BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa

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Paulo Bunaviães

TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA P o r um Direito Constitucional de luta e resistência P or uma Nova Hermenêutica P or uma repolitização da legitim idade

El i=MALHEIROS =V= EDITOR ES

Teoria Constitucional da Democracia Participativa (Por um Direito Constitucional de luta e resistência Por uma Nova Hermenêutica Por uma repolitização da legitimidade) © P a u l o B o n a v id e s

ISBN 85-7420-279-7

Direitos reservados desta edição por MALHEIROS EDITORES LTDA. Rua Paes de Araújo, 29, conjunto 171 CEP 04531-940 — São Paulo — SP Tel.: (Oxxll) 3842-9205 Fax: (Oxxll) 3849-2495 URL: www.malheiroseditores.com.br e-mail: [email protected]

Composição PC Editorial Ltda.

Capa Criação: Vânia Lúcia Amato Arte: PC Editorial Ltda.

Impresso no Brasil Printed in Brazil 03-2001

A

G offredo T elles J

ú n io r ,

autor da “Carta aos Brasileiros ” e advogado da liberdade, da cidadania e da Constituição, h o m e n a g e m d e P a u l o B o na v id es

SUMÁRIO Introdução...........................................................................................

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Capítulo 1 0 Direito Constitucional da Democracia Participativa: um direito de luta e resistência ..........................................................

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Capítulo 2 - A Democracia Participativa e os bloqueios da classe dominante ...............................................................................................

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Capítulo 3 - A ideologia da globalização e o antagonismo neoliberal à Constituição .......................................................................................

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Capitulo 4 - A globalização e a soberania - aspectos constitucionais...

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Capítulo 5 A inconstitucionalidade material e a interpretação do art. 14 da Constituição......................................................................... 108

Capítulo 6 - 0 Estado Social e sua evolução rumo à democracia participativa............................................................................................ 143

Capítulo 7 - Garcia Pelayo e o Estado Social dos países em desenvol­ vimento: o caso do Brasil .................................................................... 168

Capitulo 8 - A evolução constitucional do Brasil ................................

190

Capitulo 9 - 0 pensamento jusfilosófico de Friedrich Müller: fundamento de uma Nova Hermenêutica ....................................... 206

Capitulo 1 0 - A Constituição aberta e os Direitos Fundamentais ......... 216 Capítulo 11 - A dignidade da pessoa humana ............................................ 230

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Capítulo 12 - A presunção de constitucionalidade das leis e interpre­ tação conforme a Constituição.......................................................... 235

Capítulo 13 - Ciência Política ........................................................................ 264 Capítulo 14 - La Sociologia Jurídica ............................................................ 269 Capítulo 15 - Espaço público e representação política ............................ 277

INTRODUÇÃO om a presente Teoria Constitucional da Democracia Participati­ va damos seqüência e conclusão a um conjunto de idéias e refle­ xões que começamos a expor e aprofundar em nosso Curso de Direito Constitucional,' e que tiveram depois continuidade, de forma não me­ nos explícita e combativa, na Coletânea intitulada Do País Constitucio­ nal ao País Neocolonial.2 Os três livros tomados conjugadamente compõem uma trilogia volvida para a liberdade, a igualdade e a justiça. Outro fim não alme­ jam senão desbravar e iluminar caminhos que conduzam a uma demo­ cracia participativa, aquela democracia de emancipação dos povos da periferia, conforme poderá o leitor logo averiguar. A tese central da obra consiste, pois, em reivindicar um Direito Constitucional da liberdade, oxigenado de princípios e valores já in­ corporados nas nossas raízes e tradições de resistência a golpes de Es­ tado, estados de sítio, intervenções federais e ditaduras, todos vibrados e todos instalados quando a chamada democracia representativa - per­ passada da crise constituinte que estalou no berço da nacionalidade não correspondeu com seus meios jurídicos e seu dever constitucional aos anseios nacionais de alforria do povo e da sociedade. Fiéis, assim, a uma posição libertária de pensamento inaugurada em tese de cátedra, que teve por título Do Estado liberal ao Estado social,3 nunca nos arredamos dessa posição. Por isso afigurou-se-nos, agora, legítimo e útil trasladar também para as páginas desta Coletânea

C

1. 10a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2000. 2. 2a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2001. 3. 6a ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1996.

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a Introdução à sexta edição daquela monografia acadêmica, bem como dois Prefácios da mesma, onde verdadeiramente havíamos esboçado já os primeiros ensaios rudimentares de uma jornada de idéias na direção da democracia participativa e do Estado social. E o fizemos com o confessado propósito de anexar os direitos fun­ damentais das dimensões subseqüentes àquela primeira que se estreou desde que os direitos políticos e civis foram proclamados pelos consti­ tuintes do Século XVIII, um dos séculos mais revolucionários e fecun­ dos de toda a história política do ocidente. A publicação ora estampada, cuja unidade temática é manifesta, procura designadamente certificar mais uma vez que não cobra sentido lecionar nas escolas e academias jurídicas dos países da periferia outro Direito Constitucional que não seja o da democracia participativa, ao qual nossa Constituição, na esfera teórica, em parte já se incorpora ou pelo menos deita lá sementes de legítima soberania popular, que ja­ mais germinarão, todavia, se ficarem expostas à ação inclemente e esterilizadora dos legisladores de mandato representativo. O velho e clássico Direito Constitucional do positivismo formalista e burguês professa uma neutralidade normativista já em fase de dis­ solução, descrédito e desintegração. Essa fase foi introduzida por obra de um Executivo que desrespeita esse Direito a cada passo, e do qual ele se arredou por inteiro desde que caiu nos braços do neoliberalismo. A decadência do Direito Constitucional tem sido apregoada e ace­ lerada pelos globalizadores políticos que intentam por todos os meios demoli-lo, apagando-lhe as noções, falseando-lhe os conceitos, desmo­ ralizando-lhe os princípios, fragilizando-lhe as normas, quebrantandolhe idéias, enfim, subtraindo-lhe juridicidade. Nunca, porém, a antiga disciplina das épocas pretéritas e programáticas do século XIX se mostrou em seus institutos tradicionais tão viva, tão prestadia, tão contemporânea, tão necessária que quando se associa à democracia de participação e é lecionada nas Faculdades de leis, vinculada a princípios e valores sem os quais não há hermenêutica constitucional, nem Estado de Direito, nem legítima separação de po­ deres, nem controle de constitucionalidade. Se lhe dermos, pois, o destino e a missão de inculcar nos cérebros da mocidade estudantil e universitária o compromisso com a democra­ cia e com o Estado constitucional, não haverá matéria mais relevante nos currículos jurídicos ou que lhe exceda a importância, a dignidade, o prestígio.

INTRODUÇÃO

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O novo e remodelado Direito Constitucional é tão guardião do re­ gime quanto as cortes constitucionais o são, porquanto nele se sedi­ menta, com o homem-cidadão, a consciência de salvaguarda da ordem jurídica, sob a superintendência de valores e postulados pertinentes à justiça, à liberdade e à democracia. Se o Direito Constitucional morreu para os neoliberais, ressurrecto nós o vemos, todavia, entre quantos se empenham em fazê-lo uma ferramenta de sustentação da identidade nacional e dos poderes de so­ berania. E, do mesmo passo, entre aqueles que se declaram leais a um sistema de normas superiores e fundamentais, um sistema cujo Direito vai ao campo de batalha e não retrocede nem na doutrina nem nos con­ ceitos. E esta a missão, a causa, a tarefa que se lhe impende atribuir. Em verdade, não podemos nem devemos pensar unicamente com as categorias ideológicas e políticas do Primeiro Mundo, porquanto es­ tas nos aparelham, não raro, a ruína social, a dependência, a recolonização e a terceirização ideológica de valores. Esses valores nem sem­ pre são os nossos. De tal sorte que com eles apenas as elites do status quo costumam identificar-se ou comprometer-se. Se os punhais do neoliberalismo assassinarem a doutrina de uma tão redentora forma de justiça distributiva, que é o Estado social, a Na­ ção reagirá para fazer o milagre de sua ressurreição. O mesmo se diga com respeito à Constituição e à soberania. Democracia participativa e Estado social constituem, por conse­ guinte, axiomas que hão de permanecer invioláveis e invulneráveis, se os povos continentais da América Latina estiverem no decidido propó­ sito de batalhar por um futuro que reside tão-somente na democracia, na liberdade, no desenvolvimento. Toda a substância teórica do nosso pensamento em matéria cons­ titucional e política fica, de conseguinte, condensada nestas páginas da maneira mais clara e sucinta possível, consolidando ao mesmo tempo teses de que jamais nos afastamos. São as mesmas daqueles que, por dever de cidadania e lealdade às instituições da democracia, porfiam no mesmo campo de oposição, luta e resistência à tormenta alienante, avassaladora e colonialista do neoliberalismo e da globalização. Dizer que a democracia é direito da quarta geração, qual o fiz em Foz de Iguaçu, na Conferência final da XIV Conferência Nacional de Advogados, em 1992, não basta. Faz-se mister ir além. Urge, assim, tomar explícitos os meios téc­ nicos de realização e sustentação desse direito principiai nos países da

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periferia, onde as três gerações ou dimensões de direitos fundamentais não lograram ainda concretizar-se na região da normatividade. É essa, indubitavelmente, a grande tragédia jurídica dos povos do Terceiro Mundo. Têm a teoria mas não têm a práxis. E a práxis para vingar diante da ofensiva letal dos neoliberais precisa de reforma ou renovação de modelos teóricos. E isto o que se propõe com o Direito Constitucional de luta, com a Nova Hermenêutica, com a repolitização da legitimidade. Tudo quanto ocupa, pois, o espaço destas páginas assinala o pensamento que nos guiou, a constante que nos inspirou ao elaborar esta obra. Com efeito, não estamos a escrever a proposta nem a minuta de um tratado de paz com a ideologia neoliberal senão que lhe fazemos uma declaração de guerra. Declaração formal, mesmo. E a tomamos extensiva a quantos se bandearam para as facções globalizadoras e puseram em risco de vida a Constituição, a soberania, a identidade nacional. A esta altura não podemos deixar de assinalar que há quatro prin­ cípios cardeais compondo a estrutura constitucional da democracia par­ ticipativa, cada qual com sua peculiaridade conceituai na contextura desse sistema. São eles, respectivamente, o princípio da dignidade da pessoa hu­ mana, o princípio da soberania popular, o princípio da soberania nacio­ nal e o princípio da unidade da Constituição, todos de suma importân­ cia para a Nova Hermenêutica constitucional, de que tanto já nos ocu­ pamos em nosso Curso quando versamos a inteipretação da Constitui­ ção e dos direitos fundamentais. Com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana, funda­ menta ele a totalidade dos direitos humanos positivados como direitos fundamentais no ordenamento jurídico-constitucional. Esse princípio aumenta cada vez mais de importância ao verificarse que resume e consubstancia por inteiro o teor axiológico e principiológico dos direitos fundamentais das quatro dimensões já conhecidas e proclamadas. Por ele as Constituições da liberdade se guiam e se inspiram; é ele, em verdade, o espírito mesmo da Constituição, feita primacialmente para o homem e não para quem govema. É, enfim, o valor dos valores na sociedade democrática e partici­ pativa. Já o princípio da soberania popular compendia as regras básicas de governo e de organização estrutural do ordenamento jurídico, sen­

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do, ao mesmo passo, fonte de todo o poder que legitima a autoridade e se exerce nos limites consensuais do contrato social. Encarna o princí­ pio do governo democrático e soberano, cujo sujeito e destinatário na concretude do sistema é o cidadão. Atribui-se, por conseguinte, nesse livro, extrema importância à defesa e salvaguarda do mais ameaçado e comprometido dos princí­ pios que organizam a vida nacional e preservam a nossa identidade de­ mocrática, a saber, o princípio da soberania popular - de último, nas duas Casas do Congresso Nacional, tão desfigurado, tão atraiçoado, tão ferido pela covardia dos quadros representativos, os quais, em aliança com o Executivo, consentem que este leve a cabo a tarefa de despeda­ çar a Constituição e as leis. Em suma, o princípio da soberania popular é a carta de navegação da cidadania ramo às conquistas democráticas, tanto para esta como para as futuras gerações. Desse princípio, explícito na Constituição, infere-se outro, de na­ tureza não menos substantiva, ou seja, o princípio da soberania nacio­ nal, com que se afirma de maneira imperativa e categórica a indepen­ dência do Estado perante as demais organizações estatais referidas à esfera jurídica internacional. A soberania nacional nesta acepção nada tem porém que ver com outra doutrina professada durante a Revolução Francesa e que invoca­ va a Nação de maneira deveras ambígua por fundamento do poder su­ premo e base de legitimação do sistema representativo. A Nação, sede ali de um poder do qual o povo não era ainda titu­ lar efetivo, se fazia o órgão por excelência que retardava e escamotea­ va a universalidade do sufrágio com inibir o princípio da igualdade e tolher a concretização da própria soberania popular, enquanto parcela expressiva da vontade de cada cidadão, ou seja, daquele cidadão partí­ cipe na formação da lei e da autoridade governativa. E tudo isso acontecia porque a Nação era confusamente identifi­ cada numa visão arbitrária e ambígua com o terceiro estado, isto é, com a burguesia revolucionária, como o proletariado o fora, depois, com o Estado socialista da revolução soviética. Finalmente o princípio da unidade da Constituição se destaca por elemento hermenêutico de elucidação de cláusulas constitucionais. Compreende tanto a unidade lógica - hierarquia de normas oriun­ da da rigidez constitucional - como a unidade axiológica - ponderação de valores, proveniente da necessidade de concretizar princípios ins­ culpidos na Constituição.

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A unidade lógica se exprime através de uma unidade formal de normas dispostas em seqüência hierárquica. Com respeito à unidade axiológica, manifesta-se ela mediante uma unidade material de valores e princípios, que são a essência, o espírito, a substância mesma da Carta Magna. Os quatro princípios acima expendidos e declinados somente hão de prosperar numa sociedade aberta, onde os instrumentos e mecanis­ mos de governo não sejam obrepticiamente monopolizados e controla­ dos por uma casta política, cujos membros, à revelia do povo, se alter­ nam e permeiam no exercício da autoridade civil e governativa - sem­ pre a serviço de interesses concentrados e com esteio na força do capital. Atuam eles em função da ordem capitalista, não da coisa pública. De tal sorte que para lograr esse escuso objetivo se valem, ao mesmo passo, do mais poderoso instrumento de descaracterização da verdade e da legitimidade na sociedade regida pelo capital. Reportamo-nos aos meios de comunicação, a saber, as grandes empresas de jornais, as vas­ tas cadeias de rádio, as poderosas redes de televisão, as quais, submis­ sas ao capital e ao poder que lhes ministram copiosos subsídios de pu­ blicidade paga, se transformam numa usina ou laboratório onde se fa­ brica o sofisma da opinião pública (opinião publicada e informação di­ vulgada) e se legitimam as mais absurdas políticas de governo, contra­ riando o interesse nacional e destruindo as células morais do ente cívi­ co que é a polis. A mídia escravizada ao capital deforma, entorpece e anula a livre vontade, o livre raciocínio, a livre consciência do ser político, rebaixa­ do a cidadão nominal, a cidadão súdito, a cidadão vassalo - que enor­ me contradição isto representa! E assim as ditaduras constitucionais sobem ao poder e nele se conservam ostentando a imagem da pseudodemocracia e do pseudo-regime representativo. O povo que não é povo, a multidão que não é gente, a massa que se deixou domesticar, a classe média que já não tem influição no poder e jaz oprimida, o proletariado que perde cada vez mais a capacidade de luta e é perseguido no salário configuram o retrato social da falsa repú­ blica onde desde muito não sobrerrestam senão traços ou vestígios de cidadania A razão mutilada do homem-povo sem pensamento autodetermi­ nativo e com a vontade anulada pela torrente de valores dirigidos que lhe foram passados na onda informativa inassimilável, fixa o sombrio quadro de uma nação moralmente dissolvida, decomposta, onde os se­

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nhores da mídia, freando a repercussão dos fatos e deturpando a infor­ mação, são também os senhores daquele poder suscetível de aniquilar e interceptar, pelo silêncio imposto e pelas omissões propositadas, to­ dos os canais de comunicação das lideranças democráticas com o povo, não podendo este, assim, ser libertado das pressões reacionárias e da permanente agressão capitalista aos direitos da terceira geração. Tendo ao seu dispor a máquina da informação com que intentam dar aparência de legitimidade aos seus interesses, os estamentos de do­ minação têm tudo com que perpetuar a servidão social e o confisco dos direitos de expressão. Há algum tempo, em debate com os magistrados de meu país, dis­ se que a mídia brasileira estava prisioneira no cárcere das elites e que era preciso libertá-la e restituí-la ao povo, ou seja, à legitimidade de sua vontade. Vamos, portanto, descerrar os ferrolhos do ergástulo e abrir na Constituição uma artéria normativa de controle, que afiance pelo con­ curso da mídia emancipada a livre expressão material das idéias e do pensamento - a saber, um canal por onde possam circular sem estorvos e sem alienações e sem embargos à formação da alma coletiva os pode­ res incorporados nas liberdades públicas e nos direitos fundamentais. Aquela assertiva, mais do que nunca, na hora de teorizar a demo­ cracia participativa, é de imensa veracidade para o País. Constitucionalizar a mídia como um dos poderes da república mas poder democrático e legítimo - é, por sem dúvida, o mais urgente e inarredável requisito da democracia participativa. Poder-se-á, até, dizer pressuposto ou condição sine qua non de ins­ talação desse regime, se o quisermos como realidade, e não como farsa ou burla conforme tem acontecido com o sistema representativo. A teoria constitucional da democracia participativa é, portanto, o artefato político e jurídico que em termos de identidade há de criar en­ tre nós o Brasil do povo, o Brasil da democracia nacional e nacionalis­ ta, o Brasil que nos sonegaram. Compendia-se, assim, um novo Estado de Direito retraído dos pri­ vilégios da classe dominante, que devem ser abolidos, e refratário à hegemonia dos corpos representativos sem representação e sem legiti­ midade - enfim, algo significativo de uma abertura mais ampla no uni­ verso de nossa organização política e social. Será este futuro e reformado Estado de Direito a réplica da cons­ ciência popular, disposta a desatar os laços já seculares da deplorável

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dependência em que temos invariavelmente vivido, mergulhados na submissão ao capital estrangeiro e ao seu imperialismo de expansão e confisco das riquezas nacionais. Não tem sentido teorizar aquela democracia nem propugnar este Estado de Direito se não houver um alvo superior, volvido para a pro­ blemática histórica da sociedade brasileira, sociedade agredida siste­ maticamente, de maneira cada vez mais violenta e atroz, por forças extemas de dominação. O País sabe, sem dificuldade, identificar essas forças, porquanto se acham elas mancomunadas com as mesmas elites que escreveram no passado e continuam escrevendo no presente páginas de opróbrio e traição. Todas as épocas coloniais, imperiais e republicanas da nossa his­ tória estampam o selo ou trazem o testemunho dessa capitulação. E estigma e vergonha e vilipêndio de uma decadência em curso, que terá remate unicamente se despertarmos os órgãos da nação viva para uma ação revolucionária de combate e resistência às formas clás­ sicas de opressão. Faz-se mister, por conseguinte, o abraço de solidariedade do estu­ dante com o trabalhador, da classe média com o estamento obreiro, da nação com a sociedade, a fim de que se possa, de uma vez por todas, extirpar as raízes da crise constituinte, que outra coisa não significa nem representa senão o quebrantamento e a depravação do contrato so­ cial por fórmulas políticas e desmoralizadas de governo, adversas aos interesses, às exigências e aos valores da nacionalidade e do povo, no­ meadamente aqueles cristalizados na sua soberania e conservação. As letras jurídicas carecem, pois, de renovação e rumos. A teoria constitucional da democracia participativa segue a trilha renovadora que fará o povo senhor de seu futuro e de sua soberania, coisa que ele nunca foi nem será enquanto governarem em seu nome privando-o de govemar-se por si mesmo. O povo da democracia participativa é o povo que iluminou a cabeça de Lincoln quando ele definiu democracia - o governo do povo, para o povo e pelo povo. Há demagogia nisso? Não. Há verdade e certeza. Os hipócritas da classe dominante ocultaram nas vestes represen­ tativas da vontade popular, falseada durante séculos, sua sagrada alian­ ça com o capitalismo. Usufrutuários de um poder usurpado, intentam hoje, mediante a implantação ideológica do neoliberalismo, revogar a dialética e a his­

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tória, paralisando o mundo na eternidade da globalização como status quo da injustiça e das desigualdades sociais. A escravidão pode hastear pois essa bandeira; a liberdade e a democracia jamais. Em suma, é de assinalar que para uma certa corrente de publicis­ tas empenhados em propagar a doutrina globalizadora do neoliberalis­ mo, determinados conceitos, quais os de soberania, Estado, Nação e Constituição estariam recebendo já a extrema-unção na teoria contem­ porânea do Poder e do Direito. Com efeito, o fluxo de interesses e relações que dominam a esfera global inaugura uma nova fase dialética no campo da economia capita­ lista, decretando, de maneira supostamente irreversível, o declínio e a próxima mina daquelas idéias-chaves e dogmas institucionais. O Estado constitucional, o Estado nação, o Estado soberano, o Es­ tado de Direito da idade moderna têm sobrevivido com dificuldade às crises universais do capitalismo. Trata-se, em verdade, de um modelo de economia cujos abalos se fazem sentir com mais dano, força e intensidade nos países do Terceiro Mundo, onde provocam um cortejo de tragédias e violências, que vão de agressões políticas, intervenções militares, golpes de Estado e dita­ duras a capitulações econômicas e financeiras, já na iminência de de­ sembocarem num processo ativo e imediato de recolonização. Todas essas comoções introduzem, de conseguinte, a filosofia de força, injustiça e privilégio, típica daquele sistema de dominação que invade o mundo contemporâneo na dimensão globalizadora e neoliberal, e o fazem com o mesmo espírito reacionário e restaurador da Santa Aliança, durante a segunda década do século XIX, após o colapso dos exércitos de Napoleão. Com efeito, é de assinalai- que na França revolucionária, em sua fase áurea de expansão, o poder conquistador, depois desfalecido, con­ duzira na cabeça de seus comandantes a disciplina do soldado, mas na retaguarda social o que prevalecera fora o pensamento regenerador da Revolução Francesa e da pólis burguesa acompanhando a marcha dos granadeiros. A Santa Aliança pós-napoleônica significava, portanto, a vitória aparente do absolutismo restaurado mas decrépito que se estampava na fórmula política dos tronos constitucionais e das Cartas outorgadas. No fundo o que preponderava, contudo, era o sonho de liberdade dos filósofos contratualistas dominando a cena constitucional e dissol­

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vendo, com o compromisso das Cartas, a fereza do projeto autoritário, repressivo e restaurador das realezas de direito divino. A recaída no passado havia sido impossível. Tinha por óbice maior o fato histórico que fora a Revolução Francesa. Expatriar e exilar no rochedo de Santa Helena o autor do Código não constituiria nenhuma dificuldade; mas revogar da lei civil os prin­ cípios ali introduzidos não cabia no poder nem na jurisdição das mo­ narquias nostálgicas, confederadas num pacto de reação; e foi este o Congresso de Viena, impotente para deter o triunfo j useivilista do Có­ digo, que inaugurava a sociedade construída pela burguesia segundo as idéias da Revolução. Cimentava-se, portanto, um sistema de organização social confor­ me valores novos, sem nenhuma analogia, compromisso ou vínculo com o ancién régime. Tomando, porém, aos nossos tempos de globalização, o Consenso de Washington tem no chefe do FMI um Mettemick que não faz a di­ plomacia dos tratados mas a política de força das sentenças financeiras com que o capitalismo avassala, derrota e até mesmo destrói a econo­ mia de paises onde os direitos da terceira geração jamais chegam se­ não por imagem retórica de um discurso compendiado na falsidade de promessas desenvolvimentistas bem como na frouxidão das teses caducas do neoliberalismo, desamparadas da verdade pela evidência dos grandes retrocessos e fracassos sociais de nosso tempo. A pax universal de Kant, tão distinta, de inspiração e índole, desta que nos querem ditar os globalizadores contemporâneos é, por sem dú­ vida, do ponto de vista da democracia participativa e de seu programa humanista a única aceitável, e a mais límpida e bem formulada por um filósofo. Cuidar que a globalização veio para ficar qual ela se apresenta, e que seu advento constitui uma fatalidade, é equívoco deplorável. Mas sustentar, ao mesmo passo, que ela contradiz a soberania e, por isso mesmo, esta deve acabar para não servir-lhe de obstáculo é laborar num perverso sofisma, tão perverso quanto aquele de certa teoria do positi­ vismo jurídico que, outrora, separava obstinadamente, por contraditó­ rios e inconciliáveis, os conceitos de legalidade e legitimidade. E tudo farsa e impostura na região do pensamento. A legitimidade da soberania, da nação, da ordem constitucional cifra ainda elevados valores históricos de referência inestimável para os povos da periferia, de que não podem estes apartar-se, porquanto, se

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o fizessem, estariam cometendo um suicídio - e não há suicídio pior que o das instituições, porque quando as instituições desaparecem com elas desaparece também uma forma social de vida e organização, ex­ tingue-se um esquema de poder autodeterminativo do qual aqueles con­ ceitos eram a garantia, o cimento, o alicerce. O Direito Constitucional liberta, e se lhe destruirmos as bases, mi­ nando os seus princípios, como é da índole e natureza do processo globalizador e das categorias axiológicas do neoliberalismo, já não haverá povo, nem cidadania, nem nação; haverá, sim, legiões de súditos, coortes de homens resignados, debaixo da regência de um estatuto do po­ der, que será tudo, menos uma Constituição. Os acordos do FMI são as medidas provisórias da globalização, os decretos-leis da recolonização. Como obviar a essa desgraça política que nos faz recuar aos cam­ pos de batalha da História, a Porto Calvo e Guararapes, senão profes­ sando o magistério preventivo de um Direito Constitucional de liberta­ ção? Professamos, por conseguinte, o Direito Constitucional da demo­ cracia participativa. E, no Brasil, país da periferia, formaremos com esse Direito a consciência do homem livre disposto a levantar em solo nacional as mesmas divisas de nossos antepassados. O invasor não nos arrebatará as armas do pensamento. O Direito Constitucional na cabeça do cidadão, estudante de hoje e estadista do futuro, é a mais valiosa dessas armas. Esta portanto uma das razões de ser deste livro. Volvendo ao plano teórico e enfrentando um dos problemas cons­ titucionais mais graves que embargam o advento da democracia parti­ cipativa, faz-se mister, ainda, um amplo esclarecimento com respeito à despolitização da legitimidade. E fenômeno bem ao gosto dos neoliberais e de sua doutrina de senhorio absoluto, por via oblíqua, dos interesses sociais e da teieologia do poder. Com efeito, a legitimidade tem-se apresentado, de último, nas re­ flexões jurídicas sobre a matéria, despolitizada, neutralizada e subsumida, por uma suposta evidência de sua identidade conceituai e axiológica com a legalidade, enquanto expressão formal e acabada do triunfo das ideologias liberais. Efetivamente, os juristas do positivismo alargando as expansões dogmáticas de seu devaneio juscientífico cuidavam que na Constitui­

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ção só havia juridicidade para as normas e não para os princípios, como se os princípios não fossem normas - aliás, as normas das normas, as mais excelsas do sistema. Foi isso que ocasionou a reação oposta e o ressurgimento, com toda a força e energia, do princípio da legitimidade. Aqueles arautos da razão, velhos conhecidos nossos, aferrando-se unicamente à legalidade, intentavam desterrar do sistema os princípios ou, pelo menos, ignorá-los, tolerando-lhe, apenas, a inserção nos códi­ gos do juscivilismo, qual a mais subsidiária das fontes hermenêuticas, aquelas de baixíssima densidade normativa. As Constituições, juridicamente menos importantes que as leis na época do liberalismo, retomam, porém, o seu lugar de culminância; o mesmo se diga da Hermenêutica constitucional ou, com mais proprie­ dade, da Nova Hermenêutica. E não tomam esse lugar como bandeiras arvoradas por uma meta­ física da liberdade, mas enquanto esteio e concreção dessa mesma li­ berdade cristalizada em princípios e valores que se fizeram jurídicos e não podem ser, portanto, removidos do vértice da pirâmide onde as­ senta a hierarquia das normas do ordenamento. Na esteira dessas fórmulas renovadoras a ciência constitucional avança e volta a reconstituir-se, sob a égide de um princípio de legiti­ midade repolitizado - único capaz de interessar e fazer bem aos povos excluídos da hegemonia. Nós o repolitizamos debaixo das inspirações de concretude de uma democracia participativa, de uma nova hermenêutica constitucional, de um novo conceito de associação política. Assim o fazemos combatendo o modelo de representação deriva­ do das Cartas Constitucionais, ou nelas posto com base tão-somente na força política das cadeiras parlamentares majoritárias; é modelo que há de ceder lugar a outro, de presença mais direta e efetiva da cidadania enquanto sujeito da vontade governativa institucionalizada por vias plebiscitárias. A queda de legitimidade dos órgãos legislativos e executivos se faz patente, profunda, irreparável nos moldes vigentes. Urge introduzir pois o mais cedo possível a nova legitimidade, cuja base recomposta é, novamente, a cidadania, mas a cidadania redimida, sem os percalços que lhe inibem a ação soberana, sem a perversão representativa, sem o falseamento de vontade, sem as imperfeições conducentes às infideli­ dades do mandato e aos abusos da representação.

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Legitimidade que mana, enfim, do cidadão erguido faticamente às últimas instâncias do poder, tendo de sua mão, por expressão de sobe­ rania, os freios à conduta e à política dos governos, que ele, o cidadão mesmo, como povo, há de traçar, sancionar e executar. Unicamente por esse caminho a democracia sairá do círculo vicioso onde se movem, à revelia e à distância do povo, as bancadas congressuais e as organizações partidárias. Fora da repolitização da legitimidade, criadora de uma neocidadania governante, não há democracia participativa, nem lealdade políti­ ca, nem soberania dos postulados constitucionais. Todo o arcabouço jurídico-político do regime pende da realização de valores em que a identidade do povo, para ser legítima, é a identida­ de do cidadão - e cidadão é quem faz a vontade geral e concretiza o contrato social. Além dessa averiguação não há povo nem cidadania. Ora, na presente conjuntura, debaixo da “ditadura constitucional” que nos governa, e sob as rédeas de um Executivo onipotente, o siste­ ma representativo já não é a legitimidade despolitizada, mas a banda morta e podre da Constituição. E isto, pois, que nos faz clamar, em nome das garantias constitucio­ nais e das verdades esteadas em princípios e valores, por um sanea­ mento moral das instituições e das políticas governativas. E isto, também, que nos faz encarecer a necessidade de repolitizar, por meio da democracia participativa, o princípio da legitimidade. Princípio absurdamente postergado por quem se afez ao desrespeito contumaz das decisões judiciais envolvendo o direito adquirido, a coi­ sa julgada e o ato jurídico perfeito, e que só sabe legislar pela via usurpatória das medidas provisórias, exaradas com inobservância dos re­ quisitos constitucionais de urgência e relevância e ajuizadas - carentes de consistência - ao livre alvedrio da autoridade expedidora. Tais atos, por suas conseqüências, põem em risco a segurança constitucional e as bases do sistema. Em suma, a democracia participativa configura uma nova forma de Estado: o Estado democrático-participativo que, na essência, para os países da periferia é a versão mais acabada e insubstituível do Esta­ do social, este que a globalização e o neoliberalismo tanto detestam e combatem, argumentando contra todos os elementos conceituais de sua teorização. O Estado democrático-participativo organizará, porém, a resistên­ cia constitucional dos países da periferia arvorando a bandeira da so­ berania, da igualdade e da justiça social.

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Com o Estado democrático-participativo o povo organizado e so­ berano é o próprio Estado, é a democracia no poder, é a legitimidade na lei, a cidadania no governo, a Constituição aberta no espaço das ins­ tituições concretizando os princípios superiores da ordem normativa e da obediência fundada no contrato social e no legítimo exercício da autoridade. Ao Estado liberal sucedeu o Estado social; ao Estado social há de suceder, porém, o Estado democrático-participativo que recolhe das duas formas antecedentes de ordenamento o lastro positivo da liberda­ de e da igualdade. E o faz numa escala de aperfeiçoamento qualitativo da democracia jamais dantes alcançada em termos de concretização. O Estado democrático-participativo libertará povos da periferia, transformando-se em trincheira de sobrevivência, desafio e oposição às infiltrações letais da diátese globalizadora que mina o organismo das sociedades do Terceiro Mundo. O Estado democrático-participativo tem, por conseguinte, sua fór­ mula política mais acabada na expressão democracia participativa, que é a designação lingüística empregada nos textos desta Coletânea para versar esse conceito. Assim como há quatro gerações de direitos fundamentais, há, do mesmo passo, em igual sentido, cinco classes de Estado, que surgiram ou estão surgindo desde a queda das monarquias de direito divino. Compreendem em linha de sucessão histórica e de coexistência, não raro controversa e hostil, o Estado liberal, o Estado socialista, o Estado social, e, de último, na contemporaneidade da globalização, dois outros modelos desse Estado, a saber, o Estado neoliberal e o Estado neo-social - um reacionário, outro progressista; um já bastantemente formulado, outro apenas esboçado; um positivado, outro teorizado; um no Primeiro Mundo, outro na periferia. A quinta modalidade que prognosticamos e defendemos, ou seja, o Estado neo-social da periferia, ainda se acha em gestação nas refle­ xões dos cientistas políticos e constitucionais. Em nossa nomenclatura política ele se chama Estado democrático-participativo. Outra coisa não significa senão o Estado da democracia partici­ pativa, figura institucional fadada a libertar, se aplicada e concretizada com bom êxito, os povos periféricos. Em verdade é a única alternativa que se lhes apresenta, premidos pela ideologia neoliberal e globaliza­ dora da recolonização que os priva e destitui dos instrumentos de afir­ mação, sobrevivência e continuidade presentes nos conceitos de sobe­ rania, povo, nação, território e constituição.

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Um Direito Constitucional de luta, uma Nova Hermenêutica, uma repolitização da legitimidade, eis as chaves teóricas que nos abrirão a porta à democracia participativa de libertação. Democracia dos povos da periferia e resposta política que eles devem dar às pressões neoliberais da recolonização e do projeto globalizador. Em todo sistema jurídico-constitucional do Estado de Direito con­ temporâneo, nascido à sombra dos postulados do contrato social, há, em rigor, três legisladores perfazendo as tarefas normativas do regime. Um legislador de primeiro grau que faz a norma fundamental - a Constituição. Sua autoridade depois remanesce no corpo representati­ vo, legitimado pela vontade constituinte. Mas remanesce como um po­ der jurídico limitado, apto a introduzir tão-somente as alterações que se fizerem mister ao estatuto fundamental com o propósito de aperfei­ çoar a Constituição e manter a estabilidade dos mecanismos funcionais de governo. E também para tolher, por via de emenda, reforma ou revi­ são, o advento das crises constitucionais, dando-lhes solução adequada e legítima. A seguir, depara-se-nos, em escala de verticalidade, o legislador de segundo grau, que faz a norma geral e abstrata, na qualidade de le­ gislador ordinário. Para desempenhar esse múnus constitucional rece­ be a colaboração do Poder Executivo, cujo Chefe sanciona ou não atos das assembléias parlamentares. Têm estas, porém, o poder de rejeitar o veto do presidente e resta­ belecer a vontade do órgão legiferante. Enfim, depara-se-nos o legislador de terceiro grau, no estreitamen­ to do funil normativo, a saber, o juiz, que dirime conflitos e faz a nor­ ma jurídica do caso concreto. Legisla entre as partes. Intérprete normativo no ocaso da velha dogmática jurídica, esse juiz tende, desde o advento da Nova Hermenêutica, a ser, com razão, o legislador por excelência; aquele que tanto na esfera tópica como siste­ mática dissolve as antinomias do positivismo ou combina, na concretude social e jurisprudencial, a doutrina com a realidade, o dever-ser com o ser e integrado aos quadros teóricos da democracia participativa terá legitimidade bastante com que coibir de uma parte as usurpações do Executivo, de outra as tibiezas e capitulações do Legislativo. So­ bretudo quando este, por omissão, se faz desertor de suas atribuições constitucionais. Assim, sob a égide de um Judiciário, guardião efetivo da supre­ macia constitucional e da ordem democrática, recompor-se-á a esfera de harmonia e equilíbrio dos Três Poderes.

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A importância do juiz legislador de terceiro grau avultará na práxis da democracia participativa do futuro, designadamente nas socie­ dades da periferia. E, de certa forma, se fará a expensas do legislador de segundo grau, cuja servidão ao Executivo, na conjuntura contempo­ rânea do neoliberalismo e da globalização, configura já a decadência do ramo representativo do poder, prisioneiro das elites e, não raro, de seus egoísmos e interesses adversos ao País. Demais, a par da verticalidade legislativa do sistema, poder-se-á também com a democracia participativa traçar um círculo normativo de legitimidade, cujo percurso o intérprete faz, tendo por ponto de par­ tida a obra do constituinte, passando deste à do legislador quando faz a lei ou reforma a Constituição, até chegar, finalmente, ao juiz que esta­ tui a regra do caso concreto, coroando dessa maneira a concretude jurí­ dica do sistema sob a égide dos princípios e dos valores cardeais do ordenamento. O juiz da democracia participativa não será, como no passado, ao alvorecer da legalidade representativa, o juiz “boca da lei”, da imagem de Montesquieu, mas o magistrado “boca da Constituição” e do con­ trato social; aquele que figuraria decerto na imagem de Rousseau redi­ vivo. Ministra a democracia participativa por conseguinte mecanismos de exercício direto da vontade geral e democrática suscetíveis de res­ taurar e repolitizar a legitimidade do sistema. Na pirâmide da relevância institucional haverá, com o Estado de­ mocrático-participativo, uma transformação substantiva e axiológica do papel do magistrado, decorrente da maior abertura e democratização do Poder Judiciário. A concepção do juiz intérprete que, ao decidir, normatiza, ocorre em substituição daquela do juiz mero aplicador de leis que, ao senten­ ciar apenas deduz e subsume, segundo o entendimento axiomático-dedutivista do positivismo e da dogmática jurídica tradicional das épocas em que imperava sobretudo o princípio da legalidade. Contrasta esse entendimento com a noção tópica, indutiva, eurística e criativa da Nova Hermenêutica, contemporânea, do Direito, se­ gundo a qual o juiz intérprete, ao estabelecer a norma, é legislador. Le­ gisla entre as partes e o faz não propriamente sob a égide do legalismo puramente formal e rígido, mas do legitimismo principiológico e mate­ rial, onde o direito vivo, se a realidade e os princípios falarem mais alto, decreta sua prevalência sobre a regra oxidada do direito vigente de vestes formais.

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Enquanto o juiz aplicador se guia por um logicismo que gira primacialmente ao redor da norma-texto da terminologia de Müller, o juiz intérprete haure sua maior força e dimensão hermenêutica na esfera dos princípios, mas se move tecnicamente no círculo de um pluralismo nor­ mativo tópico onde a norma-texto é apenas o ponto de partida da normatividade investigada e achada ao termo do processo decisório con­ creto, segundo assinala a teoria estruturante do Direito, da qual Friedrich Müller, já citado, é seu mais insigne formulador e jusfúósofo. Ao juiz da lei sucederá o juiz da Constituição. Ao juiz da legalida­ de, o juiz da legitimidade. Ao juiz da pré-compreensão de classe, o juiz da pré-compreensão da sociedade. Por essa via o povo chegará ao poder, a sociedade à regeneração e o Estado e a Nação, abraçados com a cidadania, à execução e obser­ vância do contrato social. Enfim, a teoria material da Constituição tem por órgão auxiliar importantíssimo, de concretização da democracia participativa, a Nova Hermenêutica. Ela repolitiza a legitimidade do regime. Ela introduz efi­ cazmente no universo das políticas governativas a presença do supre­ mo poder decisório, de todo cifrado no exercício direto da soberania popular consubstanciando a vontade constitucional da Nação. Se este for o caminho trilhado a crise constituinte será uma página a menos na literatura do absolutismo. E nunca mais, ao livro de dor e revolta em que se lêem as felonias perpretadas pela classe dominante contra a Constituição, o Direito e a Liberdade, hão de acrescentar-se novos capítulos. O Estado democrático-participativo conduzir-nos-á, ao mesmo passo, ao Estado de Direito da terceira dimensão, mais seguro, mais aperfeiçoado e mais sólido na garantia das liberdades que o tradicional Estado de Direito do liberalismo - o da primeira dimensão - ou que aquele outro, que o neoliberalismo está arruinando, o da segunda di­ mensão, gerado nas entranhas do Estado social. Vamos recriar pois a república no Brasil; uma república que seja verdadeiramente da democracia, da justiça social, do Estado de Direito e da legitimidade; uma república, como asseverou Rui Barbosa, que doravante conheça “o seu foro e a sua lei”. Ao seu foro - disse literal­ mente o constitucionalista baiano - “serão citados todos os poderes, em nome da Constituição” e “pela sua lei serão refreados todos os po­ deres, que à Constituição não obedecerem”, rematou o imortal jurista do habeas corpus.

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Esta a república que queremos legar às futuras gerações, no pata­ mar da liberdade, e não aquela das medidas provisórias, dos atos plebiscitários refalsados, das miniconstituintes e do neocolonialismo, no patamar da servidão. A democracia participativa, de linhas gerais traçadas ao longo das páginas desta Coletânea, há de representar, na teoria constitucional, o consenso dos regimes do Terceiro Mundo. Demais disso, é de assinalar que essa democracia já é direito posi­ tivado no parágrafo único do art. 1“ da Constituição. Mas resta inani­ mada e programática naquele dispositivo tutelar, por obra do silêncio, da omissão, do egoísmo e das deserções dos dois Poderes que legislam e governam o País. Se este pequeno livro puder ministrar alguma ajuda com que concretizá-la, não o teremos elaborado em vão.

Capítulo 1 O DIREITO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: UM DIREITO DE LUTA E RESISTÊNCIA ão há teoria constitucional de democracia participativa que não seja, ao mesmo passo, uma teoria material da Constituição. Uma teoria cuja materialidade tem os seus limites jurídicos de eficácia e apli­ cabilidade determinados grandemente por um controle que há de com­ binar, de uma parte, a autoridade e a judicatura dos tribunais constitu­ cionais e, doutra parte, a autoridade da cidadania popular e soberana exercitada em termos decisórios de derradeira instância.

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Nisso reside a essência desse figurino de constitucionalidade que há de ser o mais democrático, o mais aberto, o mais legítimo dos mo­ delos de organização da democracia emancipatória do futuro nos paí­ ses periféricos. E, aliás, o único modelo capaz de pôr cobro ao ludibrio do poder popular, sempre objeto das alienações e descumprimento de sua vonta­ de por outra vontade que, ocupando e dominando as Casas representa­ tivas, posto que derivadas daquela, invariavelmente o tem negado, des­ troçado ou atraiçoado. Tal acontece em virtude do processo de distor­ ção e falseamento daquela vontade desde as suas nascentes. Os vícios eleitorais, a propaganda dirigida, a manipulação da cons­ ciência pública e opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de in­ formação, a serviço da classe dominante, que os subornou, até as ma­ nifestações executivas e legiferantes exercitadas contra o povo e a naÇão e a sociedade nas ocasiões governativas mais delicadas, ferem o interesse nacional, desvirtuam os fms do Estado, corrompem a moral

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pública e apodrecem aquilo que, até agora, o status quo fez passar por democracia e representação. Esse quadro se desenha sempre com vivas cores e máxima fre­ qüência nos sistemas constitucionais de ditadura dissimulada, quais os da América Latina, onde o mandato, por excesso de continuidade e re­ novação indefinidas, perde já as características republicanas, como no caso do Brasil e do Peru, e se reveste cada vez mais de um teor usurpatório, de confisco da vontade popular e de transmutação da chamada democracia representativa em simulacro de governo popular. Demo­ cracia onde o baixíssimo grau de legitimidade participativa certifica a farsa do sistema, assinalando o máximo divórcio entre o povo e as suas instituições de Governo. Quem é o povo, e onde está o povo, nessa forma de organização em que o ente político é objeto e não sujeito, e se viu privado, pela extorsão política, da titularidade de suas faculdades soberanas? Nin­ guém sabe responder. A indagação em parte havia sido dantes formulada com extrema acuidade por Friedrich Müller num de seus mais recentes ensaios de filosofia política, estampado em língua portuguesa. Saber quem é o povo tem enorme importância e atualidade nesta ocasião em que a soberania, clamando por socorro, agoniza nos países do Terceiro Mundo. Seu debate faz-se, de conseguinte, imprescindível na organização da resistência e na construção de um dique aos desígnios da inconfi­ dência tramada e executada pelos usufrutuários da globalização e pe­ los cafres nacionais da recolonização; neles se incluem, por igual, os juristas do neoliberalismo e da sua ideologia de refalsada e aparente neutralidade. Retorquir àquela indagação ficou de último, como se verifica, mais difícil porquanto o povo da pseudodemocracia vigente na era da globa­ lização não é verdadeiramente povo. Os teoristas da reação, recrutados e instruídos politicamente, como todos sabem, nas academias do neoliberalismo, buscam com todo em­ penho legitimar uma globalização injusta que está sendo imposta de forma desfigurada e degenerativa aos povos do Terceiro Mundo. Seu povo é tão-somente a caricatura de um ícone; ontem, estan­ darte de libertação, hoje, por via paradoxa, insígnia e fraude de tiranos e ditadores. Dissimulando o seu poder em vestes constitucionais nos países que o totalitarismo do capital governa, os ditadores da Carta Magna, de

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mãos dadas com os globalizadores - seus patrões internacionais - privatizam, desnacionalizam, desfederalizam e, ao mesmo tempo, opri­ mem o povo, esfacelam a unidade espiritual dos universos éticos e so­ ciais, submetem os territórios recolonizados à servidão das finanças externas, anulam o pouco que ainda sobrerresta de esperança política e jurídica de sobrevivência e embargam e sabotam e bloqueiam até mes­ mo a reinserção plena da Sociedade e do Estado na antiga e clássica democracia representativa, onde o povo dos países em desenvolvimen­ to conserva a forma e não a substância do poder democrático e republi­ cano. 2. Do ponto de vista teórico faz-se mister, portanto, acrescentar e admitir que a democracia participativa, sobre transcender a noção obs­ cura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativos, transcen­ de, por igual, os horizontes jurídicos da clássica separação de poderes. E o faz sem, contudo, dissolvê-la. Em rigor a vincula, numa fór­ mula mais clara, positiva e consistente, ao povo real, o povo que tem a investidura da soberania sem disfarce. Substitui-se assim, numa esfera renovadora, por outra concepção doutrinária a velha divisão de poderes de Montesquieu. O axioma da separação repousa agora numa distinção funcional e orgânica de pode­ res, que é a da democracia participativa, assentada com verdade, soli­ dez e legitimidade, sobre pontos referenciais de valoração cuja conver­ gência se faz ao redor de um eixo axiológico cifrado num único princí­ pio cardeal: o princípio de unidade da Constituição. Com efeito, esse princípio magno e excelso, comum a todo regi­ me constitucional legítimo, é, na forma, a unidade normativa da Cons­ tituição; e, na substância, a unidade espiritual da Carta Magna, ou seja, o espírito da Constituição em seus fundamentos invioláveis. Fora daí nada é constitucional. Tudo se subsume ou se desfaz em infração e quebrantamento da Lei Magna, em ofensa à ordem superior de seus valores básicos, em postergação da hierarquia normativa, em ilegitimidade insanável, em corrosão do sistema consensual de poder. Em suma, é possível também condensar noutras palavras o mes­ mo conceito da seguinte forma: a unidade da Constituição, qual a con­ cebemos, vista pelo prisma formal, é uma hierarquia de normas que estabelece a rigidez e, a partir daí, a superioridade da lei constitucional sobre a lei ordinária, garantindo, desse modo, a segurança jurídica e, ao mesmo passo, a estabilidade do ordenamento; vista porém pelo pris­ ma material, por sem dúvida o mais importante, a mesma unidade da

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Constituição é maionnente uma hierarquia de normas visualizadas pe­ los seus conteúdos e valores. Estes amparam a legitimidade do ordenamento constitucional, cujo fim já não é, apenas, aquela segurança, de todo formal, senão também a justiça substantiva, a justiça material, a justiça que se distribui na so­ ciedade, a justiça em sua dimensão igualitária; portanto, a justiça incorporadora de todas as gerações de direitos fundamentais; da primeira à segunda, da segunda à terceira e desta à quarta, passando pelos direi­ tos civis e políticos, pelos direitos sociais, pelo direito dos povos ao desenvolvimento, até alcançar, com a democracia participativa, onde têm sede os direitos da quarta geração - sobretudo o direito à democra­ cia - um paradigma de juridicidade compendiado na dignidade da pes­ soa humana. Essa dignidade consubstancia, por inteiro, a ordem axiológica do regime e das instituições; é o supremo valor onde jaz o espírito da Constituição. O quebrantamento do espírito da Constituição configura a maior das inconstitucionalidades. As políticas de governo, ofensivas do di­ reito popular e da soberania do país, se não forem tolhidas pela via judicial de controle - o que só nos parece possível numa democracia participativa - legitimam o direito de resistência, bem como a desobe­ diência civil, por derradeiras instâncias de defesa do povo agredido. Assim há de ser naquela forma de democracia cujas Cortes solverão conflitos constitucionais empregando princípios interpretativos des­ conhecidos à hermenêutica clássica, quais, por exemplo, entre outros, o princípio da proporcionalidade. Com tais categorias hermenêuticas se faz, por conseguinte, a pon­ deração de valores, no intuito primacial de assegurar uma ordem jurí­ dica mais justa, impossível de estabelecer ou introduzir se não houvesse uma nova hermenêutica constitucional acostada a valores e princípios. E a hermenêutica da justiça, da materialidade normativa, da concretude jurídica do poder popular, da realização moral do princípio da dignidade da pessoa humana naquele gênero de democracia. Se as garantias participativas asseguradas materialmente nessa nova categoria ou espécie de Estado democrático de Direito não preva­ lecerem, ou forem embargadas, a sobredita hermenêutica constitucio­ nal perderá seu fim e significado e o espírito da Constituição logo che­ gará ao seu termo como princípio de legitimidade, da mesma forma que aconteceu com o espírito das leis (título da obra capital de Montes-

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quieu) enquanto princípio da legalidade, arruinado com a decadência do constitucionalismo burguês da sociedade de classes, que foi a socie­ dade da época do liberalismo. 3. O constitucionalismo da democracia participativa é o mesmo constitucionalismo de luta que prevaleceu no ocidente quando os paí­ ses do Primeiro Mundo proclamavam repúblicas, promulgavam Cons­ tituições ou, em evasivas conservadoras de apego e afeição ao passa­ do, instalavam monarquias constitucionais, afiançando a sobrevivência política dos tronos e das dinastias ameaçadas. É por igual, doravante, o constitucionalismo dos países da perife­ ria onde o espírito da Constituição tem o mesmo sentido histórico que teve o espírito das leis no século da revolução, quando a França liqui­ dou o absolutismo. O Espírito das Leis, de Montesquieu, e o Contrato Social, de Rousseau, foram as obras mais influentes e clássicas na elaboração da doutrina do velho liberalismo e sua ideologia de mutação das bases so­ ciais em proveito da nova classe dominante. A máquina do poder absoluto e dos privilégios feudais, mantida e criada pelo ancién régime, e pela arrogância de seus reis de direito di­ vino, desmantelou-se e produziu um estrondo cuja ressonância chega aos nossos dias, e ainda perdura com a memória dos eventos revolucio­ nários daquela época. As nações do Velho Mundo, durante aquela idade de mudança e rebelião social, espargiam o sangue de seus povos nas guerras civis do Continente. Eram guerras de inspiração libertária, nascidas das idéias propagadas e propugnadas pelos publicistas e filósofos da Revolução Francesa. As invasões napoleônicas, estendendo-se por toda a Europa, se tomaram, depois, deveras significativas a esse respeito. A ditadura im­ perial, tomando a forma do passado, conduzia, porém, as sementes que germinavam o futuro. O presente se consagrava mediante o Código e o porvir mediante a Constituição. O braço dos granadeiros de Napoleão levava oculto, a cada país conquistado, o pensamento constitucional da liberdade. Era o paradoxo da passagem de um extremo a outro, conti­ do e incubado na fereza do antigo general da Convenção que fez as campanhas da Revolução e, com suas armas, decretou o fim das socie­ dades feudais. O seu Código era a base jusprivatista de organização da sociedade civil, estabelecida segundo um método novo e revolucioná­ rio, que enfraquecia, de maneira definitiva, o poder da nobreza e dos reis do absolutismo.

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4. Se traçamos o quadro acima o fizemos tão-somente no intuito de patentear quanta analogia e semelhança se pode extrair da lição da­ quele tempo, e com ela fundamentar a justiça da causa constitucional dos povos do Terceiro Mundo. Não podem eles desfazer-se, portanto, dos conceitos trazidos e inspirados pela ideologia libertadora do sécu­ lo XVIII. Hoje, mais do que nunca, são tais conceitos instrumentos de luta, de extrema valia e atualidade com que conjurar a queda irremissível do povo nos braços da recolonização. Uma recolonização aparelhada pela classe política dominante e por considerável parcela dos juristas a seu serviço, sem consciência do dano causado ao interesse nacional. Por conseqüência - tomamos a reiterar - a bandeira da democra­ cia social e participativa é apresentada pelos globalizadores como ar­ caísmo político, que ainda faz arder a imaginação dos países do Ter­ ceiro Mundo. Todavia, é a doutrina do neoliberalismo que figura como a lâmina mais corrosiva e cortante que já se empregou para decepar a liberdade, a economia e as finanças dos povos da periferia. Nunca, jamais, aquela bandeira foi, porém, tão necessária de has­ tear e conduzir entre os povos do Terceiro Mundo quanto hoje. Arriála seria capitular, e capitular outro sentido não tem senão dobrar a cerviz ao Poder Central da globalização reacionária, ora em curso. E ela que constrói a nova Roma neoliberal do capitalismo. No mundo da economia, das finanças e da política, a globalização significa, inequivocamente, a sujeição completa de todos os povos ao império das hegemonias supranacionais, enfeixadas na ideologia da pax americana. Houve quem já dissesse, com ironia e verdade, que o mundo todo está sendo colocado na gaiola da globalização. Afigura-se-nos todavia que a globalização fez duas gaiolas; uma, de luxo, toda especial - é mais um viveiro aberto, dotado de amplo e arejado espaço reservada aos povos do Primeiro Mundo; outra, pe­ quena, estreita, fechada, suja e obscura, destinada aos passarinhos do Terceiro Mundo. Ficam estes confinados nela para sempre. Quem ali entra há de entrar como as almas no infemo de Dante - ou seja, entram para viagem sem retomo. 5. As reflexões que ora fazemos legitimam, portanto, em nosso universo político, ou seja, em todas as esferas da nacionalidade, a ado­ ção imediata de um constitucionalismo de luta, de resistência, e de

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ofensiva e libertação, que penetra a consciência nacional e se abraça com o mesmo fervor de proteção e o mesmo anseio de conquista, àque­ le que outrora instituiu as liberdades do Primeiro Mundo, nas pretéri­ tas épocas revolucionárias do século XVIII. Vamos, portanto, para o campo de batalha a fim de manter os di­ reitos sociais na teoria e concretizá-los, a seguir, com mais amplitude, na práxis, onde o neoliberalismo já os salteou com golpes mortais des­ feridos sem piedade. Vamos, também, para essa porfia de vida e morte a fim de que não se revoguem nem destrocem os direitos da terceira geração, a saber, o direito dos povos ao desenvolvimento, ou seja, o mais crepitante e o mais urgente dos direitos na versão social e universal da justiça iguali­ tária. Essa justiça é fadada a passar do indivíduo, do trabalhador e do cidadão às gentes sacrificadas da humanidade subdesenvolvida. Estamos, assim, em presença daquela humanidade cujos filhos via­ jam no comboio do progresso em vagão de terceira classe, isto é, nos últimos compartimentos da miséria social, do sofrimento, do abando­ no, da dor, do esquecimento. E a humanidade que tem os pulsos atados às algemas da globali­ zação neoliberal, a escravidão branca do século XXI. Vivem, assim, os povos periféricos num mundo de atraso, ódios, trevas e preconceitos; o mundo das perseguições sociais e das desigualdades iníquas que de­ sonram o século; o mundo onde a dignidade da pessoa humana é, to­ dos os dias, ofendida e conculcada. Enfim, quo vadis liberdade, justiça e democracia? O egoísmo, a traição, o elitismo dos privilegiados dominam os juristas da ditadura constitucional. E agora eu vos pergunto: tendes porventura respeito aos legisladores de gabinete, que redigem e fazem passar por lei as medi­ das provisórias inconstitucionais do governo da recolonização? Se não houvesse o horizonte da democracia participativa, para a qual se convocam, se recrutam e se arregimentam as falanges insubornáveis da mocidade acadêmica e universitária, as esperanças de fazer sobreviver a Constituição, já grandemente destroçada e transgredida, seriam mínimas, com a situação constitucional do país para sempre comprometida. Ao grito de convocação, elas, parte pensante da consciência nacio­ nal, acudiram com sua presença, e aqui compareceram, contra a mídia do silêncio e da ausência, contra o Poder, contra as pressões reacioná­ rias da classe dominante, contra os interesses organizados, contra as

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empresas do capital interno e externo. Atendendo às palavras convoca­ tórias do nosso apelo vieram a estes encontros e seminários ouvir e aplaudir a oração dos constitucionalistas da democracia e da liberdade. Constitucionalistas que vos são fiéis e não vos atraiçoam, qual soem fazer os juristas das medidas provisórias, os deputados e senado­ res das miniconstituintes, os demagogos dos plebiscitos inconstitucio­ nais, os autores de propostas desrespeitosas que afrontam os artigos cardeais da Constituição, designadamente aquele onde bate o coração da Lei Magna, que é o art. 60 da Constituição e seus intangíveis §§ lfi e 4a. 6. Distinguimos no constitucionalismo dos países ocidentais três modelos sucessivos de Direito Constitucional. Primeiro, um Direito Constitucional de geração originária, ou seja, o Direito Constitucional do Estado liberal. Teve ele a primogenitura da salvaguarda das liberdades humanas. Nasceu em sua rigidez formal na Europa, depois de banhar-se de san­ gue ao decurso das grandes tempestades e comoções revolucionárias do continente, sobretudo durante a Revolução Francesa. A seguir, após padecer mais abalos não menos traumáticos, quais os do México, da União Soviética e da República de Weimar, despon­ tou o Direito Constitucional de segunda geração, a saber, o Direito Constitucional do Estado social. Este, em termos institucionais propriamente ditos, aferidos pelo critério da estabilidade, só vingou em países do chamado Primeiro Mundo, porquanto foi neles que se introduziu de maneira mais viva, efetiva e menos programática o princípio igualitário. Todavia, tem-se observado ali, por derradeiro, a ocorrência de um Estado social regressivo, já na esfera teórica, já no patamar programático. Tudo em conseqüência das formulações neoliberais da globalização. De tal sorte que o Direito Constitucional da segunda geração desfigurou-se e tomou, de último, a feição neoliberal, derivada no Primei­ ro Mundo da dissolução dos modelos sociais, da perda de expansão de seus valores, do discurso reacionário dos interlocutores do capitalis­ mo, que colocam, acima de tudo, nas perspectivas globais do progres­ so e da civilização, a dimensão das operações lucrativas, das finanças e dos altos interesses empresariais, criando, ao mesmo passo, nas extre­ midades da tecnologia avançada, esse sofisma de mercado que é a cha­ mada Nova Economia, a qual empurra, paradoxalmente, o Terceiro Mundo, pela via oblíqua das especulações, para o insondável abismo do neocolonialismo.

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Trata-se, em verdade, de um Direito Constitucional avariado, de­ cadente, estagnado, que perde densidade institucional, normativa e jurisprudencial à medida que a fusão federativa se acelera no Velho Con­ tinente. Tal se observa sobretudo nos países que estão prestes a formar uma espécie de Estados Unidos da Europa, algo que, somado à globa­ lização torna mais grave e delicado o problema de legitimidade criado por esse fenômeno. Contudo, o processo globalizador não nos envolve na fatalidade de um determinismo, conforme intentam fazer crer os que nos impe­ lem à retaguarda e à capitulação incondicional, desertando as esferas da política, da économia nacional, da identidade e da soberania. A Cartilha elaborada pelo Consenso de Washington é o breviário do neoliberalismo, o decálogo da recolonização. Podemos, por conseguinte, dizer com toda certeza que um Direito Constitucional atrelado à sua autodissolução, consoante nos querem impor, absolutamente não nos convém nem nos interessa, porquanto solapa todas as conquistas jurídicas e sociais da liberdade nos países do Terceiro Mundo. Acarreta, ao frágil constitucionalismo desses países, varridos por freqüentes crises constituintes, o pior retrocesso de todas as épocas constitucionais. Em razão disso, a resistência é tarefa de todos nós, que havemos de construir em bases teóricas, e depois trasladá-lo à prática, esse novo Direito Constitucional de terceira geração. Pretendemos, assim, na advocacia da liberdade e da Constituição traçar-lhe as linhas mestras, estabelecê-las com nitidez, dotá-las de positividade, fazê-las uma revolução nos fastos do constitucionalismo, a fim de que alcancem, tão cedo quanto possível, um mais elevado nível de democratização da Sociedade. 7. Busca-se, como se vê, fundar o Direito Constitucional da de­ mocracia participativa. Com esse Direito, poder-se-á salvar, preservar e consolidar o conceito de soberania que a onda reacionária do neoli­ beralismo contemporâneo faz submergir nas inconstitucionalidades do Poder, até destroçá-lo por completo. A democracia participativa é direito constitucional progressivo e vanguardeiro. E direito que veio para repolitizar a legitimidade e re­ conduzi-la às suas nascentes históricas, ou seja, àquele período em que foi bandeira de liberdade dos povos.

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A legitimidade formal, despolitizada, posta em bases procedimen­ tais, desmembrada de seus conteúdos valorativos, se encaixa bem nos desígnios subjacentes aos interesses neoliberais, por servir-lhes de cou­ raça, de antemuro, de escudo às suas posições contra-ideológicas, de suposta e falsa neutralidade. A democracia participativa combate a conspiração desagregadora do neoliberalismo e forma a nova corrente de idéias que se empenham em organizar o povo para apôr um dique à penetração da ideologia co­ lonialista; ideologia de submissão e fatalismo, de autores que profes­ sam a tese derrotista da impossibilidade de manter de pé o conceito de soberania. A obsolescência deste é proclamada a cada passo como ver­ dade inconcussa. A democracia participativa porém, se vingar, há de elaborar outro direito constitucional forjado na luta e na rejeição ao neoliberalismo da recolonização. As matrizes básicas de conceitos indeclináveis e inabdicáveis, quais os de soberania, nação e povo, serão zelosamente conservadas e amparadas, porquanto a privação desses pressupostos conceituais e or­ gânicos faria inexeqüível e obstaculizada toda marcha rumo a um Es­ tado de Direito de emancipação social, que a democracia representati­ va de fachada jamais fará possível. 8. A ideologia constitucional dos países do Terceiro Mundo há de ser, por inteiro, distinta da que ora prevalece no cognominado Primei­ ro Mundo. Se insistirmos em seguir à risca as transformações ali produzidas, por efeito de mudanças - processadas sempre no magno interesse de uma globalização concentradora de força, hegemonia e poder, restrita aos espaços confinados da central do capitalismo o constitucionalismo entre nós deixará de existir até mesmo como cópia de modelos ex­ ternos. Restará, tão-somente, a ficção e a caricatura de uma pseudo e evanescente soberania, escarnecida por conceito abstrato e sem con­ teúdo, a par da aceitação resignada da condição colonial irreparável. A chave constitucional do futuro entre nós reside, pois, na demo­ cracia participativa, que faz soberano o cidadão-povo, o cidadão-govemante, o cidadão-nação, o cidadão titular efetivo de um poder inva­ riavelmente superior e, não raro, supremo e decisivo. O cidadão, nesse sistema, é, portanto, o povo, a soberania, a na­ ção, o governo; instância que há de romper a seqüência histórica na evolução do regime representativo, promovendo a queda dos modelos

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anteriores e preparando a passagem a uma democracia direta, de natu­ reza legitimamente soberana e popular. Em face desse contexto é de notar que a direção dos regimes politicos tem obedecido a dois momentos culminantes na evolução do cons­ titucionalismo representativo. No primeiro momento avulta o legislador que faz a lei, inviolável e suprema. Consagra-se o princípio da legalidade. E a época em que prepondera o dogma do racionalismo político e jurídico, em que avulta a inspiração jusnaturalista, logo transmudado num positivismo a cami­ nho da máxima estabilidade. Com as instituições estáveis, por obra dos Códigos, que afiançam a fiel observância daquele princípio de legalidade, o princípio por ex­ celência da segurança jurídica, o Estado liberal entra a festejar a era de esplendor de sua ideologia jusprivatista. No segundo momento a revolução contemporânea dos direitos fundamentais elevados à categoria de princípios, e grandemente des­ providos já de seu teor meramente subjetivista, peculiar à versão libe­ ral de poder e direito, fez despontar a definitiva supremacia normativa da Constituição sobre a lei. Formulou-se então o princípio de constitucionalidade, e introduziu-se a idade nova dos valores e princípios, que determinam a nova base de normatividade dos ordenamentos jurídicos e, ao mesmo passo, o advento da Constituição aberta. Em rigor, Constituição aberta de modo algum, nesse âmbito con­ ceituai, significa perda da rigidez da Constituição. A rigidez garante o funcionamento normal de mecanismos sem os quais não há superioridade das normas constitucionais nem se toma eficaz, nem exeqüível, o controle de constitucionalidade. Um terceiro momento, todavia, já se vislumbra com formação de uma teoria constitucional que nos aparta dos modelos representativos clássicos. Pertence à democracia participativa e faz do cidadão-povo a medula da legitimidade de todo o sistema. Acaba-se então a intermedia­ ção representativa, símbolo de tutela, sujeição e menoridade democrá­ tica do cidadão - meio povo, meio súdito. De todos os períodos constitucionais, o mais crítico é o da demo­ cracia constitucional, porque decide do destino e do futuro dos povos da periferia, perseguidos pelo fantasma da recolonização. Cassar a soberania, como a globalização intenta fazê-lo, de mão comum com o neoliberalismo, órgão primaz de sua singular ideologia antiideológica - aliás uma surpreendente contradição nos anais do pen-

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sarnento filosófico-político! - significa truncar, coarctar ou suspender a evolução constitucional dos países periféricos, arruinados por dita­ duras e pelas mazelas do subdesenvolvimento. Significa, ao mesmo passo, fechar a porta para sempre à concreti­ zação dos direitos fundamentais de cunho objetivo e pluridimensional. Daqui a razão de preconizar-se para esses países um Direito Constitu­ cional de luta e resistência cujas raízes de pensamento e justificação já se acham deitadas, contidas, expostas e definidas em nosso compêndio sobre a matéria. (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 10a edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2000) Com efeito, o Direito Constitucional afigura-se-nos a mais rele­ vante disciplina que versa e expõe, na direção dos valores, as bases jurídicas de uma sociedade verdadeiramente livre. Diante, pois, das graves ameaças de substituição das Constituições pelas Ordenações ou da Lei pelas Cartas Régias, do passado colonial, que hoje tem o seu equivalente nas Medidas Provisórias, faz-se mister, fora de toda controvérsia, se quisermos manter abertos os horizontes da libertação, apelar, outra vez, para as velhas armas do constituciona­ lismo clássico quando ele foi um constitucionalismo de resistência, a sa­ ber: a nação, a soberania, e o povo. Por mais paradoxal e inverossímil que isso possa parecer, são elas, ainda, os mais eficazes meios de defesa e os mais seguros veículos de sobrevivência da identidade ameaçada.

9. Com a democracia participativa o político e o jurídico se coa­ gulam na constitucionalidade enquanto simbiose de princípios, regras e valores, que fazem normativo o sistema, tendo por guia e chave de sua aplicação a autoridade do intérprete; mas do intérprete legitimado democraticamente enquanto juiz eletivo que há de compor os quadros dos tribunais constitucionais. Nisto consiste a essência e o espírito da nova legitimidade: o abra­ ço com a Constituição aberta, onde, sem cidadania não se governa e sem povo não se alcança a soberania legítima. As derradeiras instâncias decisórias hão de permanecer ali sempre vinculadas à emancipação direta da vontade popular. A nova legitimidade assenta, pois, a democracia participativa em instrumentos ou órgãos de concretização como a Nova Hermenêutica Constitucional, indubitavelmente sua mais sólida coluna de sustenta­ ção e efetivação. O elemento interpretativo, ínsito à formação da legitimidade, era dantes, na velha Hermenêutica, ou desconhecido em matéria constitu­

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cional ou menoscabado, aí, por sua natureza acessória, adjetiva e ins­ trumental; já, os conteúdos políticos e jurídicos, estes sim perfazem, com a Nova Hermenêutica, a parte substantiva do sistema e, por con­ seguinte, formam os esteios da nova legitimidade definindo a maneira como se concretiza a democracia participativa. Se não houvesse contudo conexidade inapartável do político com o jurídico, não haveria necessidade de nova hermenêutica para as Cons­ tituições. As Cartas Magnas são, primacialmente, ordem de princípios e va­ lores, necessitados de meios interpretativos desconhecidos à hermenêu­ tica clássica, e sem os quais a juridicidade das cláusulas constitucio­ nais não se traduziria naquelas determinações normativas, por onde se há estabelecido a superioridade hierárquica do princípio da constitucionalidade sobre o tradicional e minguante princípio da legalidade. Deposto se acha este princípio de seu pedestal jusprivatista pela ruína e decadência ideológica do velho liberalismo, cuja racionalidade neutralista das leis caiu no descrédito e já não engana a quem desven­ dou e percebeu o sigiloso semblante axiológico e teleológico das insti­ tuições burguesas e seus mecanismos de autoconservação. É na direção renovadora da hermenêutica constitucional e de sua axiologia, condensada em valores e princípios, que as instituições da democracia participativa hão de achar o caminho para solver seus pro­ blemas; caminho de concretude e não de abstração metafísica e programática, qual se perlustrara em idades constitucionais já ultrapassa­ das, quando a Constituição era tão-somente promessa de liberdade e esperança de democracia. Em razão disso não causava sobressaltos nem, tampouco, vexações ao poder conservador das elites burguesas da sociedade capitalista.

10. Doravante, porém, a Constituição se nos afigura a estrada real que conduz à democracia participativa. Não há como interpretá-la dou­ tra forma quando se trata de fazê-la o meio mais seguro de concretizar o Estado de Direito, as liberdades públicas e os direitos fundamentais de todas as dimensões enunciadas e conhecidas, sobretudo nos países retardatários da orla periférica, onde o subdesenvolvimento trava, como um freio, o funcionamento das formas representativas. A importância da Constituição, ao contrário do que escrevem os ju­ ristas neoliberais, só tem crescido e só há de crescer em virtude da espé­ cie de globalização em curso, que esmaga e confisca as conquistas so­

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ciais do trabalho e faz mais amargo, mais aflitivo, mais retrógrado, mais iníquo, por obra das injustiças do capital, o retrocesso da recolonização. O princípio da constitucionalidade, desatando-se de seus laços de sujeição e vassalagem ao formalismo hierárquico de Kelsen - sem con­ tudo renegá-lo, antes incorporando-o - , fez brotar outra hierarquia, de teor material, a saber: a hierarquia de valores e princípios, doravante sua nova base e fundamento. Desta, uma vez privado o princípio, perderia ele a possibilidade de instaurar a nova hermenêutica constitucional. Essa hermenêutica se funda toda em elementos valorativos, cuja supremacia nos faz chegar à democracia participativa; democracia da concretude e da realidade e não do sonho e da utopia; democracia do povo e não da representação; democracia das massas e não das elites; democracia da cidadania e não do súdito branco, o suposto cidadão dos regimes representativos. 11. Sendo escola de pensamento e teoria jurídica de organização do poder político, a democracia participativa deita suas raízes no con­ tributo filosófico da tópica de Aristóteles na antigüidade e de Viehweg na modernidade. Também foram deveras influentes por trazerem pedras aos alicer­ ces do novo sistema alguns juristas alemães, discípulos do Mestre da Mogúncia. Não titubearam eles em confutar, com o peso de sólidos argu­ mentos, as objeções antitópicas e antifilosóficas de Forsthof, o jurista schmittiano empenhado, sagazmente, em restaurar o prestígio e a au­ toridade do positivismo. Designadamente, daquele positivismo vincu­ lado às vertentes mais adversas à liberdade, qual a do estatismo autori­ tário e ideológico remanescente, que subjaz às doutrinas totalitárias do século XX, todas elas lesivas ao estabelecimento do Estado de Direito. Contudo, onde a democracia participativa haure um de seus subsí­ dios mais destacados, mais corretos, mais elucidativos da sua respecti­ va feição e natureza é, talvez, na obra de Müller, na sua metodologia interpretativa da norma constitucional, sobretudo na sua concepção an­ tecedente, em que, segundo ele, a doutrina clássica, para chegar ao povo - e nunca chegava, segundo ele, em razão das escamoteações re­ presentativas - parte sempre, e contraditoriamente, do ícone para o ci­ dadão e, na viagem eletiva, interceptava-lhe a função soberana, atraiçoando assim a democracia que o povo em verdade jamais exercitou. A teoria estruturante do insigne filósofo de Heidelberg transcen­ de, ao mesmo passo, o quadro lógico do constitucionalismo formal de

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Kelsen, introduzindo-lhe a dimensão material e concretista que é tão importante quanto aquela, porquanto, se uma afiança a juridicidade e a normatividade de prescrição constitucional, a outra, e só ela, compõe a essência aplicativa dos comandos normativos. Em rigor o estruturalismo de Müller prende tais comandos aos conteúdos e desse modo à sua materialidade; esta, objeto axiológico, onde atuam princípios que tor­ nam a norma legítima. Teve o pensador alemão o mérito de patentear a insuficiência de Kelsen na esfera teórica das regras constitucionais, cuja supremacia o Mestre de Viena afiançou e garantiu (controle jurisdicional de constitucionalidade) tanto na interpretação como na aplicação, mas fracas­ sou por haver desconhecido, ou menosprezado, o juízo de materialida­ de, que é, também, juízo de legitimidade. E, sem legitimidade, o direi­ to é injusto e a norma aplicada uma violação dos cânones da constitucionalidade. Afigura-se-nos que os juízos interpretativos de toda matéria cons­ titucional não podem desprender-se, nunca, da esfera política do Direito. Esses juízos, todavia, são resgatados em seu teor científico de ju­ ridicidade ou normatividade pelas aplicações hermenêuticas propostas na concepção do sobredito filosófico, cujo conceito concretista de nor­ ma transpõe o Rubicão kelseniano, desfazendo, por outro lado, a duali­ dade contida na antinomia ser e dever-ser e, ao mesmo passo, a triplicidade desmembrada em elementos tais como norma, fato e valor, con­ forme soem fazer os juristas tridimensionalistas do Direito. Transforma Müller a norma no substantivo da concretude; parte do texto, passa pela realidade, formula a regra e completa o circuito concretizante ao aplicá-la. Os enunciados do texto, ao revés do que cui­ davam os positivistas do formalismo jurídico, ainda não contém a nor­ ma, mas o círculo limitativo de sentido no qual ela deve conter-se, e do qual o aplicador ou o intérprete há de partir para construí-la e aplicá-la, e, depois, dar-lhe o mergulho ou a inserção na realidade fática. 12. A teoria constitucional da democracia participativa requer, por igual, que se destaque a importância do Preâmbulo - dantes, para os juristas do positivismo clássico, mero texto introdutório, de inspiração programática, vazado em linguagem retórica e emocional, e dirigido menos à inteligência que à sensibilidade de seus destinatários, sendo, quando muito, uma espécie de selo moral e ideológico das instituições criadas e introduzidas pelo constituinte.

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Com a democracia participativa, porém, traduzida como democra­ cia de valores e princípios, entende-se que o Preâmbulo, de uma parte, é a suma dos preceitos básicos por onde se governa a Constituição; de outra parte, o patamar mais alto a que pode subir a materialidade nor­ mativa dos princípios, ali enfeixados e cristalizados em síntese para ser­ virem de bússola ao sistema e de luz e critério à aferição da juridicidade derradeira dos conteúdos constitucionais e, ao mesmo passo, de tex­ to onde o espírito da Constituição foi construir a sua morada. O Preâmbulo é, por conseguinte, a diretriz normativa e espiritual da unidade da Constituição. Nele o constituinte de primeiro grau fi­ xou, em termos absolutos e irrefragáveis, a linha de valores que hão de reger o ordenamento. Tem o preâmbulo, de conseguinte, um incalculável préstimo, em se tratando de abrir caminhos ou de achar justificação para uma nova hermenêutica jurídica, suscetível de operar no espaço normativo das Constituições. São estas formadas, grandemente, de cláusulas gerais e abertas, que fazem de crucial importância a tarefa insubstituível do hermeneuta constitucional. O preâmbulo é, pois, a convergência de todos os princípios e de todas as cláusulas constitucionais que compõem e tecem a unidade mo­ ral da Carta Magna, quando esta busca concretizar o princípio dos prin­ cípios, a saber, a dignidade da pessoa humana, a qual outra coisa não é senão a dignidade mesma dos povos. E os povos têm, na democracia participativa, o seu mais acabado instrumento de realização dos direi­ tos de terceira e quarta gerações, que conduzem ao desenvolvimento e à democracia. 13. No Direito Constitucional positivo do Brasil já existe um fragmento normativo de democracia participativa; um núcleo de sua irradiação, um germe com que fazê-la frutificar se os executores e ope­ radores da Constituição forem fiéis aos mandamentos e princípios que a Carta Magna estatuiu. Com efeito, essa democracia ora em fase de formulação teórica, e que é, num país em desenvolvimento como o nosso, a única saída à crise constituinte do ordenamento jurídico, já se acha parcialmente po­ sitivada, em termos normativos formais, no art. I2 e seu parágrafo úni­ co, relativo ao exercício direto da vontade popular, bem como no art. 14, onde as técnicas participativas estatuídas pela Constituição, para fazer eficaz essa vontade, se acham enunciadas, a saber: o plebiscito, o referendum e a iniciativa popular.

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Mas a aplicabilidade dessas técnicas tem sido bloqueada e negada ao povo, à nação, à soberania, por obra de um esbulho. Quem fez porém esse esbulho senão as elites do poder, os usur­ padores da vontade popular, a classe representativa parlamentar, en­ fim, aquelas camadas de políticos e administradores da classe domi­ nante? Se isto não houvesse ocorrido estaríamos, de certo modo, fora dos sorvedouros da crise constituinte, uma crise moral e institucional debilitadora das funções executivas, judicantes e legislativas. E teríamos, de certo modo, dado outro encaminhamento a esta Nação, alterandolhe, provavelmente, o destino. A fidelidade aos artigos l 2 e 14 da Constituição, que ora se impe­ tra, configura, por sem dúvida, o começo de uma antecipação material da democracia participativa, democracia de liberdade e libertação. O caminho para fazê-la vingar entre nós, o mais cedo possível, é a inauguração no magistério acadêmico e na vida pública de um Direito Constitucional de luta e resistência, de conscientização de que os con­ flitos constitucionais gerados pelas medidas provisórias e pelos desa­ catos às sentenças judiciais são um cálculo de desorganização jurídica e moral da sociedade para extinção do regime e das instituições. A teoria da democracia participativa é a teoria do constitucionalismo de emancipação. Teoria radicalmente nacional e patriótica, como convém nesta época de reptos e desafios à sobrevivência da República, maiormente numa quadra em que a globalização e o neoliberalismo dissolvem os valores da sociedade democrática e constitucional e conjuram por uma sociedade recolonizada e submissa ao capital internacional. Sair da letargia e restaurar, assim, as bases da autoridade confisca­ da ao povo é o primeiro dos deveres a ser cumprido na cartilha cívica da democracia participativa. O mais escandaloso confisco de nossa história constitucional por uma elite legislativa depravada foi aquele que, durante cerca de dez anos, manteve o povo, por omissão, preso à menoridade de seus direi­ tos políticos de participação direta na formação da vontade governati­ va, e que ainda prossegue de maneira disfarçada, com a pífia e parca disciplina do exercício constitucional das técnicas participativas da de­ mocracia direta. Inimigo mortal dessa democracia, o neoliberalismo, afivelando a máscara da hipocrisia, diz que sua presença no poder fez o peso do Estado diminuir e as cores de seu perfil coercivo na esfera da cidada­ nia esmaecerem.

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Isto não é verdade. Os fatos documentam outra realidade: um Es­ tado neoliberal que desmantela os direitos sociais e conspira porfiadamente por expungi-los da ordem constitucional. Em verdade, ele só é fraco e desfalcado de autoridade no campo internacional onde tem abdicado poderes e atraiçoado a Nação. Fora daí, na órbita interna, mantém, todavia, reforçados e intactos os tradicionais laços e meios repressivos da sociedade injusta. Deles se vale para servir com extremo zelo e submissão aos interesses e privilé­ gios da classe dominante, dos quais nunca se arreda nem na práxis nem na doutrina. A construção teórica da democracia participativa no âmbito jurídico-constitucional demanda o concurso de elementos tópicos, axiológicos, concretistas, estruturantes, indutivos e jusdistributivistas, os quais confluem todos para inserir num círculo pragmático-racionalista o princípio da unidade material da Constituição, o qual impetra, de ne­ cessidade, para sua prevalência e supremacia, uma hermenêutica da Constituição ou Nova Hermenêutica Constitucional, conforme tantas vezes, em inumeráveis espaços textuais, neste e noutros escritos, já refe­ rimos, debaixo dessa mesma denominação, tendo por desígnio metodo­ lógico e nomenclatural distingui-la da hermenêutica antiga e clássica. Esta conserva por traço distintivo o seu reconhecido cunho formalista e jusprivatista. Omissa, distante e ausente das controvérsias constitucionais por incapacitação de solvê-las, a velha Hermenêutica pouca ou nenhuma ser­ ventia tinha toda vez que se tratava de aplicá-la à matéria constitucional. Com efeito, a dificuldade mais embaraçosa que se lhe deparava residia no elevado teor de generalidade peculiar às cláusulas da Lei Fundamental, de todo refratárias, para não dizer rebeldes, ao emprego dos métodos interpretativos tradicionais. Esses métodos eram peças de uma hermenêutica dedutivista e silogística, inspirada muito mais na ló­ gica que na tópica de Aristóteles. 14. Quem teoriza acerca da democracia participativa, assim como não pode prescindir de uma nova hermenêutica, com o propósito de fazê-la exeqüível, também não pode desfazer-se de um conceito-chave ao concretizá-la, que é o conceito de soberania. A verdade, faz-se mister assinalar que nesse prospecto e nessa or­ dem de reflexões, a soberania constitucional é a verdadeira soberania do Estado - noutras palavras é a soberania do povo havida por pedra angular da democracia de participação.

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Assim concebida, em identidade com o povo, a soberania é quali­ dade do poder, conforme já entendia Jellinek; qualidade do supremo poder popular. Não é, de conseguinte, órgão senão sujeito. A soberania também inspira, na conjugação de todos os seus as­ pectos, as verdades políticas, sociais e morais da sociedade livre e de toda nação que caminha por seus próprios pés. Sociedade e nação, referidas porém à periferia, intentam por todos os meios ao seu alcance desatar-se dos grilhões da servidão imperial e da recolonização. Em razão disso, a soberania, sem embargo das objeções dos globalizadores, que nela vêem um anacronismo da ordem estatal ou uma peça de museu político, é vista do lado de cá como um farol aceso, uma bússola que orienta, uma arma nada obsoleta que a estratégia de libertação dos povos do Terceiro Mundo conserva. Esconjurada pelos globalizadores que encaram nela o maior tro­ peço aos seus desígnios, é todavia encarecida de quantos não se intimi­ dam nem se deixam persuadir por uma dialética da recolonização, dis­ simulada em teses de universalidade e internacionalização do poder. Não perdemos o caminho, nem tampouco a batalha, da soberania - batalha que ainda prossegue na selva dos conceitos pretensamente demolidos pela crítica globalizadora e neoliberal. Esses conceitos são a bandeira da democracia participativa, arvo­ rada para lograr o triunfo de sua causa e derrotar, por conseqüência, as teses dissolventes empunhadas por globalizadores e neoliberais, a fina flor do capitalismo de última dimensão. Que a luta será feroz e implacável, ninguém há de duvidar. No Brasil a resistência se organiza. 15. E de assinalar, de último, que ainda não temos neste País a guarda eficaz da Constituição por um tribunal de juizes constitucio­ nais; temos porém a guarda da Sociedade por um corpo de membros do Ministério Público. São aqueles que nos termos de sua presente atua­ ção se comportam como soldados da Lei Fundamental, sacerdotes do Estado de Direito, órgãos da democracia participativa, que eles fazem passar da região teórica às esferas da práxis e da realidade. Isso alenta em nosso ânimo uma grande esperança no futuro deste País. Se construirmos a democracia participativa, de que todos, com sensibilidade patriótica, somos paladinos e arautos nesta hora de falên­ cia, desmembramento e decomposição moral das instituições, o Brasil

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sobreviverá, o Brasil não será colônia, o Brasil contemplará a nação restaurada na plenitude de seus valores. Porfiando com denodo e destemor e patriotismo democrático, con­ siderável parcela de advogados, juizes e procuradores inscreveram a Advocacia, a Magistratura e o Ministério Público entre os fiéis depo­ sitários da confiança do povo e da nação. Na clássica democracia representativa o povo simplesmente adje­ tivava a soberania, sendo soberano apenas na exterioridade e na apa­ rência, na forma e na designação; já com a democracia participativa, aqui evangelizada, tudo muda de figura: o povo passa a ser substanti­ vo, e o é por significar a encarnação da soberania mesma em sua es­ sência e eficácia, em sua titularidade e exercício, em sua materialidade e conteúdo, e, acima de tudo, em sua intangibilidade e inalienabilidade; soberania da qual o povo, agora, não conhece senão o nome, a fal­ sa representatividade, o falso testemunho, a falsa valorização. Tudo derivado do pérfido engodo de uma demagogia que, invaria­ velmente, desapossa aquele conceito das suas raízes e da sua legitimi­ dade, cristalizada unicamente no elementar respeito à vontade do cida­ dão governante.

16. Postular nos países da periferia um Estado neoliberal é postu­ lar a perpetuidade do atraso e do subdesenvolvimento. O Estado neoliberal, por natureza, essência e substância, é Estado anti-social, de conteúdo burguês, circunscrito aos direitos da primeira geração, girando em redor de um rígido formalismo jurídico e implodido, já, no campo constitucional, pelos direitos das demais dimensões. É também a fórmula do novo Estado mínimo concebido pelos paí­ ses de vanguarda, que buscam, no orbe globalizado, confederar-se para realizar interesses comuns da aliança hegemônica, selada e cifrada na pax americana do Consenso de Washington, a expensas do Terceiro Mundo. Os conceitos de soberania, nação e lei constitucional são, por con­ seqüência, tidos como óbices ao advento do mercado global, e suscetí­ veis de retardar, se não forem logo removidos, a concretização imedia­ ta daquele projeto de dominação. Restaurar tais conceitos, onde foram subtraídos, ou conservá-los intangíveis, onde estão sendo ameaçados, eis a bandeira desse constitucionalismo emergente que, na esfera dos países em desenvolvimen­ to, não pode prescindir de meios interpretativos fadados a manter incó­ lumes as bases do regime democrático-participativo.

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A lógica de libertação da nova hermenêutica constitucional é pa­ tente e de luminosa evidência. Mas, isto, se partirmos da concepção de um novo Direito Constitucional, que se intenta estabelecer, por derra­ deiro, em termos mais do que nunca imperativos nos Estados do Ter­ ceiro Mundo. Aqui uma teoria material da Constituição, com que fundar e legi­ timar a juridicidade estruturante e concretizante desse Direito constitu­ cional nascente, é, ao nosso ver, de todo o ponto, indeclinável. Sem essa teoria, sem esse Direito e sem aquela Hermenêutica, sub­ jacentes aos direitos fundamentais das derradeiras dimensões, respeitantes, respectivamente, à sociedade - direitos sociais - ao desenvolvi­ mento e à democracia, jamais logrará a democracia participativa subir ao patamar da positividade, coroando, assim, a caminhada emancipatória dos povos que constitucionalizam, pelas exegeses interpretativas de conteúdo, a dignidade da pessoa humana, elevada ao topo da pirâ­ mide axiológica e convertida em critério máximo de Hermenêutica constitucional, de civilização política e de cidadania. Aí reside, por inteiro, o substrato de outro constitucionalismo que há de brotar do presente confronto com a ideologia de neutralismo, dis­ solução e abstinência professados pelos juristas e ecônomos do neoliberalismo, que levam à ordem jurídica dos Estados da periferia o seu empenho de oxidar, arcaizar e desmerecer os conceitos clássicos dos sistemas de constitucionalidade. A presença e conservação desses conceitos nos países do Terceiro Mundo faz e afiança, como petição da época, um Direito Constitucio­ nal de luta e oposição. Teorizar tal Direito, e aplicá-lo na ordem normativa, diante da imi­ nência de uma tragédia globalizadora, é dramaticamente necessário e urgente. O desastre neoliberal em curso, invalidando as garantias cons­ titucionais do ordenamento jurídico, ceifa as esperanças dos povos da fronteira neocapitalista em chegar à maioridade, ao mesmo passo que aumenta o temor do retrocesso e da queda na armadilha da recoloni­ zação. 17. A nova Hermenêutica constitucional, criação dos constitucionalistas do Estado social, sabe que o Estado liberal lhe é infesto. Os juristas desta escola, aferrados aos conceitos interpretativos da Her­ menêutica clássica, dedutivista e jusprivatista, faziam da Constitui­ ção uma floresta virgem onde os exegetas das letras jurídicas não pu­ nham os pés.

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Tampouco lhes interessava fazê-lo. Eram, via de regra, positivis­ tas confessos ou, que não o fossem, atados, todavia, às propensões de uma razão lógica, genericamente sem nenhum liame exegético com a materialidade e a normatividade dos princípios, os quais ficavam retraí­ dos à penumbra dos códigos. Não passavam esses princípios de derradeira instância secundária no campo da positividade jurídica. Ministravam soluções hermenêuticas tão-somente quando já se exaurira, em vão, o emprego de toda a metodologia da interpretação clássica. Em razão disso, o silêncio, a indiferença, a omissão, a distância marcavam as posições hermenêuticas dos juristas da linha positivista, formalista e normativista propriamente dita, com respeito ao Direito Constitucional. A materialidade normativa das Constituições ou era por eles igno­ rada ou rejeitada, para efeitos de eficácia concretizante e declaratória de direitos, por afigurar-se-lhes o Direito Constitucional um Direito programático, densamente politizado, impossível de ser tratado pelas vias hermenêuticas tradicionais e, ao mesmo passo, menosprezado por seu baixíssimo teor de juridicidade, ou seja, por sua fraca densidade normativa. Um Direito Constitucional, portanto, que os constitucionalistas do Estado liberal, zelosos de sua falsa cientificidade neutral, lhe dissimu­ lavam a substância ideológica. E faziam, assim, o campo da matéria constitucional de mérito, de­ signadamente os direitos fundamentais, defesa ao ingresso e à inter­ venção dos intérpretes. Não havia como instituir pois uma hermenêutica constitucional ou um controle de constitucionalidade, que não fora meramente político ou preventivo, desprovido portanto de seu teor de justiciabilidade. Observe-se, por igual, a lentidão da doutrina e dos ordenamentos constitucionais em chegar a um controle jurisdicional de constitucíonalidade, do modelo concentrado. E tardança maior ainda em despertar para a necessidade impreterível de criar e aplicar novos instrumentos hermenêuticos, bem como em erigir a distinta metodologia impetrada por um Direito Constitucio­ nal diferente daquele que, até agora, havia prevalecido, em razão da hegemonia jusprivatista, em todas as províncias do Direito.

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Deu-se, porém, a queda dessa hegemonia desde que, ao Direito Constitucional da segurança jurídica e da separação de poderes, suce­ deu o Direito Constitucional da justiça e dos direitos fundamentais; aquele que, duma certa maneira, vem sendo minado pelas fórmulas antinacionais da globalização e do neoliberalismo, a serviço do capitalis­ mo imperial e especulativo de nosso tempo.

18. Todas essas considerações acerca da democracia participativa e da necessidade de fazer do Direito Constitucional uma espécie de muralha defensiva contra a recolonização, ficariam, decerto, incomple­ tos se não fizéssemos menção ao triste papel que os meios de comuni­ cação têm exercido, como órgãos responsáveis, em grande parte, pela passividade do povo diante dos assaltos da globalização e do neolibe­ ralismo à soberania nacional. Com efeito, a mídia, nas mãos da classe dominante, é a mais irre­ sistível força de sustentação do status quo e de seus governos conser­ vadores, impopulares, injustos e reacionários. Afastá-la daquelas mãos, democratizá-la, protegê-la, mediante dis­ positivos constitucionais que lhe assegurem a legitimidade no exercí­ cio de suas funções e deveres sociais, é o primeiro dos pressupostos da democracia participativa. Em verdade, valendo-se da mídia domesticada, da mídia submis­ sa, da mídia estipendiada, o Poder Executivo corrompe a democracia representativa, e corromperá, com muito mais intensidade e desfaça­ tez, a democracia participativa e seus mecanismos plebiscitários. A mídia das elites governantes é incompatível, pois, com a demo­ cracia, com o homem sujeito e não objeto, titular e não súdito, cidadão e não vassalo. Em rigor, sem freios éticos, os meios de comunicação, subsidia­ dos pelas verbas da propaganda oficial, não raro contribuem para per­ verter, arruinar e decompor a moral pública. A negação do altar, da família, da pátria, da identidade do povo, da soberania, do contrato social, dos símbolos e esteios que fazem a consciência da liberdade, da civilização e do progresso, eis tudo quan­ to o mundo neoliberal dos globalizadores, com o ostensivo apoio e cumplicidade daqueles órgãos, subscreve na sua delituosa caminhada de aniquilamento de valores e destruição de esperanças e sonhos ainda presentes na alma dos povos da periferia. O pão, a terra, a justiça, a proteção social, a moradia, a saúde, a escola, os bens corporais, espirituais e morais da sociedade justa e

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igualitária a que doravante aspiram em vão, neste país de contrastes tão duros e atrozes, as massas iletradas e embrutecidas por quinhentos anos de privações e provações sociais, de servidão, de aviltamento da natureza humana, de colonato, de sujeição ao domínio das elites egoís­ tas e corruptas, ficam cada vez mais distantes e cada vez mais fora do alcance das camadas empobrecidas da sociedade brasileira. Instalada a ditadura do privilégio e da impunidade, o estamento minoritário do poder se apartou por inteiro dos soberanos interesses do país, deixando, ao mesmo passo, de seguir as aspirações fundamentais da nação, que permanecem postergadas e preteridas. Com efeito, a mídia, co-autora na execução desse crime, fez-se o mais elevado obstáculo ao advento da democracia participativa. Os la­ res, invadidos pela obscenidade da licença, e esta não é a liberdade nem com ela se confunde, qual já ponderava o grave e sensato Alexandre Herculano no idioma nobre de sua fé política - Herculano cartista, Herculano liberal, Herculano da voz do profeta - , testemunham as agres­ sões morais á família, à sociedade, ao homem de bem. Pelos canais da televisão, em novelas de enredo torpe, escorre toda a podridão das fezes sociais que fazem náuseas a quem conserva ainda o espírito crítico com que reprovar esse homicídio da moral e dos cos­ tumes. Se isto prosseguir, breve a pátria de Rui Barbosa e Nabuco, de Castro Alves e Osório, de Caxias e Pedro II, reduzida a um alcouce, já terá perdido para sempre a memória dos valores, o sentimento da hon­ ra, a consciência da dignidade. Tudo por obra de erradicação da ética social, nesta tragédia da liberdade malcompreendida, mal-exercitada e malprotegida. Somente por via das lutas constitucionais e dos combates da pala­ vra irradiada de todas as tribunas e de todos os meios de expressão, logrará o povo furar a espessa nuvem que encobre e bloqueia de som­ bras e trevas a liberdade e a democracia. A síncope da república é conseqüência traiçoeira da ação das oli­ garquias formadas sob o pálio de um poder confiscado à Nação e sub­ traído ao seu futuro. Obviamente, não há democracia sem povo. Tampouco haverá povo enquanto perdurar o “fascismo social” dos meios de comunica­ ção, enquanto estiverem estes debaixo da tutela da elite governante, enquanto não se purificarem as águas do poder, enquanto os donatários das capitanias da recolonização formarem, com a força do seu patrona­ to, a suposta opinião pública.

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A expropriação dos sobreditos meios, retirados à jurisdição de uma elite depravada, e sua recondução aos fins que lhe foram traçados pela legitimidade constituinte dos autores da Carta Magna, se nos afi­ gura a condição sine qua non de uma democracia participativa do povo governante e da nação alforriada. Se não resolvermos o problema da mídia não resolveremos jamais o problema da democracia neste país. Todo regime constitucional que se estabelecer sem a efetiva participação do povo em grau de soberania será tão-somente formalismo, simbolismo, nominalismo; nunca reali­ dade, fato, substância. Soberano o povo há de ser unicamente nas circunstâncias de nos­ so tempo, se não ficar defraudado do controle da legitimidade dos re­ feridos meios, por onde a liberdade nasce, se exprime e se propaga até deitar raízes profundas no solo da consciência pública. Do ponto de vista material, a liberdade dos meios de comunicação só existe basicamente em proveito da classe dominante; enquanto du­ rar esta síndrome do regime, todas as vias de acesso à democracia par­ ticipativa estarão cortadas ou bloqueadas.

Capítulo 2 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E OS BLOQUEIOS DA CLASSE DOMINANTE m povo sem pão, sem terra e sem fraternidade; uma sociedade sem justiça, sem pátria e sem família - eis aí a extrema privação de valores, acompanhada da suprema negação de princípios, configuran­ do o perfil silencioso de uma ditadura constitucional que desampara as instituições, posterga a tradição federativa e republicana, infelicita a Nação, flagela o universo social e corrompe, com o apoio das elites reacionárias e dos corpos privilegiados, um sistema de poder do qual a Nação se acha materialmente desapossada.

U

O governo perdeu a consciência da nacionalidade, da soberania e da Constituição. Ao invés da república livre, justa e solidária do art. 3a da Carta Magna, instaurou-se, pois, a opressão do suserano, que na presidência governa com medidas provisórias, leis injustas e atos inconstitucionais. O País está fadado a ser nesse regime uma organização de súditos e vassalos e não um povo de homens livres e cidadãos honrados. Mas o povo saberá resistir. Vós sois esta resistência e feris o bom combate. Sem a vossa detenninação de luta, a república já teria perecido. Disse Lincoln que democracia é o governo do povo, para o povo, pelo povo. Dessa máxima lapidar infere-se que o povo é sujeito ativo e passivo de todo esse processo, mediante o qual se governam as socie­ dades livres. Infere-se também que -a participação ocupa, aí, um lugar decisivo na formulação do conceito de Democracia, em que avulta, por conse­ guinte, o povo - povo participante, povo na militância partidária, povo

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no proselitismo, povo nas umas, povo elemento ativo e passivo de todo o processo político, povo, enfim, no poder. Eis, descrita genericamente, a essência da democracia abraçada com a dinâmica do movimento e da ação, ou materializada em aspec­ tos que presumem já sua manifestação concreta ou objetiva, posto que em dimensão fugaz, de contornos ainda por definir, na esfera conceituai. Não há democracia sem participação. De sorte que a participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de po­ der, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses. Aqui se levanta questão de capital importância, que gira ao redor da determinação do conceito de povo, sede da soberania e, ao mesmo passo, sujeito e objeto das determinações de poder; pessoa jurídica su­ prema, em cujo nome, nos sistemas de soberania popular, se rege uma nação. Há algum tempo evidenciamos a conveniência de tratar a noção de povo por três vias dimensionais possíveis: os conceitos político, ju ­ rídico e sociológico. No primeiro, acentua-se a participação; no segun­ do, a cidadania vinculada a uma determinada ordem jurídica; no tercei­ ro, os laços étnicos e culturais que formam a consciência nacional e consentem equiparar o conceito de povo ao de nação. Em razão de seu teor mais abrangente, genérico e específico, é de assinalar que a prefe­ rência recaia no conceito jurídico de povo. Duas perguntas são cabíveis, todavia, para dar mais certeza, ênfa­ se e precisão ao entendimento dessa dicção fundamental, tão atropela­ da de equívocos, atravessada de passionalismos, cortada de erros e abu­ sos. A primeira - que é o povo? - formulada desde Rousseau e Kelsen, e a segunda - quem é o povo? - aperfeiçoada em concretude, e levan­ tada no Brasil por Friedrich Müller, insigne filósofo do Direito, antigo catedrático na Universidade de Heidelberg, que a fez objeto de um en­ saio primoroso, onde ele cuida haver suscitado a questão fundamental da Democracia.' As duas perguntas são quase idênticas, porém suscetí­ veis de sutil distinção, conforme adiante veremos. 1. Friedrich Müller, Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democra­ cia, Prefácio de Fábio K. Comparato, tradução de Peter Naumann, edição original

em português, Max Limonad, São Paulo, 1998.

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A primeira - que é o povo? - vimos formulada no Brasil por Afonso Arinos, em artigo estampado no Jornal do Brasil, edição de 22.8.1963. Ali, o jurista invocava a Constituição, por dizer, esta, que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. E escrevia o publicista mineiro: “Vejamos o que isto quer dizer. Em primeiro lugar o que é o povo? (grifo nosso). Os constitucionalistas não hesitam. Povo, no sentido jurídico, não é o mesmo que popula­ ção no sentido demográfico. Povo é aquela parte da população capaz de participar, através de eleições, do processo democrático, dentro de um sistema variável de limitações, que depende de cada país e de cada época”. As limitações são exclusões impostas por lei, e como, em certos sistemas, os militares, as mulheres, os analfabetos se acham privados de participação, teriam eles, por esse conceito, a nacionalidade, mas não fariam parte do povo, ao passo que o estrangeiro passaria eventual­ mente a fazê-lo se a lei, acaso, lhe desse o direito de acesso à uma! Demais disso, países que não adotassem o sistema democrático não te­ riam povo. Um absurdo! A mesma pergunta Kelsen a fez, dando-lhe porém resposta bem superior. Em sua célebre monografia intitulada Vom Wesen und Wert der Demokratie, escrita nos tempos de Weimar, Kelsen, depois de aludir a uma distinção entre democracia como idéia e democracia como reali­ dade, escreve: “Democracia significa identidade de governantes e go­ vernados, de sujeito e objeto do poder, significa império do povo sobre o povo. Todavia, o que é este ‘p ovo 7 (grifo nosso). Pressuposto fun­ damental da democracia é que pela pluralidade de seres humanos for­ me nela uma unidade. Para isso é o ‘povo’, como unidade, tão essenci­ al que não é apenas objeto senão algo mais, a saber, sujeito do poder. Pelo menos na esfera abstrata deve ser isto. Contudo, não há nada mais problemático para uma consideração dirigida à realidade do fato do que precisamente aquela unidade que aparece sob a designação de povo”.2 2. “Demokratie bedeutet ldentitaet von Fuehrer und gefuehrten, von Subjekt und Objekt der Herrschaft, bedeutet Herrschaft des Volkes ueber das Volk. Allein was ist dieses Volk? Dass eine Vielheit von Menschen in ihm zu einer Einheit sich gestalte, schejnt eine GrundvorausSetzung der Demokratie zu sein. Fuer diese ist das Volk ais Einheit um so wesentlicher, ais es hier nicht nur, ja nicht so sehr Ob­ jekt ais vielmehr Subjekt der Herrschaft ist oder doch der ldee nach sein soll. Und doch ist fiier eine auf die Wirklichkeit des geschehens gerichtete Betrachtung nichts problematischer ais, gerade jene Einheit, die unter dem’ Namen des Volkes auftritt” ( Hans Kelsen, “Vom Wesen und Wert der Demokratie”, Zweite Auflage, Tuebingen, 1929, pp. 14-15).

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Essa unidade, em que o povo, segundo a versão kelseniana, figura como sujeito e objeto, não compreende todavia “as categorias ou gru­ pos sociais porventura enfeixados ou caracterizados por seus contrastes de feição econômica, religiosa ou étnica”, nem, tampouco, a solidarieda­ de de interesses qual “concordância de pensamento, sentimento e vonta­ de” (“ais Uebereinstimmung des Denkens, Fuehlens und Wollens”). Com efeito, formada por uma substância material e cultural, histó­ rica e valorativa, ética e jurídica, o povo é a nação, a consciência de um destino, a força de uma solidariedade, o laço de uma comunhão fraterna, a manifestação de uma vontade aglutinadora. Mas este seria o povo dos sociólogos e não o povo dos juristas. O povo, enquanto estado ou fato jurídico, Kelsen o reduz tão-so­ mente àquela unidade da ordem jurídica estatal “que regula o procedi­ mento de entes humanos submetidos a normas”.3 Compreendendo, assim, o povo mediante visão estritamente formalista, molecular, fragmentária e mecanicista, Kelsen o reduz a “um sistema de atos humanos isolados” (“ein System von einzelmenschlichen Akten”) que a ordem jurídica do Estado estabelece. O homem desse povo não é o homem social, o homem total, físi­ co, espiritual, moral, mas o homem excluído do todo, o homem jurídi­ co, portanto unidimensional, visto pelo ângulo de sua sujeição ao dever-ser, à norma, à regra de comportamento, o homem da volonté de tous - esta, sim, a vontade de todos, e não a vontade geral, é que faz a unidade do povo, determinando-lhe portanto a organização. Tudo, por conseguinte, em oposição frontal ao homem da volonté générale, aquela em que o homem do degrau inferior, entrando em so­ ciedade, só é livre como povo, ou seja, quando ascende ao patamar da vontade geral e se aliena naquele organismo de soberania que é a sobredita vontade. Ali, o poder popular instala a sede de sua legitimidade. No mecanicismo, ponto de partida da tese contratualista de Rousseau, não há povo; no organicismo, ponto de chegada, sim. O povo em Kelsen, ao contrário, é junção ou agregado de vonta­ des; em Rousseau uma só vontade, vontade geral, derivada indubita­ velmente de uma concepção mecanicista em estado rudimentar, susce­ tível de padecer, a seguir, transmutação organicista em seu ponto ter­ 3. “Die Einheit der das Verhalten der normenunterworfenen Menschen regelnden staatlichen Rechtsordnung” (Kelsen, ob. cit., p. 15).

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minai, a saber, na ocasião mesma em que se constitui por vontade nova e superior, subsistente em si mesma, não importa o grau de abstração nem o teor de realidade inerente ao processo de mudança que a fez surgir. Já um terceiro conceito de povo, desenvolvido nas reflexões de Müller, guarda, ao revés daquele puramente formalista de Kelsen, um teor de pluralidade e concretude, posto que o seu ponto de partida, per­ passado de pessimismo, reside ainda no domínio da metáfora, do sím­ bolo, da alegoria. Mas tão-somente como crítica ao povo-ícone, algo que não foi posto por ele; de conseguinte, já encontrado e deformado pelos desvios de sua manipulação política, obviamente executada pe­ los poderes estabelecidos em proveito da classe dominante. Na seqüência de tão admirável análise, movida por inteiro de um senso crítico da realidade, desfilam outras acepções com que o consa­ grado Mestre busca caracterizar “povo”. Todavia, povo ativo, como instância global de atribuição de legitimidade, e destinatário de presta­ ções civilizatórias do Estado, até chegai' ao que nos parece o termo de um profundo desdobramento conceituai: povo conceito de combate, já na região da positividade da democracia. O povo conceito de combate deixa porém em nosso espírito algu­ mas dúvidas. Vamos intentar elucidá-las nas subseqüentes cogitações. Afigura-se-nos que, esse conceito, Müller o concebe por artigo de luta com que neutralizar o mau uso, o freqüente abuso, em suma, a distorcida instrumentalização da imagem carismática do povo-ícone pe­ los poderes instituídos e privilegiados que govemam a sociedade. No caso do Brasil, as “ditaduras constitucionais” e sua classe le­ gislativa servil fazem do povo de Rousseau e da Revolução Francesa uma quimera semântica, uma coluna de sustentação conservadora. A elite hegemônica desfruta o poder, sempre em proveito próprio, fazendo do povo-ícone a base moral do status quo e da legitimação. É o que a história, o passado, a tradição de duzentos anos de continuísmo social da burguesia e das cartas constitucionais atraiçoadas nos certificam. Desvendada porém a hipocrisia da classe dominante, nem por isso se deve rejeitar o conceito de povo-ícone ou riscá-lo de nosso vocabu­ lário; o povo-ícone é o povo do contrato social e da volonté générale de Rousseau, da Revolução Americana e da Revolução Francesa, sem dúvida a mais importante máquina de guerra do pensamento político; povo equiparado à nação ou desta desvinculado no derradeiro período

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convulsão francesa, inspirando, legitimando e escrevendo nas consIfriintes as primeiras Declarações de Direitos incorporadas a textos constitucionais Fez ele essa folha de serviços à democracia, e os que defendem a Causa progressista não se podem desfazer daquela imagem como uma - knpostura ou um engodo, apenas em razão de haver sido utilizada como tal, em determinados sistemas. Com efeito, o absolutismo, desde sua pdesão à monarquia constitucional, adquiriu outra fachada e, sem abju*ar por inteiro o passado, coroou a cabeça de seus reis com nova fórjnula de dominação, palatável aos antigos súditos, reprimidos na resis­ tência e depois conciliados nas outorgas do trono, que os elevou ao patamar da cidadania e os fez “povo soberano”. À verdade, era mais título de condecoração ou indulgência lingüís­ tica esse povo soberano, sem fiel correspondência de poder e sem tra­ dução na realidade. Guarnecia tão-somente os preâmbulos das Cartas outorgadas e suas declarações programáticas de direitos; direitos, aliás, civis e políticos da primeira geração, cautelosa e preventivamente ro­ deados de limitações e atribuídos a um círculo deveras apertado de ci­ dadãos da monarquia. Ou seja, do povo já domesticado, refreado, con­ tido e neutralizado em seus ímpetos revolucionários e responsável pela queda, derrubada e exílio de tantas dinastias do ancién régime. A gramática do poder e a prosa dos publicistas fizeram o termo povo tomar, pois, desde a sua introdução no vocabulário político, o sen­ tido de ícone, ponto de exclamação, interjeição, efígie, mito, dogma, ficção; divindade invocada para sacralizar a força do braço revolucio­ nário nas tormentas que açoitam instituições, varrem privilégios e alte­ ram profundamente a fisionomia e organização da sociedade. Esse povo, tão difícil de definir e tão fácil de conjeturar na impor­ tância constituinte de sua titularidade soberana, marca de nosso tempo, pode, todavia, ser decifrado em seu teor mais significativo, se o ligar­ mos, como já se fez, ao âmbito daquelas duas interrogações, das quais uma foi detidamente examinada nas respostas de Afonso Arinos e Hans Kelsen, as quais, de maneira direta ou indireta, se vinculam de certo modo às reflexões filosóficas contidas no contrato social e na volonté générale de Rousseau. Que é o povo? Quem é o povo? tomamos a interrogar. São estas inquirições substanciais de formulação indispensável em todo ensaio acerca da democracia participativa, porque apontam, de necessidade, para a definição prévia do objeto e do sujeito incorporados naquela dic­ ção ou naquele substantivo.

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A primeira indagação não se desata de um certo teor objetivo, como se nos interessasse primeiro o povo na sua passividade, na sua obediência, na sua qualidade de poder que se legitima por obra e graça de sua essência popular mesma. A indagação se dirige mais ao objeto, um tanto estático, pensado na imobilidade, no repouso, na inércia e, só assim, nos levando a descobrir-lhe depois a unidade, a forma, a impressão, o perfil. Tocante à segunda indagação formulada por F. Müller, ela é mais direta, imediata, concreta, dinâmica, como se personificasse um ser vivo, palpável, inconfundível na ação e no movimento, portanto algo que nos põe em comunicação com um sujeito ativo, concretamente à vista, observável nas energias de sua vontade e mensurável na presen­ ça sensível de seu poder e grandeza. A indagação surpreende porque tem a força de um ultimato à razão e à inteligência para que não tro­ quem a realidade pelo ícone, o qual ontem alojava o pensamento da liberdade moderna nas comoções revolucionárias do terceiro estado e hoje, posto no altar da fé conservadora, serve de legitimar, nas invoca­ ções da hipocrisia, o status quo das ditaduras constitucionais e os inte­ resses da classe dominante. A interrogação, muito feliz e determinativa, arreda, pois, o povo da abstração e do mito e o investiga já na dimensão de sua eficácia participativa: o povo conduzido à esfera da realidade e da concretude, reduzido ao denominador comum mínimo da veracidade de sua parti­ cipação, tão pouca, tão minada, tão sabotada, tão pervertida no proces­ so político contemporâneo. A pergunta, conforme o entendimento que Müller inculca na res­ posta, bateu diretamente na questão fundamental da democracia. Ao tratá-la, como ele o fez, é possível dissipar, ao redor da noção de povo, espessa nuvem de ambigüidades e equívocos que só favorecem os go­ vernantes e as elites reacionárias, perpetuadoras de privilégios e gerado­ ras de ilusões participativas. Tocante à democracia mesma, ela se atrasa porque não pode caminhar no lamaçal do egoísmo e da corrupção. O povo é, paradoxalmente, nas leis, no discurso do poder, nos atos executivos, na política desnacionalizadora, nas privatizações irrespon­ sáveis e nos canais da mídia, um dos bloqueios à democracia de liber­ tação. Bem demonstrou Müller que este “povo” (entre aspas) valeu de escora legitimante à política dos interesses conservadores mais adver­ sos à concretização democrática das instituições.

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Nunca esquecer, todavia, que a reação e os conservadores mais obstinados do passado, ao pugnarem pelas instituições do privilégio, escreveram também, antes da deposição das armas e da assinatura do armistício ideológico, uma vasta literatura política de profanação, re­ sistência e combate ao povo como ícone, contemplando, nessa feroz crítica, um objetivo de todo oposto ao de Müller. Mas logo percebendo a inutilidade da objurgatória e os rumos contrários da revolução, se de­ cidiram a perverter-lhe o uso, e imprimiram, com os lucros auferidos nessa reversão crítica, uma nota de grave suspeição em tomo daquele conceito, que ontem buscavam desacreditar e, hoje, encarando o pres­ tígio e a sedução do mito, cortejam, por garantir posições hegemôni­ cas, das quais não querem levantar mão. E aí, o que subjaz na crítica de Müller é, de todo o ponto, procedente e irretorquível. Visto pois por esse aspecto, principalmente pela averiguação feita no campo fático contemporâneo, é que o povo, como ícone, se conde­ na à crítica e ao argumento daquele pensador, devendo seu emprego pelas elites conservadoras ser tenazmente desmascarado e combatido. Com efeito, erguido o pressuposto fundamental de todo sistema democrático de poder que é o “povo”, tomado e considerado já por tan­ tos ângulos, faz-se mister contudo assinalar que na última feição exa­ minada - a do povo enquanto ícone - entra ele, conforme já se pode inferir, na categoria dos bloqueios que vamos relatar, e que solapam, no perímetro das resistências ocultas e dissimuladas, o advento do po­ der democrático, o poder real e efetivo do povo concreto, vivo e palpá­ vel. São bloqueios todos eles impeditivos e confiscatórios do exercício legítimo da vontade popular, que é manipulada, escamoteada e ultrajada. Ocorrem tais bloqueios, significativamente, dentro e fora das Constituições, dentro e fora dos Três Poderes tradicionais, encastela­ dos também na sociedade e na organização do Estado e da economia. Não importa tanto o lugar onde ocorrem; importa, sim, o dano que Ocasionam ao povo e o embargo que opõem à democracia participati­ va, retardando-lhe o avanço, desmantelando-lhe a estratégia de expan­ são, depravando-lhe a qualidade, diminuindo-lhe o grau de eficácia. Tudo, em última análise, por obra de usufrutuários do poder, indi­ ferentes ao bem comum, à ética no exercício das magistraturas execu­ tivas, à conservação dos valores superiores que fundamentam o sisteconstitucional. Democracia, ao nosso ver, é processo de participação dos gover­ nados na formação da vontade governativa; participação que se alarga

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e dilata na direção certa de um fim todavia inatingível: a identidade de governantes e governados, meta utópica, que traz à memória a imagem amortecida de Rousseau configurada na hipótese da democracia como governo de deuses. Contudo, há certa forma de democracia que se acerca bastante des­ sa identidade, da extrema perfeição, da legitimidade absoluta, da visão de um povo que se governa por si mesmo, coisa que Rousseau disse jamais se haveria de ver, e da restauração do modelo ateniense, sonho e utopia gravados no coração e na fé de todos os democratas. Hoje, todavia, já se começa a vislumbrar a possibilidade de fazê-la vingar nos anais do terceiro milênio, abraçada com os processos tecnológicos que impulsionam a libertação do pensamento político e a alforria de seus meios de expressão. A democracia direta do voto no computador caracteriza o crepús­ culo da intermediação, peculiar à democracia indireta do voto na uma. O futuro iminente revoga o passado, abolindo a técnica de bloqueio, mais difícil de afastar. Descortina-se assim a idade nova da democracia direta, democra­ cia do século XXI, democracia direito da quarta geração, coroando, na linha histórica, um processo que leva o povo das regiões metafísicas do contrato social à sede das constituintes investidas na soberania popular. Isto aconteceu depois que os órgãos do privilégio caíram e as cas­ tas feudais se desagregaram e, ardendo nas chamas da revolução ou sendo decapitadas na guilhotina, desapareceram por obra do desforço das multidões oprimidas e sublevadas. Chegou-se, enfim, à idade contemporânea, com a democracia cumprindo, assim, lenta e dificultosa peregrinação de dois séculos, as­ sinalada de avanços e recuos, de triunfos e reveses, eclipses e irradia­ ções de luz, mortes e ressurreições. A democracia aponta, invariavelmente, em todas as épocas, para uma progressão participativa e emancipatória, que avança com lenti­ dão, mas em grau e qualidade que surpreende. Vejamos, a seguir, assim na doutrina como na práxis, que bloqueios ou empeços retardam, dificultam ou paralisam a marcha democrática para o futuro. Concretizar a democracia é, num certo sentido, em termos de fazêla eficaz, remover esses bloqueios, desobstruir caminhos de participa­ ção, afastar obstáculos que lhe foram erguidos ou lhe são levantados com freqüência, para estancar-lhe a correnteza das idéias. Busca-se in-

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tcrromper um processo, tolhendo o curso à navegação popular rumo ao exercício do poder legítimo e democrático. Basta deitarmos uma vista panorâmica sobre o curso da idéia de­ mocrática e sua institucionalização desde as regiões do poder estabele­ cido. E logo verificaremos a essência dessa verdade: não se chega a um grau razoável de governo consensual sem a consideração da ver­ dade histórica - que é histórica e também contemporânea - dos inume­ ráveis óbices já afastados, a que outros, porém, sucederam, em mani­ festações impressentidas e singulares, abatendo, até mesmo, nas sociedades menos vulneráveis, a força e o ritmo de introdução do princípio democrático, exposto, de último, a fraturas mais e mais graves e fre­ qüentes. O descompasso, a desproporção, o fosso, porém, entre a idéia e a realidade da democracia são tão grandes nos países em desenvolvimen­ to que, ali, por um paradoxo, os professores de ciência política e ciên­ cia constitucional já postulam, com suas fórmulas teóricas em sede ob­ jetiva, o advento dos direitos de quarta geração. Seriam estes, entre ou­ tros, o direito à democracia, cuja dimensão universalizadora nos faz atribuir sua respectiva titularidade ao gênero humano. Transcende-se, assim, a natureza legitimante do indivíduo, do grupo ou da coletivida­ de nacional (um povo) para colocá-la na razão concreta da humanida­ de. Esta compõe o pedestal supremo de um valor jurídico posto em quarta dimensão. A verdade fática nos ensina todavia que nos sobreditos países - e este é, também, o caso do Brasil - a democracia, enquan­ to forma participativa, quase naufragada, ainda permanece direito da primeira geração, ou forma de governo em estado rudimentar, rodeada de escolhos, de transgressões, distante, muito distante, por conseguin­ te, de lograr, na contextura social, a concreção das expectativas políti­ cas e jurídicas do regime. A participação deu princípio à democracia na categoria tradicio­ nal e clássica dos chamados direitos fundamentais da primeira gera­ ção. Percorreu, a seguir, lenta evolução pelo caminho da subjetividade. Direito da primeira geração, a democracia se concretizava aí apenas no domínio individual e na dimensão subjetiva. Seu titular, por conseguinte, é o indivíduo, o cidadão, o sujeito, enquanto membro ou partícipe de um processo onde a democracia não alcançava ainda a vertente principiai da positividade, que aufere dePois nas Constituições, quando se reconhece que os princípios são mais direito do que idéia ou norma programática.

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Do ponto de vista qualitativo, ao assumir, porém, a dimensão ob­ jetiva, o direito fundamental à democracia varia de titularidade axiológica e se traslada do cidadão para o gênero humano. A politização da espécie, assim personificada, o fez eixo referen­ cial de toda a dignidade participativa, convertida, doravante, em ins­ trumento universal de libertação, mas instrumento que se deseja efeti­ vo, concreto e não abstrato; a um tempo, ação e palavra, verdade e dog­ ma, valor e fato, teoria e práxis, idéia e realidade, razão e concreção. Afigura-se-nos que a verdadeira substância política da democra­ cia participativa deve incorporar-se ao direito constitucional positivo sob a designação de democracia direta. Mas esta expressão não corres­ ponde, com extremo rigor, ao símile grego da antigüidade clássica, por­ quanto o modelo nela contido, extraído de fórmula mista consideravel­ mente atenuada, mantém no seu receituário político de organização e função elementos representativos remanescentes e subsidiários, sem embargo de haver deslocado, já, o eixo da soberania, em bases funcio­ nais, dos corpos intermediários do Estado - as casas legislativas e os órgãos executivos - para a sede da autoridade moral, centralizadora e suprema, que é o povo, desbloqueado no exercício direto e vital de suas prerrogativas de soberania. Tal modelo de democracia participativa direta conserva ainda a aparência de uma forma mista, típica das chamadas democracias semirepresentativas ou semidiretas, bastante conhecidas da nomenclatura política pós-Weimar, mas com esta diferença capital: seu centro de gra­ vidade, sua mola chave, em todas as ocasiões decisivas, é a vontade popular, é o povo soberano. A parte direta da democracia é máxima, ao passo que a parte representativa será mínima; uma primária ou de pri­ meiro grau, a outra secundária ou de segundo grau. Poder-se-ia, até, dizer, em termos matemáticos, num cálculo de aproximação, que a de­ mocracia participativa direta é noventa por cento mais direta que re­ presentativa. Enquanto isto, a democracia do sistema constitucional brasileiro se mostra na essência o reverso, em virtude da execução que se lhe tem dado por obra do bloqueio representativo quase total, que obscurece, usurpa e invalida o teor de democracia direta constante dos artigos l 2 e 14 da Carta Magna de 1988. Esteve esse bloqueio prestes a converter-se numa inconstitucionalidade material no caso específico da reserva de lei do art. 14, até que, enfim, o Congresso Nacional sanou a omissão, legislando frouxa e bran­ damente sobre as técnicas plebiscitárias instituídas pelos constituintes.

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Somos uma democracia bloqueada, uma democracia mutilada, uma democracia sem povo; o que, aliás, é singular contradição de for­ ma e substância, porquanto se suprime aí o passivo das liberdades e dos direitos humanos. Nossa fragilidade tocante ao Estado democrático se faz tamanha que não logrou o País concretizar sequer, num razoável grau de abran­ gência social e positividade, os direitos fundamentais da primeira di­ mensão, do status negativus, posto que, noutra esfera, conforme dan­ tes assinalamos, a publicística de nossos pensadores já teoriza direitos que sobem ao patamar da quarta geração. Se houve copiosos e admiráveis adiantamentos no círculo dos di­ reitos fundamentais da segunda geração - aqueles que compreendem os direitos sociais e as conquistas obtidas no campo da batalha social em três épocas constitucionais (1934, 1946 e 1988), o retrocesso neoliberal, em sua aventura reacionária de aniquilamento de tais direitos, os colocou debaixo da gravíssima ameaça de supressão, com o bloqueio desnacionalizante levado a cabo pelas reformas govemistas, que são designadamente artigo prioritário do pacto de vassalagem e recoloni­ zação firmado no Consenso de Washington. O bloqueio executivo da democracia está em curso em todo o País, conduzido numa velocidade sem paralelo nas ditaduras, e com a força e o efeito aniquilador de um petardo que viesse espedaçar instituições e inaugurar a tenebrosa confusão, aliás já criada, no ordenamento jurí­ dico, por um governo que se tinge das cores da constituição, mas que, em verdade, é a anticonstituição, a antidemocracia, o antigovemo; en­ fim, a negação dos postulados e valores pelos quais em nossa história cimentamos cerca de dois séculos de constitucionalismo ao longo do Império e da República. Sendo, de todos os bloqueios, o mais feio e o mais nefasto, o blo­ queio executivo se faz palpável pela destruição do ordenamento cons­ titucional e pelo desrespeito aos tribunais e descumprimento freqüente de medidas judiciais, bem como por uma hipertrofia de leis de exce­ ção, via medidas provisórias, que ferem o princípio da legalidade, usur­ pam competência legislativa do Congresso, pospõem requisitos consti­ tucionais de urgência e relevância na expedição das sobreditas medi­ das. De último, o bloqueio recrudesce com uma pletora de propostas de emendas constitucionais inspiradas nos bastidores do Planalto, em número de 5. Uma vez aprovadas, derrubariam frontalmente a Consti­ tuição, corrompendo o processo de emenda constitucional, liquidando com a rigidez do § 22 do art. 60, desfigurando e aniquilando o poder

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constituinte derivado, promovendo intervenções plebiscitárias, deter­ minando e promulgando revisões constitucionais intempestivas. As miniconstituintes, culminando o desastre, arrasariam a face já contraída da democracia direta, tropegamente esboçada com a lei regulativa da aplicação dos institutos populares do art. 14 da Carta Magna. A par do bloqueio executivo, concorre o bloqueio judiciário da democracia, retratado na incapacidade e omissão que se observa de fa­ zer o Supremo Tribunal Federal funcionar como Corte Constitucional e, assim, desempenhar, em toda a latitude das expectativas sociais e judiciais, o papel de guarda da Constituição. Por conseqüência, faz-se mister resgatar um múnus desatendido e imposto pelo constitucionalis­ mo contemporâneo e sua hermenêutica de princípios, que é a herme­ nêutica da legitimidade e da constitucionalidade material, hermenêutica dos direitos fundamentais pluridimensionais, com prevalência norma­ tiva de valores, do quilate daqueles estampados na dignidade da pes­ soa humana, e na inviolabilidade da soberania, em face de políticas de governo lesivas aos interesses da nação. Sem embeber-se em tais fontes, sem fazer uso da hermenêutica de princípios, não há como retirar aquela Corte do Olimpo de sua indiferença à crise constituinte, por onde a democracia, o Estado de Direito e a separa­ ção de poderes se oxidam na essência e na base de suas instituições. Dando seqüência às reflexões antecedentes, verifica-se que outro bloqueio judiciário precisa também ser removido: aquele das resistên­ cias oficiais à criação de um tribunal constitucional propriamente dito; um tribunal específico, que fizesse o povo sentir de perto quanto lhe seria valiosa uma judicatura suscetível de arrostar, sem cautelas exces­ sivamente inibitórias, o problema constitucional, já hoje incontomável, da politicidade do Direito. Abrir-se-ia, por essa via, um espaço efetivo de controle de consti­ tucionalidade das ações governativas que transgridem o princípio da soberania, os artigos I2 e 3“ da Lei Maior, solapando o interesse públi­ co do País e atentando contra a moral, a honra e a dignidade de um povo. Tal aconteceu no caso dos Acordos sigilosos do Fundo Monetá­ rio Internacional e das privatizações de 1998, que desnacionalizaram a economia brasileira e não deram ao povo ocasião de plebiscitá-las, a fim de fazê-las, senão legítimas, ao menos admissíveis. Faz-se mister, por conseguinte, desbloquear os artigos l 2 e 32 da Lei Maior, sem os quais não há democracia, nem república, nem federação. Ao lado do povo-ícone na sua forma de efígie da vontade popular manipulada - e que serve, apenas, para manter o sistema de dominação

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a estrutura representativa do regime se converteu, também, por mais paradoxal e singular que pareça essa assertiva, num dos mais podero­ sos bloqueios à instalação de uma democracia direta. Desde muito o argumento da perfeição e legitimidade dos institu­ tos de representação fora impugnado e combatido por Rousseau, o au­ tor mais festejado das teses do contrato social. Radical propugnador da democracia direta, teorizou ele a superio­ ridade desse modelo nas páginas brilhantes, ricas e inspiradas de sua monumental obra de pensador político. Mas Rousseau, tão extremado que era, recuou de sua posição de rigidez e ao escrever as Considerações sobre o Governo da Polônia contemporizou com as formas representativas do Estado moderno. A realidade havia derrotado o filósofo. Mas a sua objeção era in­ destrutível e imortal. Seu triunfo ficou adiado. Não importa que ele houvesse feito ressalva à democracia direta nos grandes Estados. O pro­ gresso, indo além dessa ressalva, acabou, de último, por removê-la, fa­ zendo exeqüível o sonho que fora utopia. Já o dissemos, em outro lu­ gar, com o elogio da informática. Mas havia algo, em termos de bloqueio, que Rousseau não tinha previsto. Se a representação consistira numa alienação, muito mais grave ela se tomou quando, segundo a práxis do regime, as oligarquias re­ presentativas fizeram do povo-ícone, do povo-objeto, a justificação, a licitude, a escusa e o endosso de seus egoísmos contra o povo real, o povo legítimo, o povo titular efetivo da soberania usurpada pelas elites. Nessa cadeia de reflexões, a visão pessimista e cética dos publi­ cistas de nosso século, acerca da impossibilidade de introdução da de­ mocracia direta por forma de govemo do Estado modemo, aparece, também, nítida em juristas do quilate de Kelsen, que não atinavam com outra saída para a crise do sistema representativo senão na democracia parlamentar. A outra modalidade de democracia, ou seja - a direta - afiguravase-lhe impossível por duas razões fundamentais: a primeira residia na extensão do Estado modemo e a segunda na multiplicidade de tarefas atribuídas ao Estado.4 4. “Denn nur in der unmittelbare Demokratie, die mit Ruecksicht auf die Groesse des modemen Staates und die Vielfaeltigkeit seiner Aufgaben keine moeglich politische Form mehr darstellt (...)” (Kelsen, ob. cit. p. 24).

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Quer louvassem, quer condenassem a fórmula representativa, os juristas da velha escola liberal tinham por parecer comum a sua inevi­ tabilidade. Nisso todos estavam acordes. Era a canonização de um blo­ queio definitivo. Mas se o autor da Teoria Pura do Direito vivesse ainda este fim de século, com certeza teria reformado, já, seu juízo, doravante insubsistente, em razão dos incomensuráveis progressos tecnológicos alcan­ çados na idade da informática. Com efeito, a utilização das máquinas eletrônicas de sufrágio invalida, tecnicamente, o argumento daquele ju­ rista e de outros que pensavam igual a ele, e faziam idêntico reparo. De tal sorte a objeção se desvanece, que o bloqueio à democracia dire­ ta, pela suposta natureza das coisas, no caso, a natureza mesma do Es­ tado moderno, que seria, de necessidade, e, portanto, inelutavelmente, um Estado de democracia representativa, já desapareceu de todo; é um anacronismo no transcurso do milênio. Resta examinar, perfunctoriamente, outra forma de bloqueio à de­ mocracia direta, de muito mais gravidade impeditiva e profundeza que o que acabamos de avaliar. Com efeito, trata-se aqui da mídia - esta, sim, a caixa preta da democracia, que precisa de ser aberta e examinada para percebermos quantos instrumentos ocultos, sob o pálio legitimante e intangível da liberdade de expressão, lá se colocam e utilizam para degradar a von­ tade popular, subtrair-lhe a eficácia de seu título de soberania, coagir a sociedade e o povo, inocular venenos sutis na consciência do cidadão, construir falsas lideranças com propaganda enganosa e ambígua, repri­ mir e sabotar com a indiferença e o silêncio dos meios de divulgação, tomados inacessíveis, a voz dos dissidentes e seu diálogo com a socie­ dade, manipular, sem limites e sem escrúpulos, a informação, numa aliança com o poder que transcende as raias da ética e tolher, enfim, a criação de uma opinião pública, livre e legítima, consciente e oxigena­ da pelos valores da justiça e da liberdade. Se o bloqueio já é perverso, executado por brasileiros, breve se fará insuportável, comandado por agentes estrangeiros da recolonização. Os legisladores do govemo-vassalo introduziram no Congresso projeto de lei que consente a participação da fazenda externa nas em­ presas da mídia brasileira, derradeiro capítulo no livro de traição nacio­ nal, que o neoliberalismo escreve debaixo das vistas curtas e resigna­ das de um povo silencioso. Quando os invasores consumarem o domí­ nio ou monopólio da mídia, restarão, tão-somente, ruínas daquilo que foi a identidade nacional, perdida na voragem da recolonização.

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A democracia é palavra. E a palavra, associada à verdade, é veícu­ lo de pensamento que tem vida, poder e expressão. Associada, porém, ao embuste e à mentira, passa a ser um blo­ queio. Assim tem acontecido com a palavra democracia, enquanto nar­ cótico da classe dominante. Tomada por imagem da cidadania, e propugnada com virtude e lealdade, a democracia de participação guardará, sempre, a pureza de suas linhas mestras e conceituais, e, pela correção de seus traços, não há de pertencer, nunca, àquele fascículo de palavras vãs que não for­ mam idéias nem conceitos, por serem de todo estéreis e vazias. Mas formam ícones da elite exploradora, que tolhe a restituição da democracia à verdade original da fórmula grega, em que o “demos” é a vocação do povo para lograr a autodeterminação de seus destinos. Eis aí, por conseguinte, em grossas pinceladas, o retrato dos blo­ queios de uma democracia que vai a pique nas águas turvas do projeto globalizador e neoliberal da recolonização. Conjurando contra a Constituição e o regime, o governo do neoliberalismo cria um Estado vassalo, uma feitoria colonial, uma socieda­ de de servos do capital, sem memória de seu passado de lutas pela ci­ dadania, quando foi povo e nação e hoje é, tão-somente, este cadáver que a ideologia dos globalizadores embalsamou, depois de inocularIhes a peçonha da morte e da destruição. Mas o cadáver há de ressuscitar!

Capítulo 3 A IDEOLOGIA DA GLOBALIZAÇÃO E O ANTAGONISMO NEOLIBERAL À CONSTITUIÇÃO á em nosso tempo duas categorias de juristas: os da legalidade e os da legitimidade, os tecnocratas e os retóricos, os das normas e regras e os dos princípios e valores, os juristas do status quo e os juris­ tas da reforma e da mudança. Eu me inscrevo nas fileiras do segundo grupo, porque sendo ambos ideológicos, um pertence à renovação e ao porvir ao passo que o outro se filia na corrente conservadora e neutralista. Mas este último, sem embargo de apregoar neutralidade, professa, em derradeira instância, uma falsa e suposta isenção ideológica e, pelo silêncio e abstinência, acaba por fazer-se cúmplice do sistema e das suas opressões sociais e liberticidas. Estas explicações eu as dirijo ao leitor por obra de consciência e convicção, maiormente por um dever de probidade intelectual. Quero, assim, desenvolver este tema numa linha de compromisso político e jurídico com a Constituição, como a vejo e interpreto, figurando-se-me que o seu substrato é de fundamental teor axiológico. Fora desse pris­ ma, a ideologia da globalização, que faz soçobrar a Constituição, é de todo o ponto indecifrável e incompreensível. Há na Constituição de 1988 quatro colunas principiais e axiológicas sustentando esse complexo normativo que é a Lei das Leis. Acham-se elas, conforme convém assinalar, no Preâmbulo e nos artigos 1“, 2Qe 3o, que nos consentem determinar a essência, a substân­ cia, a natureza da Constituição. Em rigor o espírito da Magna Carta, a matriz da soberania, a uni­ dade do sistema, a ata do contrato social, o caráter das instituições es­

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tabelecidas por obra do poder constituinte originário, encontram ali sua sede, portanto, a chave interpretativa de todos os preceitos e regras con­ tidos na esfera do ordenamento jurídico. São aqueles artigos, de conseguinte, a luz, a razão, a lógica com que se elucida a juridicidade e o alcance de todos os conteúdos consti­ tucionais. Na guerra à globalização do Consenso de Washington faz-nos fal­ ta a imagem de um De Gaulle, e vamos dizer porquê. Privado da soberania sobre suas finanças desde o desastre de ja­ neiro de 1999, quando ocorreu a queda do real, o>Brasil passou a ter no solitário do Planalto um novo Petain, sem as glórias de Verdun ilus­ trando-lhe o passado, o qual ambos renegam. O apóstata da sociologia da dependência instalou no País um regi­ me de Vichy, títere daquela globalização e daquele Consenso. As analogias com a França da Terceira República são patentes. O Brasil do ano 2000 se apresenta desnacionalizado, recolonizado, pri­ vatizado, amargurado, oprimido e sublevado, vivendo debaixo da ocu­ pação do FMI. Perdeu a guerra do capital e o seu mercado, o seu sisteina bancário, o seu parque industrial, quase tudo se trasladou às mãos e ao domínio dos invasores. Milhões de desempregados atestam o colapso da economia, a ca­ tástrofe, o desgoverno, a desorganização moral e material da socieda­ de, a passividade do povo, a regência sem freio de uma classe domi­ nante que esqueceu, nas ante-salas do FMI, a soberania nacional, e se curvou submissa à humilhação das pressões externas. O Brasil deste começo do terceiro milênio nos traz, pois, à memó­ ria a França de junho de 1940, despedaçada, invadida, desfalecida e agredida na sua honra, nas suas tradições, no sangue atraiçoado dos seus filhos, na indignidade com que viu o território da pátria talado pela invasão estrangeira e o povo da Marselhesa e da queda da Basti­ lha acorrentado e entregue por Petain e Lavai, dois traidores, à sanha de Hitler, o ditador do III Reich. Mas do outro lado do Canal da Mancha a voz de um general patrio­ ta conclamava o povo francês a prosseguir a luta, ao mesmo passo que formava, no exílio, um governo livre de salvação nacional e de resis­ tência republicana. Aqui o País todo se acha ocupado por banqueiros e multinacio­ nais estrangeiras. Vistos por esse ângulo, somos colonos e não sabe­ mos. Somos servos da gleba e nos supomos, ainda, cidadãos. Vivemos

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na sujeição de uma ditadura dissimulada, regidos por mais de 4.100 Medidas Provisórias, e cuidamos que nos governam as leis constitucio­ nais da república federativa. Se esta é a dura realidade da época mais infeliz de nossa história, a lição da França, segimda pátria literária e cultural de várias gerações de brasileiros ilustres, mostra como se tornou possível a um povo re­ nascer das cinzas do holocausto e, outra vez, empunhar a bandeira re­ dentora da causa constitutiva de sua identidade. Mas assim não crêem nem pensam os que invocam a cada passo a fatalidade irrecorrível da sentença globalizadora, os que perderam a ju­ risdição sobre nosso destino, os que nos governam carentes de legiti­ midade, os que sacrificaram e alienaram a soberania nacional e conculcaram o princípio da divisão de poderes, os que violaram o § 42 do art. 60 da Constituição, a saber, a regra magna das cláusulas intangíveis da Lei Maior. E como não crêem, e relaxam as fibras do patriotismo, ou estão perdendo já o sentimento de nacionalidade, passam a estilar ódio con­ tra os arautos da Constituição. E o fazem pelas colunas e veículos da mídia assalariada, vislumbrando, com falsidade e má-fé no verbo do cidadão nacionalista, que critica e combate a presente forma de globa­ lização, unicamente a demagogia dos mitos, a arte política da retórica, a imaginação sem raiz na realidade, o pensamento fora da razão, como se a consciência da defesa do interesse nacional não fora, a esta altura, o primeiro e mais poderoso argumento do discurso ideológico contra a felonia e a falácia do neoliberalismo. Quem disser que a ideologia é a religião dos demagogos mente. Quem disser, porém, que a ideologia dirigida para a justiça é o código da liberdade, profere uma grande verdade. Nesta última direção caminha o nosso pensamento desatado de qualquer temor à repreensão vinda daqueles que, rancorosos e calcu­ listas, maldizem os ideólogos da liberdade e intentam arremessá-los ao descrédito da opinião. Somos, sim, ideólogos, na medida em que a idéia de liberdade e justiça nos ampara e acompanha. Somos ideólogos da democracia ao mesmo passo que juristas das causas constitucionais. E o somos para defender com denodo a sobera­ nia deferida ao povo, a soberania popular e nacional, que é o princípio de nosso sistema, o axioma cardeal da organização política, econômica e social da nação.

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Sem soberania e sem povo, co-irmãos inseparáveis, a Constitui­ ção é farrapo de papel. Nada garante, nada protege, nada preserva. Deixa de ser Constituição e orfana os direitos fundamentais. Destrói a harmonia dos poderes, mina a federação, faz prevalecer na repú­ blica, em tudo e sobre todos, as iniqüidades do sistema. O advento da globalização e a feroz instauração de seu colonialis­ mo gerado nas entranhas da tecnologia contemporânea acrescentaram ao vocabulário em uso nos meios de comunicação uma semântica do poder, em que o cidadão é o consumidor, a sociedade é o mercado, o Estado a capitania de um império, a Nação, uma agregaçãò de súditos e vassalos, a soberania, um fóssil da ciência política, o agricultor, um servo da gleba, o trabalhador, um ocasional prestador de serviços, não raro, um desqualificado, um imolado desse processo econômico seleti­ vo e eliminatório que o arremessa ao desemprego. E o desemprego, em seguida, faz dele um desertor dos direitos sindicais, um ente aflito, despersonalizado, submisso, resignado, colhido nas malhas do desespero social, donde não pode desprender-se. O muro das organizações sindicais fazia o capitalismo estremecer, mas agora vai sendo aos poucos derrubado. Em busca da sustentação do emprego, o trabalho baixa a cabeça ao capital e, capitulando sem termos, entrega seu espaço de luta ao inimigo; aquele espaço onde há conquistas que somam batalhas sociais de dois séculos. Duas ditaduras regem a economia brasileira. Uma interna, que tro­ peça a cada passo sobre os artigos da Constituição; outra, externa, que tem de sua mão as rédeas do poder - e o tem pela asfixia financeira, pelos empréstimos onerosos, pelos ditames do FMI, pelos dogmas neoliberais do Consenso de Washington. De tal sorte que se dita a este País uma política econômica traçada acinte para reduzi-lo à condição de colônia. A ditadura estrangeira pro­ cede portanto com a mesma desfaçatez das Cortes de Lisboa, quando, deslembradas de que eram um colégio de soberania inspirado nos pos­ tulados da Revolução Liberal do Porto, decretavam contraditoriamente para o Brasil as leis regressivas da recolonização. Se não houver, pois, um basta à política da dependência, ou seja, uma insurreição cívica ao pactum subjectionis, à perda da soberania, à ab-rogação do contrato social, à desaparição do povo-nação, tudo quan­ to fomos ou almejamos ser, como dizia Rui Barbosa, cairá em mãos dos renegados; daqueles cuja política, alheia à honra e indiferente ao futuro da Nação, tem corroído brios e degradado a sensibilidade da so­

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ciedade brasileira e de um povo, cuja história incorpora heróis e márti­ res do quilate de Tiradentes e Frei Caneca. É este porventura o destino que vós quereis? É esta a república que ireis transmitir aos vossos filhos e netos? A leitura da vossa consciência, dos vossos corações, das vossas almas, responde-me que não. Nem poderia ser de outro modo, senão dificilmente teríeis comparecido a este recinto. Aqui protesta uma as­ sembléia de juristas da democracia, aqui se arma o palco às forças de resistência, aqui se abre um teatro de luta àquelas correntes de cidada­ nia que querem recuperar um País desgovernado, humilhado, prostituí­ do pelas elites do Poder. A aventura globalizante do capitalismo faz tudo retrogradar àque­ la idade que primeiro os socialistas utópicos e depois Marx descreve­ ram como de grande dor e tragédia existencial. Uma idade que corres­ ponde ao capitalismo industrial da primeira fase. Que faz hoje a pena dos intelectuais da democracia e da naciona­ lidade, qual a palavra dos pensadores sem compromisso com o status quo, senão combater a nova escravidão, a nova miséria, o novo terror, a opressão infinita que desponta na linha ascendente do capitalismo es­ peculativo? O neoliberalismo, furtando-se à culpa, abriga a tirania de um de­ terminismo, que é unicamente de fachada, adrede concebido para to­ lher e escamotear a adoção de políticas nacionais hostis às invasões desnacionalizadoras da globalização. Essas invasões alienígenas assinalam a mais brutal coerção finan­ ceira de todas as épocas, já empregada por um sistema de concentra­ ção de capitais ou por uma máquina de dominação dos mercados. Mas não estamos aqui para chorar e, sim, para resistir. Eu leio, novamente, gravado em vossas faces o sentimento de re­ volta, a certeza de que o País não sucumbiu, mas foi traído. Quem o atraiçoou? Vós bem o sabeis. As elites governantes, cuja decadência e baixeza de padrões éticos, cujo ódio social e deserção às causas do País soberano as fizeram ajoelhar-se prostradas diante dos piratas da moeda e do câmbio. Soçobrada a economia, liquidada a dignidade dos poderes legíti­ mos, aquelas elites farão o País cair na indigência ou na súplica miseri­ cordiosa do socorro alienígena. Em razão disso consentem cláusulas como aquelas, estipuladas nos acordos do FMI, que sacrificam a inde­ pendência nacional.

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Não têm as elites, assim, consciência de que no texto constitucional se acha o código de nossos direitos fundamentais, o estatuto da repartição de poderes e competências com que se limita a ação dos governantes. Do ponto de vista político, com relação ao futuro do Estado nos países subdesenvolvidos, faz-se mister tomar por dogma uma inversão da fórmula marxista acerca da compreensão superestrutural do Direito. O Direito, mais designadamente a soberania, enquanto artigo de vida e morte, passa a ser nos países em desenvolvimento, ao lado da Constituição, a infra-estrutura de todos os poderes, cuja titularidade no povo ou em a nação é inabdicável. A inversão, convertendo a soberania em infra-estrutura de todos os processos sociais e econômicos, tem logicamente nesse conspecto algo imperativo com que contrarrestar o ímpeto das forças avassalado­ ras desencadeadas pela globalização. Só aos incautos e usufrutuários da submissão ao capital estrangei­ ro logra essa atitude de combate à mais feroz e perversa e desumana forma de globalização parecer algo adverso à civilização, à tecnologia, ao progresso. O ouro do FMI é muito mais concreto e visível que o antigo “ouro de Moscou”, e de aparência, aliás, menos insidiosa. De aparência, tãosomente. Durante as décadas da expansão soviética, a burguesia agredida não dissimulava os seus sobressaltos ante um eventual colapso do ca­ pitalismo. Se, dantes, o ouro de Moscou, tantas vezes vituperado e temido, e supostamente contrabandeado e introduzido no Terceiro Mundo, por vias clandestinas e sub-reptícias, era o fantasma que financiava as gre­ ves, os tumultos, as subversões do estamento obreiro, agora é o ouro do FMI a moeda palpável das elites dirigentes, o dinheiro que elas fa­ zem circular na economia, jorrado dos empréstimos internacionais da globalização, o numerário enfim que a tecnocracia financeira implora e mendiga. Troca-se por ele a soberania dos povos. A estratégia da globalização consiste em extrair, pois, das chama­ das economias emergentes os lucros que engordam as magnas empre­ sas, os magnos bancos, as magnas especulações. E fazem mais pesado, entre os emergentes, o fardo das vexações tributárias, a taxa de juros, o pagamento dos empréstimos ruinosos, e, com isso, o confisco das ri­ quezas nacionais, inaugurando a era do colonialismo universal sob a égide da potência hegemônica.

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Eis ai a definição da pax americana, eis aí o perfil da globaliza­ ção, tão louvada dos economistas borocochôs e dos juristas tupiniquins por ela cooptados. Agora o inimigo é a Santa Aliança dos capitalistas globalizadores, pertencentes ao Clube das Sete Grandes Potências. São todos neoliberais e intentam confiscar a soberania nacional. A eles nos entregamos, passivos, em oprobriosa capitulação, indigna dos fastos da nacionali­ dade. Eu só vejo analogia a esse respeito - e disso já fiz menção em outro trabalho - no que aconteceu com a União Soviética. Lá 28 mi­ lhões de combatentes tombados nas estepes, enfrentando a fúria inva­ sora, não tiveram a memória honrada pela covardia do líder eslavo, he­ rói do capitalismo e traidor da nação socialista, cuja união de povos dissolveu, acabando, assim, com a bipolaridade do mundo e deixando sem alternativas, à mercê da pax americana dos globalizadores, a sorte infeliz dos países da periferia, do Terceiro Mundo, do subdesenvolvi­ mento. A globalização entre nós não veio de repente. Guarda semelhança com o que aconteceu durante o século XVII, quando houve a chegada às costas do Brasil, em períodos distintos, de duas esquadras invasoras. Aqui também os neoliberais do Consenso de Washington, tomando por alvo a soberania nacional, e valendo-se de armas que escravizam e corrompem, mas não derramam sangue, já fizeram duas investidas, das quais a mais funesta e devastadora é esta cujos estilhaços caem sobre as nossas cabeças, transformando a independência do País num enor­ me ponto de interrogação até agora sem resposta. A primeira investida, introduzindo na economia brasileira o poder das multinacionais, que aqui chegaram para ficar, já foi, porém, absor­ vida. Está sendo vítima o Brasil de um crime hediondo e inafiançável perante a consciência de seu povo atraiçoado: o crime da recolonização. Crime premeditado, ora em execução, que poderá desintegrar o povo e dissolver a nacionalidade. Figure-se, acaso, Rui Barbosa redivivo, fazendo a exegese desse poder que corta à nação as raízes da sua identidade. Que de expressões contundentes de verdade e condenação não sai­ riam da pena cívica e indignada do bravo e genial baiano! A globalização, que retarda a nossa maioridade econômica e social, se apoderou da Praça dos Três Poderes, a mesma Praça onde Juscelino

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Kubitschek, com sua ousadia de estadista e sua genial compreensão do porvir, encurtava os caminhos do desenvolvimento e da emancipação. No afã de acelerar a criação de um Brasil Novo queria o constru­ tor da Nova Capital dar um passo mais largo e ambicioso para erguer o país do futuro, enquanto seus sucessores timbram, obstinados, por man­ ter um país injusto, um país do passado, um país do retrocesso, do obs­ curantismo, da fraqueza, da desesperança, da desigualdade. E tanto re­ trocederam, já, nessa política de terceiro reinado que, ao invés de um país, a reação nos devolve uma colônia. A recolonização em curso culmina, por conseguinte, toda uma es­ tratégia traçada com frieza, cálculo e determinação, cuja seqüência já se percebe, inexorável, nos pontos cardeais sobre os quais ela assenta e fere de morte a soberania: a desnacionalização, a desestatização, a desconstitucionalização. A saudade do que fomos há de contrastar assim com o silêncio, a tristeza, o sentimento e a dor do que poderemos vir a ser, se não mu­ darmos imediatamente de rumo: um povo que já não é povo, um ente que perdeu a voz, um corpo que se desprendeu da alma, uma vontade que não se manifesta, um simulacro de cidadania sem dimensão histó­ rica, um ser que as elites decapitaram; enfim, nação convertida em co­ lônia ou cadáver embalsamado pela história no sarcófago das nações extintas. À globalização do capitalismo neoliberal e especulativo, vamos contrapor, no âmbito político, a globalização democrática, cujas raízes históricas, fora do campo meramente teórico, se configuram em três momentos de euforia que fizeram arder a imaginação dos povos duran­ te anos de luta, incerteza e assombro. Assim foram para os destinos do gênero humano as décadas de 30 e 40 do século XX. Com efeito, quem viveu e atravessou aquele largo período, e nós o vivemos e atravessamos, podendo disso dar testemunho, tinha a im­ pressão, a partir da mensagem de um mundo só, de Wendell Wilkie ou da bandeira do Universo das quatro liberdades içada por Franklin Delano Roosevelt, em seu discurso de alforria, lançando as bases da Alian­ ça Atlântica contra o nacional-socialismo, de que, extintas as chamas da guerra e espancadas as trevas do totalitarismo de extrema direita, tudo ia melhorar e mudar. Nem melhorou nem mudou, apesar de que dois outros documen­ tos sucessivos, a Carta das Nações Unidas, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, deram novo alento e con­

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fiança aos povos, porque prometiam outra vez concretizar um futuro de paz, justiça e liberdade. Em verdade, nestes solenes papéis, o século XX reescrevia e atua­ lizava, com mais objetividade e harmonia da razão prática, a retórica universalista que fizera crepitar as labaredas da Revolução Francesa, carbonizando as instituições do feudalismo e cunhando a moeda ideo­ lógica do lema “liberdade, igualdade e fraternidade”. Mas a guerra fria, as transnacionais, a unipolaridade e, ultimamen­ te, a globalização acabaram com esse sonho e fizeram fenecer as espe­ ranças de um mundo melhor. De último, a literatura dos escritores políticos neoliberais e a polí­ tica dos governos de submissão, que lêem pela cartilha do Consenso de Washington, interpretam o advento da globalização como fatalida­ de, determinismo ou capítulo que a história teve que aditar, de necessi­ dade, aos anais da civilização. E com isso intentam justificar-se, mas não conseguem. A globalização é pior que o holocausto dos hebreus durante a Se­ gunda Grande Guerra Mundial. Na matança do povo judeu houve o sacrifício de seis milhões de vidas, mas o povo sobreviveu. Tocante à globalização brasileira, é de notar que aqui não se cei­ fam vidas. Ceifa-se a Nação. Ninguém sabe, por conseguinte, se esta há de sobreviver a tamanho abalo do Estado, da soberania e da ordem econômica, conforme temos reiteradamente assinalado. A seguir, vejamos como o Executivo na globalização do neoliberalismo é o antiespírito das leis, o anti-Montesquieu, o dissolvente da separação de poderes, o desafeto da legalidade e da legitimidade. Vejamos também o que as Medidas Provisórias fizeram da nossa Constituição, juridicamente rebaixada a um decreto-lei de duzentos e tantos artigos, revogáveis ao livre-arbítrio de uma magistratura presi­ dencial, mais infesta ao Estado de Direito e às garantias da liberdade que os generais da ditadura de 1964 ou que o chefe civil do regime de exceção de 1937, regime cognominado de Estado Novo, tanto quanto o sistema de 1988 é alcunhado de Nova República. Vejamos enfim como se espatifaram as garantias constitucionais, como se aniquilaram as cláusulas de intangibilidade da Lei Maior, ou como pereceu a inviolabilidade do ordenamento federativo e republi­ cano em matéria de competências e direitos.

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O perigo daquelas Medidas Provisórias para a ordem constitucio­ nal há decorrido de sua utilização abusiva, que confere aparência de legalidade às expansões de arbítrio do Poder Executivo. Tais expan­ sões fizeram do Presidente da República um superpoder e um superlegislador. O Presidente exara Medidas Provisórias sem observância dos re­ quisitos constitucionais de urgência e relevância, conforme ocorre com extrema freqüência. Atua ele desembaraçadamente como usurpador, ofuscando os demais Poderes, sobretudo o Legislativo. As Medidas Provisórias já somam cerca de 4.750, batendo desse modo um recorde quantitativo sem precedentes. Juntando os decretosleis do Estado Novo aos da ditadura militar de vinte anos, verifica-se que eles não perfazem sequer a metade das Medidas Provisórias e, sen­ do inferiores em quantidade, lhes são ao mesmo passo superiores em qualidade - porquanto mais bem redigidos! Até no arbítrio as Medidas Provisórias se apresentam mais funes­ tas que os decretos-leis por invadirem todos os campos do Direito, o que as ditaduras republicanas do passado jamais fizeram. Se o excesso de legislação ordinária faz corrupta uma república, como os romanos já advertiam, imagine-se o excesso de Medidas Provisórias, aos milha­ res, destroçando os princípios da legalidade e da constitucionalidade. Em que espécie de república constitucional vivemos nós! Com toda razão, a consciência jurídica da Nação repulsa a Medi­ da Provisória, ao mesmo passo que pede a sua supressão por inimiga do Estado de Direito e do princípio da divisão de poderes. O presente Govemo editou mais de duas mil Medidas Provisórias, sendo que uma delas - a de n. 1.463 - versando sobre salário mínimo foi reeditada 60 vezes! E de assinalar, porém, que a Medida Provisória tem tido também a cumplicidade ostensiva dos legisladores. No govemo Collor, em 1991, a Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei da oposição que reduzia a uma única vez a reedição desses atos, bem como os vedava no campo da legislação tributária. Odiadas pela Nação, que as encara como o mais abominável ins­ trumento da ditadura constitucional, as Medidas Provisórias se têm mostrado inimigas dos direitos fundamentais e das garantias Nunca o País perderá da memória que foi com essa ferramenta do arbítrio e da prepotência que o Presidente Collor confiscou as poupan­ ças e as contas correntes do povo, a foro de reduzir o meio circulante,

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golpear a inflação e assegurar o bom êxito da reforma monetária intro­ duzida, que restaurava o cruzeiro. A Medida Provisória do confisco teve o n. 168. Como se vê, as Medidas Provisórias proliferam e se multiplicam no corpo das leis quais células de um tumor maligno. Urge extirpá-las de vez, porque, do contrário, serão fatais à democracia e à Constitui­ ção. A falência do instituto criado pelo Constituinte de 1988 para re­ mediar, em casos de urgência e relevância, a lentidão legiferante do Congresso, é manifesta. Ele tem sido um desastre para o País, representando um dos mais graves descalabros de nossa história constitucional. Eu diria, até, que vale por certidão de óbito do presidencialismo. Sendo a forma presidencial uma ditadura dissimulada, não pode caminhar sem o encosto ou a bengala da Medida Provisória. Idêntica, por conseguinte, na sua aplicação, aos decretos-leis dos regimes de ex­ ceção. Aliás, mais nociva que tais decretos porquanto, ao expedi-la, o Governo finge que dá obediência à Constituição quando em verdade está dando vazão ao arbítrio dos seus agentes. As medidas provisórias desorganizam o País, liquidam o princípio da separação de poderes, corrompem a moralidade administrativa, fe­ rem direitos adquiridos, espedaçam o regime federativo, promovem a insegurança jurídica. E onde há insegurança jurídica não há Estado de Direito. O Presidente da República, governando com Medidas Provisórias, é, na substância, um ditador constitucional. Assume o papel de legisla­ dor único, cuja vontade onipotente não acha freios ao exercício do seu poder. Em suma, o Brasil não pode continuar convivendo com esse ins­ trumento deformado, que anula o princípio da separação de poderes, e instala sobre as ruínas da Constituição desrespeitada a ditadura do Po­ der Executivo. Com medidas provisórias, e reformas constitucionais inconstitucio­ nais, quais a da reeleição presidencial, o Executivo já resvalou na dita­ dura e já desferiu, debaixo da inércia, do silêncio e da indiferença ora da sociedade, ora das elites, um golpe de Estado nas instituições. É golpe de Estado distinto daquele da versão habitualmente conhecida. O problema todo é como legitimar, doravante, o poder dos golpis­ tas institucionais.

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A ruptura da ordem institucional já houve, desde o golpe branco que alterou as bases do sistema, com o Estado, a soberania e a Consti­ tuição mutiladas por uma política desnacionalizadora da economia e geradora de colossal dívida intema e externa. A conseqüência, advinda da invasão de capitais estrangeiros especulativos, veio a ser a abertura da porta à recolonização, ora em curso. O golpe de Estado tradicional derrubava governos, mas não afeta­ va a ordem institucional do Estado nem feria a soberania. Não tinha a índole do golpe de Estado material, este em andamento no País, arrasa­ dor e letal. Era golpe de outro estilo, velho conhecido dos governos constitucionais que o padeceram. Golpe formal, introduz ele as ditaduras sem acarretar, todavia, o desmantelamento das instituições nem abalar-lhe os alicerces da esta­ bilidade. E golpe a que podem conduzir as crises constitucionais, das quais é filho, ao passo que o outro - o golpe de Estado institucional, incomparavelmente mais devastador - nasce no ventre da crise consti­ tuinte. A nova modalidade de golpe, aplicado pelo neoliberalismo e pela globalização, desferido paulatinamente por governantes comprometi­ dos com a nova ideologia, transcorre sem que a sociedade se capacite de sua preparação e aplicação, ou perceba, de imediato, a profundeza e a gravidade de seus efeitos desestabilizadores e subversivos. Ele abala todos os fundamentos sobre os quais assenta a organização nacional. Num certo sentido o golpe de Estado institucional faz obsoleto o golpe de Estado clássico, pois, à sombra dos ícones da Constituição e da soberania, formalmente mantidas, realiza os fins externos que inte­ ressam aos globalizadores, dos quais, eles, os neoliberais, são títeres, cúmplices, agentes ou testas de ferro ideológicos e governativos. Para dissimular melhor a invasão do espaço institucional, manten­ do a sociedade paralisada e privada de percepção do que ocorre, os globalizadores e os que ora se acham no poder prescindem do golpe de Estado formal para chegar aos seus fins, melhor atendidos pela via gol­ pista institucional aqui denunciada. Esta não suscita tantos protestos nem arregimenta tantas resistências como o golpe de Estado do mode­ lo tradicional e ostensivo. Visto que ainda perdura a memória da ditadura de 64, e as cir­ cunstâncias lhe são adversas em razão da crise, os autores do golpe de Estado institucional, por impotência, abrem mão do outro golpe, e, de maneira mais cômoda e menos traumática, alcançam os seus propósi­

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tos primordiais: garantir a continuidade do poder e a execução da tare­ fa recolonizadora. E o fazem a serviço de interesses que não são abso­ lutamente os do povo brasileiro, cuja sobrevivência fica gravemente ameaçada e comprometida. A nação brasileira se acha sufocada, e os meios constitucionais, expostos às pressões da realidade vigente, não oferecem, de imediato, saída à crise. A tormenta poderá tomar ramos de todo inesperados e o govemo, tendo perdido já a legitimidade em ano e meio de renovação de seu mandato, está sujeito, por seus erros e inconstitucionalidades, a perder também a força e o prestígio do princípio da legalidade no exercício do poder. Se isto ocorrer, será trágico. Há inimigos internos e externos que se assenhorearam do Poder e conduziram o País à presente situação. O inimigo intemo é o neoliberalismo, que fez a crise; o inimigo extemo é o globalizador, que dela se beneficiou. Benefícios tirados do holocaus­ to da economia e dos juros de uma dívida por onde a Nação perde e sacrifica sua independência, atada ao FMI, e sem capacidade de nego­ ciar, em termos razoáveis, com a agiotagem de seus credores estran­ geiros. No Brasil a independência foi proclamada, não foi conquistada. A conquista da independência é guerra que prossegue, ferida no campo das lutas sociais, no mercado, nas bolsas de valores, nos atos e tratados da diplomacia, nas mesas de negociações das dívidas públicas, nos or­ ganismos internacionais que regulam a economia, no confronto com as pressões do capital estrangeiro. É a mesma guerra pela democracia, por uma democracia substan­ tiva, material, participativa, em que o social ocupa o espaço maior, onde muitas batalhas já foram travadas e perdidas, sem que se tenha, todavia, perdido a guerra. Esta continua em todas as frentes da políti­ ca, da cultura, da economia, da saúde, da educação e da sociedade. Quem diz Brasil independente, diz Brasil democrático, ou seja, diz a mesma coisa, porquanto as duas expressões se eqüivalem, se combi­ nam, se fundem numa só verdade, compondo uma unidade absoluta de valor e afirmação. A relação do povo com a elite é relação que caminha, portanto, para o divórcio e a ruptura. O povo desconfia das elites, e as elites já não respeitam o povo. Tendem a afastá-lo, cada vez mais, do esquema globalizante que inspira o neoliberalismo.

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Quem se põe a examinar a situação constitucional do Brasil, des­ de a Carta de 1988 e a restauração do sistema representativo do Estado de Direito, percebe nesse balanço de doze anos que o quadro contem­ porâneo das instituições é escuro e sofre muitos bloqueios. Tais blo­ queios têm impedido, por exemplo, o exercício eficaz da dimensão constitucional da democracia direta contida no parágrafo único do art. lfl da Carta, bem como o pleno exercício dos Direitos Fundamentais da segunda e da terceira gerações, que compreendem, por excelência, os direitos sociais e o direito ao desenvolvimento. Tudo isso concorre para a precariedade de um compromisso está­ vel, de natureza participativa e democrática, entre o povo e as elites. E, com isso, as franquias constitucionais da democracia direta estabeleci­ das pelo Constituinte caem no esquecimento e na ignorância do povocidadão. No Brasil, o povo permanece incorruptível. Em verdade, dizia Rousseau, é possível enganar o povo - e como ele tem sido enganado! - mas corrompê-lo, nunca! Já, as elites, estas se corrompem, e agora atravessam sua pior crise moral. Estamos assistindo a um processo de abastardamento e destrui­ ção das elites brasileiras que se autodissolvem. Elas são resignatárias de um status que até então lhes assegurava a tranqüilidade de seus pri­ vilégios. E, para não perdê-los, debaixo da pressão social, se tomaram vassalas de poderes externos. Abdicaram, assim, a hombridade nacional e, sacrificando a sobe­ rania nas privatizações desnacionalizadoras, se entregam acovardadas à globalização. Mas os globalizadores nem sequer dispõem de uma teo­ ria global, de argumentos persuasivos e arguciosos que possam entre­ gar às elites para absolvê-las do crime da desnacionalização. Não há pois como legitimar a submissão das nações atraiçoadas e destruídas em sua identidade e independência. E esta a tragédia deste começo de século: o divórcio entre o povo e as elites. Entre quem govema e quem é governado, entre quem é ci­ dadão e não quer ser súdito, entre o Estado e a Nação, entre o poder e a sociedade. As elites se alienaram, o povo não. Na teoria, o nexo entre o Estado e os direitos fundamentais é o seguinte: ontem, o Estado concedia ao cidadão direitos fundamentais e se autolimitava; hoje os direitos fundamentais se expandem e, onde há democracia e Estado de Direito, eles tendem a submeter o Estado ao seu império. De tal sorte que não há Estado de Direito sem a observân­

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cia dos direitos fundamentais. Com esta verdade inconcussa podemos asseverar que só existe sociedade aberta, juridicamente organizada, se prevalecerem aqueles direitos. No entanto, a realidade hoje é diferente, após o advento da globalização e do neoliberalismo. A sociedade se contrai nos países em desenvolvimento e o Estado, por deserção e omissão e míngua de recursos deixa de cumprir o programa social dos direitos fundamentais. Conseqüência: o poder do Estado continua maior que o poder da Sociedade, ainda que se trate de um Estado demissionário de suas res­ ponsabilidades sociais como é o Estado da ideologia neoliberal. E a hipertrofia do poder do Estado será mais aguda no Estado Social das ditaduras dissimuladas que subjugam e devoram o Estado Social das democracias constitucionais, depois de revogar-lhe ou destruir-lhe as garantias fundamentais. Com o neoliberalismo, o peso do Estado não se tomou menor, nem desmaiaram as cores de seu perfil coercivo na esfera da cidadania. Ele só é fraco perante a sociedade externa, no campo internacional, por ab­ dicação de poderes, por alienação do patrimônio nacional, por consen­ timento, nas privatizações funestas; mas frente à sociedade intema, mantém, talvez reforçados, os tradicionais meios repressivos e, por sem dúvida, mais elevados os níveis de compulsão. Toda a história constitucional do Brasil, no que toca à democra­ cia, se acha resumida no título, exclusivamente no título, de uma obra de Alexandre Herculano: Lendas e Narrativas. A lenda é a democracia; as narrativas, os atos inibitórios e bloqueadores com que as elites egoístas e dominadoras estorvam, desde a Constituinte de 1823 ou, mais precisamente, desde a Revolução Per­ nambucana de 1817, o exercício da liberdade, tolhendo o livre acesso do povo à Democracia. O Brasil viveu, até hoje, quase dois séculos de lutas e fracassos constitucionais abraçado com um constitucionalismo de traições e cri­ ses constituintes. O mais recente e retumbante fracasso ocorreu com a Constituição de 1988, atraiçoada desde o decreto de convocação da Constituinte, portanto antes mesmo de sua elaboração. Cabe aqui a seguinte pergunta: que traição houve aí? A pergunta é necessária para esclarecer uma verdade que não pode nem deve ficar oculta. Depois de uma ditadura de vinte anos e de uma campanha da grandeza e legitimidade das Diretas-já, teve o povo brasileiro talvez a melhor ocasião de sua história para estabelecer uma ordem constitucio­

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nal legítima, onde sua vontade realmente prevalecesse, e pusesse fim à crise constituinte. Todavia, as elites, mais uma vez, embargaram esse desideratum do povo e da nação. Em razão disso, não houve como romper com este triste ciclo de constituintes outorgadas, de baixa legitimidade, que re­ montam ao Império, e se fizeram habituais ao longo de todas as repú­ blicas constitucionais inauguradas desde 1891. Constituinte outorgada é pior que Constituição outorgada. Pior porque é disfarce e contrafação da legitimidade, podendo gerar, como gerou, a ditadura constitucional em que estamos atolados. Nossas cons­ tituintes foram todas outorgadas. Faltou-nos, ao alvorecer da independência, colégio constituinte de primeiro grau, que é sempre obra de uma revolução a qual jamais tive­ mos. Sem revolução não há, materialmente, poder constituinte primá­ rio, salvo por um artifício teórico que tem engendrado na práxis a frá­ gil legitimidade histórica das Constituintes brasileiras. E com isso o povo ludibriado nunca saiu, ou nunca pôde sair, da crise constituinte, ou crises constituintes, que lhe marcam o itinerário institucional desde o berço da nacionalidade. Em nossos ensaios constitucionais, temos, desde muito, estabele­ cido a distinção entre crise constitucional e crise constituinte. A pri­ meira é crise menos intensa, sem conseqüências profundas, restrita aos ordenamentos constitucionais estáveis, confinada à Constituição, e em que basta emendar a Lei Maior para solvê-la. A outra é crise que extrapola a Constituição e, em se alastrando pelas instituições, só uma nova Constituição, se for bem-sucedida, terá eficácia bastante para desfazê-la. E a crise dos países constitucionais em desenvolvimento. A crise constituinte tem sido o nó górdio de todas as Constitui­ ções que se promulgaram no Brasil. Ela explica os insucessos dessas Constituições, justamente por carecerem de densidade legitimante, que só as revoluções costumam ministrar. E revolução no seu estrito teor conceituai, faz-se mister repetir, nunca a tivemos. Em rigor jamais houve uma revolução no Brasil. Houve reinados, regências, presidencialismos, repúblicas, arremedos de parlamentaris­ mo e, sobretudo, ditaduras do poder militar ou do poder civil. Houve, também, conjurações, motins, quarteladas, levantes, intentonas, ameaças de guerra civil, estados de sítio, intervenções federais, golpes de Estado. Mas revolução, propriamente dita, nunca houve.

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É isso que explica a longevidade, a raiz profunda, a contumácia, a insolvabilidade da crise constituinte. Ela é o fantasma das nossas Cons­ tituições. Em verdade, a megabactéria, rebelde a todos os tratamentos que as pseudoconstituintes do Império e da República ministraram até agora aos regimes desfalecidos ou quebrantados em sua legitimidade. Todavia, a revolução que nunca houve, mais cedo ou mais tarde acabará havendo. As elites sabem disso. E, queira Deus, tenham juízo, porquanto, ou ela se fará pacificamente pelo grau de maturidade a que chegamos, ou pelas mesmas armas que ingleses, americanos e france­ ses em séculos passados usaram com o propósito firme e determinado de implantarem as instituições da democracia e do regime constitucional. É, sem dúvida, caminho de elevado risco, sujeito a desfecho que nem sempre corresponde àquele almejado pelo povo. E se o povo perder a sua revolução, já não será povo; será apenas aquela coorte de escravos, sem história e sem futuro, girando errante e desgarrada no mundo da globalização e do neoliberalismo. Nas circunstâncias atuais do País, nenhuma política de desenvol­ vimento vingará se faltar adesão do povo, apoio de opinião, exercício de soberania, aceitação de sacrifícios e forte sentimento de nacionali­ dade a respaldá-la. A criação de tais pressupostos é fundamental. O Governo perdeu grande parte da confiança da Nação por haver malogrado em sua polí­ tica econômica, deixando o Estado desestatizado, desconstitucionalizado e desnacionalizado. A passagem do Estado forte ao Estado fraco, do Estado soberano ao Estado economicamente vassalo, do Estado organizado ao Estado que desagrega as estruturas institucionais, sem meios de cumprir seus fins no que toca à saúde, à educação e às tarefas sociais de emprego e habitação, parece haver chegado ao termo culminante, configurando a pior crise constituinte de todas as épocas, com grau de incerteza jamais visto em momento algum de nossa história. Desmantela-se o Estado e não se restaura a Sociedade. Enquanto esta agoniza, aquele fica à deriva. Quando digo Sociedade refiro-me às classes sociais donde a proteção do Estado se ausentou. Não me refiro, porém, àquela cúpula minoritária, concentradora do capital financeiro e detentora de privilégios, e que exercita poder, especula com a moeda e faz da máquina governativa um instrumento de garantia e realização dos interesses de uma riqueza acumulada, sabe Deus como!

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Passa-se aqui a imagem de um Estado privatizado, cuja atuação se fez, grandemente, em proveito do estamento econômico e financeiro, que define as prioridades do poder, inspiradas na globalização da esco­ la liberal. Um Estado, enfim, onde a perda de laços com a Sociedade, na ordem moral, poderá, um dia, conduzir ao desespero institucional e à desobediência civil. A classe média perdeu as rédeas do poder social no Brasil. Sua hegemonia política, enquanto órgão de opinião poderosamente influente na formação da vontade governante, é coisa do passado. A crise, que a desagrega e exaure, que a proletariza e abate, desfez-lhe os quadros e as lideranças, de último dispersos e minguantes. A classe média, pela vez primeira na República, foi desalojada de sua participação relevante no poder. Algo deveras grave está, pois, acontecendo, ou vai acontecer, em razão desse abalo, que é estrutural, e tem reflexos na economia e na ordem social. Caindo sob o guante das castas plutocráticas, e anulada pela su­ premacia do grande capital, a classe média se desprestigiou. Seus ba­ charéis e juristas já não dominam as casas legislativas, nem orientam ou representam o poder como no passado. De último, o País se acha na iminência de ser, para sempre, aquilo que Gustavo Barroso, num livro da década de 30, se não me engano, titulou Brasil, Colônia de Banqueiros, a que já me referi noutro escrito. Hoje, podemos considerar esse livro uma singular profecia sobre nosso destino final, neste limiar de novo século. O excelente escritor, cuja mácula política fora sua intimidade com o fascismo, descobrira, já naquele tempo longínquo, os primeiros passos dessa caminhada de re­ trocesso, bem perto de consumar-se: a recolonização. Colônia de banqueiros, em sentido genérico; em sentido restrito, porém, colônia já instalada e administrada pelo capitalismo multinacio­ nal e especulador. Veja-se como os acordos com o FMI tutelam a nossa economia, com a asfixia do pagamento de juros aos credores internacionais. Para chegar a esse estado, a banca especuladora destruiu nossa moeda e nos entregou acorrentados ao FMI, que ditou, em acordos sigilosos, uma política de juros altos, recessão e desemprego, com sacrifícios sociais insuportáveis. Submeteu-se quase toda a economia, riqueza e produção do país ao controle direto ou indireto do capitalismo inter­ nacional.

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Por imposição externa seguimos uma política de monetarismo ra­ dical, que paralisa o desenvolvimento, determina a queda do PIB, pro­ duz a deflação, desnacionaliza empresas, e provoca o escândalo do fi­ nanciamento, pelo BNDES, da compra de estatais brasileiras por em­ presários estrangeiros. Enquanto isso, a lavoura nacional geme por fal­ ta de crédito, faz marcha a Brasília e engrossa o clamor e protesto dos sem-terra, e dos sem-teto, bem como das vítimas da classe média proletarizada ou dos pequenos empresários esmagados de tributos. Nessa configuração econômica e social se palpa a tragédia da recolonização. O quadro, tomando cores assustadoras, mostra que o País perdeu, já, a jurisdição sobre o destino de seu povo. Em economia, o neologismo “desenvolvimento sustentado” é de­ veras ambíguo e controvertido, sobretudo em se tratando de aplicá-lo à Amazônia. Pode significar um pretexto para entregar a região aos que que­ rem mexicanizá-la, fazendo ali o que os Estados Unidos fizeram com o México, quando lhe tomaram a parte mais rica do território recémemancipado do domínio espanhol. O Texas, a Califórnia, o Novo Mé­ xico e outras partes do território mexicano foram arrebatadas pelo ame­ ricano, que moveu contra o pobre vizinho uma guerra injusta de con­ quista e expansão imperialista. É de assinalar que, primeiro, houve a infiltração pacífica pelo co­ mércio; depois a compra de terras, seguindo o cálculo de uma escala­ da, até a invasão armada, com o ingresso dos exércitos de ocupação, e, finalmente, a capitulação militar, consumando o desmembramento e a renúncia aos direitos de soberania. No Brasil, algo semelhante poderá acontecer, se não procedermos como procedemos no caso do Tratado da Hiléia Amazônica durante a década de 40. O Brasil deve, portanto, reagir às pressões internacionais sobre a Amazônia, com prudência, firmeza, sensatez e determinação. Prudência, nos termos daquela proposição definida pelo Padre Vieira, ou seja, combinando ciência e experiência. Ciência para conhe­ cer a fundo a região e experiência para defendê-la, discernindo o que é ajuda do que é malícia na aplicação dos recursos externos recebidos. Firmeza, para se não deixar envolver por uma política de conces­ sões, que limitem o nosso espaço de intervenção soberana em questões internas e externas da Amazônia.

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Sensatez, para decretar, desde já, a mobilização nacional de recur­ sos que assegure a nossa presença física, material e efetiva em todos os pontos estratégicos e críticos da Região. E determinação, para fazer da Amazônia a prioridade suprema da unidade nacional. Somente com excesso de otimismo e indulgência poder-se-á dizer que o Brasil é um país independente; talvez o seja, mas apenas em ter­ mos formais. Do ponto de vista da realidade, porém, pelo aspecto ma­ terial e social, não passa de uma república de privilegiados, governada por uma plutocracia cruel e injusta, recrutada nas elites decadentes, que entregaram a economia nacional ao capital invasor. Enfim, tornando à esfera interna da crise, é de averiguar o declí­ nio da democracia no âmbito dos três Poderes do Estado. Em verdade, não é democrático um governo cujo Executivo legis­ la mediante medidas provisórias, quase sempre de teor manifestamente inconstitucional. Tampouco é democrático um Legislativo que, por ação e omissão, tem levantado óbices à consolidação do regime demo­ crático. Por ação, quando se houve com parcimônia e timidez no alar­ gamento da participação através do emprego dos mecanismos plebiscitários e, por omissão, quando, durante cerca de dez anos, retardou a legislação disciplinadora dessa participação, prevista no parágrafo úni­ co do art. I2 e no art. 14 da Constituição. E se nos voltamos para o Judiciário encaramos, aí, um Poder cuja legitimidade democrática também se rarefaz a cada passo, em razão da Justiça tardia, da contemporização com atos inconstitucionais do Poder Executivo, e, também, por obra da impunidade reinante na so­ ciedade, bem como da suspeita de corrupção que envolve juizes e tri­ bunais. Tudo isso faz imperativo o controle externo do Poder Judiciário, a -reforma profunda de sua estrutura e a criação urgente de uma Corte Constitucional. O Supremo Tribunal Federal já não atende às exigências de um tribunal dessa natureza. Deve instituir-se, pois, uma Corte que se coloque fora da órbita dos três Poderes tradicionais, e, ao mesmo passo, tenha o status, a ca­ tegoria, a dignidade de um quarto Poder. Em resumo, Corte sem nenhum laço com aqueles três Poderes da velha concepção divisória, ou seja, Corte suprajudiciária, supralegislatova e supra-executiva, que guarde a Constituição como intérprete e juiz "de sua materialidade principiai, em todas as dimensões. Até mesmo

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naquela esfera em que tenha de exercitar a fiscalização constitucional de atos governativos de grau político máximo, eventualmente lesivos à soberania do povo e da nação - porquanto nesta reside o princípio supremo que legitima o Poder em todas as suas determinações nor­ mativas.

Capítulo 4 A GLOBALIZAÇÃO E A SOBERANIA - ASPECTOS CONSTITUCIONAIS 1 o ter a honra de proferir a Conferência de Abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Direito Público, versando tema pertinen­ te à globalização, à soberania e à Constituição, eu o faço numa conjun­ tura de crise e sobrevivência, que desafia nosso destino como povo e nação. E o faço também lembrando primeiro aos circunstantes, neste recinto cívico, São Paulo de 1932 e Pernambuco de 1824, porquanto, nos eventos históricos daquelas datas, se levanta, contra o poder das ditaduras, o protesto constitucional da legitimidade. Quero, de conseguinte, alentar, desde já, a vossa confiança na res­ tauração do País constitucional, que não será o País das medidas provi­ sórias nem dos atentados à Lei Maior. O estudo, o conhecimento e a investigação do nexo conjuntural, histórico, social e econômico do Direito Público com as correntes de pressão e mudança que atuam na esfera da sociedade contemporânea, ligadas tanto à ordem política nacional como internacional, se faz por­ tanto indispensável a quem quiser compreender e dominar as bases des­ se Direito, sua conservação, sua estabilidade, suas variantes, suas trans­ formações, nomeadamente em face do fenômeno da globalização.

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Com efeito, a globalização que vamos analisar corrói a soberania do Estado, nega-lhe a qualidade essencial de poder supremo e nos faz clamar, salvo as exceções honrosas, contra a neutralidade, a tergiversa­ 1. Conferência de abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Direito PúWico, celebrado em São Paulo, de 26 a 28 de abril de 2000.

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ção e a passividade dos juristas, muitos dos quais circulam nas esferas do poder, onde traçam o círculo normativo da política governante, me­ nosprezando o exame dos elementos éticos, fáticos e axiológicos que fundamentam interesses nacionais da ordem jurídica ameaçada. A transgressão contumaz da ordem normativa pelos autores da po­ lítica globalizadora e por seus juristas é o indicativo da crise e do abalo que arruina o princípio da legalidade. Mas primeiro que este, outro princípio, sem dúvida mais importante para a composição do poder e o exercício da autoridade, já terá sido conculcado por igual, a saber, o princípio da legitimidade. Não estranhem, portanto, os Senhores, o teor deste discurso, por­ que a Política, enquanto valor, ação e ciência, é que faz a lei, já nas casas legislativas, já na interpretação e jurisprudência dos tribunais, já enfim na versão degenerativa das antecâmaras palacianas. Nestas, ins­ talou-se a sede clandestina de uma fonte legiferante donde promanaram mais de quatro mil medidas provisórias, das quais centenas são manifestamente atentatórias da Constituição. A Política, por conseguinte, repetimos, faz a lei, mas nem sempre faz o Direito, porque o Direito é também a legitimidade, a doutrina, o valor da verdade; não é apenas o fato nu, que jaz debaixo da norma coerciva. Se administradores, juizes e legisladores por seus atos e pres­ crições deixam de seguir a via legítima, apartando-se do princípio da legitimidade, todo o arcabouço do regime oscila ou vem abaixo. É para a Política, portanto, convelidos os princípios da soberania e da legitimidade, que hão de volver-se, de necessidade, as nossas co­ gitações, a fim de discutir-lhe as propostas, as diretrizes, as fórmulas, os programas e os ditames, na medida em que interferem sobre a subs­ tância do regime e a natureza do Estado de Direito. Na unidimensional idade da globalização estão em risco os funda­ mentos do sistema, as estruturas democráticas do poder, as bases cons­ titucionais da organização do Estado. Os neoliberais da globalização só conjugam em seu idioma do po­ der cinco verbos. Com eles intentam levar a cabo, o mais cedo possível, a extinção das soberanias nacionais, tanto internas quanto externas. Os verbos conjugados são: desnacionalizar, desestatizar, desconstitucionalizar, desregionalizar e desarmar. Por obra simultânea dessa ação contumaz, impertinente e desagregadora, sujeita-se o País à pior crise de sua história. De tal sorte que, breve, na consciência do povo, nas tribunas, nos foros, na memória da

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cidadania, a lembrança das liberdades perdidas ou sacrificadas se apa­ gará, já não havendo então lugar para tratar, por elementos constituti­ vos da identidade, a Nação, o Estado, a Constituição, a Região e as Forças Armadas. Acham-se todas essas instituições debaixo das ameaças de um de­ liberado processo de decomposição, aparelhado por forças exteriores e interiores que, triunfantes, farão o Brasil retrogradar à condição de co­ lônia ou protetorado. Com efeito, as elites egoístas renegam a causa de seu povo e fa­ zem a Nação caminhar silenciosa, sem voz de combate ou murmúrio, rumo ao cativeiro do terceiro milênio. Cada um dos sobreditos verbos diz, pois, com a soberania e com os fundamentos da república constitucional e federativa. E por esse aspecto que nos cabe genericamente traçar o perfil da globalização, expondo o quadro da situação contemporânea, a mais grave de todos os tempos no que toca à preservação do País-Nação. Faz-se mister, por conseqüência, que os Senhores abram a Cons­ tituição e leiam o que ali está escrito no Preâmbulo e nos artigos Ia, 2“ e 3a. Do artigo l 2 constam os fundamentos da República Federativa do Brasil, quais a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo políti­ co. No parágrafo único do mesmo artigo proclama-se que todo poder emana do povo e que este o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos da Constituição. Já o artigo 22 estabelece a independência e harmonia dos Poderes, enquanto o 3“ enumera os objetivos fundamentais do sistema republi­ cano, assim enunciados: construir uma sociedade livre, justa e solidá­ ria, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem comum, sem a eiva preconceituosa das discriminações injustas, derivadas da origem, da raça, do sexo, da cor e da idade. Aí se acham postas, pois, as bases de um Estado social justo e humano, reforçado no Preâmbulo pelos Constituintes de 1988 com a denominação de Estado Democrático, por designar o legítimo Estado de Direito, sob a égide de valores que são a suma daqueles direitos fundamentais das quatro dimensões conhecidas, isto é, os direitos à li­ berdade, à igualdade, ao desenvolvimento e à democracia.

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Desse modo, toda regra jurídica ou ato normativo que colidir com a pauta de valores e princípios declinados naqueles artigos e no texto do Preâmbulo é absolutamente inconstitucional. A política de govemo da globalização neoliberal, por exemplo. Sua aplicação elide a soberania, afeta a índole do regime, liquida a le­ gitimidade do sistema. É esse o aspecto constitucional mais grave da ação governativa ora em curso e exame, visto que toda ela estampa a nódoa da ofensa às diretrizes normativas das mencionadas disposições. São tais disposições, sem exceção, de natureza principiológica in­ violável. E em razão disso guiam sempre, em derradeiro sentido her­ menêutico, o aplicador da lei. Figuram, pois, entre as mais relevantes e significativas no corpo da Constituição. Por onde, quem globalizar, desnacionalizar e desconstitucionalizar, lesando a soberania, ficará su­ jeito a ter os seus atos, assim na órbita intema como extema, passíveis de controle de constitucionalidade e averiguada a procedência das argüições, declarados de todo nulos. Se os nossos tribunais se capacitassem de que este é o caminho, de que esta é a hermenêutica, de que este é o espírito da Constituição, os erros da política alienante e entreguista não teriam sido tão trágicos, nem provocado efeitos tão graves ao organismo da Nação. 2. Emílio Faguet, o insigne estilista da crítica literária em fins do século XIX na França, dizia que Voltaire era um caos de idéias claras.2 Dos globalizadores liberais já não se poderá dizer o mesmo, mas que eles são, ao contrário, um espelho de idéias confusas. A globalização é compêndio de ambigüidades, onde, para espan­ car as trevas, não entra a luz da lógica, da razão, do bom senso. A outras supostas globalizações já estivemos acorrentados em épo­ cas pretéritas. Aquelas, por exemplo, que assinalaram o velho imperia­ lismo correspondente às eras mercantilista e industrial. Delas porém nunca recebemos afagos, senão vexações, bloqueios, ameaças, derramas. 3. A Metrópole Portuguesa, após levar Tiradentes ao cadafalso e espargir o sangue dos heróis da Revolução Pernambucana de 1817 e

2. “(•••) chaque livre de lui est une merveille de limpidité, et son ocuvre un pro dige d’incertitude. Ce grand esprit c’est un chaos d’idées claires” (Emil Faguet, DixHuitième Siècle, Paris, Nouvelle Bibliothèque Littéraire, Boivin Editeurs, s/d, p. 226).

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fjos mártires constitucionais da Confederação do Equador de 1824, só gos reconheceu a Independência formal, transcorridos alguns anos do (Jrito de 1822, e o fez por um ato de diplomacia argentária. Para selá-lo nos coagiu a contrair com os Banqueiros da Inglai os primeiros empréstimos da dívida externa, da qual nunca nos libertamos. Com a globalização, não há de ser diferente. Apenas os ingênuos vêem com otimismo esse fenômeno de servi­ dão que a tecnologia gerou. Apenas a elite dominante finge que o FMI, o Consenso de Washing­ ton e a globalização vieram para o bem do País e saneamento das nos­ sas finanças ou que estamos seguindo o rumo certo. A política de sujeição colide, por inteiro, com os artigos cardeais da Constituição. Se houvesse efetivamente neste País um tribunal cons­ titucional, as regras dessa política já teriam sido fulminadas de absolu­ ta inconstitucionalidade e os atos executivos que lhe deram concreção declarados nulos de pleno direito. Globalizador não é legislador cons­ tituinte. Nem tampouco sua vontade está acima da Constituição. Mas o juízo de quem administra, de quem já dobrou a cerviz ao capital estrangeiro e transferiu para o hemisfério norte a sede do verda­ deiro poder decisório que nos governa, em absoluto não coincide com ò nosso, porque deste lado está a autoridade da Constituição, do outro, o “L’État c ’est moi” das Medidas Provisórias. Em suma, se houvesse aquele tribunal, as privatizações não have­ riam chegado ao ponto a que chegaram e o Brasil não teria sido tão desnacionalizado, tão vilipendiado, tão lesado em sua soberania, como admiravelmente já assinalou o jurista Fábio Comparato. 4. Mercado, consumo, câmbio, bolsa de valores, dolarização, gran­ des fusões empresariais, especulação, nova economia, formação de oli­ gopólios figuram entre as locuções da globalização que mais de perto dizem com a natureza desse capitalismo de começo de século cuja con­ centração de força econômica, servida de instrumentos e meios de ex­ pansão jamais vistos, por obra das inovações tecnológicas, decreta na arrogância de sua linguagem o crepúsculo das soberanias. É prólogo à fatalidade de um processo inelutável, contra o qual, dizem eles, não haveria defesa nem muralha, com eficácia e altura bas­ tantes, para tolher-lhe o curso. Disso promana pois a sistemática dis-

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solução de valores e destruição dos quadros constitucionais criados pela forma republicana, onde a liberdade, a democracia, o Estado de Direito a justiça social forcejam ainda por construir a sua morada sepa­ rando poderes e garantindo direitos fundamentais. 5. A Constituição brasileira de 1988 é uma Constituição dos direi­ tos fundamentais tanto quanto a de 1891 fora uma Constituição da se­ paração de poderes. As inspirações de liberdade, inerentes ao constitucionalismo de nosso tempo, promanam de convicções e crenças sobre valores e prin­ cípios. Fazem estes a legitimidade e, em certa maneira, a eficácia nor­ mativa de todas as matérias constitucionais. O princípio, sobretudo, é o substantivo da ciência constitucional, a bússola de todas as Cartas Magnas na idade dos direitos fundamen­ tais. São estes direitos de quatro gerações os quais se movem em qua­ tro dimensões. Neles inserimos a democracia, a informação, e o plura­ lismo, que formam assim a quarta geração daqueles direitos. O princípio imprime força, respeito e consistência ética e jurídica às regras da Lei Maior, por ser, em sede de legitimidade, a norma das normas, a proposição das proposições, alicerçando o sistema, cimen­ tando o regime e compondo o laço de unidade na hermenêutica das Constituições. 6. Tocante à globalização, é mais fácil talvez entender-lhe o senti­ do e padecer-lhe as conseqüências na versão contemporânea que expli­ car-lhe a essência, porquanto, sendo conceito nebuloso e fugaz, ao re­ dor dele se teceu toda uma seqüência de equívocos. A Constituição, tão desprezada do Governo, tão maltratada das eli­ tes e tão remendada, representa a máquina de guerra do povo, que a possui e não sabe quanto ela é importante. Disso o povo não se capacita, por minguar-lhe educação cívica e política, ou por desconhecer as noções elementares de direito público, em razão maiormente de quem o distancia do poder e lhe embarga a eficácia participativa. Mas se a Constituição é ignorada, a globalização é sentida. O povo a sente nos seus efeitos funestos e o Governo, que devera combatê-la nesses mesmos efeitos, não a enfrenta e a ela se entrega, por inteiro, ao mesmo passo que a faz o álibi de sua incompetência, a desculpa de sua inépcia, a justificação de seus erros. Um poder invisível, coercivo e inarredável, que o obriga a subscrever e jurar as cláusulas de quantos

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documentos e acordos sigilosos alienam a soberania nacional, eis a que se reduz, em última análise, a globalização neoliberal. A antiglobalização que nós preconizamos por ato de legítima de­ fesa dos povos, é direito natural que o arbítrio de nenhuma potência hegemônica há de suprimir. Assim como as culturas se protegem e se defendem por via de con­ servação de seus costumes e valores históricos, também as nações, para conjurarem o genocídio político, econômico, cultural e moral de suas identidades, precisam de tornar atualíssimos determinados instrumen­ tos ou meios de autopreservação, a saber, o nacionalismo sem xenofo­ bia, objetivo e intangível, a cultura, a lealdade à nação, a memória dos valores históricos, o culto da liberdade, o primado da vontade popular, tudo que possa constituir o Estado em guarda de um poder legítimo e democrático, isto é, de uma ordem livre e soberana. Há, por conseguinte, uma causa comum de defesa para obstar à dominação estrangeira. Vamos assim aplaudir e amparar essa causa, vamos fazê-la expan­ siva com a nossa solidariedade, estremecida com a nossa simpatia, vi­ toriosa com o nosso apoio. Debaixo dos ditames da Internacional capitalista, que é o Consen­ so de Washington, promove-se, deliberadamente, empregando a mate­ mática dos cálculos especulativos, a queda das economias, a desinte­ gração dos mercados, a perda do caráter nacional de cada povo, sacri­ ficado pelos métodos de subjugação que essa espécie de política globalizadora a que o Brasil aderiu soe utilizar com freqüência. 7. A par das relutâncias do Poder Central em admitir a gigantesca crise que se abate sobre o Brasil, é de notar, por igual, a falência repre­ sentativa do sistema legislativo. Sua certidão de óbito na gestação de um Estado democrático e social de Direito desde muito se acha lavrada em 4.045 medidas provi­ sórias, editadas ou expedidas a partir da instalação do regime federati­ vo e constitucional de 1988, bem como em 649 projetos de Emenda Constitucional que ora tramitam nas duas Casas do Congresso. A medida provisória, de profundo teor autoritário e autocrático, tem sido o “cavalo de Tróia” introduzido nos muros da ordem constitu­ cional pelos que ora desferem, nas instituições, o golpe de Estado da globalização, que é um golpe de Estado institucional. Esse golpe imola a soberania, abala os alicerces do poder, faz ilegítimo o exercício da

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autoridade, afrouxa e, até mesmo, dissolve a rigidez das proposições constitucionais. Tudo isso obra por via daquele instrumento de exceção, que é a medida provisória, transformada, de último, na maior fonte normativa de atos do Govemo. De tal sorte que para acabar com a cultura antijurídica de técnicas excepcionais, sejam elas medidas provisórias ou decretos-leis, a única solução cabível no momento é aquela preconizada por Celso Antônio Bandeira de Mello: expungi-las da Constituição. Na Carta Magna flexibilizada pelas referidas medidas, as inconstitucionalidades do Governo fazem tudo tópico, secundário, casuístico. De maneira que as leis ordinárias, as portarias ministeriais e as medi­ das provisórias valem tanto quanto os artigos da Constituição, que, por isso mesmo, na ótica dos globalizadores, não valem nada. Como as coi­ sas seguem, breve os constitucionalistas do govemo dirão que incons­ titucional é a Constituição mesma. Nem Bachof, o jurista das leis cons­ titucionais inconstitucionais, iria, decerto, tão longe. Mas os nossos ju­ ristas que servem ao Govemo foram e continuam indo. Governam assim o País interesses que rompem a regência dos princípios e aniquilam o Estado de Direito. Quanto à dimensão propriamente democrática do Estado constitu­ cional, vazada nos artigos Ia e 14, ela já se esvaiu quase por completo. Com efeito, os mecanismos populares de intervenção imediata de­ saparecem da cena política, anulados e bloqueados, primeiro, pela omissão do legislador que lhe retardava a disciplina normativa, segun­ do, pelo teor restritivo de seu espaço participativo. Ficou este espaço deveras diminuído e estreitado na lei integrativa, criando-se, de conse­ guinte, uma palpável inconstitucionalidade material, atentatória do art. 1“ da Constituição, por violar o espírito da democracia e da participa­ ção direta. Se faltar a esta a necessária latitude, a soberania popular, donde emana constitucionalmente, em grau de princípio, todo o poder, já não corresponderá em seu exercício e significado à vontade expressa do Constituinte de 1988.

8. Um dos mais graves empeços ou bloqueios que invalidam a con cretização da democracia representativa desde os seus pródromos no século XIX se lê nas páginas finais de um excelente livro que é hino à república e libelo contra a monarquia.3 3. José Maria Latino Coelho, República e Monarquia, Lisboa, s/d, p. 204.

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Escrito por José Maria Latino Coelho, há mais de um século, e intitulado República e Monarquia, veio a lume quando Boulanger, o populista fardado, vencedor nas urnas de Paris, encarnava a ameaça de restaurar o trono proscrito dos Bonapartes. A França amargurava, ainda, as humilhações impostas pelas ar­ madas prussianas do Kaiser alemão ao decaído regime imperial, que soçobrara após o desastre de Sedan. As maquinações golpistas do ge­ neral aventureiro contra a Terceira República francesa punham à deri­ va a nau dos ideais revolucionários de 1789. Pois bem. Em reflexões que têm, como dissemos, a idade de mais de um século, o tradutor da Oração da Coroa, de Demóstenes, já ante­ cipava e profetizava como que as traições, o desvirtuamento, a queda, a fragilidade e a decadência das formas representativas onde a voz so­ berana do povo não tem eco, nem presença, nem participação na sorte do regime. Formulou o notável escritor político nos termos seguintes, de cima para baixo, a verticalidade minguante da forma representativa como se escrevesse para os nossos dias: “As leis promulgam-se. Os governos, a foro de as esclarecer e executar publicam regulamentos em que se es­ tatuem prescrições incompatíveis com a letra legislativa. Os ministros, que já exerciam pelo abuso das autorizações o verdadeiro poder legis­ lativo, tem nos decretos regulamentares um novo acrescimento de abu­ siva autoridade. Às vezes, não contentes com essa larga potestade, ain­ da se lembram de exagerar os encargos tributários por uma simples por­ taria de expediente, e ainda mais, por um despacho de gabinete num dia de mau humor governativo”. Mas o prosador português escrevia acerca do governo parlamen­ tar. Imaginem quanto mais escuro não seria o quadro se a matéria das reflexões fora o presidencialismo de nosso tempo, o presidencialismo dos escândalos, das mordomias, das medidas provisórias, do cortejo de malefícios e inconstitucionalidades; presidencialismo onde, segundo ponderou noutras palavras, com primorosa ironia, o jurista Celso An­ tônio Bandeira de Mello, a norma do alvará, ditada por um burocrata ministerial, tem aos olhos do cidadão comum muito mais força e eficá­ cia e imprime muito mais respeito e obediência, que a regra estatuída por um constituinte depositário da soberania nacional.

9. Assim como, no berço da história pátria e ao alvorecer da nacio­ nalidade, constituída pela tríplice aliança das etnias que regam com seu sangue as veias do povo brasileiro, houve duas invasões holandesas,

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repulsadas ao transcurso da primeira metade do século XVII com fir­ meza, determinação e heroicidade pelas armas do branco, do índio e do negro, ou seja, dos três troncos que ali batalharam para formar de­ pois a família nacional, também na segunda metade do século XX, até estes primeiros dias do século XXI, ocorreram outras invasões estran­ geiras, mas desta feita com armas que não disparam - e nem por isso deixam de ser muito mais ofensivas e letais, quais, em verdade, as ar­ mas da conquista econômica. Estamos assim passando por outra provação com desfecho, segun­ do as evidências correntes, bem distinto daquele em que o triunfo nos sorriu porque fomos ao campo de batalha, não desertamos a causa, não arriamos a bandeira, não afrouxamos a resistência e assim nos foi pos­ sível varrer das plagas litorâneas o alienígena. Quando o império desabou, em 1889, o derradeiro artigo de Rui Barbosa escrito sob as trevas da monarquia, às vésperas de sua queda, tinha por título esta singular epígrafe: “Plano contra a Pátria”. Exerceu ele um decisivo influxo no ânimo impulsivo e revolucioná­ rio das correntes republicanas e liberais fazendo o regime estalar e ruir. O nosso “terceiro reinado”, ao contrário daquele que estava por advir no Império, e fora em grande parte origem do golpe de Estado republicano de 15 de novembro de 1889, conforme assinalou Rui Bar­ bosa, já subiu as escadas do poder e se instalou no espaço planaltino. Por sua vez, o segundo “Plano contra a Pátria” está em marcha e reside na destruição da soberania por obra dos globalizadores da recolonização. Reside por igual no aniquilamento da Federação pela desregionalização unitarista e centralizadora.

10. Pasmem, por derradeiro, as Senhoras e os Senhores, diante da maneira metódica e premeditada como se assassina um povo, se cor­ rompe uma Nação, se abala a estrutura de um regime. Também a desregionalização entrou, de último, nesse processo de esfacelamento, de perda do Estado, de ruína da Constituição, de atentado à soberania. Com efeito, acerca da desregionalização não se ouviu um só grito, não se fez uma única denúncia; denúncia ao povo, denúncia à nação, denúncia à sociedade, à opinião pública, ao Congresso, às organiza­ ções livres, a todas as entidades capazes de neutralizar com revolta e protesto o fermento globalizador que deforma e incha as instituições. Dessa desregionalização, dessa punhalada criminosa, é que nos ocuparemos a seguir.

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Desregionalizar é desfederalizar, porque a federação hoje só exis­ te nas Regiões. Fazem elas grandemente o divórcio que vai da Consti­ tuição formal à Constituição real. A mais necessária das mudanças constitucionais está por ser feita: a introdução do federalismo regional, com a reforma das instâncias autônomas.4 A introdução do federalismo das regiões é projeto que todos fin­ gem ignorar, até mesmo os grandes federalistas que escrevem sobre a reforma da Federação. Mas a guerra fiscal dos Estados aí está desafiando-nos e comprovando, com as suas repercussões externas, que a crise da federação existe e é profunda. E mais uma crise política que jurídica. Depois de tantas alterações superficiais e algumas inócuas não to­ camos a essência do problema federativo que é a criação do quarto ente autônomo. O problema paira sobre nós como um repto institucional. Que faz porém a União? Atenta contra a realidade do fenômeno federativo e, primeiro por omissão, depois por ação, quebranta, material­ mente, as autonomias constitucionais dos seres federativos, ora inter­ vindo neles onde não deve, ora se eximindo de intervir onde deve. O § 42, inciso I, do art. 60 da Constituição protege em cláusula pétrea a incolumidade da Federação; mas na realidade nada obsta, en­ quanto não houver controle de constitucionalidade material das políti­ cas de governo, a que o Executivo, usando e abusando de instrumentos normativos inferiores e excepcionais, quais as medidas provisórias, vá, com reiterada freqüência, enfraquecendo e desatando os laços da orga­ nização federativa. 4. O federalismo com base nas regiões tem por argumento mais persuasivo e consistente uma realidade de poder e concentração de interesses regionais, em que as raízes concretas dessa nova dimensão sobrelevam e antecipam de muito toda formulação jurídica do fenômeno. De tal sorte que as pressões descentralizadoras para constituir a nova instân­ cia autônoma de ordem federativa, antes de desembocarem numa fórmula normati­ va da Constituição, já se acham contidas nos fatos, aguardando tão-somente um desfecho positivo em face das relutâncias e dos óbices do Poder Central, desafeto contumaz da constitucionalização política das Regiões. A região é a nação do século XXI e o princípio da regionalidade nas décadas porvindouras terá a mesma força, a mesma importância e a mesma intensidade que teve o princípio das nacionalidades no século XIX. Há de valer, portanto, em di­ mensão territorial como antídoto de resistência étnica à dissolução globalizadora do neoliberalismo cuja conspiração contra as soberanias nacionais é patente. Cons­ piração para subaltemizá-las ou desfazê-las. Mas antes disso, elas se fortalecerão por laços políticos de comunhão federa­ tiva de base regional.

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Quem centraliza demasiado numa federação excede limites insti­ tucionais de poder e competência. Dissemos que desregionalizar é desfederalizar, é quebrantar a Fe­ deração viva, que é a Federação das Regiões. Trata-se aqui de uma Fe­ deração que ainda não está na Constituição, mas está na realidade, onde busca passar da esfera material à esfera formal, e alcançar, assim, em grau normativo, o momento institucionalizante de sua configuração e cristalização jurídica. E podemos acrescentar, ainda, num certo senti­ do, que desfederalizar é também balcanizar. A balcanização ocorre quando, por excesso de concentração e centralização, ou perda de so­ berania, sendo este o nosso caso, em razão da globalização, a política do Poder Central venha aparelhar futuras e irremediáveis divisões e se­ cessões. Com respeito ao Brasil, balcanizar é desmembrar a grande faixa continental que é esta América Latina de língua portuguesa, País de cinco séculos de presença histórica, milagre da aliança e comunhão das etnias, onde há ódios sociais mas não há, em verdade, a erupção incontida dos preconceitos de raça e religião, nem tampouco ressentimentos que façam impossível compor divergências e cimentar e perpetuar a união indissolúvel dos entes federativos, insculpida, aliás, em todas as Constituições republicanas. Desregionalizar significa do mesmo passo ignorar ou afastar das cogitações prioritárias de governo o problema da Amazônia e fazer-se cúmplice da mexicanização contida em fórmulas intervencionistas que ressuscitam a ameaça da Hiléia Amazônica, repelida com inteiro êxito em meados do Século XX por uma reação dos Constituintes de 1946. Encabeçou essa reação Goffredo Telles Junior, o paulista autor da Carta aos Brasileiros, tão decisiva para derrubar o regime militar quan­ to a entrevista histórica de José Américo de Almeida ao Correio da Manhã, em 1945, o fora para acabar com a censura e, assim, acelerar e tomar inevitável a queda do Estado Novo. O govemo da globalização e da renúncia à soberania está porém fadado a passar, como passaram já as ditaduras de épocas não menos funestas à civilização, ao progresso, ao futuro da humanidade. 11. A guarda da Constituição é a guarda da soberania. Quem fere o Estado democrático, a organização federativa, a re­ pública constitucional, fere mortalmente aquele princípio supremo, a saber, o princípio da soberania, já intema, já extema.

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Transgride, do mesmo passo, os valores maiores, os fundamentos e os objetivos fundamentais que compõem a essência do regime e o substrato material das instituições. Tomamos a asseverar que os atos de uma política de govemo, em contravenção dos axiomas do sistema, enunciados nos artigos Ia, 22 e 3“ da Lei Magna são rigorosamente inconstitucionais. Acham-se, por­ tanto, maculados de inconstitucionalidade insanável, já na substância, já na forma. O magistrado supremo da Nação, que determinar, estabelecer e executar a referida política, estará incurso nas sanções do crime de res­ ponsabilidade e sujeito, por conseguinte, à perda do mandato presiden­ cial; mas isso, se prevalecer, é óbvio, nos tribunais, a hermenêutica dos princípios, única que oferece proteção eficaz contra as violações aos artigos tutelares da Constituição, aqueles que afiançam a legitimidade das instituições. Que outra coisa tem sido a globalização do neoliberalismo no Bra­ sil senão a implementação, com todo o rigor, de uma nefanda política de lesa-soberania? Quem a sustenta e fomenta e patrocina senão o Pre­ sidente da República e seu ministério, assim no primeiro como no se­ gundo mandato? Do ponto de vista jurídico-constitucional, adotada essa política, deixa de haver govemo legítimo, porque ela já soterrou a soberania. A guerra civil dos Três Poderes e dos corpos sociais se manifesta em termos que, sobre afetarem a unidade institucional de govemo, des­ fazem a concórdia das classes, da qual, privada a Sociedade, não se rege nem a república nem a federação. Quem destroça a soberania destroça portanto a Nação. Quem as­ sim procede revoga também o pacto social, mina a base da comunhão política e põe termo à confiança na legitimidade das instituições. É isso o que ora acontece nesta infausta república, empurrada por seus governantes para o Quarto Mundo. 12. Desde o artigo estampado há alguns anos no Jornal do Brasil, debaixo do título “A globalização que nos interessa”, temos reiteradatnente sustentado o entendimento de que, na época contemporânea, há duas versões básicas de globalização: uma hegemônica e satânica, que é a globalização neoliberal do capitalismo sem pátria, sem fronteiras, sem escrúpulos; outra a globalização da democracia, de caminhada len­ ta, continuamente obstaculizada e bloqueada ao longo dos séculos.

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Se aquela oprime, esta liberta; se uma escraviza e desnacionaliza, a outra constitucionaliza; se a primeira solapa a soberania e deprava as instituições, a segunda conserva o conjunto dos valores e reitera a efi­ cácia dos princípios e das normas superiores da república e da federa­ ção; se aquela parte o compromisso com a nacionalidade e internacio­ naliza interesses e egoísmos de dominação, esta limita a soberania mas não abdica a guarda e preservação de seus fundamentos e objetivos; enfim, se uma é joio a outra é trigo; urge portanto separá-las como es­ tamos a fazer. A globalização dos especuladores do câmbio e dos economistas da alienação não é, por conseguinte, a mesma dos constitucionalistas e dos juristas democráticos, porquanto ali se entrega o País, atado às es­ tratégias da recolonização; aqui, ao revés, se abre caminho à concreti­ zação universalista dos direitos fundamentais; ambas são de tendências opostas e estabelecem um regime de conflitos e contradições por haver inserção antagônica ou contraditória da segunda na primeira, quando se sabe que a globalização democrática ainda flutua grandemente em regiões teóricas, fora do mar territorial e das faixas adversas da globa­ lização dos capitais. Com efeito, a globalização de mercados, nervo do capitalismo contemporâneo, conferiu, sem disputa, supremacia a um único pólo de poder, que dita ao mundo universo a tirania tecnológica do desempre­ go e da exclusão, declarando a liberdade que tem forma mas não tem conteúdo nem substância, por ser abstrata, metafísica e inconsistente, e subscrevendo a igualdade que não vai além da demagogia dos textos, e que logo se curva ao império e ascensão de desigualdades mais e mais atrozes e profundas. O capitalismo financeiro, na versão globalizadora, é o caos, a in­ sensibilidade, a especulação, é a queda das bolsas e as oscilações dos mercados, é a ruína das economias nacionais e a ampliação das desi­ gualdades a limites insuportáveis. Da primeira forma de globalização constam aspectos manifesta­ mente negativos, que carreiam a maldição da vassalagem, e condu­ zem unicamente à recolonização e à dependência sem retomo. Tal o caso do Brasil desnacionalizado e governado pelas piores elites de sua história. Da segunda, é de assinalar que ela pode afigurar-se utópica e dis­ tante, mas nem por isso deixa de trazer o refrigério da esperança, o consolo do otimismo, a certeza do advento.

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Sairemos assim da esfera econômica aviltada porfiando por subir a um patamar internacional de eficácia de direitos humanos pertinentes aos povos da periferia, a saber, o patamar dos direitos da terceira gera­ ção, designadamente o direito ao desenvolvimento. Aí se acha a saída para o percurso da globalização, a globalização democrática, qual a concebemos sempre, em reflexões críticas acerca do capitalismo de última projeção. Trata-se de globalização significativamente mais aberta, mais hu­ mana, mais fraterna; tem sido buscada em iniciativas, tratados, congres­ sos, convenções, conferências e seminários internacionais, onde o David dos juristas do Direito Internacional desafia, com as pedras da lei e da justiça, o gigante Golias dos filisteus da globalização. Com efeito, a globalização do Consenso de Washington nos hu­ milha, nos constrange, nos castiga, nos fere direitos, nos sonega fran­ quias e liberdades, como se fôramos a colônia de banqueiros e especu­ ladores onde os régulos do poder subserviente envergonham o País de Rui Barbosa, Artur Bemardes e Getúlio Vargas; País que ontem empu­ nhava com as personalidades do pensamento republicano, com os esta­ distas da nacionalidade, com os batalhadores dos direitos sociais a ban­ deira arriada há pouco pelos globalizadores do neoliberalismo, que de­ sertaram o campo de batalha e capitularam sem honra. Mas a guerra fria, as transnacionais, a unipolaridade e, ultimamen­ te, a globalização, parecem haver acabado com o sonho da emancipa­ ção e fizeram fenecer as esperanças de um mundo melhor. A globalização da democracia, por um paradoxo, é no campo teó­ rico mais antiga que a globalização da economia. Seus resultados, to­ davia, são deveras minguados, com um máximo de promessas e um mínimo de concretude. Em suma, a globalização econômica é a reco­ lonização, a globalização política, ao revés, a democracia; a globaliza­ ção econômica representa o fim da soberania, a globalização política o começo da concretização universal dos direitos do homem; a primeira é o Consenso de Washington, a segunda a Carta das Nações Unidas, cumprida e executada porém fora da bipolaridade da guerra fria ou da unipolaridade contemporânea da pax americana, que é a pax dos glo­ balizadores; ali o pactum subjectionis com os fortes dominando e go­ vernando os fracos, aqui o contrato social que faz as Constituições li­ vres e teoriza os direitos de quatro dimensões, como a liberdade, as prestações sociais, o desenvolvimento e a democracia. 13. Minhas Senhoras, meus Senhores! Sem justiça e sem Consti­ tuição não se governa nem se alcança a legitimidade; sem igualdade o

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direito é privilégio social; sem liberdade a cidadania é cadáver, a lei é decreto do despotismo, a autoridade braço da força que oprime, e a segurança jurídica argumento da razão de Estado, absolvendo e anistian­ do os crimes do poder. Não há sistema de associação legítima naqueles ordenamentos onde os princípios da Carta Magna são, a cada passo, feridos, avilta­ dos, enxovalhados, apoucados e transgredidos; onde a sociedade, feita assim a caricatura e a imagem da dissimulação, do falso Estado de Di­ reito, dos falsos poderes de soberania, fica toda anexada ao arbítrio, à barbárie, à onipotência do Executivo. Perdendo o Poder Executivo a dignidade de seus deveres consti­ tucionais, é Executivo perjuro, Executivo que faz retrair o País à anar­ quia, e a anarquia é o pior malefício social, no dizer de um publicista francês, Executivo que fomenta o caos, a desordem institucional, a in­ segurança; Executivo que descumpre sentenças judiciais e, numa vio­ lência sem precedentes nos anais da República e do Império, desres­ peita o direito adquirido e a coisa julgada; Executivo que não observa o princípio da separação e harmonia dos Poderes; Executivo, enfim, que não combate a corrupção e desampara os valores, os princípios, os padrões éticos da organização política e social. Para premir os demais Poderes constituídos, designadamente o Legislativo e o Judiciário, estabelece ele o sistema de uma hegemonia iníqua que na América Latina qualifica as ditaduras constitucionais e continuistas do modelo peruano e brasileiro. Costuma o Executivo invocar o argumento da ingovemabilidade toda vez que o seu arbítrio, excitando o clamor da opinião pública, tro­ peça sobre as leis do legislador ou sobre os acórdãos dos tribunais. E, em razão disso, nunca recua quando se lhe depara um obstáculo cons­ titucional. E a camorra do crime político organizado que se arrima à cumpli­ cidade dos meios de comunicação, copiosamente estipendiados pelos cofres do Tesouro. Vivemos num País onde a ditadura toma as aparên­ cias da democracia, o absolutismo imperial a figura da república e o poder pessoal a bênção e a imagem da soberania popular. Só este ano o governo despenderá em publicidade 650 milhões de reais. Que absurdo, que irresponsabilidade, que acinte! Quantas lágrimas não poderiam ser enxugadas, quantas crianças alimentadas, quantas escolas construídas, quantos remédios adquiridos,

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quantos hospitais providos e equipados, quantas universidades e labo­ ratórios e bibliotecas instalados, quanta miséria socorrida, quanta indigência amparada, quantas dores estiladas em pranto não poderiam ser mitigadas! Todo esse dinheiro se gasta nas orgias publicitárias de um regime que busca nos meios de comunicação o derradeiro asilo, o derradeiro artifício com que recompor a imagem poluída e estragada de uma ges­ tão de incompetência e desmazelo. Mas as estatísticas da impopulari­ dade o desmentem e hão de mostrar sempre quanto este poder já de­ caiu na estima do povo e na confiança do País. Aos 650 milhões se somam também verbas orçamentárias de qua­ renta bilhões de reais que esse mesmo Govemo, por autorização legis­ lativa, fica igualmente habilitado a movimentar ao seu livre alvedrio. É o dinheiro do erário financiando pois a lavagem cerebral da so­ ciedade, inculcando, deste Govemo, virtudes que ele não possui, alar­ deando obras que não saíram do papel, renovando promessas que não serão cumpridas, formulando planos que a mesa da burocracia ministe­ rial depois arquivará. No fundo o que se busca mesmo é fujimorizar o País, é destruir a essência da república, é assegurar o desígnio vocacional de perpetuidade no poder, peculiar a todos os cesarismos. 14. Catilina é a globalização. Catilina conspira, desnacionaliza, privatiza, desfederaliza e Cícero não ressuscita para ocupar as tribunas do Senado e da Câmara, e dali irradiar a luz e o verbo da sua eloqüên­ cia em momento tão grave e delicado para a conservação da república, a salvaguarda da independência, a guarda dos bens públicos e a inte­ gridade da Amazônia. Catilina, abusando de nossa paciência, como dizia Marco Túlio, conjura pois contra a Nação, mina a República, violenta a soberania, quebranta a Constituição, rompe o pacto social, arruina o sistema fede­ rativo, persegue as classes sociais, designadamente a classe média, os servidores públicos, o estamento obreiro, cujo salário de inanição esva­ zia na linguagem governamental os cofres do Tesouro, o que não aconte­ ce porém com os 30 bilhões do Proer, dinheiro da Nação, doado aos banqueiros falidos pelos donos da coisa pública que só sabem ser parcimoniosos e mesquinhos quando se trata de remunerar o trabalhador. Catilina faz, enfim, as instituições retrogradarem à época colonial. Pobre sociedade! Pobres Estados, reduzidos à indigência e ao re­ gime de capitanias hereditárias. Desventuradas forças armadas que,

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neste segundo “Plano contra a Pátria”, se executado, ficarão rebaixa­ das a milícias de capitães do mato, guardas de fronteiras, corpos de recrutas dolarizados para combater na selva contrabandistas e trafican­ tes de drogas, capatazes fardados dos feudos da globalização ou guar­ da pretoriana dos paços coloniais do neoliberalismo! A par disso, a soberania nacional terá perecido nas mãos estranguladoras dos que ora planejam internacionalizar os rios da Amazônia, apoderar-se de suas águas e de sua riqueza florestal e ao mesmo passo abrir os nossos céus e globalizar o nosso espaço aéreo. A globalização como está sendo conduzida fatalmente desembo­ cará na mexicanização da Amazônia com o envolvimento das Forças Armadas em missões inconstitucionais de combate ao narcotráfico, combate privativo da Polícia Federal nos termos do art. 144, § Ia, inci­ so II, da Lei Maior. O envolvimento faz parte do Plano Contra a Pátria, porquanto transformaria o Brasil Amazônico numa segunda Colômbia, sendo este o grave passo e o grande pretexto para futuras intervenções militares da potência hegemônica que cobiça a Amazônia e que ali nos contesta­ ria a soberania. Há pois um Cavalo de Tróia em nosso País, e de seu bojo já des­ ceu a guarnição que ora ameaça a soberania e se adestra para abrir, logo mais, a selva da Amazônia às falanges invasoras. Breve no País de Santos Dumont virão linhas estrangeiras de na­ vegação aérea ocupar, dominar e explorar aquele espaço. A mesma abertura desagregadora, por obra de uma lei, cujo proje­ to tramita no Congresso Nacional, consentirá também que capitais alie­ nígenas desnacionalizem e manipulem a chamada mídia, calando as vozes da sociedade subjugada, cuja opinião já não será opinião públi­ ca, mas opinião inculcada nos dilúvios da informação dirigida e propo­ sitada, que mais serve a desígnios que não são os da consciência públi­ ca, senão das grandes organizações de interesses via de regra refratários à soberania nacional. A política vigente marcha resoluta na execução daquele Plano. On­ tem o Plano derrubou um Império, hoje ameaça derrubar uma Nação. O símile brasileiro do agitador romano, clonado dois mil anos de­ pois, já está no poder. É esta a diferença que faz, aliás gravíssima, do ponto de vista histórico, para os destinos da Pátria. E se nenhuma resistência se lhe oferecer, quando o País despertar com a estratégia da recolonização completando sua obra, a Nação já

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estará mexicanizada, será tardia a reação e inócuo o levante da consciên­ cia nacional. 15. Em séculos pretéritos repulsamos o invasor nos Guararapes e em Porto Calvo, nas enseadas da Guanabara e em todos os teatros de luta onde não pôde o intruso fincar pé, e depois, com Rui Barbosa, José do Patrocínio, Isaac Amaral, Nabuco e Castro Alves, quebramos no pulso dos nossos irmãos escravos as algemas sociais do cativeiro. Aquele que nos arrebatou a Vale do Rio Doce, a siderúrgica de Volta Redonda, as grandes empresas do sistema estatal, penhor de nos­ sa emancipação econômica, há de restituí-las um dia porque a privati­ zação foi ato de lesa-soberania executado por brasileiros que fizeram mão comum com piratas e especuladores do mercado internacional de capitais. O povo, dono daquelas empresas, não foi consultado, não se ma­ nifestou, não teve ocasião de levantar o braço e erguer a voz em as­ sembléia plebiscitária e, submetido à coação dos governantes, não pôde desfazer com seu voto soberano e constitucional, atentado tão lesivo ao patrimônio público, a bens que, por pertencerem às gerações porvindouras e incorporarem elementos materiais de soberania, não pode­ riam ter sido nunca alienados. 16. Feitas estas reflexões, cabe uma indagação crucial e derradeira: Onde está a ingovernabilidade do Brasil? Está na infâmia das medidas provisórias, no arbítrio de quem só sabe governar mediante instrumentos de exceção, na arrogância da bu­ rocracia palaciana, isolada das mas e dos foros de opinião, conduzindo com braço de ferro as privatizações que desnacionalizam a economia e tiram ao Estado o seu substrato de poder e a sua capacidade de prote­ ger o interesse nacional. Está também na insensatez de quem não govema para o País, mas para os banqueiros internacionais e as gigantescas empresas do capital extemo, as quais ainda recebem, via BNDES, dinheiro dos emprésti­ mos contraídos no exterior, com enorme dano e sacrifício do povo e da nação, para comprar a preços vis as fábricas do nosso parque industrial. A ingovernabilidade está por igual na recessão, no desemprego, na especulação do mercado financeiro, no desequilíbrio das contas da dívida interna e extema, no câmbio, na moeda desvalorizada, na taxa de juros que paralisa negócios, sufoca comércio, lavoura, indústria e faz esmorecer a livre iniciativa.

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Emprestando dinheiro do povo a empresas multinacionais e finan­ ciando com o Proer banqueiros falidos, o Pais compra a corda com que se enforca. Nem a Inquisição queimando hebreus hereges fora tão atroz, pois não cobrava às suas vítimas a lenha das fogueiras nem a prancha dos patíbulos. Não foi à toa que passamos a direção do Banco Central e do Ban­ co Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social às mãos de dois agentes do capital estrangeiro que viviam fora do País; um ao serviço do maior mega-especulador da globalização, o outro ligado a uma po­ derosa organização bancária dos Estados Unidos; ambos, portanto, sem reputação de patriotismo, sem certidão de compromisso com a nação, e pela procedência de seus laços, incompatíveis com o exercício da­ quelas funções, contra-indicados e desmerecedores da confiança do País soberano. 17. Em razão de tudo isso, não sabemos, pois, se hão de nascer para a liberdade ou para a escravidão os brasileiros do século XXI, os filhos deste milênio. Para a liberdade, se formos à luta; para a escravidão, porém, se depusermos as armas. Configurada a derradeira hipótese, só nos resta­ rá a ignomínia da rendição incondicional. Não consentiremos, todavia, esse holocausto; não aceitamos a der­ rota fora do campo de luta, por traição, maldade e corrupção. A ingovemabilidade do Brasil, constante da indagação há pouco formulada, não está finalmente nos cidadãos e nos consumidores, nos sem-terra e nos sem-teto, nos campos e nas cidades, no trabalhador e no desempregado, no estudante e no professor, no advogado e no ma­ gistrado. Tamanha ingovemabilidade está, por sem dúvida, na incompetên­ cia, na inépcia, na ofensa à Constituição, na impunidade, no atentado ao direito adquirido e à coisa julgada, no desrespeito aos tribunais, na usurpação da função legiferante, no aniquilamento da soberania, na dis­ solução da identidade nacional, na quebra do pacto federativo, nas qua­ drilhas da corrupção, nas traições da elite, nas malversações do poder, no crime social, no suborno dos meios de comunicação. Urge, pois, pedir prestação de contas aos autores desse desastre, que não há cidadão tão cego que não veja, ou homem tão insensível que não se comova. O quadro de perseguição social de que são vítimas os trabalhado­ res do salário mínimo e os membros da classe média - funcionários

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públicos e aposentados, professores e magistrados - não tem paralelo em outras épocas da nossa história. E perjúrio ao Estado de Direito, à democracia, à Constituição; ao Estado de Direito que é a liberdade sob a proteção da lei, à democracia que é a igualdade e à Constituição que é a cidadania. Sem Estado, sem soberania, sem moeda, sem Carta Magna, sem Forças Armadas, que sobreviverá, em suma, do país descoberto há 500 anos? Uma colônia de banqueiros, uma possessão de oito milhões e meio de quilômetros quadrados, habitada por 160 milhões de vassalos. O cerco da conspiração interna e externa é feroz e implacável. A globalização, qual está sendo seguida e executada, configura a antítese da soberania. Com o fim do Estado constitucional e soberano, adeus Amazônia, adeus Brasil, adeus independência nacional. Mas nós vamos lutar e re­ sistir para que esta despedida nunca aconteça. Afinal de contas somos um povo, não somos ainda uma sociedade de cafres e primatas num continente globalizado pela recolonização. Em suma, Senhores Membros do I Congresso Brasileiro de Direi­ to Público: o Direito Constitucional volta a ser em nossos dias um Dijreito Político, um Direito Constitucional de luta e resistência, como foi no século XIX. Ontem, contra o absolutismo, hoje, contra a globaliza­ ção. Ontem, para elidir o passado, com a separação de poderes, hoje, para conquistar o futuro com os direitos fundamentais.

Capítulo 5 A INC0NST1TUCI0NALIDADE MATERIAL E A INTERPRETAÇÃO DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO 1 a República das medidas provisórias, que é o Brasil de hoje, já não haveria povo de cidadãos, mas multidão de súditos, sob a re­ gência de déspotas do obscurantismo ou de monarcas do poder absolu­ to, se em cidade das tradições libertárias de Campina Grande, e em data como o 11 de agosto, comemorativa da fundação dos Cursos Jurí­ dicos, o advogado brasileiro faltasse com a sua palavra de reprovação e não reagisse às elites do poder, que falseiam a vontade democrática

N

1. Com o advento da Lei 9.709, de 18 de novembro de 1998 - a chamada Lei Almíno Afonso - já não há, prima facie, como argüir a inconstitucionalidade por omissão do legislador no que toca à reserva legal do art. 14 da Constituição Fede­ ral, pertinente ao emprego das técnicas plebiscitárias. Do ponto de vista formal, resguardou-se a legalidade. Mas do ponto de vista material, que é o que importa nas reflexões deste Capítulo, o problema subsiste, porquanto a fragilidade e insuficiência dos conteúdos participativos da lei em tela certificam manifesta ofensa ao princípio da legitimidade, tendo-se em vista que o legislador sufocou e invalidou o desígnio constituinte de fazer do povo, no exercí­ cio da democracia direta, a peça chave do regime, qual se infere da interpretação da letra e do espírito principiológico que move o parágrafo único do art. 1“ da Consti­ tuição Federal. Como faz falta, pois, entre nós, um controle material de constitucionalidade à luz da Nova Hermenêutica! A Lei 9.709 é mais um atestado da incúria do Congresso em fazer efetiva a vontade constitucional, com respeito ao exercício da soberania popular na sua di­ mensão mais legítima. Um escandaloso bloqueio, como se vê, de quem legisla de costas para o povo!

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do regime e fazem da Constituição um monumento da hipocrisia go­ vernante. Com efeito, o Brasil já não é um Estado constitucional, mas uma república federativa de medidas provisórias. A Constituição foi posta de cabeça para baixo, o princípio da separação de poderes dissolvido e a hierarquia normativa do sistema jurídico subvertida. Somos, em ver­ dade, uma ditadura constitucional numa sociedade inconstitucional. A batalha política que ora se fere no País não ocorre, apenas, na esfera de preservação de uma Carta Constitucional, dos seus elemen­ tos formais, mas das instituições mesmas. Não é unicamente a Consti­ tuição que corre perigo - esta, os fautores das praxes neoliberais e da economia global já a diluíram em grande parte no vasto estuário de casuísmos das medidas provisórias e das portarias ministeriais - , senão a essência mesma da democracia, do sistema representativo, da liber­ dade, da participação, dos valores nacionais que foram herança dos an­ tepassados, da nacionalidade, do Estado, da soberania, e da instituição militar, mantenedora das forças armadas. Quem lesse o brado de Rui Barbosa, “O Plano Contra a Pátria”, que derrubou o Império em 1889, haveria de perguntar agora, entre sur­ preso e sobressaltado: onde está o povo brasileiro? Porventura, ainda há povo brasileiro? O País é, de último, nação que se extingue, sociedade que se de­ compõe, organização que se deixa desmantelar. Nunca vimos quadro igual a este. O pessimismo invade a alma do nosso povo: quem amanhã escre­ ver sobre este País, poderá estar escrevendo o epitáfio, o necrológio, a oração fúnebre de uma Nação. E se houver, depois, historiador da percuciência e do quilate de Tito Lívio ou cronista da prosa elegante e castiça de João de Barros, escreverá, como lição da História, um libelo e não um panegírico. Far-se-á, então, o relato fiel das décadas desse presidencialismo sem glória e desse regime sem dignidade, que fez o povo descrer de seu ingresso na civilização do futuro e correr o risco de privar-se da possibilidade de conservar um lugar na galeria dos povos livres e sobe­ ranos. A fim de que isto jamais aconteça, urge, pois, salvar a Constitui­ ção, que é o emblema da liberdade, a guarda do poder legítimo, a ga­ rantia dos direitos fundamentais.

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O pólo das reflexões subseqüentes será, por conseguinte, a inconstitucionalidade material, ora despontando no Direito Constitucional de nossa época como um novo conceito. Posto que ainda em formação, ressumbra-lhe a importância na re­ gião doutrinária, onde abre ele espaço à dilucidação de graves proble­ mas de natureza jurídica, designadamente aqueles em que avultam o sentido e o teor de legitimidade das soluções constitucionais propostas por via hermenêutica. É no espaço especulativo da Ciência da Constituição que se toma possível estabelecer esse conceito-chave e elucidar e investigar, desde aí, as possibilidades de concretização e análise interpretativa dos con­ teúdos principiais da Lei Suprema. Faz-se mister, nesse sentido, partir primeiro da verificação de que, ao lado da Constituição como lei, concorre também outra idéia de peso superior e decisivo, com que solver os sobreditos problemas: a idéia da Constituição enquanto direito. Sem essa derradeira inteligência acerca do Pacto Fundamental, não hão de subsistir nem a teoria material da Constituição, nem, tam­ pouco, a pauta hermenêutica da inconstitucionalidade material. Ambas se encostam à materialidade e não ao formalismo do Estatuto Supremo. Em razão disso, é de todo indispensável levar a cabo a revisão dos conceitos tradicionais, para sondar os limites extremos da teoria da in­ constitucionalidade no Direito Constitucional contemporâneo. Tal son­ dagem só se realiza mediante o reconhecimento da existência de ou­ tros tipos ou formas de inconstitucionalidade, além daquela admitida por tradição na obra dos autores clássicos, cujos horizontes teóricos não transcendem as raias da inconstitucionalidade formal. Foi, sem dúvida, tocante a essa dimensão ampliativa do instituto, passo de extraordinário alcance no âmbito das infrações lesivas aos or­ denamentos constitucionais, a descoberta da chamada inconstituciona­ lidade por omissão, porta larga de ingresso ulterior a uma região cons­ titucional até então vedada à percepção do jurista, e que demora no espaço teórico onde se faz a construção conceituai das posições, dos valores e dos princípios legitimamente constitucionais. A inconstitucionalidade por omissão, tomada em termos substan­ ciais e não meramente formais, antolha-se-nos, assim, passo fundamen­ tal e preliminar de acesso àquela dimensão do problema hermenêutico das Constituições, que impele o jurista a elaborar e introduzir a noção jurídica de inconstitucionalidade material, tema de prodigiosa elastici­

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III

dade e riqueza de conteúdo, do qual, a seguir, nos ocuparemos. Isto mediante análise de direito positivo, onde avulta, primordialmente, uma questão concreta de suma relevância para o futuro da democracia cons­ titucional no Brasil. Trata-se aqui de fazer valer, em bases permanentes, o princípio da soberania popular, em sua versão de democracia direta, e não apenas representativa, conforme tem sido até hoje, invariavelmente, a praxe e fa constante desde a promulgação da Carta Magna. 2. Os constituintes que elaboraram a Carta Política do Império fo­ ram os autores dessa dimensão nova, restrita, excepcional, com que se concebeu e positivou, no texto da Carta outorgada de 1824, a constitucionalidade material, em contraste com a materialidade formal, para designar, no interior da Constituição, conteúdos que são materialmen­ te constitucionais (separação de poderes e direitos individuais), os úni­ cos providos de rigidez e, por isso mesmo, contrapostos àqueles que são apenas formalmente constitucionais, embora figurem na Constitui­ ção, onde se distinguem pela flexibilidade com que podem ser altera­ dos ou expungidos da ordem constitucional vigente. Aliás, essa novidade sancionava e consagrava um pensamento constitucional da mesma natureza e latitude daquele já exarado no cor­ po do Projeto Antônio Carlos, submetido à Constituinte de 1823. Noutra ocasião formulamos, em termos que se seguem, a doutrina constitucional da materialidade, extraída dos dois Projetos elaborados em 1823 e 1824, um na Constituinte, o outro no Conselho de Estado, ambos servindo de inspiração ao texto da Carta Imperial: “Não se tinha formado ainda a consciência de que a Constituição pertence também à Sociologia e à Ciência Política, de que elementos fáticos e dinâmicos da sociedade à qual ela se aplica lhe decidem a eficácia ou que uma Lei Maior não é obra unicamente do engenho, das abstrações e da metafísica política de teoristas românticos aferrados a princípios solenes, senão que se insere dialeticamente na esfera do fático, do real e do histórico. “Como a tendência maior da teoria constitucional ao começo do século passado era, pois, a de sancionar o princípio da rigidez, só nos cabe louvar a posição originalíssima do constituinte pátrio pelas solu­ ções propostas ao problema, já de todo intuído e certamente meditado. “Efetivamente, o Projeto Antônio Carlos, no último Título, ocu­ pando-se da reforma constitucional, estabelecia com rigor teórico inex-

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cedível para a época a distinção, dentro da própria Constituição, entre o que é substantivamente matéria constitucional e aquilo que apenas tem forma constitucional. “Em verdade, só era constitucional o que entendesse com os limi­ tes e atribuições respectivas dos poderes políticos e com os direitos po­ líticos e individuais dos cidadãos, de tal sorte que tudo o mais que en­ trasse na Constituição seria apenas formalmente constitucional. “Essa disposição, assim estabelecida, pesava no processo de revi­ são do texto, produzindo dois graus de rigidez. Um maior, quando se tratasse de disposições materialmente constitucionais, que demanda­ vam o exame da matéria por três legislaturas consecutivas, seguida da convocação de uma assembléia única de revista, equivalente a uma constituinte exclusiva, a ser dissolvida tão logo concluísse seus traba­ lhos. Outro menor, referente a preceitos que não fossem matéria cons­ titucional propriamente dita; nessa hipótese, a legislatura, por decisão de dois terços de cada uma das Casas, fazia alteração cabível. “Manteve a Constituição de 25 de março de 1824 a admirável dis­ tinção que ainda hoje nos deveria servir de modelo e inspiração, quan­ do a reflexão busca remédios com que tolher a enxurrada de casuísmos invasores, por onde têm resultado a obesidade e o desprestígio dos tex­ tos constitucionais. “A Carta Imperial, se fez rígido o que era materialmente constitu­ cional - não tão rígido quanto o Projeto -, tomou o restante das regras e preceitos da Constituição demasiado flexíveis, de tal sorte que pode­ riam ser alterados pelas legislaturas ordinárias, sem as formalidades requeridas para a matéria basicamente constitucional, como a compe­ tência dos poderes e os direitos dos cidadãos” (Bonavides/Andrade, História Constitucional do Brasil, Brasília, 1989, pp. 99-100). De último, na organização constitucional do País, em matéria par­ ticipativa, tocante à elaboração de leis e atos normativos, somente me­ tade da Constituição está sendo cumprida. A outra metade se acha re­ presada, desativada, embalsamada na reserva legal do art. 14. Contudo, a segunda metade é mais importante, mais crucial, mais democrática que a primeira. Descurada, como tem sido até agora, faz do nosso sistema repre­ sentativo um sistema de meia-legitimidade, meia-democracia, meia-representatividade, ou, em termos equivalentes, um sistema semilegítimo, semidemocrático, semi-representativo.

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Até quando, pois, contrariando a vontade constitucional e a voca­ ção popular de poder e soberania, será possível admitir essa distorção, esse abuso, essa violência, esse menoscabo ao povo e à Nação? Tudo isso, porém, continuará ocorrendo, deploravelmente, se, no controle de constitucionalidade, juizes e tribunais não variarem de ju­ risprudência, não se afastarem da Hennenêutica tradicional, que man­ tém cerrada a porta de acesso aos substratos materiais e valorativos da Constituição. Tais substratos, conforme entende a Nova Hermenêutica, não se interpretam, se concretizam, e a concretização é que soluciona proble­ mas para os quais são impotentes ou se mostram refratários os méto­ dos clássicos da Velha Hennenêutica. 3. O constitucionalismo primitivo, nascendo de envolta com a re­ volução jusnaturalista, racionalista e iluminista dos séculos XVIII e XIX, ao mesmo passo que procurava arruinar o absolutismo do ancién régime, se concentrava todo na idéia de proteger juridicamente o pri­ mado e a prevalência de determinados interesses, bem como bens, prin­ cípios e valores, cujo ingresso na consciência geral era o compromisso daquela época. Liberdade, igualdade, propriedade, direitos individuais, congrega­ dos, exprimiam o otimismo da razão e, ao mesmo passo, escreviam um compêndio de justiça com as declarações de direitos, os preâmbulos das Constituições e as introduções aos Códigos. A proteção assim concebida passava das especulações filosóficas aos textos jurídicos, tanto das Constituições como da legislação ordi­ nária de teor jusprivatista. Duas noções contribuíram sobremodo para que tal ocorresse e lo­ grasse máximo influxo: a distinção entre poder constituinte e poder constituído, a par da seqüente noção de rigidez constitucional, corolá­ rio dessa distinção. Com a primeira noção se elaboravam as Constituições que subministravam o fundamento da ordem jurídica; uma ordem cuja legitimi­ dade se escorava geralmente nos conceitos de soberania popular ou so­ berania nacional. Da segunda noção se extraíam os elementos formais com que res­ guardar os valores incorporados à Constituição. Legalidade e legitimidade, então, coincidiam. A legalidade era a forma; a legitimidade, a substância, ambas integradas em a norma.

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A rigidez, enquanto moldura do pensamento constitucional, deter­ minava a necessária distinção a ser estabelecida entre a Constituição e a lei propriamente dita; distinção que introduzia um postulado essencial, afiançando a supremacia da primeira sobre a segunda. Sendo a legitimidade conceito jusnaturalista, o positivismo, ao fa­ zer normativos aqueles valores supramencionados, absorveu, no cor­ respondente conceito de legalidade, que era o seu, o de legitimidade; disso derivou que as questões de forma entraram, de imediato, a predo­ minar sobre as de conteúdo. Logo se instalou um constitucionalismo de juristas, que, desde en­ tão, pretendeu afastar, excluir, ultrapassar e, se possível, eliminar o constitucionalismo dos filósofos; este fizera as revoluções da burgue­ sia. Vitoriosas estas, domiciliou-se no direito natural e nas chamadas normas programáticas. Mas não abdicou, em tese, a pretensão de con­ servar seu lugar de supremacia na crista do ordenamento jurídico, ou, mais precisamente, no topo dos regimes políticos, na vanguarda das idéias constitucionais, com a matéria-prima do pensamento, dos valo­ res e dos princípios que eram a sua bandeira e a sua promessa de redi­ mir homens, nações e povos. O constitucionalismo dos juristas, porém, arrimado no direito po­ sitivo, e mais afim ao Direito Administrativo do que à Ciência Política, contrastava com o constitucionalismo dos filósofos, maiormente incli­ nado a entrelaçar-se com a disciplina fundada por Aristóteles há cerca de dois mil e quinhentos anos. Demais disso, o constitucionalismo dos juristas conferia conside­ rável destaque à constitucionalidade ou formalidade constitucional; mais valiosa, num certo sentido, do que os conteúdos e regras substan­ tivas da Constituição. Já o constitucionalismo dos filósofos deitava suas raízes em Kant, Hegel, Rousseau, Montesquieu e outros pensadores de igual tomo, ancorava-se na metafísica da razão, nas velhas lições do direito natural, na herança das idéias constitucionais de liberdade e justiça, na dialética, e forcejando por manter de pé, na frente de batalha, a teorização de valo­ res e princípios, ou por promulgar aquelas verdades constitucionais a que o positivismo fora infenso; porque o positivismo de outro direito não curava senão daquele que pudesse emergir da letra de um Código ou do texto de uma Constituição. Tal atitude determinou, durante algu­ mas décadas, o declínio e o desprestígio das posições filosóficas. Mas nunca cessou o embate entre as duas correntes do constitucio­ nalismo, embate cuja culminância se deu em nossos dias com o positi­

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vismo batendo em retirada e o pós-positivismo inaugurando a sua era, que é também uma espécie de nova era do constitucionalismo filosófi­ co, desta feita juridicizado, despido de suas vestes metafísicas, de tal modo que o cotejo com o positivismo jurídico perdeu aquele sentido de oposição e luta. O antagonismo das duas correntes não poderia sobreviver a um direito constitucional que já consagrou, em definitivo, a juridicidade dos princípios, transformados em paradigma e vértice da pirâmide nor­ mativa.

4. A teoria constitucional percorreu, assim, como estamos a ver, tocante à ordem de problemas que ora se levantam, duas amplas vias: a filosófico-j uri dica, que é a da Filosofia do Direito, da Nova Herme­ nêutica e do Direito Constitucional, e a jurídica propriamente dita, que é a da Ciência do Direito, do positivismo tradicional e da Velha Her­ menêutica, habitualmente volvida para questões jusprivatistas, em que prepondera a metódica de inspiração savigniana. Pela primeira via, os pensadores do Direito deduzem de apotegmas filosóficos e ideológicos suas noções jusconstitucionais, buscando a relevância dos conteúdos e seu predomínio, relativo ou absoluto, so­ bre os elementos formais. Parte-se para a dogmática da Constituição aberta, cujas cláusulas adquirem inteira juridicidade mediante o ato de concretização. Esse pensamento constitucional, origem também de uma teoria material do Direito, inspira a metodologia da Nova Hermenêuti­ ca e solve, nas províncias normativas da ordem jurídica fundamental, o conflito da Constituição com a realidade. Pela segunda via, verifica-se que aos juristas do positivismo lhes repugna suscitar questões valorativas acerca do que se legislou. Res­ tringem-se, tão-somente, a aplicar o direito e seguir os caminhos da subsunção e do dedutivismo lógico. De sorte que o constitucionalista, assumindo atitude neutral, permanece indiferente ao mérito dos precei­ tos incorporados à Constituição e se conduz como executor fiel e rigo­ roso de tudo quanto ali ficou estatuído e se tomou formalmente susce­ tível de aplicação. Diante, pois, da materialidade jurídica, houve-se o positivismo com tamanho rigor formal, que acabou esterilizando os preceitos cons­ titucionais, vazados em cláusulas gerais. Trasladados, a seguir, pelos aplicadores, para as esferas programáticas, estas os fizeram juridica­ mente inaplicáveis.

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O velho constitucionalismo dos filósofos, distinto do constitucionalismo neofilosófico e principiai, que hoje domina o Direito Consti­ tucional, depois de gerar o constitucionalismo dos juristas, embalado no berço do positivismo, entrou, todavia, em declínio, à medida que se aprofundava a institucionalização civil da sociedade burguesa. Aí, os Códigos, vistos pelo prisma jusprivatista da garantia dos interesses que neles se estratificavam, à sombra do princípio da legalidade, eram, num certo sentido, mais importantes que as Constituições; superiores, por­ tanto, a estas do ponto de vista estritamente pragmático de sua utiliza­ ção mais freqüente no campo do direito positivo. As Constituições se tinham, então, por meras cartas políticas, os Códigos, por ordenações jurídicas da conduta humana; as Constitui­ ções se juravam como símbolos, os Códigos se obedeciam como leis. Se os Códigos eram fechados, as Constituições eram abertas. Nestas, só interessava à organização liberal e individualista da sociedade sepa­ rar poderes, distribuir competências, manter rígido e inabalável o status quo do estamento burguês de poder e dominação. 5. Houve três momentos históricos na vida das Constituições pelo menos em nossa existência constitucional isto é comprovável em que a filosofia do constitucionalismo se acercou da extrema perfei­ ção, ao sancionar, em fórmula jurídica acabada, esse pensamento de soberania da constitucionalidade material sobre a constitucionalidade formal. O primeiro momento ocorreu ao se definir, em termos de direito constitucional positivo, a materialidade constitucional, para separá-la da materialidade formal; o segundo momento, quando se instituiu a intangibilidade de certos conteúdos constitucionais, cuja materialidade privilegiada - a das cognominadas cláusulas pétreas - ficou fora do alcance da competência reformista delegada no chamado poder cons­ tituinte constituído; e, finalmente, o terceiro momento, que ora trans­ corre, quando uma nova materialidade constitucional surge e galga o patamar supremo da Constituição, inserindo-se, ao mesmo passo, na órbita principiai, com superioridade normativa no que toca aos demais preceitos da Constituição. Em caso de conflito constitucional, o princí­ pio é superior à regra; o princípio se aplica, a regra, não. A inferência inspira-se na lição de grandes juristas como Dworkin e Alexy. E nesse terceiro momento que se há de encaixar a interpretação do art. 14 da Constituição, objeto deste ensaio. Com efeito, essa inter­ pretação envolve o mais excelso princípio de nosso ordenamento, con-

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dicionante tanto das regras políticas como jurídicas da Lei Maior: o princípio da soberania popular.2 2. O art. 14 da Constituição de 1988 constitui parte da espinha-dorsal de nosso Sistema de organização política, que assenta sobre duas dimensões: uma representati­ va, a única de funcionamento normal desde a promulgação da Lei Maior, há cerca de uma década; outra, democrática direta; ambas positivamente previstas e expressas no art. l s do Estatuto Fundamental da República Federativa do Brasil. A última ficou, conforme já exaustivamente patenteamos, sujeita ao bloqueio da reserva legal do sobredito art. 14, reserva que tem sido o instrumento das elites conservadoras, te­ merosas do governo popular direto, para refrear a expansão de uma presença mais ativa e imediata do corpo da cidadania na formação da vontade governativa. Vejamos a seguir as origens dos institutos da democracia semidircta no siste­ ma constitucional brasileiro, excelentemente retratadas pelo constitucionalista Pau­ lo Lôpo Saraiva que, tomando parte ativa nos trabalhos de assessoria aos constituin­ tes de 1987-1988, foi testemunha da batalha política ferida nos bastidores do colé­ gio da soberania nacional para aprovar aquele dispositivo: “O art. 14 da vigente Constituição representa uma grande vitória popular so­ bre a elite conservadora nacional. “Por esse dispositivo, consagrou-se a soberania popular, através do plebisci­ to, do referendo e da iniciativa popular, institutos da democracia semidireta, na sá­ bia lição de Paulo Bonavides. “A emenda inicial, por nós elaborada, quando Assessor Parlamentar constituin­ te, contemplava, de igual modo, o veto popular. Mas o então relator-geral houve por bem (ou mal) suprimir o veto popular. “A inserção dos mecanismos de participação popular foi uma vitória das for­ ças progressistas contra o malsinado Centrão. “É este o comentário de João Gilberto Lucas Coelho, atual Vice-Govemador do Rio Grande do Sul, e Antônio Carlos Nantes de Oliveira, sobre a votação n. 149, na Assembléia Nacional Constituinte. Dizem eles: ‘O Centrão tentou derrubar a soberania popular conquistada na fase das subcomissões. Uma emenda do sena­ dor Lavoisier Maia resolveu a questão e permitiu a aprovação da matéria em pri­ meiro turno, nos seguintes termos: ‘A soberania popular será exercida pelo plebis­ cito, pela iniciativa popular, pelo veto popular e pelo referendo, conforme dispuser a lei’. Em Plenário, presentes 461 constituintes, 370 (78%) votaram sim, 89 não e houve 12 abstenções. Fechadas com o sim votaram as bancadas do PC do B, do PCB, do PDT e do PMDB, do PSB e do PT; os dois constituintes sem partido votaram sim; por maioria dos demais partidos, inclusive PSD e PFL, aprovaram a emenda’ (in A Nova Constituição, INESC, Ed. Revan, p. 92). “A nossa luta pela aprovação da emenda foi intensa, de vez que o Centrão reunia grande força no seio da Constituinte. “Agora, devemos nos mobilizar para que o Congresso Nacional regulamente o exercício desses salutares institutos a fim de que o povo tenha participação direta no processo político-eleitoral. “Não basta que o texto constitucional enuncie essas conquistas. É preciso efe­ tivá-las, por meio do seu exercício democrático” (Paulo Lôpo Saraiva, Curso de Direito Constitucional, Ed. Acadêmica, 1995, pp. 57-58).

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Trata-se de um axioma que, em sua execução direta, através dos instrumentos ali postos pelo constituinte originário, a saber, a iniciati­ va, o plebiscito e o referendo, derroga, por inteiro, a reserva de lei jacente naquele dispositivo; isto pela poderosa razão de que, não se ten­ do o mesmo cumprido até agora, sua inobservância entra a configurar flagrante inconstitucionalidade material. Dessa inconstitucionalidade arredou-se, porém, em boa hora, a Câmara Municipal de Fortaleza, ao tomar a iniciativa pioneira de fazer eficaz o art. 14 e, assim, preservar a integridade da Constituição, sujei­ ta a padecer grave dano, em sua legitimidade, por abuso na dilação da sobredita reserva de lei, abuso que é o germe da inconstitucionalidade ora evidenciada. 6. O direito constitucional brasileiro, conforme já assinalamos, foi aquele que, pela vez primeira, em termos de direito positivo, consa­ grou a supremacia da constitucionalidade material sobre a constitucionalidade formal. Com efeito, os dois Projetos constitucionais do Império, e a Carta outorgada em 1824, introduziram algo inédito nos fastos do constitucio­ nalismo: o desmembramento dos dois conceitos naquela moldura que se manteve durante mais de sessenta anos. Para ilustração de quem nos lê, vale a pena de transcrever os arti­ gos do constitucionalismo imperial, que fixam juridicamente o sentido e o alcance daqueles conceitos: Projeto Antônio Carlos (30 de agosto de 1823) Título XV - Do que é constitucional e sua revista Art. 267. E só constitucional o que diz respeito aos limites e atri­ buições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e in­ dividuais. Art. 268. Tudo o que não é constitucional pode ser alterado pelas legislaturas ordinárias, concordando dois terços de cada uma das salas. Art. 269. Todas as vezes que três legislaturas consecutivas tive­ rem proferido um voto pelos dois terços de cada sala para que se altere um artigo constitucional, terá lugar a revista. Art. 270. Resolvida a revista, expedir-se-á decreto de convocação da assembléia de revista, a qual o Imperador formalizará. Art. 271. A assembléia de revista será de ulna sala só, igual em número aos dois terços dos membros de outras salas e eleita como é a sala dos deputados.

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Art. 272. Não se ocupará senão daquilo para que foi convocado e findo o trabalho dissolver-se-á. Projeto do Conselho de Estado (11 de dezembro de 1823) Art. 178. E só constitucional o que diz respeito aos limites e atri­ buições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e in­ dividuais dos cidadãos. Tudo o que não é constitucional pode ser alte­ rado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias. Constituição Política do Império do Brasil (25 de março de 1824) Incorpora ao seu texto, na íntegra, com o mesmo número, o art. 178 do Projeto do Conselho de Estado. A distinção entre nós, tocante a constitucionalidade fonnal e cons­ titucionalidade material, se fez histórica na ocasião em que o poder constituinte dos fundadores da monarquia buscava, convulsivamente, se positivar, manifestando-se em dois pólos distintos, dos quais um teve que capitular, em 1823, com a dissolução de nossa primeira assembléia soberana. O primeiro pólo personificava-o a Assembléia Nacional Constituin­ te; o segundo, a figura do Imperador. Entre nós, durante a fase imperial, em termos positivos de vigência, a hegemonia ficou sempre com a constitucionalidade material. Mas isso constituía uma enorme exceção, da qual não se tem notí­ cia noutros ordenamentos. E era exceção, porquanto a constitucionali­ dade fonnal, ou fonnalismo constitucional, imperava absoluta já no sé­ culo XIX, em razão do positivismo que dominou tanto a doutrina como a práxis dos sistemas constitucionais. Durante o século XX esse mesmo fonnalismo chega ao auge, e se faz cada vez mais agudo na esfera da rigidez constitucional, com a dou­ trina de Kelsen. Suscita ele, pela suspeita de indiferença aos conteúdos e valores da matéria legislada em sede constitucional, uma certa e dissimulada animadversão à constitucionalidade material enquanto critério de juridicidade. Daqui derivam graves abalos e ruinosos efeitos para a pre­ servação da democracia, a conquista da liberdade, a conservação do Estado de Direito. A idade contemporânea assiste, todavia, a uma crise de consti­ tucionalidade formal, para a qual nos debates da Tópica, durante a dé­

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cada de 60, num vigoroso tom polêmico, já advertira Forsthoff, empe­ nhado em refazer as bases minadas do positivismo clássico. Este se achava comprometido, em definitivo, pela inadequação de sua metódi­ ca e hermenêutica jusprivatista, que Forsthoff mesmo reconhecia e pro­ clamava incompatível com o constitucionalismo do Estado Social. Uma verdade sem a qual não teria brotado a Nova Hermenêutica, nem as Constituições subido a um grau tão elevado de juridicidade, unicamen­ te possível por obra da revolução normativa que se operou na esfera dos princípios. Com efeito, o positivismo se mostrara incapacitado para solver, nos distritos hermenêuticos de sua jurisdição metodológica, as grandes questões de direito público de nosso tempo, levantadas pela ruptura dos modelos clássicos e pela decadência das instituições liberais da socie­ dade burguesa. Não faremos, a seguir, a autópsia desse cadáver, que é a teoria formalista das Constituições. Em sua feição primitiva, ela foi concebida segundo o rigor positivista da doutrina alemã, ou conforme a pureza metodológica mas esterilizante da escola dos juristas austríacos de Viena. E não a faremos porque o que se nos afigura, de imediato, digno de maior atenção, é apontar e aferir a materialidade constitucional como o fenômeno jurídico mais significativo deste fim de século. Convertida em pedra angular do novo Direito Constitucional, ela surge e se expande à sombra de novos conceitos - desde os da Nova Hermenêutica até aqueles que restituem à legitimidade os seus foros de supremacia. Foros dantes usurpados pelo conceito meramente for­ mal de legalidade, por onde se filtravam, pervertendo a noção de Esta­ do de Direito, concepções audaciosas e autocráticas, lesivas a todas as dimensões dos direitos fundamentais e às liberdades do ser humano. Com isso, a constitucionalidade material avulta em nossa linha de raciocínio como o elemento-chave de resposta às crises que ameaçam abalar, submergir e dissolver os ordenamentos constitucionais da Li­ berdade e do Direito, inspirados na Justiça e, por conseguinte, nos axio­ mas do Estado Social. Se não deslocarmos para a materialidade constitucional o centro de gravidade das interpretações constitucionais, não há futuro para a Constituição. Retomando, pois, o fio interrompido dessa evolução, verificamos que a constitucionalidade material, não tanto em termos de doutrina

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como de concretização ou positivação no estrito âmbito do Direito Constitucional, já fez consideráveis progressos. Haja vista, a esse respeito, a materialidade constitucional assoman­ do outra vez de maneira impressionante nas cláusulas de intangibilidade das Constituições, onde determinadas matérias são subtraídas ao poder de emenda do bonstituinte de segundo grau, tais como aquelas constantes do § 4a do art. 60 da Constituição. É a constitucionalidade material elevada, taxativamente, ao seu ponto mais alto numa cláusula constitucional de petrifícação. 7. Com a constitucionalidade material o que se busca, num deter­ minado sentido, é conciliar a realidade com a Constituição, o ser com o dever-ser, a regra com o princípio, o direito do cidadão com a autori­ dade do Estado. De tal maneira que se venham a captar, na ordem fática, elementos de juridicidade com que erguer a base normativa de concretização dos preceitos ou comandos, a partir da letra do texto constitucional, combinado, a seguir, com os aludidos elementos de facticidade. Toda a linha interpretativa mediante a qual se rege a teoria material da Constituição se coloca, por conseguinte, em pólo oposto ao da Her­ menêutica clássica, pelo menos numa fase onde a relevância do texto normativo já não concentra nem monopoliza os subsídios ou elemen­ tos de compreensão que perfazem a trajetória concretizante de aplica­ ção da norma. O conceito de constitucionalidade material toma-se, assim, dora­ vante, uma categoria autônoma, de enorme serventia instrumental e metodológica para a solução dos grande problemas hermenêuticos da Constituição; mais importante talvez do que a própria constitucionali­ dade formal do positivismo, porquanto este ou petrificava pela inércia a variação dos conteúdos constitucionais ou lhes retirava a seiva, a energia e a dinâmica indispensável a adequá-los às realidades internas do ordenamento. Os juristas do positivismo sempre foram contumazes no menos­ prezo e aversão aos princípios. Com essa postura hermenêutica, artigo de fé de sua metodologia, nunca se mostraram eles capazes de com­ preender o fenômeno constitucional e fazer a Constituição compade­ cer-se com a materialidade de suas cláusulas abertas, e, assim, proteger melhor e tornar mais eficazes aqueles conteúdos constitucionais. Não admitiam que essa proteção ocasionasse o mais leve arranhão nos dogmas de sua metodologia formalista, a cuja inteireza e inviolabi­

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lidade tudo fora lícito sacrificar, como efetivamente se sacrificou des­ de que o Estado de Direito, da Alemanha de Weimar, sucumbiu à lega­ lidade totalitária da Alemanha de Hitler. A tanto conduzira, pois a ce­ gueira do dogma formalista, desacautelado da razão e do bom senso. Ali se escrevera, portanto, o epitáfio de um positivismo sepultado no cemitério das concepções mortas do Direito. A constitucionalidade material impregnou-se de valores e princí­ pios. Fazem eles a solidez de um edifício, que tem os alicerces apro­ fundados nos conceitos de justiça, Estado de Direito, igualdade e legi­ timidade. Sem tais conceitos não há teoria material da Constituição, nem bús­ sola com que possam navegar quatro gerações de direitos fundamentais. Nenhum Direito Constitucional ficou tão sujeito à vulnerabilidade de suas bases quanto aquele que se fundou sobre as premissas de um formalismo legalista, sem moderação, sem fronteiras, sem abertura, cer­ rado à solução dos problemas que o Direito Constitucional, de inspira­ ção administrativa, via de regra costuma embaraçar. Desse formalismo deriva, com freqüência, um constitucionalismo magro de soluções nor­ mativas e gordo de esperanças programáticas. Já o Direito Constitucional da Ciência Política se mostrava mais brando, mais flexível, mais convizinho da realidade, mais apto a solu­ cionar juridicamente as grandes questões constitucionais de substrato político e, por isso mesmo, mais apropriado à construção de um Estado social harmonizado, em bases rigorosamente constitucionais, com o Estado de Direito. Contudo, até chegar a esse Direito Constitucional de tão larga di­ mensão, mister fora operar uma revolução conceituai em defesa da li­ berdade, em toda sua perspectiva de objetividade e concretude imedia­ ta, promovendo o reconhecimento normativo de quatro gerações de di­ reitos fundamentais, e rompendo o círculo do monopólio jurídico con­ tido na unidimensionalidade dos direitos da primeira geração, cuja dou­ trina subjetiva e individualista tutelava o cidadão da classe dominante mas desamparava o povo, na projeção universal de seus direitos, vistos e considerados pelo prisma da positividade. Ao novo Direito Constitucional, de que se faz menção, só seria possível ascender introduzindo os princípios em condição definitiva de hegemonia como categoria de normas superiores do ordenamento - em rigor, as suas normas supremas, conforme a melhor doutrina constitu­ cional contemporânea já os consagra.

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8. Na esfera da materialidade formal perdurava, até hoje sem so­ lução, o problema das normas programáticas. O silêncio positivista em torná-las aplicáveis fazia insuportável esse estado de coisas. À verda­ de, o positivismo lhes(estorvava a execução constitucional. Convertidas em normas inferiores - o que era um paradoxo - e alcunhadas pejorativamente de programáticas, caminhavam fora do terreno da concretude, rebaixadas a preceitos abstratos, do mais ínfimo quilate jurídico. Enquanto permaneceu semelhante quadro na evolução constitucio­ nal deste século, a constitucionalidade material jamais pôde volver ao grau de juridicidade que a fórmula, extraordinariamente original, dos velhos constituintes liberais da fundação do Império lhe conferiu, com justo e merecido relevo, consoante já se assinalou. A desconfiança social dos poderes conservadores congelava em normas programáticas os direitos fundamentais da segunda geração. Um escândalo jurídico do qual nem todas as Constituições se livraram. Fazia-se, assim, inoperável o que deveria ser o tecido mais nobre das Constituições: o Estado social em toda a plenitude de sua contextura. O nó da dificuldade e da omissão em concretizar aquelas normas somente se desatou quando as correntes antipositivistas deste fim de século fundaram uma Nova Hermenêutica, retirando os princípios dantes designados simplesmente por princípios gerais de Direito - da esfera menor dos Códigos, onde jaziam como a mais frágil e subsidiá­ ria e insignificante das peças hermenêuticas do sistema, para a região mais elevada e aberta das Constituições, cujo espaço oxigenado entra­ ram a ocupar, até se fixarem com aquela densidade normativa que os converteu em senhores supremos da juridicidade constitucional. De tal sorte que, por derradeiro, os princípios governam a Constituição, e a governam nos termos absolutos que a legitimidade impõe.

9. Promana a inconstitucionalidade material da colisão da realida­ de extraconstitucional - uma realidade social circunjacente e subjacen­ te à Constituição - com as normas programáticas da Lei Maior. A inconstitucionalidade material, o jurista não a detecta propria­ mente na Constituição, porquanto esta, enquanto texto, lhe é exterior em termos normais e ordinários. O tipo de inconstitucionalidade em tela - urge, todavia, asseverar - advém basicamente do descumprimento e omissão dos preceitos constitucionais de cunho programático.

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Em rigor, só se faz possível construir o conceito e tomá-lo exeqüí­ vel, factível e operacional se expurgarmos das normas principiais da Constituição seu caráter de programaticidade e lhe reconhecermos, ao mesmo passo, a sua normatividade culminante. Sem embargo, não basta, apenas, asseverar que os princípios ou as normas programáticas possuem juridicidade e aplicabilidade; faz-se mister ir mais longe, ir além, para acrescentar que, fonnando o Everest da hierarquia constitucional, são os princípios muito mais densos e ri­ cos de juridicidade que quaisquer outras normas em circulação no or­ denamento jurídico da sociedade. Nessa qualidade, e com esse quilate, comandam eles indistinta­ mente cada parte da Constituição. São, assim, os princípios, as vértebras de todo o sistema constitu­ cional. Sem eles a Constituição navegaria à deriva. Não lograria jamais consistência; não seria lei nem direito, mas unicamente aquele ignóbil farrapo de papel da ironia socialista de Lassalle, insigne precursor, se não o fundador, da teoria material da Constituição. Representando, todavia, a excelsitude normativa das disposições constitucionais, são os princípios a mola-mestra dessa teoria, a manivela do poder legítimo, a idéia-força que ampara todo o sistema de or­ ganização social; violá-los, de último, configura uma inconstitucionalidade material, quer a violação afronte direta ou indiretamente, exter­ na ou internamente, o corpo normativo do Estatuto Supremo.

10. Deduzidas as razões acima expostas acerca dos conceitos de constitucionalidade e inconstitucionalidade materiais, é de todo o pon­ to possível lograr a certeza de que o art. 14 da Constituição Federal admite, paralelamente, dois procedimentos interpretativos. O primeiro procedimento acha-se, a esta altura, grandemente ul­ trapassado. Porém a jurisprudência, e considerável parte da doutrina, infelizmente, ainda se atêm a ele com rara tenacidade. É método vazado no estilo dedutivista, silogístico, de subsunção da norma; método cujas raízes privatistas denotam, desde o começo, sua inteira inadequação ao trasladar-se para o domínio das graves ques­ tões constitucionais, aquelas que entendem com os fundamentos e a legitimidade da ordem jurídica ou com a concretização das cláusulas abertas da Constituição. Diante de tais questões, é procedimento interpretativo de todo ine­ ficaz para lhes dar solução, conforme buscaremos demonstrar na se­ qüência das presentes reflexões.

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0 segundo procedimento hermenêutico deriva da teoria material da Constituição, e a ele pertence o futuro das Constituições.

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Urge utilizá-lo, para demonstrar que o mesmo toma imediatamen­ te eficaz a norma do art. 14 da Constituição, dirimindo a controvérsia suscitada acerca da aplicação dos mecanismos constitucionais da de­ mocracia semidireta em nosso ordenamento. Com efeito, se ficarmos jungidos à metodologia tradicional, como, aliás, tem acontecido na área judicante, a cláusula que institui aquelas técnicas de exercício da soberania permanecerá, em razão da reserva de lei ali posta, indefinidamente tolhida em sua aplicação. Aquela reserva legal tem sido, até agora, um óbice intransponível à concretização do sobredito preceito constitucional. Como a lei subsidiária não se faz, e nisso vai adrede um empenho designadamente malicioso e pernicioso, já do Governo, já das Casas Legislativas do Congresso Nacional, aniquila-se, na prática, o mais só­ lido e improcrastinável elemento de exercício da soberania, no qual se aloja verdadeiramente, em toda sua pureza e grau superior de legitimi­ dade, a manifestação da vontade popular. Com o emprego do primeiro procedimento hermenêutico, dir-se-ia, portanto, inconstitucional, à míngua de lei federal, toda legislação ema­ nada da órbita municipal ou da órbita do Estado-membro que regulas­ se o emprego daqueles instrumentos de participação nas suas respecti­ vas esferas de competência. Nada, porém, mais falso e errôneo, e infenso aos progressos da Hermenêutica constitucional de nosso tempo e, ao mesmo passo, nada mais hostil e desrespeitoso à Constituição do que decretar uma incons­

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da no parágrafo único do art. Ia, onde se lê: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (grifo nosso). A norma supra, desse art. Ia, incorporou, por conseguinte, à nossa democracia os meios de uma participação popular concebida em seu mais vasto teor de legitimidade. Conservar o entendimento incriminado eqüivale, por conseqüên­ cia, a desafiar a seriedade da letra da Constituição. Doravante, consiste a inteligência constitucional do art. 14 em movimentar a máquina do poder popular, sem tergiversar, sem se em­ baraçar com os obstáculos de uma reserva de lei que, em verdade, o tempo e a supremacia do povo soberano fizeram caducar. Persistir noutro entendimento, isto, sim, há de configurar inconsti­ tucionalidade gravíssima, a pior das inconstitucionalidades: a inconsti­ tucionalidade material, aquela que em sua manifestação extrema abala regimes, subverte instituições, desfere golpes de Estado, corrompe a cidadania, promove crises constituintes, solapa o poder legítimo, desfi­ gura o Estado de Direito, derranca o Estado Social e, fazendo ruir a soberania popular, faz a nação dobrar os joelhos às ditaduras. E fruto dos poderes demissionários, que a deserção arrasou ao des­ crédito e o arbítrio, fingindo garantir-lhes a sobrevivência, os imolou no altar da Constituição. A Constituição cuja guarda lhes cabia! Obra, por igual, do egoísmo e da amaurose das elites, obstinadas na conservação de seus privilégios, dos quais não sabem nem querem recuar, essa inconstitucionalidade material se defme, também, pela ati­ tude dos juristas insensíveis aos métodos renovadores que conduzem a Constituição ao povo. E a conduzem de sorte que este seja colocado no pedestal de sua soberania: a soberania do cidadão governante, que não é a mesma do cidadão governado por representantes. As armas par­ ticipativas contidas no texto do art. 14 da Lei Fundamental, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa, não lhe podem ser negadas sem negar a soberania do povo e sem matar a alma do colégio constituinte que fez e promulgou a Carta Magna de 1988.

11. Todo o desenvolvimento teórico acima traçado representa, tãosomente, um prefácio de elucidação em que se subministram funda­ mentos sobre os quais assenta, doravante, a correta reflexão hermenêu­ tica acerca do art. 14 da Constituição Federal. Não é possível continuar a interpretá-lo na medida e proporção das categorias tradicionais, porquanto isto significaria estorvar-lhe a

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aplicabilidade indefinidamente, desobedecendo e desfazendo o man­ damento soberano que a autoridade constituinte formulou. Demais disso, o descumprimento do legislador em executar o pre­ ceito da Constituição submetido à reserva legal do art. 14 só tem feito i crescer o hiato entre o atraso fático da Lei Maior e o adiantamento teó: rico do conceito de democracia. Efetivamente, a democracia que se deve concretizar naquele arti­ go é a democracia direta, democracia cuja ausência, por si mesma, já inculca, sem dúvida, uma nota de inconstitucionalidade material por omissão, decorrente da sonolência do legislador em positivar o manda­ mento constitucional. Em rigor, enquanto a democracia avança a passos largos para o terceiro milênio, na ordem prática das coisas, nós, contraditoriamente, nos distanciamos do objetivo de aperfeiçoá-la. Tal acontece à medida que retardamos e até mesmo bloqueamos, como já se fez por via judi­ cial, a implantação do modelo atualizante que do sobredito art. 14 se deduz. Sacrifica-se, assim, a potencialidade constitucional de que dispo­ mos para modernizar o regime e fazê-lo consoante com as tendências do nosso tempo. E maiormente com a inspiração de legitimidade, conceito-padrão sobre o qual assenta o edifício de todo poder consentido em sua manifestação mais adiantada, que outra não pode ser senão a da democracia direta. Ao redor da democracia se levanta, nas regiões da doutrina, um movimento de reorientação conceituai que intenta transformá-la em di­ reito da quarta geração, o mais fecundo e subjetivo dos direitos políti­ cos da cidadania, em escala de concretude. 12. Aferrar-se a interpretação conservadora e dilatória, até agora perfilhada pelos tribunais nessa matéria constitucional, sobre atentar contra o princípio supremo de toda a nossa estrutura democrática de poder - o princípio da soberania popular - , atenta também, da mesma maneira devastadora, contra o princípio federativo, porquanto tende a anular, em cotejo com a União, a base paritária que protege a autono­ mia dos entes da Federação. Isto se infere, com meridiana clareza, da exclusão dos Municípios e Estados da regulação participativa da sobe­ rania popular, mediante os mecanismos plebiscitários, enquanto se ■guarda que a lei prevista no art. 14 da Constituição seja promulgada lei que se quer, por uma vertente da Constituição, unicamente de âmbi­ to nacional.

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Não podem Estados e Municípios, todavia, ficar indefinidamente arredados de uma presença direta, imediata e genuinamente democráti­ ca na elaboração de suas leis e decisões de govemo. A cláusula do art. I12 da Constituição - que desdobrou em duas vias de exercício a sobe­ rania popular: a via representativa e a via direta - está sendo tolhida em seus efeitos jurídicos por uma reserva de lei que se eterniza no tem­ po e que, sendo de grau inferior, possui, porém, o condão de sobreporse a um princípio constitucional, subvertendo a hierarquia do ordena­ mento jurídico. Duas interpretações, conforme já deixamos bastantemente de­ monstrado, correm paralelas e antagônicas diante do mencionado art. 14 da Constituição: uma de natureza fonnal, outra de natureza material. A primeira serve ao status quo, é ideológica, move-se na direção conservadora, retarda o avanço da Constituição e tende a premir a fi­ delidade às suas linhas mestras, ao seu espírito, à sua evolução. Já a segunda, que professamos com profunda e inabalável convic­ ção, vane da esfera constitucional a distorção programática, devolve ao povo a soberania explicitada no ato constituinte, e cristaliza, no dis­ curso normativo da Lei Maior, o princípio da legitimidade. Dessa Her­ menêutica emerge a soberania que ontem, após a promulgação da Car­ ta, ficou, de um lado, pendente da reserva de lei e, doutro, tolhida pelo verbo programático, a saber, por duas razões, que já não devem preva­ lecer, enquanto critérios interpretativos. A primeira razão decorre da omissão demasiadamente prolongada no preenchimento da mencionada reserva; a segunda razão, porque já não há normas programáticas, mas normas principiais, na Constituição. Colide o procedimento omissivo, portanto, com o art. 1“ da Lei Maior, o artigo-chave de toda a Constituição, da qual o art. 14, embora tributário, é também mecanismo não menos essencial, parte diretiva e vital, porquanto contém o dispositivo cuja privação faz a democracia semidireta, como a instituiu o legislador primário, não funcionar - e o não-funcionamento da democracia, assim paralisada por obra de uma dilação, tende a perpetuar, incompleto, e de maneira inaceitável, o es­ quema traçado pelo constituinte de 1988 ao estabelecer este um mode­ lo de organização democrática desmembrado em dois segmentos: o re­ presentativo e o direto, e, ao mesmo passo, ocasiona uma grave fratura da ordem constitucional, cujas repercussões cumulativas afetam, de todo, os fundamentos da legitimidade do sistema. Disso se segue a inconstitucionalidade tantas vezes aqui argüida, sem dúvida a mais repugnante e atroz das inconstitucionalidades mate­

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riais, aquela que despedaça e destrói o princípio da soberania popular, reduzido, por inteiro, a uma versão representativa falseada. Estamos, assim, diante desse triste paradoxo: um pedaço da Constituição se cum­ pre; o outro, não. A compreensão normativa da aplicabilidade imediata do art. 14, isto é, dos meios instrumentais de natureza plebiscitária, flui irretorquível da nova linha hermenêutica, de sua argumentação persuasiva sobre a juridicidade das Constituições em toda a plenitude. Amparados normati vãmente no princípio da soberania popular e nos cânones da Nova Hermenêutica, os intérpretes constitucionais já não se podem furtar ao imperativo de fulminar de inconstitucionalida­ de o descumprimento da intermediação legislativa prevista na reserva legal daquele artigo. Descumprimento que se arrasta por cerca de dez anos, paralisan­ do, como se disse, a concretização da face direta da democracia. Rompe-se, assim, no tempo, com esse desvio, de maneira insupor­ tável e materialmente inconstitucional, a confiança do povo na juridi­ cidade da Constituição, ao mesmo passo que se solapam as bases po­ pulares de legitimação do ordenamento. Já não cabem tais bases nos quadros de um regime congressualrepresentativo, qual tem sido o nosso desde a proclamação da Repúbli­ ca; regime manifestamente esclerosado, em extremo paroxismo, viven­ do uma época de agonia e descrédito, e do qual o povo, sem o correti­ vo plebiscitário do art. 14, se arreda, com grave risco institucional. Tudo isso faz estremecer os alicerces democráticos do Estado constitucional, porquanto em jogo se acha, na interpretação daquele ar­ tigo, o princípio mesmo da soberania popular. Com efeito, elevado ao supremo grau de normatividade, este prin­ cípio constitucional delegou no povo, com a iniciativa, o plebiscito e o referendo, técnicas plebiscitárias de soberania, cujo emprego não pode ser procrastinado ilimitadamente, debaixo da escusa inadmissível de uma reserva de lei. Se o for, como está sendo há tempo, consubstancia uma escanda­ losa inconstitucionalidade material. Na visão interpretativa ora proporcionada, tolher e invalidar aque­ le princípio eqüivale a mutilar a democracia em sua expressão mais lógica e ao mesmo passo mais veraz e legítima: a democracia desatada da intermediação representativa, qual Rousseau a preconizava, por en­

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tender que assim guardava ela inteira e máxima fidelidade à natureza do contrato social e à intangibilidade de suas bases. Significativamente, a parte direta da democracia, que o constituin­ te de 1988 introduziu, sob reserva de lei, em nosso ordenamento, a inér­ cia do legislador congressual até hoje lhe embaraçou a concretização, por obra de um comportamento omisso, transgressor do mais alto prin­ cípio da Constituição. 13. Como se sabe, a lesão a um princípio é, juridicamente, no constitucionalismo contemporâneo, a ofensa das ofensas. E, se o prin­ cípio violado for aquele constante dos arts. I2 e 14 da Constituição, continuar a postergá-lo é o mesmo que decretar a queda da Lei Maior ou desferir um golpe de Estado silencioso e ob-reptício, como se vem fazendo, de último, nos fundamentos da democracia. Vulnerado ficaria, também, o interesse federativo ali envolvido, com a invasão da esfera mais peculiar e legítima franqueada à inter­ venção popular: a esfera municipal. A autonomia do Município nesse tocante acabaria anexada ao ar­ bítrio legislativo do Poder Central, senhor absoluto da reserva de lei. Não foi isto o que quis o constituinte de primeiro grau. Mas é isto o que querem, e estão alcançando, os parciais do unitarismo e do centralismo, inimigos jurados da Federação e da democracia. Se a muralha do art. 14 não for derrubada por inconstitucionalida­ de material, a bem da purificação democrática do regime, o País cons­ titucional se dissolverá irremediavelmente na ilegalidade, e na incons­ titucionalidade e na ilegitimidade de medidas provisórias. Oriundas de fontes clandestinas e de interesses que nada dizem com o povo, elas desfiguram, como já o fizeram, a única face ativa da soberania, aquela contida na unidimensionalidade do governo representativo, e que se oxidou pela não-participação direta do elemento popular. Aquelas medidas provisórias, desvirtuadas na prática do regime, já não trazem o selo constitucional de sua legitimidade, senão que es­ tampam a fisionomia cruel do arbítrio, solenizando, com as aparências da colaboração parlamentar, a ditadura constitucional dissimulada. En­ fim, a titularidade soberana do povo, no que tange à democracia direta, jaz, por conseguinte, inanimada e sem vida no túmulo de uma reserva legal. 14. Que é, em suma, a inconstitucionalidade material, de que já se fez tanto cabedal neste ensaio? Espécie infratora da Constituição aber­ ta ou ficção jurídica de uma teoria material da Lei Suprema?

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A primeira formulação acerca de inconstitucionalidade material, qual a concebemos, consta de um capítulo introduzido na 7a edição de nosso Curso de Direito Constitucional (de 1997). Versa esse capítulo a atraente matéria da interpretação dos direitos fundamentais. A zona normativa desses direitos é a mais sensível às violações de princípios como os da liberdade, igualdade, justiça e dignidade da pes­ soa humana. Por isso mesmo se tornou a mais apropriada a uma refle\ xão jusfilosófica que, amanhã, partindo da realidade e da concretude : constitucional, possa escorar, em bases especulativas mais sólidas, um [ conceito de inconstitucionalidade material, que, coadjuvado pela Socio­ logia e pela Ciência Política, se busca, ainda, cpm natural fluidez, in­ troduzir no Direito Constitucional, a fim de encurtar a distância que vai do direito à realidade, do Estado à sociedade, do govemo à cidadania. Seguem-se os delineamentos essenciais bem como os pressupos­ tos da inconstitucionalidade material, pelo prisma em que a tomamos. Se não, vejamos: “Assim como há a Vorverstaendnis singular, a saber, a pré-compreensão individual dos que aplicam a lei e o direito, da mesma forma há também, concorrendo para a plena eficácia da Constituição, uma Vorverstaendnis da Sociedade, ou seja, uma ‘pré-compreensão’ social pertinente à Carta Magna. “Nessa ante-sala de todo regime constitucional residem elementos fáticos e pré-estruturais que assumem, ulteriormente, importância ex­ cepcional para fazer o Direito fluir com eficácia do patamar dos princí­ pios para a região concreta da aplicabilidade normativa, propriamente dita (concretização). “E, a partir daí, no âmbito, já, de uma teoria da Constituição aber­ ta, que é a mesma teoria da Constituição não-formal, se faz possível desenvolver um conceito de inconstitucionalidade material e, ao mes­ mo passo, indigitar as inconstitucionalidades sociais, políticas e gover­ namentais alojadas na órbita do poder, nos quadros da organização eco­ nômica e no domínio dos órgãos executivos e legislativos. Posto que tomem a decisão ou formulem a lei em harmonia com as bases formais das prescrições constitucionais, tais órgãos violentam, não raro, valo­ res, princípios, elementos e bens jurídicos que ornam, na essência, a dignidade do homem.” Depois de asseverarmos que a inconstitucionalidade material é o satélite da ilegitimidade e que os direitos fundamentais são a bússola das Constituições, não titubeamos em acrescentar que a pior das in­ constitucionalidades não deriva da inconstitucionalidade formal, mas

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da inconstitucionalidade material, “deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, onde as estruturas constitucio­ nais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos refle­ xos que os fatores econômicos, políticos e financeiros sobre elas proje­ tam. O Estado padece com relação ao controle desses fatores um défi­ cit de soberania, tanto interna como externa, perdendo, assim, em ele­ vado grau, a sua capacidade regulativa. Isto, que já ocorria desde mui­ to com patente força, aumentou de intensidade a partir da globalização e do neoliberalismo. Tanto na doutrina como na práxis política, as for­ mas liberais e globais não só desarmam, senão que enfraquecem o Es­ tado, obrigando-o a evacuar o espaço de fomento e proteção de direi­ tos fundamentais, sobretudo os de natureza social, que são os de se­ gunda geração. Nestes, o grau de justiciabilidade e positividade tende a baixar em quase todos os ordenamentos contemporâneos. Tudo por obra dos sobreditos fenômenos - globalização e neoliberalismo de­ rivados do capitalismo em sua fase mais recente de expansão. Fase, sem dúvida, sombria para o futuro dos direitos fundamentais, mormen­ te tocante ao capítulo de sua interpretação nos países da periferia desse sistema”. E rematamos o perfil da inconstitucionalidade material com estas expressões: “Cabe, por conseguinte, reiterar: quem governa com grandes omis­ sões constitucionais de natureza material menospreza os direitos fun­ damentais e os interpreta a favor dos fortes contra os fracos. Governa, assim, fora da legítima ordem econômica, social e cultural e se arreda da tridimensionalidade emancipativa contida nos direitos fundamentais da segunda, terceira e quarta gerações. “Em razão disso, é de admitir que a Constituição formal perca, ali, a sua legitimidade com o solo das instituições revolvido pelos abalos violentos e freqüentes da crise constituinte. Não há direitos fundamentais sem a constitucionalidade da ordem material cujo norte leva ao princípio da igualdade, pedestal de todos os valores sociais da justiça.” Democracia é igualdade e, em razão disso, princípio social de jus­ tiça, que transcende, ao mesmo passo, a natureza meramente política de sua gestação na ciência de Aristóteles. É na idade contemporânea a alma das Constituições. Forma de govemo e regime político também. Mas, acima de tudo, direito fundamental da cidadania, direito da quar­ ta geração, que sobe ao cume da hierarquia normativa e pela sua natu­ reza e substância assume a identidade de um princípio. Quem transgri-

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de esse direito perpetra uma inconstitucionalidade material, ficando, assim, incurso nas sanções do ordenamento. 15. O discurso hermenêutico que flagrou, na inobservância do art. 14 da Constituição, uma enorme lesão de inconstitucionalidade material superveniente pode ser resumido em termos estritamente jurídicos da maneira que se segue. Com efeito, não é a reserva legal do art. 14 que é inconstitucional - o que seria obviamente absurdo -, mas o procedimento omissivo do legislador federal em preenchê-la, a carência de sua intermediação, de­ corrida já quase uma década de inércia. A abstenção tomou-se inconstitucional em virtude de colidir com o princípio maior da Constituição, que é, pelo ângulo político, o prin­ cipio da soberania popular, insculpido no art. 14, cuja concretização, em toda a sua plenitude, nenhuma outra cláusula ou norma do Estatuto Fundamental pode obstar. Não se admite fique, assim, a aplicabilidade do princípio indefini­ damente á mercê de uma estipulação de lege ferenda, que lhe tolhe a eficácia. A inconstitucionalidade se configura por descumprimento do mandato constitucional concreto, estatuído no sobredito art. 14 em for­ ma de reserva legal. O decurso de tempo fez, portanto, inconstitucional a omissão le­ gislativa. O espaço temporal para a elaboração da norma disciplinadora dos mecanismos da democracia direta pelo órgão legislativo federal, tocante ao plebiscito e referendo, transcorridos já cerca de dez anos, excedeu de muito a fração de tempo que se poderia, razoavelmente, assinar ao exercício da mediação legislativa. A discricionariedade do legislador não é absoluta com respeito às exigências temporais de sua intervenção disciplinante e mediadora. A inércia parlamentar não pode, de conseguinte, suprimir, suspender, fa­ zer ineficaz ou procrastinar até limites insuportáveis, como vem acon­ tecendo, a aplicação do mais excelso princípio da Constituição. Não pode, nem deve, pois essa intermissão normativa cria um estado de in­ constitucionalidade latente, consoante já se percebe e infere da situa­ ção jurídica vigente ao redor do art. 14 da Lei Maior, onde impera o descumprimento daquele dever constitucional de legislar. A reserva de lei do sobredito artigo chegou, portanto, de último, a uma completa exaustão de sentido, que lhe subtrai, na correta visão do intérprete, toda a eficácia; admiti-la ou conservá-la seria, a esta altura,

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sancionar, também, a prevalência de uma contradição, que a faz colidir com o art. Ia da Carta Fundamental, gerando assim um conflito entre a regra e o princípio. Ao mesmo passo, a ofensa a este quebranta e viola o postulado essencial da unidade e harmonia da Constituição. Disso procederia este contra-senso jurídico: a regra valendo mais que o prin­ cípio, ou seja, algo profundamente subversivo das bases do ordenamen­ to supremo e, por conseqüência, da integridade do sistema jurídicoconstitucional. As Assembléias Estaduais e as Câmaras Municipais não invadem, por conseguinte, a discricionariedade do legislador federal se assumi­ rem, de imediato, a tarefa integrativa nos termos implícitos da Consti­ tuição. Aquela discricionariedade, conforme estamos a demonstrar, tem limites na materialidade constitucional do art. 14, bem como no fator tempo, ao qual a ordem normativa das Constituições confere, excepcio­ nalmente no caso em tela, força prescritiva bastante para afastar os efei­ tos materialmente inconstitucionais de uma reserva legal que sufoca a vigência e eficácia de um princípio. Os limites temporais, ao alvedrio do legislador secundário, titular daquela reserva de lei, se deduzem como sendo impostos com mais ra­ zão, por tratar-se de mandato concreto do constituinte e não de manda­ to abstrato, qual soem ser, de ordinário, os mandatos promissórios va­ zados em formulações constitucionais programáticas. Se há, todavia, projeto de lei tramitando no Congresso Nacional para regular a matéria plebiscitária, isto em nada afeta a inconstitucio­ nalidade omissiva já figurada, porquanto quem nos daria a certeza de sua aprovação ou de que não ficarão sujeitos ao arquivamento ou a procrastinações imprevistas? Quanto mais corre o tempo, mais afrontoso e ostensivo se mostra o vício da inconstitucionalidade por omissão, e mais se legitima, em favor da democracia constitucional, a necessidade imperativa de uma intervenção pronta, eficaz, direta e irresistível das Assembléias Esta­ duais, e das Câmaras Municipais legislando os textos da participação popular imediata nos quadros e raias de competência que sua autono­ mia lhes reservou. Numa alusão à doutrina e jurisprudência que se formaram na Ale­ manha desde a sentença do Tribunal Constitucional da Federação, de 19 de dezembro de 1951, bem como do Aresto de 29 de janeiro de 1969, da mesma Corte, Francisco Femández Segado, jurista espanhol, resumiu deste teor o raciocínio da mais alta magistratura alemã - o qual

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tem aplicação, com grau de universalidade teórica, ao problema das omissões inconstitucionais, qual o enfrentamos em face do art. 14 da nossa Carta Magna: “Se o Poder Legislativo omite as normas de ade­ quação da legislação geral à cláusula constitucional, e se a mesma ca­ rece de termo peremptório que reja a tarefa legislativa, e o Poder Legis­ lativo demore mais tempo que o razoavelmente necessário à redação da lei respectiva, essa demora poderá ser considerada inconstitucional”.3 E assinala o constitucionalista de Santiago de Compostela que, em termos análogos, se manifesta Rolando E. Pina, em trabalho intitulado Cláusulas constitucionales operativas y programáticas,4 No mesmo sentido também constitucionalistas da excelência e porte de Jorge Miranda e Gomes Canotilho, cuja lição acompanha as reflexões do eminente Professor da Galícia. Juridicamente, a competência dos Estados e Municípios para fa­ zer a legislação plebiscitaria não é criada pelo executor da reserva de lei ao legislar; ela já existe, formulada pelo constituinte originário, aguardando, tão-somente, a fixação legal dos limites concretos de sua abrangência, observados a esse respeito os cânones constitucionais. Acha-se, para assim dizer, adormecida, à sombra do art. 14, preci­ sando unicamente de ser despertada, a fim de atuar nos termos traça­ dos pelo legislador subsidiário dentro do raio de autonomia que a Cons­ tituição outorga e reconhece àqueles entes federativos. Configurada, pois, a inconstitucionalidade material por omissão legislativa, no caso do art. 14, o mandamento supremo do art. Ia será evocado, então, pelo jurista para fazer cessar anomalia de inconstitucio­ nalidade averiguada. A chaga política no corpo da Constituição, exatamente naquele ar­ tigo, é sarada pelos próprios órgãos autônomos da comunhão federati­ va, Estados e Municípios, que, passando a legislar sobre a matéria de sua competência ali estampada - iniciativa, plebiscito e referendo -, estão apenas a retomar ou exercitar, em toda a extensão, a sua qualida­ de de membros autônomos da Federação, obstaculizada e ofendida, e golpeada de maneira absolutamente inconstitucional, pela ociosidade 3. Francisco Femández Segado, “La inconstitucionalidad por omisión: cauce de tutela de los derechos de naturaleza socioeconômica”, Estúdios Jurídicos en Homenaje al Profesor Aurélio Menendez, p. 4.288, Separata, Editorial Civitas, s/d. 4. Roland E. Pina, Ley Fundamental de La República Federal de Alemania, apud F. Segado, ob. cit., p. 4.292.

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retardatária de quem faltou ao cumprimento de um dever constitucio­ nal da magnitude daquele gravado na reserva de lei do art. 14. Manifestada a contradição, deflagrado o conflito do dispositivo “nos termos da lei” com a norma principiai, que taxativamente insti­ tuiu o ramo direto da soberania popular no art. 1“ da Constituição, é este que prevalece, e não aquele. Podem, por conseguinte, Estados e Municípios, desembaraçadamente, sem eiva de inconstitucionalidade, com todas as garantias judiciais, se para tanto necessidade houver, fi­ car investidos incontinente na competência legislativa de regulamentar a matéria plebiscitária do art. 14. Outro não há de ser, assim, o entendimento jurídico da questão, em face da inconstitucionalidade gravíssima, condensada na rigidez de uma omissão que burla a Lei Maior, algema o pulso do soberano popu­ lar e desapossa este gigante dos instrumentos constitucionais diretos de exercício imediato de sua vontade suprema. Tais instrumentos lhe foram entregues pelo constituinte da Carta de 1988, ao fazer o braço direto do povo tão essencial à democracia brasileira quanto o seu braço representativo. Este é o único que, hoje, governa na linha do poder, cuja legitimidade se rarefez por falta de par­ ticipação popular mais enérgica e efetiva, unicamente possível se a re­ gra do art. 14 ceder ao princípio do art. ls. Com esse entendimento hermenêutico a democracia sairá mais protegida, o regime mais forte, a Constituição mais respeitada. 16. Todavia, cabe-nos fazer ainda uma derradeira ponderação de ordem jurídica. Com efeito, a retórica intepretativa, inspirada no formalismo tra­ dicional e adversa à tese aqui exposta, poderá trazer à colação, além da reserva legal do art. 14 (“nos termos da lei”), o disposto no inciso XV do art. 49 da Constituição, que outorga ao Congresso Nacional a com­ petência exclusiva para autorizar referendo e convocar plebiscito. Mas a inteligência desse artigo, longe de constituir obstáculo à ca­ pacidade reguladora das Assembléias Estaduais e Câmaras Municipais em matéria plebiscitária, isto é, em questões de intervenção popular di­ reta, reforça-lhes primeiro a competência com a exclusão tanto dos Executivos estaduais como municipais tocante àquelas faculdades fun­ damentais de autorização e convocação. Essas se fazem, assim, priva­ tivas do órgão que mais de perto, nos sistemas representativos, legiti­ ma o exercício da vontade governante, a saber, o Legislativo, o qual, sobre dar leis, movimenta também, por obra daquele mandamento

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constitucional, a máquina do poder popular respeitante ao exercício da democracia direta na esfera autônoma dos Estados e Municípios. Não se sustém nem cabe, por conseguinte, o argumento cerebrino, estribado na literalidade da norma, segundo o qual o inciso XV do art. 49 é uma avocatória ao legislador federal de toda a autorização de referendo ou convocação de plebiscito porventura exercitados nas es­ feras autônomas de Estados e Municípios. Tal entendimento afetaria o ordenamento, destruindo a base de dois princípios de organização do regime constitucional: o princípio da soberania popular, consagra­ do pelo parágrafo único do art. I2 da Carta Magna, e o princípio re­ publicano federativo, estatuído no caput do mesmo artigo. Tamanha violência, com ser absurda, jamais esteve no ânimo do constituinte originário. Se o freio legislativo federal do art. 49, inciso XV, paralisando tan­ to a iniciativa popular como a iniciativa do Executivo concernente ao referendo e ao plebiscito em âmbito federal, se estendesse também aos Estados e Municípios, que restaria da autonomia destes para fazer efi­ caz a determinação principiai da democracia direta exarada no art. le da Constituição? Desvario hermenêutico de tão grosso calibre e tão largas propor­ ções estreitaria excessivamente a instância política de dois corpos da República Federativa - o Município e o Estado-membro - privilegian­ do assim, com a mutilação da autonomia federativa, o Poder Central e, neste, acima de tudo, aquele que já é um dos ramos mais ativos e im­ portantes da soberania: o Congresso Nacional. A estólida interpretação redundaria, demais disso, em retrocesso institucional no campo federativo, bem como em contradição normati­ va a tudo quanto a soberania popular fora avante, por obra dos arts. 1e 14 da Constituição, cujo objetivo é, sem dúvida, implantar em nosso sistema constitucional uma nova dimensão de legitimidade: aquela em que o povo assume a regência direta do poder num determinado espa­ ço de soberania. Não houve, por conseqüência, intenção do constituinte de primei­ ro grau, ao escrever o art. 49, inciso XV, da Lei Maior, de perpetrar tão áspera incongruência, ou seja, elevar o povo nos arts. I2 e 14 ao status participativo da democracia direta e, logo mais, jungi-lo ao garrote res­ tritivo no sobredito art. 49, suprimindo e deitando por terra, em níveis de Estados e Municípios, o nobre princípio proclamado e colocado solenemente no pórtico jurídico da Constituição.

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Triunfaria desse modo, em razão de tão esdrúxula interpretação, um centralismo legislativo concentrado no Congresso Nacional que, além de sufocar, anularia basicamente a capacidade decisória das As­ sembléias Estaduais e das Câmaras Municipais acerca de autorização de referendo e convocação de plebiscito, em matéria de seu estrito e peculiar e legítimo interesse, comprometendo desse modo a base, a substância e a essência mesma de sua autonomia. Haveria assim, indagamos nós, golpe mais fatal ao gênero de de­ mocracia que o constituinte quis instituir e no sistema de Federação que ora se intenta preservar? Obviamente que não. Logo, é de meridiana evidência que o inciso XV do art. 49 da Constituição somente pode ter este alcance e finalida­ de: o de instrumento jurídico e constitucional de proteção ao princípio da separação de poderes. Concentra ele democraticamente - esse o espírito maior do dispo­ sitivo em seu sentido de legitimidade - no Legislativo federal, para as­ suntos ou negócios de interesse do País, que transcorrem em sua órbita - a órbita da União - a competência exclusiva de autorizar o referendo e convocar o plebiscito. Em suma, como decorrência dessa reflexão hermenêutica, funda­ da, ao nosso ver, na mens legislatoris do constituinte de 1987-1988, a conclusão a ser tirada é que o dispositivo protege também o poder de legislar de Estados e Municípios, onde igual regra se aplica em favor de seus órgãos legislativos, os únicos capacitados, por extensão her­ menêutica analógica, a se investirem no exercício daquela competên­ cia exclusiva. 17. Descobrir, enfim, o conceito de inconstitucionalidade material na sua presente acepção só nos foi possível em virtude das reflexões que a crise do Estado social suscitou no ânimo dos seus publicistas, durante a recém-inaugurada idade do desmantelamento daquelas insti­ tuições por onde dantes passara o sopro da igualdade democrática e circulara a lufada de ar do socialismo das décadas transcorridas entre a I e a II Guerra Mundial, e que prosseguiu por vasto espaço de tempo, durante a segunda metade deste século. Quando se supunha morto o liberalismo - e muitos já se aprestavam a enterrar-lhe o cadáver! - , eis que, súbito, ao termo da chamada “guerra fria”, reaparece ele galvanizado na feia catadura da globali­ zação.

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Ei-lo aí, pois, açoitando o princípio social, desfazendo a união do trabalho com o capital, revogando as franquias legislativas de proteção ao trabalhador, minando a paz sindical, imprimindo à política da pre­ vidência a nota reacionária de dissolução desse instituto, fazendo a so­ ciedade, o povo, a nação temerem pelo seu futuro, a soberania correr risco, a força armada arrostar a ameaça de desertar a sua missão histó­ rica e o seu compromisso com a soberania nacional para se transfor­ mar em guarda colonial de capitães do mato, como já lhe foi progra­ mado pelos agentes internacionais de um capitalismo atroz, o mesmo que, privatizando, desnacionaliza, e, internacionalizando, escraviza; capitalismo cuja cobiça se estende à Amazônia, intentando reduzir os povos periféricos, no crepúsculo deste milênio, a uma cafraria de colo­ nos e escravos, sem nome, sem história, sem bandeira, sem futuro, sem liberdade. Eis aí, portanto, o estado de espírito e a consciência de luta que nos inspirou esse conceito de resistência - a inconstitucionalidade ma­ terial - para ajudar os jurisconsultos da liberdade, com apoio na mate­ rialidade principiai da nossa Carta Magna, a garantir a sobrevivência da Constituição. Interpretando o art. 14 segundo os enunciados hermenêuticos des­ te trabalho, o juiz constitucional estará concretizando o equivalente a um populus restitutus, em que a vontade do povo é restaurada com in­ teira fidelidade à mens legis e à mens legislatoris do constituinte de 1988. O golpe contra a utilização das técnicas plebiscitárias introduzi­ das naquele artigo foi desfechado pela Hermenêutica dos constitucio­ nalistas mais reacionários da estirpe conservadora, sob pretexto de manter a juridicidade formal do art. 14, quando, em verdade, é a Cons­ tituição mesma - a lei suprema do ordenamento - que ali se quebranta e conculca na essência principiai de sua legitimidade. Comportam-se eles neste fim de milênio como os anticonstitucionais da segunda metade do século passado se comportavam diante da Revolução Francesa, criando um sarcófago de idéias que vão desde a reminiscência saudosa da Santa Aliança à restauração dos Estados Ge­ rais; um parlamento de castas, onde o privilégio alteava a sua voz e a nação, exânime, se dobrava passivamente aos desígnios absolutistas de seus monarcas de direito divino, os quais teriam, hoje, inveja da prole republicana de ditadores constitucionais, que só sabem governar com decretos-leis, medidas provisórias e, caso entendam necessário, com atos institucionais.

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Desenha-se, portanto, em nossa ordem jurídica, uma aguda e gros­ seira crise de constitucionalidade material, um estado de sítio das insti­ tuições, um autoritarismo tanto político como econômico, que usurpa poderes, provocado, em grande parte, pela omissão de quantos, silen­ ciando a voz de comando do art. 14, se obstinam em impedir que se levante uma das colunas da democracia constitucional - sem dúvida, a mais importante de todas -, que é o povo investido diretamente no exer­ cício da soberania através da iniciativa, do plebiscito e do referendo; o povo, por igual, fazendo as suas leis, tomando as suas decisões; o povo nas urnas da participação - a participação direta, indubitavelmente, a mais legítima de todas; o povo, enfim, senhor do seu próprio destino, sem intérpretes, sem representantes, sem intermediários, colocado na­ quela faixa onde a Constituição lhe concedeu um espaço de soberania que ele nunca pôde ocupar por descumprimento dos preceitos vazados nos arts. Ia e 14 do Texto Supremo. São artigos onde bate o coração da democracia e pulsa a liberdade do cidadão. Apelamos, assim, para o descortino, a sensibilidade constitucio­ nal dos membros do Poder Judiciário, para as luzes de seu saber jurídi­ co, para o compromisso que, de ofício, contraíram em defesa da Cons­ tituição, a fim de que lhe guardem a pureza e façam-na eficaz, inviolá­ vel, suprema, tanto nos artigos da lei como nos atos da pública admi­ nistração. Cumpre, de conseguinte, arredar-se da caducidade de uma Her­ menêutica que, aplicada ao texto da Lei Maior, contrafaz-lhe o espírito, altera-lhe o significado, contraria-lhe a índole, obscurece-lhe a inteli­ gência amparada em princípios. Sobre estes a democracia constitucio­ nal assenta a solidez de suas bases e a inquebrantabilidade jurídica de seus postulados. 18. Para fazer rosto à crise constituinte que ameaça recrudescer no País, conclamamos as Câmaras Municipais e as Assembléias Esta­ duais a sacudirem o jugo da reserva de lei do art. 14, cuja dilação é inconstitucional e lhes amesquinha a autonomia naquilo que de mais augusto e sagrado há no feixe de suas respectivas competências e res­ ponsabilidades: o poder de legislar, um poder que, respeitante à regu­ lamentação plebiscitária, lhes está sendo subtraído por procedimento omissivo de caráter manifestamente inconstitucional. A Câmara Municipal de Fortaleza não admitiu que a Constituição caísse prisioneira do Poder Central, debaixo de uma reserva de lei que

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legisladores ociosos utilizam com procrastinar, por tempo indetermi­ nado, a presença direta do povo no exercício das faculdades de go­ verno. Um passo histórico, similar àquele dos cearenses libertadores de escravos ou a outro do Senado da Câmara de Quixeramobim, a antiga Campo Maior, que, numa noite de comoção patriótica, em defesa da Constituinte dissolvida, proclamou a Confederação do Equador e ba­ niu do País a família imperial de Bragança; esta Câmara, devo afirmar, prosseguindo, se antecipou, e, dando uma lição no cumprimento do de­ ver constitucional, elaborou memoravelmente a lei de utilização do ple­ biscito e do referendo. Exemplo admirável, que gostaríamos de ver logo seguido por to­ das as Câmaras e Assembléias do País, num atestado de afirmação do poder do povo e de vitalidade federativa, assim como de zelo e confian­ ça nas virtualidades legitimantes da cidadania democrática e soberana. 19. Os juizes da magistratura constitucional que se deixam embal­ samar na hermenêutica jusprivatista de Savigny, e, por isso mesmo, infensos à teoria material da Constituição e aos métodos interpretativos da Nova Hermenêutica, deviam primeiro refletir nessas verdades que o poeta das musas românticas, Antônio Castilho, assim retratou: “O sol não retrocede no dia, os anos não retrogradam nas eras, a árvore não reverte à semente, nem o rio à fonte, nem o homem à infância, nem a civilização à barbárie. Quem não for com a corrente das coisas, mara­ vilhosa corrente que sobe sempre para as alturas desconhecidas, se há de afogar”, rematou o vate (A. F. de Castilho, Método de Instrução Pri­ mária). Governar e civilizar só é possível com a Constituição. Sem Cons­ tituição e sem Estado Social o Brasil é a ingovernabilidade, a medida provisória, a ditadura presidencial. Vamos salvá-lo antes que ele se afogue na contracorrente do neoliberalismo, cujo projeto reacionário e desnacionalizador globaliza a economia sem limites e sem as salvaguardas do bom senso, ao mesmo passo que assassina a soberania nacional, abate o Estado de Direito e faz do povo livre povo escravo. Um País onde há 60.000 brasileiros vítimas do trabalho escravo, onde as autonomias estaduais se prostram de joelhos diante do Poder Central, onde o Presidente da República, governando com Medidas Provisórias, é o ditador da Constituição, este País desde muito deixou de ser uma República, uma Federação e um Estado de Direito. Cami­

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nha para o passado, e não para o futuro; anula as suas conquistas so­ ciais, renega os direitos da segunda geração, regride na cultura políti­ ca, desconstitucionaliza-se, e cai na barbárie das praxes autocráticas, em ordem a querer transformar o corpo de cidadãos numa coorte de vassalos. É isto o que intentamos conjurar, ou seja, afastar o arbítrio do po­ der pessoal para introduzir no intrínseco das instituições o regime da legitimidade, que só é possível se os governantes se curvarem à majes­ tade da Constituição e da lei. Unicamente assim poder-se-á prevenir neste País a morte cívica das gerações futuras, o holocausto da cidada­ nia, o sacrifício das liberdades públicas.

Capítulo 6 O ESTADO SOCIAL E SUA EVOLUÇÃO RUMO À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 1 I2 entre todas as idades de crise por que já passou o pensamento po­ lítico, nenhuma talvez se compare em extensão e profundidade com a que ora atravessamos, debaixo de visível sentimento de angústia e incerteza.

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Os que viveram à época do liberalismo - os nossos ditosos ante­ passados - podiam romanticamente considerar o problema do Estado com a presunção otimista de haver criado um mundo melhor e mais sólido, baseado na utopia revolucionária dos direitos do homem. O Estado liberal humanizou a idéia estatal, democratizando-a teo­ ricamente, pela primeira vez, na Idade Moderna. Estado de uma classe - a burguesia - , viu-se ele, porém, condenado à morte, desde que co­ meçou o declínio do capitalismo. 1. Extraímos e reproduzimos do nosso livro Do Estado Liberal ao Estado Social os três textos subseqüentes de 1958, 1993 e 1996, a saber, o Prefácio originário, a Introdução à 5a edição e o Prefácio da 6a edição, por afígurar-se-nos que aí se acham traçadas as linhas fundamentais do nosso pensamento acerca do Estado social e que devem servir de subsídio prévio à leitura do capítulo posterior onde nos ocupa­ mos da atualidade do tema com respeito ao Brasil e aos países em desenvolvimen­ to, designadamente em face dos fenômenos políticos da globalização e do neolibe­ ralismo, novas formas opressoras introduzidas pelo capitalismo da recolonização. 2. Prefácio à monografia Do Estado Liberal ao Estado Social, publicada em 1958, e que foi a tese do concurso de cátedra a que se submeteu o Autor na Facul­ dade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

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Ao redor do mesmo, acendeu-se a luta histórica a que assistimos. Aqui, o advento da quarta classe, a ofensiva do Estado socialista contra o Estado burguês, feita com as armas da dialética marxista. Ali, a diligência da teoria democrática por evitar que a transição conduza necessariamente àquele resultado, ou seja, ao Estado da últi­ ma classe - o proletariado - como já acontece em vasta área de países socialistas do Oriente, e, sim, ao Estado de todas as classes, como pre­ tende ser o Estado democrático do Ocidente; ditado pelas mudanças inevitáveis do capitalismo e pelo imperativo de justiça social, que obri­ ga ao abandono das antigas posições doutrinárias do liberalismo. O conflito essencial se trava, pois, a esta altura, entre o Estado socialista e o Estado social das democracias ocidentais. O que temos em vista, aliás, estudar, não é esse embate ideológi­ co, de suma importância para os destinos políticos do gênero humano, mas os aspectos fundamentais e não menos relevantes que acompanha­ ram a ruptura definitiva do Estado liberal e sua substituição pelo Esta­ do social. Com este, deu-se o esgalhamento de rumos. Uns quiseram fazê-lo totalitário: os da direita, em harmonia com o capitalismo, malsucedidos; os da esquerda, mediante abolição do sistema capitalista, ainda em franco combate. Outros, os do lado de cá, desejosos de conservá-lo democrático, amparado na idéia de conciliação da personalidade com a justiça social. Examinaremos, assim, nas páginas que se seguem, o que ficou do antigo Estado liberal, tão incompreendido por quantos, afoitamente e desprovidos de serenidade, se cingem a uma rejeição superficial e li­ minar de todos os seus princípios. O capítulo acerca de Kant se justifica pela imensa repercussão de seu pensamento social e político, nomeadamente na esfera do direito. A filosofia kantista, em matéria política, é o coroamento doutriná­ rio do liberalismo e se enquadra, indiscutivelmente, na fase já adianta­ da desse movimento. Exprime a maturidade por ele alcançada em fins do século XVIII, quando, impetuoso e triunfante, graças à ação revolu­ cionária - seguro já pelas energias arregimentadas para conter a reação medieval da nobreza decadente, e não menos seguro em arrostar a rea­ ção absolutista das realezas ocidentais -, podia adormecer tranqüilo quanto ao socialismo, que ainda lhe não batia às portas, e cujos vagi­ dos remotos vinham de longe, quase imperceptíveis, quebrar-se, por mui­ tos anos, em protestos inocentes nos esquemas pomposos da utopia.

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Sob a mesma inspiração, estudamos aspectos da influência de Rousseau, Hegel e Marx, que formam os elos da grande cadeia social, responsável pelas mais célebres precipitações doutrinárias, que condu­ ziram, na Idade Contemporânea, à superação final daquilo que, corres­ pondendo aos começos da revolução industrial, foi a estrutura primária da ordem capitalista, no seio da qual se gerou o antigo liberalismo da burguesia. Quando se chega ao Estado social, já ficou para trás toda uma con­ cepção de vida, com as tradições de um passado morto e irrecuperável. O Estado social é, sob certo aspecto, decorrência do dirigismo que a tecnologia e o adiantamento das idéias de colaboração humana e so­ cial impuseram ao século. De um lado, os povos que vêem nele o instrumento de sua maiori­ dade política, social e econômica. De outro, a escolha hamletiana entre a planificação livre e a planifícação completa. Mas planifícação livre, planifícação na liberdade? Não haverá aí contradição? Quando responde precisamente a essa indagação, é que o libera­ lismo se enrijece na sua fúria anti-social, nas objeções às medidas hí­ bridas, que impermeabilizam algumas zonas da sociedade à plena rea­ lização da livre iniciativa. Karl Mannheim debateu esse problema vital para a democracia moderna. E esse problema, a nosso ver, se resolve no Estado social. Distinguimos em nosso estudo duas modalidades principais de Es­ tado social: o Estado social do marxismo, onde o dirigismo é imposto e se forma de cima para baixo, com a supressão da infra-estrutura capi­ talista, e a conseqüente apropriação social dos meios de produção doravante pertencentes à coletividade, eliminando-se, desta forma, a contradição, apontada por Engels no Anti-Duehring entre a produção social e a apropriação privada, típica da economia lucrativa do capita­ lismo - e o Estado social das democracias, que admite a mesma idéia de dirigismo, com a diferença apenas de que aqui se trata de um diri­ gismo consentido, de baixo para cima, que conserva intactas as bases do capitalismo. Todas as variações na relação trabalho-capital são superestruturais nessa última forma, pois não alteram substancialmente o sistema capi­ talista. Inspirados na filosofia de Kant, ser-nos-ia lícito, ademais, formu­ lar outro conceito do Estado social contemporâneo. Caberia, nesse

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caso, ao estudioso aprofundar a filosofia formalista de Stammler e, em harmonia com a linha do pensamento neokantiano, construir uma Begriff do Estado social, que abrangesse variações empíricas, históricas, culturais e políticas dos mais distintos matizes. O dirigismo, conceito político formal, não comporia acaso, sob esse ponto de vista, a essência do Estado social? Por esse caminho, acabaríamos na mesma conclusão que Stammler com o direito natural: um Estado social cfe conteúdo variável. A saída pelo fonnalismo concilia, pois, a discrepância estrutural que toma irredutível o Estado social das democracias ocidentais com o Estado social dos países populares de inspiração ou organização bolchevista. Mas não é a interpretação formalista o que buscamos. Daí por que, ao inscrevennos, no pórtico deste trabalho, uma das máximas do reno­ vador da Teoria Geral do Estado - Georg Jellinek - o fizemos na certe­ za de que ela exprime e consagra substancialmente a verdade mais sim­ ples e elementar da ciência política: o dissídio milenar entre o indivi­ dual e o social, que chega aos nossos dias com toda a intensidade trági­ ca de uma luta indecisa. Pouco importa que sociólogos da estirpe de um Alfred Weber, que conta, aliás, com muitos adeptos, queiram dissimular a agudeza desse choque ou encobrir a face dessa realidade brutal, mediante a escusa de que o centro de gravidade se deslocou irremissivelmente do indivíduo para os grupos sociais intermediários - desde o sindicato à escola, cada vez mais influentes - ou então para o Estado, com o qual referidos gru­ pos se defrontam numa pugna desesperadora de afirmação e controle. Não negamos a importância dessas formações sociais interpostas. Negamos-lhes, porém, autonomia, no sentido de haverem elas removi­ do o duelo essencial que o binômio indivíduo-coletividade representa. São apenas peças dentro desse antagonismo, e tanto o são que o Estado social - o mais familiarizado com a presença de tais núcleos ora os vê a serviço do Estado, que é o caso freqüente na amarga reali­ dade contemporânea, ora inclinados para a idéia individual da perso­ nalidade. Essa idéia é aquela que o Estado social e democrático do Ocidente forceja por salvar. E para salvá-la incompatibilizou-se necessária e defi­ nitivamente com o antigo individualismo do laissez faire, laissez passer. O Estado social do modemo constitucionalismo europeu e ameri­ cano emprega assim, nos países de sua órbita, como último recurso,

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técnica de compromisso, que, embora consagre modificações secundá­ rias e progressistas, deixa, contudo, conforme vimos, intacta, em gran­ de parte, a infra-estrutura econômica, isto é, o sistema capitalista. Instrumento, por conseguinte, da sobrevivência burguesa, postu­ lando justiça para todas as classes, com cujos interesses intenta conciliar-se, o Estado social, a despeito da impiedosa crítica marxista e do colapso do Estado liberal, constitui a palavra de esperança com que acenam estadistas e teóricos do Ocidente, na ocasião em que os ele­ mentos da tempestade social, de há muito acumulados no horizonte político das massas proletarizadas, ameaçam desabar sobre a ordem so­ cial vigente, impondo-lhe o dilema de renovar-se ou destruir-se. Nele vemos a única saída honrosa e humana que ainda resta para a crise política e social dos povos que habitam a grande bacia atlântica. No estudo oportuníssimo de lenta evolução, como a que vai do Estado liberal ao Estado social, se desenha, ademais, com assombrosa nitidez - urge repeti-lo - o embate da democracia moderna pela supe­ ração da antítese clássica indivíduo-sociedade. Todas essas razões nos convencem, pois, de havermos versado, neste ensaio político, um tema de nossos dias. II3 1. Do século XVIII ao século XX, o mundo atravessou duas gran­ des revoluções - a da liberdade e a da igualdade - seguidas de mais duas, que se desenrolam debaixo de nossas vistas e que estalaram du­ rante as últimas décadas. Uma é a revolução da fraternidade, tendo por objeto o Homem concreto, a ambiência planetária, o sistema ecológi­ co, a pátria-universo. A outra é a revolução do Estado social em sua fase mais recente de concretização constitucional, tanto da liberdade como da igualdade. Se as duas primeiras tiveram como palco o chamado Primeiro Mundo, a terceira e a quarta têm por cenário mais vasto para definir a importância e a profundidade de seus efeitos libertários aquelas faixas continentais onde demoram os povos subdesenvolvidos. Aí, o atraso, a fome, a doença, o desemprego, a indigência, o anal­ fabetismo, o medo, a insegurança e o sofrimento acometem milhões de 3. Introdução à 5a edição da obra Do Estado Liberal ao Estado Social, Belo Horizonte, 1993.

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pessoas, vítimas da violência social e das opressões do neocolonialismo capitalista, bem como da corrupção dos poderes públicos. Impe­ tram essas massas e esses povos uma solução dirigida tanto à sobrevi­ vência como à qualidade da vida digna. Cada revolução daquelas intentou ou intenta tomar efetiva uma forma de Estado. Primeiro, o Estado liberal; a seguir, o Estado socia­ lista; depois o Estado social das Constituições programáticas, assim batizadas ou caracterizadas pelo teor abstrato e bem-intencionado de suas declarações de direitos; e, de último, o Estado social dos direitos fundamentais, este, sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da concreção dos preceitos e regras que garantem estes direitos. Tiveram grande parte em tais mudanças as ideologias. Aliás, en­ quanto não positivam seus valores, as ideologias guardam, na essên­ cia, uma dimensão encoberta de jusnaturalismo. Em verdade, o direito natural atuou sempre como poderosa energia revolucionária e máquina de transformações sociais. Graças à força messiânica de seus princípios, tem ele invariavelmente ocupado a consciência do Homem em todas as épocas de crise, para condenar ou sancionar a queda dos valores e a substituição dos próprios fundamentos da Sociedade. As grandes mutações operadas na segunda metade deste século têm ainda muito que ver com as idéias e crenças sopradas durante o século XVIII por uma filosofia cujo momento culminante, em termos de efetividade, foi a Revolução Francesa. De natureza universal e in­ destrutível nos seus efeitos, porquanto entendem estes com a natureza mesma do ser humano, aquela comoção revolucionária produz até hoje correntes de pensamento que transformam ou tendem a transformar a Sociedade modema. Houve, assim, pela vez primeira na história dos povos, a universa­ lização do princípio político. Não foram unicamente quebrantadas as instituições feudais e as hierarquias que sacralizavam a tradição e o passado, senão que se construiu, ou se intentou construir, sobre esferas ideais, para um aporfiar de libertação, menos a polis deste ou daquele povo, mas a de todo o gênero humano; polis cujos alicerces, posto que ainda abstratos, não foram outros senão a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Escreveram os ingleses a Magna Carta, o Bill o f Rights, o Instrument o f Government; os americanos, as Cartas coloniais e o Pacto fe­ derativo da Filadélfia, mas só os franceses, ao lavrarem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, procederam como havia procedido o apóstolo Paulo com o Cristianismo. Dilataram as fronteiras da nova

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fé política. De tal sorte que o govemo livre deixava de ser a prerrogati­ va de uma raça ou etnia para ser o apanágio de cada ente humano; em Roma, universalizou-se uma religião; em Paris, uma ideologia. O homem-cidadão sucedia ao homem-súdito. Desse modo, tornou-se a Revolução do século XVIII gênero de importantíssimas renovações institucionais, na medida em que içou, a favor do Homem, a tríade da liberdade, igualdade e fraternidade, de­ cretando, com seus rumos, o presente e o futuro da civilização. Daquele lema derivaram, ao mesmo passo, as diretivas revolucio­ nárias fadadas a se concretizarem no decurso da ação política subse­ qüente. Dos três dogmas, já referidos, partiram os espécimes de cada Revolução com que se particularizam as fases imediatas da caminhada emancipadora, ou se define cada momento singular e transformador da História, ou, ainda, se alcança um grau qualitativo na progressão da­ quela divisa que faz o Homem ocupar o centro de toda a teleologia do poder sobre a Sociedade. Mercê de tamanha amplitude hennenêutica da visão dos três últi­ mos séculos, já nos é possível discernir com clareza, pelo aspecto de historicidade e concreção, e não apenas de sua inexcedível infinitude teórica, que a Revolução Francesa fora um espécime do próprio gêne­ ro de Revolução em que ela se conteve: a Grande Revolução espiritual e racionalista do século XVIII. Só debaixo desse aspecto de limitação histórica e detenninação da fronteira espacial que a circunscreve se faz possível aceitá-la, restritiva e historicamente, enquanto categoria da Grande Revolução do século XVIII, ou seja, reduzida tão-somente a Revolução da burguesia - um horizonte menor -, aliás, de acordo com o entendimento mais vulgar e mesquinho e, de ordinário, mais propagado a seu respeito. Quem a concebeu apenas assim, não lhe conferindo sentido ou di­ mensão adicional, produziu unicamente uma ambigüidade. As lições interpretativas extraídas do próprio marxismo enveredaram igualmente por esse mesmo caminho. Tal aconteceu com a escola leninista de re­ volucionários que, conforme se supõe, vieram transformar o mundo. Mas Lênin se equivocou redondamente por haver perdido, em re­ lação ao século XVIII, alguns horizontes filosóficos da máxima ampli­ tude e vastidão política. Ficou, em face dessa distorção visual, impotente para descerrar os conceitos-chaves postos pela reflexão dos teoristas do povo-nação, do povo soberano e do povo-cidadania.

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O povo assim qualificado, titular da nova legitimidade, não somen­ te encama a vontade dos governados, senão que a transmuta em vonta­ de governante. Sujeito da nova titularidade do poder, entrava ele a ope­ rar a grande estratégia libertadora do ente humano ao longo dos tem­ pos vindouros, mediante processo centralizador ainda agora em curso e com o qual se familiariza cada geração política. O século XVIII colocou, por conseguinte, todas as premissas e di­ visas subseqüentes da rotação, que a idéia revolucionária, para cum­ prir-se, teve que cursar. Primeiro, promulgou as Constituições do cha­ mado Estado de Direito e, ao mesmo passo, com a Revolução da bur­ guesia, decretou os códigos da Sociedade civil. Outro não foi, portan­ to, o Estado da separação de poderes e das Declarações de Direito, que entrou para a história sob a denominação de Estado liberal. As suas nascentes filosóficas são, por inteiro, sondadas aqui na extensa inquiri­ ção das páginas desta monografia. A seguir, como se a idéia anárquica, potencialmente contida na rebeldia histórica de reação às prerrogativas de um absolutismo que proclamara a equipolência do príncipe à divindade ou à instituição, des­ se mais um passo de imensa latitude naquela direção antiestatal da di­ visão de poderes, surgiram as utopias socialistas e, depois, o marxis­ mo: os socialistas, sentenciando a intrínseca iniqüidade do Estado, e os marxistas, em nome da ciência, das leis históricas, da dialética e do determinismo social, o fim do aparelho de coerção da Sociedade. Tal fim não passava, todavia, de uma construção aparentemente científica de um falso messianismo, ou profecia que nunca se cumpriu e jamais se há de cumprir; em suma, previsão feita sem raiz na ciência, na razão e no bom senso, e que a certidão dos eventos históricos trans­ corridos com a malograda experiência soviética parece haver invalida­ do por completo. De semelhantes escolas do pensamento político brotou, portanto, aquela organização de poder e de Estado levada a cabo pela Revolução Soviética da primeira metade deste século: o Estado socialista, da versão de Marx e Lênin. Gerando a ditadura do proletariado, esse modelo, na prática e na realidade, configurou historicamente uma paradoxal forma política, tão negativa, tão rude e tão opressiva para a liberdade humana, em razão dos desvios de poder, quanto haviam sido aquelas a que se propusera opugnar e abolir: a do absolutismo das velhas autocracias impe­ riais e a da burguesia, que trazia no ventre a ditadura do capitalismo. O Estado liberal e o Estado socialista, frutos de movimentos que revolveram e abalaram com armas e sangue os fundamentos da socie­

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dade, buscavam, sem dúvida, ajustar o corpo social a novas categorias de exercício do poder, concebidas com o propósito de sustentar, desde as bases, um novo sistema econômico adotado por meios revolucionários. Já o Estado social propriamente dito - não o do figurino totalitá­ rio, quer de extrema esquerda, quer de extrema direita - deriva do con­ senso, das mutações pacíficas do elemento constitucional da Socieda­ de, da força desenvolvida pela reflexão criativa e, enfim, dos efeitos lentos, porém seguros, provenientes da gradual acomodação dos inte­ resses políticos e sociais, volvidos, de último, ao seu leito normal. Afigura-se-nos, assim, o Estado social do constitucionalismo de­ mocrático da segunda metade do século XX o mais adequado a con­ cretizar a universalidade dos valores abstratos das Declarações de Di­ reitos fundamentais. Tem padecido esse Estado, porém, certa mudança adaptativa aos respectivos fins. Antes do esfacelamento do socialismo autocrático na União Soviética e na Europa Oriental, havia ele por tarefa imediata no Ocidente realizar, em primeiro lugar, a igualdade, com o mínimo pos­ sível de sacrifício das franquias liberais; em outras palavras, buscava lograr esse resultado por via do emprego de meios intervencionistas e regulativos da Economia e da Sociedade, mantendo, contudo, intangí­ vel a essência dos estatutos da liberdade humana. Um Estado, pois, para debelar as crises e recessões da ordem ca­ pitalista, sem fechamento, porém, do sistema político, que permanecia pluralista e aberto. Um Estado, certamente, da economia de mercado, embora debaixo de alguma tutela ou dirigismo, que pouco ou nada lhe afetava as estruturas, posto que interditasse determinados espaços da ordem econômica, subtraídos ao livre jogo das forças produtivas. Era, assim, o Estado social do Estado, e não o Estado social da Sociedade, aquele que se há teorizado de último, de maneira tão corre­ ta, embora passional. Era também o Estado social das Constituições programáticas, de que já fizemos menção. Já o Estado social da Sociedade, que é, sobretudo, o Estado social dos direitos fundamentais, uma categoria por nós igualmente referida, mostra-se permeado de liberalismo, ou de vastas esperanças liberais, renovando, de certo modo, a imagem do primeiro Estado de Direito do século XIX. Em rigor, promete e intenta ele estabelecer os pressupos­ tos indispensáveis ao advento dos direitos da terceira geração, a saber, os da fraternidade. É Estado social onde o Estado avulta menos e a Sociedade mais; onde a liberdade e a igualdade já não se contradizem com a veemência

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do passado; onde as diligências do poder e do cidadão convergem, por inteiro, para trasladar ao campo da concretização direitos, princípios e valores que fazem o Homem se acercar da possibilidade de ser efetiva­ mente livre, igualitário e fraterno. A esse Estado pertence também a revolução constitucional do segundo Estado de Direito, onde os direi­ tos fundamentais conservam sempre o seu primado. Sua observância faz a legitimidade de todo o ordenamento jurídico. Estado liberal, Estado socialista, Estado social com primazia dos meios intervencionistas do Estado e, finalmente, Estado social com he­ gemonia da Sociedade e máxima abstenção possível do Estado - eis o largo painel ou trajetória de institucionalização do poder em sucessi­ vos quadros e modelos de vivência histórica comprovada ou em curso, segundo escala indubitavelmente qualitativa no que toca ao exercício real da liberdade. A Revolução do século XVIII, com as divisas da liberdade, igual­ dade e fraternidade, foi desencadeada para implantar um constitucio­ nalismo concretizador de direitos fundamentais. Não só abrangeu distintas fases, senão que perfilhou, na sua longa jornada histórica, outras Revoluções que lhe foram, à primeira vista, antagônicas. Antagonismo, hoje, comprovadamente de aparência, por­ quanto nunca bastantemente forte para destruir o fio secreto e invisível de continuidade e congruência com as metas emancipadoras de teor fundamental, conforme a Revolução Socialista de 1917 já demonstra­ ra, por seus efeitos bem visíveis e notórios. Outras comoções, cuja violência e sangue o mundo vira espargir em duas conflagrações universais, assinalaram o século XX, confluindo, pelos resultados alcançados, para estabelecer aquela compatibilização básica a que nos reportamos. Não padece dúvida de que todos estes abalos profundos ostenta­ ram a força impulsora das transformações de consciência que, afinal de contas, tomaram possível o advento daquele derradeiro modelo de Estado e Sociedade. Um modelo que faz transparecer quanto o novo Estado estampa uma identidade essencial com legítimos interesses do gênero humano. Já não é, tão-somente, uma filosofia de direitos, mas a própria normatividade desses direitos que abre canais de comunicação e perpassa as fronteiras da soberania até institucionalizar, num pacto transnacional, o respeito da Humanidade aos direitos fundamentais, ponto de partida para a futura Constituição de todos os povos. Nesse sentido caminha o Estado social, e aí se deve discernir a direção vocacional de seu espírito civilizador e progressista, rumo a

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uma Sociedade onde, em substituição do cidadão das pátrias, se ergue o cidadão do universo, o homem da polis global. Mas, enquanto esse horizonte ainda se desenha em linhas curvas, tímidas, esfumaçadas, indecisas e fugazes, cabe advertir que a História viva não vacila nem recua. Dotada de uma dinâmica própria, peculiar a cada povo, vê ela representar em seu palco a luta pela conquista e so­ brevivência daqueles modelos, salvo, obviamente, por obsoleto, o pri­ meiro - o do Estado liberal clássico -, que teve tanta atualidade e im­ portância durante o século XIX mas, de último, se acha, por sem dúvi­ da, de todo ultrapassado. De feito, seria de estranhar que assim não fosse, porquanto as dis­ tintas sociedades nacionais exibem distintos graus de desenvolvimento político; umas mais atrasadas, outras mais adiantadas, no que toca ao exercício dos mecanismos consagrados à efetivação das liberdades es­ senciais. Sem falar, naturalmente, daquelas sociedades apartadas, por completo, da normalidade do regime democrático e que não conhecem senão regimes da mais primitiva autocracia, culturalmente legitimados por uma obscurante tradição de poder pessoal sem limites e sem con­ trastes, poder que raramente evolve ou se transforma, a não ser com extrema dificuldade e lentidão. Dissolvido o socialismo do partido único e da ditadura, decretouse, por igual, o fim da economia dirigida, assim como o termo das ideo­ logias que lhes serviam de sustentação. Nunca se louvou tanto a eco­ nomia de mercado do capitalismo quanto agora, apregoando-se virtudes que lhe seriam ínsitas. Os restauradores assumem ares de promotores vitoriosos de um acelerado retomo ao Estado liberal. Tudo, porém, à sombra de um neoliberalismo que, até certo ponto, desfalca e contradiz a essência do Estado social. Com efeito, a solidez, a estabilidade e a prossecução dessa última variedade institucional chegaram a ser contestadas mediante o exorcis­ mo do Estado e de seus instrumentos de ação. Relegados estes a um desprezo teórico, nem por isso deixa o Esta­ do de ser prontamente invocado e utilizado toda vez que um interesse empresarial mais influente, nascido das situações de emergência, dele se pode valer para embargar crises ou remover embaraços funcionais da própria economia capitalista. Recessão, protecionismo e crise desmentem a linguagem dos mi­ lagres, visto que fazem renascer os mesmos distúrbios econômicos e mazelas políticas e sociais tão familiares à evolução do capitalismo.

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Estamos, assim, em face de um capitalismo que, de necessidade, não pode prescindir do Estado, cujo conceito não envelhece, nomeadamen­ te tratando-se de Estado do Terceiro Mundo. Aqui, sem a presença de tão poderosa alavanca, inevitável seria a recaída no colonialismo da primeira época industrial - de todos os colonialismos, o mais refratário à emancipação dos povos. Nunca o Estado social teve tamanha ductilidade e atualização para subjugar as crises. A conjuntura política do Brasil constitucional faz o advento desse Estado não só indeclinável, senão deveras imperativo. A tarefa de alforria da Sociedade, sobre penosa e árdua, assume dimensão gigantesca, pela simultânea exigência de introduzir e conso­ lidar os direitos fundamentais insculpidos em sucessivas gerações, ou dimensões, e cuja concretização se espera da fórmula cunhada pela Grande Revolução do século XVIII. Nós vivemos e viveremos sempre da Revolução Francesa, do ver­ bo de seus tribunos, do pensamento de seus filósofos, cujas teses, prin­ cípios, idéias e valores jamais pereceram e constantemente se renovam, porquanto conjugam, inarredáveis, duas legitimidades, duas vontades soberanas: a do Povo e a da Nação. Aquela Revolução prossegue, assim, até chegar aos nossos dias, com o Estado social cristalizado nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. Uma vez universalizados e concretizados, hão eles de compor a suma política de todos os processos de libertação do Homem. Os escritores políticos do século XVIII, quando tiveram a intuição do Estado social e proclamaram a legitimidade do poder democrático, estavam já, sem saber, formulando e decretando, com dois séculos de antecedência, as bases da futura Sociedade aberta do Terceiro Milênio. 2. Do Estado Liberal no Estado Social, tese de concurso de cáte­ dra à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, apare­ ceu durante a década de 50, e nunca foi tão atual nos seus fundamentos filosóficos, jurídicos e sociais quanto nesta época em que a decompo­ sição do poder soviético, já ocorrida, parece haver mudado a face do mundo. Sem haver logrado extinguir o socialismo - o que, aliás, se nos afigura impossível -, o capitalismo, conservando insolúveis os seus graves e cruciais problemas, continua muito controvertido e impugna­ do, sujeito a novas e futuras contestações sociais. A cátedra disputada naquela ocasião era a de Teoria do Estado, instituída por ensejo da ditadura civil do Estado Novo de Getúlio Var­

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gas e, mais tarde, transformada em Direito Constitucional I, por obra da reforma introduzida no currículo universitário. O programa de Teoria Geral do Estado, da época, não se circuns­ crevia apenas à parte teórica do direito constitucional, senão que seu raio de abrangência fazia a singular disciplina coincidir, em grande par­ te, com a ciência política. A fundamentação teórica do Estado e, por conseguinte, da ordem jurídica positiva compunha a espinha dorsal de toda a sua temática. Não podia ser, portanto, mais atual a matéria que elegemos por objeto de inquirição naquele tempo. Era a década de retomo ao jusnaturalismo e de profundo desalento doutrinário com as fórmulas clássi­ cas da ciência do direito positivo, nomeadamente do direito público, assentadas sobre a tradição de um formalismo professado por juristas do porte de Gerber, Laband e Jellinek, até chegar a normativistas pu­ ros, do quilate de Kelsen, chefe da Escola de Viena. O legalismo positivista despolitizara, de certo modo, o Estado, ao rebaixar ou ignorar o conceito de legitimidade, dissolvido no conceito de legalidade. Manifestava essa posição estranheza e alheação absolu­ ta a valores e fins. De tal sorte que, exacerbando o neutralismo axiológico e teleológico, fazia prevalecer, acima de tudo, o princípio da lega­ lidade. Efetivamente banido ficava, por inteiro, do centro das reflexões sobre o Direito o problema crucial da legitimidade, numa concepção assim de todo falsa e, sobretudo, já ultrapassada. Porquanto o mundo de nossos dias só tem visto crescer a importância que ainda é atribuída àquele princípio. Nossa tese reflete, em larga parte, aquela fase grandemente em­ bebida do pessimismo da guerra fria e da iminência do holocausto nu­ clear. Conservava-se viva a memória da tragédia que fora a II Grande Guerra Mundial: os imensos problemas de justiça social haviam gera­ do ressentimentos e ódios contra a decrepitude de uma espécie de capi­ talismo cujos erros graves se acumulavam ao redor de uma forma de Estado impotente para vencer crise de tão vastas proporções qual aque­ la do Estado liberal, condenado, já, a transformar-se ou a desaparecer. Mas, debaixo das pressões sociais e ideológicas do marxismo, o Estado liberal não sucumbiu nem desapareceu: transformou-se. Deu lugar ao Estado social. Com efeito, a sobrevivência da democracia limitada e representa­ tiva reagia à proclamada lei da infalibilidade do advento do socialis­ mo, que seria acelerado pela queda iminente e inexorável do sistema capitalista, conforme o presságio dominante nos círculos mais influen­

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tes do pensamento da época. Como se fora uma sentença de morte la­ vrada por compulsão ideológica. Não podia, pois, a Sociedade liberal achar outra fórmula de so­ brevivência senão a que apontava para os termos participativos, consen­ suais e pacíficos da democratização progressiva da cidadania. Em suma, tratava-se da mesma fórmula gravada em nossa precoce e recuada análise sobre o Estado social, tão distanciado, então, da sistematização doutrinária e dos publicistas que ainda não haviam percebido o al­ cance da cláusula constitucional introduzida na Lei Fundamental de Bonn. O texto da Lei Maior alemã positivara, juridicamente, o princípio de um novo regime repassado da união conciliatória da liberdade com a isonomia democrática, debaixo de uma idéia nova, que vinha restau­ rar a noção de Estado, tão lacerada pelos excessos autoritários das dé­ cadas de 20 e 30. Tais excessos, perpetrados por ideologias que confis­ caram as liberdades do cidadão, convulsionaram o meio social e políti­ co e propiciaram o advento das ditaduras. Positivado como princípio e regra de um Estado de Direito re­ construído sobre os valores da dignidade da pessoa humana, o Estado social despontou para conciliar de forma duradoura e estável a Socie­ dade com o Estado, conforme intentamos demonstrar. O Estado social de hoje é, portanto, a chave das democracias do futuro. Fora do Primeiro Mundo, possui ele tamanha importância que tudo se cifra nessa alternativa: Estado social ou ditadura. Sem Estado social não há democracia, sem democracia não há legitimidade. As ligeiras reflexões aqui expendidas justificam cabalmente a ree­ dição desta obra, cujo grau de atualidade jamais foi tão elevado. Além da presente “Introdução” elucidativa do caráter de modernidade da monografia e da importância que seu tema desafiador continua tendo para o debate político deste século, acrescentou-se ao livro, por ensejo da quinta edição, um Capítulo onde o que se disse sumariamente sobre a Revolução Francesa lá se diz com muito mais rigor e propriedade. Se não, confira-se com a análise feita à hermenêutica das Revoluções. III4 1. O Estado social nasceu de uma inspiração de justiça, igualdade e liberdade; é a criação mais sugestiva do século constitucional, o prin­ 4. Prefácio à 6a edição do livro Do Estado Liberal ao Estado Social, Malheiros Editores, São Paulo, 1996.

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cípio governativo mais rico em gestação no universo político do Oci­ dente. Ao empregar meios intervencionistas para estabelecer o equilíbrio na repartição dos bens sociais, instituiu ele, ao mesmo passo, um regi­ me de garantias concretas e objetivas, que tendem a fazer vitoriosa uma concepção democrática de poder, vinculada primacialmente com a fun­ ção e fruição dos direitos fundamentais, concebidos doravante em di­ mensão por inteiro distinta daquela peculiar ao feroz individualismo das teses liberais e subjetivistas do passado. Teses sem laços com a ordem objetiva dos valores que o Estado concretiza sob a égide de um objetivo maior: o da paz e da justiça na sociedade. Com efeito, essa espécie de Estado social, humanizador do poder, jurídico nos fundamentos sociais da liberdade, democrático na essên­ cia de seus valores, padece, de último, ameaça letal à conservação das respectivas bases e conquistas. Esmaecê-lo e depois destruí-lo é parte programática das fórmulas neoliberais propagadas em nome da globa­ lização e da economia de mercado, bem como da queda de fronteiras ao capital migratório, cuja expansão e circulação sem freio, numa ve­ locidade imprevisível, contribui irremissivelmente para decretar e per­ petuar a dependência dos sistemas nacionais, indefesos e desprotegi­ dos, sistemas que demoram nas esferas do Terceiro Mundo. Tem esse capital internacional ação predatória sobre a base eco­ nômica dos países em desenvolvimento, porquanto gira de maneira es­ peculativa, provoca crises, abala a fazenda pública, desorganiza as fi­ nanças internas, derruba bolsas, dissolve economias, esmaga mercados. As correntes desnacionalizadoras navegam todas no barco do neoliberalismo: seus axiomas impugnam o Estado, a soberania, a nacionali­ dade, e os exércitos, cuja existência proclamam inútil. E o fazem como se tudo isso fora anacronismo. Não obstante, se revelam elas impoten­ tes para arrebatar o futuro às nacionalidades constituídas e calar o âni­ mo das aspirações nacionais, que continuam sendo o sangue da unida­ de de cada organismo nacional. Demais, esquece o neoliberalismo que a regionalidade dos confli­ tos militares nos campos e montanhas balcânicas da ex-Iugoslávia, a par dos sobressaltos étnicos na Europa das Regiões, lhes traz o des­ mentido das suas expectativas e prognósticos, bem assim a advertência de que a nação, exprimindo uma consciência de identidade, é a supre­ ma vocação de poder legítimo que conduz o destino dos povos. Sobre esses valores tropeça o neoliberalismo, até cair, exânime, no vazio e inconsistência de suas fórmulas e idéias.

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Cabe-nos assinalar, por igual, que o neoliberalismo, investigado desde as suas raízes e aferido em sua natureza, não é, enquanto forma política, regra de poder ou sistema doutrinário, mas tão-somente as­ pecto secundário e tributário da própria categoria histórica de organi­ zação do Estado, que chegou a um degrau mais elevado de suas trans­ formações na segunda metade do século XX, passando a denominar-se Estado social. O compromisso desse Estado com a liberdade se fez irretratável; a liberdade, entendida aqui em seu significado positivo, este que os libe­ rais nunca compreenderam e nunca haverão de compreender por lhes ferir interesses econômicos imediatos e inarredáveis. Ora o significado positivo da liberdade, distinto do de Jellinek, que era o de um status negativus, não pode deixar de ser o de sua concepção como direito fun­ damental provido de dupla dimensão teórica: a da subjetividade e a da objetividade. Desta última se achava desfalcado o conceito do sábio alemão. Fora desse ângulo da bidimensionalidade e da associação com o Estado social, tenazmente recusada pelas posições neoliberais contem­ porâneas, a reflexão do neoliberalismo, sobre ser retrocesso, atenta con­ tra o desenvolvimento da liberdade mesma, cuja institucionalização material na sociedade ele tolhe ou inibe. Com efeito, tal institucionalização não é outra coisa senão a con­ cretização dos direitos fundamentais em sua concepção humanística, universalizadora, de teor constitucional mais largo, atada ao estabele­ cimento e promoção da justiça. Cifrada, por conseguinte, na correção das desigualdades sociais, compagina, ao mesmo passo, os direitos fun­ damentais da terceira e da quarta gerações, a saber, o desenvolvimento e a democracia, respectivamente. Direitos volvidos para a criação de um novo homem e de uma nova sociedade. Por conseqüência, encami­ nhados a um bem mais alto: a caução de dignidade social e material do ser humano. Em verdade, o velho Estado liberal das épocas clássicas, depois de cumprir sua missão revolucionária e exaurir sua essência racionalizadora, incorporou às instituições estatais - e nelas aumentou - o princípio da separação de poderes, talvez no terreno das garantias constitucionais da liberdade sua herança mais feliz, mais próspera e mais estimável. Ao mesmo passo assumiu também formalmente o patronato da li­ berdade humana, cujos conteúdos materiais, todavia, só preencheu em favor do capitalismo burguês, a serviço de seu Estado-gendarme. Nis­

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so residiu, obviamente, a fragilidade, e como não dizer o calcanhar de Aquiles, do antigo modelo liberal. De bases já solapadas, em virtude de sua contextura meramente formal no campo das liberdades fundamentais - onde a justiça e a se­ gurança da cidadania repousam sempre no binômio liberdade e igual­ dade - a restauração desse modelo, ora intentada, se nos afigura episó­ dica, circunstancial, improvável, inconveniente e sobretudo fatal aos interesses dos países do Terceiro Mundo. Faz essa miragem a ilusão de quantos, com empenho sistemático, forcejam ainda por desmantelar as estruturas do Estado social e, assim, sopear a inclinação irreversível da sociedade para formas superiores de convivência e aperfeiçoamento qualitativo das instituições. O Estado social, em seu mais subido grau de legitimidade, será sempre, a nosso ver, aquele que melhor consagrar os valores de um sistema democrático. Valores que se prendem na sua expressão partici­ pativa a mecanismos tais como a iniciativa, o plebiscito, o referendo e o veto popular. A democracia, ontem, pelo seu valor liberdade, foi, na metafísica política dos séculos XVIII e XIX, teorizada abstratamente qual princí­ pio da cidadania representativa, de que são órgãos os parlamentos. Hoje, pelo seu valor igualdade, viu-se desmembrada da teoria do Estado liberal, e, depois das vicissitudes de três séculos, alçada, final­ mente, à categoria de direito positivo - a face mais importante desse valor que governa as sociedades livres. Ontem, a liberdade impetrava o acréscimo da igualdade; hoje, a igualdade impetra o acréscimo da liberdade, acréscimo material, tudo isso com o objetivo de fazer ambas concretas, tanto a liberdade como a igualdade. Tais acréscimos, conjugadamente, preenchem as lacunas dos dois conceitos e colocam a liberdade e a igualdade no patamar da concretude constitucional propriamente dita, que é a concretude normati­ va a caminho da aplicabilidade imediata, acima, portanto, da retórica programática dos textos constitucionais que correspondem ao período de um Estado social até há pouco meramente doutrinário, impalpável e abstrato. Dantes vinculada ao liberalismo, ao qual se acha associado seu advento na Idade Moderna, a noção de democracia, por sua vez, secularizou o pensamento político derrogando a filosofia de poder cultiva­ da pelas monarquias de direito divino. Em seguida, afeiçoada ainda ao liberalismo clássico e jungida às excessivas limitações do sistema representativo, a democracia se irra­

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diou, enquanto princípio constitucional programático, pelos povos oci­ dentais; alimentou o pensamento racional de reconstituição das bases do Estado soberano; guiou as nacionalidades com a bússola dos gover­ nos livres e, ao final, para surpresa de todos, apertou e debilitou seu espaço legítimo, em conseqüência das contradições mortais oriundas da impossibilidade de manter a antinomia Estado-sociedade e salva­ guardar neste século sua aliança com as formas representativas. Des­ tas, desde o advento do quarto estado (os trabalhadores e seu novo status político e social), as contradições contemporâneas derivadas da ida­ de tecnológica buscam separá-la de maneira irremediável. A antinomia Estado-sociedade, proveniente da falsidade da ideo­ logia burguesa, já não pode, assim, em suas vestes formais, dissimular o holocausto social da liberdade. Um holocausto que teve por vítima maior a classe obreira, o chamado quarto estado ou proletariado, se­ gundo a linguagem da revolução de massas, linguagem hoje um tanto arcaizada, de inspiração no marxismo-leninismo. Desde o aparecimento do Estado social partiram-se também os la­ ços de submissão que, na doutrina, soldavam a democracia ao libera­ lismo. A democracia conheceu, a seguir, teorização diferente, respeitante aos seus vínculos com a liberdade, os quais deixaram de ser abs­ tratos, vagos, subjetivos, genéricos, programáticos e utópicos, para se tomarem objetivos, concretos, positivos, pragmáticos e reais. Contemplemos, por conseguinte, o Estado social em sua fase con­ temporânea de afirmação. Para tanto faz-se mister considerar e anali­ sar-lhe o conceito-chave - a democracia - sem o qual ele se esvazia. Que é, na moldura desse Estado, a democracia? Afigura-se-nos ser ela, aí, menos uma forma de governo do que um direito. Direito, sim, conforme tenho com freqüência asseverado em reflexões recentes sobre o tema. Da mesma maneira que se proclamou o desenvolvimento de um direito da terceira geração, também a democracia, por sua vez, há de elevar-se à categoria de direito novo, mas da quarta geração, e, como tal, recomendada, postulada, exercitada. Nessa condição é a democracia do Estado social, por conseguinte, o mais fundamental dos direitos da nova ordem normativa que se as­ senta sobre a concretude do binômio igualdade-liberdade; ordem cujos contornos se definem já com desejada nitidez e objetividade, marcan­ do qualitativamente um passo avante na configuração dos direitos hu­ manos.

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Tanto quanto o desenvolvimento, é a democracia, por igual, direi­ to do povo; direito de reger-se pela sua própria vontade; e, mais do que forma de govemo, se converte sobretudo em pretensão da cidadania à titularidade direta e imediata do poder, subjetivado juridicamente na consciência social e efetivado, de forma concreta, pelo cidadão, em nome e em proveito da Sociedade, e não do Estado propriamente dito - quer o Estado liberal que separa poderes, quer o Estado social, que monopoliza competências, atribuições e prerrogativas. O direito constitucional da liberdade, que hoje importa instituir, já não é tanto aquele do princípio de Montesquieu e da oposição e resis­ tência do cidadão ao Estado, senão um novo direito constitucional que faz real a dupla dimensão de objetividade e subjetividade dos direitos fundamentais. A dimensão objetiva, sobre reconciliar a Sociedade com o Estado, propicia o quadro indispensável ao florescimento de uma liberdade que tem por manivela do sistema jurídico as garantias sociais e processuais de sua concretização, e somente se pode desenvolver sob a égide do Estado social. Do Estado liberal brotou, portanto, um constitucionalis­ mo cuja fisionomia já se não confunde com aquela típica da idade libe­ ral; um constitucionalismo que atravessou fases sucessivas, desde sua origem nos ordenamentos positivos de alguns países ocidentais, inclu­ sive o nosso, e que gerou na esfera da hermenêutica distintos instru­ mentos de normatividade jurídica, aptos a fazer mais eficaz semelhan­ te modelo do Estado social. Esses instrumentos dizem respeito, sobretudo, aos limites do Esta­ do e aos direitos fundamentais. Aqui, a resposta aos problemas traz o reconhecimento da prevalência da mais recente teoria constitucional, derivada de uma reforma de conceitos e acompanhada de variação de técnicas, substituição de valores, alargamento de funções, e criação doutros direitos em gerações sucessivas ou variadas dimensões. Com efeito, o Estado social contemporâneo compreende direitos da primeira, da segunda, da terceira e da quarta gerações numa linha ascendente de desdobramento conjugado e contínuo, que principia com os direitos individuais, chega aos direitos sociais, prossegue com os direitos da fraternidade e alcança, finalmente, o último direito da con­ dição política do homem: o direito à democracia. Um direito aliás em formação, mas cuja admissibilidade deve ser, de imediato, declarada porquanto já se vislumbra com a mesma impres­ são de certeza objetiva que os direitos da terceira geração, aqueles re­ ferentes ao desenvolvimento, à paz, à fraternidade e ao meio ambiente.

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A esta altura não posso deixar de volver às palavras por mim pro­ feridas, em Foz do Iguaçu, ao ensejo do discurso de despedida e encer­ ramento da XV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1994, quando ousei enunciar e teorizar aquele direito. E o fiz, entre outras considerações, com os seguintes comentários: “Tendo por conteúdo a liberdade e a igualdade, segundo uma con­ cepção integral de justiça política, o direito à democracia, apanágio de toda a Humanidade, é, portanto, direito da quarta geração, do mesmo modo que o desenvolvimento, por sua remissão concreta e material aos povos do Terceiro Mundo, é direito da terceira geração. Com efeito, tomando por base a sua titularidade, os direitos humanos da primeira geração pertencem ao indivíduo, os da segunda ao grupo, os da tercei­ ra à comunidade e os da quarta ao gênero humano. “Em rigor, na era da tecnologia e da globalização da ordem eco­ nômica e da convivência humana, não há direito de natureza política mais importante do que a democracia, que deve ser considerada um direito fundamental da quarta geração ou dimensão, conforme já assi­ nalamos.5 “E justamente por ser enunciada como direito fundamental, isto significa que ela principia a ter ingresso na ordem jurídica positiva, a concretizar-se em âmbito internacional, a possuir um substrato de efi­ cácia e concretude derivado de sua penetração na consciência dos po­ vos e dos cidadãos, donde há de passar ao texto das constituições e à letra dos tratados. “Em suma, a norma democracia, tendo por titular o gênero huma­ no, é, por conseguinte, direito internacional positivo em nossos dias. E o é porque se transforma a cada passo numa conduta obrigatória im­ posta aos Estados pelas Nações Unidas para varrer do poder, de forma legítima, os sistemas autocráticos e absolutistas que, perpetrando ge­ nocídios e provocando ameaças letais à paz universal, se fazem incom­ patíveis com a dignidade do ser humano.” 5. Em nosso entendimento, a geração ou dimensão dos direitos humanos lo­ gra caracterização classificatória mais perfeita se nos afastarmos da clássica duali­ dade direitos de defesa (Abwehrrechte) e direitos de participação ( Teilhaberechte), e nos ativermos, de preferência, a outro critério, a saber, o da extensão referencial de sua titularidade, passando primeiro pelo indivíduo, a seguir pelo grupo, depois pela sociedade ou comunidade propriamente dita até chegar, de último, ao gênero humano. Faz-se mister, todavia, assinalar que os direitos fundamentais da primeira geração conservam seu caráter de direitos de defesa, ao passo que os da segunda, terceira e quarta, por sua vez, não perdem a índole de direitos de participação.

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2. Sendo, além disso, o Estado social irmão gêmeo da democracia ou, em certo sentido, a democracia mesma, sua legitimidade procede da natureza do gênero humano, bem como de ser, de todo em todo, equivalente a um pensamento de justiça. Foi esse Estado o degrau decisivo que fez da democracia direito positivo do povo e do cidadão. Concretizou ele uma doutrina constitu­ cional onde a democracia é colocada primeiro na dimensão de ju s naturalis e, em seguida, legitimada na esfera da positividade por impera­ tivo da justiça e da razão humana. Em verdade, princípios como o da proporcionalidade e o da apli­ cação direta ou imediata de normas que definem direitos e garantias fundamentais nas Constituições; técnicas, como a do controle de fisca­ lização abstrata de constitucionalidade; métodos de interpretação como os da Nova Hermenêutica; relações de poderes, como as que se estabe­ lecem num grau de mútua limitação entre o Executivo e o Legislativo, reformando competências clássicas ou instituindo formas de controle da ação legiferante, qual, por exemplo, o Uebermassverbot do direito constitucional alemão; iniciativas, como a criação dos tribunais consti­ tucionais; conceitos emergentes, como o da eficácia dos direitos fun­ damentais em relação a terceiros, ou seja, com seu império dilatado controversamente ao campo das relações inter privatos - a célebre Drittwirkug dos constitucionalistas alemães; polêmicas, como a que se feriu na Alemanha durante a década de 60 (Forsthoff versus juristas da Tópica) acerca da juridicidade dos direitos da sociedade industrial; transformações e criações de direitos humanos, como as que ocorrem na era da tecnologia; mudanças funcionais de direitos, como as que fazem os direitos fundamentais assumirem o caráter principiai e, nessa qualidade, fruírem uma hegemonia vinculante, de ordem constitucio­ nal, sobre todos os institutos de Direito Privado, os quais acabam redu­ zidos a mera província do direito público de primeiro grau que é o Di­ reito Constitucional; enfim, todas essas variações geradoras de um novo direito constitucional se apresentariam desgarradas de órbita se lhes faltasse apoio direto ou indireto num eixo de referência conceituai, que não pode deixar de ser o Estado social e suas estruturas de norma­ tividade vinculadas à Nova Hermenêutica. Acerca desse Estado cabem, ainda, algumas reflexões doutrinárias com que acentuar o contraste entre ele e o Estado liberal, pelo ângulo de análise que seus hermeneutas fazem aos substratos materiais de constitucionalidade.

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Com efeito, os juristas do Estado social, quando interpretam a Constituição, são passionais fervorosos da justiça; trazem o princípio da proporcionalidade na consciência, o princípio igualitário no cora­ ção e o princípio libertário na alma; querem a Constituição viva, a Constituição aberta, a Constituição real. As avessas, pois, dos juristas do Estado liberal, cuja preocupação suprema é a norma, a juridicidade, a forma, a pureza do mandamento legal com indiferença aos valores e, portanto, à legitimidade do ordenamento, do qual, não obstante, são também órgãos interpretativos. Distinções básicas de prisma e visão separam, por conseguinte, os que professam, elegem e teorizam o Estado social daqueles que, insu­ lados, se abraçam ao normativismo puro do Estado liberal. A herme­ nêutica de um pouco ou nada serve à do outro, pois o direito no Estado liberal dos normativistas, via de regra, se lê e interpreta, segundo os cânones de Savigny; já o direito no Estado social requer o alargamento e a renovação de todo o instrumental interpretativo, fazendo, nessa esfera, a revolução dos métodos para a boa compreensão da ordem normativa. Enfim, os juristas liberais são conservadores; os juristas sociais, ao revés, criativos e renovadores; os primeiros ficam com a metodolo­ gia clássica, os segundos criam a Nova Hermenêutica; aqueles se com­ portam nos conceitos como juristas do Estado e só secundariamente da Sociedade; estes, ao contrário, tendem a buscar o direito nas suas raízes sociais e desertam o formalismo rigoroso dos positivistas da norma. As bases do Estado social têm sido, de último, acremente atacadas pelos corifeus do neoliberalismo pós-guerra fria. Partem estes para uma suposta arremetida final intentando, primei­ ro, acabar com a história, a ideologia, os símbolos e as armas nacio­ nais, como se isto fora possível, e, a seguir, acometer o Estado, a na­ ção, a soberania. E o fazem aferrados a posições falsamente valorativas que só redundam em proveito de novas supremacias. Não podem estas deixar de ser, como sempre, as do grande capital, que circula ago­ ra nas artérias do sistema financeiro internacional, dotado da pretensão de globalidade e perpetuação. Fingem, porém, ignorar que o capitalismo espoliativo atravessa sua pior crise. Aguarda-se a esse respeito um funesto desfecho, que as caudais publicitárias do próprio sistema batalham por encobrir. A versão neoliberal do Direito e do Poder é, portanto, da mesma índole reacionária e dissolvente dos absolutismos de direita e esquerda nascidos ao transcurso deste século.

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Seus postulados de reengenharia política e social, formulados como um traslado de seu protótipo empresarial, colocam em perigo o Estado social, ao mesmo passo que assinalam o triunfo da injustiça. Aí, os fortes esmagam os fracos, os grandes anulam os pequenos e as minorias, senhoreando os privilégios e concentrando o capital, perpe­ tuam a ditadura social dos poderosos. De tal modo que ao povo - des­ maiado o Estado social - restar-lhe-á unicamente o partido da resigna­ ção ou do desespero. E nessa alternativa, o desespero é, como sabe­ mos, o conselheiro do crime e da revolução. No crime o País já vive com as guerrilhas urbanas dos delinqüentes que traficam com drogas. Na revolução, quem dirá, já não é este momento a antevéspera de um terremoto político e social? 3. Vai, todavia, deveras largo este Prefácio à sexta edição do livro Do Estado liberal ao Estado social. Faz-se mister porém que assim seja, a fim de que possamos, mais espaçadamente, argumentar contra os que cuidam haver revogado o Estado social, supostamente submerso pela gi­ gantesca onda de um maremoto: o neoliberalismo das direitas obscurantes, retaliadoras e retrógradas, cujo erro histórico reside em presumir es­ tarem na crista dos eventos de que emergirá a sociedade do porvir. Isto é absolutamente falso. Basta ver que a adoção do neolibera­ lismo na sociedade brasileira pelo Govemo, em benefício unicamente de parcelas privilegiadas do meio financeiro e empresarial, tem gerado na ordem social efeitos catastróficos: duma parte, empobrece o povo, sobretudo as classes assalariadas, conduzindo, ao mesmo passo, a ju­ ventude para a senzala do crime e da prostituição. E por essa estrada vai igualmente inaugurando novos cativeiros, desagregando valores, cavando abismos, sepultando aspirações, estiolando esperanças, desfi­ gurando, enfim, o semblante nacional das instituições. Neoliberalismo igual a novas liberdades fora sem dúvida o único sentido legítimo e admissível para essa expressão tão em voga na lite­ ratura política dos países ocidentais; expressão, porém, que na realida­ de cotidiana ministra o substrato de uma ideologia ao pragmatismo, triunfante sobre as ruínas do Estado social da versão marxista-leninista. Trata-se, portanto, de um pragmatismo inaceitável, das minorias li­ berais, oneroso à sociedade e à nação. De sorte que a bandeira da liber­ dade, empunhada por ele, traz na cor e nas dobras de seu tecido a velha e abstrata liberdade do liberalismo decadente que se busca restabelecer em prol dos privilégios e das desigualdades. O Estado social, este sim, tem compromisso com a liberdade - a liberdade concreta - sendo hoje a bandeira da civilização que não recua.

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Não chega assim ao Estado social o fogo-fátuo desse neoliberalis­ mo, acadêmico nas regiões da doutrina, glacial no domínio da socieda­ de, insensível no campo da proteção ao trabalho e aos trabalhadores e cruel na esfera das relações econômicas; neoliberalismo que desnacionalizou a economia brasileira, que debilitou o Estado, que revogou as leis previdenciárias, que pôs em risco a soberania e trucidou a base so­ cial da Constituição, que abriu caminho à “mexicanização” da Amazô­ nia; enfim, neoliberalismo de traição nacional. Escorado na globalidade, ele é também o mesmo liberalismo de outrora, em cujo ventre o gênero humano viu gerar-se o desemprego, a fome, a penúria, a miséria, a enfermidade, o analfabetismo; flagelos de aguda intensidade neste fim de século, fazendo o mundo contemporâ­ neo mais injusto e violento que o universo social da Revolução Indus­ trial dos séculos XVIII e XIX. Visto pelo prisma desse retrocesso, o Estado liberal é lição da His­ tória, úlcera da sociedade, página de escuridão que cobre as ruínas do passado. Sua substituição pelo Estado social se tomou peremptória, definitiva. Por conseguinte, o neoliberalismo não escreverá o futuro, que pertence à democracia, à liberdade, ao Estado social. Os sacerdo­ tes do neoliberalismo hão de ficar, assim, genuflexos diante do altar onde jaz o corpo embalsamado de uma ideologia de privilégios. Nunca, pois, a tese do Autor, em concurso de cátedra, escrita há cerca de quarenta anos, se lhe afigurou tão válida quanto neste percur­ so da História que ora nos faz atravessar o túnel do neoliberalismo. Travessia em que temos a visão toldada pelo último espasmo na agonia dos sistemas espoliativos do capitalismo de opressão. Jamais houve, de último, tanto desrespeito social à dignidade e aos direitos fundamen­ tais do homem como na aplicação da doutrina neoliberal. Urge, pois, abrir um espaço de resistência contra a invasão desnacionalizadora do capital estrangeiro; urge salvar a honra das institui­ ções maculadas pela inconfidência do neoliberalismo; urge, enfim, acordar o povo, congregar a juventude, mobilizar os trabalhadores em defesa da Constituição. Se cair este derradeiro baluarte da independên­ cia nacional, que é a Lei Maior, as luzes da liberdade se apagarão em nosso País e uma noite de servidão descerá suas espessas trevas sobre os destinos desta Nação. Enfim, o Estado social não é artigo ideológico nem postulado me­ tafísico nem dogma religioso, mas verdade da Ciência Política e axio­ ma da democracia. Foi a tese que principiamos a sustentar numa lição

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de cátedra, desde 1958, e que temos desenvolvido e atualizado nas su­ cessivas edições desta obra. Nela o leitor há de tirar inspiração para amparar o Brasil e a sua Constituição, o Brasil e as suas liberdades, o Brasil e a fé dos seus homens, que, por esse ângulo político, hoje são livres e amanhã não querem ser escravos!

Capítulo 7 GARCIA PELAYO E O ESTADO SOCIAL DOS PAÍSES E M DESENVOLVIMENTO: O CASO DO BRASIL grande merecimento de Garcia Pelayo como constitucionalista e Mestre do Direito Comparado foi perceber muito cedo, em termos precursores, na esfera ideológica, o hiato entre o Estado ocidental e o Estado oriental, tocante aos ramos e reflexos da socialização do Direito depois da revolução do socialismo marxista na antiga Rússia dos Czares.

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A fórmula do socialismo autocrático, por onde se havia chegado à ditadura do proletariado, parecia haver deixado sem alternativa o cons­ titucionalismo clássico e democrático do antigo Estado liberal. Ali, o modelo autoritário significava o sacrifício e a destruição, por inteiro, do velho Estado de Direito inaugurado e introduzido pelas correntes liberais do século XIX, depositárias da herança revolucioná­ ria que fez emergir o poder da burguesia. Mas logo no período de entreguerras surgiu o modelo redentor: o constitucionalismo de Weimar. Depois de malograr na Alemanha ao tentar concretizar o Estado social, entrou ele, porém, a inspirar, com a energia do novo pensamento constitucional de matrizes sociais, os grandes projetos de Constituição que a Europa e boa parte do mundo buscavam estabelecer. Abria-se assim a era dos direitos da segunda ge­ ração, considerados, então, na categoria dos direitos fundamentais, sen­ do portanto a grande novidade constitucional do século. Oriunda, sem dúvida, do temor às nuvens negras encasteladas nos horizontes da União Soviética, cuja expansão de poder e ideologia intimidava o Oci­ dente com a ascensão do quarto estado.

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Desde a Constituição de Weimar esses direitos foram enunciados, mas tiveram inferior eficácia; com a Lei Fundamental foram, ao con­ trário, omitidos e lograram superior eficácia. Talvez por obra do legis­ lador constituinte que os compendiou todos em locução substantiva e sintética de que a Alemanha era um Estado social.' A Constituição, por natureza e essência, se definia nessa frase feliz. Ela consubstanciava o princípio estruturante das melhores Consti­ tuições posteriormente promulgadas na segunda metade do século XX. O Estado social se fez, por conseqüência, a pedra fundamental dos regimes empenhados em criar uma proposta de poder suscetível de mi­ tigar e corrigir as tendências radicais e absolutas do constitucionalismo de fachada do modelo soviético e, ao mesmo passo, tolher pressões re­ volucionárias capazes de provocar o advento das ditaduras. O pólo Weimar-Bonn do Estado social esteve para o socialismo no século XX assim como o pólo das monarquias limitadas e constitu­ cionais no século XIX esteve para o liberalismo; ambos os pólos incor­ poraram, em sede constitucional, direitos de revoluções antecedentes. No primeiro pólo os direitos sociais, direitos de segunda dimen­ são; no segundo pólo os direitos civis, direitos da primeira geração. Ontem, a Revolução Francesa, de último, a Revolução Soviética. Am­ bas abalaram o mundo. A normatividade social é substantiva e sua fonte é o princípio. Enxertado na Constituição ele cria, ordena, qualifica e ilumina a hierar­ quia do sistema. O princípio é a categoria suprema do regime, o centro de convergência e unidade, o núcleo normativo de poder e valor, do qual se irradiam e com o qual se compatibilizam todas as determina­ ções constitucionais. É, enfim, o canal do ordenamento por onde circu­ lam as correntes de conservação, harmonia e equilíbrio que fazem a estabilidade da ordem jurídica. Garcia Pelayo descobriu na fórmula do Estado social a solução contemporânea do problema da igualdade. As sementes doutrinárias da 1. O art. 20 da Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, estatui: “Die Bundesrepublik Deutschland ist ein demokratischer und sozialer Bundesstaat”. Aí se contém a célebre fórmula de que a República Federal da Alemanha é um Estado social e democrático, fórmula principiai, de profundo e largo alcance, teóri­ co e normativo, por definir substantivamente a essência do ordenamento e compor a diretiva básica do sistema, à qual, como objetivo fundamental, deverão amoldarse, nas esferas constitucionais, todas as regras de organização e competência, bem como na linha interpretativa todos os direitos fundamentais que concretizam a dig­ nidade da pessoa humana.

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justiça social, ele as trouxe de seus estudos e ensaios acerca da obra de Lorenz von Stein, cuja originalidade é flagrante com respeito à teorização marxista pertinente à Sociedade e ao Estado.2 Mas onde Garcia Pe­ layo estreita mais os seus laços com Lorenz von Stein, e com ele comparte a originalidade de um pensamento criativo, fecundo e inovador, é precisamente ao fixar as teses e estabelecer as bases que compõem a substância do Estado social. Com efeito, o Estado da intermediação e do compromisso, dos va­ lores materiais da Constituição, das pontes que ligam o socialismo à democracia, triunfou como alternativa ao Estado da ideologia soviética e ao Estado neutral e formalista da burguesia. Houve, ao mesmo passo, um aperfeiçoamento do Estado social de Lorenz von Stein pelo Estado social de Garcia Pelayo. O primeiro, visualizado na esfera teórica, ce2. Lorenz von Stein foi indubitavelmente a matriz inspiradora do pensamento social de Garcia Pelayo. A simpatia de Pelayo pelo autor alemão se manifestou sobretudo num de seus melhores ensaios sobre o jurista e sociólogo de Kiel, estam­ pado há mais de cinqüenta anos, ou seja, em 1949, na Revista de Estúdios Políticos de Madrid. Nesse trabalho intitulado “La Teoria de la Sociedad en Lorenz von Stein”, o notável publicista diz que seu artigo é “pura e deliberadamente expositivo”, mas nem por isso deixa de tirar a importante conclusão de que a obra do sociólogo e administrativista alemão, sem embargo de sua “intenção conservadora”, é, no con­ teúdo e na estrutura mesma, o oposto. E assim se expressa ele categoricamente: “Nunca un sistema científico-raciona!, con su profundo y duro análisis de la realidad social, como lo es el de von Stein, puede servir de substratum a una tesis con­ servadora” (Garcia Pelayo, “La Teoria de la Sociedad en Lorenz von Stein”, acima citado, p. 87). A originalidade de von Stein na construção do Estado social é inexcedível e o faz neste fim de século mais atual e mais relevante para os desafios da globalização e do neoliberalismo do que o próprio Marx. O poderoso influxo do socialismo mar­ xista, de teor intrinsecamente revolucionário, manteve, durante muito tempo, obscurecido e deslembrado o nome do pensador e sociólogo alemão, o qual, sem em­ bargo de suas afinidades com o marxismo, seguira, na solução do problema social, a linha reformista, depois tão em voga e tão aceita pelo constitucionalismo da se­ gunda metade deste século, designadamente o dos países ocidentais. Tocante aos laços e afinidades e mútuos influxos do pensamento de von Stein e o de Marx, maiormente daquele Marx jovem, de 24 anos de idade, que em 1842 escrevia, como Redator-Chefe do Rheinische Zeitung, seus primeiros artigos sobre o Estado, o capital e a economia política do capitalismo numa gazeta da qual von Stein era também colaborador, veja-se o primoroso ensaio de Dirk Blasius e Eckart Pankoke, que tem por título Lorenz von Stein - Geschichts-und Gesellschaftswissenschaftliche Perspektiven", Ertraege der Forschung, Band 69, 1977, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, sobretudo das pp. 34 a 45.

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deu lugar ao segundo, traçado na tela da práxis, da realidade, da concretude.3 Os traços que identificam a doutrina do Estado social em Garcia Pelayo, extraídos de um de seus melhores textos acerca do assunto, po­ dem ser assim resumidos ou compendiados: é o Estado do neocapitalismo, dos países industrializados e pós-industrializados, das associa­ ções e dos partidos políticos, da democracia social, da atenuação da luta de classes, da igualdade - esta tão inseparável da liberdade como o Estado o é da Sociedade - da Constituição vinculante, da política programada, da racionalidade administrativa dirigida ao bem-estar dos governados, da limitação da propriedade subordinada aos interesses da ordem social, das prestações públicas de educação, saúde, moradia, previdência social, e planejamento da economia nacional volvida para o desenvolvimento e o combate à miséria, à pobreza e às desigualda­ des sociais.4 Em suma, é o Estado cuja vocação incorpora, se necessário, as metas de um socialismo aberto e democrático; uma espécie de terceira via entre o velho capitalismo do Estado tradicional e o neocapitalismo da globalização, residindo precisamente nessa intermediação as possi­ bilidades de sobrevivência de seu futuro político, nomeadamente nas sociedades em desenvolvimento, onde a globalização de aparência já decretou a destruição desse Estado, aparelhando-lhe, de último, a re­ moção das ruínas. E de presumir que, se vivo fora, Garcia Pelayo decerto compreen­ deria a singularidade e a peculiaridade do problema do Estado social nos países do Terceiro Mundo enquanto ato de desafio, coragem e re­ sistência aos desígnios letais da proposta globalizadora do neolibera­ lismo. 3. Lê-se numa das obras de Pelayo que “em termos gerais, o Estado social significa historicamente o intento de adaptação (pelo qual entendemos neste caso o Estado liberal burguês) às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial com seus novos e complexos problemas, mas também com suas grandes possi­ bilidades técnicas, econômicas e organizativas para enfrentá-los”. (Manuel Garcia Pelayo, “Las Transformaciones dei Estado Contemporâneo”, Alianza Universidad, Madrid, 1995, p. 18, 2a ed., 9â reimpressão). 4. É indispensável a uma compreensão do Estado social segundo a visão de Garcia Pelayo a leitura do texto fundamental intitulado “El Estado Social y sus Implicaciones”, que abre o livro Las Transformaciones dei Estado Contemporâ­ neo, bem como a do “Anexo a Notas sobre la Idea dei Estado en la Socialdemocracia Clásica”, onde o mesmo cientista examina, com percuciência, as posições de alguns autores sobre o problema do Estado, visto pelo aspecto teórico.

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A globalização nesses países praticamente extingue a soberania, desnacionaliza o mercado, invade a economia, opera nas bolsas de va­ lores capitais especulativos e fugazes, desestabiliza a moeda e impõe juros extorsivos e leoninos às transações da lavoura, da indústria e do comércio. O Estado social é uma coisa na Europa; outra bem diferente na América Latina. Ali é possível sobreviver incólume às adversidades da globalização e do neoliberalismo; aqui essa possibilidade quase não existe: a crise é maior que o Estado, que o Govemo, que a governabili­ dade. Ministrar, pois, aos Estados da periferia, em matéria de Estado so­ cial, a mesma receita de rumos e concessões seguida pelos países oci­ dentais do Primeiro Mundo tocante ao liberalismo e à globalização, so­ bre ser insensatez e desatino, há de ser provavelmente erro fatal à so­ berania daqueles Estados.5 Seis anos de globalização têm sido para o Brasil sessenta anos de atraso, empobrecimento, estagnação, dívida insolúvel, decadência e amargura social. Em sua população, há 30 milhões de desgraçados sub­ mersos na indigência, no analfabetismo, na miséria absoluta. Pela segunda vez, a história do Brasil é testemunha de que a ques­ tão social - desta feita por obra do neoliberalismo - tende a se conver­ 5. A formação de uma doutrina constitucional com base em postulados neoliberais, vinculada diretamente ao fenômeno da globalização, afigura-se-nos não ha­ ver sequer despontado em nossos dias. Parece-nos até impossível construí-la pelas implicações contraditórias de ordem doutrinária que jazem na base dessa concep­ ção. A globalização juridicamente valoriza tratados e deprecia Constituições; aque­ les são instrumentos úteis, estas óbices incômodos. As uniões comunitárias, que se institucionalizam, fazem perceber concretamente os sacrifícios constitucionais im­ postos, em detrimento do clássico conceito de soberania. Este, hoje, é mais valioso como garantia para o desenvolvimento nacional dos Estados emergentes do que para os Estados associados ou em via de associação do Primeiro Mundo, os mais favorecidos com o advento da globalização. Os Estados, porém, que ainda não che­ garam à idade adulta do desenvolvimento, não podem se apartar, por conseguinte, de três conceitos básicos, que lhes afiançam a sobrevivência: o de soberania, o de Estado social e o de Constituição dirigente, vinculante ou programática. A alternativa para a perda desses meios de conservação seria a recaída no status colonial, ou seja: neocolonialismo ou recolonização. Em suma, um desastre ou retrocesso, a que pode conduzi-los a política de portas abertas, sem freios e sem limites, que alguns Governos, desavisadamente presos ao delírio globalizador e neoliberal, intentam levar a cabo, ou já estão a exe­ cutar, com o apoio e os aplausos da potência hegemônica que dita a nova pax ro­ mana do mundo contemporâneo.

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ter numa questão de polícia.6 Ou, com mais propriedade, a transfor­ mar-se em algo que ultrapassa, em descaso e abandono, as ocorrências da década de 20, porquanto agora jazem, desamparados na degradação urbana dos cortiços e das favelas, 60 milhões de infelizes, condenados 6. Com o aumento da criminalidade no Brasil, e da respectiva impunidade, a questão social está sendo tratada, ao mesmo passo, no campo da globalização, como questão de polícia, recobrando assim atualidade uma falsa frase atribuída com esse sentido ao Presidente Washington Luís, às vésperas da chamada Revolução de 1930, quando foi derrubado do Poder por um movimento armado de civis e milita­ res, encabeçados por Getúlio Vargas. Vinha assim abaixo a cognominada Pátria Velha ou Primeira República, que durou desde a queda do Império, em 1889, até aquele ano. Vargas é, indubitavelmente, um dos precursores do Estado social brasileiro e foi em seu govemo que o País constitucionalizou, com a Carta de 1934, a questão social. Os governos anteriores a Vargas reprimiram, durante a década de 20, os movimentos grevistas e as agitações sindicais e obreiras com a polícia nas mas. Para resolver a questão social, emergiu pois o Estado social. Poder-se-á dizer, todavia, que ele se acha agora em obsolescência? Sim e não, conforme a posição tomada em face da globalização. Os globalizadores respondem que sim com argumentos insustentáveis na ló­ gica do desenvolvimento, que é aquela do interesse dos países da periferia. Os adversários da globalização selvagem entendem porém que não, que o Es­ tado social é imperativo da consciência de justiça que elevou o desenvolvimento ao patamar de direito da terceira geração. E afígura-se-nos que eles têm toda a razão e se arrimam, para solucionar a questão social, na indeclinável necessidade do Estado, consoante o entendimento de Lorenz von Stein, exposto por Garcia Pelayo. Com efeito, diz o sociólogo alemão, segundo a versão do publicista espanhol: o Estado em determinadas ocasiões se coloca acima dos grupos sociais e, para ser leal a esta situação e cumprir sua missão de promotor da liberdade, há de ser um Estado dotado de dinamismo, autenticamente moderno, capaz de enfrentar o gran­ de problema de seu tempo - a questão social (v. Garcia Pelayo, “La Teoria de la Sociedad en Lorenz von Stein”, ob. cit., p. 54). Ora, essa questão está longe de ser resolvida nos países emergentes e só de má-fé o neoliberalismo e a globalização podem ignorá-la. E, à medida que a igno­ ram e obrigam os governos comprometidos com o Consenso de Washington a ig­ norá-la, mais a crise se agrava e o futuro de prosperidade se despede para sempre daqueles países. E isto acontece porque os neoliberais e os globalizadores enfraquecem ali o Estado, desmontando-lhe a máquina de ação e pondo freio ao seu dinamismo, en­ quanto fazem na sociedade empobrecida, desestabilizada, esmagada de tributos, a extorsão das receitas do Tesouro para o pagamento dos juros de uma dívida exter­ na, que, mais cedo ou mais tarde, acabará em moratória, por insolvência das finan­ ças públicas, vítimas não tanto da corrupção e da inépcia governativa, senão dos efeitos perversos gerados na economia pela ditadura estrangeira da globalização.

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a atravessar o século e o milênio sem pão, sem teto, sem escola, sem saúde e sem emprego. Somos, todavia, nação que esteve bem perto de alçar-se ao pata­ mar da civilização e do desenvolvimento. Seria catastrófico se, a esta altura da nossa tradição jurídica de lu­ tas constitucionais, culminadas em dois eventos simbólicos - a Confe­ deração do Equador, em 1824, e a Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932 - caíssemos para sempre nos braços de uma autocracia desnacionalizadora. Negar-se-ia também um passado social que prin­ cipiou com a Carta de 1934 e se ergueu às culminâncias com o texto magno de 1988. A Constituição governante, vinculante e programática não é ar­ caísmo do pensamento político, qual intentam fazer crer os neoliberais, mas diretriz e argumento de conservação do pálido Estado de Di­ reito que ainda resguarda, na medida do possível, a ordem e a liberda­ de nos Estados da periferia. Enquanto Carta prospectiva ela acena para o futuro e é, como não poderia deixar de ser, garantia formal, ou pelo menos promessa de construção de um Estado social livre, robusto, in­ dependente. Diante, porém, da ameaça de aniquilamento do que ainda resta de soberania a um governo irremediavelmente atado aos acordos sigilo­ sos do Fundo Monetário Internacional, faz-se mister restaurar, a todo custo, na consciência jurídica do Brasil, o dogma da Constituição vin­ culante, programática, prospectiva, futurista; a única, aliás, que se com­ padece com o destino e as aspirações desenvolvimentistas dos Estados do Segundo e Terceiro Mundos. Não é retórica de demagogos mas discurso de cidadania. E, ao mesmo passo, artigo de fé e de legitimidade constitucional. Com efeito, o Poder Executivo governa a Federação brasileira com mão de ferro, como se fora ele o centro de todo o poder, o eixo da soberania interna e externa, absorvendo competências legislativas e ter­ giversando no cumprimento de decisões judiciais. Atua com habitual menoscabo dos mandamentos constitucionais e exercita a autoridade movido de freqüente desprezo e transgressão dos direitos fundamentais. Configuram elementos e fatores da crise: a irresponsável abertura de mercados, praticamente sem limites; as privatizações desnacionalizadoras das grandes empresas estatais, feitas até mesmo com pesados e onerosos empréstimos, contraídos no exterior e destinados a financiar

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e subsidiar o comprador estrangeiro, em detrimento dos industriais bra­ sileiros injustamente preteridos; a política de juros elevados com o ob­ jetivo de sustentar o real, cuja queda, em janeiro de 1999, não houve como conjurar; a expansão brutal da dívida interna de 38 bilhões no govemo antecedente para 520 bilhões na presente gestão presidencial; a supressão dos programas sociais, desde muito ligados constitucional­ mente à erradicação da pobreza e da marginalização, bem como o fra­ casso na redução das desigualdades sociais e regionais, que já alcan­ çam níveis insuportáveis. Acusa-se ainda o govemo neoliberal de derruir, com inexorável determinação, as bases do antigo Estado social cuja decadência é ma­ nifesta. Enquanto a presente ditadura constitucional desestatiza, desconstitucionaliza e desnacionaliza o País, dois princípios constitucio­ nais se vêem por igual feridos de morte na batalha por uma governabi­ lidade legítima: a legalidade e a constitucionalidade; ambos prostrados por mais de quatro mil medidas provisórias que fazem do poder Exe­ cutivo no Brasil a mais gigantesca máquina legiferante da América La­ tina. Ultrapassa ele em edição daquelas medidas as três ditaduras que o País atravessou durante o século XX. Nem mesmo os militares, cujo poder absoluto se estendeu por vinte anos, abusaram tanto das medidas de exceção e foram tão atrozes em violentar com hipocrisia a Consti­ tuição e a lei. Se somarmos a produção legislativa dos períodos constitucionais desde 1934, verifica-se, com surpresa, que ela é inferior à do presente Govemo. O mais grave, porém, consumando a eventual catástrofe do regi­ me, será a promulgação pelo Congresso Nacional de cinco propostas de emenda à Constituição que por ali tramitam, as quais quebrantam a rigidez constitucional do poder de reforma, rompendo o dique contido nas exigências cautelares do § 2Udo art. 60 da Constituição. Também viria abaixo a intangibilidade das cláusulas pétreas de salvaguarda da fe­ deração e dos direitos individuais, expressa no § 42 do sobredito artigo. Afastadas essas garantias, eis as conseqüências: o poder constituin­ te secundário rebaixado a um grau de ineficácia sem paralelo, a insta­ bilidade e desprestígio da norma constitucional, a flexibilização da Lei Maior e a expansão ilimitada da preponderância do Executivo sobre o Legislativo. Em razão disso, as mencionadas propostas de emenda, ofensivas daquele parágrafo constitucional, não deveriam sequer ser objeto de deliberação, conforme estatui taxativamente a Lei Maior. E o foram já,

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no caso da Emenda n. 554, por obra de um conluio Executivo-Legislativo, que a subtraiu, como as demais, ao controle preventivo de consti­ tucionalidade exercitado pelos Presidentes das duas Casas do Congres­ so em suas respectivas esferas de fiscalização constitucional, como é praxe no Brasil.7 A voracidade reformista do Executivo em seu retrocesso neolibe­ ral e anti-social parece contudo haver abalado mais do que consolida­ do o ordenamento constitucional. Desde que o atual Governo se instalou no Poder, em 1995, teve, promulgadas por iniciativa sua, 29 Emendas Constitucionais, das quais a mais penosa e constrangedora, maculada de graves suspeitas de cor­ rupção e suborno, veio a ser precisamente aquela que estatuiu a reelei­ ção presidencial, atropelando toda a tradição republicana que sempre vedou a recondução dos Presidentes. Discursando no V Congresso de Estudos Jurídicos do Estado do Tocantins, em outubro de 1999, na cidade de Palmas, Capital daquele Estado, Reginaldo Oscar de Castro, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, uma das mais poderosas e influentes associações de juristas da América Latina, disse que ao longo do perío­ do de 1995 a 1998 - no espaço apenas de uma legislatura - o Congres­ so Nacional aprovou 642 leis, enquanto o Executivo reeditou 1.971 Medidas Provisórias, portanto um número três vezes maior que o de atos da legislação ordinária congressual. Outro dado estarrecedor, assinalado pelo Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, foi este: “Nos sete anos que vão de março de 1992 a igual mês deste ano, a Constituição Federal foi emendada em 28 ocasiões! A média de quatro por ano, uma a cada três meses”. Em recente polêmica do Presidente do Congresso Nacional com o Presidente do Supremo Tribunal Federal, este acusou o Poder Executi­ vo de querer a Constituição adaptada aos seus programas de Governo e não vice-versa, como é obviamente da essência e natureza de todo Estado de Direito. Isto configura, sem dúvida, uma das mais profundas causas da instabilidade que ora recrudesce nas bases do sistema e rapi­ damente erode, solapa e esfacela a legitimidade governativa. A Constituição de 1988 tem sido tão transgredida em seus doze anos de vigência que o grau de desrespeito se afere, como já assinalou 7. As Emendas, com seus respectivos autores, são as seguintes: Emendas ns. 554, do deputado Miro Teixeira; 580, do deputado Aécio Neves; 599, do deputado Antonio Kandir; 463, do deputado Inocêncio Oliveira e 50, do senador Pedro Simon.

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o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, por cerca de 2.000 ações diretas de inconstitucionalidade propostas perante a Suprema Corte Federal.8 O dado estatístico é o espelho onde transparece sem retoque, na cruel bruteza dos números e dos fatos, a imagem da crise constituinte. Uma crise que chega ao âmago do ordenamento e aí se enraíza; de últi­ mo, acha-se ela em plena erupção e efervescência.9 8. Indignado com as mazelas que lavram nas regiões do Poder, Reginaldo de Castro, Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, na oração já referida, le­ vantou o seguinte protesto: “Os que transgridem as leis e dispõem dos bens públi­ cos, como se fossem propriedade particular, alegam não terem cometido nenhuma ilegalidade ou não terem praticado atos que a lei proíbe (...). É revoltante a facili­ dade com que tudo se falsifica, tudo se frauda, a começar pelas alterações de medi­ das provisórias, aplicação de recursos públicos, mandados judiciais, concursos pú­ blicos, medicamentos, combustíveis, aposentadorias, diplomas, obras e concessões de toda natureza, ante a omissão dos Poderes do Estado”. 9. Tocante à distinção que estabelecemos entre crise constitucional e crise constituinte, como duas categorias conceituais autônomas, extraídas da crise das Constituições, já nos países do Primeiro Mundo, já nos da periferia, veja-se Paulo Bonavides, “Der brasilianische Sozialstaat und die Verfassungen von Weimar und Bonn”, in 40 Yahre Grundgesetz - Entstehung, Bewaehnmg und internationale Aussthralung, Herausgegeben von Prof. Dr. Klaus Stem, Verlag C. H. Beck, Muenchen, 1990, pp. 279 e ss. Sobre o tema também oferecemos uma explanação elucidativa, estampada em trabalhos antecedentes e vazada nos seguintes termos: “Em nosso Curso de Direito Constitucional, assinalamos: “A crise constituinte é a própria crise do poder constituinte, a crise de um regime, de um corpo institucional, de um sistema de governo, ao passo que a crise constitucional é tão-somente a crise de uma Constituição; por isso mesmo não afe­ ta a titularidade do poder constituinte de primeiro grau, e como se circunscreve ao arcabouço político e jurídico do ordenamento estabelecido, se resolve pela inter­ venção do poder limitado de reforma, contido juridicamente na Constituição. “Em suma, é a crise que não se propaga às instituições nem lhe abala os fun­ damentos. É também a espécie mais familiar à natureza política e institucional dos países desenvolvidos, aqueles que gozam de superior estabilidade em matéria de competência de poderes e exercício de direitos fundamentais. “Já os países subdesenvolvidos se acham, pela fragilidade de seus mecanis­ mos econômicos, mais sujeitos a se verem vítimas da crise constituinte, em virtude da inadequação do sistema político e da ordem jurídica ao atendimento de necessi­ dades básicas da ordem social, as quais permanecem insatisfeitas ou postergadas. “Recapitulando noções e conceitos já expendidos, podemos, enfim, abreviar nos termos que se seguem a distinção fundamental entre crise constitucional e crise constituinte. “A crise constitucional - temos reiteradamente asseverado - é a crise de uma Constituição, ou, de modo mais freqüente e preciso, de um determinado ponto da

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Mas a par da crise jurídica da Constituição, raiva outra não menos grave, afetando a Sociedade e o Govemo como um todo, pelo prisma econômico e social. Constituição. Se ela não abrange toda a Constituição, basta para removê-la utilizar o meio de reforma ou revisão; um recurso ou remédio jurídico que a Constituição mesma oferece, contido no chamado poder de reforma constitucional. Se a crise porém se manifesta mais ampla e profunda, ou tem dimensão que excede o habitual, é de todo o ponto conveniente ter recurso ao poder constituinte de primeiro grau: faz-se uma nova Constituição para recompor as bases da legitimidade e auferir um govemo estável. “Mas a crise só se resolve caso as dificuldades sejam efetivamente removi­ das. Essa possibilidade de remoção por meios jurídicos normais previstos na Cons­ tituição, ou por meios excepcionais, como a elaboração de um novo texto básico, é aquilo que faz os limites conceituais da crise constitucional. Não padece dúvida que se trata de crise que às vezes açoita os países e as sociedades com elevado grau de cultura e maturidade política, ou seja, aqueles cujos problemas políticos não exigem, nem impõem, a substituição do regime. A crise raiva neles com menos ímpeto; por isso não afeta as estruturas do poder nem abala os alicerces do Estado e da Sociedade. “Com relação á crise constituinte, esta, ao contrário da crise constitucional, costuma ferir mortalmente as instituições, compelindo à cirurgia dos tecidos sociais ou fazendo até mesmo inevitável a revolução. Entende não raro com a necessidade de substituir a forma de Govemo ou a forma de Estado, pois, em nome da legitimi­ dade, há sempre aí um poder ou uma organização social contestada desde os seus fundamentos. “A crise constituinte não é, por conseguinte, crise de uma Constituição, se­ não crise do próprio poder constituinte; um poder que quando reforma ou elabora a Constituição se mostra, nesse ato, de todo impotente para extirpar a raiz dos males políticos e sociais que afligem o Estado, o regime, as instituições e a Sociedade mesma no seu conjunto. “A crise constituinte sendo, portanto, um processo, não se exaure nem na ou­ torga nem na promulgação de uma Constituição. Ela de todo se manifesta pelo an­ tagonismo da nova Constituição com as realidades sociais mais profundas. E ocor­ re naturalmente quando as instituições políticas recém-criadas por obra do braço soberano não alicerçam um poder legítimo, fazendo, ao contrário, perdurar em toda a sociedade o dissenso sobre o consenso. Nesse caso a instabilidade prossegue e a Constituição, desprovida de um substrato básico de aprovação e reconhecimento popular, perde a eficácia, a juridicidade, a nonnatividade. “Para resolver uma crise constitucional basta reformar a Constituição; quan­ do muito promulgar outra Constituição. A crise constituinte, ao revés, representa a enfermidade do próprio corpo social. Por isso raramente pode ser debelada. “As crises meramente constitucionais se resolvem, em geral, mediante pronta intervenção do poder constituinte de segundo grau ou poder constituinte derivado, que jaz na própria Constituição, ou, em determinados sistemas e formas de organi­ zação política, pela ação jurisprudencial das Cortes Constitucionais, por seus arestos, que dirimem conflitos ao redor da Lei Maior, ocasionalmente verificados.

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Com efeito, as forças sociais, designadamente as da classe média e do estamento obreiro, são, a esta altura, as mais sublevadas e incon­ formadas com o desemprego, o arrocho salarial, a política recessiva, as medidas vexatórias de teor anti-social impostas pelo Govemo por obra das pressões do FMI, os cortes drásticos no orçamento e as ameaças iminentes da volta da inflação e da indexação, bem como o desvio de verbas aplicáveis ao desenvolvimento para pagar juros da dívida exter­ na. E esse, pois, o semblante da crise que traspassa o Estado social bra­ sileiro; crise provocada, deflagrada e agravada por um dos Poderes constitucionais da República. E ele que coloca em risco a segurança das instituições e compromete a continuidade do Estado de Direito. Abraçado com a doutrina liberal do Consenso de Washington e com a globalização, o Poder Executivo, conforme já assinalamos, desnacionalizou a maior parte da economia brasileira e entregou ao controle dire­ to ou indireto de capitais estrangeiros o parque industrial do País. Sem jurisdição sobre a crise que se alastra e impotente para removê-la, ele se obstina, todavia, em seguir os dogmas neoliberais de rea­ ção ao Estado social, desmantelando a máquina do poder, afastando o Estado da sociedade e percorrendo vias de abstenção, insulamento e não-intervenção que podem guiar o País ao caos. Dobra-se, assim, no livro das formas de govemo a página da Cons­ tituição onde o Brasil escreveu seu modelo de Estado social, que ora sucumbe ao ultimato dos globalizadores. Tais fatos, objeto de cogitação, proporcionam a evidência de que o neoliberalismo, como já se disse, afetou menos a Europa que os Paí“Tais crises, posto que raras, fazem parte normal da existência do ordenamen­ to, são superficiais e nunca o questionam desde as bases. Nos países de vida consti­ tucional estável - quase sempre os da sociedade pós-industrial - o figurino jurídico da Constituição talha efetivamente as instituições, e sobre elas tem eficácia, como esfera ordinária onde a normatividade faz transparecer o fluxo regular de compe­ tências e direitos que se exercitam sem comoções profundas para a ordem estabe­ lecida. “De modo inteiramente distinto - tomamos a assinalar - apresenta-se o qua­ dro relativo aos países subdesenvolvidos. Seria de todo inútil pedir aqui às catego­ rias jurídicas do Direito Constitucional clássico uma resposta, solução ou até mes­ mo explicação para os vastos e atormentadores problemas que fazem sobremodo instáveis as estruturas do poder. Se delas nos ocupamos, fácil é observar quanto se apartam da realidade rebelde e por vezes indomável. Configuram a cada passo a crise constituinte, devastadora de textos, emendas e fórmulas que a retórica e a imaginação da classe política fazem brotar”. (Paulo Bonavides, Do Pais Constitucio­ nal ao País Neocolonial, Malheiros Editores, São Paulo, 2a ed., 2001, pp. 158 a 160).

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ses do Terceiro Mundo, impondo-lhes um sacrifício social sem prece­ dentes. As reformas econômicas e políticas neoliberais introduzidas com o aval do FMI foram um retumbante fracasso nos Países da periferia. O mercado financeiro internacional levou a cabo, ali, incursões e fugas do capital especulativo que arruinaram a economia, a moeda e o regime. No Brasil essa crise estalou depois em todas as camadas da socie­ dade, sendo a pior crise constituinte já vista num país em desenvolvi­ mento. E, conjugadamente, crise de governo, crise da justiça, do legis­ lativo, da Constituição, da cidadania, da moral administrativa e da or­ dem econômica e social. Abalou na ordem jurídica, consoante já asse­ veramos, as duas colunas do poder legítimo: a legalidade e a constitu­ cionalidade. Quem lê, em suma, a obra doutíssima e atualíssima de Garcia Pe­ layo neste fim de século, e o faz deste lado do Atlântico, vislumbra em suas páginas constitucionais a importância da mensagem política e da profissão de fé que ele dirige ao Estado da justiça material. Percebe, do mesmo passo, fortalecido nos seus argumentos de igualdade, que o Estado social dos chamados países emergentes não é de todo incompatível com a globalização. Mas para tanto precisaria de ser uma globalização afeiçoada à democracia, à democracia direito da quarta geração, sobre a qual temos reiteradamente insistido.10 A globalização que se deve rejeitar é, portanto, a dos fortes sobre os fracos, dos egoístas e opressores sobre os humildes e excluídos, dos especuladores do capital sobre as vítimas do subdesenvolvimento; glo­ balização que não faz progredir nem a liberdade nem a justiça dos po­ 10. Assim como no organismo humano há o bom e o mau colesterol, também na sociedade dos seres racionais, que se está tomando uma sociedade global, há a boa e a má globalização. Da boa globalização ninguém faz menção nem demonstra interesse por con­ cretizá-la, ao passo que a má se propaga com extrema rapidez e faz estragos consi­ deráveis nos países da periferia. Com efeito, da má globalização já nos ocupamos, minudentemente, noutros escritos, vinculando-a, sempre, por seu ângulo político, ao neoliberalismo, e por seu prisma econômico, ao tráfego dos capitais voláteis que o sistema financeiro internacional faz circular pelas bolsas de valores numa busca especulativa do lucro fácil, mediante intervenções atrozes que podem subitamente desvalorizar moedas, arruinar mercados e destruir, não raro, economias prósperas de países em desen­ volvimento.

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vos e, embargando os direitos da terceira geração, congela no esqueci­ mento e na penumbra o direito das nações a se desenvolverem. Jungido à justiça, à liberdade e à alforria dos povos, o Estado so­ cial está vivo: perdura no clamor e no inconformismo da miséria uni­ versalizada. Já não se ouve aqui o pranto dos escravos acorrentados no porão dos navios negreiros, mas a música dos povos que querem ser redimi­ dos ao som do hino da revolução, que é o hino da solidariedade. E nessa plataforma de esperança que o povo brasileiro, açoitado das intempéries do neoliberalismo e das agressões globalizantes, se abraça com os retalhos de sua Constituição e protesta contra o golpe de Estado institucional. O golpe de Estado institucional é vibrado silenciosa e imperceptivelmente, semelhante àquele que acabou com a República de Weimar na Alemanha. Faz-se por vias aparentemente legais com ascensão ao poder de uma camada governante determinada a alterar, sem respeito a limites constitucionais e por meios sub-reptícios, a natureza e substân­ cia do sistema. De tal sorte que não é a forma de governo mas as instituições mes­ mas que são alteradas ou removidas sem a consciência e a reação orga­ nizada da Sociedade. Esta, passiva e omissa, só tardiamente vem a perceber, com surpresa e perplexidade, o tamanho da usurpação institu­ cional e a extensão irremediável da perda e substituição de poder e va­ lores no seio do ordenamento jurídico arruinado. As reflexões sobre o constitucionalismo dos países em desenvol­ vimento conduzem, portanto, à formulação de conceitos novos acerca dos fenômenos políticos e sociais que lá transcorrem, com intensidade e turbulência absolutamente inéditas e sem paralelo entre as nações do Primeiro Mundo. Tais fenômenos podem ser vistos ou encarados à luz de uma teo­ ria das crises, em que despontam figuras conceituais desconhecidas, como a crise constituinte, de todo distinta da crise constitucional e da qual já nos ocupamos em vários escritos antecedentes, ou como o gol­ pe de Estado institucional, que de modo algum se assemelha ao golpe de Estado governamental. O golpe de Estado governamental é velho conhecido nosso, por­ quanto pôs termo a várias épocas constitucionais da história imperial e republicana, desde a Independência, sendo também familiaríssimo a outros países e pequenas repúblicas da América Latina, onde tem gera­

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do a instabilidade e transitoriedade de governos e partidos, que se al­ ternam no poder com extrema freqüência, compondo um quadro de tris­ tes expectativas para o futuro da democracia. Via de regra, aquele golpe destitui governos civis, eleitos consti­ tucionalmente, e os substitui por ditaduras cuja vocação é a permanên­ cia indefinida no poder, que exercitam à sombra do arbítrio e das ruí­ nas da Constituição. E também há funcionado como instrumento de su­ cessão de ditadores e ditaduras no Terceiro Mundo; raramente porém é vibrado para restaurar uma ordem constitucional demolida. Deita raízes antigas na história política dos povos, mas a caracte­ rização, a investigação científica e a consciência desse golpe, no que ele tem de invariavelmente mais reprovável, se fizeram deveras acen­ tuadas e palpáveis no Estado moderno, com a decadência e a queda das monarquias absolutas, sobretudo com o advento das repúblicas pre­ sidencialistas. Nestas, a frágil legitimidade do sistema fomenta não raro a introdução de governos de exceção, fazendo assim do golpe de Esta­ do a alternativa ordinária para as crises constitucionais quando o poder de emenda ou reforma falha em removê-las ou atalhá-las. Tais golpes têm sido o flagelo que determina a queda freqüente de governos populares, constitucionais e formalmente representativos. Com efeito, debaixo do pretexto de combater o caos político, pre­ venir a desorganização social, atalhar a invasão ideológica nos quadros do regime, restaurar o princípio da autoridade, promover a segurança e recobrar a governabilidade, esses golpes, sempre epidérmicos e super­ ficiais, mudam pessoas, mas não mudam instituições e, o pior, insta­ lam ditaduras e perpetuam em quase todas as esferas de govemo a cor­ rupção, o privilégio, a privação da liberdade, o quebrantamento dos di­ reitos fundamentais e a autocracia da classe dominante com as suas injustiças, ódios, ambições e egoísmos. A segunda modalidade de golpe de Estado - ao nosso ver a mais grave e letal - consiste no golpe de Estado institucional, que, sobre ser o mais recente, é aquele de identificação mais difícil de averiguar. Em curso ou às vésperas de consumar-se no Brasil, esse golpe já apresenta traços que consentem trasladá-lo da práxis, onde se perpetra, para o reino da teoria, onde deve entrar, a fim de que, competentemen­ te definido e reconhecido, dele se resguardem as nações, porquanto é mais insidioso e fatídico aos destinos dos países em desenvolvimento que o golpe de Estado governamental. Se este desmorona governos e é executado, não raro, com elementos de instantaneidade e surpresa, e

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habitualmente triunfa ou malogra no espaço de um só dia, já aquele - o golpe institucional - é levado a cabo com lentidão, durante meses e até anos, sem que a Nação, a sociedade e a opinião pública, nele submer­ sos, percebam-lhe o alcance e se capacitem da gravidade do que está acontecendo. O golpe de Estado institucional na substância é o golpe da crise constituinte, golpe, como já assinalamos mais de uma vez, es­ corado na legalidade formal de um poder que se desatou de seus vín­ culos materiais com a Constituição, e, sem abjurá-la ou esconjurá-la, perversamente a ignora, a desconsidera e a infringe. Destroça também a harmonia e a independência dos poderes e se abraça com uma políti­ ca externa e interna que fere os fundamentos da República, deixando esta sem força para combatê-lo, ao mesmo tempo que lhe atraiçoa os objetivos fundamentais. Quem criou no Brasil o clima para o golpe de Estado institucional foi a globalização. Quem o desferiu foi o neolibe­ ralismo. Ainda com respeito ao golpe de Estado institucional desenha­ mos em nosso livro Do País Constitucional ao País Neocolonial este ligeiro retrato ou perfil: “Em nome da fé na globalização propõe-se um capitalismo de úl­ tima geração, que, ao mesmo passo, desfere, em silêncio, o que deno­ minamos golpe de Estado institucional. Golpe muito mais devastador e funesto que aquele do modelo clássico e tradicional; sem tanques nas ruas, sem interdição dos veículos de opinião, sem fechamento das Ca­ sas do Congresso, mas que se serve justamente desses meios para coa­ gir a Nação, anestesiar a sociedade, paralisar-lhe os nervos, calar a rea­ ção popular e sufocar a consciência do País. “O golpe de Estado institucional, ao contrário do golpe de Estado governamental, não remove governos mas regimes, não entende com pessoas mas com valores, não busca direitos mas privilégios, não inva­ de poderes mas os domina por cooptação de seus titulares; tudo obra em discreto silêncio, na clandestinidade, e não ousa vir a público de­ clarar suas intenções, que vão fluindo de medidas provisórias, privati­ zações, variações de política cambial, arrocho de salários, opressão tri­ butária, favorecimento escandaloso da casta de banqueiros, desempre­ go, domínio da mídia, desmoralização social da classe média, minada desde as bases, submissão passiva a organismos internacionais, des­ mantelamento de sindicatos, perseguição de servidores públicos, reces­ são, seguindo assim à risca receita prescrita pelo neoliberalismo globalizador, até a perda total da identidade nacional e a redução do país ao status de colônia, numa marcha sem retomo. “Com o sobredito golpe, liberais e globalizadores se apoderam em definitivo não apenas do govemo mas das instituições, regidos por um

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pensamento que contradiz a conservação das bases sobre as quais re­ pousa a teoria do Estado nacional soberano, refratária, por natureza e essência, aos cânones da globalização. “Donos do regime, das instituições, da Constituição, da sobera­ nia, do Estado e do govemo, graças ao golpe de Estado institucional, os autores desse golpe se tomam também os senhores absolutos dos destinos do País. “O golpe de Estado institucional é o golpe dos chamados ditado­ res constitucionais; é também o golpe que Hitler aplicou na Alemanha contra a Constituição de Weimar, depois de galgar o poder pela via da legalidade e editar as leis de exceção de janeiro e março de 1933; é, por igual, o golpe de Estado que o presidente reeleito começou a des­ ferir desde que exarou centenas de medidas provisórias e reeditou cer­ ca de 60, no mais flagrante desrespeito à Constituição e à soberania legislativa do Congresso, e que prosseguiu ao assinar os acordos do FMI, ao fazer a política das privatizações desnacionalizadoras, ao cum­ prir com extremo servilismo os ditames do Consenso de Washington, ao estimular com seu apoio as cinco propostas de Emenda à Lei Maior que tramitam no Congresso Nacional, as quais, se promulgadas, neu­ tralizariam ou anulariam por obsolescência o § 2a do art. 60 da Consti­ tuição, onde tem sua sede o princípio tutelar da rigidez constitucional, único com força bastante para impedir venha a nossa Carta a se trans­ formar numa enorme Medida Provisória suscetível de reduzir a cinzas as garantias do art. 5“ do Estatuto Fundamental.

(...) “Com o golpe de Estado institucional as instituições não mudam de nome, mudam sim de teor, substância e essência. De sorte que uma vez levado a cabo, a conseqüência fatal, no caso específico do Brasil, é a conversão do País constitucional em País neocolonial. E também a perda da soberania, a desnacionalização, a desconstitucionalização, o afrouxamento dos laços de unidade, o excesso de arbítrio concentrado na esfera executiva, a quebra do pacto federativo, a desarmonia e a guerra civil dos Poderes, a decadência e corrupção da autoridade, o desrespeito à Justiça, a impunidade, a violência aos direitos fundamen­ tais, a desagregação da consciência coletiva, os fermentos da insurrei­ ção social, o risco da desobediência civil, a legislação das medidas pro­ visórias, a erosão e desprezo dos princípios constitucionais, o alastra­ mento da insegurança, do medo, da incerteza nas garantias da ordem jurídica, a descrença generalizada no papel das forças armadas, postas

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debaixo da ameaça de se converterem, por obra das pressões externas do neoliberalismo internacional, em gendarmaria de fronteiras ou em milícia policial de repressão ao contrabando de drogas, o embrutecimento das camadas sociais mais baixas pela fome, miséria e desnutri­ ção, o analfabetismo, a falência da saúde pública e a propagação das epidemias como se a nação houvesse retrogradado à Idade Média, a desfiguração da classe média perseguida e esmagada e sem oxigênio para respirar a liberdade e organizar a resistência, o deliberado empe­ nho de agravar as desigualdades regionais e sociais no Brasil da enxa­ da e dos coronéis, enfim, o desfibramento daquela gente que ontem foi povo e hoje é tão-somente triste e vegetativa multidão de servos sub­ missos e vassalos genuflexos que o globalizador arrogante e sem es­ crúpulos esmagou com o braço de ferro do poder neoliberal.” Em suma, o golpe de Estado governamental conduz à ditadura e destroça uma Constituição; o golpe de Estado institucional vai muito mais longe e conduz à recolonização um regime. E o golpe de Estado dos globalizadores e neoliberais, em fase de execução no Brasil, repú­ blica ultimamente de economia enfraquecida e desnacionalizada, onde aquele golpe está em vésperas de consumar-se, de modo provavelmen­ te irremissível e sem retomo. A Constituição de 1988, em seus artigos l 2 e 32, deixou de ser ultimamente a Carta Magna dos brasileiros para se converter em mero farrapo de papel da elite governante, cujo desprezo pelas normas su­ premas da ordem estabelecida é patente. Os fundamentos e objetivos fundamentais da República Federati­ va do Brasil são, de último, um texto de poesia constitucional. Não são normas, não são princípios, não são proposições jurídicas. A Consti­ tuição dos globalizadores já não significa a ata do contrato social, mas o estatuto da servidão, o pacto da dependência, o certificado político de um subconstitucionalismo de inspiração ditatória com baixo ou ne­ nhum teor de legitimidade. Não se trata, portanto, nem de aliança nem de contrato, mas sim­ plesmente de uma invisível e disfarçada anexação política, econômica e social dos Estados da periferia aos Estados da globalização. O percurso inverso do Brasil contemporâneo na linha do grande retrocesso é este: primeiro, vai do Estado social ao Estado neoliberal, a seguir, do Estado neoliberal ao Estado neocolonial. E deste que nos acercamos com toda a velocidade. E a ele chegaremos, na substância e na essência, ao termo deste século e milênio, se não atalharmos a poli-

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tica de sujeição externa da linha globalizadora e neoliberal, que vai ter por desfecho a recolonização." É, por conseguinte, dentro desse contexto que tem prevalência no campo teórico o ideário da liberdade presente à alma, à vida e à obra de Garcia Pelayo. O insigne constitucionalista do Estado social, o pa­ triota da democracia e da Constituição, aquele que a ditadura expatriou mas não pôde sufocar-lhe os anseios de justiça, deixa em seus livros uma tábua democrática de valores que servem de inspiração às nações em desenvolvimento para prosseguirem as batalhas sociais do progres­ so e da igualdade, sem as quais a Constituição dos direitos fundamen­ tais não aufere eficácia normativa nem cumpre sua função legitimante na organização política da Sociedade, onde é a pedra angular de todo Estado de Direito. As letras jurídicas ibero-americanas, cultuando, pois, a memória de Garcia Pelayo, fazem significativa e merecida homenagem de grati11. A globalização capitalista, folgadamente instalada, já não teme a revolu­ ção. A ausência desse temor faz com que ela menospreze também a reforma, a sa­ ber, aquela refonna social, outrora preventiva, das revoluções, e pela qual os globalizadores, hoje, manifestam olímpico e soberano desprezo. Em razão disso, a tragédia, o desengano, o desespero da miséria absoluta var­ rem os Estados do Terceiro Mundo, onde, por obra do desamparo, tudo é passado e onde presente e futuro se diluem na incerteza, na descrença e no pessimismo de lograr uma solução desenvolvimentista que concretize o mais importante direito da terceira geração: o direito ao desenvolvimento. Mas como ninguém é profeta com a pretensão, portanto, de antecipar ou es­ crever a história do futuro e decretar extintas as revoluções, qual fazem os globalizadores, quando se sabe que as causas dos grandes terramotos políticos e sociais não foram de todo eliminadas, o mais sensato é admitir a eventualidade de surpre­ sas e, a partir dessa nova tomada de consciência, humanizar a globalização, tiran­ do-a do presente estado de natureza (status naturalis) e colocando-a no estado de humanidade, em cuja direção ela há de caminhar, se seus promotores quiserem ob­ viamente outorgar-lhe legitimidade e, subindo de patamar e qualidade, fazê-la irmã gêmea de uma democracia também globalizada. Com efeito, o futuro da globalização em termos políticos reside na adoção de um conceito de democracia de alcance universal e, por conseguinte, de máxima abrangência, que seja na substância mais jurídico do que político, suscetível pois de convertê-la, em benefício de todos os povos, num direito fundamental de quarta geração, tendo por titular o gênero humano. Indaga-se ainda qual a essência dessa democracia. Ao nosso ver, mais que uma forma de Estado ou uma idéia participativa, nós devemos contemplá-la como um direito natural da razão humana, um valor da liberdade irmanado à igualdade, uma norma fundamental de todos os ordenamentos sociais, um superlativo da legi­ timidade e da boa e fraterna convivência dos seres humanos. Se assim o fizermos, um dia a humanidade se redimirá.

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dão ao grave pensador e excelente jurista pelo transcurso dos 50 anos da publicação do seu monumental e clássico Direito Constitucional Comparado. Este livro educou gerações de jovens juristas e constitucio­ nalistas, assim nos países de fala espanhola como portuguesa. Foi o ABC da democracia constitucional na formação desses jovens. Livro, enfim, onde os estudiosos do Direito latino-americanos, os constitucionalistas sobretudo, encontram, sempre, inspiração normati­ va com que manter inabdicável seu compromisso com o constituciona­ lismo programático, de libertação, de valores e de princípios. Seriam eles politicamente juristas de uma sociedade morta, sem povo, sem Constituição, sem cidadania, se acaso não buscassem as lu­ zes doutrinárias do Estado social. A leitura constitucional do neoliberalismo e da globalização na América Latina, destacadamente no Brasil, aponta para um País de ex­ trema desigualdade social, iníqua concentração de renda e falência da lei, da justiça e da administração; País onde a lei é injusta, a justiça denegada, a administração inepta; País onde o mau govemo e a péssima classe dominante corrompem o poder, oprimem a sociedade e ameaçam transformar o cidadão em servo da gleba e o povo em multidão. Mas se Povo e Sociedade reagirem, a noite terá fim. A Nação ama­ nhecerá. E com liberdade, democracia e Estado social, concretizando, assim, valores que foram o sonho das gerações passadas, mas que a truculência dos golpes de Estado e o pesadelo das ditaduras dissipa­ ram, sobretudo o pesadelo das “ditaduras constitucionais”, as mais di­ fíceis de combater e expulsar do poder. 2. Estado social e democracia participativa são dois conceitos afins que nos resta examinar, duas categorias valorativas em estado de mú­ tuo entrelaçamento, sem as quais não é possível às nações do Terceiro Mundo saírem economicamente do atraso e do subdesenvolvimento e politicamente da instabilidade e das ditaduras. Em verdade, as ditadu­ ras ali se disfarçam na tinta e no papel das Constituições formais, es­ critas e impressas, onde o Estado social e a democracia, rodeados dos bloqueios da classe dominante, se acham grandemente privados de efi­ cácia e concretude. O Estado social dos países em desenvolvimento é a forma de or­ ganização política mais hostilizada e perseguida pela economia da glo­ balização e pela ideologia do neoliberalismo, padecendo bloqueios extemos e internos que podem determinar, em futuro não remoto, a perda da soberania e da autodeterminação de seus destinos.

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A queda do Estado social no Terceiro Mundo é, por igual, a queda da democracia participativa, a renúncia e abdicação dos programas da Constituição dirigente, a impossibilidade de transpor a crise que ora o flagela, enfim, o crepúsculo de um Estado no qual se haviam colocado todas as metas de positivação dos direitos fundamentais da segunda, da terceira e da quarta dimensões, a saber, os direitos sociais, o direito ao desenvolvimento e, de último, na escala mais avançada e prospectiva, o direito à democracia. Afora a recolonização, nos moldes como esta se processa ultima­ mente, debaixo do pálio de uma internacionalização em que se dissi­ mulam as formas opressivas da dependência, que alternativas ou cami­ nhos oferece o Primeiro Mundo às vítimas da globalização e do neoliberalismo? Não sabemos. De último, em repúblicas como o Brasil, as estruturas inacabadas do Estado social e da democracia participativa correm o risco - ao nos­ so ver, iminente - de caírem em ruínas e escombros. A soberania, a Constituição, o arcabouço econômico e político do Estado social, tão bem descrito, definido e traçado em seus fundamentos por Garcia Pe­ layo, ou já se converteram ou estão prestes a converter-se, por enquan­ to, em quimeras e sonhos desfeitos, visto que não entram na pauta das preferências e dos interesses imediatos dos neoliberais e globalizado­ res do regime. Mas a construção doutrinária do Estado social e da democracia participativa não arrefece naquelas repúblicas. Desde o Congresso dos Advogados Brasileiros, em Foz do Igua­ çu, em 1993, onde a nova tese foi lançada, professores de ciência polí­ tica e ciência constitucional já postulam, com suas fórmulas teóricas em sede objetiva, o advento dos direitos de quarta dimensão. O primei­ ro e mais importante dentre eles é, em meu parecer, o direito à demo­ cracia, visto pela dimensão universalizadora com que ali o teorizamos, atribuindo-lhe a respectiva titularidade ao gênero humano. Transcende-se, assim, a natureza legitimante do indivíduo, do gru­ po ou da coletividade nacional - o povo - e se chega a outro ser, exis­ tencial e concreto, personificado na humanidade. O novo direito natural do gênero humano é, portanto, a democra­ cia, fadada a se tomar o direito positivo da legítima globalização polí­ tica do porvir. Mas, ao presente, o que se nos depara em cada país subdesenvol­ vido é o descompasso, a desproporção, o fosso entre a idéia e a reali­ dade com respeito ao Estado social e à democracia.

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No Brasil, a democracia do Estado social, como forma participati­ va quase naufragada, ainda é direito da primeira geração ou forma de govemo em estado rudimentar, rodeada de escolhos, transgressões e bloqueios. Acha-se, por conseguinte, muito distante de lograr, na contextura social, a concreção das expectativas políticas e jurídicas do regime es­ tampado no texto da Constituição. A democracia nasceu com a participação dos governados no exer­ cício do poder público, associada à categoria tradicional e clássica dos chamados direitos fundamentais da primeira geração. Percorreu, a se­ guir, o caminho da subjetividade, concretizando-se em esferas indivi­ dualistas como direito de dimensão subjetiva, onde permanece, tendo por titular ou sujeito o indivíduo, a saber, o cidadão, o ente político. Todavia a democracia participativa que se incorpora ao Estado so­ cial tende a adquirir nas Constituições do Estado de Direito uma di­ mensão principiai e a trasladar-se da esfera programática, onde era idéia, para a esfera da positividade onde, por ser princípio, é norma de normas. Do ponto de vista qualitativo, ao assumir, pois, a dimensão objeti­ va e ao mesmo passo superlativa, de valor social e humano, a democra­ cia, enquanto direito fundamental da quarta geração, varia de titulari­ dade axiológica e se transporta do cidadão para o gênero humano. A politização da espécie assim personificada faz do homem o eixo e a referência de toda a dignidade participativa que cimenta as bases do novo Estado social, com a democracia convertida, doravante, em instrumento de libertação. Mas instrumento que se deseja palpável, efetivo, concreto e não abstrato; a um tempo ação e palavra, verdade e dogma, valor e fato, teoria e práxis, idéia e realidade, razão e concreção. Temos, pois, a intuição de que, se vivo fora, este seria o Estado social de Garcia Pelayo, o constitucionalista que tanta simpatia nutriu pelos povos da América Latina e a quem rendemos a homenagem des­ tas linhas, e de um pensamento volvido sempre para os valores de igualdade e de justiça social.

Capítulo 8 A EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL DO BRASIL raçando a evolução constitucional do Brasil devemos concentrar todo o interesse indagativo e toda diligência elucidativa numa se­ qüência de peculiaridades, de ordem histórica e doutrinária, que acom­ panharam e caracterizaram o perfil das instituições examinadas, desig­ nadamente com respeito à concretização formal e material da estrutura de poder e da tábua de direitos cujo conjunto faz a ordenação normati­ va básica de um Estado de poderes limitados.

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De tal sorte que a reflexão há de ocorrer ao redor de temas chaves como poder constituinte e Constituição, separação de poderes, organi­ zação unitária e organização federativa do Estado e direitos do homem, cuja universalidade e fundamentalidade, por exprimir parte essencial de todo pensamento político concretizado em termos constitucionais, não pode deixar de ser assinalado com todo o destaque devido. O Brasil desta análise histórica corresponde assim a um modelo de país constitucional que até aos nossos dias se busca construir, numa longa travessia de obstáculos. As antigas colônias hispânicas recém-emancipadas ou em proces­ so de emancipação, ao contrário, rompiam com o passado europeu, ou seja, com o velho mundo, deixando de consagrar assim as instituições da liberdade derivadas do mundo inglês ou francês para recolherem e adotarem a grande sugestão republicana, federativa e presidencial de Filadélfia, que seus constituintes lhes sopravam; mas fracassaram por inteiro criando repúblicas fragmentadas, federações desfeitas e go­ vernos presidenciais dissolvidos em ditaduras de opressão e caudilhismo.

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Só com o advento da república cerca de setenta anos depois é que o Brasil mudava o norte de sua navegação política e aportava no mes­ mo modelo malogrado das repúblicas vizinhas. A primeira época constitucional do Brasil, já nos seus primórdios, já na sua trajetória ao longo do Primeiro Reinado, guarda estreitos vín­ culos com Portugal, redundando numa singular comunhão de textos constitucionais, produto da mesma outorga imperial nos dois países; no Brasil a Constituição de 1824, em Portugal a Carta de 1826, cópia daquela que D. Pedro nos concedera e que ele fez chegar à Regência de Lisboa pelas mãos do embaixador inglês. Foi, diga-se de passagem, um texto, em matéria de limitação de poderes, relativamente bem sucedido, tanto lá como aqui, não obstante o seu baixo grau teórico de legitimidade e suas discrepâncias com a inteireza democrática e representativa do século revolucionário que proclamara os direitos do homem e sagrara a inviolabilidade constitu­ cional da separação de poderes. A linha originalíssima das nossas nascentes constitucionais se enraíza em fatos históricos que, de início, acompanham os dois povos, decidem-lhe o destino e fazem depois ambos perseverarem na busca de um denominador comum das aspirações nacionais que é o Estado de Direito em toda a sua amplitude e solidez; um objetivo no caso bra­ sileiro ainda por alcançar, decorridos já cerca de duzentos anos de malogros institucionais, por obra de uma crise constituinte, instaurada ao começo da nacionalidade e recorrente em distintas ocasiões históricas, fazendo assim instável a base do regime político e jurídico, à míngua de elementos valorativos e espirituais suscetíveis de consolidar a or­ dem normativa da Constituição. O período de 1808, ano da trasladação da Corte portuguesa ao Brasil, até 1824, data da outorga da Carta do Império, insere episódios constitucionais de suma importância tanto em Portugal como no Bra­ sil. Em ambos, a idéia de Constituição e poder constituinte traz o sopro e a vibração das comoções revolucionárias do século XVIII. Faz parte efetiva daquele momento de crise existencial que os dois países atra­ vessavam: um porfiando por sobreviver, o outro por emergir como povo e nação. Portugal e Brasil eram ao mesmo passo duas contradições da His­ tória. Com efeito, os princípios de liberdade circulavam nos dois paí­ ses, mas o quadro político em ambos se apresentava singularmente con­ fuso e contraditório conforme veremos.

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Em Portugal a invasão e a ocupação pelo exército de Junot feriam o brio nacional, eram impopulares e provocavam reação armada, mas nem por isso a causa francesa, cifrada nos axiomas da Revolução, dei­ xava de receber a simpatia e apoio de uma vanguarda liberal que co­ mungava com princípios e idéias de renovação institucional. Desse grupo partiu em 23 de maio de 1808 a “Súplica” de Consti­ tuição a Napoleão Bonaparte; o primeiro documento de aspiração cons­ titucional de língua portuguesa ou, como refere Canotilho, o primeiro “texto sistematizado em jeito de proposta de uma Constituição para Portugal” (J. J. Gomes Canotilho, “As Constituições” in História de Portugal, v. V, Direção de José Mattoso, p. 149). Diz o insigne constitucionalista de Coimbra que os “suplicantes” não impetravam propriamente a convocação de um poder constituinte da nação senão que se contentavam com uma simples “outorga”, uma “carta doada”, algo à semelhança da Constituição outorgada por Napo­ leão ao Grão-Ducado de Varsóvia, enfim, um apelo à introdução de formas representativas e princípios de igualdade civil e fiscal, bem como do axioma da igualdade de todos perante a lei no corpo e na es­ trutura do Estado. A “Súplica” queria também uma sociedade com liberdade de im­ prensa, liberdade de cultos e fomento da instrução pública. Foi a pri­ meira semente do constitucionalismo português, antecipando a ação das correntes do pensamento liberal que desembocaram na conspira­ ção de Gomes Freire em 1817, na Revolução do Porto de 1820 e final­ mente na Constituição de 1822, obra das Cortes de Lisboa, as quais tiveram, ao princípio, a presença e a colaboração dos deputados brasi­ leiros, cuja dissidência abriu depois caminho à ruptura definitiva dos laços que podiam ainda conduzir a uma projetada união política do Bra­ sil com Portugal. As Cortes procederam porém de forma hostil aos interesses da nossa emancipação, seguindo política reacionária e desastrosa que le­ vantava a suspeita de estar em curso de execução um plano de recaída nossa no Estado colonial. Se as raízes do constitucionalismo português estavam na “Súpli­ ca” a Bonaparte, as nossas se entranhavam no solo da Revolução Per­ nambucana de 1817, de marcante inspiração republicana. Tinham aliás um significado constitucional mais profundo, colocando diretamente em pauta a questão do poder constituinte com extrema clareza e deter­ minação. Tanto pela natureza do movimento, confessadamente separa­ tista e emancipativo, como pelos princípios que o inspiravam, todos

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derivados da ideologia revolucionária solapadora das monarquias ab­ solutas, a Lei Orgânica da nova república era um projeto superior em substância e qualidade à “Súplica” portuguesa de 1808. Com efeito, o Govemo Provisório da República de Pernambuco decretava em março de 1817 aquela lei constante de 28 artigos e que tinha todas as características de um ato constituinte provisório, seme­ lhante na essência ao Decreto n. 1 de 15 de novembro de 1889, mediante o qual se decretou a queda do Império, a instituição da República, o fim do Estado unitário, o advento da Federação e a criação da forma presidencial de Govemo. As Bases pernambucanas antecederam em 4 anos aquelas lança­ das em 9 de março de 1821, em Lisboa, pelos constituintes “vintistas” de Portugal. Foram formuladas já com o selo de legitimidade da sobe­ rania popular, expressamente invocado no texto revolucionário. Com efeito, o documento de 1817 consagrava fórmulas avançadas de organização do poder, vazadas na doutrina do povo soberano, na convocação de uma constituinte, na tolerância de todas as seitas cris­ tãs, posto que estabelecesse o catolicismo romano por religião do Esta­ do, na proibição de atos de perseguição por motivos de consciência, na garantia e estabilidade da magistratura, na proclamação da liberdade de imprensa, no chamamento à responsabilidade dos governantes cu­ jos atos minassem a soberania do povo e os direitos do homem, equi­ valente portanto ao instituto que na forma presidencial de govemo to­ mou a designação de impeachment, na criação de um Colégio Supre­ mo de Justiça e finalmente no reconhecimento inferido do art. 28 de que a Assembléia Constituinte é a sede do poder legítimo delegado pelo povo. Tratava-se de um projeto da íavra de Antônio Carlos proposto por instrumento de Govemo aos revolucionários de Pernambuco de 1817, e que aparecia no mesmo ano da malograda conspiração de Gomes Freire de Andrade em Portugal à frente de conjurados liberais, todos imolados pela sentença capital do absolutismo. A Reação triunfara tanto no Brasil como em Portugal frente aos sucessos daquele ano. Mas as forças que então sucumbiram às armas do status quo desde logo renasceriam dos dois lados do Atlântico con­ duzidas pelo mesmo pensamento constitucional de limitação da autori­ dade governativa: lá, com os civis e militares do Sinédrio, que prepara­ ram a revolução do Porto, de 24 de agosto de 1820, a qual, vitoriosa, teve em 1821 o seu coroamento liberal consubstanciado na convoca­ ção e instalação das Cortes de Lisboa; aqui, com o decreto do Príncipe

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Regente de 3 de junho de 1822 que convocava a “Assembléia Geral Brasílica e Constituinte e Legislativa”; meses antes, portanto, que D. Pedro I, às margens do Ipiranga, proferisse, segundo o testemunho da historiografia tradicional, o seu célebre grito de “Independência ou Morte”, do dia 7 de setembro daquele ano, depois convertido em data comemorativa da nossa emancipação política. A Constituinte convocada em 22 e instalada em 23 era a fronteira que realmente separava politicamente o nosso destino do de Portugal, rompendo as derradeiras esperanças de estabelecer a comunhão consti­ tucional dos dois Reinos. Esta poderia dantes ter resultado da tarefa constituinte das Cortes de Lisboa, não fora a cegueira reacionária de sua maioria, cujo comportamento hostil ao Brasil ficou patente numa série de decretos, cujo propósito se cifrava em reduzir o grau de nossa autonomia. A linguagem do decreto de 24 de abril de 1821, por exemplo, ar­ rogante, capciosa e ambígua, inculcava uma retroação colonialista; já não falava em Reino Unido, mas em Províncias Ultramarinas e Esta­ dos Portugueses de Ultramar, ao mesmo passo que parecia atentar con­ tra a política de aglutinação do Príncipe Regente, cuja autoridade bus­ cava desconsiderar ou enfraquecer. Em suma, nas Cortes de Lisboa o poder constituinte se repartia entre as deputações portuguesa e brasileira, mas o predomínio absolu­ to da primeira ofuscou, refreou, dominou e inibiu a segunda, que ali desempenhava basicamente função decorativa, colegitimando com sua presença decisões que até mesmo na esfera de interesses mais peculia­ res e diretos do Brasil lhe eram subtraídas, não podendo assim ter so­ bre elas eficácia ou jurisdição. Ao mesmo passo que em Lisboa se sufocara a ação constituinte participativa dos deputados brasileiros, no Rio de Janeiro o quadro não era menos dificultoso; atropelado e entregue às incertezas de um meio político convulsivo, onde também se jogava o destino do Reino Unido e ocorriam episódios extremamente graves para o futuro da Coroa por­ tuguesa. Não perceberam as Cortes que uma nova nacionalidade nascia do grande parto liberal da monarquia portuguesa consorciada ao elemento nativo, cuja busca de identidade e independência tinha raízes nas lutas coloniais de expulsão dos invasores, passava pela Inconfidência e su­ bia de ponto nos sucessos da Revolução Pernambucana de 1817 até chegar ao momento culminante da Assembléia Nacional Constituinte.

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É aí que se nos depara a intervenção simultânea de dois poderes constituintes, cujas relações foram sempre marcadas de indissimulável tensão, de teor competitivo, e perpassadas de mútuos ressentimentos, disputas de supremacia e recíprocas desconfianças, acabando assim por inaugurar uma crise constituinte da qual nunca nos libertamos por in­ teiro senão de maneira aparente, ocasional e fugaz, mais na aparência que na realidade. Recidiva ao longo de nossa história constitucional, tal crise se as­ semelha a um vulcão, ora adormecido, ora em erupção, deitando não raro sua lava fumegante sobre as instituições, e calcinando os edifícios do Império e da República em distintas épocas constitucionais e políti­ cas do passado. Chegou aos nossos dias como um fantasma que ronda a democra­ cia, o sistema representativo, a separação de poderes. Quais foram esses dois poderes constituintes? O poder constituinte originário, dos governados, que teve a sua soberania golpeada e embargada, não sendo portanto partícipe da obra criadora das nossas primeiras instituições públicas, como Estado e Na­ ção e o poder constituinte derivado do absolutismo, o poder constituin­ te do príncipe que fez a Carta Imperial; ao invés da promulgação, uma outorga; ao invés do ato de soberania de um colégio constituinte, o mesmo ato por obra da vontade e do livre arbítrio de um imperador, que na Carta Fundamental decretava a autolimitação de seus poderes. Em nenhum outro país da América Latina houve semelhante ato de poder. Ali as constituintes fundaram repúblicas; aqui, nesta parte do continente, a constituinte não pôde cumprir sua tarefa, dissolvida que foi pelo Golpe de Estado de 1823. Houve tão-somente a metamorfose de uma monarquia absoluta em monarquia constitucional, abrangendo esta ao longo de sua trajetória o Primeiro Reinado, a Regência e o Se­ gundo Reinado; três épocas políticas que marcaram o Império sob a égide da Constituição outorgada, a célebre Carta de 1824. Durante a fase constitucional do Império inexistiu o controle de constitucionalidade. Em rigor, a Constituição era unicamente na essên­ cia a carta programática dos direitos da primeira geração e do princípio da divisão de poderes. Demais disso, a sua flexibilidade escusava gran­ demente a adoção daquele controle. Três originalidades teve porém o documento produzido pelos ju­ ristas do Conselho de Estado e que se transformou na célebre Carta política do Império, outorgada por D. Pedro I e depois trasladada para

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Portugal com modificações do próprio punho do Imperador, após abdi­ car o trono português, em favor de sua filha menor, D. Maria da Gló­ ria, a primeira rainha constitucional de Portugal. Foi assim que surgiu a Carta de 1826, símbolo e ícone do constitucionalismo português, na estréia de seu confronto e subseqüente consolidação frente a ementa reação dos miguelistas fratricidas, empenhados em restaurar a coroa do absolutismo e fazer outra vez vivas as instituições peremptas do pas­ sado e dos privilégios consagrados. A primeira originalidade residiu na Carta de direitos e na enunciação de deveres. A segunda consistiu em estabelecer com relevância hierárquica superior a constitucionalidade material, definida com extrema clareza e tomada juridicamente de teor mais significativo que a constituciona­ lidade formal. A terceira esteve na criação de um quarto Poder, concebido pri­ meiro na esfera teórica e importado de pensadores ou juristas france­ ses, desde Clermond Ferrand a Benjamin Constant. Teve esse quarto Poder pela vez primeira no mundo das Constitui­ ções, segundo é de nosso conhecimento, o seu ingresso na Carta Políti­ ca do Império. Tudo por obra das circunstâncias, associadas a um per­ fil de personalidade, tomando-se em seguida a mais venturosa de todas as inovações políticas e constitucionais que ornaram a autoridade im­ perial durante o Segundo Reinado da monarquia brasileira. Nossa primeira “ditadura constitucional” ocorreu ao alvorecer do Império. Foi obra do Poder Moderador, configurando, em verdade, um estranho paradoxo, do ponto de vista teórico, porquanto veio a ser exer­ citada precisamente por aquele Poder que havia sido concebido, teori­ camente, pelo menos, como uma espécie de corregedoria dos três ra­ mos em que se divide o exercício da soberania nacional (executivo, legislativo e judiciário). O pensamento central de seu autor - o publicista Constant - era fazê-lo uma espécie de poder judiciário dos demais poderes, investido claramente nessa tarefa corretiva para pôr cobro às exorbitâncias e aos abusos suscetíveis de abalar a unidade política do sistema. Mas tanto na letra constitucional como na execução, os políticos do império lhe desvirtuaram o sentido e a aplicação. Desvirtuaram-lhe o sentido, quando o consubstanciam em artigo da Carta como profissão de fé política e normativa de uma concentra­ ção de poderes sem paralelo na história dos países hemisféricos, que se

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constitucionalizaram à sombra dos dogmas da Revolução Francesa ou dos postulados da Revolução Americana. Basta ver a extensão de po­ deres conferidos a seu titular no art. 101 da Constituição Imperial de 25 de março de 1824. Desvirtuaram-lhe por igual a aplicação, quando o primeiro Impe­ rador o exercitou em termos absolutos de exceção. Feriu ele, desse modo, o espírito da Carta, sobretudo a legalidade e a constitucionali­ dade do regime, ao fazer das Comissões Militares o instrumento re­ pressivo, por excelência, das agitações antiimperiais e que impopularizou o monarca nas Províncias do Nordeste e do extremo Sul. Tudo isso precedeu as manifestações populares mais agudas e ostensivas, ocorri­ das em solo mineiro, e que tiveram por desfecho o ato da Abdicação. Demais disso, o Poder Moderador era a programação deliberada da ditadura porquanto contrariava a regra substantiva de Montesquieu da divisão e limitação de poderes. Com efeito, a Carta enfeixava numa só pessoa - o Imperador - a titularidade e o exercício de dois Poderes. De tal sorte que a Lei Maior criava assim um monstro constitucional. Não criava um órgão legíti­ mo, distinto e capacitado, como seria de sua vocação, a promover a harmonia e o equilíbrio dos Poderes; um órgão que pudera ter sido - e nele lhe vislumbramos essa virtude ou possibilidade - o germe de uma espécie de judicatura política, capaz de antecipar na práxis e na teoria, por sua ação preventiva de controle de conflitos, os tribunais constitu­ cionais a quem o século seguinte entregaria os freios de constituciona­ lidade. Desse objetivo porém nos acercamos depois confusamente por in­ tuição teórica. Basta para tanto refletirmos a fundo acerca do alcance daquela embrionária instituição preconizada por Constant, enquanto fórmula expansiva e aperfeiçoadora, construída sobre os alicerces da obra e do gênio de Montesquieu. Feitas estas ponderações respeitantes ao regime da Carta outorga­ da de 1824, cabe assinalar o seguinte: O constitucionalismo brasileiro do século XX é tão caracterizadamente republicano quanto o do século XIX, que já examinamos, fora imperial. Aliás este se viu marcado por uma única Constituição a de 1824 - , obra da outorga do Imperador e que regeu o País até 15 de novembro de 1889, quando se deu a queda do Império, e o advento de um novo sistema institucional proclamado naquela data. Graças a esse sistema instalou-se a república e a federação, constantes do Decreto

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n. 1 do Govemo Provisório, cujos membros assumiram os encargos imediatos da nova ordem estabelecida sobre as ruínas da monarquia deposta. Após um interregno ditatório de dois anos, restabeleceu-se a nor­ malidade constitucional do regime político mediante a promulgação do primeiro Estatuto Fundamental da República. Estréia-se desse modo o primeiro período do constitucionalismo republicano, que vai perdurar de 1891 a 1930, assinalado, de início, por profundas transformações em relação ao sistema decaído e sem as quais não se lograria a consolidação do poder recém-inaugurado. Com efeito, a primeira dessas mudanças, de inspiração americana, cifrou-se na adoção do modelo federativo, pelo qual Rui Barbosa com ardente empenho se batera em vão durante os derradeiros anos do Se­ gundo Reinado. A campanha malograda por uma monarquia federativa atuou deci­ sivamente no ânimo de Rui para convertê-lo, de última hora, em adep­ to da causa republicana, cuja pregação não constava aliás dos seus es­ critos políticos estampados na imprensa às vésperas do movimento que derrubou a monarquia. E o mais singular é que este insigne homem público se tomou de repente a cabeça pensante da república, o arquite­ to das novas instituições, o criador da fórmula que seu decreto anteci­ para e logo foi consagrado pela Constituição de 1891, da qual, como se sabe, e já se provou inequivocamente por via documental, fora ele o principal artífice. Das suas luzes e das suas idéias nasceu aquela Carta do Brasil republicano, federativo, presidencialista, arredado da tradi­ ção européia e acercado ao influxo americano, em cuja órbita gira até hoje sob a égide de um presidencialismo constitucional. As alterações da segunda Constituição brasileira com respeito à Carta outorgada de 1824 foram portanto a introdução da república, da federação e da forma presidencial de govemo. A evolução constitucional do País patenteia que nessas três espé­ cies políticas o progresso qualitativo se apresentou basicamente nulo durante o primeiro período republicano, cujas turbações mais de uma vez puseram o regime à beira da ruptura. Com efeito, as três inovações fundamentais levadas a cabo por ins­ piração do constitucionalismo americano, cuja excelência Rui profes­ sava com ardor, foram de certa maneira decepcionantes e mais uma vez puseram em contraste a diferença da forma à matéria, da idéia à realidade, da teoria à prática.

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A república em si mesma não penetrara ainda a consciência da elite governante e da camada social hegemônica, talvez à míngua de preparação, porquanto no diagrama do novo regime os fatos atropela­ ram os valores; os interesses sobrepujaram as idéias; a destemperança, as vaidades e a soberba calcaram as verdades; as paixões, as ambições e os ódios escureceram o bom senso e a razão. Disso promanou a dita­ dura militar de Floriano que Rui tanto exprobrou e da qual veio a ser, sem dúvida, a principal vítima. A solução republicana, ministrada de surpresa, não estava ainda por inteiro presente nem amadurecida no espírito público e no domínio da opinião. O ato institucional de 15 de novembro, se não fora as ditaduras de Deodoro e Floriano e a fereza da repressão, segundo escreviam na épo­ ca os opositores da monarquia, não teria vingado. É de recordar que Rui mesmo deixara aberta no Decreto n. 1 a porta plebiscitária de um eventual retomo ao regime decaído. Essa porta foi fechada dois anos depois pela Constituição de 1891 em termos definitivos. Tocante à federação, o sistema logo manifestou na aplicação as suas fraquezas, as suas imperfeições, os seus erros, distanciando-se, por completo, do original americano, de que fora cópia servil. Durante décadas perdurou a instabilidade, a tensão, a crise, a ani­ mosidade, o desequilíbrio nas relações entre a União e os corpos fede­ rados. O despreparo destes para o exercício das competências federati­ vas se manifestava patente, ocasionando assim um quadro político de­ veras turbulento, marcado de abusos, extravios de poder, intervenções federais e freqüente decretação de estados de sítio, fontes portanto de violência e desrespeito contumaz e descarado à liberdade e às compe­ tências constitucionais dos entes políticos da federação. Toda a nossa evolução constitucional, já ao longo do Império, já ao longo da República é entrecortada de crises e rupturas. Não é, como se poderia cuidar à primeira vista, uma evolução tranqüila, isenta das tormentas de sangue e violência que se estamparam na crônica de ou­ tros povos e nações. Foi perpassada sempre de grave crise e essa crise chega aos nos­ sos dias, qualificada, com inteira razão, de crise constituinte porque é crise das instituições e da Constituição; não é como seria normal crise na Constituição ou crise meramente constitucional, conforme temos em outras ocasiões assinalado com reiterada freqüência.

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A Carta do Império, outorgada sobre as ruínas de uma constituinte dissolvida, nasceu debaixo dos protestos constitucionais dos revolto­ sos da Confederação do Equador, sob o signo da desconfiança e da suspeita de uma restauração absolutista. Mas por um acaso histórico das circunstâncias, aquilo que tinha tudo de negativo para ser um desastre constitucional, como aliás foi no Primeiro Reinado, prosperou e floresceu depois da Regência durante o Segundo Reinado por obra e temperamento de um rei ilustrado, sábio e prudente que foi D. Pedro II. Estamos nos referindo ao Poder Moderador, cujo titular, o monar­ ca, enfeixava ilimitadas competências, exaradas nos artigos da Carta, e todavia se houve com extremo zelo, afastando-se da sedução daquele círculo de autoridade verdadeiramente absoluta que a contradição da Lei Fundamental do Império lhe depositara nas mãos. Épocas de federalismo autoritário - uma contradição política em termos - ocorreram no País e oscilaram, durante a Primeira República, da frouxidão dos laços federativos ao extremo arrocho das interven­ ções centralizadoras, cujo unitarismo contravinha a índole do regime. Demais disso, o quadro social e político das antigas províncias imperiais, erigidas de repente ao status da autonomia federativa, era sobremodo traçado pela força incontrastável dos oligarcas e coronéis que formavam o patronato do poder e recebiam da autoridade central a sagração de sua ascendência na esfera local de governo. A primeira Constituição republicana foi na aparência, pelo aspec­ to formal, a mais estável das Constituições do sistema inaugurado em 15 de novembro de 1889. Durou 39 anos e passou por uma única reforma que aliás veio de­ masiado tardia, não podendo conjurar o seu colapso na sucessão do Presidente Washington Luís, em 1930. Mas a evidência histórica de uma estabilidade que acabamos de referir era de teor apenas aparente, não disfarçando a república consti­ tucional deveras violenta. Com efeito, a violência se instalou com a ditadura de Floriano, quando a república correu o risco de soçobrar e prosseguiu dissimulada nas comoções políticas ligadas à sucessão dos governos presidenciais. Aqui entra a figura do presidencialismo, a terceira inovação do re­ gime estabelecido pela Carta de 1891. Presidencialismo que tem sido talvez a peça chave da crise estrutural do sistema. Em verdade, uma das ocasiões mais significativas em que essa crise penetrou a consciên­

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cia da nação ocorreu com o deflagrar da Campanha Civilista, promovi­ da e chefiada por Rui Barbosa. Valeu como uma cruzada de regenera­ ção dos costumes políticos, até então atados aos vícios de um presi­ dencialismo militarista, deformador da imagem das instituições e que lhes retirava toda a legitimidade. O mesmo sentido teve depois a Reação Republicana de Nilo Peçanha, bem como as sublevações dos dois 5 de julho da década de 20 e, por derradeiro, culminando o processo, o movimento da Aliança Li­ beral, a chamada Revolução de 30. Com esta selou-se o destino da Primeira República cujas paredes desabaram, carcomidas na falsidade ideológica das atas eleitorais, suprema e afrontosa contradição da representatividade constitucional do regime. Uma tempestade política e ideológica, acompanhada de fortes aba­ los na ordem institucional marcou, a seguir, a década de 30 no século XX. Foi a década mais autoritária da primeira metade dos novecentos. Ficou assinalada do mesmo passo por uma invasão de idéias novas e projetos e fórmulas de mudança, ilustrativas do quadro de instabilida­ de e efervescência, que teve forte repercussão sobre a índole do orde­ namento. Sua tonalidade social, bem distinta das cores do sistema de­ caído, dava a medida das preocupações transformadoras ínsitas aos ti­ tulares do poder emergente. A cognominada Revolução de 30 significou dessa maneira o pon­ to de partida e a base de apoio de um ambicioso programa de renova­ ção dos costumes políticos, cujo objetivo maior era o estabelecimento da verdade eleitoral, pressuposto de uma ordem representativa mais le­ gítima, em correspondência com o sentimento nacional vigente. Depois da escravidão, representou o momento em que o País mais sentiu o peso das injustiças sociais e buscou aparelhar-se para ter seu ingresso na era industrial, valendo-se de instrumentos legais aptos a mitigar as proporções do iminente conflito do trabalho com o capital. Do ponto de vista político, é de ponderar que a ditadura instalada pelo segundo govemo provisório republicano em 1930 durou quatro anos e manifestou desde o começo certo pendor continuista alimenta­ do pelo seu Chefe, cujos desígnios nesse sentido foram embargados por uma corrente empenhada em restaurar, o mais breve possível, a or­ dem constitucional suspensa desde aquele ano. Desse movimento de resistência nasceu a malograda Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. A derrota militar dos revol­

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tosos em nada obstou porém ao triunfo da causa, logo concretizada e consagrada com o ato convocatório da Constituinte de 1933. Daí resul­ tou logo depois a promulgação da Carta de 1934. Fechado o interregno ditatório de quatro anos, a Constituição de 1934 inaugurou a Segunda República. Teve ela contudo breve e precá­ ria existência porquanto promanara de uma ambiência política marca­ da por mutilações participativas, crises, desafios, suspeitas, incertezas, contestações e ressentimentos. A Constituinte que a promulgou não auferiu a necessária densida­ de legitimante que é de exigir de um colégio de soberania. As lideran­ ças do ancién régime republicano permaneciam no exílio político, afas­ tadas de toda participação. As forças políticas situacionistas, por sua vez, elegeram Presidente da República, por via indireta, o ex-ditador e chefe revolucionário do movimento de outubro de 30, um homem cujo apetite pelo poder o levou três anos depois a desferir o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937. O novo interregno republicano de normalidade constitucional ocorreu tão-somente na aparência, sobretudo a partir de novembro de 1935, quando rebentaram as quarteladas comunistas do Rio de Janeiro, Natal e Recife, cuja eclosão sobressaltou o País e intimidou as cama­ das sociais do coronelismo rural e da burguesia urbana ascendente. A repressão feita, cifrada na Lei de Segurança, no estado de guer­ ra e no Tribunal de Segurança Nacional e nas pressões sobre as duas Casas do Congresso, processando deputados e senadores e expurgan­ do das fileiras militares e civis da sociedade personalidades suspeitas ao regime, vaticinava já o desfecho trágico do golpe de 1937. Este se consumou às vésperas da eleição presidencial direta em que conconiam ao poder as candidaturas de José Américo de Almeida e Armando Salles de Oliveira, o primeiro candidato do Govemo, o segundo da Oposi­ ção, ambos, porém, vítimas do braço golpista que inaugurou no País a ditadura do Estado Novo. À frente desta, Vargas governou o Brasil sem dar sequer execução à própria Carta que outorgou, a célebre “polaca” de autoria do jurista mineiro Francisco Campos. O regime de exceção caiu em 29 de outubro de 1945, por um gol­ pe militar inspirado no sentimento de redemocratização que se enrai­ zara na consciência nacional ao longo dos anos da presença brasileira na Segunda Guerra Mundial, quando efetivos da Força Expedicionária Brasileira foram aos campos de batalha da Itália enfrentar os exércitos da aliança totalitária do fascismo e do nacional-socialismo.

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Pôs-se termo assim a uma flagrante contradição política e ideoló­ gica que era a sobrevivência do Estado Novo, de bases ditatoriais, num mundo que emergia das ruínas da guerra, fizera vitoriosa a causa das velhas democracias liberais e passara a reconstruir o contrato social, escrevendo em São Francisco, em 1945, a Carta das Nações Unidas, logo seguida, em dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Di­ reitos do Homem. A Constituição de 18 de setembro de 1946, com seus 218 artigos e 36 disposições transitórias, representou um compromisso das corren­ tes conservadoras da velha tradição republicana e representativa de 1891 com as forças remanescentes do radicalismo liberal de 30. Sobre­ tudo com a facção congressualmente majoritária que provinha do Esta­ do Novo e ressentida ainda com a deposição de seu ditador e o des­ mantelamento de sua máquina política, ganhara, todavia, contra todas as expectativas, a eleição de 2 de dezembro de 1945. Essa facção con­ servadora, formada nos quadros da ditadura, se mostrava disposta a manter sua hegemonia governativa nos moldes da Lei Magna recémpromulgada. As pressões ideológicas da década já não eram contudo tão fortes e os constituintes de 46 lograram escrever uma Constituição com pon­ tos significativamente positivos. Constituição que traduzia equilíbrio e bom senso para as circunstâncias da época, pôde ela atenuar e fazer latente e adormecida durante largos anos de sua vigência o vulcão da crise constituinte, cujas erupções não vieram tão imediatas e de súbito como as que implodiram a Constituição de 1934. Sem revogar o Estado social do texto efêmero da primeira reconstitucionalização, a Carta de 46 ficou limitada aos termos programáticos de justiça social, não podendo concretizar cláusulas como aquelas que determinavam a participação do trabalhador nos lucros da empre­ sa nem tantas outras exaradas na esfera das relações do capital com o trabalho. As comoções políticas de raiz social fizeram-na desembocar por obra da corrupção do regime presidencial na segunda ditadura do sé­ culo, a mais longa e perniciosa por haver mantido aberto um Congres­ so fantoche, debaixo de uma Constituição de fachada, outorgada pelo sistema autoritário, que ao mesmo tempo censurava a imprensa e repri­ mia a formação, pelo debate livre, de novas lideranças, sacrificando assim toda uma geração. Tal aconteceu em 1964 quando o País atra­ vessou durante duas décadas a mais sombria ditadura militar de sua história.

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Com a Constituição de 1988 e ligeiras observações acerca da cri­ se em que ela se acha imersa, poremos o ponto final a esse despretensio­ so relato da evolução constitucional do Brasil. A Constituição de 1988, ao revés do que dizem os seus inimigos, foi a melhor das Constituições brasileiras de todas as nossas épocas constitucionais. Onde ela mais avança é onde o Govemo mais intenta retrogradála. Como constituição dos direitos fundamentais e da proteção jurídica da Sociedade, combinando assim defesa do corpo social e tutela dos direitos subjetivos, ela fez nesse prisma judicial do regime significati­ vo avanço. Fez, por exemplo, do Supremo Tribunal Federal taxativamente um tribunal de guarda da Constituição. Mas ele nesse ponto se autodemitiu da importantíssima e crucial tarefa de concretizar nas controvérsias do sistema, onde as bases da democracia constitucional estavam em jogo, a sua missão protetora de salvaguarda das instituições. Os que ora desfecham um golpe de Estado institucional não são portanto mo­ lestados pela Justiça constitucional: e permanecem intangíveis, fora do alcance do braço da Lei Suprema, pervertendo, afrontando e despeda­ çando, cada vez mais, as instituições do País. Com referência a outro ramo de sustentação da ordem republicana e democrática, a mesma Corte fez vista grossa ao poder que mais pode e que em verdade é o motor constitucional dos demais Poderes, atre­ lando-os às suas irresponsabilidades legislativas e aos seus atentados e desrespeitos e desmoralização de decisões judiciais, ostensivamente descumpridas. Aniquilam-se assim, por obra do Executivo, as bases éti­ cas e jurídicas do sistema. E onde tal acontece, há ditadura, e não há govemo. Há despotismo, e não há Constituição. Há obediência, e não há consenso. Há legalidade, e não há legitimidade. E a legalidade que há é todavia a força, que enfraquece a dignidade da pessoa humana, a justiça dos direitos sociais, a sobrevivência da democracia, a defesa e proteção do Estado soberano. Cabe, portanto, na seqüência dessas reflexões, fazer esta tríplice indagação: Até quando a Amazônia permanecerá exposta às lesões da sobe­ rania nacional? Até quando a política ingovernável governará a república? Até quando o síndico da massa falida no poder liquidará as contas do patrimônio público cifradas nas privatizações alienadoras da rique­ za nacional?

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São três indagações cruciais que comprometem todos os princípios de sustentação e legitimidade constitucional pertinentes à repúbli­ ca criada pela Constituição de 1988. O ordenamento jurídico vem sendo destroçado em grande parte pelo golpe de Estado institucional desferido por meio de Medidas Pro­ visórias que expulsam do exercício do poder legítimo os dois órgãos paralelos da soberania nacional, o Legislativo e o Judiciário. E assim o Governo, sem dar satisfação ao povo, à opinião, ao País e à Sociedade, executa a implacável política da recolonização. Aqui termina, minhas Senhoras e meus Senhores, a evolução cons­ titucional do Brasil; termina com as omissões da falsa elite representa­ tiva, cúmplice silenciosa dos atos que destroem a democracia e o regi­ me. Mas não termina aí a luta do povo brasileiro. A alvorada da demo­ cracia participativa se desenha nas linhas do horizonte político e espar­ ge luz sobre as esferas teóricas onde se constrói um novo constitucio­ nalismo de luta e resistência, abraçado com o povo, com a cidadania, com as atas da Inconfidência, com a memória da Confederação do Equador, com a campanha abolicionista de Castro Alves, Nabuco e Rui Barbosa, com as Diretas-Já e com as jornadas do impeachment que on­ tem mostraram como as lideranças podem sucumbir. O que jamais po­ derá sucumbir é o povo brasileiro. Esta assembléia, este auditório, esta academia de letras passam a certidão de que a Nação vive e sobrevive e mantém intacta a consciên­ cia de seus valores, com os quais há de foijar as armas do confronto. O povo, portanto, dirá sim à democracia e não à recolonização. É esta a mensagem dos nossos 500 anos de presença nos fastos da História. Não volveremos ao passado porque somos o verdadeiro Brasil do ano 2000, o Brasil que está no vosso sentimento constitucional e na vossa alma e vocação de liberdade.

Capítulo 9 O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO DE FRIEDRICH MÜLLER: FUNDAMENTO DE UMA NOVA HERMENÊUTICA preparação teórica de uma democracia participativa passa, de ne­ cessidade, pela criação das premissas metodológicas de uma nova hermenêutica constitucional, fundada em valores e princípios e, ao mes­ mo passo, numa reelaboraçào doutrinária e científica da norma jurídica. Essa dimensão nova, sobremodo original, se acha, por inteiro, con­ tida na obra do filósofo alemão Friedrich Müller, cujo pensamento já começa a criar raízes no meio jurídico nacional, com a tradução de al­ guns ensaios fundamentais desse insigne Mestre de Heidelberg.

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A seguir, coligimos e reproduzimos nesta coletânea dois trabalhos nossos de divulgação do nome, das idéias e dos conceitos do pensador cuja obra, fascinante e fecunda, abre horizontes novos à democracia, ao Direito e à liberdade, porque busca desvendar o que subjaz nas es­ feras de concretude da ordem nacional e de sua base de poder. Primeiro, estampamos o artigo que teve por título “Friedrich Mül­ ler, o Filósofo da segunda metade do século”, publicado no jornal O Es­ tado de S. Paulo, edição de 29 de abril de 1986 (esse artigo foi prece­ dido de outro, publicado na Revista de Direito Constitucional e Ciên­ cia Política do IBDC (Instituto Brasileiro de Direito Constitucional) n. 2, Rio de Janeiro, 1984, Forense, sob a nota “Em dia com os livros Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Müller”). O segundo trabalho é um Parecer, que consta da 3a edição do livro Reflexões: Política e Direito, em que fizemos aplicação, num caso con­ creto, da metodologia interpretativa de Müller.

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I Dos juristas alemães contemporâneos é o Prof. Friedrich Müller, da Universidade de Heidelberg, inquestionavelmente um dos mais fe­ cundos e originais, pela contribuição que tem oferecido na esfera teóri­ ca à renovação da Ciência do Direito. Suas investigações críticas abrangem todo o campo filosófico do Direito, mas recaem com mais intensidade no domínio da Metodolo­ gia, da Teoria do Direito e da Constituição. Não é Müller um exposi­ tor, mas um pensador. Pertence ao quadro dos juristas alemães de nos­ so tempo que intentam fundamentar uma teoria material do Direito, afastando-se assim, por inteiro, das correntes formalistas, nomeada­ mente do normativismo kelseniano. Todos os juristas dessa teoria par­ tem de conclusões acerca da insuficiência do positivismo no que tange a uma fundamentação do Direito em sintonia com os conteúdos nor­ mativos. Sente-se nele a necessidade de fugir à alternativa de um dissí­ dio com mais de dois mil anos na reflexão filosófica: direito natural ou positivismo. Durante as décadas de 40 e 50, pelo menos na Alemanha, onde a Filosofia do Direito sempre travou suas batalhas mais renhidas, houve uma ressurreição jusnaturalista, decorrente do pessimismo que invadi­ ra o ânimo de juristas perplexos com a tragédia da Segunda Grande Guerra Mundial, movidos a uma reconsideração dos valores pertinen­ tes à ordem jurídica legítima. Entre os que prestigiavam a nova atitude, figurava o nome exponencial de Gustavo Radbruch, cuja cátedra positivista se converteu ao direito natural. Mas a restauração jusnaturalista foi um relâmpago, não foi uma lâmpada. Logo se apagou aquela claridade súbita. Não sendo possível o retomo do positivismo, a década de 50 viu abrir-se nova cri­ se no pensamento filosófico do Direito, de maneira que as dificuldades só foram removidas a partir da publicação de Tópica e Jurisprudência, de Viehweg. Representa essa monografia uma abertura de rumos e ho­ rizontes para a Ciência do Direito. Com efeito, a “tópica”, ou “nova retórica”, inaugura um novo ca­ minho para o conhecimento do Direito pelas vias argumentativas. A palavra de ordem era pensar e repensar o “problema”, vinculando, como nunca talvez se tenha feito, as soluções normativas à práxis e à realidade. Com a “tópica” a teoria material do Direito e da Constituição re­ cebeu base incomparavelmente mais sólida para acometer as posições

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já enfraquecidas do formalismo positivista. O recuo normativista para o campo da Lógica facilitou em parte essa tarefa. Mas a tópica, sem o impulso e a direção que lhe imprimiram alguns juristas da Alemanha, não teria feito a teoria material do Direito e da Constituição progredir além do que já estava implícito em formulações precursoras contidas na obra filosófica de Smend e Schmitt, obras carentes, porém, de pre­ cisão metodológica com que concretizar uma nova fundamentação do Direito. Sobre os alicerces da tópica buscou-se reconstruir o edifício filo­ sófico do Direito. Um dos arquitetos dessa reconstrução, que apresen­ tou o projeto mais brilhante e engenhoso, na obra Teoria Estruturante do Direito, é o Professor Friedrich Müller, da Universidade de Heidelberg, de cuja Faculdade de Direito já foi Decano. A originalidade de sua contribuição consiste em estruturar cienti­ ficamente a realidade jurídica, com abrangência tanto dos conteúdos da norma, como das propriedades formais do Direito, por via de uma interconexidade surpreendente, que leva em conta todos os aspectos relevantes eventualmente omitidos com a dissociação da forma e da substância. Tal dissociação sói acontecer com aquelas posições teóri­ cas onde a perda da perspectiva unitária acarreta danos a uma compre­ ensão integrativa da norma jurídica. A Teoria Estruturante do Direito tem sido inegavelmente um enor­ me esforço de reflexão unificadora, que prende de maneira indissociá­ vel a Dogmática, a Metódica e a teoria da norma jurídica, com ampli­ tude e profundidade jamais ousada por qualquer outra teoria contem­ porânea sobre os fundamentos do Direito. A estrutura material do Direito não é concebida por Müller unica­ mente em bases estáticas, mas segundo um modelo dinâmico de con­ cretização. Nisso reside outro traço de novidade do seu pensamento, que merece atenta análise de quantos se preocupam com os problemas capitais da Filosofia do Direito. Não resta dúvida de que depois do lançamento da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, há 50 anos, e da Tópica e Jurisprudência, de Viehweg, há três décadas, o livro de Direito mais importante que se imprimiu nos prelos da Alemanha é a Teoria Estruturante do Direito, de Friedrich Müller, cuja aparição, nesta fase de pós-positivismo, des­ venda, com a combinação metodológica da realidade fática, do progra­ ma da norma e do círculo normativo, o sentido estrutural e integrativo do Direito, conciliando, fora do mero sincretismo e das convergências

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aparentes, os aspectos usualmente desmembrados da norma, do fato e do valor. Müller não é apenas o filósofo do Direito senão também o consti­ tucionalista, autor de uma Teoria da Constituição, em três volumes, obra que tem contribuído para renovar a hermenêutica constitucional. Sua metodologia transcende o modelo clássico de Savigny, de bases jusprivatistas, e este livro Teoria Estruturante do Direito constitui um monumento de saber jurídico. II O eminente Desembargador Antonio Fernando Bayma Araújo, do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, endereçou-nos a seguinte Consulta: “Para completar período de mandato inferior a um ano em cargo de direção do Tribunal de Justiça, isto é, os de Presidente, Vice-Presidente e Corregedor, podem acaso concorrer, como elegíveis, Desem­ bargadores cujos nomes não constem da lista dos mais antigos habili­ tados ao exercício de tais cargos?” Em resposta a essa indagação, cabe-nos fazer várias ponderações preliminares, seguidas de uma reflexão conclusiva. A matéria, objeto da Consulta, se acha, do ponto de vista jurídico, contida tanto na Constituição como no art. 102 e seu parágrafo único, da Lei Complementar n. 35 (Lei de Organização da Magistratura, de 14 de março de 1979). Esse artigo é do seguinte teor: “Artigo 102: Os tribunais, pela maioria dos seus membros efeti­ vos, por votação secreta, elegerão dentre juizes mais antigos, em nú­ mero correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou de Presidente, não fi­ gurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes na ordem de antiguidade. E obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da reeleição. “Parágrafo único: O disposto neste artigo não se aplica ao juiz eleito para completar período de mandato inferior a um ano.” A leitura do texto supra consente, à primeira vista, projetar dois distintos esboços de interpretação, dos quais, porém, só um é idôneo para conduzir à solução do problema, conforme intentaremos em se­ guida demonstrar.

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Com efeito, o sobredito parágrafo único do art. 102 institui cláu­ sula de inaplicabilidade que subministra a chave de toda a questão sus­ citada pelo consulente. Por uma primeira versão hermenêutica, a nosso ver descabida e inconsistente, dir-se-ia que o acesso ao preenchimento do cognominado mandato “tampão” ficara aberto, com aquele parágrafo, a todos os Desembargadores indiscriminadamente no que tange à respectiva or­ dem de antiguidade. A elegibilidade assim introduzida tomar-se-ia tam­ bém extensiva aos que houvessem exercido cargos de direção por qua­ tro anos ou de Presidente. Não é este, todavia, o sentido ínsito à exceção posta naquele pará­ grafo pelo legislador complementar, porquanto, acolhido tal entendi­ mento, dissolvida ficaria, subversivamente, a garantia legal de ingres­ so por critério de antiguidade ao numerus clausus da lista de elegíveis constante do mandamento onde se lê “em número correspondente ao dos cargos de direção” (caput do art. 102). Como se vê, não se estabeleceu aí um numerus apertus, em ordem a escorar o primeiro ensaio de interpretação acima exposto. Corre-nos portanto o dever de rejeitá-lo, liminarmente, por sua fragilidade e in­ consistência. De sorte que o desrespeito àquele ditame, consumado por tal gê­ nero de interpretação, configuraria, sem dúvida, procedimento lesivo a preceitos constitucionais, visto que órgão nenhum, na aplicação de leis, pode, pela sua vontade, substituir-se à vontade daquele que, como le­ gislador, investido de poder legítimo, elaborou a lei. Quem desobedecer, pois, à literalidade do comando normativo ex­ presso naquele texto, estará dando à proposição entendimento contra legem, inaceitável até mesmo pelas correntes mais abertas, permissivas e largas de um interpretativismo cujos excessos, todavia, não se com­ padecem jamais com o ato do aplicador, que, ignorando a lei, se arvora em titular de um poder de legislar que de todo lhe falece. Tais desvios hermenêuticos, torcendo a Lei e fazendo estremecer o edifício do Direito, somente caberiam nos quadros e nos moldes de uma escola que, afortunadamente, não é a de nossa tradição jurisprudencial - a chamada Escola Livre do Direito, cujo paradigma histórico de perversão da legalidade fez ignóbil a memória do nacional-socialismo, o mais indigno, trágico e lutuoso sistema de poder e arbítrio que já se abateu sobre a independência e a liberdade dos povos na comunhão universal das sociedades civilizadas.

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De conseguinte, só há uma inteipretação correta e admissível respeitante ao parágrafo único do art. 102: aquela, segundo a qual esse parágrafo busca, tanto no seu espírito como na sua determinação nor­ mativa, unicamente subtrair o juiz eleito para o preenchimento de uma parcela de mandato, da inelegibilidade, que fatalmente lhe adviria o eventual exercício de um mandato provisório, isto em conseqüência da regra proibitiva da reeleição estampada no corpo do mesmo art. 102. É essa regra que o parágrafo único derruba, como não poderia dei­ xar de fazê-lo, preservando assim, em benefício do titular da interinidade, ao completar um certo período de mandato inferior a um ano, a qualificação jurídica de antiguidade, mediante a qual, legitimado pelo caput do art. 102, se habilita novamente a entrar naquela relação de elegíveis para o exercício do mandato normal nos cargos de direção dos tribunais. Tal interpretação se arrima tanto na literalidade da expressão nor­ mativa do caput do sobredito artigo como na dimensão de normatividade subjacente ao mesmo, normatividade que o intérprete extrai ou capta por via construtiva e concretizante; tudo consoante manda a me­ tódica da Nova Hennenêutica, da qual valiosamente estamos a socorrer-nos. Quanto à literalidade, esta se nos afigura insuscetível de maior perquirição interpretativa na medida em que do texto se ergue - vincula­ da ao critério de antiguidade - uma inferência lógica de numerus claus m s ; depara-se-nos, assim, um elemento aritmético fixo, cuja imperatividade determina, com indubitável rigor e certeza, a restrita extensão da lista dos elegíveis na seqüência irredutível estabelecida por aquele critério. Nenhum artifício hermenêutico poderá, por conseguinte, flexibili­ zar o critério de antiguidade sucessiva dos que, por preceito normativo explicitado no caput do art. 102, são chamados, numa ordem intangí­ vel de rigidez, a compô-la inarredavelmente. Eis um caso singular, manifestativo de que até mesmo o velho e clássico apotegma, segundo o qual in claris cessat interpretatio, sobrepaira, invicto e persuasivo, às impugnações da Nova Hermenêutica. Em rigor, nada mais claro, mais positivo, mais normativo, mais imune à dúvida do que o número, isto é, a definição quantitativa ou matemática posta, implícita ou explicitamente, pelo legislador com a firmeza de uma incontestabilidade lógica. Em outras palavras, ali se colocou um comando cuja densidade de império é inelutável, escusan­ do toda a diligência elucidativa do hermeneuta.

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Aos subsídios da Nova Hermenêutica, todavia, urge recorrer para testificar que, ainda de uma normatividade construída por via interpretativa concretizante, a solução não haveria de ser outra senão aquela há pouco deduzida da interpretação clássica, ou seja, inferida da inteligên­ cia gramatical, da letra da lei, segundo o vetusto cânone de Savigny. Considerando o presente caso, poder-se-á, por conseguinte, me­ diante o emprego de novas pautas hermenêuticas, designadamente as mais adequadas para atos normativos que se prendem à esfera do Di­ reito Administrativo e do Direito Constitucional, alcançar, por outro caminho argumentativo, idêntico efeito. Tais pautas, traçadas sobretu­ do pela Teoria Estruturante do Direito, configuram, em verdade, a der­ radeira palavra de transformação e avanço nos distritos da ciência jurí­ dica contemporânea, ou seja, particularmente, nos domínios de uma hermenêutica modernizada em seus métodos e conceitos.1 Aqui, sim, percorrer-se-á, de necessidade, uma artéria interpretativa propriamente dita de cunho concretizante, vazada na obra jurídica do prof. Friedrich Müller, “o jurista da segunda metade do século XX”.2 1. Concretização, princípio da proporcionalidade como instrumento de con­ trole jurídico que protege a liberdade e concilia princípios quando estes colidem e um deles tem que ceder, pré-compreensão (“Vorverstaendnis”), teoria estruturante do Direito, princípios gerais de Direito convertidos em princípios constitucionais e colocados no vértice da pirâmide normativa, dimensão objetiva dos direitos funda­ mentais com o status positivus acolhendo novas gerações de direitos e se sobre­ pondo em importância ao clássico status negativus - o da doutrina c terminologia de Jellinek - o qual, longe de ser abolido, é incorporado àquele com vantagem, eficácia dos direitos fundamentais “inter privatos”, ou seja, segundo os alemães, relacionados a terceiros (“Drittwirkung”) expansão horizontal do Direito Constitu­ cional, avassalando todos os ramos da Ciência Jurídica, e de último, construção, que ainda prossegue, de uma Nova Hennenêutica, jungida a essa esfera de trans­ formações conceituais - traços são todos estes configurativos de posições profun­ damente renovadoras, que apontam para um referencial interpretativo apto a mu­ dar, de certa maneira, a face clássica e tradicional da metodologia aplicada ao exa­ me da matéria jurídica. Com efeito, a função hennenêutica deixa assim de ser algo atado apenas a uma simples e constante averiguação de textos cuja inteligência dantes se lograva tão-somente de maneira dedutivista, pela técnica de subsunção, escudada na Metó­ dica de Savigny, e mediante a qual se supunha extrair daqueles textos a norma já pronta e acabada para tomar-se, por excelência, atividade fecunda de uma razão crítica e, ao mesmo passo, criativa, participativa e construtiva de quem interpreta as leis e aplica o Direito. E o faz sempre em hamionia e adequação com os impera­ tivos humanos e sociais da realidade que não pode ser desprezada, se quisermos o estabelecimento de uma ordem normativa mais equânime e eficaz. 2. Em 29 de abril de 1986, O Estado de S. Paulo estampou artigo nosso, inti­ tulado “Friedrich Müller, o jurista da segunda metade do século”, precedido doutro

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Esta artéria parte da norma-texto (Normtext) - todo o artigo 102 e seu parágrafo único - para abranger em seguida a norma-programa (Normprogram), aquela que exaure, em suas bases de argumentação, o discurso normativo do texto, descobrindo-lhe o núcleo central de infe­ rência precisamente na cláusula de elegibilidade, circunscrita por habi­ litação de antiguidade aos componentes do numerus clausus. Em seguida, ocorre a interconexão da norma-programa com a norma-âmbito (Normbereich), a saber, aquela norma derivada dos elemen­ tos fáticos que instituíram a tradição eletiva, por antiguidade, para a ascensão aos cargos diretivos e que não devem ser em hipótese alguma conculcados na análise jurídica do caso vertente. A conjunção da norma-programa com a norma-âmbito faz nascer, enfim, a norma de Direito (Rechtsnorm) que outra não há de ser aqui senão aquela que impõe sejam reconhecidos por elegíveis unicamente os Desembargadores constantes da lista elaborada com observância do numerus clausus (art. 102, caput), correspondente aos três cargos de direção da cúpula judiciária (Presidente, Vice-Presidente e Correge­ dor), obedecida, ao mesmo passo, a cláusula de antiguidade em linha sucessiva, cuja rigidez indeclinável não deve ser afrouxada nem des­ feita, porquanto o parágrafo único do sobredito artigo não a quebranta de forma alguma. De sorte que a interpretação do art. 102 e seu parágrafo único há estabelecido já qual a norma de direito aplicável; mas o processo intelectivo e hermenêutico apenas terá remate quando a autoridade compe­ tente, sancionando o entendimento ora exposto, cuja exação se nos afi­ gura irrefragável, vier coroá-lo com a norma-decisão (Entscheidungsnorm), isto é, com a sentença ou o ato decisório, completando ou tor­ nando assim efetivas, em termos finais, as diligências concretizadoras daquela normatividade que se desenvolveu e se obteve mediante o con­ fronto dos argumentos de linguagem e sentido, derivados do texto jurí­ dico, com aqueles que promanam de um recorte da realidade, de uma publicado em 1984 - dois anos antes, portanto - no Rio de Janeiro, pela Revista de Direito Constitucional e Ciência Política, n. 2, Forense, e denominado “Teoria Es­ trutural do Direito”, no qual já versávamos algumas das teses capitais do mais im­ portante jusfilósofo alemão da atualidade. Esse estudo, ao que nos consta, foi o primeiro trabalho a aparecer no Brasil divulgando o nome, a obra e o pensamento de tão notável figura da Ciência Jurídi­ ca contemporânea. Para essa Ciência, Müller tem contribuído inovadoramente, com traços de genialidade, perceptíveis em sua Teoria Estruturante do Direito, bem como na Metódica Jurídica, da qual existe excelente tradução em língua francesa.

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ponderação de elementos tópicos que giram em esfera fática, onde se concentram dados extraídos de uma análise a todas as particularidades do caso concreto. De último, a norma decisória, obra de quem aplica o Direito, ten­ do recurso a meios hermenêuticos, representa o ponto culminante da tarefa interpretativa, a qual, no caso em tela, não poderia consagrar ou­ tro resultado senão este: O numerus clausus do caput do artigo 102 e a sua determinação constitutiva, por ordem de antiguidade dos membros componentes do colégio de Desembargadores, não padeceu nenhum abalo ou alteração proveniente do dispositivo de inaplicabilidade do parágrafo único. Este, portanto, em nada afetou a formação da lista vinculada à sucessão pro­ visória, ou seja, aquela que implica a eleição de juiz para completar período de mandato inferior a um ano. Por conseguinte, flui irretorquível da natureza, substância e essên­ cia das reflexões até agora expendidas, o sentido que anima o parágra­ fo único do artigo 102 e lhe atribui o inviolável alcance. Tal sentido, já determinado, conforme assinalamos, governa, protege e resguarda incontrastavelmente o direito líquido e certo dos que, por ordem de anti­ guidade, compõem a lista dos elegíveis habilitados a preencher o refe­ rido período parcial de mandato. Em razão de não haverem sido modificadas pela cláusula de ina­ plicabilidade, as condições regulares e normais de postulação de man­ dato nos tribunais permanecem inalteráveis e invioláveis; e em tal la­ titude que toda interpretação oposta configura afronta à Lei e à Cons­ tituição. Acham-se assim excluídos da elegibilidade para desempenho de mandato incompleto (parágrafo único do art. 102 da Lei Complemen­ tar n. 35) os Desembargadores cujos nomes não constem da lista for­ mulada com estrita observância do critério legal de antiguidade estatuí­ do pelo legislador complementar. Diante de subsídios que nos foram trazidos acompanhando a Con­ sulta e relativos ao quadro de antiguidade dos Desembargadores do Tri­ bunal de Justiça do Maranhão, ficam, pela autoridade dos textos le­ gais, habilitados a compor a lista dos elegíveis os Desembargadores Antonio Fernando Bayma Araújo, Antonio Carlos Medeiros e Jorge Rachid Mubarack Maluf. São os mais antigos e portanto os únicos na­ quela Corte que podem pleitear o ingresso ao cargo de Vice-Presiden­ te, a fim de perfazer período restante de mandato ao ensejo da aposen­ tadoria do titular.

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Demais disso, se ofensa houver à composição dessa lista, por obra de um entendimento errôneo do parágrafo único do art. 102, as vítimas da lesão, amparadas tanto na Lei Complementar como no Estatuto Su­ premo da República, poderão, pela via processual do mandado de se­ gurança, buscar o restabelecimento de seus direitos violados. Este o nosso Parecer, s.m.j. Em 4 de abril de 1997.

Capítulo 10 A CONSTITUIÇÃO ABERTA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS Constituição aberta e os Direitos Fundamentais, este excelente livro do professor Siqueira Castro, que tenho a honra de prefa­ ciar, vem a lume numa das ocasiões mais delicadas da história social do povo brasileiro no campo do Direito. Atravessa o País, hoje, a mes­ ma crise que, desde muito, açoita a família de povos subdesenvolvi­ dos, que demoram na orla do império capitalista.

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Os valores de libertação incorporados ao constitucionalismo con­ temporâneo, depois de tantas batalhas ideológicas e jurídicas feridas ao longo de dois séculos, se acham na iminência de padecerem deplo­ rável retrocesso ou ficarem anulados ou procrastinados indefinidamen­ te em sua concreção por obra do neoliberalismo e da globalização. O epicentro desse abalo, em suas conseqüências letais mais de­ vastadoras para o porvir, se situa nos países do chamado Terceiro Mun­ do, entre os quais o Brasil, onde a confusão de rumos e de idéias para­ lisa a razão pensante da sociedade agredida, que se vê sem guias e sem cérebros para a resistência, entregue, desfalecida e silenciosa, ao do­ mínio irresistível das elites governantes. O egoísmo, as ambições, a in­ sensibilidade dessas elites escrevem, porém, a mais negra página de traição nacional nos anais de nossa história. O livro de Siqueira Castro tem, a meu parecer, o grande significa­ do de mostrar nas regiões do Direito o caminho já perlustrado pela teo­ ria até chegar às culminâncias de uma reflexão acerca de toda a proble­ mática contemporânea do Estado, em ordem a ministrar subsídios que fazem compreender a direção, os rumos, os meios, os instrumentos com

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que dobrar, se possível, o cabo tormentoso do constitucionalismo de nossa época. E fascinante, pois, a abrangência, a latitude, a exposição minudente, a inteligência crítica dos problemas acumulados ao redor do tema, que o Autor versa com a proficiência de uma formação jurídica com­ pletada e aperfeiçoada em algumas das melhores universidades estran­ geiras. Esse lastro de cultura, essa bagagem de erudição haurida em estudos especializados, sobremodo lhe enriquece o currículo e lhe em­ presta, ao mesmo passo, o cunho científico e a idoneidade de sua tare­ fa investigatória. A matéria pertinente à Constituição aberta e aos direitos funda­ mentais configura, pois, na obra de Siqueira Castro um desafio filosófico-jurídico à perspicuidade teórica dos pensadores brasileiros para construírem, na esfera do Direito, uma fórmula constitucional de orga­ nização do poder que faça a proteção e a eficácia dos direitos funda­ mentais das três derradeiras gerações. As exigências de estabilidade do sistema, em termos de paz social, destinadas a garantir um desenvolvimento nacional mais humano e mais acorde aos princípios que regem a democracia, a justiça e a digni­ dade da pessoa humana, consoante o estatuído nos artigos 1“ e 32 da Carta Magna, onde se formulam os fundamentos e objetivos de nossa República Federativa, pendem, por inteiro, da concreção dos sobreditos direitos. E aqui vale lembrar, na ordem do processo constitucional, a originalíssima proposição do constitucionalista Paulo Lôpo Saraiva que, numa conferência proferida na Universidade de Coimbra, se re­ portou à necessidade de instituir um mandado de garantia social, o qual se nos afigura o instrumento por excelência com que afiançar o respei­ to às cláusulas declaratórias daqueles direitos fundamentais na estrutu­ ra do Estado social contemporâneo, sobretudo nos países em desenvol­ vimento, dentro, porém, dos limites de razoabilidade das prestações materiais impetradas ao Estado. Só assim a Justiça porá termo aos com­ portamentos omissivos de governantes e legisladores ordinários em matéria constitucional de execução dos sobreditos direitos. O mandado de garantia social se compadece, pois, como veículo processual, com a práxis e a doutrina que inspira todo o livro de Si­ queira Castro, por representar um instrumento da Constituição aberta que garante direitos fundamentais. E, se objeção houvesse ao emprego de tal recurso, em razão de limitações materiais do Estado, conforme já se assinalou, nem por isso fora afastável ou despiciendo aquele remédio jurídico-processual cuja

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adoção, tomamos a reiterar, far-se-ia nos quadros de uma vinculação de razoabilidade, acostado, por conseguinte, ao princípio da proporcio­ nalidade. Em suma, a justiça social, sempre presente e nunca denegada nos limites e nos termos ponderativos e hermenêuticos de cada problema concreto, aplicando-se ao mesmo a metodologia normativa e estinturante de Friedrich Müller - ao nosso ver o mais insigne e fecundo dos jusfilósofos contemporâneos - deverá ser, inarredavelmente, a base de legitimidade de todos os Estados constitucionais do Terceiro Mundo. Sem justiça social não há Estado de Direito nem democracia que so­ breviva nos países da periferia. Daqui se infere quanto o Estado social continua sendo, como ex­ pressão de poder e organização fundamental da sociedade, importante para o futuro dos povos subdesenvolvidos. Não podem estes prescindir de uma Constituição prospectiva, dirigente, programática e vinculante, teorizada pelos constituintes weimarianos e mexicanos da primeira me­ tade deste século, e positivada, no mais elevado grau, entre nós, pelos autores da Lei Maior de 1988. O abandono desse modelo significa para os povos continentais da América Latina o suicídio do seu projeto de libertação; por conseguinte, o fim das derradeiras esperanças concretízadoras de uma independência pela qual batalham há cerca de duzen­ tos anos, porfiando por extraí-la da esfera formal. A deserção, agora, eqüivale, do mesmo passo, a um mergulho na submissão neoliberal dos globalizadores, na escuridade das trevas da meia-idade condensadas por um capitalismo financeiro e especulativo da condição mais atroz, enfim, a rendição ao suposto determinismo da recolonização, que aqui querem introduzir os fautores da escola neoliberal, não admitindo al­ ternativas àquele projeto; algo, portanto, excruciante e inaceitável. Nesta crise ou é a humanidade que agoniza ou é o capitalismo que se desintegra. Unicamente o Direito prevenirá a crise aparelhada pelos sucessos contemporâneos do mercado globalizado, centralizado e mo­ nopolista, onde se concentra o capital, se amplia a desigualdade, se agrava a injustiça, e, também, por uma ciência cuja infinita expansão há servido até agora menos de emancipar do que fazer mais pesado o fardo das opressões sociais e o confisco do emprego, da renda, da so­ berania, da Constituição, da dignidade dos Poderes nos países subde­ senvolvidos. O arbítrio do Executivo, as omissões do Judiciário e a falência do Legislativo criaram um falso Estado constitucional e uma falsa demo­ cracia representativa. Não há Estado constitucional nem democracia

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representativa num País que durante dez anos, desde a promulgação de sua Carta Magna, se tem governado por mais de quatro mil medidas provisórias! É uma ditadura constitucional que faz inveja aos generais da “redentora” de 1964. Com efeito, o Estado de Direito é Estado de Justiça. Não é mera­ mente sistema de leis, porque as leis, segundo a doutíssima lição de Juarez Freitas, podem ser injustas. Podem ser por igual severas de mais, draconianas, tirânicas, cruéis. Leis que não libertam mas oprimem, como nas ditaduras. O arbítrio pode corromper e degradar o Estado das Leis e o Estado das Constituições, mas nunca o Estado justo, feito precisamente do respeito à lei e à Constituição, à legalidade e à consti­ tucionalidade. O Direito é justo porque é legítimo; só a lei pode ser injusta por­ que nem sempre é legítima. A Medida Provisória já anda na casa das quatro mil - o mais es­ trondoso escândalo de uma república constitucional - e nem sequer é lei, mas ato de poder, com teor normativo, consentido ou delegado ao Executivo pela Constituição, nos termos do art. 62. Quando não atende aos requisitos constitucionais de urgência e relevância, conforme acontece na práxis do regime, e o Poder Executi­ vo a reedita, configura ela a quinta-essência da ilegalidade, da ilegiti­ midade e da inconstitucionalidade. Tomamos, por conseguinte, a dizer noutros termos: sendo apenas medida, não é lei, posto que tenha força de lei. Quem a expede - o Executivo - o faz em caráter provisório, obedecendo ao mandamento do texto constitucional. O abuso de tais Medidas, porém, as converteu, no Brasil, em instrumento por excelência da ditadura constitucional, ressuscitando a república de decretos-leis, abolida desde a queda do Estado Novo de 1937 e, uma vez reinstalada em 1964, varrida de nos­ so sistema pelo constituinte de 1988, que jamais imaginou haver procriado um monstro. A inobservância do ditame constitucional de forma e conteúdo to­ lhe, assim, a passagem qualitativa e legitimante da Medida Provisória ao grau de lei propriamente dita, o que só pode ocorrer por via congressual, sendo toda reedição uma usurpação de poder que fere a Cons­ tituição. O Direito ou liberta ou não é Direito. Não lhe reconhecemos outra função, outra filosofia, outro escopo, outra validez. Não importa discu­ tir-lhe a origem, mas o fim; o fim na concretude social contemporânea,

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sobretudo quando se atenta que aí já baixam sombras espessas sobre o futuro da liberdade e o destino dos povos. Aquele fim é a vocação das Constituições. Não podem elas, em países da periferia, apartar-se, por conseguinte, do constitucionalismo dirigente, vinculante, programático. Fazê-lo seria condená-las à ineficácia, à obsolescência, à fatalida­ de, desatando-as de seus laços com o Estado social. No Brasil, designadamente, demolir o Estado social, qual se vem fazendo, é revogar três décadas de constitucionalismo. Uma insensa­ tez, um desserviço, um retrocesso! Mais e mais aumenta em nossos dias, em razão desse crime de govemo, que é crime de Estado, o fosso que separa o País desenvolvi­ do, onde mandam as castas privilegiadas, do País humilhado e subde­ senvolvido, onde padecem as massas esmagadas pela miséria absoluta. Convivência absurda que, caso não termine, um dia implodirá a nação! Estado hostil ou infenso à questão social, o seu Direito não segue os fatos, não acompanha a evolução da ciência, não gera os novos di­ reitos fundamentais, não chega ao campo das relações humanas, onde eles emergem e se fazem imperativos, por conseqüência de surpreen­ dentes avanços tecnológicos e cognitivos, como bem assinalou, com argúcia e propriedade, esse admirável jurista que é Siqueira Castro. A obra de Siqueira Castro nos auxilia, portanto, a compreender aquilo que se nos afigura a grande metamorfose do constitucionalismo do século XX: a passagem de um constitucionalismo formal, de textos, a um constitucionalismo material, de realidade, ou o transcurso de um constitucionalismo sem hermenêutica para o constitucionalismo interpretativo e normativo ou, em outras palavras, de um constitucionalis­ mo programático a um constitucionalismo positivo. Em suma, a traje­ tória do constitucionalismo político ao constitucionalismo jurídico nem por isso - advirta-se, de necessidade - faz este perder a substância ou a natureza política que em última análise lhe é ínsita. Com efeito, a Nova Hennenêutica levou a cabo a revolução do constitucionalismo contemporâneo. Nem todos os juristas - designa­ damente os mais conservadores - percebem o sentido e a extensão das transformações por derradeiro havidas. A nosso parecer, residem elas no perímetro de conceitos que as­ sentam sobre o contraste entre a regra e o princípio, pondo termo, as­ sim, a uma inversão normativa irracional que preponderou enquanto, por contradição, o jusprivatismo imperava soberano em quase todos os distritos da sociedade e se impunha por sua inspiração de valores - de

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cunho romanista e racionalista - ao juspubücismo, que foi mantido, como expressão ostensiva do poder do Estado, tanto quanto possível, latente, recessivo e restrito em seus fins e responsabilidades sociais. Era a época de esplendor do capitalismo industrial, em que o Di­ reito parecia habitar unicamente os códigos e não as Constituições. Pro­ tegiam-se com todo o rigor interesses de classe e ditava-se ao Estado, como fim, afiançar a segurança da sociedade e a livre circulação dos dogmas liberais de abstinência, tocante às funções sociais de interven­ ção na economia. A metodologia interpretativa de subsunção imperava inconteste na decifração dos problemas jurídicos; a vertente aristotélica do silogis­ mo tudo interpretava e tudo resolvia em matéria hermenêutica, e o fa­ zia a contento, enquanto imperavam tranqüilos e estáveis os direitos da primeira geração - direitos civis e políticos. Mas tudo mudou, e mu­ dou para sempre, quando advieram os direitos fundamentais da segun­ da, da terceira e da quarta gerações e a reflexão constitucional passou, numa hora feliz, de compatibilização teórica, para o outro pólo - o da vertente tópica, também aristotélica, formando os juristas de uma nova escola de pensadores e hermeneutas. Suas postulações fizeram o prin­ cípio deslocar a regra, a legitimidade a legalidade, a Constituição a lei, e assim logrou estabelecer o primado da dignidade da pessoa humana como esteio de legitimação e alicerce de todas as ordens jurídicas fun­ dadas no argumento da igualdade, no valor da justiça e nas premissas da liberdade, que concretizam o verdadeiro Estado de Direito. Os constitucionalistas reacionários, aferrados, contudo, às imagens saudosas do privilégio e ao culto da autoridade e da tradição ou aos abusos de um formalismo sem limites, buscam ainda, num teorismo vão, desmembrá-los da democracia e, por essa via, invalidar o proces­ so emancipatório dos povos do Terceiro Mundo. Numa linha pois de complexidade extrema, e com a qual decerto concorda o Autor, pelas premissas mesmas de sua profunda perquisição derivada das análises às bases constitutivas e justificativas da mo­ derna organização do Estado, tão distinta da forma medieva ou dos sis­ temas imperiais do Oriente ou dos modelos consagrados na polis grega e na civitas romana. Culmina essa complexidade com a presente época constitucional, como bem elucida Siqueira Castro, cujas reflexões acerca da Consti­ tuição aberta e dos direitos fundamentais colhem de cheio as surpreen­ dentes mudanças de nosso tempo, as quais põem em risco ou retardam a eficácia dos novíssimos direitos humanos que se devem positivar, ad­

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judicando-se-lhes a qualidade ou o grau de direitos fundamentais e fa­ zendo-os, por conseqüência, subir ao patamar constitucional, onde têm sua sede e garantia. Mas, em se tratando das cogitações neoliberais, aqui poderá haver o cisma dos publicistas constitucionais respeitante aos prospectos e às conseqüências da inevitabilidade da mudança. Segundo alguns, trata-se de metamorfose regida por um inexorá­ vel determinismo que impulsiona uma transformação sem freio; segun­ do outros, mudança administrada pelo livre-arbítrio dos governantes em presença de efeitos supostamente inelutáveis contidos na adequação e ajustamento do poder político nacional às condições ditadas ao Estado pelo ultimato do capitalismo financeiro-especulativo, de reação, repres­ são e compressão. Em nome da globalização, e com base doutrinária no pensamento neoliberal, esse capitalismo intenta desfazer, em proveito de sua ex­ pansão e no propósito de consolidar suas obstinadas metas de conquis­ ta de mercado e seu novo estilo de dominação econômica, os quadros cada vez mais apertados da autodeterminação econômica e política dos povos. Dissolvendo soberanias ou enfraquecendo-lhes os instrumentos de proteção constitucional, o capitalismo daquele gênero coloca os Esta­ dos da periferia na ponta deste dilema: ou a resistência bem-sucedida, que absorverá as transformações ao preço das privações e sacrifícios impostos pelo bloqueio neoliberal do Consenso de Washington, sem abdicar, todavia, dos programas sociais de educação, saúde, segurança e previdência, com o povo conservando a jurisdição de seu destino, o que seria a melhor alternativa, ou a curvatura dorsal aos globalizado­ res, em troca de empréstimos financeiros que acabam por arruinar a moeda, elevar a taxa de juros, fazer a economia baquear na estagnação e a dívida contraída subir a proporções tão extremas que as conseqüên­ cias não têm sido outras senão o colapso da soberania, a desnacionali­ zação, o status de vassalagem, a perda da dignidade nacional em acor­ dos sigilosos celebrados com o Fundo Monetário Internacional, a desprecavida abertura de mercados e, breve, do espaço aéreo, bem como a invasão do capital estrangeiro, que se apodera das grandes reservas po­ tenciais da riqueza nacional e consuma a recolonização passiva e pací­ fica desse País que hoje é mais um território do que uma nação. Os governantes fazem o papel de donatários das capitanias feu­ dais em que a globalização está transmutando os antigos Estados nacio­ nais da periferia ao inaugurar a Idade Média do Terceiro Milênio. O

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homem dessa meia idade não é o servo da gleba mas o hilota do capi­ tal; aqui, o metal substitui a terra e o banqueiro o barão. Engana-se, porém, quem supõe que esse processo é fatalidade, ou que a idéia de nação se acha extinta. Nem pereceu a ideologia, nem se apagou a nacionalidade, nem se deu fim à história. Tudo é impostura dessa máquina que fabrica falsos valores e lembra as patas do cavalo de Atila: onde pisa o solo, não nasce a erva. O corcel dos globalizadores busca fazer consentânea essa imagem de destruição e flagelo do Estado nacional com seu desígnio de intimi­ dar os povos abraçando-se a tese inaceitável do determinismo. Mas não precisamos fechar a Constituição para organizar a resis­ tência, porque fechá-la seria negá-la. Em verdade, a Constituição, pos­ to que espedaçada, é a arma do povo, o derradeiro baluarte de suas liberdades. E o constitucionalismo de libertação em todas as suas di­ mensões de concretude, fora das esferas puramente formais e abstratas que foram o ludibrio de dois séculos, durante os quais se intentou, em vão, a derrubada definitiva dos privilégios, a remoção de bloqueios e a cicatrização da ferida social. Ao contrário do que pensam os neoliberais, há de ser esse constitucionalismo a legítima vocação do milênio que desponta, a sua irremissível caminhada para a democracia e a ple­ nitude de eficácia de todos os direitos fundamentais. Os sistemas representativos contemporâneos estão apodrecendo em todas as sociedades políticas; este, sim, é o mal globalizado de nos­ so tempo. Asneira cuidar que o bacilo dessa enfermidade não se inocula por igual nos organismos das sociedades desenvolvidas, não as rom­ pe, não lhes invade os tecidos, não as desfibra, nem as atinge, como se possuíssem elas a virtude ou o talismã de alguma imunidade salvadora. Nos países do Terceiro Mundo o mal se alastra: as casas legislati­ vas, os tribunais, os palácios do Poder Executivo enfrentam, perante o regime representativo, a sua pior crise de legitimidade, conquanto não haja ainda consciência de que a globalização desmoraliza o govemo, avilta a sociedade, arruina as instituições; é, em si mesma, o colapso de valores, a internacional capitalista do século XXI, içando o pavilhão verde do mercado de ações, que tremula triunfante nas bolsas de valo­ res, por réplica à bandeira vermelha da foice e do martelo, arriada em farrapos sobre as ruínas da União Soviética, depois de decretada a sen­ tença de morte do socialismo autocrático e absolutista da era de Stalin. A agonia dos países subdesenvolvidos faz prever a iminência do traspasse, e não há como prevenir o baque surdo na recolonização, sal­

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vo, talvez, por ação na órbita interna mediante alternativas de reforma ou revolução. A calmaria social no Brasil, com o entorpecimento da classe mé­ dia, tão sacrificada pelos globalizadores, e do poder sindical, tão inti­ midado pelo desemprego, e não menos sacrificado, aponta já para um horizonte onde se condensa, na antevéspera da tempestade, a nuvem negra dos descontentamentos sociais. É de prever, se não mudarmos a rota de nossa economia e de nos­ sa política de govemo, desfeito o círculo das promessas neoliberais e a ilusão e resignação com que o “determinismo” da globalização sufoca o País, que cursemos o caminho da instância revolucionária, a fim de salvar a nação, a soberania, a Constituição, os valores políticos da de­ mocracia, sem os quais tudo mais é ludibrio. A Constituição de 1988, boa ou má, aplaudida ou recriminada, mais remendada pelo presente govemo que capa de mendigo, na ima­ gem do clássico seiscentista, é, queiram ou não os seus adversários, a derradeira âncora, como já se disse, que ainda temos à mão nesse regi­ me de medidas provisórias para tolher o naufrágio das instituições em mar onde flutuam, já, os destroços da lei, da moral administrativa e da legitimidade do poder. Vamos, portanto, salvar a Constituição. O livro de Siqueira Castro faz convite à imaginação criativa para o Brasil poder atravessar a crise sem, obviamente, cair na submissão irremediável que seria a revogação de um passado que nos honra, ou seja, sem perder a memória dos nossos heróis, sem esquecer as lições de Tiradentes na Inconfidência, de Antônio Carlos na dissolução da Constituinte, de Frei Caneca na Confederação do Equador, de Nabuco na libertação dos escravos, de Rui Barbosa na Constituição de 1891, quando formulou o habeas corpus vestido de nova doutrina e fez valer a proposta federativa da unidade nacional depois da queda do Império. Num dos melhores capítulos de sua obra toca Siqueira Castro em algo de extrema relevância, a saber, a conexidade do Direito Constitu­ cional com o Direito Internacional, vista por ele com bastante otimis­ mo, mas, a nosso ver, sem embargo dos excelentes laços já tecidos, sujeita a ser sempre encarada com alguma reserva ou cautela na idade da chamada globalização. Os vínculos paritários de coordenação nas relações internacionais não raro sucumbem à amarga realidade de nosso tempo, onde costu­ mam perdurar liames desiguais de submissão ou subordinação, a par de omissões deploráveis, quais aquelas que ocorreram relativas à assi­

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natura e também à ratificação das convenções acerca de direitos da ter­ ceira geração, sobretudo o direito dos povos ao desenvolvimento, ma­ téria postergada e preterida pelas grandes potências. Tudo isso ocorre por obra do desequilíbrio de forças e poderes na comunidade internacional; caso em que o direito das gentes, ferido com o declínio das soberanias nacionais, acaba sendo avassalado aos inte­ resses que fazem a supremacia das potências hegemônicas. Estabelece-se assim um descompasso entre a igualdade formal e jurídica e a desigualdade material e política, fomentando a injustiça, a opressão e a genuflexão com que os fortes dominam os fracos ou com que, de ordinário, se traslada o teorema de Lassalle sobre as Constitui­ ções para a esfera dos tratados e das organizações internacionais, onde o Direito é apenas a idéia e o Poder é a norma, a regra, o princípio, dissimulados pelo capitalismo contemporâneo, sempre feroz e cordial; feroz na sustentação de seus interesses e cordial na mesa das conversa­ ções onde os seus diplomáticos costumam falar manso e decidir com dureza. As clássicas e liberais Declarações de Direito, universalistas na forma, mas individualistas na substância, assim o foram por não se po­ derem desprender materialmente de seu teor e compromisso de classe - a classe dantes sublevada e revolucionária, e depois triunfante e con­ servadora, a saber, a burguesia do século XIX, com os seus códigos, a sua legalidade, o seu jusnaturalismo de retórica e museu, o seu racionalismo positivista fixado nas leis do sistema, tendo por inspiração o dogma individualista das Constituições liberais. Mas tais Declarações, sem embargo de serem simbólicas, emble­ máticas, refertas de promessas, foram, sem dúvida, a alavanca com que os princípios moveram a dialética social e a história. Com efeito, os princípios enunciados ali, sendo dialéticos, não param, não retrogra­ dam' nem desfalecem e, ao mesmo passo, regem a mudança, estabele­ cem o processo evolutivo da sociedade e determinam os progressos qualitativos das instituições. De sorte que o constitucionalismo passou a novas dimensões de concretude em matéria de direitos fundamentais, até decretar, de últi­ mo, na idade contemporânea, sobre bases normativas supremas a he­ gemonia dos princípios e valores. Uma extraordinária revolução axiológica há de concretizar e universalizar, pois, o Direito! E veio ela para ficar, porque é um avanço na consciência jurídica, cimentando a cons­ titucionalidade em todos os seus graus superiores de manifestação e eficácia.

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Isto fez possível criar ou instituir também a Nova Hennenêutica constitucional. Aliás a antiga, a outra, em rigor nem existia por ser ancila do interpretativismo clássico, dedutivista, jusprivatista e de subsunção; em última instância, de raro ou nenhum préstimo em se tratan­ do de aplicar cláusulas gerais e abertas, quais soem ser, de ordinário, as cláusulas de uma Constituição. Sua normatividade deriva da juridicidade do sistema, que a ceguei­ ra dos hermeneutas tradicionais, de inspiração romanista, não lograva vislumbrar nem discernir. Por essa razão, rebaixava-se o grau de eficá­ cia e alcance interpretativo dos princípios, fazendo-os a mais subsidiá­ ria das fontes hermenêuticas, que os Códigos positivaram durante o sé­ culo XIX e parte do século XX. Refere Siqueira Castro à “flexibilidade peculiar ao constituciona­ lismo pós-modemo”. Mas essa flexibilidade decerto nos conduz, com a febre das Emendas, ou ao despotismo executivo das cognominadas “ditaduras constitucionais” ou nos leva, de necessidade, a instituir um terceiro Estado de Direito - o primeiro fora o Estado liberal e o segun­ do o Estado social - que, ao meu ver, para ser bem-sucedido, há de arrimar-se à democracia participativa direta - portanto, a uma nova le­ gitimidade, erigida sobre a falência e as ruínas da intermediação repre­ sentativa. Kelsen, aliás, se houve como um jurista de intuição por extremo genial ao estabelecer, com a norma fundamental, o degrau mais alto do ordenamento jurídico do primeiro Estado de Direito, coroando ali a es­ tática normativa de seu sistema hierárquico, puramente formal. E o fez proclamando a supremacia da Constituição, a rigidez de suas regras e a criação de um Tribunal Constitucional com que fazê-las mais eficazes e respeitadas. Construiu assim o edifício onde o Direito Constitucional teve sua morada durante todo o período de apogeu do Estado liberal. Mas a ruptura de conteúdo do ordenamento jurídico clássico, este século, após o surto das pressões ideológicas que afrouxaram a unida­ de material dos interesses sociais da burguesia, tutelados na esfera jus­ privatista dos Códigos, determinou a ascensão normativa das Consti­ tuições e sua elevação a níveis de juridicidade assentados, mais e mais, na criação e expansão do controle de constitucionalidade e na conside­ ração básica e material dos princípios. Entraram eles a guiar a supremacia, a hierarquia e a legitimidade dos conteúdos constitucionais e, sendo doravante a chave de sua força normativa, e do prestígio da ética inspiradora das suas raízes, puseram termo na doutrina dominante à ascendência do formalismo com que

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Kelsen construíra sua pirâmide normativa numa admirável ordenação lógica do sistema. Ocorre, todavia, que a teoria do chefe da escola de Viena, em ma­ téria constitucional, ficara juridicamente imperfeita por omitir a subs­ tância normativa dos valores contidos nas cláusulas gerais, que alojam os princípios e fazem destes o fundamento supremo da legitimidade, abrindo assim a artéria por onde o Direito, a Justiça e a eqüidade che­ gam ao cidadão e lhe garantem a segurança constitucional dos seus di­ reitos fundamentais. Desse modo se alcança o novo Estado de Direito, o da segunda dimensão, que é o Estado social, em substituição do clássico Estado de Direito da primeira dimensão, gerado pela hegemonia política e jurídi­ ca do “Terceiro Estado”, aquele que fez estalar a Revolução Francesa e foi, depois, o dono das Constituições do século XIX. O segundo Estado de Direito se acha porém ainda em fase de con­ solidação e expansão. E, em países como o Brasil, a reação neoliberal intenta liquidá-lo, numa ocasião em que, contraditoriamente, os direi­ tos da terceira e da quarta gerações assumem importância capital. Com eles se vislumbram, já, nos horizontes do constitucionalismo aberto e democrático o advento da terceira categoria de Estado de Direito, do qual é pressuposto essencial o Estado social, e que se chama Estado de Direito da democracia participativa e direta, estuário de todas as cor­ rentes que fluem para a libertação humana, e que tem sido a utopia de todas as idades na palavra e na razão de grandes filósofos e pensado­ res. Sem eles, sem um Rousseau, sem um Montesquieu e sem um Marx, não teríamos alcançado as emancipações parciais que concretizam a presença cidadã na obra de governo. Como o Estado social corre perigo, abdicar as garantias sociais nesta hora é perecer. E perecer pelo braço dos globalizadores deslembrados da lição de Sombart que apontara para o erro essencial de Marx: a internacionalização compulsiva do socialismo revolucionário, inter­ nacionalização que destrói o sentimento nacional tanto quanto o faz o capitalismo globalizante, de natureza financeira, pela via oblíqua da pax americana e do seu neoliberalismo, cristalizado no Consenso de Washington. Demais disso, este tem devastado as instituições firmadas no poder do Estado enquanto agente social de emancipação. A verda­ de, nenhuma globalização pode fazer cessar na sociedade capitalista a luta de classes - uma luta eterna, como reconhecia aquele economista, pelo menos enquanto subsistir o capitalismo - nem, tampouco, destruir na alma dos povos e das etnias o sentimento de nacionalidade e regio-

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nalidade; este último o erro trágico cometido dantes pelo marxismo e agora trazido de volta na versão neoliberal da globalização. Tomando porém à consideração dos direitos da terceira e da quar­ ta gerações, que, passada a tormenta do neoliberalismo, hão de cimen­ tar o Estado de direito da democracia participativa e direta do século XXI, cabe-nos assinalar, em sede de caracterização daqueles direitos, que, vistos por um de seus ângulos, sintetizam eles a transubstanciação, a transnacionalização, a transobjetivação; quer dizer, não se con­ ferem a um só ente, não pertencem a uma só nação, não compendiam um só ordenamento jurídico. Primeiro, se dilatam no pluralismo das titularidades, deixando de ser tão-somente, como tantas vezes já afirmamos noutros escritos, os direitos do indivíduo, da coletividade ou da classe, consoante de certo modo acontecia, com freqüência, nas dimensões antecedentes, para buscarem a sua verdadeira e legítima unidade fundamental radicada nos povos, por via de seu desenvolvimento, e no gênero humano, pelo ca­ minho de sua libertação. Obra messiânica de alargamento dos próprios direitos fundamen­ tais, esse terceiro Estado de Direito se cifra na execução paulatina e universal de um processo, que ontem fora utopia e hoje é marcha para a realidade, caminho para a democracia direta, jornada para os direitos fundamentais de todas as gerações ou dimensões, viagem para uma concretude definitiva. Vamos preparar, pois, o advento de uma nova idade: a do direito social, entendido como a suprema concretização axiológica de uma for­ ma de Estado; portanto, conceito mais largo e profundo de ordenação jurídica que o de Estado social da tradição deste século. Com efeito, conjugando justiça, igualdade, democracia, liberda­ de, fraternidade e pluralismo, o direito social se faz, por conseguinte, a representação valorativa do Estado social no mais subido grau de sua legitimidade e teorização. Hoje Estado social, amanhã direito social. Assim se há de qualificar, na pauta dos regimes políticos, o elemento estruturante mais acabado do poder de cidadania, em sua fónnula de universalidade e expansão dos valores fundamentais da convivência humana. Em suma, por este prisma, Estado social não é norma nem sistema de nonnas; é direito e sistema de direitos; é direito social tendo a justi­ ça por sinônimo e os princípios por fundamento. Compõe, de conse­ guinte, a matéria, a essência, a substância do terceiro Estado de Direi­ to: o Estado justo das leis justas, o superlativo da legitimidade.

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Enfim, retomando a impressão causada pela obra de Siqueira Cas­ tro, devemos asseverar que livro tão denso e tão vasto na esfera dos assuntos versados, e que nos moveu a tantas reflexões, é convite à lei­ tura, ao estudo, à análise. Opulenta, pois, a nossa bibliografia de Direi­ to Constitucional. Um livro escrito para o presente e para o futuro. Con­ gratulações ao notável jurista e Autor.

Capítulo 11 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ive o Brasil uma fase de efen/escência espiritual e de fecunda pro­ dutividade na esfera das letras jurídicas. Basta assinalar, explicativamente, o que se passa na faixa que vai de São Paulo ao Rio Grande do Sul.

V

Com efeito, ao longo desta vasta região despontam novos valores, novos nomes, novos talentos, novos engenhos; são Flávia Piovesan e Marcelo Figueiredo na terra bandeirante; Clémerson Clève no Paraná, Reinaldo Pereira e Ruy Samuel Espíndola em Santa Catarina, e, de úl­ timo, Ingo Wolfgang Sarlet e Alberto Pasqualini no Rio Grande do Sul, ambos formados à sombra do magistério de um jurista de consolidada reputação internacional que é o Professor Juarez Freitas. Quanto ao primeiro nome gaúcho de que se fez menção, a saber, o Dr. Ingo Sarlet, depara-se-me agora a honra de prefaciar-lhe a mono­ grafia acerca do princípio da dignidade da pessoa humana. E trabalho que merece extrema atenção, em razão tanto do tema como do autor que o versou. Em verdade, fez o Dr. Sarlet, há dois anos, significativa aparição pública com livro que cedo já desponta como um clássico na literatu­ ra jurídica do Brasil contemporâneo: A Eficácia dos Direitos Funda­ mentais. A obra deu continuidade a outro estudo de vasta erudição e pro­ fundeza, estampado em língua alemã e intitulado A Problemática dos Direitos Fundamentais Sociais na Constituição Brasileira e na Lei Fundamental Alemã (Die Problemafik der sozialen Grundrechte in der brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgesetz). Foi este

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trabalho a tese de pós-graduação que lhe valeu o doutoramento pela Universidade de Munique, na Alemanha; título conquistado com nota máxima de aprovação. Demais disso, no que toca à sua atividade pro­ fissional, o Dr. Ingo Sarlet a reparte entre a magistratura, onde veste a toga de juiz do Estado, e o magistério, onde, na faculdade de leis, minis­ tra as aulas de sua especialização no campo do Direito Constitucional. Desse jovem mestre e jurista vem agora a lume, conforme referi­ mos, o trabalho sobre a dignidade da pessoa humana, por si mesmo de­ monstrativo, já, da excelência da atualidade temática que oma o livro. Poder-se-ia cuidar achar-se o leitor em presença, apenas, de uma daquelas matérias vistas, de ordinário, como utópicas, abstratas, de fei­ ção puramente metafísica, referidas à região platônica das idéias e de­ satadas de laços mais consistentes com as esferas reais da existência humana; matérias desenvolvidas, por conseguinte, em tennos retóricos e programáticos, habituais ao estilo de quem contempla tão-somente as categorias do dever-ser ideal e nelas coloca consolativamente as espe­ ranças do porvir. Não é bem assim, todavia. A dignidade da pessoa humana desde muito deixou de ser exclu­ siva manifestação conceituai daquele direito natural metapositivo, cuja essência se buscava ora na razão divina ora na razão humana, consoan­ te professavam em suas lições de teologia e filosofia os pensadores dos períodos clássico e medievo, para se converter, de último, numa propo­ sição autônoma, do mais subido teor axiológico, irremissivelmente pre­ sa à concretização constitucional dos direitos fundamentais. E por essa direção, pois, que caminha o estudo do Dr. Sarlet. Com efeito, parte ele de considerações teóricas e históricas sobre aquela noção-chave até trazê-la, em busca de concretude, ao sistema jurídico vigente entre nós. O pensamento constitucional do Autor decerto converge no senti­ do de ver'aquele axioma da liberdade reconhecido e interpretado como a norma das normas dos direitos fundamentais, elevada, assim, ao mais alto posto da hierarquia jurídica do sistema. Isto, depois de haver mos­ trado, com toda pertinência, que o princípio estabelece limites à ação do Estado e protege a liberdade humana nos espaços onde ela tem sido mais violentada e agredida e ignorada por quantos abusam do poder ou se arredam da fórmula cardeal do Estado de Direito, a qual reside, toda, na intransponibilidade da fronteira que a razão constituinte traçou en­ tre a autoridade e o arbítrio. O ensaio do Dr. Ingo Sarlet é sem dúvida luminosa projeção de claridade, por onde se mede o alcance que tem e deve ter sempre aque­

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le valor principiológico como direito positivo na compreensão e apli­ cação de mandamentos constitucionais. Basta, aliás, a mais breve reflexão sobre o artigo inaugural do tex­ to supremo do regime e já se deduzirá, de imediato, a excepcional im­ portância que, ao sobredito princípio, lhe deu o constituinte de 1988. Fê-lo de estatura tão elevada quanto os princípios da soberania, da ci­ dadania, do pluralismo, do reconhecimento social e axiológico ao tra­ balho e à livre iniciativa, classificados, também, como componentes medulares das instituições do nosso sistema constitucional de poder. Introduzir, de conseguinte, o princípio da dignidade da pessoa hu­ mana como princípio fundamental na consciência, na vida e na práxis dos que exercitam a governação e dos que, enquanto entes da cidada­ nia, são, do mesmo passo, titulares e destinatários da ação de govemo, representa uma exigência e imperativo de elevação institucional e de melhoria qualitativa das bases do regime. É o que se preconiza numa sociedade açoitada de inumeráveis le­ sões aos direitos fundamentais e de freqüente desrespeito às garantias mais elementares do cidadão livre, aquele que se prepara para compor os quadros da democracia participativa do futuro. A leitura desse ensaio do Dr. Ingo Sarlet é, nessa linha de refle­ xões, o primeiro passo de uma preparação teórica dos que, abrindo a Constituição, almejam decifrar-lhe o sentido axiológico e determinar, igualmente, os parâmetros hermenêuticos de sua compreensão. Estes residem todos, a meu ver, numa síntese substantiva, cifrada no princí­ pio da dignidade da pessoa humana. Parece-me - e nisso há de convir também o Autor pelas premissas estabelecidas em seu primoroso trabalho - que o princípio em tela é, por conseqüência, o ponto de chegada na trajetória concretizante do mais alto valor jurídico que uma ordem constitucional abriga. Ponto de chegada também na escala evolutiva do direito em sede de positivação, porquanto o Direito, depois de ser direito natural, com a teologia e a metafísica, direito positivo com a dogmática e, finalmen­ te, à míngua doutra dicção mais adequada, direito interpretativo com a hermenêutica, ocupa, por derradeiro, o universo dos valores, o mundo novo dos princípios, o extenso campo das formulações axiológicas da razoabilidade, que são o fundamento normativo, por excelência, dos sistemas abertos, onde nem sempre a lógica axiomática-dedutiva do formalismo positivista tem serventia ou cabimento, substituída, desig­ nadamente, em questões constitucionais, por métodos argumentativos e axiológicos desenvolvidos pela Nova Hennenêutica.

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Toda a problemática do poder, toda a porfia de legitimação da au­ toridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalida­ de se acham consubstanciados. Demais disso, nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pes­ soa humana. Quando hoje, a par dos progressos hermenêuticos do direito e de sua ciência argumentativa, estamos a falar, em sede de positividade, acerca da unidade da Constituição, o princípio que urge referir na or­ dem espiritual e material dos valores é o princípio da dignidade da pes­ soa humana. A unidade da Constituição na melhor doutrina do constituciona­ lismo contemporâneo só se traduz, compreensivelmente, quando toma­ da em sua imprescritível bidimensionalidade, que abrange o formal e o axiológico, a saber, forma e matéria, razão e valor. Ambos os termos conjugados assinalam, com a revolução herme­ nêutica, o momento definitivo da supremacia principiológica dos con­ teúdos constitucionais sobre os conteúdos legislativos ordinários da velha dogmática e, ao mesmo tempo, exprimem a ascensão da legiti­ midade material que põe em grau de menor importância, por carência de préstimo superior nas soluções interpretativas da Constituição, o for­ malismo positivista e legalista do passado, peculiar à dogmática jurídi­ ca do século XIX. Formalismo que interpretava regras e não princípios. Por isso mesmo, mais atento ao texto das leis que ao Direito propria­ mente dito'. Daquele binômio deriva, em suma, a reconciliação da dogmática com a hermenêutica, fundamentando, assim, fora do âmbito especifi­ camente constitucional, em termos genéricos, a legitimidade do novo Direito, mais propínquo à vida que à utopia, mais chegado e permeá­ vel, portanto, à hegemonia do princípio que consagra a dignidade da pessoa humana. Assinale-se, por derradeiro, que as formas democráticas do mode­ lo participativo direto são politicamente em nosso tempo as mais com­ patíveis com o emprego e concretização daquele princípio no constitu­ cionalismo do século XXI.

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Enfim, sem o livro do Dr. Sarlet tão rápidas e fugazes reflexões não me teriam ocorrido. E monografia de leitura fácil, instrutiva, pro­ veitosa, vazada nos copiosos mananciais de erudição do distintíssimo Autor. Honra as letras jurídicas do Rio Grande do Sul e se recomenda, por igual, a quantos buscam os caminhos morais da regeneração nacio­ nal e não podem, na crise do sistema, que é a crise das instituições do Estado democrático de Direito, prescindir de tão nobre princípio: o princípio da dignidade da pessoa humana.

Capítulo 12 A PRESUNÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO' I. Os fundamentos jurídicos e a refutação das inconstitucionalidades

Constituição do Estado da Paraíba instituiu em seu art. 270, pará­ grafo único, um sistema especial de aposentadoria para titulares de mandato eletivo, o qual, segundo erroneamente se busca sustentar,

A

1. Parecer de 22 de agosto de 1998: Consulta-nos a Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba por intermédio de seu Presidente em ofício n. 575, de 14 de julho do ano em curso, acerca da argüição de “inconstitucionalidade do art. 270 da Constituição paraibana e, por via de conseqüência, da Lei n. 5.238/90, que regulamentou o citado dispositivo” . Cons­ ta a argüição de Parecer do Procurador do Ministério Público junto daquele órgão, consoante nos informa o eminente deputado Inaldo Rocha Leitão, Presidente da Casa de Epitácio Pessoa. É do seguinte teor a consulta: “N este sentido, estou apresentando a Vossa Excelência o questionamento abaixo: 1 - O art. 270 da Constituição do Estado da Paraíba dispõe: “Art. 270 - O titular de Mandato eletivo ou de função temporária, Estadual ou Municipal, terá direito à aposentadoria proporcional ao tempo de exercício, nos termos da Lei. Parágrafo único. O beneficio a que se refere o “caput” deste artigo será con­ cedido àquele que contar com, pelo menos, 08 (oito) anos de serviço público em qualquer das funções mencionadas.” Por seu turno, a Lei Estadual n. 5.238, de 24 de janeiro de 1990, que regula­ mentou o referido art. 270 da CE/PB, assim dispõe: (ver Lei anexa)

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teria incorrido, do ponto de vista formal, em duas inconstitucionalidades: uma, diz-se, por tropeçar no art. 22, inciso XXIII, da Carta Mag­ na, que reserva à União a competência privativa de legislar sobre segu­ ridade social; outra, alega-se, por violar o § 2a, do art. 40, que estabele­ ce reserva de lei sobre dispositivos pertinentes a aposentadoria em car­ gos ou empregos temporários. A primeira dessas supostas infrações à Lei Maior afigura-se-nos de todo insubsistente, porquanto a configuração de inconstitucionali­ dade decorre, naquela primeira increpação, de grave equívoco de quem a fez, não distinguindo seguridade social de previdência social. Esse falso entendimento provocaria deplorável contradição normativa no corpo da Constituição mesma. Com efeito, admitida tal inteligência, a regra do art. 22, inciso XXIII - competência privativa da União para legislar sobre seguridade social - passaria a embargar a aplicabilidade do disposto no caput do art. 24 e inciso XII - competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre previdência social. Isto obviamente ocorreria porque, havendo, como ficou dito aci­ ma, legislação privativa da União sobre seguridade social - e esta ex­ pressão o hermeneuta a toma equivocadamente por sinônimo de previ­ dência social - não caberia legislação concorrente sobre a mesma ma­ téria. Uma competência logicamente exclui a outra. Quem fizesse semelhante confusão de conceitos - e os censores da suposta inconstitucionalidade o fazem - sobre incorrer num dislate e contra-senso, perpetraria equívoco de interpretação constitucional, vulnerando, com a contradição nonnativa estabelecida, o princípio de unidade da Constituição, o mais inquestionável postulado de conservação da ordem fundamental, atacado assim frontalmente e com extrema rudeza. Ante o exposto, consulta-se: 1. O Estado da Paraíba poderia dispor, em sua Constituição, sobre sistema especial de aposentadoria, tal como o fez através do art. 270 da CE/PB, acima trans­ crito? Em caso afirmativo, como interpretar o entendimento de que “somente a Constituição Federal pode dispor sobre aposentadorias especiais” (Acórdão do TJ/ PB)? E como interpretar o disposto no art. 22 da Constituição Federal? 2. O sistema previdenciário objeto da Lei Estadual n. 5.238/90, com partici­ pação obrigatória do erário no seu custeio, é constitucional, sobretudo tendo-se em vista a competência da União para legislar sobre previdência social (inc. XII, art. 24 da CF)? 3. O art. 270 da CE/PB e a Lei Estadual n. 5.238/90 ferem o princípio consti­ tucional de moralidade administrativa?”

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É esse princípio que expurga as contradições do ordenamento, mantém a coesão e a congruência e a identidade do sistema constitucio­ nal e, ao mesmo passo, lhe assina a eficácia e a juridicidade. O princí­ pio da unidade da Constituição é, no dizer de Klaus Stem, “o mais no­ bre princípio interpretativo que existe” (Klaus Stem, Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Band III, pp. 1.646, 1.647). Só a obnubilação conceituai confundiria aqui o gênero com a espécie. É verdade que a seguridade social abrange em sentido lato a pre­ vidência social, a saúde e a assistência social. Por definição constitucio­ nal, congloba um “determinado conjunto integrado de ações”, assecuratórias de direitos, cuja iniciativa pertence tanto à Sociedade como ao Estado (art. 194 da Constituição Federal). É regime de proteção às pes­ soas, que o Estado e a Sociedade constituem na dimensão do interesse público e social e que a Primeira Conferência de Seguridade Social, celebrada em Santiago do Chile, em 1942, caracterizou como um com­ promisso de gerações, tendo por objetivo essencial a promoção de “uma economia autêntica e racional de recursos e valores humanos”, cu­ jos principais meios de realização vêm a ser o seguro social obrigatório, a assistência social e o seguro social voluntário (ver nesse tocante Se­ gundo V. Linares Quintana, Tratado de la Ciência dei Derecho Consti­ tucional Argentino y Comparado, t. V, Buenos Aires, 1956, p. 103). Com respeito porém à previdência social, faz-se mister assinalar e isto é fundamental - que seu tratamento jurídico na Constituição em matéria de competência é específico. Todo ele se enquadra no âmbito da legislação concorrente, conforme determina o art. 24, XII, do Esta­ tuto Básico. Consta, portanto, como exceção à legislação privativa da União sobre seguridade social. Fora daí, a previdência social se regula na Constituição pelos arti­ gos 201 e 202 da Seção III sobre Seguridade Social, compreendido no Título VIII, referente à Ordem Social, bem como pelo art. 149, pará­ grafo único. Prevalecesse entendimento diverso e a regra do art. 24, inciso XII, perderia sentido, já não havendo como situar a legislação concorrente do Estado-membro na esfera da previdência social, em face da compe­ tência privativa da União (art. 22, inciso XXIII). Não é por aí, pois, que se vai acoimar de inconstitucional o art. 270, parágrafo único, da Constituição da Paraíba, que dispôs sobre pen­ são parlamentar. O art. 270 é texto específico de previdência social; não tem assim laços que o façam colidir, em matéria de competência, com o art. 22, inciso XXIII, da Carta Magna. Todo ele se rege - e isto

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afasta qualquer eiva de inconstitucionalidade - pelo art. 24, inciso XXII, e seus quatro parágrafos, cujos dispositivos sobre previdência social ministram a chave do problema constitucional vertente. 2. A segunda linha de ponderação com que se intenta negar a cons­ titucionalidade do art. 270 da Constituição paraibana move-se ao redor da hipotética ofensa do legislador constituinte estadual ao § 2- do art. 24 da Constituição Federal. O pleito de inconstitucionalidade se desloca assim, doravante, da esfera de competência privativa da União para o âmbito da legislação concorrente, onde, mais uma vez, conforme veremos, não vingam as investidas contra o art. 270 da Constituição do Estado da Paraíba. A legislação concorrente é a do art. 24, cujo inciso XXII faz inci­ di-la sobre previdência social e cujo § 2- limita a competência da União unicamente ao estabelecimento de normas gerais. Aqui se inculca que o legislador primário do Estado-membro - no caso, o da Paraíba - depois de introduzir na sua Carta um sistema de aposentadoria especial, reservado pelo constituinte originário da comu­ nhão federativa ao Licurgo federal, com base no texto do § 2" do art. 40, segundo o qual “a lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários”, quebrantara, do mesmo passo, outro dispositi­ vo contido no § 1“ do art. 24 (o das normas gerais); num caso lesão à reserva de lei; noutro invasão da competência concorrente da União, com dilatação da fronteira de autonomia do ente federado. 3. Mas quem se cinge à ambigüidade desse raciocínio, ao nosso ver, falso, por levantar uma inconstitucionalidade que não existe, fica deslembrado de que a mesma reserva de lei, submetida a uma reflexão hennenêutica mais profunda, é de todo o ponto questionável. Com efeito, ou há de interpretar-se como vinculada por inteiro à matéria antecedente do mesmo artigo, sujeitando a aposentadoria do parlamentar, que se insere entre as temporárias, ao regime previdenciário do servidor ordinário ou há de admitir inquirição hermenêutica sem dúvida, a correta - que dê ao legislador autonomia para instituir aposentadoria especial completamente fora dos parâmetros daquele ar­ tigo. É o que, em verdade, impetra, por sua natureza mesma, a figura da aposentadoria parlamentar, enquanto aposentadoria singular que não pode deixar de ser. Aliás, esta derradeira conclusão se tira de uma das interpretações cabíveis sobre a matéria, a ser feita nos moldes da chamada interpreta­

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ção conforme a Constituição, e cujo método só se recomenda aplicável quando a dúvida suscita distintas soluções interpretativas, devendo en­ tre estas eleger-se aquela que faça a norma compatibilizar-se com a Lei Maior. A dúvida - disse Hesse - é que instaura o processo interpretativo. Onde não há dúvida não se interpreta, e raramente se faz mister também alguma interpretação (“Wo Zweifel nicht bestehen wird nicht interpretied und bedarf es auch ofl keiner Interpretation”, Konrad Hes­ se, Grundzüge des Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, 19, Überbearbeitete Auflage, Heidelberg, 1993, p. 20). Com efeito, a versão interpretativa dos que tomam o § 2a do art. 40 por arrimo com que inquinar de inconstitucionalidade o art. 270 da Constituição da Paraíba - aquele relativo à aposentadoria parlamentar - não o fazem estabelecendo uma certeza, mas instaurando uma dúvi­ da. Dúvida, porém, que se admitida fora - o que não é possível em virtude da legitimidade mesma das normas combatidas - teria reper­ cussões hermenêuticas de todo desfavoráveis às pretensões dos contestadores. Conduziria à eleição doutra fórmula de interpretação, estranha à exegese clássica, e volvida em direção oposta àquela dos proclamadores da inconstitucionalidade, propiciando, desse modo, uma inteligên­ cia das normas impugnadas objetivamente compatível com a voluntas legis do constituinte originário de 1988. A tese adversa à constitucionalidade professada por aqueles juris­ tas cuida, porém, que o constituinte paraibano, ao legislar sobre apo­ sentadoria parlamentar, estatuiu regra geral, invadindo, por uma parte, a esfera da reserva de lei do § 22 do art. 40; por outra, usurpando a competência exclusiva da União no âmbito da legislação concorrente, conforme - asseveram eles - se infere do § lü do art. 24 da Constitui­ ção. Ali se diz, tocante à reserva legal, que a lei disporá sobre a apo­ sentadoria em cargos ou empregos temporários; aqui se dispõe que no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. 4. Mas ambas as objeções caem, se atentarmos, em primeiro lu­ gar, que o constituinte estadual elaborou norma de caráter genérico quando ainda não havia lei federal criando o regime das aposentadorias especiais. De tal sorte que, sem mandamentos constitucionais a esse respeito, tudo se cinge tão-somente a uma mera reserva de lei, com ex­ pectativa de concretização pendente; o que, sem dúvida, convenhamos, abria legitimamente ao legislador constituinte do Estado-membro uma

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artéria de capacitação com que exercitar, livremente, no domínio da previdência social, sua competência plena de legislar, arrimado ao § 32 do art. 24 da Constituição Federal. Segundo reza este, inexistindo lei federal sobre normas gerais, exercerão os Estados “a competência le­ gislativa plena”. Ora, a iniciativa do poder constituinte estadual de primeiro grau, no caso da Paraíba, não só se fez à sombra desse preceito constitucio­ nal, como teve o reforço do § l2 do art. 25 da Constituição Federal que reserva aos Estados as competências que lhe não sejam vedadas na Car­ ta Magna. Não resta dúvida, por conseguinte, que a competência plena para legislar, inclusive sobre normas gerais, na ausência de legislação fede­ ral, foi conferida aos Estados pelo sobredito § 32 e só quando a legisla­ ção federal se fizer, estabelecendo normas gerais, é que a competência estadual concorrente refluirá à esfera suplementar, consoante o dispos­ to no § 22 do supramencionado art. 24. A legitimidade do art. 270 da Lei Fundamental paraibana é inconcussa e a Lei n. 5.238/80, que regulou o disposto nesse artigo, também o é. Unicamente suspender-se-á a eficácia dos conteúdos legislativos daquele artigo e daquela lei, se a legislação federal superveniente lhe for contrária, qual se deduz do § 42 do art. 24 da Constituição Federal. Não padece dúvida, por conseguinte, que, à míngua de lei federal dispondo sobre normas gerais acerca da aposentadoria parlamentar, tal competência não era vedada aos constituintes da Carta Magna estadual, combinando-se três artigos do texto constitucional, a saber, o art. 22, inciso III, o art. 25, § l2 e o art. 149, parágrafo único, para legitimar a ação legislativa do constituinte paraibano. O parágrafo constitucional desse último artigo, em obediência à índole federativa do sistema e ao estatuto de suas autonomias, consente aos Estados-membros instituir sistemas de previdência e assistência social. De sorte que não é inconstitucional o art. 270 da Constituição pa­ raibana nem tampouco a Lei n. 5.258/90, que lhe deu execução e se­ qüência integrativa. Ambas, a Constituição e a lei - a primeira, instituin­ do a previdência parlamentar; a segunda, regulamentando-a - não transgrediram nenhum preceito constitucional de competência. 5. Vamos porém às questões de mérito. Legislando no caput do art. 270 sobre aposentadoria do titular de mandato eletivo, o constituinte paraibano de 1989 conferiu-lhe aposentadoria proporcional ao tempo

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de serviço. E estendeu também esse direito aos titulares municipais do sobredito mandato. Com isso - e mais uma vez tomam à cena os incriminadores de inconstitucionalidades - teria havido interferência na área de autono­ mia do Município. Tal porém não procede. Nenhuma Constituição hou­ ve mais generosa que a nossa com os entes municipais. O art. 1“ da Lei Maior, ao constituí-los membros da união indisso­ lúvel da República Federativa do Brasil, lhes concedeu dignidade fe­ derativa, com extremo reforço à proteção constitucional de seus estatu­ tos de autonomia. Contudo, esse status político superior não os desata dos laços, deveres e obrigações que os prendem juridicamente à ordem interna do Estado-membro, de cuja estrutura e composição fazem parte essencial, completando a identidade mesma desse ordenamento. E o fazem, da mesma maneira que o Estado-membro, tocante à comunhão federativa, em seu patamar mais elevado. Há o direito constitucional dos Estados-membros, mas não há o direito constitucional dos Municí­ pios. A tanto não chegam, aliás, nem se equiparam em seus graus de autonomia as leis orgânicas municipais. Não logramos, de conseguinte, enxergar inconstitucionalidade no direito que o constituinte estadual dispôs em favor dos titulares de man­ dato eletivo ao nível dos municípios. 6. Há ainda os que argúem a inconstitucionalidade do art. 270 da Constituição da Paraíba estribados no argumento segundo o qual o pe­ ríodo aquisitivo do direito à aposentadoria com oito anos de serviço público, consoante o parágrafo único do sobredito artigo, fere três pre­ ceitos da Constituição: o que disciplina a aposentadoria ordinária dos funcionários públicos (art. 40), o que consagra a isonomia (art. 52) e o que estabelece o princípio da moralidade administrativa (art. 37). Tal increpação, porém, nos parece tão inconsistente quanto aque­ las apresentadas e liquidadas nas considerações antecedentes. Respeito ao período de oito anos de serviço público, como requi­ sito para constituir o direito do titular de mandato eletivo à aposenta­ doria, não se nos afigura algo extremo, extraordinário ou antiético, tam­ pouco singularidade do nosso legislador federal ou estadual. Deparam-se-nos, no domínio da legislação comparada, períodos até inferiores para obtenção daquele direito. Países como a Alemanha exigem tão-somente seis anos de mandato; outros, como os Estados Unidos, França, Itália e Bélgica, fixam o período mínimo em cinco anos e, finalmente, alguns, como Israel, assentam a exigência em qua­

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tro anos e a Dinamarca em um ano apenas. Em todos eles os requisitos de idade são superiores a 40 anos. Não se trata, por conseguinte, de países do chamado Terceiro Mundo, mas de repúblicas constitucionais que compõem a nata da cul­ tura política do ocidente, onde se houvesse tais inconstitucionalidades, não teriam transcorrido ao largo das regras de moralidade e dos bons costumes legislativos que a nação ali faz imperativos. Demais disso, tanto no art. 270 da Constituição da Paraíba como na Lei reguladora n. 5.238, de 24 de janeiro de 1990, o direito à apo­ sentadoria é proporcional ao tempo de exercício do mandato, a saber, guarda rigorosa observância ao princípio da proporcionalidade, indu­ bitavelmente um dos mais nobres e veneráveis na escala das normas superiores que, de seu natural, entranham valores de justiça e harmoni­ zam o direito com a ética. 7. A pensão parlamentar adquirida após um período de oito anos conta com vetusta tradição em nosso direito constitucional positivo. Sua aparição se deu no projeto n. 2.490, de 1960, que criou o Instituto de Previdência do Congresso Nacional. Logrou aprovação, por unani­ midade, em 31 de agosto, na Comissão de Constituição e Justiça, da qual era oriundo e onde teve por Relator o deputado Nelson Carneiro. Asseverou judiciosamente o insigne Ministro Sepúlveda Pertence que a pensão parlamentar atravessou três ordens constitucionais, cum­ prindo assinalar, a partir dessa arguta observação, que nunca se lhe argüiu a inconstitucionalidade. Como fazê-lo, agora, depois de haver passado, em distintas épo­ cas jurídicas, pelo silêncio de tantas instâncias de controle, já a preven­ tiva do Congresso Nacional e das Assembléias Estaduais, que sobre ela legislaram, já a dos tribunais, que nunca a viram submeter-se ao crivo de seu controle difuso? Em verdade, houve, sim, manifestação do mais alto tribunal da Federação nesse tocante, vazada num Acórdão donde se infere preci­ samente o contrário, ou seja, a inteira compatibilidade daquela pensão com a ordem constitucional vigente. Fê-la o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Ex­ traordinário n. 95.519, em 28 de junho de 1984, ao examinar, “inci­ dentemente, uma única vez” - conforme disse o Ministro Sepúlveda Pertence - direito adquirido de um parlamentar à percepção daquele benefício; ocasião em que, como bem ponderou o Ministro Oscar Dias Corrêa, se inconstitucionalidade houvesse acerca da criação do Institu­

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to de Previdência dos congressistas pela Lei n. 4.284/63, paradigma de toda a legislação subseqüente, federal e estadual, teria sido ela, de logo, destacada ou assinalada pelos juizes daquele egrégio tribunal de justi­ ça do País. Com efeito, afirmou esse antigo Ministro do Supremo, em Parecer famoso: “Ora, pesasse sobre ele qualquer inconstitucionalida­ de e não teria passado desapercebido a exame da Corte Suprema (v. RE 95.519-DF (RTJ 112/691) e Parecer de Oscar Dias Corrêa na ADIn n. 455-7-São Paulo). 8. Não colhe o argumento de inconstitucionalidade do art. 270 da Constituição da Paraíba por ofensa ao princípio da isonomia. A improcedência deriva da natureza distinta das situações - a do deputado e a do funcionário público - em face das funções que lhe são atribuídas no interior do ordenamento constitucional, legitimando, conforme veremos, tratamento diverso com relação às duas aposentado­ rias: a do parlamentar e a do servidor. A aposentadoria parlamentar proporcional, concedida após oito (8) anos de mandato, conforme dispõe aquele artigo, é especial, compõe categoria distinta, específica, e, portanto, não pode ser tomada por aná­ loga á aposentadoria do servidor estadual, funcionário público ou agen­ te administrativo. Disse com precisão, verdade e discernimento o eminente Desem­ bargador Mário da Cunha Moreno em seu voto, ao relatar MS sobre essa matéria: “Em primeiro lugar, o que a Constituição regula é a aposentadoria dos agentes administrativos, também chamados servidores do Estado ou funcionários públic,os, para os quais o regime é normal. “Os deputados não são funcionários públicos, entendido o termo no seu sentido estrito, pois não são Agentes Administrativos, mas sim Agentes Políticos, que exercem funções excepcionais no sistema de Governo do Regime Constitucional do País, com características pró­ prias que devem ter, por isso, tratamento diversificado, conforme o princípio da Justiça Distributiva, segundo a qual é mister tratar desi­ gualmente os desiguais.” Completa, em seguida, essa ordem de reflexões com a assertiva de que “a aposentadoria parlamentar não é regulada pela Constituição Federal, que só disciplina a aposentadoria dos funcionários públicos, razão porque não se justifica a inclusão dos ex-parlamentares nos dis­ positivos sobre aqueles” (voto proferido em 23 de setembro de 1992 noMSn. 91.001 054-5).

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Com efeito, a natureza da atividade exercitada por um agente po­ lítico parlamentar, titular de mandato eletivo, é de todo distinta, por seus poderes, atribuições, responsabilidades e funções, daquela de teor e feição meramente burocráticos, desempenhada por servidores ou agentes administrativos, cuja aposentadoria se regula nos termos do art. 40, III, “a” e “c”, da Constituição. Em verdade, o parlamentar, tanto federal como estadual, nos siste­ mas constitucionais das federações, não é tão-somente legislador ordi­ nário, senão também titular de poder constituinte derivado, o que lhe acrescenta um grau de qualificação política superior decorrente da dig­ nidade democrática de seu mandato e da natureza e amplitude das res­ ponsabilidades que assume, acima de qualquer outro agente do poder. De tal sorte que basta consideração desse teor, e já se legitima a diver­ sidade de tratamento que lhe é outorgado, sem lesão, portanto, no caso do art. 270 da Constituição Estadual da Paraíba, ao disposto no caput do art. 5“ da Constituição Federal. Com propriedade, se exprimiu a esse respeito o abalizado Minis­ tro Oscar Dias Corrêa: “Espécie do gênero agentes políticos, não podem ser, pela nature­ za dos atos que praticam, equiparados aos demais agentes públicos em geral, ‘de situação bem diversa’ (Hely Lopes Meirelles, ob. cit.). “Há que admitir, pois, que se subordinem a normas gerais, mas tenham normas específicas de tratamento pela natureza das funções que exercem e responsabilidades que assumem” (Min. Oscar Dias Corrêa, citado por J. Saulo Ramos, em Parecer, ADIn 455-7-SP). Não há, por conseguinte, que invocar o princípio da isonomia, se a lei der, conforme já deu, assim na legislação ordinária quer constitu­ cional, tratamento diferenciado ou autônomo à pensão parlamentar. Haveria, ao revés, inconstitucionalidade na hipótese de conferirse, porém, tratamento igual aos desiguais, consoante deriva da inter­ pretação dos que forcejam por aplicar à aposentadoria dos titulares ele­ tivos as determinações normativas do art. 40, inciso III, “a” e “c”, do Estatuto Supremo. Caracterizadas por distintas as duas situações, como efetivamente o são - a do servidor e a do parlamentar - manda a justiça que se lhes aplique, na correspondente esfera, disciplina jurídica diversa. Faz-se mister, portanto, observar e concretizar, como já se salien­ tou, aquela justiça distributiva, de cunho material, e de inspiração aristotélica.

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Ditada segundo os cânones de uma impostergável isonomia, de­ termina ela tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente. Outra não vem a ser a lição de Aljs Vignudelli, o Mestre de Bolo­ nha, em obra recente, onde emite conceitos acerca de igualdade formal - a mesma do art. 5a da nossa Constituição nem sempre bem com­ preendida e interpretada pelos aplicadores, os quais, não atentando para a essência do princípio, lhe conculcam o conteúdo material, a normatividade, o sentido. Urge portanto sufragar o magistério de Vignudelli e prevenir a de­ formação do princípio da isonomia, concordando com ele na afirma­ ção de que “o princípio da igualdade formal, todavia, não pode ser compreendido de maneira absoluta, senão que há de ser entendido na acepção de que situações iguais sejam tratadas de modo igual. Ao con­ trário, onde não há paridade de condições é justificado o tratamento diverso (...). Trata-se precisamente, num e noutro caso, de normas que introduzem tratamentos diferenciados, mas justificados pela diversida­ de das situações disciplinadas” (il principio d ’uguaglianza formale tuttavia, non può essere intese in maniera assoluta, ma va piuttosto compreso nel senso che situazioni uguali vanno trattato in modo iguale. Al contrario, lá dove non c ’è parità di condizioni è giustificato il diverso trattamento (...). Si tratta, appunto, nell’uno e nelFaltro caso di norme che introduscono trattamenti differenziati, ma giustificati delia diversità delle situazioni disciplinate” (Aljs Vignudelli, Diritto Costituzionale. Prolegomeni - Principi - Dinamiche, Turim, 1997, p. 131). Em suma, a inconstitucionalidade do art. 270 da Constituição da Paraíba, no que tange à isonomia, teria ocorrido se o legislador estadual constituinte de primeiro grau houvesse ali se apartado dessa concep­ ção de igualdade, que ele rigorosamente respeitou nos termos daquele contexto normativo. Não é possível, por conseqüência, igualar o depu­ tado com o funcionário público. Isto, sim, é que seria inconstitucional. Idêntica observância do relevante princípio houve da parte dos au­ tores da Lei Estadual n. 5.238, de 24 de janeiro de 1990. Razões todas são estas que nos conduzem à assertiva de que tanto o art. 270 da Constituição da Paraíba como a Lei Estadual 5.238/90 saem incólumes das agressões a sua constitucionalidade; são textos cuja validez e conservação poder-se-ia ainda, se dúvida perdurasse, porventura, em face da controvérsia que os colocou sub judice, ampa­ rar - e aqui, ao nosso ver, decisivamente, em definitivo - à luz do mé­ todo de interpretação conforme a Constituição, cujo emprego se nos afigura recomendável, a fim de solver eventual diversidade interpreta-

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tiva, que um exame da matéria constitucional acaso possa suscitar. Da natureza e aplicação desse postulado ou instituto hermenêutico, ocupar-nos-emos noutro lugar. 9. O princípio da moralidade administrativa constante do art. 37 da Constituição é, indubitavelmente, um dos postulados jurídicos mais louváveis da Lei Suprema, introduzido com descortino e sabedoria pelo constituinte de 1987/1988, para manter e resguardar a inteireza ética dos atos da autoridade pública e prevenir a corrupção do poder. Mas trasladá-lo da órbita administrativa a outras esferas e aplicálo, levianamente, no aferir o conteúdo das leis e o procedimento do legislador ordinário ou constituinte, e sujeitá-lo a juízos, não raro te­ merários, de puro arbítrio e subjetividade, pode, nos domínios da opi­ nião, em nome de um moralismo de fachada, com freqüência eivado de hipocrisia, malicioso, e de segundas intenções, que é a negação mes­ ma da ética, gerar determinado estado de insegurança, desconfiança, suspeita e incerteza acerca da missão e obra dos titulares do ramo re­ presentativo do poder. Já não é o bem comum nem a ética de governo que regem e inspi­ ram essa cruzada pseudomoralista de controle de constitucionalidade. Mas o subalterno propósito de atingir, minar e ferir o crédito mesmo, a confiança, o respeito e a independência daquele órgão da soberania cuja ação mais de perto consulta a natureza e essência democrática do sistema governativo, e por isso mesmo contravém, com mais eficácia e autoridade, os desígnios autocráticos de seus inimigos. Parece haver sido este, aliás, o substrato e alcance da frase notá­ vel sobre “o discurso moralista em voga” que o conspícuo Ministro Sepúlveda Pertence proferiu no Supremo Tribunal Federal ao relatar a ADIn n. 455-7-SP, asseverando: “De logo, é preciso ponderar que ao contrário do que insinua, quando não afirma, o discurso moralista em voga, freqüentemente eivado de farisaísmo - a pensão parlamentar, em bases similares à que se discute, não é criação brasileira”. Como se vê, o insigne magistrado da Corte Suprema, guardiã da Constituição, exarou o mais eloqüente argumento histórico em abono da constitucionalidade da aposentadoria parlamentar. E o fez de ma­ neira sucinta, porém, não menos explícita e expressiva de sentido. Não se trata de “criação brasileira”, disse muito bem o Ministro Sepúlveda Pertence. Com efeito, a Alemanha, a Dinamarca, a Suécia e Israel desde muito a introduziram em seu sistema previdenciário, e so­ bre aposentarem os seus deputados em período de mandato inferior

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àquele requerido no Brasil, pagam integralmente, com dinheiro públi­ co, os proventos de aposentadoria desses parlamentares. Por sua vez os Estados Unidos, a França - país onde a aposenta­ doria parlamentar já é octogenária e teve ali o seu berço - , o Japão e a Itália, além de fixarem o período aquisitivo de aposentadoria abaixo do nosso, fazem suplementação de recursos do erário para prover o cus­ teio das pensões. São porventura países corruptos? Conculcaram suas pensões par­ lamentares o princípio universal da moralidade? Responda-nos o farisaísmo de ocasião, se quiser e puder. “A aposentadoria dos parlamentares é justa e nada prejudica o bom funcionamento da democracia”, escreveu o professor da Univer­ sidade de Brasília e cientista político Vamireh Chacon, em artigo que tem por título “Aposentadoria Parlamentar”, estampado no Correio Brasiliense, edição de 6 de dezembro de 1991. Onde, por conseguinte, o argüente vê, na Lei Estadual n. 5.238, de 24 de janeiro de 1990, que concretizou e integrou os ditames do art. 270 da Constituição da Paraíba, ofensa ao princípio da moralidade, o aplicador, corrigindo o erro, deve ver um princípio de justiça concreti­ zado; justiça aos ex-deputados e suas famílias, às viúvas e aos órfãos daqueles que no desempenho do munus público exercitaram um man­ dato legislativo e fizeram serviço à coletividade. Enfim, cumpre reiterar que a sobredita Lei é constitucional, tanto quanto o é também o art. 270 da Carta Estadual, e em nenhum de seus pontos cardeais - a pensão em si mesma, o custeio, o período aquisiti­ vo - padece o menor arranhão de legitimidade ou suscita dúvidas tão fortes que persuadissem’a judicatura a expulsá-la do círculo de consti­ tucionalidade do ordenamento vigente. II. O princípio da presunção de constitucionalidade das leis

10. Nos Estados Unidos, a doutrina, os arestos dos tribunais, os grandes hermeneutas, a tradição jurisprudencial, a Suprema Corte e as Cortes Estaduais fundaram e fizeram florescer, desde Marshall, a Ciên­ cia das Constituições. Dali se irradiou o axioma universal de que não se presume incons­ titucionalidade; presume-se, sim, constitucionalidade, legalidade - o favor legis, que cobre e protege a autoridade do legislador. Não se con­ sente, em caso de dúvida, por mera conjectura de infrigência à Consti­

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tuição, que leis nascidas, via de regra, de procedimentos formais, legí­ timos e corretos, sejam inaplicadas, ignoradas ou invalidadas e até mes­ mo varridas do ordenamento jurídico nas instâncias inferiores e superio­ res da administração pública, sem que primeiro se lhes demonstre a mácula da inconstitucionalidade insanável; e o sejam unicamente por obra de um intolerável juízo prévio que cifra prepotência, arbítrio, insensatez e, de certo modo, insensibilidade à guarda e proteção dos direitos. É o que se aparelha tocante às nonnas do art. 270 da Constituição da Paraíba e da Lei Estadual n. 5.238/90, cuja constitucionalidade se nos afigura inconcussa; todavia, por estarem sub judice, urge invocar, em salvaguarda de sua eficácia, validez e aplicabilidade, o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, cujas raízes profundas no subsolo do constitucionalismo foram deitadas por juristas do quilate de Marshall, Strong, Willoughby, Washington, Cooley e tantos outros, em cujas lições avultam, copiosos, os exemplos que abonam o sobredito postulado. Daremos princípio a esse inventário de excertos, cujos conceitos fazem fé e autoridade na matéria, invocando as palavras traçadas pelo mais insigne de todos, o Juiz Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, pai do controle de constitucionalidade, e aquele cujos votos iluminaram sempre as questões mais espinhosas do direito público americano na época em que exerceu sua magistratura constitucional. Num dos mais famosos pleitos em que atuou, o caso “Fletch v. Peck”, Marshall assentou esta doutrina memorável de presunção de constitucionalidade: “A questão de averiguar se uma lei é nula por re­ pugnância à Constituição tem sido em todos os tempos uma questão extremamente delicada, que raramente, senão jamais, há de ser decidi­ da de forma afirmativa num caso duvidoso” (“The question, whether a law be void for its repugnancy to the constitution, is at ali times a ques­ tion of much delicacy, which ought seldom, if even to be decided in the affírmative in a doubtful case”, John Marshall, apud Willoughby, ob. cit., p. 38). Todavia, não se deteve aí Marshall e prosseguiu: “Mas não é com base em leve implicação ou vaga conjectura que se declara haver o le­ gislativo excedido os seus poderes, de tal sorte que seus atos hajam de ser considerados nulos” (“But it is not on slight implication that the legislature is to be pronounced to have transcended its powers, and its acts to be considered as void”, John Marshall, Complete Constitutioncil Decisions, edited by John M. Dillon, Chicago, 1903, p. 198).

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No mesmo julgado, continua o insigne magistrado, glória do cons­ titucionalismo de todas as épocas: “A oposição entre a Constituição e a lei deve ser tal que o juiz sinta uma clara e profunda convicção de que são incompatíveis entre si.” (“The opposition between the constitution and the law should be such that the judge feels a clear and strong conviction of their incompatibility with each other”, John Marshall, ob. cit., p. 198). Quando se ocupou da cláusula constitucional dos “poderes implí­ citos” (“implied powers”), Marshall assim se pronunciou textualmen­ te, sustentando, outra vez, a máxima da presunção de constitucionali­ dade dos atos legislativos, segundo refere Willoughby: “Como regra, esta cláusula tem sido liberalmente interpretada, e isto em razão, como já se disse, de haver o legislativo patenteado sempre sua vocação de assumir todo poder possível e os seus atos fruírem invariavelmente nos tribunais a presunção de constitucionalidade, salvo se se demonstrar o contrário mediante as mais robustas provas.” (“As a rule the clause has been liberally interpreted and this, for the reason, as already been said, that the legislature is always eager to assume ali power possible, and its acts are always presumed to be constitutional by courts unless shown to be not so, by the strongest proofs”, Westel W. Willou­ ghby, The Supreme Court o f the United States - Its History and Influence on our Constitutional System, Baltimore, The John Hopkins Press, 1890, p. 36). No caso “Brown v. The State of Maryland”, tomou Marshall a cor­ roborar a mesma doutrina, conforme certifica Carl Evans Boyd: “Temse afirmado, com verdade, que a presunção é em favor de todo ato le­ gislativo, e que o ônus da prova recai, por inteiro, sobre quem lhe con­ testa a constitucionalidade.” (“It has been truly said, that the presumption is in favor of the legislative act, and that the whole burden of proof lies on him who denies its constitutionality” (John Marshall in Cases on American Constitutional Law , edited by Carl Evans Boyd, 2a ed., Chicago, 1907, p. 136). Consolidando com o mesmo rigor a tese de Marshall, o Justice Strong traz novamente à lembrança que ponderáveis razões elevaram à estatura de um princípio, formulado pela Suprema Corte e por todos os Tribunais que se fazem respeitar nos Estados Unidos, “que não se deve declarar nulo um ato legislativo, salvo se a violação da Constituição for tão manifesta que não deixe lugar a dúvida razoável” (“(...) that an act of the legislation is not to be declared void unless the violation of the Constitution is so manifest as to leave no room for reasonable doubt”).

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O juiz Strong exprimia a opinião da Corte no caso “Knoz v. Lee” e “Parker v. Davis”, decidido em 1871. Assinala Willoughby noutra demanda legal julgada pela Suprema Corte que Strong fora aí bem mais incisivo ao dizer: “O respeito reve­ renciai por um ramo correlato do poder exige que o Judiciário deve presumir, até que se prove claramente o contrário, que não houve ne­ nhuma transgressão dos poderes do Congresso e que todos os seus membros atuam debaixo da obrigação de um juramento de fidelidade à Constituição” (“A decent respect for a co-ordinate branch of govemment demands that the judiciary should presume, until the contrary is clearly shown that there has been no transgression of powers by Congress, ali the members of which, act under the obligation of an oath of fidelity to the constitution”, Strong apud Willoughby, ob. cit. p. 38). Prossegue Strong asseverando que não basta suscitar dúvida - como fizeram os contestadores das leis mencionadas - para firmar a incons­ titucionalidade dos atos legislativos. E tão peremptória, tão enérgica, tão firme a adesão de Strong à doutrina de Marshall, de presunção da constitucionalidade das leis, que ele a dilata, por igual, às circunstâncias. E diz com extrema ênfase e convicção: “Se um ato pode ou não ser válido segundo as circunstân­ cias, fica o tribunal obrigado a presumir que tais circunstâncias existi­ ram para fazê-lo válido” (“If an act may be valid or not according to circumstances a court would be bound to presume that such circumstances existed as would render it valid”, Strong apud Willoughby, ob. cit., p. 38). Outros três juizes de renome, dentre muitos que, com a mesma profundeza de persuasão, poderiam ser trazidos à colação, não diver­ gem do princípio firmado por Marshall. Um deles, o Ministro Waite, ex-Presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, assim se mani­ festou no caso “Munn v. Illinois”: “Toda lei é presumidamente consti­ tucional. Não devem os tribunais declará-la inconstitucional, a menos que o seja assim claramente. Se houver dúvida, há de prevalecer a von­ tade manifestada pelo legislador” (“Every statute is presumed to be constitutional. The courts ought not to declare one to be unconstitutional, unless it is clearly so. If there is doubt, the expressed will of the legislature should be sustained” (Waite, Cases on American Constitu­ tional Law, edited by Carl Evans Boyd, 2a ed., Chicago, 1907, p. 289). O voto do Juiz Washington, da Suprema Corte dos Estados Uni­ dos, concernente a uma lei estadual, “envolta em dúvida e dificulda­ de”, não se afastou da linha de seus predecessores. Manteve o instituto

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da presunção de constitucionalidade dos atos legislativos e asseverou que bastava a dúvida suscitada e reconhecida para fundamentar a sua estimativa de constitucionalidade da lei. E ponderou que era “suficien­ te um respeito sacramental à sabedoria, integridade e patriotismo do corpo legislativo para assentar a presunção de validade de qualquer lei até que a violação da Constituição ficasse além de toda dúvida razoá­ vel.” (“It is but a decent respect due to the wisdom, the integrity, and the patriotism of the legislative body by which any law is passed to presume in favor of its validity, until its violation of the constitution is proved beyond ali reasonable doubt.” (Washington, apud Thomas M. Cooley, Treatise on the Constitutional Limitations, 5a ed., Boston, 1883, p. 218). Finalmente, nessa seleção de extratos jurisprudenciais que firma­ ram no Direito Constitucional o princípio da presunção de constitucio­ nalidade das leis, abrimos espaço a J. Harris que, exprimindo a opinião majoritária da “Court of Appeals” de Nova Yorque, exarou o seguinte juízo: “Não se deve declarar nula uma lei com base num mero conflito de interpretação entre o poder legislativo e o poder judiciário. Antes de intentar anular, por sentença judicial, aquilo que o poder legislativo aprovou, urge primeiro deixar manifestamente claro que o ato não tem arrimo em nenhuma interpretação razoável ou numa presunção admis­ sível” (“A legislative act is not to be declared void upon a mere conflict of interpretation between the legislative and the judicial power. Before proceeding to annul, by judicial sentence, what has been enacted by the law-making power it should clearly appear that the act cannot be supported by any reasonable intendment or allowable presumption”, J. Harris, apud T. M. Cooley, ob. cit., p. 221). 11. Dos grandes juizes da linhagem de Marshall, passemos agora a três notáveis clássicos do Direito Constitucional, cujas obras tiveram enorme influxo no pensamento jurídico do continente, familiares que foram aos nossos grandes constitucionalistas, como Rui Barbosa, Barbalho e Carlos Maximiliano, entre outros. Com efeito, Willoughby, Cooley e Black educaram gerações de juristas e o fizeram versando a temática mais profunda e complexa dos problemas constitucionais. Trasladaram também aos seus livros o prin­ cípio da presunção de constitucionalidade das leis. Haja vista a esse respeito o que nos diz Willoughby cuja lição é a mesma de Marshall. Depois de assinalar que “todo ato legislativo é presumidamente válido”, Willoughby, com o seu nome consagrado nas letras do consti-

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que não infírma o ato de autoridade” (Carlos Maximiliano, Hermenêuti­ ca e Aplicação do Direito, Editora Forense, 9a ed., 2a tir., pp. 308 e 307). III. O princípio de interpretação conforme a Constituição

13. Outro princípio de considerável influxo e peso no ânimo do julgador ao exarar a decisão de mérito acerca da constitucionalidade do art. 270 da Constituição da Paraíba há de ser indubitavelmente o princípio da interpretação conforme a Constituição. Por isto vamos darlhe o largo tratamento que merece, como já o fizemos respeitante ao instituto da presunção da constitucionalidade das leis. Com efeito, quem caminha do princípio da presunção de constitu­ cionalidade para o princípio da interpretação conforme a Constituição, sobe um degrau na hermenêutica constitucional; o princípio da presun­ ção reside na esfera abstrata e é o primeiro momento na reflexão do hermeneuta; já o da interpretação se realiza noutro reino - o da concretude. Ambos, porém, são afins e se conjugam em termos de interde­ pendência com respeito à formulação efetiva de um controle de nor­ mas constitucionais volvido para conservar a unidade do sistema jurí­ dico e a tripartição constitucional dos poderes, designadamente no con­ texto da complexa e delicada relação do poder judiciário com o poder legislativo. Tomando diretamente ao caso da Paraíba, faz-se mister averiguar se a aposentadoria parlamentar, cuja inserção, ao nosso ver, cabe no art. 24, § 2a, da Constituição Federal, obedece às mesmas regras do regime previdenciário estatuído para o servidor público nos termos nor­ mativos do § Ia, III, “a” e “c”, do sobredito artigo ou, ao revés, impe­ tra, por sua natureza mesma de todo distinta, cuidados legais diversifi­ cados, qual se fez naquele dispositivo de Lei Maior estadual, cuja in­ constitucionalidade se argiii. Contudo, semelhante entendimento dos argüidores da lesão cons­ titucional nos parece falso, conforme reiteradamente já argumentamos em outros lugares deste Parecer; mas, se dúvida houvesse, que em ri­ gor não há, suscetível de convelir a constitucionalidade daquelas leis, tal dúvida ficaria solvida, em definitivo, aplicando-se a interpretação conforme a Constituição, cuja valia e relevância nas decisões do con­ trole concentrado não se pode diminuir nem pospor. 14. Num seminário de Tribunais Constitucionais da Europa, em 1974, inquiriu-se acerca da legitimidade e do significado que tem o método de interpretação conforme a Constituição.

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O provecto magistrado Helmut Simon, Relator-Geral, e Juiz da Corte Constitucional de Karlsruhe, na Alemanha, fixou-lhe o conceito, nestes termos: “Se uma norma suscetível de interpretação, após haver sido submetida às regras usuais de hermenêutica, consentir várias in­ terpretações, a preferência, em caso de dúvida, há de recair sobre aque­ la que se compatibilize com a Constituição; ao contrário eliminar-se-ão todas as demais que possam conduzir a resultados inconstitucionais”. Distinguiu ele, a seguir, duas modalidades de interpretação con­ forme a Constituição: uma em sentido geral, que se aplica a decisões de casos concretos, e outra, em sentido estrito, que ocorre quando o juiz constitucional examina a legitimidade da norma, procedimento em que a Constituição não é somente uma diretriz (“Auslegungsrichtlinie”) interpretativa de averiguação do conteúdo da norma, porém algo mais, ou seja, um critério de inspeção de sua validez geral. É então que Si­ mon assinala que uma norma, interpretada, não deverá ser declarada nula, por inconstitucional, se após o emprego dos métodos interpretativos usuais for ainda suscetível de uma interpretação compatível com a Constituição. Inconstitucional, segundo ele, seria unicamente a norma que, examinada por todos os ângulos e meios hermenêuticos possíveis, conservasse ainda o vício ou eiva de inconstitucionalidade. A interpretação conforme a Constituição, no dizer desse preclaro constitucionalista, é, enquanto procedimento de controle normativo, uma alternativa para a declaração de nulidade. Reside aí, no seu enten­ der, o traço característico por excelência que distingue tal método das demais regras interpretativas (Ministro Dr. Helmut Simon, “Die verfassungskonforme Gesetzauslegung”, Thema 1, Dokumentation, EUGRZ 74, pp. 85 a 91). Com efeito, a função metodológica de semelhante interpretação, criada em âmbito jurisprudencial, se justifica, em determinado sentido, na medida em que sua aplicação fortalece o respeito ao legislador, con­ sagra uma presunção de constitucionalidade dos atos legislativos, precata a continuidade da ordem jurídica, faz eficaz a segurança do direi­ to, salvaguarda ao máximo possível a voluntas legislatoris, garante a separação dos poderes, inibe a vocação dos tribunais para o govemo de juizes nos sistemas de controle concentrado de constitucionalidade, induz o magistrado das Cortes constitucionais a restringir-se ao papel de legislador negativo no controle de constitucionalidade e, sem dúvi­ da nenhuma, prescreve-lhe, ao aplicá-lo, o acatamento à autoridade de um poder, cuja razão de legitimidade tem por base e fonte de concretude de seu compromisso constitucional a manifesta expressão da vonta­ de democrática.

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15. Interpretar a Constituição e interpretar conforme a Constitui­ ção são, todavia, operações distintas, que o aplicador nem sempre per­ cebe ou toma em consideração. Sendo ambas indispensáveis ao exame de constitucionalidade das leis, a segunda tem uma latitude que pode fazê-la inadmissível se houver abuso em sua aplicação, suspeita de criar direito novo, transgressão de limites, ou erro de concretização da nor­ ma além das linhas materiais de razoabilidade que o método concede ao intérprete. Seu maior raio de elasticidade o faz singular e infenso à metodologia formalista; por isso mesmo mais apto à conservação da Constituição, enquanto mantenedora da vontade geral que, em tese, as assembléias representativas legislam, dentro do aparelho constitucio­ nal, com o mais alto grau possível de legitimidade democrática nos quadros do sistema. Desde, porém, que os princípios se vincularam com mais freqüên­ cia aos direitos fundamentais, e lhes serviram de escudo, lograram eles preponderância, consistência e reconhecimento de serem providos de superioridade normativa. Criou-se com eles um novo Direito Constitu­ cional de supremacia dos valores humanos em combate com a supers­ tição anacrônica da presunção de inviolabilidade e hegemonia dos fins estatais; resíduo das eras autocráticas e históricas do absolutismo em que o poder dos governantes figurava de todo incompatível com o es­ pírito de constitucionalidade e, portanto, com a ratio constitutionis que inspirava e regia a organização dos corpos sociais. Mas as escolas do pensamento jurídico, geradas nas revoluções da liberdade, comunica­ ram depois à sociedade o novo ethos político e público, de profundo substrato democrático, que escreve a cartilha de um pluralismo gover­ nado pela informação emancipada. A esse pluralismo, a essa informa­ ção e a essa democracia - direta, de necessidade - pertence a ordem constitucional do futuro. Mas tomemos ao método de interpretação conforme a Constitui­ ção. Granjeou ele foros de universalidade, e é hoje, talvez, o mais idô­ neo na hermenêutica das Constituições; pelo menos o que melhor se amolda a solver problemas que a metodologia clássica de subsunção e dedutivismo não lograva fazê-lo, em razão de apoucar ou ignorar a normatividade dos princípios. Dantes relegadas ao espaço programático, jaziam as cláusulas gerais, com ou sem razão, num campo abstrato de vaga e duvidosa possibilidade de concreção. Os métodos tradicio­ nais eram os métodos da legalidade, o método da interpretação confor­ me a Constituição é o método da constitucionalidade. Converteu-se ele, de último, num dos mais importantes postula­ dos da teoria material da Constituição e da autoridade interpretativa do

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juiz. Quando aludiu Max Imboden à sua procedência americana frisou, com assaz de razão, que não se tratava de recepção de judicatura es­ trangeira, mas de algo que tem que ver com uma necessidade imanente a toda categoria de controle de normas. (“Die Erklãrung für diese Anlehnung an das amerikanische Vorbild darf weniger in einer eigentlicheq Reception einer fremden Judikatur gesucht werden; sie ergibt sich aus inneren Notwendigkeiten jeder Normenkontrolle”). 16. O método de interpretação conforme a Constituição, desde muito em voga na jurisprudência dos tribunais europeus, não é criação da Alemanha, donde se irradiou, como também a tópica não o fora; aquele nasceu nos Estados Unidos, esta na Grécia, no regaço da filoso­ fia pós-socrática, com Aristóteles. Sua ressurreição ocorreu com Viehweg no campo jurídico durante as décadas de 50 e 60 e exercitou considerável influxo sobre o consti­ tucionalismo contemporâneo do Estado Social e sobre sua metodolo­ gia interpretativa. As origens americanas do método de interpretação conforme a Constituição são patentes desde a máxima haurida na irrefutável tese de Marshall de que todas as leis se devem aplicar “em harmonia com a Constituição” (“in harmony with the Constitution”), critério, este, con­ sagrado nos Estados Unidos pela jurisprudência de todos os tribunais, nomeadamente a da Suprema Corte, donde deriva. Dois princípios exis­ tem pois providos de mútuos laços de conexão e afinidades patentes: o da presunção de constitucionalidade das leis e o da interpretação confor­ me a Constituição. Este nasce daquele; o primeiro se acha na ante-sala do segundo; um é americano, o outro alemão, e ambos se completam. Mas uma certeza os distingue: a intensidade e energia com que se afirmam. Esta é máxima na interpretação conforme a Constituição, onde se entrelaça concretamente com os valores numa operação ou re­ flexão estimativa, e dentro nessa moldura com o controle de constitu­ cionalidade, sendo, por conseguinte, mais afirmativo, mais conseqüen­ te, nos seus efeitos, mais visível nos seus contornos, mais definido na sua estrutura metodológica. E do mesmo passo um dos mais aplicados na jurisprudência dos tribunais europeus aos quais incumbe a guarda da Constituição. 17. Disse Walter, o chefe contemporâneo da Escola de Viena, fun­ dada por Kelsen, cuja doutrina ele cultiva com afinco, devoção e orto­ doxia que “a interpretação é apenas um passo no caminho que vai do texto à sentença”. Só não disse, porém, que o passo é decisivo e os

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caminhos são diversos (“Auslegung ist nur ein Schritt auf den Weg vom Text zum Urteil”, Robert Walter, “Philosophische Hermeneutik und Reine Rechtslehre”, in Vetter-Potacs (Hrsg.) Beitrãge zur juristischen Hermeneutik, 1990, p. 48). Já Korinek lembrara, e nós havíamos lembrado também há cerca de vinte anos, em nosso Direito Constitucional, que Kelsen, numa cé­ lebre passagem da Teoria Pura do Direito, dissera: a interpretação de uma lei não conduz, de necessidade, a uma só inteipretação tida por única válida, senão que possibilita várias. Donde se infere o reconheci­ mento por aquele insigne jurista de um espaço volitivo franqueado ao hermeneuta para escolher uma das diversas fórmulas interpretativas aplicáveis à solução do problema concreto com a indução dos elemen­ tos materiais e sociais de densidade normativa. Elementos, estes, componentes de uma constelação de fatores que atuam na formulação final do juízo interpretativo. De tal sorte que o magistrado, ao fundamentar sua decisão, afastando-se, tanto quanto possível, do formalismo abstrato, há de ponderá-los e levá-los sempre na devida conta. O método significa, na essência, conforme dissemos noutro escri­ to, que nenhuma lei será declarada inconstitucional quando comportar uma interpretação “em harmonia com a Constituição”, e, ao ser assim interpretada, conservar seu sentido ou significado. É hoje um axioma de emprego universal na hermenêutica das Constituições. (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 7a edição, 1997, p. 474 e Herzog Shick, Verfassungsrecht, 4a ed., München, 1973, p. 20). E prosseguimos: “Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas algumas conduzem ao reconhecimento da inconstitucionalidade, ou­ tras, porém, consentem tomá-la por compatível com a Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto, há de inclinar-se por esta última saída ou via de solução. A norma interpretada conforme a Cons­ tituição será portanto considerada constitucional. Evita-se por esse ca­ minho a anulação da lei em razão de normas dúbias nela contidas, des­ de, naturalmente, que haja a possibilidade de compatibilizá-las com a Constituição. “A aplicação desse método parte, por conseguinte, da presunção de que toda lei é constitucional, adotando-se ao mesmo passo o princí­ pio de que em caso de dúvida a lei será interpretada “conforme a Cons­ tituição”. (...) Como se vê, esse meio de interpretação contém um prin­ cípio conservador da norma, uma determinação de fazê-la sempre sub­ sistente, de não eliminá-la com facilidade do seio da ordem jurídica,

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explorando ao máximo e na mais ampla latitude todas as possibilida­ des de sua manutenção. Busca-se desse modo preservar a autoridade do comando normativo, fazendo o método ser expressão do favor legis ou do favor actus, ou seja, um instrumento de segurança jurídica con­ tra as declarações precipitadas de invalidade da norma.” (Paulo Bonavides, ob. cit, pp. 474-475 e Max Imboden, “Normkontrolle und Norminterpretation”, in Verfassungsrecht und Verfassungswirklichkeit, Hans Huber, F 5, 133, Bem, 1961, p. 142). O Tribunal Constitucional da Áustria, seguindo a mesma linha eu­ ropéia, em última análise, de inspiração americana, conforme já paten­ teamos, com o princípio da presunção de constitucionalidade (raiz her­ menêutica do novo método), estabeleceu também idêntico princípio de que “nunca a uma lei, em caso de dúvida, lhe seja dada uma interpreta­ ção que possa fazê-la parecer inconstitucional”, (“einem Gesetz im Zweifelsfall nie eine Auslegung gegeben werden darf die es ais verfassungswidrige erscheinen lassen wiirde”, “Sammlung der Erkenntnisse und wichtigsten Beschliisse des Verfassungsgerichtshofes”, apud Max Imboden, ob. cit., p. 138). Organizando poderes, repartindo competências, integrando valo­ res, a Constituição incorpora o espírito de cada época, e seus intérpre­ tes lêem nas suas cláusulas fundamentais a direção jurídica da Socie­ dade e do Estado. Interpretar conforme a Constituição (Hesse), confonne o Direito (Korinek), ou conforme a justiça (Schneider), eis aí talvez, nessa trípli­ ce convergência conceituai - em rigor, uma verdadeira tábua e sinonímia de valores - senão a originalidade, pelo menos a novidade dessa proposta metodológica, dominante na jurisprudência dos tribunais constitucionais. Outra coisa não é a interpretação conforme a Constituição senão um postulado de hermenêutica que embarga a contradição axiológica no interior dos corpos constitucionais mantendo e afiançando e ampa­ rando a unidade jurídica do sistema constitucional. 18. Na interpretação normal e tradicional das leis a busca interpretativa de sentido se cinge ordinariamente à esfera da lei mesma, ao seu texto, ou seja, às fronteiras de sua literalidade. De tal sorte que ela, em si mesma, sói ministrar, com freqüência, na redação em que se acha vazada, os elementos comunicativos de respectivo alcance e significa­ do. Mas nem sempre os ministra de maneira completa ou suficiente. Quando tal não acontece, entendem Michel e Schack, que o aplicador

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pode e deve dar um passo além com que transpor aquele círculo de estrita literalidade e ter recurso às vias externas e auxiliares contidas ainda no âmbito da metodologia clássica, a saber, no acervo dos méto­ dos tradicionais. Manter-se-á, porém, em assim procedendo, na unidimensão normativa de horizontalidade da lei, tomada em sua extensão ou latitude exclusiva. É por aí, segundo Michel, que transcorre e se exaure toda a diligência hermenêutica de percepção de sentido, levada a cabo pelo operador jurídico nos moldes dos métodos tradicionais (v. H. Michel: “Die normalige Auslegung ist grundsãtzliche ein einstufiger Akt, bezogen auf die Normschicht, der das auszulegende Gesetz angehõrt”). Algo distinto, porém, se passa com a interpretação conforme a Constituição, um método autônomo, conceitualmente afim ao controle de normas, como assinala Shack, mas caracterizado por sua pluralida­ de, complexidade e verticalidade, pressupondo, ao mesmo passo, nor­ mas que, segundo Michel, se superpõem, e podem na referência hie­ rárquica de sua juridicidade se distribuir por três planos ou camadas respectivas: a norma ordinária, a norma constitucional e a norma supraconstitucional. É no interior desse quadro normativo aberto que se desenrola a interpretação conforme a Constituição, e se perfazem as divisas de um modelo apto a determinar, com precisão, o sentido e a compatibilidade da norma inferior com a norma superior, transcendendo as regiões her­ menêuticas da metodologia tradicional para chegar a um terreno mais convizinho da concretude normativa na realização do direito. Nesse ponto, a Corte Federal de Karlsruhe foi tão longe que che­ gou, segundo Max Imboden, ao extremo de alterar a seqüência interpretativa: ao invés de partir da norma em exame, parte da Constitui­ ção; primeiro, estabelece o sentido constitucional, só depois examina se a norma combatida deve prevalecer ou não com base em algum mé­ todo admissível de interpretação; principia, portanto, com uma análise à ratio constitutionis até que se detennine o sentido essencial da norma. O célebre Bachof, investigando as origens desse método, cuja ido­ neidade teórica já se estabeleceu, descobriu-lhe a causa numa espécie de temor que os juizes constitucionais - certamente escarmentados do positivismo legalista clássico - manifestavam ante o grave risco de ve­ rem o summum jus transformar-se em summa injuria. O método nas­ ceu, pois, de um corretivo ao erro. Sobre os préstimos desse método, Bachof resumiu-os literalmente nos seguintes termos:

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“O Tribunal Constitucional Federal valoriza o princípio da con­ servação das leis - ou como a Corte de modo um tanto singular se expressa: o principio da presunção da constitucionalidade das leis é princípio de tamanha importância que em face dele as usuais regras de interpretação têm que recuar; nesse caso, o Tribunal usa-o para salvar leis, as quais, mediante uma interpretação usual (quer dizer, sem tal consideração de manutenção do direito) deveriam ser tidas por incons­ titucionais. Isto foi levado tão longe que o sentido e a letra da lei, de vez em quando, hão sido violentados, embora a Corte tal não admita e, pelo contrário, acentue que não pode haver interpretação conforme a Constituição contrária à letra e ao sentido da lei. “(...) O espírito e o fim desse método repousam no empenho e na possibilidade de evitar a indesejável declaração de invalidade de leis (“unerwünschte Ungíiltigkeitserklárung von Gesetzen”) com todos os aspectos penosos que a acompanham, tanto para os indivíduos como para a comunidade, e de colocar os mandamentos da Constituição, de uma parte em harmonia com a continuidade do direito, doutra, com a segurança jurídica.” (Otto Bachof, “Der Verfassungsrichter zwischen Recht und Politik”, in Verfassungsgerichtsbarkeit, herausgegeben von Peter Hãberle, 1976, Darmstadt, pp. 292 e 293). Numa reflexão final, Bachof acha que o método se deduz do em­ penho de prevenir que a justiça material, a segurança jurídica e o bem comum sejam sacrificados ao rigorismo formal, a saber, summum jus summa injuria (Otto Bachof, ob. cit., p. 293). 19. Com respeito à participação obrigatória do erário no custeio do sistema previdenciário, conforme estabelece a Lei estadual n. 5.238/ 90, isto em nada colide com o art. 24, inciso XII, da Constituição Fe­ deral; nem por razões de competência, conforme já demonstramos nou­ tro lugar, em que se fez o exame da legislação concorrente, nem muito menos por fundamentos de ordem material. Com efeito, a base desse custeio público reside, em termos constitucionais, no art. 195, que man­ da a sociedade financiar a seguridade social, de forma direta ou indire­ ta, mediante recursos provenientes dos orçamentos de todos os entes da federação. Fez-se ali taxativamente legítimo, por conseguinte, o custeio par­ cial da aposentadoria dos titulares de mandatos eletivos, com recursos da fazenda pública estadual. Tal custeio não é inconstitucional, nem ofende a moral jurídica; ao revés, se harmoniza com todas as cláusulas sociais da Constituição, cuja presença no texto supremo certifica e ho­

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mologa a natureza de Estado Social da República Federativa do Brasil. Designadamente, aquelas que disciplinam a previdência social, no art. 201, e a capitulam no art. 62 como um dos direitos sociais. É, de conseguinte, inadmissível, tendo recurso a raciocínio obscurante, atropelar, por inconstitucionalidade, a adoção legislativa da pen­ são parlamentar, já nos Estados-membros, já na esfera federal, em ra­ zão do custeio público. Quem o fizesse, desconstitucionalizaria a ga­ rantia social de participação que tem e deve ter o tesouro público no custeio do sistema de aposentadorias. Demais disso, se o art. 270, parágrafo único, da Constituição da Paraíba e a Lei Estadual n. 5.238/90 são substancialmente idênticas à Lei paulista n. 7.017/91, e se o Supremo Tribunal Federal, em duas ocasiões, versou matéria vinculada à pensão parlamentar - uma vez, incidentemente, amparando a constitucionalidade do direito adquirido (RE 95.519-DF), outra, frontalmente, numa liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 455-7-DF), promovida pelo então Gover­ nador de São Paulo, ensejo em que assegurou a continuidade da pen­ são de ex-deputados, cujos direitos o veto daquela autoridade executi­ va fulminara - , como conjeturar agora haja o Supremo de variar de entendimento, se no caso da Paraíba as razões de constitucionalidade são as mesmas, pennanecendo inalteráveis? Enfim, no caso das duas leis atacadas, a questão das questões, em termos de constitucionalidade, para solver a controvérsia que se levan­ ta, reduz-se, à luz da interpretação conforme a Constituição, em exa­ minar, tocante à aposentadoria parlamentar, duas interpretações diver­ gentes: uma, a nosso ver, insistimos, eivada de inconstitucionalidade, por fazer leitura superficial e claudicante do texto constitucional nos seus artigos 22, 24 e 202, abraçada a uma literalidade que quebrantaria o princípio da isonomia, tratando igualmente os desiguais, ou seja, equiparando o parlamentar ao funcionário público; outra, sem laivo de inconstitucionalidade, distinguindo as duas espécies previdenciárias, e mantendo íntegro, incólume e inviolável o princípio da isonomia, res­ guardado, no caso vertente, pela interpretação conforme a Constitui­ ção. Esta faz eficaz a materialidade do texto constitucional; a outra, ao contrário, arranha a Constituição, torce-lhe o espírito, conculca o Di­ reito, denega a Justiça. Conclusão 20. Em suma, se fortes e insanáveis vícios de inconstitucionalida­ de porventura maculassem as duas Leis - a Constituição do Estado da

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Paraíba no seu art. 270, e a Lei Estadual n. 5.238/90 - é de ponderar já teriam sido elas invalidadas ao ensejo do juízo prévio de intervenção suspensiva, cautelar e liminar, a que foram submetidas na Corte Maior, ocasião em que o Supremo, não referendando Liminar concedida, man­ teve a vigência dos dois diplomas, colocando-os, inquestionavelmente, ao nosso ver, debaixo da proteção do princípio da presunção de consti­ tucionalidade. E os colocou até que a decisão de mérito venha, afinal, por todos os fundamentos dantes expostos, a confirmar-lhes a constitu­ cionalidade. A resposta às questões formuladas na Consulta é, portanto, afir­ mativa: a constitucionalidade ampara tanto o art. 270 da Constituição da Paraíba como a Lei Estadual n. 5.238/90. Este o nosso parecer, S. M. J.

Capítulo 13 CIÊNCIA POLÍTICA compêndio de Ciência Política, do Professor Nelson Costa, apa­ rece na travessia do milênio. Pelo seu sentido e conteúdo temáti­ co, é de excitai' algumas reflexões sobre a crise da Ciência Política; crise deflagrada desde meado do século XX, e que se acha, ainda, bas­ tante longe de chegar ao fim. Com efeito, as posições hostis no campo da Ciência Política são as mesmas, e idêntica é a obstinação dos litigantes, não havendo, por enquanto, vencidos nem vencedores. Mas a controvérsia prossegue, abafada, lenta, provavelmente menos estrepitosa que nas passadas dé­ cadas. Denota contudo já alguns sinais de fadiga e estagnação para não dizermos de exaustão. Ciência do poder, dos fenômenos políticos, da polis, do Estado, das relações de autoridade e obediência, das magnas decisões e formu­ lações normativas da conduta humana, dos comportamentos políticos e sociais em face da instituição estatal, das relações internacionais, das formas de governo, dos partidos, dos grupos de pressão, da opinião pú­ blica e, finalmente, das idéias e das teorias de organização política da sociedade, a Ciência Política não pôde sair, até agora, da crise de sua formação. A crise, segundo alguns, estalou há mais de dois mil anos, desde a decadência da polis grega; segundo outros, é fenômeno mo­ derno, recente, quase concomitante ao suposto renascimento daquela disciplina científica, por obra do indefesso labor dos cientistas políti­ cos norte-americanos, designadamente na segunda metade do século passado. Todavia, com alguma cautela, poder-se-á dizer que a Ciência Polí­ tica, concebida naquela amplitude, caminha, já, para uma síntese ou

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para uma combinação e convergência de resultados, extraídos dos dis­ tintos ramos e disciplinas autônomas do saber político. As antigas ciências políticas, tão em voga durante determinado período na evolução da Ciência Política, constituiriam, dessa maneira, parte de uma trajetória que vai da pluralidade à unidade, da dispersão à concentração, da transitoriedade à permanência. Mas, sempre, em bus­ ca da instauração definitiva de um conhecimento provido de inteira cientificidade, o que, aliás, parece bastante longe de alcançar. Envolta, como sempre, num véu de dúvidas e hesitações acerca do método, do objeto, da sistematização de conteúdo, da autonomia científica, da incorporação ou rejeição de valores, a Ciência Política tem pela frente problemas medulares, de imenso alcance, que, uma vez resolutos, hão, por certo, de definir-lhe afinal os ramos, a natureza, e sobretudo a destinação. E a Ciência Política porventura ciência em crise justamente por ser a Ciência da crise? Eis uma questão vexatória posta pelos cultores desse ramo do co­ nhecimento, aí residindo, talvez, o ceme de uma grave indagação, que pode conduzir ao reconhecimento de que, se a Ciência Política tem ra­ zão de existir, esta razão se cifra unicamente em fazê-la uma espécie de diagnóstico e terapêutica de todas as enfermidades que arruinam e desbaratam a saúde dos corpos políticos. O terreno se acha, porém, minado de obstáculos, alguns tidos por intransponíveis. Com efeito, os estudiosos e publicistas da matéria não se põem de acordo e ficam cada vez mais distantes de possuir a fórmu­ la que possa afastá-los. Assinalemos tão-somente a trégua, de último observada, e a que chegaram as distintas escolas e correntes dessa fluida disciplina que é a Ciência Política. Já nos consente a pausa havida, estabelecer, com alguma precisão e clareza na análise aos conflitos teóricos, duas posi­ ções extremas, marcadas de frontal antagonismo, e que, ocupando um virtual espaço científico, se dizem portadoras exclusivas da verdade cognoscente. Uma se esteia em bases valorativas, culturalistas, historicistas, qualitativas, sendo de índole filosófica, ou tendo na filosofia sua pri­ meira inspiração e justificativa. A outra se revela, ao contrário, empirista, positivista, quantitativista, matematicista, tendo no culto da ciência exata o seu título à legi­

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timação. Ou seja, de certa maneira, uma é Aristóteles, a outra, Bacon; isto no sentido da realidade e da concreção positiva. A derradeira promove uma redução formalista e coloca, assim, fora do plano da Ciência Política todos os bens espirituais e todos os elementos ideológicos da herança filosófica. E, com essa redução, traz à memória aquilo que já fora empreendido no Direito pela teoria pura e normativista de Hans Kelsen, o mestre da Escola de Viena. Ou figura­ do noutras palavras: fez-se da Ciência Política, ciência dos fatos e dos comportamentos, como dantes se fizera do Direito ciência das normas e das condutas. As duas posições extremas acima referidas se conservam em si­ lenciosa e fria oposição. De um lado, vamos reiterar, para mais fácil compreensão do as­ sunto, se acha a velha Ciência Política do modelo clássico, arrimada à tradição continental européia, que se fundamenta, como vimos, na obra de Aristóteles, onde tinha por vocação e empenho superior a busca e o estabelecimento do bem comum. Este o estagirita o contemplava na edificação e conservação da polis. Essa Ciência Política de cunho aristotélico sobrevive, ainda latente ou explícita, na produção espiritual e filosófica dos pensadores cuja presença na história é a continuidade investigativa da razão, empenhada em descobrir e impor novos cami­ nhos ou novas teses à reflexão política. Doutro lado, a nova Ciência Política, fundada no século XX por cientistas sociais norte-americanos, toma como seu objeto o comporta­ mento político e as relações de autoridade e obediência, cuidando, com isso, que profere a derradeira palavra científica acerca da matéria, o que, aliás, não procede. Em rigor, concentram eles todo o foco de sua perquirição numa unilateralidade de vistas sem precedente, o que de­ veras lhe diminui já o alcance temático, já o grau de eficácia na capta­ ção do fenômeno político em sua máxima extensão. Quando os representantes radicais das duas esferas altercam, nas­ cem as recriminações recíprocas da animadversão científica. Os primeiros são exprobrados e repreendidos e repulsados por seu dogmatismo, filosofismo, doutrinarismo, ideologismo, subjetivismo e historicismo, imanentes a juízos de valor expendidos no exame de re­ gimes e instituições de governo, bem como por excessos de teorização, abstração e generalização, cujos limites se movem indeterminados, ao livre alvedrio de quem os formula.

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De tal sorte que aos seus impugnadores se lhes afigura uma frou­ xidão de laços e compromissos com a verdade científica, de todo o pon­ to vedada naquela via ou direção que eles acoimam de falsa ou factícia. Os segundos não se forram, porém, às setas disparadas por seus contrários, que neles impugnam o logicismo, o matematecismo, o tec­ nicismo, o empirismo, o ilusionismo do rigor metodológico e o hiperfactualismo das estatísticas obsessivas. Demais disso são increpados de quebrarem, por retrocessos inad­ missíveis e anticientíficos, os vínculos da Ciência Política com os va­ lores, a história, a cultura e a sociedade, como se essa distância desca­ bida, esse neutralismo esterilizador, esse esvaziamento de conteúdo, pudessem, acaso, ser levados a cabo sem graves danos à elucidação dos fenômenos políticos ou ao progresso da ciência do poder. Transformam, assim, a Ciência Política numa pesquisa meramen­ te fática, num acervo e arquivo morto de dados estatísticos e análises de comportamento. Sua improdutividade é tamanha que já excita a impaciência e a preocupação de cientistas políticos dantes pertencentes àquela escola ou com ela identificados por laços de simpatia e respeito. Sem entrar no mérito dessa crítica, que testifica, de certo modo, a vastidão da crise dos estudos políticos de dimensão ou pretensão cien­ tífica, queremos tão-somente trazer à colação este livro de Nelson Cos­ ta, com o propósito de demonstrar quanto é ainda viva e relevante na bibliografia contemporânea aquela direção teórica apoiada nas fontes tradicionais de nossa ciência. Direção que se assenta, portanto, sobre bases metodológicas ata­ das à esfera da historicidade, ao reino das idéias, ao mundo da cultura, ao universo dos valores. Abre ela artérias por onde circula um entendi­ mento genuinamente científico dos fenômenos políticos, que não quebranta, todavia, o elo com a tradição helenista, da qual nunca se arredou. Em rigor, é a viagem por uma estrada de pensamento que já tem mais de dois mil anos na dimensão dos tempos, e que continua sendo construída com as fadigas de sempre e as freqüentes correções de ru­ mos havidas na travessia dos obstáculos. Prossegue em nossa época oferecendo inumeráveis contributos de autores de distintas matrizes teóricas, aos quais, como acabamos de as­ sinalar, se incorpora, com manifesta convicção metodológica, o cien­ tista e escritor piauiense Nelson Costa. Sua Ciência Política, assim designada, faz uma segura e compendiosa exposição de princípios e idéias essenciais de filósofos, utopis-

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tas, teoristas e pensadores que, desde a antiguidade clássica até aos nos­ sos dias, forcejam por solver o problema básico de introdução de no­ vas fórmulas de govemo, suscetíveis de melhorar e aperfeiçoar a so­ ciedade humana, bem como corrigir defeitos, imperfeições e insuficiên­ cias de quantos modelos já se aplicaram, de maneira concreta, ou fo­ ram idealmente propostos no campo das instituições politicas. Em verdade, Nelson Costa, arredando-se por inteiro do “behaviorismo” americano, segue outra extremidade metodológica, onde a críti­ ca, a razão e a utopia esplendem a luz e o pensamento dos grandes filósofos políticos de todos os tempos. Expondo, examinando e interpretando a obra político-filosófica dos mais abalizados pensadores da humanidade, o estudo de Nelson Costa se legitima, como assunto essencial de Ciência Política, com o aval que lhe dá a mesa de cientistas políticos do encontro da UNES­ CO, celebrado em Paris, em 1946. Com efeito, traçaram eles, em quatro rubricas fundamentais, um es­ quema de sistematizaçao de todo o teor constitutivo da Ciência Política. Ora, a história das idéias, matéria-prima deste manual, entra na primeira rubrica do sobredito esquema que é pertinente à teoria política. Disse Latino Coelho que “um homem pensador é uma idéia viva”.1 De homens pensadores e de idéias vivas se compõe, pois, este livro que eu tive a honra de prefaciar.

1. J. M. Latino Coelho, Literatura e História, Empresa Literária Fluminense, Lisboa, s/d, p. 290.

Capítulo 14 LA SOCIOLOGÍA JURÍDICA A) Bosquejo histórico y fijación conceptual

ebemos a Ehrlich1 la constitución de la Sociologia Jurídica como disciplina autônoma. Es indudable el merecimiento de ese soció­ logo en la determinación de los conceptos de orden sociológico, que se prenden (adhieren) al derecho y sus instituciones.

D

Tuvo Ehrlich remoto y oscuro predecesor en Charles Comte, cuyo Traité de Législation contenía, en su primera edición, consideraciones sociológicas acerca dei derecho, desprovistas de unidad y sistematización lógica. 1. O nome de Eugen Ehrlich, insigne fundador da Sociologia Jurídica, pode inscrever-se, de justiça, entre os precursores da teoria material da Constituição e da Nova Hennenêutica, pelos excelentes subsídios científicos que ministra à constru­ ção teórica da moderna disciplina do Direito Constitucional em suas raízes políti­ cas e sociais mais profundas, designadamente quando se busca estabelecer as bases de uma nova democracia participativa de libertação. Tendo em consideração que no contraste entre o direito vigente e o direito vivo, entre a Velha e a Nova H enne­ nêutica, entre o jusprivatismo e o juspublicismo, entre a dogmática das normas e a dogmática dos princípios, entre o interesse privado e o interesse público, entre a legalidade e a legitimidade, entre o Código e a Constituição, há um lugar de rele­ vância para buscar luz e exemplo nas reflexões jurídicas e sociológicas de Ehrlich, é que reproduzimos nas páginas finais desta Coletânea um artigo estampado, na Argentina, em Estúdios de Sociologia 2, publicação da década de 60, de cujo Co­ mitê Asociado (Associate Board) fizemos parte. Era dirigida pelos sociólogos Miguel Figueroa Román, Miguel Herrera Figueroa e Pedro R. David. O trabalho, intitulado “La Sociologia Jurídica”, tem, portanto, nexo com a matéria versada nos capítulos antecedentes. Sem a sociologia dos valores não há Nova Hennenêutica nem teoria material da Constituição, urge assinalar.

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TEORIA CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA.

El Grundlegung der Soziologie des Rechts representa, pues, la primera obra capital que se escribió en matéria de Sociologia Jurídica, contándose de 1913, época de su aparición, el comienzo de la nueva ciência, coordinada en una síntesis de princípios norteadores, que se debe aplicar correctamente al estúdio dei derecho. Ehrlich se sirvió de la observación y dei método inductivo, inten­ tando estudiar el derecho como hecho experimental puesto objetiva­ mente en su conexión con los demás hechos sociales. Visto que el de­ recho ejerce fiinción social, la norma jurídica sólo será inteligible si la explicamos por el condicionamiento de toda la fenomenología procesada en la sociedad. Se hace necesario, por lo tanto, según expone Ehr­ lich, im conocimiento exacto de los hechos e instituciones sociales, una vez que tales hechos e instituciones, como sus intereses y sus necesidades, acaban obligatoriamente por determinar la verdadera esencia de las realidades jurídicas, comunicando al derecho consistência, vida, contenido, sustancia, validez y adhesión. Cabe a la Sociologia, por consecuencia, proceder a una investigación dei derecho, de carácter empírico, que tenga en cuenta los presupuestos sociales en que se basa la elaboración jurídica. No obstante las objecciones que se fueran hechas, Ehrlich eman­ cipo aquel orden de estúdios, que contempla en el derecho la realidad social concreta y que hoy conocemos con la designación ya consagra­ da de Sociologia Jurídica. Disponía Ehrlich de copioso material para asentar esa nueva rama dei conocimiento sociológico. El énfasis de la Escuela Histórica en la naturaleza social dei dere­ cho - su combate cerrado a las concepciones dei individualismo jurídi­ co, oriundo de la antigua filosofia racionalista - la doctrina de Hegel y la obra de considerable cuno sociológico elaborada por Rodolfo von Jehring representaron bases seguras, presupuestos y anticipaciones de innegable importancia para afianzar el éxito de que se coronó el movimiento de independencia de la Sociologia Jurídica. Según Ehrlich, en el resumen crítico que de su doctrina hizo Beling, el derecho se genera concretamente en la sociedad. La observación demuestra, por ejemplo, que de millares de actos aislados de compras se originó el derecho de venta; de millares de contratos de seguros, el derecho securitario. Peor si así fuera - dice Beling - 6cómo referir los crímenes que se cometen repetidamente en la sociedad, a la práctica delictuosa o a la mera costumbre, y no al derecho? /Como enfrentar,

LA SOCIOLOGIA JURÍDICA

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pues, el problema de un derecho creado por la sucesión o reproducción de actos ilícitos?2 Contrapuso Ehrlich el derecho social, el derecho vivo, el derecho espontâneo, al derecho “oficial”, cuyo caracter propiamente jurídico él refuta. Advierte, todavia, Beling acerca de las dificultades de ahí deri­ vadas, cuando se sabe que el derecho “oficial” constituye, en verdad, el objeto de la Ciência dei Derecho y de la Jurisprudência, y no el 11amado derecho vivo de Ehrlich, con el cual puede aquél entrar en conflicto.3 De cualquier modo, paténtese, después de Ehrlich, que si se ha de admitir una Sociologia Jurídica, tendrá ésta necesariamente que apro­ ximar el hecho jurídico de las demás expresiones de la vida social, de las creencias, de las representaciones colectivas, de los sentimientos dominantes en el grupo. Tendrá, en suma, que reconducir el derecho a sus orígenes sociales, pero cuanto la norma jurídica, como notablemente pondera Paul Roubier, “es antes que nada regia de derecho muerto”.4 Todo comportamiento sociológico habrá de implicar, en consecuencia, en una recusa a cualquier consideración aislada dei fenômeno jurí­ dico, tomado, como senaló diestramente Hubert, stricto sensu,5 fuera de los lazos que lo prenden a la vida social y hacen con que su diferenciación sea tan sólo relativa y no absoluta, en orden, por consecuente, a invalidar la pretensión normativa de pureza metodológica en el análisis dei derecho, y consecuente reducción a lo que es esencialmente ju ­ rídico. La abstracción de los llamados factores meta jurídicos, que el caso de que se trata envuelven toda la fenomenología jurídica, debe ser enérgicamente combatida. Considerable impulso toma el estúdio sociológico dei derecho cada vez que se reconoce la interdependencia entre el hecho jurídico y los demás hechos sociales. Urge, por consiguiente, determinar, en ese caso, el significado so­ cial que tiene la ley, en sus condiciones de aplicación. 2. Emest Beling, Rechswissenschaft und Rechtspliilosophie, 1923, Augsburg, p. 11. 3. Emest Beling, ob. cit., p. 11. 4. Paul Roubier, Théorie Génèrale du Droit, Recuil Sirey, 1951, p. 79 5. Rene Hubert, “Science du Droit, Sociologie Juridique et Philosophie du Droit”, in Archives de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ns. 12,1931, pp. 62-63.

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Cuando el legislador inscribe en los códigos el texto de una ley, sólo ahí, a contar de ese momento, se convierte ella en objeto de interés para el jurista puro. Ya el jurista sociólogo no se contenta con el simple enunciado de la disposición legal, sino que busca en el estúdio de sus fuentes la comprensión de las determinantes sociales, que la explican, operando la reconstitución de los motivos que la precedieran, indagando, como senala Hubert, si el derecho allí contenido ya no tenía una “manera de existencia latente y virtual, a título de aspiración de las conciencias, de reivindicación de grupos particulares, en realidad, de deseo confuso e inexprimido”.6 Además, asevera Hubert que la contemplación sociológica dei de­ recho siempre lo toma con vistas a la aceptación o al repudio que él logra en la sociedad, midiéndose la importancia social de la ley por el volumen de jurisprudência que ac arrea. El momento de la infracción legal, tanto cuanto el dei cumplimiento de la regia jurídica, se reviste, por consecuencia, dei máximo interés para la investigación sociológica. Cuando el derecho sale de los códigos y entra en los hechos, en la vida y en los contratos, para exprimirse por el entrechoque de intereses, par la adhesión o por la revuelta que causa en el seno de la conciencia colectiva, el trabajo dei sociólogo toma entonces las líneas distintas y precisas que lo caracterizan, a saber, el empeno lícito de extraer de la realidad social todo el condicionamiento fáctico que explica e ilumina el orden jurídico. El jurista sociólogo acompana atentamente, en el dominio que le queda así reservado, la integración o desintegración social dei derecho legislado, cuando éste, en el momento de su aplicación a los hechos, es consagrado o repelido. Pero su misión no termina ahí. Al lado de ese derecho cuyos orígenes se investigan y cuya eficacia se considera en el plano social, hay el derecho a que alude Ehrlich, el derecho no oficial, el llamado dere­ cho vivo, que se forma a la sombra dei ordenamiento político, no raras veces en contravención con éste. Es, por lo tanto el derecho que se constituye “en el interior de los grupos, subordinado, superpuesto o pa­ ralelo al Estado”.7 Sorprenderlo en el adecuado proceso de elaboración y transformación, es otra tarea que incumbe al jurista sociólogo en la investiga6. Rene Hubert, ob. cit., p. 56. 7. Paul Roubier, ob. cit., p. 82.

LA SOCIOLOGÍA JURÍDICA

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ción de los medios porque se revela el derecho. La revelación legal de éste, o sea, la incorporación dei derecho a la ley que lo capta en la so­ ciedad, disminuye, según Hubert, el poder transformador y adaptativo de la forma jurídica, más flexible y más plástica en su existencia ante­ rior, en su positividad simplemente referida a las costumbres. Hubert se sirve aqui de imagen de verdad feliz: los códigos son como los diccionarios: la palabra que en ellos se inscribe dificilmente logra mudanza de sentido, dificilmente atiende a la necesidad de expri­ mir otra acepción dei objeto. De la misma forma, el derecho que se graba en los códigos, que se reglamenta en el cuerpo de una ley, “rompe parte de los lazos que lo prenden a la vida social”, pierde aquella capacidad transformadora, aquella virtud de modificarse, que de antes le permitia rápido ajustamiento a situaciones sociales imprevistas, con plena dilatación de sig­ nificado y aplicación.8 La vida, el crecimiento y la muerte dei derecho, dentro o fuera de las leyes, ofrece siempre temas de permanente interés y predilección a todo jurista sociólogo digno de ese nombre. B) Aspectos positivos y negativos de la Sociologia Jurídica

Ehrlich levanta la Sociologia Jurídica a la categoria de ciência. Del impulso que toma desde entonces, florece copiosa literatura especializa­ da, cuyos resultados constituyen tema que se presta a cuidadosa meditación crítica. iQué frutos produjo hasta nuestros dias, en el campo jurídico, el vigoroso movimiento sociológico?
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa

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