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Fernando A. Silveira – Introdução à Sistemática Biológica 26/03/10
Sistemática Biológica – Conceitos Básicos Antes de avançarmos em nosso curso, vamos apresentar alguns conceitos básicos que nos darão um entendimento melhor do escopo da disciplina que vamos estudar, auxiliandonos, ainda, a discutir com maior facilidade os seus temas. Começaremos por aquele que é o próprio título de nossa matéria – sistemática. Como em quase tudo na ciência, não há unanimidade sobre o que seja exatamente sistemática. Por isto, este campo da biologia já foi conceituado de muitas maneiras diferentes. Uma amostra dessa diversidade de definições é apresenta abaixo: Segundo Simpson (1961), por exemplo, a sistemática seria o estudo científico dos tipos e da diversidade dos organismos e de toda e qualquer relação entre eles. A definição de Simpson peca pela abrangência excessiva, já que, se a sistemática se ocupar de “toda e qualquer relação entre os organismos” ela deverá incluir, também, todas as relações ecológicas, como parasitismo, predação e competição, por exemplo, que não fazem parte do escopo da disciplina. Mayr (1969), embora concordando com a definição anterior de Simpson, apresentou um conceito mais simples para a sistemática que, segundo ele, seria a ciência da diversidade dos organismos. Neste caso, a definição fica vaga, já que ela não delimita o campo de atuação da sistemática – de novo, a sistemática não se ocupa de todos os aspectos do estudo da diversidade dos organismos. Ela exclui, por exemplo, as causas proximais da diversidade biológica nas comunidades, relacionadas, em geral, a fatores que atuam no tempo ecológico (em oposição ao tempo geológico) e que decorrem da interação direta entre espécies que co-habitam um determinado local. Tais fatores, de novo, são objetos de estudo da ecologia. Wiley, em 1981, tentou aperfeiçoar o conceito apresentado por Simpson, afirmando que a sistemática seria o estudo da diversidade dos organismos na medida em que ela é relevante para algum tipo de relação que se acredite haver entre populações, espécies ou táxons superiores. Na realidade, imprecisão e abrangência excessiva continuam permeando o conceito de sistemática de Wiley, tanto quanto os anteriores. Em 1994, em um documento chamado “Systematic Agenda 2000,” um consórcio de sistematas apresentou um conceito um pouco mais preciso. Segundo eles, a sistemática seria a ciência dedicada ao descobrimento, descrição e entendimento das espécies terrestres. Apesar, disto, ainda resta um ponto vago neste conceito – o que seria a “entendimento das espécies terrestres”? Note-se, ainda, que este último conceito não faz menção às “relações” entre os organismos. Este termo (relação), em sistemática, freqüentemente tem um significado intuitivo que é rapidamente apreendido pelos que lidam com os organismos vivos. Entretanto, sua significação mudou ao longo do tempo, à medida que nosso entendimento da origem da diversidade dos organismos avançou e à medida que os princípios da classificação dos organismos evoluíram. Em nossa época (séculos XX e XXI), elas já foram consideradas, por exemplo, como “relações evolutivas” (um termo ambíguo, como veremos mais à frente), simplesmente como “relações de similaridade” e, mais recentemente, como relações filogenéticas (ou cladísticas — veremos, mais tarde, o que vem a ser isto)... Por isto, é difícil definir essas relações num conceito de sistemática que englobe todas as escolas do pensamento sistemático. Apesar disto, a avaliação de um certo tipo de relação
2 entre os organismos vivos é parte central da sistemática contemporânea e, por isto, vamos usar, neste curso, o seguinte conceito: Sistemática é a ciência dedicada a inventariar e descrever a biodiversidade, e a entender as relações filogenéticas entre os organismos que a compõem. Este conceito não apenas explicita as relações (filogenéticas) que interessam à sistemática mas, ainda, coloca esta ciência dentro do quadro atual de preocupações que a cercam – a crise da biodiversidade que exige da sistemática o levantamento e descrição da diversidade orgânica, de forma a auxiliar na sua conservação e uso sustentável. Aceitando este enunciado, é preciso definir, então, o que são “relações filogenéticas”. Relações filogenéticas são as relações estabelecidas entre os organismos pela evolução. Segundo a teoria evolutiva de Darwin, todas as espécies existentes se originaram de uma única espécie ancestral, a primeira célula a surgir na terra, e estão interligadas por espécies ancestrais intermediárias (que existiram entre a primeira espécie e as espécies viventes da atualidade). Do ponto de vista filogenético, quanto mais recente for o ancestral comum a duas espécies, mais proximamente relacionadas elas são. Podemos, então, definir um outro termo: “filogenia”, que, na realidade possui dois significados. No primeiro deles, Filogenia é a parte da sistemática encarregada de entender as relações evolutivas (filogenéticas) entre os organismos; no segundo, Filogenia é o conjunto das relações filogenéticas de um dado grupo de orgnismos. O próximo termo que procuraremos delimitar é “taxonomia.” Antes de mais nada, é preciso esclarecer que taxonomia e sistemática foram, e às vezes ainda são, utilizados como sinônimos. Parece mais útil, entretanto, conferir significados diferentes aos dois termos. Assim, Simpson (1961) considera que taxonomia seja o estudo teórico da classificação, incluindo suas bases, princípios, procedimentos e normas, conceito semelhante ao enunciado por Mayr (1969 – taxonomia é a teoria e prática da classificação dos organismos) e Wiley (1981 – taxonomia é a teoria e a prática da descrição e classificação dos organismos). Na visão do consórcio que produziu a Systematic Agenda 2000 (1994), a taxonomia incluiria, ainda, o esforço de se descobrir novas espécies ou grupos de espécies. Assim, a taxonomia seria, segundo esses sistematas, a ciência da descoberta, descrição e classificação das espécies ou grupos de espécies. Em nosso curso, consideraremos a taxonomia como a parte da sistemática dedicada à descoberta, descrição e classificação dos organismos. Com isto, pretendemos enfatizar a posição subordinada da taxonomia em relação à sistemática. Assim, um trabalho de taxonomia seria, também, um trabalho de sistemática mas nem todo trabalho de sistemática seria um trabalho de taxonomia. É preciso chamar atenção, entretanto, para o fato de que muitas pessoas não consideram a taxonomia como parte da sistemática, incluindo no escopo da sistemática apenas o estudo das relações filogenéticas entre os organismos. Um tema central da sistemática e da taxonomia é a classificação dos organismos. Este termo tem dois significados. No primeiro caso, classificação é o ato de organizar objetos (no caso das classificações biológicas, organismos) em classes, de acordo com critérios préestabelecidos. No segundo caso, classificação é o resultado do ato de classificar – um sistema de organização dos objetos classificados. As classificações cumprem com algumas funções: 1. Organização do nosso conhecimento sobre os objetos classificados. 2. Síntese do nosso conhecimento sobre os objetos à nossa volta. 3. Facilitar a comunicação dos conhecimentos sobre esses objetos.
3 4. Permitir-nos fazer predições sobre os objetos classificados e suas propriedades, permitindo-nos um uso mais eficiente de nosso conhecimento sobre elas. Todo ser vivo precisa fazer previsões sobre seu ambiente para sobreviver. Esta habilidade nem sempre é consciente: uma planta que entra em floração à entrada da primavera não sabe que se aproxima a época do ano em que a chuva garantirá sua capacidade de absorção de nutrientes para manter os frutos em maturação e a sobrevivência de suas plântulas-filhas. Entre os animais, mesmo os mais simples, a predição envolve formas rudimentares de classificação: uma ave classifica os animais à sua volta (mesmo que não conscientemente) como predadores, parceiros para o acasalamento, presas etc. Neste caso, as classificações são sistemas individuais de organização dos conhecimentos sobre o ambiente. Nossos mais remotos ancestrais já faziam classificações dos objetos à sua volta. O surgimento da linguagem falada, entretanto, permitiu que as classificações deixassem de ser individuais e passassem a ser compartilhadas e utilizadas na comunicação de conhecimentos sobre os objetos. Essas classificações envolviam o reconhecimento de grupos de organismos (de espécies a grandes grupos de espécies) e a nomeação desses grupos. A necessidade imperiosa de nomear os organismos foi registrada no mais antigo documento escrito que se conhece, a bíblia judaica: "Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. O homem pôs nome a todos os animais dos campos e a todas as aves dos céus..." (Gênesis 2:19-20) Cada palavra de nossas línguas designa uma classe de objetos ou ações ou qualifica estes objetos ou ações, ajudando a organizá-los melhor: Árvore é uma classe de objetos fotossintetizantes dotados de raízes, tronco e copa; matar é uma classe de ações que produz a morte de um organismo; bonito qualifica objetos de uma classe previamente definida, distinguindo um subgrupo dentro dela – árvores bonitas, em oposição a árvores feias, por exemplo. A linguagem é, portanto, um sistema de classificação – o nosso mais básico sistema de classificação. Como tal, ela cumpre todas as funções básicas de uma classificação. A língua de um determinado grupo humano registra todos os objetos e ações com os quais aquele grupo já interagiu. Assim, os indígenas brasileiros tinham nomes para os organismos que eles encontravam em seu ambiente. Por exemplo, a língua tupi, segundo Ihering (1930), possuía duas palavras largamente utilizadas para designar as abelhas em geral, yra, que designava a colônia de abelhas (e, também, o mel que ela armazenava) e tub, que se refere a cada abelha individualmente. A partir desses nomes gerais, vários nomes específicos eram compostos, por exemplo, tub-una (abelha preta), tub-juba (abelha amarela), ira-puam (abelha de ninho redondo) e ira-xaim (abelha de ninho crespo) Esses nomes freqüentemente se referem a entidades reconhecidas pelos biólogos modernos como verdadeiras espécies. Entretanto, aqui se pode ressaltar, também, um dos problemas relacionados ao uso da linguagem comum como sistema de classificação biológica – fora dos meios científicos, o homem aplica nome apenas àqueles objetos que apresentam alguma utilidade ou representam algum perigo para si. Desta forma, os tupis nomearam
4 apenas as abelhas que produziam mel que eles podiam aproveitar. Outros milhares de espécies de abelhas solitárias que não armazenam mel e, portanto, não tinham utilidade imediata para eles não possuíam nomes. A linguagem é, também, um sistema de classificação geral – todos os tipos de objetos estão incluídos no seu escopo. Ela é, por isso mesmo, um sistema pouco preciso de classificação para finalidades específicas. Assim, o aumento do nosso conhecimento sobre os organismos vivos, exigiu a criação de sistemas de classificação que fossem, ao mesmo tempo, abrangentes (incluindo todos os organismos vivos) e específicos (distinguindo cada um desses organismos). Um número infinito de classificações poderia ser proposto para os organismos. As plantas, por exemplo, podem ser classificadas de acordo com suas propriedades agronômicas, farmacêuticas, industriais etc. Estas classificações, embora úteis para as finalidades para as quais são criadas, também têm utilidade limitada. Assim, uma classificação farmacêutica teria pouca utilidade para um agricultor. Para que os conhecimentos obtidos sobre os organismos nas várias áreas do saber possam ser integrados em um único corpo e estejam disponíveis para um número maior de pessoas, é preciso que haja um sistema universal de classificação biológica. Quais as funções de tal classificação biológica? - Organização do nosso conhecimento sobre os organismos: o nome de cada táxon é uma palavra-chave em um sistema de armazenamento de informações – todo o conhecimento adquirido sobre cada espécie ou grupo de espécies pode ser acessado na literatura através de seu nome. - Síntese do nosso conhecimento sobre os organismos: cada táxon na classificação biológica é uma "definição" resumida dos organismos que ele agrupa. “Mammalia,” por exemplo, resume uma série de características atribuídas a um determinado grupo de organismos, entre elas, pêlos e glândulas mamárias. - Facilitar a comunicação dos conhecimentos sobre os organismos: o nome de cada táxon, como mostrado acima, é um símbolo que carrega consigo uma série de informações; o emprego deste símbolo nos dispensa de uma descrição completa do grupo de organismos a que estamos nos referindo. - Permitir-nos fazer predições sobre as espécies e suas propriedades, permitindo-nos um uso mais eficiente (econômico ou não) de nosso conhecimento sobre elas.
SISTEMÁTICA E SEU PAPEL ENTRE AS CIÊNCIAS BIOLÓGICAS Simpson (1961) definiu assim o papel da sistemática entre os demais campos da biologia: A sistemática é ao mesmo tempo a parte mais elementar e a parte mais inclusiva da [biologia]. Mais elementar porque os [organismos] não podem ser discutidos ou tratados de forma científica sem que alguma sistematização tenha sido alcançada; mais inclusiva porque, em suas várias facetas e ramos, a sistemática eventualmente reúne, utiliza e, sintetiza tudo o que é sabido sobre a morfologia, fisiologia, psicologia ou ecologia dos organismos. A sistemática está vivendo um período de reavivamento, depois de passar mais de meio século sendo considerada como uma "sub-ciência". Algumas das razões para a volta do interesse nesta disciplina são:
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1. Com a quase paralisação da formação de novos sistematas nos últimos 30-40 anos e com a aposentadoria da geração passada de sistematas, faltam pessoas capazes de identificar os organismos de interesse para outros campos da biologia e ciências aplicadas; faltam, também, pessoas capazes de propor hipóteses filogenéticas robustas que possam ser empregadas nos estudos de biologia evolutiva dos seres. 2. A grande pressão exercida por nossa civilização sobre os ambientes naturais vem exterminando espécies num ritmo estonteante. A conservação da biodiversidade e o reconhecimento de espécies potencialmente úteis exigem o apoio de um grande contingente de sistematas no inventário das "reservas genéticas" naturais, principalmente nas regiões tropicais, antes que elas sejam totalmente eliminadas. 3. A formulação de novas bases teóricas e metodológicas para a sistemática aumentou seu rigor, seu escopo e sua utilidade, tornando-a um ponto de convergência para todos os demais campos da biologia. A sistemática, hoje, consolida-se como o agente capaz de colocar toda a informação biológica sob uma perspectiva verdadeiramente evolutiva. Referências Mayr, E. 1969. Principles of Systematic Zoology. Nova Delhi, Tata McGraw-Hill. 428 pp. Simpson, G. G. 1961. Principles of Animal Taxonomy. New York, Columbia University, x +247 p. Wiley, E. O. 1981. Phylogenetics – The theory and practice of phylogenetic systematics. New York, Wiley-Liss. 439p.