sobre teus ombros a responsabilidade de converter aqueles que envia a ti. Não, anunciar o evangelho é o teu dever”, William Gurnall afirmou a pastores.®* E Richard Baxter escreveu: "A conversão é outro tipo de trabalho do qual a maioria não está ciente. Não é pouca coisa levar uma mente terrena ao céu e mostrar ao homem a bondosa sublimidade divina até que seja tomado por um tal amor a Deus que jamais possa ser apagado; quebrantar o coração por causa do pecado e levar a pessoa a fugir para Cristo em busca de refúgio e com gratidão recebê-lo como a vida de sua alma; fazer com que a própria tendência e curso de sua vida sejam mudados, de maneira que o homem renuncie àquilo que achava que era sua felicidade e coloque sua felicidade onde nunca antes a pôs”.** Os puritanos estavam convencidos de que tanto o pregador quanto o ouvin­ te são totalmente dependentes da obra do Espírito para operar regeneração e conversão naqueles em quem ele quer.®^ O Espírito traz a presença de Deus ao coração humano. Ele persuade pecadores a buscar salvação, restaura vontades corrompidas e faz com que verdades bíblicas finquem raízes em corações de pedra. Conforme Thomas Watson escreveu: “Os pastores batem à porta do coração dos homens, o Espírito vem com uma chave e abre a porta”.®* Joseph Alleine afirmou: “Jamais penses que consegues converter-te. Se quisesses te converter para alcançar a salvação, desanimarias de fazê-lo com tua própria força. É uma ressurreição dentre os mortos (Ef 2 .1), uma nova criação (G16.15; Ef 2.10), uma obra de onipotência absoluta (Ef 1.19)”.®®

Santidade sim ples Uma fala graciosa na pregação só era possível quando acompanhada pela graça de uma vida santa no pastorado. O pastor precisa ser um homem santo. São abundantes as citações puritanas a respeito: • “Se não vos ocupeis diariamente em estudar vosso próprio coração e subjugar a corrupção e andar com Deus, se esse não é um trabalho ao qual dedicais constantemente vossas energias, tudo dará errado e fareis »^William Gurnall, The Christian in complete armour (London: Banner of TVuth Thist, 1964), 2:574. ‘“'Baxter, Call to the unconverted, in: Works, 2:513. ‘ Tacker, Quest for godliness, p. 296-9. “ Thomas Watson, A body of divinity (1692; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Thist, 2000), p. 221. “ Alleine, A sure guide to heaven, p. 26-7.

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TEOLOGIA PURITANA VOSSOS ouvintes passar fome [...] Precisamos estudar tanto quanto nos empenhamos em viver bem e em pregar bem” (Richard Baxter).

• “Se um homem ensina corretamente e anda falsamente, ele desabará na noite de sua vida mais do que construiu no dia de sua doutrina” (John Owen). • “Nosso ministério é reflexo de nosso coração. Nenhum homem vai muito acima do nível de sua própria piedade usual” (Thomas Wilson).’“ A pregação puritana era endossada pela vida correta. Os pregadores viviam aquilo que pregavam. Para eles, a doutrina equilibrada era inseparável da vida equilibrada. Os pastores puritanos eram profetas que ensinavam, sacerdotes que intercediam e reis que governavam em sua própria casa, bem como em suas congregações e na sociedade. Eram homens de oração privada, culto em família e intercessão pública.

Conclusão: a necessidade de oração Depois de ler este capítulo, a tendência é exclamar: "Quem tem condições de alcançar essas coisas?” Mas, em vez de abaixar o padrão da pregação, devemos nos abaixar e dobrar os joelhos diante do Pai. Os puritanos impregnavam de oração todas as suas pregações. Eles eram grandes pregadores só porque tam­ bém eram grandes intercessores que lutavam com Deus para obter a bênção divina para sua pregação. Richard Baxter afirmou: “A oração precisa sustentar nosso trabalho, bem como nossa pregação. Não prega de coração ao seu povo aquele que não ora fervorosamente por eles. Se não persuadirmos Deus a lhes dar fé e arrependimento, jamais os persuadiremos a crer e se arrepender”. ” Robert 'If-aill escreveu: “Alguns pastores com menos dons e capacidades têm mais êxito do que outros com habilidades bem superiores. Isso acontece não porque pregam melhor, mas porque oram mais. Muitos bons sermões se per­ dem por falta de oração abundante durante o estudo”.’^ E John Owen afirmou: “Aquele que passa mais tempo em seu púlpito pregando a seu povo do que em seu gabinete orando pelo povo não passa de uma sentinela inútil”.’^ Apre­ sentemos, portanto, a nós mesmos e nossa pregação na presença de Deus e encontremos graça no momento oportuno (Hb 4.16). *

*Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 491, 493. ’ 'Richard Baxter, The Reformed pastor, condensado por S. Palmer (1862; reimpr., London: Banner of TVuth H ust, 1974), p. 123. ’^Robert TVaill, “By what means may ministers best win souls?”, in: The works of the Late Reverend Robert Traill (1810; reimpr., Edinburgh; Banner of TVuth TVust, 1975), 1:246. ” Blanchard, Complete gathered gold, p. 495.

Capítulo 43 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□DDaDDoaDDDnDnaDDDDaaaDnDDODana

A pregação puritana (2) □□□□□□□□oaaaanDoaDODaQDaoaoooaaDPanononaooDQDDnDonDnoDQDDQo

A pregação é a carruagem q u e leva Cristo d e um lado a outro do m undo.

Richard Sibbes'

No capítulo anterior, exam inam os as características da pregação puritana em sua primazia, poder e simplicidade. Neste capítulo, estudaremos o programa dos puritanos para a pregação e a paixão que tinham por ela.

O programa para a pregação O amor puritano pela pregação permitiu que eles se concentrassem no estabe­ lecimento de um programa notável de reforma abrangente da igreja. Em termos básicos, os puritanos empregavam uma abordagem com cinco partes para influenciar as pessoas e promover a reforma do pastoreio mediante a pregação.

Pregação propriam ente dita A primeira das cinco partes era aprimorar a própria p rega çã o . Por acreditarem

muito na pregação, os puritanos pregavam com frequência. De várias maneiras, conseguiam ter acesso aos púlpitos e usavam todas as oportunidades possíveis para pregar, tanto no dia de descanso quanto durante a semana. Indicações para um ofício remunerado em igrejas paroquiais estavam frequentemente nas mãos de padrinhos patrocinadores, de maneira que naqueles lugares em que

'Richard Sibbes, The foantain opened; or, the mystery of godliness revealed, in: Alexander B. Grosart, org., The complete works of Richard Sibbes (1862-1864; reimpr., Edinburgh: Banner oflVuth TVust, 1977), 5:508.

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0 bispo era tolerante e o patrocinador tinha afinidade com o puritanismo, era muitíssimo provável que um pastor puritano fosse convidado para se tornar o pastor oficial. Outros encontravam paróquias em que não eram forçados a se conformar a todas as exigências da Igreja da Inglaterra, de modo que sua consciência lhes permitia que continuassem com a pregação e o pastorado. Ainda outros pregavam em vilarejos longe de casa ou em residências particula­ res, celeiros e lugares remotos. Não era incomum pastores puritanos pregarem cinco vezes por semana.^ Além de ser doutrinária, a pregação puritana era conhecida por ser bíblica. O pregador puritano encontrava sua mensagem na Palavra de Deus. “O pastor fiel [é], como Cristo, aquele que não prega nada senão a Palavra de Deus”, afirmou o puritano Edward Dering (c. 1540-1576).^ John Owen (1616-1683) concordava; “O primeiro e principal dever de um pastor é alimentar o rebanho mediante a pregação diligente da Palavra”.'' Millar Madure observou que “para os puritanos 0 sermão não está apenas apoiado nas Escrituras; ele existe bem literalmente dentro da Palavra de Deus; o texto não está no sermão, mas o sermão está no texto [...] Em poucas palavras, ouvir a um sermão é estar na Bíblia”.^ “Alimentem-se da Palavra, e isso faz com que nos regozijemos na Palavra”, afirmou o pregador puritano John Cotton (1585-1652) à sua congregação.* O prefácio à Bíblia de Genebra contém conselho semelhante, afirmando que a Bíblia é “a luz para nosso caminho, a chave do reino dos céus, nosso consolo na aflição, nosso escudo e espada contra Satanás, a escola de toda sabedoria, 0 espelho em que vemos a face de Deus, o testemunho de seu favor e o único alimento e sustento para nossas almas’7 Por isso, não é de admirar que a página típica de um sermão puritano contenha de cinco a dez citações bíblicas e cerca de uma dezena de referências a outros textos. Pregadores puritanos tinham familiaridade com sua Bíblia; memorizavam centenas, senão milhares de passagens. Sabiam qual Escritura citar para qualquer assunto relevante. “Uma familiaridade longa e pessoal com a aplicação das Escrituras era um elemento chave na constituição pastoral ^Por exemple, Oliver Heywood pregou em média cinco vezes por semana em 1690, de acordo corn Horsfall TLirner, The reverend Oliver Heywood. B.A., 1630-1702, his autobiography, diaries, anecdotes and event books (London: Bingley, 1883), 3:238. 'Edward Dering, M. Derings workes (1597; reimpr., New York: Da Capo, 1972), p. 456. Mohn Owen, The true nature of a Gospel church and its government, in: William H. Goold, org., The works of John Owen (London: Banner of TVuth TVust, 1965), 16:74. 'Millar Maclure, The Paul's cross sermons, 1534-1642 (Toronto: University of Toronto Press, 1958), p. 165. *John Cotton, The way of life. Or, Gods way and course, in bringing the soule into, keeping it in, and carrying it on, in the wayes of life and peace (London: M. F. para L. Fawne e S. Gellibrand, 1641), p. 432. ^Geneva Bible (1599; reimpr. Ozark: L. L. Brown, 1990), p. 3.

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puritana”, escreve Sinclair Ferguson. “Eles ponderavam sobre as riquezas da verdade revelada da mesma maneira como um gemólogo examina com paciência as muitas faces de um diamante”.®Os puritanos usavam as Escritu­ ras com sabedoria, citando textos relacionados com a doutrina ou o caso de consciência em questão.® Além disso, a pregação puritana era quase sempre experiencial e prática. A pregação puritana explicava como um cristão experimenta a verdade bíblica no dia a dia. O termo “experiencial” vem da palavra latina experimentum, um substantivo derivado de um verbo com o sentido de “tentar, testar, provar ou pôr à prova”. O mesmo verbo também pode significar “descobrir ou co­ nhecer por experiência” e, dessa forma, dá origem à palavra experíentía, que tem o sentido de “ensaio, experimento” e de “conhecimento adquirido por experimento”.'“ João Calvino usava experiencial {experientia) e experimental {experimentum) como sinônimos, visto que na perspectiva da pregação bíblica ambas as palavras indicam a necessidade de examinar ou testar pela pedra de toque das Escrituras o conhecimento adquirido com a experiência (Is 8.20)." A pregação experiencial destaca a necessidade de se conhecer por experiên­ cia as verdades da Palavra de Deus, buscando explicar segundo as verdades bíblicas como as coisas devem transcorrer e como de fato transcorrem na vida cristã. Ela procura aplicar a verdade divina à totalidade da experiência do crente em sua caminhada com Deus e também em seu relacionamento com a família, a igreja e o mundo ao seu redor. Com os puritanos podemos aprender muito sobre esse tipo de pregação. Os puritanos afirmavam que a pregação em que Cristo não é preeminente não é uma pregação experiencial válida. De acordo com Thomas Adams (1583-1652), “Cristo é a essência de toda a Bíblia; ele é profetizado, tipificado, prefigurado, mostrado, demonstrado, encontrado em cada página, quase em cada linha, sen­ do que as Escrituras são apenas, por assim dizer, o cueiro do menino Jesus”.'" “Sinclair B. Ferguson, “Evangelical ministry; the Puritan contribution”, in; John H. Armstrong, org.. The compromised church: the present evangelical crisis (Wheaton; Crossway, 1998), p. 267. ’P. ex., William Perkins, J558-J602; English Puritanist. His pioneer works on casuistry: "A discourse of conscience" and "The whole treatise of cases of conscience”, edição de Thomas F. Merrill (Nieuwkoop; B. DeGraaf, 1966). Essas obras deram a Perkins o título de “pai da casuís­ tica puritana”. "‘Cassell’s Latin dictionary, revisão de J. R. V. Marcham; J. F. Charles (New York; Funk & Wagnalls, s. d.), s.v. “experimentum”,.“experientia”. "Willem Balke, “The Word of God and experientia according to Calvin”, in; W. H. Neuser, org., Calvinus Ecclesiae Doctor (Kämpen; J. H. Kok, 1978), p. 20-1; cf. o comentário de Calvino sobre Zacarias 2.9. '^Thomas Adams, Meditations upon some part of the creed, in; The works of Thomas Adams (1862; reimpr.. Eureka; Tanski, 1998), 3;224.

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“Pense em Cristo como a própria essência, cerne, alma e escopo das Escrituras todas”, afirmou Isaac Ambrose (1604-1664).'^ No contexto de Cristo, a pregação puritana se caracterizava por uma aplicação discriminante da verdade à experiência. A pregação discriminante define a dife­ rença entre o não cristão e o cristão. A pregação discriminante pronuncia a ira de Deus e a condenação eterna para os incrédulos e impenitentes. De igual maneira oferece perdão dos pecados e vida eterna a todos que, mediante uma fé verda­ deira, acolhem Jesus Cristo como Salvador e Senhor (Mt 7.22-27; ICo 1.30; 2.2). Os puritanos conheciam a natureza enganosa do coração humano. Como consequência, pregadores puritanos se esforçavam em identificar os sinais da graça que fazem distinção entre a igreja e o mundo, entre crentes verdadeiros e meros professantes da fé e entre fé salvadora e fé temporária.'“ Thomas Shepard em The ten virgins [As dez virgens], Matthew Mead em The almost Christian discovered [0 quase cristão é descoberto], Jonathan Edwards em Religious affections [Afeições religiosas] e outros puritanos escreveram dezenas de obras para diferenciar impostores e verdadeiros crentes.'^ Atualmente esse tipo de pregação discriminante é escasso. Mesmo em igrejas evangélicas conservadoras, o conhecimento teórico de verdades bíblicas com frequência substitui a experiência do coração — ou, o oposto, a experiência do coração substitui o conhecimento teórico. A pregação experiencial requer tanto 0 conhecimento teórico quanto a experiência do coração; de acordo com John Murray, o objetivo dessa pregação é a “piedade inteligente”. Os puritanos ensinavam que, quando a Palavra de Deus é pregada experiencialmente, o Espírito Santo a usa para transformar pessoas e nações. Tal pregação opera essa transformação porque está associada com a experiência vital dos filhos de Deus (Rm 5.1-11), explica com clareza os sinais da graça salvadora no crente (Mt 5.3-12; G1 5.22,23), proclama p grandioso chamado dos crentes para que sejam servos de Deus no mundo (Mt 5.13-16) e mostra 0 destino eterno de crentes e incrédulos (Ap 21.1-9).'* 'Msaac Ambrose, The works of Isaac Ambrose (London: para Thomas Tegg &Son, 1701), p. 201. '^Thomas Watson, The godly man's picture (Edinburgh: Baimer of TVuth Thist, 1992), p. 20­ 188, apresenta 24 marcas da graça a serem procuradas em um autoexame. ‘^Thomas Shepard, The parable of the ten virgiru (Ligonier: Soli Deo Gloria, 1990); Matthew Mead, The almost Christian discovered; or the false professor tried and cast (Ligonier: Soli Deo Gloria, 1988): Jonathan Edwards, Religious affections (New Haven, Connecticut: Yale University Press, 1959). '‘■ Veja no Catecismo de Heidelberg uma declaração confessional reformada que incentiva a pregação experiencial. Isso fica demonstrado (1) na exposição pelo catecismo de um esboço (miséria, livramento e gratidão) que corresponde exatamente à experiência dos crentes, (2) na sua aplicação da maioria das doutrinas diretamente à consciência do crente para proveito espi­ ritual e (3) na sua característica vibrante e pessoal em que regularmente se dirige ao crente na segunda pessoa. Cf. Tae-Hyeun Park, The sacred rhetoric of the Holy Spirit: a study of Puritan preaching in pneumatological perspective (Apeldoorn: Theologische Universiteit, 2005), p. 373-4.

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Exemplos do poder transformador da pregação experiencial puritana são abundantes em diários e escritos autobiográficos de autores puritanos. O ca­ pitão John Spilman nos proporciona um exemplo típico: O u tro ra, na condição carnal em q u e e s ta v a , eu fazia p o u co ca s o d os ministros de

Cristo, em e sp e cial pregadores p ro lixo s, e n ã o c o n se g u ia s u p o rta r alg u ém pregar longamente, m a s p or fim fui a g arrad o p or u m d eles, e ele e sta v a [p regan d o ] sob re Hebreus 8 .8 ,1 0 , [sobre] a n ov a alia n ça feita em C risto , a q u al foi a p licad a b em no meu íntimo e m e to c o u n o coração.'^

Preletorados Outra forma que a pregação puritana assumiu foi a de dar preleções, embora esse termo tivesse um sentido diferente naquela época. Nos dias dos purita­ nos, uma paróquia eclesiástica tinha normalmente um vigário e um ou dois curas (i.e., pastor e pastores auxiliares). Preletores puritanos não tinham dever paroquial algum; seu único chamado era pregar e ensinar. Em geral, eram contratados por padrinhos patrocinadores abastados, por pequenas prefeitu­ ras ou pelas faculdades de direito de Londres, para trabalhar em uma igreja ou grupo de igrejas de mentalidade puritana (com o apoio do reitor, vigário ou cura local), a fim de saciar o apetite espiritual das pessoas.'® Formalmen­ te, os preletorados suplementavam o trabalho pastoral, mas na realidade ofereciam pregação em outros momentos que não aqueles que a Igreja da Inglaterra reservava para o culto com o livro de oração. Assim, escapavam dos regulamentos de conformismo. Com frequência, os preletores eram protegidos por nobres, como o conde de Leicester, bem como pela autoridade e influência que tinham.’’ William Haller descreve o cargo: O p re le to r n ão e ra d esig n ad o o u a p ro v a d o p elo b en feito r d a p aró q u ia, em b o ra isso p u d esse a co n te ce r, n em d esfru tav a d a ren d a p ro v en ien te d e d ízim o s d ados a o clé rig o oficial. Ele era esco lh id o p a ra p re g a r p ela igreja local ou p o r algum m e m b ro ou g ru p o d e m em b ro s o u p or u m se g u id o r a b a sta d o , sen d o q ue q u alq u er

'^Citado em Owen C. Watkins, The Puritan experience: studies in spiritual autobiography (New York: Schocken, 1972), p. 58. '“As origens e tipos de preletorados estão documentados por Paul S. Seaver, The Puritan leaureships: the politics of religious dissent, 1S60-1662 (Stanford: Stanford University Press, 1970), p. 72-87. Cf. Irvonwy Morgan, The godly preachers of the Elizabethan Church (London: Epworth, 1965), p. 33-60; William Haller, The rise of Puritanism (Philadelphia: University of Philadelphia Press, 1972), p. 330. '“D. M. Lloyd-Jones, The Puritans: their origins and successors (Edinburgh: Banner of TVuth Thast, 1987), p. 378 [edição em português: Os puritanos: suas origens e seus sucessores, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 1993)).

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TEOLOGIA PURITANA um d eles p od ia a ssu m ir a s d e sp e sa s de seu su ste n to . P esso as d e m u itas p aró q u ias ao re d o r p od iam ir à b u sca d e su a s m in istra çõ e s. Seu d ev er e ra p re le cio n a r sob re a B íb lia, isto é, p regar, a o s d o m in g o s em m o m e n to s d iferen tes d o s cu lto s n orm ais e na m aio ria d os c a s o s ta m b é m n o s d ias da se m a n a . E ra-lh e exigid a a u to riz a çã o do bispo ou d e o u tra a u to rid a d e o ficial d a igreja, a q u em d evia p re sta r c o n ta s sob p ena d e se r p ro ib id o d e p reg ar.“

Paul Seaver, uma autoridade sobre preletorados puritanos, escreveu: “Nem todos os preletores eram puritanos e nem todos os puritanos eram preletores, mas não há dúvida de que em essência o preletorado era uma instituição puritana, que sua força propulsora tinha motivação puritana e que os pregadores que preenchiam esses cargos eram predominantemente puritanos”.^' Os preleto­ rados se tornaram cada vez mais populares ao longo do primeiro século de puritanismo (1560-1662); brotavam em toda parte da Inglaterra — em pequenas cidades e vilarejos, bem como em Cambridge e Oxford e, é claro, em Londres, onde mais de cem preletorados foram mantidos durante as três primeiras décadas do século 17. Muitos dos maiores puritanos serviram como preletores, como William Ames, Paul Baynes, Thomas Cartwright, Laurence Chaderton, John Dod, John Field, Richard Greenham, Arthur Hildersham, William Perkins, John Preston e Richard Sibbes.^^ Na década de 1640, muitos preletores se tornaram líderes no Longo Parlamento, que convocou a Assembleia de Westminster. E, além disso, de acordo com Marshall M. Knappen, era frequente capelães privados da nobreza também serem preletores disfarçados, “visto que a capela da fa­ mília estava aberta à vizinhança quando o sermão semanal era pregado. Com 0 correr do tempo, muitos desses preletorados passaram a receber dotações seguindo o modelo de custeio pastoral existente”.“ Esses “clérigos freelancers”, como Christopher Hill os chama,“ davam preleções que eram, no dizer de Peter Lewis, “uma espécie de avô das nossas reuniões de exposição bíblica atuais: um culto de pregação de considerável duração e grande profundidade, em geral com a presença de pastores e mem­ bros de congregações puritanas vizinhas”.“ Em geral, as preleções eram de natureza ou expositiva ou doutrinária e com frequência eram posteriormente impressas como comentários ou estudos. “Haller, The rise of Puritanism, p. 53. ^'Seaver, The Puritan lectureships, p. 22. ^^Seaver, The Puritan lectureships, p. 30-1. “Marshall M. Knappen. Thdor Puritanism: a chapter in the history of Idealism (Chicago: University of Chicago Press, 1939), p. 221-2. “Christopher Hill. Society and Puritanism in pre-revolutionary England (New York: Schocken, 1964), p. 80. “Peter Lewis, Genius of Puritanism (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2008), p. 61-2.

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A maioria dos puritanos preferia os sermões do preletor aos sermões de seu pastor conformista. Os preletores puritanos conquistavam o coração e a simpatia deles. As pessoas normalmente iam fielmente à igreja e permaneciam até 0 fim de um sermão matutino bem maçante pregado por um ministro da Igreja da Inglaterra e, então, à tarde iam ouvir um pregador explicar, com vigor, as Escrituras de um modo doutrinário, experiencial e prático. Os preletores eram tão populares que Seaver conclui; “Em baluartes puritanos o domínio dos preletorados dava aos leigos um poder eclesiástico que rivalizava o da Coroa e dos bispos anglicanos”.^*

Profetizaçôes Uma terceira forma de pregação puritana eram as profetizaçôes — também denominadas "exercíciós” ou “exercícios piedosos”. Profetizaçôes eram uma espécie de conferência bíblica ou forma de educação continuada para os pastores.^^ Embora as formas variassem em diferentes lugares, as profetizaçôes aconteciam em igrejas em localização central, onde três a seis pastores prega­ vam sobre o mesmo texto, começando pelo mais jovem e terminando com o mais idoso. O último pregador fazia um resumo das descobertas e deduções e destacava os “usos” práticos das doutrinas que foram expostas. Um modera­ dor mais idoso então conduzia uma sessão de avaliação crítica aos sermões. Nessas sessões “ferro afia ferro”, os pastores podiam afiar suas habilidades exegéticas e homiléticas. Desde o início da década de 1570, o público passou a ser convidado a alguns desses seminários sobre pregação, visto que as pessoas também ti­ nham grande paixão pela pregação sadia. Mas nem todos os pastores eram a favor dessa prática. Mais tarde, Francis Bacon (1561-1626) escreveu: “Sei que profetizaçôes estavam sujeitas a muito abuso, e agora sofreriam ainda mais abusos, pois o ardor das disputas aumentara. Mas digo que o único motivo para os abusos era que se admitia a presença do povo, de modo que a reunião não se limitava a uma conferência apenas de pastores”.“ O público — que às vezes chegava a algumas centenas — se assentava nos fundos, em geral “Seaver, The Puritan lectureships, aba do livro. ^’Veja esp. Patrick Collinson, The Elizabethan Puritan movement (London: Jonathan Cape, 1967), p. 168-76, e Morgan, The godly preachers of the Elizabethan church, p. 61-101. Para considerações mais breves, veja Knappen, Thdor Puritanism, p. 253-4; Joseph A. Pipa Jr., “William Perkins and the development of Puritan preaching" (tese de doutorado, Westminster Theological Seminary, 1985), p. 25-6; Daniel Neal, The history of the Puritans (Stoke-on-Tlrent: Tentmaker, 2006), 1:181-2; Horton Davies, The worship of the English Puritans (Morgan: Soli Deo Gloria), p. 188-9. “ Francis Bacon, The letters and life of Francis Bacon, in: James Spedding; Robert Leslie El­ lis; Douglas Denon Heath, orgs.. The works of Francis Bacon (London: Longman, 1857), 8:88.

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com a Bíblia de Genebra aberta no colo, conferindo cada texto citado pelos pastores. Depois disso, frequentemente podiam fazer perguntas que os pas­ tores respondiam. Mas, às vezes, eram impedidos de permanecer durante as sessões de avaliação crítica, para não intimidarem os pastores cujos sermões estavam sendo “censurados”. O precedente bíblico das profetizações era ICoríntios 14.29,31, que afirma: “Que dois ou três profetas falem, e os outros julguem o que foi dito [...] Porque todos podereis profetizar, um de cada vez, para que todos aprendam e sejam encorajados”. Essas profetizações, que tiveram início em Zurique na década de 1520, foram importadas pelos primeiros puritanos na década de 1550, usadas amplamente no Christ’s College por Laurence Chaderton (c. 1536-1640) e logo proliferaram em vários condados da Inglaterra. Elas se desenvolveram devido à necessidade que os pastores puritanos tinham de melhorar sua pregação, embora às vezes elas fossem iniciadas por bispos que sentiam a necessidade de consertar a “pregação ignorante”. As profetizações atingiram o apogeu em meados da década de 1570. Em 1577, indo contra o conselho do arcebispo Grindal, a rainha Elizabeth — que via as profetizações como uma ameaça ao seu controle sobre o Estado e a igreja — incentivou seus bispos a proibirem-nas.^’ Nisso ela teve êxito apenas parcial; algumas profetizações continuaram até o reinado de Tiago I, em particular nos lugares onde os bispos as toleravam.^“

Livros de sermões Em quarto lugar, o alcance da pregação puritana foi imensamente aumentado com a impressão e publicação de sermões. Os puritanos imprimiram inúmeros sermões na forma de livro, e esses livros se tornaram um importante meio de graça e comunicação. Na década de 1560, foram publicados nove volumes de sermões puritanos; na de 1570, 69 volumes; na de 1580,113 volumes; e na de 1590,140 volumes.^' A. F. Herr escreve: “A publicação de sermões constituiu uma atividade comercial bem ampla na Inglaterra Elizabetana. Calcula-se que mais de 40% de todas as publicações daquela época eram de natureza religiosa ou filosófica e, é claro, que os sermões responderam por boa parte daquelas publicações religiosas”.’^ Conforme J. I. Packer afirmou, os autores puritanos eram populares por­ que eram educadores da mente, pregadores à consciência, médicos da alma. ^’S. E. Lehmberg, "Archbishop Grindal and the prophesyings", Historical Magazine of the Protestant Episcopal Church 24 (1965): 87-145. "Collinson, The Elizabethan Puritan movement, p. 168. ”A. F. Herr, The Elizabethan sermon: a survey and a bibliography (New York: Octagon, 1969), p. 27. “Herr, The Elizabethan sermon, p. 67.

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promotores da verdade e homens do Espírito.” Vários livros de sermões pu­ ritanos passaram por dezenas de edições na língua inglesa, e alguns foram traduzidos para várias línguas europeias. No século 17, só para o holandês foram traduzidos — e publicados — mais de setecentos volumes puritanos.” Só há pouco tempo começamos a retribuir o favor, traduzindo alguns dos grandes clássicos da Segunda Reforma Holandesa, um movimento equivalente ao puritanismo inglês.” Os livros de sermões puritanos eram lidos com frequência e por um grande número de pessoas, e Deus os usou para muitas conversões e o crescimento na graça de milhares de crentes. Atualmente, conforme qualquer dono de sebo sabe, os antigos livros puritanos tendem a estar bastante surrados devido ao uso acentuado, ao passo que não é raro encontrar livros anglicanos em exce­ lente estado por falta de uso. Mais de 90% dos livros puritanos apareceram primeiramente em forma de sermões. O mesmo se aplica aos setecentos livros puritanos que foram reim­ pressos nos últimos cinquenta anos, desde que a literatura puritana começou a ressurgir no final da década de 1950.”

Treinamento m inisterial Por fim, o programa puritano de pregação assumiu a forma de treinamento ministerial, que promovia a boa pregação. Os puritanos exigiam clérigos com formação universitária. Para atingir esse objetivo, os puritanos estudavam em universidades como a de Cambridge. Joseph Pipa escreve: T en do à fre n te L a u r e n c e C h a d e r to n , o C h ris t’s C o lle g e , n a U n iv e rsid a d e de C am b rid g e, foi p ion eiro c o m u m a lon g a lista d e p ro fesso res-b o lsistas e tu to res p u ritan o s. O St. J o h n ’s C ollege e o TVinity C o lleg e fo ram facu ld ad es q ue tam b ém p ro d u z ira m m u ito s c lé rig o s d e c o n v i c ç ã o p u r ita n a . N o in ício d o rein ad o de E liz a b e th , e s s a s trê s fa c u ld a d e s p ro d u z ira m u m a e x te n s a lista d e ren o m ad o s

”J. I. Packer, Quest for godliness: the Puritan vision of the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 11-34. ^Fred A. van Lieburg, “From pure church to pious culture: the further Reformation in the seventeenth-century Dutch Republic”, in: W. Fred Graham, org.. Later Calvinism: internatio­ nal perspectives (Kirksville: Sixteenth Century Journal Publishers, 1994), p. 423-5. Cf. C. W. Schoneveld, Interiraffic of the mind (Leiden: Brill, 1983); Willem Jan op’t Hof, Engelse pietistische geschriften in het Nederlands, 1598-1622 (Rotterdam: Lindenberg, 1987). ”Para uma análise desses títulos traduzidos do holandês, veja Joel R. Beeke: Randall Pederson, Meet the Puritans: a guide to modem reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), p. 739-823 [edição em português: Paixão pela pureza: conheça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 2010)]. “Veja Beeke; Pederson, Meet the Puritans, para um retrospecto de todos os setecentos títulos. Quanto ao impacto desses livros na vida de pessoas, veja Watkins, The Puritan experience, p. 59-61.

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TEOLOGIA PURITANA teólo g o s p u rita n o s. M ais ta rd e n o rein ad o de E lizab eth o s p u ritan o s fu n d aram d u as facu ld ad es d eles m e s m o s e m C am b rid g e. E m 1 5 8 4 , W alter M ild m ay fundou

0 E m m a n u e l C ollege, ten d o L a u re n ce C h ad erto n c o m o p rim eiro diretor, e em 1 5 9 6 a co n d e ssa d e S u ssex crio u o S id ney S u sse x C o lleg e.’ ^

Devido à influência de Chaderton e Perkins, nos primeiros anos do século 17 0 Emmanuel College passou a substituir o Christ’s College como o ninho do puritanismo.’® Oxford também treinou grande número de pregadores puritanos. Paul Seaver estima que dos inúmeros preletores londrinos de mentalidade puritana, 59% tenham recebido treinamento em Cambridge, e 56% , em Oxford — sendo que vários foram treinados em parte em ambas as universidades.®’ O TTinity College, em Dublin, também treinou grande número de pregadores puritanos. E a fundação do Harvard College, na Nova Inglaterra, em 1636, seis anos depois da chegada dos puritanos, mostra o grande receio que tinham de que “as igrejas ficassem com pastores ignorantes, quando nossos pastores atuais voltarem ao pó”.’“ Todas essas faculdades, junto com a influência de professores-bolsistas, tutores e colegas estudantes, foram uma força poderosa na formação de mo­ ços puritanos de firme convicção puritana sobre a pregação.” Em harmonia com as convicções puritanas de que a pregação ungida pelo Espírito é mais bem captada do que ensinada, as igrejas locais estavam frequentemente cheias de excelentes pregadores puritanos, como William Perkins, Richard Sibbes e Laurence Chaderton, que também tiveram uma profunda influência em estudantes que se preparavam para o ministério. Quando Chaderton re­ nunciou a seu preletorado em St. Clement’s, quarenta pastores fizeram uma petição para que continuasse, “alegando que deviam sua conversão a ele”.’^ Com frequência, a influência se dava numa reação em cadeia — da qual o exemplo mais notável é o uso da pregação de Richard Sibbes na conversão de John Cotton, cuja pregação foi, por sua vez, usada para a conversão de John Preston (1587-1628).’® ”Pipa, “William Perkins and the development of Puritan preaching", p. 24. Cf. Knappen, Thdor Puritanism, p. 195, 218-9; Haller, The rise of Puritanism, p. 20. ’*Seaver, The Puritan lectureships, p. 183. ”Seaver, The Puritan lectureships, p. 183. ^New England's first fruits, citado em Perry Miller: Thomas H. Johnson, orgs., The Puritans, ed. rev. (New York: Harper, 1963), 2:701. ^'Para uma matriz curricular puritana, veja Knappen, Thdor Puritanism, p. 466-80; H. C. Porter, Puritanism in Thdor England (New York; MacMillan, 1970), p. 180-203, 223-7. ■ '^Haller, The rise of Puritanism, p. 54. "*John Norton, Abel being dead yet speaketh (Delmar: Scholars Facsimiles & Reprints, 1978), p. 14; Pipa, “William Perkins and the development of Puritan preaching", p. 25.

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Paixão pela pregação O amplo programa puritano de pregação era impulsionado por uma paixão íntima criada pelo Espírito de Deus. De várias maneiras, o amor puritano pela pregação era intenso.

O s puritanos amavam o evangelho de Cristo Eles amavam proclamar o evangelho todo, o que incluía, conforme Packer assinalou, diagnosticar a difícil condição do homem e a questão do pecado, destacar o objetivo da graça e a suficiência de Cristo em sua humilhação e exaltação e oferecer a graça junto com o anúncio das exigências do evangelho de arrependimento e fé.'*'* A pregação puritana se refere basicamente, então, à maneira como os pastores puritanos proclamavam a Palavra de Deus acerca da salvação de pecadores por meio do Senhor Jesus Cristo. Essa salvação é concedida pela graça, recebida pela fé e reflete a glória de Deus. Para os puritanos, a pregação apresenta Cristo de tal maneira que, pelo poder do Espírito, as pessoas vêm a Deus por meio dele. Afinal, afirmavam os puritanos, a conversão é apenas 0 início da transformação pessoal e conformidade a Cristo. Por essa razão, sua pregação apresenta Cristo de tal maneira que o crente possa crescer nele e servi-lo como Senhor na comunhão da igreja de Cristo e na extensão de seu reino no mundo. A pregação puritana, ao se concentrar na obra salvadora das três pessoas da Trindade, inclui declarar a redenção ao mesmo tempo que chama os pecadores a uma vida de fé e compromisso e adverte que o evangelho condenará para sempre aqueles que permanecem na incredulidade e impenitência. Thomas Manton (1620-1677) assim se expressou a respeito: A ideia cen tral do evangelho é esta: q ue tod os aq ueles que, m ed iante arrependim ento e fé v e rd ad eiro s, rep u d iam a c a rn e , o m u n d o e o d iab o e se en tre g a m a o D eus Pai, a o Filho e a o E spírito S an to co m o seu C riador, R ed en tor e Santificador, en co n trarão D eus c o m o u m Pai q u e o s re ce b e c o m o filhos reco n ciliad o s e, p o r a m o r a C risto, p erd o a seu s p e ca d o s, e, p elo seu E sp írito , lh es co n fere g ra ça . E, se p ersev erarem n e sse c a m in h o , ele o s g lo rificará no fim e lh es c o n ce d e rá felicidade e te rn a , m as co n d e n a rá a o ca stig o e te rn o o s in créd u lo s, im p en iten tes e ím p io s.“'^

Os puritanos tinham um amor todo especial por pregar a Cristo — de forma bíblica, doutrinária e tipológica.“®“A pregação é a carruagem que leva Cristo ■“Packer, Quest for godliness, p. 170-5. ■ '^Thomas Manton, "Wisdom is justified of her children”, in: T. Smith, org., The complete works of Thomas Manton (Worthington: Maranatha, 1980), 2:102ss. “Veja Chad Van Dixhoom, “Preaching Christ in Post-Reformation Britain”, in: Robert L. Penny, org.. The hope fulfilled: essays in honor of O. Palmer Robertson (Philipsburg: P&R, 2008), p. 361-89.

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de um lado a outro do mundo”, escreveu Richard Sibbes (1577-1635).'*^ John Flavel (1628-1691) afirmou: “A excelência de um sermão está nas descobertas mais simples e nas aplicações mais revigorantes de Jesus Cristo”. Richard Baxter (1615-1691) acrescentou: “Se apenas pudermos ensincur Cristo ao nosso povo, teremos ensinado tudo a eles”. E Thomas Brooks (1608-1680) concluiu: “Os despenseiros do evangelho são os amigos do noivo e não devem falar uma palavra em nome do noivo e duas em seu próprio benefício”.“® Em obras como Christ revealed (Cristo revelado], de Thomas Taylor, Christ our Mediator [Cristo, nosso Mediador], de Thomas Goodwin, Happiness of enjoying and making a speedy use o f Christ [Felicidade de desfrutar de Cristo e fazer uso proveitoso dele], de Alexander Grosse, Looking unto Jesus [Olhando para Jesus], de Isaac Ambrose, Christ all and in all [Cristo todo e em todos], de Ralph Robinson, ou Christ all in all [Cristo, tudo em todos], de Philip Henry, Christ: the way, the truth, and the life [Cristo: o caminho, a verdade e a vida], de John Brown, The glorious mystery o f the person of Christ [0 mistério glorioso da pessoa de Cristo], de John Owen, e Christ crucified [Cristo crucificado], de James Durham, os puritanos pregavam Cristo ao homem todo.“’ Eles o apresentavam como profeta, sacerdote e rei. Não faziam separação entre seus benefícios e sua pessoa nem o apresentavam como Salvador do pecado sem ao mesmo tempo expor sua reivindicação de ser o Senhor. Pregar Cristo com encanto e graça era a tarefa mais essencial do pregador puritano. Perkins concluiu seu estudo magistral sobre homilética, afirmando: ‘•'Sibbes, fíyuntain opened, in: Works, 5:508; cf. Lewis, Genius of Puritanism, p. 50-2. ^Complete gathered gold, compilação de John Blanchard (Darlington: Evangelical, 2006), p. 476, 477, 490. ‘•’Thomas Taylor, Christ revealed: or the Old Testament explained: a treatise of the types and shadowes of our Saviour (London: M. F. para R. Dawlman e L. Fawne, 1635) é a melhor obra puritana sobre Cristo no Antigo Testamento. Thomas Goodwin, Christ our Mediator, vol. 5 de The works of Thomas Goodwin (Eureka: Tanski, 1996) expõe com competência textos neotestamentários essenciais sobre a obra mediadora de Cristo. Alexander Grosse, The happiness of enjoying and making a true and speedy use of Christ (London: Tho. Brudenell, para John Bartlet, 1647) e Isaac Ambrose, Looking unto Jesus (Harrisonburg: Sprinkle, 1986) são exposições sem igual sobre a cristologia experiencial. Ralph Robinson, Christ all and in all: or several signifi­ cant similitudes by which the Lord Jesus Christ is described in the Holy Scriptures (1660; reimpr., Ligonier: Soli Deo Gloria, 1992), Philip Henry, Christ all in all, or, what Christ is made to belie­ vers (1676; reimpr., Swengel: Reiner, 1976), e John Brown, Christ: the way, the truth, and the life (1677; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1995) contêm sermões que exaltam Cristo em todas as suas relações com os crentes. A obra de John Owen, A declaration of the glorious mystery of the person of Christ (reimpresso no vol. 1 de The works of John Owen, edição de Banner of Thith Thist) é magnífica sobre a relação das naturezas de Cristo com sua pessoa. James Durham, Christ crucified, or the marrow of the gospel, evidently set forth in 72 sermons on the whole fifty-third chapter of Isaiah, 2 vols. (Glasgow: Alex Adam, 1792) continua inigualada como exposição bí­ blica da Paixão de Cristo.

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A síntese da síntese: Prega um só Cristo por Cristo para o louvor de Cristo.

“Cristo crucificado” precisa ser “o tema da pregação do evangelho”, afir­ mou Robert TVaill (1642-1716). “Duas coisas os pastores precisam fazer: [...] 1. Apresentá-lo ao povo; descrevê-lo em seu amor, excelência e capacidade de salvar. 2. Oferecê-lo ao povo gratuitamente, completamente, sem fazer restrição alguma a quais pecadores podem ser alcançados ou à condição pecaminosa deles”. Robert Bolton (1572-1631) concordava: “Jesus Cristo é oferecido com total liberalidade, sem exclusão de qualquer pessoa, a cada dia de descanso, a cada sermão”.” Repetidamente os pregadores puritanos apresentavam Cristo em sua capacidade e vontade de salvar e seu valor como o único redentor de pecadores perdidos. Faziam-no com coerência teológica, grandeza divina e paixão humana.

Os puritanos amavam o trabalho de pregar “Deus sabe que prefiro pregar sem receber nada a não pregar”, escreveu Phi­ lip Henry (1631-1696).” Os pastores puritanos também amavam o preparo da pregação. Passavam longas horas examinando o sentido do texto bíblico em seu contexto. Eram pregadores expositivos e didáticos. Quase sempre prega­ vam expositivamente sem se afastar do texto. E também amavam o ato de pregar, não por causa do ato em si, mas porque acreditavam que Deus usa a pregação para salvar aqueles que têm de crer. Como consequência, a maioria dos pregadores puritanos também falava com grande paixão, em particular quando pregava sobre Cristo. “Depois de Cristo tenho só uma alegria: pregar Cristo, meu Senhor”, escreveu Samuel Rutherford (1600-1661).” Uma vez que pastores puritanos acreditavam que a pregação é o principal meio de conversão e edificação de crentes na fé (ou, no dizer de Perkins, de “reunir a igreja e completar o número dos eleitos”) a perda de seu ganha-pão “William Perkins, The arte of prophecying, or. a treatise concerning the sacred and onely true manner and methode of preaching, in: The workes of that famous and worthy minister of Christ in the Universitie of Cambridge, Mr. William Perkins (London: John Legatt, 1613), 2:673. ^'Robert TYaill, "By what means may ministers best win souls?”, in: The works of the late Reverend Robert TYaill (Edinburgh: Banner of TVuth Trust, 1975), 1:246. “Robert Bolton, A treatise on comforting affliaed consciences (Ligonier: Soli Deo Gloria, 1991), p. 185. “Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 489. ^^Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 478. “ Lloyd-Jones, The Puritans, p. 381.

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OU seu preletorado — o que frequentemente temiam e por boas razões — era

uma catástrofe não apenas para eles pessoalmente, mas também para a igreja a que serviam. Quando Richard Rogers (1551-1618) ficou sabendo que havia sido suspenso de seu preletorado, foi tomado de uma “aflição intensa” e ficou apreensivo que “a lacuna de um ministério de pregação” provocasse a dispersão de seu povo, a perda de uma comunhão piedosa e o endurecimento dos não salvos em seus caminhos pecaminosos.’* Não admira, então, que muitos puritanos, como John Bunyan (1628-1688), afirmassem que preferiam ir para a cadeia a abandonar a pregação. Quando lhe disseram que, caso concordasse em parar de pregar, podería ser solto da cadeia, Bunyan respondeu que, caso fosse libertado, estaria pregando no dia seguinte. Para puritanos como Bunyan, a pregação era sua vida; era de suma impor­ tância para sua própria alma. Pregadores puritanos amavam, antes de tudo, pregar para si próprios; desdenhavam o profissionalismo frio. Os melhores sermões, afirmavam, são aqueles que o pregador prega primeiramente ao seu próprio coração. “Nenhum homem prega bem seu sermão para os outros, se primeiro não pregar para seu próprio coração”, afirmou John Owen.’^ “Eu pre­ gava 0 que sentia, o que sentia dolorosamente”, escreveu Bunyan. “Aliás, tenho sido como alguém enviado a eles desde os mortos. Eu próprio fui em cadeias para pregar a eles em cadeias e levava em minha consciência aquele fogo do qual eu os persuadia a se guardarem”.” Richard Baxter expressou-o da seguinte maneira: “Preguem primeiro a vocês mesmos, antes de pregarem às pessoas e com um zelo maior. Ó Senhor, salva tua igreja de pastores mun­ danos, que estudam e aprendem a prática do cristianismo e do ministério, mas nunca tiveram a natureza divina e cristã nem o princípio vital que devem fazer diferença entre eles e seus cultos, de um lado, e, de outro, os mortos”.” Baxter ensinava que às vezes isso significará pregar contra si mesmo — con­ tra os pecados do próprio coração, como hipocrisia, orgulho, mundanismo e preguiça. Vai requerer o despertamento da própria alma mediante preparação do sermão em uma atitude de meditação e oração.“ Jonathan Edwards (1703-1758) observou: “Saio para pregar com duas proposições em mente. Primeiro, cada pessoa deve entregar a vida a Cristo. Segundo, não importa se alguém der ou não a vida a ele, eu darei a minha”.*' ’•’Marshall M. Knappen, org., Tlvo Elizabethan Puritan diaries (Chicago: American Society of Church History, 1933), p. 100. "Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 481. “Citado em John Brown, Puritan preaching in England (New York: Scribner, 1900), p. 146. “Richard Baxter, “A sermon preached at the funeral of Mr. Henry Stubbs” (1678). in: The practical works of Richard Baxter (Ligonier: Soli Deo Gloria, 2000), 4:974. “Cf. Murray A. Capill, Preaching with spiritual vigour: including lessons from the life and practice of Richard Baxter (Fearn, Escócia: Christian Focus, 2003), p. 39-50. •■‘Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 486.

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Os puritanos amavam as pessoas Por fim, os puritanos amavam as pessoas a quem pregavam e buscavam in­ cansavelmente sua conversão e edificação. John Owen escreveu: “Um sermão não é pregado com um olho no texto do sermão, mas com os dois olhos nas pessoas e todo coração em Deus [...] Raramente os pastores têm a honra do êxito a menos que o tempo todo seu objetivo seja a conversão de pecadores”.“ Os pregadores puritanos entendiam que o pastor que, tendo grandes dons para a pregação, fracassasse no amor a seu povo, fracassaria terrivelmente em seu chamado. Eles sabiam que fracassar em amar é fracassar em tudo. Eles afirma­ vam que um pastor precisa se esforçar por pregar e por pastorear seu povo com tanto amor que espelhe o amor do Pai tal qual descrito na recepção que o pai deu ao filho pródigo e na reação que teve com o filho mais velho (Lc 15.11-32). Seguem dois exemplos. O primeiro é o conselho pastoral amoroso de Thomas Manton àqueles que estão presos à escravidão espiritual. Manton sugeriu quatro maneiras de ajudar os fracos na fé a clamar a Deus como Pai e alcançar liberdade maior em Cristo. (1) Devem “abrir mão quando não conseguem aplicar”. Se você não con­ segue dizer “Pai”, Manton afirmou, você precisa recorrer à sua condição de órfão, usando textos como Oseias 14.3: “Em ti o órfão encontra a misericórdia”. (2) Devem “reconhecer a Deus de maneira humilde”. Manton afirmou que, à semelhança do filho pródigo, podem achegar-se ao Pai, confessando seu desmerecimento, ou, à semelhança de Paulo, achegar-se como o principal dos pecadores. Podem achegar-se a Deus como seu Pai-Criador, se não conseguem achegar-se a ele como seu Pai-Salvador. (3) Devem “avidamente chamá-lo Pai”. Se alguém não consegue chamá-lo Pai com franqueza, que o faça como expressão de seu desejo, Manton afir­ mou. “Por meio da oração, entremos nessa relação e gemamos por ela, para que tenhamos uma percepção mais clara de que Deus é nosso Pai em Cristo.” (4) Essas pessoas fracas devem fazer uso de Cristo. “Se não consegues vir a Deus como teu Pai, vem a ele como o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (com base em Ef 3.14), o qual é alguém tão importante no céu, Manton afirmou. “Deixa Cristo levar-te à presença de Deus. Leva-o contigo em teus braços. Vai a Deus em nome de Cristo, pois ‘o que quer que pedirdes em meu nome vos será dado’”.“ “Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 487, 498. “Thomas Manton, A practical exposition of the Lord’s Prayer, in: T. Smith, org.. The complete works of Thomas Manton (Worthington: Maranatha, 1980), 1:36, 50-1; cf. Simon Ford, TheSpirit of bondage and adoption (London: T. Maxey para Sa. Gellibrand, 1655), p. 200; e Samuel Petto, The voice of the Spirit: or, an essay towards a discovery of the witnessings of the Spirit (London: Livewell Chapman, 1654), p. 56-62.

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Um segundo exemplo é que o pastor puritano pregava apaixonadamente aos não salvos entre o seu povo. Com frequência, afirmava algo assim: “Tenho uma boa notícia para ti. Tenho um Salvador para ti. Tenho o perdão dos pecados para te oferecer. Deus ama tanto os pecadores que está te fazendo a maravilhosa oferta de vida eterna, e Deus te implora agora que a recebas. Ele não deseja de modo algum a tua morte. Ele não quer que pereças, mas que vivas”. O pregador puritano se esforçava para ser como aquele que o enviara em amor, para ser totalmente fiel àquele Deus que estende as mãos para um povo contestador e desobediente e exclama por causa de um amor imensurável: “Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; por que morreríeis?” (Ez 33.11). Thomas Brooks assim resumiu a questão: “Os pastores precisam falar às pessoas de tal maneira como se vivessem no próprio coração delas, como se alguém houvesse compartilhado com eles todas as suas necessidades e todos os seus caminhos, todos os seus pecados e todas as suas dúvidas”.*^ Quando os pastores têm tal amor por seu povo e amam ver a graça de Deus operando neles, podem concordar com o dito de Thomas Manton: “A vida do ouvinte é 0 melhor elogio para o pregador”. Como 0 amor está fazendo tanta falta em muitos ministérios atualmente! Quando ele está em falta, as pessoas percebem essa falta, mesmo que nem sempre a consigam identificar. “Ama teu povo”, os puritanos aconselhavam. “Arrepende-te de tua falta de amor. Queixa-te de ti mesmo ao Senhor e pede ao Espírito Santo para encher-te de am or”. Baxter escreveu: “A trajetória toda de nosso ministério deve acontecer com um amor carinhoso por nosso povo [...] Quando as pessoas veem que tu as amas [com sinceridade], ouvirão qualquer coisa e suportarão qualquer coisa e te seguirão com muito mais facilidade”.“

Conclusão: a necessidade de reavívamento do amor puritano A pregação puritana é transformadora. Brían Hedges afirma que pregadores puritanos “erguem nosso olhar para cima, para que fitemos a grandeza e a for­ mosura de Deus. Abrem nossos olhos para a beleza e a amabilidade de Cristo. Importunam nossa consciência mostrando a sutileza e a pecaminosidade do pecado. Cativam e alegram a alma com o poder e a glória da graça. Penetram os recônditos da alma com profunda percepção bíblica, prática e psicológica. Sustentam e fortalecem a alma por meio do sofrimento, ao expor a doutrina da soberania de Deus. Volvem nosso olhar e concentram nossas afeições nas realidades espirituais”.*^ ^Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 494. “Citado em Blanchard. Complete gathered gold, p. 498. “ Baxter, “Funeral of Stubbs”, in: Works, 4:394. “Brian G. Hedges, “Puritan writers enrich the modem church". Banner o fih u h (Reino Unido), n. 529 (October 2007): 5-10.

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Os pregadores puritanos nos ajudam a moldar nossa vida segundo as Escrituras. Encorajam-nos a orar sem cessar e nos ensinam a meditar. Eles repreendem nosso orgulho e nos persuadem a depender do Espírito. Eles nos ajudam a viver com um olho voltado para a glória e o outro para a terra. Eles abrem nossos olhos para a beleza de entrar em aliança com Deus e uns com os outros. Eles nos mostram como praticar a piedade autêntica, como pregar experiencialmente, como manter nossa vida em um equilíbrio bíblico e, acima de tudo, como encontrar nosso tudo em Cristo, a fim de que como peregrinos possamos viver nele.“ Precisamos dos puritanos, como afirma Packer, para nos ensinar a inte­ grar nossa fé à vida diária, para melhorar a qualidade de nossa experiência religiosa, para nos levar à ação eficaz, para promover um discernimento mais profundo do valor humano, para lutar mais pelo ideal da renovação da igreja e, em especial, para nos levar a acolher de coração o duplo desejo que tinham de glorificar a Deus e magnificar a Cristo.“ Os puritanos também podem nos tornar melhores pregadores. À semelhan­ ça de John Piper, podemos aprender com Jonathan Edwards — bem como com quase todos os puritanos — a embeber os ouvintes com as Escrituras, a iluminar a mente deles, a despertar suas santas afeições, a empregar ana­ logias e figuras de linguagem, a usar ameaças e advertências, a implorar por uma resposta, a examinar as operações do coração, a render-nos ao Espírito Santo em oração, a ser quebrantado, a ganhar um coração amoroso e a ser ardorosos.^“ Devemos prestar atenção no chamado de Martyn Lloyd-Jones: “Cuidemos que não se perca entre nós aquela ‘pregação prática e simples’ que teve início com os puritanos”.^' Os pastores puritanos e seus sermões não eram perfeitos. Às vezes alguns deles adotavam um tom legalista. Alguns de seus sermões estão tão abarrotados de doutrina que se esquecem de qual texto está sendo exposto. Às vezes seus “usos” parecem intermináveis. Às vezes se concentram tanto no indivíduo que perdem de vista a natureza coletiva do corpo de Cristo. Mas indaguemos seriamente a nós mesmos: temos nós, como os puritanos, sede de glorificar o Deus triúno? Será que nós e os nossos sermões vibram com a verdade bíblica e 0 fogo bíblico? “Cf. Joel R. Beeke, “Learn from the Puritans”, in: Thomas K. Ascol, org., Dear Timothy: letters on pastoral ministry (Cape Coral: Founders, 2004), p. 219-70; para outras lições a serem aprendidas com os puritanos, veja Park, The sacred rhetoric of the Holy Spirit, p. 378-86; e Packer, Quest for godliness, p. 11-34. ‘’’Packer, Quest for godliness, p. 23-7; 175-6. ™John Piper, The supremacy of God in preaching (Grand Rapids; Baker, 1990), p. 81-105 [edição em português: A supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do ministério de púlpito, tradução de Augustus Nicodemus (São Paulo: Shedd, 2003)1. ^'Uoyd-Jones, The Puritans, p. 388.

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Desafiemo-nos uns aos outros. Quem de nós viverá piedosamente em Cristo Jesus como os puritanos? Quem irá além de apenas estudar seus escritos, analisar suas ideias, lembrar-se de suas realizações e censurar seus fracassos? Quem praticará o nível de obediência à Palavra de Deus a que almejavam? Quem amará a pregação como eles amaram? Não basta apenas ler os puritanos. Precisamos da piedade autêntica, bí­ blica e inteligente dos puritanos em nosso coração, em nossa vida, em nossos sermões e em nossas igrejas.

Capítulo 44 □□□□□□□□□□□□□□ □ □ □ □ □ □ an oa□□□□□□□□□□□□□□□□□□0 0 0 □ □ □ □ ao □□□□□□□□

A pregação de John Bunyan ao coração □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□.□an□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□

Ver um príncipe rogar a um mendigo que aceitasse uma esmola seria uma cená estranha; ver um rei rogar a um traidor que aceitasse clemência seria uma cena ainda mais estranha; mas ver Deus ivgar a um pecador que ouça Cristo dizer “Estou à porta e bato”, com um coração e um céu repletos de graça para outorgar àquele que abrir — essa é uma cena que assombra os olhos dos anjos.’ •

J ohn Bunyan

Atualmente estamos testemunhando a erosão da pregação bíblica em uma escala sem precedentes.^ Em sua biografia definitiva sobre o grande evange­ lista George Whitefield (1714-1770), Arnold Dallimore conclamou pregadores bíblicos a que sejam h om en s p od ero so s n as E scritu ras, co m a v id a d om in ad a p ela p ercep ção d a gran d eza, d a m a je sta d e e d a sa n tid ad e d e D eu s e c o m a m e n te e o c o r a ç ã o b rilh an d o co m as g ran d es v e rd a d e s d a s d o u trin as d a g ra ç a [ ...] h o m e n s q u e e ste ja m d isp o sto s a ser

'John Bunyan, Saved by grace, in: George Offor, org., The ivorks of John Bimyan (1854; reimpr.. Edinburgh: Banner of Taith TVust, 1991), 1:350. Este capítulo é uma versão ampliada de uma palestra dada em 22 de outubro de 2010 na Conferência Bolton, promovida por New England Re­ formed Fellowship, em Whitinsville, estado de Massachusetts. Estou em débito com John Harris, “Moving the heart: the preaching of John Bunyan”, in: Westminster Conference Paper 1988, Nbf by might nor by power (London: Westminster Conference, 1989), p. 32-51, por muitas de suas ideias e citações. Também agradeço a Kyle Borg por auxiliar na pesquisa. "T. David Gordon afirmou recentemente que, em sua opinião, menos de 30% de pastores ordenados ao ministério de igrejas reformadas são capazes de pregar sermões razoáveis (Why Johnny can’t preach [Phillipsburg: P&R, 2009], p. 11).

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tolos por amor a Cristo, que suportem a censura e a falsidade, que arduamente trabalhem e sofram e cujo desejo supremo não seja conquistar o reconhecimento terreno, mas conquistar a aprovação do Mestre quando se apresentarem perante seu imponente tribunal. Serão homens que pregam com o coração quebrantado e os olhos cheios de lágrimas.^ Onde estão os pastores que desceram do monte Sião, conquistados pela graça soberana? Quando olhamos para o cenário ao redor, parece que a igreja está tropeçando porque o púlpito vai esfriando. Contudo, há esperança até numa época assim. Enquanto, de um lado, as próprias Escrituras apresentam os pré-requisitos para o ministério do evangelho, de outro, um levantamento da história da pregação nos mostra que o Senhor nunca abandonou seu rebanho. Em cada geração ele tem levantado homens que atacaram as portas do inferno com a simplicidade da sabedoria do céu. Para nós, o passado se torna um farol de esperança em que encontramos alento para nossa própria época. Entre grandes pregadores puritanos, John Bunyan (1628-1688) está entre os mais destacados, pois tinha a capacidade dada por Deus de envolver com suas mensagens não apenas a mente, mas também o coração. Voltemos nossa atenção para Bunyan como pregador — especialmente como pregador ao coração.

Bunyan^ o pregador Certa vez, Carlos II perguntou a John Owen (1616-1683), “o príncipe dos pu­ ritanos”, por que ia ouvir a pregação de John Bunyan, o iletrado latoeiro de Bedford. Owen respondeu: “Majestade, se eu tivesse as habilidades do latoeiro para pregar, voluntariamente abandonaria todo meu estudo”.* Em 1655, a pedido de vários irmãos de sua igreja local, Bunyan, então com 27 anos de idade, começou a pregar em várias igrejas de Bedford enquanto ainda estava afligido profundamente com dúvidas sobre sua própria condição eterna. Acerca daquelas primeiras pregações ele escreve: “Os pavores da lei e a culpa de minhas transgressões eram um peso enorme em minha consciência. Eu pregava o que sentia, o que sentia dolorosamente, até mesmo aquilo que levava minha pobre alma a gemer e a tremer assustada [...] Eu próprio fui em ^Arnold Dallimore, George W hitefield: the life and times o f the great evangelist o f the 18th century revival (Edinburgh; Banner of Truth Trust, 2 0 0 9 ), 1:16. *Para um breve resumo da vida de Bunyan, veja Joel R. Beeke; Randall J. Pederson, Meet the Puritans: with a guide to m odem reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), p. 101-8 [edição em português: Paixão pela pureza: conheça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 2010)]. ’Andrew Thomson, “Life of dr. Owen”, in: The works o f John Owen (1850-1853; reimpr. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1965-1968), l:xcii.

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cadeias para pregar a eles em cadeias e levava em minha consciência aquele fogo do qual eu os persuadia a se guardarem”.* Centenas de pessoas vinham ouvir Bunyan, o que o deixava de fato sur­ preso. 01a Winslow escreve: “No início não acreditando que Deus falaria por meio dele ‘ao coração de qualquer pessoa’, ele logo concluiu que isso podia estar acontecendo, e seu êxito restaurou sua confiança”.' Anne Arnott afirma que Bunyan “era um pecador salvo pela graça, que pregava a outros pecadores com base em sua própria experiência sombria. ‘Tenho sido como alguém enviado a eles dentre os mortos’, ele afirmou. ‘Eu não havia pregado por muito tempo e logo alguns começaram a ser tocados pela Palavra e a ser imensamente afligidos na mente ao compreenderem a extensão de seu pecado e a necessidade que tinham de Jesus Cristo”’.® Num prazo de dois anos, Bunyan começou a pregar menos sobre o pe­ cado e muito mais sobre Cristo. Conforme Gordon Wakefield expressou, ele ressaltava Cristo e m se u s “o fício s”, isto é, e m to d a s a s d iferen tes a tiv id ad es q u e p ô d e fa z e r p ela a lm a h u m a n a e p elo m u n d o ; [d e sta ca v a ] C risto c o m o a a lte rn a tiv a sa lv a d o ra p ara a s falsas s e g u ra n ç a s d e g a n h a r e g a s ta r o u d as filosofias d o e g o ce n trism o ím pio. E , c o m o co n se q u ê n cia d isso , ‘ D eu s m e c o n d u z iu a alg u m a c o is a d o m istério da u n iã o c o m C risto ’ [B u n y an afirm o u ] e, e n tã o , v eio a p re g a r ta m b é m so b re a u n ião , q ue e ra o â m a g o da esp iritu alid ad e c a lv in is ta .’

A pregação de Bunyan já não trazia somente “uma palavra de admoestação”, mas também de edificação e consolo para os crentes. Isso fortaleceu muitís­ simo sua percepção de seu chamado íntimo, o que ajudou poderosamente a persuadi-lo de que estava proclamando a verdade. Enquanto pregava numa casa de fazenda em 1660, cinco anos depois de começar a proclamar a Palavra de Deus, Bunyan foi preso acusado de pregar sem autorização oficial do rei. Embora Bunyan certamente não fosse um rebelde nem político, parece que os proprietários de terras do condado de Bedfordshire consideravam que sua pregação “agitava perigosamente” e, assim, “dissemi­ nava a insatisfação que muitos sentiam com o regime e a igreja restaurados”.’® Sir Henry Chester, juiz de primeira instância, acusou Bunyan de forma ainda mais contundente: “É alguém pernicioso; no país não existe [outra] pessoa tão *Citado em Christopher Hill, A tinker and a poor m an: John Bunyan and his church, 1628­ 1688 (New York: Alfred A. Knopf, 1989), p. 103-4. ^Ola Winslow, John Bunyan (New York: MacMillan, 1961), p. 75. *Anne Amott, He shaR with giants fight (Eastbourne, Reino Unido: Kingsway, 1985), p. 67. ’Gordon Wakefield, Bunyan the Christian (London: Harper Collins, 1992), p. 32. ‘’Hill, A tinker and a poor m an, p. 106-7.

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perniciosa como ele”." Assim, Bunyan foi lançado na prisão, onde escreveu prolificamente e fabricou cadarços por doze anos e meio (1660-1672). Antes de ser preso, Bunyan havia se casado com uma jovem piedosa de nome Elizabeth. Ela suplicou repetidas vezes pela libertação do marido, afir­ mando que tinha de cuidar de quatro filhos pequenos (inclusive uma filha cega) e tinha tido um aborto havia pouco tempo. O juiz-presidente disse-lhe que 0 fizesse parar de pregar. Ela respondeu: “Meu senhor, ele não ousa aban­ donar a pregação enquanto puder falar”.B u n y a n se prontificou a entregar às autoridades judiciárias as notas de todos os seus sermões para provar que não estava de maneira alguma pregando a sedição. Mas isso não deu em nada. As­ sim, Bunyan permaneceu na prisão por violar a lei que exigia que pelo menos uma vez por mês os adultos participassem dos cultos da Igreja da Inglaterra e proibia reuniões religiosas (conventículos) não autorizados por aquela igreja.*’ Durante todo seu tempo de prisão, Bunyan conservou um amor diligente pela pregação. Ele escreveu: “Quando, pela boa mão do meu Deus, durante cinco ou seis anos ininterruptos preguei sem restrições o bendito evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo [...] o Diabo, aquele antigo inimigo da salvação do homem, se aproveitou para incitar os corações de seus vassalos [...] de modo que no fim um juiz expediu ordem para me procurarem e fui levado e confinado na prisão Quando indagado sobre o que faria se fosse solto da prisão, respondeu: “Se eu saísse hoje da prisão, voltaria a pregar o evangelho amanhã com a ajuda de Deus”.*’ Em outra oportunidade afirmou: “Nem a culpa nem o inferno conseguiriam me tirar do meu trabalho”.*®Ele chegou o ponto de afirmar que “não podia estar satisfeito a menos que fosse encontrado no exertíício de [seu] dom”.*^ Em toda sua adversidade, a Palavra era como fogo ardendo no coração de Bunyan. De fato, ele previa que ia morrer por aquela Palavra. Mais tarde escreveu: “Foi por causa da Palavra e do caminho de Deus que eu estava nessa condição [e] eu estava decidido a não recuar dela nem um fio de cabelo [...] Era meu dever estar de acordo com sua Palavra, quer ele algum dia dirigisse ou não o olhar para mim, quer viesse ou não a me salvar no final. Por esse motivo, eu pensava, até mesmo de olhos vendados saltarei da escada para a "Hill, A tinker and a poor m an, p. 108. "John Bunyan, A relation o f the im prisonment o f Mr. John Banyan, in: George Offer, org., The umrks o f John Bunyan (1854; reitnpr., Edinburgh: Banner of Truth TVust, 1991), 1:61. "Bunyan, Relation o f Banyan's im prisonment, in: W jrks, 1:57, 59. "Bunyan, Relation o f Banyan’s imprisonment, in: VJbrks, 1:50. "Bunyan, Relation o f Banyan’s imprisonment, in: Works, 1:57. "John Bunyan, Grace abounding, in: George Offer, org.. The nmrks o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Trust, 1991), 1:42 [edição em português: Gmça abundante ao principal dos pecadores (São José dos Campos: Fiel, 2012)]. "Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:41.

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eternidade, quer afunde, quer nade, quer venha o céu, quer venha o inferno. Senhor Jesus, se desejas me segurar, faze-o. Caso contrário, eu me arriscarei pelo teu nome”.’® Em 1661, e de 1668 a 1672, alguns carcereiros permitiam que Bunyan às vezes saísse da prisão para pregar. George Offer assinalou: “Diz-se que muitas das igrejas batistas de Bedfordshire devem sua origem às pregações de Bunyan à meia-noite”.'® Mas os anos de prisão foram tempos de intensas tribulações. Bunyan experimentou aquilo que mais tarde Cristão e Fiel, personagens de seu livro O p ereg rin o , sofreriam nas mãos do gigante Desespero, que lança peregrinos “num calabouço bem escuro, imundo e malcheiroso”. Bunya i sentia especialmente a dor da distância da esposa e dos filhos, em especial co Mary, “minha pobre filha cega”, descrevendo essa distância como “arrancar a carne de meus ossos”.“ A popularidade de Bunyan como pregador não se desfez em seus últimos anos. Com frequência, visitava Londres, “onde”, segundo Robert Southey, “sua reputação era tão grande que, caso se anunciasse sua vinda com um dia de antecedência, ‘o salão em Southwark, onde ele geralmente pregava, não comportava metade das pessoas que acorriam. Hrês mil pessoas chegaram a se reunir ali, e não menos de mil e duzentas durante a semana e às sete horas de escuras manhãs de inverno”.^' Bunyan pregava ao coração dos homens, bem como à mente deles. Não há dúvida de que isso era possível porque ele conhecia por experiência própria tentações, pecados e temores e havia, de uma forma notável, ex­ perimentado a graça de Deus em Jesus Cristo. Em sua introdução ao livro de Bunyan S o m e g o s p e l tru th s o p e n e d [Algumas verdades do evangelho desveladas] John Burton escreveu sobre o autor; “Por meio da graça, ele ob­ teve esses três títulos celestes, a saber, união com Cristo, unção do Espírito e experiência das tentações de Satanás, que preparam melhor um homem para aquela obra poderosa de pregar o evangelho do que todo o conhecimento e títulos que se pode obter na universidade”.“ Bunyan tinha um grande respeito pelo ofício de pregador. Quando, em O p ereg rin o . Cristão viaja para a casa de Intérprete, é mostrado a ele um quadro com a pintura de um pregador, “uma pessoa bastante séria”, cujos olhos estão '*Citado em Hill, A tinker and a poor m an, p. 109. '’George Offor, “Memoir of John Bunyan”, in: George Offor, org. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of TTuth TVust, 1991), l:llx. “Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:48. ^'Robert Southey, “A life of John Bunyan”, in: John Bunyan, pilgrim ’s progress (London: John Murray and John Major, 1830), p. Ixxiii. “John Bunyan, Some Gospel truths opened, in: George Offor, org.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of TVuth IVust, 1991), 2:141.

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“erguidos para o céu, com os melhores livros na mão”. Bunyan prossegue: “A lei da verdade estava escrita em seus lábios, o mundo estava atrás de suas costas, e havia uma coroa de ouro em sua cabeça. Ele estava de pé como se implorando aos homens”. Intérprete diz a Cristão o que esse quadro representa: “É para te mostrar que o trabalho dele é conhecer e revelar coisas sombrias aos pecadores [...] para te mostrar que, ao fazer pouco caso das coisas presentes e desprezá-las por causa do amor que ele tem pelo serviço de seu Mestre, está seguro de que receberá a recompensa da glória no mundo vindouro’?^ Para Bunyan, esse era o ideal daquilo que o pastor deve ser. Para Bunyan, o pregador é o orientador espiritual autorizado por Deus. Gordon Wakefield escreve: U san d o m e tá fo ras d o N ov o T e s ta m e n to , In térp rete exp lica q u e e sse h o m e m g era filhos (e sp iritu a is), e n tra e m trab alh o d e p a rto p a ra d á-lo s à lu z e e n tã o é su a a m a . A p o s tu ra d e In térp rete, seu co n h e c im e n to b íb lico e a v erd ad e e s c rita em seu s láb io s d e ix a m cla ro “q u e seu trab alh o é c o n h e c e r e re v e la r co is a s so m b rias a o s p e c a d o r e s ”. E le a b re o s seg red o s d iv in o s d e m isericó rd ia e ju ízo . E p recisa fazê-lo re n u n cia n d o a e ste m u n d o e cre n d o q u e su a re c o m p e n sa e stá n o m u n d o v in d o u ro , p ois aqui p o d e m u ito b e m s e r ca lu n ia d o , rid icu larizad o e p erseg u id o , co m o a c o n te c e u c o m B u n y an e m u ito s o u tro s d u ran te a d in astia S tu a rt.^

O amor de Bunyan pela pregação não se limitava às palavras; ele também tinha um zelo intenso por sua igreja. Ele amava pregar e amava as almas do povo. Certa vez ele afirmou: “Na minha pregação, tenho de fato sentido dores e é como se estivesse em trabalho de parto para gerar filhos para Deus. E não podia me dar por satisfeito a menos que aparecessem frutos de meu trabalho”.“ Em outra passagem, ele escreveu: “Com relação àqueles que foram desper­ tados por meu ministério e vieram a abandonar a fé, como às vezes muitos fizeram, posso dizer que tenho sentido de verdade a perda deles mais do que se um de meus próprios filhos, gerados do meu corpo, tivessem ido para o túmulo”.“ Bunyan também ficava atônito com a grandeza da alma: “A alma e a sua salvação são coisas tão grandes e tão maravilhosas. Nada é nem deve ser assunto de tanta importância quanto a alma de cada um de vós. Casa e terras, profissões e renome, posição social e sucesso — o que são essas coisas comparadas à salvação? “John Bunyan, The pilgrim ’s progress, in: George Offor, org.. The works o f John Banyan (1854; reimpr., Edinburgh: BannerofTruthH-ust, 1991), 3:98 [edição emportuguês: Operegjrino (São Paulo: Mundo Cristão, 2006)], “Wakefield, Bunyan the Christian, p. 34. “Bunyan, Grace abounding, in: Wbrks, 1:43. “Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:43. “John Bunyan, The greatness o f the soul and unspeakable o f the loss thereof, in: George Offor, org.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh; Baimer of Truth Trust, 1991), 1:105.

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Se jamais houve um homem chamado para o ministério do evangelho, esse homem foi Bunyan. O Espírito Santo lhe concedeu bênçãos divinas, e ele não conseguia, sem violar seriamente a consciência, deixar de lado aqueles dons. Mesmo quando estava na prisão, passava a maior parte do tempo reformulando os sermões que havia pregado para serem publicados. Christopher Hill conclui: “Parece que todos os seus escritos publicados antes de G râce a b o u n d in g [Graça em abundância] se basearam em sermões, e é provável que o mesmo também tenha acontecido com a maioria dos que publicou mais tarde”. Hill levanta a possibilidade de que os sermões falados de Bunyan fossem bem mais pessoais e expressassem muito mais suas emoções do que suas obras publicadas. Ele acrescenta: “Também podemos supor que os coloquialismos, os detalhes cor­ riqueiros que sobrevivem na nobreza da palavra impressa, teriam ocupado uma parte significativa de suas palavras faladas”.^®

Compreensão do coração 0 que tornou Bunyan um pregador tão poderoso não foi a habilidade oratória nem a paixão pela pregação. Não foram títulos acadêmicos de Cambridge nem de qualquer outra universidade. Bunyan tinha uma fé viva e experiencial, o que 0 levava a estar familiarizado com toda a gama de problemas e afeições religiosas. Ele aprendeu coisas que não se aprendem em nenhum livro escolar, mas somente como estudante da fé viva. É isso que tornou Bunyan uma arma tão poderosa na mão de Deus para derrubar fortalezas. Ele próprio admitiu que pregava o que sentia." Embora se possa dizer muito mais sobre a traje­ tória espiritual de Bunyan, nos limitaremos a umas poucas áreas e sugerimos a leitura complementar acerca dele em sua autobiografia G râce a b o u n d in g to the c h ie fo f sin n ers.

Pavor Avaliando sua própria condição espiritual, Bunyan comentou que mesmo na infância sua pecaminosidade teve “bem poucos rivais”.’®Bunyan lembra que com nove anos de idade sentiu-se “muito aflito, enquanto dormia, com medo de demônios e espíritos maus”.” Mas, apesar desses abalos exteriores, ele continuava se deliciando no pecado e em companhias ímpias. Na condição de jovem casado, Bunyan ficou convicto de seus pecados, em particular de como havia tratado com tanta leviandade o sábado do Senhor. No entanto, essa con­ vicção não resultou em uma mudança verdadeira; pelo contrário, endureceu “ Hill, A tinker and a poor m an, p. 104-5. “ Bunyan, Grace abounding, in; Works, 1:42. “Bunyan, Grace abounding, in: Wor/cs, 1:6. ’’Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:6.

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seu coração para a graça. Ele afirmou: “Eu estava convencido de que jamais conseguiria qualquer outro alívio senão aquele que eu obtinha no pecado A censura que recebeu de uma mulher ímpia e o encontro com uma pes­ soa que professava e vivia uma fé sincera levaram Bunyan a uma mudança exterior. Pelo critério de alguns homens, ele se tornou uma nova pessoa, pois pôs de lado alguns dos pecados que o atormentavam. Entretanto, ele afirmou que mesmo nisso “não conheceu nem Cristo, nem a graça, nem a fé, nem a esperança”.” Apesar dos elogios, Bunyan sabia de sua hipocrisia e estava to­ mado de medo, em particular de morrer. Em sua autobiografia, ele narra uma situação quando quis ouvir um sino de igreja tocar. Mas, enquanto estava de pé debaixo do campanário, começou a ter medo de que o sino caísse e o esmagasse; diante disso se colocou debaixo da viga principal. Então começou a se preocupar, achando que a viga principal pudesse cair; com isso foi para a porta do campanário. Então se convenceu de que todo o campanário podia cair sobre ele e, assim, saiu às pressas para fora do prédio. Bunyan conta que certo dia antes de sua conversão ele ouviu em Bedford quatro mulheres conversando sobre as tentações de Satanás e a esperança do novo nascimento. Ouvindo disfarçadamente essa conversa, Bunyan experimen­ tou uma profunda aflição de alma: “Vi que em todos os meus pensamentos sobre religião e salvação o novo nascimento nunca entrou em minha mente, nem eu conhecia o consolo da Palavra e da promessa nem o engano e a trai­ ção de meu próprio e perverso coração”.” Com frequência, Bunyan visitava Bedford para ouvir pessoas terem comunhão espiritual umas com as outras, a qual resultava numa “tranquilidade e brandura de coração, o que me fazia ficar tomado de convicção daquilo que eles afirmavam com base nas Escrituras”.” Contudo, ainda assim os pavores da lei e a culpa de suas transgressões eram um profundo peso na consciência de Bunyan.^*

Dúvida No meio de muitas tentações, Bunyan experimentou a mão protetora do Senhor. Pouco a pouco a Bíblia se tornou preciosa para ele, mas, quanto mais lia, mais reconhecia sua ignorância. Em sua situação incrédula, Bunyan percebeu que tinha medo de ver sua falta de fé. No entanto, não conseguiu se contentar até chegar ao conhecimento seguro da fé. “Isso estava sempre passando pela minha mente”, ele afirmou.*^ Enquanto se debatia, Bunyan estava dominado “ Bunyan, Grace abounding, in: “Bunyan, Grace aboim din^, in: “Bunyan, Grace abounding, in: “Bunyan, Grace abounding, in: “Bunyan, Grace abounding, in: “Bunyan. Grace abounding, in:

Mferfcs, 1:8-9. 1:9. 1:10. 1:11. 1:42. 1:12.

Works, Works, Works, Works, Works,

A pregação de John Bunyan ao coração

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por preocupações sobre sua condição eterna: "Minha alma começou a ser assaltada por novas dúvidas sobre minha felicidade futura, em especial por preocupações sobre se eu era eleito. Mas como eu poderia ser, se o dia da graça já havia ficado para trás?”.^® Embora a graça pairasse sobre sua alma, a dúvida atacava Bunyan. “Eu cla­ mava aflito a Deus para que fosse misericordioso comigo; contudo, depois disso eu era de novo atormentado por idéias como essas. Eu achava que Deus estava zombando de minhas orações, dizendo [...] ‘Esse pobre coitado fica ansiando por mim como se eu não tivesse nada para fazer com minha mise­ ricórdia senão derramá-la sobre alguém como ele’”, Bunyan escreveu. ‘“Oh! pobre tolo! Como estás enganado!’”®®

Graça Apesar de momentos de pavor e dúvida, pouco a pouco Bunyan experimentou a graça de Deus. Ele escreveu; “O Senhor se revelou a mim mais plena e gracio­ samente, e, aliás, me libertou não apenas daquela culpa que pesava em minha consciência por causa dessas coisas, mas também da própria imundície delas. Pois a tentação foi tirada, e eu voltei à razão”.“ A partir de então, a perversidade e a blasfêmia de seu coração impeliram Bunyan a correr apressadamente para o sangue de Cristo, que fez com que ele e Deus se tomassem amigos. Em 1651, um grupo de mulheres tementes a Deus apresentou Bunyan a John Gifford, o pastor delas em Bedford. Bunyan foi particularmente ajudado por um sermão que Gifford pregou sobre Cântico dos Cânticos 4.1: “Como és linda, amada minha! Ah, como és linda!”. Bunyan também foi abençoado pela leitura do comentário de Lutero sobre Gálatas, em que encontrou sua própria experiência “tratada em grande parte e com profundidade como se o livro [de Lutero] tivesse sido escrito com base em meu próprio coração Certo dia, en­ quanto caminhava no campo, a justiça de Cristo foi revelada à alma de Bunyan e saiu vitoriosa. Bunyan escreveu acerca daquela experiência inesquecível; C e rto d ia , q u a n d o e u e s ta v a c a m in h a n d o n o c a m p o e ta m b é m co m alg u m as p o n ta d a s n a co n sciê n cia , tem en d o q u e n em tud o ain d a e sta v a ce rto , de rep en te esta s e n te n ça d e sp e n co u so b re m in h a a lm a : " lü a ju stiça e stá n o c é u ’. E , d e im ed iato , p a re ce q u e vi c o m o s o lh o s d a m in h a a lm a J e s u s C risto à d estra de D eu s; digo q u e o vi ali c o m o m in h a ju s tiç a , d e m o d o q u e o n d e q u e r q u e e u e stiv e sse o u o q u e q u e r q u e e u e stiv e sse fa z e n d o . D eu s n ã o p o d eria d iz e r q u e d esejav a m in ha ju stiça , p ois ela e s ta v a b em d ian te d ele. A lém d isso , ta m b é m vi q u e n ã o e ra a

^*Bunyan, Grace abounding, in: *’Bunyan, Grcux abounding, in: "•“Bunyan, Grace abounding, in: ^'Bunyan, Grace abounding, in:

Works, Works, Works, Works,

1 13. 1 19. 1 19. 1 22.

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m in h a b o a c o n d iç ã o do c o ra ç ã o q u e to rn a v a m in h a ju stiça m e lh o r n e m a m in h a m á co n d içã o d o c o ra ç ã o q u e a to rn a v a p io r, p ois m in h a ju stiça e ra o p ró p rio Je s u s C risto, 0 m e s m o o n te m , h o je e p a ra sem p re. N aqu ele in stan te, m e u s g rilh õ es se so lta ra m d e fato d e m in h as p e rn a s; fui libertado d e m in h as afliçõ es e ca d e ia s; m in h as te n ta çõ e s ta m b é m fu giram . A ssim , a partir d aq u ela é p o c a , aq u elas tem ív eis E scritu ras d e D eus p a ra ra m d e m e p erturbar. A gora fui p a ra c a s a re g o z ija n d o , p o is a g ra ç a e o a m o r d e D eu s ( ...] . Vivi d u ra n te alg u m te m p o n u m a p a z m u ito ag rad áv el c o m D eu s p o r m eio d e C risto. A h , p a re cia -m e q u e tu d o e ra C risto ! U id o e ra C risto ! N ad a h a v ia sen ão C risto d ian te de m eu s o lh o s. A g o ra eu n ã o e sta v a o b s e rv a n d o se p a ra d a m e n te essé e o u tro s b e n e fício s d e C risto , c o m o se u sa n g u e , se p u lta m e n to e re s s u rre iç ã o , m a s co n sid e ra n d o C risto em su a to ta lid a d e ! [ ...] P ara m im , foi g lo rio so v e r su a e x a lta ç ã o e o v a lo r e a su p erio rid ad e d e to d o s os seu s b en efício s e q u e d evid o a isso : a g o ra eu p od ia d eixar de o lh a r p ara m im p ara o lh a r p a ra ele e d ev ia p e n s a r q u e to d a s a q u e la s g ra ç a s de D eu s q u e ag o ra e ram n o v a s e m m im e ra m a p e n a s c o m o aq u elas m o e d a s v elh as d e u m c e n ta v o q u e h o m e n s rico s c a rre g a m e m su a s c a rte ira s , q u an d o se u o u ro e stá n o b aú e m su a ca sa ! A h , vi q u e m e u o u ro e s ta v a em m e u b a ú em c a s a ! E m C risto m e u S en h o r e S alvad or! A g o ra C risto e ra tu d o .“^

Bunyan conheceu o pecado, o convencimento do pecado, a tentação, a dúvida, 0 temor, Satanás, o perdão e a graça. Ele escreveu: “Quando Deus mostra a alguém o pecado que essa pessoa cometeu, o inferno que ela mereceu, 0 céu que ela perdeu e, ainda assim, que é possível ter Cristo, graça e perdão, isso a tornará sóbria, isso a comoverá, isso quebrantará seu coração [...] e essa é a pessoa cujo coração, cuja vida, cuja conversa e tudo o mais estarão empenhados nas questões da salvação eterna de sua alma preciosa e imortal”.^^ A experiência de Bunyan era o que dava vida à sua pregação. Suas palavras não eram meros exercícios de retórica, mas palavras de alguém que havia visto a extrema pecaminosidade do pecado e a gloriosa verdade do evangelho da graça. Bunyan pregava como um homem tocado por Deus.

Pregação ao coração O conhecimento experiencial levou Bunyan a apontar a flecha de sua pregação para o coração das pessoas, visto que é pelo coração que alguém “entende, deseja, sente, raciocina e julga”.“” Em sua pregação, Bunyan procurava de ’^Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:36. *^John Bunyan, The acceptable sacrifice, in: George Offor, org.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of Tiuth Urust, 1991), 1:719. “John Bunyan, The greatness o f the soul, in: George Offor, org.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of TVuth TVust, 1991), 1:108.

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propósito entregar uma “palavra despertadora” ao entendimento, à vontade, às afeições, à razão e aos juízos.'*^ 01a Winslow escreve; “Bunyan tinha o dom de embutir coerção emocional em suas palavras e também sabia como deixar claro aos ouvintes a urgência da hora”.''* Preparando-se basicamente com uma Bíblia e uma concordância, arrai­ gando profundamente seus sermões nas Escrituras, Bunyan pregava aquilo que sentia e aquilo que ansiava por seus ouvintes. Ele escreveu: “Ah, se os que me ouviram hoje só pudessem ver como eu vejo aquilo que o pecado, a morte, o inferno e a maldição divina são, e também o que a graça, o amor e a misericórdia de Deus são por meio de Jesus Cristo!”.'"' Para entender melhor como ele pregava ao coração, examinemos três detalhes da pregação de Bun­ yan: ela era participativa, suplicante e exaltadora de Cristo.

Pregação participativa Bunyan acreditava que aqueles que ouviam a pregação deveriam ser não apenas espectadores mas também participantes. Com esse objetivo, em geral ele se dirigia de maneira bem pessoal a seus ouvintes, comumente usando a segun­ da pessoa. Era direto, com frequência designando pelo nome vários casos de consciência. Também dava ilustrações e era simples, de sorte que até mesmo pessoas comuns o ouviam com prazer.“*®Wakefield afirma: “Ele era informal e usava linguagem coloquial ao confrontar os ouvintes com as questões de vida e morte, céu e inferno”, com frequência empregando paráfrases santificadas e imaginativas das Escrituras. Por exemplo, quando pregou sobre João 6.37, que afirma que aquele que o Pai dá a Cristo “virá a ele, Bunyan transforma a palavra ‘virá’ em um personagem com esse nome. Ele responde às objeções daqueles que tremem por causa de dúvidas, garantindo-lhes que não precisam se preocupar, pois ‘Virá respondeu tudo isso [...] Virá pode ressuscitá-los dessa morte’ Assim e de muitas outras maneiras Bunyan atraía os ouvintes para dentro do sermão, de modo que se tornavam participantes. São abundantes os exemplos da forma direta de Bunyan pregar. Em seu The Jérusalem sinnersaved [O pecador de Jerusalém salvo], Bunyan descreve a pregação de Pedro: ^'Embora apenas um dos texios das obras de Bunyan tenha o título de sermão, boa parte de seus escritos são sermões modificados ou então textos que espelhavam a maneira que ele pregava. Como consequência, tomei a liberdade de apanhar muitos de seus escritos e aplicá-los da maneira que ele pregaria. ‘‘Winslow, John Bunyan, p. 75. ‘^Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:42. ‘“John Brown, Puritan preaching in England (London: Hodder and Stoughton, 1900), p. 149. “ Wakefield, Bunyan the Christian, p. 38-9.

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A rrep en d ei-vo s, e c a d a u m d e v ó s se ja b a tiz a d o e m n o m e d e Je s u s C risto , p a ra o p erdão de v o sso s p e c a d o s ; e re ce b e re is o d o m d o E sp írito S an to .

Objetante: “M as

eu fui u m d aq u eles q u e tra m a ra m tirar a v id a dele. S erá q u e p o sso

ser salvo p o r e le ?’’.

Pedro:

C ad a u m d e v ó s.

Objetante:

“M as eu füi u m d aq u eles q u e d eu falso te ste m u n h o c o n tra ele. S erá

que existe g ra ç a p a ra m im ?’’.

Pedro:

P ara ca d a u m d e v ó s.

Objetante:

“M as eu fui u m d aq u eles q u e g ritou ‘C ru cifica-o , cru c ific a -o ’ e d esejo u

que o assa ssin o B a rra b á s v iv e sse e m v e z d ele. O q u e a c h a s q u e se rá d e m im ?’’.

Pedro:

D evo p re g a r arre p e n d im e n to e re m issã o de p e c a d o s a c a d a u m de v ó s.

Objetante.

“M as eu fui u m d aq u eles q u e cu sp iu em seu ro sto e n q u a n to e sta v a n a

p resen ça d e se u s a c u s a d o re s . T am b ém fui u m d o s q u e z o m b a ra m d ele, q u an d o co m gran de to rm e n to s a n g ra v a p e n d u ra d o n o m a d e iro . E xiste lu g ar p a ra m im ?’’.

Pedro:

Para c a d a u m d e v ó s.

Objetante:

“M as eu fui u m d aq u eles q u e, c o m fa n a tism o , d isse : ‘D ai-lh e fel e

vinagre p a ra b e b e r’. P o r q u e n ã o d ev o e sp e ra r o m e s m o q u an d o o to rm e n to e a cu lp a v ierem so b re m im ?’’.

Pedro:

A rre p e n d e i-v o s d e ssa s v o s s a s p e rv e rsid a d e s, e aq u i e stá a re m issã o de

p ecad o s p a ra c a d a u m d e v ó s.

Objetante:

“M as e u o x in g u e i, e u o o fen d i, e u o o d iei, eu m e alegrei q u an d o vi

outros z o m b a re m d ele. P o d e e x istir e s p e ra n ç a p a ra m im ?’’.

Pedro:

Há p a ra c a d a u m d e v ó s. “A rrep en d ei-v o s, e c a d a u m d e v ó s se ja b atizad o

em n om e de Je s u s C risto , p a ra o p erd ão de v o s s o s p e c a d o s ; e rece b e re is o d om do Espírito S a n to ’’.®®

Os escritos de Bunyan dão a entender que ele pregava apresentando diante de seus ouvintes provas contundentes tanto sobre o pecado quanto sobre a graça e, depois disso, conclamando-os a dar um veredito. Não é que Bunyan visse a pregação da Palavra como algo subserviente à nossa deliberação; pelo contrário, procurava desarmar seus ouvintes, mostrar-lhes com clareza seu próprio pecado e miséria, e depois disso revelar as glórias da graça. Com isso, Bunyan estabelecia uma ligação íntima com os ouvintes. Ele escreveu: “Agradeço a Deus por me ter dado certa dose de compaixão pela alma deles. “John Bunyan, The Jerusalem sinner saved, in: George Offer, org., The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of TTuth Trust, 19911,1:71-2.

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0 que também me levou a labutar com grande diligência e seriedade para descobrir uma palavra que pudesse prender e despertar a consciência, caso Deus a abençoasse”.®* Bunyan argumentava com paixão com seus ouvintes para que respondes­ sem positivamente à verdade do pecado e do juízo, bem como à do perdão e da graça. Ele afirmou: “Desperta, pobre pecador. A eternidade está vindo. Deus e seu Filho estão ambos vindo para julgar o mundo. Desperta, ainda estás dormindo, pobre pecador? Deixa-me mais uma vez tocar a trom beta em teu ouvido! Em breve os céus arderão em chamas, a terra e suas obras serão queimadas e, então, os perversos irão para a perdição: ouves isto, ó pecador?”.“ Bunyan não se satisfazia em apenas afirmar a verdade; ele “tocava a trom­ beta” no ouvido de seus ouvintes, compelindo-os a responder. Ele pregava: “Pecador, ouve o alerta, Pergunta de novo ao teu coração, dizendo: ‘Já vim a Jesus Cristo?’. Pois o céu e o inferno dependem da tua resposta a esta única pergunta — ‘Já vim ou não?’. Se podes dizer ‘Venho’ e se Deus aprovar isso que dizes, então tu és muito feliz, mas muito mesmo! Mas, se não vens, o que te pode fazer feliz? É isso mesmo. Por que pode ser feliz um homem que, por não vir a Jesus Cristo para receber vida, está destinado ao inferno?”.“ Bunyan incentivava as pessoas a examinar o coração. Ele não deixava um ouvinte se satisfazer em apenas ouvir palavras, mas o instigava a buscar a verdade no coração. Por isso, advertia: “Ah, meus amigos, considerai que agora há esperança de misericórdia, mas chegará o tempo quando não haverá. Agora Cristo vos oferece misericórdia, mas chegará o dia quando não oferece­ rá. Agora há servos dele que vos imploram para que aceiteis sua graça, mas, se perderdes a oportunidade que foi colocada em vossas mãos, vós mesmos podereis implorar, mas nenhuma misericórdia vos será concedida”.“ Em todas as suas pregações, Bunyan instava sua congregação a reagir à palavra pregada. A pregação não era uma preleção dada em sala de aula. Pelo contrário, levava o pecador a engajar as faculdades do coração e forçava uma resposta. Havia um senso de urgência em sua pregação. Para Bunyan não bastava apenas declarar a verdade e esperar que ela produzisse uma resposta no futuro. Assim como o ferreiro sabe que precisa bater o ferro enquanto está quente, da mesma maneira Bunyan exigia uma resposta imediata. Ele não conseguia se contentar até que cada pessoa a quem pregava tivesse respondido àquela mensagem; ele não podia se dar ao luxo de ver os membros de sua '‘Bunyan, Grace abounding, in: Worfes, 1:41. “ John Bunyan, The strait gate, in: George Offor, oig.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinbuigh: Banner of U u th Thist, 1991), 1:386. “ John Bunyan, Come and welcome to Jesus Christ, in: George Offor, org.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Trust, 1991), 1:296. “ John Bunyan, A few sighs from hell, in: Works, 3:702.

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igreja ir para casa, protelando o que devia ser feito. Sua ordem era: “H oje, se ouvirdes a sua voz, nâo endureçais vosso coração” (Hb 4.7).

Pregação suplicante Cônscio do poder da tentação de Satanás, Bunyan escreveu: “Ah, a fúria e o rugido desse leão e o ódio que ele manifesta contra o Senhor Jesus e contra aqueles que são comprados com seu sangue! Em certo sentido, os pastores têm algo a aprender com os ardis de Satanás. O diabo vive para atormentar a alma, para induzir o coração dos homens a abandonarem Cristo e para seduzi -los a abraçarem o pecado e a tentação. A melhor maneira de reagir aos apelos de Satanás é os pregadores "atirarem [suas flechas] ainda mais longe usando 0 próprio arco de Satanás”.^* Ele não se limitava a colocar a vida e a morte diante dos olhos das pessoas, mas de todas as maneiras possíveis suplicava para que abandonassem o pecado e abraçassem a vida em Cristo. Em seus apelos, Bunyan pintava cenas terríveis de condenação eterna. Ele afirmava: “Na minha pregação da Palavra, eu prestava atenção especial em uma coisa, a saber, que o Senhor me dirigia a iniciar por onde sua Palavra inicia com os pecadores, isto é, condenéu' toda carne e revelar e declarar que, pela lei, devido ao pecado, a maldição de Deus alcança e aprisiona todos os homens quando vêm ao mundo”.®^ Além disso: “A alma que se perder jamais será encontrada, jamais será recuperada, jamais será redimida. Seu banimento de Deus é eterno; o fogo em que queima e com o qual terá de ser atormentada é um fogo eterno, ardendo etemamente. Isso é amedrontador”. Bunyan pros­ seguiu: “Contai agora as estrelas, contai agora as gotas d’àgua, contai agora as folhas de grama espalhadas sobre a face de toda a terra se conseguirdes. E ainda assim conseguireis fazer isso mais rapidamente do que contar os milhares de milhões de milhares de anos que uma alma condenada estará no inferno ”.*® Com frequência, enquanto suplicava ao pecador para que se voltasse para Cristo e vivesse, Bunyan personificava Deus, Cristo e o pecador a caminho do inferno. Isso se aplica em particular ao seu sermão em que compara alguém que afirma ser cristão, mas, como uma figueira estéril, não produz fruto algum. Observe-se como Bunyan suplica: M orte, v em e fere p a ra m im e s s a fig u eira. E ju n to c o m o S e n h o r ela c h a c o a lh a esse p ecador e o a tira n u m leito d e en ferm id ad e. E o S e n h o r lh e d iz: L e v a -o , m o rte ;

“Bunyan, The Jerusalem sinner saved, in: Works, 1:96. “John Bunyan, The law and grace unfolded, in: George Offer, org.. The works o f John Bnnyan (1854; reimpr., Edinburgh: Banner of IVuth Thist, 1991), 1:572. ^'Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1:42. “Bunyan, The greatness o f the soul, in: Works, 1:124.

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ele abusou da minha paciência e longanimidade, não se lembrando de que elas deveriam tê-lo levado ao arrependimento e aos consequentes frutos. Morte, apanha essa figueira e leva-a para a fogueira, leva para o inferno esse professante estéril! Diante disso, a morte entra no quarto com uma aparência sinistra. E o inferno a acompanha até a beira da cama, e ambos fitam o rosto desse professante. Sim, começam a colocar as mãos nele. A morte o fere com dores no corpo, com dor de cabeça, dor no coração, dor nas costas, dificuldade de respirar, desmaios, náusea, tremores nas juntas, obstrução no peito e quase todos os sintomas de alguém que não vai se recuperar. E, enquanto a morte está desse jeito atormentando o corpo, o inferno está mexendo com a mente e a consciência, espancando-as com suas dores, lançando fagulhas; ferindo com tristezas e medos de condenação eterna o espírito dessa pobre criatura. E agora ela começa a refletir e a clamar a Deus por misericórdia: Senhor, poupa-me! Senhor, poupa-me! Não, diz Deus, durante estes três anos me provocaste. Quantas vezes me decepcionaste? Quanto tempo viveste de maneira fútil? Quantos sermões e outras misericórdias eu, na minha paciência, te concedi? Mas de nada adiantou. Leva-o, morte!®’

Bunyan descreve de modo tão convincente a morte do professante infru­ tífero que você se sente como se estivesse ao lado de sua cama. Como afirma Erroll Hulse: "Bunyan desenvolve tão bem a ilustração da árvore que é der­ rubada que no fim você fica com o som tanto do machado cortando a árvore quanto da agonia e asfixia mortais do impenitente”.“ Ao mesmo tempo que suplicava às pessoas para que vissem a gravida­ de do pecado e do inferno, Bunyan também suplicava as misericórdias de Deus. Ele instava: “Levanta teu olhar um pouco para cima e eis que lá está o propiciatório e o trono da graça ao qual deves vir e mediante o qual tens de ser salvo”.“ Bunyan acrescentou: “Ó pecador que estás a vir, leva ao limite aquela promessa que encontras na palavra de Cristo, mas sem corrompê-la, e seu sangue e mérito satisfarão a tudo. Reconhece, então, que são teu direito aquelas coisas em que com ousadia podemos nos aventurar — aquilo que a palavra diz ou qualquer verdadeira consequência dela — para que tu — não importa quem sejas — chegues ao destino, se de fato estás a vir”.“ Se Satanás não descansa um só momento apelando para a alma dos ho­ mens, de igual maneira os pregadores não devem descansar de sua grande responsabilidade de apelar para a alma dos homens. E em todo nosso trabalho ’’John Bunyan, The barren fig tree, in: George Offor, org., The works ofJotm Bunyan (1854: reimpr., Edinburgh: Banner of Tlruth TVust, 1991), 3:579-80. “Erroll Hulse, The beUeuer’s experience (Haywards Heath: Carey, 1977), p. 64. ’'Bunyan, The saint’s privilege and profit, in: George Offor. org.. The works o f John Bunyan (1854; reimpr., Edinburgh; Banner of IVuth TTust, 1991), 1:647. “ Bunyan, Come and welcome, in: Works, 1:263.

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de suplicar, precisamos nos esforçar por revelar o pecado como algo horrível e odioso e tornar Cristo totalmente amável (Ct 5.16), pois nosso inimigo se esforça por fazer o oposto. A capacidade de Biinyan de apelar ao coração se devia, em grande parte, à sua própria peregrinação espiritual. Devido à sua experiência com o peso do pecado e da culpa, Bunyan era capaz de apelar àqueles debaixo de convicção de pecado; por ter experimentado a graça divi­ na, era igualmente capaz de suplicar as misericórdias de Deus. Para resumir, 0 que Bunyan escreveu foi: D u ran te d o is a n o s e stiv e c la m a n d o c o n tr a o s p e c a d o s d o s h o m e n s e o tem ív el e sta d o em q u e se e n c o n tra m p o r c a u s a d e le s. D ep o is d isso , p o r m e io de C risto ,

0 S e n h o r in v ad iu a m in h a p ró p ria a lm a c o m p a z e co n s o lo s e re n o s , p o is ele m e co n ce d e u m u ita s d e s c o b e r ta s a g ra d á v e is d e s u a g ra ç a b e n d ita p o r m e io d ele [...] Eu a in d a p re g a v a o q u e v ia e s e n tia . P o r is s o , eu a g o ra m e e sfo rça v a m u ito m ais p o r a p re s e n ta r J e s u s C risto e m to d o s o s se u s o fício s, re la ç õ e s e b en efício s ao m u n d o .“

Veja um exemplo. Bunyan escreve, personificando um grande pecador: “Quando estiveres de joelho, dize: ‘Senhor, aqui está um pecador de Jerusalém! Um pecador enorme! Um pecador cujo fardo é monstruoso e de peso incalcu­ lável! Um pecador que não consegue ficar muito tempo de pé sem afundar no inferno, sem que tua mão o sustente’ [...] Escuta! Coloca teu nome junto ao de Madalena, ao de Manassés, para que possas experimentar o que as Madalenas pecadoras e os Manassés pecadores experimentam”.®^

Pregação que exalta a Cristo O objetivo único de um coração dominado pela graça é exaltar e magnificar Jesus Cristo, seja como o Cristo da Palavra revelada, seja como o Cristo da experiência pessoal baseada naquela Palavra. Bunyan sobressaiu em ambas.®® Em particular, ele se concentrava em Cristo e nas riquezas de sua graça, levan­ do os ouvintes a exaltar seu Salvador. Ele pregou: “Ó Filho de Deus! A graça estava em todas as lágrimas; com teu sangue ela saiu borbulhando de teu lado; ela se evidenciou com cada palavra de tua doce boca; saiu de onde o açoite te feriu, de onde os espinhos te machucaram, de onde os pregos e a espada te traspassaram. Ó bendito Filho de Deus! Aqui há de fato graça! Insondáveis riquezas da graça. Graça suficiente para deixar anjos intrigados, graça para “ Bunyan, “ B unyan,

Grace abounding, in: Works, 1 :4 2 , grifo do Jerusalem sinner saved, in: Works, 1 :8 9 .

autor.

“ Austin Kennedy D eBlois, “E ngland’s g reatest P rotestan t p reach er” , in:

man

(Philadelphia: Ju d so n , 1 9 2 8 ), p. 1S6-7.

John Bunyan, the

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alegrar pecadores, graça para deixar demônios atônitos”.** Para Bunyan, essa é a graça perseverante, pois ela jamais perecerá.*’’ O primeiro amor de Bunyan era exaltar Cristo, pregando-o doutrinariamente com paixão e grandeza teológica: Pois m in h a e x p e riê n cia d e p re g a ç ã o , em esp e cia l q u a n d o ten h o m e d ed icad o à d o u trin a d a v id a p o r m eio de C risto e se m o b ra s, te m sid o c o m o se u m an jo de D eu s tiv e sse e sta d o à s m in h as c o s ta s p a ra m e en co ra ja r. A h , a o m e s m o te m p o que tenh o m e esforçad o p o r rev elar e ssa d o u trin a, d em o n strá-la e in stá-la n a co n sciên cia de o u tro s, ela te m se m an ife sta d o e m m in h a a lm a c o m ta l p o d er e co n firm a çã o celestial q u e eu n ã o p o d eria m e d a r p o r satisfeito e m d izer “C reio e te n h o c e r te z a ”. Pois m e p a re c e q u e e u e sta v a m ais d o q u e ce rto (se é leg ítim o m e e x p re ssa r assim ) q ue a q u e la s co isa s q u e e u a firm av a e ra m verd adeiras.**

A pregação de Bunyan não era apenas doutrinária, tratando das importantes questões da fé, mas também era doxológica, conclamando corações despertados ao louvor. Ele afirmou: “Ah, graça! Ah, graça maravilhosa! Ver um príncipe rogar a um mendigo que aceitasse uma esmola seria uma cena estranha: ver um rei rogar a um traidor que aceitasse clemência seria uma cena ainda mais estranha; mas ver Deus rogar a um pecador que ouça Cristo dizer ‘Estou à porta e bato’ e tenho um coração e um céu repletos de graça para outorgar àquele que abrir — essa é uma cena que assombra os olhos dos anjos”.*’ Para Bunyan, exaltar Cristo significa muito mais do que somente louvá-lo, pois ele nos converte. Em última instância, Bunyan tem em mente que os salvos exaltarão para sempre Jesus Cristo na glória: E n tã o te re m o s v isõ e s p erfeitas e e te rn a s de D eu s e d aq u ele seu b en d ito Filho, Je s u s C risto [...] E n tã o n o s sa v o n ta d e e a fe içõ e s se rã o u m a c h a m a a rd en te de a m o r a D eu s e a seu Filho Je s u s C risto [ ...] E n tã o n o s sa c o n sciê n cia te rá aq u ela p a z e alegria q u e n em a lín g u a n e m a p e n a [de e scre v e r] de h o m e n s o u an jos co n se g u e e x p rim ir [ ...] E n tã o n o s sa m e m ó ria se rá tã o g ra n d e m e n te a u m en tad a p a ra q u e se le m b re de to d a s as co isa s q u e a c o n te c e r a m c o n o s c o n e ste m u n d o [...] e c o m o D eu s fez to d a s a s co isa s co o p e ra re m p a ra su a g ló ria e n o s so b em p a ra o e te rn o ê x ta s e de n o s so s c o r a ç õ e s .’’“

**John B u n yan , Saved by grace, in: G eorge Offor, o rg ., The works of John Bunyan (1 8 5 4 ; reim pr., Edinburgh: B an n er of Truth "Ihist, 1 9 9 1 ), 1 :3 4 6 . “'Veja Robert Alan Richey, “T h e Puritan d octrin e of san ctification: co n stru ction s of the saints’ final and com plete perseverance as mirrored in Bunyan’s The pilgrim’s progress” (tese de doutorado. M id-Am erica Baptist T h eological Sem inary, 1 9 9 0 ). *®Bunyan, Grace abounding, in: Works, 1 :4 2 . *’ B unyan, Saved by grace, in: Worfes, 1 :3 5 0 . ™Bunyan, Saved by grace, in: Works, 1 :3 4 1 -2 .

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Bunyan ensinava que essa exaltação só é possível mediante o ministério gracioso do Espírito na alma dos crentes; Por m eio d e sse E sp írito , c h e g a m o s a v e r a b e le z a d e C risto . S em v ê -la , ja m a is o d esejaríam os, m a s c o m c e rte z a v iv eríam o s sem p restar a te n çã o n ele e p ereceríam o s. Por m eio d e sse E sp írito , so m o s aju d ad o s a lo u v a r a D eu s d e u m a fo rm a a ceitáv el, m as se m o E sp írito é im p o ssív el s e r o u v id o p a ra s e r salv o . P o r m eio d e sse E spírito bend ito, o a m o r d e D eu s é a b u n d a n te m e n te d e rra m a d o e m n o sso s c o ra ç õ e s , e n osso s c o ra ç õ e s s ã o dirigidos p a ra o a m o r d e D eus.^‘

Por fim, Bunyan destaca repetidas vezes que essa salvação gloriosa e exaltadora de Cristo deve nos fazer progredir, tendo anseio e entusiasmo para com Deus. Isso deve ser especialmente verdadeiro quando temos uma visão da amabilidade e sinceridade de seu convite para vir a ele e partilhar de um tão glorioso Salvador. Bunyan escreve: Ó p ecad or, o q u e d izes? C o m o d esejas se r salv o? N ão sen tes á g u a n a b o ca? O teu co ra çã o n ã o p alp ita c o m a id eia d e s e r salv o ? E n tã o v en h a : “O E sp írito e a n oiva dizem : Vem ! E q u e m o u v e , d ig a: V em ! Q u em te m se d e , v e n h a ; e q u e m quiser, receb a de g ra ç a a á g u a d a v id a ” (A p 2 2 .1 7 ) .'^

Conclusão Bunyan experimentou os fracassos e as vitórias da vida cristã. Sua alma havia sido oprimida pelo pecado, mas ele também aprendeu a beber profusamente das riquezas da graça de Jesus Cristo. Sua peregrinação espiritual lhe permitiu lidar com pecadores e santos na condição em que estivessem. Podemos aprender muito com esse renomado pregador puritano. Embora a igreja contemporânea esteja se enfraquecendo à medida que os púlpitos vão se tornando uma vitrine para humoristas, contadores de história e “psicólogos” de autoajuda, em dias de frouxidão e apatia espiritual o latoeiro de Bedford continua sendo um notável monumento ao poderoso poder do Espírito. É impressionante ver como Deus usa as coisas fracas e loucas deste mundo para envergonhar as sábias: a faculdade de Bunyan foi um calabouço; sua biblioteca, a Bíblia; vestido com a armadura de Efésios 6, ele se apresentou com poder para contender com o príncipe das trevas. Deus abençoou Bunyan com capacidades extraordinárias, mesmo em um nível apenas humano e natural. Naqueles dias havia muitos latoeiros na Ingla­ terra — e sem dúvida alguma alguns deles eram cristãos muito consagrados —, mas só houve um Bunyan. Seu dom de se comunicar, sua capacidade de ''B u n yan , ''B u n y a n ,

Saved by grace, in: Worfes, 1 :3 4 6 . Saved by grace, in: Works, 1 :3 4 2 .

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imaginação e suas notáveis proezas como autodidata apontam para a mão providencial de Deus, a qual lhe deu aptidões bem acima do pregador media­ no para alcançar a mente e o coração de santos e pecadores. Isso não explica inteiramente o seu êxito e proficuidade como pregador, mas também não deixa de elucidá-los em parte. A pregação incisiva de Bunyan tinha estilo simples, o que o tornava atraente para as pessoas comuns, mas ainda assim tinha uma eloquência poderosa, envergonhando o mais refinado orador. Era por excelência um pescador de homens e um pregador experiencial, convidando com ternura os pecadores a virem a Cristo, proclamando enfaticamente tanto aquilo que os cristãos devem experimentar quanto aquilo que de fato experimentam em sua peregrinação espiritual. Os três elementos que estudamos na pregação de Bunyan — p a r­ ticipativa, su p lica n te e exa lta d o ra — foram somente algumas das poderosas armas que Bunyan empregou para alcançar o coração dos homens. Em parte, elas são aquilo que deu à pregação de Bunyan esse poder celestial e, sob a bênção do Espírito, produziu muito fruto. São inúmeras as histórias sobre a fecundidade da pregação de Bunyan. Con­ versões notáveis aconteceram com base em seu ministério. Anne Arnott conta um exemplo: “Bunyan foi pregar na igreja de certo vilarejo. Um acadêmico de Cambridge, bastante embriagado, disse que estava decidido ‘a ouvir o latoeiro papaguear’. Por isso, foi à igreja para dar umas risadas, mas permaneceu para ouvir e, como resultado, ele próprio se converteu e se tornou pregador”.” Embora Bunyan tenha sido um pregador com uma capacitação incomum, o mesmo Espírito de quem ele dependia ainda está operando hoje na igreja de Jesus Cristo. A vida e o ministério de Bunyan nos fazem lembrar que nas mãos de Deus a pregação da Palavra é uma arma poderosa. Para Bunyan, “a batalha é pelo coração dos homens —- a mente deles está nas trevas porque 0 seu coração está cativo”. Para ele, a realidade daquela terrível condição o levava a usar cada arma de seu arsenal para atacar a fortaleza e irromper no íntimo da pessoa”, à medida que pregava ao coração. Se, como disse Spurgeon, desejamos “produzir chamas que incendiarão as florestas do erro e aquecer a própria alma deste planeta frio”,^^ precisamos pregar com o fogo do inferno atrás de nós e a glória dos céus diante de nós. Precisamos, com todos os meios, nos esforçar por convidar os ouvintes a p a rticip a r do drama divino de amar suas almas e su p lica r a eles para que aceitem a Cristo a fim de ex a lta rem para sempre o rei Jesus. Que o Espírito se agrade em nos dar homens como John Bunyan, os quais, sendo dominados pela graça gratuita e soberana, estão radiantes da verdade divina e dispostos a serem considerados loucos e até mesmo serem presos por amor a Cristo. '’A m ott, He shall with giants fight, p. 69. ” C. H. Spui^eon, Lectures to my students (Pasadena; Pilgrim, 1990), 1:83.

Capítulo 45 □□□□□□□□□□□□□□□□DODOa□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□

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Observe-se que as pessoas com quem a aliança do evangelho foi estabelecida foram Abraão, os filhos descendentes dele e todas as nações, inclusive nós — ingleses e as crianças que descendem de nós — como aparece [em] Gênesis 17.4,12. WiLUAM Lypord'

Polêmicas sobre a prática do pedobatismo (batismo infantil) eram muito intensas na Inglaterra do século 17.^ Uma enorme quantidade de literatura foi produzida pela lavra tanto de pedobatistas quanto de antipedobatistas. Aliás, em seu estudo sobre Richard Baxter (1615-1691), Paul Lim mostra que a “retórica do ‘anabatismo’ estimulou de tal forma a comunidade dos crentes à ação que o livreiro londrino George Thomason reuniu mais de 125 panfle­ tos escritos entre 1642 e 1660 sobre o assunto”.^ Lim observa que, além dos muitos panfletos, houve “pelo menos 79 debates públicos”.“ Com frequên­ cia, esses debates giravam em torno da interpretação de textos-chave das Escrituras, e ocasionalmente um único texto servia de tema para uma pro­ longada disputa exegética.

'William Lyford, An apologie for our publickm inistene, and infant-baptism (London, 1653), p. 32. ^P. ex., veja o estudo de Hans Boersma Richard Baxter's understanding o f infant baptism (Princeton: Princeton Theological Seminary, 2002); Jonathan D. Moore, “The Westminster Con­ fession of Faith and the sin of neglecting baptism”, IVestTTunster T h éo lo ga l Journal 69, n. 1 (Spring 2007): 63-86. ’Paul Chang-Ha Lim, In pursuit o f purity, unity, and liberty: Richard Baxter's Puritan ecdesiology in its seventeenth-century context (Leiden; Brill, 2 0 0 4 ), p. 55. ’ Lim, In pursuit o f purity, unity, and liberty, p. 55.

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Desde o início, os teólogos reformados defenderam a validade e a neces­ sidade do batismo infantil no contexto da aliança da graça.^ A pergunta 74 do Catecismo de Heidelberg é típica do ponto de vista reformado; "As crian­ cinhas também devem ser batizadas? Sim, pois [...] elas, como os adultos, estão incluídas na aliança e na igreja de Deus [...] Também devem, portanto, mediante o batismo como sinal da aliança, ser admitidas na igreja cristã e distinguidas dos filhos dos Incrédulos, como se fazia na antiga aliança ou testamento mediante a circuncisão, em lugar da qual o batismo foi instituído na nova aliança”. Aqueles puritanos ingleses que acreditavam no batismo in­ fantil também estavam firmemente convictos desse vínculo entre o batismo infantil e a aliança da graça. O que tom a o debate particularmente interessante na Inglaterra do século 17 é que um bom número de antipedobatistas abraçava a posição de John Owen (1616-1683) sobre a nova aliança em Hebreus 8.6-13. Um desses antipedobatistas foi o pastor batista Nehemiah Coxe (m. 1688). Em sua introdução a uma reimpressão de escritos sobre a aliança preparados por Nehemiah Coxe e John Owen, o erudito batista reformado contemporâneo James Renihan observa: No que dizia respeito ao batista Nehemiah Coxe, a obra de John Owen sobre esse trecho de Hebreus expressava com clareza as coisas que o próprio Coxe teria dito (e ele reconheceu que Owen também as expressou melhor). Isso não deixa implícito que Coxe endossasse cada vírgula da obra de Owen, mas somente indica a imensa concordância entre os dois. Owen, de sua própria parte, demonstra exegeticamente que a nova aliança é profundamente diferente da antiga — ela é caracteristicamente nova. Para Coxe [...] e os batistas reformados confessionais que concordam com sua teologia, a ênfase de Owen na novidade da nova aliança é um passo útil à frente no debate.^ Por acaso, na página da internet do Institute for Reformed Baptist Studies [Instituto de Estudos Batistas Reformados], Renihan inclui essa citação numa publicação intitulada "Por que gostamos tanto de John Owen”.^ Está claro que com isso Renihan não está sugerindo que Owen fosse batista, mas somente ’Ulrich Zwingli, Refutation o f the tricks o f the katabaptists, 1527, in: Samuel M. Jackson, org.. Selected works o f HuMreich ZwingU (Philadelphia: University of Pennsylvania. 19011, p. 219-37, 248-51. ‘ Nehemiah Coxe; John Owen, Coverumt theology from Adam to Christ, edição de Ronald D. Miller; Jam es M. Renihan; Francisco Orozco (Palmdale; Reformed Baptist Academic Press, 2005), p. 2-3. Para uma boa e breve biografia teológica de Coxe, veja o texto de Jam es Renihan “An excellent and judicious divine” nesse livro (p. 7-24). Uames Renihan, “W hy we like John Owen so m uch”. The Institute of Reformed Baptist Studies, 12 de maio de 2008, disponível em: h ttp://w w w .reform edbaptistinstitute.org/lp-93, acesso em: 13 dez. 2010.

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que a nítida distinção que Owen faz entre a antiga e a nova alianças se encaixa perfeitamente em uma estrutura antipedobatista. Este capítulo explorará o que é talvez o mais importante ponto de discórdia entre os dois lados, a saber, se a teologia da aliança oferece justificativa para a inclusão de crianças na nova aliança. Para isso consideraremos primeiro o argumento pactuai de John Owen em favor do pedobatismo, a fim de mostrar que suas idéias sobre a nova aliança em relação à antiga não favorecem seus adversários antipedobatistas. Vários con­ temporâneos de Owen também serão citados para mostrar que seu argumento a favor do pedobatismo não era peculiar a ele, mas partilhado por homens como Thomas Goodwin (1600-1680), Stephen Marshall (1594-1655) e Samuel Petto (1624-1711), para citar apenas alguns. Em seguida, examinaremos um debate que aconteceu entre o pedobatista John Flavel (1628-1691) e o antipedobatista Philip Gary (m. 1710). Um relato passo a passo do acontecimento deixará claro que a teologia da aliança estava no centro do debate.

Abraão, não Moisés Entre os puritanos que eram conscientemente teólogos reformados, bem pou­ cos postulavam uma distinção ou oposição absolutas entre a antiga e a nova alianças. Para a maioria dos teólogos reformados, a antiga e a nova alianças eram uma única aliança na essência e no gênero; diferiam apenas em nível e na forma de administração. Essa foi claramente a posição de João Calvino no século 16 e de John Bali (1585-1640) no século 17. A ideia de que a antiga aliança era de um gênero diferente da nova foi uma ideia que os teólogos tanto de tradição luterana quanto de tradição salmuriana abraçaram, ainda que com variações.* A posição de Owen sobre a antiga e a nova alianças foram examina­ das mais detalhadamente no capítulo 18 deste livro. Em resumo, Owen afirma que a antiga e a nova alianças são diferentes em gênero, não em nível, no que ele se distingue da maioria de seus contemporâneos reformados ortodoxos. As duas posições se encaixam no esboço geral da teologia reformada da aliança, mas certamente a posição de Owen não é o ponto de vista majoritário. O que é importante é que, à luz do argumento deste capítulo, a distinção feita por Owen não é entre o Antigo e o Novo Testamentos, embora para ele a antiga e a nova alianças sejam testamentos, mas entre duas alianças históricas que de "Veja A nthony B u rgess, Vindiciae legis (Lon don : Ja m e s Young para T h o m as Underhill, 1 6 4 7 ), p. 2 5 1 ; R ichard Muller, “Divine co v e n a n ts, ab solu te an d con ditional: Jo h n C am eron and the early orth o d o x developm ent of Reform ed coven an t th eo log y ”, Mid-America Journal of Theo­

logy 17 ( 2 0 0 6 ): 11-56; S ebastian R ehn m an , “Is th e narrative of red em p tive history trichotom ous or d ich otom ou s? A problem for federal th eo log y ”, NederUmds archief voor kergeschiedenis 80 (2 0 0 0 ): 2 9 6 -3 0 8 ; J . M ark B e a ch , Christ and the covenant: Francis Ihrretin’s federal theology as a defense of the doctrine of grace (G ottingen: V andenhoeck & R up recht, 2 0 0 7 ), p. 2 6 4 -5 , 301-6.

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fato são assim denominadas nas Escrituras, ao contrário da aliança das obras e da aliança da graça, que são expressões não encontradas explicitcimente na Bíblia. Sem dúvida, Renihan está certo em assinalar a ênfase de Owen na no­ vidade da nova aliança, mas na realidade essa ênfase tem um impacto mínimo nos motivos de Owen para incluir criancinhas na igreja do Novo Testamento. Teólogos pedobatistas defendiam a inclusão de crianças na nova aliança, baseando-se na perpetuidade das promessas feitas a Abraão. Um axioma do pensamento de Owen é a ideia de que a igreja existiu no Antigo Testamento desde que a primeira promessa foi feita (Gn 3.15) e, de igual maneira, que os privilégios pactuais da igreja do Antigo Testamento são comunicados, na nova aliança, às crianças em tenra infância que descendem de crentes por causa da aliança abraâmica (Gn 17.7).^ De modo análogo, Thomas Goodwin, que era amigo de Owen e tinha idéias parecidas sobre a antiga e a nova alianças, en­ contra na promessa feita a Abraão justificativa péira o pedobatismo.'*’ Goodwin defende que “nossos teólogos” fizeram da aliança estabelecida com Abraão “o alicerce básico e fundamental desse grande privilégio”." Stephen Marshall, que escreveu aquilo que veio a ser talvez o mais famoso sermão do século 17 sobre a legitimidade do batismo infantil, usou a aliança abraâmica como importante ponto de partida para desenvolver seu raciocínio.'^ A obra em que Samuel Petto defende o batismo infantil se ocupa da questão de demonstrar que a aliança abraâmica fornece a justificativa para o batismo infantil.'^ Todos esses homens apresentam em essência os mesmos argumentos, alguns dos quais vale a pena considerar mais detalhadamente.'^ Goodwin reconhece que um dos principais pontos de disputa gira em tomo de se a aliança abraâmica outorga benefícios aos crentes gentios: caso ’John Owen, Theologoumena, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 17:266 (4 :i.l3 ). “Et quintò, communicatio privilegiorutn foederis et ecclesiae, cum semine infantUi (quod postquam modo peculiari Deo curae esse coeperat, ecclesia nunquam absolute defecit) conceditur, Gen. xvii. 7 “. '"rhom as Goodwin, A discourse o f election, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin, D.D. (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2 0 0 6 ), 9:428. "Goodwin, A discourse o f election, in: Works, 9:428. '^Stephen Marshall, A sermon o f the baptizing o f infants (London: Richard Cotes para Stephen Botwell, 1645). ’’Samuel Petto, Infant baptism o f Christ’s appointment or a discovery o f infants interest in the covenant with Abraham, shewing who are the spiritual seed and who the fleshly seed (London: para Edward Giles, 1687). ’’Michael Hall mostra que, de modo parecido, os puritanos da Nova Inglaterra defendiam o batismo infantil por causa da promessa a Abraão em Gênesis 17.7 {The last Puritan: the life of Increase Mather, 1639-1723 [Hanover: University Press of New England, 1 9 8 8 ],p. 55). E J . David Hoeveler observa que “os puritanos da Nova Inglaterra tinham a impressão de que o antipedobatismo era um protestantismo extremado e perigoso” {Creating the American m ind: intellect and politics in the colonial colleges [Lanham: Rowman & Littlefield, 2002], p. 39).

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contrário, o principal fundamento para a prática do batismo infantil estaria totalmente descartado. Goodwin inicia estabelecendo uma ligação entre Eva, como a mãe dos seres viventes, e Abraão, como o pai dos fiéis das muitas nações do mundo. Como consequência, os gentios são enxertados na mesma "árvore” (aliança) a que os judeus pertenciam (Rm 11).'* Os gentios crentes têm os mesmos privilégios espirituais que os judeus crentes possuem na antiga e na nova alianças.'* E, assim, “ter a aliança gravada nos filhos é um privilégio espiritual tão grande pois tende agora a dar um consolo infinito a pais piedo­ sos como acontecia com eles [i.e., os judeus]; ter nossa descendência dentro da aliança, como acontecia com eles”.'^ Com essa mesma ideia em mente, Marshall sustenta que os privilégios dos crentes na nova aliança são “ampüados e proporcionam mais honra e encorajamento como nunca aconteceu na época da administração dos judeus”.'® Ele acrescenta que nas Escrituras não existe passagem alguma em que os filhos pequenos de crentes sejam “elimi­ nados da aliança da graça; decerto aqueles que — para acabar com uma dose tão grande de consolo disponível aos pais crentes — se propõem a privá-las da aliança precisam apresentar provas claras, antes que consigam persuadir os crentes a se separar das Escrituras ou dos filhos”.** E, baseando seu argu­ mento em Gênesis 17, Owen semelhantemente acrescenta que “um privilégio espiritual que Deus tenha concedido uma vez a qualquer pessoa não pode ser mudado, cancelado ou abolido sem uma revogação divina especial ou pela substituição em seu lugar por um privilégio e misericórdia superiores”.“ Petto também destaca essa ideia: as crianças de gentios crentes, mesmo no Antigo Testamento, eram participantes das promessas a Abraão e, dessa maneira, estavam em aliança com Deus; “elas, portanto, ainda estão nela, a menos que Deus a tenha revogado”.^' Aliás, defende Owen, deixar as crianças de fora da nova aliança é “contrário à bondade, ao amor e à aliança de Deus [e] especial­ mente aviltante à honra de Jesus Cristo e do evangelho”.“ Conforme Marshall também destacaria, a posição dos antipedobatistas “coloca todas as crianças de todos os crentes na mesma condição das crianças de turcos e indianos, o "G oo d w in , A discourse o f election, in: Works, 9 :4 2 9 . Veja tb. M arshall, A sermon o f the baptizing o f infants, p. 17-8. "P e tto ap resen ta u m argu m en to p arecid o: “E essa p ro m essa q ue se estend e aos judeus e sua d escen d ên cia tam b ém p recisa a lca n ça r a d escen d ên cia d e gentios que cre e m , ca so contrário os jud eus teriam m ais privilégios do q ue e le s ” [Infant baptism, p . 1 3 ). '’ G oodwin, A discourse o f election, in: Works, 9 :4 3 0 . ‘“M arshall, A sermon o f the baptizing o f infants, p. 3 0 . Veja tb. P etto, Infant baptism, p. 16-7. "M a rsh a ll, A sermon o f the baptizing o f infants, p. 3 0 -1 . “ Jo h n O w en, Of infant baptism and dipping, in: The works o f John Owen, D.D. (Edinburgh: Jo h n sto n e & H unter, 1 8 5 0 -1 8 5 5 ), 2 6 :2 5 8 -9 . ’ ’P etto, Infant baptism, p. 17. “ O w en, Of infant baptism, in: Works, 2 6 :2 5 9 .

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que todos prontamente r e c o n h e c e m E s t á claro que para Owen e Marshall nesse debate havia muita coisa em jogo. Esses destaques servem para esclarecer a principal questão hermenêutica no debate. Teólogos reformados sempre deixaram claro que a justificativa para o pedobatismo não está em Moisés. Em parte alguma lemos de alguém fazer contraste entre a nova aliança e as promessas feitas a Abraão. Havia, de fato, discordância sobre o que “antiga aliança” quer dizer e sobre como ela se relaciona com a nova aliança, mas os teólogos reformados afirmavam todos eles que a nova aliança era o cumprimento das promessas feitas a Abraão.^“ Aliás, não existe nada substancialmente diferente entre a aliança abraâmica e a nova aliança, com exceção de que a segunda é o cumprimento daquilo que era apenas uma promessa na primeira, que é o motivo pelo qual os teólogos reformados não tinham nenhuma dificuldade em sustentar a validade de uma “aliança da graça” que incluía o tratamento gracioso dispensado por Deus à igreja desde a época de Adão até a época de Cristo. Alguém poderá sustentar que a nova aliança é de um gênero diferente da aliança sinaítica ou antiga, como, entre outros, sustentaram Owen e Goodwin; mas Owen e Goodwin podiam estar junto daqueles que, para sustentar a validade do pedobatismo, entendiam que, quanto ao conteúdo, a antiga e a nova alianças eram uma só porque todos concordavam que a ordem de batizar crianças se baseava nas promessas perpétuas feitas a Abraão, o pai de muitas nações e não derivavam de nenhuma lei ou ordenança de Moisés. É claro que o argumento de que Abraão e não Moisés oferece a fundamen­ tação para o pedobatismo tem sido reconhecido pelos antipedobatistas mais eruditos.^* O que segue é o relato de um debate de dois homens de campos opostos, John Flavel e Philip Gary. Esse debate mostrará, entre outras coisas, que no âmago da disputa entre batistas e pedobatistas estava a teologia da aliança. Também mostra como relacionar entre si as várias alianças que apa­ recem nas Escrituras.

Um precursor do debate: Philip Gary em 1684 Philip Cary era farmacêutico em Dartmouth, separatista e batista. Em 19 de janeiro de 1682, alguns anos antes de seu debate com Flavel, ele assinou o “ Marshall, A sermon o f the baptizing o f infants, p. 7. “ Conforme Marshall observa: "Da parte de Deus, a aliança era, em essência, ele ser o Deus de Abraão e o Deus de sua semente, ser a parte totalmente suficiente, ser a recompensa totalmente suficiente para ele, dar-lhe Jesus Cristo e junto com ele a justiça tanto justificadora quanto santificadora e dar-lhe vida eterna. Da parte de Abraão, a aliança era, em essência, crer no Messias prometido, andar diante de Deus com um coração íntegro, servir a Deus de acordo com sua vontade revelada, instruir sua família etc”. (A sermon o f the baptizing o f infants, p. 10). “ P. ex., veja Mike Renihan, Antipaedobaptism in the thought o f John Tbmbes: an untold story from Puritan England (Auburn: B&R, 2001).

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nome em sua última carta ao médico presbiteriano Richard Burthogge, também de Dartmouth, num debate particular sobre quem deve de fato ser batizado.“ Cary escreve que o debate entre eles começou quando os dois foram enviados para tratar de um homem importante na região de Dartmouth, e ali o médico desafiou Cary para um debate com ele sobre o batismo infantil, e que esse desafio havia sido feito na presença de algumas senhoras Cary admite que Burthogge se saiu melhor do que ele em público e, por isso, depois de algum tempo Cary passou a debater por escrito.“ É provável que Cary se desse me­ lhor nesse meio de comunicação, mas ainda continuava existindo uma grande diferença de nível entre os disputantes.“ Boa parte do debate entre eles girou em torno da correta interpretação de Gênesis 17. O dr. Burthogge recorreu ao texto para defender que havia desco­ berto aquilo que chamou de novo fundamento para o batismo de crianças, um fundamento muito superior a todos os anteriores. Seu recurso a Gênesis 17 — em si nada de novo — via nesse capítulo a “primeira aliança solene e formal da graça”, a qual constituiu a primeira “igreja distinta e instituída” com seu “rito de iniciação”. A lógica dessa apelação era que não havia igreja alguma sem a aliança de Gênesis 17, e, portanto, o sacramento encontrado naquele capítulo e aplicado às crianças foi desde o início intrínseco à constituição da igreja, mesmo que mais tarde sua forma tenha mudado. O versículo 9 apre­ sentava de forma geral a exigência divina para guardar a aliança, e o versículo 10 especificava uma exigência particular que se aplicava a Abraão e a todos que eram dele; a circuncisão.“ Nessa aliança, Abraão precisou reafirmar sua “ Richard Burthogge, An argum ent for infants baptism e... (London; Jonathan Greenwood, 1684). Na p. 78 Burthogge se identifica com o presbiteriano. "Philip Cary, A disputation between a doctor and apothecary: or a reply to the new argument of Dr. R. Burthogge, M.D. for infants baptism (London: B. W., 1684), p. 16-7. Posteriormente (p. 130), Cary, alegando perseguição, recusa o desafio de Burthogge para um debate público: “Mas, além disso, a lei não permite esse tipo de reunião, e, por essa razão, eu e meus amigos estamos reclusos e sem condições de com parecer a uma reunião dessas”. “ Burthogge publicou seu ponto de vista primeiro; em seguida Cary publicou o seu (Cary, Disputation, p. 17-9; cp. A4r-v. Burthogge, Infants baptisme, A7v-A8v; A 15v-A 16v). Visto que as duas obras contêm trechos das cartas da outra parte, neste capítulo as referências a um dos autores nesse texto podem estar baseadas na publicação pelo outro. “ Burthogge cita não apenas latim, mas também seu Novo léstam ento grego, faz alusão a conhecer hebraico e numa oportunidade até mesmo analisa variantes textuais de manuscritos gregos. Cary sabia apenas inglês e latim (Burthogge, Infants baptisme, A15v-A16v; cf. p. 3 7 ,3 9 , 47, 51): isso foi admitido por Cary em Disputation, 2; cf. A2r-A3r, p. 129. Justam ente porque suas idéias dependiam de autores mais estudados, com o Nehemiah Coxe, Richard Allen (seus primeiros escritos), John Ibm bes e Benjamin Reach, Cary é um excelente personagem a ser ana­ lisado. Suas idéias estavam alinhadas com as daqueles autores, conforme ficará demonstrado nas várias observações deste capitulo. “ Cary, Disputation, p. 57.

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aliança com Deus, dedicando-se e tudo que era seu a Deus, e, como sinal dessa dedicação, Abraão precisou administrar o sinal da circuncisão a todos de sua casa que eram capazes de recebê-la. De acordo com Burthogge, mais tarde a substituição da circuncisão pelo batismo foi consequência lógica do texto, pois devia-se fazer uma distinção entre o que era eterno e o que se restringia a Israel. No versículo 10, o “vós” e a “descendência” tinham referentes distintos (“entre mim, vós e tua futura descendência”), sendo o “vós” referência aos judeus e a “descendência” referência aos gentios crentes.’* A exegese de Burthogge não representava necessariamente a corrente predominante da posição reformada, em especial sua posição sobre o início da igreja, mas está claro que ele de fato se baseou em Gênesis 17 como o principal fundamento para batizar os filhos pequenos dos crentes.“ Cary, cuja posição desperta mais interesse porque logo iria confrontar dire­ tamente John Flavel, usou argumentos da aliança para remover Gênesis 17 do apoio ao batismo infantil. Ele sustentava que a aliança com Abraão não podia ser a aliança “do evangelho” porque continha uma mistura de elementos tanto temporais quanto eternos (cf. Gn 17.7,8).“ Ele acrescentou que o versículo 10, em que a circuncisão foi ordenada pela primeira vez, explicava o versículo 9, em que a guarda da aliança foi ordenada — ambos os versículos descrevendo so­ mente uma aliança de circuncisão. Assim, quando Cristo revogou a circimcisão, com isso terminou o mandamento de guardar essa aliança. De Gênesis 17 não restou “essência” alguma. Cary de fato sustentava que os gentios crentes eram a descendência de Abraão de acordo com Romanos 4, méis que a aliança abraâmica da circuncisão não fazia referência a eles de modo algum. Embora os dois homens tivessem muito em comum em sua posição sobre as Escrituras, sobre a teologia e sobre suas fontes e métodos exegéticos, a dife­ rença entre eles em relação à questão prática do batismo infantil estava ligada a uma diferença na maneira de entenderem a natureza da aliança abraâmica e os participantes dessa aliança. Burthogge escreve: “É verdade que a aliança envolve termos a b so lu to s e promissivos e, portanto, é chamada de a lia n ça d a p ro m essa ; mas, por outro lado, uma vez que, p a ra s e r uma aliança, é preciso “ Cary, Disputation, p. 53-4. Burthogge associava “descendência” a “Isaque na letra e no espírito”, mas o “vós” a “tu Abraão e Ismael, teu filho, segundo a carne”. “ No ano seguinte, Burthogge sustentou que Gênesis 3.15 não podia fundamentar a mesma ideia, pois não era promessa, mas um a maldição sobre o Diabo. Cristo é predito ali e prefigura­ do em sacrifícios (antes de Gn 17), “contudo, aíi nada transcorre por meio de aliança e ali nada se fala por meio de promessa a Adão; tudo é por meio de anúncio de castigo contra a serpente" (Burthogge, Vindiciae Paedo-baptismi, or, a confirmation o f an argument latdy emitted for infants baptism ... [London; Thomas Simmons, 1685), p. 34, 3 5 ). Cf. Burthogge, “Epistle dedicatory”. Infants baptisme, A4-A5, p. 99-106. “ Conforme informado em Burthogge, Infants baptisme, p. 13.

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que existam p a rtes, então é preciso que haja uma estipulação m ú tu a entre elas".^^ Fica claro que para Burthogge a aliança possui aspectos tanto absolutos quanto condicionais. Gary, por outro lado — apesar do fato de que nesse debate era um batista que enfatizava que o arrependimento é um pré-requisito para 0 batismo — defendia a ideia de que a aliança da graça era incondicional. Ele afirma: “Havia uma aliança entre Deus Pai e Cristo e, depois dela, uma aliança incluindo toda a sua descendência”.*®Sua posição de aliança absoluta também explica seu questionamento de se pessoas de sexo masculino circuncidadas poderiam estar “ou não na aliança da graça”. Em outras palavras, a circuncisão como sinal não implicava estar “na” aliança da graça.** Por esse motivo, Gary também não podia admitir o recurso de Burthogge a uma “santidade federal” na explicação que este último apresenta para ICoríntios 7.14.*^ Para Gary, a aliança é feita com os eleitos; só eles podem ser santos no devido sentido. Além disso, a “raiz” da oliveira de Romanos 11 — que para Burthogge é a aliança da graça — para Gary é Cristo.*® Esse debate — que é um entre muitos — ajuda a contextualizar a disputa entre Flavel e Gary, a qual se daria seis anos depois. O relato mostra que o debate foi centrado em exegese (em especial a de Gênesis 17), modelado pelos compromissos teológicos reformados, conduzido de uma forma escolástica tosca e impulsionado pela questão prática de quem pode de fato ser batizado.

A primeira rodada: A solemn ca ll [Um chamado solene]^ de Gary, e Vindiciae legis & foederis [A reivindicação da lei e da aliança], de Flavel Em 1690, Gary divulgou uma nova obra em apoio à posição batista intitulada A s o le m n ca ll u n to all th a t w o u ld b e o w n e d a s C h ris t’s faith fu l w itn e s s e s , sp eed ily , a n d se rio u sly , to a tte n d u n to th e p rim itiv e p u rity o f th e g o sp e l d o c trin e a n d w o rsh ip : o r, a d is c o u rs e c o n c e rn in g b a p tism : w h e re in th a t o f in fan ts is d is p ro v e d ... W h e re in th e c o v e n a n t m a d e w ith Israel at M o u n t S in ai, E x o d . 2 0 . T h a t in th e lan d o f M o ab , D eu t. 2 9 . A s a lso th e c o v e n a n t o f c ircu m c isio n m a d e w ith A b ra h a m G en . 1 7 :7 , 8 , 9 . W h e re o n so m u c h s tre s s is laid fo r th e su p p o rt of in fa n ts b a p tism , a re p lain ly p ro v ed to b e n o o th e r th a n th re e se v e ra l ed itio n s of th e co v e n a n t o f w o rk s ; a n d , co n se q u e n tly , th a t n o ju st a rg u m e n t c a n th e n c e be d e d u ce d fo r th e ju stifica tio n o f th a t p ra c tic e . T o g eth er w ith a d e scrip tio n o f th e

^B u rth og g e, Infants baptisme, p. 17 ; cf. B urthogge, Vindiciae Paedo-baptismi, p. 3 6 -7 . ^*Cary, Disputation, p. 121. Q uanto à su a ên fase n o arrep en d im en to, veja Disputation, p. 9 9 . “ Cary, Disputation, p. 2 9 . ^'Burthogge, Infants baptisme, p. 3 6 ; cf. p. 3 2 -4 8 . “ Cary, Disputation, p. 3 5 -6 .

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tru ly e v a n g e lica l c o v e n a n t G od w a s p le a se d to m a k e w ith b eliev in g A b ra h a m . [Um c h a m a d o so le n e a to d o s o s q u e q u e re m se r re c o n h e cid o s c o m o te s te m u n h a s fiéis d e C risto p a ra q u e, c o m c e le rid a d e , se rie d a d e e d e s v e lo , c u id e m d a p u re z a p rim itiva d a d o u trin a e a d o r a ç ã o b a s e a d a s n o e v a n g e lh o . O u u m a a n á lise so b re

0 b a tism o c o m a re fu ta ç ã o do b a tis m o in fan til [ ...] c o m b a s e n a a lia n ç a feita co m Israel n o m o n te S in ai (Ê x 2 0 ) , n a q u e la d a te rra d e M o ab e (D t 2 9 ) e ta m b é m n a a lia n ça d e c irc u n c is ã o feita c o m A b raão (G n 1 7 .7 ,8 ,9 ) , c o m a c la ra d e m o n s tra ç ã o de q u e e s s a s a lia n ç a s , e m q u e se te im a q u e fa v o re ç a m o b a tism o in fan til, n ã o são n a d a m a is d o q u e trê s e x p re s s õ e s d ife re n te s d a a lia n ç a d a s o b r a s ; c o m a co n s e q u ê n c ia d e q u e n ã o se p o d e d e d u z ir n e n h u m a rg u m e n to ju sto fav o rável à q u e la p rá tic a ; e c o m u m a d e s c riç ã o d a v e rd a d e ira a lia n ç a d o e v a n g e lh o q u e D eus se a g ra d o u e m fa z e r c o m o c r e n te A b ra ã o .]*’

Esse título indica a existência de continuidade com os argumentos de Gary em 1684, mas também um avanço, especialmente no que tange ao argumento central, pois agora ele tomou alianças mais específicas e uniu todas elas sob a aliança das obras. No prefácio, ele afirma que nenhum outro autor publicou material sobre “a verdadeira natureza e diferença entre as duas alianças, a das obras e a da graça”.’®Ao tratar conjuntamente Gênesis 17, Êxodo 20 e Deuteronômio 29 sob a aliança das obras, Gary pôde tratar todas elas como alianças que em sua natureza, propósito e alcance não tinham continuidade com a aliança da graça, na qual Deus ordenou o batismo. Nenhum mandamento da primeira conseguia afetar a segunda; as duas alianças “contrastam, isto é, são essencialmente diferentes”.” Isso não significava que Abraão não estivesse na aliança da graça. Pelo contrário, ele estava em duas alianças ao mesmo tempo, da mesma maneira que estavam todos os eleitos no Antigo Testamento. O estudo de Gary tem cerca de 244 páginas. Ele trata ponto por ponto os argumentos de William Allen, Richard Baxter, Guthbert Sydenham e Richard Burthogge.’^ Sem citar nominalmente Flavel, também aborda as questões levantadas por ele, pois Gary havia compartilhado com Flavel al­ guns trechos do manuscrito antes de sua publicação e recebeu respostas "Ph ilip Gary,

Solemn call (Lon don :

Jo h n H arris, 1 6 9 0 ). B enjam in R each e cin co ou tros ba­

tistas assinaram a palavra introd utória a o leitor. "G ary, ’ ‘Gary,

Solemn call, A7v. Solemn call, A7v.

«D esses q uatro, W illiam Allen é de particu lar interesse para esta análise. Em 1 6 5 3 , ele defen­ deu tanto 0 sep aratism o quan to o antiped obatism o. M as, ao longo do tem p o, m udou de posição, retratando-se em 1 6 6 0 de su as idéias sob re se p a ra çã o , publicando em 16 7 2 sob re as alianças e, por fim, em 1 6 7 6 p ublicando

contra os

antiped obatistas. N ão é de adm irar, en tã o , q ue Gary

tenha citad o o estudo d e Allen c o m o b ase p ara seu próprio estudo (ap esar de afirm ar que não tinha ideia quem era o sr. Allen) (Gary, Obadiah Sedgwick e Fran cis Roberts.

Solemn call,

AlO r-v). Na obra, Gary tam b ém se opõe a

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dele."*^ Os dois eram vizinhos em Dartmouth, conforme Flavel costumava repetir em seus prefácios. As respostas publicadas por Cary introduziram Flavel no debate. Quando ofereceu uma resposta completa, Flavel resumiu a disputa de uma maneira instrutiva sobre os parâmetros da teologia da aliança do final do século 17. Ele inicia com a posição de Cary de que a Lei no Sinai era uma pura aliança das obras: Aqui a d ife re n ça e n tre n ós: (1 ) n ã o é se n a s E scritu ra s a m b a s sã o c h a m a d a s de a lia n ça ; (2 ) n ão é se h av ia alg u m a g ra ç a em u m a o u e m a m b a s a s a lia n ça s, pois e sta m o s d e a co rd o q u e é p ela g ra ça q u e D eu s e n tra em a lia n ça co m o h o m em , q u alq u er q u e seja a a lia n ç a ; (3 ) n ão é se a Lei do Sin a i é u m a alia n ça d as o b ras co m os h o m e n s p o r cu lp a e re sp o n sab ilid ad e d eles m e s m o s ; (4 ) n ã o é se as E scritu ra s falam m u itas v e z e s [da a lia n ça d as o b ras] n aq u ele e x a to sen tid o e n o ção c o m q u e os q u e busca m a justiça segu n d o a ca m e a in terp retam e, rejeitan d o a C risto , se su b m e te m àq u ela a lia n ça ; (5 ) e n ã o é se a p ró p ria e s sê n cia d a lei da

natureza é d e sp e rta d a e re a p a re c e n a L ei do Sin ai. N ão é so b re isso q u e e sta m o s co n te n d e n d o . M as a q u e stã o é se , p o r su a p ró p ria n a tu re z a e d e a co rd o co m o p ro p ó sito e desígn io d e D eu s e m su a p ro m u lg a çã o , a L ei do Sin a i d esp e rta a lei da n a tu re z a p a ra a lc a n ç a r o s m e s m o s o b jetiv o s e a lv o s d a a lia n ça co m A dão e, d esse m o d o , é co rre ta e v erd a d e ira m e n te u m a a lia n ça d as o b ras. O u, e n tã o , se Deus te v e o b je tiv o s e p ro p ó sito s g ra cio so s e b a se a d o s n o e v a n g e lh o , a sab er, m ed ian te tal re p re s e n ta ç ã o terrív el [ ...] c o n v e n c ê -lo s d a im p o ssib ilid ad e d e a lc a n ç a r a ju stiça d a L ei, h u m ilh ar a n a tu re z a e lh es m o stra r a n e ce ssid a d e d e se en tregar a C risto [...] D efend o e sta seg u n d a p o s iç ã o , e n q u a n to o sr. C ary p a re ce afirm ar e v e e m e n te m e n te d e fen d er a p rim eira.^“

Ao limitar a questão para a exata função da Lei do Sinai, Flavel ilustra a tendência escolástica à precisão, assim como mais tarde ele lembra Cary de que deve se restringir aos argumentos apresentados, “fazendo-lhes ressalvas, dissecando-os ou negando-os, como é próprio de um debatedor fazer”.“®Nos ^’Jo h n Flavel, Vindiciae legis & foederis, or, a reply to Mr. Philip Cary’s Solemn call [London: M, W otton, 1 6 9 0 ), A 8r; cf. Jo h n Flavel, The whole works of the Rev. Mr. John Flavel (London: W. Baynes, 1 8 2 0 ), 4 :3 2 2 (doravan te essa obra será ind icad a pelo título Works, especificam en te as edições com u n s de 1 7 9 9 e 1 8 2 0 , n ão a ed ição em oito volu m es p ublicada em 1 7 7 0 ). O bserve-se que 0 título da obra de Flavel reú n e os títulos de d uas obras an teriores: u m a de Burgess, Vindiciae

legis, e a o u tra de T h o m as Blake, Vindiciae foederis... (A ble Roper: L ond on, 1 6 5 8 ). Am bas e x ­ plicam e x ten sam en te a dou trina da alian ça. “ Flavel, Vindiciae legis & foederis, A 9r-v, in: Works, 4 :3 2 3 . Aqui seguim os a ed ição do sé­ culo 16 no que diz respeito à p on tu ação e ao uso de m aiú scu las. As alteraçõ es en con trad as na edição de 1 8 2 0 sã o intrigantes, em p articu lar no que diz respeito ao s grifos. *®“Se te a ch a s em co n d içõ es de redarguir a e sta m in ha resp o sta, p eço que evites ao m áxim o um a ladainha ted iosa, e con testes estrita e m eto d icam en te m eu s argu m en tos, fazendo-lhes res­

salvas, dissecando-os ou negando-os, como é próprio de um debatedor" (Flavel, Vindiciae legis, p. 14 0 , in: Works, 4 :3 7 8 , grifo do a u to r).

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dois estudos que escreve para esse debate, repetidas vezes Flavel desenvolve seus argumentos com silogismos ostensivos. Mas. suas claras distinções também indicam uma natureza conciliadora, pois deseja afirmar os pontos comuns entre ele e Cary e elaborar uma proposição clara e sucinta.^ A caracterização que Cary faz de Êxodo 20 como uma republicação da aliança das obras — não apenas da perspectiva material, mas também formal, no que diz respeito a sua estrutura e objetivo — pode ser aceita por outros, mas com certeza não era a posição de Flavel, Bali, Buigess ou Roberts, para citar apenas alguns. A correspondência de Gênesis 17 com Êxodo 20, feita por Cary, foi uma ruptura acentuada com a exegese reformada e a teologia da aliança. É interessante que Flavel trata primeiro da questão do Sinai, pois derrubar sua posição sobre aquela passagem também derrubará a posição de Cary sobre Gênesis 17. No entendimento de Flavel, o segundo argumento fundamental de Cary era que, pelo fato de a aliança particular com Abraão em Gênesis 17 incluir uma obrigação, a saber, a circuncisão, ela obrigava à guarda de toda a Lei e era, portanto, uma aliança das obras. Flavel identifica precisamente essa diferença da seguinte maneira: N esse p o n to , a co n tro v é rsia e n tre n ó s n ã o é: (1 ) se a c ircu n c isã o foi u m a in ju n ção divina q u e D eu s in clu iu e m su a a lia n ç a c o m A b ra ã o ; (2 ) se a d e s c e n d ê n c ia ordinária e e x tra o rd in á ria d e A braão d e v ia m s e r e n a p rá tica e ra m se la d a s co m ela; (3 ) se e ra u m selo d a ju stiça d a fé a u m a p e sso a in d iv id u al, v isto q u e D eus p erm ite q u e fo sse a ssim c o m A bra ão ; (4 ) se d iz resp eito à lei ce rim o n ia l e, p or essa ra z ã o , p re cisa c e s s a r c o m a m o rte d e C risto . M as a d iferen ça e n tre n ó s é : (1 ) se foi u m selo d a a lia n ç a só p a ra A b ra ã o ; (2 ) se , d ev id o à n a tu re z a do p ró p rio ato de circu n cid a r o u a p e n a s d ev id o à in te n çã o d a p e sso a q u e circu n c id a , o s h o m en s estão o b rig ad o s a g u a rd a r to d a a L ei, ta l q u al A dão foi o b rig ad o a g u a rd á -la em seu e sta d o d e in o c ê n c ia ; (3 ) s e foi to ta lm e n te ab o lid a c o m a m o rte d e C risto co m o co n d ição d a a lia n ça d as o b ra s o u , sen d o u m sinal d a m e s m a a lia n ça d a g ra ça , d ebaixo d a q u al e s ta m o s a g o ra , ela n ã o é su b stitu íd a p o r u m n ov o sím b o lo do evangelho, q u e é o b a tism o . O sr. C ary afirm a q u e p o r n a tu re z a a c ircu n c isã o era u m a co n d içã o d a a lia n ç a d as o b ra s e, p o r e s ta r a s s o c ia d a à a lia n ça de D eu s co m A braão (Gn 1 7 ) , e la ta m b é m s e to rn a v a u m a v erd ad eira a lia n ça a d â m ic a d e o b ras. Rejeito ca te g o ric a m e n te e s s a id eia.^'

natureza con ciliad ora d e Flavel a p a re ce n o início e no fim de seu estud o. O bserve-se que ele havia em p restad o a C ary su a s có p ias p essoais d e Fran cis R oberts e O badiah Sedgwick

[Vindiciae legis, p. 1 3 3 -4 , in Works, 4 :3 7 5 ) . C om p are-se tam b ém a am isto sa tro ca de corresp on ­ dência entre Flavel e C lem ent Lake, u m q u aere q ue m o rav a próxim o. Veja Jo h n Galpine, org.,

Flavel, the Quaker, and the crown: John Flavel, Clement Lake and religious liberty in late 17th century England (C am bridge: R hw ym b ooks, 2 0 0 0 ) , p. 4 -7 . ^'Flavel, Vindiciae legis, A llv -A 1 2 r, in: Works, 4 :3 2 5 .

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Aqui â questão está relacionada com o lugar que a circuncisão ocupa na estrutura da aliança. Cary, ao situá-la na aliança das obras, pôde defender que ela não tinha ligação alguma com o batismo, que estava na aliança da graça.““ Dessa forma, para Cary ela tem uma função parecida com a das árvores no Paraíso. Flavel mantém tanto a circuncisão quanto o batismo dentro da mesma e única aliança da graça, visto que “a aliança de Deus com Abraão (Gn 17) é, em essência, a mesma aliança debaixo da qual nós, crentes gentios, estamos hoje”, conforme os pais reformados demonstraram com base em Lucas 1.54-74; Mateus 21.41,43; Romanos 11; Gálatas 3.8,14,16; e Efésios 2.13.^’ Flavel identificou outra diferença-chave que havia na natureza da aliança da graça: ou essa aliança era “totalmente livre e absoluta” (ponto de vista de Cary) ou incluía certas condições (ponto de vista de Flavel). Flavel assim expõe essas diferenças: A qui a co n tro v é rsia e n tre n ó s n ã o é : (1 ) se a a lia n ç a d o ev a n g e lh o n ã o exige d a q u e le s q u e e s tã o d e b a ix o d ela o cu m p rim e n to d e o b rig a ç ã o a lg u m a ; (2 ) se ela e x ig e q u a isq u e r d a q u e la s c o n d iç õ e s q u e h a v ia n a a lia n ç a c o m A dão, a sab er, o b e d iê n cia p e rfe ita , p e sso a l e p e rp é tu a , so b a p e n a se v e ríssim a d e m a ld içã o e d e n e n h u m a p o ssib ilid ad e d e a rre p e n d im e n to ; (3 ) se q u a lq u e r c o n d iç ã o q ue e la e x ig e d e n ó s a d q u ire p o r su a n a tu re z a o m é rito d o s b en efício s p ro m etid o s; (4 ) se, c o m n o s sa p ró p ria fo rça e p elo p o d e r d e n o s so liv re-arb ítrio e c o m a g ra ça d iv in a p rev en ien te, b e m c o m o c o m a a u xilia d o ra , s o m o s c a p a z e s d e realizar q u a isq u e r d a q u e la s o b ra s o u d e v e re s a q u e d a m o s o n o m e d e c o n d iç ã o . N esses a s s u n to s , n ã o e x iste co n tro v é rsia a lg u m a , m a s a ú n ic a q u e stã o en tre n ó s é se na n o v a a lia n ç a , a n te s d e re c e b e rm o s u m a b ê n ç ã o o u p rivilégio d e c o rre n te d e u m a p ro m e ss a , e x ig e -se q u e re a liz e m o s alg u m a to (e m b o ra n ã o p o s su a n ele m érito a lg u m , n e m p o s s a s e r feito so m e n te e m n o s s a fo rça p e s s o a l), e se o cu m p rim e n to d e s s e d ever, q u e te m a ca p a c id a d e d e su sp e n d e r a b ê n ç ã o p ro m e tid a , n ã o tem a v e rd a d e ira e real n a tu re z a d e u m a c o n d iç ã o d o e v a n g e lh o . E u afirm o isso , e ele d e fin itiv a m e n te n e g a .“

Flavel resumiu de modo competente as principais questões e, com isso, mostrou para nós a intricada natureza dos argumentos. Está claro que ambas as posições tinham muito em comum uma com a outra e com a tradição re­ formada. No caso de Cary, embora seu conceito doutrinário de aliança fosse falho, sua linguagem incluía uma ampla variedade de expressões pactuais. **Cp. W illiam Allen, Some baptismal abuses briefly discovered (Lon don : J . M ., 1 6 5 3 ), p. 30-2. Allen nega que o b atism o seja a continu id ade d a circu n cisã o , pois a circu n cisão era “u m a parte principal da ad m in istração da lei” e n ão p erten cia à “ad m in istração do evan g elh o ”. ^’ Flavel, Vindiciae legis, p . 7-8. “ Flavel, Vindiciae legis, A 12v-A 13r, in: Works, 4 :3 2 5 -6 .

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Como era comum à época, a aliança das obras podia ser facilmente chamada de “aliança da lei” e às vezes de “aliança da vida”, ao passo que o mais comum é a aliança da graça ser chamada de “aliança do evangelho” e às vezes “aliança de fé” ou “aliança da graça do evangelho”. Cary também fala da “aliança ceri­ monial”, do “livro da aliança” (Êx 24.7) e da “aliança da circuncisão”.®' Cary dá especial atenção às alianças com Arão e Fineias.®^ Ele não comenta sobre a diferença entre aliança (fo ed u s/p a ctu m ) e testamento itesta m en tu m ), embora uma das citações que faz de Sedgwick talvez aborde um pouco a distinção.®® Cary, no entanto, restringe todas as questões da Lei a uma única aliança, a saber, a aliança das obras. Essa restrição força-o a interpretar tudo de forma mecânica ou mesmo arbitrária. Promessas que não são acompanhadas por exigências claras são necessariamente incondicionais, ao passo que cada exi­ gência ou lei pertence necessariamente à aliança das obras, mesmo que esteja situada bem ao lado de uma promessa de graça. Cary é consistente na aplicação dessa distinção a ponto de seu conceito de aliança se tornar um padrão “Lei versus evangelho” que é aplicado em cada texto. Por exemplo, Gênesis 17.1-9 apoia uma aliança absoluta da graça, mas o versículo 10 necesscuriamente im­ plica uma mudança para uma aliança condicional de obras porque introduz a exigência de circuncisão — aliás, sua hermenêutica Lei-evangelho é para ele uma regra mais importante do que a unidade dos testamentos, a regra de fé, ou a interpretação de um texto de acordo com seu contexto {u su s lo q u e n d i). Por exemplo, o prólogo aos Dez Mandamentos revela uma aliança da graça, mas os mandamentos que seguem formam uma aliança das obras.®^ Impor tal padrão aos textos força Cary a postular que Moisés e os israelitas eleitos estavam ao mesmo tempo debaixo de duas alianças contrárias, pois a aliança das obras é feita com Moisés e, nele, com todo Israel, ao passo que a aliança da graça, feita com Cristo, é estendida aos eleitos em Israel, sendo Moisés obviamente um deles. De modo análogo, Abraão e sua posteridade física são parte da aliança das obras, contudo os eleitos dentre eles também são incluídos na aliança da graça.®® ^'Carf, Solemn caU, p. “ Cary, Solemn call, p. “ Cary, Solemn call, p. “ Cary, Solemn call, p. “ Cary, Solemn call, p.

1 3 8 , 1 4 3 , 1 6 8 , 1 7 3 , 1 7 8 -8 2 . 192. 216. 146. 1 7 5 ; cf. p. 2 2 4 , 2 2 9 p ara outros exem plos. 1 3 8 , 1 4 0 , 1 7 9 , 2 2 3 . Cp. N ehem iah C oxe, que defende q ue a alian ça

da graça, estabelecida co m A braão c e rc a d e 2 5 a n o s a n tes da alian ça d a circu n cisão , n ão teve a inclusão de n enhum sinal exterior. M ais tard e, ele an alisa G ênesis 17 e d eclara q ue esse é um "prelúdio à alian ça do S inai”. Ele defende q ue a ord em de D eus a A braão em G ênesis 17.1 para que fosse íntegro ap resen ta a a lia n ça de circu n cisão co m o u m a alian ça d as obras. “O Senhor se agradou em estab elecer [em Gn 17.1 -1 1 ] os prim eiros p arâm etros daquela form a de relações pactuais, nas quais a d escen d ên cia n atu ral de Abraão foi co lo cad a d e m od o com p leto n a lei

de Moisés, a qual e ra u m a aliança de obras, e e m su a co n d içã o o u cláu su la faze isto e viverás" (A discourse of the covenants... wherein the covenant o f circumcision is more largely handled... [[London]: J. D „ 1 6 8 1 ], p. 9 0 , 1 0 4 -5 ).

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Flavel acha que isso é impossível; Cary foge à objeção de Flavel, recorrendo a Romanos 11.33. “Ó profundidade!”, ele escreve.** Quando Flavel expõe sua própria posição, afirma com toda clareza que a aliança do evangelho é condicional; por isso, ele não vê conflito algum em associar a condição da circuncisão ou do batismo à aliança da graça. A exigên­ cia de realizar algo numa aliança não a toma automaticamente uma aliança de obras. Pelo contrário, a graça divina e a responsabilidade são inseparáveis na aliança da graça. Flavel inicia com uma definição importante: "Uma condição é a suspensão de uma dádiva até que se faça algo no futuro”.*^ Na aliança da graça, isso significa: “A dádiva da salvação por Deus na aliança do evangelho é suspensa para todos os homens até que creiam, e por promessa (não por mérito) é devida a eles assim que verdadeiramente crerem”.** Podemos assinalar: algo é "devido” da parte de Deus, mas não está associado a mérito humano. É de­ vido apenas porque Deus se obrigou mediante promessa. Deparamos, então, com uma demarcação bem clara da diferença entre promessa e aliança que tenta entender a distinção entre incondicional e condicional. Flavel escreve: U m a a lia n ça é u m p a cto o u a co rd o m ú tu o e n tre p a rte s, n a q u al elas se o b rig am a cu m p rir su a s re sp e ctiv a s p ro m e ss a s. D e m o d o q u e n ã o p o d e h a v e r o u tra alia n ça p ro p ria m e n te d ita q u an d o n ã o h á m u d a n ç a n as clá u su la s o u o b rig a çõ e s d e u m a p a rte n e m n a p ro m e ss a d a o u tra p a rte . M as u m a p ro m e ss a ab so lu ta o b rig a ap en as u m a d a s p a rte s e d e ix a a o u tra to ta lm e n te livre e se m e s ta r o b rig ad a a n ad a a fim de d e sfru ta r o b e m p ro m etid o . D e m o d o q u e, se to d a s as p ro m e ss a s do Novo

Testam ento sã o in co n d icio n ais e a b so lu ta s, n ã o fa z e m p a rte d e u m a a lia n ça (...] E las sã o p ro m e ssa s ab so lu tas, n ã o trazen d o — p ara q u e a s m isericórd ias p rom etidas se ja m d e sfru ta d a s — n e n h u m a o b rig a çã o a h o m e m alg u m a q u em são feitas.**

Analisando o vocabulário de promessa e aliança, Flavel reduz a ideia de Cary de uma “aliança incondicional” a uma mera “promessa” e, desse modo, não a uma “aliança” verdadeira. Ele acrescenta que a ideia de Cary conduz a licenciosidade antinomiana, pois as pessoas a quem essas promessas absolu­ tas são feitas serão salvas, quer se arrependam ou não. Do ponto de vista das Escrituras, portanto, as promessas de Deus precisam ser condicionais. Cary, é claro, faz objeção a isso e diz que a imposição de novas condições é “uma nova a lia n ça d e o b ra s com alguma misericórdia, mas não uma a lia n ça d a “ Cary, Solemn call, p. 174-5; cf. Flavel, Vindiciae legis, p. 11-31, in: *'Flavel, Vindiciae legis, p. 62, 66, in: Works, 4:348-9. “ Flavel, Vindiciae legis, p. 63, in: Works, 4:349. “ Flavel, Vindiciae iegis, p. 70, in: Works, 4:3 5 2 .

Works, 4:331-8.

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gra ça propriamente dita”.“ Flavel responde que, se a fé verdadeira que Deus

exige é dádiva dele, a aliança não é de obras. Cary replica que, se a fé é tanto uma condição quanto uma dádiva, então a aliança é absoluta. Isso leva Flavel a propor a distinção entre poder e ato, conforme se vê a seguir: Esse é um erro, e nisso o erro vos conduz a todos os demais. Embora a fé (que dizemos que é a condição que precisamos cumprir) seja dom de Deus e o poder para crer proceda de Deus, no entanto, o ato de crer é, propriamente falando, um ato de nossa parte [...] caso contrário, se podería concluir que, quando operamos qualquer graça — como fé, arrependimento ou obediência — é Deus quem crê, arrependese e obedece em nós; não somos nós que fazemos todas essas coisas, mas Deus.“ Flavel está afirmando que a condicionalidade da aliança deriva teologicamen­ te da relação entre a causalidade divina soberana e “a liberdade ou contingência das causas secundárias” (Confissão de Fé de Westminster, 3.1). De fato, as raízes dela estão na distinção entre Criador e criatura. Visto que Deus criou os seres humanos distintos dele e com mente e vontade, o ato de crer precisa ser deles. Por isso, do lado deles as obrigações da aliança são condições que eles precisam cumprir, ainda que Deus graciosamente lhes conceda o poder de fazê-lo. Assim Flavel mantém a coesão dos atos das vontades divina e humana, não como se estivessem em tensão, nem como se fosse calvinista na doutrina da eleição e arminiano na doutrina da cdiança, mas, por meio do método escolástico, fazendo criteriosas distinções entre as condições. lUdo isso está claramente dentro da tradição reformada.“ Opondo-se à tese de Perry Miller, Flavel não apenas afirma clara e inequivocéimente a graça divina — ele declara que não sabe de nenhum teólogo ortodoxo que, no sentido arminiano, defenderia as obras humanas na aliança, feitas pelo poder do livre-arbítrio, nem de algum que consideraria que tais obras têm qualquer mérito, quer de condignidade quer de congruidade —, mas, aprofundando a análise, também sustenta inequivocamente a eleição divina incondicional e a perseverança dos santos.“ Quanto ao argumento de Cary de que a circuncisão de Abraão foi um selo apenas para ele e não para seus descendentes, Flavel rastreia a ideia até o batista Tombes, o qual, de acordo com Flavel, a encontrou em Belarmino.“ “ Cary, Solemn call, p. 233. “ Flavel, Vindiciae legis, p. 72, in: Works, 4:352-3. “ Veja Willem J. van Asselt; J. Martin Bac; Roelf T. te Velde, Reformed thought on freedom: the concept of free choice in Early Modem Reformed theology (Grand Rapids: Baker, 2010). “ Flavel, Vindiciae legis, p. 7 3 ,1 1 5 -6 , in: Works, 4:368. “ Flavel, Vindiciae legis, p. 4 6 ,5 8 , in: Works, 4 :3 4 3 ,3 4 7 . Já em 1654, Tombes havia ressaltado a diferença entre a aliança nacional abraâmica e a aliança universal do evangelho. Veja Michael J. Walker, “The relation of infants to church, baptism, and gospel in seventeenth-century Baptist theology". Baptist Quarterly 21 (1966): 254. No mesmo artigo, na página 257, Walker também descreve uma antiga interpretação batista de ICoríntios 7.14.

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Flavel está, então, implicitamente acusando os batistas de se apoiarem num conceito da Contra-Reforma. Aliás, os puritanos assinalaram isso com mais frequência e repetidas vezes recordavam que, com competência, Ames havia refutado Belarmino nesse tópico; Belarmino queria restringir os referentes da circuncisão aos benefícios terrenos da terra e à posteridade física de Abraão. Em 1663, Thomas Shepard (1605-1649) conectou a maior parte daquilo que chamou de idéias anabatistas sobre a aliança e o batismo a vários erros papistas, os quais cita.“ A fim de apresentar suas idéias dentro de uma adequada estrutura da his­ tória da redenção, Flavel resume em sete itens a relação entre a aliança das obras e a aliança da graça. Em primeiro lugar, no Paraíso a aliança adâmica incluía a lei natural perfeita, a qual Adão era capaz de guardar (Ec 7.29). Em segundo, uma vez quebrada, essa aliança de obras nunca mais poderia ser meio de salvação: para o pecador sobraram só maldições (Gn 3.24). Em ter­ ceiro, Deus imediatamente anunciou sua aliança da graça (Gn 3.15), a qual foi sendo progressivamente revelada ao longo da história da redenção. A primeira aliança foi, então, encerrada para sempre, visto ser contrária à vontade de Deus haver duas maneiras de salvação disponíveis ao mesmo tempo — só Cristo é o caminho, a verdade e a vida. Em quarto, no Sinai, Deus dá nova força à lei da natureza a fim de frear o orgulho humano e entrega a Lei como instrumento da promessa. Embora a mera Lei contenha a essência da lei natural, as fiiialid a d es da Lei eram os típicos primeiro e terceiro usos.“ Quando se inclui a lei cerimonial para consideração, a Lei também mostrava e ensinava muito acerca de Cristo. Em quinto, isso significava que a aliança no Sinai foi acrescentada à promessa de Deus “no que diz respeito aos propósitos e objetivos da Lei baseados no evangelho. Em sexto, muitos judeus entenderam erroneamente 0 objetivo da Lei, descansaram na Lei e se casaram com ela como se ela fosse um marido (Rm 10.3; 2.17; 7.2,3). Por fim, esse erro fatal oferece a base para explicar as aparentes contradições das cartas de Paulo, pois “sabemos (...) que “ Thomas Shepard, The church membership o f children and their r i ^ to baptism (Cambridge, New England: Samuel Green, 1663), A4r-B2v. “ Em outra passagem, Flavel faz distinção entre a lei “presumida com o consistindo estri­ tamente nos Dez M andamentos” e a lei “considerada de modo mais com plexo” ou “no sentido complexo”. A descrição apresentada por Flavel da primeira categoria corresponde, conforme observação feita por Hesselink, à nuda lex de Calvino (veja 1. John Hesselink, Calvin's concept o f the law [Allison Park: Pickwick, 1992], P- 158, 188). Para outras ocorrências em que Flavel faz essa distinção e também atribui a mesma distinção a Roberts e Sedgwick, veja Vindiaarum

rrirulex, que é a resposta seguinte que ele deu a Cary e anexou à sua obra PUmelogia. a succinct and seasonable discourse o f the occasions, causes, nature, rise, growth, and remedies o f mental errors (London: R. Roberts, 1691), p. 192, 302, in: The whole works o f the Rev. Mr. John Flavel (London: W. Baynes, 1820), 3:503, 549. Veja tb. Vindiciae legis, a9r-v, in: Works, 4:323.

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a lei é boa, d esd e q u e usada de forma legítima” (ITm 1.8, grifo do autor).*' Fica claro que a posição de Flavel é mais matizada do que interpretar toda a Lei como aliança das obras e todas as promessas como aliança da graça. As duas alianças, assim como a Lei e a graça, estão numa relação complexa. Poderiamos dizer que existe graça na Lei e lei na graça.“ Flavel claramente era partidário de três alianças: redenção, obras e graça. No que diz respeito a seus objetivos, a aliança das obras foi revogada por oca­ sião da Queda; somente sua maldição e ameaça continuam existindo para os incrédulos. A aliança da graça iniciou como promessa, sem nenhuma condição para se receber tal promessa. Contudo, assim que foi estabelecida, a aliança da graça obrigava os recipientes a responder positivamente, vivendo dentro do vínculo estabelecido; em suma, tornou-se um pacto com atribuições bila­ terais. Nessa condição, exigia uma resposta da parte do povo de Deus, e essa resposta em nada diminuía a graça da promessa. Os recipientes humanos da promessa obtiveram o poder de crer, no entanto o ato de crer era deles. Por isso, a aliança única da graça — desde a época de Abraão, quando se exigia a circuncisão, até a era dos apóstolos, quando se exigia o batismo em lugar da circuncisão — permaneceu inalterada. Portanto, é legítimo olhar para o sacramento da circuncisão na antiga aliança para determinar quem são os reais recipientes do sacramento do batismo na nova aliança. No início do ano seguinte, na segunda etapa da disputa, o assunto esclareceu-se ainda mais.

A segunda rodada: A ju s t reply [Uma resposta justa] de Cary^ e V indidarum vindex [Reivindicações do defensor]^ de Flavel Antes mesmo da publicação da obra V in d icia e legis, de Flavel, Cary já estava respondendo a ela, de modo que no final de V in d icia e legis Flavel inclui umas poucas páginas de refutação a essa resposta. Das 184 páginas de A ju st rep ly , Cary dedica 128 para rebater Flavel. Cary sustenta repetidas vezes que Flavel detiupou o que disse, mas também parece que Flavel havia provocado algumas mudanças nas idéias de Cary.® Uma das mudanças mais incomuns envolve uma nova maneira de relacionar as duas alianças com a vida dos eleitos do Antigo Testamento. Flavel havia defendido que é contrário ao propósito de Deus colocar os crentes simultanea­ mente em duas alianças contrárias. Agora Cary sustenta que "Flavel, Vindiciae legis, p. 32-7, in: Works, 4:338-40. “ Ernest Kevan, The grace o f law: a study in Puritan theology (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2011). “ Acusações de deturpação tom am as páginas 17-8, 6 8 , 8 2 - 3 ,9 4 e ainda outras. Ele é espe­ cialmente sensível a “calúnias antinom ianas”. Veja Philip Cary, A just reply to Mr. John FlaveWs arguments by way o f answ er to a discourse lately published, entitled, A solemn call... (London: John Harris, 1690).

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H ou v e u m a a lia n ça d u p la en tre D eu s e Israel: u m a era c h a m a d a a lia n ça do p o v o ; a o u tra , a lia n ça de D eu s; m a s a m b a s e ram alia n ça s d e D eu s. A p rim eira e ra ch am ad a a lia n ça do p ovo p orq u e se exigia q u e o p ov o cu m p risse a s co n d içõ e s da alian ça. E ra u m a a lia n ça d e o b ra s, d a q u al M oisés e ra o m e d ia d o r e n a q u al e s ta v a m o b rig ad o s a , p o r si m e s m o s, e m p e n h a r-se p ela p ró p ria s a lv a ç ã o m e d ia n te o cu m p rim e n to de seu s p ró p rio s d e v e res, o q u e e ra im p ossív el e e ra a v e rd a d e ira n a tu re z a d a alian ça do Sinai (R m 1 0 .5 ; G1 3 .1 0 ,1 2 ) . A o u tra e ra u m a a lia n ç a d a g ra ç a do ev an g elh o , a q u al é in te ira m e n te g ra tu ita e ab so lu ta e d a q u al C risto é o ú n ico m ed iad o r e fiador (R m 1 0 .6 ,7 ,8 , e tc .; Hb 8 .6 ,7 , e t c .). E ssa é v e rd a d e ira m e n te a a lia n ça d e D eus. E e ssa é a a lia n ça — d iz D eu s — q u e e s ta b e le c e r e i.^

Essa aliança dupla teria gerado uma situação existencial um tanto esquizo­ frênica para o crente do Antigo Testamento, o qual teria de se esforçar para cumprir condições, ignorando o fato de que tal esforço era tanto inútil quanto desnecessário. Aliás, será que esse esforço na aliança das obras não prejudi­ caria a fé exigida na aliança da graça? Fica a impressão de que Cary adotou a posição que Flavel o desafiava a assumir — que aqueles judeus que procura­ vam usar a Lei para justificação (“obrigados a, por si mesmos, empenhar-se pela própria salvação mediante o cumprimento de seus próprios deveres”) entendiam corretamente o devido propósito da Lei. Por outro lado, parece que agora Cary se aproxima de Flavel, pelo menos ao falar de condições. Ele introduz uma distinção entre em p en h a r-se pelo perdão e recebê-lo . A fé é condição exigida para o segundo, mas não para o primeiro. Se a fé dissesse respeito ao primeiro, a condição seria meritória, mas, no se­ gundo caso, a fé é apenas meio ou instrumento.^' Cary menciona que Ames reconhece que as condições no “reino da graça” são “acompanhamentos ou consequências”.^^ De modo análogo, agora ouvimos que o primeiro chamado de Deus é “absolutamente gracioso”, entretanto mais tarde lemos que existe uma “ordem verdadeira [...] a saber, que a fé e a obediência devem preceder o aumento e ampliação delas”.” Respondendo à distinção de Flavel entre uma promessa absoluta e sem obrigações e uma aliança que necessariamente envolve compromissos por mais de uma das partes, Cary lança mão de um excelente trecho do comentário de John Owen sobre a Epístola aos Hebreus. Owen analisa berith e sua tradução por d ia th ek e, descrevendo a aliança divina com o dia e a noite (Jr 33.20,25) e com Noé (Gn 9.10) como exemplos de b erith como uma “promessa gratuita e voluntária” incondicional. Cary sustenta que, desse modo, Owen o inocenta A just reply, p . A just reply, p. ” Cary, A just reply, p. '^Cary, A just reply, p. ™Cary,

9 ; cf. p. 1 2 3 -5 .

” Cary,

3 4 ; cf. p. 106. 111. 8 5 -6 .

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da acusação de Flavel de que se apega apenas a uma promessa em vez de a uma aliança em si. Infelizmente Cary não percebe que Owen está analisando o sentido exato de uma palavra hebraica e não o significado teológico de “aliança’7* De todo modo, Cary se agarra à ideia que faz da aliança sinaítica e de Gênesis 17. Flavel se aprofunda mais no material. Desta vez ele põe em marcha um verdadeiro exército de autoridades no assunto, fazendo abundantes citações sobre a relação entre as duas alianças e sobre as condições na aliança da graça (Tlirretin, Owen, Pool, Roberts, Burgess, Mather, Bolton, Strong, Reynolds, Greenhill, Charnock, Burroughs, Pemble, Perkins, Bali, Davenant, Downham e até mesmo Crisp, este último porque Cary talvez o tenha em bom conceito).” Seus comentários sobre as condições apresentam, primeiramente, a diferença entre condição antecedente e condição consequente, mostrando que a contro­ vérsia está na primeira (existe concordância quanto à segunda). Nessa categoria ele exclui condições antecedentes que dizem respeito ao “primeiro decreto de aliança em Cristo” e, dessa maneira, passa àquelas condições antecedentes que se referem à “aplicação dos benefícios da aliança aos homens”. Em outras palavras, Flavel está fazendo distinção entre o estabelecimento incondicional da aliança e sua administração condicional. E, em seguida, discrimina ainda mais, rejeitando nessa categoria quaisquer condições antecedentes que "tivessem a força de causa meritória e primária”. Isso o deixa com a seguinte categoria (a qual é, em seguida, objeto de mais uma diferenciação): Uma condição antecedente não é nada mais do que um ato de nossa parte, o qual — embora não seja perfeito em cada um de seus detalhes, nem seja meritório do benefício outorgado, nem seja realizado na nossa própria força natural — mesmo assim, de acordo com a constituição da aliança e em virtude da promessa, é exigido '*Além disso, Owen inicia a análise toda com "não apenas [...] mas tam bém ”. Owen dá a entender que “no devido sentido uma aliança é simtheke. Mas em toda a língua hebraica não existe nenhuma palavra com esse exato significado [...] Quanto à palavra diatheke ela não tem propriamente o sentido de aliança. É propriamente um a disposição testamentária, e esta pode ocorrer sem quaisquer condições por parte daqueles para quem alguma coisa é deixada". Ob­ serve-se a ambiguidade de Owen: “esta pode ocorrer sem quaisquer condições” (Cary, A just reply, p. 118-9). "Flavel, Vindicianim vindex, p. 181-6, 196-213, 230, 237-46, 250-5, in: Works, 3:499-501, 505-12, 520, 523-4, 528-30. Flavel acrescenta referências a obras específicas de alguns “eminen­ tes teólogos estrangeiros” — a saber, Cameron, Ursinus e Paraeus, Poliander, Rivet, Wallaeus e Thysius — além de a Leiden Synopsis, Vindiciarwn vindex, p. 2 5 5 , in: Works, 3:530. O fato de Flavel conseguir reunir um número tão grande de testemunhas — tanto na Europa continental quanto na Inglaterra — da ideia predominante em que se mantinham coesos o estabelecimento unilateral e a administração bilateral da aliança da graça, é um argumento a favor da continui­ dade essencial do pensamento da aliança em todo o mundo reformado nesse período, além de uma forte prova contrária a várias abordagens historiográficas dos estudos acadêmicos sobre a aliança feitos no século 20.

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de n ós a fim d e re c e b e rm o s a s b ê n ç ã o s co n se q u e n te s d ele. E , c o m o co n se q u ê n cia , o s b en efício s e m isericó rd ias co n ce d id o s n a p ro m e ss a n e ssa o rd em s ã o e p recisam se r a d ia d o s p elo d o a d o r o u o u to rg a n te d elas a té a re a liz a ç ã o d o a to . A firm am o s q u e e ssa co n d içã o é a fé.^‘ M as aq ui ta m b é m a fé (q u e n e sse sen tid o é a co n d içã o d a n o v a a lia n ça ) é co n sid e ra d a : 1. Q u an to a su a e s s ê n c ia ; o u , 2.

Da p ersp ectiva o rg ân ica e instru m en tal. N a prim eira co n sid eração sob re a fé, de

acordo co m sua essência, ela é m antida em obediência, e, n esse sentido, nós a excluím os de justificar n ossa p esso a [...] M as, q u an d o ela receb e a C risto, n ós p en sam o s nela d e u m a p ersp ectiva o rg ân ica, relativa e (co m o a m aioria diz) instru m en tal.'’’

Com essa última distinção, Flavel nos levou a considerar a natureza instru­ mental da fé, 0 fides qua (a fé mediante a qual [alguém é justificado]), como condição necessária para a salvação, mas lembrando, é claro, que é uma dá­ diva no que diz respeito ao seu poder.'® Temos, então, uma correlação entre causalidade e condicionalidade. Aquilo que é instrumentalmente causai é, ipso facto, instrumentalmente condicional, e qualquer coisa que seja causal precisa anteceder seu efeito. No nosso entendimento, as conclusões de Flavel se baseiam em alguns pilares inabaláveis que ele levantou com base nas Escrituras; primeiro, a salvação e a fé são ambas fruto da graça; segundo, assim mesmo a fé é um ato humano; e, terceiro, ninguém é salvo sem a fé. Por meio de seu método escolástico, ele encontrou uma maneira de manter coesas em um sistema todas essas verdades.” Ao fazê-lo, ele se coloca no centro da ampla tradição reformada, conforme se pode comprovar com a variedade de autores que ele cita subsequentemente. Ainda outra passagem reitera a condicionalidade, declarando que a vonta­ de do “testa d o r, legisla d o r ou o u to rga n te [é] que sua lei ou testamento sejam executados ou cumpridos, quando a condição é executada, e não antes”. Tal condição não precisa ser nem de congruidade nem de condignidade, visto que não é essencial que uma condição seja meritória, e, desse modo, a fé humana, sem merecer nada, é a verdadeira condição da nova aliança.®® ' ‘ Veja tb. Vindicianmi vindex, p. 2 5 6 -7 , in: Works, 3 :5 3 6 - 7 , em que Flavel repete q ue a apli­ c a çã o da m isericórdia de Deus à alm a d os p ecad o res d epen de e d e c o n e do ato h um ano de crer. "E , se vós ap en as vísseis a n atu reza v erd adeiram ente d epen den te d a fé ( ...] rapidam ente adm i­ tiríeis sua natu reza co n d icio n a l” [Vindiciarum vindex, p. 2 5 7 , in: Works, 3 :5 3 7 ). "F la v e l, Vindiciarum vindex, p. 2 4 8 -5 0 , in: Works, 3 :5 2 6 -8 . ' “Flavel introd uz essa distinção co m u m a cita ç ã o d e Türretin, cu ja p osição é acom p an h ad a por Flavel. "A lg u é m poderá im plicar, dizendo q ue, p or se r dom de D eus, a própria fé é o início da aplica­ ção d os benefícios salvíficos de C risto. E m b ora seja verd ade, isso n ão en fraq u ece o fato de que a p articipação real na salvação d ecorre logicam ente só q uando a ca u sa instrum ental opera primeiro. “ Flavel, Vindiciarum vindex, p. 2 6 4 -5 , in: Works, 3 :5 3 4 .

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Quanto ao mais, Flavel defende a estrutura da aliança explicada em sua primeira resposta a Gary. Pensando naqueles que não têm disponibilidade para ler os livros mais intricados de seus colegas, Flavel conclui reunindo em sete teses os argumentos-chave a favor do batismo dos filhos pequenos dos crentes.®'

"One more blow" [Mais uma investida]: The ax la id to the toot [O machado posto à raiz], de Keach A morte de Flavel em 1691 poderia ter encerrado o debate, mas é evidente que Benjamin Keach (1640-1704), o prolífico autor batista, achou que as respostas de Flavel não podiam ficar sem resposta. Seu apoio aos argumentos de Gary é importante, pois Keach estava entre aqueles que assinaram o prefácio de S o lem n call (1690), de Gary. Mas estamos diante do interessante problema que, apesar de dar a dois livros títulos que indicavam que eram sua resposta a Flavel e, então, afirmar em cada um que “a segunda parte” com a resposta estava na gráfica, na realidade Keach nunca publicou a resposta. O melhor que podemos fazer é julgar o conteúdo pelo título que Gary rascunhou e assinalar uns poucos comentários em um de seus sermões. De acordo com 0 título, Keach argumenta contra deduzir o batismo infantil de Gênesis 17, empregando a mesma fundamentação dada por Gary, a saber, que Deus fez duas alianças distintas com Abraão e que a circuncisão pertence à aliança das obras, não à da graça. O subtítulo traz: “Wherein is shewed that God made a two-fold covenant with Abraham, and that circumcision appertained not to the covenant of grace, but to the legal and external covenant God made with Abraham’s natural seed, as such: together with an answer to Mr. John Flavel’s last grand arguments in his V in d icia ru m v in d ex " [Uma demonstração de que Deus fez uma aliança dupla com Abraão e que a circuncisão não pertence à aliança da graça, mas à aliança legal e exterior que Deus fez com a descen­ dência natural de Abraão junto com uma resposta aos últimos argumentos fundamentais do sr. John Flavel em seu V in d icia ru m v in d ex ] . N o sermão mencionado acima, Keach expressa admiração por Gary e demonstra estar de acordo com ele, ao mesmo tempo que critica duramente Flavel.®® Keach apri­ mora a posição de Gary, defendendo “várias administrações” da aliança das obras (embora afirme, incorretamente, que essa era a posição do próprio Gary) *'Flavel, Vindiciarum vindex, p. 2 8 0 -9 6 , in: Works, 3 :5 4 0 -7 . “ Benjam in K each, The ax laid to the wot, or, one blow more at the foundation o f infant baptism, and church-membership, part I (Lon don : B. K each, 1 6 9 3 ). “ E ssa obra n ão tern n en h u m a s e çã o d edicada a Flavel. Pod em os ap en as ap an h ar aqui e ali no serm ão u m as p ou ca s m e n çõ e s a Flavel e C ary (B en jam in K each, The ax laid to the root: con­

taining an exposition o f that metaphorical text o f Holy Scripture, Mat. 3:10. Part II. W herein Mr. FlaveTs last grand argum ents... (Lon don : B. K each, 1 6 9 3 ), p. 5 -6 , 1 6 ,1 8 , 2 6 - 7 . “ K each, The ax laid to the root, part 11, p. 1 7 -8 , 2 6 .

Os puritanos e o batism o infantil

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Reach também sustenta a ideia de que a função seladora da circuncisão de Abraão se limitou a ele.®^ Assim como muitos estudos pedobatistas da época afirmavam a posição de Flavel, da mesma maneira A x la id to th e w o t, de Reach, e outras obras confirmam que Cary não estava sozinho em supor que a ideia de duas alianças era a posição batista e em defender firmemente uma aliança incondicional da graça.®* A posição deles estava um passo mais próximo daquilo que mais tarde seria afirmado no meio dispensacionalista — que os santos do Antigo Testamento foram salvos de modo diferente dos santos do Novo Testamento.®^

Conclusão A teologia da aliança não é algo que se limita exclusivamente à tradição teoló­ gica reformada, mas, com certeza, é — para empregar as palavras de Richard Muller — “basicamente um fenômeno reformado”.®®Na Inglaterra do século 17, “batistas calvinistas” desenvolveram sua própria teologia da aliança, a qual, ao contrário de seus irmãos reformados, justificava excluir da igreja da nova aliança as crianças nos primeiros anos de vida, daí o termo “antipedobatista”. Para isso, teólogos batistas como Cary e Reach desenvolveram uma teologia da aliança que em muitos aspectos era bem diferente da teologia da aliança de teólogos reformados ortodoxos, como Owen e Flavel. Conforme assinalamos anteriormente, o debate não é sobre diferenças — quaisquer que elas sejam — entre a antiga e a nova alianças. Até mesmo para Owen, que sustentava uma posição minoritária sobre a relação entre a antiga e a nova alianças, a novidade da nova aliança em relação à antiga aliança não gerava nenhum problema para suas convicções pedobatistas. Pelo contrário, o debate se concentrava em como a aliança abraâmica se relaciona com a nova aliança. A questão é, como este capítulo demonstrou, se podemos falar de aliança abraâmica (no singular, conforme posição dos reformados) ou alianças abraâmicas (no plural, conforme posição dos batistas). Os antipedobatistas tinham de falar de duas alianças feitas com Abraão: aliança das obras e aliança da graça. Procedendo assim, puderam defender que a circuncisão pertencia à aliança abraâmica das obras e não à aliança abraâmica da graça. Pedobatistas reformados viam isso como uma exegese forçada e nada convincente — em particular à luz de “ R each , The ax laid to the mot, part II, p. 2 7 -8 . “ Benjam in R each ap resen ta sua ideia de d u as a lia n ça s, n a q ual a alian ça da g raça está en ­ cap su lad a no pactum salutis em The display o f glorious grace, or, the covenant o f peace opened (Lon don : S. Bridge, 1 6 9 8 ). “ Flavel, Vindidarum vindex, p. 1 7 7 , in: Works, 3 :4 9 7 . “ R ichard Muller, Dictionary o f Latin and Greek theological terms: drawn principally from

Pmtestant Scholastic theology (G rand Rapids: Baker, 1 9 8 5 ), p . 120.

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Romanos 4.11 — e um afastamento drástico da teologia reformada clássica da aliança. Hido isso dá a entender que antipedobatistas do século 17 usaram de fato 0 conceito da aliança para justificar suas convicções, mas o fizeram de um modo que diferia substancialmente da maneira que teólogos reformados haviam formulado sua doutrina da aliança da graça. Apesar de tudo aquilo em que concordavam em outros pontos doutrinários, essa proposta antipedobatista representou um importante ponto de divergência entre as duas tradições.

Capünlo 46 □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ a a o o □ □ □ DOD□ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □

Os puritanos e a ceia do Senhor □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ a a a D a a a D n a n a o a a n a n n D D n n □□□□□□□

Assim como Deus abençoa o pão e o vinho a fim de conservar e fortalecer o corpo [...] da mesma maneira Cristo, entendido e recebido pela fé, alimentará [o crente] e conservará, para a vida eterna, tanto o corpo quanto a alma. WiLUAM Perkins'

A ceia do Senhor é um encontro terreno com o Cristo celestial, diziam os puritanos. Nisso estavam de acordo com os ensinos de João Calvino.^ John Knox (c. 1505-1572), o elo entre Calvino e o puritanismo britânico,’ escreveu que assim como Cristo afirmou que ‘‘ele próprio era o pão vivo em que nossas almas são alimentadas para a vida eterna”, da mesma maneira.

‘W illiam Perkins, The foundation o f Christian religion, gathered into six principles, in: The workes o f that famous and worthy minister o f Christ in the Universitie o f Cambridge, Mr. William Perkins (London: Jo h n Legatl, 1 6 1 2 -1 6 1 3 ), 1 :8 . H-echos d este capítulo foram extraídos de M atthew W esterholm , “T h e ‘cream of creatio n ’ and th e ‘cre a m of faith ’: the Lord’s Supper as a m ean s of assu ran ce in Pu ritan th o u gh t”, Puritan Inform ed Journal 3 , n . 1 (2011): 2 0 5 -2 2 . ^Fontes prim árias das ideias sacra m e n ta is d e C alvino incluem Peatises on the sacraments; Catechism of the church o f Geneva; Forms o f prayer e Confessions o f faith, trad u ção para o inglês de Henry Beveridge (Grand Rapids: Reform ation H eritage Books, 2 0 0 2 ), p. 119-22, 1 6 3 -5 7 9 ; Ins­ titutes o f the Christian religion, ed ição de Jo h n T. M cNeill, tra d u ção p ara o inglês de Ford Lewis Battles (Philadelphia: W estm inster P ress, 1 9 6 0 ), 4 :1 4 ,1 7 - 8 [ed ições em p ortu guês: Jo ã o Calvino, As institutos, trad u ção de W aldyr C arvalho L uz (São Paulo: C ultura C ristã, 2 0 0 6 ) , 4 vols, e A

instituição da religião cristã, tra d u çã o de C arlos E duardo OUveira; Jo s é Carlos E stêvão (São Pau­ lo: E ditora UNESP, 2 0 0 8 ), 2 v o ls.]. ’Sobre o papel de K nox n a tran sm issão d a liturgia eu carística geneb rina para o puritanis­ m o inglês, veja Stephen M ayor, The Lord’s Supper in early English dissera (Lon don : Epw orth, 1 9 7 2 ), p. 1-12.

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a o in stitu ir o p ã o e o v in h o p a ra serem co m id o s e b eb id o s, [C risto] n o s co n firm a su a p ro m e ss a e c o m u n h ã o e a s se la p a ra n ó s [ ...] fa z e n d o c o m q u e sim b o lizem su a s d á d iv a s ce le ste s e a c h a n d o -o s a o s n o s so s se n tid o s; ele ta m b é m se d á a n ós m e sm o s, p a ra q u e o s e le m e n to s d a ce ia s e ja m receb id o s co m a fé e n ão c o m a b o c a , n e m a in d a m e d ia n te tra n sfu sã o d e su b stâ n c ia . M as a g e assim p a ra q u e, p or m eio d a v irtu d e [p o d er] d o E sp írito S an to , n ó s, sen d o a lim en tad o s c o m su a ca rn e e re v ig o ra d o s c o m se u san g u e, se ja m o s re n o v a d o s ta n to p ara a v erd ad eira p ied ad e q u a n to p ara a im ortalid ade.^

Dessa maneira “recebemos Jesus Cristo espiritualmente” na ceia do Senhor.^ Acerca da ceia, Stephen Charnock (1628-1680) afirmou: “Nesse ato existe mais comunhão com Deus [...] do que em qualquer outro ato religioso [...] Temos uma comunhão mais íntima com alguém quando sentamos à sua mesa para partilhar do mesmo pão e do mesmo cálice do que quando lhe pedimos algo que queremos ou lhe agradecemos um favor recebido”.® Ele explicou: “Cristo nos é apresentado de um modo real, e a fé se apropria dele de um modo real, se apega a ele, o aloja em sua alma, torna-o um morador, e a alma tem comunhão espiritual com ele na sua vida e morte, como se nós de um modo real comêssemos sua carne e bebêssemos seu sangue, que nos são apresentados nos elementos”.^ John Willison (1680-1750) escreveu que, quando participamos da ceia, deveríamos lembrar de Cristo repletos de admiração, de reverência, de lamento com o coração quebrantado por causa de nossos pecados, de ódio contra nossos pecados, de gratidão e de confiança em Cristo para nossa total justificação. Ele escreveu: “Nosso coração deve até mesmo arder de afeição por ele, quando nos lembramos das imensas inundações de ira que irromperam na alma de Cristo e ainda assim não conseguiram afogar seu amor por nós”.® É fácil entender por que os puritanos, que tinham a ceia do Senhor em tão alta conta, consideravam tão importante entender o sacramento biblicamente e praticá-lo espiritualmente. Como consequência, este capítulo tratará de duas áreas de interesse no âmago da abordagem puritana da ceia do Senhor: as questões doutrinárias sobre o significado da ceia e as questões pastorais sobre como os membros da igreja devem participar da ceia.

4s reform as Apocalipse 14.6 e os versículos seguintes ressaltam a primeira vez em que [a igreja verdadeira] se separa formalmente do Anticristo, quando o evangelho irrompe com tal força que igrejas verdadeiras foram erigidas e “houve uma Reforma gloriosa”.'* Essa Reforma, da qual existem três fases representadas por três anjos diferentes, foi realizada por crentes que se opunham à “igreja falsa”. Pedro Valdo (m. 1218) e seus seguidores, os valdenses, foram os primei­ ros a se separar da "doutrina e adoração papistas”.'^ Eles foram notáveis pelo fato de que pregavam o evangelho — um aspecto de sua fé — e chamavam ^«Goodwin, Revelation, in: Works, 2:70. ^Goodwin, Revelation, in: Works, 2:70-1. “Observem-se os comentários de Goodwin em Revelation, in: Works, 2:7S. ^'Goodwin, Revelation, in: Worfcs, 2:83. ^^Goodwin, Revelation, in: Works, 2:84.

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as pessoas a se afastarem da adoração idólatra. Por meio de sua pregação e tradução das Escrituras, João Wycliffe (c. 1328-1384), João Hus (1372-1415), Jerônimo de Praga (1379-1416) e seus seguidores promoveram a causa da reforma da igreja de forma muita parecida com a dos valdenses.^’ “Mas então vem”, afirma Goodwin, u m te rce iro a n jo , m a is in cisivo d o q u e os d e m a is. E sse foi L u tero e se u s seg u id ores [... L u tero ] m o stro u q u e a a d o ra ç ã o e a d o u trin a d a igreja [ ...] e ra m u m a d o u trin a e x e crá v e l [ ...] e x p o n d o a b e rta m e n te a falsid ad e e os erro s d e la , p ara q u e ag o ra , d e b a ix o de u m a lu z do e v an g elh o tã o c la ra c o m o se v ê n e s ta é p o c a , [a igreja ca tó lica ] n u n ca m ais in sista em afirm a r q u e a sa lv a ç ã o e stá n e la .“

Porém, Calvino e outros foram os principais responsáveis por essa Reforma no que diz respeito tanto à doutrina quanto à adoração. Essa Reforma foi uma época de “paz e brilho gloriosos do evangelho Para Goodwin, essas reformas assinalaram o processo pelo qual o papado foi derrubado; aliás, ele estava convicto de que “a luz que desde a época de Calvino irrompeu em muitas de nossas igrejas reformadas e ainda cresce e crescerá até que o Anticristo seja destruído, é — em questões de doutrina, interpretação das Escrituras, adoração, governo da igreja etc. — muito mais pura [...] do que a luz que brilha na história e nos escritos daqueles três últimos períodos mencionados anteriormente”.®® Apesar dos avanços feitos por Calvino e outros, Goodwin estava convic­ to de que a igreja de sua época precisava de uma “nova Reforma”, ou uma “segunda Reforma”.®^ Com base em seu sistema de datação e em sua análi­ se exegética detalhada de Apocalipse 11, Goodwin cria que vivia numa era que incluía uma intensificação na perseguição aos pastores reformados. É claro que o problema do papismo não se limitava à Igreja de Roma. Goodwin achava que a adoração, as cerimônias e as doutrinas papistas haviam se infiltrado na Igreja da Inglaterra, em especial com a crescente influência do arcebispo William Laud (1573-1645). Lawrence observa que “não há dúvida que Goodwin achava que Laud e seus simpatizantes — homens como White, Cosin e Montagu — eram os últimos defensores do papa. No devido tempo, esses homens e suas políticas eliminariam da Inglaterra — quer figurada quer literalmente — os pastores e os magistrados piedosos. Aquele tempo ainda não havia chegado”.®* Mas viria, estando no máximo poucas décadas adiante. “Goodwin, Revelatton, in: Works, 2:8S. “Goodwin. Revelation, in: Works, 2:85. “Goodwin, Revelation, in: Works, 2:86. “Goodwin, Revelation, in: Works, 2:129. ^'Goodwin, Revelation, in: Works, 2:78-9. “Lawrence, “H-ansmission and transformation”, p. 124-5.

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Assim sendo, era necessária uma última reforma, uma reforma com conse­ quências imediatas para Goodwin à medida que procurava reformar a Igreja da Inglaterra baseado em princípios piedosos — com reforma ele queria dizer a introdução de princípios congregacionais de governo da igreja. De acordo com Goodwin, essa reforma congregacional estava descrita em Apocalipse 11.

Apocalipse 11 Goodwin não conseguia esconder seu encanto com o fato de Apocalipse descrever com tanta precisão a história eclesiástica. Ele escreve: “Para mim é maravilhoso ver a maneira exata como essa visão [...] representa a situação das igrejas da Europa e os afazeres, os impulsos e as transformações que nela agora acontecem Isso transcorre da seguinte maneira: os gentios que pi­ sam a cidade santa durante 42 meses são o papa e seu “grupo idólatra”; eles estabeleceram uma adoração parecida com a da Roma pagã e exerceram seu "poder e autoridade [...] até que 42 meses se cumprissem”.“ Perto do fim dos 42 meses, o Anticristo começa a perder poder, o que corresponde à Reforma no norte da Europa. Mas a corrupção e os defeitos entraram até mesmo em igrejas protestantes e ali permaneciam a ponto de ser necessária uma reforma adicional.“ Aüás, “menos de um [entre cada] cem protestantes é verdadeiro adorador”.“ Para Goodwin, a reforma entre os protestantes era urgente. Goodwin afirmava que tinha chegado a essas compreensões com sua exegese de Apocalipse 11. É interessante que Thomas Brightman (1562-1607), talvez a segunda maior influência sobre a exposição que Goodwin faz de Apocalipse, havia interpretado Apocalipse 11 como “uma repetição de fatos ocorridos há muito tempo”.“ Mas nessa questão, Goodwin se afastou tanto de Brightman quanto de Mede.“ Conforme Lawrence comenta, “a interpretação [de Goodwin] não apenas desbravou território novo na história da exegese desse texto, mas [...] também revelou a lógica por trás de sua adoção de uma nova eclesiologia”.“ Goodwin fundamenta no “caniço” descrito em Apocalipse 11 sua resposta para o problema daqueles que professam falsamente a fé cristã em igrejas protestantes, insistindo na necessidade de adoração verdadeira, isto é, só a “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:118. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:118. A datação de Goodwin em relação aos 4 2 meses será analisada posteriormente neste capítulo. “ Goodwin escreve: “De sorte que em todos os sentidos em que os papistas [...) poderiam ser chamados de pátio exterior, estes também podem sê-lo" (Revelation, in: Works, 2:120). “ Goodwin, Revelation, in: IVorfcs, 2:121. “ Thomas Brightman, A revelation o f the Revelation (Amsterdam, 1615), p. 348. “ Sobre a interpretação de Mede, veja The key o f the Revelation, 1:11-2. “ Lawrence, ‘"n-ansmission and transformation”, p. 117.

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adoração que a Bíblia ordena. Contra práticas idólatras e não bíblicas inventadas pelos papistas, Goodwin argumentou: “Em questões da igreja não reconhe­ cemos nada que a Palavra não permita”.** O “caniço” utilizado para medir o templo de Deus é a regra que identifica aquilo que uma igreja verdadeira é, a saber, aquela que segue “o caminho certo da administração de toda adoração e diretrizes da igreja, como excomunhão, sacramentos [e] ordenação de oficiais das coisas sagradas”.®^ A excomunhão desempenhava um papel importante na eclesiologia de Goodwin; o caniço dado ao apóstolo João é usado para fazer distinção entre adoradores verdadeiros e falsos. Ser admitido à comunhão do povo de Deus ou ser excomungado dela é algo que depende das “regras da Palavra”.** É preciso fazer tudo tendo em vista o estabelecimento correto de igrejas verdadeiras, o que “nesta última era tem sido o principal trabalho dos pastores piedosos na Inglaterra”.*’ Além do progresso dessa última reforma, Goodwin também acre­ ditava que Apocalipse 11 falava daqueles protestantes carnais que faziam parte apenas do “pátio exterior”. A subsistência da adoração idólatra de Roma na Igreja da Inglaterra foi, de fato, profetizada pelo apóstolo João (Ap 11.1,2).^ Assim, conforme assinalado por Lawrence, “as inovações laudianas (segundo William Laud] e a resistência piedosa a elas tiveram o efeito de reforçar mutuamente a crença de Goodwin de que a segunda reforma havia sido iniciada”.^* O fato de Goodwin se separar do que na sua percepção era a Igreja da Inglaterra criptopapista foi, em muitos aspectos, o resultado natural de sua escatologia. Por isso, é preciso entender a posição de Goodwin como uma combinação de fatores, dois dos quais envolvem a relação importante entre escatologia e eclesiologia. >4s

duas testemunhas

Antes do alvorecer da glória escatológica, é preciso que haja sofrimento. Para Goodwin, no restante de Apocalipse 11 essa ideia está esboçada na identifica­ ção das duas testemunhas e em sua perseguição no final, a qual ele temia que pudesse incluir o martírio. Conforme observado por Rodney Peterson, é típico os protestantes identificarem as “duas testemunhas” ou com as Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos ou com pregadores fiéis; Lutero e Brightman adotaram uma variante da primeira interpretação, ao passo que Bullinger e “ Goodwin, Revelation, in: Works. 2:122. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:123. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:123. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:124. ’"Goodwin, Revelation, in: Works, 2:125. ’’Lawrence, ‘‘Transmission and transformation”, p. 120.

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Mede optaram pela segunda/^ Não se deve exagerar a diferença entre essas interpretações, visto que a pregação fiel do evangelho está sempre alicerçada nas Escrituras. Acompanhando Mede e Bullinger, Goodivin identificou as tes­ temunhas como “pastores e magistrados [...] destacados”/^ Essas testemunhas discutem com aqueles do “grupo papista”,'“* os quais procuram introduzir aquilo que Goodwin chama de “invenções humanas na adoração a Deus, as quais ele mesmo não ordenou”.” Mas, conforme Apocalipse 11.7 deixa claro, as testemunhas serão mortas. Aqui Goodwin se afasta de Brightman, que ha­ via sustentado que o “homicídio” das testemunhas “tinha se cumprido fazia muito tempo”. Goodwin defende que a perseguição das testemunhas ainda vai se cumprir.” A posição de Goodwin sobre a exata natureza da perseguição das testemunhas, conforme Lawrence assinala, era uma “posição com maior ênfase política” do que a de Mede.^"^ Assim, a besta que derrota as duas testemunhas representava não somente os papistas, mas também outros inimigos seculares.” Além de um possível martírio, Goodwin predizia que a perseguição incluiria “o silenciar geral de pastores e a deposição de magistrados e homens de bem que professavam e defendiam a religião [...] fechando seus locais de trabalho [e] queimando seus livros”.” Mas essa perseguição não incluía a morte literal deles, visto que sua “ressurreição não é de uma morte física e, portanto, sua morte também não é uma morte física”.“ Essa perseguição mais intensa de pastores e magistrados piedosos encontra um paralelo na vida de Cristo, que sofreu antes de entrar em sua glória. Assim como a cruz representou o ponto mais baixo do sofrimento de Cristo antes de ele ser livrado, da mesma maneira os santos saberão que 0 livramento está próximo quando sofrerem nas mãos dos papistas. Não há '^Rodney Peterson, Preaching in the last days: the theme o f "Tivo witnesses” in the sixteenth and seventeenth centuries (New York: Oxford University Press. 1993), p. 99-100, 203-9. ” Goodwin, Revelation, in: Works, 2:135. ^Goodwin, Revelation, in: Works, 2:139. "Goodwin, Revelation, in: Works, 2:138. "Goodwin, Revelation, in: Works, 2:144-5. "Law rence, “Transmission and transformation”, p. 123. "Goodwin, Revelation, in: Works, 2:151. "Goodwin, Revelation, in: Works, 2:154. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:154. Posteriormente, Goodwin escreve: “Os corpos esten­ didos dessas testemunhas aqui precisam ser vistos necessariamente como metáfora e entendidos como morte civil e repressão deles e de sua causa. E, como são testemunhas, precisam ser repri­ midas e aniquiladas para que, por algum tempo, permaneçam como homens expostos junto ao muro como se estivessem mortos e com o homens em cujo testemunho não parece existir vida nem algo parecido com uma restauração, pois seus inimigos agora têm um poder tão imenso sobre eles [.,.] E, por outro lado, a restauração deles e de sua causa é proclamada por uma res­ surreição dentre os m ortos” (Revelation, in: Works, 2 :155). Mas nessa m esm a página Goodwin afirma que teme que alguns possam de fato ser martirizados.

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dúvida de que esses “defensores finais”® da besta incluíam anticalvinistas como William Laud, Richard Montagu (1575-1641) e John Cosin (1595-1672). Conforme Lawrence observa, "no devido tempo esses homens e suas políticas eliminariam, de maneira figurada ou literal, da Inglaterra os pastores e os magistrados piedosos. Aquele tempo ainda não havia chegado ”.®2 Mas logo chegaria, como Goodwin acreditava, em parte devido a um elaborado esquema de datação, o qual havia herdado de Mede, ainda que com alguma modificação.

Datas e datação De acordo com a interpretação de Apocalipse de Goodwin, as profecias de acontecimentos importantes da história ocidental tanto imperial quanto ecle­ siástica estavam se cumprindo em seus dias. Essa avaliação era confirmada por sua análise do momento exato quando o fim chegasse ao clímax. Por exemplo, acerca do "assassinato” e “ressurreição” das testemunhas, Goodwin assinala que os escritores de “hoje” chegam a uma de duas datas — entre 1650 e 1656 ou então 1666 — sendo que “os dois períodos não estão distan­ tes”.*® Um desses autores foi um colega congregacional de Goodwin, William Bridge, o qual identificou os 1.260 dias de Apocalipse 11.3 com anos, “como é comum nas E s c r i t u r a s E s s e s 1.260 anos, ou 42 meses, se iniciaram por volta do ano “400 ou 406 ou [4] 10 ou por volta disso”.®* Essas datas estão associadas com a queda do Império Ocidental, e aí de novo a importância da história secular entra nas interpretações do século 17 sobre Apocalipse. Para Bridge, 1666 era, então, o ano em que Deus livraria seu povo das persegui­ ções dos últimos 1.260 anos.“ Conforme Jue assinala, Goodwin optava pela primeira data, 1650-1656, pois Mede “havia sincronizado o toque da primeira trombeta com o início do reinado do papa em 395 d.C. Acrescentando 1.260 anos (os dias proféticos do reinado da besta), [Goodwin] concluiu que o fim daquele reinado seria no final do ano de 1655. Desse modo. Cristo voltaria em 1656”.*^ Mas, de acordo com Jue, a leitura que Goodwin fazia da data de Mede para o início do milênio “não era totalmente precisa”.** De fato, numa carta ao arcebispo James Ussher (1581-1656), Mede na realidade sugeriu que “'Goodwill, Revelation, in: Works, 2:151. “ Lawrence, “TVansmission and transformation”, p. 125. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:182. “ William Bridge, Seasonable truths in evil-times in several sermons (London: para Nath. Crouch, 1668), p. 113. “ Bridge, Seasonable truths, p. 113-4. “ Bridge, Seasonable truths, p. 115. “ Jue, Heaven upon earth, p. 179. “ Jue, Heaven upon earth, p. 179.

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0 reinado da besta terminaria em 1736.®’ Mesmo assim, Goodwin chegou às suas próprias conclusões sobre o início do reino milenar de Cristo. E, o que não é de surpreender, embora um tanto diferentes das idéias de Bridge e Mede, essas conclusões aguardavam seu cumprimento no século 17. Para Goodwin, a chave para chegar à data correta se encontra em Daniel 12.11,12.’'’ O imperador romano Juliano (c. 331-363), que foi apelidado de “apóstata”, era, segundo Goodwin, aquele que Daniel 11 descreve como o rei que removeu o sacrifício diário.” Além de perseguir os cristãos, Juliano foi responsável por “estabelecer a idolatria pagã no mundo Partindo dessa pressuposição básica, Goodwin aborda Apocalipse 11 com o objetivo de en­ tender qual seria a duração do reinado do Anticristo e quando ele terminaria. À luz de Daniel 11, existem dois períodos a observar. O primeiro, conforme assinalado, se refere à “remoção do holocausto diário” (TA) a partir dos dias de Juliano. Os 1.290 “dias” mencionados em Daniel 12.11 somados a 360 (i.e., a época de Juliano) resultam no ano de 1650 ou por volta disso.’®Mas Daniel 12.12 apresenta um número adicional, 1.335 “dias”, que termina “entre 1690 e 1700”.’* Goodwin descreve esses dois períodos como “duas colunas, uma no início e a outra no fim de todo aquele intervalo de tempo designado para cumprir aquelas grandes coisas profetizadas a acontecer antes do reino de Cristo”.” Entre 1650 e 1700, a história transcorrerá de uma forma que introduz 0 reino de Cristo, a saber, “a ruína de Roma e, desse modo, o fim do reinado do Anticristo e, então, a destruição do Império Tlirco”.’®Em outras palavras, 1650 não sinaliza o fim do reinado do Anticristo; pelo contrário, assinala o ponto decisivo da história e o início dos preparativos para a vinda do reino de Cristo. Em tudo isso, Goodwin não deixou de reconhecer que seu esquema de datação poderia ser revelado como incorreto. Assim, ele declara: “deixo estas idéias e conjecturas (...) para que recebam esclarecimentos complementares e considerações adicionais, sabendo que com frequência tais idéias e conjecturas têm falhado e enganado outros e considerando também que, na determinação* **106, Heaven upon earth, p. 179. ^Daniel 12.11,12: “Desde o tempo em que o holocausto contínuo for tirado, e a abominação assoladora for estabelecida, haverá mil duzentos e noventa dias. Feliz do que espera e chega aos mil trezentos e trinta e cinco dias”. ’ 'Goodwin, Revelation, in: Works, 2:1 8 3 . Sobre a religião de Juliano, veja Rowland Smith, Julian’s gods: religion and philosophy in the thought and action o f Julian the apostate (London: Routledge, 199S); Adrian Murdoch, The last pagan: Julian the apostate and the death o f the

ancient world (Stroud: Sutton, 2003). “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:183. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:184. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:184. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:184. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:185.

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dos tempos e épocas das grandes obras maravilhosas de Deus, é preciso ex­ pressar grande humildade”.®' Apesar dessa ressalva, Goodwin insistia que esses grandes acontecimentos da história estavam se aproximando rapidamente e que os piedosos deviam se preparar para eles, pois “a verdade é que tanto o assassinato quanto a ressurreição das testemunhas bem como o chamado dos judeus podem acontecer mais cedo do que percebemos”.®® É claro que tudo isso tem em vista um objetivo definido: o estabelecimento do reino milenar de Cristo na terra.

O milênio A obra de Goodwin Exposition o f Révélation [Exposição de Apocalipse] é notável porque, apesar de todas as conjecturas que ela faz sobre o desdobramento da história até a culminação no milênio, na realidade não há praticamente ne­ nhuma análise do milênio em si. Mas o que ele defende sobre o reino milenar de Cristo é deveras fascinante, em especial porque, conforme assinalado por Crawford Gribben,®® Goodwin se afasta de pessoas como Teodoro Beza, Thomas Brightman, Joseph Mede, William Ames (1576-1633) e James Ussher, ao sugerir que “esse reino de Cristo que virá à terra é uma condição bem mais gloriosa para os santos do que aquela que suas almas têm agora no céu”.’“ Conforme Gribben sugere, “Goodwin estava fazendo uma afirmação sobre o reino milenar que ia muito além da posição cautelosa e conservadora de Mede”.“" Um dos fatores importantes que impele o milenarismo de Goodwin é a glória do Deus-homem, Jesus Cristo. Aliás, entre todos os puritanos, Goodwin dá à glória de Cristo um destaque teológico que supera todos os seus contem­ porâneos, até mesmo John Owen (1616-1683). E não há dúvida de que isso é em parte impelido por sua escatologia. Para Goodwin, Cristo possui uma glória tríplice: (1) a glória essencial que, por causa de sua natureza divina, não pode ser aumentada nem diminuída; (2) a glória inata que, por causa da ’'Goodwin, Revelation, in: Works, 2:190. Paul Ling-Ji Chang propôs que, em Exposition of Ephesians, Goodwin “se tornou mais cauteloso” quanto à determinação de datas. Para confirmar isso, Chang menciona os comentários de Goodwin sobre Efésios 2 .7 . Chang escreve: “Quanto à p e^ u n ta ‘quando essas coisas se cumprirão’ , [Goodwin] respondeu que ‘não vemos nada a res­ peito, está oculto de nós’. Ao contrário do que havia feito antes, Goodwin não apresentou data alguma. Ele evitou conjecturas infundadas” (“Thomas Goodwin [1600-1680] on the Christian life” [tese de doutorado, Westminster Theological Seminary, 2001], p. 61). Mas, ao contrário do que afirma Chang, os comentários de Goodwin se referem claramente à resposta da igreja de Éfeso no que diz respeito à plena consciência dos beneffcios salvíficos que ela possuía. “ Goodwin, Revelation, in: Works, 2:1 9 0 . “ Gribben, Puritan miUenninm, p. 45. “"Goodwin, Revelation, in: Works, 2:14. '“ Gribben, Puritan m illennium , p. 45.

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união hipostática, pertence exclusivamente a ele; e (3) a glória relacionada à sua obra de mediação que é a recompensa que recebeu por sua obra.'“ As duas últimas glórias estão associadas com a pessoa e obra de Cristo. A terceira glória, sua glória em função da sua obra de mediação, fornece o fundamento para as idéias de Goodwin sobre o milênio, aquilo que ele chama de “mundo vindouro”. Embora sua obra E xp o sitio n o f R evelation contenha apenas uns poucos comentários sobre o milênio, em E xp o sitio n o f E p h esia n s [Exposição de Efésios] — especificamente Efésios 1.21,22 — , Goodwin “tratou longamen­ te do tema”.'“ O mundo vindouro, em que Cristo governa especificamente como o me­ diador exaltado, inclui o céu e a terra. A ressurreição e a ascensão de Cristo introduz luna nova criação (Ef 1.21). Como consequência, Goodwin sugere que os cristãos designam a criação não com base em Gênesis 1, mas com base na ressurreição de Cristo: “Mas dizemos m il e seiscen to s [...] contando a partir de Cristo, pois foi quando nosso novo mundo começou”.'“ O “novo mundo” se refere, então, ao governo de Cristo no céu sobre o mundo desde o momento de sua ressurreição. Por ocasião de sua ressurreição, ele havia “lançado por terra o paga n ism o e o ju d a ísm o (o que foi a obra de seu primeiro dia [...]). Então vem uma noite de p a p ism o [...] Ele terá a obra de um segundo dia e não cessará até que tenha lançado fora cada trapo [...] daquele A ntvcristo ou papism x)”.'^ Para Goodwin, o objetivo em mente é a introdução do milênio: “que esse estado de glória de uma igreja gloriosa na terra continue por mil anos, durante os quais os ju d e u s a terão e os g en tio s junto com eles”.'“ No novo mundo. Cristo “trará o céu” à terra, ou seja. Cristo não descerá fisicamente (“esse é 0 velho erro de alguns”), mas reinará a partir do céu sobre a terra porque o Diabo está “preso por mil anos” (Ap 20.1-3).'“ O meio que Cristo usa para reinar é a ressurreição de mártires. As almas de mártires voltarão do céu para a terra para serem unidas com corpos ressuscitados e reinarão durante o milênio até que Cristo volte no dia do juízo.'“ Antes de Goodwin, Johann Heinrich Alsted (1588-1638) havia feito comentários semelhantes sobre a natureza '“ Veja Thomas Goodwin, Ephesians 1, in: Works 1:402; O f the knowledge o f Cod the Father, 2;131ss. As duas obras se encontram em The works o f Thomas Goodwin D.D. Sometime president of Magdalen College in Oxford (London: J. D. e S. R. para T. G., 1681-1704). ‘“ Gribben, Puritan m illennium , p. 47. '"Goodwin, Ephesians 1, in: Worfcs, 1:454. ■“ Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:455. '“ Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:456. ■“ Goodwin, ^ h esia n s 1, in: Wbrks, 1:456. '“ Goodwin, Ephesians 1, in: Wbrks, 1:457-9. Goodwin menciona os comentários de Agostinho sobre o milênio, a saber, que, se só alegrias espirituais vêm do céu, então é possível tolerar a opinião dos quiliastas. Mas, de acordo com Agostinho, os quiliastas eram materialistas indul­ gentes. Veja tb. Jue, Heaven upon earth, p. 119-21.

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do milênio na terra. Alsted dividiu a igreja do Novo Testamento em quatro períodos, O terceiro período corresponde aos mil anos de que Apocalipse 20 fala.'“’ Durante esse período, mártires ressuscitarão. Uma “dupla conversão ou chamado dos gentios” acontecerá, e os judeus serão convertidos.“®Depois de Goodwin, mesmo depois de 1666, uma data importante para os milenaristas,

0 pastor congregacional e quintomonarquista Samuel Petto (1624-1711) defen­ deu as mesmas ênfases de Goodwin e Alsted, a saber, que a ressurreição das “testemunhas” (i.e., os mártires) e a conversão dos judeus introduzirão a era do milênio."’ Ele escreve: “Deve-se contar com a conversão dos judeus, de um número enorme daquele Israel”."^ A obra de Petto, publicada em 1693, mostra que 0 milenarismo não acabou com a Restauração em 1662, mas permaneceu bem vivo no período final do século 17, ainda que com conclusões exegéticas ligeiramente diferentes."^ Conforme assinalado, o milênio era para Alsted o terceiro de quatro períodos da história da igreja do Novo Testamento. A igreja em geral incluía não apenas os quatro períodos da igreja do Novo Testamento, mas também o tempo antes e depois da Queda. Essa é a igreja na terra. Alsted também reconheceu o papel da igreja no céu, onde Cristo r e i n a .I s s o também é consistente com o padrão básico de Goodwin sobre a glória cristológica e eclesiológica. Permanecendo corporeamente no céu. Cristo é o rei dos reis; “é o rei dos anjos, o cabeça de todos os principados e poderes [tanto poderes como poderios, A21]”." ’ Owen observa que o cabeça “no qual Deus fez convergir todas as coisas no céu e na terra num só e único corpo [...] é Jesus Cristo”."® Essa glória estava “reservada ””Johann Heinrich Alsted, The beloved city, or. the scants reign on earth a thousand yeares asserted and illustrated from IX V places o f Holy Scripture, tradução para o inglês de William Burton (London, 1643), p. 7. Sobre a escatologia de Alsted, veja Howard B. Hotson, Paradise postponed: Johann Heinrich Alsted and the birth o f Calvinist milleruxrianism (Dordrecht: Kluwer, 2000). '“Alsted, The beloved city, p. 7-9. Jue oferece uma análise particularmente esclarecedora do milenarismo inglês e dos vários debates em torno do quiliasmo. Veja Heaven upon earth, p. 141-74. "‘Samuel Petto, The Revelation unvaüed... (London: para John Harris, 1693), p. 142-3. Petto reconhece que durante o século 17 muitos haviam falhado em suas predições de datas e escreve um pós-escrito em que trata disso (veja p. 161-4). "^Petto, The Revelation unvailed, p. 157. '“Warren Johnston mostrou que as convicções apocalípticas estavam bem vivas após a Restauração (1660), o que se vê na Revolução de 1688-1689 (“Revelation and the Revolution of 1688-1689”, The Historical Journal 48, n. 2 [2005], p. 351-89). Veja tb. Ernestine van der Wall, ■“Antichrist stormed’: the glorious revolution and the Dutch prophetic tradition”, in: Dale Hoak; Mordechai Feingold, orgs.. The world o f William and Mary: Anglo-Dutch perspectives on the Revolution o f 1688-89 (Stanford: Stanford University Press, 1996), p. 152-64. "^Alsted, The beloved city, p. 11. "^Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:425. ‘“Owen, The glory o f Christ, in: Works, 1:371.

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para ele”, e só Cristo “poderia suportar o peso dessa glória”.“' À semelhança de Goodwin, Owen entende a glória de Cristo no mundo vindouro, tanto como sua glória como o Deus-homem (i.e., sua glória inata), quanto como sua glória como 0 Mediador (glória acrescentada). A reconciliação entre Deus e o homem não poderia ser alcançada por ninguém senão o Deus-homem. Assim a relação orgânica entre a pessoa e a obra de Cristo alcança sua expressão suprema no “novo mundo”, o que inclui o céu e a terra.“® É preciso entender com cuidado o que Goodwin quer dizer com glória e rei­ nado de Cristo no céu, em especial à luz de ICoríntios 15.24, que fala de Cristo entregar seu reino a Deus Pai. De acordo com Goodwin, Cristo possui um reino natural porque é Deus. Cristo recebe um reino como herança natural, porque na condição de homem está unido ao Filho divino, “pois herda os privilégios da Segunda Pessoa”.“’ Então, na condição de Deus-homem, Cristo continua mantendo e experimentando no céu muitos privilégios, como a “alegria plena” e “toda aquela homa e glória pessoais [...] com que foi de fato coroado quando veio pela primeira vez ao céu. Hido isso continua pela eternidade (...) e é um direito natural dele”.^“ Além dessa herança natural, há aquilo que Goodwin chama de “reino dispensatório”, que diz respeito a Cristo como Mediador entre Deus e os eleitos. Esse reino não era um direito natural de Cristo. Pelo contrário, o Pai lhe deu como recompensa por sua obediência. Thomas Brooks (1608-1680) se refere a essa glória como uma obrigação devida a Cristo.^^^ Essas afirmações destacam a distinção entre a glória inata de Cristo e sua glória que vem da sua obra mediadora. Até o dia do juízo. Cristo tem sob seus cuidados 0 reino, o reino do “novo mundo”. Mas depois do dia do juízo, o reino “se tomará mais notavelmente propriedade de Deus Pai”.''' Há dois motivos para isso. Primeiro, o Pai deu a Cristo um reino dispensa­ tório para que Cristo recebesse mais glória e honra. Goodwin escreve: “assim como para cada obra existe uma ocasião, assim também para cada pessoa deve haver uma ocasião em que serão mais gloriosos de forma ainda mais especial” Segundo, o reinado de Cristo no céu foi uma recompensa que lhe era devida e consistia em ele receber “toda glória e honra” porque “em obe­ diência ao Pai encobriu sua divindade”.''^ Assim, com a ascensão de Cristo ao céu, o Pai dá ao Filho a incumbência de todo julgamento. Depois de ter posto "’’Owen, The glory o f Christ, in: Works, 1:371. "®Veja Owen, The glory o f Christ, in: Works, 1:371-4. "»Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:438. '“Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:438. '^'Thomas Brooks, Paradice opened... (London: para Dorman Newman, 1675), p. 166. '“Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:439. '“Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:439. '“Goodwin, ^ h esia n s 1, in: Works, 1:439.

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OS “inimigos como estrado de seus pés”, o Pai é honrado pelo Filho, quando Cristo lhe entrega o reino e se sujeita a ele (ICo 15.28).'^^ Em outras palavras, ele entrega ao Pai seu reino decorrente da obra mediadora, quando a igreja estiver completa e purificada de toda imperfeição. Esse reino então “cessa, pois não haverá necessidade alguma dele”.*^® Embora o reino decorrente da obra mediadora de Cristo cesse, Goodwin deixa claro que a glória de Cristo não acaba, visto que, na condição de Deus-homem, Cristo sempre possui sua glória natural ou inata, a qual, conforme assinalado, supera em muito a glória acrescentada de seu ofício mediador.

Conclusão As conclusões de Goodwin sobre Apocalipse estão conectadas a vários fatores importantes. Em primeiro lugar, o ambiente religioso e político do século 17 teve uma clara influência em Goodwin, assim como aconteceu com todos os puritanos ingleses. Entretanto, Goodwin acreditava firmemente que a amea­ ça de restauração do papismo na Igreja da Inglaterra seria derrotada e que a causa da religião verdadeira floresceria na forma de congregacionalismo puro. Ele identificou tal promessa no livro de Apocalipse. Além disso, apoiandose nas contribuições hermenêuticas de Mede, a interpretação historicista de Goodwin de Apocalipse, que incorporava tanto a história eclesiástica quanto a imperial, proporcionava a necessária plataforma exegética para ele predizer 0 fim iminente — se com a palavra iminente entendemos aquilo que ocorreria dentro de décadas — do papismo e do império dos turcos otomanos. Aliás, seu esquema de datação predizia que o alvorecer da glória do milênio se daria perto do final do século 17. Mas antes do alvorecer da glória precisa haver uma noite de sofrimento (1650-1666); e os sofrimentos dos piedosos assinalariam 0 início da queda do Anticristo. Se a história estava caminhando nessa dire­ ção — e o livro de Apocalipse fornecia a chave hermenêutica para entender o desvelamento da história — , em última instância isso acontecia porque a glória de Cristo exigia esse resultado final. A glória decorrente da obra mediadora de Cristo, uma glória que o Pai lhe acrescentou, alcançaria sua consumação na era do milênio, antes de ele entregar seu reino ao Pai por ocasião do juízo final. Estudiosos, em particular historiadores, continuam debatendo os motivos por trás do pensamento apocalíptico britânico, sem chegar a um consenso. E, embora suas descobertas sobre o contexto político-religioso do século 17 tenham levado a algumas conclusões importantes, não há dúvida de que no exemplo de Goodwin as preocupações teológicas eram igualmente ‘“Goodwin, Ephesians 1, in: Wí?rfes, 1:439. ‘“Goodwin, Ephesians 1, in: Works, 1:440. ‘^'Veja em Heaven upon earth, p. 1-5, o proveitoso resumo que Jue faz do debate.

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proeminentes. Como consequência, a glória de Cristo, concretizada nas igrejas que adotaram o “caminho congregacional”, é um forte motivo para explicar adicionalmente a leitura que Goodwin faz de Apocalipse. Resta apenas reconhecer que, por mais fascinantes que sejam as interpre­ tações de Goodwin, ele estava em grande parte equivocado em sua leitura da profecia. O século 17 entrou e saiu sem testemunhar a derrubada do papa de Roma e sua igreja falsa, a derrota do Império Otomano, a reforma complementar da Igreja da Inglaterra ou o triunfo final do congregacionalismo sobre todas as outras formas de governo da igreja. Aliás, mais três séculos entraram e saíram sem nenhuma dessas coisas acontecerem, com exceção da ruína do Império Otomano, mas, para ocupar seu lugar, “impérios do mal” bem mais sinistros surgiram no transcorrer do século 20. A lição não é que homens devem se abster de tentar entender Apocalipse, mas somente que todos os intérpretes precisam de uma dose saudável de autoconsciência e devem ter o cuidado de não interpretar a profecia apenas segundo o seu próprio conhecimento da história e dos acontecimentos atuais, ou no que diz respeito a suas próprias esperanças e sonhos pessoais. É demasiadamente real o perigo de impormos nossas próprias interpretações ao texto sagrado.

Capítulo 51 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□aODaDDDaQQDDaDDDOODQDaaOQODODODQDG

Christopher Love e as glórias do céu e os pavores do inferno □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□anaaonoaaaDanDDaDDnaonaDnaaaaaDDDDan

Senhor, bendigo a D eus. M eu coração está no céu . Estou bem .

Christopher Love por ocasião de sua execução, EM 22 DE AGOSTO DE 1651'

Os puritcinos deram forte ênfase à necessidade de se ter uma perspectiva eterna na vida presente, o que, segundo sustentavam, servia de preparação ou para o céu ou para o inferno. Um exemplo desse enfoque aparece entre os ditos de John Dod (c. 1549-1645): “Orientações para cada dia. Primeiro, para as manhãs. A cada manhã considere: 1. Vou morrer. 2. Posso morrer antes de anoitecer. 3. Para onde irá minha alma: para o céu ou para o inferno?”.^ Richard Baxter (1615-1691) resumiu este enfoque em seu famoso Saints' everlasting rest [O descanso eterno dos santos], um guia para o céu e para longe do inferno, para aqueles “que se esforçam por encontrar descémso”.* Mais tarde, confessou que o livro surgiu no contexto de uma séria enfermidade que o deixou “desenganado pelos médicos”. A essa altura, ele afirmou, “comecei a ponderar com mais seriedade sobre o descanso eterno, pois percebi que estava quase às suas portas Este capítulo procurará basicamente analisar tal ponderação sobre a eter­ nidade em escritos sobre o céu e o inferno na tradição puritana em geral e em 'Citado em Don Kistler, A spectacle unto God: the life and death o f Christopher Love (Morgan: Soli Deo Gloria, 1994), p. 108. ■ ^John Dod, Old Mr. Dod’s sayings (London: A. Maxwell, 1671), declaração 20. ^Richard Baxter, The saints' everlasting rest: or a treatise o f the blessed state o f the saints in their enjoyment o f God in glory (London, 1649), p. 13. ^Richard Baxter. Reliquiae baxterianae, or, Mr. Richard Baxters narrative o f die most memo­ rable passages o f his life and times (London, 1696), 1:108.

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Christopher Love (1618-1651) especificamente. Entre os numerosos escritos de Love, muitos deles publicados postumamente, se encontra Heaven’s glory, hell’s terror (A glória do céu, o pavor do inferno] (1653),* em que aparecem dezessete sermões que falam sobre o céu e o inferno. O prefácio a essa obra, escrito por amigos de Love dois anos depois de sua partida para o céu, nos exorta a meditar tanto no céu quanto no inferno. O primeiro nos insta às boas obras, ao passo que o segundo atua para nos dissuadir de praticar o mal. “Para os homens a maior insensatez no mundo”, declaram os autores, “é se ocupar de muitas coisas que têm pouquíssima importância para eles e, nesse ínterim, negligenciar a única coisa necessária, nunca pensando seriamente em como alcançar as alegrias do céu nem em como podem escapar dos tormentos do in­ ferno. Quando se convencerem de sua insensatez, será tarde demais, estando irrecuperavelmente privados de um e irremediavelmente lançados no outro”.* Nas suas pregações e escritos sobre o céu e o inferno, percebe-se que Christopher Love viveu e faleceu sob a influência da realidade de ambos como puritano. O problema foi que ele faleceu em 1651 nas mãos de puri­ tanos que 0 acusavam de alta traição contra o governo da Commonwealth [República] de Oliver Cromwell. Foi julgado e executado por seu envolvimen­ to na denominada Conspiração de Love, a qual teve o objetivo de colocar Carlos 11 de volta no trono. Sob o governo parlamentar da Commonwealth, essa não era absolutamente uma boa hora para um presbiteriano afirmar o direito divino dos reis. Ainda assim, conforme Don Kistler observa, “havia muitos que ainda acreditavam que Deus designava reis e que os homens não podiam destroná-los. Christopher Love estava entre esses, como seria de esperar de um presbiteriano resoluto”.’’ Embora houvesse admitido ter tido alguma participação na conspiração junto com destacados pastores puritanos (e colegas presbiterianos), como Thomas Watson (c. 1620-1686) e Thomas Case (1598-1682), enfrentou acusações de ser o cabeça da conspiração e de financiar a resistência militar dos escoceses, com quem o rei Carlos havia feito um pacto formal de estabelecer o presbiterianismo.® Embora não houvesse ^Christopher Love, Heaven's glory, hell’s terror. Or, two treatises; the one concerning the glory o f the saints with Jesus Christ, as a spur to duty: the other, o f the torments o f the dam ned, as a preservative against security (London: (T. M.] para John Rothwell, 1653). ‘Edmund Calamy; Simeon Ashe; Jeremiah Whitaker; William Taylor; Allen Geare, “To the Christian reader”, in: Love, Heaven’s glory, hell’s terror. 'Kistler, A speaacle unto God. p. 50. Veja nas p. 50-6 o relato sobre os acontecimentos que levaram a seu julgamento e execução. *Por exemplo, no Acordo e Liga Solenes de 1643, que o rei subscreveu em 1650 em Spey, as partes dessa aliança não somente se comprometiam a levar as igrejas da Grã-Bretanha “à mais íntima união e uniformidade de religião, de confissão de fé, de forma de governo de igreja, de normas de culto e catequese”, mas também prometiam “manter e defender a pessoa e a auto­ ridade da majestade do rei”.

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prova para algumas das acusações e as testemunhas não fossem convincen­ tes, Love foi considerado culpado de traição e decapitado em Tower Hill em 22 de agosto de 1651.® Elliot Vernon observa que, embora do ponto de vista legal Love tenha sido considerado culpado, seu julgamento “não passou de uma demonstração do poder brutal da república travestido de soberania ju­ rídica. Isso é vividamente exemplificado por Sir Henry Vane, que afirmou a Cromwell que Love devia ser executado porque os presbiterianos ‘não nos consideram um governo legítimo nem veem traição como algo que façam para nos destruir com o intuito de trazer o rei dos escoceses para ser o chefe do Acordo’”.’®Richard Baxter se queixou que a tirania por trás da execução de Love tirou do mundo uma luz tão digna e renomada e “com um único golpe liquidou alguém de tanta grandeza”.” As cartas de Love à mulher, que com amigos tentou anular a sentença, revelam muito não apenas sobre o relacionamento deles, mas também sobre suas firmes crenças na misericórdia e bondade de Deus para com aqueles que estão em aliança com ele. Love faleceu com notável segurança de que estava destinado para a glória do céu, não para o pavor do inferno.’^

As glórias do céu Durante os dias turbulentos do século 17, as glórias do céu foram uma fonte importante de encorajamento para pastores puritanos e seus rebanhos. Confor­ me Thomas Goodwin (1600-1680) observou em sua obra arguta Of the blessed state o f glory which the saints possess after death [Sobre o bendito estado de glória que os santos possuirão após a morte], “Não há nada mais poderoso para trazer homens a Cristo [...] e não há nada mais encorajador para os piedosos que 0 fato de poderem caminhar com disposição e ânimo pelas aflições desta vida, de poderem atravessar o mundo mau com o coração erguido ao céu”.’® Na sua análise das glórias do céu, os puritanos eram plenamente cristocêntricos.’'* Entrar no céu era em geral examinado no contexto da obra mediadora de Cristo. Ademais, o desfrute do céu normalmente enfatizava as ’Kistler, A spectacle unto God, p. 50-53, 63-71. '°Dictionary o f national biography, s.v. “Love, Christopher Í1618-1651)”. "Baxter, Reliquiae Baxterianae, 1:67. ‘^Veja a obra de Love escrita pouco antes de sua morte e na quai agradece a seus amigos por tentarem salvar sua vida: A cleare and necessary vindicaîion o f the principles and practices o f Mr. Christopher Love, since my tryall before, and condemnation by, the high court o f justice...

(London; sem nome, 1651). ‘’Thomas Goodwin, O f the blessed state, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr., Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 7:457. ‘‘‘Veja Goodwin, Of the blessed state, in: Works, 7:461, em que faz de Cristo a causa eficaz, a causa meritória e a causa exemplar do céu.

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glórias da pessoa de Cristo. Os santos que vivem na terra pela fé no Filho de Deus anseiam pela bendita visão (visão beatífica) do Deus-homem, que é a imagem visível do Deus invisível.’®Ver Cristo será algo transformador para os eleitos (IJo 3.2) e eles o verão no céu assim como alguém vê fisicamente seu próximo na terra. A glória do céu nunca foi considerada independentemente da presença de Cristo. Na noite anterior à sua morte, no último encontro com sua esposa. Love manifestou tamanha esperança de glória: “Assim que minha cabeça for separada do meu corpo, ela será unida a Cristo, meu cabeça no céu, e estou convicto de que amanhã subirei até Tower Hill para ser eternamente martirizado para meu Redentor, tendo tanta alegria quanto a que tive quando fui à igreja de Giles para me casar contigo”.’®Com esse testemunho, somos lembrados das palavras do senhor Firmeza no final da segunda parte de O peregrino: “Agora me vejo no final de minha viagem, meus dias penosos terminaram. Agora verei aquela cabeça que foi coroada com espinhos e aquele rosto que foi cuspido por minha causa”.P a la v r a s ditas por Samuel Rutherford (1600-1661) no leito de morte são igualmente pungentes: “Estarei radiante — eu o verei como ele é — eu 0 verei reinar [...] meus olhos, estes meus próprios olhos, e não outros, verão meu Redentor”.’* O céu tinha muitas glórias, mas a visão de Cristo, o Redentor, era a glória principal.

Cristo, o autor da vida glorificada O texto de Christopher Love para seus dez sermões em Heaven’s glory foi Colossenses 3.4: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, também vos manifestareis com ele em glória”. Love nos exorta como cristãos a buscar as “coisas de cima” no céu, visto que estamos mortos para o mundo e temos em Cristo uma vida oculta que os outros “não conseguem ver”. Na condição daqueles que têm uma vida gloriosa aguardando por eles na eternidade, de­ vemos agora mesmo buscar “aquela vida e aquele mundo” e não somente “as coisas que são de baixo neste mundo desprezível”. Cristo é nossa vida, pois com sua morte se tornou o “autor e a causa” da vida do cristão. Este recebe tanto uma “vida de graça” (santificação progressiva) quanto uma “vida de '*A melhor abordagem puritana sobre a visão beatífica é a obra de John Owen, Meditations and discourses on the glory o f Christ, in: The works o f John Owen (Edinburgh: Johnstone &Hunter, 1850-1855), 1:285-415. ■‘Citado em Kistler, A spectacle unto God, p. 95. ■ Uohn Bunyan, The pilgrim ’s progress from this world to that which is to com e, partes 1 e 2, edição de James Blanton Wharey, 2. ed., revisado por Roger Sharrock (Oxford: Oxford Univer­ sity Press, 1960), p. 311 [edição em português: O peregrino (São Paulo: Mundo Cristão, 2006)]. “Samuel Rutherford, Letters o f the Rev. Samuel Rutherford (Glasgow: impresso para William Collins, 1827), p. 44.

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glória” (glorificação final) “quando o mundo acabar”. Além disso. Cristo, após sua ressurreição, se tornou o autor de nossa vida, “espiritualmente” mediante a pregação do evangelho e também se tornará esse autor “gloriosamente” por ocasião de sua segunda vinda. Para nós essa vida é crescimento e perfeição tanto no anseio por Deus quanto no ódio ao pecado. Ambos são motivados por um princípio interior de graça, que nos torna “mortos para o mundo”, e não somente por motivações exteriores que causam medo imenso dos pavores do inferno e anelam pela felicidade do céu.'’ Love defende que o fato de Jesus ser 0 autor dessa vida e glória eternas deve nos levar agora mesmo a "fazer prepíUativos para essa vida eterna”. Por exemplo, devemos ter consciência das “coisas corriqueiras” que atrapalham nossa “busca” gloriosa. Além dis­ so, precisamos no tempo presente sempre “ansiar e anelar por essa condição glorificada”, ao mesmo tempo que devemos estar bem atentos para todo e qualquer pecado que a esmague.^“ Love testifica que, em um sentido, podemos nos apropriar agora da vida glorificada ao alcançarmos certeza da graça e da salvação, o que acontece mediante arrependimento dos pecados e fé em Cristo, ao termos amor por todos os que são “participantes desta vida de glória” e caminharmos conscien­ temente na obediência ao mesmo tempo que mortificamos o pecado.^' Para os puritanos, como herdeiros dos reformadores e opositores do catolicismo romano e do arminianismo, podemos ir além da posse da vida eterna e possuir também a certeza de que ela nos pertence. Conforme Thomas Brooks (1608­ 1680) asseverou em Heaven on earth [Céu na terra] (1654), o cristão precisa ter consciência de que seu dever não é somente crer, mas obter consolo, sabendo que crê. Assim, a certeza da fé “trará o céu ao vosso íntimo; vos dará posse do céu antes de chegardes a ele (Hb 11.1). Uma alma segura vive no paraíso, anda no paraíso, trabalha no paraíso e descansa no paraíso; ela tem o céu dentro de si e sobre si; tudo o que ela sabe dizer é céu, céu! Glória, glória!”.“ É por isso que, logo antes de ser decapitado em Tower Hill, Love pôde dizer ao xerife Tichburn, comandante do local: “Senhor, bendigo a Deus. Meu coração está no céu. Estou bem”.“ ”Love, Heaven’s glory (1653), p. 3-5,6-15. Veja p. 5-6, em que Love sustenta que ser manifes­ tado com ele em glória denota — ao contrário dos milenaristas, que afirmam um reinado pessoal de mil anos “na terra” — que seremos glorificados com Cristo por ocasião do juízo, quando ele voltar, e não depois que ele tiver governado na terra durante esse período. Veja tb. nas p. 68-85 e 190 uma refutação adicional ao retorrto de Jesus Cristo antes do milênio. “Love, Heaven’s glory, p. 19-28. ^'Love, Heaven’s glory, p. 28-30. ^Thomas Brooks, Heaven on earth: a treatise on Christian assurance (1654), in: The works o f Thomas Brooks (Edinburgh: James Nichol, 1866), 2:3. “Citado em Kistler, A spectacle unto God, p. 108.

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Cristo, o consum ador da vida glorificada Love passa a refletir sobre Cristo, o qual, como a vida dos cristãos, “um dia se manifestará em glória para julgar o mundo”. A repentina manifestação de Jesus Cristo será gloriosa porque ele, como “o brilho de um diamante ao sol”, é alguém superior (Hb 1.3), pois vem com autoridade, majestade e imparcialidade de julgamento a fim de obscurecer e eclipsar “toda a glória do mundo”. Além do mais, essa glória é partilhada pelos anjos que o servem e é revelada em seus santos, os quais por sua vez admirarão imensamente o príncipe quando vier. Deus Pai julgou que essa manifestação deveria ser gloriosa para remover 0 opróbrio que sobreveio a Cristo e a seu povo na terra e simultaneamente “dar pavor, convicção e inquietação mais acentuados ao perverso”.^“ Love almeja que a ideia de Cristo vir em glória “cause pavor” a você, se você se encontra em categorias de pessoas como: (1) aqueles que vivem “uma vida de sensualidade e excessos, raramente ou nunca pensando na prestação de contas que terão de fazer a Jesus Cristo quando ele se manifestar” (Lc 17.26,27); (2) “pecadores endurecidos e impenitentes”, cujo coração nunca é despertado por mandamentos ou repreensões (Rm 2 .4 ,5 ); e (3) apóstatas, isto é, “aqueles que abandonaram a religião”, que professaram a fé, contudo “se desviaram de Cristo” (Hb 10.26). Ao mesmo tempo, caso você sofra por Cristo e labute por ele na condição de alguém “acusado injustamente pelo mundo”, Love quer consolá-lo com a manifestação de Cristo como juiz. O dia de você se alegrar está chegando, e você pode estar certo de que Cristo “julgará todas as coisas de que [você] foi injustamente acusado”.^® Quanto ao momento da vinda de Cristo, Love adverte aqueles que “leem fantasias sobre esse momento” para que não “sejam enredados e apanhados numa arapuca”, achando que sabem aquilo que Cristo, na condição de homem, não sabia (Mt 24.36). Embora não saibamos o dia, mês ou ano, as Escrituras certamente indicam que “o dia e a hora não estão distantes”. Concluindo, “em sua sabedoria Deus guardou para si aquele momento, para que antes desen­ volvamos a obra de [nossa] salvação”.^®Acerca do “lugar onde acontecerá essa aparição de Jesus Cristo”, Love assinala que ele virá do céu (Fp 3.20) a um lugar não especificado. Ao deixar que as Escrituras falem por si, ele observa que Atos 1.11 trata apenas da “maneira como Cristo virá, não do lugar para onde virá”. O único local mencionado especificamente são os ares, onde os santos vivos e mortos serão arrebatados ao encontro de Cristo, “brilhando com glória sobre todo o mundo”. No final, não haverá lugar algum em que alguém conseguirá se esconder “do juízo de Jesus Cristo; embora clameis às ^•■ Love, Heaven’s glory, p. 30-2, 34-40. “ Love, Heaven’s glory, p. 40-S3. “Love, Heaven’s glory, p. 61-2.

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montanhas e aos rochedos para vos cohrir da sua presença, não conseguireis vos esconder”.^^ Adiante, Love indaga se Jesus Cristo “usará de muito tempo para executar juízo sobre o mundo”. Ele defende que esse juízo ocupará “bem pouco tempo”, visto que seu “dia e hora” permanecem desconhecidos. Para Love, o tempo que se leva para julgar é inversamente proporcional à quantidade de evidências. Deus possui evidências em abundância e, além disso, a própria consciência do homem o condena (Rm 2.14-16). Essa rapidez de julgamento deve “levar pavor e perplexidade” ao coração dos homens e deve servir para “coibir” em nós cinco pecados em particular: (1) embriaguez, pois a boca daqueles que “amam demais [sua] bebida” ficará cheia do fogo do juízo quando aquele dia vier “desapercebidam ente” sobre os bêbados (Lc 21.34); (2) adultério, pois Deus julga esse pecado de um “modo especial” (2Pe 2.10); (3) xingamentos ou “injúrias contra o povo de Deus” (Jd 15); (4) ignorância e desobediência (2Ts 1.7,8); e (5) opressão e crueldade, isto é, aqueles que são incessantemente “maldosos” com os outros (Tg 2.13).^®

A vida glorificada em corpo e alma Na segunda vinda. Cristo glorificará plenamente os eleitos só no momento de sua manifestação gloriosa para julgar o mundo. Love sustenta que ser plena­ mente glorificado denota aquela condição felicíssima, abençoadíssima e imutável que, por sua livre graça por intermédio de Jesus Cristo, Deus preparou para seus eleitos no céu, para ser desfrutada depois do dia do juízo, ocasião em que o corpo se levantará da sepultura e será unido à alma, e ambos receberão para sempre a glória com Deus, Jesus Cristo, o Espírito Santo, os santos e os anjos. É isto que chamamos de glória: esse reajuntamento do corpo e da alma, em que ambos participarão da glória, desfrutando das três pessoas da Hindade, de todos os santos e anjos para sempre.^’

Esse estado envolve a glorificação tanto do corpo quanto da alma. Love, delegado da Assembleia de Westminster, reflete o ensino puritano padrão da Confissão de Fé de Westminster (CFW), que afirma que na ressurreição do último dia, o momento da volta de Cristo, os corpos serão “reunidos às suas almas para sempre” (32.2). Por ocasião da morte, esses corpos haviam ■

” Love, “ Love,

Heaven's glory, p. 6 3 -7 . Heaven's glory, p. 8 3 -5 .

D urante o julgam ento de L ove, u m a das acu saçõ es feitas

co n tra ele foi a de adultério. E le negou co m v eem ên cia essa a c u s a ç ã o , e n ão foi apresentada n enh um a p rova p ara con firm á-la. “ Love,

Heaven's glory, p.

86.

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voltado ao pó, experimentando “corrupção”, ao passo que suas almas foram “recebidas no mais alto dos céus” (32.1).“ Quanto ao corpo, este precisa ser glorificado porque os corpos dos eleitos “sofreram neste mundo por causa de Jesus Cristo” (G1 6.17) e devem ser devidamente glorificados “por Cristo também”. Além disso, o corpo é "coparticipante” com a alma em seus deveres (2Co 5.10), como a oração, e também participará da glória dela. Por fim, como aconteceu na terra, a união ou “solidariedade natural” entre corpo e alma no sofrimento (p. ex., na tristeza) e na bênção (p. ex., na alegria) necessariamente continuará existindo na glória.^' A glorificação vindoura nos propiciará um corpo espiritual (ICo 15.44), que ressuscita depois da vida e morte de um corpo somente natural, “que precisa de revigoramento natural para manter a vida, como alimento, sono, roupas e coisas assim”. Love nega a ideia platônica de que corpos espirituais não mais possuem substância física. Pelo contrário, isso somente significa que no céu não será mais necessário alimentar-se fisicamente. Pelo contrário, nosso corpo ressurreto será “revigorado com o desfrute espiritual de [nosso] Deus”. Ademais, os glorificados obterão “corpos imortais” que não mais morre­ rão, mas viverão para sempre num estado incorruptível (ICo 15.42-52). Essa imortalidade não equivale à imortalidade de Deus, a qual só ele possui em sua essência (ITm 6.16). Pelo contrário, somos imortais somente pela graça de Deus, e isso vai além da imortalidade condicional que Adão desfrutou em seu período de experiência. Essa imortalidade também inclui “a perfeita renovação da imagem de Deus em nós”. Como consequência, nossos corpos também serão “impassíveis”, incapazes de sofrer ou experimentar tristeza, enfermidade, pobreza, fome, sede, frio ou nudez. No céu você pode “ordenéu que a tristeza e os sofrimentos sumam”. Por fim, nossos corpos serão moldados de modo maravilhoso segundo o glorioso corpo de Cristo, com a remoção de todas as corrupções e deformações (Fp 3.21). De modo análogo, possuiremos corpos “ágeis”, livres de nosso atual estado “lerdo e desajeitado”, à medida que somos “impelidos a realizar todos os bons deveres” com rapidez. Esses corpos também serão puros, livres de embaraço e escravização ao pecado (Rm 7.8; 8.27). Em resumo, nossos corpos serão “gloriosos” quando aparecermos com Cristo em glória (Cl 3.4). Assim sendo, se havemos de ser glorificados não somente na alma mas também no corpo, não devemos “permitir que esses corpos (...) sejam instrumentos” para desonra “ [Teólogos de Westminster]. The Confession o f Faith and Catechisms, agreed upon by the Assembly o f Divines at Westminster together with their hum ble advice concerning church govern­ ment and ordination o f ministers (London; para Robert Bostock, 1649). Veja Kistler, A spectacle unto God, p. 33, quanto à participação (ou não) de Love provavelmente devido a seu relaciona­ mento com 0 presidente da Assembleia de Westminster, William TWisse. ’'Love, Heaven’s glory, p. 86-7.

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de nosso Salvador. “Oh! tende cuidado com o pecado enquanto estiverdes no corpo”, exorta Love, "porquanto vosso corpo será glorificado por Jesus Cristo Quanto à glorificação da alma, Love assinala que “saberemos mais do que as Escrituras informam ou do que nossos corações conseguem imaginar” (ICo 2.9). Essa glória é tanto “restritiva”, no que diz respeito a estar livre da miséria, quanto “positiva”, no que diz respeito a bênçãos concedidas. Alguns dos aspectos restritivos incluem estar livre de pecar no que diz respeito à bata­ lha da carne contra o espírito (G15.17); estar livre das causas do pecado e das incitações a ele, como a corrupção de nossa natureza humana, as insinuações de Satanás e as fascinações do mundo, como a concupiscência dos olhos e da carne e a soberba da vida (IJo 2.16); e estar livre dos efeitos do pecado, como castigos, “privações e aflições”, a morte e a ira vindoura. O aspecto positivo inclui vantagens como uma “visão beatífica de Deus” — vendo-o como ele é (Mt 5.8; IJo 3.2; Jó 19.26,27), considerando o favor com que nos trata em Cristo e entendendo o Deus triúno em sua natureza, atributos e majestade — e um verdadeiro desfrutar de Deus, que é a fruição e a perfeição de todas as graças cristãs. Love se concentra mais na natureza intelectual da visão beatífica, numa abordagem bem parecida com a de Francis lürretin (1623-1687).’^ Mas John Owen (1616-1683) tratou a visão beatífica de Cristo em sua natureza humana como 0 ponto de convergência das glórias do céu. No céu. Cristo se manifesta como 0 cabeça da humanidade glorificada; ele é o meio imediato com que Deus revela sua mente às suas criaturas; ele é o objeto da glória divina; e vê-lo será transformador para aqueles que o amaram com um amor imperecível. Os santos na terra anseiam pelo céu, mas nunca o céu sem a visão concreta de Cristo.^^ Em conformidade com essa ideia, Richard Sibbes (1577-1635) observa com eloquência: “Sem Cristo o céu não é céu. É melhor estar em qualquer outro lugar com Cristo do que estar no próprio céu sem ele. Sem Cristo todas as iguarias não passam de um banquete fúnebre. Quando o dono da festa não está presente, a única coisa que resta é a formalidade. O que é tudo sem Cristo? Afirmo que as alegrias do céu não são as alegrias do céu sem Cristo; ele é o próprio céu dos céus”.^^ A ênfase cristocêntrica de Sibbes, partilhada por muitos puritanos, exige que haja no céu a visão beatífica do Cristo ressurreto em sua humanidade glorificada. Goodwin, que parece ter aprendido tanto com Sibbes, relaciona semelhantemente as glórias do céu à visão de Cristo: ”Love, Heaven’s glory, p. 88-91. ’^Francis TUrretin, Institutes ofelenctic theology, edição de James T. Dennison Jr., tradução para o inglês de George Musgrave Giger (Phillipsburg: P&R, 1992), 20.8.1-18. ^^Owen, Meditations, in; Works 1. ^'Richard Sibbes, Christ is best, or St. Paul’s strait, in: The complete works o f Richard Sibbes (Edinburgh: James Nichol, 1862), 1:339.

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C risto é tã o glorio so ? O q u e o cé u se rá se n ã o v e r a g ló ria d e C risto? Se D eus tivesse cria d o m u n d o s d e cria tu ra s g lo rio sa s , ela s ja m a is te ria m co n seg u id o e x p re ssa r a g ló ria d iv in a c o m o o fez se u Filh o . P o r isso , J o ã o 1 7 assim d e scre v e o cé u : “m eu d esejo é q u e ( ...] e ste ja m co m ig o [ ...] p a ra q u e v e ja m a m in h a g ló ria ”. E m que co n siste , e n tã o , aq u e la g ra n d e c o m u n h ã o n a g ló ria , a q u al a c o n te c e r á n o céu ? C o n siste e m v e r a g ló ria d e C risto , q u e é a im a g e m do D eu s invisível q u e é ad orad o [ ...] P o r isso , v e r a C risto é q u e co n stitu i o c é u . P o r c a u s a d isso , alg u é m d isse: "Se e u fo sse la n ça d o e m alg u m a c o v a m a s p u d e sse te r so m e n te u m a p e q u e n a fenda p a ra v e r co n tin u a m e n te a C risto , p a ra m im isso se ria cé u o b a s ta n te ”.”^

Love postula que essa visão de Deus será acompanhada de uma "fruição” em que desfrutaremos plenamente de Deus, um oceano de desfrutamento em comparação com o balde que temos agora, e isso sem interrupção.^’’ De modo análogo, em seu estilo tipicamente provocador de contrastar o céu e a terra, Goodwin defende que “um único santo no céu tem mais glória e alegria no coração do que toda alegria que há na terra, e ainda assim no último dia a glória dos santos em muito excederá aquela que eles têm agora”.*® Ademais, em nosso estado glorificado desfrutaremos de uma “perfeição de todas as graças”, como nas áreas de amor a Deus e aos outros, de conhecimento de Deus na plenitude de sua glória e de alegria ou prazer em Deus. Considerando aquilo de que desfrutaremos na glória, no tempo presente devemos estar o máximo possível empenhados em nos afastar de nossos desejos pecaminosos, da ignorância e dureza de coração em nossa busca a Deus.*’ Em nosso estado glorificado. Deus amará todos os santos de igual manei­ ra, e todos estarão plenamente livres do pecado. Mesmo assim, nesse estado alguns desfrutarão de Deus de uma maneira mais plena do que outros. Love chega a essa conclusão com base em passagens como Daniel 12.3 e ICoríntios 15.41,42, que parecem indicar que alguns dos servos do Senhor irradiam mais glória, e Mateus 19.28, que mostra maior proeminência de alguns crentes devido à aflição que sofrem. Essa graduação de glória também se manifesta quando consideramos os graus de tormento no inferno (Lc 12.47,48), a hierarquia dos anjos no céu, e os diferentes dons e graus de graça entre os santos na terra e o uso desses dons e graças pelos santos (ICo 3.8; 2Co 5.10; Lc 19.16,17). Graus variados de glória no céu não se basearão em mérito, nem deixam implícito que serão obstáculo para alguém desfrutar do céu, nem despertarão inveja, *‘John Owen, Three sermons on Hebrews, 1.1,2, in: The works o f John Owen (Edinburgh; Johnstone & Hunter, 1850-1855), 5:547-8. *'Love, Heaven’s glory, p. 98-9. ’“Goodwin, O f the blessed state, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 7:459. ’’Love, Heaven’s glory, p. 99.

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ao contrário do que a diversidade de dons faz na terra, nem tornam Deus injusto ao distribuí-los de forma desigual. A existência de graus proporciona um incentivo para nos tomarmos mais “proeminentes na graça” nesta vida. "Obtende mais força na graça”, exorta Love, “e, quanto mais graciosamente viverdes nesta vida, mais gloriosos sereis naquela vida que há de vir”.““

Céu, o lugar da vida glorificada Love comenta que o céu, que é a morada de Deus e capital de seu reino e está situado bem acima de todos os reinos deste mundo (IRs 8.30; Is 66.1; Mt 25.34; At 14.22; 2Co 12.2), é o local onde a alma é glorificada no momento da morte e onde mais tarde o corpo e a alma serão glorificados por ocasião da ressurreição. O céu existe como paraíso (Lc 23.43), habitação eterna (Jo 14.2; 2Co 5.1; Lc 16.9), cidade que virá (Hb 13.14), herança gloriosa (Cl 1.12) e lugar de alegria (SI 16.11). Quanto à localização desse céu. Love rejeita a ideia de “que existirá um novo céu e uma nova terra e que aqui [i.e., na nova terra] os eleitos viverão e serão glorificados”. Ele também rejeita a ideia de que o céu é simplesmente qualquer local onde Deus habita, sem estar ligado a um lugar em particular.'" Em vez disso, ele defende — como fazem outros puritanos — a existência de um céu em três níveis: um céu “aéreo” (atmosférico), que é o espaço entre a terra e a lua (p. ex., Mt 6 .2 6 ); um céu “etéreo” (astral), que é a esfera dos demais planetas e estrelas (p. ex., Dt 17.3); e um céu “empíreo”“^ (celestial), situado “acima de tudo” o mais, como o “terceiro céu” (2Co 12.2). Esse é 0 lugar onde Cristo está sentado (Cl 3.1) e está "acima do ar, acima do sol, da lua e das estrelas, ao qual Jesus Cristo ascendeu [...] As Escrituras nos dizem que o céu é aquele espaço mais brilhante e glorioso bem acima dos céus visíveis, chamado de terceiro céu, onde Deus manifesta sua glória a anjos e santos benditos. E também Ursinus'^^ e vários outros apoiam total­ mente esta posição”. Embora não possamos descrever em detalhes tal lugar, atesta Love, com certeza podemos assegurar sua glória. Love nos desafia a ponderar que, se o céu é o local de descanso final, então isso exige parar de "vos preocupar com vossas casas suntuosas e imponentes, que um dia não ficarão com pedra sobre pedra e que um dia estarão derrubadas no chão; '•'’Love, Heaven’s glory, p. 99-104. ^’Love. Heaven’s glory, hell’s terror. Or, Wo treatises; the one concerning the glory o f the saints with Jesus Christ, as a spur to duty: the other, o f the torments o f the dam ned, as a preservative against security (London: para Peter Barker, 1671), p. 148-52. Devido a paginação irregular na

edição de 1653, a partir daqui utiliza-se a edição de 1671. “^Do latim medieval empyreus, “relativo ou pertencente aos mais altos céus, morada do elemento fogo”. “^Reformador alemão Zacharias Ursinus (1534-1583).

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não deixeis que vossas casas terrenas vos levem a perder aquela casa eterna que dura para sempre no céu”.^* . Essa demarcação de um céu em três níveis — aéreo, etéreo e empíreo — é pelo menos tão antiga quanto Aristóteles. Em sua explicação do assunto, é provável que Love tenha sido influenciado por Robert Bolton (1572-1631), conforme parece estar sugerido em sua obra Mr. B oltons last a n d lea rn ed xvorke o f th e fo u re last th in gs, d ea th , iu d g em en t, h ell, a n d h ea v en [A última e erudita obra do sr. Bolton sobre as últimas quatro coisas: a morte, o juízo, o inferno e 0 céu] (1632).'*® Em sua abordagem do céu em três níveis. Love não cita Bolton, mas é evidente que está baseado nele.^® Nessa obra, Bolton menciona 0 terceiro céu como um “glorioso céu empíreo”.“^ O terceiro céu é aquele ao qual Cristo ascendeu e onde Deus, de forma bem especial, habita, e é o lugar onde “todos os benditos estarão para sempre”.'*®Bolton e Love refletem a ideia histórica e comum cristã de que a morada eterna dos santos ressuscitados — e não somente das almas de homens justos aperfeiçoados — será o terceiro céu. No entanto, isso não quer dizer que os puritanos rejeitassem a renovação da terra. Thomas Brooks observa que teólogos de grande conhecimento diver­ gem sobre algumas questões relacionadas ao futuro da terra, mas afirma que a maioria defende uma renovação da terra, não sua destruição.®® Acerca da questão de se os santos se reconhecerão no céu. Love assevera que com certeza desfrutaremos no céu da comunhão que temos agora e apre­ senta as seguintes passagens bíblicas como embasamento: (1) Pedro, Tiago e João reconheceram Moisés e Elias glorificados (Mt 17.3); (2) o homem rico. “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 153-6. Veja a posição de três níveis adotada por Ursinus em The commentary ofD r. Zacharias Ursinus on the Heidelberg Catechism (1563), tradução para o inglês de G. W. Williard (Columbus: Scott & Bascom, 1852), p. 242-3. À seme­ lhança de Love, William Ames se refere ao terceiro céu como “o céu supremo, o céu dos céus e paraíso [...] (2Co 12.2,3)” (The marrow o f theology, edição e tradução para o inglês de John Dykstra Eusden [Grand Rapids: Baker, 1997], p. 103). “ Veja Robert Bolton, Mr. Boltons last and learned worke o f the foure last things, death, judgem ent, hell, and heaven (London: Geoi^e Miller, 1639), p. 117-20. “ Veja Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 153, em que, referindo-se ao terceiro céu, afirma que este está “acima de todas as orbes visíveis e moventes”, e Bolton, Foure last things, p. 119, em que escreve que está "acima de todas as orbes moventes visíveis". Nas mesmas res­ pectivas páginas, Bolton chama Aristóteles de filósofo com os “olhos mais sagazes nos mistérios da natureza”, e Love o copia, intitulando Aristóteles “olhos mais sagazes para penetrar os misté­ rios da natureza”. Nos três níveis. Love também emprega várias das referências bíblicas usadas por Bolton. Para exemplos de referência direta a Bolton, veja Love. Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 157. 217. ^'Bolton, Foure last things, p. 117. “Bolton, Foure last things, p. 118. ‘’Thomas Brooks, Paradise opened, in: The works o f Thomas Brooks (Edinburgh: James Nichol, 1866), 5:404-5.

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mesmo estando no inferno, tinha consciência de quem eram Abraão e Lázaro (Lc 16.23), o que, ainda que expresso numa parábola, confirma (junto com outros textos) que os condenados à perdição eterna verão os mortos justos (Lc 13.28); (3) se os glorificados reconhecerão aqueles condenados ao infer­ no, com certeza reconhecerão outros, que são glorificados (Lc 16.22); (4) a reconhecida comunhão com santos como Abraão, Isaque e Jacó no reino do céu; e (5) se Adão conheceu sua mulher na inocência, conheceremos outros crentes na glória (Mt 8.11). Diante da objeção de que reconhecer santos na glória requer necessariamente a dor de reconhecer os condenados no inferno, Love sustenta que, longe de trazer dor, isso catalisará a alegria de ter escapado de tal tormento. Nosso conhecimento de outros na glória não será um conhe­ cimento corpóreo ou físico, como no casamento, mas, à maneira dos santos anjos, todos terão a mesma intensidade de "amor e fruição” uns com os outros. Assim, devemos nos esforçar por “saber verdadeira e fundamentadamente” que com certeza chegaremos à glória e simultaneamente trabalhar arduamente pela conversão de outros, a fim de que tenhamos comunhão com eles na glória.“

A morte^ o in ício da vida glorificada Em seguida, Love retoma o assunto que trata do que acontece no estado intermediário com a alma dos crentes quando eles morrem, isto é, antes de Cristo vir. O que acontece com a alma por ocasião da morte? Aqueles que negam que a alma vá imediatamente para o céu ficam com poucas opções. A alma ou vai para o inferno ou para o purgatório ou deixa de existir totalmente (aniquilação) Qualquer uma das três opções contribui para o ateísmo e para uma ausência de motivação em tentar almejar o céu nesta vida. Em primeiro lugar, precisamos rejeitar qualquer possibilidade de que a alma redimida po­ deria ir para o inferno. Em segundo, defender que a alma é mortal satisfaz os platônicos, que acreditam que a alma morre com o corpo. Em terceiro, admitir a ideia do purgatório é capitular diante do erro católico-romano e da noção de que precisamos ser "purificados dos pecados cometidos neste mundo”, como se a morte de Cristo para purificar nossos pecados não fosse “completa, per­ feita e suficiente como sacrifício, oblação e reparação”“ pelos nossos pecados. Acerca do purgatório, Love assevera o seguinte: Ora, se é verdade que a alma dos eleitos vai para a glória imediatamente após a morte, então, ó crente, não confies que um purgatório removerá teus pecados. Se 0 sangue de Jesus não é teu purgatório (pois só isso fará tua consciência ser “ Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 156-64. ®‘1ãmbém há a opção de psicopaniquia, ou “sono da alm a”. “ Rito da santa comunhão, no Livro de Oração Comum (1662).

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p u rificad a d e o b ra s m o r ta s ), u m p u rg ató rio ja m a is te lim p ará. D ep ois d e tu a m o rte não h a v e rá te m p o alg u m p a ra la b u ta r p e la s a lv a ç ã o . A h ! la b u ta d u ran te o tem p o de tu a v id a p a ra se re s sa lv o e la b u ta d u ra n te o te m p o de tu a v id a p a ra seres feliz, pois, a ssim q u e teu co rp o d er o ú ltim o su sp iro , tu a a lm a te rá ido o u p a ra o céu p ara se r feliz o u p a ra o in fern o p a ra e s ta r e m m iséria se m fim .“

Pelos motivos bíblicos a seguir, Love sustenta que após a morte nossa alma vai direto para o céu, enquanto nosso corpo repousa na sepultura até o dia da ressurreição. (1) Em Lucas 23.43, Jesus promete ao ladrão na cruz que naquele mesmo dia este estaria com ele no paraíso, o que é somente outro termo para. céu (2Co 12.4). (2) Em Lucas 16.22,26, Lázaro é descrito como alguém que está junto de Abraão antes do dia da ressurreição.*'' (3) Em Filipenses 1.23, Paulo deixa claro que na morte podemos estar ausentes do corpo, mas em nossa alma estamos presentes com o Senhor. (4) Em 2Coríntios 5.6,7, Paulo observa que na morte estamos ausentes de nosso tabernáculo (corpo) terreno e presentes com o Senhor.** Ao refutar as opções inaceitáveis para o estado intermediário. Love não trata do “sono da alma” {psicopaniquia), que diz respeito à ideia controversa de que entre a morte e o dia da ressurreição a alma repousa em um sono "imperturbado”, isto é, um estado em que a pessoa não tem reação nem compreensão. Love provavelmente estava familiarizado com Psychopannychia [Psicopaniquia] (1534), obra em que João Calvino refuta essa ideia. Ademais, essa posição era bem conhecida na Inglaterra e tinha ligação, por exemplo, com 0 sectarismo radical do período do Interregno. Era claramente uma po­ sição minoritária e, junto com o mortalismo (aniquilacionismo da alma) foi oficialmente condenado nos Quarenta e Dois Artigos Eduardianos (1553), em que 0 artigo 40 afirma que “a alma daqueles que partem, desta vida não morre com o corpo nem dorme na indolência”. De modo análogo, a Confissão de Fé de Westminster afirma que a alma dos homens, “tendo uma existência imortal, não morre nem dorme” (32.1). A doutrina associada do tanatopsiquismo, a ideia de que a alma é mortal e morre com o corpo e será ressuscitada com o corpo no dia do juízo, também era geralmente rejeitada.** “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 167. “Love reconhecia que essa podia ser uma parábola. “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 164-7. “ [Igreja da Inglaterra], Articles agreed upon by the bishoppes, and other learned m enne in the Synode ofLoncbn (London: Richardus Craftonus, 1553); John Calvin, A n excellent treatise of the immortalytie o f the soule... (London: John Daye, 1581). Para uma análise da obra de Calvino sobre o sono da alma como base para a edição de 1536 das Institutos, veja George H. Tavard, The starting point o f Calvin’s theology (Grand Rapids: Eerdmans, 2000). Em The English poetic epitaph: commemoration and conflict from Jonson to Wordsworth (Ithaca: Cornell University, 1991, p. 81) Joshua Scodel exagera a natureza temporária que o estado intermediário tem nas

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Ressurreição, a consumação da vida glorificada Em seguida, Love trata de questões sobre se o corpo que temos agora será ressuscitado e glorificado. Ele está pensando especificamente naqueles que, baseados em ICoríntios 15.50 — que afirma que “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus” — , negam uma ressurreição corpórea. Esse não pode ser 0 sentido desse texto, pois negaria outras passagens que falam com clareza sobre a ressurreição corpórea de Cristo, que agora está presente corporeamente no céu junto com Enoque e Elias. Pelo contrário, aqui “carne e sangue” se re­ ferem à carne mortal que um dia dará lugar a um estado ressuscitado imortal. Além do mais, embora esteja “além do alcance da razão” entender como Deus poderia ressuscitar corpos decompostos, comidos por vermes e desintegrados, não é “contrário à razão” defender que um Deus onipotente é capaz de fa­ zê-lo. As seguintes passagens são testemunhas dessa ressurreição corpórea. (1) Love sustenta que Jó 19.26,27 garante que veremos nosso Redentor em nossa “carne”, mesmo depois de vermes destruírem nossos corpos mortais, o que dá testemunho de um estado glorificado em um corpo ressuscitado. (2) O texto de ICoríntios 15.35,36 fala de a semente ser semeada e morrer para produzir vida, o que deixa implícito que o corpo mortal precisa morrer e ver corrupção no túmulo, antes de ser ressuscitado como um corpo glorificado. (3) A passagem de 2Coríntios 5.2 se refere a crentes que anseiam ser vesti­ dos com uma morada celestial, “para que aquilo que é mortal seja absorvido pela vida” (v. 4 ). Uma vez que nosso corpo será ressuscitado para um estado glorificado, não devemos temer a morte (2Co 5.1), nem ficar desencorajados no meio do sofrimento (Hb 11.35), nem nos entristecer excessivamente com a morte de amigos crentes (ITs 4.13) nem usar os membros de nosso corpo para cometermos injustiça (Rm 6.13).^^ Sobre as razões que levaram Cristo a reservar essa plena glorificação para sua segunda vinda* Love sustenta que ela torna a glória dos eleitos mais vi­ sível e mais exasperadora para os perversos e, por isso, “aceitabilíssima aos Institutos de Calvino e erroneamente atribui a ele a negação de que as almas que creem entram no paraíso imediatamente por ocasião da morte. Veja John Calvin, Institutes of the Christian religion, edição de John T. McNeill, tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster Press, 1960), 3.2 5 .6 [edições em português: João Calvino, As institutos, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2 0 0 6 ), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo; Editora UNESP, 200 8 ), 2 vols.]. Para uma análise do sono da alma e do mortalismo da Inglaterra da pré-Reforma à Inglaterra da pós-Reforma, veja Christopher Hill, The collected essays of Christopher Hill, vol. 2, ReUglon and politics in 17th century England (Amherst: University of Massachusetts Press, 1986), p. 103; Peter Marshall, The beliefs and the dead in Reformation England (Oxford: Oxford University Press, 200 2 ), p. 223-5; e N. T. Burns, Christian mortaiism from T^ndale to Milton (Cambridge: Harvard University Press, 1972). *'Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 168-76.

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santos de Deus para sua glorificação” quando Cristo voltar em glória. O fato de que, quando Cristo voltar os eleitos serão glorificados no corpo e na alma deve nos levar a nos examinar se podemos “concluir justificavelmente em [nossa] própria consciência que aparecere[mos] com Jesus Cristo em glória”.®® Para Love, esse autoexame produziu para ele grande fruto quando em 1651 chegou a hora de seu próprio julgamento terreno por traição. O fato de que um dia seu corpo seria ressuscitado com Cristo permitiu que enfrentasse a morte destemidamente.

Características da vida glorificada Love defende que aqueles que participarão dessa glória eterna terão as seguin­ tes características. Em primeiro lugar, seremos novas criaturas transformadas do estado natural para a graça, que é operada no coração para transformá-lo (2Pe 1.3). Em segundo, estaremos com Cristo na glória somente se nesta vida formos feitos como ele em santidade (2Co 3.18) e sofrimento (2Tm 2.12). Em terceiro, procuraremos glorificar a Cristo agora neste mundo com a esperança de glorificá-lo e adorá-lo na eternidade (Rm 15.6,7). Em quarto, teremos uma consciência poderosa e majestosamente ciente de sua culpa e vivificada pelo ministério da Palavra (ITs 2.12,13). Em quinto, anelaremos pela aparição de Cristo e pela glória que ele traz com a salvação e o juízo (2Tm 4.8). Em sexto, teremos agora neste mundo um amor ardente por Cristo (IPe 1.7,8). Em sétimo, seremos capazes de matar o “poder do pecado e das inclinações carnais” em nosso coração (Cl 3.3-5). Em oitavo, seremos constantes em fazer 0 bem a despeito dos sofrimentos que suportamos neste mundo (Rm 2.6,7,10). Em nono, com o objetivo de alcançar a glorificação final experimentaremos a santificação que avança nessa direção (Rm 8.30; 2Ts 2.13,14). Em décimo e último lugar, seremos zelosos na manutenção de uma boa consciência em nossa jornada para a glória (At 24.15,16; 2 Pe 3.11).®® Fica claro que para Love os que estão a caminho do céu estarão procurando e anelando por Cristo aqui na terra (Hb 9.28) e experimentarão o poder de sua ressurreição junto com a comunhão de seus sofrimentos. Para "injetar alguns pensamentos consoladores em espíritos atribulados”, Love sustenta que essa doutrina da glória por ocasião da manifestação de Cristo traz consolo para aqueles que são vituperados neste mundo, como pastores que com fidelidade cumprem seus deveres (IPe 5.1-4) e aqueles que se posi­ cionam ao lado de Cristo apesar de oposição (IPe 4.14). Além disso, alguns santossvivem “em condições de penúria e necessidade, tendo dificuldade de se manter aqui neste mundo” (Tg 2.5) e sofrem por Jesus Cristo (IPe 4.13), mas “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 177-9,191. “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 192-203.

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ainda assim não se envergonham em confessar Cristo neste mundo (Mt 10.32; Mc 8.38).“ Apesar da dor ou da perda, nós que conhecemos a comunhão dos sofrimentos de Cristo conheceremos com certeza o poder de sua ressurreição. Essa certeza nos dá esperança em um mundo em que não acabam os proble­ mas que surgem nas áreas física, financeira, emocional, relacionai e espiritual de nossa vida.

Os pavores do inferno Os puritanos não somente procuraram despertar um anseio pelo céu, como também procuraram instilar um pavor do inferno. Assim, por exemplo, John Bunyan escreveu L ife a n d d ea th o f M r. B a d m a n [A vida e a morte do sr. Ban­ dido] (1680) como antítese da primeira parte do T h e p ilg rim ’s p ro gress [O pe­ regrino] (1678), bem antes de publicar a segunda parte da viagem à Cidade Celestial (1684). Bunyan dá o seguinte depoimento em B a d m a n : "Enquanto eu considerava comigo aquilo que havia escrito sobre o Peregrino avançar deste mundo rumo à glória e como isso havia sido aceitável para muitos nesta nação, de novo veio à minha mente que agora, no estilo daquele livro (...) es­ crevesse sobre a vida e a morte dos ímpios e de sua viagem deste mundo para 0 inferno”. Na forma de um diálogo entre o sr. Sábio e o sr. Observador, essa obra acompanha, então, a queda do réprobo sr. Bandido ao inferno. Bunyan nos conta que descreve a vida do sr. Bandido “da infância à morte” para que possamos, “como em um espelho, observar com teus olhos os passos que levam ao inferno”, verificar se estamos "percorrendo” o mesmo caminho e “investigar seriamente” se somos “ou não alguém da estirpe dele”. Aliás, “seus parentes cobrem o mundo inteiro” e “raramente” conseguimos encontrar até mesmo “uma casa ou família em uma cidade em que não deixou para trás um irmão ou sobrinho ou amigo”.®’ Bunyan sabia muito bem usar diálogos para transmitir tal verdade, pois B a d m a n revela a influência da obra de Arthur Dent P lain m a n ’s pathw ay to h ea v en [0 caminho que leva o homem simples ao céu] (1599), um manual de arrependimento escrito em forma de diálogo, que Bunyan leu com a mulher. Tomado de uma perspectiva eterna, no seu final a obra se dirige pessoal e pode­ rosamente ao leitor, abordando o assunto da vinda de Cristo, incluindo o pavor dessa vinda e do julgamento que virá com isso. Dent afirma que “devemos viver sempre como se fôssemos morrer ou como se nosso leito fosse nosso túmulo; precisamos viver o tempo todo como se Cristo viesse julgar agora”. Adiante, “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (16711, P- 203-7. “Veja John Bunyan, “The author to the reader”, in: The life and death o f Mr. Badman, pre­ sented to the world in a familiar dialogue between Mr. Wiseman, and Mr. Attentive, edição de James F. Forrest: Roger Sharrock (Oxford: Oxford University Press, 19881, P- xliii, 1.

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passa a falar dos “tormentos do inferno” no que diz respeito a sua severidade extrema, perpetuidade e irremediabilidade”. Essa abordagem tipicamente puri­ tana tinha 0 propósito de instilar pavor e expor o pecado, mas sempre tendo em vista mostrar o caminho para as misericórdias de Cristo. No diálogo de Dent, Theologus, 0 pastor designado, leva Asunetus, o homem ignorante, a “tiritar e tremer” com sua conversa sobre o fogo do inferno e o juízo: “Sinto grande pavor em minha consciência. Tenho medo de que serei condenado”. Antilegon, 0 “desdenhador”, contesta tolamente essa conversa sobre o inferno e a ideia de 0 correto Asunetus ir para lá: “Se deves ser condenado, não sei quem deve ser salvo”. Theologus encoraja Asunetus e todos os que gemem em sua miséria é lamentam seu pecado a crerem que “Cristo é para ti” e que precisam “aplicar [a si] Cristo e todas as promessas do evangelho, pois não temos nenhum outro remédio ou refúgio, senão somente os méritos e a justiça dele — ele é nossa cidade de refúgio paira onde precisamos escapar e onde precisamos nos proteger — ele é 0 bálsamo de Gileade, com o qual nossa alma é curada”.“ Dentro dessa tradição cristocêntrica do fogo do inferno e à luz dos dez sermões pregados sobre a glória dos santos no céu. Love volta sua atenção para “a condição de tormento experimentada pelos condenados no inferno”. Love procura “despertar a consciência” daqueles que ele não conseguiu “conquistar” com a pregação sobre a glória vindoura. Esses sete sermões de Love sobre a doutrina do inferno são introduzidos com 2Coríntios 5.11, “Sabendo o que significa 0 terror do Senhor, procuramos convencer os homens” (KJV), mas se baseiam em Mateus 10.28: “Pelo contrário, temei aquele que pode destruir no inferno tanto a alma como o corpo”. Nesse texto. Cristo afirma que nesta vida sofreremos nas mãos de outros, mas o poder humano é limitado, pois os homens conseguem matar somente o corpo. Não devemos temê-los, mas àquele que “pode destruir tanto a alma como o corpo”. Esse matar não tem o sentido de destruir ou aniquilar, mas um “atormentar contínuo do corpo e da alma por toda a eternidade” (Mt 22.13; 25.30; Ap 20.14,15).“ Love sustenta que nas Escrituras a palavra traduzida por “inferno” pode se referir à sepultura (“Pois não deixarás a minha alma no inferno” [SI 16.10, ARC]), “o ventre da baleia” (“do ventre do inferno gritei” [Jn 2.2, ARCj), o próprio Diabo (“a língua [... é] posta em chamas pelo inferno” [Tg 3.6]) e o “Arthur Dent, The plain m an’s pathway to heaven; wherein every man may clearly see whether he shall be saved or dam ned (1599; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1994), p. 1,277, 285,287, 295-7, 300, 305. 0 primeiro contato de Bunyan com Dent aconteceu antes de sua conversão, ao ler com a sua esposa o livro “The plain m an’s pathway to heaven [...) o qual o pai, quan­ do faleceu, deixou para ela”. Embora sem convicção, ele "descobriu [no livro] algumas coisas que foram até certo ponto agradáveis” para ele (John Bunyan, Grace abounding to the chief of sinners, edição de Roger Sharrock [Oxford: Clarendon, 1962], p. 8, §15]. “ Love, Heaven’s gloiy, hell’s terror (1671), p. 211-4.

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lugar de tormento eterno (Mt 5.29; Le 12.5; 16.23).** Ao tentar nos motivar a temer a Deus mais do que os homens e em despertar a “consciência sonolen­ ta”, Love se concentra no poder de Deus para sujeitar os homens ao tormento eterno, o que deve “operar um terrível temor de Deus” em nosso coração. Ouvir acerca desses tormentos deve “assustar” nossa consciência, despertando-a de uma falsa sensação de segurança, remover infundadas esperanças de glória e nos afastar de chafurdar no pecado.®' Mesmo na época de Love as pessoas se opunham à pregação sobre o in­ ferno, pois “isso não é pregar o evangelho, mas a Lei”. Ele responde que Jesus não era um pregador da Lei, mas do evangelho, porém mesmo assim falou sem rodeios sobre o inferno mais do que qualquer outra pessoa nas Escrituras. Além disso, 0 Diabo faz todo o possível para desmerecer a pregação sobre 0 inferno enquanto procura “afagar os homens na segurança de seus peca­ dos”. Então, se pregar o medo é pregar a Lei, por que a doutrina do inferno é apresentada com mais clareza no Novo Testamento, no qual o evangelho de Cristo é revelado com ainda mais clareza, do que no Antigo Testamento? Com ousadia. Love afirma que “sermões de medo têm causado mais bem a almas não convertidas do que sermões de consolo jamais conseguiram fazer”. Em resumo, não podemos afirmar que pregamos todo o conselho de Deus, se “nos limitamos a discorrer sobre aspectos da graça gratuita”.®®

Existe inferno? Love apresenta quinze interrogações ou perguntas sobre o inferno. Primeiro ele indaga: “Existe inferno?” Diante dessa pergunta, ele chama a atenção para a admissão feita pelos pagãos que, “pela tênue luz da natureza”, tinham alguma ideia do inferno. O mais importante é que existe o claro testemunho de diferen­ tes passagens das Escrituras, como Mateus 23.33, que fala da “condenação do inferno”, e 2Pedro 2 .3,4, que chama de pessoas “lançadas no inferno” aqueles reservados para o juízo.®^ Conforme assinalado anteriormente. Love rejeita a ideia de mortalismo, isto é, que a alma deixava de existir ou era aniquilada. Essa rejeição tornava necessária a realidade da imortalidade da alma em um estado ou de bem-aventurança ou de tormento. John Bunyan examina a realidade do inferno em A few sighs from hell [Uns poucos suspiros do inferno] (1658). Nessa obra, ele expõe Lucas 16.19-31, que é a história do homem rico e Lázaro. Bunyan identifica a passagem como “ Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 214-5. “ Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 216-8. Ele afirma que até então quase nada havia sido escrito sobre o assunto, embora faça referência à obra de Bolton Four laste things. “ Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 2 1 8 -2 0 ,2 2 3 . ‘ 'Love, H eaven’s glory, hell’s tenor (1671), p. 224-5.

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parábola, mas que ensina vigorosamente as realidades do céu e do inferno. Ele descobre que Satanás fará todo o possível para impedir que os homens pensem no inferno a fim de que continuem em seus pecados sem “medo algum da morte nem do juízo vindouro”. Dessa forma, muitos deste mundo negam do ponto de vista teórico ou mesmo prático a realidade do inferno de um modo parecido com 0 ateísmo prático que se manifesta em uma vida de impiedade. Bunyan chama a atenção para Lucas 16.23: “No inferno, em meio aos tormentos, o rico ergueu os olhos”. Com base nessa frase, ele conclui que “existe um inferno em que as almas devem ser atormentadas quando esta vida acabar [...] depois de [o homem] morrer e ser sepultado”. Essas palavras deixam “claro que existe um inferno para as almas e também para os corpos, para serem atormentados depois de partirem desta vida”. Ele nega que Cristo esteja falando figuradamente para simbolizar a sepultura ou algum conceito de tormento “nesta vida”. Depois disso, ele adverte aqueles que “zombam” de pregadores que lhes falam do inferno, afirmando que, “depois que esta vida terminar, descobrirão que o inferno é tão medonho que jamais conseguirão sair dali”. Conforme pôde testemunhar com base em sua própria experiência, Bunyan deseja que deixemos o pensamento sobre o inferno nos despertar para “buscar o Senhor Jesus Cristo”, em vez de “fazer pouco caso [do inferno] e zombar dele”.®*

Por que é necessário haver um inferno? Love pergunta em seguida: “Por que é necessário haver um inferno?” Em primeiro lugar, “por causa da natureza imunda do pecado”; o pecado contra um Deus infinito requer um castigo proporcional no mundo vindouro. Em segundo, porque Cristo não fez reparação à justiça de Deus em favor dos ímpios, os quais precisam, portanto, sofrer eles mesmos a ira de Deus no inferno. Em terceiro, os pavores que afligem a consciência dos ímpios no leito de morte “demonstram que há um tempo de suportar os tormentos”.®® Thomas Goodwin dedica cerca de quatrocentos e noventa páginas para tra­ tar da culpa do homem perante Deus, antes de analisar o castigo do inferno (oitenta páginas). Visto que o inferno é um castigo “tão grande que não pode ser compreendido por nossos pensamentos nem mesmo suficientemente des­ crito”, a justiça de Deus em condenar pecadores pelos seus pecados contra Deus era do mais alto interesse para Goodwin.®® A pecaminosidade do pecado contra um Deus santo é a principal razão para a doutrina do inferno. E era “John Bunyan, The miscellaneous works o f John Bunyan, edição de Roger Sharrock (Oxford: Oxford University Press, 1976-94), 1:246-7, 261, 266, 267. “ Love, Heaven's glory, heWs terror (1671), p. 226-7. ’‘Thomas Goodwin, A n unregenerate m an’s guiltiness before God, in: Thomas Smith, oig., The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 10:490.

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comum os puritanos considerarem que só a partir do custo da redenção, a morte do Filho amado de Deus, é que era possível inferir corretamente a atrocidade do pecado.

O que é o inferno? Love retoma em seguida a pergunta fundamental: "O que é o inferno?”. Esse lugar em que "o corpo e a alma de homens ímpios são atormentados” pode ser descrito com as seguintes características tiradas das Escrituras: fogo q u e não se a p a g a , inextinguível (Lc 3.17); uma fo rn a lh a d e fo go (Mt 13.42), o que faz lembrar a fornalha de Nabucodonosor (Dn 3.21,22), onde apenas os piedosos não foram atingidos; um lago d e fo go (Ap 19.20), com abundância de tormentos assim como um lago tem profusão de água; fogo etern o (Jd 7), com tormento eterno; trevas exterio res (Mt 22.13), onde somos “privados da luz do semblante de Deus”; escu rid ã o d a s trevas p a ra sem p re (Jd 13), como lugar apavorante que deve levar os homens a tremerem agora; ca d eia s d a es­ cu rid ã o (“abismos de trevas” [A21], 2Pe 2 .4 ), numa referência à sua natureza compulsória e à impossibilidade de fuga; co n d en a çã o do in fern o (Mt 23.33), da qual ninguém escapará; lu g a r d e to rm en to (Lc 16.28), uma “expressão ter­ rível” para designar o que acontece ali; a ira v in d o u ra (ITs 1.10), como lugar da expressão da ira de Deus; p risã o (IPe 3.19), referência à maneira que, por intermédio do ministério de Noé, o Cristo pré-encamado pregou a homens que agora estão presos no inferno; T ofete (Is 30.33), que se refere ao fogo do deus Moloque, em que crianças eram lançadas em sacrifício e do qual se ouviam gritos e urros; p o ço do a b ism o (Ap 9 .1), “do qual nunca sairás”; a seg u n d a m orte (Ap 2.11); d estru içã o (Mt 7.13); castigo etern o (Mt 25.46); e co rrupção (G1 6.8) como colheita por “semear para a carne’? ’ Resumindo essas vívidas descrições das Escrituras, Love fornece esta descrição geral e apropriada do inferno: “O inferno é um lugar de tormento, determinado por Deus para demônios e pecadores réprobos, em que por sua justiça ele os prende ao castigo eterno, atormentando-os tanto no corpo quanto na alma, privando-os do favor divino, sendo eles objetos de sua ira, sob a qual precisam ficar por toda eternidade

O nde fíca o inferno? Love pergunta: “Onde fica o inferno?”. Alguns dizem que fica “no ar”, visto que 0 Diabo é "o príncipe do poderio do ar” (Ef 2.2; 6.12), mas esses textos se referem ao seu local de domínio ou conflito. Outros, por diferentes razões, ^'Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 230-4. '^Love. Heaven’s glory, hell's terror (1671), p. 23S.

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bíblicas e extrabíblicas, afirmam que o inferno fica “debaixo da superfície da terra”, no vale de Josafá (J1 3.12), no meio do globo terrestre ou no fundo do mar. Love rejeita todas essas afirmações, dizendo que, embora as Escrituras não nos informem a exata localização, é certo que elas nos asseveram que há um lugar chamado de inferno, o qual é distinto do céu e está abaixo dele (Pv 15.24; Lc 10.15). O fato de que Deus escolheu não nos dar a exata localização pode ser para “evitar curiosidade” e inquietação em nossos corações, para impedir que temamos o inferno mais do que o pecado que nos conduz a ele, para nos despertar à fé em Deus sobre algo que não “sabemos claramente” o que é ou onde fica e para dar mais ênfase ao meio normal de conversão mediante a pregação da Palavra e não mediante uma manifestação extraordinária como a que o homem rico procurou para seus irmãos (Lc 16.27-31). Essa dúvida nos faz lembrar que devemos estar mais preocupados em evitar o inferno do que em descobrir onde fica, em compreender que, embora não saibamos onde fica, podemos estar certos de que “o pecado é a estrada mais segura” que leva diretamente para lá. Podemos tirar vantagem de nossa incerteza sobre a loca­ lização, para “prestar atenção ao pecado em cada lugar, pois o inferno segue logo atrás do pecado” (veja Gn 4 .7 ), e reconhecer que, mesmo sem saber onde fica, podemos ver pessoas com vida ímpia e consciência culpada como “uma pintura viva do próprio inferno”.” Em associação com o assunto da localização do inferno, mais tarde surge a pergunta: “Além do inferno, existe outro lugar de tormento depois desta vida?”. Aqui Love rejeita a ideia papista do purgatório como uma região acima do inferno, na qual fogos de purgação purificam as almas de cristãos, prepa­ rando-os para o céu. Ele rejeita recorrer a ICoríntios 3.12-14, que menciona nossas obras sendo testadas e reprovadas metaforicamente pelo fogo e que não se refere à purgação do pecado. Ele conclui que “não pode haver lugar algum assim de tormento como o purgatório”, visto que ele anula em parte os méritos do sofrimento e do sangue de Cristo (IJo 1.7; Hb 1.3), nega que Cristo satisfez plenamente a justiça de Deus, torna Deus cruel e injusto, pois estaria atormentando seus filhos “por pecados já perdoados”, e cria um “comércio” de perdões na igreja de Roma, um esquema de fazer dinheiro e que depõe contra sua legitimidade. Nas Escrituras, existe ampla comprovação (Fp 1.23; 2Co 5.6,8) de que por ocasião da morte a alma é imediatamente levada à glória. O fato de que não existe “purgatório algum para purificar vossos pecados” dá aos cristãos motivo para não temerem tormentos quando morrerem e adverte os ímpios: “assim que morrerdes, não ireis para o purgatório, mas para o in­ ferno, onde um fogo aceso pelo sopro do Senhor vos queimará para sempre. ”Love, H eaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 248-SS.

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Não existe um lugar melhor do que esse que está preparado para ti, quando tua alma e teu corpo se separarem’?^

Deus é justo ao condenar eternamente os homens? Visto que muitos questionam a validade de um lugar para a condenação, Love indaga: “Deus é justo ao condenar eternamente homens que pecam temporariamente nesta vida?”. Mesmo que alguém viva somente por um hreve momento na terra, Love defende que essa ação divina é justa pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, nosso castigo não se baseia no período de tempo que pecamos, mas no fato de que pecamos, assim como é o caso do ladrão que é sentenciado a uma pena de prisão muito mais longa do que o tempo que levou para arrombar uma casa. Em segundo, cometemos pecado contra um Deus infinito e, por isso, merecemos castigo infinito, da mesma maneira como 0 castigo por agredir uma autoridade, como um príncipe, é muito maior do que por agredir um homem comum na rua. Em terceiro, se vivêssemos para sempre, pecaríamos para sempre, ou pecamos “o quanto” pudermos, enquanto vivermos. Em quarto, continuamos a pecar no inferno mesmo de­ pois de partirmos da terra e, assim, continuamos a provocar a ira de Deus. Por fim, mesmo um momentâneo deslize no pecado mostra que rejeitamos a bondade infinita de Deus e, assim, merecemos castigo infinito. O fato de esse pecado momentâneo trazer um castigo eterno justo deve nos levar a evitar tanto “pensamentos pecaminosos insignificantes” contra um Deus infinito e justo que impõe tais tormentos quanto quaisquer acusações contra ele de ser severo demais em impô-los. À parte de sua obra secreta da graça na salvação, ele pode até mesmo escolher fazê-lo em uma criancinha que vive “apenas um minuto neste mundo”.” Essa análise traz à tona um ponto importante sobre a assimetria de mérito entre teólogos puritanos. Entre teólogos reformados deu-se um debate sobre a recompensa de Adão. Foi céu ou terra?” Alguns defendem que o céu era a recompensa de Adão, visto que, se Adão não merecia a vida eterna por causa de sua obediência, então não podia merecer a morte eterna por causa da deso­ bediência. Os teólogos reformados negavam que os seres humanos pudessem merecer qualquer recompensa da parte de Deus, mas concordavam que cria­ turas podem merecer castigo eterno. Essa “assimetria do mérito humano” era lugar comum na tradição teológica reformada. Nesse sentido, William Ames "Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 305-11. ”Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 280-S. Cf. CFW, 10.3, e os Cânones de Doit, 1.17. "Sobre esse debate, veja Mark A. Herzer, “Adam's reward: heaven or earth?”, in: Michael A. G. Haykin; Mark Jones, orgs., Drawn into controversie: Reformed theological diversity and debates within seventeenth-century British Puritanism (Gottingen: Vandenhoeck &Ruprecht, 2011), cap. 7.

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(1576-1633) escreve: “Nessa aliança, as ações morais da criatura inteligente conduzem ou à felicidade como recompensa ou à infelicidade como castigo. A segunda é merecida, a primeira não’7 ’' De niodo análogo, Goodwin defende que existe “uma impropriedade tão transcendente, uma injúria que o pecado da criatura produz no próprio grande Deus e é proporcionalmente muitíssimo maior do que qualquer graça ou obediência produzidas [pelo homem] ” que só Deus “seria capaz de compensar Deus pelo demérito do pecado”.^® Em outras palavras, um único pecado contra um Deus infinito não pode ser compensado por um único ato de obediência. Devido à assimetria do mérito, o maior bem feito por todas as criaturas do mundo não consegue contrabalançar o menor pecado feito por uma única criatura. Em associação com a justiça em geral vem uma pergunta relacionada com a imparcialidade e a universalidade do juízo: “A maioria dos homens e das mulheres do mundo será atormentada no inferno?”. Love acredita que sim e considera que a confirmação que ele próprio apresenta é “uma das mais sinistras doutrinas” que um pastor pode pregar. Em primeiro lugar, a maioria irá para o inferno porque a maior parte deles não olha para Cristo para livrá-los desse tormento, sejam eles judeus, muçulmanos, pagãos ou papistas. Em segundo, mesmo entre aqueles que “professam Jesus Cristo”, muitos são chamados, mas poucos escolhidos (Mt 22.14), pois a maioria é “profana no viver ou hipócrita no coração”. Em terceiro, quando você vê essas descrições de homens como gafanhotos (Jr 46.23), abelhas (SI 118.12), espinheiros e sarças (Is 10.17), lama e lodo (Is 57.20), pedras (Mt 13.5) e vasos de madeira (2Tm 2 .2 0 ), percebe que foram destinados para destruição como “o maior número de homens do mundo”. Em quarto, a maioria vive e morre nos próprios pecados que levam as pessoas ao inferno, pois sem arrependimento morrem em um “caminho de pecado” que busca prazeres, prostitutas e concupiscências, ao passo que poucos “buscam Jesus Cristo”. Em quinto, quando você considera todos os diferentes homens no mundo e os maiores deles, descobrirá que a maioria “está destinada para o inferno, esse lugar de tormento”. Em sexto, esse é o testemunho das Escrituras quando falam sobre o caminho “largo” da destruição (Mt 7.13), a porta “estreita” pela qual poucos entrarão (Lc 13.24), o “pequeno” rebanho de Deus (Lc 12.32) e 0 “remanescente" dos judeus que será salvo (Rm 9.27). Se a maioria há de ser condenada, temos de ver a loucura que é deixar que a opinião da maioria nos conduza na vida e devemos examinar nosso coração para saber se somos dos poucos que serão salvos. Não devemos ficar ofendidos com “o pequeno número de crentes”, mas lamentar pela maioria que enfrentará tais tormentos. "Arnes, The marrow o f theology, p. 111. ™Goodwin, A n unregenerate m an's guiltiness, in: Works, 10:516.

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acordar da ilusão vivida por um grande número de crentes no mundo e, não guardar “pensamento malévolo algum contra a misericórdia de Deus” devido ao fato de que a maioria dos homens perece/^ Ainda assim, como é possível que Deus vai condenar a maioria dos homens e mulheres que criou? Essa indagação é feita por universalistas, tais como Orígenes, e por arminianos, que acreditam que essa noção contradiz a mise­ ricórdia de Deus. Na husca de vindicar a misericórdia de Deus, Love primeiro chama a atenção para o direito soberano de Deus de, como Criador, salvar aqueles que deseja salvar (Rm 9.21). Em segundo lugar, de uma perspectiva infralapsariana, Love afirma que Deus não manda para o inferno nenhum homem que já não seja considerado vaso pronto para destruição (Rm 9.22). Em terceiro, o que quer que “esteja de acordo com o decreto de Deus também está de acordo com sua misericórdia”, pois os dois não podem conflitar. Em quarto, o fato de que Deus chega a escolher salvar alguns — tornando-os vaso de misericórdia (Rm 9.22,23) — faz sua misericórdia brilhar. Em quinto, “Deus demonstraria mais misericórdia, caso salvasse apenas um homem no mundo, do que demonstraria justiça extrema na condenação de todo o mundo”. Somos tolos em “abrigar pensamentos maus” por causa das aflições que ele envia, ao mesmo tempo que prontamente reconhecemos sua misericórdia conosco, não nos castigando por causa do pecado, conforme merecemos, e nos livrando da ira por meio de Jesus Cristo.“

Q uais são os tormentos do inferno? O tema a que Love mais dedica sua atenção é o dos tormentos do inferno. Ele indaga: “Quais são os tormentos dos condenados no inferno?”. Love dá testemunho de que falar sobre isso “faz meu coração tremer”. Em primeiro lugar, ele fala do inferno associando-o ao castigo de privação no sentido de perda ou privação, o que inclui a perda da presença de Deus, que declara "Malditos, afastai-vos de mim” (Mt 25.41), da companhia de santos e anjos (Mt 22.13; 24.41), da bem-aventurança do céu (Lc 16.23), da misericórdia de Deus e Cristo e dos piedosos junto com eles (Pv 1.26) e de toda “esperança de recuperação”, pois os condenados estão "sem possibilidade de redenção”. Acerca do castigo real do inferno, Love chama a atenção para a variedade de tormentos associando-os às muitas maneiras que os condenados serão des­ venturados no inferno: a universalidade dos tormentos que atingem os ímpios no corpo e na alma; a natureza extrema de tormentos que não podem ser extintos ou suportados; a continuidade dos tormentos, para os quais não há cessação "nem interrupção alguma”; a convivência dos atormentados, isto é, ”Love, H eaven’s giary, hell's terror (1671). p. 286-300. “ Love, H eaven’s glory, hell's terror (1671), p. 300-4.

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aqueles com quem os ímpios sofrem, tornando a experiência do inferno ain­ da mais angustiante; a característica dos tormentos, que é miséria total, sem consolo nem prazer algum; a crueldade dos tormentos nas mãos de demônios (Mt 18.34) e do próprio diabo, que “atormentam os ímpios”; e a eternidade de tormentos, que se acumularão para sempre sobre os ímpios, sem esperança alguma de que “minhas dores acabarão”. Ele nos exorta a considerar aquilo que perderemos no inferno e quais aflições traremos sobre nós, a fim de que reflitamos sobre a loucura desse proceder e tremamos diante disso. Será que iremos “correr o risco” de entrar em um inferno eterno por causa dos prazeres do pecado nesta vida?®‘ Love queria que sentíssemos a convicção de Bunyan, que antes da conversão achou que ouviu uma voz do céu “atingir” sua alma: “Deixarás teus pecados e irás para o céu? Ou ficarás com teus pecados e irás para o inferno?”.®^ Em relação aos graus de fruição que ele observou na glória, Love pergunta: “Há graus de tormento no inferno?” Contrariamente aos estoicos, que sus­ tentam que todos os pecados e castigos são iguais, Love, assim como quase todos os reformados e puritanos, afirma que existem graus de castigo. Ele afirma que todos os castigos são os mesmos no sentido de que todos serão eternos, de que todos que os experimentam serão privados de Cristo e de que ninguém tem esperança de escapar deles. Mesmo assim, o fato de que aque­ les que estão em tormento experimentam graus de sofrimento é comprovado pelas seguintes passagens das Escrituras: Mateus 10.15, que declara que os impenitentes da época do evangelho estarão em situação pior do que aqueles da época de Sodoma e Gomorra; Mateus 11.22, que afirma que o mesmo se aplica a Corazim, onde o evangelho foi pregado, em comparação com as cida­ des pagãs de Tiro e Sidom; Lucas 12.47,48, em que lemos de mais “açoites” para aqueles que conheciam a vontade de Deus do que para aqueles que não conheciam; e Mateus 23.14, que estabelece uma "condenação maior” para os hipócritas do que para os ímpios em geral. Esses graus de tormento existem porque alguns cometem pecados maiores do que outros, como foi o caso de Caifás, que entregou Jesus a Pilatos e tinha poder para sentenciá-lo à morte (Jo 19.11). Love sustenta que “não há dúvida de que a justiça de Deus ataca o pecado de maneira tal que os que têm mais pecados terão maiores tormentos (Jo 15.22; Mt 7.4; 2 3 .2 4 )”. É razoável que, assim como aqueles “que mais se destacam na graça" desfrutarão do céu em grau maior, aqueles “mais des­ prezíveis no pecado” sofrerão um grau maior de tormentos. Por isso, aqueles que “se precipitam nos pecados mais desprezíveis” têm grande motivo para tremer. Love escreve: “Embora a menor medida dos tormentos dos condenados “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 255-68. “ Bunyan, Grace abounding, p. 10, §22.

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seja suficiente para deixá-los miseráveis, ai de ti, entretanto, que armazenas a maior medida da ira de Deus”.®^ Quanto à duração do sofrimento, Love indaga: “Os tormentos do inferno são eternos?”. De acordo com as Escrituras, o fogo do inferno é chamado de inextinguível (Mt 3.12) e eterno (Jd 7), e dura para sempre (Mt 25.46) no que diz respeito a seus tormentos e destruição (2Ts 1.9). Love argumenta que, além disso, os tormentos precisam ser eternos porque a justiça de Deus jamais poderá ser reparada sem eles (Lc 12.59), exceto no caso dos eleitos em Cristo. Como os homens pecarão etemamente, assim precisam ser castigados por toda eternidade; assim como os piedosos experimentam alegria eterna, os ímpios sofrerão tormento eterno. Ademais, ele apresenta as seguintes razões pelas quais 0 inferno é eterno. Deus, que designa os maus para o inferno, é eterno, e 0 inferno precisa existir enquanto ele existir (Is 33.14); o verme que "corrói a consciência” é eterno (Is 66.24); e tanto o corpo quanto a alma que sofrem serão imortais e eternos. Assim, é impossível que homens como Orígenes estivessem certos ao expor a ideia de uma salvação universal para todos os homens;®^ devemos evitar a busca de coisas temporais sem valor, considerando 0 risco eterno de tê-las; os homens devem pensar duas vezes antes de desejar a condenação sobre si, antes que Deus os coloque lá; devemos aprender a paciência em meio a tribulações temporárias, considerando as dores eternas “Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 235-7. “Em Origen: scholarship in the service o f the church (Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 218,255-6), Ronald E. Heine sugere que mais tarde Orígenes (c. 185-254) estabeleceu “limites à obra redentora de Deus”, quando compara o Orígenes anterior, de Alexandria, com o Orígenes posterior, de Cesareia, em especial com relação a Contra Celsum (248) e seu ensino sobre a des­ truição de Satanás em mente. Isso questiona as conclusões de estudiosos como J. W. Hanson, que defende que Orígenes foi consistentemente um "universalista típico” (Universalism: the prevailing doctrine o f the Christian church during its first five hundred years [Boston: Universalist, 1899], p. 61, 64, 67-74). Comparando o Orígenes anterior com o posterior, parece que essa consistên­ cia se manifesta. Em De principiis (antes de 231), Orígenes vê Deus como um fogo consumidor dos ímpios no sentido de fogo medicinal purificador que terapeuticamente restaura todos a um estado de perfeição, pois ele se torna “tudo” para cada pessoa e não apenas para “umas poucas pessoas ou um número considerável de pessoas, mas ele próprio é ‘tudo em todos”' por meio do efeito purificador desse fogo (Deprincipiis, 3:6). No entanto, mesmo mais tarde Orígenes afirma em Contra Celsum (248) o seguinte sobre Cristo como Salvador: “Mas nossa crença é que o Ver­ bo prevalecerá sobre toda a criação racional e transformará cada criatura para torná-la perfeita como ele é [...] Pois, embora existam alguns cujas enfermidades e feridas no corpo nenhuma habilidade médica consiga curar, sustentamos que na mente não há mal algum tão forte que não possa ser vencido pelo Verbo Supremo e Deus. Pois o Verbo e o poder curador que habita nele são mais fortes do que todos os males na alma; e, de acordo com a vontade de Deus, ele aplica essa cura a cada homem” fContra Celsum, 8:72). A citação dessas duas obras de Orígenes é tirada de Ante-Nicene fathers, vol. 4, tradução para o inglês de Frederick Crombie, edição de Alexander Roberts; James Donaldson; A. Cleveland Coxe (Buffalo: Christian Literature, 1885).

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que evitaremos na glória (ITs 1.6); e precisamos agora labutar diligentemente com a esperança de evitar esse estado eterno.“ Os puritanos defendiam de várias maileiras a eternidade do inferno, sen­ do que 0 principal motivo estava relacionado aos atributos de Deus. Desse modo, por exemplo, as Escrituras falam do terror que é cair nas mãos do Deus vivo (Hb 10.31). Os não regenerados caem nas mãos de um Deus não somente grande, poderoso, justo e vingador, mas também vivo. Com isso, Goodwin defende que Deus, na condição de Deus vivo, imporá castigo por toda eternidade e que “durante todo o tempo da eternidade ele continuará a infligi-lo permanentemente”.“ Pelo fato de ser o “Deus vivo", ele é eterno e trata continuamente com os maus. Enquanto Deus viver, os maus também existirão. A duração do inferno é determinada pela duração de Deus, o que necessariamente significa que o inferno é eterno e não temporário. No infer­ no, os maus se desesperarão, pois “no inferno a alma em estado miserável [...] descobre que não sobreviverá àquela miséria e também não consegue encontrar nenhum momento ou instante de liberdade e intervalo, tendo para sempre de se relacionar com aquele que é o Deus vivo”.“ Os maus entrarão em desespero porque a ira do Deus vivo não acaba. Por esse motivo, haverá um medo completo, porque no inferno as almas ímpias serão atormentadas não apenas por aquilo que experimentam no momento presente, mas também por aquilo que experimentarão para sempre.*® Considerando o tormento em si como definido nas Escrituras, Love indaga: “Há um fogo literal no inferno?”. Ele sustenta que nas atuais condições o fogo não queima no inferno, mas queimará quando Cristo vier “em chama de fogo” para julgar. Em outras palavras, o “fogo” que aflige a alma no inferno não é físico ou tangível no que diz respeito a calor e luz, mas um fogo que de alguma maneira envolve agonia, assim como um fogo literal inflige dor ao corpo. No entanto, por ocasião da ressurreição o fogo será de fato tangível e queimará sem consumir, ao mesmo tempo atormentando para sempre. Enfim, não devemos “levantar tantas objeções frívolas ao fogo do inferno, antes ter o cuidado de evitá-lo”. Evitar o inferno e os “pecados abrasadores” que conduzem ao seu fogo é 0 que devemos procurar enquanto vivemos com piedade e, como aque­ les que estão redimidos em Cristo, não temê-lo. Love testifica; “E, conforme afirma o sr. Dod, se o fogo do inferno faz um homem buscar a Cristo, deve-se acalentar e manter vivos esses pensamentos do fogo do inferno”. “Portanto, sempre que fordes tentados a quaisquer concupiscências, considerai que arder “ Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 269-80. “Goodwin, A n unregenerate m an’s guiltiness, in: Works, 10:547-8. “Goodwin, A n unregenerate m an’s guiltiness, in: Works, 10:548. “Goodwin, A n unregenerate m an’s guiltiness, in: W>rks, 10:549.

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no fogo do inferno será insuportável, e pensar no fogo do inferno será um grande freio para ficar longe de concupiscências abrasadoras.”®’ Também com relação à natureza do tormento, Love indaga; “O que quer dizer o verme que nunca morre, mas corrói a consciência para sempre?”. Essa pergunta nos leva para Marcos 9.44 e Lucas 13.28. Love deixa claro que não concorda com aqueles que interpretam que esse seja um “verme tangível, que após a ressurreição estará corroendo a carne do corpo”. Em vez disso, é uma referência ao pavor que toma conta da consciência e prevalece sobre a “alma condenada, pois ela está por toda a eternidade debaixo da ira de um Deus vingador e enfurecido”. Na terra, os homens têm consciências cauter zadas que nunca os incomodam, mas no inferno “a consciência será com-; um verme para eles, sempre os corroendo e sempre os deixando perplexos debaixo de intranquilidade e pavor, estando para sempre debaixo da ira de Deus, sem esperança de escapar. Da mesma maneira que os vermes estão o tempo todo corroendo o cadáver, o pecado fará com a consciência”. Devemos então, defende Love, nos esforçar para ter uma boa consciência aqui na terra, não a profanando com o fardo do pecado sem arrependimento e, simulta­ neamente, 0 fardo do inferno enquanto aqui na terra. Com essa seção, ele também retoma a questão do ranger de dentes no inferno (Lc 13.28), que se refere à “implacável inimizade que os condenados carregam em seu coração contra todos aqueles que serão salvos”. Além disso, manifestarão indignação com Jesus Cristo porque ele não os salvou e não podem se vingar dele. Eles ficarão encolerizados pelo fato de terem menosprezado a oportunidade de aceitar Jesus Cristo. Love lamenta: “Ah! isso atormentará imensamente os condenados, a saber, este pensamento: que tiveram muitas oportunidades de graça aqui neste mundo, mas negligenciaram todas elas”.*

Pregar sobre o inferno Sobre a ideia em geral de pregar sobre o inferno, Love dá testemunho de que ouvir um sermão sobre o assunto é bom se isso leva você a tremer, o impede de experimentar o próprio inferno e o desvia dos pecados que o levam para lá. Ele trata dos seguintes tipos de pessoas: aquelas que não viverão no ca­ minho santo nem deixarão que outros o façam (p. ex., o marido ímpio em relação a sua mulher cristã) e, por esse motivo, recebem “condenação muito maior” (Mt 23.14,15); aqueles que vivem debaixo dos meios de graça mas sem “melhoria alguma ou aperfeiçoamento” (Mt 10.22,23), como aqueles que, em países como a Inglaterra, “vivem sob o evangelho, contudo, sem ser ®’Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 322-30. ’“Love, H eaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 333-4, 337.

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transformados”; aqueles que professam a religião com alarde e têm muito conhecimento a respeito, “porém, não a praticam” (Lc 12.47,48); aqueles que com seu próprio exemplo ímpio têm incentivado outros a pecar (p. ex., pais em relação aos filhos);” aqueles que morrem como adúlteros impeniten­ tes (2Pe 2.9,10; Hb 13.4); aqueles que usam hipocritamente a religião como “capa e disfarce” para cometer “pecados mais repugnantes e abomináveis” (Mc 12.40); e aqueles que continuam a viver sem se arrepender “diante de um Deus paciente e longânimo” (Rm 2 .5 ).’^ Alguns dos pecados que Love espera refrear com a pregação sobre o inferno incluem concupiscência, glutonaria, orgulho, cobiça e medo dos homens.

Adescida ao inferno Relacionado à expressão “desceu ao inferno”, encontrada no Credo dos Após­ tolos, Love pergunta: “Jesus desceu em pessoa ao inferno como lugar de tor­ mento?” Love defende que não e apresenta as seguintes razões. Em primeiro lugar, Lucas, sendo historiador (veja Lc 1.3; At 1.1), não registra essa descida pessoal, o que teria feito caso ela tivesse acontecido.®* Em segundo, essa descida não podia incluir seu corpo, pois foi colocado no túmulo no mesmo dia em que morreu. Além disso, no “mesmo dia” da morte Jesus esteve presente em alma com o Pai (Lc 23.43). Em terceiro, não há nenhum bom motivo pelo qual precisasse descer. Explicações inaceitáveis incluem que ele precisou livrar almas do inferno (“como os papistas defendem”); que precisou fazer reparação adicional, como se a da cruz não fosse suficiente; ou que foi ali para “derrotar e destruir o Diabo”. No entanto, as almas no inferno "não podem” sair (Lc 16.26); a reparação feita por Cristo foi “finalizada” por ocasião de sua morte (Jo 19.30); e “pela morte” Cristo destruiu o Diabo (Hb 2.14). Love não recua diante daqueles que recorrem ao Credo dos Apóstolos em apoio à ideia de uma descida literal ao inferno, pois a doutrina “está em desacordo tanto com as Escrituras quanto com a razão”, e recorre a William Perkins (1558-1602) e alguns dos concílios para negar a validade daquela doutrina.®“ Love rejeita interpretações que amenizam a expressão e afirma que ela se refere não a uma descida física ao inferno, mas apenas à experiência de Cristo ”Esse é 0 sentido com que Love interpreta Lucas 16.27,28, sustentando que por amor a si mesmo o homem rico quis advertir seus irmãos, pois sua própria vida tinha sido causa de irri­ tação para eles e lhe causaria um sofrimento maior. ” Love, Heaven’s glory, hell's terror (1671), p. 238-47. ’’Aqui, Love se fundamenta demais no silêncio de Lucas, pois seria necessário que não omitis­ se nenhum detalhe histórico registrado pelos outros evangelistas. Está claro que esse não é o caso. ’’Acerca de João Calvino, William Perkins e o debate sobre a descida de Cristo, veja Mark Jones, “John Calvin’s reception at the Westminster Assembly (1643-1649)”, Chmth History and Religious Culture 91, n. 1-2 (2011): 215-27. Cf. Danny Hyde, In defense o f the descent: a response to contemporary critics (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2010).

^.spom

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com 0 poder da morte e o inferno enquanto esteve na cruz (CFW, 8.4; Cate­ cismo de Heidelberg, pergunta 44). Essas interpretações causam mais dano “à compreensão dos homens”, pois põem de lado a “maioria dos intérpretes”, que creem que a expressão se refere a uma descida física ao inferno. Nossa única opção nessas “questões da Reforma” é “alterar a palavra ou então apagá-la”.^® Essa é uma afirmação significativa da parte de Love. A maioria dos teólogos reformados não quis modificar os credos ecumênicos. Preferiram dar um novo sentido à descida de Cristo ao inferno. O credo diz “ad inferos” (“ao Hades”, o lu­ gar dos mortos), não “ad infemum.” (infemo/geena). William Perkins mencionou quatro posições sobre a descida de Cristo: (1) uma descida espacial; (2) descida como sinônimo de “sepultado”; (3) descida como metáfora para descrever os sofrimentos de Cristo; e (4) descida como referência à maldição da morte.®* A maioria dos teólogos reformados defendia a segunda posição (o túmulo onde Cristo foi sepultado). É famosa a defesa que Calvino fez da terceira posição, e Zacharias Ursinus uniu-se a Calvino nessa interpretação do Credo. A Assembleia de Westminster defendeu a segunda e a terceira posições (CFW, 8.4), embora os catecismos exponham basicamente a segunda posição, segundo a qual Cristo foi mantido sob o poder da morte até sua ressurreição (Catecismo Maior, pergunta 50). Mesmo assim, alguns na assembleia, como Goodwin, adotaram a posição de Calvino.®' Parece que Love juntou-se a Goodwin quando escreve: “embora Cristo não tenha descido ao inferno, mesmo assim sofreu na cruz por tua causa grande parte das dores e tormentos do inferno”.®® Love mostra que recorrer à pregação de Cristo aos “espíritos em prisão” (IPe 3.19) não ajuda, pois esse texto se refere somente ao ministério de Cristo por meio da pregação de Noé nos dias de Noé. Love também trata do suposto apoio de textos, como Salmos 16.10, que fala de Cristo não ver “corrupção” no túmulo sem menção literal ao “inferno”, e IPedro 4.6, que se refere à pregação aos “mortos”, que não são aqueles que estão no inferno (para lhes dar uma segunda oportunidade), mas aqueles que (conforme mencionado em IPe 3.19) receberam uma vez o evangelho, porém, morreram rejeitando-o.®®

Conclusão Os escritos de Christopher Love sobre o céu e o inferno são uma expressão fiel das ideias puritanas comuns sobre o assunto. Embora as posições de Love e ’®Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 316-7. *‘William Perkins, An exposition o f the symbole, or Creed o f the Apostles (London: John Legal, 1621), 1:231. ’Thomas Goodwin, Of Christ the Mediator, in: Thomas Smith, org., The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr., Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 5:284. ’’Love, Heaven’s glory, hell’s terror (1671), p. 321. ’’Love, Heaven's glory, hell’s terror (1671), p. 316-8, 321,

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a de seus contemporâneos sobre o céu não tenham as mesmas nuanças que encontramos em estudos reformados atuais sobre o tema (p. ex., o notável comentário de Apocalipse de Gregory K. Beale), não há dúvida de que até o século 17 não houve geração alguma de teólogos que se equiparasse aos pu­ ritanos no que diz respeito a expor as glórias do céu e os pavores do inferno. A obra de Love está entre as melhores. É um testemunho do trabalho de Love 0 fato de que sua obra estava na biblioteca relativamente pequena de Jona­ than Edwards (1703-1758).'“ E é um testemunho da fé de Love o fato de que, ao enfrentar a morte, teve diante de si não os pavores do inferno — sobre os quais tanto havia escrito — , mas as glórias do céu. Seu coração estava no céu, e assim ele estava bem. Seu desejo e o desejo dos puritanos que escreveram sobre esses temas era que a pregação sobre o céu e o inferno levasse todos os que ouvem acerca dessas realidades à mesma confissão: que Jesus Cristo é Senhor para o louvor de Deus Pai. Surgindo da dádiva da fé, essa confissão era, é e sempre será a diferença entre aqueles destinados para o céu e aqueles a caminho do inferno.

'“Kistler, A spectacle unto God, p. vii.

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T E O L O G IA NA PRA TICA □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ O D Q aD aaD aaanan nn D an aD aaaaaD D aaaaaaaaanaaD oaoo

Capítulo 52 □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ o

Teologia puritana moldada por uma mentalidade peregrina □□□□□□□□□□□□□onann□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□000□□□□□□□□□□□□□□□□

Os puritanos se viam como peregrinos de Deus viajando para casa; como guerreiros de Deus lutando contra o mundo, a carne e 0 Diabo; e como servos de Deus que recebiam ordens para fazer todo o bem que podiam enquanto prosseguiam em sua jornada. J. I. Packer*

Um número crescente de pastores, obreiros cristãos e jovens piedosos ao redor do mundo está atualmente procurando pôr em prática a fé bíblica e reformada. Estão ávidos por desenvolver um modo de vida inconfundivelmente bíblico que glorifique a Deus e edifique famílias, igrejas e nações. Ao mesmo tempo, um número crescente de pessoas ao redor do mundo está atualmente abraçando somente parte da teologia reformada. Elas afirmam todos os cinco pontos da soteriologia calvinista básica (TULIP) e ensinam de forma cristocêntrica, e que glorifica a Deus, que a salvação é pela graça so­ mente, mas se apegam a um modo de vida mundano. Esse viver mundano se manifesta de várias maneiras, desde a participação em formas contemporâneas de adoração na igreja não ordenadas nas Escrituras até a busca pela satisfação em formas de divertimento que se chocam flagrantemente com a lei moral de Deus, a qual é o guia para a vida do cristão. Atualmente, precisamos advertir que a salvação pela graça anda de mãos dadas com a vida piedosa e a busca da santidade prática, mas sem cair na ar­ madilha do legalismo. De modo semelhante, quando entendidas corretamente. 'J. I. Packer, “A man for all ministries; Richard Baxter, 1615-1691", Reformation & Revival 1, n. 1 (Winter 1992): 55.

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as doutrinas da graça se opõem à indiferença moral e a um modo de vida mundano que tornam difícil para a igreja e o mundo discernirem quem é cristão e quem não é. Na história da igreja, talvez nenhum outro grupo de cristãos tenha alcançado um equilíbrio correto nesse assunto de uma forma mais bíblica do que os puritanos. A totalidade da teologia e do modo de vida dos puritanos foi moldada por aquilo que J. I. Packer chamou de mentalidade peregrina.^ Os puritanos se enxer­ gavam como peregrinos que viajavam por este mundo, de forma bem parecida com os personagens de O peregrino, de John Bunyan (1628-1688). Os peregrinos estão no mundo, mas não pertencem ao mundo, o que cria uma forte tensãO; De um lado, os cristãos estão no mundo porque foram criados como portadores da imagem de Deus neste mundo. São nativos deste mundo e ao mesmo tempo chamados para ser sal e luz nele. Os puritanos criam que os cristãos precisam manifestar o evangelho em cada área da vida, em cada cultura e a cada grupo étnico de nosso planeta (Mt 28.18-20; ITs 4.11,12). Assim é que Leland Ryken dá 0 título Worldly saints: the Pwitans as they reaüy were à sua obra profícua de introdução sobre os puritanos.^ Nesse sentido os puritanos estavam plenamente imersos no mundo e totalmente envolvidos em tudo que acontéce nele. Por outro lado, os puritanos acreditavam que os cristãos devem se distanciar deste mundo. Essa dimensão do viver cristão ressalta a condição de peregrino à qual as Escrituras chamam cada crente (Hb 11.13; IPe 2.11). Os cristãos são chamados a se afastar da cultura do mundo e a viver em antítese a ela (2Co 6.17). Devem se enxergar como estranhos em sua própria sociedade, às vezes até mesmo em sua própria família (Lc 12.53; cf. Mt 10.34,35). Não devem se colocar “em jugo desigual com os incrédulos” (2Co 6.14) nem “se associar às obras infrutíferas das trevas” (Ef 5.6-11). Com amor a Deus e ao próximo, têm o dever de andar com humildade e sobriedade, vivendo como peregrinos neste mundo, que geme em trabalho de parto porque o pecado está tão disseminado (Rm 8.23). Por causa do pecado, os crentes estão em conflito perpétuo, travando batalhas intermináveis com o mundo, a carne e o Diabo (IJo 2.15-17; Rm 7.14-25; Ef 6.10-20).“ Este mundo é, na expressão de Bunyan, uma Feira das Vaidades, e o cris­ tão precisa passar pelos portões do mundo, mas, enquanto passa, precisa se distanciar constantemente de suas influências ímpias. Essas influências ímpias ^Sou grato a J. I. Packer por uma exposição feita décadas atrás, na qual se baseiam a estru­ tura deste capítulo e várias idéias aqui apresentadas. ^Leland Ryken, Worldly saints: the Puritans as they really were (Grand Rapids: Zondervan, 19861 [edição em português: Santos no m ando: os puritanos como realmente eram , 2. ed., tra­ dução de João Rentes (São José dos Campos: Fiel, 2013)]. *Cf. Jeffrey Volkmer, “The indigenous pilgrim principle: a theological consideration of the Christian, the church, and politics”, Bible.org, disponível em: http://bible.org/article/indigenouspilgrim-principle-theological-considerationchristian- church-and-politics, acesso em: 10 jun. 2010.

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são poderosas porque a carne do cristão anela por aquilo que é mundano, e Satanás o seduz com os prazeres do mundo. Na condição de peregrinos, os cristãos precisam viver para a glória de Deus, apressando-se rumo à cidade celestial na expectativa da vinda do reino de Cristo (Hb 11.13-16). Assim como um diamante mostra várias facetas de sua beleza quando é virado sob a luz, assim a mentalidade peregrina dos puritanos brilha com várias facetas. Examinaremos seis facetas da mentalidade peregrina. É verdade que nenhum homem — puritano ou não — consegue viver à altura de todos esses ideais, mas mesmo assim o caminhar ideal dos puritanos nos oferece um alvo em que podemos fixar nosso olhar em nossa caminhada cristã nos dias atuais.

Faceta n.° 1: perspectiva bíblica Ter uma perspectiva bíblica é viver conforme foi determinado pela Palavra de Deus. Os puritanos eram pessoas das Escrituras Sagradas, as quais conside­ ravam o único livro vivo. Eles amavam, viviam e respiravam as Escrituras, regalando-se no poder que acompanhava a Palavra, o poder do Espírito.^ Eles consideravam os 66 livros das Escrituras a biblioteca do Espírito Santo, a qual lhes havia sido deixada graciosamente. Eles viam as Escrituras como Deus falando a eles como um pai fala com os filhos. Eles viam a Palavra como ver­ dade em que podiam confiar e descansar por toda a eternidade. Eles viam que pelo Espírito ela tinha o poder de renovar sua mente e transformar sua vida. Os puritanos liam, ouviam e cantavam a Palavra com prazer e encorajavam outros a fazer o mesmo. Richard Greenham (c. 1542-1594) sugeriu oito ma­ neiras de ler as Escrituras: com diligência, sabedoria, preparação, meditação, conferência [comunhão com outros crentes], fé, prática e oração.® Thomas Watson (c. 1620-1686) ofereceu inúmeras diretrizes para ouvir a Palavra. Venha à Palavra com um apetite santo e um coração ensinável, ele afirmou. Ouça com atenção a Palavra pregada, receba-a com mansidão e misture-a com a fé. Então retenha a Palavra, ore sobre ela, pratique-a e fale dela a ou­ tros.^ “Terrível é a situação daqueles que vão para o inferno sob o fardo de ’Ttechos desta seção foram extraídos de Joel R. Beeke, Puritan, evangelism : a biblical approach (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2007), p. 9-14, e de Joel R. Beeke; Ray B. Lanning, "The transforming power of Scripture”, in: Don Kistler, org.. Sola Scriptum: the Protes­ tant position o f the Bible (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995), p. 221-76. ‘Richard Greenham, “A profitable treatise, containing a direction for the reading and un­ derstanding of the Holy Scriptures”, in: H.[enry] Hfolland], org.. The works o f the reverend and faithfull servant o f Jesus Christ, M. Richard Greenham (1599; reimpr.. New York: Da Capo, 1973), p. 389-97. Cf. Thomas Watson, How we may read the Scriptures with most spiritual profit, in: Joel R. Beeke, org.. Heaven taken by storm: showing the holy violence a Christian is to put forth in the pursuit after glory (1669; reimpr., Pittsburgh; Soli Deo Gloria, 1992), p. 113-29. Watson, How we may read the Scriptures, in: Joel R. Beeke, org., Heaven taken by storm, p. 16-8, eThomas Watson, A body o f divinity (1692; reimpr., London: Banner of Ttuth TVust, 1974), p. 377-9.

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sermões”, Watson advertiu. Em contraste, aqueles que reagem positivamente às Escrituras, tratando-as como uma “carta de amor enviada a ti da parte de Deus”, experimentarão o poder estimulador e transformador das Escrituras.® Alimentem-se com a Palavra, o pregador puritano John Cotton (1585-1652) expressou à sua congregação.’ O prefácio à Bíblia de Genebra contém um con­ selho parecido, afirmando que a Bíblia é “a lâmpada para nossos caminhos, a chave do reino dos céus, nosso consolo na aflição, nosso escudo e espada contra Satanás, a escola de toda sabedoria, o espelho em que vemos a face de Deus, 0 testemunho do favor divino e o único alimento e sustento de nossa alma”.'“ Os puritanos instavam as pessoas a se tornarem bibliocêntricas na fé e na prática. Eles consideravam a Bíblia um guia revestido de autoridade e confiável para testar a verdade religiosa, para orientar em questões de moralidade, para determinar a forma de culto e do governo da igreja e para ajudar em todo tipo de provação espiritual." “Devemos sempre ter a Palavra de Deus diante de nós como regra e em nada crer senão naquilo que ela ensina, nada amar senão o que ela prescreve, nada odiar senão o que ela proíbe, nada fazer senão o que ela ordena”, afirmou Henry Smith (1560-1591) à sua igreja.*^ E John Flavel (1628-1691) escreveu: “As Escrituras nos ensinam a melhor maneira de viver, a mais nobre maneira de sofrer e a maneira mais animadora de morrer”,'® Pregadores puritanos deram o exemplo para essa perspectiva de vida ao fundamentarem suas mensagens na Palavra de Deus. “O pastor fiel [é], à semelhança de Cristo, aquele que nada prega senão a Palavra de Deus”, afir­ mou Edward Dering (c. 1540-1576).'’ John Owen (1616-1683) concordava: "O primeiro e principal dever de um pastor é alimentar o rebanho mediante a pregação diligente da Palavra”.'® Millar Madure comentou: “Para os puritanos, 0 sermão não está apenas apoiado nas Escrituras; ele existe bem literalmente dentro da Palavra de Deus; o texto não está no sermão., mas o sermão está no texto [...] Em poucas palavras, ouvir a um sermão é estar na Bíblia”.'® 'Watson, A body o f divinity, p. 379. “Não há um só sermão que, ao ser ouvido, não nos coloque mais perto do céu ou do inferno” (John Preston, A pattern o f wholesome words, citado em Christopher Hill, Society and Puritanism in Pre-Revolutionary England. 2. ed. [New York: Schocken, 1967], p. 46). ’John Cotton, Christ the fountain o f life (London: Robert Ibbitson, 1651), p. 134. '’‘Geneva Bible (1599; reimpr., Ozark: L. L. Brown, 1990), p. 3. "Ryken, Worldly saints, p. 142. ■ 'Henry Smith, “Food for new-born babes”, in: Thomas Smith, org.. The works o f Henry Smith (Edinburgh: James Nichol, 1866), 1:494. ■’Citado emJohn Blanchard, The complete gathered gold (Darlington: Evangelical, 2006), p. 49. ■’Edward Dering, M. Derings workes (1597; reimpr.. New York: Da Capo, 1972), p. 456. ■’John Owen, The true nature o f a gospel church and its governm ent, in: William H. Goold, org., The works o f John Owen (1853; reimpr., London: Banner of Truth Trust, 1965), 16:74. ■‘Millar Maclure, The Paul’s Cross serm ons, 1534-1642 (Toronto: University of Toronto Press, 1958), p. 165.

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A página de um típico sermão puritano normalmente contém entre cin­ co e dez citações de textos bíblicos e cerca de uma dezena de referências a outros textos. Os pregadores puritanos conheciam profundamente sua Bíblia: memorizavam centenas, senão milhares de textos. Sabiam qual texto deviam citar para praticamente qualquer necessidade. “Uma familiaridade pessoal e de longa data com a aplicação das Escrituras era um elemento chave da índole ministerial puritana”, Sinclair Ferguson escreveu. “Eles ponderavam sobre as riquezas da verdade revelada da mesma maneira que um gemólogo examina com paciência as muitas faces de um d i a m a n t e .E m seguida, os puritanos usavam as Escrituras com sabedoria, citando textos relacionados com a dou­ trina ou 0 caso de consciência*® em questão, tudo com base em princípios hermenêuticos idôneos.'^ Em sua maioria, os pregadores puritanos eram bem versados nas línguas bíblicas e nos estudos clássicos. Mas eles também tinham convicção da ne­ cessidade de os homens serem “regenerados não de semente perecível, mas imperecível, pela palavra de Deus, que vive e permanece” (IPe 1.23). Eles estavam persuadidos de que o Espírito Santo operava por meio das Escritu­ ras a fim de deixar a verdade perfeitamente clara aos pecadores. Os próprios padrões de pensamento dos puritanos estavam permeados pelas palavras e expressões da Bíblia. Se temos a inclinação de nos orgulhar de nosso conhecimento da Bíblia, deveríamos abrir um dos livros de John Owen, Thomas Goodwin (1600-1680) ou Thomas Brooks (1608-1680), observando como um trecho obscuro de Naum é citado lado a lado com uma passagem conhecida de João, ambos ilustrando perfeitamente o que o autor quer dizer, e então comparar nosso conhecimen­ to com 0 deles. Como podemos explicar essa maravilhosa compreensão das Escrituras senão que esses teólogos eram pastores com profundo conhecimento da Palavral Esses homens estudavam a Bíblia diariamente, caindo de joelhos enquanto o Espírito de Deus fazia a Palavra arder em seus corações. Depois disso, à medida que escreviam ou pregavam suas mensagens evangelísticas, uma passagem bíblica após a outra vinha à sua mente. De modo parecido, nossos esforços em viver para a glória de Deus devem estar alicerçados na Bíblia. Precisamos examinar as Escrituras com mais '^Sinclair B. Ferguson, “Evangelical ministry: the Puritan contribution", in: John H. Armstrong, org.. The compromised church: the present Evangeliccd crisis (Wheaton: Crossway, 1998), p. 267. '®P. ex., William Perkins, Wiiliam Perkins, 1558-1602, English Puritanist. His pioneer works on casuistry: "A discourse o f conscience” and “The whole treatise o f cases o f conscience”, edição de Thomas F. Merrill (Nieuwkoop: B. DeGraaf, 1966). Essas obras granjearam a Perkins o título de "pai da casuística puritana”. ’’Veja J. I. Packer, A quest for godliness: the puritan vision o f the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 81-105; Ryken, Woridly saints, p. 143-9,154; Thomas D. Lea, “The herme­ neutics of the puritans”. Journal o f the Evangelical Theological Society 39, n. 2 (1996): 271-84.

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frequência e amar a Palavra de Deus com mais fervor. À medida que pensar­ mos, falarmos e agirmos mais biblicamente, nossas mensagens terão mais autoridade, nossas conversas se tomarão mais fmtíferas, nosso testemunho será mais eficaz e nosso modo de vida será mais distinto. Nosso problema atual é que nosso pensar não está alicerçado nas Escri­ turas. Um cristianismo irrefletido só pode produzir um cristianismo fraco e carnal. Seja em virtude da ignorância das Escrituras, seja em virtude de uma distorção das Escrituras para que estas se adaptem aos nossos desejos, per­ demos nossas convicções antitéticas acerca do mundo ímpio ao nosso redor. Assim, apesar do claro testemunho contrário das Escrituras, igrejas podem, sem vergonha alguma, justificar a ordenação de mulheres ao pastorado ou ser lenientes com a prática homossexual e uma imensidão de outros males. Recentemente, quando alguém foi questionado sobre um pecado que estava praticando, respondeu: “Bem, vejo que ninguém concorda sobre o que a Bíblia de fato afirma a respeito. Por isso, vou continuar fazendo aquilo que estou fazendo porque acho que está tudo bem”. Atualmente, não é incomum ouvir alguém que professa ser cristão começar uma frase afirmando: “Bem, eu sei que está errado, m as...”. Um presbítero de uma igreja reformada me disse rindo, depois de fitar uma jovem atraente: "Minha esposa me disse que não tem problema olhar, desde que eu não toque”. Afirmou isso sem dor alguma de consciência nem lembrança da advertência de Jesus de que aquele que olha com desejo para uma mulher já cometeu adultério no coração (Mt 5.28). Pior ainda, um pastor evangélico recém apo­ sentado ao lado de quem eu estava sentado num avião afirmou: “A minha maneira de pensar é que dei toda minha vida para o Senhor e sua igreja, por isso vou viver o resto da vida para mim”. Os puritanos ficariam horrorizados com afirmações como essas, mas temo que muitos de nós as leem sem sentir aversão, pois o secularismo não bíblico, que valoriza a autoafirmação em vez da autonegação, conseguiu se solidificar em nosso meio. Percebi isso repentinamente no mês passado, quando lia a obra de Jeremiah Burroughs (c. 1600-1646) sobre a escolha e a autonegação de Moisés.“ Como eu gostaria que cada cristão contemporâneo lesse esse livro, se arrependesse de seus pecados e suplicasse a Deus por misericórdia e força para ter um modo de vida piedoso. Temo que haja uma distância abismai entre a ideia puritana de autonegação e nossa ideia atual. E quanto a você, meu amigo? Você é sincero sobre ter um modo de vida peculiarmente piedoso e bíblico que exige autonegação? Quando foi a última vez que você negou a si mesmo algo que desejava fazer, pois sabia que a Bí­ blia não aprovava que você fizesse aquilo? Você se nega a cada dia, toma a sua “Jeremiah Burroughs, M oses’ self-denial (reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2010).

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cruz e segue a Jesus (Mt 16.24) ou é aquela pessoa que Tiago descreve como inconstante e instável em seus caminhos (Tg 1.8), pois está tentando viver tanto como cristão quanto como mundano?

Faceta n.° 2: perspectiva pietísta A segunda faceta da mentalidade peregrina puritana é sua perspectiva píetísía.^’ Para um pietista, seu interesse principal é a santidade pessoal em seus relacio­ namentos com Deus e com o homem, tanto na igreja quanto na comunidade ao seu redor. Nesse sentido, os puritanos eram pietistas.

^'Estou empregando aqui o termo “pietista” num sentido genérico. De modo bem parecido com 0 que acontece com o termo puritano, o termo pietista pode ser corretamente aplicado a mais teólogos do que às vezes acontece, desde que o empreguemos levando em conta que tam­ bém pode ser aplicado a membros do movimento histórico que foi denominado pietismo e se desenvolveu na Alemanha. Veja Joel R. Beeke, Piety: the heartbeat o f Reformed theology (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2015); e Carter Lindberg, org.. The Pietist theolo^ans (Ox­ ford: Blackwell, 2005). Para um breve resumo das semelhanças e diferenças entre o pietismo alemão, o puritanismo inglês e a Segunda Reforma Holandesa, veja Joel R. Beeke, Qtzesf for full assurance: the legacy o f Calvin and his successors (Edinburgh: Banner of Truth Thist, 1999), p. 288-93. Cf. Horst Weigelt, “Interpretations of Pietism in the research of contemporary German church historians”, Church History 39 (1970): 236-41. Têm havido várias tentativas de identificar as raízes do pietismo alemão. Heinrich Schmid acreditava que o movimento se limitava em grande parte à igreja luterana (Die Geschichte des Pietismus [Nõrdlingen: Beck, 1863]). Outros o viam como um renascimento do misticismo medie­ val (Albrecht Ritschl, Geschichte des Pietismus, 3 vols. [Bonn: Marcus, 1880)]; Ronald R. Davis, Anabaptism and Asceticism (Scottdale: Herald, 1974), Mas a maioria dos estudiosos concorda que as raízes do pietismo alemão estão no puritanismo inglês e/ou na Segunda Reforma Holan­ desa. Consultem-se Heinrich Heppe, Geshichte des Pietismus und der Mystik in der Reformierten Kirche, namentUch der Niederlande (Leiden: E. J. Brill, 1879); August Lang, Puritanismus und Pietismus: Studien zu ihrer Entwicklung von M. Butzer his zum Methodismus (Ansbach: Brugel, 1941) ; F. Ernest Stoeffler, German Pietism during the eighteenth century (Leiden: E. J. Brill, 1973) ; Edgar C. McKenzie, “British devotional literature and the rise of German Pietism” (tese de douto­ rado, St. Mary’s College, University of St. Andrews, 1984), 2 vols.; Peter Damrau, The reception o f English Puritan literature in Germany (London: Many Publishing, 2006). Dale Brown oferece um resumo simples dessa linha de pensamento: “Aos catorze anos de idade, Spener havia lido Praxis Pietatis (“Prática da piedade”), de Lewis Bayly, bem como outras obras devocionais puri­ tanas inglesas da lavra de Dyke, Sonthom e Baxter. Essa literatura puritana, que se concentrava na consciência, no exame minucioso da vida diária e na formulação de regras de vida, foi avi­ damente recebida em círculos pietistas. Manifestações pietistas surgiram na Holanda do século 17 por meio de Tfeellinck e seu misticismo, de Voetius e seus conventículos disciplinados que geraram o movimento denominado de precisionismo, de Koch [Cocceius] e sua teologia bíblica da aliança, de Lodensteyn e seus conventículos mais carismáticos e de Labadie (que teve pro­ funda influência no jovem Spener) e suas tendências radicais e separatistas. O impacto dessas atividades reformadoras holandesas transbordou no solo alemão, e, ao darem ao movimento que mais tarde haveria de ocorrer na Alemanha o nome de pietismo reformado, os historiadores têm confirmado a semelhança entre a experiência holandesa e esse movimento” (Dale Brown, Understanding Pietism [Grand Rapids: Eerdmans, 1978], p. 17-8).

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A palavra p ie d a d e se tornou um termo pejorativo atualmente. Na maioria das vezes classificar alguém como “pietista” tem a conotação de religiosidade excessiva, de estar sempre com a razão ou de atitude de mais-santo-do-que-você. Mas a etimologia da palavra p ied a d e é mais positiva. No Antigo Testamento, 0 termo para essa palavra significa "o temor do Senhor”, e eu seb eia , que é 0 equivalente no Novo Testamento, tem o sentido de “reverência por Deus” e "devoção a Deus”. O termo latino para piedade {p ieta s) indica cuidado e escrúpulo com o dever para com Deus, com a família e com o próprio país ip a tria ). Nesse sentido, p ieta s está arraigada no amor e se mostra na lealdade, bondade, honestidade e compaixão. O equivalente em alemão ifro m m ) significa "piedoso e devoto” ou “brando, inofensivo e simples”. A palavra inglesa deixa implícita a ideia de alguém que tem pena e compaixão. Os reformadores do século 16, em especial João Calvino, ficariam choca­ dos se vissem quão pouca atenção se dá atualmente à piedade, mesmo entre aqueles que professam ser reformados. Para Calvino, a piedade envolve o desenvolvimento de atitudes corretas perante Deus. Ela emana da teologia e inclui adoração de coração, fé salvadora, temor filial, submissão em oração e amor reverente.^^ Conhecer quem Deus é (teologia propriamente dita) inclui atitudes corretas para com Deus e fazer o que ele quer (piedade). Calvino ligou teologia e piedade, afirmando: “Chamo de ‘piedade’ aquela reverência unida ao amor a Deus, a qual é induzida pelo conhecimento dos benefícios que ele dá”.^ Calvino afirmou que a piedade abarca cada aspecto da vida da pessoa. Ele escreveu: “A to ta lid a d e da vida dos cristãos deve ser uma espé­ cie de prática da piedade”.^® Essa mesma preocupação com o viver piedoso se reflete no subtítulo da primeira edição das In stitu ta s: “Abrangendo quase toda a soma da piedade e de tudo que é necessário para conhecer a doutrina “Este parágrafo é uma adaptação de Understanding pietism , de Brown, p. 9. “Quanto à piedade no pensamento de Calvino, veja Joel R. Beeke, “Calvin on piety”, in: Donald C. McKim, org.. The Cambridge companion to John Calvin (Cambridge: Cambridge Uni­ versity Press, 2004), p. 125-52; Joel R. Beeke, oig., “The soul o f life“: the piety o f John Calvin (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2009); Lucien Joseph Richard, The spirituality o fJohn Calvin (Atlanta: John Knox; 1974), p. 100-1; Sou-Young Lee, “Calvin’s understanding of Pietas”, in: W. H. Neuser; B. G. Armstrong, orgs., Calvinus sincerioris religionis vindex (Kirksville: Sixteeenth Century Studies, 1997), p. 226-33; H. W. Simpson, “Pietas in the/nstituies of Calvin”, in: Reformational tradition: a rich heritage and lasting vocation (Potchefstroom: Potchefstroom University for Christian Higher Education. 1984), p. 179-91. ^“John Calvin, Institutes o f the Christian Religion, edição de John T. McNeill, tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster Press, 1960), 1.9 [edições em portu­ guês: João Calvino, As institutas, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo; Editora UNESP, 2008), 2 vols.]. “Calvin, Institutes, p. 3.19.2 (grifo acrescentado).

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da salvação: uma obra muito indicada para ser lida por todas as pessoas que têm zelo pela piedade”.^* Para Calvino e seus sucessores — os escolásticos protestantes, os puritanos ingleses, os teólogos da Segunda Reforma Holandesa e, até certo ponto, os pietistas alemães — havia um casamento indissolúvel entre teologia e prática. Teólogos reformados enxergavam a piedade como a força vital de sua teologia e da vida de devoção a Deus. Isso se aplicava de modo especial aos puritanos. Por exemplo, William Ames (1576-1633), renomado puritano que escreveu a obra clássica intitulada The marmw oftheology [O âmago da teologia], definiu teolo­ gia como “a doutrina ou ensino [doctrína] de viver para Deus”.^' Para Ames, a teologia era um encontro divino-humano que não é apenas especulativo, mas culmina num final prático: o alinhamento da vontade humana com a vontade de um Deus santo.“ Ames afirmou, então, que tudo no estudo da teologia está relacionado com a vida prática piedosa. Ele assegurou: “Essa prática de vida se reflete com tanta perfeição na teologia que, no que diz respeito a verdades universais, não existe preceito necessário algum para viver bem na conduta doméstica virtuosa, na vida política ou no trabalho legislativo que não tenha relação direta com a teologia”.“ Os puritanos empregavam vários meios para promover a piedade. Esses meios incluem: (1) incentivar a pregação que é centrada na Palavra, doutri­ nária, experiencial e que busca a salvação das almas; (2) 1er e examinar as Escrituras; (3) meditar em verdades e deveres bíblicos; (4) dedicar-se com frequência e longamente à oração fervorosa; (5) ter comunhão com os santos. “John Calvin, Institutes o f the Christian religion: 1536 edition, tradução para o inglês de Ford Lewis Battles (Grand Rapids; Eerdmans. 1986). O título original em latim é Christianae reUgionis institutio total fere pietatis summam et quidquid est in doctnna salutis cognitu necessarium complectens, omnibut pietatis studiosis lectu dignissim um opus ac recens editam {Joaruiis Calvini opera selecta, edição de Peter Barth; Wilhelm Niesel; Dora Scheuner [Munich: C. Kaiser, 1926-52], 1:19). A partir de 1539, o título passou a ser apenas Institutio Christianae Religionis, mas 0 "zelo pela piedade” continuou sendo um dos principais objetivos da obra de Calvino. Veja Richard Muller, The unaccommodated Calvin: studies in the foundation o f a theologiccd tradition

(New York: Oxford University Press, 2000), p. 106-7. ^'William Ames, The marrow oftheology, tradução para o inglês de John D. Eusden (1629, 3. ed.; reimpr., Boston: Pilgrim, 1968), 1.1.1. Para o texto em latim, veja Guilielmum Amesium, Medulla S.S., theologiae: Ex sacris literis, earum que interpretibus, extracta, & methodice disposita per, Editio Quarta (London: Apud Robertum Allotium, 1630). Para um esboço biográfico de William Ames e uma síntese de sua obra clássica, veja Joel R. Beeke; Jan van Vliet, “The marrow oftheology by William Ames”, in: Kelly M. Kapic; Randall C. Gleason, orgs.. The devoted life: an invitation to the Puritan classics (Downers Grove: InterVarsity, 2004), p. 52-65. Cf. Jan van Vliet, “William Ames: marrow of the theology and piety of the Reformed tradition” (tese de doutorado, Westminster Theological Seminary, 2002). “Ames. Marrotu, 1.1.9-13. “Ames, Marroiu, 1.1.12.

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em particular por meio de conventículos ou comunidades espirituais; (6) res­ saltar 0 arrependimento contínuo; (7) cultivar uma vida devocional íntima por mi io de devoções diárias e dos meios de graça; (8) cantar salmos; (9) lembrar a ceia do Senhor e dela participar com diligência; (10) obedecer ao Decálogo por gratidão a Deus; (11) salientar a igreja invisível mais do que a visível; (12) manter o culto doméstico; (13) catequizar os leigos; (14) publicar sermões e outras formas de literatura edificante; (15) enfatizar a educação teológica para os clérigos; (16) guardar o dia de descanso mediante dedicação do dia inteiro para Deus; e (17) manter registros pessoais ou diários espirituais.*“ No seu âmago, a teologia reformada e puritana é pietista; a preocupação da teologia da Reforma é tão prática quanto é doutrinária. Conforme afirma a maioria dos teólogos ortodoxos, a teologia é em parte teórica e em parte prática {partim partim);^'^ a cabeça e o coração são necessariamente corolários um do outro. Para Calvino e os puritanos, a reforma da igreja incluía uma reforma da piedade, ou espiritualidade, tanto quanto uma reforma da teologia. Conforme escreveu Matthew Poole (1624-1679), doutrina bíblica é aquela verdade “que leva a uma vida piedosa, estando alicerçada na verdadeira adoração de Deus e em uma obediência universal à vontade divina”.** A espiritualidade que por muitos séculos esteve confinada atrás dos muros de mosteiros reduziu a piedade ao celibato, ao ascetismo e à devoção penitencial. Mas os teólogos reformados ajudaram os cristãos a entender que a verdadeira espiritualidade brota de sua fonte principal, Jesus Cristo. As ações do cristão na família, no campo, na oficina e nos negócios — em suma, em todas as áreas da vida — devem ser um reflexo agradecido e piedoso da graça encontrada em Jesus Cristo. Essa dupla ênfase de alimentar a mente e a alma é extremamente neces­ sária atualmente. Por um lado, enfrentamos o problema de uma ortodoxia reformada estéril, que ensina a doutrina correta, mas lhe falta uma ênfase no viver entusiástico e piedoso. O resultado é que as pessoas se curvam diante da ”Para uma explicação de muitas dessas características, veja Brown, Understancling pietism, e Stoeffler, German Pietism. "Para uma descrição da construção partim partim , veja Johannes Wollebius, Compendium Theolo^ae Christianae, traduzido por The abridgment o f Christian divinity, tradução para o inglês de Alexander Ross, 3. ed. (1626; reimpr., London: T. Mabb para Joseph Nevill, 1660), 1.29.10, em que escreveu: “A fé que não esteja unida à confiança segura, não é melhor do que fé histórica. Os papistas ensinam que a fé está apenas no intelecto, não na vontade nem no coração. As Escrituras afirmam expressamente o oposto: ‘com o coração é que se crê para a justiça’ (Rm 10.10)’’. “Matthew Poole, A commemary on the Holy Bible (Peabody: Hendrickson, 2005), 3:800 (sobre Tt 1.1). Synopsis, obra bem mais completa que Poole escreveu em latim, emprega uma citação de Piscator, "cujus finis ac fructus est pietas”, para comentar sobre a expressão bíblica “et agnitionem veritatis quae est secundum pietatem” (Tt 1.1) (Matthaeo Polo (Matthew Poole], Synopsis criticomm aliom m que Sacrae Scripturae [Francofurti: Balthasaris Christophori Wustii, 1679], 5:1082).

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doutrina de Deus sem anelar por uma união vital e espiritual com o Deus da doutrina. Por outro lado, cristãos pentecostais e carismáticos propõem o emocionalismo como protesto contra um cristianismo formal e inanimado, mas esse emocionalismo não tem raízes sólidas nas Escrituras. O resultado é que as pessoas colocam os sentimentos humanos acima do Deus triúno conforme ele se revela nas Escrituras. A genialidade da autêntica piedade reformada é que ela casa a teologia com a piedade, de maneira tal que a cabeça, o coração e a mão se motivam um ao outro para viver para a glória de Deus e o bem-estar de nosso próximo. Entendida nesse sentido, a piedade não é algo que se deva desprezar cu evitar; pelo contrário, somos chamados a promovê-la no ensino da Reforn- a sobre um viver santo, dependente, amoroso e piedoso. Ser chamado de “pie­ doso” ou “pietista” no verdadeiro sentido da palavra é um elogio! Se pensamos de outra maneira, precisamos reconsiderar nossa definição de piedade. Nossa definição se baseia em seu devido uso nas Escrituras? Ou em sua indevida aplicação no pietismo radical e em boa parte da sociedade contemporânea? A piedade, espiritualidade ou devoção a Deus não é um meio para se atingir um fim (i.e., vida eterna e ditosa), mas uma expressão dessa vida, a qual Jesus Cristo obteve. Por esse motivo, o cultivo da piedade está preeminentemente ligado aos meios de graça. Em suma, piedade significa ter a experiência da santificação como uma obra divina e graciosa de renovação, expressada em arrependimento e justiça que progride por meio de conflitos e adversidades, seguindo o modelo de Cristo durante toda a vida do crente, na expectativa do dia quando a piedade se tornará perfeita na santificação eterna no céu.

Faceta n.” 3: perspectiva eclesial Os puritanos adotaram o que Packer chama da perspectiva eclesial. Eles ensi­ navam que a igreja verdadeira é a companhia invisível dos redimidos, tendo Cristo como seu cabeça. A igreja é uma realidade espiritual e não uma estru­ tura institucional, hierárquica ou física. Essa é uma das razões pelas quais os puritanos davam aos prédios de suas igrejas o nome de “lugar de reunião”, a fim de “desviar a atenção do lugar físico para as atividades espirituais que eram a essência da adoração da igreja”.” Para os puritanos, isso implicava que ser membro da igreja era algo voluntário e não um ato de uniformidade forçada de uma igreja estatal. Os puritanos tinham grande respeito pela igreja local e seus membros. James Ussher (1581-1656), cujos escritos tiveram forte influência nas Normas de Westminster, escreveu que Deus torna sua igreja visível na terra por meio *^Ryken, Worldly saints, p. 117.

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de “igrejas locais específicas” às quais “devem prazerosamente se unir todos aqueles que buscam a salvação” A Carta de Paulo aos Efésios apresenta am­ pla justificativa para a convicção puritana de que nenhum cristão é chamado a ser um viajante solitário para Deus. Nascemos de novo na família da igreja; fomos criados para comunhão e devemos viver em comunhão. Os crentes devem se identificar com a igreja e se tornar parte da igreja, dedicando suas orações e esforços à promoção do bem-estar da igreja em todos os aspectos, pois a igreja está no centro dos propósitos de Deus. Por mais que torne a pes­ soa consciente de que precisa se entender pessoalmente com Deus e de que ninguém pode fazê-lo em seu lugar, o evangelho não transforma a pessoa em alguém individualista, que sai para cuidar de seus próprios assuntos, sem se importar se o restante do povo de Deus sabe disso ou se preocupa com isso. Os puritanos eram pessoas de igreja e, por isso, se interessavam em que Deus fosse glorificado no culto da igreja. Desde o início do movimento puritano, suas consciências foram extremamente enérgicas em protestar contra as cor­ rupções do culto público. Os puritanos desejavam que o cülto da igreja fosse determinado pelas Escrituras exatamente como desejavam que a totalidade da vida fosse determinada pelas Escrituras. Isso se tornou problema porque a maneira de os puritanos entenderem o culto determinado pela Bíblia não era compatível com o padrão de culto legalmente estabelecido, que era o Livro de Oração Comum da Igreja da Inglaterra. Aqueles que compilaram o Livro de Oração apoiavam a ideia de Lutero, Melâncton e Bucer sobre a adiaphora, ou “coisas indiferentes”. Essa ideia ensinava que, embora tudo que a Bíblia prescreve para o culto precise estar presente, deve-se manter aspectos adicionais não prescritos nas Escrituras mas que tenham demonstrado valor em promover a reverência, a piedade e a edificação. Com base nisso, o Livro de Oração manteve quatro elementos cerimoniais a que os puritanos objetavam: usar sobrepeliz (uma veste litúrgica especial envergada pelos sacerdotes), ajoelhar-se para receber a Santa Comunhão (um vestígio da adoração medieval do pão e do cálice), dar a aliança de casamento (como sinal de um sacramento católico-romano) e fazer 0 sinal da cruz na fronte daquele em quem a água é derramada no batismo.“ O entendimento puritano sobre a autoridade bíblica em relação ao culto nãO permitia que tais adiaphora continuassem, visto que nenhuma dessas coisas era ordenada na Palavra de Deus. De sorte que já nas décadas de 1560 e 1570 a convicção puritana era que, ao manter essas cerimônias, o Livro de Oração Comum estava corrompendo ”James Ussher, A body o f divinity, edição de Michael Nevarr (1648; reimpr., Birmingham: Solid Ground Christian Books, 2007], p. 358 (tópico 43). "Daniel Neal, The history o f the Puritans (reimpr.. New York: Harper &Bros., 1843), 1:107.

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0 culto, pois eram acréscimo à Palavra de Deus. Os puritanos afirmavam que essas coisas precisavam ser eliminadas de nosso culto, caso contrário não é culto verdadeiro segundo a Palavra de Deus, e não podemos esperar que Deus se agrade dele. 0 objetivo do culto precisa ser agradar a Deus e não a nós mesmos. John Owen escreveu: "O culto a Deus não é tarefa para o homem descobrir [...] Ele não é ensinado pela sabedoria humana nem é alcançável pela perspicácia humana, mas pela sabedoria e revelação do Espírito de Deus. Ele é divino e celestial em todos os aspectos de sua origem e descoberta, e, assim sendo, apropriado à grandeza e santidade de Deus. Pois Deus mesmo é o único juiz daquilo que lhe agrada”. A postura puritana, que veio a ser chamada de princípio regulador do culto, era que não se deve permitir no culto cristão nada que não esteja explicitamente ordenado ou aprovado mediante exemplo no Novo Testamento.^^ O princípio regulador do culto era uma dedução da maneira como os reformados entendiam basicamente o segundo mandamen­ to, “que de modo nenhum representemos Deus por meio de imagens nem o adoremos de outra forma senão a que ele ordenou em sua Palavra” (Catecismo de Heidelberg, pergunta 96). Quer na época dos puritanos, quer hoje em dia, os que seguem o princípio regulador creem que Deus se ofende com acréscimos não autorizados, feitos pelo homem, à sua adoração. A realeza de Cristo é afrontada, e suas leis são desa­ creditadas.^® Os puritanos acreditavam que esses acréscimos são pecaminosos e irreverentes, dando a entender que as Escrituras não são suficientes. Eles viam essas questões da maneira que muitos evangélicos veem as afirmações que certas pessoas fazem sobre a profecia — que essas afirmações contestam a suficiência das Escrituras e hoje são despropositadas porque o cânon está fechado. Aprendemos muito com os puritanos, em especial quando atualmente um número tão grande de igrejas dá mínima atenção à pureza no culto e coloca toda a ênfase naquilo que agrada às pessoas em vez de a Deus. Os puritanos faziam justamente o contrário. O objetivo deles era agradar a Deus por meio de um culto santo. A pergunta nunca era; “O que eu quero no culto?”, mas sempre: “O que Deus quer no culto?”. Na totalidade da vida da igreja, o objetivo dos puritanos era a pureza: pureza no culto, na doutrina, na experiência da alma (o que significava expe­ riência alicerçada nas Escrituras e na sã doutrina da igreja), no governo e na “John Owen, “The nature and beauty of gospel worship”, in: William H. Goold, org., The works o f John Owen (1853; reimpr., London: Banner of TTuth TTust, 1965), 9:72.

’^Owen, “Gospel worship”, in: IVortó, 9:71. Cf. Daniel R. Hyde, “‘Of great importance and of high concernment’: the liturgical theology of John Owen (1616-1683)” (dissertação de mes­ trado, Puritan Reformed Theological Seminary, 2010). ^“Christopher J. L. Bennett, “Worship among the Puritans: the regulative principle", in: Spiritual worship: being papers read at the 1985 Conference (London: Westminster Conference, 1986), p. 20.

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disciplina, na dedicação do dia todo do Senhor ao serviço a Deus e pureza na própria vida como fruto da adoração. Seu objetivo era uma igreja pura com uma doutrina pura, um padrão puro de culto e membros com vida pura. Seu alvo era a santidade de cada pessoa e a santidade da igreja toda que eram o resultado natural da ortodoxia de doutrina e de vida. Eles tinham uma ideia abrangente daquilo que Deus exige de nós e daquilo que precisamos dar a ele. Os puritanos são conhecidos por sua perspectiva eclesial abrangente sobre 0 que é certo e sobre qual deve ser nosso objetivo enquanto procuramos honrar a Deus. Hoje a igreja está repleta de pessoas que têm estado tão preocupadas, com uma coisa que se esquecem da importância de outra. Os puritanos não se esqueceram da importância de coisa alguma em sua perspectiva eclesial; tudo era importante. Podemos aprender muito com isso, pois não podemos nos dar 0 luxo de ser indiferentes com quaisquer dimensões de pureza e retidão.

Faceta n." 4: perspectiva combativa A igreja na terra é uma igreja em batalha. Um combate é travado dentro da alma de cada crente. Os puritanos ensinavam que isso também faz parte da vida de um peregrino. Para os puritanos, a vida interior era um campo de conflito e tensão em que as batalhas mais importantes estão sendo travadas. Ussher escreveu que a “batalha espiritual” é 0 exercício diário de nossa força e armadura espiritual contra todos os adversários, tendo confiança assegurada de vitória. Pois a condição dos fiéis nesta vida é tal: estão seguros em Cristo e, ainda assim, lutam contra o pecado. Com a presença do arrependimento, eles continuamente lutam e pelejam contra os ataques da carne do próprio homem, contra as propostas do Diabo e contra as seduções do mundo.^’

Os puritanos citavam Romanos 7.14-25, que acreditavam descrever a guerra santa travada dentro dos crentes.'*“ A vida interior de pecado incluía uma disputa ininterrupta entre sua nova natureza e o que restava de sua antiga natureza. John Owen nos ajuda a entender isso. Owen afirmou que, como crentes, experimentamos o pecado como uma lei. Quando desejamos fazer o bem, o pecado está sempre “presente” (Rm 7.21); está sempre junto. Aqui, Owen sé baseia na palavra grega pam keim ai, inferindo que o pecado está sempre à porta e age como um estranho que não é bem-vindo e entra em nossa casa para nos importunar e aborrecer.““ ^Ussher, A body o f divinity, p. 301 (tópico 32). ““Cf. John Owen, Of the mortification o f sin in believers. Etc., in: William H. Goold, org.. Thé' works o f John Owen (1853; reimpr., London: Banner of Tiuth Trust, 1965), 6:2-322. ■ "Owen, Mortification o f sin, in: Works, 6:161-9.

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Essa inclinação para fazer o mal é como uma lei, porque não vai embora. Ela contesta a boa lei colocada dentro da alma a partir da regeneração. A boa lei deseja fazer o que é certo e bom. Mas, assim que passamos a caminhar na direção certa, essa lei má se opõe àquilo que estamos fazendo. Paulo afirma que ela guerreia “contra a lei da minha mente” (Rm 7.23). Essa lei má não conhece limites. Parece que não existe limite algum para as sugestões más que ela propõe persuasivamente. Essa lei má não ficará sa­ tisfeita enquanto não nos tornar seu prisioneiro. Ela quer a totalidade de nós a qualquer preço. Hoje às vezes lemos sobre o mercado negro de venda de vários órgãos humanos. Bem, Satanás possui o mercado mais negro que existe e opera por meio da lei de nossa inclinação natural, procurando a qualquer preço se apossar de nossos olhos, nossas mãos, nossos pés, nossas afeições, nossa vontade e nosso coração. Nossa batalha contra Satanás e sua tropa de demônios é feroz. William Gurnall (1616-1679) nos lembrou de que o exército de Satanás é agressivo, maligno, cruel e por demais poderoso para conseguirmos lutar com nossas próprias forças, mas não podemos fazer concessões a Satanás nem nos render a ele, nem precisamos estar desanimados se estamos em Cristo.“ Precisamos nos envolver nessa batalha espiritual. Precisamos lutar contra o exército invisível de Satanás num combate corpo a corpo espiritual até a morte.“ Como aliados nessa batalha. Satanás convoca nossa velha natureza e também o mundo se­ dutor, que junto com Satanás procura satisfazer os desejos ardentes de nossa velha natureza para que continuemos caminhando na mesma direção em vez de para cima. Em última instância. Satanás quer que nos dobremos diante do mundanismo, que é a natureza humana sem a presença de Deus, ou seja, é um ateísmo prático. As pessoas deste mundo são controladas por interesses mundanos, como a busca do prazer, do lucro e da posição social. A pessoa mundana cede ao espírito da humanidade caída, que é o espírito do interesse próprio e que costuma ceder às inclinações sem consideração alguma por Deus.“ Por intermédio de Satanás, de nossa velha natureza e do mundo, os quais os puritanos frequentemente chamavam de "inimigo de três cabeças”. Satanás procura nos derrubar com a lei do pecado. Paulo afirma que essas duas leis dentro dos crentes estão sempre travan­ do guerra uma contra a outra. John Bunyan redigiu The holy war [A guerra santa] para descrever a luta santa que ocorre dentro da alma do verdadeiro “^William Gurnall, The ChristiaTi in complete armow, two volumes in one (1662-166S; reimpr., Edinburgh: Banner of Ttuth Uust, 2002), 1:140-8. “^Joel R. Beeke, Striving against Satan (Darlington: Evangelical, 2004), p. 13-5. “’Joel R. Beeke, Overcoming the world: grace to win the daily battle (Phillipsburg; P&R, 2005), p. 15-6.

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crente por meio da porta dos olhos, da porta dos ouvidos e de outros sen­ tidos humanos.“® . Como crentes verdadeiros, por meio da expiação encontramos descanso e paz com Deus em Jesus Cristo. Paulo afirma: “Justificados pela fé, temos paz com Deus, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). Mas não devemos fazer as pazes com o pecado. Pelo contrário, experimentamos o choque de dois grandes exércitos lutando dentro de nós. De um lado, Satanás combate para colocar sob seu comando nossa carne e suas concupiscências; de outro, o Espírito Santo comanda o novo princípio de vida plantado em nosso coração. De sorte que a carne milita contra o espírito, e o espírito combate a carne. A vida cristã não é um meio-termo entre extremos, mas um caminho es­ treito entre precipícios. Ela envolve viver pela fé mediante negar a si mesmo e travar uma guerra santa no meio de um ambiente que nos atrai, mas ao mesmo tempo nos é hostil. E que guerra! Pois o mundo não luta com honestidade nem lealdade, não concorda com cessar-fogos nem assina tratados de paz.“® É triste que nem sempre triunfemos nessa peleja. A expressão que Paulo emprega em Romanos 7.23 — “me fazendo escravo” — na realidade tem no original grego o sentido de “me faz e me torna prisioneiro”. Cremos que pelo derramamento da graça de Deus em nossa alma o Espírito Santo subjuga a velha natureza de cada um de nós. Enquanto desfrutamos da presença terna e salvadora de Cristo, podemos até mesmo sentir como se tivéssemos venci­ do 0 pecado e o mundanismo. Contudo, mais tarde descobrimos que nossos inimigos espirituais — o mundo. Satanás e nossa carne — erguem de novo suas repulsivas cabeças, e de novo a batalha se torna crucial. Os restos de nossa velha natureza se assemelham a um vulcão. Às vezes são como um vulcão dormente, lançando apenas uma pequena rajada de fumaça. Mas o fogo ainda habita dentro do vulcão e, se não for contido pela graça, pode entrar de novo em erupção. Como consequência, experimenta­ mos em nossos membros mais uma vez o poder daquela lei contrária que nos torna cativos à lei do pecado dentro de nós. Quando deveríamos ser santos, a pecaminosidade irrompe. Quando deveríamos ter uma mentalidade celeste, a mentalidade terrena nos arrasta para baixo. Você também experimenta derrota na batalha contra nosso inimigo de três cabeças? Será que isso leva você a confessar, como Paulo faz em Romanos 7.19, “Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”? Esse dilema nos faz clamar junto com Paulo: "Desgraçado homem que soul Quem me livrará do corpo desta morte?” (v. 24). Não entenda errado as palavras de Paulo. Neste mundo ninguém é tão feliz quanto os verdadeiros crentes. Deus é para sempre nossa porção; encontramos “John Bunyan, The holy war (Fearn, Escócia: Christian Focus, 2007). “ Beeke, O vercomii^ the world, p. 14.

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Cristo e descanso na expiação realizada por ele. Temos o Espírito Santo a habi­ tar dentro de nós. Nossos pecados estão perdoados; nossa culpa foi removida. Temos diante de nós a esperança de glória eterna. Ainda assim, com frequência clamamos: “Desgraçado homem que sou!”. Os puritanos diziam que guerra contra o pecado é um bom sinal. Quando, pouco antes de morrer, John Bradford (1510-1555) escreveu uma carta a um companheiro de prisão, ele assinou com estas palavras: “do pecador mais miserável, mais sujo, de coração mais endurecido e mais ingrato”. Poucos dias depois morreu com alegria como mártir em Cristo. Será que você conse­ gue repetir estas palavras de Samuel Rutherford (1600-1661): “Este corpo de pecado e corrupção envenena e amarga nossas alegrias. Ah! que eu estivesse em casa, aí não pecarei m ais!”.^^ Felizmente os puritanos encontraram solução para essa guerra angustiante, a saber, o Senhor Jesus Cristo. Paulo escreve: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7.25a). Paulo e os puritanos entendiam que, pela fé em Cristo somente, os crentes são mais do que vencedores sobre o pecado, embora a guerra continue até falecerem. Para eles, por meio da cruz e do túmulo vazio Cristo já venceu a batalha. Eles viam que, na força de Cristo, estavam lutando e vencendo a batalha e que, embora pudessem perder algumas escaramuças no meio do caminho, no final venceriam a guerra na força dele. Paulo fala com plena certeza. Cristo já derrotou o pecado na cruz e apagou a escrita da lei contra nós. Embora o pecado continue causando dano e às vezes vá roubar nossa paz interior perturbando nossa consciência, a vitória final será de Cristo. O pecado pode momentaneamente tirar o céu da alma, mas 0 pecado não consegue manter a alma do crente fora do céu, por causa de Jesus, que é nossa sabedoria, justificação, santificação e redenção (ICo 1.30). Na força de Cristo, o crente encontra força para vestir toda a armadura de Deus descrita em Efésios 6.10-20, para lutar o bom combate da fé. O cristão luta contra o diabo, contra o mundo e contra sua velha natureza, ao olhar pãra Jesus e usar a armadura que ele providenciou para permanecermos firmes enquanto avançamos deste mundo para o vindouro. No autoexame, o qual os puritanos faziam com bem mais diligência do que tendemos a fazer hoje, eles estavam bem conscientes dos altos e baixos da vida interior. Eles escreviam diários espirituais em que, para se avaliarem, registravam sua caminhada com Deus. Eles usavam seus diários como confes­ sionários pessoais para ajudá-los a expressar diante de Deus e de si mesmos pensamentos que de outra forma teriam enterrado. Os puritanos acreditavam que escrever diários poderia ajudá-los na meditação, na oração, na recordação “’Alexander Whyte, Samuel Rutherford and som e o f his correspondents (Edinburgh: Oliphant Anderson and Perrier, 1894), p. 75.

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das obras e da fidelidade do Senhor, no monitoramento de seus próprios objetivos e prioridades e na manutenção de outras disciplinas espirituais.“ Eles não escreviam diários para mostrar para os outros; escreviam para que pudessem relê-los a fim de perceber com clareza se estavam avançando ou deixando de avançar em sua caminhada com Deus. Para aprender mais sobre diários puritanos, você poderá examinar o diário reimpresso de Richard Rogers, 0 qual aparece em T\vo E liz a b eth a n P u rita n d ia ries [Dois diários puritanos do período elizabetano], obra editada por Marshall Knappen,“ ou o livro de Owen Watkins T h e P u rita n e x p e rie n c e [A experiência puritana],“ que explica o que um estudo desses diários revela. Pode ser bem instrutivo fazer uma comparação entre o que escrever um diário significava para os puritanos e o sentido que isso tem para as pessoas de hoje.

Faceta n.° 5: perspectiva metódica A piedade puritana, com sua paixão por um modo de vida peculiar e disciplina­ do, representa algo parecido com o ideal monástico de uma vida regrada, mas fora do mosteiro e imersa na vida da sociedade. Como descrição de santidade, a palavra m etódico é uma palavra puritana.^' Os puritanos criam que o m étodo de lograr que tudo estivesse certo e organizado da maneira certa era vital para o êxito em qualquer empreitada. Com certeza, isso se aplicava à vida cristã. É naturalmente um equívoco descrever os puritanos como monges refor­ mados, pois viviam no mundo, desfrutavam da criação de Deus, casavam, tinham filhos e viam isso como parte de seu chamado cristão. No entanto, sua abordagem da estrutura da vida cristã pessoal com ênfase na disciplina, método, planejamento e o uso sábio do tempo é um convite à comparação com os ideais e regras monásticos. Também há algo metódico quanto aos puritanos e sua paixão pela santidade. A obra de Lewis Bayly (c. 1575-1631) T h e prac­ tice o f p iety : d irectin g a C h ristia n w alk, that h e m ay p lea se G od [A prática da piedade: orientação para a caminhada do cristão para que ele agrade a Deus] é um exemplo disso.“ Bayly propõe a você sobre o que deve meditar quando ““Cf. D onald S. W h itn ey, Spiritual disciplines for the Christian life (C olorado Springs; N avPress, 1 9 9 1 ), p. 196-210 [edição e m p ortu guês: Disciplinas espirituais para a vida cristã, tra­ d ução de Talita R ose B au lé (São Paulo: B atista Regular, 2 0 0 9 )]. “’K nappen, Tluo Elizabethan Puritan diaries. ““Owen C. W atkins, The Puritan experience: studies in spiritual autobiography (N ew York: Schocken, 1 9 7 2 ). “'Packer, A quest for godliness, p. 3 3 0 -1 . Veja, p . e x ., Jo h n Flavel, The fountain o f life: a display o f Christ in his essential and mediatorial glory, in: The works o f the rev. mr. John Flavel (1 8 2 0 ; reim pr., Edinburgh; B an n er of H-uth U u s t, 1 9 9 7 ), 1 :21-3. “^Lewis Bayly, The practice o f piety: directing a Christian how to walk, that he may please God (1611; reim pr., M organ; Soli Deo G loria, 1 9 9 7 ).

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se levanta da cama, quando se veste, depois quando toma o desjejum e assim por diante ao longo do dia. Na época anticonvencional em que vivemos, para a maioria de nós esse aspecto metódico do viver puritano parece exagerado. Talvez fosse em alguns casos. Mas podemos aprender com os puritanos que nossas vidas devem ser mais disciplinadas do que são. Antes de condenar os puritanos por sua vida metódica, consideremos que 0 modo de vida deles com esse costume de incorporar disciplinas espirituais é algo que precisamos aprender com urgência. Recentemente, ouvi o professor de um seminário reformado conservador afirmar aos alunos em sua classe de escola dominical que, se não observassem suas devocionais diárias, não de­ viam se preocupar a respeito, pois observar disciplinas espirituais diárias não era algo importante. A única coisa importante era adorar a Deus na sua casa no primeiro dia da semana. Ele passou então a garantir aos alunos que não deviam se sentir culpados por deixar de orar ou 1er a Bíblia ou de não praticar outras disciplinas espirituais. Acertadamente os puritanos veriam esse ensino como desastroso para o crente e para a igreja.

Faceta n.** 6: perspectiva de dois mundos A posição puritana sobre a vida com sua perspectiva de dois mundos, a qual inclui tanto este mundo como o vindouro, é explicada longamente por Richard Baxter (1615-1691) em seu primeiro estudo devocional, The saints everlasting rest [O descanso eterno dos santos]. Esse livro foi um campeão de vendas durante os dias de Baxter, bem como um fator importante que contribuiu para os puritanos meditarem sobre o céu.®^ Foi anualmente reimpresso durante dez anos apesar de suas mais de oitocentas páginas. Tornou-se leitura de muitos lares puritanos. Foi reconhecido como uma apresentação de primeira categoria sobre o que era fundamental na ideia puritana de vida. Essa mesma ideia é explorada em O peregrino, de Bunyan. Ao contrário de cristãos de hoje, os puritanos criam que o cristão deve ter 0 céu “em seus olhos” durante todo o tempo em que estiver caminhando na terra. Em sua maioria, os cristãos evangélicos atuais não vivem dessa maneira. Creio que somos mais pobres por causa disso. O Novo Testamento está conti­ nuamente nos exortando a viver em dois mundos: manter a esperança do céu em nossa mente de modo a que nossa vida na terra se mantenha reta, contro­ lada e cheia de energia. Tendemos a viver como os epicureus, pressupondo que esta vida é tudo que temos e que jamais chegaremos a obter aquilo que não obtivermos agora. Por isso, é de extrema importância que encontremos ”Beeke, Puritan Reformed spirituality, p. 90.

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realização, felicidade e satisfação aqui e agora. A ideia de uma autonegação radical faria com que nos sentíssemos péssimos caso a aceitássemos como regra para nossa existência. Nos dias de hoje. nosso ponto forte não é a negação de nós mesmos; cos­ tumamos ceder às inclinações e somos espiritualmente frouxos. Não vivemos em dois mundos, como o Novo Testamento nos exorta a viver, e como os puritanos viviam. Eles estavam persuadidos de que as alegrias do céu com­ pensarão quaisquer perdas, aflições, pressões e dores que sofremos na terra, se seguirmos fielmente a Deus. Essa perspectiva era intrínseca aos puritanos. Espero que se torne intrínseca a nós hoje. Os puritanos viviam esta vida em toda sua plenitude, mas, enquanto o faziam, mantinham um olho fixo na eternidade. Jonathan Edwards (1703-1758) escreveu: “Ó Deus, faz a eternidade ficar marcada em meus olhos! Muito mais ainda devemos clamar nesta nossa era secular: “Faz, ó Deus, a eternidade ficar estampada também em minha mente e alma, em minhas mãos e pés e na totalidade do meu ser!” Se desejamos ser peregrinos para Deus nesta vida, precisamos ser peregrinos ativos para a vida vindoura. Dizem que alguns crentes ficam tão absorvidos pelo céu que não têm nenhuma utilidade na terra. É um erro total dizer isso a respeito dos puritanos, que nos mostram que não podemos ter utilidade alguma na terra a menos que nossa mente esteja concentrada no céu. Com frequência, tenho descoberto que, quanto mais minha atenção está voltada para a glória futura, mais zelo tenho pelo bem-estar real daqueles ao meu redor. Quando estive em Dundee, na Escócia, visitando a igreja de Robert Murray M'Cheyne (1813-1843), uma pessoa com mentalidade puritana, estive no cemitério ao lado da igreja, onde reparei em uma grande pedra plana que, embora desgastada pelo tempo, tinha uma única palavra escrita sobre ela. Ajoelhei-me para, com a ajuda do dedo, identificar a palavra: ETERNIDADE. Ao que parece, M'Cheyne queria que cada visitante considerasse seu destino eterno enquanto caminhava entre os mortos. Amigo, se você morresse hoje, estaria preparado para entrar na eternidade? Não viva somente para esta vida; viva também para a eternidade. Lembre­ -se: você precisa estar agora em Cristo para se dar bem na eternidade. Você precisa olhar para Cristo nesta vida se deseja passar a eternidade com Cristo. Hebreus 9.27,28 afirma claramente: “E, como está ordenado aos homens mor­ rerem uma só vez, vindo depois o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma só vez para levar os pecados de muitos, aparecerá a segunda vez, não por causa do pecado, mas para a salvação dos que esperam por ele”. ’’Gabe Phillips, “Stamp my eyeballs with eternity". Life changers, 24 de fevereiro de 2010, disponível em: http://www.lifechangers.org.za/popular/stamp-my-eyeballs-with-etemity/, aces­ so em: IS jun. 2010.

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Logo Cristo executará o julgamento de todas as pessoas. Mateus 25.46 afirma: "E eles irão para o castigo eterno, mas os justos irão para a vida eter­ na”. Aqueles que se recusaram a atender ao fascinante convite do evangelho nesta vida serão forçados a ouvir o terrível som da vara de Cristo. “Portanto, sabendo o que significa temer o Senhor, procuramos convencer os homens”, afirma 2Coríntios 5.11. Como será terrível ser lançado no inferno junto com Satanás e estar morrendo o tempo todo, mas nunca morrer — ser consumido 0 tempo todo, porém nunca ser totalmente consumido! A menos que você esteja em Cristo naquele dia. Deus dirá a seu respeito: “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 22.13). Lançai: que palavra! José foi lançado numa cova; Paulo e Silas foram lançados no interior de uma prisão (At 16.23), mas não há cova nem prisão como o inferno. Jesus — o Grande José, o Leão da tribo de Judá — lançará todos os incrédulos no poço do abismo, onde a ar­ dente ira de Deus e uma consciência abrasadora os consumirão para sempre. A fornalha de fogo ardente de Nabucodonosor é gelada era comparação com 0 calor da ira de Deus. A cidade do inferno não tem saídas, o prédio do inferno não tem rota de fuga, a sociedade do inferno não tem relacionamentos. O inferno é uma soli­ dão radical, é o afastamento radical do favor de Deus e dos homens. "Como escaparemos se desconsiderarmos tão grande salvação?”, indaga Hebreus 2.3. J. C. Ryle afirmou: “A estrada mais triste para o inferno é aquela que corre debaixo do púlpito, ao lado da Bíblia e em meio a advertências e convites”.” Apresse-se por amor à vida; fuja da ira vindoura. Pare de colocar o coração neste mundo. Que vantagem você terá se ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma? Arrependa-se e creia no evangelho enquanto ainda é o dia da graça e da salvação. Logo será tarde demais para se arrepender. No dia do juízo. Cristo dirá: “Quem é injusto, continue na injustiça; quem é impuro, continue na impureza” (Ap 22.11). No inferno, não haverá ateus, mas “Tarde demais” são palavras escritas de uma ponta a outra das portas do inferno. Considere, amigo, que a eternidade da eternidade é o inferno do inferno. Remover da Bíblia um inferno sem fim é tão impossível quanto remover um céu sem fim. Estamos a apenas um instante da eternidade, que se apoia na tênue linha do tempo. Considere que, se você não tem visão alguma da eternidade, você não tem compreensão alguma do tempo. Nossa vida não é uma simples viagem para a morte; estamos viajando para o céu, aquele dia eterno em que não há pôr do sol, ou então para o inferno, a noite em que não há nascer do sol. Para “J. C. Ryle, Home truths (London: Wertheim, Macintosh, and Hunt, 1860), p. 14.

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onde você está indo? Você é seguidor de Jesus Cristo? Se você fosse preso hoje por ser cristão, haveria provas suficientes para condená-lo? Prezado crente, no dia do juízo você receberá uma coroa imarcescível. Seu Salvador introduzirá você junto com outros crentes no céu dos céus como uma única família. Para que você, na condição de membro vivo de sua igreja aperfeiçoada, entre na glória, ele o apresentará ao Pai como sua noiva sem mácula nem ruga. Você habitará para sempre com Cristo, que o alimentará e 0 conduzirá à água viva. Você beberá da fonte do Deus triúno, louvando-o por toda a eternidade nas atividades mais santas e gloriosas, muitas das quais estão além do que se possa imaginar (ICo 2 .9). Todas as experiências que você tem tido com Deus e sua graciosa salvação serão apenas sombra em comparação com aquilo de que você desfrutará no céu. No céu, todas as coisas negativas desaparecerão e todas as positivas se mul­ tiplicarão. As coisas negativas — e que desaparecerão — são: já não lutaremos contra Satanás, contra o mundo tentador, contra nossa velha natureza, contra lágrimas e tristeza, contra a saúde debilitada e contra os maus tratos pelos outros, pois tudo isso acabará quando chegarmos àquele mundo melhor. Não haverá mais medo da tentação, da morte, de cair em pecado, de envergonhar 0 nome de Cristo ou de se afastar da fé. O céu também estará repleto de coisas positivas. A maior delas será o cum­ primento das palavras finais de Robert Haldane (1764-1842), que presenciou um avivamento em Genebra quando pregava a estudantes. Em seus últimos suspiros, clamou repetidas vezes: “Para sempre com o Senhor! Prezado cren­ te, naquele mundo Cristo estará sempre ao alcance de seus olhos. Ele estará em seus olhos, diante de seu rosto e com o ouvido bem perto para você conversar com ele e adorá-lo. Ele estará ali para você reverenciá-lo, para responder às perguntas que você tiver e para você agradecer aquilo que fez por você. O céu também será um lugar de atividades perfeitas, como adorar a Deus com louvor e cânticos, servir a Deus e exercer autoridade reinando com Cristo, ter comunhão com os santos e os anjos, aprender sobre Deus e sua verdade e descansar em paz perfeita. E o céu também será um lugar de retribuição graciosa pela fidelidade dos crentes aqui e de abundante compensação por seu sofrimento na terra. O céu também será um lugar de santidade perfeita. Conforme afirmou Rowland Hill (1744-1833): “Se um homem impuro che­ gasse ao céu, iria se sentir como um porco num jardim de flores".®^ O céu será totalmente puro e limpo. Ali não haverá doença alguma, nem uma única “Alexander Haldane, Memoirs o f Robert Hcddane ofAirthrey, and his brother, Jam es Alexander Haldane (New York: Robert Carter, 1853), p. 549. 5'Vernon J. Charlesworth, Rowland Hill: his life, anecdotes, and pulpit sayings (London: Hodder and Stoughton, 1877), p. 224.

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partícula de poeira. Todo o mal ficará do lado de fora dos muros; todo o bem, do lado de dentro. Por fim, o céu será um mundo de amor. Spurgeon o expressou da seguinte maneira: "É mais fácil um peixe secar os oceanos de tanto bebê-los do que um dia chegarmos a esgotar o amor de Deus no céu”. E acrescentou; “Engula, peixinho! Você jamais conseguirá beber tudo a ponto de secá-lo 1”. Ah! mag­ nífica esperança; magnífico amor! Edwards afirmou que o amor de Deus no céu é um oceano sem leito e sem margens!“ Prezado peregrino, mantenha seus olhos na cidade celestial!

Conclusão A mentalidade puritana era baseada na Bíblia, pietista, eclesial, combativa, metódica e de dois mundos. Dessas diferentes maneiras os puritanos foram peregrinos, visionários celestiais que viajavam por este mundo a uma terra que conseguiam avistar somente nas Escrituras com os olhos da fé. Os puritanos eram fortes em áreas em que somos fracos. Pelo fato de que somos biblica­ mente analfabetos, de que enfatizamos tão pouco a autêntica piedade, de que deixamos de cuidar da igreja, de que não nos empenhamos na luta contra o pecado e de que vivemos vidas indisciplinadas que são mais esforços banais do que uma viagem como peregrinos para a cidade celestial, faríamos bem em estudar os puritanos. Mais do que qualquer outro grupo de autores na história da igreja, eles podem nos ensinar a viver uma vida disciplinada para a glória de Deus sem cair na ortodoxia morta nem no legalismo mortal. Que Deus conceda que todos digamos junto com o peregrino de Bunyan: “Venho da cidade da Destruição e estou indo para o monte Sião”.“

“Jonathan Edwards, Heaven, a world o f love (Amityville: Calvary, 1992), p. 43 (cf., disponí­ vel em: http://www.jonathan-edwards.org/Worldoflove.html, acesso em: 14 jun. 2010). “John Bunyan, The pilgrim 's progress (1895; reimpr., Edinburgh; Banner of Truth Tlust, 1990), p. 46.

Capítulo 53 a o o a a a a a D a a o o a o a a o D a a a D a D a a a a a D a a D a D D D a D a a Q a □□□□□□□□□□□□□□□

Os puritanos e a vida piedosa no lar □□□□aonnaaaaaaaooaaDDaDnaDDanDnnaDQODnnoDnaaDnDnoooDQDDnDnD

Bem, eu não conheço coisa alguma que contribua mais para o avanço desta boà obra do que levar a famúia a pôr em prática e a valorizar ainda mais a vida religiosa no lar. É aqui que a reforma precisa começar. Matthew Henry*

Os puritanos ensinavam que ser útil na igreja está intimamente ligado a ser piedoso em casa. A santidade em público é totalmente dependente da santidade na vida privada. Além do próprio Deus, ninguém vê com mais clareza nosso verdadeiro caráter do que nossa esposa e filhos. Os puritanos diziam que é no lar que nossa vida espiritual prospera ou fracassa. William Gouge (1575-1653) foi um homem muito útil ao nosso Senhor. Ele pregou três vezes por semana durante quarenta e cinco anos, ajudou os pobres, foi mentor de outros pastores, escreveu onze livros e serviu na Assem­ bleia de Westminster, ajudando a redigir as excelentes normas doutrinárias para a igreja. Ele se dedicou à oração e à Palavra. Ele e Elizabeth, sua esposa, tiveram treze filhos, dos quais oito chegaram à idade adulta. A família de Gouge conheceu grandes aflições. Mas a família de Gouge também conheceu um grande Cristo. Um contemporâneo de Gouge afirmou que ele trabalhou arduamente para magnificar a Cristo e humilhar-se a si mesmo. Com espírito de oração, William Gouge liderava diariamente a família no culto doméstico. Ele também conduzia a família com grande amor. Alguém fez o seguinte comentário sobre Gouge: “Ninguém, nem a esposa, nem os filhos nem os 'Matthew Henry, “A church in the house, a sermon concerning family religion, in: The com­ plete works o f die rev. Matthew Henry (18SS; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 1979), 1:248.

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empregados com quem conviveu e trabalhou durante todos aqueles anos jamais chegaram a notar um semblante irado ou ouvir uma palavra irada da pa. ;e dele contra qualquer um deles”.^ O grande evangelista George Whitefield (1714-1770) passou um final de semana na casa de Jonathan Edwards (1703-1758), que com frequência é chamado de o maior teólogo dos Estados Unidos. O que Whitefield, que na época era solteiro, viu naquele lar o influenciou profundamente. Ele escreveu: O sr. E d w a rd s é u m c ristã o firm e e e x ce p cio n a l [ ...] C reio q u e n ã o v i alg u ém igual a e le e m to d a a N ova In g laterra [ ...] T iv e g ra n d e sa tis fa çã o em e s ta r n a c a s a do sr. E d w a rd s. A in d a n ã o vi u m c a s a l m ais a m á v e l. S eu s filhos e ra m [ ...] exem p lo de sim p licid ad e cristã . A sra . E d w ard s é a d o rn a d a p o r u m esp írito m a n so e tranquilo; ela falav a c o m firm e z a so b re a s c o is a s d e D eu s e p a re cia q u e a ju d a v a tan to o m a rid o q u e m e fez v o lta r a fa z e r a q u e la s o ra ç õ e s q u e d u ra n te a lg u n s m eses eu tin h a a p re se n ta d o a D eu s, a sab er, q u e, se fo sse d o seu a g ra d o , ele m e enviasse u m a filha d e A b raão p a ra s e r m in h a esp o sa.^

Como seria se alguém visitasse você por algum tempo? O que ele veria? O que ouviria? Essas são perguntas perscrutadoras. Neste capítulo, examinaremos os ensinos puritanos sobre a liderança fiel do lar e o culto doméstico.

Liderança fiel do lar cristão William Perkins (1558-1602), que foi o patriarca do puritanismo, afirmou: “A única regra para administrar a família é a Palavra escrita de Deus. Por meio dela, Davi resolveu governéu: sua casa, quando afirmou: ‘Viverei em minha casa com coração íntegro’ (SI 101.2)”.'* Os puritanos encontraram uma orien­ tação riquíssima acerca do lar no salmo 101. Em poucas palavras, esse salmo apresenta o compromisso de um líder em ser íntegro no lar e na esfera de sua autoridade. Matthew Henry (1662-1714) chamava o salmo 101 de “salmo do dono da casa” e afirmava que ele estabelecia “o padrão tanto para uma boa autoridade quanto para um bom chefe de família”.® Uoel R. Beeke; Randall J. Pederson, Meet the Puritans: with a guide to m odem reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), p. 284-6 [edição em português: Paixão pela pureza: cojdieça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 2010)]. ^Arnold Dallimore, George Whitefield, the life and times o f the great evangelist o f the eighte enth-ceraury revival (Edinburgh: Banner of Truth TTust, 1970), 1:475, 537-8. ^William Perkins, “Oeconomie: or, houshold-government", in: The works o f that famous and worthy m inister o f Christ in the Universitie o f Cambridge, Mr. William Perkins (London: John Haviland, 1631), 3:669. ^Matthew Henry, Moahew Henry’s commentary (reimpr., Peabody: Hendrickson, 1991), 3:502 [edição em português: Comentário bíblico de Matthew Henry, tradução de Degmar Ribas Junior (Rio de Janeiro: CPAD, 2002), 6 vols].

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William Plumer (1802-1880) comentou: A lguns au to res an tig os c h a m a m e sse salm o de Salm o do ch efe d a casa. No sécu lo 1 7 , e ta lv e z a té a n te s, e ra c o s tu m e en tre a s p e s s o a s p ie d o sa s q u e se p reg asse u m s e rm ã o q u a n d o se e sta b e le cia u m a n o v a fam ília o u q u an d o se o c u p a v a u m a n ov a re sid ê n cia . L iv ro s a n tig o s n o s o fe re ce m re la to s d e s s a s p ré d ica s. A lg u m as d elas s ã o e x p o s içõ e s d e sse sa lm o . E isso n ã o é d e sv irtu a m e n to d as E scritu ras. U m b om rei d eve s e r e m se u d o m ín io c o m o u m b o m p ai e ch e fe d e fam ília é e m su a ca sa .*

Para elucidar ainda mais as ideias puritanas sobre o assunto, consideraremos os comentários dos puritanos sobre os primeiros versículos do salmo.

Lidere a fam ília com justiça e m isericórdia Em Salmos 101.1, Davi introduziu seu compromisso com a integridade com as palavras: “Cantarei a misericórdia e o juízo; a ti. Senhor, cantarei” (ARC). David Dickson (c. 1583-1662) observou que a determinação de Davi em “cantar” esses assuntos mostra que para ele sua responsabilidade primeira como líder era “alegrar-se em todos os atributos do rei”. Especifícamente falando, Davi estava se alegrando ^na misericórdia e no juízo” porquanto “todos os deveres de um governo justo podem ser sintetizados em duas palavras: misericórdia e juízo; pois misericórdia inclui o cuidado dos pobres, dos necessitados, dos oprimidos ou daqueles que sofreram abusos em seus direitos; e juízo inclui o cuidado em ser imparcial com os súditos e dispensar-lhes um tratamento justo ”.^ Assim, os donos da casa devem liderar a famQia tanto com amor quanto com justiça. Tendo em vista o estereótipo dos puritanos, pode-se supor que no lar eram legalistas severos. Mas não é o caso. Em obediência a Efésios 5.25 e 6.4, os puritanos conclamavam os homens a serem compassivos e bondosos com a família. William Gouge escreveu: Da p a rte do m a rid o , n ão e x iste d e v e r a lg u m q u e p o s s a s e r cu m p rid o c o rre ta m e n te , a n ã o s e r q u e e ste ja te m p e ra d o c o m a m o r [ ...] S eu o lh ar, su a s p a la v ra s , seu co m p o rta m e n to e to d o se u ag ir c o m a e sp o sa p re c is a se r te m p e ra d o c o m a m o r [...] A ssim c o m o o sal p re cisa s e r a p rim eira c o is a a se r c o lo c a d a n a m e s a e a ú ltim a a s e r tira d a e se r co m id o c o m c a d a p e d a ç o d e c a r n e , d a m e s m a m a n e ira o am o r p re cisa se r a p rim e ira c o is a q u e e n tra no c o r a ç ã o d o m arid o e a ú ltim a co isa que sai d ele e d e e s ta r m istu rad o e m c a d a a ç ã o re la cio n a d a c o m a esposa.®

^William S. Plumer, Studies in the book o f Psalms (Philadelphia: Lippinscott, 1867), p. 898. 'David Dickson, A commentary on the Psalms: two volumes in one (1653-1655; reimpr., Edinburgh: Banner of TTuth Trust, 1995), 2:197. “William Gouge, Ofdomestical duties (1622; Edinburgh: Puritan Reprints, 2006), p. 252-3 (4.2).

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De igual maneira, Gouge advertiu contra a “excessiva austeridade e severida­ de” por parte dos pais com os filhos, como “semblante carrancudo, palavras ameaçadoras e ultrajantes, tratamento duro demais, correção severa demais, demasiada restrição de liberdade, demasiada escassez de recursos para as coisas necessárias”.® O pai precisa corrigir sua esposa e filhos, mas com brandura, cumprindo a lei de Cristo (G1 6.1,2). Samuel Lee (1625-1691) afirmou: “Que repreensões oportunas e prudentes sejam ministradas de acordo com a natureza e o tipo dtis ofensas deles. Começa com brandura; usa todos os argumentos persuasivos para, se possível, atraí-los e cativá-los para os caminhos de Deus. Fala-lhes das recompensas da glória, da doce comunhão no céu; esforça-te por convencer seus corações de que Deus é capaz de encher sua alma de uma alegria tão grande que não se encontra nas criaturas”.“ Às vezes, a repreensão é necessária, até mesmo repreensão com uma ira santa, caso um membro da família continue no pecado. No entanto, mesmo nessas circunstâncias os puritanos advertiram contra aquilo que Lee chama de “explosões de temperamento” e “gritos e clamores horrendos”.“ As repreensões devem ser ministradas com humildade e respeito. Ele escreveu: “O marido não deve repreender a esposa na presença dos filhos e empregados, para que não se enfraqueça sua autoridade subordinada [...] Sim, no caso de ofensas me­ nores cometidas por crianças e empregados, repreende-os individualmente e em particular, caso não as tenham cometido na frente de outros. Mas, acima de tudo, cuida de não seres achado mais severo censurando ofensas contra ti do que pecados contra o grande Deus”.*^ Para dirigir a família com justiça e misericórdia, Lee aconselhou os pais a fazer distinção entre fraquezas, peca­ dos não cometidos numa atitude de gritante provocação e rebelião ostensiva, escandalosa e persistente. Lee recomenda a fechar os olhos no primeiro caso, a apenas olhar com desaprovação no segundo e a reservar repreensões severas e públicas para o terceiro.

Faça devocionais pessoais Em Salmos 101.2, Davi se comprometeu a ser íntegro porque anelava pela presença graciosa de Deus, quando exclamou: “Seguirei com sabedoria pelo caminho reto. Quando virás ao meu encontro?” Ele buscava comunhão com ’ Gouge, Domestical duties, p. 113-4 (1.117). “Samuel Lee, “W hat means m ay be used towards the conversion of our carnal relations?”, in: Puritan sermons. 1659-1689 (reimpr., W heaton: Richard Owen Roberts, 1981), 1:154-5. “Lee, “W hat means m ay be used towards the conversion of our carnal relations?”, in: Puritan sermons, 1:154. '^Lee, “W hat means may be used towards the conversion of our carnal relations?”, in:

Puritan sermons, 1:155.

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Deus. A busca da santidade é a busca por Deus (SI 15.1-S; Is 57.15; Mt 5.8; Jo 14.21,23; Hb 12.14). Por esse motivo, proceder piedosamente em nosso lar requer momentos de buscar comunhão pessoal com Deus. Henry escreveu: “Quando um homem tem sua própria casa, é desejável que Deus venha até ele e habite com ele ali”.'^ O desejo que o rei Davi tinha de ter intimidade com Deus mostra que a comunhão de Deus conosco e as operações de seu reino por intermédio de nós estão inseparavelmente ligadas. Em outras palavras, os puritanos reconhe­ ciam que a vontade de Davi de que Deus viesse a ele era em parte um desejo de que o reino de Deus se manifestasse no governo de Davi.*“ Matthew Poole (1624-1679) escreveu: “Com frequência, as Escrituras dizem que Deus vem a homens quando ele cumpre uma promessa feita a eles ou lhes confere um favor ou bênção (Gn 18.10; Êx 20.24; SI 80.2; Is 35.4 etc.)”. Dessa maneira, ele parafraseou o texto como se Davi estivesse fazendo uma oração: “Ah! quando me darás o reino que me prometeste para que eu possa realizar esses bons propósitos tanto para meu próprio bem-estar quanto para o benefício de teu povo?”.'^ Aplicada a chefes de família, essa observação nos lembra de que precisa­ mos buscar a presença graciosa de Deus, visto que sem Cristo nada podemos fazer como pais cristãos (Jo 15.5). Antes de ensinarmos diligentemente nossos filhos (Dt 6.7), se realmente amamos o Senhor (Dt 6.5), precisamos fazer com que suas palavras estejam em nosso próprio coração por meio de meditação feita em oração (Dt 6.6). Por isso os puritanos defendiam o estabelecimento de um momento na agenda diária quando você se encontrará com o Senhor para a leitura das Escrituras, meditação, oração e talvez a leitura de outro material devocional sério. Seja disciplinado; faça-o a cada dia. Encontre um local tranquilo e iso­ lado. Siga um plano para ler as Escrituras. Entre os puritanos havia uma abundância de orientações práticas sobre como meditar na Palavra. A meditação cristã não é como as religiões orientais, nas quais você esvazia a mente; pelo contrário, na meditação sua mente paira sobre uma verdade como uma abelha paira sobre uma flor para extrair toda sua doçura. Ler e estudar nos levam a descobrir verdades na Bíblia. A meditação prega essas verdades à sua própria alma para aquecer seu coração, atiçar suas afeições e animar sua vontade a amar a Deus e odiar o pecado. Em primeiro lugar, ore para que o Espírito Santo o ajude. Você poderá usar Salmos 119.18: “Desvenda-me os olhos, para que eu veja as maravilhas da '*Henry, Commentary, 3:503. “Dickson, Commentary on the Psalms, 2:198. '^Matthew Poole, A commentary on the whole Bible (Peabody: Hendrickson, 2001), 2:154.

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tua lei”. Em segundo, leia um trecho das Escrituras. Não leia tanto a ponto de não ter tempo para meditar. Em terceiro, concentre-se em um versículo ou doutrina, em algo fácil e aplicável à sua vida. Repita sozinho o versículo ou dou­ trina várias vezes a fim de memorizá-lo. Em quarto, analise mentalmente esse versículo ou doutrina com base em suas várias designações, propriedades, causas e efeitos juntamente com ilustrações, comparações e opostos. Tome o cuidado de não especular e ir além daquilo que Deus falou. Em quinto, pre­ gue a verdade à sua alma a fim de estimular sua fé, amor, desejo, esperança, coragem, tristeza, gratidão e alegria na presença de Deus. Examine sua vida e aplique detalhadamente a verdade a ela. Em sexto, com oração decida crescer na graça. Em sétimo, louve ao Senhor com ações de graças. Assim, meditar é orar, 1er, concentrar-se numa passagem, analisar, pregar a si mesmo, decidir com oração e louvar a Deus de maneira tal que gira em torno de uma única verdade das Escrituras. Mediante momentos regulares de meditação, você exercitará a devoção pessoal ao Senhor e experimentará João 15.5: "Quem permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto”.'*

Com porte-se com integridade piedosa em sua casa Salmos 101.2 também afirma: “Viverei em minha casa com coração íntegro”. A palavra hebraica traduzida por “íntegro” se refere à completude ou inteire­ za, em contraste com a religião sem entusiasmo e hipócrita. Essa integridade não é perfeição sem pecado, mas piedade sincera.'^ John lïapp (1601-1669) escreveu: “Segui os hipócritas até suas casas e lá vereis o que são”.*® George Swinnock (c. 1627-1673) escreveu: “Davi não era hipócrita. Não vestia suas melhores roupas quando saía e as tirava quando voltava, mas a pureza era seu traje tanto fora quanto dentro de casa”.'* Matthew Henry afirmou: “Não basta vestir nossa religião quando saímos e aparecemos diante dos homens, mas por meio dela precisamos governar a nós mesmos no seio de nossa famí­ lia. Por isso, aqueles que ocupam postos públicos não estão dispensados de governar sua família; pelo contrário, têm obrigação ainda maior de dar um bom exemplo de governar bem sua própria casa (ITm 3 .4 )”.“ ‘*Para uma orientação mais detalhada da prática puritana da meditação, veja o capítulo 5S deste livro. "A palavra hebraica é tom, da raiz tamam (Gn 20.5,6; IRs 9.4; Jó 1.1,8; 2.3; SI 7.9; 25.21; 26.1,11). '*John Happ, A commentary on the Old and New Testamenxs, edição de Hugh Martin (London: Richard D. Dickinson. 1868), 2:624. ‘^George Swinnock, The Christian m an’s calling, in: The works o f George Swinnock (Edinburgh: James Nichol, 1868), 1:331. “Henry, Commentary, 3:503 (SI 101).

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Para os puritanos, a base de sua piedade no lar era uma consciência acen­ tuada da onipresença de Deus. Eles sempre procuravam viver coram Deo, na presença de Deus. Salmos 119.68 afirma: “Obedeço aos teus preceitos e testemunhos, pois todos os meus caminhos são conhecidos por ti”. Thomas Manton (1620-1677) comentou: De sorte que os senhores da casa devem proceder em casa com um coração íntegro (SI 101.2). Embora na vida em família estejam longe do olhar de outros, mesmo assim, tanto em casa quanto fora, devem ter o cuidado de caminhar com Deus em suas conversas com a família, quando os homens estão mais habituados a se revelar, e devem se comportar ali com prudência, santidade e fidelidade. O apóstolo lembra os senhores acerca de seu Senhor no céu (Ef 6.9), aquele que vê e observa vossos procedimentos e vos chamará para prestar contas de toda vossa conduta: vossos pecados e graças não estão escondidos dele.^'

Manton também escreveu: “Davi afirmou: ‘Viverei em minha casa com coração íntegro’ (SI 101.2). Se um homem é verdadeiramente santo, mostrará isso tanto em casa quanto fora; com sua família, com quem está em constante convivência em seus momentos reservados e particulares. Um cristão é igual em todos os lugares, porque Deus é igual em todos os lugares”.“

Mantenha a pureza de seu !ar Em Salmos 101.3, Davi escreveu: “Nunca me voltarei para a desonestidade. Detesto o que os homens maus fazem; não participarei disso!”. A palavra traduzida por “desonestidade” se refere a uma iniquidade que corrompe a moralidade — um instrumento de Satanás. A palavra “participarei” dá a en­ tender uma relação íntima; é a mesma palavra empregada para o casamento (Gn 2.24). Precisamos ter o cuidado de não permitir que influências corrompedoras penetrem em nossa vida privada e em nosso lar. Essas coisas ficam grudadas em nós e dão lugar a Satanás. Happ fez a seguinte paráfrase de Davi: “Não ficarei apreciando objetos proibidos nem me exporei à tentação desses objetos ou a uma oportunidade para o pecado”.“ Essa é a batalha pela pureza de nossa mente. Poole escreveu: “Se qualquer coisa ímpia ou injusta me for sugerida (...) com repulsa eu a lançarei fora de minha mente e pensamentos”.“ ^'Thomas Manton, “Sermons upon Psalm 119", in: The complete works o f Thomas Manton (London: James Nisbet, 1872), 9:241. “Thomas Manton, “Sermons upon 1 John 3”, in: The complete works o f Thomas Manton (London: James Nisbet, 1872), 21:203. “Ttapp, 0}m m entary, 2:624. “Poole, Commentary, 2:154.

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John Bunyan (1628-1688) é mais conhecido por sua obra O peregrino, mas também escreveu The holy war [A guerra santa] não com o objetivo de convocar uma jikad física, mas para apresentar uma parábola espiritual em que 0 gigante Diabolus assume o controle da cidade de Alma do Homem, e 0 rei da cidade precisa abdicar de ser o seu legítimo soberano. Ele escreveu que a cidade tinha muros e portas indestrutíveis, sendo que não era possível abrir as portas senão pela vontade do povo da cidade. A única maneira de Diabolus ter conquistado a cidade foi mentir para os moradores, persuadin­ do-os a abrir para ele a “Porta dos Ouvidos” e a “Porta dos Olhos”.^* Desse modo, os puritanos advertiam que, se formos resistir aos ataques do Diabo, precisamos controlar aquilo que deixamos entrar em nossa alma através de nossos ouvidos e olhos. Se vivessem hoje, os puritanos teriam muito a nos dizer a respeito disso. Eles poderiam falar aqui de muitas influências, como a música que ouvimos ou as piadas que contamos. O salmo 101 fala especificamente de nossos “olhos”. Em Salmos 119.36,37, encontramos na forma de uma oração uma deliberação parecida: “Inclina meu coração para teus testemunhos, e não para a cobiça. Desvia meus olhos de contemplarem o que é inútil e vivifi­ ca-me no teu caminho”. Muitas tentações invadem a alma através da porta dos olhos. A imagem ou ídolo visível sempre foi a grande pedra de tropeço de Israel. Quando Satanás tentou nosso Senhor Jesus, ele o levou a um alto monte e lhe mostrou a glória dos reinos deste mundo (Mt 4.8). Atualmente vivemos numa época de imagens. Televisões, telas de computador, livros, revistas, pôsteres, painéis de rua e até mesmo telefones celulares nos cercam com imagens. Podemos não ser capazes de impedir o mundo de continuar exibindo cenas chocantes e idólatras. Mas precisamos controlar quais ima­ gens deixamos entrar em nossos lares. Pode ser a pornografia. Pode ser o perigo mais sutil do mundanismo. A liderança espiritual no lar pode exigir que em nossos lares limitemos ou desliguemos algumas formas de mídia ou de tecnologia ou nos desfaçamos delas. Indague a si mesmo como essas influências o ajudam a praticar Filipenses 4.8 em seu lar: “Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai”. Os puritanos reconheciam que não basta guardar as portas de nossos sen­ tidos contra as tentações. Em nosso lar, precisamos dar boas-vindas àquelas influências que promovam a santidade. Isso nos leva a considerar outro aspecto importante da vida piedosa no lar. ^Uohn Bunyan, The holy war, in: The works o f John Bunyan (Glasgow: Blackie and Son, 1859), 3:256, 260.

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Culto doméstico no lar cristão É de longa data que os cristãos têm reconhecido que frequentemente Deus usa a restauração do culto doméstico para trazer reforma e avivamento à igreja. Por exemplo, o pacto eclesial que a congregação puritana de Dorchester, no estado norte-americano de Massachusetts, fez em 1677 incluía o compromisso “de renovar nossas famílias, envolvendo-nos no cuidado consciente de nelas estabelecer e manter o culto a Deus e de proceder em nossas casas com um coração perfeito,“ desempenhando fielmente todos os deveres do lar, educando, instruindo e ordenando nossos filhos e empregados a guardar os caminhos do Senhor”.^’’ Cristãos reformados talvez fiquem surpresos ao saber que as Normas de Westminster foram prefaciadas no século 17 com pedidos aos pais para que ensinassem o cristianismo aos filhos. Os puritanos levavam tão a sério o dever do culto doméstico que consideravam que o descuido com a devocional e o catecismo no seio familiar “quebrava a aliança com Deus e entregava a alma dos filhos nas mãos do Diabo”.“ O reino de Satanás está construído sobre as colunas gêmeas “da ignorância e do erro” e, desse modo, “o abandono da ins­ trução familiar” era considerado um dos maiores pecados para “abrir os diques” da impiedade para que esta invadisse a sociedade.“ Os puritanos afirmavam: É bastante óbvio como os esforços sérios de pais e senhores piedosos podem contribuir para um amadurecimento ainda cedo, nos tenros anos, daqueles que estão sob sua supervisão. Isso se vê não somente na influência especial que exercem sobre eles, no que diz respeito à sua autoridade sobre eles, ao seu interesse por eles, à sua presença contínua com eles e às suas frequentes oportunidades de ajudá-los, mas também nos tristes efeitos que, em experiências deploráveis, descobrimos que são 0 resultado da omissão nesse dever.“

Os puritanos apresentavam a prática do culto doméstico como uma caracte­ rística do pai ideal. A vida da família liderada por Sir Thomas Abney (1640­ 1721), que foi prefeito de Londres, foi assim descrita: “Ali havia todos os dias de manhã e à noite os sacrifícios de oração e louvor e a leitura das Sagradas Escrituras [...] Pessoas que visitassem essa família [...] poderiam muito bem “Observe-se a alusão a Salmos 101.2. “ Leland Ryken, Worldly saints: the Ptiritans as they really were (Grand Rapids: Zondervan, 1986), p. 80 [edição em português: Santos no mvtndo: os puritanos como realm ente eram , 2. ed., tradução de João Rentes (São José dos Campos: Rei, 2013)]. “Thomas Manton, “Epistle to the reader”, in: Westminster Confession o f Faith (Glasgow: Free Presbyterian Publications, 2003), p. 10. “Henry Wilkinson et al., “To the Christian reader”, in: Westminster Confession o f Faith, p. 5. “Wilkinson et al., "To the Christian reader”, in: Westminster Confession o f Faith, p. 5.

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exclamar: ‘Esta não é outra coisa senão a casa de Deus, esta é a porta do céu’ [...] Durante toda a vida, ele foi um sacerdote em sua própria família, exceto quando acontecia de um pastor estar presente”.’* 0 culto doméstico era um exemplo marcante da doutrina da Reforma sobre 0 sacerdócio de todos os crentes. Os pais cristãos participavam da unção de Cristo para atuarem como profetas, sacerdotes e reis, o que faziam por meio da autoridade que Deus lhes outorgou para exercerem no lar (cf. Catecismo de Heidelberg, pergunta 32). Embora os puritanos ensinassem que de um modo especial Deus visita o culto público com sua presença (SI 87.2)“ e que 0 culto público é o único contexto para os sacramentos do batismo e da ceia do Senhor,” também ensinavam que o culto privado nos lares é essencial para a vida cristã diária.

Fundamentos bíblico s do culto dom éstico George Hamond (1620-1705) escreveu: “O Deus eterno, vivo e verdadeiro deve ser adorado por todos”. Ele comprovou isso com base em Salmos 22.27,28: "Todos os confins da terra se lembrarão e se converterão ao Senhor, e todas as famílias das nações se prostrarão diante dele. Porque o reino é do Senhor, é ele quem governa as nações”, e Salmos 66.4: “Toda a terra te adorará” (ARC).” A adoração não deve ser apenas “privada e solitária”, mas também “social” (SI 34.3; At 12.12).” A adoração não precisa estar confinada a um prédio es­ pecial, como se apenas o lugar de encontro da igreja fosse um espaço sagrado (Jo 4 .2 4 ).” Hamond afirmou: “E podemos acrescentar que existem muitos mandamentos de que devemos orar sem cessar e continuamente oferecer a Deus sacrifícios de louvor e que Deus deve ser adorado em todo lugar”.“ Que motivo ou direito temos, indagavam os puritanos, de excluir desse chamado à adoração os nossos lares e o tempo de nossas famílias? ^'Citado em Horton Davies, The worship o f the English Puritans (1948; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1997), p. 281. “David Clarkson, “Public worship to be preferred before private”, in: The works o f David Clarkson (1864; reimpr., Edinburg: Banner of Thith Ihist, 1988), 3:187-209 (primeira paginação); Oliver Heywood, “A family altar, erected to the honour of the eternal God; or, a solemn essay to promote the worship of God in private houses”, in: The whole works o f Rev. Oliver Heywood (Idle: John Vint, 1826), p. 324. “Richard Baxter, A Christian directory, in: The practical works o f Richard Baxter (reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2008), 1:410. “George Hamond, The case for family worship (1694; reimpr., Orlando; Soli Deo Gloria, 2005), p. 1. “Hamond, The case for family worship, p. 9. “Hamond, The case for family worship, p. 12. “Hamond, The case for family worship, p. 13.

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O direito de Deus ser adorado pela nossa casa está fundamentado em sua soberania sobre cada família. Thomas Doolittle (1630-1707) defendia que, uma vez que Deus é “o instituidor de todas as famílias”, “o proprietário de nossas famílias”, "o senhor e regente de vossas famílias” e o “benfeitor de vossas famílias” (Gn 2.21-24; Ef 5.22—6 .9 ), as famílias estão obrigadas a adorá-lo.^® Os puritanos viam o culto doméstico como um padrão de piedade exem­ plificado em todas as Sagradas Escrituras. Eles apresentavam aos leitores “os exemplos de Abraão, de Josué, dos pais de Salomão, da avó e da mãe de Timóteo, da mãe de Agostinho, cujo cuidado era o de alimentar não somente 0 corpo mas também a alma de seus filhos”.®® Thomas Manton escreveu: “A religião surgiu primeiro nas famílias, e ali o Diabo procura esmagá-la; as famílias dos patriarcas eram todas a igreja que Deus tinha no mundo por algum tempo, e [suponho que,] por isso, quando Caim saiu da família de Adão, a Bíblia diz que ele saiu da presença do Senhor (Gn 4 .1 6 )”.'''' Em Gênesis 18.19, o Senhor disse a respeito de Abraão: “Porque eu o es­ colhi, a fim de que ele ordene a seus filhos e à sua futura descendência que guardem o caminho do Senhor, para praticarem retidão e justiça, a fim de que 0 Senhor realize na vida de Abraão o que disse a respeito dele”. Henry comen­ tou: “Ele não somente orou com a família, mas a ensinou como um homem de conhecimento, na verdade ele lhe deu ordens como um homem em posição de autoridade e foi profeta e rei e também sacerdote em sua própria casa [...] Aqueles que esperam bênçãos na família precisam zelar pelo dever familiar”.'" Deus tem prazer em mostrar sua bondade aos homens, respondendo orações quando sabe que esses homens tornarão conhecidas a outros — espe­ cialmente aos seus filhos — suas experiências da bondade de Deus. Matthew Poole imaginou Deus dizendo: “E assim chegarei ao objetivo que procuro alcançar em todas as minhas obras, a saber, que sejam conhecidas para o bem de outros [...] os filhos dele e as pessoas de sua casa, que continuarão vivendo quando ele morrer. Ele gravará essas coisas com tanta diligência em suas mentes, que eles jamais as esquecerão”.^® Henry também observou as palavras “guardar o caminho do Senhor, para praticarem retidão e justiça”, e escreveu: “Abraão assumiu o cuidado e a tarefa de promover a religião prática em sua família. Ele não encheu a cabeça das pessoas de sua casa com questões de especulação intricada ou controvérsias “Thomas Doolittle, “How may the duty of daily family prayer be best managed for the spiritual benefit of every one in the family”, in: Puritan serm ons, 2:212-7. “Wilkinson et al., “To the Christian reader”, in: Westminster confession o f faith, p. 5. ■“’Manton, “Epistle to the reader”, in: Westminster confession o f faith, p. 9. ■“Henry, Commentary, 1:95. "^Poole, Commentary, 1:43.

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incertas, mas as ensinava [...] a serem sérias e devotadas na adoração a Deus e a serem honestas em seu procedimento com todos os homens”.“^ Os puritanos ensinavam que Jacó estava conduzindo sua família na ado­ ração, quando recebeu do Senhor uma revelação para ir a Betei e construir um altar ali (Gn 35.1-15), e ensinou e consagrou sua família e a dirigiu na adoração. Oliver Heywood (1630-1702) escreveu: “Assim como o santo Jacó, o famoso patriarca, foi um profeta para instruir a família na religião verdadeira e um rei para governá-la em nome de Deus, da mesma maneira um sacerdote deve erguer um altar, oferecer sacrifícios e adorar em nome da família e junto com ela; até mesmo o homem mais pobre que possui sua própria família deve ser profeta, sacerdote e rei em seu próprio lar”.“”

O dever do culto dom éstico Atualmente muitos cristãos veem as devocionais da família, aliás, até mesmo as devocionais pessoais, como assunto de liberdade cristã. Eles não veem isso como um dever ordenado por Deus, mas como uma oportunidade de exceder espiritualmente aquilo que é inquestionavelmente exigido por Deus. Hamond advertiu que, embora os cristãos de fato desfirutem de liberdade em Cristo, essa distinção entre dever e oportunidades de ir além do exigido não é diferente do erro católico-romano de “obras de supererrogação”, com as quais dispensara cristãos comuns de obedecer à Palavra de Deus e promovem alguns cristãos à condição de santos superespirituais, cujos méritos extraordinários obtêm indulgências para o membro comum da igreja.^® William Perkins escreveu que “o dever [da família] para com Deus é o culto e o serviço privados a Deus, os quais precisam ser estabelecidos e determinados em cada família”.^* Ele sustentava que esse era um dever obrigatório baseado: (1) no mandamento de ITimóteo 2.8: “Quero que os homens orem em todo lugar, levantando mãos santas, sem ódio nem discórdia”; (2) nos exemplos de Abraão (Gn 18.19), Josué (Js 24.15) e Cornélio (At 10.2); e (3) na necessidade da bênção divina, obtida por meio de adoração a fim de que a família prospere no amor e na unidade entre marido e mulher e em obediência dos filhos aos pais (SI 127 e 128).'*" Os puritanos também observaram os exemplos de Jó e Davi. De manhã, Jó reunia regularmente os filhos adultos para um sacrifício expiatório pelos '^Henry, Commentary, 1:95. ”Heywood, ‘‘A family altar”, in: Works, 4:303. ’’Hamond, The case for family worship, p. 19. ‘‘Perkins, “Oeconomie: or, houshold-government”, in: Works, 3:669. ‘'Perkins, “Oeconomie: or, houshold-government", in: Works, 3:669.

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pecados deles (Jó 1.5) Davi voltou do culto público e orou por uma bênção para os de sua casa (2Sm 6.20).“’ Josué 24.14,15 afirma: Agora, temei o Senhor e cultuai-o com sinceridade e com verdade; jogai fora os deuses a que vossos pais cultuaram além do Rio e no Egito. Cultuai o Senhor. Mas, se vos parece mal cultuar o Senhor, escolhei hoje a quem cultuareis; se os deuses a quem vossos pais, que estavam além do Rio (i.e., lá em Ur dos Caldeus], cultuavam, ou os deuses dos amorreus, em cuja terra habitais [i.e., aqui em Canaãj. Mas eu e minha casa cultuaremos o Senhor.

Hamond escreveu: “Não há dúvida de que servir ao Senhor inclui adorá-lo e tem esta intenção” (citando Êx 8.1 com 5.3; 20.5; Dt 11.16; Mt 4.10).“ Assim, mesmo que todo o Israel — inclusive os sacerdotes com seu culto no taber­ náculo — se desviasse de Deus, Josué estava, apesar disso, decidido a adorar a Deus com sua família. Hamond também apresentou aos pais o exemplo de Cristo, para que o imitem. Cristo reuniu regularmente seus discípulos, que eram sua família es­ piritual, para ensino a sós com eles (Mt 13.51; Mc 4.3 4 ), para dialogar sobre as perguntas deles (Mc 13.3,4; Lc 11.1), para oração (Lc 9.18) e para cantar louvores (Mt 26.30). Será que os pais farão menos por seus filhos na carne?’’ Heywood ainda fundamentou o dever do culto doméstico nos manda­ mentos gerais do apóstolo a “orar sem cessar” (ITs 5.17), "orar em todo lugar” (ITm 2.8) e a “orar em todo tempo com toda oração e súplica”, isto é, com todo tipo de oração (Ef 6 .18). Heywood afirmou: "Se a oração em todos os momentos, em todos os lugares e de todo tipo é um dever, com certeza a oração em família é um dever, pois necessariamente está incluída nessas categorias”.’^ William Perkins explicou que esse dever tem duas divisões principais. 1. Instrução diária na Palavra de Deus. Perkins afirmou que o primeiro compo­ nente do “culto doméstico a Deus” é “uma conversa sobre a Palavra de Deus para a edificação de todos os seus membros para a vida eterna”.“ Deve-se adorar a Deus mediante leitura e instrução diárias de sua Palavra. Por meio de perguntas, respostas e instruções, pais e filhos devem interagir diariamente “ Hamond, The case for family worship, p. 38. ^Heywood, “A family altar”, in: Mferfes, 4:317. "Hamond, The case for family worship, p. 60. ’‘Hamond, The case for family worship, p. 72-4. “Heywood, “A family altar”, in: Works, 4:312-3. “Perkins, “Oeconomie: or, houshold-government”, in: Works, 3:669-70.

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entre si sobre a verdade sagrada. Perkins citou Deuteronômio 6.6,7: “E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração; e as ensinarás a teus filhos e delas falarás sentado em casa e andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te”. Observando que essas palavras vêm logo após o Grande Mandamento de amar a Deus, Matthew Henry escreveu: “Aqueles que amam o Senhor Deus devem fazer o que puderem para fazer com que seus filhos se afeiçoem a ele [...] Aproveita todas as oportunidades para discorrer com aqueles ao teu redor a respeito das coisas divinas”.^ Os puritanos afirmavam que o objetivo dessa instrução era o amor e não apenas “um conhecimento mental, uma mera es­ peculação”, mas “um conhecimento íntimo, agradável e do coração”. As atividades que Deuteronômio 6 ordena são atividades diárias que acompanham o deitar-se de noite, o levantar-se de manhã, o sentar-se na casa e o andar pelo caminho. A Confissão de Westminster cita essa passagem bíblica como texto-prova quando afirma que “Deus deve ser adorado em todo lugar em espírito e em verdade — tanto diariamente no ambiente privado da família como também cada um sozinho e longe da vista dos outros, bem como nas reuniões públicas mais solenes” (21.6). Num lar ordeiro, essas atividades transcorrem em momentos específicos, regulares e constantes do dia. Um texto paralelo no Novo Testamento é Efésios 6.4: “E, vós, pais, não provoqueis a ira dos vossos filhos, mas criai-os na disciplina e instrução do Senhor”. Quando o pai está impossibilitado de se desincumbir pessoalmente desse dever, deve encorajar a esposa a executar esse preceito. Por exemplo, Timóteo se beneficiou grandemente de uma mãe e uma avó tementes a Deus. Matthew Henry escreveu que os pais devem criar os filhos “como cristãos”: “Instruí-os a ter receio de pecar e informai-os da totalidade do dever que têm para com Deus e animai-os a cumpri-lo”.^ 2. Oração e louvor diários diante do trono d e Deus. Perkins afirmou que a segunda parte do culto doméstico é “a invocação do nome de Deus com agra­ decimento pelos seus benefícios”.®^ Perkins citou Salmos 14.1,4. “O insensato diz no seu coração: Deus não existe. Todos se corrompem [...] e não invocam 0 Senhor!”, e ITimóteo 4.4,5. “Visto que todas as coisas criadas por Deus são boas, nada deve ser rejeitado se for recebido com ações de graças, pois são santificadas pela palavra de Deus e pela oração”. Além do mais, será que as famílias não cometem pecados todos os dias? Será que não devem buscar o perdão todos os dias? Será que Deus não as ^Henry, Commentary, 1:S86. '^Wilkinson et al., “To the Christian reader", in; Westminster confession o f faith, p. 6. “Henry, Commentary, 6:578. 'Terkins, “Oeconomie: or, houshold-government”, in: Works, 3:670.

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abençoa de muitas maneiras todos os dias? Será que não se deve reconhecer essas bênçãos todos os dias? Será que não devem reconhecer Deus diariamente em todos os caminhos delas, implorando-lhe que dirija seus caminhos? Será que não devem se entregar ao cuidado e proteção divinos todos os dias? Salmos 118.15 afirma: “Nas moradas dos justos, há um alegre cântico de vitória; a mão direita do Senhor age com poder”. Philip Henry (1631-1696), pai do célebre Matthew Henry, cria que esse texto fornecia a base bíblica para cantar salmos em farm'lia.“ Ele defendia que o cântico alegre procede das mora­ das de cada justo. Envolve cantar em família bem como cantar no templo. Por esse motivo, o som de alegria e salvação deve emanar diariamente dos lares. Mesmo pondo de lado argumentos bíblicos, os puritanos viam o culto doméstico como um dever imposto pela lei da natureza e reconhecido pela razão humana. Richard Baxter (1615-1691) defendia que Deus instituiu a fa­ mília e lhe deu “condições e oportunidades especiais” de treinar pessoas para servi-lo. Esses são “talentos” que Deus confiou a seus servos (Mt 25.14-30). Por isso, pais e mães devem ser servos fiéis e aproveitar a vida em família para a glória de Deus.^^

A implementação do culto dom éstico Além da orientação encontrada na famosa Confissão de Westminster, em 1647 a Igreja da Escócia adotou o D irectory fo r fam ily-w orship [Normas para o cul­ to doméstico].“ Douglas Comin escreve que o D irectory — que não deve ser confundido com o W estm inster D irectory fo r th e p u b lic w orship o f God [Nor­ mas de Westminster para o Culto Público] (1645) — não foi “resultado direto da Assembleia de Westminster”, mas na verdade foi “produzido e adotado pela Assembleia Geral da Igreja da Escócia”.“ Esse documento notável mostra o interesse dos escoceses pelo culto doméstico e oferece orientações concisas para sua implementação. Tendo em vista a influência mútua entre a teologia puritana inglesa e a teologia presbiteriana escocesa naquela época, podemos considerar que o D irectory fo r fam ily-w orship representa a postura geral do puritanismo britânico. Antes de tratar do culto doméstico, o D irectory fo r fam ily-w orship requeria que, individualmente e a sós, a pessoa se dedicasse à “oração e meditação [...] porque é por meio disso que, de uma maneira especial, se mantém comunhão ^“M atthew Henry, An account o f the life and death o f Mr. Philip Henry (London: J . Laurence. 1 7 1 2 ), p. 60 . ^’ B axter, Christian directory, in: Works, 1:4 1 0 -1 . “ “T h e d irectory for fam ily-w orship”, in: Westminster confession o f faith, p. 4 1 7 -2 2 . “ D ouglas W. C om in, Returning to the family altar: a commentary and study guide on The

directory for family worship (A berdeen: Ja m e s Begg Society, 2 0 0 4 ) , p. 7.

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com Deus e se alcança a correta preparação para todos os demais deveres”.“ Dessa maneira, os autores lembravam os meinbros da igreja de que o culto doméstico não pode substituir a devocional pessoal, e na realidade a oração e a meditação pessoais são preparativos essenciais para liderar a família. Hamond afirmou que o chefe da casa tem a responsabilidade e a liberdade de estabelecer a hora e o local do culto doméstico. Os pastores deveriam evitar dogmatismo sobre as circunstâncias desse culto.“ Apesar disso, Hamond escre­ veu: “Acrescento esta advertência: não useis de vossa liberdade como ocasião para a carne, para justificar vossa omissão ou vossa liderança desleixada do culto doméstico”.“ Planejamento e preparação para o culto doméstico são uma parte necessária dos deveres que Deus dá aos pais. O Directory ensinava que o culto doméstico diário costumeiramente incluía os seis seguintes elementos: (1) “oração”, (2) “louvores”, (3) “leitura das Escrituras”, (4) “catequização de uma forma simples”, (5) “conferências piedosas visando a edificação de todos” e (6) “admoestação e censura, por motivos justificados, por .parte daqueles que têm autoridade na faimlia”.“ Investiguemos cada um desses elementos junto com alguns conselhos práticos no espírito dos piuitanos.“ 1. “Oração.” Ore pela igreja, pela nação, pela família e por cada membro. As orações em família eram moldadas pelas suas experiências no culto público, conforme regulamentado no Westminster Directory for the public worship ofGod. Esse documento estabeleceu para a oração uma sequência com a seguinte ordem: adoração, confissão, petição por bênçãos espirituais, intercessão por missões mundiais, pela igreja perseguida, pela nação e pelo governo, e finalmente ações de graças.“ Com uso profuso da linguagem das Escrituras, Matthew Henry tam­ bém escreveu um guia de oração que muitos puritanos usaram.“ No estilo puritano, aqui seguem alguns conselhos sobre a oração em família. Seja breve. Com pouquíssimas exceções, não ore por mais de cinco minutos. Orações entediantes causam mais dano do que bem. Não ensine em suas orações; Deus não precisa da instrução. Seja simples sem ser superficial. Ore por coisas sobre as quais seus filhos saibam alguma coisa, mas não deixe “ “The directory for family-worship”, in: Westminster Confession o f Faith, p. 419. “Hamond, The case for family worship, p. lS-7. “Hamond, The case for family worship, p. 17, ““The directory for family-worship”, in: W estminster confession o f faith, p. 419. “Trechos desta seção foram adaptados de Joel R. Beeke, Family worship (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2009). ““The directory for the publick worship of God”, in: Westminster confession o f faith, p. 375-81. “Matthew Henry, A method for prayer with Scripture expressions proper to be used under each head, in: The complete works o f the rev. Matthew Henry (1855; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 1979), 2:1-95. Essa obra de Matthew Henry foi republicada como A method for prayer, edição de J. Ligon Duncan III (Fearn: Christian Focus, 1994).

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que suas orações se tomem triviais. Não reduza suas orações a petições ego­ cêntricas e superficiais. Seja direto. Exponha abertamente suas necessidades diante de Deus, apresente sua situação e peça misericórdia. A cada dia, mencione nominal e indi­ vidualmente os filhos adolescentes e os filhos menores e suas necessidades. Seja natural, mas também sério. Fale com clareza e reverência. Desperte seu coração para apegar-se a Deus fis 64.7). Orações sonolentas farão seus filhos dormir. Doolittle aconselhou assim os chefes do lar: “vinde orar tendo vós mesmos um coração exuberante e afeições despertadas; vosso calor poderá aquecê-los”.*’ Varie. Não ore pela mesma coisa todos os dias; isso se torna entediante. Diversifique a oração, lembrando e ressaltando os vários componentes da verdadeira oração, como invocar a Deus para que ouça suas orações, adorar a Deus por seus títulos e atributos, declarar sua humilde dependência e necessi­ dade, confessar os pecados da família, pedir compaixão (tanto material quanto espiritual) pela família, interceder por amigos, igrejas e nações, agradecer as bênçãos de Deus e bendizer a Deus por seu reino e glória. Combine esses ingredientes em diferentes proporções para obter variedade em suas orações. 2. "Louvores.” Louvores consistiam basicamente em cantar salmos, como no culto público, conforme prescrito na Confissão de Fé de Westminster, 21.5. Outros cânticos e hinos foram introduzidos para uso pessoal e familiar à me­ dida que a era puritana avançava. Entoe cânticos doutrinariamente puros. Por mais atraente que a melodia seja, não há desculpa alguma para cantar erros doutrinários. Sobretudo cante salmos, mas sem descuidar de hinos sadios. Cante de coração e com senti­ mento. Conforme Colossenses 3.23 afirma: “E tudo quanto fizerdes, fazei de coração, como se fizésseis ao Senhor e não aos homens”. Medite sobre as pa­ lavras que você está cantando. Ocasionalmente converse sobre uma expressão que é cantada. 3. “Leitura das Escrituras.” Enquanto a Igreja Católica Romana havia limitado totalmente as Escrituras à língua latina e ao controle pelos sacerdotes, os re­ formadores e os puritanos labutaram por levar a Bíblia a cada lar. O Catecismo Maior de Westminster indaga: “A Palavra de Deus deve ser lida por todos?”, e em seguida responde: “Embora nem todos tenham permissão de ler a Palavra em público à congregação, ainda assim pessoas de todas as condições têm o dever de lê-la individualmente e com sua família: e para este fim as Sagradas “Doolittle, "How may the duty of daily family prayer be best managed for the spiritual be­ nefit of every one in the family”, in: Puritan serm ons, 2:239.

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Escrituras devem ser traduzidas das línguas originais para as vernáculas” (pergunta 156). Tenha um plano. Leia dez ou vinte versículos do Antigo Testamento de manhã e dez a vinte do Novo Testamento à noite. Ou leia uma série de pará­ bolas, milagres ou trechos históricos. Apenas se assegure de ler a Bíblia toda dentro de um determinado período. Envolva a família. Cada membro da família que é capaz de ler deve ter uma Bíblia para acompanhar a leitura. Imprima o padrão, lendo as Escrituras com expressão, como o livro vivo que é e “como se tivesse vida própria”. Designe vários trechos para serem lidos pela sua esposa e filhos. Ensine seus filhos a ler com clareza, compreensão e reverência. Dê uma breve palavra de explicação conforme necessário. 4. “Catequização de uma forma simples.” Os catecismos foram escritos para que crianças e adultos não instruídos pudessem crescer com uma amplitude e profundidade de conhecimento cada vez maiores.™ Não empurre a tarefa de catequese para a igreja. Matthew Henry escreveu: “A catequese pública terá pouco valor sem a catequese na família’7 ‘ Quem já trabalhou com crianças sabe que aquelas crianças cujos pais trabalham com elas em casa aprendem bem mais do que as que estudam apenas nos encontros na igreja. Na introdução à Confissão e aos Catecismos de Westminster, Thomas Manton escreveu: “Pastores e pais devem educar as crianças com todo cuidado enquanto elas ainda são moldáveis e, como a cera, capazes de assumir qual­ quer forma e marca com o conhecimento e o temor de Deus, instilando nelas em pouco tempo os princípios de nossa fé santíssima, à medida que elas são atraídas a um breve resumo dos Catecismos e, dessa maneira, todos eles são armazenados na consciência!” Manton comparou as perguntas e respostas de um catecismo bíblico às sementes de verdade que crescem na memória, a uma rédea que restringe o pecado e à água gelada que esfria as paixões fer­ ventes das concupiscências juvenis.™ Usar os catecismos não somente ajuda as crianças, mas também ajuda o pai ou a mãe, que com frequência não têm treinamento teológico. Também protege aquele que está ensinando em casa de perder de vista doutrinas centrais, de ficar enredado em textos difíceis das Escrituras e de cair em erro. Baxter escreveu: "Mas, de modo geral, a maneira mais segura, mais humilde, mais sábia e mais disciplinada para o chefe da família é deixar de lado controvérsias e trechos ”De$sa maneira o Catecismo Menor, o Catecismo Maior e a Confissão constituem uma es­ cada com três degraus. "Henry, ‘‘Family religion”, in: Works, 1:252. ^Manton, “Epistle to the reader”, in: Westminster confession o f faith, p. 10.

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obscuros das Escrituras e ensinar as poucas e claras doutrinas necessárias comumente contidas nos catecismos e orientar em questões práticas e úteis’7^ 5 “Conferências piedosas visando a edificação de todos.” A palavra “confe­ rências” não se refere a um encontro com pregadores, mas à comunhão e à conversa espiritual usuais entre crentes. O culto doméstico é mais um tempo de dialogar e aplicar, e não um tempo de pregar. O Directory elaborou mais sobre o assunto mediante consideração de possíveis casos que surjam das Escrituras: • Se algum pecado é reprovado, analise-o com a família a fim de estarem atentos contra ele. • Se existe ameaça de algum juízo divino, conversem a respeito a fim de temê-lo e se guardarem do pecado. • Se existe exigência de algum dever, estimulem-se uns aos outros para que, na dependência de Cristo, ele os capacite a cumprir tal dever. • Se uma promessa oferece algum consolo, dialoguem sobre como apli­ cá-la a seu coração.'* O culto doméstico oferece uma grande oportunidade para as crianças fazerem suas perguntas. O Directory afirma; “Em tudo isso a liderança deve caber ao chefe da casa, e qualquer membro da família pode apresentar uma pergunta ou dúvida para ser resolvida’7® Seja claro no sentido. Pergunte a seus filhos se entendem o que você está lendo. Seja claro na aplicação de textos bíblicos. Encoraje o diálogo da família em tomo da Palavra de Deus em consonância com a prática israelita de perguntas e respostas em casa (cf. Êx 12; Dt 6; SI 78). De modo especial, incentive os adolescentes a fazer perguntas; extraia-as deles. Se você não souber as respostas, diga-lhes que não sabe e estimule-os a procurar respostas. Tenha às mãos um ou mais bons comentários, como os de João Calvino, Matthew Poole, Matthew Henry e John GUI. Seja puro na doutrina. Não abandone a exatidão doutrinária quando estiver ensinando filhos pequenos; tenha como objetivo a simplicidade e o ensino correto. Seja relevante na aplicação. Quando for apropriado, não tenha medo de compartilhar suas experiências, mas faça-o com simplicidade. Empregue ilustrações concretas. Idealmente, conecte a instrução bíblica com aquilo que você ouviu recentemente em sermões. '^Baxter, Christian directory, in: Worfes, 1:414. ”'The directory for family-worship”, in: Westminster confession o f faith, p. 419. ”“The directory for family-worship", in: Westminster confession o f faith, p. 420.

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Exija atenção. Provérbios 4.1 afirma: "Filhos, ouvi a instrução do pai e ficai atentos para que alcanceis o entendimento”. Pais e mães têm verdades importantes a transmitir. Você precisa exigir que as verdades de Deus sejam ouvidas em seu lar. Isso poderá incluir a repetição de afirmações no início como: “Filho, sente-se direito e olhe para mim enquanto estou falando. Esta­ mos falando sobre a Palavra de Deus, e Deus merece ser ouvido”. Não deixe as crianças saírem de seus assentos durante o culto doméstico. 6. “Admoestação e censura, por motivos justificados, por parte daqueles que têm autoridade na família.” Não tenha receio de exortar seus filhos com convites calorosos e amorosos a confiar no Senhor e lhe obedecer. Tenha uma atitude afetuosa. Provérbios emprega o tempo todo a expressão m eu filho, mostrando 0 calor, o amor e a urgência nos ensinos de um pai temente a Deus. Quando você, na condição de pai-amigo, precisa cuidar das feridas de seus filhos, faça-0 com amor genuíno. Diga que você precisa lhes transmitir todo o conselho de Deus porque você não suporta a ideia de passar a eternidade longe deles. Meu pai firequentemente nos dizia com lágrimas: “Filhos, não suportarei sentir a falta de nenhum de vocês no céu”. Diga a seus filhos: “Permitiremos que vocês tenham todos os privilégios que uma Bíblia aberta permite que demos a vocês — mas, se dissermos não para vocês, vocês precisam saber que isso é fruto de nosso amor”. Durante o culto doméstico, procure ser breve. Não provoque seus filhos. Thomas Lye (m. 1684) afirmou: “Nada causa mais tédio ao espírito de uma criança do que discursos longos e enfadonhos’7* Samuel Lee escreveu: “Instrui a família com frequência, concisão e clareza [...] Mas em todas as instruções que deres, tem o cuidado de evitar prolixidade entediante; compensa a brevidade de tua fala mediante repetição [...] Longas falas são um peso demasiado para a pequena memória deles, e essa imprudência pode levá-los a ter repugnância do maná espiritual”.^^ Se você realiza o culto doméstico duas vezes ao dia, tente dez minutos de manhã e vente e cinco à noite. Almeje a regularidade. Não procure abarrotar diariamente os seis elementos acima numa única reunião. Tentar fazer demais cansará a todos. Lee escreveu: “De modo se­ melhante, recomenda-se variar as atividades da religião: às vezes cantar e às vezes 1er, às vezes repetir, às vezes catequizar, às vezes exortar [...] O tempo despendido com essa variedade de atividades parecerá curto’7® Por exemplo. 'Thomas Lye, “By what Scriptural rules may catechising be so managed as that it may become most universally profitable?", in: Puritan serm ons, 2:120. ’T.ee, “What means may be used towards the conversion of our carnal relations?”, in: Puritan serm ons, 1:150. '“Lee, “What means may be used towards the conversion of our carnal relations?”, in: Puritan sermons, 1:156.

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no café da manhã o pai pode ler uma breve devocional e orar, no almoço a mãe pode ajudar as crianças a aprender o catecismo ou memorizar um versículo bíblico, e no jantar o pai pode ler um trecho das Escrituras, conduzir uma conversa sobre como aplicá-lo e levar a família a louvar e orar. Depois do culto doméstico, quando você for dormir, ore para que Deus abençoe o culto doméstico. "Senhor, usa a instrução para salvar nossos filhos e leva-os a crescer na graça para que ponham em ti a sua esperança. Usa os cânticos em que louvamos o teu nome para fazer com que as almas imortais deles estimem teu nome, teu Filho e teu Espírito. Usa nossas orações vaci­ lantes para levar nossos filhos ao arrependimento. Senhor Jesus Cristo, com tua Palavra e teu Espírito sopra suavemente sobre nossa família durante este tempo de adoração. Faz com que sejam momentos vivifícadores”.

O bjeções ao culto dom éstico Os puritanos previam que algumas pessoas levantariam objeções a momentos regu­ lares de culto doméstico. Seguem algumas dessas objeções e respectivas respostas. • Não existe na Bíblia nenhum a ordem explícita para ter culto doméstico. Em­ bora não haja nenhuma ordem explícita, os textos citados acima deixam claro que Deus quer que as famílias o adorem todos os dias. A Bíblia apresenta tanto regras gerais de que a oração deve ocupar plenamente a nossa vida quanto exemplos específicos de oração na família. Deus espera que apliquemos isso a nossas circunstâncias particulares.^’ • O culto doméstico é só um a característica dos puritanos. Pelo contrário, a ordem para o culto doméstico procede das Sagradas Escrituras e, por conse­ guinte, de Deus e não de homens. Embora os puritanos de fato insistissem nisso, eles o faziam apenas pelo zelo de obedecer às Escrituras. Além do mais, os puritanos eram alunos estudiosos da história e procuravam permanecer na corrente predominante da fé cristã enquanto as Escrituras lhes permitissem fazê-lo. O historiador Philip Schaff escreveu: “Crisóstomo [c. 349-407] instou que cada casa deveria ser uma igreja, e cada chefe de família deveria ser um pastor espiritual, lembrando-se de que terá de prestar contas até de seus filhos e empregados”.®“ O culto doméstico não foi uma inovação puritana. • Esse tipo de planejam ento procura controlar e limitar o Espírito de Deus. É verdade que, como o vento, o Espírito de Deus age quando lhe agrada, e não controlamos nem compreendemos seus caminhos (Jo 3.8). Mas Deus exige que ”Heywood, “A family altar”, in: Works, 4:328. “Philip Schaff, History o f the Christian church (1910; reimpr., Grand Rapids: Eerdmans, 19811, 3:545.

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nos instiguemos a apegar-nos a ele (Is 64.7; 2Tm 1.6). Fazemos isso ao nos co­ locar regular e disciplinadamente nos caminhos em que ele trafega — os meios de graça. Caso aceita, essa objeção subverteria todas as ordens de adoração.®’ • N ossa fa m ília n ã o tem tem p o p a ra isso. Se você tem tempo para atividades recreativas e prazeres, mas não tem tempo para o culto doméstico, pense em 2Timóteo 3.4,5, que adverte acerca de pessoas que amam mais os prazeres do que a Deus; têm uma aparência de piedade, mas negam o poder dela. O tempo tirado de atividades familiares e de outras ocupações para buscar a bênção de Deus nunca é perdido. Se levarmos a Palavra de Deus a sério, diremos “Não consigo me dar o luxo de n ã o dar prioridade a Deus e à sua Palavra em minha família”.®^ Certa vez, Samuel Davies (1723-1761) afirmou: “Se tivestes sido formados apenas para este mundo, haveria algum peso nessa objeção, mas como soa estranha uma objeção dessas vir de um herdeiro da eternidade! Peço que me digais: para que recebestes vosso tempo? O principal motivo não é para que possais vos preparar para a eternidade? E não tendes tempo algum para aquilo que é o maior interesse de vossa vida?”.®® • N ão ten h o jeito p a ra c o n d u z ir n o ssa fa m ü ia n o cu lto dom éstico . Tal objeção pode ser resultado de timidez de falar diante dos outros ou de desconheci­ mento sobre o que e como falar.®* Heywood encorajou assim os seus leitores: Deus não exige talento, eloquência ou inclinação para falar; os sacrifícios a Deus são um espírito quebrantado [SI 51.17] [...] Se não consegues orar, será que não podes cair de joelhos e dizer a Deus que não consegues orar? Não consegues desejar que ele te ajude a orar? Não consegues somente dizer como o pobre publicano: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, um pecador”? Se não for obstinação, mas fraqueza. Deus te capacitará e muito, seu Espírito ajudará em tuas incapacidades, tanto 0 que dizer quanto como orar.*®

Se essa é sua condição, deixe-me dar-lhe umas poucas sugestões no espírito dos puritanos. Leia o que James W. Alexander ou Matthew Henry escreveram sobre o culto doméstico.®® Em segundo lugar, peça orientação a pastores e *'Heywood, “A family altar”, in: Works, 4:329-30. “Cf. Heywood, “A family altar”, in: Works, 4:338-9. “Samuel Davies, “The necessity and excellence of family religion”, in: Sermons on impor­ tant siútjects (New York: Robert Carter and Brothers, 1853), p. 60. “Heywood, “A family altar”, in: Works, 4:337,343. “Heywood, “A family altar”, in: Worfcs, 4:344. “Esses livros foram recentemente reimpressos como James W. Alexander, Thoughts on fa­ mily worship (1847; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1998); Matthew Henry, Family religion: prindples for raising a godly family (reimpr., Fearn, Escócia: Christian Focus, 2008).

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pais tementes a Deus. Pergunte se podem visitar seu lar, mostrando-lhe como dirigir 0 culto doméstico ou então se podem observar como você o faz e em seguida apresentar sugestões. Em terceiro, simplesmente comece. Eu suponho que vocês já estejam lendo as Escrituras e orando juntos. Se não estiverem, comecem a fazê-lo. Se estão lendo e orando juntos, acrescente uma ou duas perguntas ao trecho lido e cantem alguns salmos ou hinos. Vá aumentando um ou dois minutos por semana até que cheguem a 25 minutos. Contudo, pode ser que sua hesitação em dirigir o culto doméstico não seja resultado de falta de confiança ou conhecimento, mas uma consciência de que sua vida não está em ordem com Deus. Você precisa se arrepender de seus pecados e confiar no Senhor Jesus Cristo. Matthew Henry escreveu: “Segui o método certo: primeiro colocai Cristo no trono de vosso coração e então estabelecei uma igreja de Cristo em vossa casa. Deixai que Cristo habite em vosso coração pela fé e depois disso deixai-o habitar em vossa casa [...] E, quando vosso coração se abrir para Cristo — assim como o de Lídia se abriu — permiti que vossa casa — assim como a casa de Lídia — também se abra para ele (At 16.14,15)”.*’’ • A lg u n s dos m em b ro s d e n o ssa fa m ília n ã o vão p a rticip a r. Pode haver lares em que é difícil realizar o culto doméstico. Mas esses casos são raros. Se você tem filhos intratáveis, siga uma regra simples: não ler as Escrituras, não cantar e não orar significa não tomar a refeição. Diga: “Nesta casa serviremos ao Senhor. Todos respiramos, portanto em nosso lar cada um precisa louvar ao Senhor”. Salmos 150.6 não dá espaço para tal exceção, nem mesmo para filhos não convertidos. Ali diz: “Todo ser que respira louve o Senhor. Aleluia! ”. Heywood nos desafia: “Quem é o dono da casa, tu ou eles? [...] Se essa causa é de Deus, no nome e na força de Deus apropria-te dela, e ele estará do teu lado; no cumprimento do dever não temas o homem”.*® • N ão q u erem o s s e r h ip ó crita s. É possível que alguns dos membros de nossa família não sejam convertidos, e Deus odeia a oração dos ímpios (Pv 15.8). Mas um pecado — orar sem ser convertido — não justifica outro — não orar de jeito nenhum. A atitude daquele que levanta essa objeção é perigosa. Uma pessoa não convertida talvez jamais use sua condição de não convertido para justificar a negligência desse dever. Seu coração sem a graça não é desculpa para que não ore. Não encoraje seus filhos a dar essa desculpa para evitar o culto doméstico. Enfatize a necessidade que eles têm de usar cada um dos meios de graça. Será que esse não pode ser o meio da sua conversão?®’ *'Henry, “Family religion”, in: Works, 1:262-3. *®Heywood, "A family altar”, in: Works, 4:336. '"Heywood, “A family altar”, in: Works, 4:329-30.

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Motivações para o culto dom éstico Os puritanos ensinavam que o culto doméstico não é somente um dever diante de Deus, mas também um prazer gerado por convicções profundas e sinceras partilhadas por todos os que amam e temem o Senhor. • O b em -esta r etern o d e seu s a m a d o s. Deus emprega meios para salvar almas. 0 mais comum é ele usar a pregação de sua Palavra. Mas ele também pode usar 0 culto doméstico. Matthew Henry escreveu: “Considera em especial aquilo para o qual eles [teus filhos] estão destinados em outro mundo: eles foram criados para a eternidade. Cada um de teus filhos tem uma alma preciosa e imortal que precisará ficar para sempre no céu ou eritão no inferno de acordo com a preparação que receber no estado presente — e talvez muito em breve ela tenha de passar para aquele mundo de e s p ír ito s C o m o você tem prepa­ rado sua família para a eternidade? • O desejo d e q u e su a fa m ília g lo rifiq u e a D eu s e ten h a p ra z e r n ele. Perkins afirmou que as famílias que não realizam culto doméstico são como "porcos” que engolem avidamente a comida, mas jamais olham para as mãos que a trouxeram para eles. Por outro lado, ele lembrou que “aquelas famílias em que se presta esse culto a Deus são (por assim dizer) pequenas igrejas, de fato até mesmo uma espécie de paraíso na terra”.’* Matthew Henry escreveu: “É muito desejável ter a presença graciosa de Deus conosco em nossas famílias, aquela presença que é prometida ‘onde dois ou três se reúnem em meu nome’”.’^ Pais piedosos desejam glorificar a Deus e buscar sua face. Será que sua família não tem motivo algum de agradecimento a Deus? Vocês não têm problema algum para juntos trazerem à presença do Senhor? Henry afirmou: “Misericórdias na família e aflições na família são ambas convocações à reli­ gião na família”.’^ • A m o r p ela igreja e p elo rein o d e D eu s. Salmos 78.5,6 afirma; “Porque ele estabeleceu um testemunho em Jacó e instituiu uma lei em Israel, ordenando aos nossos pais que os ensinassem a seus filhos; para que a futura geração os conhecesse, para que os filhos que nasceriam se levantassem e os contassem a seus filhos”. Henry comentou que Deus “designou que os pais devem educar os filhos no conhecimento da lei divina [...] para que, quando uma geração de servos e adoradores de Deus se vai, outra geração venha, e a igreja, assim “Henry, “Family religion”, in: Works, 1:253. ’‘Perkins, “Oeconomie: or, houshold-govemment”, in: Works, 3:670. ’^Henry, “Family religion”, in: Works, 1:258. “Henry, Commentary, 3:503 (SI 101).

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como a terra, permaneça para sempre e, dessa maneira, o nome de Deus entre os homens seja como os dias do céu”/'' Thomas Manton desafiou os pais a considerarem o seguinte: “gerareis filhos e tereis famílias somente por causa do mundo e da carne” ou “educareis a criança para Deus e governareis a família como uma sociedade santificada?”. Você é 0 chefe da casa, e Deus o chamará a prestar contas. Mães, aqui vocês têm uma oportunidade especial para o bem eterno. Manton escreveu: Especialmente as mulheres devem ser cuidadosas com esse dever, pois, visto que são elas que estão mais próximas dos filhos e surgem oportunidades precoces e frequentes de instruí-los, esse é o principal serviço que podem prestar a Deus neste mundo, sem a possibilidade de um trabalho mais público [funções de autoridade pública]. E sem dúvida muitos excelentes magistrados têm sido enviados à Commonwealth [república que teve curta duração na Inglaterra], muitos excelentes pastores à igreja e muitos santos preciosos ao céu por meio de preparativos propícios de uma santa educação que talvez tenha sido dada por uma mulher que se achava inútil ou inservível para a igreja.”

Bendita é a igreja em que o culto doméstico acontece nos lares! Nesse lugar, 0 pastor não precisa ficar exausto tentando fazer ao mesmo tempo a obra de muitos pais espirituais. Membros de igreja bem catequizados pelos pais “con­ seguirão ler outros livros com mais compreensão, ouvir sermões com mais proveito, ter comunhão cristã com mais discernimento e se apegar à doutrina de Cristo com mais firmeza do que você provavelmente jamais fará por qual­ quer outro meio”, Manton afirmou.®® Pais piedosos querem dar à igreja filhos e filhas espiritualmente resolutos. Ore para que seus filhos e filhas sejam colunas na igreja. Bendito é o pai ou mãe que um dia pode ver seus próprios filhos e filhas no meio da multidão de adoradores. O culto doméstico é o alicerce desse futuro.

Conclusão Liderança fiel e culto doméstico são a mão direita e esquerda da piedade no lar. O culto doméstico estabelece a estrutura de piedade no lar. A fidelidade enche essa estrutura com vida e poder. Nunca faça separação entre as formas exteriores de adoração e a prática pessoal do temor a Deus. George Hamond adverte que sua vida será “uma perigosa pedra de tropeço” se aqueles que

®^Henry, Commentary, 3:434 (SI 78.1-8). ’^Manton, "Epistle to the reader” , Westminster confession o f faith, p. 10. ’^Manton, “ Epistle to the reader” , Westminster confession o f faith, p. 11-2.

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estão em nossos lares “ouvirem você falar nas línguas de anjos quando está de joelhos”, mas, assim que o culto acaba, ouvirem você “expressar seu mau humor com palavras amargas e injuriosas ou o observarem a expelir palavras ultrajantes de orgulho ou destempero”.’^ Por outro lado, tentar cultivar a piedade em seu lar sem a estrutura do culto doméstico seria como procurar viver durante o inverno numa casa sem paredes nem telhado. Precisamos de estrutura, hábitos e disciplina em nossa vida. Conforme Thomas Brooks (1608-1680) afirmou: “Uma família sem oração é como uma casa sem telhado, aberta e exposta a todas as tempestades do céu”.

’^Hamond, The case for family worship, p. xviii.

Capítulo 54 □□□□□□DOaaaDDDDaDDDDDQQaaaaannnD□□□□□□□□□□□□□□□□□□□DO□□□□□□

Matthew Henry e um método prático de oração diária □□□□g g □□□□□□□□□□□□□□□n a D agan n n n n n □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□

Q uando D eus p reten d e tratar seu povo com gra n d e m isericórdia, a p rim eira coisa q u e faz é pô-lo a orar.

Matthew Henry'

Poucos comentaristas da Bíblia são tão conhecidos quanto Matthew Henry (1662-1714). O Comentário bíblico Matthew Henry continua a ser reimpresso, embora o próprio Henry tenha morrido depois de completar o comentário de Gênesis até Atos, sendo que o restante foi escrito por amigos que se basearam em suas anotações. O grande evangelista George Whitefield (1714-1770) lia repetidamente em seus momentos devocionais todo o comentário de Henry sobre as Escrituras e o considerava alimento nutritivo para sua alma. Mas, apesar de toda a fama de seus comentários, pouquíssimas pessoas sabem que Henry também escreveu um livro sobre oração que esteve entre os mais vendidos durante um século e meio.^ E, embora seus comentários sejam lidos ao redor do mundo desde os Estados Unidos até as Filipinas, muitas pessoas não conhecem muito da vida de Henry. Matthew Henry foi um puritano inglês nascido no mesmo ano em que os pastores puritanos foram expulsos da Igreja da Inglaterra por se negarem a aceitar as formas prescritas de culto. Seu pai, Philip Henry (1631-1696), já ‘Citado em The com plete gathered gold, compilação de John Blanchard (Darlington: Evangelical, 2006J, p. 462. ^“A method o f prayer, da autoria de Matthew Henry, foi, devido à sua extrema popularida­ de, um clássico que durante cento e cinquenta anos passou por mais de trinta edições” (Hughes Oliphant Old, “The Reformed daily office: a Puritan perspective”. Reformed Liturgy and Music 12, n. 4 [1978]: 9).

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havia perdido o púlpito em 1661. O período da década de 1660 à de 1680 foi um tempo sombrio de perseguição aos puritanos. Embora com saúde frágil, cedo na vida Matthew Henry se distinguiu iníelectualmente lendo a Bíblia so­ zinho quando tinha apenas três anos de idade. Inicialmente estudou para ser advogado. Mas o Senhor tinha outros planos para ele. Dos 24 aos 50 anos de idade, Henry serviu como pastor de uma igreja em Chester, tendo sido ordenado numa cerimônia particular por pastores presbiterianos, como Richard Steele (1629-1692). A igreja começou em lares, mas com o passar do tempo cresceu até ter 350 membros comungantes mais participantes. Henry passava oito horas por dia estudando, às vezes se levantando às quatro horas da manhã. Além de servir à sua própria igreja, todos os meses pregava em cinco vilarejos próximos e a presos. A primeira mulher de Henry morreu em trabalho de parto, e três dos filhos que teve com sua segunda mulher morreram ainda bem pequenos. Henry começou a escrever seu comentário bíblico aos 41 anos de idade, baseando-se no celeiro de seus anos de pregação expositiva e de pesquisas em hebraico, grego, latim e francês. Ele passou os dois últimos anos da vida servindo uma proeminente igreja em Londres. Henry faleceu depois de cair de seu cavalo, deixando a tarefa de escrever seu comentário sobre as Epístolas do Novo Testamento a treze de seus amigos de ministério.^ Em 1710, Henry publicou A method for prayer with Scripture expressions proper to be used under each head [Um método de oração com expressões escritunsticas de uso apropriado e organizadas por tópicos].“ Em 1712, ele pregou sermões que foram publicados sob o título Directions for daily com m union with God [Orientações para a comunhão diária com Deus].* Esses livros revelam a paixão de Henry pela espiritualidade bíblica, pois era incrivelmente difícil para um pastor ocupado e autor de um enorme comentário bíblico encontrar tempo para escrever também sobre a oração. Consideraremos as orientações sobre a oração, que Henry oferece em seu segundo livro, e então passaremos para seu método de orar as Escrituras. ^Joel R. Beeke; Randall J. Pederson, Meet the Puritans: with a guide to m odem reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), p. 323-8 [edição em português: Paixão pela pureza: conheça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 2010)]; J. Ligon Duncan III, “A method for prayer by Matthew Henry (1662-1714) ”, in: Kelly M. Kapic; Randall C. Gleason, orgs., The devoted life: an invitation to the Puritan classics (Downers Grove: InterVarsity, 2004). 239-40. ^Matthew Henry, The complete works o f the Rev. Matthew Henry (1855; reimpr., Grand Rapids: Baker, 1979), 2:1-95. Apesar do título Complete works [Obras completas], aí não estão incluídos seus comentários nem os sermões, que foram recentemente publicados com o título Matthew Henry's unpublished serm ons on the covenant o f grace, edição de Allan Harman (Feam: Christian Focus, 2002). ’Matthew Henry, The complete works o f the Rev. Matthew Henry (1855; reimpr., Grand Rapids: Baker, 1979), 1:198-247. Tanto A method for prayer quanto Directions for daily communion with God foram republicados como um único livro: Matthew Henry, A method for prayer, edição de J. Ligon Duncan III (Fearn: Christian Focus, 1994).

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Orientação para orar o dia todo Henry escreveu em seu diário: “Adoro orar. É isso que afivela toda a armadura do cristão”.®Visto que o cristão precisa usar a armadura de Deus o tempo todo, precisamos orar sem cessar. De acordo com Henry, o acesso que em Cristo os cristãos têm a Deus lhes concede: 1. “Um companheiro à disposição em todos os seus momentos de solidão, de modo que nunca estão sozinhos quando a sós. Será que precisamos de melhor companhia do que comunhão com o Pai?” 2. “Um conselheiro à disposição para todas as suas dúvidas [...] um orien­ tador (SI 73.24) que prometeu nos guiar com os olhos, nos conduzir pelo caminho que devemos seguir.” 3. “Um consolador à disposição para todas as suas tristezas [...] para apoiar espíritos deprimidos e ser a força para o coração desanimado.” 4. “Um suprimento à disposição em todas as suas necessidades. Quem tem acesso a Deus tem acesso a uma fonte abundante, um tesouro inesgo­ tável, uma mina riquíssima.” 5. “Um apoio à disposição em todos os seus fardos. Eles têm acesso a Deus como Adonai [meu Senhor], minha escora e a força do meu coração (SI 7 3 .2 6 ).” 6. “Um abrigo à disposição em todos os seus perigos, uma cidade de refúgio bem à mão. O nome do Senhor é uma torre forte (Pv 18.10).” 7. “Força à disposição em tudo que fazem na labuta e na luta. Ele é o braço [deles] a cada m anhã (Is 3 3 .2 )”. 8. “Salvação garantida por uma fiança vantajosa e sem fraude [...] Se ele nos guia assim por seu conselho, também nos receberá na glória.”’’ Uma vez que Deus se fez acessível em tanta profusão, precisamos ir a Deus durante todo o dia. Henry escreveu: “Davi se dedicou solenemente ao dever de orar três vezes ao dia, como Daniel também fez: ‘À tarde, de manhã e ao meio-dia me queixarei e me lamentarei’ (SI 55.17). E ele não acha isso suficiente, mas ‘Sete vezes ao dia eu te louvo’ (SI 119.64)”.®De conformidade com isso Henry escreveu três estudos com orientações sobre a oração: começar o dia com Deus, passar o dia com Deus e terminar o dia com Deus. ‘J. B. Williams, The lives o f Philip and Matthew Henry (Edinburgh: Banner of Tfuth Thist, 1974), 2:210, 'Henry, The covenant o f grace, p, 200. »Henry, Communion with God, in: Works, 1:199.

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Primeira diretiva: comece cada dia com Deus Davi escreveu em Salmos 5.3: “Ó Senhor, de manhã ouves minha voz; de ma­ nhã te apresento minha oração e fico aguardando”. Henry escreveu: “É sábio e imperioso de nossa parte iniciar cada dia com Deus”. Ele passou boa tarde de seu estudo motivando-nos a orar. Henry nos lembrou de que podemos orar com certeza de que "onde quer que Deus encontre um coração que ora, ali se encontrará um Deus que ouve as orações”. Se oramos a Deus como Pai por meio de Cristo, o Mediador de acordo com a vontade de Deus revelada na Bíblia, então podemos saber que ele nos ouviu e responderá de acordo com sua bondade.’ Deus requer que oremos para nos lembrar de sua autoridade sobre nós e de seu amor e compaixão conosco. Sempre temos algo para falar com Deus. Ele é um amigo precioso, de modo que é prazeroso conhecê-lo em pessoa e viver com ele em intimidade. É também o nosso Senhor e de tudo que diz respeito à nossa vida. Será que um servo não falará com seu senhor? Será que um dependente não falará com seu mantenedor? Será que alguém em perigo não conversará com seu defensor?“ Que nenhum obstáculo impeça você de vir a Deus. Embora Deus esteja no céu, ele ouvirá os seus clamores vindos das profundezas (SI 130.1). Em­ bora Deus seja temível, ele concede aos crentes o Espírito de adoção para que tenham liberdade com ele (Rm 8.15). Sim, Deus já sabe aquilo de que você precisa, mas exige suas orações para ser glorificado e para prepará-lo para receber misericórdia (Ez 36.37,38). Embora você esteja ocupado com muitas coisas, só uma é necessária: andar com Deus em paz e em amor.“ Henry aconselhou, quando se inicia um período de oração, dirigir as ora­ ções com “pensamento fixo e mente bem concentrada”, como um arqueiro que atira uma flecha com uma mão firme e um olho fixo no alvo. O alvo de nossas orações é sempre “a glória de Deus e nossa própria e verdadeira felicidade”, as quais, confornie Henry com alegria nos lembrou, na aliança da graça Deus prazerosamente “entrelaçou” num único objeto indivisível, “de modo que, ao buscarmos sua glória, concreta e efetivamente buscamos nossos próprios e verdadeiros interesses”. Assim como um atirador mira com um olho enquanto fecha 0 outro, de igual maneira na oração precisamos “recolher pensamentos divagantes”. Quando você ora, feche o olho para a glória e o louvor dos ho­ mens (Mt 6.2) e para o esplendor e as honras deste mundo (Os 7.14).“ À luz das três primeiras petições do Pai-Nosso, Henry escreveu: ’Henry, Communion wtth God, in: Works, 1:199-200. '“Henry, Communion with God, in: Works, 1:201-2. "Henry. Communion with God, in: IVorfes, 1:203-4. '^Henry, Communion with God, in: Works, 1:204-5.

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Não permitais que o eu, o eu cainal seja a fonte e o centro de vossas orações, mas Deus; que o olho da alma esteja fixado nele como vosso objetivo supremo em todas as vossas súplicas a ele; que a atitude habitual de vossa alma seja esta: trazer renome e louvor para o vosso Deus; e que vosso propósito em todos os vossos desejos seja este: que Deus seja glorificado e, por causa disso, que todos eles sejam dirigidos, determinados, santificados, e quando necessário, que Deus prevaleça sobre eles.**

Assim como uma carta precisa ser devidamente endereçada para chegar ao des­ tinatário pretendido, da mesma maneira nossas orações precisam ser dirigidas a Deus. Henry escreveu: “Mencionai seus títulos, assim como fazeis quando vos dirigis a alguém importante [...] Dirigi vossas orações a ele como o Deus da glória com sua impressionante majestade e cuja grandeza é inescrutável”. Tam­ bém não se esqueça daquele doce nome que Cristo especialmente nos ensinou a usar na oração: “Pai nosso que estás no céu”. Em seguida apanhe sua carta e coloque-a na mão do “Senhor Jesus, o único Mediador entre Deus e o homem [...] e ele a entregará com cuidado e rapidez e tomará aceitável o nosso culto”.'“ Em Salmos 5.3, Davi deu testemunho de que as horas da manhã são especialmente proveitosas para orar. Da mesma forma, Henry observou que os sacerdotes ofereciam um cordeiro em sacrifício e queimavam incenso a cada manhã (Êx 29.39; 30.7), e cantores agradeciam ao Senhor a cada manhã (ICr 23.30). Ele citou esses exemplos para indicar que todos os cristãos, que são sacerdotes espirituais em Cristo, devem oferecer sacrifícios espirituais a Deus a cada manhã. Deus, que é o Alfa, exige nossas primícias; devemos, portanto, dar-lhe a primeira parte de nosso dia. Deus merece nosso melhor, não apenas as migalhas do dia, quando estéimos cansados e esgotados.** Hemy escreveu: “De manhã estamos mais livres de pessoas ao redor, bem como de ocupações, e em geral temos as melhores oportunidades para estar a sós”.** Deus nos dá novas misericórdias a cada manhã, de modo que devemos lhe dar novas ações de graças e fazer novas meditações sobre suas perfeições. De manhã, quando nos preparamos para as atividades do dia, entreguemo-lo todo a Deus.**' Comece cada dia com Deus.

Segunda diretiva: passe cada dia com Deus Davi escreveu: “Por ti estou esperando todo o dia” (SI 25.5, ARC). Henry afir­ mou que essa espera envolve tanto “uma expectativa paciente” de que na sua **Henry, Communion with God, in: “Henry, Communion with God, in: ‘*Henry, Communion with God, in: “Henry, Communion with God, in: "’Henry, Communion with God, in:

Works, Works, Works, Works, Works,

1:20S. 1:205-6. 1:207-8. 1:208. 1:208-11.

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hora Deus virá com misericórdia quanto “uma presença constante” diante do Senhor nos deveres da adoração pessoal. Os santos precisam de expectativa paciente, pois com frequência aguardam ao longo de dias longos, sombrios e tempestuosos que Deus responda às suas orações. Mas aguardam com es­ perança.’®Henry citou as seguintes palavras de George Herbert (1593-1633), sacerdote e poeta da Igreja da Inglaterra; Vai embora, desespero! Meu Deus gracioso ouve: Quando ventos e ondas investem contra meu barco. Ele 0 preserva: ele pilota Mesmo quando parece que a embarcação rodopia. Tfempestades são o produto de sua maneira de agir, Ele bem pode fechar os olhos, mas não o coração.”

A presença do cristão diante de Deus ao longo do dia é sintetizada na ex­ pressão esperar no Senhor. “Esperar em Deus é viver uma vida ansiando por ele, de prazer nele, de dependência dele e de devoção a ele”, Henry escreveu. Devemos passar o dia ansiando por Deus — como um mendigo que o tempo todo aguarda seu benfeitor — tendo fome não apenas de suas dádivas, mas também daquele que é o Pão da Vida. Devemos viver tendo prazer em Deus, como um apaixonado em relação à sua amada. Henry indagou: “Amamos amar a Deus?” Dependência constante é a atitude do filho com o pai em quem confia e em quem lança todas as suas preocupações. Uma vida de devoção é aquela que um servo tem para com seu senhor quando está “pronto a cumprir a vontade do senhor, fazer o trabalho dele e em tudo levar em conta a honra e 0 interesse dele”. É “fazer com que a vontade de sua prescrição seja a regra de nossa prática” e “fazer com que a vontade de sua providência seja a regra de nossa paciência”.“ Heruy ressaltou assim a disposição do coração em orar sem cessar ou esperar no Senhor durante todo o dia. Precisamos esperar em Deus a cada dia, quer no culto público no dia do Senhor, quer no trabalho de nossas ocupações nos dias da semana, quer nos dias livres. Precisamos esperar nele nos dias de prosperidade, quando o mundo sorri para nós, e nos dias de adversidade, quando o mundo nos desaprova. Precisamos depender dele nos dias da juventude e nos dias da velhice. Preci­ samos esperar em Deus o dia todo. '“Henry, Communion with God, in: Works, 1:213-5. '“Henry, Communion with God, in: Worfes, 1:21S. A citação foi tirada do poema “The Bag”, que aparece em The temple, de George Herbert (1633), obra encontrada in: Christian classics ethereal library, disponível em: http://www.ccel.0rg/h/herbert/temple/Bag.html, acesso em: 3 dez. 2010. “Hemy, Communion with God, in: Works, 1:216-8.

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Você está sobrecarregado com preocupações? Lance-as sobre o Senhor. Tem responsabilidades a cumprir? Será que as pessoas com quem você trabalha sabem que Deus lhe deu esse “chamado e emprego” e que exige que você trabalhe de acordo com os preceitos de sua Palavra? Só Deus pode abençoar seus esforços, e a glória de Deus deve ser o objetivo maior de todo o trabalho que você desempenha. Você é tentado a seguir outro caminho? Abrigue-se debaixo da graça divina. Está sofrendo? Submeta-se à sua vontade e confie no amor por trás das suas correções paternais. Sua mente está num emaranhado de esperanças ou temores sobre o futuro? Espere em Deus, que governa a vida e a morte, o bem e o mal.^’ Os escritos de Henry nos mostram que cada minuto de cada dia contém enormes razões para esperar no Senhor. Pomos em prática essa presença constante diante de Deus mediante o exercício repetido da oração pessoal. Henry conclamou os homens a orarem em secreto para que suas orações não se revelem como tentações ao orgulho espiritual e à autoexibição. Ele escreveu: “Fecha a porta para que o vento da hipocrisia não sopre através dela”.^^ Além disso, Henry nos convida ao culto doméstico em que treinamos na piedade as pessoas de nossa casa. Em Family hym ns [Hinos da família] (1694] e A church ín the house: famíly devotions [Uma igreja em casa: devocionais da família] (1704), Henry defendeu firmemente as devocionais da família. Ele promoveu tais devocionais não para que a família se distanciasse da igreja local, mas para fortalecer a igreja mediante a promoção da piedade no lar. Henry praticava em casa aquilo que pregava. A cada manhã, ele recapitulava com a família um trecho do sermão do domingo anterior e orava com ela. Ele catequizava os filhos à tarde e ensinava os filhos mais velhos depois de os mais novos terem ido para a cama.^^ Ele considerava o culto doméstico um momento para a família toda vir a Deus em oração, buscando sua bênção, agradecendo-lhe suas misericórdias e apresentando a ele os problemas em nos­ sos relacionamentos para que ele os curasse. Ore para que seus filhos cresçam em sabedoria e “esperem em Deus para que por meio de sua graça a forma de educação recebida tenha pleno êxito”, Henry afirmou. Ele lembrou aos pais que a oração produz paciência, afirmando; “Se eles são somente lentos e não progridem como almejaria, esperai em Deus que ele os faça avançar e lhes conceda sua graça no tempo designado por ele. E, enquanto estais esperando nele com paciência, isso vos encorajará a fazer diligentes esforços junto a eles e, de igual maneira, vos tornará pacientes e amáveis com eles”.^“* ^'Henry, Communion with God, in: Works, 1:219-24. “Williams, Lives o f Philip and Matthew Henry, 2:211. Veja Mateus 6.5,6. “Beeke; Pederson, Meet the Puritans, p. 327. ^^Henry, Communion with God, in: Works, 1:224-5.

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Quando você vai trabalhar, Henry escreveu, sua ocupação “exige dedicação constante cada dia e o dia inteiro” Mas não negligencie a Deus no trabalho que você realiza. Tlrabalhe na presença de Deüs. Abra as portas de seu esta­ belecimento com 0 pensamento de que você está no caminho da obediência designado por Deus e de que depende de Deus para abençoá-lo nesse caminho. Veja cada freguês ou cliente como alguém enviado pela providência divina. Realize cada negócio como se o olhar santo de Deus estivesse sobre você. Espere que Deus lhe dê a aptidão de ter lucro honesto mediante esforço honesto.“ Se você apanhar um livro, que seja “o livro de Deus ou qualquer outro livro bom e útil”, dependa de Deus para que ele o torne proveitoso para você. Não perca tempo lendo Uvros que não trazem proveito. Quando você sentar para almoçar, lembre-se de que o Criador nos deu o direito de comer os alimentos que criou, mas precisamos comer e beber para a glória de Deus. Quando ler, não leia por mera curiosidade, mas por amor ao reino de Deus, compaixão pelos seres humanos e o objetivo de transformar em orações e louvores aquilo que você aprende. Quando visitar amigos, seja grato a Deus por ter amigos e rou­ pas, casas e mobília para desfrutar com eles. Se sair de viagem, coloque-se debaixo da proteção de Deus. “Reparai como é grande vossa dívida com a bondade da providência divina por todas as comodidades e recursos materiais que vos cercam em vossas viagens”, Henry afirmou.“ Seja onde você for ou o que fizer a cada dia, procure motivos de sobra para orar e louvar, Henry aconselhou. Conforme Tiago escreveu, se você está triste, então ore a Deus; se está feliz, então cante louvores a Deus (Tg 5.13). Isso abrange a totalidade da vida.

Terceira diretiva: term ine cada dia com Deus O salmista Davi escreveu: “Em paz me deito e durmo, porque só tu. Senhor,

fazes com que eu viva em segurança” (SI 4 .8 ). Henry afirmou que podemos chegar ao fim do dia satisfeitos, se temos o Senhor como nosso Deus. Ele es­ creveu: “Que isso acalme cada tempestade, ordene e crie uma tranquilidade em tua alma. Tendo Deus como nosso Deus em aliança, temos o suficiente; temos tudo. E, embora a alma graciosa ainda deseje mais de Deus, nunca deseja mais do que a Deus; nele ela descansa com contentamento completo; nele ela está em casa, está em repouso”.“ Quando nos deitamos para descansar à noite, Henry nos aconselhou a nos deitar com ação de graças a Deus. Ao fim de cada dia, devemos recapitular suas misericórdias e livramentos. “Cada bocado que comemos e cada gota que

“ Henry, Communion w ith God, in: Works, 1:225. “ Henry, Communion w ith God, in: Works, 1:225-7. ^'H enry, Communion w ith God, in: Works, 1:231.

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bebemos são misericórdia; cada passo que damos e cada respirada que damos, misericórdia”, ele afirmou. Devemos ser gratos pelas horas da noite como pro­ visão divina para nosso descanso, por nos dar um lugar para deitar a cabeça e pelo corpo com saúde e pela paz de espírito que nos permitem dormir.^® O tempo de se deitar também oferece uma oportunidade para refletir sobre nossa morte e a esperança cristã. Hemy nos estimulou a pensar que, assim como paramos de trabalhar por um tempo quando nos deitamos, de igual maneira pararemos de trabalhar por um tempo na morte até o dia da ressur­ reição. Assim como tiramos a roupa à noite, de igual maneira nos despiremos deste corpo até que recebamos um novo na manhã da volta de Cristo. Assim como nos deitamos em nossa cama para descansar, de igual maneira m. s deitaremos na morte para descansar na presença de Cristo, na qual nenhum pesadelo pode nos perturbar.^'’ A atenção dada por Henry à morte não era uma morbidez doentia, mas uma consideração realista num mundo caído, onde muitas pessoas morrem todos os dias com ou sem a esperança cristã, que vai além desta vida e avista a glória eterna. À medida que a luz da eternidade irrompe sobre nós, mesmo depois de o sol se pôr, devemos refletir sobre nossos pecados com o coração arrependido, lembrando-nos de nossa natureza corrupta e examinando nossa consciência em busca de transgressões específicas da lei. Henry nos ensinou a continuar a suplicar por arrependimento com tristeza piedosa, todas as noites fazendo uma nova aplicação do sangue de Cristo em nossa alma para obter perdão e nos aproximar do trono da graça para termos paz e absolvição. Entreguemos nosso corpo ao cuidado dos anjos de Deus e nossa alma à influência de seu Santo Espírito, que opera misteriosamente à noite (Jó 33.15,16; SI 17.3; 16.7). Então poderemos nos deitar em paz, descansando nossa alma na intercessão de Cristo, para que nos conceda paz com Deus, e perdoando nosso próximo de todas suas ofensas contra nós, para que nosso coração esteja em paz com Deus e com os homens.“ Henry sugeriu adormecer com pensamentos como os que seguem: Para tua glória, ó Deus, agora vou dormir. Quer comamos quer bebamos quer mesmo durmamos — pois isso está incluído em “fazendo qualquer outra coisa” — precisamos fazê-lo para a glória de Deus [...] À tua graça, ó Deus, e à palavra da tua graça me entrego agora. É bom adormecer com uma nova renúncia da totalidade de meu ser — corpo, alma e espírito — a Deus; agora “volta, minha alma, a Deus como teu repouso, porquanto o.Senhor tem sido generoso para contigo” [...] Ah!

“ Henry, Communion w ith God, in: Works, 1:235-6. “ Henry, Communion w ith God, in: Worfcs, 1:237. “ Henry, Communion w ith God, in: Worfcs, 1:238-40.

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quando acordar, que eu ainda esteja com Deus; que o intervalo de sono, embora longo, não interrompa a continuidade de minha comunhão com Deus, mas que, assim que eu despertar, eu possa retomá-la.’’

Henry orientou o cristão à experiência maravilhosa de andar com Deus em ora­ ção. Começando pela manhã, indo ao longo do dia todo e terminando quando nossos olhos se fecham à noite, somos convidados a desfrutar do acesso a Deus que nos é concedido pelo evangelho de Jesus Cristo. Efésios 2.18 afirma: “Pois por meio dele [Cristo Jesus], ambos temos acesso ao Pai no mesmo Espírito”. Henry escreveu: “A oração é nossa maneira de nos aproximarmos de Deus; por meio dela, temos acesso a ele. Podemos nos achegar com ousadia [...] nos achegar para falar tudo que estamos pensando. Podemos nos achegar com liberdade [...] Temos acesso ao ouvido dele, que está sempre aberto à voz de nossas súplicas. Temos acesso em todos os lugares, em todas as horas”. Não precisamos esperar até o céu para desfrutar de Deus. “O que é o céu senão um acesso eterno a Deus? E o acesso presente é um penhor disso”, afirmou Henry.“ “Esta vida de comunhão com Deus e de estar presente constantemente diante dele é céu na terra”.“

Um método de orar as Escrituras Quando um cristão se dedica à oração, seja a sós, seja em público, suas orações devem ser abundantes e completas porque muitos são seus fardos, preocupações, necessidades, desejos e pecados, e grandes são as misericór­ dias de Deus, Henry afirmou. Isso postula o uso de algum método para orar. Há, no entanto, momentos quando o coração do cristão está tão enlevado na oração que um método o inibiría. Mas esses momentos são raros; cos­ tumeiramente nossas orações exigem um método, pois não queremos falar descuidadamente diante “da gloriosa majestade do céu e da terra”. A Bíblia nos mostra que nossas orações devem consistir em frases curtas, claras e poderosas (e.g., o Pai-Nosso) em vez de um riacho sinuoso consciente (ou semiconsciente) em que você se esquece daquilo que está dizendo antes mesmo de terminar sua oração. Para ajudar a formar orações que são mais objetivas, Henry aponta para nós a fonte que é suficiente para toda boa obra: as Sagradas Escrituras.“ Ele afirmou: “Ouvi-o (i.e., a Deus] falando a vós, e prestai atenção em tudo o que dizeis a ele, da mesma maneira que, quando escreveis uma resposta a uma ’’Henry, Communion with God, in: Works, 1:243. “Henry, The œ venant o f grace, p. 185,200. “Henry, Communion with God, in: Works, 1:228. “ Henry, Method for prayer, in: Wbrks, 2:2-3.

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carta comercial, tendes a carta perante vós. A Palavra de Deus precisa ser o guia de vossos desejos e o alicerce de vossas expectativas na oração O âmago do método de Henry é orar a Palavra de Deus de volta para Deus. O. Palmer Robertson escreveu: “Essa forma de oração não é nada mais nada menos do que aquilo que os antigos puritanos chamavam de ‘pleitear as pro­ messas’. Deus fez promessas ao seu povo. Seu povo responde redirecionando aquelas promessas ao Senhor na forma de oração.“ Mas Henry não se limitou somente a promessas da Bíblia. Ligon Duncan assinala que Henry “examina com cuidado as Escrituras em busca de referências aos atributos de Deus e os transforma em temas de adoração”.*’’ Em cada aspecto, Henry procurou encher a boca do povo de Deus com as palavras do próprio Deus, embora reconhe­ cesse que “é conveniente e com frequência necessário usar na oração outras expressões além daquelas que são puramente bíblicas”.*® O método de Henry incluía adoração, confissão, petição por nós mesmos, ações de graças, intercessão por outros e conclusão. Em geral, esse modelo segue aquele que é apresentado nas Normas de Westminster para o Culto Público (1645).*® Em cada seção, Henry apresentou uma breve introdução ao assunto em pauta e apresentou um esboço de suas partes. Cada ponto do esboço inclui entrelaçada uma passagem bíblica após outra como possíveis expressões de oração. Henry advertiu os leitores a não se limitarem a ler essas orações em voz alta, deixando de meditar: “Mas, no final, a intenção e a apli­ cação pessoal da mente, os exercícios vívidos da fé e do amor e as expressões de santos desejos por Deus são de uma necessidade tão essencial à oração que sem a presença autêntica deles a melhor e mais apropriada linguagem não “Henry, Communion with God, in: Works, 1:204. “0. Palmer Robertson, “Introduction”, Matthew Henry, A way to pray: a biblical method for enriching your prayer life and language by shaping your words with Scripture, edição de O. Palmer Robertson (Edinburgh: Banner of Ttuth Ttust, 2010), p. xii. Sobre essa republicação da obra de Matthew Henry Method for prayer, Robertson afirma o seguinte: “Esta edição não constitui apenas um esforço para modernizar a linguagem do original de Matthew Henry. Pelo contrário, é um esforço, à luz de considerações exegéticas cuidadosas, de oferecer uma revi­ são respeitosa, porém exaustiva, do texto de Matthew Henry” (p. xvii). Robertson retirou parte do texto de Henry, acrescentou algum material de sua própria autoria e apresentou uma nova tradução das Escrituras citadas. “Duncan, “A method for prayer”, in: The devoted life, p. 241. “Henry, Method for prayer, in: Works, 2:2-3. “Duncan, “A method for prayer”, in: The devoted life, p. 240. As Normas de Westminster estabelecem a seguinte ordem de culto: (1) chamado à adoração, (2) oração de reconhecimento da grandeza de Deus, (3) leitura das Escrituras, (4) cântico de um salmo, (5) oração de confissão e súplica para que por meio do Mediador seja concedida graça à igreja, às missões mundiais e às autoridades do governo, (6) pregação da Palavra, (7) oração de ação de graças e súplica por graça, (8) o Pai-Nosso, (9) cântico de um salmo e (10) despedida. Veja The Westminster directory o f pubUc worship discussed by Mark Dever and Sinclair Perguson (Fearn: Christian Focus, 2008).

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passa de uma imagem sem vida [i.e., um ídolo morto]”.““ Mesmo assim, está claro que Henry acreditava que a Bíblia deveria fornecer às nossas orações palavras que penetraram em nossos corações. Consideremos uma pequena amostra do método de Henry. Seu primeiro cuidado era que orássemos no temor do Senhor: “E em cada oração, lembraivos de que estais falando com Deus e fazei que ela deixe transparecer que em vossos espíritos tendes reverência por ele. Não sejamos ‘apressados com a boca e que nosso coração não seja precipitado em pronunciar algo perante Deus’, mas que cada palavra seja bem ponderada, porque ‘Deus está no céu, e nós estamos na terra’ (Ec 5 .2 )”.'^' Henry introduziu o leitor na adoração a Deus, escrevendo: Nosso espírito tendo uma disposição bem séria e reverente, nossos pensamentos estando guardados e tudo que está dentro de nós recebendo, em nome do grande Deus, a incumbência de prestar cuidadosamente o culto solene e reverente que está perante nós e de mantê-lo dessa maneira, precisamos — com um firme propósito, um esforço mental e uma fé viva e ativa — colocar o Senhor diante de nós, ver seus olhos sobre nós e nos colocar em sua presença única, apresentando-nos a ele como sacrifícios vivos, que desejamos que sejam santos e aceitáveis e um culto racional. E então precisamos amarrar esses sacrifícios com cordas nos cantos do altar, com pensamentos como esses... Agora, pelo sangue de Jesus, entremos com humilde ousadia no Lugar Santíssimo, pelo novo e vivo caminho, que ele nos consagrou por meio do véu.“*^

Em seguida, Henry apresentou páginas e mais páginas com sugestões de orações de adoração em linguagem bíblica, organizadas por diferentes temas. É muito parecido com um estudo a respeito da doutrina bíblica de Deus que foi transformado em oração. Para avaliar a abrangência do método de Henry, considere seu esboço de material bíblico para dirigir nossa adoração: I. Dirigi-vos ao ser de grandeza e glória infinitas A. Com santa admiração e reverência B. Distinguindo-o de falsos deuses II. Adorai a Deus com reverência como alguém de resplendor e santidade transcendentes A. O Espírito infinito, autoexistente e autossuficiente B. Sua existência incontestável C. Sua natureza além de nossa compreensão

"H enry, Method fo r prayer, in: Works, 2:3. "‘Henry, Communion w ith God, in: Works, 1:204. "^Henry, Method for prayer, in: Works, 2:4.

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D. Sua inigualável perfeição E. Infinitamente acima de nós e de todos os outros E m p a rticu la r, adorcá o S en h o r co m o :

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

III. IV. V. VI. VII. VIII. IX. X. XI. XII. XIII. XIV. XV.

Eterno, imutável Presente em todos os lugares Perfeito em seu conhecimento de tudo Inescrutável em sabedoria Soberano, possuidor e Senhor de tudo Irresistível em poder Imaculado em pureza e retidão Sempre justo em seu governo Sempre verdadeiro e inesgotavelmente bom Infinitamente superior a todos os nossos louvores mais excelentes Dai a Deus o louvor de sua glória no céu Dai-lhe glória como nosso Criador, Protetor, Benfeitor e Regente Dai honra às três pessoas da divindade Reconhecei nossa dependência dele e nosso dever para com nosso Criador Declarai que Deus como nosso Deus da aliança é nosso dono Reconhecei o privilégio inestimável de ser convidado para nos aproximar dele Expressai que somos indignos de nos aproximar dele Professai nosso desejo de que ele seja nossa felicidade Professai nossa esperança e confiança em sua absoluta autossuficiência Pedi a Deus que graciosamente aceite a nós e as nossas orações imperfeitas Orai pela ajuda do Espírito Santo em nossas orações Tornai a glória de Deus o objetivo supremo de nossas orações Professai nossa dependência exclusiva do Senhor Jesus Cristo.'*^

Cada ponto do esboço inclui várias orações extraídas das Escrituras. Por exemplo, uma das orações no tópico da perfeição inigualável de Deus é: “Quem é Deus como tu, glorioso em santidade, admirável em louvores, que faz maravilhas?”.“* Na seção que trata de professar esperança na suficiência de Deus, Henry escreveu; “Em ti, ó Deus, colocamos nossa confiança; jamais nos envergonharemos. Sim, que ninguém que espera em ti fique envergonhado. ^’Henry, Method for prayer, in: Works, 2:4-12. ^’Henry, Method for prayer, in: Works, 2:5. Veja Êxodo 15.11.

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Verdadeiramente nossa alma espera em Deus, dele vem nossa salvação; só ele é nossa rocha e nossa salvação! Nele está nossa glória, nossa força e nosso refúgio, e dele procede nossa esperança”.“® Em adoração ao poder de Deus, ele escreveu: Sabemos, ó Deus, que podes fazer todas as coisas [...] O poder pertence a ti; e contigo nada é impossível. Todo poder é teu tanto no céu quanto na terra. Matas e fazes viver, feres e curas; não há ninguém que consiga se livrar da tua mão. Aquilo que prometeste és também capaz de realizar.“®

Outras secções, como confissão e petições, também possuem esboços deta­ lhados. Caso consultássemos com regularidade o livro de Henry em busca de orientação, seu método daria notável profundidade e variedade às nossas orações. Seu método livraria nossas orações de serem repetição enfadonha e irreverência descuidada. Seu método nos ajudaria a ser mais específicos e a ter um coração mais quebrantado em nossa confissão, levando-nos a orar: “Não temos tido o controle que deveríamos ter sobre nosso próprio espírito, o qual tem, por esse motivo, sido como uma cidade destruída e sem muros. Temos nos irado com demasiada facilidade, e a ira tem habitado em nosso íntimo. E, quando nosso espírito tem sido provocado, temos falado imprudentemente com nossos lábios e temos sido culpados daquelas queixas e amargura que deviam ter sido postas longe de nós”.“^ As palavras de Henry acerca da confissão nos humilham. Em nossa épo­ ca de superficialidade e frivolidade, talvez hesitemos em dar consideração à confissão de nossos pecados. Mas Duncan escreve: “Henry compreendia que sem a inclusão de suficiente confissão de pecados em nossas orações, jamais alcançaremos um sentimento real e correto de perdão e reconciliação divinos [...] Carregaremos o peso da culpa não resolvida ou então enfrentare­ mos aquela culpa importunadora, negando-a, iludindo-nos ou enganando-nos a nós mesmos”.“® Nossas intercessões pela igreja também seriam mais poderosas, se em­ pregássemos palavras como estas: “Que a religião pura e imaculada perante 0 Deus e Pai floresça e prevaleça em todo lugar; que prevaleça o reino de Deus entre os homens, o qual não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Ah! reaviva esta obra no meio dos anos, no meio* *Henry, Method for prayer, in: Works, 2:10-1. Veja Salmos 31.1; 25.3; 62.1,2,5-7. *Henry, Method for prayer, in: Works, 2:6. Veja Jó 42.2; Salmos 62.11; Lucas 1.37; Mateus 28.18; Deuteronômio 32.39; Romanos 4.21. ^'Henry, Method for prayer, in: Works, 2:15. Veja Provérbios 25.28; 14.17; Edesiastes 7.9; Salmos 106.33; Efésios 4.31. *®Duncan, "A method for prayer”, in: The devoted life, p. 244.

M atthew H enry e urn m étodo prático de oração diária

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dos anos torna-a conhecida, e que nossa época seja época de reforma”.*® Poderemos então clamar com ousadia bíblica: “Que nenhuma arma feita contra a tua igreja prospere, e que seja condenada toda língua que se levantar contra ti em juízo”.®® Henry também reuniu grande número de passagens das Escrituras para nossa intercessão pelo mundo perdido e pela propagação do evangelho entre as nações estrangeiras. Ele nos convocou a orar por todos os homens, a cla­ mar para que as nações louvem ao Senhor e cantem de alegria, a orar pela conversão do povo judeu, pelas igrejas que sofrem em nações islâmicas e pela conversão de ateus e deístas. Ele instruiu seus leitores a orar: "Ah! dá a teu Filho os pagãos como herança e os confins da terra como posse, pois disseste: Para ele é coisa fácil restabelecer as tribos de Jacó e restaurar o remanescente de Israel, mas tu o darás para ser luz para os gentios. Que todos os reinos deste mundo se tornem reinos do Senhor e do seu Cristo”.®* Orar as Escrituras de volta para Deus nos levará a orar por missões. Somente arranhamos a superfície do livro de Henry. Além de muitas ou­ tras orações bíblicas de adoração, confissão, petição por nós mesmos, ações de graças e intercessão por outros, Henry também reuniu passagens das Escrituras numa paráfrase de várias páginas sobre o Pai-Nosso e apresentou uma série de orações bíblicas simples para crianças, orações para crianças baseadas em resposta de catecismos, orações bíblicas para as devocionais familiares de manhã e de noite e para o dia do Senhor, uma oração para um dos pais fazer pelos filhos, orações para se preparar para a ceia do Senhor e orações para fazer na hora das refeições. A obra de Henry Family hymns (Hinos da família] (1694), uma coletânea de salmos e de passagens do Novo Testamento em forma poética, também pode enriquecer o culto doméstico com verdades bíblicas.®^ Acerca de Method for prayer, Duncan afirma: “Ler e reler o livro de Henry nos treinará no uso da verdade e da linguagem bíblicas da oração e, dessa forma, ajudará e estimulará os cristãos de hoje tanto na oração pública quanto na oração privada”. Orar as Escrituras “gravará em nossa mente padrões bíblicos de pensamento” e nos levará a um “modo teocêntrico de orar”.®® Se não aprendermos nada mais com Matthew Henry, devemos aprender a seguinte máxima: Ore as Escrituras. Nessa afirmativa, Henry estava em harmo­ nia com autores reformados ao longo do tempo. William Gurnall (1616-1679) "Henry, Method for prayer, in: Works, 2:50. Veja Tiago 1.27; Romanos 14.17; Habacuque 3.2; Hebreus 9.10. “Henry, Method for prayer, in: Works, 2:51. Veja Isaías 54.17. ®‘Henry, Method for prayer, in: Works, 2:48-9. Veja Salmos 2.8; Isaías 49.6. “Henry, Communion with God, in: Works, 1:413-43. “Duncan, "A Method for Prayer”, in: The devoted life, p. 249.

u se

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escreveu: “Quanto mais poderoso alguém é na Palavra, mais poderoso será na oração”. De modo parecido, Robert Murray M'Cheyne (1813-1843) afirmou: “Transforma a Bíblia em oração”.^'* Hido isso faz eco às palavras magistrais de nosso Senhor Jesus: “Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o qué quiserdes, e vos será concedido” (Jo 15.7).

^’Blanchard, Complete gathered gold, p. 473.

Capítulo 55 □□aDaooaQoaDDaDDaDDaaaaDaDaGaQoaDDQODODDaaoDDDaaaDaoDODaDDD

A prática puritana da meditação □ □ □ □ □ □ □□□DD□ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □

A meditação aplica, a meditação cura, a meditação instrui. Ezekiel Culverwell‘

O crescimento espiritual deve fazer parte da vida cristã dos crentes. Pedro exorta os crentes a “crescer na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.18). O Catecismo de Heidelberg afirma que os cristãos verdadeiros são membros de Cristo pela fé e participam de sua unção. Pelo poder de Cristo eles são ressuscitados para uma nova vida e recebem o Espírito Santo como penhor, por cujo poder “buscam as coisas de cima” (Cl 3.1). A única coisa a esperar é o crescimento espiritual, visto que “é impossível que não produzam frutos de gratidão aqueles que mediante uma fé verdadeira são implantados em Cristo” (Catecismo de Heidelberg, perguntas 3 2 ,4 5 , 49, 64). Um obstáculo ao crescimento entre os cristãos de hoje é nosso fracasso em cultivar o conhecimento espiritual. Deixamos de dar tempo suficiente à oração e à leitura bíblica e temos abandonado a prática da meditação. Como é lamentável que a própria palavra m editação, outrora considerada uma disci­ plina central do cristianismo e “uma preparação crucial e um complemento da obra da oração”, esteja hoje associada à espiritualidade não bíblica da “Nova Era”. Criticamos acertadamente os que fazem meditação transcendental e outros exercícios de relaxamento mental porque essas práticas estão ligadas a religiões falsas, como budismo e hinduísmo, e não têm relação alguma com as Escrituras. Essas formas de meditação se concentram no esvaziamento da mente para se desligar do mundo e se fundir com a denominada Mente 'Introdução, Divine meditations and holy contemplations, in: The works o f Richard Sibbes (Edinburgh: Banner of Thith Urust, 2001), p. 184.

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Cósmica. Não existe Deus vivo e pessoal algum com quem alguém possa se relacionar, a quem se possa ouvir e por quem se possa realizar atividades. No entanto, podemos aprender com essas pessoas a respeito da importância da reflexão silenciosa e da meditação prolongada.^ Em certa época, a igreja cristã esteve profundamente empenhada na me­ ditação bíblica, a qual envolvia afastar-se do pecado e ligar-se a Deus e ao próximo. Na era puritana, inúmeros pastores pregaram e escreveram sobre como meditar. Neste capítulo, examinaremos a arte puritana da meditação, considerando a natureza, o dever, a forma, os temas, os benefícios, os obstá­ culos e 0 autoexame da meditação.^ Tendo os puritanos como mentores, talvez consigamos recuperar em nossa época a prática bíblica da meditação.

Definição^ natureza e tipos de meditação A palavra m editar ou estar concentrado no pensam ento significa “pensar a res­ peito” ou “refletir”. “Quanto mais eu pensava, mais aflito ficava” (SI 39.3, BLH), Davi afirmou. Também significa “murmurar, sussurrar, fazer som com a boca (...] Deixa implícito aquilo que a pessoa expressa quando fala consigo mesma”.^ ^Richard J. Foster, Célébration o f discipline (San Francisco; Harper & Row, 1978), p. 14-S [edição em português; Celebração da disciplina, tradução de Luiz Aparecido Caruso (São Paulo; Vida. 1997)]. ^Poucos estudos têm sido feitos sobre a meditação puritana. Louis Martz, que estabeleceu a íntima ligação entre meditação e poesia, escreveu um capítulo acadêmico sobre a ideia de Richard Baxter sobre a meditação; The poetry o f meditation (New Haven; Yale, 1954). Em sua obra The pilgrim’s progress and traditions in Puritan meditation (New Haven; Yale, 1966), U. Milo Kaufmann mostrou a importância da meditação puritana na concepção de O peregrino, de Bunyan. Em Donne’s “anniversaries” and the poetry o f praise, the creation o f a symbolic mode (Princeton; University Press, 1973) e Protestant poetics and the seventeenth-century reli^ous lyric (Princeton; University Press, 1979), Barbara Lewalski se concentrou na contribuição de uma forma distin­ tamente protestante de meditação. Em “The art of Puritan devotion”, Seventeenth-Century News 26, n. 1 (1968); 8, Norman Crabo apresentou objeções convincentes à tese de Martz de que o pensamento calvinista impediu o protestantismo de desenvolver a arte da meditação até meados do século 17. Em Bishop Joseph Hail and Protestant meditation in seventeenth-century Engjand: a study with the texts o f The art of divine meditations (1606) and Occasional meditations (1633) (Binghamton; Center for Medieval &Early Renaissance studies, 1981 ), Frank Livingstone Huntley também ofereceu uma classificação perspicaz da meditação protestante como filosoficamente platônica, psicologicamente agostiniana e teologicamente paulina e calvinista, em contraste com a meditação católico-romana como aristotélica e tomista. Em “The Puritan meditative tradition, 1599-1691; a study of ascetical piety” (tese de doutorado, Cambridge University, 1986), Simon Chan ofereceu uma avaliação histórica nova sobre a meditação puritana, abrangendo um corpo maior de textos do que aqueles anteriormente examinados e indo além de um exame literário. Ele defendeu que na segunda metade do século 17 a meditação puritana caminhou progressi­ vamente em uma direção mais metódica. Um livro que faça a avaliação teológica e prática da meditação puritana ainda precisa ser escrito. ^William Wilson, CfTword studies (McLean; MacDonald., s. d.), p. 271.

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Alguém envolvido nesse tipo de meditação recitaria para si mesmo audivelmente mas em tom baixo passagens das Escrituras que havia memorizado. Com frequência, a Bíblia fala de meditação. “Isaque havia ido ao campo numa tarde para meditar”, afirma Gênesis 24.63. Apesar de Josué ter a exigente tarefa de supervisionar a conquista de Canaã, o Senhor lhe ordenou que medi­ tasse no livro da lei de dia e de noite, para que pudesse fazer tudo que estava escrito ali (Js 1.8). Mas o termo meditação ocorre com mais frequência em Salmos do que em todos os outros livros da Bíblia juntos. O salmo 1 chama de bem-aventurado o homem que tem prazer na lei do Senhor e nela medita de dia e de noite. Em Salmos 63.6, Davi fala de lembrar-se do Senhor na cama e meditar sobre ele nas vigílias da noite. Salmos 119.148 afirma: “Mantenho-me acordado nas vigílias da noite, para meditar na tua palavra” (cf. SI 4.4; 77.10-12; 104.34; 119.16,48,59,78,97-99). Pensar, refletir ou ponderar pressupõe algo para meditar. A meditação formal deixa implícitos temas de peso. Por exemplo, filósofos meditam sobre conceitos como a matéria e o universo, ao passo que teólogos refletem so­ bre Deus, os decretos eternos e a vontade do homem. Os puritanos jamais se cansavam de dizer que a meditação bíblica requer pensar sobre o Deus triúno e sua Palavra. Ao ancorar a meditação na Pala­ vra viva, que é Jesus Cristo, e na Palavra escrita de Deus, que é a Bíblia, os puritanos se distanciavam do tipo de espiritualidade ou misticismo falso que ressalta a contemplação à custa da ação e viagens da imaginação à custa do conteúdo bíblico. Para os puritanos, a meditação exercitava tanto a mente quanto o coração; aquele que medita aborda um tema com seu intelecto, bem como com suas emoções. Thomas Watson (c. 1620-1686) definiu a meditação como “um exercí­ cio santo da mente em que nos lembramos das verdades de Deus, ponderamos seriamente a respeito delas e as aplicamos a nós mesmos”.^ Edmund Calamy (1600-1666) escreveu: “A verdadeira meditação é quando 0 homem medita tanto sobre Cristo a ponto de levar seu coração a se inflamar com 0 amor de Cristo, quando medita tanto sobre as verdades de Deus a ponto de ser transformado por elas e quando medita tanto sobre o pecado a ponto de levar seu coração a odiar o pecado”. Calamy prosseguiu afirmando que, para produzir bons resultados, a meditação precisa entrar por três portas: a porta Thomas Watson, Heaven taken by storm (Morgan: Soli Deo Gloria, 2000), p. 23. Para defi­ nições parecidas oferecidas por outros puritanos, veja Richard Greenham, “Grave counsels and godly observations”, in: The works o f the reverend and faithfidl servant o f Jesus Christ M. Richard Greenham, edição de H. H. (London: Felix Kingston para Robert Dexter, 1599), p. 37; Thomas Hooker, The application o f redem ption... The ninth and tenth books (London: Peter Cole, 1657), p. 210; Thomas White, A method and instructions for the art o f divine meditation with instances of the several kindes o f solemn meditation (London: para Tho. Parkhurst, 1672), p. 13.

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do entendimento, a porta do coração e das afeições e a porta da vida prática. “Tens de meditar tanto sobre Deus a ponto de andares como Deus anda e meditar tanto sobre Cristo a ponto de o teres na mais alta estima e viveres em obediência a ele”, Calamy afirmou.* Para os puritanos, a meditação era um dever diário que realçava todos os outros deveres da vida cristã. Assim como o óleo lubrifica um motor, da mesma maneira a meditação favorece o uso diligente dos meios de graça (1er as Escrituras, ouvir sermões, orar e cumprir todas as outras ordens de Cristo) (cf. Catecismo Maior de Westminster, pergunta 154), aprofunda os sinais da graça (arrependimento, fé, humildade) e fortalece o relacionamento da pessoa com outros (amor a Deus, a irmãos em Cristo e ao próximo em geral). Os puritanos escreveram a respeito de dois tipos de meditação; ocasional e intencional. “Existe uma m ed ita çã o re p e n tin a , b rev e e o ca sio n a l de coisas celestiais e existe uma m ed ita çã o so len e, p ro g ra m a d a e d e lib era d a " , Calamy escreveu. A meditação ocasional se utiliza daquilo que a pessoa observa com os sentidos a fim de “elevar seus pensamentos à meditação celestial”. O crente se utiliza daquilo que vê com os olhos ou ouve com os ouvidos “como uma escada para subir até o céu”. É isso que Davi fez com a lua e as estrelas no salmo 8, o que Salomão fez com as formigas em Provérbios 6 e o que Cristo fez com a água do poço em João Thomas Manton (1620-1677) explicou: “Deus preparou a antiga igreja por meio de tipos e cerimônias a fim de que com base em um simples objeto se elevassem a pensamentos espirituais; e no Novo Testamento, nosso Senhor ensinou por meio de pa­ rábolas e similitudes tiradas das atividades e ofícios usuais existentes entre os homens, a fim de que em cada profissão e ocupação em nossos afazeres no mundo pudéssemos estar empregados com uma mente celestial, a fim de que, quer na loja, quer no tear, quer no campo, ainda possamos pensar sobre Cristo e o céu”.® A meditação ocasional — ou meditação "extemporânea”’ — é relativamente fácil para o crente porque pode ser praticada a qualquer hora, em qualquer lugar e entre quaisquer pessoas. O homem com uma mente espiritual pode aprender com rapidez como espiritualizar coisas naturais, pois seus desejos vão contra aquele que tem uma mente mundana, que torna carnal até mesmo coisas espirituais.“ Conforme Manton escreveu, “Um coração gracioso é como um alambiqué: consegue destilar meditações úteis a partir de todas as coisas ‘Edmund Calamy, The a n o f divine meditation (London: paraTho. Parkhurst, 1634), p. 26-8. 'Calamy, The art o f divine meditation, p. 6-10. *Thomas Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: The ivorks o f Thomas Manton (London: James Nisbet & Co., 1874), 17:267-8. ’Huntley, Hall and Protestant meditation, p. 73. “Calamy, The art o f divine meditation, p. 14-5. ,

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que encontra. Assim como vê todas as coisas em Deus, da mesma maneira vê Deus em todas as coisas”.“ Praticamente todo livro puritano sobre meditação menciona a meditação ocasional. Alguns puritanos, como William Spurstowe (c. 1605-1666), Thomas Taylor (1576-1633), Edward Bury (1616-1700) e Henry Lukin (1628-1719) escreveram livros inteiros sobre meditações ocasionais.'^ A meditação ocasional tinha, porém, seus perigos. O bispo Joseph Hall (1574-1656) advertiu que, quando sem freio, essas meditações podiam facil­ mente se desviar da Palavra e se tornar supersticiosas, como era o caso da espiritualidade católico-romana.** A imaginação da pessoa precisa ser contro­ lada pelas rédeas dos escritos sagrados. Os puritanos divergiam entre si quanto até onde ir com essa meditação. Em T h e p ilg rim ’s p ro g ress a n d tra d itio n s in P u rita n m ed ita tio n ["O Peregrino” e tradições na meditação puritana], U. Milo Kaufmann afirmou que na meditação puritana havia duas tradições divergentes. Ele afirmou que Joseph Hall, um puritano moderado no que diz respeito à teologia, porém não no que tange ao governo eclesiástico, foi entre os puritanos o precursor no desenvolvimento da literatura sobre a meditação com sua obra A rt o f d iv in e m ed ita tio n [A arte da meditação divina], publicada pela primeira vez em 1606. Hall freou a ima­ ginação na meditação, confinando-a ao conteúdo da Palavra. Isso teve grande influência em Isaac Ambrose (1604-1664) e Thomas Hooker (1586-1647), que escreveram na década de 1650, e em John Owen (1616-1683) e Edmund Calamy, que escreveram uma geração depois. Kaufmann afirmou que, ao contrário de escritores católicos romanos, a maioria dos puritanos “tendia a não meditar em acontecimentos da vida de Cristo, mas, em vez disso, em doutrinas ou então em declarações específicas das Escrituras De acordo com Kaufmann, Richard Sihbes (1577-1635) e Richard Baxter (1615-1691) romperam com essa tradição, recomendando a meditação nos "Manton, ‘‘Sermons upon Genesis 24:63“, in: Wbrfes, 17:267. Cf. Thomas Watson, “A gracious heart, like fire, turns all objects into fuel for meditation”, in: The sermons o f Thomas Watson (Ligonier: Soli Deo Gloria, 1990), p. 247. ‘^William Spurstowe, The spiritual chymist: or, six decads o f divine meditations (London: s. n., 1655); Thomas Taylor, Méditations from the creatures (London: [H. Lownes] para I. Bartlet, 1629); Edward Bury, The husbandm ans com panion: containing one hundred occasionai meditations, reflections, and ejaculations, especially suited to m en o f that em ploym ent.. (London; para Tho. Parkhurst, 1677); Henry Lukin, A n introduction to the Holy Scriptures (London: S. G. para Allen Banks e Charles Harper, 1669). ‘^Huntley, Hall and Protestant meditation, p. 74. ‘“Kaufmann, The pilgrim 's progress and traditions in Puritan meditation, p. 126. Kaufmann cita a firme rejeição de Thomas Hooker à imaginação: “Resguardar nossa mente de imaginações frívolas e vãs é fazer com que as benditas verdades de Deus absorvam plenamente nosso enten­ dimento como nosso alimento diário e prescrito” (Hooker, The application o f redemption, p. 232).

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sacramentos e no céu. Particularmente, Sibbes afirmou que, embora a alma possa se prejudicar bastante devido a uma imaginação desenfreada, também pode “obter grande bem com ela”. Representar coisas celestiais em linguagem terrena, como apresentar o reino dos céus em linguagem de banquete e a união com Cristo como um casamento, oferecia “um amplo campo para nos­ sa imaginação trilhar [...] com uma grande dose de g a n h o espiritual”, Sibbes escreveu.'® Kaufmann cria que Baxter, ao enfatizar a imaginação mediante comparação de objetos dos sentidos com objetos da fé, foi tocado por Soules co n flict [O conflito da alma], de Sibbes. Por sua vez, John Bunyan (1628-1688) foi estimulado a escrever O p ereg rin o , obra na qual usou sua imaginação em uma ampla variedade de temas que afetam a peregrinação espiritual do crente.'® Embora a avaliação feita por Kaufmann tenha sua parcela de verdade, por outro lado ele não tem praticamente simpatia alguma pelo receio puritano de deixar as rédeas da imaginação soltas além das Escrituras. Os puritanos acertadamente temiam os excessos de Anselmo, Inácio de Loyola e outros ca­ tólicos romanos que visualizavam histórias dos Evangelhos — em particular a prisão, julgamento, crucificação e ressurreição de Cristo — para abrir a ima­ ginação por meio dos cinco sentidos.'' Além do mais, a avaliação negativa de Kaufmann acerca de Hall e Ambrose deixa de levar em conta a notável liberdade que os dois autores deram à imaginação escriturística e ao uso dos sentidos.'* C on tem p la tions [Contemplações), de Hall, e L o o k in g u n to Je s u s [Olhar para Jesus], de Ambrose, se entregaram sem reservas à meditação, mas sem ultra­ passar os limites das Escrituras. Esse equilíbrio é crítico na tradição puritana, e na condição daqueles que chegaram a esse equilíbrio os puritanos servem de mentores sobre como podemos usar a imaginação santificada.'* O tipo mais importante de meditação é a meditação diária e intencional, praticada com hora marcada. Calamy afirmou que a meditação intencio­ nal acontece quando “um homem sep a ra [...] algum tempo e vai a um aposento fechado ou uma trilha retirada e ali solene e in ten cio n a lm en te m ed ita sobre as coisas d o céu". Essa meditação intencional reflete longamente sobre Deus, sobre Cristo e sobre a verdade assim como “a abelha que paira sobre a flor e fica ali sugando toda a doçura”. “É um ato de reflexão em que a alma retrocede ‘^Citado em Kaufmann, The pilgrim ’s progress and traditions in Puritan meditation, p. 144-S. ‘^Kaufmann, The pilgrim ’s progress and traditions in Puritan meditation, p. 150-251. ■ '^Peter Toon, M editating as a Christian (London: Collins, 1991), p. 175-8; The spiritual exer­ cises o f St. Ignatius, tradução para o inglês de Anthony Mottola (New York: Doubleday, 1964) [edição em português: Exercícios espirituais de Santo Inácio, 11. ed., tradução de J. Pereira (São Paulo: Loyola, 2010)]. ‘“Huntley, Hall and Protestant meditation, p. 44-54. ”Cf. Peter Toon, From m ind to heart: Christian meditation today (Grand Rapids: Baker; 1987), p. 99-100.

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ao passado e considera todas as coisas que conhece” sobre o tema, inclusive suas "causas, frutos [e] propriedades”.“ Thomas White (c. 1577-c. 1610) afirmou que as fontes da meditação inten­ cional são quatro: as Escrituras, verdades práticas do cristianismo, ocasiões (experiências) providenciais e sermões. Os sermões em particular são campos férteis para a meditação. Conforme White escreveu, “É melhor ouvir apenas um sermão e meditar nele do que ouvir dois sermões e não meditar em nenhum”.^' Alguns puritanos dividiam a meditação intencional em duas partes: me­ ditação que é direta e se concentra no objeto meditado e meditação que é refletida (ou reflexiva) e se concentra na pessoa que medita. A meditação direta é “um ato da parte contemplativa do entendimento” ao passo que a meditação reflexiva é “um ato da consciência”. A meditação direta ilumina a mente com conhecimento, ao passo que a meditação reflexiva enche o coração de bondade. A meditação deliberada pode ser dogmática (na qual a Palavra é seu objeto) ou prática (na qual nossa vida é seu objeto).“ Thomas Gouge (1605­ 1681) combinou vários aspectos da meditação intencional quando escreveu: "A meditação intencional e programada é um esforço sério da mente em tratar de algum tema espiritual ou celestial, conversando consigo mesma a respeito, com o objetivo de que teu coração seja animado, tuas afeições sejam desper­ tadas e que teus propósitos sejam ampliados para amar mais a Deus, odiar mais 0 pecado, etc”.“ Richard Baxter afirmou que a meditação “programada e solene” difere da meditação “ocasional e apressada” tanto quanto momentos programados de oração diferem de orações espontâneas articuladas no meio das atividades do dia.“ Os dois tipos de meditação são essenciais à piedade. Ambos tendem às necessidades tanto da mente quanto do coração.^^ Sem a aplicação ao co­ ração a meditação não passa de estudo. Conforme Thomas Watson escreveu, “O estudo é a descoberta de uma verdade, a meditação é o desenvolvimento espiritual de uma verdade; o primeiro busca o veio de ouro, a segunda escava 0 ouro. O estudo é como um sol de inverno que aquece e influencia pouco; "Calamy, The art o f divine meditation, p. 22-3; Greenham, “Grave counsels and godly ob­ servations”, in: Works, p. 38. , White, A method and instructions for the art o f divine meditation, p. 17-20. “Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:268. ^^Thomas Gouge, Christian directions, shetviTJg how to walk with God all the day long (London: R. Ibbitson e M. Wright, 1661), p. 65. “Richard Baxter, The saints’ everlasting rest (reimpr., Feam: Christian Focus, 1998), p. 553. Cf. White, A method and instructions for the art o f divine meditation, p. 14. “Henry Scudder, The Christian m an's calling (Philadelphia: Presbyterian Board of Publica­ tion, s. d.), p. 103-4. Cf. William Bates, “On divine meditation”, in: W. Farmer, oig.. The whole works o f die rev. W. Bates, D.D. (reimpr., Harrisonbui^: Sprinkle, 1990), 3:113-65.

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a meditação [...] derrete o coração quando ele está congelado e o faz gotejar lágrimas de amor”.^

O dever e a necessidade da meditação Os puritanos destacavam a necessidade da meditação. Eles afirmavam que, em primeiro lugar, nosso Deus, que nos ordena a crer, nos ordena a meditar em sua Palavra. Essa deve ser razão mais do que suficiente. Eles citam inúmeros textos bíblicos (Dt 6.7; 32.46; SI 19.14; 49.3; 63.3; 94.19; 119.11,15,23,28,93,99; 143.5; Is 1.3; Lc 2.19; J o 4.24; Ef 1.18; lT m 4 .1 3 ; H b3.1) e exemplos (Melquise deque, Isaque, Moisés, Josué, Davi, Maria, Paulo, Timóteo). Quando deixamos de meditar, fazemos pouco caso de Deus e de sua Palavra e revelamos que não somos piedosos (SI 1.2). Em segundo, devemos meditar na Palavra como uma carta que Deus nos escreveu. “Não podemos ter pressa e dar uma rápida passada com os olhos, mas meditar na sabedoria de Deus ao pô-la em palavras e em seu amor que a enviou para nós”, escreveu Thomas Watson.^^ Essa meditação despertará nossas afeições e nosso «imor por Deus. Conforme afirmou Davi, “Também levantarei as mãos para os teus mandamentos, que amo, e meditarei nos teus estatutos” (SI 119.48). Em terceiro, não se pode ser um cristão sério sem meditar. Conforme Thomas Manton afirmou, “A fé fica magra e a ponto de passar fome a menos que seja alimentada com a meditação contínua nas promessas. Conforme Davi afirma, ‘Se eu não tivesse prazer na tua lei, teria morrido na minha angústia’ (SI 119.92) Watson escreveu: “Um cristão sem meditação é como um soldado sem armas ou um trabalhador sem ferramentas. Sem meditação, as verdades de Deus não permanecerão conosco; o coração é duro é a memória, fugaz, e sem meditação tudo se perde”." Em quarto, sem meditação a Palavra pregada deixará de ter proveito para nós. Ler sem meditar é como engolir “comida crua e não digerida”, escreveu Scudder.^“ Richard Baxter acrescentou: “Um homem pode comer demais, mas não consegue digerir demais”.^' Watson escreveu: “Há tanta diferença entre o conhecimento de uma ver­ dade e a meditação sobre uma verdade quanto há entre a luz de uma tocha e “Thomas Watson, Gleanings from Thomas Watson (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995), p. 106. ^'Watson, Sermons, p. 238. “Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:270. “Watson, Sermons, p. 238. “Henry Scudder, The Christian’s daily walk, in: holy security and peace, 6. ed. (1635; reimpr., Harrisonburg: Sprinkle, 1984), p. 108. “Baxter, The saints’ everlasting rest, p. 549.

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a luz do sol: coloque uma lamparina ou uma tocha no jardim, e ela não faz diferença alguma. O sol tem uma influência benigna; faz as plantas crescerem e as ervas vicejarem. Assim acontece com o conhecimento; não passa de uma tocha acesa no entendimento, tendo pouca ou nenhuma influência, não melho­ rando 0 homem. Mas a meditação é como a luz que vem do sol, influenciando as afeições, animando o coração e tornando-o mais santo. A meditação extrai vida de uma verdade”.*^ Em quinto, sem meditação nossas orações serão menos eficazes. Conforme Manton escreveu, ‘‘A meditação é uma espécie de dever intermediário entre a Palavra e a oração e diz respeito a ambas. A Palavra alimenta a meditaçã e a meditação alimenta a oração; precisamos ouvir para que não permaneç ;mos no erro e meditar para que não sejamos estéreis. Esses deveres precisam sempre andar de mãos dadas; a meditação precisa vir após o ouvir, e preceder a oração”.’^ Em sexto, os cristãos que deixam de meditar são incapazes de defender a verdade. Eles não têm sustentação. E têm pouco conhecimento de si mesmos. Conforme Manton escreveu, “Um homem que não conhece a meditação não conhece a si m e s m o “É a meditação que faz o cristão”, afirmou Watson.” “Dessa maneira vedes a necessidade da meditação”, escreveu o arcebispo James Ussher (1581-1656); “precisamos tomar uma decisão sobre esse dever, se é que temos a intenção de ir para o céu”.^* Por fim, pode-se também acrescentar que tal meditação é uma parte essencial da preparação do sermão. Sem ela, os sermões deixarão de ter com­ preensão aprofundada, sensibilidade ampla e aplicação clara. A orientação que Johann Albrecht Bengel (1687-1752) deu a estudantes do Novo Testamento grego capta a essência dessa meditação: “Aplicai todo vosso ser ao texto; todo 0 conteúdo dele aplicai-o a vós mesmos” {Te totam applica and textwn; rem totam applica ad fe).^^

Aforma da meditação Para os autores puritanos, havia condições essenciais e regras para a medita­ ção. Consideremos aquilo que escreveram sobre a frequência e o horário da meditação, o preparo para a meditação e diretrizes para a meditação. “Watson, Sermons, p. 239. “Manton, “Sermons upon Genesis 24:63", in: Works, 17:272. “Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, p. 271. “Watson, Sermons, p. 240. “James Ussher, A method for meditation: or, a manuall o f divine duties, fit for every Christians practice (London: para Joseph Nevill, 16S6), p. 21. “Johaim Albrecht Bengel, Neill Tfesiament word sfudzes (Grand Rapids: Kregel, 1971), l:xxxix.

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Frequência e horário Em primeiro lugar, a meditação sobre as coisas de Deus precisa ser frequen­ te — o ideal é duas vezes por dia, se o tempo e as obrigações permitirem; certamente, pelo menos uma vez por dia. Se Deus deu ordens a Josué, um comandante ocupado, que meditasse em sua lei de dia e de noite, não deve­ ríamos também ter prazer em meditar na verdade de Deus a cada manhã e a cada noite? Falando de modo geral, quanto maior a frequência com que medi­ tamos no Deus triúno e em sua verdade, mais intimamente o conheceremos. A meditação também se tomará mais fácil.’* Longos intervalos entre uma meditação e outra obstmirão seus frutos. Conforme William Bates (1625-1699) escreveu, “Se a ave deixa o ninho por muito tempo, os ovos esfriam e ficam sem condições de gerar vida; mas, quan­ do existe incubação constante, eles produzem vida. Da mesma maneira, quando deixamos os deveres religiosos por longo tempo, nossas afeições es­ friam e se tornam frias e ficam sem condições de produzir santidade e consolo para nossa alma”.*® Em segundo, estabeleça um horário para a meditação e cumpra esse horário, os puritanos aconselhavam. Isso servirá de proteção para o dever e 0 defenderá “de muitas tentações de negligenciar”, escreveu Baxter.^ Que seja 0 “horário mais apropriado” para você, quando está mais alerta e não pressionado por outras obrigações. Bem cedo é uma hora excelente, pois suas meditações estabelecerão, então, o tom do restante do dia (Êx 23.19; Jó l.S; SI 119.147; Pv 6.22; Mc 1.35). Ainda assim, para alguns as noites podem ser mais frutíferas (Gn 24.63; SI 4 .4 ). As atividades do dia ficaram para trás, e eles estão prontos a descansar no “seio de Deus por meio de uma agradável meditação” (SI 16.7).'" Utilize 0 dia do Senhor para generosos períodos de tempo de meditação. Em Directory for the public worship o f God [Normas para o culto público de Deus], os teólogos de Westminster aconselharam que “aquele tempo que está disponível — entre uma e outra reunião pública e solene da igreja ou depois dela — seja gasto na leitura, meditação e repetição de sermões”.“ Thomas Gouge admoestou: “Caso já tivésseis experimentado a doçura desse dever de meditação divina, encontraríeis pouco tempo para diálogos vãos ou conversas “Calamy, The art o f divine meditaxion, p. 96-101. "Bates, "On divine meditation”, in: Works, 3:124-5. ■ "Baxter, The saints' everlasting rest, p. 555. ^‘Bates, “On divine meditation”, in: Works, p. 126-7. Thomas Watson faz a defesa mais vi­ gorosa de meditações matinais ÍSermons, p. 250-4), “Veja [teólogos de Westminster], “Of the sanctification of the Lord’s day”, in: Direaoryfm the publique worship o f God (London: T. R. e E. M. para Company of Stationers, 1651).

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à toa, em especial no dia do S e n h o r B a x t e r indagou: “Que dia mais apro­ priado para ascender ao céu senão aquele em que nosso Senhor se levantou da terra, triunfou completamente sobre a morte e o inferno e tomou posse do céu para nós?”.“'^ Use também momentos especiais para a meditação. De acordo com os puritanos, alguns desses momentos são: “1. Quando Deus extraordinariamen­ te reaviva e capacita teu espírito. 2. Quando — por causa de sofrimento, ou medo, ou preocupação ou tentações — tua mente é lançada em dificuldades desconcertantes. 3. Quando os mensageiros de Deus nos intimam para morrer; quando nossos cabelos grisalhos ou então nossos corpos abatidos ou algum desses presságios da morte nos dizem que nossa mudança não pode estar mui­ to distante”.^® 4. “Quando o coração é tocado por um sermão ou sacramento ou ao observar qualquer manifestação de juízo ou misericórdia ou um ato da providência de Deus, [pois então] é melhor malhar o ferro enquanto está quente (SI 119.23).”'** 5. “Antes de alguns deveres solenes, como é o caso da ceia do Senhor, e antes de momentos especiais de profunda humilhação ou antes do dia de descanso”.'**' Em terceiro, “[medita] da forma usual até que descubras que tua alma recebeu um benefício perceptível”. Bates afirmou que meditar é como fazer uma fogueira com lenha molhada. Quem perseverar produzirá uma chama. Quando começamos a meditar, podemos inicialmente acumular apenas um pouquinho de fumaça, depois disso talvez umas poucas fagulhas, “mas por fim há uma chama de santas afeições que sobe até Deus”. Persevere “até que a chama suba desse modo”. Bates afirmou. Haverá épocas em que a chama não sobe. Você não deve insistir indefi­ nidamente. “Nem cedais à preguiça nem deis ocasião à exaustão espiritual: das duas maneiras o Diabo se aproveita de vós”, Manton escreveu. “Quando torturas teu espírito depois de este estar exaurido, isso torna um peso a obra de Deus.”“" A maioria dos puritanos não aconselhava um tempo específico a ser passado em meditação. Mas James Ussher recomendou pelo menos uma hora por se­ mana, e Thomas White sugeriu que, “considerando que as partes da meditação são tantas — a saber, preparo, considerações, afeições, resoluções etc. — "^Gouge, Christian directions, p. 66-7. ■‘■ 'Baxter, The saints’ everlasting rest, p. 560. ■‘-'Baxter, The saints’ everlasting rest, p. 561-3. ■‘‘William Fenner. The use and benefit o f divine meditation (London: para John Stafford, 1657), p. 10. ‘^Manton, "Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:298. ■“Bates, “On divine meditation”, in: Worfes, 3:125. ■‘’Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:299.

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e que não se deve desprezar nenhuma delas, pois afeições não são despertadas com rapidez, nem devemos deixar de soprar o fogo assim que as chamas co­ mecem a aparecer até que já esteja bem aceso, pode-se pensar que meia hora [por dia] seja o mínimo para os iniciantes e uma hora para aqueles versados nesse dever”.“

Preparo Autores puritanos sugeriram várias maneiras de se preparar para a meditação eficaz, sendo que todas dependem “bastante da disposição de seu coração”: 1. Purifique seu coração das coisas deste mundo — suas ocupações e pra­ zeres, bem como suas preocupações e agitações no íntimo. Calamy escreveu: “Ora a Deus não apenas para manter do lado de fora coisas exteriores, mas também coisas interiores, ou seja, para manter do lado de fora pensamentos vãos, mundanos e que distraem”. 2. Cuide que seu coração seja purificado da culpa e da poluição do pecado e despertado com amor ardente por coisas espirituais. Armazene um estoque de textos bíblicos e verdades espirituais. Busque a graça de sempre pôr em prática a confissão de Davi em Salmos 119.11: “Guardei a tua palavra no meu coração para não pecar contra ti”. 3. Aborde a tarefa da meditação com a máxima seriedade. Tenha cons­ ciência de sua grande importância, de sua excelência e de seu potencial. Se você for bem-sucedido, será admitido na presença do próprio Deus e de novo sentirá aqui na terra o início da alegria eterna (Catecismo de Heidelberg, pergunta 58). Conforme Ussher escreveu, “Este precisa ser o pensamento de teu coração: estou me relacionando com um Deus perante o qual todas as coisas estão desnudadas e despidas e, por isso, para qüe meus pensamentos não fiquem divagando, preciso ter o cuidado de não falar tolamente perante o Deus sábio. Um homem pode conversar com o maior príncipe da terra com a mente ocupada com outros assuntos; não venhas conversar assim com Deus; seus olhos olham para teu coração e, por isso, tua principal preocupação deve ser manter firme o leme de teu coração. Considera que as três pessoas da TVindade estão presentes”.“ 4. Encontre um local de meditação que seja tranquilo e livre de interrupções. Busque "o isolamento, o silêncio e o descanso, dos quais o primeiro exclui companhias, o segundo exclui ruídos e o terceiro exclui atividades”, escreveu “Ussher, A method for meditation, p. 30-1; White, A method and instructions for the art of divine meditation, p. 29. "Calamy, The art o f divine meditation, p. 173. “Ussher, A method for meditation, p. 32-3.

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Joseph Hall.” Uma vez encontrado um lugar adequado, nâo fique mudando de lugar. Alguns puritanos recomendavam manter o aposento escuro ou fe­ char os olhos para afastar todas as distrações visíveis. Outros recomendavam caminhar ou sentar-se no meio da natureza. Aqui a pessoa precisa encontrar seu próprio caminho. 5. Mantenha o corpo numa postura reverente, quer sentado, quer de pé, quer andando ou deitado, prostrado perante o Todo-Poderoso. Enquanto me­ dita, 0 corpo deve ser o servo da alma, seguindo suas afeições. O objetivo é fazer a alma, a mente e o corpo se concentrarem na “glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4 .6 ).^

D iretrizes Os puritanos também ofereciam diretrizes para o processo de meditação. Eles sugeriam iniciar pedindo a ajuda do Espírito Santo. Ore para ter o poder de controlar sua mente e fazer os olhos da fé se concentrarem nessa tarefa. Con­ forme Calamy escreveu, “Gostaria que orásseis a Deus para que iluminasse vosso entendimento, despertasse vossa devoção, animasse vossas afeições e, dessa forma, vos abençoasse nesse momento, a fim de que pela meditação de coisas sagradas fôsseis feitos mais santos, tivésseis vossas concupiscências mortificadas e vossas graças mais aumentadas, fôsseis mortificados para o mundo e sua vaidade e elevados ao céu e às coisas do céu”.” Em seguida, os puritanos recomendaram 1er as Escrituras, e em seguida escolher um versículo ou doutrina em que meditar. Aconselhavam a que ini­ cialmente houvesse o cuidado de selecionar temas relativamente fáceis para meditar. Por exemplo, inicie com os atributos de Deus em vez da doutrina da TŸindade. E considere os temas um de cada vez. Além disso, escolha temas que sejam mais aplicáveis às suas atuais cir­ cunstâncias e que terão o maior benefício para sua alma. Por exemplo, se você está deprimido espiritualmente, medite na disposição de Cristo de receber pobres pecadores e perdoar todos que vêm a ele. Se sua consciência o impor­ tuna, medite nas promessas de Deus de conceder graça ao penitente. Se você está aflito por causa de suas finanças, medite nas maravilhosas providências divinas aos necessitados.” Agora memorize o(s) versículo (s) selecionado (s) ou algum aspecto do tema a fim de estimular a meditação, fortalecer a fé e servir de meio para receber orientação divina. “ Huntley, Hall and Protestant meditation, p. 8 0 -1 . “ Bates, “On divine meditation”, in: Works, p. 136-9; Baxter, The saints’ everlasting rest, p. 567-70. “ C alam y, The art o f divine meditation, p. 1 7 2 . “ C alam y, The art o f divine meditation, p. 1 6 4 -8 .

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Em seguida, fixe seus pensamentos na passagem bíblica ou em um tema bíblico, sem querer saber mais do que Deus revelou. Use sua memória para dirigir sua atenção a tudo que as Escrituras têm a dizer sobre aquele tema. Reflita em sermões antigos e outros livros edificantes. Use “o livro da consciência, o livro das Escrituras e o livro da c r i a t u r a à medida que vai refletindo sobre vários aspectos do tema: seus nomes, causas, qualidades, frutos e efeitos. À semelhança de Maria, pondere essas coisas em seu coração. Pense em ilustrações, semelhanças e dessemelhanças para esclarecer seu entendimento e estimular suas afeições. Então deixe que o dis­ cernimento determine o valor daquilo em que está meditando. Aqui está um exemplo dado por Calamy. Se o propósito é meditar no tema do pecado, “inicia com a descrição do pecado, passa para a disseminação do pecado, considera o pecado original e sua causa, os malditos frutos e efeitos do pecado, coisas associadas ao pecado e as propriedades do pecado em geral e do pecado pessoal em particular, o oposto do pecado — a graça — as metá­ foras do pecado, os títulos dados ao pecado [e] tudo que as Escrituras dizem a respeito do pecado”.’® Cabem duas advertências. A primeira é que, conforme Manton escreveu, “Não freies o espírito livre com regras sobre método. Aquilo que Deus exige não é lógica, mas religião. Quando os cristãos se prendem a essas regras e prescrições, restringem a si mesmos, e os pensamentos procedem deles como água de uma poça parada e não como água de uma fonte”.” A segunda é que, se sua mente divagar, pare, faça uma breve oração pedindo perdão, peça força para permanecer concentrado, leia de novo umas poucas passagens bíblicas apropriadas e continue. Lembre-se: leitura das Escrituras, meditação e oração são inseparáveis. À medida que uma disciplina declina, passe para outra. Persevere: não se renda a Satanás deixando de cumprir a tarefa designada. Em seguida, desperte afeições, como amor, desejo, esperança, coragem, gratidão, zelo e alegria,®“ para glorificar a Deus.®* Tenha monólogos com sua própria alma. Inclua quebcas contra si mesmo por causa de suas incapacidades e defeitos e estenda perante Deus seus anseios espirituais. Creia que ele o ajudará. Paul Baynes (1573-1617), quando analisou a meditação como um “meio pessoal” de graça, primeiramente a comparou com o poder que a visualiza­ ção possui para afetar o coração e em seguida com o processo de concepção e nascimento: “Observa como após a concepção há um trabalho de gerar e '^George Swinnock, The Christian m an’s calling, in: The works o f George Swinnock (Edinburgh: Banner of Thith Thist, 1998), 2:417. '“Calamy, The art o f divine meditation, p. 178-84. Cf. Gouge, Christian directions, p. 70-3. '’Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:281. “Baxter, The saints' everlasting rest, p. 579-90. “Jonathan Edwards, Religious affections (London: Banner of TYuth Trust, 1959), p. 24.

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dar à luz no devido tempo; da mesma maneira, quando a alma concebe pelo pensamento, as afeições são imediatamente despertadas e estimuladas, pois as afeições iniciam com o pensamento da mesma maneira como acontece com um material inflamável quando uma fagulha o incendeia. Com as afeições tocadas, a vontade é agitada e predisposta”.®^ Agora, após o despertar de sua memória, discernimento e afeições, aplique suas meditações a si mesmo para despertar em sua alma o dever e o consolo e para impedir sua alma de pecar.®^ Conforme escreveu William Fenner (1600­ 1640), “Mergulha em tua própria alma; antecipa-te e adianta-te ao teu coração. Ocupa habitualmente teu coração com promessas, ameaças, misericórdias, juízos e mandamentos. Que a meditação averigue teu coração. Constrange teu coração perante Deus”.®^ Examine-se a si mesmo para o seu próprio crescimento na graça. Reflita sobre o passado e pergunte: "O que tenho feito?”. Olhe para o futuro, indagan­ do: “O que estou determinado a fazer pela graça de Deus?”.®® Não faça essas perguntas com legalismo, mas como resultado de um entusiasmo e oportuni­ dade santos de crescer na graça operada pelo Espírito. Lembre-se: “A obra da lei [legalista] é nosso fardo; a obra de meditação é obra agradável”.®® Siga o conselho de Calamy: “Se queres chegar a ser bom pela prática da meditação, precisas descer aos porm enores. E precisas meditar de tal forma em Cristo de modo a aplicar Cristo à tua alma; e meditar de tal forma sobre 0 céu de modo a aplicar o céu à tua alma”.®^ Ponha em prática tua meditação (Js 1.8). Deixe que a meditação e a prática, como duas irmãs, andem de mãos dadas. Meditação sem prática apenas aumentará sua condenação.®® Em seguida, transforme em resoluções as aplicações que você fizer. “Deixai que vossas resoluções sejam firmes e fortes, não [meros] desejos, mas propósitos ou determinações resolutos”, escreveu White.®’ Hansforme suas resoluções em compromissos de lutar contra suas tentações para pecar. Escreva suas resoluções. Acima de tudo, resolva que você viverá "como con­ vém a alguém que vem meditando sobre coisas santas e celestiais”. Com uma “afetuosa resignação”, entregue-se a si mesmo, sua família e tudo que você possui nas mãos de Deus. “ Paul B ayn es, A help to true happinesse (Lon don : R. Y [oun g] p ara Edw ard Brew ster, 1 635). “ B ates, “On divine m ed itation ”, in: Works, 3 :1 4 5 . “ Fenner, The use cmd benefit o f divine meditation, p. 1 6 -2 3 . “ U ssher, A method for meditation, p. 3 9 . ‘‘W illiam Bridge, Christ and the covenant, the work and way o f meditation. Cod’s return to the soul or nation, together with his preventing mercy: in ten serm ons, in: The works o f the rev. William Bridge (1 8 4 5 ; reim pr., B eaver Falls: Soli Deo G loria, 1 9 8 9 ), 3 :1 5 3 . “ Calam y, The art o f divine meditation, p. 108. “ W atson. Sermons, p. 2 6 9 , 271. “ W h ite, A method and instructions for the art o f divine meditation, p. 53.

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Conclua com oração, ação de graças e cântico de salmos. "A meditação é o melhor início da oração, e a oração é a melhor conclusão da meditação”, escre­ veu George Swinnock (c. 1627-1673). Watsón afirmou: “Ora ao longo de tuas meditações. A oração santifica tudo; sem oração, não passam de meditações impuras; a oração firma a meditação na alma; a oração é dar o nó no final da meditação para que ela não escape; ora para que Deus mantenha para sempre em tua mente aquelas santas meditações, para que o aroma delas permaneça em teu coração”.™ Agradeça ao Senhor a ajuda na meditação, caso contrário, conforme Richard Greenham (c. 1542-1594) advertiu, “experimentaremos lutas na nossa próxima meditação”.” As versões métricas de Salmos são de grande ajuda na meditação. Sua forma métrica facilita a memorização. Sendo Palavra de Deus, são um tema apropriado para meditação. Sendo uma “anatomia completa da alma”, con­ forme Calvino os chamava, oferecem material e orientação abundantes para a meditação. Como orações (SI 72.20) e ações de graças (SI 118.1), são tanto um veículo adequado para meditação quanto uma maneira apropriada de concluí-la. Joseph Hall escreveu que encontrava muito consolo em concluir suas meditações, elevando seu “coração e voz a Deus com o cântico de um ou dois versículos dos Salmos de Davi — um que corresponda à nossa disposi­ ção e ao assunto de nossa meditação. Dessa maneira, o coração conclui com muita doçura e contentamento”.™ John Lightfoot (1602-1675) acrescentou: “Cantar louvor a Deus é uma obra da mais excelente meditação dentre todas que realizamos em público. Ela mantém o coração por mais tempo ocupado com a coisa falada. Orar e ouvir passam rapidamente de uma frase para outra; [o louvor] se ocupa por mais tempo a respeito”. Por fim, não passe rápido demais da meditação para o envolvimento com coisas deste mundo, para não acontecer que, conforme Thomas Gouge aconselhou, “assim repentinamente esfries aquele calor espiritual que aquele exercício havia acendido em teu coração”.™Lembre-se de que uma única hora passada em tal meditação “vale mais do que mil sermões”, Ussher afirmou, “e isso não é nenhuma depreciação da Palavra, mas uma honra para ela”.™

Os temas de meditação Os puritanos sugeriam vários temas, objetos e materiais de meditação. O núme­ ro depois de cada tópico indica o número de autores puritanos que encontramos ^Watson, Sennons, p. 269. ^'Greenham, “Grave counsels and godly observations", in: Works, p. 41. ^Joseph Hall, The art o f meditation (Jenkintown: Sovereign Grace, 1972), p. 26-7. '’Gouge, Christian directions, p. 70. '“Ussher, A method for meditation, p. 43.

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conclamando à meditação naquele tema. Esta lista segue a estrutura tradicional de teologia sistemática reformada.

Prolegômenos A Palavra sagrada de Deus (3); a defesa do cristianismo (1).

Teologia propriam ente dita A natureza e atributos de Deus (7); as obras e as providências de Deus (7); a glória de Deus como finalidade principal do homem (4); a majestade de Deus.(3); as misericórdias de Deus (3); Deus como Criador (2).

Antropologia A pecaminosidade do pecado e nosso pecado pessoal (9); a corrupção e o poder de engano do coração (5); a Queda em Adão e o alienar-se de Deus (4); a vaidade do homem (4); 0 valor e a imortalidade da alma (3); a fragilidade do corpo (2); a transitoriedade das comodidades terrenas (1); o pecado da cobiça (1); o contraste entre Deus e o homem (1).

Cristologia A Paixão e a morte de Cristo (8); 0 amor de Cristo (5); a pessoa de Cristo (4); o mistério e o fascínio do evangelho (4); as naturezas de Cristo (2); os ofícios de Cristo (2); a vida de Cristo (2); os estados de Cristo (1).

Soteriologia e a vida cristã As promessas de Deus (7); autoexame em busca de indícios da graça (5);

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OS abundantes privilégios dos crentes (3); a graça e a pessoa do Espírito Santo (3); os benefícios da fé (2); santificação (2); oração (2); os mandamentos de Deus (2); as admoestações e ameaças de Deus (2); 0 perigo da apostasia (1); 0 pequeno número dos salvos (1); perigos espirituais (1); amor, alegria, esperança (1); 0 dia de descanso (1); autonegação (1).

Edesiologiã As ordens de Deus (5); a ceia do Senhor (4); 0 batismo (2); ouvir e ler a Palavra (2); as alegrias e tristezas da igreja (1).

Escãtologia Céu (10); morte (8); julgamento (7); inferno (7); eternidade (5). Os puritanos chamavam esses temas de verdades claras, poderosas e úteis de Deus. Alguns puritanos, como Joseph Hall, sugeriam listas mais detalhadas do que outros. Hall relacionou 87 temas para meditar e junto com cada tema um parágrafo sobre como fazê-lo. Estes incluem fama e grandeza; ignorância; depravação; viver santo; fofoca; más companhias; promessas de Deus; amor ao mundo; contentamento; hipocrisia; felicidade; colegas; céu e terra; trabalho e dor; riquezas; céu e inferno; morte; aflição; batalha piedosa; pecado; sucesso; crescimento na graça; orgulho; ódio ao pecado; preconceito; cobiça; oração; amor; blasfêmia; dignidade; tentação; uso de meios [de graça];, adoração; felicidade; obediência; arrependimento; ambição; vaidade; brevidade da vida; autoexame; adversidade; aflição; fé e filosofia; prazer; pecado; am ^os fiéis; dissidência e verdade; angústia e preocupação; temor; os pagãos e o cristão; a luz

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dos olhos; a mente e o coração; religião autêntica; ferindo-nos a nós mesmos; o coração e a língua; o uso do tempo; preocupações; providência; amor; desprazer; amizade; procura de produtos com desconto; repreensão; inveja; prazeres mundanos; seguir bons exemplos; tempo; recreação; boas obras; frutuosidade; tolice; fazer o bem; habitação solitária; vida feliz; correção celestial; fome celeste; arrependimento; batalha espiritual; força nas tribulações; mentalidade celestial; humildade; morte; propósito de vida; extrair do mal o bem; loucura e a própria prática da meditação.”

Está claro que para os puritanos alguns tópicos deviam ser objeto de mais atenção do que outros. Isso levou John Owen a afirmar: “Se observei alguma coisa com a experiência, é isto: um homem pode medir seu crescimento e decair na graça baseado em seus pensamentos e meditações na pessoa de Cristo, na glória do reino de Cristo e de seu am or”.^® Para os puritanos, o tema mais importante para meditação era provavel­ mente o céu, o lugar onde Deus é conhecido, adorado e desfrutado plenamente, onde Cristo está sentado à direita do Pai e onde os santos se alegram à medida que são transformados de glória em glória. “A meditação é a vida da maioria dos outros deveres, e as visões do céu são a vida da meditação”, escreveu Baxter.’’^ O céu era o tema supremo de meditação pelas seguintes razões: • Cristo está agora no céu, e nossa salvação consiste na união com Cristo por meio do Espírito Santo. Cristo é nossa sabedoria, justiça, santificação e redenção. Cristo, o centro do céu, deve ser o centro de toda nossa fé, esperança e amor. • Só conseguimos viver como cristãos na presente era maligna se tivermos a mente de Cristo, ou seja, se tivermos uma genuína mentalidade ce­ lestial, enxergando nossa terra e esta era a partir da perspectiva do céu. • O céu é 0 objetivo de nossa peregrinação. Somos peregrinos na terra, via­ jando com fé, amor e esperança rumo ao céu para estarmos com Cristo.” Os puritanos ensinavam que as meditações sobre o céu e outros temas têm prioridade em três ocasiões. Em primeiro lugar, meditação especial é necessária junto com o culto, em particular no que diz respeito ao sermão. “Deus exige que ouças sermões, exige que medites sobre os sermões que ouves”, escreveu ” Hall; The art o f meditation; p. 3 7 -6 0 . ^ B la n ch a rd , Complete gathered gold, p. 4 0 9 . ’’^Baxter, The saints’ everlasting rest, p. 702. '*Tbon, From mind to heart, p. 9 5 -6 . A cerca de c o m o m ed itar sob re o cé u , v eja W h ite, A me­ thod and instmctiOTis for the art o f divine meditation, p . 2 8 1 -9 4 ; B axter, The saints’ everlasting rest, p. 6 2 0 -5 2 ; T h o m as C ase, The select works o f Thomas Case, p . 1 -2 3 2 (segun do livro).

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Calamy/’ Conforme James Ussher registrou, "Cada sermão não passa de uma preparação para a meditação”.“ Bons sermões não apenas informam a mente com sã doutrina, mas tam­ bém despertam as afeições. Eles levam a vontade a se desviar do pecado e a amar a Deus e ao próximo. A meditação amplia e dirige as afeições mediante 0 recebimento da Palavra de Deus no coração, vinda da mente. Quando as pessoas param de meditar sobre os sermões, param de se beneficiar deles. Richard Baxter escreveu: "Por que tanta pregação se perde entre nós e por que pode acontecer de aqueles que professam a fé correrem de um sermão para outro, nunca se cansarem de ouvir ou 1er e ainda assim terem almas famintas e abatidas? Não conheço causa alguma mais verdadeira ou maior do que sua ignorância e a extrema negligência da meditação”. Alguns ouvintes têm anorexia, Baxter afirmou, pois "não têm vontade de comer nem digerem 0 que comem”, mas outros têm bulimia — "têm vontade de comer, mas não digerem o que comem”.®’ Puritanos conscienciosos frequentemente anotavam os sermões para fa­ cilitar a meditação. Na minha própria igreja, uma cristã idosa decidiu imitar essa prática. Cada domingo à noite ela passava uma hora de joelhos com as anotações dos sermões do dia, orando e meditando enquanto percorria as ano­ tações. Com frequência, afirmava que essa era a melhor parte de seu domingo. Em segundo, para receber corretamente o sacramento da ceia do Senhor, espera-se que o crente medite no Senhor Jesus como sacrifício pelo seu pecado. Conforme Thomas White escreveu, “Medita sobre teus deveres preparatórios, concomitantes e subsequentes: medita sobre o amor de Deus Pai, sobre o amor de Deus Filho, Jesus Cristo, considera a excelência de sua pessoa, a grandeza de seus sofrimentos e como são váhdos para satisfazer a justiça de Deus e, de igual maneira, considera a respeito da excelência, natureza e uso do sacramento”.®’' Calamy relacionou 12 temas para meditações durante o sacramento: "o grande e maravilhoso amor de Deus Pai em dar Cristo; o amor de Cristo em se entregar; a odiosidade do pecado; a excelência desse banquete sacramental; tua própria indignidade; tuas carências e necessidades espirituais; o estado maldito do receptor indigno; o estado feliz daqueles que vêm dignamente; os elementos sacramentais [pão e vinho]; os atos sacramentais [como os atos do pastor representam Cristo); as promessas sacramentais; o que retribuir a Cristo pela [dádiva de sua ceia] ”.®®Alguns teólogos puritanos, como Edward ” Calam y, The art o f divine meditation, p. 4 . “ Ussher, A method for meditation, p . 4 9 . “ B axter, The saints’ everlasting rest, p. 5 4 9 -5 0 . “ W hite, A method and instractions for the art o f divine meditation, p. 8 8 . “ Calam y, The art o f divine meditation, p . 8 8 -9 6 . Cf. M anton, “Serm on s upon G enesis 2 4 :6 3 ”, in: Works, 1 7 :2 8 8 -9 7 .

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Reynolds (1599-1676), escreveram tratados inteiros para ajudar os crentes durante a ceia do Senhor.“ John Owen mostrou como a preparação para a ceia do Senhor envolvia meditação, exame, súplica e expectativa.“ Esperava-se que cada crente participasse dessa preparação (cf. Catecismo Maior de Westminster, perguntas 1 7 1 ,1 7 4 ,1 7 5 ). Em terceiro, todo domingo era um momento especial para meditação. Era tempo de alimentar-se espiritualmente para os que temem a Deus se abastecer de alimento espiritual para a semana seguinte. Assim, o domingo era carinho­ samente chamado de “dia de feira da alma”. Finalmente, puritanos como Nathanael Ranew (c. 1602-1677), que escre­ veu extensamente sobre a meditação, deram aos crentes várias orientações baseadas em sua maturidade espiritual. Ranew escreveu capítulos para “jovens cristãos recém convertidos”, para "cristãos mais maduros e com mais idade” e para “cristãos idosos”. Quanto maior a idade do cristão, maior a expectativa de meditações mais profundas.“

Os benefícios da meditação Os puritanos dedicaram dezenas e dezenas de páginas aos benefícios, virtudes, utilidade, vantagens ou aperfeiçoamentos promovidos pela meditação. Aqui seguem alguns desses benefícios: • Ajuda a nos concentrar no Deus triúno, a amá-lo e desfrutá-lo em todas as suas pessoas (IJo 4.8) — intelectual, espiritual e esteticamente. • Ajuda a aumentar o conhecimento da verdade sagrada. “Ela remove o véu da face da verdade.” • É a “ama da sabedoria”, pois promove o temor a Deus, que é o princípio da sabedoria (Pv 1.7). • Aumenta nossa fé, ao nos ajudar a confiar no Deus de promessas em todas os nossos problemas espirituais e no Deus da providência em todos os nossos problemas exteriores.®^ • Intensifica as afeições. Watson chamou a meditação de “o fole das afeições”. Ele afirmou: “A meditação choca boas afeições, assim como “ Edward Reynolds. Meditation on the holy sacrament o f the Lord’s Last Supper, in: The whole works o f the right Rev. Edward Reynolds (Morgan: Soli Deo Gloria, 1999), 3:1-172. “John Owen, Sacramentai discourses, in: William H. Goold, org.. The works o f John Owen (reimpr., Edinburgh: Banner of Huth Hust, 1999), 9:558-63. “Nathanael Ranew, Solitude improved by divine meditation (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995), p. 280-321. “Calamy, The art o f divine meditation, p. 40-2.

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a galinha faz com seus pintinhos, sentando-se sobre eles; acendemos as afeições com esse fogo da meditação” (SI 39.3).*® Fomenta o arrependimento e a melhoria de vida (SI 119.59; Ez 36.31). É uma grande amiga da memória. Ajuda-nos a ver a adoração como uma disciplina a ser cultivada. Leva­ nos a preferir a casa de Deus à nossa própria. Faz as Escrituras permearem a disposição da alma. É uma grande ajuda à oração (SI 5.1). Ela afina o instrumento da oração antes da oração. Ajuda-nos a ouvir e a 1er a Palavra com proveito real. Ela torna a Palavra “cheia de vida e energia para nossa alm a”. William Bates escreveu: "Ouvir a Palavra é como ingestão. E, quando meditamos na Palavra, isso é digestão. E essa digestão da Palavra pela meditação produz ternas afeições, zelosas resoluções e santas ações”.*® A meditação sobre os sacramentos ajuda nossas “graças a serem me­ lhores e mais fortes”. Ela ajuda a fé, a esperança, o amor, a humildade e inúmeros consolos espirituais a vicejarem na alma. Ressalta a odiosidade do pecado. “Ela reúne todas as armas e arregimenta' todo exército de argumentos para esmagar nossos pecados e atacá-los com força no coração”, escreveu Fenner.®* Thomas Hooker afirmou: “A meditação exacerba o aguilhão e a força da corrupção a fim de preva­ lecer com mais eficácia”.®* Ela é “um forte antídoto contra o pecado” e “uma cura para a cobiça”. Capacita a nos “desincumbir de deveres religiosos, pois transmite à alma a sensação e o sentimento revigorantes da bondade de Deus, de modo que a alma é encorajada ao dever”.®^ Ajuda a evitar pensamentos vãos e pecaminosos (Jr 4.14; Mt 12.35). Ela ajuda a nos desacostumar da presente era maligna. Fornece recursos interiores dos quais podemos sorver (SI 77.10-12), incluindo orientação para o cotidiano (Pv 6.21,22). Ajuda-nos a perseverar na fé; mantém nosso coração “íntegro e espi­ ritual no meio de todas as nossas ocupações exteriores e mundanas”, escreveu William Bridge.®* “ Watson, Sermons, p. 256. “Bates, “On divine meditation”, in: Wbrfes, 3:131. “Fenner, The use and benefit o f divine meditation, p. 3. "Hooker, The application o f redem ption, p. 217. "Bates, “On divine meditation”, in: Works, 3:135. "Bridge, Christ and the covenant, in: Works, 3:133.

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• É uma arma poderosa para repelir Satanás e a tentação (SI 119.11,15; IJo 2.14). • Oferece alívio nas aflições (Is 49.15-17; Hb 12.5). • Ajuda-nos a beneficiar outros com nossa comunhão e conselhos espiri­ tuais (SI 66.16; 77.12; 145.7). • Promove gratidão por todas as bênçãos que Deus derramou sobre nós por meio de seu Filho. • Glorifica a Deus (SI 49.3) .®‘* Em suma, conforme Thomas Brooks (1608-1680) escreveu, “a meditação é 0 alimento de nossa alma, é o próprio estômago e calor do corpo em que verdades espirituais são digeridas. Um homem consegue viver sem o coração tanto quanto consegue tirar proveito daquilo que lê sem meditação [...] Não é aquele que lê mais, mas aquele que medita mais que demonstrará ser o cristão mais excelente, mais amável, mais sábio e mais forte

Os obstáculos à meditação Líderes puritanos com frequência advertiam as pessoas acerca de impedimentos ou obstáculos à meditação. Segue um resumo da resposta deles a esses obstáculos: Obstáculo n .° 1: Despreparo ou ignorância. Essas pessoas afirmam que “não conseguem concentrar o pensamento em um assunto”. Seus “pensamentos são leves como uma pluma, lançados de um lado para outro”. Resposta: A incapacidade, a ignorância e pensamentos divagantes não isentam do dever. Sua “perda de capacidade” não implica a “perda de direito” por parte de Deus. Verdade seja dita, provavelmente você está despreparado porque negligenciou a meditação e não tem amado a verdade. “A pecaminosa falta de disposição não anula nossas obrigações para com Deus, da mesma ma­ neira que a embriaguez de um empregado não é pretexto para não trabalhar”, Manton escreveu.’®Conserte seu problema adquirindo “um bom estoque de conhecimento santificado” e com “exercício constante” desse conhecimento, em todo o tempo dependendo da ajuda do Espírito Santo. No devido tempo, você verá a meditação se tornar mais fácil e mais agradável. ”Cf. Oliver Heywood, The whole works o f the rev. Oliver Heywood (Idle: por John Vint para F. Westley et al., 1825), 2:276-81. ’^Thomas Brooks, “A word to the reader”, in: Precious rem edies against Satan's devices, p. 8; “Epistle dedicatory”, in: The m ute Christian under the sm arting rod, p. 291, in: Alexander Grosart, org.. The works o f Thomas Brooks (1861-1867; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Hust), Works, 1:8,291. ’^Thomas Manton, Sermons upon Psalm 119, in: The works o f Thomas Manton (London: James Nisbet & Co., 1874), 6:145.

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Obstáculo n. ° 2 : Ocupações excessivas. Essas pessoas afirmam que "estão tão exaustas com as atividades deste mundo que não conseguem, numa atitude sol ?ne e séria, gastar tempo nesse dever”. Resposta: A verdadeira religião não é praticada somente no tempo de lazer. Ocupações excessivas devem nos levar a meditar mais, visto que dessa maneira temos mais necessidades para levar perante Deus e para meditar sobre elas. Obstáculo n .° 3: Letargia espiritual. Essas pessoas admitem que, embora tenha boas intenções, sua alma está propensa a se desviar da meditação. Resposta: Mateus 11.12 afirma que o céu é a recompensa dos “que se utilizam da força [porque] apoderam-se dele”. Por que você é preguiçoso na busca de coisas espirituais que podem colher recompensas eternas quando não é preguiçoso na realização de trabalho secular neste mundo, o qual produz apenas recompensas temporárias? “A sonolência [espiritual] cobrirá o homem de trapos” (Pv 23.21b). Conforme Manton afirmou, “É melhor experimentar a dor da abnegação do que a dor do castigo e estar preso às amarras do dever do que às correntes das trevas”.’^ Obstácub n. ° 4 : Prazeres e amizades mundanos. Essas pessoas afirmam que não querem ser demasiadamente corretas e, por isso, não desejam abandonar diversões e amigos vãos. Resposta: “Os prazeres do mundo perturbam nossa alma e deixam nosso, corpo despreparado para os deveres da meditação [...] Lembra-te disto: a, doçura da religião é incomparavelmente maior do que todos os prazeres dos sentidos”, escreveu Bates.” Obstáculo n. ° 5: Hostilidade do coração. Essas pessoas afirmam que não gos­ tam de ficar debaixo do jugo de uma tarefa tão difícil. Sob o peso da culpa, temem ficar a sós com Deus. Resposta: “Purifica a tua consciência com a aplicação irrestrita do sangue de Crfsto”, Manton aconselhou, e depois disso coloque-se debaixo do jugo dos: meios de graça, inclusive a meditação (SI 19.14).” As consequências de negligenciar a meditação são sérias, Calamy advertiu. Isso conduz à dureza do coração. Por que as promessas e as ameaças de DeuS nos impressionam tão pouco? É porque deixamos de meditar nelas. Por que somos tão ingratos a Deus por suas bênçãos? Por que suas providências e afli­ ções deixam de produzir frutos de piedade em nossas vidas? Por que deixamos ”Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:283. ’•Bates, “On divine meditation”, in: Works, 3:122-3. ”Manton, “Sermons upon Genesis 24:63”, in: Works, 17:285. Cf. Hooker, The appUcatim of redemption, p. 230-40.

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de nos beneficiar com a Palavra e os sacramentos, por que somos tão críticos com os outros, por que nos preparamos com tanta frouxidão para a eternidade? Será que não é em grande parte devido à nossa falta de meditação?““ Precisamos nos disciplinar para meditar. A maioria dos pastores purita­ nos afirmava isso. No entanto, mesmo na época dos puritanos um número relativamente pequeno de pessoas via isso como seu dever. Baxter escreveu: “Muitos ficam transtornados se deixam de ouvir um sermão, se deixam de fazer um jejum ou uma oração pública ou privada, contudo, jamais ficaram transtornados por terem deixado de meditar, talvez nunca em toda a vida até hoje”.‘®‘

Conclusão: meditação como autoexame A meditação puritana era mais do que um meio pessoal de graça; era um mé­ todo abrangente de devoção puritana — uma habilidade bíblica, doutrinária, experiencial e prática. Sua teologia era paulina, agostiniana e calvinista. Seu tema era tirado do livro das Escrituras, do livro da Criação e do livro da cons­ ciência. Conforme William Bridge afirmou, "A meditação é o esforço veemente ou intenso com que a alma se dedica a um assunto pelo qual a mente do homem pondera, persiste e se fixa sobre o assunto para seu próprio proveito e benefício”, o que por sua vez leva à glória de Deus.*“ De modo característico, os puritanos concluíam seus estudos sobre a me­ ditação conclamando os leitores ao autoexame, o qual consiste no seguinte:

Prova • Será que suas meditações são motivadas pelo exercício de “uma fé viva”? A meditação autêntica é inseparável do exercício da fé. Alguma vez você já che­ gou a meditar de acordo com a descrição feita por Samuel Ward (1577-1640)? Ele afirmou: “Desperta tua alma com [meditação] para conversar com Cristo. Olha para aquelas promessas e privilégios em que essencialmente crês. Agora pensa concretamente neles, coloca-os debaixo de tua língua, mastiga-os até que sintas um pouco de doçura no palato de tua alma. Inspeciona-os conjunta e separadamente: às vezes, reflete sobre um, às vezes, mais profundamente sobre outro. É isso que o cônjuge chama de entrar nos jardins e comer os frutos, que eu, de forma clara, chamo de usar a fé e viver pela fé”.“’ '“Calamy, The art o f divine meditation, p. 28-40. '“Baxter, The saints' everlasting rest, p. 549. '“Bridge, "On divine meditation”, in: Works, 3:125. '“Samuel Ward, A collection o f sermons and treatises (London, 1636), p. 69-70.

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• “Será que esses pensamentos espirituais em teu coração produzem santidade em tua vida?” Lembre-se: “Cansar-se dos pensamentos de Deus é degenerar-se em demônio” (cf. Tg 2 .1 9 ).‘“

Repreensão ou exortação • Para o descrente: Quando Deus criou você como criatura racional, por acaso teve a intenção de que você usasse seus pensamentos para propósitos egoístas e pecaminosos? Por que Deus não está em todos os seus pensamentos? “Por acaso não tens um Deus e um Cristo para neles pensar? E será que a salvação, por ele e a glória eterna não merecem teus pensamentos mais sublimes? Tens pensamentos suficientes e mais do que o bastante para outras coisas — para coisas inferiores, para assuntos bem insignificantes — e por que não para Deus e para a Palavra de Deus?”, Manton indagou.*“ • Para o crente: negligenciar a meditação deve “nos atingir com temor e tris­ teza”. Como é aviltante para Deus quamdo nossa meditação se desvia dele para objetos pecaminosos! Se o lavrador medita sobre sua terra, o médico sobre seus pacientes, o advogado sobre suas causas, o dono de loja sobre seus produtos, não deveriam os crentes meditar sobre seu Deus e Salvador?*“ Os puritanos nos diriam: “Se vocês continuarem a negligenciar a medita­ ção, isso abafará ou destruirá seu amor a Deus. Tornará desagradável pensar acerca de Deus. Isso os deixará abertos ao pecado, de modo que verão o pecado como um prazer. Isso os deixará vulneráveis e frágeis diante de todo tipo de provações e tentações. Em resumo, os levará a abandonar a Deus”.*®' “Nenhum dever santo virá até nós”, Ranew escreveu, “nós temos de ir até eles”.*“ Demos ouvidos à exortação de Watson: “Se no passado a negligenciastej lamenta a tua negligência e agora começa a ter cuidado disso: tranca-te com Deus (ao menos uma vez por dia) mediante meditação santa. Sobe esse monte e, quando tiveres chegado ao alto dele, verás uma linda paisagem. Cristo e o céu diante de ti. Deixa-me lembrar-te daquele dito de Bernardo: ‘Ó santo, acaso não sabes que teu marido. Cristo, é tímido e não é dado a ficar no meio de pessoas? Pela meditação, retira-te para o aposento fechado ou para o campo, e ali terás os abraços de Cristo”.*“

'“Manton, Sennons upon Psalm 119, in: Works, 7:480. ‘“Manton, Sermons upon Psalm 119, in: IVorfes, 6:145. '“‘Calamy, The art o f divine meditation, p. 58-75. ‘“Edmond Smith, A tree by a stream : unlock the secrets o f active meditation (Fearn: Christian Focus, 1995), p. 36. ‘"“Ranew, Solitude improved by divine meditation, p. 33. ""Watson, Serm ons, p. 241-3.

Capítulo 56 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□oaaaaooDaooDDDDaD

Os puritanos e a consciência

Não conseguimos fazer nada bem feito sem alegria, e sem uma boa consciência, que é o fundamento da alegria. R ichard S ie b e s '

A teologia protestante é conhecida pela atenção que dá à consciência. Pense em Martinho Lutero, cuja descoberta repentina da justificação pela fé veio enquanto se atormentava com questões de consciência. Ele estava tão quebrantado por estar ciente de seu pecado que, qualquer que fosse a maneira que tentasse, não conseguia tranquilizar sua consciência. O cristianismo de Lutero era uma religião de consciência, não somente relacionada ao pecado e à culpa, mas também relacionada às Escrituras e à obediência que elas exigiam. Em Worms, quando se pediu a Lutero que se retratasse formalmente das idéias que havia expressado em seus livros, ele respondeu: “Minha consciência é prisioneira da Palavra de Deus. Não posso e não irei me retratar de nada, pois ir contra a consciência não é nem correto nem seguro”.^ Ao usar a palavra seguro, Lutero queria dizer que ir contra a própria consciência põe em perigo a própria alma. Assim, ele se pôs diante de homens e se entregou nas mãos de Deus para mostrar até que ponto estava disposto a ir para atestar a essência do cristianismo. 'Richard Sibbes, An exposition o f 2 Corinthians chapter 1, in: Alexander B. Grosart, org.. The complete works o f Richard Sibbes (1862-1864; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Thist, 2001), 3:223. 'lïechos deste e do próximo capítulo foram apresentados em forma de palestra no Sixteenth Century Studies Conference, em Dallas, Texas, em 29 de outubro de 2011, e impressos em The Banner ofTruth, n. 585 (Jun. 2012): 20-5, e n. 586 (Jul. 2012): 13-8. ^Roland H. Bainton, Here I stand: a life o f Martin Luther (New York: Abingdon-Cokesbury, 1950), p. 185.

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João Calvino tratou da consciência no contexto da liberdade cristã. Ele afirmou que a consciência fica entre Deus e nós quando nos apresentamos no tribunal de Deus. Ele definiu a consciência como “um senso de justiça divina, como uma testemunha adicional” que não deixará as pessoas “esconderem seus pecados ou escaparem da acusação no tribunal do Juiz supremo”.* A partir da época de Lutero e ao longo da era puritana, quase todos os líderes da Reforma ressaltaram que a consciência do homem precisa estar em harmonia com a Palavra de Deus. A Palavra de Deus nos foi dada para instruir nossa consciência, e a consciência nos é dada para que vivamos em sujeição à Ptdavra de Deus. A atenção que os puritanos deram a essa relação e a explicação detalhada que apresentaram foram mais completas do que os reformadores haviam feito. A tarefa de maior importância do pregador puritano era despertar e orientar a consciência humana. Para os puritanos, a consciência era uma realidade maravilhosa e inevitável. Vários puritanos escreveram livros sobre a consciência. William Perkins (1558-1602) escreveu A discourse o f conscience wherein is set down the natu­ re, properties, and differences thereof: as also the way to get and keep a good conscience [Uma análise da consciência em que se determinam sua natureza, propriedades e diferenças e também a maneira de obter e manter uma boa consciência],^ William Ames (1576-1633) escreveu Cónscience, with the power and cases thereof [A consciência e seu poder e casos],* William Fenner (1600­ 1640) escreveu The souls looking-glasse, lively representing its estate before God: with a treatise o f conscience; w herein the definitions and distinctions thereof are unfolded, and severaU. cases resolved [O espelho da alma, uma descrição vivida de sua condição diante de Deus, junto com um estudo da consciência em que suas definições e distinções são explicadas e vários casos são resolvidos]* e Nathanael Vincent (1638-1697) escreveu Heaven upon earth: or, a discourse concerning conscience [ 0 céu na terra: ou uma análise sobre a consciência].^ Esses livros ajudaram a formular uma teologia puritana da consciência, algo essencial para entender a importância da consciência para os puritanos e a abordagem puritana típica do aconselhamento. Neste capítulo, examinaremos Vohn Calvin, Institutes o f the Oiristian re l^ o n , edição de John T. McNeill, tradução para 0 inglês de Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), 3 .1 9 .IS [edições em portu­ guês: João Calvino, As institutos, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 200 6 ), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Editora UNESP, 2 0 0 8 ), 2 vols.). ’ William Perkins, A discourse o f conscience (London, 1596). ^William Ames, Conscience, with the power and cases thereof (honàon, 1639). ‘William Fenner, The souls looking-glasse... (Cambridge: Roger Daniel para John Rothwell, 1643). 'Nathanael Vincent, Heaven upon earth (London: para Thomas Parkhurst, 1676).

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primeiro a ideia puritana da natureza da consciência conforme criada por Deus; em segundo, o estado corrompido da consciência devido ao pecado do homem; e, em terceiro, a restauração da consciência por meio da Palavra e do Espírito de Cristo.

A natureza da consciência De acordo com os puritanos, a consciência é um aspecto universal da natureza humana, mediante a qual Deus estabeleceu sua autoridade na alma para que os homens racionalmente julguem a si mesmos.

Todos possuem uma consciência Os autores puritanos iniciaram suas obras sobre a consciência ressaltando, primeiramente, que as Escrituras, a experiência e “a luz da natureza” declaram que cada pessoa possui uma consciência.® Por exemplo, Nathanael Vincent escreveu: Esta coisa, d en o m in a d a consciên cia, está em todos; n ã o e x iste h o m e m algu m sem e la . P o d e s ta m b é m su p o r q u e u m h o m e m se m e n te n d im e n to é u m h o m e m se m c o n sciê n cia e q u e u m h o m e m se m c a p a c id a d e d e c o n h e c e r q u alq u er co isa é u m h o m e m se m ca p a cid a d e d e refletir so b re si m e s m o . C a d a a lm a ra c io n a l, sen do c a p a z ta n to d e p e c a r q u a n to d e ag ir p e la g ra ç a , é d o ta d a d e u m a ca p a cid a d e de refletir so b re si m e s m a , p a ra q u e o p e c a d o seja co n d e n a d o e a g ra ç a se ja ap ro v ad a. T odos sã o c h a m a d o s a “c o n sid e ra r se u s c a m in h o s ” (A g 1 .5 ,7 , A C F ), m a s lev ar em c o n s id e ra ç ã o n o s so s p ró p rio s ca m in h o s é o b ra d a c o n s c iê n c ia ; a c o n s c iê n c ia e stá , p o rta n to , e m to d o s .’

Vincent prosseguiu afirmando: “Quando despertada, essa consciência tratará sem reservas das maiores [questões...] É impossível fugir da consciência; livrarse da consciência é tão impossível quanto fugir de nós mesmos.“ Fenner acrescentou: “Quando criou o homem no início, o Senhor a fixou indelevelmente nele. É verdade que desde a Queda do homem a consciência está terrivelmente corrompida, mas o homem jamais consegue livrar-se dela: a consciência continua para sempre dentro de cada homem, quer esteja na terra, quer no céu, quer no inferno”." Em seguida, ele destacou que a cons­ ciência é irreprimível (observe-se a culpa dos irmãos de José vinte anos depois de seu crime), suprema (tanto como testemunha quanto como comandante) “Vincent, Heaven upon earth, p. 5-17. “Vincent, Heaven upon earth, p. 17-8. “■ Vincent, Heaven upon earth, p. 18-21. "Fenner, The souls looking-glasse, p. 23.

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e íntima (i.e., conhece os segredos e escrutina tudo que pensamos, dizemos e fazemos)”.'^ Aqueles que negam a existência da consciência são motivados mais pelo seu pecado do que por sua convicção. Vincent escreveu: “A verdadeira causa de pecadores moralmente insensíveis dizerem que não existe algo como a consciência é esta: a consciência os amaldiçoa, censura e inquieta, e eles, desejando acima de tudo que não houvesse algo assim, empregam sua razão corrompida para argumentar contra ela”.‘^ Norman Clifford escreve que, para os puritanos, 0 testemunho da consciência na alma do homem era o meio pelo qual todo conhecimento natural de Deus era corroborado. A presença da consciência era a presença da testemunha e do embaixador de Deus na alma do homem, sempre lembrando-o de sua responsabilidade para com Deus. Isso servia para tirar do homem toda desculpa para não crer em Deus e para não cumprir a legítírrta vontade divina (Rm 1.19,20).“

A consciência capacita o autoconhecim ento e o autojulgamento Samuel Ward (1577-1640), seguindo os teólogos medievais Hugo de São Vítor (c. 1096-1141) e Bernardo de Claraval (1090-1153), descreveu a consciência como a capacidade que Deus deu à alma para refletir sobre si mesma.*® Antes Richard Sibbes (1577-1635) havia escrito: “Pois o que é a consciência senão a própria alma refletindo acerca de si mesma? O atributo e a característica da alma racional é que ela pode voltar-se para si mesma”.** De William Perkins em diante, a maioria dos teólogos puritanos definiu a consciência como uma faculdade racional que fornece autoconhecimento moral e juízo moral que, imbuída de autoridade, trata de dúvidas, servindo de voz de Deus no tocante ao que é certo e errado, ao dever e mérito.*^ Ao destacar '^Fenner, The souls looking-glasse, p. 23. '^Vincent, Heaven upon earth, p. 5. “ Norman Keith Clifford, “Casuistical divinity in English Puritanism during the seventeenth century: its origins, development and significance” (tese de doutorado. University of London, 1957), p. 149. ‘^Samuel Ward, “Balm from Gilead to recover conscience”, in: Sermons and treatises (1636; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth TVust, 1996), p. 97. Veja Gary Brady, “A study of ideas of the conscience in Puritan writings, 1590-1640” (dissertação de mestrado, Westminster Theological Seminary, 2 0 0 6 ), p. 46. “ Sibbes, 2 Corinthians chapter 1, in: Works, 3:208 ''E m harmonia com a tradição dominicana e tom ista, a maioria dos puritanos ensinava que a consciência está localizada na alma racional, ou entendimento; um a minoria a situava na vontade, de conformidade com a tradição franciscana. Uns poucos, com o Richard Baxter, se re­ cusaram a assumir uma posição (A Christian directory, or, a body o f practical divinity and cases

of conscience, in: William Orme, org., The practical works o f the rev. Richard Baxter [London;

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essa ideia, às vezes os puritanos recorriam à própria palavra consciência. Eles sustentavam que consciência deriva de duas palavras latinas; scientia, que significa “conhecimento”, e con, um prefixo que deixa implícita a comunidade ou a partilha de algo, neste caso, conhecimento partilhado com Deus. Assim, consciência significa conhecimento que é partilhado com Deus ou conhecimento acerca de nós que Deus partilha conosco. Assim sendo, “consciência” expressa a percepção moral ou o autoconhecimento que, debaixo de Deus e na presença de Deus, temos de que fizemos 0 certo ou o errado. Dito de forma simples, consciência é o conhecimento crítico de nossos pensamentos, palavras e ações conforme o próprio Deus nos conhece.*® Assim, o conhecimento e a consciência informam um ao outro. Conforme Thomas Adams (1583-1652) escreveu, “O conhecimento dirige a consciência; a consciência aperfeiçoa o conhecimento”.*’ No início de seu livro sobre o assunto, William Ames assim define “cons­ ciência”: “O juízo do homem acerca de si mesmo de acordo com o juízo que Deus faz dele”.^“ Variantes dessa definição vêm à tona o tempo todo em escri­ tos puritanos. Os puritanos acompanhavam Tomás de Aquino (1225-1274), vendo a consciência como parte da razão prática, ou seja, um exercício em que a mente do homem faz juízos morais.^* Eles não viam a consciência como uma faculdade distinta dos exercícios usuais da razão. Não aceitavam análise alguma que separasse razão e consciência. Às vezes essa distinção é feita na filosofia posterior, mas os puritanos não a faziam.“ Em vez disso, os puritanos viam a consciência como a razão em ação em questões morais práticas, isto é, a razão fazendo juízos sobre o que é certo e errado. Assim, quando os puritanos se referem à consciência como “o repre­ sentante e vice-regente de Deus conosco", “o espião de Deus em nosso íntimo” Jam es Duncan, 1830], 6 :9 6 -7 ). Em termos práticos, essa divergência de idéias não fazia diferen­ ça substancial (Clifford, “Casuistical divinity”, p. 149-56; cf. Tliomas Wood, English casuistical divinity during the seventeenth century, with special reference to Jeremy Thylor [London: S.P.C.K., 1952], p. 67-9). '*J. I. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision o f the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 111. ‘’ Citado em John Blanchard, The complete gathered gold (Darlington: Evangelical, 2006), p. 107. “ Ames, Conscience, p. 1. Packer afirma que a definição de Ames procede de Tomás de Aquino (Ouest for godliness, p. 109). ^‘Vincent citou a definição de consciência dada por Aquino como a aplicação de nosso conhecimento às nossas ações para servir de testemunha sobre nossas ações passadas e para julgar e compelir possíveis ações futuras (Vincent, Heaven upon earth, p. 30). Ele citou Thomas Aquinas, Summ a theologica 1, pergunta 7 9, artigo 13. William Ames tinha em sua biblioteca um exemplar das obras de Tbmás de Aquino (Keith L. Sprunger, "The learned Doctor Ames” [tese de doutorado. University of Illinois, 1963], p. 206). “ Packer, Quest for godliness, p. 111.

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e “o oficial de Deus que ele usa para prender o pecador”, não devemos rejeitar essas idéias como idéias insólitas. Elas representam uma tentativa séria de fazer justiça ao conceito humano e bíblico de consciência, o qual nossa expe­ riência reflete: ver nossa consciência como uma testem unha que declara fatos (Rm 9.1; 2Co 1.12), como um m entor que proíbe o mal e prescreve padrões (At 24.16; Rm 13.S) e como um ;uiz que nos informa que merecemos castigo (IJo 3.20,21). O Novo Testamento confirma essa definição. Por exemplo, Paulo testifica em Romanos 2.15: “(Os gentios demonstram] que o que a lei exige está escrito no coração deles, tendo ainda o testemunho da sua consciência e dos seus pensamentos, que ora os acusam, ora os defendem”.^^ Em suma, os puritanos ensinavam que a consciência funciona como um sistema nervoso espiritual, o qual usa a culpa para nos informar que algo está errado e precisa de correção. Deixar de dar ouvidos às advertências da consciên­ cia só pode conduzir ao endurecimento ou cauterização da consciência, o que no final nos levará à destruição. Sibbes comparou a autoridade da consciência a um tribunal divino dentro da alma humana, em que a consciência serve de testemunha, promotor, juiz e executor.^

A consciência raciocina silogisticam ente Os puritanos descreviam o raciocínio da consciência como uma forma de silo­ gismo, de modo bem parecido como o fazia Tomás de Aquino.^® Como método, 0 raciocínio silogístico remonta a Aristóteles (384-322 a.C.), que afirmou que é a única forma válida de raciocínio sobre fatos ou valores.“ Essa forma de raciocínio inclui uma premissa maior, que afirma um princípio geral, em se­ guida uma premissa menor, que afirma uma observação ou fato, e então uma conclusão, que é o resultado de unir essas premissas. Em seu estudo sobre a consciência, Ames ilustrou o raciocínio da cons­ ciência com dois silogismos; o primeiro condena e o segundo oferece consolo. A premissa maior do primeiro silogismo é A quele que vive no pecado morrerá. A premissa menor é Eu vivo no pecado. A conclusão é Portanto, morrerei.^’’ ^’ Para um resumo sucinto da natureza e dos tipos de consciência, veja Samuel Rutherford,

A free disputation against pretended liberty o f conscience: tending to resolve doubts (London; R. I. para Andrew Crook, 1649), p. 1-22. “ Sibbes, 2 Corinthians chapter 1, in: Works, 3:210. “ Brian Davies, The t h o u ^ o f Thomas Aquinas (Oxford: Clarendon, 1992), p. 235-7. “ “Silogismo é uma análise em que, após certas afirmações terem sido feitas, algo distinto das afirmações decorre necessariam ente da veracidade das afirmações. Com a última frase que­ ro dizer que elas produzem a consequência e que, com isso, não se requer nenhum outro termo externo para tom ar necessária a consequência” (Aristóteles, Analytka Priom, tradução para o inglês de A. J . Jenkinson, 1.1, citação de Brady, p. 64; disponível em: http://ebooks.adelaide. edu.au /a/arístotle/, acesso em : 17 jan. 2011). “ Ames, Conscience, p. 3.

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Ames também apresentou um silogismo de consciência que chega a um final mais feliz. A premissa maior é Todo aquele que crer em Cristo não mor­ rerá, mas mverá. A premissa menor é Eu creio em Cristo. Se a verdade disso é demonstrada, o crente está livre para tirar a conclusão Portanto, não morrerei, mas víverei.^^ Os puritanos sustentam que todos os raciocínios da consciência têm esse sistema silogístico e terminam ou nos justificando ou nos acusando. Perkins ofereceu o seguinte resumo desses raciocínios da consciência: A cu sa r é o a to e m q u e a co n s c iê n c ia d á o v ered ito d e q u e e s s a o u aq u ela co isa foi m a l feita [ ...] C o n d en a r é o u tro a to em q u e, u n id a a o a to an terio r, a co n sciê n cia d á 0 v ered ito de q u e p o r e ste o u aq u ele p e c a d o u m h o m e m m e re ce a m o rte [...]

Ju stifica r é o a to e m q u e a co n s c iê n c ia d á o v ered ito d e q u e a co isa foi b e m feita. A bsolver é o a to e m q u e a c o n s c iê n c ia d á o v e re d ito d e q u e u m h o m e m e stá livre o u e x o n e ra d o d e erro e, p o r is s o , de c a s tig o .“

Até que ponto o raciocínio silogístico é aplicável hoje? Packer afirma: O ra c io cín io silo g ístico p o d e n o s p a re c e r u m p o u c o ra c io n a lista a tu a lm e n te , m as, à s e m e lh a n ç a d a m a io ria d e n o s s o s p ro c e s s o s d e p e n s a m e n to , o s ra cio cín io s d a c o n s c iê n c ia s ã o fre q u e n te m e n te tã o c o n d e n s a d o s q u e n ã o re c o n h e c e m o s d e q u e m o d o o p e ra m . E les la m p e ja m a tra v é s d a n o s s a m e n te tã o rap id am en te c o m o m e n sa g e n s lam p e ja m a tra v é s de co m p u ta d o re s, l ü d o d e q u e te m o s p len a c o n sciê n cia é a c o n c lu s ã o . M as, se v o c ê e x a m in a r a s c o n c lu s õ e s d a co n sciê n cia , d e sco b rirá q u e a d o u trin a p u rita n a é co n firm a d a . P o r trá s d e to d a s a s co n clu sõ e s d a c o n s c iê n c ia , e x iste m p re m issa s m a io re s so b re v e rd a d e s g erais e p rem issas m e n o re s so b re q u estõ es e sp e cífica s. V erifique e v e ja .“

Em suma, em suas tarefas e raciocínios a consciência é, em grande medida, autônoma de nossa vontade. Embora possamos suprimir ou sufocar a cons­ ciência, 0 normal é ela falar de forma independente de nossa vontade e às vezes até mesmo de forma contrária à nossa vontade. Ela fala alto quando na verdade preferiríamos mantê-la em silêncio. E, no entanto, quando ela fala, é estranhamente distinta de nós. Sentimos que ela permanece sobre nós, dirigindo-se a nós como se tivesse autoridade absoluta que não lhe demos e não conseguimos tomar dela. Dessa maneira, assim como os puritanos, ainda personificamos a consciência e nos referímos a ela atualmente como porta-voz “Ames, Conscience, p. 3. “ William Perkins, A discourse o f conscience: wherein is set downe the nature, properties, and differences thereof, in: The workes o f that famous and worthy m inister o f Christ in the Universitie o f Cambridge, Mr. Wiiiiam Perkins (London: John Legatt, 1612), 1:535-6. “J. I. Packer, preleção sobre os puritanos. Reformed Theological Seminary, na cidade de Jackson, estado do Mississippi, Estados Unidos.

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de Deus na alma. A consciência não é uma ideia absurda; é uma parte neces­ sária de nossa natureza e experiência morais.

A consciência representa D eus em nossa alma Os puritanos ilustravam o papel divinamente autorizado da consciência na alma com várias descrições e personificações vividas. A consciência é em baixador ou representante de Deus. A consciência precisa lembrar o homem constantemente de seus deveres como ser criado à imagem de Deus. David Clarkson (1622-1686) escreveu: “A consciência é o represen­ tante de Deus e, no exercício dessa função, precisa se restringir às ordens e instruções do soberano Senhor”.*’ George Swinnock (c. 1627-1673) afirmou: “A consciência é o representante da teologia no pequeno mundo, o homem”.** Da mesma forma, a consciência também funciona como pregador de Deus. John Trapp (1601-1669) chamou-a de “capelão doméstico” de Deus”.** E William Fenner afirmou: [A co n sciê n cia ] é u m p re g a d o r ta m b é m p a ra n o s d iz e r q ual é n o s so d e v e r tan to para co m D eus q u a n to p a ra c o m o h o m e m . É de fato u m p reg ad o r p o d ero so : exorta, in sta, p ro v o ca . É d e fato o p re g a d o r m a is p o d e ro so q u e p o d e existir. D e te m p o s em tem p os fará e s tre m e c e r o c o r a ç ã o m a is a rro g a n te e m ais o b stin ad o debabco d o céu . Ja m a is n os d eix a rá so z in h o s, até q u e n o s te n h a levad o o u a D eus o u a o D iabo. Ju n to co m 0 p ró p rio E sp írito d e D eu s, a c o n s c iê n c ia e stá co m issio n a d a p a ra s e r n osso in stru tor so b re a m a n e ira q u e d e v e m o s a n d ar, d e m o d o q u e re siste -se e obed ecese a o s d ois ju n to s, e n tris te c e -s e o u a g ra d a -s e a o s d o is ju n to s. N ão co n seg u im o s p e ca r c o n tra a c o n s c iê n c ia se ta m b é m n ã o p e c a rm o s c o n tr a o E sp írito d e Deus; n ão co n se g u im o s co ib ir n o s s a p ró p ria c o n s c iê n c ia s e ta m b é m n ã o restrin girm os e a p a g a rm o s o E sp írito S an to d e Deus.**

A consciência é o escrivão ou tabelião de Deus. A consciência está associada à memória. Por isso, Immanuel Boume (1590-1672) afirmou: “Na memória [consciência], há um escrivão para testemunhar aquilo que é feito e aquilo que não é feito”.** Fenner afirma que a consciência funciona como “o livro de registros [de Deus], que deverá ser aberto no dia do juízo e no qual estão “David Clarkson. "The Lord rules over all”, in: The works o f David Clarkson (1864; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Trust, 1988), 2:475. “George Swinnock, The door o f salvation opened by the key o f regeneration, in: The works of George Swinnock (1868; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust. 1992), 5:64. “Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 106. “Fenner, The souls looking-glasse, p. 33. “Immanuel Boume, The anatomie o f conscience (London: G. E. e M. F. para Nathaniel Butter, 1623), p. 9.

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anotados nossos pensamentos, palavras e ações”.*® Esse registro de nossas atividades interiores e exteriores servirá de base para sermos isentados de culpa ou acusados no dia do juízo. A consciência é o executor do juízo de Deus. A consciência está associada ao juízo tanto hoje quanto no juízo futuro. Em certo sentido, a consciência ajuda o Espírito a prender o pecador. William Gurnall (1616-1679) escreveu: “A consciência é o oficial de Deus que ele usa para prender o pecador”.*' Clifford escreve: “A consciência é a testemunha ou voz de Deus atual na alma do homem e que possui o poder de dar agora mesmo testemunho do juízo divino sobre o homem. Nesse sentido a consciência foi descrita como o executor íntimo ou da ira de Deus ou da sua paz”.*® Vincent escreveu: A qui s e rá n e c e s s á rio a s s in a la r u m a d ife re n ça e n tre a c o n s c iê n c ia c o n d e n a r o p e c a d o r a g o ra e o S en h o r c o n d e n á -lo no fu tu ro: a s e n te n ç a q u e C risto p ro n u n ciará n o ú ltim o d ia se rá p e re m p tó ria , in alteráv el. P o r is s o , aq u ele ju íz o é c h a m a d o de

ju ízo eterno (Hb 6 .2 ) . N ão h á c o m o re c o rre r d aq u ele trib u n al, n ã o h á su sp en são d a s e n te n ç a [ ...] M as, q u an d o no p re se n te a c o n s c iê n c ia co n d e n a u m p ecad o r, ela n ã o lhe fe ch a n e m lhe tra n c a a p o rta d a e sp e ra n ça . S u a s e n te n ç a c o n d e n a tó ria está co n d icio n a d a a p e n a s à c o n tin u a çã o e à o b s tin a çã o n o p e c a d o . M as, se o incrédu lo v ie r a c r e r e m Je s u s e o im p en iten te la m e n ta r su a s in iq u id ad es e se d e sv ia r delas p a ra D eu s, e n tã o n ã o m ais e sta rã o d eb aixo de c o n d e n a ç ã o .* ’

A consciência é nosso supervisor. A consciência governa toda nossa vida, os puritanos afirmavam. Quando ela funciona corretamente, a consciência controla todas as nossas faculdades. Richard Bernard (1568-1641) escreveu: “A consciência se ocupa de nosso entendimento, nossos pensamentos, nossa memória, nossa vontade e das afeições de nosso coração”.'“’ Agradecido por essa obra da consciência, John Robinson (1575-1625) afirmou: “E com certeza uma grande boa obra de Deus é que ele criou e estabeleceu na alma do homem um supervisor — o que essa consciência de fato é — mediante o qual, se o homem fizer qualquer coisa errada, é repreendido em segredo, a fim de que mediante arrependimento encontre misericórdia nas mãos de Deus”.^’ A consciência é nosso espelho. Os puritanos ensinavam que a consciência serve de reflexo ou espelho para que possamos definir, de acordo com a mente *‘Fenner, The souls looking-^asse, p. 33. ^William Gurnall, The Christian in complete arm our (1864; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith IVust, 2002), 1:522. “Clifford, “Casuistical divinity”, p. 1S8. “Vincent, Heaven upon earth, p. SO-1. ““Richard Bernard, Christian see to thy conscience (London: Felix Kyngston, 1631), p. S7ss. “'John Robinson, Observations divine and moral (Amsterdam, 1625), p. 244.

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de Deus, nossa verdadeira condição espiritual. Segundo Robert Harris (1581­ 1658), “ [A consciência] está estabelecida no homem para dar-lhe a conhecer em que condições ele se encontra diante de Deus, daí o seu nome; por esse motivo, é apropriadamente chamada o espelho da alma, a luz do entendimen­ t o Thomas Adams expressou com clareza: “A consciência está para a alma assim como o estômago está para o corpo; o pecado intoxica a alma da mesma maneira que carne estragada ou comer demais faz com o corpo”.'** Normalmente o juízo da consciência é supremo, imparcial, fiel e particu­ lar, Fenner afirmou. Prosseguiu afirmando: “Não precisas ir muito longe para saberes em que condição estás: em teu íntimo há aquilo que pode decidir o assunto".** Assim, devemos empregar regularmente nossa consciência para nos examinar, pois, com a ajuda do Espírito, nossa consciência nos acusará e nos conclamará a um novo arrependimento diante de Deus ou então nos isentará de culpa, o que nos proporcionará a paz que supera o entendimento. Em resumo, os puritanos ensinavam que a natureza humana inclui universalmente uma consciência, isto é, a representação da voz de Deus, con­ duzindo-nos com autoridade para nos julgar por meio de deduções racionais baseadas em nosso conhecimento da vontade de Deus e em nosso conheci­ mento de nós mesmos.

Acorrupção da consciência Por causa da Queda, a consciência já não funciona corretamente. Daniel Webber escreve que os puritanos eram extremamente precisos em seu en­ tendimento e diagnóstico da condição humana caída.** De sorte que, quando tratavam da doutrina do pecado, os puritanos chamavam o pecado pecado, declarando que era rebelião moral contra Deus. Eles pregavam sobre pecados de comissão e pecados de omissão, em pensamento, palavra e ação. Obras como The evil o f evils: the exceeding sinfulness o f sin [0 mal dos males: a extrema pecaminosidade do pecado], de Jeremiah Burroughs (c. 1600-1646), ressaltam a odiosidade do pecado. Em 67 capítulos. Burroughs ensina que o menor pecado envolve mais mal do que a maior aflição; o pecado e Deus são contrários um ao outro; o pecado se opõe a tudo que é bom; o pecado é 0 veneno de todos os males; o pecado tem dimensão e caráter infinitos; e o “ Robert Harris, The works o f Robert Harris (London: Jam es Flesher para John Bartlet, 16541, 2:18. ^Thom as Adams, An exposition upon the second Epistle General o f St. Peter, edição de Jam es Sherman (18 3 9 ; reimpr., Ligonier: Soli Deo Gloria, 1990), p. 588. “ Fenner, The souls looking-glasse, p. 34-47. “ Daniel Webber, “The Puritan pastor as counsellor”, in: The office and work o f the minister, Westminster Conference Papers, 1986 (London: Westminster Conference, 1987), p. 84.

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pecado faz com que nos sintamos à vontade com o diabo.“** O pecado não é somente uma escolha; é uma condição da depravação herdada desde a Queda de Adão no Paraíso, uma depravação que nos deixa inadequados para Deus, para a santidade e para o céu.“^ Os puritanos entendiam que a consciência havia sido profundamente afetada pela Queda do homem no pecado e no infortúnio. Os puritanos escre­ veram acerca da consciência má, perversa ou culpada. Fenner afirmou que uma consciência culpada é como “um inferno para homens aqui na terra”.“*® Ela aponta para um inferno eterno no futuro, em que a lembrança de uma consciência culpada jamais se apagará.“*® “Uma consciência culpada é como um redemoinho de água, que atrai para si tudo que de outra forma passaria sem parar”, Thomas Fuller (1608-1661) afirmou jocosamente.®® Ele escreveu: “Uma consciência culpada é capaz de ‘desparaisar’ o próprio paraíso”.®' John Flavel (1628-1691) escreveu que uma consciência culpada “é a bigorna do Dia­ bo, na qual ele fabrica todas aquelas espadas e lanças com as quais o pecador culpado se perfura e se fere”.®^ E John TYapp afirmou: “Uma única pequena gota [de culpa] perturba todo o mar de bem-estar exterior”.®® Contudo, pior do que uma consciência que aterroriza a alma é uma consciência que apazigua a alma ainda debaixo de condenação. Os puritanos ^yeremiah Burroughs, The evil o f evils (1654; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1995). Cf. Ralph Venning, The plague o f plagues (1669; reimpr., London: Banner of Ihith Ihist, 1965); Thomas Watson, The m ischief o f sin (1671; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1994); Samuel Bolton, Sin: the greatest evil, in; Puritans on conversion (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1990), p. 1-69. obra puritana mais influente sobre a terrível condição do pecado original é An unrege­ nerate m an’s guiltiness before God in respect o f sin and punishm ent, de Thomas Goodwin, The works o f Thomas Goodwin (1865; reimpr.. Grand Rapids; Reformation Heritage Books, 2006), vol. 10. A obra puritana clássica sobre o assunto é Jonathan Edwards, Original sin, in; The works o f Jonathan Edwards (1758; reimpr.. New Haven: Yale University Press, 1970), vol. 3. A melhor fonte secundária sobre a ideia de Edwards é Tiagedy in Eden: original sin in the theology of Jonathan Edwards, de G. Samuel Storms (Lanham: University Press of America, 1985). Oclássico de Thomas Boston Human nature in its fourfold state (1720; reimpr., London: Banner of Truth Tïust, 1964) se concentra nos quatro estados — inocência, depravação, graça e glória —, mas a seção em que fala da depravação imputada e herdada é especialmente pungente. Ele detalha como 0 pecado original de Adão quebrou o relacionamento do homem com Deus, bem como cada um dos Dez Mandamentos. “®Fenner, The souls looking-glasse, p, 124. “’Fenner, The souls looking-glasse, p. 125-6. “Thomas Fuller, The holy andprofane states (Boston: Little, Brown, and Co., 1865), p. 102. “Thomas Fuller, The cause and cure o f a wounded conscience (London: G. D. para John Williams. 1649), p. 28. “John Flavel, Saint indeed: or, the great work o f a Christian, opened and pressed, in: The works o f John Flavel (1820; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Hust, 1997), 5:455. “John Trapp, A commentary on the Old and New Testaments, edição de Hugh Martin (Lon­ don; Richard D. Dickinson, 1868), 3:39 (sobre Pv 10.22).

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ensinavam que, devido à nossa Queda em Adão, a natureza humana está propensa a se autoenganar e a se desviar.” Os incrédulos vivem com uma "má consciência”, quer porque persuadem a si mesmos de que estão em paz com Deus quando não estão, quer porque escolhem um modo de vida em que não estão em paz com Deus. Até mesmo crentes estão propensos a viver com uma consciência que não chega a ser "boa”, isto é, uma consciência que não está em paz com Deus por meio do evangelho e que não examina a si mesma a fim de permanecer alerta e sensível a cada transgressão moral. Quando a consciência não é boa, também pode instigar ações e raciocínios que não são bíblicos nem confiáveis. Tanto crentes quanto incrédulos tentam persuadir sua consciência a uma falsa sensação de paz. Os puritanos escreveram bastante sobre vários tipos de má consciência. Segue-se uma síntese de seis tipos de má consciência que descreveram, indo da menos má até a pior.

7. A consciência vacilante ou com dúvida Os puritanos incluíram esse tipo de consciência na lista de consciências más visto que não conduz seu dono a Jesus Cristo para a salvação. A consciência trêmula ou perturbada acusa a alma de pecado e a ameaça com a ira de Deus e a expectativa de morte e juízo. A alma com dúvida hesita, praticamente sem saber o que é mais pecaminoso: se é crer ou se é duvidar e não presumir. Em­ bora essa consciência seja a mais esperançosa das más consciências, pois está suficientemente acordada para ter algumas noções sérias de verdades eternas e, portanto, tem a maior probabilidade de ser salva, ainda assim é má porque não consegue dar paz e segurança a seu dono até que ela encontre descanso em Cristo.®^ A primeira solução de Fenner para esse tipo de consciência é que você não deve permitir que ela duvide, mas é chamado a crer e a abraçar o oferecimento da graça no evangelho, empregando com diligência os meios de graça e se lançando sobre o evangelho da graça de Deus, esperando que Deus torne eficazes seu chamado e a graça de seu Filho.”

2. A consciência m oralista Essa consciência possui alguns elementos positivos, pois está baseada na lei de Deus e, desse modo, escreveu Richard Bemard, "ela é muito produtiva para o exercício de virtudes morais em homens que convivem em sociedades, para pre­ servar a justiça, a equidade, para fazer boas obras e para manter uma paz comum “ Bernard, Christian see to thy conscience, p. 238. “ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 176-7. “ Fenner, The souls looking-glasse, p. 143-4.

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entre eles”.®’’ A consciência moralista pode exercitar exteriormente virtudes morais e boas obras devido à obra comum do Espírito Santo. Vincent escreveu: E x is te u m p o u c o d e lu z q u e p e rm a n e c e n a c o n s c iê n c ia , e, e m b o ra o co ra ç ã o se ja e x tre m a m e n te m a u e d esejo so de e n g a n a r [e] se rá e n g a n a d o , ain d a assim a c o n s c iê n c ia p o ssu i alg u m tip o d e sen sib ilid ad e e fid elidad e, a m e n o s q u e, p or p e c a r h a b itu a lm e n te p o r lo n g a d a ta , ela se to rn e in sen sív el e in d iferen te. A dm ito p ro n ta m e n te q u e a co n s c iê n c ia é ta m b é m co rro m p id a e m g ran d e m ed id a p ela Q ued a [ ...] M as a in d a a ssim é u m a g ra n d e m ise ricó rd ia q u e a c o n sciê n cia faça

0 ta n to q u e fa z ; a lu z p o d eria te r sid o to ta lm e n te a p a g a d a , e o S en h o r p od eria te r p erm itid o q u e co rré s s e m o s a to d a v e lo cid a d e e m n o s so s ca m in h o s p erv erso s p a ra a d e stru içã o , se m te rm o s d en tro de n ó s algo q u e n o s m o n ito ra s se p a ra nos fre a r ou controlar.'®

.

A despeito de suas qualidades admiráveis, a consciência moralista é subs­ tancialmente diferente da boa consciência do regenerado. A consciência do moralista fracassa quando o assunto é prestar contas. Bernard afirmou: U m m o ra lista p o d e se v an g lo riar c o m o o jo v em rico fez n o E v an g elh o , m a s isso n ã o c o n se g u e lhe d ar c e r te z a d e v id a e te rn a , p o is, em p rim eiro lugar, a lei é in c a p a z de fo rça r a c o n s c iê n c ia d e u m c ris tã o a a c e ita r q u e su a sa lv a çã o é pela lei, p o rq u a n to a lei é fra ca n isso d evid o à im p erfeição d o h o m e m , e o ev an g elh o e n sin a q u e a sa lv a ç ã o é de o u tra m a n e ira . E m se g u n d o , v e m o s q u e o s p a g ã o s têm e ssa c o n s c iê n c ia m o ra l [co m o ta m b é m o têm ] m u ita s p e sso a s n ã o reg en erad as n a igreja. E m te rce iro , alg u ém q u e e m su a p ró p ria a v a lia çã o se ja u m excelen te m o ra lista p o d e , p o r a m o r a o m u n d o , d e ix a r C risto , c o m o o jo v e m fez (M t 1 9 .2 2 ). E m q u a rto , p orq u e u m a ju stiça m o ral é in ca p a z d e su p e ra r a d o s escrib as e fariseus, m a s a ju stiça p ela q u al p re cisa m o s s e r salv o s p re c is a su p e ra r aq u e la (M t 5 . 2 0 ) . "

A consciência moralista não é transformada pelo Espírito Santo mediante a fé no sangue de Cristo. Ela é apenas iluminada pela luz da natureza, ao passo que a consciência do regenerado é iluminada pelo evangelho e, depois disso, usando as palavras de Ephraim Huit (c. 1608-1644), é atada pela "lei escrita de uma nova maneira na mente e no coração (Hb 8.10)”.®®Assim, a consciência do moralista jamais poderá fazer qualquer bem real, duradouro e espiritual, pois sua consciência nunca é motivada pelo amor a Deus acima de tudo e ''Bernard, Christian see to thy conscience, p 246. “Vincent, Heaven upon earth, p. 63-4. "Bernard, Christian see to thy conscience, p. 246-7. “Ephraim Huit, The anatomy o f conscience (London: impresso por I. D. para William Sheffard, 1626), p. 187.

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ao próximo como a si mesmo. Ela não opera pela fé salvadora e, assim, não presta serviço à glória de Deus.*'

3. A consciência escrupulosa A consciência escrupulosa é de muitas maneiras uma falsificação da boa cons­ ciência, valorizando muito certos deveres religiosos e questiúnculas morais. Ela é escrupulosamente religiosa, mas não busca salvação em Cristo somente nem encontra paz em Cristo. Conforme Samuel Annesley (c. 1620-1696) afirmou, a consciência escrupulosa “determina que algo é legítimo, mas dificilmente deve ser praticado para que não se torne ilegítimo”.“ Em outras palavras, tem tanto medo de pecar que até mesmo evita fazer o que é bom e correto. E a consciência escrupulosa também se dedica ao tipo de autoexame que produz introspecção sem propósito e melancolia. Algumas almas mórbidas praticam esse tipo de ruminação íntima ainda hoje. Os puritanos diziam que isso deve ser desencorajado, pois não nos faz bem nos examinéurmos fora de Cristo e do evangelho. Os puritanos afirmavam que, embora necessário, o autoexame jamais deveria ser divorciado do seguinte: • Jesus Cristo — para cada vez que você olha a si mesmo, dê dez olhadas a Cristo, pois só Cristo pode ser o objeto da fé verdadeira; • A Palavra de Deus — que fornece a base apropriada para o autoexame e os sinais e frutos da graça; e • O Espírito Santo — o único que, por meio da Palavra, pode lançar luz sobre sua própria obra salvadora. Os puritanos concordariam com Calvino, que afirmou que, se você con­ templar a si mesmo sem Cristo, a Palavra e o Espírito, “isso é condenação certa”.“ Por outro lado, se você contempla a si mesmo em Cristo por meio da Palavra de Deus e do Espírito, isso poderá resultar em muita coisa boa, pois 0 autoexame pode nos assegurar que nossa salvação está baseada no funda­ mento certo, Jesus Cristo e ele crucificado, e que temos participação pessoal nessa salvação.“ “ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 163-7. “ Samuel Annesley, “How may we be universally and exactly conscientious?”, in: Puritan sermons, 1659-1689 (1661; reimpr., W heaton: Richard Owen Roberts, 1981), 1:14. “ Calvin, Institutes, 3.2 .2 4 . Cf. David Foxgrover, “John Calvin’s understanding of conscience” (tese de doutorado, Claremont, 1978); Joel R. Beeke, The quest for full assurance: the legacy of Calvin and his successors (Edinburgh: Banner of Truth T-ust, 1999), p. 59-63, 84-7. “ Beeke, Quest for full assurance, p. 140-1.

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4. A consciência equivocada Essa consciência inclui várias formas de ignorância e de percepção errada, pois aplica erroneamente a Palavra de Deus. Samuel Annesley escreveu: “Às vezes a consciência é enganada devido à ignorância daquilo que é certo, entendendo uma regra falsa como verdadeira, um erro como a vontade de Deus; às vezes, devido à ignorância do fato, aplicando erroneamente uma regra correta a uma ação errada. Instruída com erro, a consciência interpreta como vontade de Deus as tradições humanas e doutrinas falsas propostas com suposta autoridade divina”.®® Os puritanos debatiam bastante sobre se uma consciência equivocada obriga seu dono a obedecer ao erro. A maioria dos puritanos concordava com Annesley, que escreveu: A v e rd a d e n u a e c ru a é q u e o erro n ã o p o d e n o s o b rig ar a seg u i-lo . U m a co n sciên cia eq u iv o ca d a p od e com p elir, assim c o m o ir c o n tra e la p od e s e r p e ca d o ; m a s ela n u n ca p o d e co m p e lir d e tal m a n e ira q u e seg u i-la se ja u m a v irtu d e. P ara o p e ca d o r ce g o , se g u ir u m a c o n sciê n cia e q u iv o ca d a é seg u ir su a c o n s c iê n c ia c e g a , até q u e am b o s c a ia m n o fo sso . Ir c o n tra a c o n s c iê n c ia é se m p re m a u , e seg u ir u m a co n sciê n cia e q u iv o ca d a é m a u . M as e x iste u m m eio ca m in h o q u e é seg u ro e b o m , a sab er, in stm ir m e lh o r a co n sciên cia p ela P alav ra de D eu s e, c o m o c o n se q u ê n cia , segui-la.®®

Conforme destacado por Philip Craig, “Esse dilema ressalta aquilo que Fenner chamou de ‘a necessidade infinita de conhecimento’ bem como de ‘a soberania sagrada da consciência’”.®'

5. A consciência apática Com base em Romanos 11.8, que fala de Deus dar aos pecadores um “espírito entorpecido”, os puritanos tinham inúmeras designações para uma consciên­ cia apática, incluindo a consciência sonolenta, cambaleante ou dormente. Annesley escreve sobre pessoas com essa consciência: “Um dos piores tipos de consciência no m undo é a consciência sonolenta. Essa é a consciência de cada pessoa não convertida e que ainda não experimentou o pavor. Seu espírito, isto é, sua consciência, está dormindo (Rm 11.8), de modo que, assim como 0 sono físico limita todas as percepções e sensações vivazes, assim essa so­ nolência espiritual (ou, melhor dizendo, não espiritual) limita toda percepção “Annesley, “How may we be universally and exactly conscientious?”, in; Puritan sermons, 1:13. “Annesley, “How may we be universally and exactly conscientious?”, in: Puritan sermons, 1:14. “^Philip A. Craig, “William Fenner: ‘The soul’s looking glass’”, in: The voice o f God, Westminster Conference 2002 (London: Westminster Conference, 2003), p. 29.

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da maldade do pecado e de necessidade da graça, e, por isso, na conversão Cristo desperta a consciência”.'“ A consciência apática torna os pecadores indiferentes às verdades das Escrituras. Tais pecadores vivem confusos, não tendo consciência da morte e do juízo iminentes e não sendo afetados pelos horrores do inferno. Uma consciência apática produz uma consciência silenciosa, tornando-a parecida com um “cocheiro sonolento e descuidado que deixa as rédeas livres e deixa que os cavalos corram para onde querem”, Fenner afirmou.*®

6. A consciência cauterizada Essa é a pior de todas as consciências, pois deixa as pessoas quase sem espe­ rança de salvação. Conforme Perkins escreveu: “Ora, visto que o coração do homem é excessivamente obstinado e perverso, ele leva a pessoa a cometer pecados até mesmo contra a luz da natureza e o senso comum. Pela prática desses pecados, a luz da natureza se apaga e em seguida vem a mente répro­ ba, que considera o mal bom e o bom mal; depois disso, vem a consciência cauterizada, na qual não existe sentimento algum ou remorso; e depois disso vem um excessivo desejo de toda espécie de pecado (Ef 4.18; Rm 1.28)”.'° A consciência cauterizada é própria daqueles cujo destino é determinado por sua insensibilidade. Com frequência, é própria de pessoas que pecaram contra o Espírito Santo e já nesta vida estão irrevogavelmente perdidas. Fenner afirma que uma consciência cauterizada é capaz de “tragar o pecado como se fosse bebida e sem qualquer remorso”. Esse é o maior juízo divino deste lado do inferno: “ [Com essa consciência] o único meio de arrependimento é tirado. Existe uma chance em mil de que essas pessoas chegarão” a se arrepender.'*

A restauração da consciência Na restauração de sua imagem na alma. Deus também restaura a consciência. Isso acontece no despertamento da consciência por meio da pregação, da ins­ trução da consciência pelas Escrituras, da cura da consciência pelo evangelho e do exercício da consciência no autoexame.

A consciência precisa ser despertada p o r m eio da pregação Atualmente, podemos dizer que os melhores pregadores são mais eficazes no ensino da doutrina, mas os puritanos criam que a qualidade suprema de um “ Annesley, “How may we be universally and exactly conscientious?”, in: Puritan sermons, 1:8-9. "Fenner, The souls looking-glasse, p. 70. ™Perkins, Discourse o f conscience, in: Works, 1:550. ^Citado em Craig, “William Fenner: ‘The soul’s looking glass’”, in: The voice o f God, p. 30.^

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pregador era tanto sua habilidade para ensinar a doutrina com clareza quanto seu poder de aplicar eficazmente a Palavra à vida cotidiana. Uma das características de um pregador eficaz era, de acordo com os puritanos, a maneira como "rasgava” as consciências dos homens para lhes mostrar aquilo que estava no fundo de seu coração. O propósito é ver o que está dentro ou embabco, da mesma maneira que você rasgaria uma almofada para tirar todas as penas. Os puritanos valorizavam pregadores que rasgavam a consciência, perscrutavam o coração e tornavam Hebreus 4.12 real para os ouvintes: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois gumes; penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é capaz de perceber os pensamentos e intenções do coração”. Os puritanos diziam que os melhores pregadores nos mostram como a Palavra de Deus chega bem aq âmago do nosso ser. Como um pastor aprende a fazer isso? Permitindo que a Palavra de Deus ministre ao pastor em sua consciência e em sua vida. Uma profundeza então chamará outra profundeza; se você tem experimentado a Palavra de Deus rasgar sua consciência, você a usará para rasgar a consciência de outros. Essa é uma das razões pelas quais o puritano escocês David Dickson (c. 1583-1662) afirmou a um jovem que estava sendo ordenado que devia passar todo seu ministério estudando dois livros: o livro das Escritiuas e o livro de seu próprio coração. De modo análogo, John Owen (1616-1683) afirmou: “Se a Palavra não habita pode­ rosamente em nós, não emanará poderosamente de nós’?^ E o biógrafo de Robert Bolton (1572-1631) lembra que Bolton nunca ensinou um assunto de natureza reügiosa sem primeiro saber como pô-lo em prática em seu próprio coração. Todas essas são maneiras de dizer que para os puritanos a aplicação começa em casa. Você aprende como aplicar a Palavra de Deus ao deixar primeiro que ela se aplique a você. Depois disso, você saberá como usá-la para rasgar a cons­ ciência de outros. A aplicação é a estrada em que o pregador vai da cabeça ao coração. A boa pregação não se limita a chegar à cabeça; desce até o coração. As Normas de Westminster para o Culto Público afirmam que a aplicação é difícil para o pregador, pois exige “muita prudência, zelo e meditação, e para o homem natural e corrupto será algo muito desagradável”. No entanto, a aplicação é necessária para que os ouvintes de um pregador “sintam que a Palavra de Deus é viva e poderosa, discernindo os pensamentos e propósitos do coração, e que, se qualquer incrédulo ou pessoa ignorante estiver presente, os segredos de seu coração sejam manifestados e tal pessoa dê glória a Deus”.^“ “Packer, Quest for godüness, p. 48. “John Owen, The true nature o f a gospel church, in; The works o f John Owen (1850-1853; reimpr., Edinburgh: Banner of IVuth Trust, 1995), 16:76. “ [Teólogos de Westminster], W estminster confession o f faith (reimpr., Glasgow: Free Presbyterian, 2003), p. 380.

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A consciência precisa ser instruída pelas Escrituras Para os puritanos, a consciência é a faculdade que Deus coloca em nós para ser uma caixa de ressonância para aplicar sua Palavra em nossas vidas. Nossa consciência deve ter o lastro da Palavra de Deus; deve ser moldada por aquilo que é ensinado nas Escrituras e treinada para julgar de acordo com as Escrituras. Dessa maneira a voz da consciência será de fato a voz de Deus. Se a consciência não é dirigida pelas Escrituras, ela ainda funcionará, mas de acordo com padrões inadequados. Ela deixará de condenar quando deve fa­ zê-lo; justificará coisas que não devem ser justificadas. O que parece ser a voz de Deus não será a voz de Deus. A sensação de ser julgado por alguém fora de você mesmo ainda será evidente, mas os padrões pelos quais a consciência opera serão inadequados. A consciência falsamente instruída pode justificar o que foi feito, mas aos olhos de Deus a pessoa ainda pode ser um pecador não perdoado. Os puritanos criam que a única cura para uma consciência falsamente ca­ librada é a consciência ser inteiramente moldada pelos padrões das Escrituras. Nossa consciência precisa ser controlada por Deus, asseveravam. A Confissão de Westminster (20.2) enfatiza fortemente que só Deus é o Senhor da consciên­ cia. Uma pessoa pode tentar tiranizar a consciência de outrem, mas somente Deus pode controlar absolutamente nossa consciência. É imperativo que nossa consciência esteja afinada com a mente e a von­ tade de Deus. De outra sorte, não conseguiremos deixar de ir pelo caminho errado. Se você despreza sua consciência, você erra porque não se deve jamais resistir à consciência. Se você segue uma consciência errática, de novo você se perde pelo caminho porque não se deve seguir uma consciência errática. Não há saída alguma para essa situação senão fazer com que sua consciência seja devidamente ensinada e treinada. Richard Baxter (1615-1691) explicou: Não transformeis vosso próprio juízo ou consciência em vossa lei ou no instituidor de vosso dever, o qual tão somente discerne a lei de Deus, o dever que ele vos impõe e vossa própria obediência ou desobediência a ele. Há um erro perigoso que se tornou demasiadamente comum no mundo: que o homem está obrigado a fazer tudo que sua consciência lhe diz que é a vontade de Deus e que todo homem precisa obedecer à sua consciência como se ela fosse o legislador do mundo, quando, na verdade, não somos nós mesmos, mas Deus é que é nosso legislador.” Baxter afirmou que “uma consciência equivocada não deve ser obedecida, mas melhor instruída”.^® Visto que a consciência representa a autoridade de Deus ^Baxter, Christian directory, in: Works, 2:3 3 6 . "Baxter, Christian directory, in: IVorfes, 2:337.

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sobre nós, a menos que pelas Escrituras instrua sua consciência, o cristão está preso a um dilema moral por sua consciência equivocada. Baxter escreveu: “Se a seguires, quebras a lei de Deus, fazendo aquilo que ele te proíbe; se a ignorares e fores contra ela, rejeitas a autoridade de Deus, fazendo aquilo que pensas que ele te proíbe’7 ' Por isso, precisamos comparar o livro de nossa consciência com 0 livro das Escrituras. Quando a consciência é deficiente, copiemos nela as palavras das Escrituras. Quando a consciência diverge das Escrituras, corrijamos 0 livro da consciência humana com o livro de Deus.’'® A ideia de a consciência depender das Escrituras reflete a estima que os puritanos tinham pela Bíblia em todas as coisas. Considere que sua base teo­ lógica determina a maneira como você trata o aconselhamento. Os puritanos jamais se esqueciam de que a maneira de alguém tratar cada área da vida precisa se basear na teologia. William Ames afirmou: “Não existe preceito al­ gum de verdade universal que seja relevante para viver bem na administração do lar, na moralidade, na vida política ou no trabalho legislativo e não diga diretamente respeito à teologia”.^ Ken Sarles conclui: “No que diz respeito aos puritanos ingleses, cada necessidade psicológica concebível podia ser atendida e cada problema psicológico imaginável podia ser solucionado mediante uma aplicação direta da verdade bíblica”.®* Os puritanos consideravam que a doutrina da consciência era crucial para a teologia, para a ética e para o aconselhamento. Isso permitia aos puritanos atravessarem a ponte da teologia à ética,®' assim como seus colegas, como Petrus van Mastricht (1630-1706) e Wilhelmus à Brakel (1635-1711), fizeram na Holanda. Em suas obras colossais, ambos entrelaçaram teologia sistemática com experiência espiritual e ética cristã.®^ "B axter, Christian directory, in: Works, 2:339. ’*Swinnock, Door o f salvation opened, in: Works, S:64. "W illiam Ames, The rtiarrow o f theology, tradução para o inglês de John D. Eusden (1968; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 2001), p. 78. Citado em Ken Sarles, “The English Puritans: a historical paradigm of biblical counseling”, in: Joh n F. MacArthur Jr.; Wayne A. Mack et al.. In­ troduction to biblical counseling: a basic guide to the principles and practice o f counseling (Dallas: Word, 1994), p. 2S [edição em português: Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia prático de princípios e práticas de aconselhamento, tradução de Enrico Pasquini; Lauro Pasquini; Eros Pasquini (São Paulo: Hagnos, 2004)]. “ Sarles, “The English Puritans: a historical paradigm of biblical counseling”, p. 25. “'Coleman C. Markham, “William Perkins’ understanding of the function of conscience” (tese de doutorado. Vanderbilt University, 1967), p. 12, 223. “ A obra de Petrus van Mastricht Theoretico-practica theologia, a qual Jonathan Edwards afirmou que foi a melhor obra de teologia já escrita além da Bíblia, está atualmente sendo tra­ duzida para o inglês por Todd Rester, sob o patrocínio de Dutch Reformed 'IVanslation Society, tendo Joel Beeke e Nelson Kloosterman como editores gerais (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, no prelo). Wilhelmus à Brakel, The Christian’s reasonable service, tradução para o inglês de Bartel Elshout, edição de Joel R. Beeke (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 1999).

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A doutrina puritana da consciência também refletia a imensa consciência que tinham da glória do Deus revelado nas Escrituras. Os puritanos pregavam sem ambiguidade a doutrina de Deus. Com reverente temor, zelo e preocupa­ ção constante, eles proclamavam o ser majestoso de Deus, sua personalidade trinitária e seus atributos gloriosos.®^ O aconselhamento que ministravam tinha raízes num teísmo bíblico robusto, ao contrário do aconselhamento contemporâneo, que com demasiada frequência aborda Deus como se fosse um vizinho de porta, que pode adaptar seus atributos aos nossos sentimentos, necessidades e desejos. O aconselhamento puritano mostra como tudo no mundo está baseado em Gênesis 1.1, “No princípio. Deus", e tem a glória de Deus como objetivo. Os puritanos entendiam que as doutrinas da expiação, da justificação e da reconciliação não fazem sentido sem uma verdadeira compreensão de Deus, que condena o pecado, faz expiação pelos pecadores, justifica-os e reconcilia-os consigo. A base teológica de como vemos a Deus determina nossa abordagem no aconselhamento. Uma abordagem teocêntrica da condição humana se inicia instruindo a consciência com as Escrituras. Como representante de Deus na alma, uma boa consciência alimentada pelas Escrituras está o tempo todo consciente de que vivemos na presença do Deus da glória. Vincent escreveu; “Uma boa consciência fará com que os homens se coloquem continuamente perante Deus. Tenho andado diante de Deus com toda boa consciência’, diz o apóstolo [At 2 3 .1 ]”.*^ Vincent afirmou: “Não existe atributo algum de Deus que tenhamos menos condições de negar do que sua onisciência, e mesmo assim como é raro nosso coração se maravilhar com isso. Como pessoas que estão persuadidas de que estamos perante um perscrutador de corações, devemos examinar nosso coração e pensamentos e lutar contra a vaidade, a perversidade e a impertinência deles”.®®

A consciência precisa ser curada pelo evangelho Uma vez que todos os homens são pecadores caídos, só a consciência que teve

0 evangelho aplicado a ela pode trazer paz interior. Tanto do púlpito quanto em particular os puritanos expunham o pecado, a fim de levar pecadores à contrição, confissão e arrependimento e conduzi-los a Jesus Cristo. Em obras como Christ revealed [Cristo revelado], de Thomas Taylor; Christour mediator [Cristo, nosso Mediador], de Thomas Goodwin; Happiness o f enjoying and “ A obra clássica sobre os atributos de Deus é o texto colossal de Stephen Charnock Dis­ courses on the existence and attributes o f God (1682; reimpr.. Grand Rapids: Baker, 1996). Veja tb. William Bates, The harmony o f the divine attributes in the contrivance and accomplishment o f man's redemption (1674; reimpr., Harrisonburg: Sprinkle, 1985). “ Vincent, Heaven on earth, p. 277. “ Vincent, Heaven on earth, p. 283.

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m aking a speedy use o f Christ [Felicidade de desfrutar de Cristo e fazer uso proveitoso dele], de Alexander Grosse; Looking unto Jesus [Olhar para Jesus], de Isaac Ambrose; Christ all and in all [Cristo todo e em todos], de Ralph Robinson: Christ all in all [Cristo, tudo em todos], de Philip Henry; Christ: the way, the truth, and the life [Cristo: o caminho, a verdade e a vida], de John Brown; The glorious mystery o f the person o f Christ [O mistério glorioso da pessoa de Cristo], de John Owen; e Christ crucified [Cristo crucificado], de James Durham, os puritanos pregavam o Cristo todo ao homem todo. A aplicação do evangelho resulta numa boa consciência que está em paz com Deus e com as exigências de sua Palavra. Os puritanos escreveram muito sobre uma boa consciência. “A consciência é ou o maior amigo ou o maior inimigo no mundo”, Richard Sibhes afirmou.*® Ele chamou a consciência nos­ so “melhor amigo” e escreveu: “Não conseguimos fazer nada bem feito sem alegria, e sem uma boa consciência, que é o fundamento da alegria”.*^ Thomas Fuller afirmou: “Uma boa consciência é a melhor teologia”.®* Matthew Henry (1662-1714) comentou: “Se cuidarmos de manter uma boa consciência, podemos deixar ao encargo de Deus cuidar de nossa boa repu­ tação”.*® Thomas Watson (c. 1620-1686) observou: “Uma boa consciência e uma boa reputação são como um anel de ouro incrustado com um valioso diamante”;®* e William Gurnall afirmou: “A paz de consciência é nada mais do que o eco da misericórdia perdoadora”.®* Uma boa consciência encontra paz por meio do evangelho e suas pro­ messas. As promessas de Deus são o meio pelo qual paz, perdão, aceitação, reconciliação com Deus e afeição entre Deus e uma pessoa são oferecidos à consciência, que precisa crer e descansar nessas promessas. De acordo com os puritanos, a coisa mais abençoada do mundo é ter uma boa consciência mediante a aplicação de promessas bíblicas. A coisa mais triste do mundo é não ter uma boa consciência. O evangelho nos convida a aplicar em nós mesmos a palavra da graça da mesma maneira que devemos pedir a Cristo o perdão de acordo com a palavra da graça. Então a consciência nos dirá que, pelo fato de pela graça termos crido e buscado perdão da maneira estabelecida, agora estamos perdoados por causa de Cristo. “ Richard Sibbes, “The demand of a good conscience”, in: Alexander B. Grosart, org.. The com­ plete works o f Richard Sibbes (1862-1864; reimpr., Edinburgh: Banner of Tl-uth Trust, 2001), 7:490. ®'Sibbes, 2 Corinthians chapter 1, in: Works, 3:219, 223. “ Gnomologia: Adagies and proverbs; wise sayings and witty sayings, edição de Thomas Fuller (London: B. Barker, 1732), p. 6. ‘ ’Matthew Henry, Matthew Henry's commentary (Peabody: Hendrickson, 1991), 3:302 (so­ bre Salmos 37:1-6) (edição em português: Comentário bíblico de Matthew Henry, tradução de Degmar Ribas Junior (Rio de Janeiro: CPAD, 2 0 0 2 ), 6 vols.]. “ Citado em Blanchard, Complete gathered gold, p. 109. “ Gurnall, V ie Christian in complete arm our, 1:534.

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Que alegria incrível isso produz! Joseph Hall (1574-1656) afirmou: “Feliz é 0 homem que pode ser absolvido em seu íntimo por si mesmo, por outros em público e por Deus tanto em particular quanto em público”.“ Tal homem possui uma consciência aliviada e em paz, o que tira dúvidas e temores e promove a certeza de que tudo está bem com sua alma.“ É importante assinalar que é pelo Espírito Santo que a consciência se apega ao evangelho mediante a fé no sangue de Cristo, encontra paz com Deus e tem uma crescente certeza de salvação. Perkins afirmou: “O principal agente e iniciador [da consciência] é o Espírito Santo, iluminando a mente e a cons­ ciência com luz espiritual e divina. E nesse ato o instrumento é o ministério do evangelho, pelo qual a palavra de vida é aplicada em nome de Deus à pessoa de cada ouvinte, e essa certeza é pouco a pouco concebida na forma de raciocínio ou silogismo prático formulado na mente pelo Espírito Santo”.“ Gurnall afirmou que a consciência é como um cadeado travado — mesmo que a chave da promessa de Deus se encaixe perfeitamente, é preciso a mão forte do Espírito Santo para virar a chave, destravar a consciência, tranquilizar e plenamente satisfazer a alma.“ Com frequência, os puritanos tratam desta questão: Se já encontramos paz em Cristo, o que precisamos fazer para manter essa paz? Fenner afirmou: Em primeiro lugar, precisamos trabalhar arduamente para evitar problemas de consciência, tendo o cuidado de não fazermos nada contrário à consciência [...] Nada que obtenhamos de alguma maneira má irá nos animar e nos consolar na hora da necessidade [...] Em segundo, para mantermos nossa paz, precisamos trabalhar arduamente para que nossos corações estejam firmados na certeza do amor de Deus [...] Em terceiro, precisamos empregar o exercício da fé na aplicação do sangue de Cristo. Precisamos trabalhar arduamente para purificar e limpar nossa consciência com ele. Se descobrirmos que pecamos, precisamos correr imediatamente para o sangue de Cristo para lavar nosso pecado. Não podemos deixar que a ferida fíque infeccionada ou purulenta, mas fazer com que seja imediatamente curada [...] Como pecamos diariamente, ele nos justifica diariamente, e precisamos ir diariamente a ele em busca disso [...] Todos os dias precisamos olhar para a serpente abrasadora. A justificação é uma fonte que flui continuamente, e, por isso, não podemos esperar ter toda a água de uma só vez [...] Ah! supliquemos, então, um perdão diário [...] Não durmamos uma única “ Joseph Hall, Contemplations apon the principal passages o f the holy story, in: Josiah Pratt, org.. The works o f the right reverend father in Cod, Joseph HaU (London: C. Whittingham, 1808): 1:292. “ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 96-7. “ Perkins, Discourse o f conscience, in: Works, 1:547; quanto ao pensamento puritano so­ bre 0 raciocínio silogístico, veja abaixo e Beeke, The quest for full assurance, p. 131-42,259-62. “ Gurnall, The Christian in complete arm our, 1:525.

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n o ite s e m u m n o v o p e rd ã o . M e lh o r é d o rm ir e m u m a c a s a c h e ia d e v íb o ra s e a n im a is v e n e n o so s d o q u e d o rm ir c o m u m ú n ico p e c a d o . A h ! a n te s de te rm in a r o d ia , te n h a m o s o cu id a d o d e re m o v e r o s p e c a d o s d o d ia . E n tã o n o s s a co n s c iê n c ia te r á p a z v e rd a d e ira .’ *

Uma boa consciência se baseia em Cristo, mas é guardada por nossa obediência (IJo 2 .1 ,2 ,5 ). Fenner teve o cuidado de afirmar que nossa obediência nâo é a causa de nossa justificação perante Deus. Só Cristo é nossa justiça e o alicerce de uma consciência em paz. Mas o pecado é obstáculo à nossa comunhão com Cristo e atrai a disciplina paterna de Deus; a obediência dá testemunho de que estam os reconciliados com Deus e agrada ao nosso Pai.’^ Assim, uma boa consciência não é som ente um a questão de posição legal, m as de um rela­ cionamento vivo com Deus. Fenner tam bém escreveu: “Não se exige perfeição absoluta de obediência para se ter paz baseada no evangelho”.’®Pelo contrário, uma boa consciência é resultado de um a vida de integridade e do tem or do Senhor, em que buscam os obedecer a Deus com sinceridade em cada área da vida e com humildade quanto a nossos pecados, e na dependência de Cristo e de seu Espírito.” Fenner afirmou que não existe amigo melhor do que uma consciência que conhece a paz com Deus mediante um retorno constante à cruz. Ele desen­ volveu esse pensam ento, asseverando: U m a c o n s c iê n c ia tra n q u ila le v a o h o m e m a e x p e rim e n ta r a d o ç u ra d e co isa s ce le stia is e esp iritu ais. F az c o m q u e a P alav ra se ja p a ra ele a ssim c o m o foi p ara D avi: M ais doce do q u e o m el [ ...] U m a b o a c o n s c iê n c ia faz o h o m e m e xp erim en tar d o ç u ra n a o ra ç ã o [ ...] n u m d o m in g o d e d e s c a n s o [ ...] n o s a c ra m e n to [ ...] Q ual é 0 m o tiv o p elo q u al tã o p o u c o s d e n tre v ó s e x p e rim e n ta is d o ç u ra n e s s a s co isas? A r a z ã o é e s ta : p o rq u e n ã o te n d e s a p a z d e u m a b o a c o n s c iê n c ia .'“

Precisamos vasculhar nossos corações aqui. Acaso consideramos como doçura nossa experiência de adoração, de oração, do dia do Senhor ou qualquer outra coisa que diz respeito à piedade? Fenner afirmou que as pessoas que desfrutam da paz de uma boa consciência experimentam d o çu ra . O que está acontecendo se não experimentamos esse tipo de doçura?'“ “ Fenner, The souls lookin^-glasse, p. 134. ’ T en n e r, The souls looking-glasse, p. 1 3 4 -8 . “ Fenner, The souls looking-glasse, p. 139. “ Fenner, The souls looking-glasse, p. 1 4 0 -1 . ■“ Fenner, The souls looking-glasse, p. 111. "'A c e rc a do te m a re co rre n te d a d o çu ra n a teologia e p ied ade d e C alvino, v eja I. Joh n Hesselink, “C alvin, theologian of sw e e tn e ss”, Calvin TheologicalJoum al 3 7 , n. 2 (2 0 0 2 ): 318-32.

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TEOLOGIA PURITANA

Fenner prosseguiu: “Uma consciência boa e tranquila faz o hom em experi­ mentar doçura em todas as coisas exteriores: na com ida, na bebida, no sono, na companhia de amigos [...] Só o hom em saudável consegue ter prazer em divertimentos, cam inhadas, encontros, esportes etc.; isso não produz bem-estar algum para aqueles que estão de cam a, ou doentes, ou quase mortos. Mas, quando a consciência está em paz, a alm a está toda ela com boa saúde”.*“ O cristão está mais capacitado a desfrutar das boas dádivas de Deus do que qualquer incrédulo. Quer dizer, os prazeres do cristão são duplicados porque é cristão. Fenner afirmou que os cristãos têm essa doçura mesmo em épocas de dificuldades. Ele escreveu: (U m a b o a c o n sciê n cia ] a d o ç a o s m a le s q u e o cristã o e n fre n ta , c o m o dificu ldad es, trib u la çõ e s, tris te z a s , a fliçõ es. Se u m h o m e m te m v e rd a d e ira p a z de co n sciê n cia , ela 0 c o n so la e m tu d o isso . Q u an d o a s c o is a s fora d e c a s a n o s in q u ietam , co m o é co n so la d o r te r alg o e m c a s a p a ra n o s a n im a r! D e so rte q u e, q u an d o dificuldades e a fliçõ e s e x te rn a s n o s ag ita m e n o s a to rm e n ta m e a u m e n ta m ain d a m ais n ossa triste z a , e n tã o q u ã o b o m é te r p a z in terio r, a p a z d e c o n s c iê n c ia , p ara a ca lm a r e tra n q u iliz a r to d a s a s c o is a s ! Q u an d o a e n ferm id ad e e a m o rte v ê m , d e q u e vale e n tã o u m a b o a c o n sciê n cia ? C o m c e r te z a m u ito m a is do q u e to d o o m u n d o [...] A c o n sciê n cia [q u e se ap o d e ro u d o p e rd ã o em C risto] é o e c o d iv in o d e p a z para a a lm a . N a v id a , n a m o rte , n o ju íz o ela é c o n so lo inexp rim ível.'*”

Uma pessoa com um a boa consciência tem uma consciência esclarecida, sen­ sível e fiel e, por isso, pode enfrentar a m orte em paz. No fim de O p ereg rin o , de John Bunyan, o sr. Honesto está na iminência de atravessar o rio Jordão. Ele havia pedido à Boa Consciência que se encontrasse com ele junto ao rio, e Boa Consciência estava ali para ajudá-lo na tribulação final da morte. De modo parecido, é por meio da dádiva de um a boa consciêiicia que Deus responde à oração de Simeão em Lucas 2 .2 9 , dizendo: “Senhor, agora podes deixar ir em paz o teu servo”.

A consciência precisa se exercitar p o r m eio do autoexame Os puritanos insistiam que a consciência deve se exercitar na disciplina do au­ toexame, de acordo com as Escrituras em geral, e de acordo com a lei moral ou os Dez Mandamentos em particular. O autoexame é uma disciplina, os puritanos afirmavam. Esse autoexam e inclui você fazer a si mesmo perguntas para saber se está andando de fato em obediência à Palavra de Deus, fazer a si mesmo perguntas sobre com o está progredindo ao longo da estrada da obediência aos Dez Mandamentos e em seu resum o nos dois grandes mandamentos de amar '“^Fenner, The soids looking-glasse, p. 112. "“Fenner, The souls looking-glasse, p. 112-3; veja tb. p. 129.

Os puritanos e a consciência

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a Deus acim a de todas as coisas e o seu próximo com o a si m esm o. É fazer a si mesmo perguntas que o ajudam a ver com o você se avalia com base nos padrões estabelecidos no Sermão do Monte. W atson escreveu: “O autoexame é estabelecer um tribunal na consciência e guardar ali um livro de registros, para que mediante rigoroso escrutínio um hom em possa saber qual a situação entre Deus e sua própria alm a [...] Um bom cristão inicia, por assim dizer, o dia do juízo aqui em sua própria alm a”.'®“^ Os puritanos criam que o autoexame deveria ser realizado pelo menos uma vez por semana no sábado em preparação para o culto público. Nesse autoexa­ me, você indaga onde está espiritualmente, onde estava na sem ana anterior e o que especificamente precisa de atenção no que diz respeito ao arrependimento e à mudança, bem como a assumir novos compromissos, novos planos e novas resoluções para um a caminhada mais próxima com o Senhor. Só depois de tal exame você terá uma boa consciência para o culto no domingo. Isso é dupla­ mente importante quando for participar da mesa do Senhor. Mantenha sensível sua consciência mediante constante avaliação de si mesmo pela Palavra, e, à medida que estuda a Palavra todos os dias, mantenha sua consciência sensível, ponderando como esses ensinos se aplicam a você agora, mas também para buscar orientação sobre aquilo que você deve se tornar. Se desejar manter a consciência em paz e tranquilidade, purifique diariamente sua consciência pelo arrependimento e pela fé que se apropria do sangue de Cristo, baseie sua consciência na certeza do amor de Deus, permaneça constante na obediência à consciência e de modo algum aja contra sua consciência.

Conclusão: a coragem de uma boa consciência Por sua própria natureza a consciência precisa estar ativa. Mas um a boa cons­ ciência age com base no conhecim ento da Palavra de Deus, promovendo tanto obediência bíblica quanto liberdade bíblica em vez de legalismo ou indiferença com 0 pecado. Certo dia, quando o puritano Richard Rogers (1551-1618) e um anglicano estavam andando a cavalo, o anglicano com entou: "Gosto muito de você e de sua com panhia, o único problema é que você é rigoroso dem ais”. Rogers explicou por quê. “Ah! senhor”, ele afirmou, “Eu sirvo a um Deus rigoroso 1”.'®®

‘“ T h om as W also n ,

Heaven taken by storm, ed ição de Joel

R. Beeke (M organ: Soli Deo Gloria,

1 9 9 2 ), p. 30. ’“ T h o m as W atson,

The Tbn Comrriandments

2 0 0 0 ), p. 2 3 0 -6 . ‘“ “Rev. R ichard R ogers” ,

RootsWeb.com,

(1 6 9 2 ; reim pr., Edinburgh: B an n er of li-uth,

disponível em : h ttp ://freep ages.gen ealo g y .ro o ts-

w e b .a n c e s try .c o m /~ n y te rr y /r o g e r s /r ic h a rd l/r ic h a rd l.h tm l, a cesso em : 14 jun. 2010. Veja

Elizabethan Puritan diaries by Richard Rogers and Samuel Ward,

Tivo

ed ição d e M . M. Knappen

(C hicago: A m erican Society of C hurch H istory, 1 9 3 3 ), p. 3 4 , n o ta 31.

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TEOLOGIA PURITANA

Essa foi um a resposta m aravilhosa, pois os puritanos percebiam que não po­ demos ser em nada m enos rigorosos na obediência à Palavra de Deus do que Deus é naquilo que ordena. Lembre-se dessa história quando ouvir acusações feitas contra os puritanos ou contra você m esm o por dar demasiada atenção aos detalhes da justiça cristã. Uma boa consciência aum enta o tem or a Deus, mas livra do tem or de hom ens com suas críticas e queixas contra os supostos rigores da obediência. Uma boa consciência não promove o legalismo. Pelo contrário, encontra a maior liberdade; liberdade de obedecer a Deus apesar de grande oposição. Nas palavras de Vincent, U m a b o a c o n s c iê n c ia fo rta le ce c o m c o ra g e m o c o r a ç ã o do h o m e m e fa z com q u e e ste se ja d estem id o d ia n te d e se u s in im ig o s. Pau lo fitou o S in édrio d e m odo d e te rm in a d o . N ão te v e m ed o d e e n c a rá -lo s , p o is su a c o n s c iê n c ia e sta v a lim pa. E lem o s q u e o ju iz F élix tre m e u , a o p a sso q u e o p risio n eiro P au lo e s ta v a confiante. A ra z ã o e ra q u e o ju iz tin h a u m a m á c o n s c iê n c ia [ ...] m a s o p risio n eiro , sendo ab so lv id o p o r u m a b o a c o n s c iê n c ia , n ã o tre m e u , a n te s se alegro u c o m a exp ectativa do ju lg a m e n to v in d o u ro .“ ^

Que Deus conceda a todos nós a robusta determinação de uma boa consciência perante ele.

'“'Vincent, Heaven upon earth, p. 306.

Capítulo 57 □□□□□□□□□□□aDooaDDDDDDaDDQDaaDaaaaDDODDDaQDDaDDaDDaaaoDODDa

Casuística puritana □□□□□DaoDaonanaDDnanaDnaDanannoD□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□pgp

“O Senhor Deus m e deu uma língua erudita, para que eu sai­ ba dizer a seu tempo uma boa palavra ao que está cansado” (Is 50.4, ACF) [...] Nesse texto, está escrita, então, uma das principais tarefas do oficio profético de Cristo [...] Na Palavra de Deus, há certo conhecimento ou doutrina revelada com a qual é possível corrigir e aquietar a consciêiwia dos fracos. W illiam Perkins'

Conforme observado no capítulo anterior, os puritanos davam muita atenção a despertar e moldar a consciência hum ana. Muitos puritanos tam bém escre­ veram livros sobre vários casos de consciência, que vieram a ser chamados de casuística da consciência. Casuística tem sido definida com o “um a técnica desenvolvida pelos jesuítas para encontrar pretextos para não fazer o que você deve fazer”.^ Os puritanos d etest^iam essa definição. Para eles, a casuística era a arte da teologia moral aplicada com integridade bíblica a vários casos com que alguém é confrontado em sua consciência ou vida. Thomas Merrill afirma que “é possível entender [a casuística] de forma mais adequada como um método de dem arcar trilhas de uma extremidade a outra da selva ética, a qual com demasiada frequência estabelece separação entre teoria e prática, entre código e conduta e entre religião e m oralidade”.^ A casuística é teologia 'Thomas C. Merrill, org., WilUamPerkins, 1558-1602: EngUshPuritanist—his pioneer works on casuistry: “A discourse of conscience" and "The whole treatise of cases of conscience” (Nieuwkoop: B. De Graaf, 1966), p. 87-8. ^Elliott Rose, Cases of conscience: alternatives open to Recusants and Puritans under Elizabeth I and James I (Cambridge: Cambridge University Press, 1975), p. 71. ^Merrill, William Perkins, 1558-1602: English Puritanist—his pioneer works on casuistry, p. x.

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TEOLOGIA PURITANA

prática, instruindo os cristãos a viverem com integridade, humildade e alegria na presença de Deus em cad a dia de sua vida. A casuística puritana, de modo bem parecido com a casuística luterana,^ foi resposta a um a necessidade arraigada na Reforma Protestante e possui raízes tanto polêmicas quanto pastorais. A raiz polêmica está associada com a resposta reformada e puritana ao catolicism o romano. Ao contrário do catolicism o, os reformadores insistiam que Deus não perdoa pecadores por meio de interven­ ção sacerdotal e sacram ental, mas mediante a fé em Cristo somente, por meio de sua Palavra e Espírito. Essa convicção tornava inevitável o abandono do sistema penitencial que a Igreja Católica Romana havia usado durante séculos para proporcionar direção moral e norm as de com portam ento à Europa.’ Esse abandono foi desconcertante para muitos novos convertidos à fé re­ formada. Sermões sem anais não pareciam suficientes para manter os devidos limites espirituais e morais nem para orientar sobre esses limites. Para se con­ trapor à tendência de alguns convertidos que acolhiam as doutrinas da graça e ao mesmo tempo rejeitavam norm as bíblicas para a vida moral cristã, líderes como Ulrico Zuínglio (1484-1531) e João Calvino suplementaram a pregação com aquilo que ficou conhecido com o disciplina eclesiástica. Calvino afirmou que a disciplina eclesiástica tinha o propósito de servir de "rédea para frear e conter os obstinados” e de "espora para os indolentes”. O objetivo da disciplina era impedir que aqueles que “vivem uma vida escandalosa” participassem da ceia do Senhor e tivessem boa reputação no corpo de Cristo.® Tal disciplina não era somente punitiva, m as parte de um a preocupação maior dos reforma­ dores com 0 cuidado pastoral das ovelhas de Cristo. O coração pastoral dos reformadores se evidenciava, por exem plo, nas cartas pessoais de Calvino^

'Q u anto às n otáveis se m e lh a n ça s da ca su ística p uritana en co n trad a n a casu ística luterana, veja B enjam in T. G. M ayes, Counsel and conscience: Lutheran casuistry and moral reasoning

after the Reformation (G ottingen; V andenhoeck & R uprecht, 2011). ^Acerca da casu ística católico-rom an a e an glicana e d a recon stru ção puritana das duas tradi­ ções, veja N orm an Keith Clifford, “C asuistical divinity in English Puritanism during the seventeenth century: its origins, developm ent an d significance" (te se de d ou torado. University of London, 1 9 5 7 ), p. 4 1 -9 8 ,3 1 4 -8 ; Ian Brew ard, “T h e life an d thought of W illiam Perkins" (tese de doutorado, University of M anchester, 1 9 6 3 ), p. 2 3 6 -7 7 . Para fazer essa recon stru ção, Clifford m ostra com o os puritanos em pregavam diversos m eios: cartas de acon selh am en to, o sacerdócio de todos os crentes, conventículos para co m u n h ão espiritual e cateq u ese, sessões de acon selh am en to individual com clérigos e, e m especial, vários estudos. E ste artigo dedica m aior aten ção a esses estudos. ‘Joh n C alvin, Institutes o f the Christian religion, ed ição d e Jo h n T. M cNeill, trad u ção para

0 inglês de Ford Lew is B attles (Philadelph ia; W estm in ster P ress, 1 9 6 0 ), 2 .4 .1 2 [edições em português: Jo ã o C alvino, As institutos, tra d u çã o de W aldyr C arvalh o L uz (São Paulo: Cultura C ristã, 2 0 0 6 ), 4 v o ls., e A instituição da religião cristã, trad u ção de C arlos Eduardo Oliveira; José Carlos E stêvão (São Paulo: E ditora UNESP, 2 0 0 8 ) , 2 v o ls.]; Clifford, “C asuistical divinity", p. 1-3. U ules B on net, o rg .. Letters o f John Calvin (Ph iladelphia: Presbyterian B oard of Publication, 1 8 5 8 ), 4 vols. Para u m a a m o stra d as c a rta s e m q u e C alvino oferece cu id ado p asto ral, v eja Elsie A. M cKee, o rg ., John Calvin: writings on pastoral piety (N ew York: Paulist, 2 0 0 1 ), p. 2 9 1 -3 3 2 .

Casuística puritana

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ou na obra C o n cern in g th e tru e ca re o f so u ls [Sobre o verdadeiro cuidado das almas] de Martin Bucer (1491-1551).® De modo análogo, os puritanos tinham uma profunda preocupação de que os pastores pastoreassem o rebanho de Deus com orientação e direção práticas relacionadas com questões que diziam respeito àquilo que Deus esperava do povo da aliança. Este capítulo estudará cronologicam ente o avanço da casuística puritana com base em seu início pioneiro e desenvolvimento sistemático com William Perkins (1558-1602), pai da casuística puritana, em seguida passando pelo seu florescimento no início do século 17 e por seu apogeu nas décadas de 1640 a 1670 e por fim chegando ao seu desaparecim ento no final da era puritana.^ Concluiremos com lições dos puritanos para o aconselhamento nos dias de hoje. ‘ M artin Bucer, Concerning the tm e care o f souls, tra d u çã o p ara o inglês de Peter B eale (edição em alem ã o , 1 5 3 8 ; trad u ção p ara o inglês: Edinburgh: B an n er of H u th Tl-ust, 2 0 0 9 ). ‘ E stu d os de fontes secu nd árias sob re a casu ística p u ritan a têm sido esca ss o s e em sua m aioria insatisfatórios. Os q ue m e re ce m m e n çã o in clu em W illiam W h ew ell, Lectures on the

history o f moral philosophy in England (C am bridge: C am bridge U niversity P ress, 1 8 5 2 ); H. H ensley H enson , Studies in English religion in the seventeenth century (N ew York: E. P. D utton, 1 9 0 3 ); Kenneth E. Kirk, Conscience and its problem s: an introduction to casuistry (1 9 2 7 ; reim pr., Louisville; W estm inster Jo h n K nox, 1 9 9 9 ); Louis B. W right, “W illiam Perkins: Elizabethan apostle of p ractical d ivinity”, Huntington Library Quarterly 3 ( 1 9 4 0 ); 1 7 1 -9 6 ; Jo h n T. M cNeill, “C asuis­ try in the Pu ritan A ge”, Religion in Life 1 2 , n. 1 (W in ter, 1 9 4 2 -4 3 ): 7 6 -8 9 ; H. R . M cAdoo, The structure o f Caroline moral theology (London: L o n g m an ’s G reen, 1 9 4 9 ); T h o m as W ood, English casuistical divinity during the seventeenth century, with special reference to Jerem y Thylor (Lon don : S.P.C .K ., 1 9 5 2 ); G eorge L. M osse, “P u ritan p olitical thou gh t an d the ‘c a se s of co n s­ cie n ce ’” , Church History 2 3 ( 1 9 5 4 ): 1 0 9 -1 8 ; G eorge L. M osse, “T h e assim ilation of M achiavelli in English thou gh t; the casu istry of W illiam Perkins an d W illiam A m e s”, Huntington Library Quar­

terly 1 7 , n. 4 ( 1 9 5 4 ): 3 1 5 -2 6 ; G eorge L . M osse, The holy pretence (O xford: Basil Blackw ell, 1 9 5 7 ); Clifford, “C asuistical divinity in English Pu ritanism during th e seven teen th ce n tu ry "; Brew ard, “T h e life an d thou gh t of W illiam Perkins” ; Rose, Cases o f conscience; P. H. Lew is, “Th e Puritan casu istry of prayer— so m e c a se s of co n scie n ce resolv ed ”, in: The good fight o f faith, W estm ins­ ter C onference Papers, 1971 (London: E van gelical, 1 9 7 2 ), p. 5 -2 2 ; P eter Lew is, The genius of Puritanism (1 9 7 5 ; reim pr.. G rand Rapids: Soli D eo G loria, 2 0 0 9 ) , p. 6 3 -1 3 6 ; Daniel W ebber, “The Puritan p a sto r as cou n sellor”, in: The office and work o f the minister, W estm inster C onference p a­ pers, 1 9 8 6 (London: W estm inster C onference, 1 9 8 7 ), p. 7 7 -9 5 ; T im oth y Keller, “Pu ritan resources for biblical cou n selin g”. Journal o f Pastoral Practice 9 , n. 3 ( 1 9 8 8 ): 11-44, disponível em : h tt p ://

WWW. ccef.o rg /p u ritan -reso u rces-b ib lical-co u n selin g ,

a ce sso em : 2 5 jun . 2 0 1 0 ; M argaret Sam p­

so n , “L axity and liberty in seven teen th -cen tu ry English p olitical th o u gh t” , in: Edm un d Leites, o rg .. Conscience and casuistry in early m odem Europe (C am bridge: C am bridge U niversity Press, 1 9 8 8 ), p. 1 5 9 -8 4 ; J . 1. Packer, “T h e Pu ritan c o n s c ie n c e ”, in: A quest for godliness: the Puritan vision o f the Christian life (W h eato n : C rossw ay, 1 9 9 0 ), p. 1 0 7 -22; M ichael Schuldiner, Gifts and works: the post-conversion paradigm and spiritual controversy in seventeenth-century Massachusetts (M acon; M ercer U niversity P ress, 1 9 9 1 ); Keith T h o m as, “ C ases of co n scien ce in seventeenthcen tu ry E n glan d ”, in: Jo h n M orrill; Paul S lack; Daniel W oolf,; o rg s.. Public duty and private

conscience in seventeenth-century England: essays presented to C. E. Aylmer (O xford: Clarendon, 1 9 9 3 ), p, 2 9 -5 6 ; Ken Sarles, “T h e English P u ritans; a historical parad igm of biblical co u nselin g”, in: Jo h n F. M acA rth ur Jr .; W ayne A. M a c k e f af., orgs.. Introduction to biblical counseling: a basic

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TEOLOGIA PURITANA

O início da casuística puritana Os puritanos concordavam com Calvino que membros em com unhão com a igreja devem ser responsáveis por praticar padrões bíblicos em sua conduta. Mas, visto que nem todos os casos eram claros, com frequência pastores puritanos procuravam o conselho de colegas em reuniões distritais (em que frequentemente cerca de um a dezena de pastores estava presente) sobre casos específicos. Esses casos vieram a ser conhecidos com o ca so s d e co n sciên cia . Anotações de reuniões distritais revelam grande número desses casos, que iam desde se as pessoas podiam deixar de ir ao culto de sua igreja para ouvir um pastor pregar em uma igreja vizinha até se alguém que havia admitido ter mentido aos amigos sobre um pecado de ordem pessoal devia agora confes­ sá-lo em público.“ Quando não conseguia chegar a um a solução clara sobre um caso específico, norm alm ente o distrito encam inhava esses assuntos à Universidade de Cambridge. Norman Clifford afirma: ‘‘sem dúvida, essa prá­ tica de encaminhar ‘casos difíceis’ para Cambridge prenunciou o fato de que essa universidade haveria de produzir muitos dos mais destacados casuístas puritanos da época”.“ Um dos pastores mais ativos naquelas primeiras reuniões em Cambridge foi Richard Greenham (c. 15 4 2 -1 5 9 4 ), originário de Dry Drayton, a oito qui­ lômetros de Cambridge. Ali labutou por 21 anos, conquistando a reputação de sábio médico espiritual. Thom as Fuller (1608-1661), historiador do século 17, afirma que Greenham se especializou em “consolar consciências feridas”, pois muitos que “vinham a ele com lágrimas nos olhos [...] iam embora com a alma contente”.*^ Na atualidade, os estudiosos com um ente reconhecem que Greenham foi um pioneiro da casuística puritana. Uma parte do aconselham ento pastoral de Greenham foi escrita em cartas, e uma parte foi registrada em torno de sua m esa de jantar por alunos que se reuniam em torno dela. Essas cartas e anotações foram mais tarde publicadas guide to Üie principies and practice o f counseling (D allas: W ord, 1 9 9 4 ) (edição em p ortu guês: In­ trodução ao aconselhamento bíblico: um guia prático de princípios e práticas de aconselhamento, tradução de E nrico Pasquini; L au ro Pasqu in i; Bros Pasquini (São Paulo: H agnos, 2 0 0 4 ) ], p. 21-43; Edward G. Andrew, Conscience and its critics: Protestant conscience. Enlightenm ent reason, and modem subjectivity (Toronto: U niversity of Tbronto P ress, 2 0 0 1 ); T h eodore Dw ight B o zem an , The Precisianist strain: disciplinary religion & antinom ian backlash in Puritanism to 1638 (Chapel Hill: University of N orth C arolina P re ss, 2 0 0 4 ) , p . 1 2 1 -4 4 ; G ary B rady, “A stud y of ideas of the conscience in Pu ritan w ritings, 1 5 9 0 -1 6 4 0 ” (d issertação de m estrad o , W estm inster Theological Seminary, 2 0 0 6 ). D essas fontes, m in h a m a io r dívida é co m a s teses de d ou torad o d e Brew ard e Clifford e o artigo de Packer, n os quais m e b aseei e m gran de m edida. '“Clifford, “C asuistical divinity”, p . 4 -7 . "Clifford, “C asuistical d ivinity”, p. 7. '^Thomas Fuller, Church history o f Britain, e d içã o de J . S. Brew er, 3. ed. (1 6 4 8 ; reimpr., London: W illiam Tegg, 1 8 4 5 ), 5 :1 9 2 -3 .

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em escritos de “conversas informais à m esa”.'* Nesses escritos, vem os Greenham “analisando cuidadosamente a situação espiritual de seu paciente e ministrando os remédios apropriados”. Nem sem pre os remédios eram os que 0 paciente desejava ouvir. Por exemplo, John Dod (c. 1 5 4 9 -1 6 4 5 ), pastor pu­ ritano bastante conhecido e que recebeu o apelido de “Dod Decálogo” devido ao livro que escreveu sobre os Dez M andamentos, foi certa vez a Greenham com um a multidão de problemas que pesavam em sua consciência. Depois de ouvir, Greenham respondeu: “Filho, filho! Quando a aflição está pesada, o pecado está leve”. Tempos mais tarde, Dod agradeceu por essa resposta, pois em retrospecto teve de admitir que, se Greenham tivesse tido pena dele — que é 0 que esperava — a sessão de aconselham ento teria sido mais prejudicial d < que benéfica.'“ Clifford escreve: E m su a a n á lise d o p e c a d o , G re e n h a m a c o n s e lh a v a a c o n fissã o e u m e x a m e m in u cio so d a co n s c iê n c ia c o m o o b jetiv o d e d e sco b rir “a lg u m p e c a d o p esso al, e sp e cífico e s e c r e to ”. E le e x p lica q u e o m o tiv o p a ra isso é “le v a r as p a rte s q u e so fre m a e n te n d e r a s c a u s a s e x a ta s d o p ro b le m a ”. N a h ip ó te se de os p en iten tes “n ã o co n se g u ire m v e r e sp e cifica m e n te se u s p e c a d o s ” e só co n se g u ire m v er o p e ca d o de fo rm a g e n é ric a , G reen h am a cre d ita v a q u e “é b o m c o n ta r co m a ajud a d e o u tro s a q u e m p o d e m a p re se n ta r o c o ra ç ã o p a ra q u e se ja av aliad o e av erig u ad o , e a v id a p a ra q u e seja e x a m in a d a e m m aio r p ro fu n d id ad e, p re sta n d o a te n ç ã o ao s v á rio s d e ta lh e s d a lei e x p o s ta a eles, m e d ia n te o q u e p o d e m a v a lia r tod o o cu rso d e su a s a ç õ e s ”.'*

Richard Rogers (1550-1618), vigário de Wethersfield e membro do distrito de Braintree, tam bém era um apaixonado por casos de consciência. Ele escreveu S ev en treatises [Sete estudos] (1604) para servir de manuéd prático para cristãos

com vários casos de consciência.'® A m otivação de Rogers era tanto pastoral quanto polêmica. Do ponto de vista pastoral, escreveu para oferecer alívio a

Kenneth L. Parker; Eric J . C arlson , org s., Rylands English M an uscrip t S 24, republicado em Richard G reenham , ‘Practical divinity’: The works and life ofRevd Richard Greenham (Brookfield: A shgate, 1 9 9 8 ), p. 1 2 9 -2 5 9 (origin alm ente p ublicado e m 'Works, d e G reenham , em 1 5 9 9 , cinco anos após su a m o rte ). Cf. B o z e m a n , The Precisianist strain, p . 71. '“Clifford, “C asuistical d ivinity”, p. 9. '^Clifford, “C asuistical d ivinity”, p. 10. '* 0 título com p leto d essa obra d e R ichard Rogers é Sei»en treatises, containing such direction as is gathered out o f Holie Scripture, leading and guiding to true happiness, both in this life, and in the life to come: and may be called the practise o f Christianitie: profitable for such as desire the sam e: in which more particularly true Christians leam e how to lead a godly and comfortable life every day (Lon don ; Felix K yngston p ara T h o m as M an , 1 6 0 4 ). E sse livro foi reim presso cinco vezes n o sécu lo 1 7 , m a s n u n ca m ais depois disso. No m o m e n to . R eform ation H eritage Books está trab alh and o p ara publicá-lo.

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almas indagadoras e atribuladas. Do ponto de vista polêmico, ele escreveu para neutralizar os jesuítas, que estavam zom bando dos puritanos devido à ausência de textos que oferecessem conselho e orientação a seus seguidores. Stephen Egerton afirma que os puritanos sentiram intensamente esse desafio. Ele assevera que, “inclusive com o estímulo de outros, Rogers se animou a escrever essas orientações cristãs para se contraporem ao veneno de todos esses enganos dos papistas”.'^

Seven treatises, de Rogers, mostra à exaustão com o o cristão deve governar a vida com a ajuda de sete meios: exercitar a vigilância, praticar a meditação, vestir a arm adura do cristão descrita em Efésios 6, dedicar-se à oração, ler as Escrituras e autores piedosos, apresentar ações de graças e praticar o jejum.'® William Haller escreve: "Seven treatises foi a primeira exposição importante do código com portam ental que expressava a concepção calvinista inglesa ou, falando em terminologia mais ampla, a concepção puritana da vida espiritual e moral. Com isso deu início a um corpo literário cujo alcance e influência em todas as esferas da vida é difícil subestim ar”.’® Outro membro do mesmo distrito, Arthur Dent (1553-1607), que por 27 anos foi reitor da igreja de South Shoebury, no condado de Essex, publicou Theplain

m an’s pathway to heaven [O caminho que leva o homem simples ao céu]. Na forma de um diálogo de peregrinação, esse livro dava orientação à alma aflita. O diálogo incluía quatro personagens — um pastor, um homem temente a Deus, um homem ignorante e um incrédulo — que ao longo da viagem conversam sobre questões religiosas, com o a miséria humana por natureza, a corrupção do mundo, as m arcas dos filhos de Deus, a dificuldade de entrar na vida eterna, a ignorância do mundo e as doces promessas do evangelho “com as abundantes misericórdias de Deus a todos os que se arrependem, creem e verdadeiramenté se voltam para ele”. Diálogos específicos tratam de assuntos como regeneração, orgulho, adultério, cobiça, desprezo pelo evangelho, imprecações, mentirasi embriaguez, ociosidade, opressão, efeitos do pecado, predestinação, obstáculos à salvação e a segunda vinda de Cristo. O livro ensina muito sobre casos de consciência relacionados a Deus, ao pecado e à salvação. O livro de Dent foi um dos clássicos devocionais puritanos mais populares já escritos. Até 1640, já havia tido 25 edições e em 1 8 6 0 ,5 0 edições. Em 1674Í Richard Baxter (1615-1691) reescreveu o livro — que passou a ter o título The poor m an’s family book [O livro de família do hom em pobre] — , “abando­ nando o estilo dialogai despretensioso de Dent em favor de prosa conexa”.“ '^Rogers, Seven treatises, prefácio n ã o paginado. '‘R ogers, Seven treatises, passim . '’ W illiam Haller, The rise o f Puritanism (N ew York: C olum bia U niversity P ress, 1 9 3 8 ), p. 36; ^Oxford diaionory o f national biography (O xford: Oxford U niversity P ress, 2 0 0 4 ), 15:844.,

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Em suas primeiras lutas espirituais, John Bunyan (1628-1688) também foi profundamente influenciado pelo livro de Dent. Além disso, 0 puritano Henry Smith (1560-1591), que era chamado de o “pregador eloquente” de sua geração, usava seus sermões para orientar, con­ solar, levar à decisão, exortar e desafiar a consciência de milhares de pessoas necessitadas que se reuniam em grande número para ouvi-lo. Os sermões es­ critos de Smith eram tão populares que no início do século 18 coleções deles já haviam sido editadas mais de 85 vezes.^' Esses são alguns dos homens que contribuíram para as etapas iniciais do movimento casuístico puritano. Clifford faz uma síntese das motivações desses líderes. Em resumo, é possível identificar a origem da teologia casuística puritana nas pressões tanto dentro quanto fora do puritanismo. Internamente, havia a necessidade de orientação que permitisse uma cuidadosa supervisão moral e espiritual das pessoas que estavam sob seus cuidados. Externamente, havia o ataque dos polemistas católico-romanos, que sustentavam que os puritanos não tinham riqueza alguma para oferecer ao seu povo comparável com a da Igreja Católica Romana. Unidas, essas duas pressões produziram uma enorme explosão de atividade literária. O resultado disso foi a produção de uma teologia prática inglesa que as igrejas reformadas por toda a Europa passaram a invejar.“

O pai da casuística puritana Como muitas pessoas liam avidamente os livros dos primeiros casuístas puri­ tanos, surgiu — de acordo com Henry Holland no prefácio que escreveu para a primeira edição de Works de Richard Greenham (1595) — a necessidade de uma abordagem mais abrangente e sistemática de “casos de consciência”.“ William Perkins, o renomado pregador da igreja de St. Andrews the Great, em Cambridge, foi o primeiro a dar à casuística puritana “uma forma de método e técnica”. Thomas Merrill assinala que a casuística de Perkins é importan­ te “porque estabeleceu um padrão para toda a obra posterior de teologia moral protestante”.“ Perkins possuía um talento excepcional para ensinar a usar o autoexame, bem como o diagnóstico bíblico para lidar com “casos de consciência”. Com ^'Joel R. Beeke; Randall J. Pederson, Meet the Puritans: with a guide to modem reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2 006), p. 545 [edição em português: Paixão pela pureza: conheça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES, 2010)]. “ Clifford, “Casuistical divinity", p. 16. “ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 16-7. “ Merrill, William Perkins, 1SS8-1602: English Puritanist—his pioneer works on casuistry, p . XX.

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sua pregação, muitas pessoas foram convencidas de pecado e libertadas da escravidão a ele. Os presos da cadeia de Cambridge estiveram entre os primei­ ros a se beneficiar do aconselhamento de Perkins. Samuel Clarke (1599-1683), pastor puritano e biógrafo, oferece um exemplo notável do cuidado pastoral de Perkins. Ele conta que um preso condenado estava subindo ao patíbulo com tanto medo e tremor que Perkins exclamou: “O que é isso, homem? Qual é o teu problema? Tens medo da morte?” O preso confessou que tinha menos medo da morte do que daquilo que viria depois da morte. “Bem disseste”, afirmou Perkins, “Volta aqui em baixo, homem, e verás o que a graça de Deus fará para te fortalecer”. Quando o preso desceu, ele e Perkins se ajoelharam de mãos dadas. Então Perkins fez “uma oração de confissão de pecados tão fervorosa [...] a ponto de fazer o pobre preso irromper em lágrimas”. Certo de que o preso tinha ficado “suficientemente prostrado, sentindo-se perto das portas do inferno”, Perkins apresentou o evangelho enquanto orava. Clarke escreve que os olhos do preso foram abertos "para ver como a lista negra de todos os pecados dele foi riscada e cancelada com a tinta vermelha do sangue precioso de seu Salvador crucifica­ do, aplicando esse sangue de uma forma tão graciosa à sua consciência ferida que 0 levou a irromper de novo em uma torrente de lágrimas pela alegria do consolo íntimo que havia encontrado”. O preso, que estava ajoelhado, se levantou, subiu exuberante a escada, deu testemunho da salvação no sangue de Cristo e suportou a morte com paciência, “como se de fato tivesse visto seu livramento do inferno que antes temia e o céu aberto para receber sua alma, para grande alegria dos expectadores”.“ Anos antes de morrer, Perkins pregou uma série de sermões sobre Isaías 50.4: “O Senhor Deus me deu uma língua erudita, para que eu saiba dizer a seu tempo uma boa palavra ao que está cansado” (ACF). Com base nesse texto, Perkins formulou este conceito doutrinário: “Na Palavra de Deus, existe certo conhecimento ou doutrina revelada com a qual é possível corrigir e aquietar a consciência dos fracos”. Para ele, era mais do que certo que os que estão cansados são os que não têm certeza da fé e estão cansados com a incerte­ za sobre o que pensar ou fazer para agradar a Deus. Com base nesses e em outros sermões, Perkins escreveu dois estudos sobre “casos de consciência”, intitulados A discourse o f conscience [Um estudo sobre a consciência] (1596) e The whole treatise o f cases o f conscience [O tratado completo sobre casos de consciência] (1606).“ “ Samuel Clarke, The marrow o f ecclesiastical history, 3. ed. (London: para W. B., 1675), p. 416-7. “ Republicado em Merrill, William Perkitis, 15S8-1602: English Puritanist—his pioneer works

on casuistry.

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O primeiro estudo, do qual boa parte é de natureza teórica, descreve a consciência, nas palavras de George Mosse, como “uma espécie de mecanis­ mo de controle colocado no meio do caminho entre Deus e o homem. É a Deus que ela respondia; aos homens advertia contra atos errados Perkins escreveu esse estudo em grande parte para ajudar crentes a resolver dúvidas sobre a certeza da fé e a ter uma “boa consciência”. lan Breward faz esta sín­ tese: “Uma boa consciência era uma joia inestimável, pois dava aos homens a certeza da eleição, o que permitia que se alegrassem na aflição e, quaisquer que fossem as circunstâncias externas, fossem ousados diante de Deus e dos homens. Por outro lado, uma má consciência era um peso insuportável que trazia um pavor corrosivo do juízo, pavor este que só podia ser mitigado pelo sangue de Cristo”.^® O segundo estudo se concentra mais na preocupação de Perkins com os aspectos pessoais e sociais da moralidade cristã. O alvo era proporcionar orien­ tação bíblica e reformada, em áreas de incerteza ética, denominadas casos de consciência, e desenvolver aquilo que os puritanos chamavam autojulgamento baseado nas Escrituras, a fim de solucionar dilemas morais típicos que con­ frontam os cristãos em todas as fases da vida. Perkins classificava os casos de consciência em três categorias.^® Na primei­ ra, ficavam questões de natureza pessoal. Essas questões envolvem perguntar: como posso ser salvo? Como posso ter certeza de que estou salvo? Como posso me recuperar quando estou “afligido ou caído”? Estar afligido significa estar atravessando um caminho árido em que me sinto espiritualmente aban­ donado, como se Deus tivesse me abandonado, e, por isso, algo deve estar errado. Estar caído significa que eu de fato me afastei, caí em pecado e sei que 0 fiz. Como retorno à comunhão íntima com Deus? E como lido com várias aflições e tentações, como a tentação de blasfemar contra Deus? Todas essas perguntas da primeira categoria de Perkins dizem respeito a uma caminhada pessoal com o Senhor. A segunda categoria trata de questões sobre a relação da pessoa com Deus, com as Escrituras e com o culto. Elas incluem as seguintes: os 66 livros das Escrituras são na forma como os temos a Palavra de Deus? Como justifico que esses 66 livros constituem o cânon? Como me asseguro de que todos contêm instrução divina? Qual a relevância da legislação do Antigo Testamento para a minha vida? Como devemos organizar nosso culto público? Que tipo de culto público agrada a Deus? ^'Mosse, The holy pretence, p. 49. “ Breward, "Life and theology of Perkins”, p. 235. “ Merrill, William Perkins, 1558-1602: English Puritanist—his pioneer works on casuistry, p. 101.

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A terceira categoria trata de questões que dizem respeito à relação da pessoa com as outras. Essas incluem todas as questões que aparecem na segunda tábua da lei no que tange ao amor ao próximo, abrangendo o desen­ volvimento de virtudes sociais, a manutenção de relacionamentos humanos e a vida em comunidade. Merrill assinala que na última seção do estudo, Perkins analisou assuntos relevantes de sua época, como “o uso correto do dinheiro, verdade e falsidade, 0 uso correto do lazer, a atitude cristã diante da guerra, votos e promessas, vestimentas apropriadas, a legitimidade dos divertimentos, programas de ação e prudência”.“ Seu propósito não é o objetivo católico-romano de fornecer aos sacerdotes um guia sobre a quantidade de penitências que devem ser impostas aos culpados, mas que os clérigos tenham material que os ajude a responder a pessoas que indagam: “Como devo me comportar numa situação específica da vida?” ou; “O que devo pensar sobre minha condição espiritual em face das preocupações e indagações espirituais que tenho no momento?”.^' Hoje daríamos o nome de ética pessoal e social a boa parte desse ensino, mas Perkins o considerava casos de consciência. Os puritanos acreditavam que muitas perguntas são feitas por crentes ansiosos porque sabem que manter um relacionamento correto com Deus depende de terem as respostas certas para essas perguntas e uma consciência livre de transgressão. Se você der a resposta errada, seu relacionamento com Deus sofrerá. Conhecer as respostas de Deus a perguntas autoexaminadoras e éticas, crer e descansar nessas res­ postas, são ações que trazem verdadeira paz ao coração e à mente. Assim você pode legitimamente dizer que tudo o que diz respeito a padrões e a questões relacionadas de espiritualidade que você estudou em departamentos de ética moderna são, na mente puritana, casos de consciência.“ Na época de sua morte, Perkins já havia se tornado o principal arquiteto do movimento puritano. Combinada com seu intelecto, piedade, trabalho de escritor, aconselhamento espiritual e habilidade de comunicação, sua visão de uma reforma mais profunda na igreja o capacitou a determinar o tom do puritanismo do século 17. Ele estabeleceu a ênfase puritana característica na verdade e autoexame reformados e experienciais e na polêmica puritana con­ tra o catolicismo romano e o arminianismo. Nos primeiros decênios após a morte de Perkins, a venda de seus livros na Inglaterra superou a das obras de

“ Merrill,

William Perkins, 1558-1602, p. xx.

^'Cf. lan Breward, “William Perkins and the origins of Puritan casuistry”, in: Faith and a good conscience, Puritan Conference Papers, 1962 (1963; Stoke-on-Ti-ent: Tentmaker, s. d .), p. 14-7. Quanto às ideias de Perkins e Ames sobre a liberdade de consciência, veja L. John Van Til, Liberty of conscience, the history of a Puritan idea (Nutley: Craig, 1972), p. 11-25,43-51. “ Para uma avaliação negativa dos estudos de Perkins sobre a consciência, veja Rose, Cases of conscience, p. 187-94.

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Calvino, Heinrich Bullinger (1504-1575) e Teodoro Beza (1519-1605) somadas. Ele “moldou a piedade de uma nação inteira”, afirma H. C. Porter.^^

O florescimento da casuística puritana Os discípulos de Perkins publicaram inúmeros livros de casuística puritana. William Gouge (1575-1653) escreveu The whole arm ourofG od [Toda a arma­ dura de Deus] (1616), Ofdom estical duties [Acerca dos deveres no lar] (1622) e muitos outros livros úteis. Samuel Clarke fez a seguinte avaliação da obra de Gouge: Ele foi um amável consolador de consciências atribuladas, no que foi extremamente hábil e arguto, conforme muitas centenas de pessoas da cidade descobriam de tempos em tempos. Ele foi procurado por gente de perto e de longe que gemia debaixo de aflições e tentações. Por Deus ter abençoado o trabalho de Perkins, muitas dessas pessoas que sofriam inexprimíveis terrores e tormentos de consciência voltaram a experimentar gozo e consolo.^“'

William Whately (1583-1639), outro que se beneficiou do ministério de Perkins como pregador, escreveu vários livros de teologia prática. Thomas Fuller afir­ ma que Whately tinha “muita capacidade e bastante preparo para conversar e solucionar as dúvidas daqueles que vinham a ele”.^® Richard Baxter alistou Whately entre os que promoviam a “teologia prática afetuosa” e ressaltou que os que desejam estudar casos de consciência deveriam ler a obra de Whately Ten Commandments [Dez mandamentos] (1622).^® Robert Bolton (1572-1631), que inicialmente fazia pouco caso da pregação de Perkins, mas depois da conversão veio a amá-la, tornou-se um casuísta puritano tido em alta consideração como resultado tanto de sua pregação quanto de seu aconselhamento e de seus inúmeros livros. Edward Bagshawe, seu biógrafo, escreveu a seu respeito: Posso dizer com toda sinceridade que por seu ministério muitas centenas de pessoas se converteram de verdade, outras foram poderosamente fortalecidas e outras receberam consolo extraordinário em face de suas terríveis angústias. Pois ele possuía uma habilidade tão especial de dar alívio a consciências aflitas — a

“ H. C. Porter,

Reformation and reaction in Tiidor Cambridge fLondon: Cambridge Univer­

sity Press, 19S8), p. 260. ^“Samuel Clarke, A

.

collection of the lives of ten eminent divines (London: para William

Miller. 1662), p. 114. ^'Thomas Fuller, Abel Redevivus (1651; reimpr., London: William Tegg, 1867), p. 593. ^‘Richard Baxter, A Christian directory: or a sum of practical theology, in: William Orme, org.. The practical works of the Rev. Richard Baxter (London: Jam es Duncan, 1830), 5:587.

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qual adquiriu em parte devido ao grande esforço e empenho na busca daquela aptidão, mas principalmente devido à experiência variada que havia tido consigo mesmo e com outros — que era procurado por pessoas de longe e de perto, e muitos do além-mar desejavam que resolvesse diversos casos de consciência. Esse foi o único motivo que o fez escrever aquele seu último estudo erudito'« piedoso, o qual [intitulou] Instructions for a right comforting of afflicted mnsciences [Instruções para consolar corretamente consciências aflitas] Instructions for com forting affticted consciences [Instruções para consolar consciências aflitas] (1639), de Bolton,^® é uma das melhores obras puritanas sobre como consolar o crente aflito em cada aspecto da vida interior: mente, coração, consciência, memória e vontade. A primeira parte mostra, com base em Provérbios 18.14, a grande necessidade que o homem tem de armazenar “consolos celestiais” no coração. Ela admoesta os indiferentes, os que se en­ tregam à sensualidade e os que se opõem à pregação fiel. Em seguida, passa a descrever a intolerabilidade de uma consciência ferida. Ela explica por que alguns nem sempre sentem o peso do pecado e oferece vinte argumentos con­ vincentes contra o pecado. A segunda parte mostra como é errado consolar os que não se entristecem com o pecado ou que o fazem por motivos errados. Bolton explica como os pastores devem dar consolo a essas pessoas — nem de mais nem de menos. Em seguida, explica os métodos e maneiras certos de curar consciências aflitas. A terceira parte trata de formas de consolo que sur­ gem de fora e de dentro de nós por meio das Escrituras e dos sinais da graça. Ela também mostra como é possível identificar esses sinais. Em seguida, trata de enfermidades da consciência e de várias maneiras de curar cada uma. Aí Bolton oferece ajuda especial para tratar de uma alma atormentada. A maior parte desses conselhos é resultado de uma vida inteira de aconselhamento de crentes atribulados. Bolton também publicou General directions for a comfortable walking with God [Orientações gerais para uma caminhada agradável com Deus] (1626), que inicialmente escreveu como um guia para si mesmo.®’ Ele dividiu a obra em duas partes: “Preparativos gerais” e “Orientações específicas”. Na primeira parte, Bolton considerou dez maneiras de diminuir a influência do pecado sobre a alma: abandone o pecado de estimação, odeie a hipocrisia, exercite a negação de si mesmo, viva a vida de fé, forme idéias corretas sobre o cristia­ nismo, guarde-se contra o mundanismo, inspire-se no amor de Deus, valorize ^'Edward Bagshawe, The life and death o f Mr. Bolton (London: George Miller, 1635), p. 19-20. “Robert Bolton, Instructions for comforting affticted consciences (1626; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1991). “Robert Bolton, General directions for a comfortable walkitig with God (1626; reimpr., Morgan; Soli Deo Gloria, 1995).

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a reconciliação com Deus, guarde seu coração e medite na bem-aventurança futura. Na segunda parte, ele descreveu os deveres cristãos, como cuidar da família, dominar a língua e controlar cada ato da vida. J. I. Packer assim se refere a esses dois livros de Bolton: "Uma geração depois, Richard Baxter reexaminou bem mais detalhadamente todos esses fundamentos e com muito mais perspicácia, mas Bolton não é em nada inferior a Baxter na ternura e profundidade e às vezes é superior a ele O discípulo mais famoso de Perkins foi William Ames (1576-1633), que escreveu Conscience, with the power and cases thereof [A consciência, seu poder e seus casos] (inicialmente publicado em latim em 1630, posteriormente em inglês em 1639).'** Samuel Morison, historiador da Universidade de Harvard, descreve esse importante manual de casuística puritana como “uma das mais valiosas fontes de moralidade puritana”.“^ Foi impresso quase vinte vezes em menos de trinta anos. No prefácio, Ames contou como, quando jovem, ouviu Perkins explicar a maneira puritana de lidar com casos de consciência. Esse ensino dirigiu o curso de sua vida e ministério. A casuística de Ames é mais intrínseca à sua teologia do que a de Perkins. Este dependia mais da teologia casuística medieval, ao passo que Ames desenvolveu uma teologia casuística mais centrada na Palavra, 0 que fica mais patente em sua explicação da obediência da humanidade a Deus dentro da estrutura do Decálogo. Conscience, with the pow er and cases thereof, de Ames, é uma espécie de comentário sobre o Livro 2 de sua obra mais famosa. The marrow o f theology (0 âmago da teologia]. O próprio Ames afirma exatamente isso: “Se existem alguns que desejam receber uma explicação mais detalhada de questões prá­ ticas, em especial aquelas da última parte deste Marrow, procuraremos, se Deus quiser, satisfazê-los num estudo especial que pretendo escrever sobre questões em geral chamadas ‘casos de consciência’V^ Conscience, uma coleção de cinco livros, parte de uma abordagem teó­ rica da natureza da consciência e vai até aplicações bem práticas. O âmago de seu conteúdo foi divulgado pela primeira vez na defesa das 48 teses e ’“J. I. Packer, “Robert Bolton”, in: Gary Cohen, org., The encyclopedia o f Christianity (Marshallton: The National Foundation for Christian Education, 1968), 2:131. “'Para uma introdução básica a Ames e sua obra mais famosa, veja Joel R. Beeke; Jan Van Vliet, "The marrou; o f theology by William Ames (1576-1633)”, in: Kelly M. Kapic; Randall C. Gleason, orgs., The devoted life: an invitation to the Puritan classics (Downers Grove: InterVarsity, 2004), p. 52-65. “Samuel Eliot Morison, “Those misunderstood Puritans”, website Revisionist history: beyond the gatekeepers, disponível em: http://www.revisionisthistory.org/puritanl.html, acesso em: 4 fev. 2011. “William Ames, The marrow o f theology, tradução para o inglês de John D. Eusden (Grand Rapids: Baker, 1968), p. 70.

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quatro corolários com a qual obteve em 1622 o grau de doutor em teologia na Universidade de Franeker. Oito anos depois, Ames publicou sua obra sobre teologia moral. Richard Baxter, que elaborou seu próprio Christian directory (Diretrizes cristãs] com base na casuística de Ames, afirmou que Perkins prestou um serviço de grande valor ao promover a casuística reformada, mas “Ames excedeu a todos Depois da obra de Ames, um livro que ajudou a popularizar entre os leigos 0 entendimento puritano sobre a consciência foi The souls looking-glasse, lively representing its estate before God: with a treatise o f conscience [O espelho da alma, uma representação vivida de sua condição perante Deus, com um estu­ do sobre a consciência] (1643), de William Fenner (1600-1640). Esse estudo faz a exposição de Romanos 2.15, ressaltando que a consciência sempre dá testemunho a nós, quer nos justificando, quer nos acusando. Fenner particu­ larmente ajuda a estabelecer o elo entre a lei moral de Deus e a consciência humana, mostrando a relação entre elas. “O vínculo da consciência é a lei de Deus”, afirmou. Com sua lei. Deus vincula nossa consciência a si mesmo e à sua Palavra até mais do que estamos vinculados a líderes do governo e a outros tipos de autoridade humana.“^ Fenner fazia distinção entre vinculação primária e vinculação secundária da consciência. A vinculação primária é a revelação especial de Deus porque só Deus possui autoridade suprema para vincular nossas consciências. Ele ressáltou que tanto a pregação fiel da Palavra quanto a administração dos sacramentos devem vincular poderoséunente a nossa consciência. Ele, mais do que a maioria dos puritanos, ressaltou especialmente que o batismo é “um enorme vinculador da consciência”, afirmando que “não há pecado algum em que a pessoa permaneça (...) que não seja perjúrio sacramental contra o voto que fizeste a Deus em teu batismo”.“* O vínculo secundário está associado aos relacionamentos humanos pro­ videnciais ou voluntários quando o cristão ou cristã é chamado a obedecer ao marido, ao pai ou à mãe, ao professor, a um magistrado ou a um patrão. Essas autoridades vinculam nossa consciência apenas à medida que recebem autoridade de Deus e de sua Lei e não podem vincular de forma contrária à lei e ao evangelho de Cristo.“^ Fenner era mais reticente do que John Knox (c. 1505-1572) na permissão à opressão eclesiástica e civil. Fenner escreveu o seguinte sobre autoridades humanas: “^Baxter, Christian directory, in: Works, 2;viii. Quanto ao conteúdo de Conscience, de Ames,> veja 0 capítulo 3 acima. “^William Fenner, The souls looking-glasse... (Cambridge: Roger Daniel para John Rothwell,) 1643), p. 175-206. “ Fenner, Souls looking-glasse, p. 209,210. ♦ Tenner, Souls looking-glasse, p. 196-9.

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Precisamos obedecer-lhes de uma maneira ou de outra, quer ativa, quer passivamente. Quando elas ordenam aquilo que é legítimo fazer, precisamos obedecer-lhes e fazer. Quando ordenam aquilo que é ilegítimo fazer e ameaçam com punição, então não podemos obedecer ativamente fazendo o que mandam, porque ordenam contra Deus; contudo, precisamos obedecer passivamente, sofrendo e nos submetendo a seus castigos, pois o Senhor lhes deu autoridade sobre nós.'*^

O apogeu da casuística puritana No final da década de 1640, a casuística puritana já era considerada uma parte tão essencial do ministério pastoral que a Assembléia de Teólogos de Westminster exigiu que o candidato ao ministério fosse examinado em “sua habilidade de interpretar o sentido e o significado daquelas passagens das Escrituras que lhe serão apresentadas em casos de consciência”.^® Embora seja difícil saber até que ponto essa ordem foi executada, há indícios de que comissões examinadoras se asseguraram de que postulantes ao ministério fossem médicos competentes da alma. Por exemplo, em 6 de julho de 1657, Philip Henry (1631-1696), pai do famoso Matthew Henry (1662-1714), registrou em seu diário que, quando foi examinado para ordenação pela comissão do presbitério de Shropshire, per­ guntaram-lhe: “Suponha que alguém o procure e se queixe de sua condição, afirmando ‘Ah, pastor! Estou arrasado. Não adianta eu aguardar os meios de graça. Sou réprobo. E, se sou réprobo, não há salvação alguma possível para mim’”. Philip Henry respondeu: “Eu negaria a premissa menor [de seu silogismo] e me esforçaria em lhe mostrar que, embora alguém possa saber de sua própria eleição, no entanto não pode [saber de] sua condenação eter­ na”. Alguém levantou, então, a objeção: “ [Mas] suponha que ele respondesse ‘Tenho as marcas de alguém réprobo: muita culpa, coração endurecido, cons­ ciência insensível’”. Não demovido, Henry respondeu: “Eu me esforçaria por convencê-lo de que não existe nada que aconteça com um réprobo que não possa acontecer com o eleito antes de sua conversão com exceção da culpa do pecado contra o Espírito Santo”.“ Durante a Assembléia de Westminster, as gráficas imprimiram grande quantidade de livros dedicados à casuística. Muitos desses livros procuravam tratar de temas específicos visto que a casuística puritana se tornou mais espe­ cializada. Com frequência, eram respostas a livros publicados por anglicanos. Por exemplo, John Geree (c. 1601-1649), autor do famoso Chamcter o fa n old ^“Fenner, Souls looking-glasse, p. 200. " A directory for the publique worship o f God (London, 1651), p. 76. “ M. H. Lee, The diaries and letters o f Philip Henry (London: Kegan Paul, ITench & Co., 188 7 ), p. 36.

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English Puritan or nonconform ist [Caráter de um velho puritano ou não con­ formista inglês] (1646), que logo se tornou um paradigma do puritano ideal, publicou em 1646 A case o f conscience resolved [Um caso de consciência solu­ cionado], em que afirmou que em boa consciência o rei podia consentir com a abolição do episcopado sem quebrar seu juramento. Isso levou a uma refutação pelo anglicano e fiel monarquista Edward Boughen (1587-c. 1660), intitulada Mr. Geree’s case o f conscience sifted [O peneiramento do caso de consciência do sr. Geree] (1648), ao que Geree prontamente respondeu em The sifters sieve broken [A quebra da peneira do peneirador] (1648).** Também em 1648, apareceu o influente Therapeutica sacra, escrito por David Dickson (c. 1583­ 1662), um escocês que foi professor de teologia em Glasgow e Edimburgo e havia abraçado a teologia puritana. Therapeutica sacra se concentrou em casos de consciência que diziam respeito à regeneração.“ Clifford afirma que 0 uso que Dickson “faz do esquema da aliança assinala um importante desen­ volvimento no tratamento de casos de consciência”.“ Na década de 1650, um dos principais autores de casuística puritana foi Thomas Brooks (1608-1680), reitor da igreja de St. Margaret, em New Fish Street Hill, Londres, a primeira igreja que foi totalmente destruída no Grande Incêndio de Londres (1666). Suas obras, que são frequentemente reimpressas por Banner of TVuth Tlust, contêm vários volumes sobre casos de consciência, incluindo Cases considered and resolved [Casos considerados e solucionados] e 0 clássico Precious remedies against Satan’s devices [Remédios preciosos contra as artimanhas de Satanás], ambos publicados em 1653. No artigo “Puritan resources for biblical counseling” [Recursos puritanos para o aconselhamento bíblico”], Tim Keller oferece este proveitoso resumo de Precious rem edies: Brooks analisa doze tipos de tentação, oito variedades de desânimo, oito categorias de depressão e quatro classes de orgulho espiritual! As seções em que Brooks trata de “tentação” são dirigidas a quem quer que esteja lutando contra padrões recorrentes de pecado, em particular a quem está combatendo vícios [...] A seção sobre “desânimo” é para pessoas que sofrem de “exaustão emocional”, bem como de ansiedade, angústia e decepção [...] A seção sobre “depressão” trata em grande parte de pessoas cujo desespero é resultado de culpa e de “baixa autoimagem”. Os puritanos davam a esse mal o nome de “acusação”, em que a consciência e o diabo atacam a pessoa por causa de seus fracassos e pecados (...) Por fim, a

“ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 28.

^^Therapeutica sacra, de David Dickson, foi publicado pela primeira vez em inglês em 1664 e reimpresso pela última vez em Select practical writings of David Dickson (Edinburgh: impresso para Assembly’s Committee, 184 5 ), vol. 1. 0 subtítulo em inglês era The method of healing the diseases of the conscience concerning regeneration. “ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 27-8.

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seção sobre “orgulho” trata de várias formas desse grande pecado. Ela expõe casos de materialismo, desejo de poder, arrogância intelectual, apego à ignorância e à grosseria, amargura e ciúme.®^ Em 1658, Samuel Hartlib (c. 1600-1662), um personagem-chave na revolução intelectual do século 17, editou uma pequena coletânea de cartas e folhetos puritanos intitulada The earnest breathings o f foreign Protestants, divines and others: to the ministers and other able Christians o f these three nations, for a compleat body o f practicall divinity, and cases [As declarações sinceras de protestantes estrangeiros, tanto teólogos quanto não teólogos: um corpo completo de teologia prática e de casos para os pastores e outros cristãos preparados dessas três nações]. Embora Hartlib não se declarasse casuísta, esse livro deu impulso à casuística, pois mostrou à comunidade reformada internacional que na Inglaterra se faziam sérios esforços para produzir uma ampla coleção de teologia prática. Hartlib também influenciou outros teólogos notáveis a escrever sobre casuística prática, inclusive o primeiro presidente da Assembleia de Westminster, William Twisse (1578-1646), que escreveu Doubting conscience resolved [A solução para a consciência em dúvida] (publicada pela primeira vez em inglês em 1652), e John Dury (1596-1680), pastor calvinista escocês e intelectual do período da Guerra Civil Inglesa, que escreveu A case o f conscience: whether it be lawful to admit Jews into a Christian Commonwealth [Um caso de consciência: se é legítimo aceitar judeus numa república cristã] (1654).^® O objetivo último de Hartlib e Dury ao promover a casuística era unir as igrejas protestantes da Europa.^* Para atingir esse objetivo, também se dedi­ caram a realizar o desejo de William Ames de que “em cada universidade protestante houvesse um livre-docente incumbido de tratar de assuntos de teologia prática e que se dedicasse exclusivamente a isso”.®'" Para alcançar esses objetivos, eles envolveram James Ussher (1581-1656), que era arcebispo de Armagh e diretor de Trinity College, o qual por sua vez delegou a tarefa a George Downame (1560-1634), bispo de Londonderry. Por razões de saúde, Downame não conseguiu avançar perceptivelmente na direção desses objetivos. Embora esses objetivos jamais tenham se materializado, Clifford afirma que “nem tudo se perdeu, pois Samuel Clarke e Richard Baxter mencionam o esquema e seu ^’ Keller, “Puritan resources for biblical counseling", p. 3. “ Clifford, “Casuistical divinity”, p. 28-9. ^Kif. GunnarWestin, Negotiations about church imity, 1628-1634 (Uppsala: A.-B. Lundequistska, 1932); Karl Brauer, Die Unionstätigkeit John D unes unter dem Protektorat Cromwells (Marburg, 1907). ^'Samuel Hartlib, The earnest breathings o f foreign Protestants, divines, and others (London, 1658), prefácio não paginado.

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fracasso como um dos principais motivos pelos quais se lançaram à tarefa de produzir suas obras sobre o assunto”.^® Em 1659, Samuel Clarke, pastor e autor puritano, produziu três estudos intitulados The m edulla tkeologiae [Essência teológica] Golden apples [Maçãs de ouro] e Several cases o f conscience concerning astrologie [Vários casos de consciência sobre astrologia]. O primeiro livro foi, na época, uma das maiores coleções de casos de consciência. Em sua autobiografia, publicada em 1683, Clarke afirma que esses três livros eram somente uma fração de uma imensa coleção que pretendia publicar, mas veio a falecer alguns meses depois.” As Práticas Matinais de Cripplegate também se iniciaram em 1659. Eram ser­ mões que pregadores puritanos muito conhecidos pregavam cedo de manhã sobre vários casos de consciência; esses sermões tinham títulos como “Como podemos experimentar em nós mesmos e demonstrar aos outros que a piedade sincera é mais do que um capricho?” e “Quais são as melhores preservações contra a melancolia e a tristeza excessiva?”. Centenas de pessoas se reuniam antes do trabalho para ouvir esses sermões. Mais tarde, os sermões foram publicados em quatro volumes (1661-1690). Recentemente foram republicados, constituindo os quatro primeiros volumes da série Puritan sermons, 1659-1689 [Sermões puritanos: 1659-1689].“ Em 1664, quando Richard Baxter foi forçado a deixar o pastorado em virtude do Estatuto da Uniformidade, começou a escrever seu Christian dira:tory. O livro apresenta observações bem perspicazes sobre a vida do crente e a teologia prática e casuística. Nessa investigação abrangente Baxter dá orientação sobre pôr em ordem a vida com Deus, cumprir deveres nas relações familiares, desincumbir-se de responsabilidades dentro da vida da igreja e viver corretamente com o próximo e com as autoridades. Nenhuma obra puritana de teologia aplicada chegou a suplantar esse estudo; é um dos manuais de aconselhamento bíblico mais práticos e úteis já escritos. Embora essa obra com um milhão de palavras fosse grande demais para se tornar popular, sobressaiu a todas as outras obras do gênero durante o restante do século e de muitas maneiras ainda é muito útil atualmente. Baxter recebeu do arcebispo James Ussher a incumbência para escrever 0 livro.“ Baxter escreveu especificamente para jovens pastores, para pais que lideram o culto doméstico e para cristãos no trabalho pelas seguintes razões: **Clifford, “Casuistical divinity”, p. 31-3. ^Clifford, “Casuistical divinity”, p. 33-4; Samuel Clarke, “Autobiography”, em seu Lives of sundry em inent persons in this later age (London: para Thomas Simmons, 1683), p. 3-11. ‘^Puritan sermons, 1659-1689 (Wheaton: Richard Owen Roberts, 1981). Essa é uma reim­ pressão em seis volumes, mas o volume 5 é uma compilação de teologia sistemática puritana e 0 volume 6 é de polêmica contra o catolicismo romano (veja Beeke; Pederson, Meet the Puritans, p. 637-9). “No prefácio de A call to the unconverted, de Richard Baxter (London: R. W. para Nevil Simmons, 1658).

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(1) Para que os pastores mais jovens e com menos preparo e experiência tenham em mãos um repositório com soluções e orientações práticas sobre os assuntos com que precisam lidar [...] (2) E pensei que seria proveitoso para chefes de família judiciosos, que queiram escolher e 1er partes dele para sua família conforme a ocasião requeira [...] (3) E pensei que não seria inútil cristãos específicos terem em mãos uma orientação tão abrangente com respostas a dúvidas, mas sem esperar que se lembrem de tudo, mas para que em cada ocasião consultem aqueles itens específicos de que mais precisam.“

Na década de 1670, foram publicados mais dois estudos: Cases satisfactorily resolved [Casos solucionados satisfatoriamente] (1672), de Joseph Alleine (1634-1668), e Heaven upon earth: or. a discourse concerning conscience [Os céus acima da terra: um estudo sobre a consciência] (1676), de Nathanael Vincent (1638-1697).«

O desaparecimento da casuística puritana A casuística puritana desapareceu nas últimas duas décadas do século 17. Embora ocasionalmente teólogos como Isaac Watts (1674-1748) e Jonathan Edwards (1703-1758) continuassem escrevendo até o século 18 sobre casuística, eles foram a exceção que confirma a regra.« De modo interessante. Watts, que não pode ser classificado como puritano, deu a seu livro de 1731 o título de A n hum ble attempt toward the revival o f practical religion am ong Christians [Um humilde esforço para restaurar a prática da religião entre os cristãos], o que aponta para uma diminuição generalizada da teologia casuística.« Clifford atribui essa perda, pelo menos em parte, ao “surgimento do deísmo, ao em­ bate com o socinianismo e o arminianismo e aos ataques de Hobbes e Locke à validade da ideia de consciência, o que cooperou conjuntamente para criar uma atmosfera intelectual e religiosa incompatível com o cultivo e o desenvol­ vimento adicional” da casuística.« Durante o Grande Avivamento do início da década de 1740, houve um notável restabelecimento da teologia prática, em particular entre homens como Theodore Frelinghuysen (1691-1747) e George “ Baxter, Christian directory, in: Works, 2:viii-ix. “ Existem vintenas de outros livros puritanos de casuística sobre os quais não temos espaço para entrar em detalhes. Alguns exemplos são: Thomas Fuller, The cause and care of a wounded conscience (London: G. D. para John Williams, 1649); Jam es Durham, Heaven upon earth in

the sure tranquility and quiet composure ofq good conscience; sprinkled with the blood of Jesus, edição de John Carstairs (Edinburgh: A. Anderson, 1685). “ Veja especialmente as partes de aplicação nos sermões de Edwards. “ Isaac Watts, An humble attempt toward the revival of practical religion among Christians (London: para E. Matthews, R. Ford, R. Hett, 1731). “ Clifford, "Casuistical divinity”, p. 40.

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Whitefield (1714-1770), mas isso também desapareceu. A forma e o método da casuística puritana nunca foram totalmente restabelecidos. Depois de havermos estudado cronologicamente o avanço da casuística puritana ao longo da era puritana, concluímos com algumas aplicações para os cristãos de hoje, em particular aqueles que se envolvem no aconselhamento, como pastores, presbíteros, diáconos, professores, conselheiros profissionais e pais.

Lições práticas para o aconselhamento pastoral de hoje Devido aos vastos esforços em reimprimir escritos puritanos ao longo dos últimos cinquenta anos, as riquezas da casuística puritana estão de novo ao alcance do leitor cristão, em especial dos que estão envolvidos na pregação, no ensino e no aconselhamento. Tanto nossa consciência quanto nosso trabalho de aconselhar pessoas se beneficiaria com a leitura dos puritanos. Keller afir­ ma que os escritos dos puritanos são uma rica fonte para o aconselhamento bíblico de hoje por seis razões: 1. Os puritanos estavam comprometidos com a autoridade funcional das Escrituras. Para eles, a Palavra de Deus era o manual abrangente para lidar com todos os problemas do coração. 2. Os puritanos desenvolveram um sistema sofisticado para diagnosticar problemas pessoais e diferenciar várias causas físicas, espirituais, tem­ peramentais e demoníacas. 3. Os puritanos eram notavelmente equilibrados em seu tratamento porque não estavam comprometidos com teoria de personalidade alguma a não ser o ensino bíblico sobre o coração. 4. Os puritanos eram realistas sobre as dificuldades da vida cristã, em especial os conflitos com a natureza pecaminosa. 5. Os puritanos olhavam não somente para o comportamento, mas também para os motivos e desejos subjacentes. Diziam que o homem foi criado para adorar a Deus; a maioria dos problemas é resultado de imaginação pecaminosa ou de adoração de ídolos. 6. Os puritanos consideravam que o remédio espiritual essencial para as lutas espirituais era a crença no evangelho, o arrependimento dos peca­ dos e o desenvolvimento de uma correta compreensão de si mesmo.®' "Keller, “Puritan resources for biblical counseling”, resumo inicial. Quanto ao quinto ponto de Keller, é útil assinalar que alguns são problemas causados apenas por serem criaturas caídas num mundo caído. Com certeza, Baxter reconhecia os problemas causados pela constituição natural, como o faziam Perkins e Edwards.

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Isso leva a algumas lições específicas que, com a leitura do que os puritanos escreveram sobre a consciência e a casuística, podemos aprender para o aconselhamento de hoje. Isso é particularmente válido para pastores que com frequência são procurados para o aconselhamento pastoral.“

Esforce-se p o r ser competente no cuidado das almas Lembre-se de que cada líder de igreja deve se empenhar em ser o mais com­ petente possível no diagnóstico de enfermidades espirituais e na prescrição do que é necessário para uma boa saúde espiritual. A capacidade de diagnosticar e prescrever será testada em níveis variados em cada sermão que o pastor pr. ga. Ela também será testada em cada aconselhamento realizado por ele. Joba Owen (1616-1683) afirmou que o aconselhamento envolve três habilidades e compromissos: em primeiro lugar, o pastor precisa “ser capaz de entender corretamente os vários casos que acontecerão”; em segundo, ele precisa ter a prontidão e o desejo de tratar dos casos especiais levados a ele; e, em terceiro, ele precisa incentivar seus paroquianos a procurá-lo para que os leve a falar a respeito, ouvir cuidadosamente as dificuldades expressadas e dar o aconse­ lhamento bíblico apropriado para a cura da consciência. Ele precisa, então, aplicar “remédios e tratamentos adequados para cada enfermidade aflitiva”. Owen concluiu afirmando: “No desempenho de todo o trabalho pastoral, não há atividade ou dever mais importante [...] do que este”.“ O médico precisa conhecer princípios de fisiologia. Precisa saber como o corpo humano saudável funciona. De modo análogo, o pastor precisa saber como a alma humana saudável funciona em um relacionamento correto com Deus na esfera da mente, da vontade e das afeições. Ele também precisa ser capaz de reconhecer deficiências em quaisquer dessas áreas, diagnosticar quaisquer problemas e prescrever o que é necessário para a cura. Peter Lewis escreve: Os puritanos eram médicos da alma com habilidade suficiente para evitar a ambiguidade e a subjetividade que leva a alma angustiada e desesperada a se apegar a qualquer coisa com esperança incerta. Eles criam que a Palavra de Deus nas Escrituras é suficientemente abrangente para cobrir cada situação e necessidade humana básicas e conheciam suficientemente bem suas Escrituras para aplicar, com autoridade responsável, a pomada disponível na ferida exposta.''’

^^Várias dessas lições são, em parte, desdobramentos da escola de aconselhamento noutético. Cf. David A. Powlison, “Competent to counsel? The history of a conservative Protestant Antipsychiatry Movement” (tese de doutorado. University of Pennsylvania, 19961, e The Biblical Counseling Movement: history and context (Greensboro: New Growth, 2010). ^John Owen, The true riature ofa gospel church, in: The umrks ofJohn Omen (reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Trust, 1965-1968), vol. 16, p. 86-7. ™Lewis, The genius of Puritanism, p. 20.

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Concentre a atenção numa boa consciência perante Deus Teocentrismo e não egocentrismo é a chave para a autoimagem saudável. Ste­ phen Charnock (1628-1680) feda de três tipos de amor próprio: amor próprio natural, que mede nosso dever para com o próximo; amor próprio carnal, que ama a si mesmo mais do que a Deus e é, por isso, “criminoso quando utilizado”: e amor próprio gracioso, concedido na regeneração, manifestado “quando amamos a nós mesmos com fins mais elevados do que a natureza da criatura [...] em subserviência à glória de Deus’7* Que Deus nos conceda doses bem maiores deste terceiro tipo de amor próprio! A preocupação principal do casuísta puritano não era com a autoestima de alguém. Ele estava bem mais interessado na relação da pessoa com o Deus triúno: 0 Pai, que nos criou com dignidade à sua imagem, o Filho, que nos restaura essa dignidade por meio da redenção e da adoção como seus filhos, e o Espírito Santo, que habita em nós, transformando nossa alma e corpo em seu templo. Isso não quer dizer que a autoestima não seja importante em certos aspectos da vida — por exemplo, a pessoa precisa ter alguma autoestima e confiança para conseguir fazer o seu trabalho de modo fiel e bom,^^ mas os puritanos conside­ rariam seriamente distorcido o conselho de autoestima que em última instância não gira em tomo do Deus triúno e de sua graça. Sem a graça de Deus, somos caídos, miseráveis, indignos e estamos a caminho do inferno.^^

Promova a santidade com a verdade divina, não com teorias humanas A santificação é promovida mais pelo aconselhamento sadio e prático do que pela psicologia moderna com suas teorias da personalidade. Isso não significa que não tenhamos interesse nas descobertas e métodos desses especialistas ou que não tenhamos uso para isso. Na realidade, pode haver ocasiões em que precisemos nos submeter a esses especialistas quando surgirem as situações para a atuação deles. Ainda assim, não devemos fazê-lo rotineiramente; pelo contrário, conforme acertadamente assinalado por Keller, precisamos lembrar que “muitos conselheiros cristãos tendem a espelhar abordagens seculares em que o tratamento concentra a atenção em grande parte nos sentimentos (como na terapia de Rogers, que é centrada na pessoa), nas ações (como na '‘Stephen Charnock, Discourses upon the existence and attributes o f God (reimpr.. Grand Rapids: Baker, 1979), 1:136. Arie Elshout, Overcoming spiritual depression (Grand Rapids; Reformation Heritage Books, 2006). '’Elshout, Overcoming spiritual depression, 1:143. Cf. Keller, “Puritan resources for biblical counseling”, p. 16.

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abordagem behaviorista de Skinner e seu grupo) ou no ‘pensamento’ (como nas terapias racional-emotivas de Ellis e Beck). Mas os puritanos não se encabcam em nenhuma dessas categorias contemporâneas ”7‘‘ Em vez disso, os pregadores puritanos ressaltavam a santificação/^ Eles afirmavam que o crente precisa andar na estrada régia da santidade, cora atitude de gratidão, serviço, obediência, amor e abnegação/* Ele precisa conhecer por experiência a prática contínua das graças gêmeas da fé e do arrependimento/^ Ele precisa aprender a arte da meditação, do temor a Deus e da oração como de uma criança/® Ele precisa avançar pela fé divina, procurando se assegurar de seu chamado e eleição/’ Todos os seus relacionamentos e atividades pre­ cisam ser santificados e oferecidos a Deus como “culto racional”/®

Aconselhe prim eiram ente no ensino pú blico e, depois disso, na visita pastoral Para os puritanos, o aconselhamento bíblico se iniciava no púlpito e era basi­ camente feito a partir dele. Conforme Ken Sarlis afirma, “a pregação puritana ”Keller, “Puritan resources for biblical counseling”, p. 8. ”A obra puritana clássica sobre santificação é The gospel mystery o f sanctification, de Walter Marshall (1692; reitnpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 1999). Marshall fundamen­ ta muito bem a doutrina da santificação na união do crente com Cristo e destaca a necessidade de santidade prática na vida diária. Veja tb. Lewis Bayly, The practice o f piety (1611; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 1996); Henry Scudder, The Christian’s daily walk, in holy security and peace, 6. ed. (1635; reimpr., Harrisonburg: Sprinkle, 1984); Henry Scougal, The life o f God in the soul o f man (1739; reimpr., Harrisonburg: Sprinkle, 1986). ^‘Veja Thomas Brooks, The crown and glory o f Christianity: or holiness, the only way to hap­ piness, in: The works o f Thomas Brooks (1864; reimpr., Edinburgh; Banner of TVuth Tíust, 1980), vol. 4; George Downame, The Christian’s freedom : the doctrine o f Christian liberty (1633; reimpr., Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1994); Samuel Bolton, The true bounds o f Christian freedom (1645; reimpr., London: Banner of Tiuth Thist, 1964); Jonathan Edwards, Charity and its fruits (1852; reimpr., London: Banner of Huth TVust, 1969); Thomas Watson, The duty o f self-denial (1675; reimpr., Morgan; Soli Deo Gloria, 1995), p. 1-37. "Veja Samuel Ward, The life o f faith, 3. ed. (London: Augustine Mathews, 1622); Thomas Watson, The doctrine o f repentance (1668; reimpr., Edinbuigh: Banner of Thith Trust, 1987). ”Veja Nathanael Ranew, Solitude improved by divine meditation (1670; reimpr., Moigan: Soli Deo Gloria, 1995); Jeremiah Burroughs, Gospel fear (1647; reimpr., Pittsburgh; Soli Deo Gloria, 1991); Thomas Cobbet, Gospel incense, orapractical treatise on prayer (1657; reimpr., Pittsburgh; Soli Deo Gloria, 1993); John Bunyan, Prayer (London: Banner of Truth Trust, 1965); John Preston; Nathaniel Vincent; Samuel Lee, The Puritans on prayer (Morgan: Soli Deo Gloria, 1995). ^William Perkins, A commentarie or exposition upon the five first chapters o f the Epistle to die Galatians, comentário sobre Gálatas 1.15-17, in: The workes o f that famous and worthy minister o f Christ, in the Universitie o f Cambridge M. William Perkins (London: John Legatt, 1612-1613), 2:177. Anthony Burgess, Spiritual refining (1652; reimpr., Ames: International Outreach, 1990), p. 643-74. “Cf. Wilhelmus à Brakel, The Christian’s reasonable service, tradução para o inglês de Bartel Elshout, edição de Joel R. Beeke (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 1992-1995), 4 vols.

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constituía uma forma de aconselhamento preventivo, à medida que as verdades das Escrituras eram aplicadas à consciência”.®' Atualmente, muitos evangélicos não aconselham do púlpito. Tanto prega­ dores quanto ouvintes são culpados por isso. É árduo para um pastor oferecer conselho quando lhe concedem somente vinte minutos para pregar, mas também é difícil para a igreja ser aconselhada quando o pastor raramente trata de casos de consciência. Não é, então, de admirar que para muitos cristãos o consultó­ rio do psicólogo tenha se tomado mais importante para o aconselhamento do que o púlpito do pregador. As pessoas estão clamando por aconselhamento individual, esquecendo-se de que, quando corretamente exposta, a Palavra de Deus é remédio para uma imensa lista de doenças espirituais. Os puritanos complementavam o aconselhamento de púlpito com visitas pastorais, aconselhamento da alma e catequese nos lares. Conta-se que Joseph Alleine dedicava várias tardes por semana a visitar membros da igreja.®^ Richard Baxter afirma que muitas pessoas “que até agora têm sido ouvintes infmtíferos têm ganhado mais conhecimento e remorso de consciência em meia hora de conversa íntima do que em dez anos ouvindo pregações”.*®Baxter e seus auxi­ liares passavam dois dias inteiros por semana visitando paroquianos em seus lares. Aquelas visitas incluíam ensinar, examinar e conduzir pacientemente famílias a Cristo por meio das Escrituras. Quando concluiu seu trabalho em Kidderminster, no condado de Worces­ tershire, Baxter afirmou que dos cerca de seiscentos convertidos que foram levados à fé sob sua pregação, nenhum deles (até onde sabia) havia voltado para os caminhos do mundo. Packer conclui: “Fazer com que a prática da ca­ tequese pessoal se elevasse do nível de disciplina propedêutica, voltada para crianças, para 0 nível de aspecto permanente da evangelização e do cuidado pastoral de todas as idades, foi a principal contribuição de Baxter para o de­ senvolvimento dos ideais puritanos de ministério”.®* O aconselhamento puritano na pregação, na admoestação pastoral e na catequese exigia tempo e habilidade.®® Os puritanos não almejavam conversões rápidas e fáceis; eles estavam comprometidos com a edificação por toda a vida de crentes cujo coração, mente, vontade e afeições haviam sido conquistados para o serviço de Cristo.®® “Sarles, “The English Puritans: a historical paradigm of biblical counseling”, p. 26. “C. Stanford, Joseph Alleine: his companions and times (London, 1861). '^Richard Baxter, Gidlas Salvianus: the Reformed pastor: shewing the nature o f the pastoral work (1656; reimpr.. New York: Robert Carter, 1860), p. 341-468 [edição em português: Opastor aprovado, 3. ed. tradução de Carlos António da Rocha (São Paulo: PES, 2006)]. “Packer, A quest for godliness, p. 30S. **Thomas Boston, The art o f m anfishing: a Puritan’s view o f evangelism (reimpr., Feam: Christian Focus, 1998), p. 14-5. “Thomas Hooker, The poor doubting Christian drawn to Christ (1635; reimpr., Worthington: Maranatha, 1977).

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Faça mais do que ouvir; dê orientações específícas 0 aconselhamento puritano era diretivo. Os puritanos ressaltavam a necessidade de ouvir aqueles a quem aconselhavam, mas em seguida, ao contrário de muitos psica­ nalistas contemporâneos, de oferecer diretivas sobre o que fazer e de como fazê-lo. Os arquivos de casuística puritana incluem uma grande porção daquela sabedoria. Os puritanos oferecem muitos ensinos sobre o que o crente deve fazer e como deve fazê-lo. Sua literatura casuística se dedica a responder a uma imensa variedade de perguntas importantes, por exemplo, como orar, como meditar, como obter uma consciência desperta e confiante, como se comportar em família, como ser pai, como ser mãe, como ser um filho ou filha temente a Deus, como examinar e solucionar problemas na comunidade, e como aplicar diretivas bíblicas à tomada de decisão. Como esse ensino é diferente de boa parte da terapia contemporânea em que o psicólogo se limita a ouvir os pacientes! Aconselhar é mais do que ou­ vir e demonstrar emparia. Keller escreve: "Faltam à maioria dos conselheiros evangélicos contemporâneos a firmeza, a franqueza e a urgência dos puritanos. A maioria de nós fala menos sobre o pecado do que o faziam nossos antepas­ sados. Mas, por outro lado, os puritanos eram surpreendentemente ternos, encorajadores, sempre conclamando os conselheiros a aceitar a graça de Deus e tendo 0 extremo cuidado de não denominar um problema de ‘pecado’ a menos que fosse cuidadosamente analisado. Um de seus textos favoritos era: ‘Não esmagará a cana quebrada, e não apagará o pavio que fumega’ (Mt 12.20)’’.®’’

Seja um fíel pregador da Palavra, não apenas um esquadrinhador de sentim entos Pastores em particular devem se esforçar por serem fiéis pregadores da Palavra e pastores-conselheiros confiáveis. Um fiel pregador da Palavra não pressupõe que cada membro da paróquia seja salvo e não se furta a pregar a totahdade da graça do evangelho divino e a seriedade da ameaça do evangelho divino. Tanto convites quanto advertências precisam ser pregados por inteiro. Conforme Philip Craig adverte, “Dito sem rodeios, a menos que o pastor ameace diligentemente sua congregação com a ira de Deus contra aqueles que se afastam e apostatam de sua profissão de fé cristã, ele mesmo não desfrutará de uma boa consciência perante Deus [...] Empregando a símile de Owen, as ervas daninhas sufocarão as flores e por fim o pastor se verá na situação de jardineiro de um deserto’’.*® ®'Keller, “Puritan resources for biblical counseling”, p. 33. Bemardus Smytegelt (1665-1739), um dos “puritanos” holandeses, pregou quase 150 sermões sobre esse texto (Het Gekwote Riet [reimpr., Amsterdam: H. J. Spruyt, 1947]). “Philip A. Craig, “The bond of grace and duty in the soteriology of John Owen: the doctri­ ne of preparation for grace and glory as a bulwark against seventeenth-century Anglo-American antinomianism” (tese de doutorado, THnity International University, 2005), p. 38.

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Os puritanos criam que o pastor-conselheiro confiável é aquele que ouve bem, que encoraja a pessoa atribulada a revelar seus problemas e depois disso aconselha a pessoa de modo bíblico, prático, fiel e realista sobre como viver. Idealmente, após o “esquadrinhamento, que deve ser escrupuloso”, deve vir uma “prescrição” de forma bíblica e competente. Mas, realisticamente falan­ do, os puritanos também sabiam que alguns pastores não têm muito talento para aconselhar e que pastor algum é totalmente competente nessa área. Caso tivessem vivido em nossos dias, não há dúvida alguma de que teriam reconhe­ cido que cada pastor experimentará ocasiões em que precisa encontrar ajuda profissional cristã para certos casos de aconselhamento, em particular os que têm relação com enfermidades físicas e depressão prolongada.*® Os pastores precisam reconhecer suas limitações; afinal, bem poucos tiveram alguma for­ mação como psicólogos, psiquiatras ou psicanalistas. Por outro lado, os puritanos não apoiariam aqueles psicanalistas seculares que incentivam seus pacientes a examinar interminavelmente os sentimentos. O objetivo do aconselhamento deles é esquadrinhar repetidamente o passado, concentrando-se bem mais nos sentimentos humanos do que naquilo que o Senhor quer que a pessoa faça com o problema. Os sentimentos humanos, e não o que Deus afirma, controlam a sessão de aconselhamento. A maior parte da psicologia se afastou muito do conselho de Richard Sibbes (1577-1635) de que “não devemos ser demasiadamente curiosos, bisbilhotando a fraqueza dos outros”.®® Os puritanos afirmam que, quando esse caminho é seguido, a pessoa atribulada tende a se tornar por demais dependente do conselheiro.® William Bridge (1600-1671) adverte contra esse problema dé depender enl demasia de uma fonte de ajuda: Se alguém está na água em perigo de se afogar, ele não se desanima enquanto puder se agarrar a algo que o mantenha flutuando. Mas, se ele se agarra a um tufo de plantas na margem e este se rompe, a pessoa cai e de novo submerge na água. E, se não fica assustada com tudo isso, fica mais desanimada do que nunca [...] Por isso, se não queres ficar arrasado ou abatido na hora da tentação, cuida de não colocares toda tua força num único tufo de plantas, no conselho deste ou daquele homem, neste ou naquele meio específico.®^

•®Veja David Murray, Christians get depressed too: hope and help for depressed people (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2010). , ®®Richard Sibbes, The bruised reed and smoking flax, in: Alexander B. Grosart, org., T/» complete works of Richard Sibbes (reimpr., Edinburgh: Banner of Huth TVust, 200 4 ), 1:57. ’ "Webber, “The Puritan pastor as counsellor”, p. 92-3. “ William Bridge, A lifting up of the downcast (London: Banner of Thith TTust, 1961), p. 169

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Certamente ouça bem, esquadrinhe profundamente, mas depois disso aconse­ lhe meticulosamente. Ofereça orientação, esperança e oração. Seja um pastor sábio, bíblico e confiável.^’ O objetivo do cuidado das almas é o mesmo da teologia, acerca da qual Ames escreveu: “Teologia é a doutrina ou ensino de viver para Deus [...] Os ho­ mens vivem para Deus quando vivem de acordo com a vontade de Deus, para a glória de Deus e com Deus agindo neles Assim sendo, os grandes meios de aconselhamento são a Palavra de Cristo e a oração ao Pai, ambas realizadas no Espírito Santo. Os puritanos se destacaram no uso desses meios, confiando sobremaneira que Deus construirá seu reino entre os homens. Clifford conclui: “Para aqueles de nós que chegaram muitos anos depois para observar e apren­ der, a façanha puritana da teologia casuística é um monumento não apenas ao seu empenho e serviço diligente, mas também à sua percepção aguçada das implicações mais imediatas do sumo desejo de nosso Senhor: ‘Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”’.’ ^

’^Cf. Joel R. Beeke, “Tfenpractical guidelines for biblical counseling" (palestra não publicada, Manila, Filipinas, maio de 2009). ”Ames, The m am w o f theology, p. 77 (1.1.1, 6). “Clifford, “Casuistical divinity”, p. 319-20.

Capítulo 58 □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ DO□□□□□□□□□aODDDDaODOaDDaD□ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □

o zelo sacrificial puritano □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ □ D

O zelo cristão [é] certamente uma chama, mas uma chama doce; ou, melhor ainda, é o calor e o fervor de uma chama doce. Pois a chama da qual [o zelo] é o calor não é nada menos que a chama do amor divino. JONATHAN EDWARDS*

Muitas igrejas nos Estados Unidos se parecem menos com exércitos envolvi­ dos numa guerra e mais com poltronas do papai, de onde cristãos sonolentos estão dizendo: “Não me acordem!” Quem de nós não viu essa decadência? Quem não consegue ver a diferença entre a igreja antiga e nós? No passado, ardia um fogo dentro dos cristãos, mas nosso coração raramente ou mesmo nunca arde dentro de nós. Antigamente os cristãos pareciam impulsionados por um ardor santo, mas agora quase nada parece nos motivar. Os cristãos do passado estavam em guerra contra seu pecado e com força celestial lutavam pela santidade, mas nós parecemos tolerar com bastante facilidade o pecado e nos satisfazemos em fazer o mínimo daquilo que Deus exige de nós. O que aconteceu? Deus não mudou; o poder da salvação não mudou; o chamado à santidade não mudou; a ameaça do inimigo não mudou. Então por que tantos cristãos estão sonolentos em vez de cheios de zelo por Deus? O puritano John Reynolds (1667-1727) indagou em A discourse concerning sacred zeal [Um estudo sobre o zelo sagrado]: Por quanto tempo permaneceremos paralisados, sob o peso de nossas queixas formais da decadência da piedade cristã? Por quanto tempo assistiremos ociosos ao ‘Jonathan Edwards, Religious affections, in: John E. Smith, org., The works o f Jonathan Edwards (New Haven: Yale University Press, 1959), 2:352.

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afastamento da religião acolhedora do coração e do íntimo dos que a professam?

Estamos dispostos a ceder a toda a apatia e degeneração que se espalhou entre nós? [Até] os verdadeiramente piedosos estão inertes e vagarosos em sua vida religiosa [e] avançam exaustos na carreira que lhes está proposta, como se seu Senhor tivesse perdido a glória ou deixado de cumprir a promessa feita a eles ou então como se [tivessem perdido] a fé e a esperança nele [...] Será que não é hora de proclamar entre as igrejas a mensagem que o Mediador enviou dos céus à igreja de Laodiceia: Sê zeloso e arrepende-tel^ À semelhança da igreja de Laodiceia, muitos de nós ficaram momos. Não temos zelo pelas coisas de Deus. Onde você encontra zelo pela honra, pela glória e pela santidade de Deus nos dias atuais? Onde você encontra zelo para cortar fora a mão e arrancar o olho que fazem a pessoa tropeçar? Onde está o zelo pelo avanço do reino de Cristo que supera todos os obstáculos e persevera até o fim? Nossa vida não é caracterizada pelo zelo nem reflete os sacrifícios necessários ao incentivo e fortalecimento do zelo cristão verdadeiro. Se você tem lido os puritanos, é possível que tenha notado que os sermões, orações e escritos deles incentivam os crentes a “serem zelosos e se arrepende­ rem”, a “cobrirem-se de zelo, como de um manto”, a “serem consumidos de zelo pela casa e pelo nome do Senhor” e a “serem zelosos por boas obras” (Ap 3.19; Is 59.17; SI 69.9; Jo 2.17; Tt 2.14). Com base em seus sermões e escritos, observemos em primeiro lugar o que é zelo; em segundo, as características do zelo; em terceiro, os meios de promover o zelo; e, por fim, a prática do zelo aplicada aos dias de hoje.

O que é o zelo? Todos temos alguma ideia do que seja zelo, pois até certo ponto todos somos zelosos. A questão não é se somos zelosos, mas a que somos zelosos. O zelo corre em nossas veias por aquilo que amamos e contra aquilo que odiamos. Amamos tão veementemente algumas coisas — como família, carreira e casa — que estamos dispostos a fazer sacrifícios consideráveis por elas. De modo inverso, odiamos a opressão, uma má decisão política ou flagrante injustiça. O zelo é uma via de mão dupla: “por e contra”. O cristão não é, porém, chamado a um zelo genérico. O que falta hoje nas igrejas é o zelo piedoso ou sagrado. William Fenner (1600-1640) escreveu: “O zelo é o fogo da alma [...] No mundo cada homem e cada mulher se inflama Uohn Reynolds, Zeal a virtue: or, a discourse concerning sacred zeal (London: John Clark, 1716), p. 1-2. Este capítulo se baseia em grande parte em Living zealously (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2012), obra publicada recentemente que escrevi junto com James La Belle, a quern agradeço a permissão para incluir este capítulo aqui.

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com 0 fogo do inferno ou com o fogo do céu [...] O zelo é a corrida da alma. Se não és zeloso por Deus, corres atrás das coisas deste mundo”.^ John Reynolds definiu esse zelo como “um desejo e interesse fervorosos por todas as coisas que dizem respeito à glória de Deus e ao reino do Senhor Jesus entre os homens”.^ Conforme você pode ver, o zelo não é apenas uma característica ou atributo. Pelo contrário, conforme Samuel Ward (1577-1640) afirmou, o zelo é como o verniz, que não acrescenta cor, mas dá brilho e lustro a tudo aquilo em que é aplicado.^ Para o puritano John Evans (1680-1730), zelo era “uma qualidade que deve nos acompanhar no exercício da graça e no desempenho de cada dever”.® Fenner escreveu: "O zelo é uma coerção elevada de todas as afeições, em que o coração exibe poderosamente todas as suas afeições”.’’ Ward escreveu: “Em linguagem clara, o zelo é tão somente calor [...] É um calor espiritual operado no coração do homem pelo Espírito Santo, me­ lhorando as boas afeições de amor, alegria, esperança etc., para o melhor serviço e fomento da glória de Deus”.® Pense no zelo como uma chama que faz uma panela ferver — ele faz ferver nossas afeições pela causa de Deus. Ele nos vivifica e nos constrange, nos agita e nos capacita, nos dirige e nos governa à medida que coloca em chamas as nossas afeições para a glória de Deus e o bem de sua igreja. Pense no zelo como algo que inclui cada dever e cada afeição na vida cristã. lain Murray escreve: “Em vez de ser uma graça específica, o zelo é na verdade uma qualidade que afeta todos os segmentos da vida cristã. Quanto maior o zelo, maior a energia espiritual do cristão em todos os sentidos”.® Você vê como o zelo é abrangente? Com demasiada frequência confundimos com zelo verdadeiro uma revolta momentânea contra o pecado ou uma agitação momentânea e impetuosa da alma. Mas o zelo precisa ser o fogo por baixo da panela de nossas afeições. O cristão não deve ser zeloso em uma ou duas coisas; pelo contrário, devemos ser zelosos em todas as coisas, em todas as graças, em todas as virtudes e contra todos os nossos hábitos condenáveis e contra todo ^William Fenner. A treatise o f the affections (London: A. M. para J. Rothwell, 1650), p. 132-3. ‘Reynolds, Discourse, p. 18. ^Samuel Ward, Sermons and treatises (1636; reimpr., Edinbui^h: Banner of H-uth llust, 1996), p. 72. ‘John Evans, “Christian zeal”, in: Practical discourses concerning the Christian temper: being thirty eight sermons upon the principal heads o fpractical religion. 7. ed. (London: Ware, Longman, and Johnson, 1773), 2:320. Tenner, A treatise o f the affections, p. 118. ‘Ward, Sermons, p. 72. ‘Iain H. Murray, “The Puritans on maintaining spiritual zeal”, in: Adorning the doctrine (London: Westminster Conference, 1995), p. 75. Neste capítulo, sou devedor a várias observa­ ções perspicazes do texto de Murray.

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pecado. Oliver Bowles (m. 1674) afirmou que zelo "é um santo fervor que o Espírito Santo de Deus insufla nas afeições, aperfeiçoando o homem ao máximo para a glória de Deus e para o bem da igreja {...] Não é tanto questão de ser uma afeição específica, mas da intensidade desejada para todas elasV^ Esse é 0 tipo de zelo que falta em nossas igrejas e corações nos dias de hoje. Podemos ocasionalmente ser zelosos, mas o coração de um número excessivo de homens, mulheres e crianças não arde pela glória de Deus. Dada a tempe­ ratura morna da igreja de hoje, é seguro supormos que a maioria dos cristãos decidiu que o zelo santo não é necessário. Você é tão zeloso da glória de Deus quanto é da sua própria reputação? Você tem tanto zelo em ter comunhão com a Santíssima Tlrindade quanto tem em conversar com os amigos? Você tem tanto zelo pelo condicionamento espiritual quanto pelo condicionamento físico? Christopher Lxjve (1618-1651) afirmou que muitas pessoas “suspiram pelo pó da terra” (Am 2.7, ARA): estão tão ávidas em sua busca do mundo que ficam quase sem fôlego (SI 59.6). Em contraste, nossa atitude diante das coisas da eternidade é mais parecida com a dos estoicos, com sua impassibi­ lidade. “Para a terra estamos tão quentes quanto o fogo e para o céu estamos tão frios quanto o gelo”, Love afirmou. “Ah! quantos ficam esbaforidos pela terra mas não suspiram pelo céu !”.“ Somos zelosos por muitas coisas, mas não pelas coisas de Deus.

As características do zelo cristão Oliver Bowles nos exorta a buscar com diligência que nosso zelo seja do tipo certo, visto que, “assim como acontece com todas as [demais] graças, o zelo pode ter e com frequência tem suas falsificações”.'^ John Flavel (1628-1691) adverte que uma imensidão de almas perece no caminho por causa de um falso zelo.'^ À semelhança dos fariseus, há pessoas que manifestam zelo contra a adoração falsa, mas não pela adoração verdadeira. O zelo falso é um erro tão sério a ameaçar a igreja que não se pode subestimar seu perigo. Cristo nos ensina que podemos conhecer a natureza de uma árvore pelos seus frutos (Mt 7.20). Por isso, para compreender melhor o que o zelo verda­ deiro é, consideremos algumas das características do zelo falso. Samuel Ward afirmou que é possível reduzir a três tipos os muitos fogos estranhos disfarçados de zelo verdadeiro: simulado, cego e tumultuoso. “Oliver Bowles, Zeal for God’s house quickened (London: Richard Bishop para Samuel Gellibrand, 1643), p. 5-6. "Christopher Love, The zealous Christian (1653; reimpr., Morgan: Soli Deo Gloria, 2002), p. 15. “Bowles, Zeal for God's house quickened, p. 27. “John Flavel, Pneumatologia: a treatise o f the soul o f m an. in: The works o f John Flavel (1820; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Thist, 1997), 3:214.

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1. O zdo simulado olha em uma direção enquanto busca outra coisa. É o zelo hipócrita de Jeú, que, em 2Reis 10.16, se gaba de ver a glória do Senhor, mas na realidade tem os olhos fitos na conquista do reino. Demétrio clama louvores a Diana, mas na realidade se importa apenas com os ídolos de prata com que ela é adorada e com os quais ele ganha dinheiro (At 19.23-28). O zelo simulado finge estar buscando a glória de Deus, quando na verdade está buscando um objetivo egoísta. Assim como nesses casos vemos apenas a imagem da fé, da mesma manei­ ra vemos apenas a exibição de zelo, mas sem sua verdadeira essência (2Tm 3.5).*“ 2. O zelo cego é o que Romanos 10.2 descreve como aparência de honrar a Deus, mas sem conhecê-lo de verdade. Pessoas com esse zelo fazem grandes sacrifícios, contudo caem numa cova. Elas gastam todo tipo de energia, porém, na direção errada e com o objetivo errado. Antes de o Senhor convertê-lo, 0 apóstolo Paulo estava inflamado de zelo cego (At 22.3,4). Ward afirma o seguinte a respeito daqueles que ardem com esse zelo cego: “Esses são os melhores soldados do diabo. Mas, quando as escamas lhes caem dos olhos e eles entram nas tendas divinas, são os melhores soldados de Deus”.*' 3. O zelo tumultuoso é inveja ou ciúme amargos (Tg 3.14). Esse zelo é um fogo descontrolado, levando homens para além de todos os limites. Não é mais um bom servo, pelo contrário governa como um mau senhor.** Richard Sibbes (1577-1635) escreveu: “Não existe verdadeiro zelo pela glória de Deus que não esteja ligado a um verdadeiro amor pelos homens. Por isso, não permitas que homens violentos, maldosos e insolentes jamais falem de glorificar a Deus enquanto menosprezarem homens humildes”.**' O fogo celestial do zelo cristão é tão diferente do fogo estranho do falso zelo a ponto de Ward afirmar: “O ardor de quem é zeloso de verdade, cujo fervor está no espírito e não na aparência, está no conteúdo e não nas circunstâncias, é por Deus e não por si mesmo, é dirigido pela Palavra e não pelas emoções, é temperado pelo amor e não pela amargura: línguas de homens e de anjos não conseguem expressar o valor de tal pessoa”.’® O verdadeiro zelo é a graça divina que inclina para Deus todas as afeições. Existem muitos ramos em que essa raiz dá fruto, e muitas marcas indicam sua verdadeira natureza. Entre estas incluem-se: ’’Ward, Serm ons, p. 75. ’’Ward, Serm ons, p. 76. '‘Ward, Sermons, p. 76. ’’Richard Sibbes, Divine meditations and holy contemplations, in: The works o f Richard Si­ bbes (1862-1865; reimpr., Edinburgh: Banner of Thith Thist, 1984), 7:187. '“Ward, Sermons, p. 77,

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1. Z£k> teocêntrico. Pelo fato de o autor e objeto do zelo ser o Deus vivo, o cristão zeloso tem um amor ardente por Deus e suspira pela presença divina. Ele se entristece quando o nome de Deus ié insultado e se ira quando a honra e a causa dele são barradas. Tito 2.14 afirma que Cristo “se entregou a si mesmo por nós para nos remir de toda a maldade e purificar para si um povo todo seu, consagrado às boas obras”. William Fenner comentou: “Não é possível que sejas um dos que pertencem ao povo de Deus, se não és zeloso por Deus”.” O zelo é inseparável do amor a Deus porque Deus é infinitamente glorioso. Richard Baxter (1615-1691) escreveu: “Os objetos sagrados são tão grandiosos, tão ex­ celentes, tão transcendentes e de consequências tão inexprimíveis que, se não tivermos zelo, não conseguiremos ser sinceros em avaliá-los e buscá-los [...] Amar a Deus sem zelo é não amá-lo, porque não é um amá-lo como Deus”.“ 2. Zelo bíblico. Em contraste com o zelo falso por Deus a que Paulo se refere em Romanos 10.2, o zelo sagrado é determinado pelo conhecimento, o que significa que está delimitado pelas normas das Escrituras. Thomas Brooks (1608-1680) escreveu: “O zelo é como fogo na lareira: dentro da chaminé é um dos melhores servos, mas fora dela é um dos piores senhores. O zelo mantido em seu devido lugar pelo corüiecimento e pela sabedoria é um excelente servo de Cristo e dos santos”.^* O zelo verdadeiro está alicerçado na Palavra de DeuS; como a única regra de fé e prática. Os fariseus eram zelosos, mas somente de opiniões particulares, dissidências partidárias e tradições não escritas. O zelo cristão é determinado pelo conhecimento segundo a Palavra. 3. Zelo autorreformador. Thomas Brooks afirmou que o zelo “gasta suas ener­ gias e seu maior calor principalmente naquelas coisas que dizem respeito à própria pessoa”.“ Das oito propriedades do zelo, Richard Greenham (c. 1542­ 1594) iniciou com a seguinte característica: “Pois aquele homem que nunca soube ser zeloso consigo mesmo jamais conseguirá ser zeloso com outros”.“ Ele explicou que 0 zelo verdadeiro atira a primeira pedra em nós mesmos e arranca a trave de nossos

próprios olhos, para que possamos tirar melhor o cisco do olho do outro. E é este o ‘’Fenner, A treatise o f the affections, p. 124. "Richard Baxter, A Christian directory, in: The practical works o f Richard Baxter (reimpr., Ligonier: Soli Deo Gloria, 1990), 1:383. ^‘Thomas Brooks, The unsearchable riches o f Christ, in: The works o f Thomas Brooks (1861­ 1867; reimpr., Edinburgh: Banner of TVuth Trust, 2001), 3:54-5. “ Brooks, Unsearchable riches o f Christ, in: Works, 3:55. “Richard Greenham, “Of zeale”, urn sermão sobre Apocalipse 3.19, in: The works ofthat reverend and faithful servant o f Jesus Christ M. Richard Greenham (1599; reimpr. por fac-similei New York: Da Capo, 1973), p. 118.

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motivo da condenação do mundo: que cada homem pode espreitar e examinar às ocultas os defeitos dos outros sem, contudo, considerar que em seu próprio caso esses mesmos defeitos sejam defeitos [...] Não convocamos nossa consciência a dar explicação sobre aquelas coisas que ousamos questionar e objetar em outros.^ Iniciar com um exame sincero de si mesmo é crucial, pois impede o abominá­ vel erro da hipocrisia. Greenham afirmou: “Uma característica atemorizante dos hipócritas e daqueles que se afastaram da presença do Deus vivo é que investigam profundamente os bens de outras pessoas e examinam sanguinariamente a consciência de outros, mas nem uma única vez lavaram sua própria imundícia em casa nem derramaram uma única gota de sangue de seu próprio coração”.^® 4. Zelo ativo. Tendo conhecimento de Deus, a quem amamos, dedicamo-nos com zelo aos deveres exigidos de nós no evangelho. Estamos ativos e ocupa­ dos, envolvidos continuamente em esforços e realizações. O pecado entorpece o coração para as atividades religiosas, pois, conforme o apóstolo afirma, “Quando quero fazer o bem, o mal está presente em mim” (Rm 7.21). Mas, conforme Brooks assinala, “a alma zelosa está continuamente dizendo para si mesma: O que darei ao Senhor?”.^ O cristão zeloso está pronto a realizar qualquer dever que Deus lhe atribua, certamente com o máximo de sua força, e até mesmo acima dela.^^ Em consequência disso, ele confia no Senhor para extrair força da fraqueza e da pobreza tirar graça em abundância (Fp 4.13; 2Co 12.9,10). “O zelo cristão não deve estar limitado ao lar, ao nosso benefício pessoal, mas ter alcance ainda mais amplo”, afirmou Evans. "Se aplicado fora de casa enquanto nossa própria vinha não recebe atenção, seu propósito é falso e ofende igualmente a Deus e o homem. Mas, pressupondo-se que seja devidamente praticado em nossa conduta [no lar], existe um vasto campo para a prática do zelo”.“ 5. Zelo consistente. O corpo dos animais de sangue frio assume a temperatura do ambiente. Animais de sangue quente trabalham para manter uma temperatura constante. O cristão zeloso é uma criatura de sangue quente, resistindo tanto à letargia da frieza de coração quanto à febre do fanatismo. Ao contrário da fúria ^“Greenham, “Of zeale”, in: Worfcs, p. 118. ^^Greenham, “Of zeale”, in: IVorte, p. 118. “Brooks, Unsearchable riches o f Christ, in: Works, 3:58-9. Cf. IReis 8.18. ^'William Ames, Conscience with the power and cases thereof (1639; reimpr. por fac-símile, Norwood: Walter J. Johnson, 1975), p. 56 (3.6). Nessa obra. a paginação é irregular. Por isso também citaremos o número do livro e do capítulo. “Evans, “Christian zeal”, in: Practical discourses, 2:330.

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cega que levou Nabucodonosor a ordenar que se aquecesse a fornalha sete vezes mais do que o normal, o crente zeloso não deve ficar quente por impulso ne.ii iniciar quente apenas para terminar frio (G13.3), mas deve manter uma temperatura constante do início ao fim (Hb 3.14).^’ Ele não cede à fraqueza ou à depressão, pois, embora sua carne seja fraca e esteja cansada, seu espírito zeloso ainda está disposto e ativo (Mc 14.38). Reynolds brincou: “No caminho pode deparar com tempestades, barreiras e pedras de tropeço, mas seu propósito e natureza é prosseguir, em meio a tudo isso avançando até o fim”.“ William Bates (1625-1699) comentou sobre essa característica do zelo: Para chegarmos a um nível excelente de santidade não existe conselho mais instrutivo e proveitoso do que este: que nosso progresso no caminho do céu aconteça com o mesmo zelo que sentimos quando pela primeira vez entramos nele e com a mesma seriedade com que chegaremos ao final dele. A primeira e a última ação dos santos são geralmente as mais excelentes (...) Mas é lamentável que com frequência o entusiasmo inicial diminua e as resoluções mais firmes deem lugar ao desleixo.^' 6. Zelo afetuoso e brando. Jonathan Edwards (1703-1758) afirmou que precisa­ mos aprender com Jesus Cristo, o comandante de todos os exércitos de Deus, 0 que significa ser um guerreiro corajoso para Deus. Cristo falou com ousadia contra o pecado, contra a hipocrisia e contra o ensino falso. Mas Edwards nos lembrou de que Cristo, quando foi cercado por inimigos como se fossem “leões que rugem”, mostrou sua força “sem manifestar emoções furiosas, sem discursos coléricos e de incitação à violência”, mas com “paciência, mansidão, amor e perdão”.“ Edwards escreveu: Assim como alguns estão enganados acerca da natureza da verdadeira coragem por Cristo, também estão enganados acerca do zelo cristão. É certamente uma chama, mas uma chama doce; ou, melhor ainda, é o calor e o fervor de uma chama doce. Pois a chama da qual [o zelo] é o calor não é nada menos que a chama do amor divino ou caridade cristã, que é a coisa mais doce e mais benevolente que há ou que pode haver no coração de um homem ou de um anjo.“ O zelo é com certeza o calor de uma chama, mas a chama é o fogo do amor. Por isso, devemos de um lado evitar o fogo descontrolado e destruidor "A m es, Conscience, 57 (3 .6 ); Greenham, “Of zeale", in: Works, 116. “ Reynolds, Discourse, p. 67. ^'William Bates, Spiritual perfection unfolded and enforced, in: W. Farmer, org.. The whole works o f the Rev. W. Bates, D.D. (reimpr., Harrisonburg: Sprinkle, 1990), 2:524-5. “ Edwards, Religious affections, in: Works, 2:351. “ Edwards, Religious affections, in: Works, 2:352.

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do orgulho, do egoísmo e do partidarismo que causa divisão e de outro evitar a frieza, a letargia, a preguiça e a apatia. Ardamos de amor! E o que se deve fazer quando vemos quão frios nos tornamos? Bates afir­ mou: “Devemos lembrar, com lágrimas de constrangimento, a disparidade entre nosso início com zelo e o prosseguimento relapso na vida religiosa. Deveriamos corar de vergonha e tremer de medo diante do imenso declínio da graça, recuperarando-nos e reforçando nossa vontade de avançar com constância vigorosa Essas são as maneiras de discernir entre o zelo falso e o zelo santo pelas coisas de Deus que o Espírito Santo acende em nosso coração. Precisamos estar atentos para observar a diferença. O que torna perigosa uma nota falsa de cinquenta dólares é sua profunda semelhança com uma nota de cinquen­ ta dólares verdadeira; só olhos treinados conseguem fazer distinção entre uma nota verdadeira e uma meticulosamente falsificada. Semelhantemente, o zelo falso se parece bastante com o zelo espiritual verdadeiro. Precisamos ter dis­ cernimento para determinar o que é falso e o que é verdadeiro.

Os meios para ter zelo cristão Ao olhar ao redor e ver poucas pessoas zelosas pelo Senhor, você talvez seja tentado a deixar de lado o chamado para ser zeloso e a contentar-se com menos. Essa reação seria dolorosa para todos nós não somente porque a igreja já está cheia de um número incontável de santos que engatinha quando já poderíam estar voando, mas também porque a mornidão (G1 2.11-13) é tão contagiosa quanto o zelo sagrado (2Co 9.2). O zelo verdadeiro não está fora do alcance de santo algum que com since­ ridade o peça ao Senhor e com diligência se dedique a usar fielmente os meios que Deus designou para sustentar tal zelo. Somos chamados a ter zelo, o qual é 0 motivo pelo qual Cristo nos redimiu, e sd o zelo mantém a esperança do futuro da igreja (Ap 2.4,5; 3.2,3,15-20). Quando falamos dos meios para ter zelo cristão, estamos pensando naque­ las coisas que precisamos fazer para que, por meio da bênção de Deus, todas as nossas afeições fiquem em chamas contra todas as coisas pecaminosas e em prol de todas as coisas santas. Contudo, não podemos fazer nada disso por nossa própria natureza, pois a carne luta contra o Espírito. O zelo cristão verdadeiro enfrenta a oposição da carne, do pecado e do Diabo. À medida que consideramos quais meios podemos empregar para despertar essa graça do zelo, precisamos estar cônscios de nossos inimigos. Mas também precisamos trazer à memória as palavras encorajadoras de John Reynolds: “Bates, Spiritual perfection, in: Works, 2:525-6.

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Agora estais denubando as fortalezas de Satanás para ampliardes o reino de Cristo. E, por isso, podeis esperar que nada menos do que as portas do inferno exerçam o máximo de seu poder e empreguem todos os agentes que consigam arregimentar na terra para obstruí-lo e estorvá-lo. Mas isso não deve nos levar a ser relapsos em nosso zelo, mas torná-lo ainda mais intenso: “o Deus de paz em breve esmagará Satanás debaixo dos vossos pés” (Rm 16.20). Combateis as batalhas do Senhor dos Exércitos e, por isso, não tendes necessidade de temer aquilo que os homens ou os demônios podem vos fazer. Com frequência Deus tem dito — e cumprirá — que por fim todas as nações serão subjugadas ao seu Filho e nele abençoadas. Muitas já são. E parece que esta é a hora decisiva para trazer muitas outras, se não todas as demais.^® Aliás, com uma colheita assim pronta (Mt 9.37,38), é hora de ter zelo por Deus. O primeiro meio de obter zelo cristão é a oração. Sendo graça de Deus, 0 zelo não pode ser obtido por merecimento ou negociação, mas precisa ser concedido (Tg 1.17); e, sendo uma graça de D eus, precisa ser pedido em ora­ ção feita humildemente em nome de Cristo (Jo 16.23). Samuel Ward afirmou: "Oração e zelo são como água e gelo: um produz o outro”. P o r isso, não de­ vemos ficar surpresos com o fato de como uma graça tão grandiosa pode ser nossa sem termos de primeiramente adquirir o direito a ela ou, à semelhança de um Sansão espiritual, procurar arrancá-la das mãos de Deus. Pelo contrário, precisamos obtê-la da mesma maneira que obtemos, todas as demais graças e dons de Deus, a saber, pedindo a Deus que por amor a Cristo a conceda a nós, pois Lucas 12.32 afirma que o Pai se agrada em nos dar o reino, e Lucas 11.13 promete que o Pai dará o Espírito Santo e, portanto, todas as suas graças àqueles que pedirem. John Preston (1587-1628) escreveu; "O amor de Deus é obra peculiar do Espírito Santo [...] Por isso, a maneira de consegui-lo é orar fervorosamente [...] Somos tão incapazes de amar o Senhor quanto a água fria é incapaz de aquecer a si mesma [...] de modo que o Espírito Santo precisa gerar aquele fogo de amor ení nós; esse acendimento precisa vir do céu, caso contrário jamais o teremos A única coisa que nos impede de recebermos essa graça é nossa omissão em pedir. Tiago 4.2 afirma: “Nada tendes porque não pedis”. E o que nos impede de pedir é a incredulidade, o grande inimigo do zelo. Se desejamos sinceramente ser inflamados de zelo por Deus, precisamos nos humilhar perante ele, crer que sua Palavra é verdade, reconhecer nossa necessidade e sua generosidade. “Reynolds, Discourse, p. 459. “Ward, Serm ons, p. 81-2. ’'John Preston, The breastplate o f faith and love (1634; reimpr. por fac-simile, Edinburgh: Banner of Thith Thist, 1979), 2:50.

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reconhecer nosso pecado e sua misericórdia, nosso imerecimento e sua graça, e pedir a ele que, por amor a Jesus Cristo, nos dê essa graça para nos vivificar e inflamar todas as nossas afeições por meio de seu Santo Espírito, que habita em nós, para que busquemos sua glória em toda a nossa vida. Sem dúvida, alguns dirão que isso significa que ter zelo é fácil demais, ao passo que outros dirão que é difícil demais. Mas nenhum deles conhecerá o zelo porque se recusam a aceitar o que Deus diz. Outros, embora em si mesmos não tenham merecimento, e por natureza sejam frios nas afeições e estejam mortos no espírito, experimentarão o coração ser enchido de graça e as afeições inflamadas de zelo santo, porque creram naquele que falou e se humilharam ao pedir (Hb 11.6). Pois Jesus afirma: “Pedi, e vos será dado; buscai, e achareis; batei, e a porta vos será aberta; pois todo o que pede, recebe; quem busca, acha; e ao que bate, a porta será aberta” (Lc 11.9,10). A negligência com a oração rapidamente esfriará nosso zelo. O segundo meio pelo qual mantemos o zelo é a Palavra d e Deus. Ward afirmou: “Quando [o fogo do zelo] desce pela primeira vez sobre teu altar, embora nenhuma água possa apagá-lo, ele precisa ser mantido aceso com combustível comum; em especial os lábios do sacerdote devem manter o fogo ardendo. Os sermões são foles estabelecidos para este propósito”.^® A pregação da Palavra é um meio poderoso de soprar nas brasas do zelo e mantê-las em chamas porque o próprio Deus fala na pregação. Quando a Palavra é pregada com fidelidade. Deus fala ao nosso coração, acendendo seu fósforo e soprando nossas brasas com seu Espírito para levar nosso zelo a arder de novo. De igual maneira, a leitura fiel das Escrituras alimenta nosso zelo, derramando combustível no fogo santo em nosso íntimo. A Palavra alimenta nossa paixão e amor por Deus, os quais ele graciosamente colocou em nosso coração. Se quisermos que nosso zelo seja estimulado, não deve­ mos deixar de provê-lo com combustível. Se quisermos que essa semente da graça produza frutos em cada área de nossa vida, precisamos cultivá-la até que floresça totalmente. Fenner afirmou que aquilo que é ouvido e lido da Palavra precisa ser pos­ to em prática mediante “meditação frequente” a fim de despertar zelo, pois é enquanto refletimos que o fogo é aceso dentro de nós (SI 39.3).®® Medite especialmente no evangelho para fornecer combustível para seu zelo arder por Deus. Sibbes afirmou: “Quando é que o zelo surge pelas boas obras se­ não quando olhamos para a graça que trouxe salvação e redenção de nossos pecados e para a vinda gloriosa de Cristo? [...] Quando a fé olha para esses “Ward, Serm ons, p. 82. “Fenner, A treatise o f the affections, p. 158.

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dois lados, ela é posta em chamas, ela nos torna zelosos (Hb 9 .1 4 )”.“” Sibbes prosseguiu dizendo, “Quando eles consideram o maravilhoso amor divino por pessoas como eles, ficam novamente inflamádos de amor, tal como aconteceu no evangelho com a mulher que teve muitos pecados perdoados e, por isso, amou muito [...] Por isso, (o evangelho] nos estimula a nos gastar por Cristo e por sua igreja, a qualquer custo, a sacrificar nossos Isaques”/* O terceiro meio de manter nosso zelo por Deus é a frequência e comunhão dos fieis na casa d e Deus. Hebreus 10.24,25 nos ordena a não negligenciar a reunião dos santos, afirmando: “Pensemos em como nos estimular uns aos outros ao amor e às boas obras, não abandonemos a prática de nos reunir, como é costume de alguns, mas, pelo contrário, animemo-nos uns aos outros, quanto mais vedes que o Dia se aproxima”. Fenner escreveu: “Vedes como as brasas que permanecem juntas na lareira brilham intensamente e ardem em chamas, ao passo que os pequenos pedaços que ficam de lado e distantes, separados dos outros, ficam escurecidos e sem chama. Se desejas mesmo ser zeloso, dá então grande valor à comunhão dos santos”.'*^ Richard Baxter aconselhou: “Vivei entre cristãos ardorosos e sérios, em especial no que diz respeito a vossos relacionamentos mais íntimos. O zelo de um tem grande poder para acender o zelo de outros, da mesma forma como 0 fogo tem poder de atear fogo. Cristãos sérios, entusiásticos e diligentes são excelente ajuda para nos tom ar sérios e diligentes. Aquele que viaja com via­ jantes velozes desejará manter o passo com eles”.^^ Quão prejudicial é, então, negligenciar esses meios de graça! Ward advertiu: A queles q u e leem a Bíblia p o r co n v e n iê n cia e m d ias ch u v o so s, n ão d igerin do-a co m J o ã o , m a s e x p e rim e n ta n d o a p e n a s c o m a p o n ta d a lín g u a , a q u eles q u e m ed itam e m p e q u e n a s p o r ç õ e s , n u n c a ru m in a n d o n e m d ig erin d o a c a r n e — ta is p esso as ficam satisfeitas e m t e r u m c o n h e cim e n to su p erficial e u m a co n v e rsa in fo rm al co m o u tro s, m a s q u e n ã o

é su ficien te

p a ra m a n te r a a lm a v iv a e m u ito m e n o s p a ra ter

fo rça e vigor. A q u eles q u e a b a n d o n a m a m e lh o r c o m u n h ã o e se to rn a m estran h o s à s sa n ta s re u n iõ e s (c o m o a g o ra

éo

c o s tu m e d e m u ito s) — c o m o p o d e m d e ix a r de

esfriar? S erá q u e u m a b ra s a s o z in h a c o n se g u e se m a n te r a c e s a ? ^

Como o zelo mais fervoroso esfriará rapidamente sem o uso dos meios desig­ nados por Deus! ^'•Richard Sibbes, “Salvation applied”, in: The works of Richard Sibbes (1862-1865; reimpr., Edinburgh; Banner of Thith Hust, 1984), 5:398. ^'Sibbes, “Salvation applied”, in: Works, 5:399. “Fenner, A treatise of the affections, p. 162. “Baxter, A Christian directory, in: Vtorks, 1:386. “ Ward, Sermons, p. 83.

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0 quarto meio para estimular nosso zelo é arrependim ento do pecado e resistência a ele. Nosso Senhor Jesus ligou o zelo ao arrependimento quando afirmou: "Sê, pois, zeloso e arrepende-te” (Ap 3.19). Nosso zelo por Deus é amortecido, quando, apesar de o Espírito falar à nossa consciência, nos recu­ samos a abandonar algum pecado de estimação. Um coração endurecido é um coração frio para com Deus. Se você se vê esfriando em relação a Deus, à sua Palavra e ao seu povo, então pergunte a si mesmo se há alguma desobediência que você está tolerando apesar das advertências de sua consciência. Paulo falou da renovação do zelo mediante arrependimento, quando escre­ veu em 2Coríntios 7.10,11 “pois a tristeza segundo a vontade de Deus produz 0 arrependimento que conduz à salvação” e comentou “quanto cuidado não produziu isto mesmo em vós, quanta apologia, quanta indignação, quanto te­ mor, quanto desejo intenso, quanto zelo” (KJV). Thomas Watson (c. 1620-1686) afirmou que o zelo é um dos “auxiliares ou resultados do arrependimento” e exclamou: “Como o penitente se estimula no assunto da salvação! Como ele toma 0 reino dos céus à força (Mt U . ^ ) ! ”.“^ Fenner afirmou que, a fim de insuflar e manter o zelo, precisamos "nos afastar das oportunidades de pecar” e “fugir de começar a p e c a r N ã o brinque com a tentação; você está brincando com uma serpente. Fenner observou que “Abraão não quis tomar nem mesmo um ‘cordão nem uma correia de sandália’ do rei de Sodoma quando este lhe ofereceu bens”.^^ Os meios tanto para alcançar o zelo cristão quanto para mantê-lo aceso na alma podem parecer impossíveis quando considerados por nossa perspectiva e avaliados de acordo com nossa sabedoria. Aliás, parece que a promessa de que esses meios conduzirão a uma graça tão grandiosa e a uma vida tão glorificadora não passa de uma história tola. Esse pensamento é conhecido não somente porque nós mesmos o temos alimentado, mas também por causa da história de Naamã, o leproso (2Rs 5). Quando veio até Eliseu para ser curado da lepra, Naamã esperava que o profeta invocasse o nome do Senhor com um grande encantamento (v. 11). Quando a reação de Eliseu foi enviar um men­ sageiro a Naamã para lhe dizer que seria curado caso se lavasse sete vezes no rio Jordão, Naamã foi embora furioso. Que era o rio Jordão em comparação com os rios Abana e Farfar de Damasco (v. 12)? A fé que Naamã tinha para ser curado não estava no profeta ou em seu Deus; estava erroneamente colocada no meio que esperava que o profeta usasse. Assim que seu servo apontou para a tolice de não querer seguir as instruções “Thomas Watson, The doctrine of repentance (1668; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Trust, 2002), p. 93-4. “ Fenner, A treatise of the affections, p. 162-3. ^Tenner, A treatise of the affections, p. 162.

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simples do profeta, Naamã caiu em si. 0 versículo 14 afirma: “Então ele desceu e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a palavra do homem de Deus; e a sua pele tomou-se como a pele de um menino, e ficou purificado”. Thomas Manton (1620-1677) afirmou com sabedoria: “Embora pareça que os meios não têm ligação alguma com o fim [ou objetivo], mesmo assim, se Deus os determinou para essa finalidade, precisamos usá-los. Como no caso de Naamã, Deus estava decidido a curá-lo, mas Naamã precisou seguir o cami­ nho prescrito [por Deus], embora isso fosse contra seu capricho e opinião”." A aplicação dessa história é que, se cpnsiderarmos os meios de alcançar o zelo cristão à luz de nossa própria sabedoria e os julgarmos com base em nossos próprios padrões, nossa reação não será menos tola do que a de Naamã. Mas, se os considerarmos à luz da sabedoria de Deus, tudo muda. Para ele, uma pedra não é pequena demais para abater um gigante (ISm 17.40), uns poucos pães e peixes não são quantidade pequena demais para alimentar milhares (Mc 6.38) e um exército de trezentos homens não é pequeno demais para destruir um exército de dezenas de milhares (Jz 8.10). Precisamos lembrar que às vezes os meios designados por Deus são aqueles aparentemente insigni­ ficantes e não as idéias e preferências dos homens. E, assim como os caminhos e os pensamentos de Deus estão bem acima dos nossos (Is 55.8,9), da mesma maneira os caminhos de Deus que levam ao zelo cristão se revelarão no final bem acima dos nossos, tanto em sua simplicidade quanto em sua eficácia.

A prática do zelo cristão Precisamos orar por graça para colocarmos o zelo cristão em prática, qualquer que seja nossa vocação de vida. Examinemos rapidamente três vocações: o pastor, o trabalhador e os pais. 1. O pastor. Se você é chamado para ser pastor, seria trágico você seguir essa vocação sem zelo! William Gurnall (1616-1679) afirmou que os pastores preci­ sam ter “uma ousadia zelosa”, escrevendo: “Jeremias nos conta que a palavra de Deus era como fogo em seus ossos; ela irrompia de sua boca como a chama que sai de uma fornalha”. " Reynolds escreveu: “O zelo sagrado produzirá ex­ celentes efeitos no ministério da igreja e por meio dele. Ela levará aqueles que pertencem a essa ordem sagrada à esfera de estima mais elevada no mundo, às obrigações e à finalidade de seu ofício e função divinos. O zelo os levará a um cumprimento diligente e atento do ministério que lhes foi entregue” (2Tm 4.5).“ “Thomas Manton, Eighteen sermons on the second chapter of the Second Epistle to the Thessaionians, in: The complete works of Thomas Manton (London: James Nisbet, 1871). 3:124. “ William Gumall, The Christian in complete armour (1662-1665; reimpr., Edinburgh: Ban­ ner of TVuth Trust, 2002), 2:578. “Reynolds, Discourse, p. 163.

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0 pastor zeloso tem um amor terno pelas almas e labuta pela salvação delas (ICo 9.22). Ele catequiza e instrui os ignorantes (ITm 4.11), repreende e convence os irreverentes (Tt 1.9-13), exorta e encoraja aqueles que buscam a graça de Deus (2Co 5.20), encoraja aqueles que começaram a correr bem (ITm 4 .1 3 ), firma os hesitantes e em dúvida (Tt 2 .1), fortalece os temerosos e desalentados (ITm 4 .1 6 ), restaura os rebeldes (2Co 2.6-8), consola os que são fortes e fiéis com a esperança da glória (ITm 4.6) e intercede com zelo pelo rebanho que lhe foi confiado (Cl 4.12,13).®' É verdade que essas coisas pesam sobre o pastor seja ele zeloso ou não, mas como essas coisas seriam impossíveis se seu coração estivesse frio e estéril em sua vocação! 2. O trabalhador. Considere o ambiente em que trabalha um profissional cris­ tão. Ele se vê o tempo todo diante de maus exemplos; ouve conversas inde­ corosas, piadas vulgares e blasfêmias; é objeto de fofoca, difamação, queixas, calúnias, conversas maldosas e mentiras; precisa ouvir conversas indecentes em que o pecado é glamorizado, votos matrimoniais são quebrados e flertar é divertido. Ele é exposto a roupas indecorosas, palavras sedutoras e olhares maliciosos. Enfrenta ordens e expectativas que exigem que minta, trapaceie, roube, engane, retenha informações e apresente meias verdades como se fos­ sem verdades completas. O profissional zeloso sempre estará alerta para o fato de que Deus é a fonte de sua vocação. Visto que Deus o colocou naquele emprego, o operário zeloso trabalhará não para ser visto por homens ou somente quando seu chefe está olhando, mas, pelo contrário, fará todo seu trabalho como para o Senhor, que o “contratou” (Ef 6.5-9). Seu objetivo será obter o favor do Senhor e agradar-lhe não apenas em seus deveres, mas também na maneira que fala de seu trabalho (sem murmuração) e o aprecia. Fará seu trabalho com alegria, gratidão e dis­ posição, desejando que seja uma oferta e sacrifício de aroma suave ao Senhor, seu Deus (Ef 5.2). Estará então capacitado a trabalhar “de boa vontade” (Ef 6.7) para nossos superiores, o que deixa implícito “prontidão e satisfação”, conforme William Gouge (1575-1653) escreveu.®^ Gouge afirmou que os cristãos devem ser “tanto rápidos quanto diligentes” no serviço àqueles que são autoridade sobre eles, sendo que “rápido” quer dizer que o cristão não desperdiça tempo em uma tarefa, mas procura ser bastante produtivo, e “diligente” quer dizer que dedica esforço e atenção para fazer bem o seu trabalho.®® Fenner afirmou que o zelo nos leva a nos gastcir — corpo e alma — para Deus. O zelo por Deus dirigirá e energizará todos os nossos labores diários. ^‘Reynolds, Discourse, p. 163-4. “William Gouge, Of domesticall duties (1622; reimpr. por fac-símile, Norwood: Walter J. Johnson, 1976), p. 168. “Gouge, O f domesticall duties, p. 620.

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não importando qual seja nossa vocação. Fenner escreveu: “A maior parte do gastar-se está nisto: que ele ande com Deus em sua vocação. Ele gasta suas energias compelindo o coração a trabalhar com obediência, a seguir suas ativi­ dades profissionais com fé, a se dedicar em seu emprego terreno como diante de Deus, a glorificar a Deus em todos os seus caminhos”.^ O profissional zeloso também estará alerta para as tentações específicas em sua vocação. O trabalho de alguns exige que viajem e fiquem longe de casa e da família, passando muitas noites sozinhos em hotéis. Alguns precisam trabalhar bem próximos de pessoas do sexo oposto, seja pessoalmente, seja por telefone ou por e-mail. Alguns são constantemente expostos aos pecados de outros. O profissional zeloso não será passado para trás por Satanás, mas estará alerta para suas artimanhas (2Co 2.11). Ele considerará os lugares e as situa­ ções em que Satanás mais provavelmente colocou suas armadilhas e estará de guarda contra aquelas tentações. Ele estará alerta para o fato de que Satanás está guerreando contra ele e não perderá a menor oportunidade para des­ truí-lo (IPe 5 .8). Ele protegerá os ouvidos contra conversas que encheriam a mente com o mal e pensará apenas nas coisas que são boas (Fp 4.8). Ele se esforçará em conhecer o próprio coração e as tentações a que está inclinado (SI 139.23,24) e, por isso, guardará o coração acima de tudo (Pv 4.23). Fará aliança com os olhos para não colocar nada pecaminoso diante deles (SI 101.3; Jó 31.1). Meditará nas coisas de Deus (SI 1.1-3) para sempre dirigir seus pés para o caminho dos mandamentos de Deus (SI 119.59). Armazenará no coração a Palavra de Deus a fim de não pecar contra ele (SI 119.11).“ Como é grande a necessidade que o profissional cristão tem do zelo cristão! 3. Os pais. De todas as vocações, o trabalho dos pais é um dos mais exigentes. Os pais cristãos são chamados a conduzir os pequeninos a Deus, mas lutam com a própria rebelião natural dos filhos contra as coisas de Deus, contra o orgulho, 0 egoísmo, o amor e desejo natos pelo pecado, bem como a corrupção herdada da natureza deles. Contra essa barreira de impiedade natiucd, os pais cristãos entendem que precisam disciplinar os filhos e protegê-los de cair em perigo. Como é difícil essa vocação! E ela se tom a ainda mais difícil. Os pais aistãos não somente enfrentam a pecaminosidade dos filhos, mas também precisam obedecer à vocação deles como pais em face da própria pecaminosidade deles. Eles precisam esperar dos filhos exatamente aquilo que eles mesmos estão lutando para alcançar e preci­ sam discipliná-los por desobedecerem nas mesmas áreas em que eles mesmos continuam lutando. Isso faz com que os pais se sintam hipócritas, atormentem “Fenner, A treatise o f the affections, p. 126. “Acerca da piedade prática para o trabalhador, veja Richard Steele, The religious tradesman... (reimpr., Harrisonbui^: Sprinkle, 1989).

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sua consciência e seja um peso enorme cada vez que precisam corrigir os filhos. Não existe desculpa alguma para o pecado dos pais, mas ignorar o pecado dos filhos apenas porque os pais também estejam lutando contra esse pecado somente incentiva o pecado dos filhos. Os pais precisam discipliná-los. Justamente porque educar os filhos é tão árduo, os pais precisam insuflar constantemente a chama do zelo do amor pelos filhos. William Gouge escreveu: “A fonte dos deveres dos pais é o amor [...] Pois é grande a dor, o trabalho, 0 custo e 0 cuidado que os pais precisam suportar por seus filhos. Mas, se houver amor neles, nenhuma dor, nenhum trabalho, nenhum custo, nenhum cuidado parecerá demasiado”.^* O pai e a mãe zelosos dão profunda consideração à gravidade, à necessidade e às promessas de seu chamado. Não há como fugir da gravidade da vocação de um pai ou de uma mãe, pois Deus nos considera responsáveis pela alma de nossos filhos. Como mordomos dos filhos do Senhor, recebemos a incumbência de criá-los para ele de acordo com a instrução dele (Ef 6.4). Ciente da gravidade de sua vocação, os pais zelosos são compelidos à san­ tidade pessoal e ao verdadeiro arrependimento. Eles almejam que sua própria santidade seja um exemplo e um estímulo para os filhos. Os pais desejam que os filhos vejam Cristo neles e, como consequência, desejem “o Deus de seu pai”. Os pais desejam que os filhos vejam que só pela graça de Deus seus pais são diferentes de pais incrédulos. Portanto, os pais zelosos dão a mais alta prioridade à sua caminhada com Cristo, buscando pela graça de Deus que seu relacionamento com Cristo seja usado por Deus para a salvação dos filhos. Eles também manifestam arrependimento verdadeiro quando pecam. O que os pais tentam espelhar é, então, a vida zelosa de fé e arrependimento a que o Senhor os chama. Os pais zelosos se esforçam em ser fiéis na disciplina e na instrução (Ef 6.4), usando a vara da correção (Pv 13.24; 22.15; 23.14), bem como a mão amoro­ sa educadora e orientadora (Pv 22.6), pois esses são seus deveres como pais perante Deus, os quais, se negligenciados, colocarão em perigo os próprios pais e os filhos. Mas os pais zelosos também sabem que Deus é o único que pode coroar com êxito esses esforços e levar os filhos a um final salvador. Por isso, os pais zelosos estarão mais de joelhos do que com a vara na mão, mais orando do que ensinando, e conversarão mais com Deus sobre os filhos do que com os filhos sobre Deus. Eles o farão com grande perseverança, não só um pouquinho aqui e outro pouquinho ali, mas com súplica fiel, regular e sincera até que o Senhor responda. “ G ouge,

Of domesticall duties, p . 4 9 8 .

O estud o de Gouge é u m a exp osição e ap licação úteis

de Efésios S .2 2 — 6 .9 , p assag em q ue inclui os deveres dos pais (6 .4 ) ao lado d os das esp o sas, m a­ ridos, filhos, servos e sen hores. Foi reim presso e en co n tra -se co m lin guagem acessível: W illiam Gouge,

Of domesticai duties (Edinburgh:

Pu ritan R eprints. 2 0 0 6 ) .

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Com 0 objetivo de que Deus opere sua obra salvadora nos filhos, os pais empregarão com extremo zelo os meios designados por Deus para levar as boas-novas de salvação a eles, a saber, o culto público e o culto doméstico. Eles assegurarão que seus filhos estejam na casa de Deus todos os domingos (Hb 10.24,25), onde participam das bênçãos de Deus sobre seu povo. Ali os filhos podem desfrutar da presença do Deus triúno no meio do povo de Deus, testemunhar a graça de Deus no povo e ouvir a Palavra de Deus asseverar-lhes a cada semana que Deus salvará todos os que vierem a ele por Jesus Cristo (Is 55.1-3,6,7). Os pais zelosos também terão o cuidado de não negligenciar o culto do­ méstico regular (Dt 4.9,10; 6.6-9; SI 78.1-7).®^ Para eles, o culto doméstico consistente durante a semana é tão importante quanto o culto público e, por isso, têm diante de Deus a obrigação de cuidar que os filhos desfrutem de ambos. Seu culto doméstico diário consistirá em ler as Escrituras, para que os filhos sejam trazidos diariamente perante a Palavra de Deus e as boas-novas de Jesus Cristo, orar com a família, para que ensine os filhos a orar e os en­ coraje a clamar ao Senhor, que ouve (Is 65.24), e cantar, para que os filhos aprendam a louvar a Deus e sempre se lembrem de que só Deus é digno do culto, adoração e serviço deles. Independentemente de sua vocação, você está pela graça de Deus mos­ trando claramente o zelo cristão?

Aplicações finais Concluamos com três aplicações. Primeiro, ore para ter a graça de entender corretamente a necessidade de zelo cristão. Lancemos fora todas as objeções contra nos tornarmos zelosos de Deus e de sua glória. Vejamos que o zelo é essencial, em primeiro lugar, porque é um imperativo divino, pois Deus nos ordena: “sede fervorosos de espírito, servindo ao Senhor” (Rm 12.11, ARA); em segundo, porque acompanha cada uma das demais graças cristãs, como amor zeloso e esperança zelosa; em terceiro, porque o amor pela alma dos outros exige zelo; e, por fim, porque desejos genuínos de glória exigem que “nos esforcemos por entrar pela porta estreita” (Lc 13.24) e corramos para alcançar o prêmio maior (ICo 9.24,25). ®Thomas Doolittle, “How may the duty of daily family prayer be best managed for the spiritual benefit of every one in the family?”, in: Puritan sermons 1659-1689 (1674; reimpr., Wheaton: Richard Owen Roberts, 1981), p. 194-272; Matthew Henry, “A church in the house”, in: The complete works of the Rev. Matthew Henry (1855; reimpr.. Grand Rapids; Baker, 1979), 1;248-67; Oliver Heywood, A family altar, in: The whole works of the Rev. Oliver Heywood (Idle: John Vint, 1826), 4:283-418. ^’Para instruções adicionais sobre a base teológica do culto doméstico, seu dever, sua im­ plementação, objeções a ele e motivações para sua prática, veja Joel R. Beeke, Family worship (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2009).

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Em segundo lugar, ore por graça de ter a motivação correta para o zelo cristão. (1) O zelo que o mundo tem por suas prioridades deve nos motivar a ser zelosos por Cristo. Se o mundo pode ser tão zeloso com causas que leva­ rão pecadores para o inferno, quanto mais os cristãos deveriam ter zelo pelo evangelho que pode conduzir pecadores à vida eterna? (2) O grande valor do tempo deve motivar nosso zelo. Quanto tempo já desperdiçamos? De fato, agora é a hora de dobrar nossa diligência e ser zelosos por Deus. (3) Tito 2.14 nos ensina que a redenção adquirida por Cristo deveria nos motivar, pois ele “a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de hoas obras”. (4) O próprio exemplo de Cristo deveria nos motivar. O zelo pelo Pai consumiu Jesus de tal forma (Jo 2.17) que ele aproveitou cada oportunidade em público e em par­ ticular para falar da salvação que veio realizar para seu Pai. Não deveríamos fazer o mesmo? Pedro nos lembra que Cristo nos deixou exemplo para que sigamos seus passos (IPe 2.21). Se ele arde de amor pelas almas, de ódio pelo pecado, de compaixão pelos que sofrem, de tristeza pelos obstinados, será que não devemos agir do mesmo modo? Aqui vale a pena destacar as perguntas de John Reynolds: D e sce u ele a té n o s sa ca rn e m o rta l p a ra q u e ficá ss e m o s alh eio s se se re m o s ou n ão a rre b a ta d o s d e ste m u n d o e se irem o s o u n ã o p a ra su a glória? R eb aixo u -se ele e se esv azio u p ara q u e fô ssem o s indiferentes c o m seu n o m e e h on ra? E m p reg o u ele trinta a n o s n a te rra c o m u m zelo in ca n sá v e l p ela g ló ria de seu Pai p a ra n o s d isp en sar d e te r u m d esejo a rd en te d e im itá-lo em se u s p ro p ó sito s e am o r? E n treg o u ele a v id a p a ra n o s sa sa lv a çã o p a ra q u e ficá ss e m o s alh eio s se so m o s o u n ã o salvos? R e ssu scito u ele d o s m o rto s e se a sse n to u n o cé u p a ra n o s d isp e n sa r d e te r in teresse e m a ssu n to s q u e s ã o d o alto , o n d e e s tá se n ta d o à d e stra d e D eus? C o n to u -n o s ele su a d e cisã o d e v o ltar e ju lg ar o m u n d o , p a ra q u e e ste ja m o s seg u ro s e sejam o s n eg lig en tes q u a n to a o resu ltad o d a q u ele d ia d ecisiv o ? Q u ão co n tra d itó rio d ian te d e to d o se u a m o r e o b ra é n o s sa m o rn id ã o e m se u s ca m in h o s? Q u an ta in g ratid ão co m e le e stá n a s e n tra n h a s d e ssa m o rn id ão ? Q u an to d e sp re z o isso la n ç a so b re seu sa n g u e e g ra ç a , so b re su a lu z e re v e la ç ã o , q u an d o co n sid e ra m o s tu d o isso co isas d e sn e ce ss á ria s e im p ertin en tes? C o m to d a ju stiça ele p o d e d izer a u m a igreja m o rn a : E u te vom itarei d a m inh a boca a m enos q u e te arrependas.^^

Onde está, então, o seu zelo? Por acaso a mornidão está em seu espírito, ameaçando a repreensão divina? Por acaso a sua indiferença em servir a Deus está agora pondo em perigo sua prontidão em se apresentar diante do Senhor no dia do juízo? Por acaso você é neutro diante do chamado à santidade, não ^’ Reynolds,

Discourse, p.

2 0 9 -1 0 .

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se importando se cresce na graça e no conhecimento de Cristo ou se assume seus deveres com ele? Você está pronto a explicar a seu Criador por que enterrou seus talentos? Está pronto a explicar por que desperdiçou tempo, misericórdias, privilégios e a vida? Se não está pronto, onde está o seu zelo? Por fim, oremos para ter a graça de ser humilhados por nossa falta de zelo por Cristo e seu reino glorioso. Que Deus nos faça lamentar nossa prolongada mornidão na vida religiosa; que nos humilhe, mostrando-nos como não temos força para ser zelosos por ele e como tendemos a abraçar a indolência. Mas que ele também tenha misericórdia de nós, ouvindo nossas orações e respon­ dendo ao anseio de nosso coração de sermos inflamados de santas afeições. Que ele abra nossos ouvidos para ouvir a intercessão de Cristo por nós, a fim de sermos fervorosos no espírito e vestidos de zelo como de uma capa. E que Deus faça com que esse santo desejo de zelo cristão frutifique em nós, levan­ do-nos não apenas a decisões de daqui em diante sermos zelosos por Deus, mas também a buscarmos com empenho os meios designados para sermos zelosos por nosso Deus. Concluamos com as palavras de Reynolds: A h! q u a n to b e m to d o s n ó s p o d e ría m o s fa z e r se tiv é sse m o s o v erd ad eiro zelo por D eu s! Q u a n ta s o c a s iõ e s e o p o rtu n id a d e s — q u a isq u e r q u e se ja m a s con d ições e circ u n s tâ n c ia s — s ã o d ia ria m e n te c o lo c a d a s em n o s s a s m ã o s , a s q u ais, caso a g ís s e m o s c o m b a s e n e s s e p rin c íp io , n o s to r n a r ia m g ra n d e s b e n fe ito re s da h u m a n id a d e , m e d ia n te o d e s e n c o r a ja m e n to d a m a ld a d e e d a im p ie d a d e e a p ro m o çã o do b e m e d a b o n d a d e n o m u n d o ? C aso co n c o rd á s s e m o s c o m a prática d e sse p rin cíp io b e n e fice n te , q u ã o feliz seria o n o s so [m u n d o ]? M as, s e não é p ossível e sta rm o s to d o s d e a co rd o p a ra ag ir c o m b a se n esse princípio, assim m esm o a ja m o s c o m b a se n ele. Se p re cisa m o s ain d a e sta r divididos e sep arad o s, ain d a assim v is ta m o -n o s d e z e lo p o r D eu s e se u rein o en tre o s h o m e n s ! A m em o s ard en tem en te

0 S e n h o r Je s u s e aq u ilo q u e d iz resp eito à su a re d e n çã o e g ló ria! S ejam o s sérios e diligen tes e m to d o s o s o fício s d e u m z e lo v e rd a d e ira m e n te sa g ra d o !“

Arrependa-se e seja zeloso (Ap 3.19)!

“Reynolds, Discourse, p. 184-5.

Capüuîo 59 □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□aaaaaDODDaDDODaaDDaaoDaoaaQDaaDD

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N ão a m a m a C risto a q u eles q u e a m a m a lgo m a is d o q u e a C risto [ ...] S e p e rd eres C risto, p e rd erá s tu d o .

T homas Brooks'

Ler literatura puritana tem sido uma grande bênção espiritual para mim du­ rante os últimos quarenta anos.^ Quando, aos catorze anos de idade, o Espírito Santo começou a me convencer da seriedade do pecado e da espiritualidade da lei, vasculhei as Escrituras e devorei textos puritanos que havia na estante de livros de meu pai. Todas as noites, às onze horas, minha mãe gritava escada acima: “Apagar a lu z!”. Depois que a luz do quarto de meus pais era apagada, eu acendia a minha de novo e ficava lendo até a meia-noite e meia ou uma hora da manhã. Li prazerosamente todos os títulos puritanos publicados por Banner of Thith Tlrust, iniciei a biblioteca de uma igreja, fundei uma organi­ zação sem fins lucrativos denominada Bible Truth Books e mais tarde, como pastor, fundei a Reformation Heritage Books. Em minha vida, tenho passado milhares de horas com autores puritanos e vendido dezenas de milhares de livros puritanos ao longo dos últimos quarenta anos. Por quê? Este livro procurou mostrar que na teologia os puritanos eram profunda­ mente bíblicos, doutrinários, experienciais e práticos. Eles procuravam aplicar a Palavra em cada área da vida, das devoções pessoais à família, da igreja 'Thomas Brooks, citação de John Blanchard, org., The complete gathered gold (Darlington: Evangelical, 2006), p. 352. ^Este capítulo é um resumo de Joel R. Beeke, “Learn from the Puritans”, in: Thomas K. Ascol, org., Dear Timothy: letters on pastoral ministry (Cape Coral: Founders, 2004), p. 219ss.

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à cidadania nacional e assuntos internacionais. Mediante a consideração de várias lições práticas específicas dos puritanos, neste capítulo concluiremos nossa resposta a essa pergunta, “por quê?”

Concentre-se em Cristo Os puritanos nos mostram como nos concentrar em Cristo. Conforme mos­ trado com clareza nas Escrituras, o evangelismo precisa falar do testemunho que Deus deu de seu Filho unigénito (At 2.3; 5.42; 8.35; Rm 16.25; ICo 2.2; G13.1). Com isso, os puritanos ensinaram que qualquer pregação em que Cristo não é preeminente não é uma pregação válida. William Perkins (1558-1602) afirmou que o âmago de toda pregação era “pregar um só Cristo, por Cristo, para o louvor de Cristo’? De acordo com Thomas Adams (1583-1652), “Cris­ to é a soma de toda a Bíblia; é profetizado, tipificado, prefigurado, mostrado, demonstrado, encontrado em cada página, quase em cada linha, sendo que as Escrituras são apenas, por assim dizer, o cueiro do menino Jesus”.“ “Pense em Cristo como a própria substância, cerne, alma e âmbito de todas as Escrituras”, afirmou Isaac Ambrose (1604-1664).® Assim como Paulo, os puritanos pregavam a Cristo crucificado. J. I. Packer afirma: “A pregação puritana girava em torno de ‘Cristo, e ele crucificado’, pois esse é o centro de convergência da Bíblia. A tarefa dos pregadores é declarar todo 0 conselho de Deus, mas a cruz é o centro desse conselho, e os puritanos sabiam que quem viaja pela paisagem da Bíblia perde-se pelo caminho assim que perde de vista o monte chamado Calvário”.* Os puritanos eram apaixonados por Cristo e escreveram muito acerca de sua beleza. Repare a empolgação de Samuel Rutherford (1600-1661) com seu Senhor: “Que se ponha a beleza de dez milhares de milhares de paraísos como 0 jardim do Éden em um lugar; que se ponham todas as árvores, todas as flores, todos os aromas, todas as cores, todos os gostos, todas as alegrias, toda a amabilidade, toda a doçura em um único lugar. Ah! que coisa belíssima e excelente isso serial E, mesmo assim, em comparação com aquele belo, precioso e muito amado Cristo isso seria menos do que uma única gota de chuva em todos os mares, rios, lagos e fontes de dez milhares de terras”.^ ’William Perkins, The arte of prophecying, in: The works of William Perkins (London: John Legate. 1609), 2:762. ^Thomas Adams, “Meditations upon some part of the creed”, in: The works of Thomas Adams (1862; reimpr.. Eureka: Tanski, 1998), 3:224. ’Isaac Ambrose, Works of Isaac Ambrose (London: para Thomas Tfegg & Son, 1701), p. 201. ’J. I. Packer, A quest for go^iness: the Puritan vision of the Christian life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 286. 'Samuel Rutherford, citação de Don Kistler, Why read the Puritans today (Morgan: Soli Deo Gloria, 1999), p. 4.

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Thomas Goodwin (1600-1680) concluiu: "Sem Cristo o céu seria um inferno para mim”.®

Mantenha um equilíbrio bíblico Os puritanos nos mostram como manter o equilíbrio bíblico adequado na pregação. Examinemos três aspectos importantes: • Equilíbrio bíblico mediante a preservação das dimensões objetivas e sub­ jetivas do cristianismo. A dimensão objetiva é o alimento para a subjetiva; assim, a dimensão subjetiva está sempre arraigada na objetiva. Por exemplo, os puritanos afirmavam que a principal base da certeza são as promessas de Deus, mas essas promessas precisam se tornar cada vez mais reais para o crente por meio das evidências subjetivas da graça e do testemunho interno do Espírito Santo. Sem aplicação pelo Espírito, as promessas de Deus levam ao autoengano e à conjectura carnal. Por outro lado, sem as promessas de Deus e a iluminação pelo Espírito, o autoexame tende à introspecção, à escravidão e ao legalismo. O cristianismo objetivo e o cristianismo subjetivo não devem ser separados um do outro. Precisamos viver de forma tal que revele a presença íntima de Cristo com base em seu trabalho objetivo de obediência ativa e passiva. O evangelho de Cristo precisa ser proclamado como verdade objetiva e também precisa ser aplicado pelo Espírito Santo e apropriado no íntimo pela fé. Os puritanos rejeitavam, portanto, dois tipos de religião: aquela que faz distinção entre a experiência subjetiva e a Palavra objetiva, assim conduzindo a um misticismo antropocêntrico, e aquela que pressupõe a salvação com o falso fundamento de fé histórica ou temporária.® • Equilíbrio bíblico mediante a preservação da soberania de Deus e da res­ ponsabilidade humana. Quase todos os puritanos ressaltavam que Deus é totalmente soberano e o homem é totalmente responsável. Como isso pode ser resolvido de forma lógica é algo que está além de nossa mente finita. Quando Charles Spurgeon (1834-1892) foi questionado sobre como seria pos­ sível conciliar essas duas doutrinas bíblicas grandiosas, ele respondeu como verdadeiro herdeiro dos puritanos quando afirmou que não sabia que amigos precisavam de conciliação. Em seguida, comparou essas duas doutrinas com os trilhos em que o cris­ tianismo anda. Assim como os trilhos de um trem, que correm em paralelo. ®Thomas G oodw in, cita ç ã o de Kistler, Why read the Puritans today, p. 3. ’Jo e l R. B eeke, Quest for full assurance: the legacy o f Calvin and his successors (Edinburgh: B an n er of Truth Trust, 1 9 9 9 ), p. 1 2 5 ,1 3 0 , 146.

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parecem se unir lá longe, da mesma maneira as doutrinas da soberania de Deus e da responsabilidade do homem, que parecem separadas uma da outra nesta vida, irão se unir na eternidade. Os puritanos concordariam de todo coração. Eles afirmavam que nossa tarefa não é forçar que elas se unam nesta vida, mas mantê-las em equilíbrio e viver em conformidade. Portanto, precisamos lutar por um cristianismo vibrante e experiencial que faça justiça tanto à soberania de Deus quanto à nossa responsabilidade. • Equilíbrio bíblico mediante a rejeição do arminianismo e do hipercalvinismo. Hoje em dia multiplicam-se falsos convertidos devido a métodos arminianos e decisionistas, o que, para explicar a existência de “cristãos” infrutíferos, deu origem à teoria do cristão carnal. Por meio de sua soteriologia da graça sobe­ rana, os puritanos combatiam o arminianismo. Em A d isp la y o f A rm in ia n ism [Uma apresentação do arminianismo] e em T h e d ea th o f d ea th in th e d ea th o f C hrist [A morte da morte na morte de Cristo], John Owen (1616-1683) ressalta convincentemente que a vontade caída do homem está debaixo de escravidão. Por outro lado, indo além do que Calvino afirmou, atualmente um número crescente de conservadores reformados está defendendo a ideia de que Deus não oferece graça incondicional genuína a todos os ouvintes do evangelho. 0 resultado é que a pregação do evangelho é dificultada e a responsabilidade do homem é com frequência ignorada, quando não negada. Felizmente, somos libertados dessas conclusões hipercalvinistas racionalistas sobre as doutrinas da graça quando lemos escritos puritanos como C o m e a n d w elco m e to Jesu s C hrist [Vinde a Jesus Cristo e recebei-o], de John Bunyan (1628-1688), T he R ed eem er’s tears sh ed o v er lost so u ls [As lágrimas do Redentor derramadas por almas perdidas], de John Howe (1630-1705), ou “What must and can persons do toward their own conversion” [ 0 que as pessoas devem e podem fazer para sua própria conversão], sermão de William Greenhill (1598-1671).“ Se você pregar com um verdadeiro equilíbrio reformado, alguns dos membros de sua igreja poderão chamá-lo de hipercalvinista e outros poderão chamá-lo de arminiano, mas você será inteiramente bíblico.

Persevere na catequízação Os puritanos nos mostram a importância de perseverar na catequese da família, de membros da igreja e de vizinhos. À semelhança dos reformadores, os puri­ tanos eram catequistas. Eles acreditavam que as mensagens do púlpito devem ‘“John Bunyan, Come and welcome to Jesus Christ (1681; reimpr., Edinburgh: Banner of IVuth Trust, 2004); John Howe, The Redeemer’s tears wept over lost souls (Grand Rapids; Baker, 1978); William Greenhill, “What must and can persons do toward their own conversion”, in: Puritan sermons: 1659-1689; the momirtg exercises at Cripplegate (Wheaton: Richard Owen Roberts, 1981), 1:38-50.

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ser reforçadas por um ministério personalizado por meio da catequese — a instrução nas doutrinas da Bíblia mediante o uso de catecismos. A catequese puritana era importante de várias maneiras: • Dezenas de puritanos se esforçaram para alcançar crianças e jovens, escre­ vendo livros de catecismo que explicavam as doutrinas cristãs fundamentais por meio de perguntas e respostas apoiadas na Bíblia.” Por exemplo, John Cotton (1585-1652) deu a seu catecismo o título Miífe^or babes, dm w noutofthebreasts ofboth Testaments [Leite para criancinhas extraído dos seios de ambos os Tes­ tamentos].*^ Outros puritanos incMram no título de seus catecismos expressões como "os pontos principais e básicos”, "a síntese da religião cristã”, os “váru s tópicos” ou “primeiros princípios” da religião e “o ABC do cristianismo”, lan Green mostra o alto nível de continuidade que existe nos livros puritanos de catecismo devido às suas fórmulas e temas recorrentes, como o Credo dos Apóstolos, os Dez Mandamentos, o Pai-Nosso e os sacramentos. Ele sugere que não havia discrepância substancial mesmo entre a mensagem simples de muitas obras básicas e o conteúdo mais exigente de catecismos mais elaborados.*^ Em vários níveis na igreja, bem como nas casas dos paroquianos, pastores purita­ nos catequizavam a fim de explicar os ensinos fundamentais da Bíblia, ajudar os jovens a memorizar a Bíblia, tornar mais compreensíveis os sermões e os sacramentos, preparar os filhos da aliança para a confissão de fé, ensiná-los a defender a fé contra o erro e ajudar os pais a ensinar os próprios filhos.*“ • A catequese era relacionada aos dois sacramentos. Quando o Catecismo Maior de Westminster fala de “aperfeiçoar” o próprio batismo, refere-se a uma tarefa de ensino durante toda a vida em que catecismos, como o Catecismo Menor, desempenham um papel importante.'^ William Perkins afirmou que "Veja George Edward Brown, “Catechists and catechisms of early New England” (tese de doutorado, Boston University, 1934); R. M. E. Paterson, “A study in catechisms of the Reformation and post-Reformation period” (dissertação de mestrado, Durham University, 1981); Maigarita Patricia Hutchinson, “Religious change: the case of the English catechism, 1560-1640” (tese de doutorado, Stanford University, 1984); Ian Green, The Christian’s ABC: catechisms and catechizing in England c. 1530-1740 (Oxford; Clarendon, 1996). 'Uohn Cotton, Milk for babes, drawn out of the breasts of both Testaments (London: J. Coe para Henry Overton, 1646). '^Green, The Christian’s ABC, p. 557-70. ’’Cf. W. G. T. Shedd, Homiletics and pastoral theology (1867; reimpr., London: Banner of Truth Trust, 1965), p. 356-75. ■ '®AAssembleia de Westminster quis estabelecer um único catecismo e uma única confissão de fé para a In^aterra e a Escócia, mas uma série de catecismos continuou sendo escrita após a redação das normas de Westminster; veja J. Lewis Wilson, “Catechisms, and their use among the Puritans”, in: One steadfast high intent (London: Puritan and Reformed Studies Conference, 1966), p. 41-2.

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OS ignorantes deviam memorizar seu catecismo, T h e fo u n d a tio n o f C hristian religio n [O alicerce da religião cristã], para estarem “em condições de receber

a ceia do Senhor com consolo”. E William Hopkinson escreveu no prefácio de A p rep a ra tio n in to th e w a ie o f life [Uma preparação para o caminho da vida]

que ele labutou para conduzir seus catecúmenos “ao uso correto da ceia do Senhor, uma confirmação especial das promessas de Deus em Cristo”.'^ • A catequese fortalecia o culto doméstico. Quanto mais seus esforços pú­ blicos para purificar a igreja eram esmagados, mais os puritanos se voltavam para o lar como um baluarte para a instrução e influência religiosas. Eles es­ creveram livros sobre o culto doméstico e a ordem divina para o governo da família. Robert Openshawe prefaciou seu catecismo com este apelo: “para os acostumados a perguntar como se devem gastar as longas noites de inverno [a] se voltarem para o cântico de salmos, ao ensino dos membros de sua casa e à oração com eles”.'^ Na época da Assembleia de Westminster, na década de 1640, os puritanos já consideravam a falta de culto doméstico e de catequese da família um indício de vida não convertida.'® • A catequese era uma maneira de dar sequência aos sermões e uma forma de alcançar os vizinhos com o evangelho. Conta-se que Joseph Alleine (1634­ 1668) dava sequência a seu trabalho de domingo por cinco outros dias da semana, catequizando membros da igreja, bem como tentando alcançar com o evangelho as pessoas que encontrava nas ruas.” Richard Baxter (1615-1691), cuja visão de catequizar é exposta em O p a sto r a prova do, afirmou que chegou à dolorosa conclusão de que “algumas pessoas ignorantes, que por muito tempo têm sido ouvintes infrutíferos, têm ganhado mais conhecimento e remorso de consciência em meia hora de explanação pessoal do que em dez anos ouvindo pregações públicas”.® Diante disso, Baxter convidava as pessoas a ir à sua casa todas as quintas-feiras à noite para analisar os sermões do “sábado” [domingo] anterior e orar por bênçãos com base nessas mensagens. • A catequese era útil no exame da condição espiritual das pessoas e no encora­ jamento e na admoestação para que fugissem para Cristo. A cada semana, Baxter e seus dois auxiliares passavam dois dias inteiros catequizando paroquianos em “William Hopkinson, A prepamtion into the waie of life, with a direction into the RIGHTE use of the Lordes Supper (London: Ihon Kyngston, 1583), sig. A.3. ‘'Robert Openshawe, Short questions and answeares (London: Thomas Dawson, 1580), A.4. ‘'Wilson, “Catechisms, and their use among the Puritans”, p. 38-9. ‘“C. Stanford, Joseph AUeine: his companions and times (London: Charles Stanford, 1861). “Richard Baxter, Gidlas Salvianus: the reformed pastor: shewing the nature of the pastoml work (1656; reimpr., New York: Robert Carter, 1860), p. 341-468 [edição em português: Opastor aprovado, tradução de Carlos Antônio da Rocha (São Paulo: PES, 2006)].

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suas casas. Packer conclui: “Fazer com que a prática da catequese pessoal se elevasse do nível de disciplina propedêutica para crianças para o nível de aspecto permanente da evangelização e do cuidado pastoral de todas as idades foi a principal contribuição de Baxter para o desenvolvimento dos ideais puritanos de ministério”.^’ Igrejas e escolas puritanas consideravam a instrução catequética tão importante que algumas até mesmo ofereciam catequistas oficiais. Na Universidade de Cambridge, William Perkins serviu de catequista no Christ’s College, e John Preston (1587-1628), no Emmanuel College. De acordo com Thomas Gataker (1574-1654), o ideal puritano era que uma escola fosse uma “pequena igreja”, e seus professores, “catequistas particulares”.“ O ministério puritano, executado mediante pregação, exortação pastoral e catequese, exigia tempo e habilidade.“ Os puritanos não buscavam conversões rápidas e fáceis; estavam comprometidos com a edificação de crentes durante toda a vida, crentes cujo coração, mente, vontade e afeições foram conquis­ tados para o serviço de Cristo.“ O trabalho árduo do catequista puritano era grandemente recompensado. Richard Greenham (c. 1542-1594) afirmou que o ensino de catecismo edificou a igreja reformada e causou sérios danos ao catolicismo romano.^® Os purita­ nos nos ensinam que devemos perseverar na catequese, mesmo quando não conseguimos ver os frutos. “Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o reencontrarás” (Ec 11.1).

Ore sem cessar Os puritanos nos mostram a necessidade de sermos homens que oram a Deus. Eles eram verdadeiramente “homens do recôndito”. Em seus recônditos — o lugar especial e particular dedicado à oração no dormitório, no sótão ou no cam­ po — erguiam a voz e gritavam bem alto ao Deus dos céus, pedindo a bênção divina sobre si mesmos, seu ministério, suas famílias, suas igrejas e sua nação. Ao contrário de muitos pastores contemporâneos, a qualidade da vida espiritual dos pastores puritanos parece ter sido uniformemente elevada.“ Os puritanos foram grandes pregadores acima de tudo porque também foram “Packer, A quest for godliness, p. 305. “Thomas Gataker, David’s instructor (London, 1620), p. 18; veja tb. B. Simon, “Leicestershire Schools 163S-40”, British Journal of Educational Studies (Nov. 1954): 47-51. “Thomas Boston, The art of manfishing: a Puritan’s vieu; of evangelism (reimpr., Fearn: Christian Focus, 1998), p. 14-5. . “Thomas Hooker, The poor doubting Christian drawn to Christ (1635; reimpr., Worthington: Maranatha, 1977). “Richard Greenham, A short forme of catechising (London: Richard Bradocke, 1599). “Veja Benjamin Brook, The lives of the Puritans (1813; reimpr., Pittsburgh: Soli Deo gloria, 1994), 3 vols.; William Barker, Puritan profiles (Fearn: Christian Focus, 1996).

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grandes intercessores, lutando com Deus para obter a bênção divina sobre seus sermões. Richard Baxter afirmou: “A oração precisa sustentar nosso tra­ balho, bem como nossa pregação. Não prega de coração ao seu povo aquele que não ora fervorosamente por ele. Se não persuadirmos Deus a lhes dar fé e arrependimento, jamais os persuadiremos a crer e se arrepender”.^^ Robert Itaill (1642-1716) escreveu: “Alguns pastores com menos dons e capacidades têm mais êxito do que outros que estão bem acima deles no que diz respeito a habilidades. Isso acontece não porque pregam melhor, mas porque oram mais. Muitos bons sermões se perdem por falta de muita oração durante a preparação”.^® As orações pessoais do pastor precisam temperar as mensagens que ele prega no púlpito. Os pastores devem levar profundamente a sério a admoes­ tação de Richard Sibbes (1577-1635): “Com frequência, um ministro de Cristo goza do mais elevado prestígio entre os homens devido à execução da metade de seu trabalho [pregação], enquanto Deus se desagrada dele pela negligência da outra metade [oração] ” (cf. At 6.4). À semelhança dos puritanos, guarde com zelo o seu tempo devocional pessoal. Coloque suas prioridades em realidades espirituais e eternas. Esteja certo de que, assim que você deixar de vigiar e orar, estará cortejando a catás­ trofe espiritual. Conforme John Flavel (1628-1691) afirmou, esteja plenamente consciente de “que um homem pode ser objetivamente um [homem] espiritual e 0 tempo todo ser sübjetivam ente um homem carrud”}^ Creia, como John Owen assinalou, que “nenhum homem prega bem aquele sermão sem primeiro 0 pregar a seu próprio coração [...] Se a palavra não habitar poderosamente em nós, não sairá poderosamente d e nós”.®®

Lide com as tribulações de um modo cristão Os puritanos nos mostram como lidar com as tribulações. Considere os irmãos escoceses Ebenezer (1680-1754) e Ralph Erskine (1685-1752). Além das con­ trovérsias religiosas que por vinte e cinco anos tolheram a alegria deles no ministério, ambos suportaram muita dor no lar. Ebenezer Erskine enterrou a primeira esposa quando ela tinha trinta e nove anos; a segunda esposa faleceu três anos antes de ele próprio falecer. Ele também perdeu seis dos quinze filhos. "Baxter, The reformed pastor, p. 123. ^Robert iraill, “By what means may a minister best win souls", in; The works of the late reverend Robert Thiill (1810; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth Tlust, 1975), 1:246. "John Flavei, The touchstone of sincerity, or the signs of grace and the symptoms of hypo­ crisy, in; The works of John Flavel (1820; reimpr., London: Banner of Tluth TTust, 1968), 5:568. “John Owen, "The duty of a pastor”, in; The works ofJohn Owen (1850; reimpr., Edinburgh: Banner of Truth T-ust, 1976), 9:455; The true nature of a gospel church, in: IVorfes, 16:76.

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Ralph Erskine enterrou a primeira esposa quando ela estava com trinta e dois anos e perdeu nove dos treze filhos. Os três filhos que chegaram à idade adulta entraram no ministério, mas um deles ajudou a destituir o próprio pai. Os Erskine entenderam bem que Deus tem “apenas um filho sem pecado, mas nenhum sem aflições”, que é como um puritano o expressou. Os diários deles, tão típicos dos puritanos, estão repletos de submissão cristocêntrica em meio à aflição. Quando a primeira esposa estava no leito de morte e ele tinha acabado de enterrar vários filhos, Ebenezer Erskine escreveu: E x p e r im e n te i a v a ra d e D eu s p o u s a n d o s o b re m in h a fa m ília c o m o g ra n d e so frim e n to d e u m a e sp o sa q u erid a, so b re q u e m o S e n h o r p ô s a m ã o e em q u em a su a m ã o ain d a p o u sa p e sa d a m e n te . M as, a h !, se e u p u d e sse a n u n c ia r os lou v o res d e su a g ra ç a g ra tu ita , q u e n e ste d ia m e fez u m a n o v a e im e re cid a v isita. E le tem e sta d o co m ig o ta n to a só s q u an to e m p ú b lico . D esco b ri o s a ro m a s su a v e s d a R osa d e S a ro m , e a m in h a a lm a foi rev ig o rad a c o m u m a n o v a v isã o d ele n a e x ce lê n cia de su a p e sso a c o m o E m an u el e n a su ficiên cia d e su a ju stiça ete rn a . M inh as esp eran ças d e sv a n e ce n te s sã o re a n im a d a s p ela v isã o dele. M in h as a m a rra s são so lta s, e m eu s fard o s de a fliçã o se to rn a m lev es, q u an d o ele a p a re c e [ ...] “ E is-m e aq u i; q u e ele fa ç a co m ig o o q u e lhe p a re c e r b e m ”. Se ele m e c h a m a r p a ra ir a té a s ch e ia s do Jo r d ã o , p o r q u e n ã o , se essa fo r su a sa n ta v o n tad e? A p en as sê co m ig o . S enh or, e q u e a tu a v a ra e o te u c a ja d o m e c o n so le m , e e n tã o e u n ã o tem erei a tra v e ssa r o v a le d e to rm e n ta s, isso m e s m o , n ã o tem erei a tra v e ssa r o v a le d a so m b ra da m o rte .“

Podemos aprender com os puritanos que precisamos da aflição para nos humilhar (Dt 8 .2 ), para nos ensinar o que é o pecado (Sf 1.12) e para nos levar a Deus (Os 5.15). "A adversidade é o pó de diamante com que o céu dá polimento em suas joias”, escreveu Robert Leighton (1611-1684).“ Encare a vara da aflição divina como o meio que Deus usa para gravar mais perfeita­ mente em você a imagem de Cristo, a fim de que você seja um participante da justiça e santidade divinas (Hb 12.10,11). Deixe que suas dificuldades o levem a andar pela fé e a afastá-lo do mundo. Conforme Thomas Watson escreveu: "Deus quer que o mundo fique pendurado como um dente solto, o qual, sendo facilmente arrancado, não nos incomoda muito”.“ Busque a graça de permitir “Donald Fraser, The life and diary o f the reverend Ebenezer Erskine (Edinburgh: William Oliphant, 1831), cap. 6. *^Robert Leighton, The whole works o f Robert Leighton (Philadelphia: G. S. Appleton, 18S1), citação extraída de “Inspirational quotes A to F”, Hope triumphant, disponível em: http://www. hopetriumphant.com/inspirational_quotes_ a_to_f.htm, acesso em: 3 fev. 2011. ’^Thomas Watson, A divine cordial (Wilmington: Sovereign Grace, 1972), disponível em: “Growing pains: how affliction works for the good of those who love God”, Mr. Renaissance, disponível em: http://www.mrTena.com/misc/pains.shtml, acesso em: 3 fev. 2011.

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que as aflições elevem sua alma ao céu e pavimentem seu caminho para a ^ó ria (2Co 4.7). Se no momento você está passando por profundas tribulações, aprenda com os puritanos a não superestimar tais tribulações. Leia A lifting up for tke downcast [Um alento para os abatidos], de William Bridge (1600-1671), A mute Christian. under the rod [Um cristão mudo sob a vara], de Thomas Brooks (1608­ 1680), e A bm ised reed [Uma cana quebrada], de Richard Sibbes. Lembre-se de que a vida é curta e a eternidade é para sempre. Pense mais em sua coroa futura e em sua comunhão eterna com o Deus triúno, com os santos e com os anjos e menos em suas tribulações temporárias. Conforme escreveu John TVapp (1601-1669), “Aquele que está a caminho de ser coroado não precisa se incomodar muito com o dia chuvoso”.^“ Você é apenas um inquilino aqui; se você é crente, uma mansão espera por você na glória. Não se desespere. A vara do pastor é segurada por uma mão paterna de amor, não por uma mão punidora de juízo. Considere a Cristo nas aflições dele: elas não foram muito mais terríveis do que as que você experi­ menta, e ele não era totalmente inocente? Considere como ele persevera por você, como ora por você, como ajuda você a alcançar os objetivos que tem para você. No final, suas aflições irão glorificá-lo. Como George Swinnock (c. 1627-1673) gracejou; “Uma pessoa santificada é como um sino de prata; quanto mais for golpeado, melhor soa”.^® Se você é pastor. Deus usará suas tribulações para torná-lo também um pregador melhor, assim como fez com os puritanos. George Whitefield (1714­ 1770) escreveu: P asto res n u n ca e s c re v e m o u p re g a m tã o b e m c o m o q u an d o o fa z e m so b a c r u z ; o E spírito e a g ló ria de C risto re p o u s a m e n tã o so b re eles. S em d ú v id a, foi isso que to rn o u o s p u rita n o s [ ...] lu z e s tã o ard e n te s e b rilh an tes. Q u an d o exp u lso s pela te n e b ro sa lei de B a rto lo m e u [o E s ta tu to d e U n iform id ad e d e 1 6 6 2 ] e fo rçad o s a d e ix a r su a s p o s içõ e s e ir p re g a r e m celeiro s e n o s c a m p o s , em ca m in h o s e a ta lh o s, e s cre v e ra m e p re g a ra m d e u m a fo rm a to d a e sp e cia l, c o m o h o m e n s co m au to rid ad e. E m b o ra m o rto s , p o r seu s e scrito s eles ain d a falam ; u m a u n çã o p ecu liar o s a c o m p a n h a a té e ste e x a to m o m e n to .’ ^

A “unção peculiar” a que Whitefield se refere é uma unção cristocêntrica e empírica que resulta de aprender a arte do contentamento na escola da aflição. Debaixo da aflição, os puritanos tiveram ricas experiências de contentamento “John TTapp. Commentary on the New Tèstament, Answers.com, disponível em: http://www. answers.com/topic/john-trapp-1, acesso em: 3 fev. 2011. D. E. Thomas, oig., The golden treasury ofPurüon quotations (Chicago: Moody, 1975), p. 15. “George Whitefield, “A recommendatory preface to the works of Mr. John Bunyan", in: The works of George Whitefield (London: para Edward e Charles Dilly, 1771), 4:306-7.

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espiritual e consolações em Cristo. De igual maneira, precisamos ter essa experiência. Leia The rare jewel o f Christian contentm ent [A joia rara do con­ tentamento cristão], de Jeremiah Burroughs (c. 1600-1646). Ele o ensinará a transformar a tribulação em contentamento. Então, na próxima vez que Satanás, outros ou a sua própria consciência o esbofetearem no ministério, em vez de reclamar, leve essas bofetadas a Cristo e peça-lhe que as santifique pelo seu Espírito para que você seja um modelo de contentamento espiritual para o rebanho que ele lhe deu.

Repreenda o orgulho Os puritanos nos mostram como lidar com o orgulho. Deus odeia o orgulho (Pv 6.16,17). Odeia de coração o oigulhoso, amaldiçoa-o com a boca e casti­ ga-o com a mão (SI 119.21; Is 2.12; 23.9). O orgulho foi o primeiro inimigo de Deus. Foi 0 primeiro pecado no Paraíso e o último que deixaremos na morte. “O orgulho é a camisa da alma, a primeira peça a vestir e a última a despir”, escreve George Swinnock.*^ Como pecado, o orgulho é ímpar. A maioria dos pecados nos afasta de Deus, mas o orgulho é um ataque direto contra Deus. Henry Smith (1560­ 1591) afirmou que o orgulho ergue nosso coração acima de Deus e contra Deus. O orgulho procura destronar Deus e entronizar a si mesmo. Os pasto­ res puritanos não se consideravam imunes a esse pecado. Vinte anos depois da conversão, Jonathan Edwards (1703-1758) se queixou das “insondáveis e infinitas profundezas de orgulho” deixadas em seu coração. O orgulho arruina nosso trabalho. Conforme Richard Baxter observou, “Quando o orgulho escreve o sermão, ele vai conosco para o púlpito. Ele de­ termina a entonação, dá ritmo à mensagem, nos distancia daquilo que pode ser desagradável às pessoas. Coloca-nos em busca de aplausos vãos por nossos ouvintes. Faz os homens buscarem a si mesmos e sua própria glória”.“ O orgulho é complexo. Jonathan Edwards afirmou que ele assume muitas formas e modos e envolve o coração como as camadas de uma cebola: quando você tira uma camada, existe outra por baixo. Nós pastores, que estamos sempre sendo avaliados pelo público, temos uma propensão particular para o pecado do orgulho. Como Richard Greenham adverte, “Quanto mais o homem é piedoso e quanto mais graças e bênçãos de Deus estão sobre ele, maior é sua necessidade de orar, pois Satanás está mais ocupado contra ele e porque ele está mais propenso a se encher de uma santidade envaidecida”.^® “ T h o m as, Puritan quotations, p. 2 2 4 . “ R ichard B axter, The reformed pastor (N ew York: Robert C arter & B roth ers, 1 8 6 0 ), p. 21 2 -2 6 . “ R ichard G reen ham , Grave counsels and godlie observations, in: The works o f Richard

Greenham, p. 6 2 .

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O orgulho se alimenta de quase tudo: uma dose satisfatória de capa­ cidade e sabedoria, um único elogio, uma época de prosperidade notável, um chamado para servir a Deus em uma posição de prestígio, até mesmo a honra de sofrer pela verdade. “Esse pecado é difícil de matar de fome, pois consegue sobreviver com quase qualquer coisa”, escreve Richard Mayo (c. 1631-1695).« Os puritanos afirmavam que, se pensamos que somos imunes ao pecado do orgulho, devemos nos perguntar o seguinte: quão dependentes somos do louvor dos outros? Será que estamos nos preocupando mais com a reputação de piedade do que com a própria piedade? O que presentes e recompensas recebidos de outros nos dizem sobre o nosso ministério? Como respondemos às críticas? Um homem piedoso luta contra o orgulho, ao passo que um homem mun­ dano alimenta o orgulho. Cotton Mather (1663-1728) confessou, quando o orgulho 0 encheu de amargura e confusão diante do Senhor, o seguinte: “Eu me esforcei por ver meu orgulho como a própria imagem do Diabo, contrária à imagem de Cristo e à sua graça; como ofensa contra Deus e como entriste­ cimento do seu Espírito; como a loucura e a insensatez mais irracionais para alguém que não tinha nada particularmente excelente e que tinha uma natureza tão corrupta”.'“ Thomas Shepard (1605-1649) também lutou contra o orgulho. No registro de 10 de novembro de 1642 de seu diário, Shepard escreveu: “Fiz um jejum pessoal para obter luz para ver a plena glória do evangelho [...] e para subjugar todo meu orgulho remanescente no coração”.« Você consegue se identificar com esses pastores puritanos em sua luta contra o orgulho? Você se importa o suficiente com outros cristãos para ad­ moestá-los amorosamente sobre esse pecado? Quando John Eliot (1604-1690), missionário puritano, observou que um colega tinha um conceito alto demais de si mesmo, lhe afirmou: “Estuda a mortificação, irmão; estuda a mortificação”.« Como lutamos contra o orgulho? Por acaso compreendemos o quão profun­ damente está arraigado em nós e o quão perigoso ele é? Será que chegamos a nos censurar como o fez o puritano Richard Mayo: “Deveria estar orgulhoso aquele homem que tem pecado como tu tens pecado, que tem vivido como tu tens vivido e que tem desperdiçado tanto tempo, tem abusado de tantas misericórdias, tem se omitido em tantos deveres e tem negligenciado meios “"Cf. Richard Mayo, "What must we do to prevent and cure spiritual pride?”, in: Puritan sermons J6S9-26S9, 3:378-93. ^'Charles Bridges, The Christian ministry (1830; reimpr., London: Banner of lïuth Trust, 1959), p. 152. "Michael McGiffert, org., GocTs plot: Puritan spirituality in Thomas Shepard's Cambridge (Amherst: University of Massachusetts Press, 1994), p. 116-7. "Citação de Bridges, The Christian ministry, p. 128.

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tão grandiosos? Deveria estar orgulhoso aquele que entristeceu tanto o Espírito Santo, que violou tanto a lei de Deus, que desonrou tanto o nome de Deus? Deveria estar orgulhoso aquele homem que tem um coração como o teu?”.“^ Se você deseja matar o orgulho mundano e viver em humildade piedo­ sa, olhe para o seu Salvador, cuja vida, segundo Calvino, foi uma série de sofrimentos. Em nenhum lugar a humildade é mais cultivada do que no Getsêmani e no Calvário. Quando o orgulho o ameaçar, considere o contras­ te entre uma pessoa orgulhosa e nosso humilde Salvador. Cante com Isaac Watts (1674-1748): Q u an d o e x a m in o a m a ra v ilh o sa c r u z e m q u e o P rín cip e d a g ló ria m o rre u , co n sid e ro p erd a m e u s lu cro s m a is v alio so s, e la n ço d e sp rezo so b re to d o m e u o rg u lh o .

Aqui seguem outras maneiras de subjugar o orgulho, aprendidas com os pu­ ritanos e seus sucessores:. • Encare cada dia como uma oportunidade de esquecer-se de si mesmo e ser­ vir aos outros. Para os pastores. Abraham Booth (1734-1806) escreve: "Não te esqueças de que tua obra é em sua totalidade pastoral e não legislativa, que tu não és um senhor na igreja, mas um servo”.^® O ato de servir é inerentemente humilhante. • Busque um conhecimento mais profundo de Deus, de seus atributos e de sua glória. Jó e Isaías nos ensinam que nada é tão humilhante quanto conhecer a Deus (Jó 42; Is 6). • Leia as biografias de grandes santos, como Joum als [Diários] e The üfe of David Brainerd [A vida de David Brainerd], de Whitefield, e Early years [Os primeiros anos], de Spurgeon. Dirigindo-se a pastores, Martyn Lloyd-Jones afirma: “Se isso não o trouxer à realidade, então declaro que você é apenas um mercenário e sem esperança”.^® “ Richard Mayo. “What must we do to prevent and cure spiritual pride?”, in: Puritan sermons 1659-1689, 3:390. , ^’Abraham Booth, “Pastoral cautions", in: John Brown, org.. The Oiristian pastor's manual (reimpr,, Pittsburgh: Soli Deo gloria, 1990), p. 66. “D. Martyn Lloyd-Jones, Preaching and preachers (Grand Rapids: Zondervan, 1971) p. 256 [edição em português: Pregação e pregadores. 2. ed., tradução de João Bentes Marques (São José dos Campos: Fiel, 2008)].

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• Lembre-se diariamente de que “o orgulho precede a destruição, e a altivez do espírito precede a queda” (Pv 16.18). • Ore por humildade. Lembre-se de como Agostinho respondeu à pergunta “Quais são as três graças de que um pastor mais precisa?”: “Humildade. Hu­ mildade. Humildade • Medite muito sobre a seriedade da morte, a certeza do dia do juízo e a imensidão da eternidade.

Dependa do Espírito Em tudo 0 que afirmaram e fizeram, os puritanos nos mostram nossa profunda necessidade de dependência do Espírito Santo. Eles sentiam intensamente a grandeza da conversão e sua própria incapacidade de levar alguém a Cristo. “Deus nunca pôs sobre ti a tarefa de converter aqueles a quem ele te envia. Não. Divulgar o evangelho é o teu dever”, afirmou William Gurnall (1616-1679) a pastores.^ E Richard Baxter escreveu: “A conversão é um tipo de trabalho diferente do que a maioria das pessoas tem consciência. Não é pouca coisa levar uma mente terrena ao céu e mostrar ao homem as amáveis e superiores qualidades de Deus, ser tomado de tal amor por esse homem que jamais pode ser abafado, fazê-lo correr para se refugiar em Cristo e gratamente acolhê-lo como a vida de sua alma, fazer o próprio propósito e inclinação da vida desse homem mudarem, a ponto de ele renunciar àquilo que considerava sua felici­ dade, e colocar sua felicidade onde nunca havia colocado antes”.“*® Os puritanos estavam convencidos de que tanto o pregador quanto o ou­ vinte dependem totalmente do trabalho do Espírito para operar a regeneração e a conversão quando, como e em quem ele quiser.™ O Espírito traz a presença de Deus ao coração humano. Ele convence pecadores a buscarem a salvação, renova vontades corruptas e faz verdades bíblicas criarem raízes em corações de pedra. Thomas Watson descreveu isso da seguinte maneira: “Pastores batem à porta dos corações dos homens, o Espírito vem com uma chave e abre a porta”. E Joseph Alleine advertiu: “Nunca penses que podes te converter. Se em algum ‘•'Augustine, The confessions of St. Augustine (Brewster: Paraclete, 2006) [edição em portu­ guês: Agostinho, Confissões, tradução de Maria Luiza Jardim Amarante (São Paulo: Paulus, 1997)]. “William Gurnall, The Christian in complete armour (1662; reimpr., London: Baimer of Ttuth Thist, 1964), p. 574 (segunda paginação). ®Cf. Richard Baxter, Reformed pastor, abridged (1862; reimpr., London: Banner of TTuth Tirust, 1974), p. 94-6, 114-6. “Packer, A quest for godliness, p. 296-9. ’’Thomas Watson, The select works of Rev. Thomas Watson (New York: Robert Carter & Brothers, 1856), p. 154.

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momento quiseres ter uma conversão salvadora, precisas abandonar a esperança de fazê-lo em tua própria força. É uma ressurreição dos mortos (Ef 2.1), uma nova criação (G16.15; Ef 2.10), uma obra de onipotência absoluta (Ef 1.19)”.“ Você precisa estar convencido de que a ação regeneradora do Espírito é, como John Owen escreveu, “infalível, vitoriosa, irresistível e sempre eficaz”; de que ela “remove todos os obstáculos, supera todas as oposições e produz infalivelmente o resultado pretendido”.“ Todos os modos de ação que deixam implícita outra doutrina não são bíblicos. J. I. Packer afirma que “todos os recursos para exercer pressão psicológica a fim de apressar ‘decisões’ devem ser evitados, sendo, na verdade, considerados tentativas presunçosas de se intrometer na esfera do Espírito Santo”. Ele mostra em seguida que tais pressões podem até mesmo ser prejudiciais, pois, embora “possam produzir a forma exterior de ‘decisão’, não conseguem produzir a regeneração nem uma mu­ dança de coração, e, quando as ‘decisões’ esfriarem, aqueles que as tomaram se revelarão ‘endurecidos para o evangelho’ e antagônicos”. Packer conclui em um estilo puritano: “A evangelização deve ser vista, pelo contrário, como um empreendimento de longo prazo de ensino e instrução pacientes, em que os servos de Deus buscam simplesmente ser fiéis na pregação da mensagem do evangelho e na sua aplicação à vida humana, deixando para o Espírito de Deus a tarefa de, à sua própria maneira e no seu próprio ritmo, atrair homens à fé por meio dessa mensagem”.“ Lembre-se: o Espírito Santo precisa abençoar e abençoará a pregação fiel tanto com a conversão de incrédulos quanto com o crescimento dos crentes na graça. A Palavra de Deus alcançará seu propósito por meio de seu Espírito (Is 55.10,11; Jo 3.8). O Catecismo Maior de Westminster (pergunta 155) afirma que 0 Espírito de Deus torna “em especial a pregação da Palavra um meio eficaz de iluminar, convencer e humilhar pecadores; de tirá-los para fora de si mesmos e atraí-los para Cristo; de conformá-los à sua imagem e subjugá-los à sua vontade; de fortalecê-los contra as tentações e corrupções; de edificá-los na graça e estabelecer seus corações em santidade e consolo mediante a fé para a salvação”.

Conclusão: imite a espiritualidade puritana Há muito mais a aprender com os puritanos — a maneira que promoveram a autoridade das Escrituras, o evangelismo bíblico, a reforma da igreja, a espi­ ritualidade da lei, a batalha espiritual contra a natureza pecaminosa, o temor “ Joseph Alleine, An alarm to the unconverted (Charlestown: Samuel Etheridge, 1807), p. 29-30. “ John Owen, Pneumatologia, or a discourse concerning the Holy Spirit, in: The works of

John Owen, 3:317ss. “ Packer, A quest for godliness, p. 163-4.

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filial a Deus, o pavor do inferno e as glórias do céu — mas este capítulo já está suficientemente longo. Resumindo, aconselho a você, assim como a mim mesmo: imite a espiritualidade puritana. Façamos a nós mesmos perguntas como estas: Temos sede de glorificar o Deus triúno, como a tiveram os purita­ nos? Estamos motivados pela verdade bíblica e pelo fogo bíblico? Partilhamos da visão puritana da necessidade vital de conversão e de estar vestidos com a justiça de Cristo? Não basta ler os puritanos. Despertar o interesse nos puritanos não é a mesma coisa que um reavivamento do puritanismo. Precisamos da disposição íntima dos puritanos: precisamos ter em nosso coração, nossa vida e nossas igrejas a piedade autêntica, bíblica e inteligente que eles demonstraram. Você quer viver piedosamente em Cristo Jesus como os puritanos? Fará mais do que estudar a teologia deles, discutir suas idéias, lembrar suas conquistas e censurar seus fracassos? Buscará o grau de obediência à Palavra de Deus que eles se esforçavam por alcançar? Servirá a Deus como eles o serviam? Viverá com um olho na eternidade como eles fizeram? "Assim diz o Senhor: Ide às ruas, olhai e peiguntai pelos caminhos antigos, qual é o bom caminho, e andai por ele; e achareis descanso para vós” (Jr 6.16).

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P O S F A C IO □□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□aaaaaanaaaDaaaaaaaanaaQanDnanaannaao

Capítulo 60 □□□□DO□DaaaaDaaDDDDa□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□DD

Uma palavra final □□□□□DD□□□□□□□□□□□□□□□OD□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□□

A vida na Inglaterra puritana não era fácil. Dez dos onze filhos de John Owen (1616-1683) morreram na infância, e o que sobreviveu até a idade adulta também faleceu antes do pai. O atendimento médico era bastante primitivo se comparado aos padrões atuais; de que outra forma seria possível explicar 0 fato de Richard Baxter (1615-1691) engolir uma bala de ouro esperando por “efeitos extraordinários” que teria em sua saúde? Bem mais sérios e peculiares àquela época e lugar foram as agitações, perturbações, destruições e mortes provocadas por uma guerra civil que se estendeu ao longo de décadas, a constante ameaça de invasão e conquista pelas potências católico-romanas hostis da Europa, -0 perigo sempre presente de incêndio nas grandes cidades e os episódios recorrentes de epidemias mortais que assombravam a Europa naqueles tempos. Ser puritano significava, em essência, ser obrigado a enfrentar oposição e suportar graus variados de perseguição por guardar as coisas ensinadas e ordenadas nas Escrituras. É verdade que houve uma breve época áurea para os puritanos em meados do século 17, mas por volta de 1660 as coisas mudariam drasticamente, e o puritanismo terminou derrotado ou pelo menos permane­ ceu estagnado; a Igreja da Inglaterra retornou à sua estrutura histórica, e os puritanos e seus descendentes foram exilados para o isolamento social e as desvantagens do não conformismo. Muitos dos descendentes retornaram à igreja da qual seus pais e avós haviam se separado por causa de sua consciência e da Palavra de Deus. Embora o puritanismo como movimento histórico tenha terminado, há, no entanto, elementos de puritanismo que devemos realmente recuperar na igreja atual. Por isso, este “posfácio” é de fato uma reflexão sobre os vários pontos positivos que foram demonstrados por teólogos puritanos e deveriam caracterizar os teólogos e os pastores atuais na igreja. Em primeiro lugar, os puritanos tinham a capacidade para entender as grandes verdades da fé cristã, a qual jamais foi subjugada pelo interesse deles nos detalhes e minúcias da teologia nem pelo esforço consciente em aplicar

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aquelas verdades a si mesmos, às suas igrejas, às suas comunidades e à sua nação. Destacavam-se tanto como pregadores do evangelho quanto como pa; tores do rebanho de Deus. Eles não eram seguidores de um grande teólogo em particular nem senhores de uma técnica espiritual esotérica nem guardiães servilmente sujeitos a algum corpo de tradições criadas pelo homem. Em segundo, os puritanos eram instruídos, cultos e zelosos defensores da educação não apenas da elite, mas de todo o povo de Deus. À semelhança de seus pares reformados na Europa continental, os teólogos puritanos se bene­ ficiaram de uma rigorosa formação básica em gramática, retórica e lógica. No momento em que entravam na universidade, esperava-se que tivessem um domínio completo de latim e grego e frequentemente também de hebraico. Essas habilidades eram altamente desenvolvidas antes de iniciarem o estudo formal de história, filosofia e teologia. Bem preparados com conhecimentos linguísticos básicos, os puritanos eram capazes de ler os escritos dos pais da Igreja, dos grandes teólogos medievais, dos reformadores e de seus próprios contemporâneos no continente europeu, todos no original grego ou latino. Suas habilidades como latinistas são bem atestadas; o uso dessa língua se manifesta, por exemplo, na maneira como constantemente invocam e aplicam em seus escritos as várias distinções filosóficas e teológicas. O uso de distinções caracteriza a abordagem metodológica dos teólogos puritanos, algo que eles partilhavam com os teólogos reformados da Europa continental. É verdade que o método afeta o conteúdo, mas não tanto quanto alguns estudiosos supõem. As várias distinções feitas por teólogos reformados lhes permitiu não apenas manter-se longe de erro, mas também afirmar a ver­ dade de forma clara e inequívoca. Sua teologia não era somente apologética e polêmica, mas também didática; as grandes verdades afirmadas durante a época da Reforma foram aclaradas e reforçadas na ortodoxia reformada e puritana da pós-Reforma. Não há dúvida de que João Calvino foi um gênio da teologia, mas os escolásticos reformados (p. ex., Jerome Zanchi [1516-1590], Francis Hirretin [1623-1687] e John Owen) tiveram a vantagem de se apoiar nos ombros de Calvino e nos de muitos outros teólogos reformados altamente conceituados que os antecederam. Assim, em sua teologia foram com frequência um pou­ co mais precisos do que Calvino e seus contemporâneos. É claro que isso é plenamente consistente com a máxima reformada de que a igreja reformada deve estar sempre se reformando.* Nas obras puritanas, há várias distinções que se revelam extremamente úteis para expor a verdade de certas doutrinas. Em seguida, os puritanos tinham um profundo conhecimento das Escrituras. Uma área em que jovens reformados atuais que estão sendo treinados para o ‘O lema é Ecdesia reformata, sed sim per reform anda: “A igreja reformada, mas sempre [em necessidade de] reforma [adicional]”. Cf. Confissão de Fé de Westminster, 25.5.

Uma palavra final

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ministério são especialmente fracos é o conhecimento da Bíblia. Parece que há só um conhecimento básico da Bíblia nos púlpitos, nos bancos das igrejas, nas faculdades e seminários cristãos de nossa nação. Em contraste com isso, os puritanos eram Bíblias ambulantes. Quem lê suas obras fica necessariamente impressionado com o imenso leque de passagens das Escrituras apresentadas como textos-prova, exemplos ou ilustrações. Na verdade, podemos questionar alguns de seus textos-prova ou a exegese de certas passagens, mas o fato é que eles chegaram a dominar o conteúdo das Escrituras. Não só isso, mas eles valorizavam a Bíblia acima de todos os escritos de meros homens. O filho de Thomas Goodwin atesta o conhecimento do pai, mas, mais importante ainda, seu amor pela Bíblia, sobretudo nos últimos anos de vida, quando leu muito, e os autores que ele mais apreciava e estudava eram Agostinho, Calvino, Musculus, Zanchi, Paraeus, Waleus, Gomarus, Altingius e Amesius, e, entre os escolásticos, Suarez e Estius. Mas as Escrituras eram aquilo que ele mais estudava; e, como ele havia provido sua biblioteca com uma coleção muito boa de comentaristas, fazia bom uso deles. E como as Escrituras são um tesouro inesgotável de conhecimento divino, por isso, em uma investigação ávida, comparando uma passagem com outra, ele descobriu aquelas verdades que não podem ser encontradas em outros autores.^

Teólogos reformados de hoje devem ser bem versados na teologia das várias tradições, mas esse conhecimento jamais pode ter prioridade sobre a leitura das Escrituras, o que talvez aconteça com mais frequência do que estamos dispostos a admitir. Por fim, os puritanos se lançaram a reformar a igreja na direção da verdadeira piedade e justiça prática. Embora seja evidentemente verdade que 0 puritanismo tinha um forte projeto político, ele sempre esteve arraigado na espiritualidade e sempre foi impulsionado pela teologia. Atualmente, faltamnos textos teológicos perspicazes que sejam ao mesmo tempo profundamente devocionais. Nessa área, os puritanos se destacavam. As obras de Thomas Goodwin (1600-1680) C h n sts e tfo rth [Cristo a p resen ta d o ] e T h e h ea rto fC h rist in h ea v en tow ards sin n e rs o n ea rth [O coração de Cristo no céu voltado para os pecadores na terra] exibem uma bela combinação de teologia escolástica protestante altamente desenvolvida com verdade devocional reconfortante, combinação que deixa os leitores muito esclarecidos, bem como tomados de emoção. John Owen também se destacou em unir essas duas ênfases. ^Thomas Goodwin Jr., “Memoir of dr. Thomas Goodwin”, in: Thomas Smith, org.. The works o f Thomas Goodwin (1861-1866; reimpr.. Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), 2:lxxiii-lxxiv.

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TEOLOGIA PURITANA

Qualquer uma de suas obras confirmaria isso, mas M ed ita tio n s a n d d is­ co u rses o n th e g lo ry o f C hrist [Meditações e estudos sobre a glória de Cristo]

mostra em particular como a cristologia precisa afetar nâo só a mente, mas também procurar atingir o coração. Ele escreve: “O propósito deste estudo é tão somente que, quando, ao contemplarmos a pessoa de Cristo, tivermos pela fé alcançado uma visão de sua glória, não consideremos isso uma mera noção de verdade com a qual concordamos — a saber, que ele é assim glorioso em si mesmo — , mas nos esforcemos por afetar nosso coração com isso, como aquilo em que está o nosso principal interesse; dessa maneira, isso será eficaz na transformação de nossa alma à sua imagem”.^ Outro bom exemplo de Owen é sua conhecida obra O n co m m u n io n w ith G od [Sobre a comunhão com Deus].^ Aqui temos o suprassumo da espiritualidade trinitária, mas, por outro lado, esse estudo também é um exemplo clássico do método da escolástica protestante. A obra de Stephen Charnock (1628-1680) T h e ex isten ce a n d a ttrib u tes o f G od [A existência e os atributos de Deus] tem abundância de “usos” e uma forte ênfase crístológica, mostrando que uma compreensão correta dos atributos de Deus tem imensa aplicação prática na vida dos crentes. É claro que Goodwin, Owen, e Charnock não foram os únicos: eles são somente exemplos destacados daquilo que foi entre os puritanos o método e estilo característicos de escrever teologia. Tudo isso sugere que a verdadeira devoção é construída sobre uma boa teologia e que uma boa teologia deve sempre despertar essa devoção. Tantas obras contemporâneas de teologia falham justamente nesse ponto; devemos agradecer aos puritanos por nos mostrarem como doutrina e devoção estão não apenas relacionadas, mas também estão n ecessa ria m en te relacionadas. Os puritanos combinavam teologia com devoção — uma distinção lamen­ tável, como se a própria teologia não fosse devocional — porque esses homens eram pregadores, chamados e separados para a proclamação da Palavra de Deus para o povo de Deus. A imensa maioria das obras puritanas que lemos são sermões que foram retrabalhados para serem impressos. Ou seja, a maio­ ria das obras puritanas são exposições da Palavra escrita de Deus pregadas por homens que procuravam alcançar a mente, o coração e a alma de seus ouvintes, ordenando a fé, prescrevendo o arrependimento e exaltando a Cristo. “Of the mortification of sin in believers” [Sobre a mortificação do pecado nos crentes], a excelente exposição de John Owen sobre Romanos 8.13, foi desen­ volvida com base em uma série de sermões pregados nas tardes de domingo para o corpo docente e alunos da Universidade de Oxford. Em nossa opinião. ’John Owen, Meditations and discourses on the glory o f Christ, in; The works o f John Owen (Edinbuigh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), 1:321. ’John Owen, The works o f John Owen (Edinburgh: Johnstone & Hunter, 1850-1855), vol. 2.

Uma palavra final

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os mais excelentes teólogos que a igreja tem produzido têm sido pastores e pregadores, e é assim que deve ser; afinal, tomando emprestado uma frase de Thomas Goodwin, Deus teve apenas um Filho e o fez ministro do evangelho. A igreja de hoje precisa de uma nova geração de pastores capazes e eruditos que conheçam sua Bíblia e conheçam o seu Deus. Por esse motivo, foi um pri­ vilégio escrever este livro, pois com o estudo dos escritos dos puritanos nosso coração foi estimulado ao mesmo tempo que nossa mente foi esclarecida, e esperamos que você tenha essa mesma experiência.

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