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Entre Dois Mundos CHEROKEE FIRE
Gena Dalton
Nancy estava disposta a tudo para conquistar o coração daquele homem. Inquieta, Nancy rolava na cama, sem conseguir pegar no sono. Queria muito sentir raiva de Jerome, aquele homem arrogante que não se importava com seus sentimentos. No entanto, ardia de desejo e tinha a mente assaltada por imagens dos dois dentro do riacho com as roupas coladas aos corpos, envoltos numa aura de volúpia. Nos momentos de paixão, parecia que nada poderia separá-los, mas a realidade não demorara em atingi-los. Viviam em mundos opostos. Como Jerome, um índio que prezava a simplicidade e as tradições milenares do povo Cherokee, poderia se relacionar com uma mulher cercada por luxo e dinheiro?
Doação do livro: Valéria Digitalização: Joyce Revisão: Bruna Cardoso
CHEROKEE FIRE Genell Dellin 1986 Originalmente publicado pela Silhouette Books, Divisão da Harlequin Enterprises Limited ENTRE DOIS MUNDOS © 1987 para a língua portuguesa EDITORA NOVA CULTURAL Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer forma. Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá. Silhouette, Silhouette Desire e o colofão são marcas registradas da Harlequin Enterprises B.V. Tradução: Fernando Simão Vugman. EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3º andar CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Caixa Postal 2372 Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda. e impressa na Artes Gráficas Guarú S.A.
CAPÍTULO I A luz avermelhada do sol se infiltrava pelas folhagens dos altos carvalhos do Parque Mohawk. Fazia calor. Assim, quando encontrou uma sombra acolhedora para se abrigar, Nancy decidiu parar por um minuto para se refrescar. Olhou para trás para ver o caminho que havia percorrido. O brilho prateado da grade do Mercedes de sua mãe se destacava ao longe, na área do estacionamento. "Eu devia voltar para o carro e ligar o ar condicionado", ela pensou. "Na verdade, eu devia ir para casa." — Não gostaria de se juntar a nós? Assustou-se com a voz tão próxima e se virou. Percebeu, então, que estava quase no meio de um acampamento armado para os três dias do powwow, que acontecia todos os anos em Tulsa. E não fora por acaso que ela havia seguido até ali; esperava encontrar algumas respostas íntimas naquele festival indígena ritualístico. Refeita do susto, ela pôde ver duas mulheres que cozinhavam numa fogueira acesa do outro lado da árvore sob a qual havia se abrigado. A que tinha falado olhava-a de modo terno, enquanto que a outra não desviava a atenção da panela. — Não... Não, obrigada — respondeu, retribuindo o olhar amável e se afastando em seguida. "Eu não pertenço a este lugar", tornou a pensar consigo mesma, enquanto partia em direção ao estacionamento. O que havia para ela ali? Que respostas obteria vagando de modo incerto no meio de pessoas desconhecidas e de uma cultura estranha? Passando por cima de uma raiz profusa, contornou uma tepe, cabana indígena de formato cônico e coberta de couro, então percebeu que estava adentrando outro núcleo do acampamento. Junto à entrada de uma das cabanas, viu um rapazinho de tanga e mocassins, com várias faixas coloridas aplicadas sobre a pele morena. Por baixo da tanga ele vestia uma calça de couro cru, com franjas laterais de cima a baixo. — Ei, Wayne — ele gritou de repente. — Traga a minha faixa! Outro garoto pôs a cabeça para fora da tenda. — Não, enquanto você não pagar o que está me devendo — retrucou com um sorriso maroto, escapando do amigo com uma corrida ágil. O primeiro saiu em sua perseguição, proferindo ameaças bem-humoradas. Mais uma razão para ir embora, Nancy considerou. Todos ali no parque reunidos nesse powwow se conheciam. Ela se sentia uma completa estranha observando os dois adolescentes brincando em camaradagem. Não tinha a menor idéia de como se aproximar das pessoas para tentar esclarecer suas dúvidas a respeito de sua herança Cherokee. O fato de se encontrar ali, num festival indígena, não a aproximava em nada da memória de seu pai. A sensação de distanciamento era a mesma de quando estava em casa. Devia ter ouvido seu irmão Martin. Atravessou depressa uma pista asfaltada, pois o calor que dali emanava atravessava a sola de sua sandália e ameaçava provocar queimaduras em seus
pés. Aquela tinha sido uma idéia ridícula, continuou pensando. O melhor que tinha a fazer era retornar para a casa de sua mãe e passar o resto do dia na piscina. Mas, quando se dirigia para o estacionamento, uma ampla barraca listada de verde e branco chamou-lhe a atenção. Ali estavam expostos artesanatos da cultura Cherokee. Ao passar pela barraca, ela se esforçou para vencer o interesse. Para que prosseguir com uma idéia que desde o começo se revelara sem sentido? Mas seu instinto comercial era aguçado demais para ignorar algo tão tentador. Hesitou. Então, com passos lentos, decidiu dar uma olhada nos artigos expostos. Quem sabe se não encontraria alguma pechincha para a rede de lojas para a qual trabalhava? Pensando bem, se pudesse comprar alguma coisa barata e interessante, sua ida até ali não teria sido totalmente em vão. Afastando com a mão a cortina de pano que vedava a porta, ela entrou para o ambiente onde dominava uma claridade suave, e várias pessoas, a maioria brancas com máquinas fotográficas a tiracolo, admiravam os mostruários. Havia uma grande variedade de peças interessantes. Com certeza ela poderia encontrar ali jóias, mantas ou cestos que fariam muito sucesso em qualquer uma das lojas de departamentos "One of a Kind", da sociedade Harwell & NeePs. Deteve-se diante de um balcão de madeira onde estavam dispostos vários quadros e pinturas. Um cavalete à parte sustentava um quadro bem maior que os outros. Retratava uma mãe com uma criança no colo, andando pela neve. Havia ainda um soldado sobre o dorso de um cavalo e outras figuras delineadas de modo vago ao fundo da tela. Em baixo, numa plaqueta pintada à mão, estava escrito: "Marcha Triunfal". Uma garota, por volta dos seus dezesseis anos, de pele morena e cabelos negros, permanecia sentada numa banqueta rústica, observando o movimento dos turistas com profundos olhos castanho-escuros. A seu lado, numa cadeira de aspecto antigo, estava um homem velho de ar impassível. Nancy verificou a assinatura do quadro e dirigiu-se à moça: — Você é Angie Fourkiuer? — Sou. — E você batizou o quadro de Marcha Triunfal por que sua gente sobreviveu à Trilha de Lágrimas? Uma evidente surpresa surgiu no rosto da jovem artista. — Isso mesmo. O velho limpou a garganta, com ar de discordância. Sua aparência era áspera e rude, mas, quando falou, sua voz soou muito suave e inesperadamente jovem. — Alguns sobreviveram — disse. — Outros morreram. — Eu sei vovô — Angie retrucou. — Seu tom era paciente, mas revelava que aquela discussão já havia se repetido inúmeras vezes. Voltou-se para Nancy, interrompendo o clima de "briga em família'. — Você é a segunda pessoa que entendeu o título do meu quadro. A maioria das pessoas diz o mesmo que vovô. Acham que eu devia tê-lo chamado de "Trilha de Lágrimas", ou coisa parecida. — Mas o triunfo está aí. É fácil de ver. Está no modo como a mãe se sustenta com dignidade, no jeito de quase veneração com que carrega o filho
— Nancy foi dizendo, enquanto ia analisando a pintura. — Você é uma boa pintora Angie. A moça exibiu um sorriso tímido, mas radiante. — Obrigada. — Sou Nancy Dante. — Ela retribuiu o sorriso, estendendo a mão. A outra lhe apertou a mão com firmeza. Então, indicou o ancião com um gesto respeitoso. — Este é o meu avô, Ridge Redfeather. O velho índio fez um pequeno gesto de cabeça, mas não ofereceu a mão. — É um prazer conhecê-la — Angie disse. Então, olhou por cima do ombro de Nancy para um ponto distante e sorriu satisfeita: — Aí vem Jerome. Mal posso esperar para contar a ele! Nancy se virou. Só havia um homem vindo na direção delas, mas no mesmo instante percebeu que era do tipo de homem que se destacaria em qualquer multidão. Ele era alto, moreno e de pele curtida pelo sol. Sob a camisa de flanela, delineava-se um corpo de contornos atléticos e musculoso. Seu modo de andar transmitia autoconfiança e orgulho, sem por isso parecer arrogante. Toda sua figura irradiava a segurança tranqüila de quem sabe o que quer e como obter. Ela não conseguia desviar os olhos dele. Não podia parar de admirá-lo em seu porte de vaqueiro, num andar macio que mais parecia uma ginga. Conforme ele se aproximava, notou-lhe os olhos negros e serenos como costumam ser os de todo índio que não perdeu sua identidade nem abandonou sua cultura. Não possuía uma beleza convencional, Nancy ainda pôde reparar. Mas seus traços revelavam tal nobreza, que punham de lado qualquer preocupação estética. Por um breve e intenso momento seus olhares se cruzaram. Em seguida ele se concentrou na jovem índia e sorriu. — Jerome — ela o saudou. — Adivinhe o que aconteceu. Você não é o único espertinho por aqui. Nancy também entendeu o título "Marcha Triunfal"! — Nancy? — Sua voz era grave e sonora, com algo de quente e sedutor. — Esta é Nancy Dante — Angie apresentou. — Nancy, este é Jerome Redfeather, meu tio. Por um instante ele a encarou com um olhar sério e penetrante. Mas logo sua expressão mudou, revelando um ar travesso completamente inesperado. Sem desviar os olhos de Nancy, indicou a pintura da sobrinha com um pequeno movimento de cabeça: — Quer dizer que você percebeu o significado? — disse. — Nada mal. Nada mal mesmo para alguém que nem mesmo é índio. — Mas eu sou! — Ela protestou num impulso. — Eu sou índia, também! Jerome Redfeather não pôde deixar de notar que o azul de seus olhos ficava mais intenso e escuro, como se acompanhasse o tom apaixonado de seu protesto. Viu ali uma chama que parecia sempre disposta a contrariar a frieza aparente do resto do rosto. Achou-a bonita. — Mais um par de olhos azuis de Oklahoma com um dezesseis avos de sangue índio nas veias, hein? — brincou complacente. — Como adivinhou que eram um dezesseis avôs? — ela quis saber. — Como soube? — Eu simplesmente posso dizer — ele retrucou, estudando-a devagar,
como um cientista analisando alguma nova espécie. — Posso dizer pelo seu... — Jerome, pare com isso! — Angie interrompeu, indignada, pronta para defender sua nova amiga. Voltou-se para Nancy: — Não dê ouvidos para o que ele diz, não acredite numa única palavra. O sorriso franco de Jerome era algo fascinante, capaz de transformar seu semblante sério e orgulhoso num rosto maroto, como um menino bonito que não desconhece o poder dos seus encantos. — Eu não poderia realmente adivinhar — admitiu, ainda sustentando o olhar dela. — Mas você sabe como é. Todo mundo em Oklahoma afirma ter pelo menos um dezesseis avos de sangue índio nas veias, de uma tribo ou de outra. E quase sempre Cherokee. — E são sempre descendentes de uma princesa Cherokee — Angie acrescentou. Nancy se sentia perdida naquele olhar, hipnotizada para responder. — Eu não sei de nenhuma princesa entre os meus ancestrais — disse. — Mas sei com certeza que a minha tribo é Cherokee. Eu acabei de descobrir isso, há alguns dias. — Afinal baixou os olhos e deu de ombros, meio sem jeito. — Foi por isso... Que vim até aqui. — Para descobrir o que é ser um índio? — Sim. — Bem, então — ele começou, assumindo ares de anfitrião — vou lhe mostrar as coisas por aqui. Vamos experimentar um bom pedaço de pão frito, e assistir ao espetáculo de dança folclórica. — Ele dirigiu algumas palavras a Ridge Redfeather, não percebendo a ligeira hesitação de Nancy. — Foi bom conhecê-la — a jovem índia disse com o mesmo sorriso tímido do começo. — Gostei de você também, Angie. Jerome conduziu-a para a saída da barraca, deixando para trás o ar fresco e ameno de seu interior. Antes que pudesse pensar, ela se viu do lado de fora outra vez, sentindo a mão grande e forte que ele punha de modo protetor logo acima de sua cintura. De repente, tudo começava a parecer um sonho. Caminhavam devagar sob o calor intenso do sol, de quando em quando recebendo a bênção da sombra de algum carvalho. Nancy ia se deixando guiar pelo meio da multidão, que parecia aumentar de minuto a minuto. O barulho de tantas exclamações e comentários ao mesmo tempo mal lhe chegava aos ouvidos. De fato, nada lhe parecia muito real. Afinal, chegaram a uma tenda com uma tabuleta anunciando pão frito indígena. Enquanto esperavam em silêncio que fossem atendidos, ela olhou para Jerome, mal crendo que estivesse ali, em companhia daquele homem tão carismático. Por certo não estava habituada a freqüentar powwows, e muito menos a se deixar levar por um homem que mal acabara de conhecer. E, mesmo assim, naquele momento, a simples idéia de afastar-se dele lhe parecia um absurdo sem limites. Por fim chegou sua vez, e ele lhe ofereceu um enorme pão frito ainda quente e cheiroso. — Pronto, aí está — ele disse. — Sua primeira lição no aprendizado da cultura indígena. Qualquer Cherokee que mereça ser chamado como tal come pão frito.
Ela ficou surpresa. — É muito! — exclamou. — Não posso comer tudo isso! — Não diga nada até prová-lo. Vai ver que vai mudar de idéia, — ele assegurou. — Morda, ou, se quiser, parta um pedaço para que eu ponha mel em cima. Vai ver que não existe coisa melhor. Nancy seguiu suas instruções com gestos lentos. Logo descobriu que não havia exagero. Poderia comer toda aquela massa quente e doce num minuto, sem achar que era demais. Segurando-a pelo braço, Jerome fez menção de saírem dali. — Muito bem, isso resolve a parte da alimentação — ele disse. — Agora, para a dança. — Está me dizendo que esta é a única comida típica Cherokee? — ela brincou. — Então esta parte da minha educação já terminou? — Só por agora — Jerome corrigiu, exibindo de novo aquele sorriso que fazia seus joelhos fraquejarem. — Você ainda não está preparada para o conote — acrescentou com mistério —, mas vamos chegar lá. Nancy apenas respondeu ao sorriso, incapaz de prestar atenção ao que ele dizia. Como que imersa numa fantasia, foi despertando aos poucos, recuperando a capacidade de ouvir, quando ele estava no meio de uma frase. —... Dennis Bluecorn é o astro principal do grupo de dança típica. Vamos ver sua apresentação. Pelo ritmo dos tambores, a exibição já está para começar. Ela assentiu e acompanhou-o, caminhando ao lado dele. As batidas dos tambores ficavam mais fortes à medida que avançavam por uma trilha estreita em direção ao local onde uma arena com rústicas arquibancadas havia sido armada. O ritmo das batidas exercia um efeito hipnótico, mágico. Os sons cadenciados penetravam na mente de Nancy como um encantamento irresistível. A música e Jerome Redfeather à sua frente eram seus únicos referenciais. Afinal chegaram junto das arquibancadas. Os tambores já repicavam em batidas mais rápidas. Ela parou e esperou enquanto seu anfitrião trocava cumprimentos com outros homens, acenando a distância para os que se achavam do outro lado da arena. Depois, assim que se acomodaram Jerome se inclinou de modo discreto para lhe dar breves explicações sobre o significado da música que um coro masculino entoava. Uma voz grave e firme soou pelo sistema de alto-falantes. O apresentador ainda nem tinha terminado de pronunciar o nome de Dennis Bluecorn, e o dançarino já invadia a arena com passos rápidos e ritmados, descrevendo um círculo. Seus movimentos tinham uma energia tão poderosa, que aos olhos de Nancy mais parecia um ser extraterrestre. O espetáculo possuía um poder magnetizador: as cores vívidas das penas e pinturas, rodopiando em giros alucinados, os tambores marcando o ritmo, o canto selvagem enchendo a noite, Dennis com seu corpo esguio e elástico dominando a cena com passos tão ágeis que seus mocassins pareciam nunca chegar a tocar no solo. Era como se ele dançasse acima do chão. — Ele... Ele é fantástico — ela sussurrou sem despregar os olhos do espetáculo. — Eu sabia que você iria gostar — Jerome respondeu no mesmo tom sussurrado.
O dançarino ia descrevendo, em sua dança, uma espiral que ia se alargando, chegando cada vez mais perto da platéia a cada volta. Seus movimentos frenéticos foram aos poucos se suavizando, assumindo uma característica solene, criando uma atmosfera mais dramática. Com a batida mais espaçada dos tambores, ele avançava, dobrando o corpo para frente e para trás, controlando seus músculos elásticos com a mesma delicadeza e precisão com que um concertista toca seu piano. O conjunto formado por esses movimentos, aliados às cores vivas e ao canto selvagem, produzia uma imagem fantástica e erótica. De repente Nancy sentiu com grande intensidade a proximidade entre ela e Jerome; o contato leve de seus braços, o calor de seu corpo. Virou a cabeça e deparou com aqueles profundos olhos negros cravados nela. O gosto de mel ainda nos lábios, o som hipnótico dos tambores em seus ouvidos, a dança de movimentos vivos e primitivos gravada em sua mente... Apenas isso já seria o bastante para excitar-lhe os sentidos. Mas não era por isso que ela estava com a sensibilidade tão à flor da pele. Na verdade, não era preciso mais do que a presença de Jerome Redfeather para que ela tivesse todos os seus sentidos arrebatados. Era como se um imã irresistível a atraísse, como se um feiticeiro indígena a tivesse encantado. Numa tentativa de recuperar o autocontrole, rompeu o elo que mantinha seus olhares ligados, e voltou sua atenção ao espetáculo que prosseguia na arena. Dennis agora tornava a ocupar o centro do cenário, onde havia começado seu mágico bailado. Nesse instante, os homens do coro também avançaram para a arena e puseram-se a dançar na mesma seqüência de passos, seguindo o líder. Jerome e Nancy conservaram-se estáticos, olhando para o espetáculo com uma respiração compassada, como se estivessem imersos em algum tipo de transe. Por meia hora permaneceram assim, como que paralisados. Então, ele tocou sua mão. — Vamos arranjar algo para beber — disse. — Isso ainda vai prosseguir por um bom tempo. Conduzida por ele, Nancy seguiu para uma barraca onde puderam comprar refrigerantes. Trocaram rápidos olhares enquanto sorviam em pequenos goles a bebida gelada nos copos de papel. — Que outras danças vêm depois dessa? — ela quis saber, espantada com o tom estranho da própria voz. — A dança do arbusto e, depois, a dança da abóbora. É nessa que eu e Ridge às vezes participamos. — Oh, então você vai ter de ir se trocar daqui a pouco? Ele sorriu e balançou a cabeça, resistindo ao impulso de estender a mão e afastar a mecha de cabelos negros e sedosos que pendia sobre a testa suave de Nancy. — Eu já estou vestido para dançar — disse. — A indumentária da dança da abóbora não é tão impressionante quanto à da dança do amor. — Bem, pois estou desapontada! — ela brincou, espantando-se mais uma vez com sua audácia de pôr em palavras suas fantasias. — Eu não me importaria de esperar que você fosse se vestir com uma tanga e um colar colorido como Dennis Bluecorn. — Seu sorriso era franco. — Afinal de contas, Jerome, essa é a imagem que tenho de um índio dançarino.
O rosto dele assumiu de novo aquela expressão de menino travesso. — Você tem assistido a muitos filmes, Nancy. Hollywood não conhece uma vírgula a respeito dos índios. — Tem certeza? — Absoluta. A conversa fluía solta, à vontade, como entre dois amigos que se conhecem bem e não precisam prestar atenção no sentido das palavras; o entendimento vinha mais dos gestos e olhares que das frases proferidas. Uma aura de sensualidade cada vez mais forte ia se formando entre ambos, revelando-se no jeito de olhar, na maneira franca de sorrirem um para o outro, na corrente elétrica que percorria seus corpos cada vez que sem querer se tocavam. Nancy tentou dizer a si mesma que era preciso manter o controle da situação, que era preciso esfriar. De repente, os tambores e a cantoria cessaram, deixando um silêncio denso em seu lugar. Ela baixou os olhos para o copo de refrigerante em suas mãos, sentindo-se perturbada. — Bem, que tal irmos assistir à dança do arbusto? — sugeriu ansiosa. — Você não prometeu me educar na cultura indígena? — Prometi — ele confirmou. — E vou cumprir. Não pretendo deixar que você perca nenhum detalhe de nenhuma atração no seu primeiro powwow. Mas, embora dessem alguns passos, não chegaram a atingir os seus antigos lugares. Como num acordo mudo, pararam antes dos longos bancos de madeira que improvisavam a arquibancada. Ficaram ali parados, terminando seus refrigerantes, observando de longe o primeiro grupo de bailarinos se retirar e o seguinte se apresentar. Três ou quatro homens, e depois mais um grupo de várias mulheres trouxeram cadeiras de armar para junto da arena. Por alguns minutos ficaram sentados ali, ajeitando seus mantos e faixas. Então, pouco a pouco, foram se levantando e começando a dançar vindo das quatro direções. Passo a passo iam se aproximando dos tambores, mas sem nunca desmancharem sua formação de pequenos grupos só de homens, ou só de mulheres. — Eles nunca dançam juntos? — Nancy perguntou. — Os homens com as mulheres, quero dizer. Jerome não respondeu de imediato, o que a fez se voltar para ele, intrigada. Em seu rosto, encontrou um ar travesso. — Às vezes. Venha comigo e eu lhe mostro. — Tomou-a pela mão e levoua a uma clareira entre as árvores, logo atrás do pequeno palanque do apresentador, longe das luzes da arena. — Esta é a maneira como eles dançam juntos — disse, tomando-a nos braços e iniciando uma seqüência de passos complicados. A proximidade daquele corpo viril fez o coração de Nancy bater mais forte. Como por encanto, sentiu-o acompanhar a batucada rítmica dos tambores. E então, do mesmo modo inesperado, ele a afastou de si, indicando que ela ficasse parada, enquanto ele se punha a dançar em círculos ao seu redor. Ela observava, fascinada. Via-o mover-se com extrema graça e perfeição, iluminado pelas últimas e vívidas cores do entardecer. Jerome executava movimentos seguros, menos rápidos e alucinados do que os da dança do amor a que tinham assistido no início, mas nem por isso menos eróticos e excitantes.
Nancy perdeu a noção do tempo absorta naquele bailado sensual e encantado. Não percebia mais nada, além dele, da música ao fundo, e da noite que já dominava todo o céu com suas estrelas e segredos. Como o passar do tempo, a música chegou ao fim. Ela se sentia zonza, como se estivesse bêbada. Jerome parou de repente e estendeu a mão, que ela agarrou como se fosse cair. Não conseguia tirar os olhos do rosto daquele estranho que, de modo tão inexplicável, exercia um forte fascínio sobre ela. Por fim, para quebrar aquele encanto, Nancy se forçou a falar: — Que... Que dança foi essa? — perguntou. — Tem algum nome especial? — Eu não sei — ele respondeu com gravidade. — Acabei de inventá-la. Por alguns segundos ela o encarou com seriedade. Então, aos poucos, um sorriso foi se desenhando em seus lábios, até que rompesse numa risada franca e aberta. Teve um enorme prazer em poder rir assim, tão solta. Com certo espanto, descobriu que era a primeira vez que se sentia tão bem desde a notícia da morte de seu pai. Talvez as coisas melhorassem, pensou. Talvez a dor passasse, afinal. Mas, quando tornou a erguer os olhos azuis para o rosto de Jerome, soube que nunca, mesmo antes do falecimento do pai, tinha dado uma risada tão boa e tão leve. Porque jamais havia conhecido um homem assim. Ele era tão diferente, tão bom... Tão cheio de calor. De modo indefinido, Jerome trazia dentro de si um tipo de nobreza que era inteiramente nova para ela. — Nem todas ás nossas danças possuem nomes — ele disse, despertandoa de seu devaneio. — Mas nós sempre dançamos para as coisas que são mesmo importantes, como a chuva... Uma boa colheita... E pela chance de tornar a ver uma mulher bonita. Nancy apenas sustentou o olhar dele, sem responder. — Podemos até dançar juntos de novo — Jerome sugeriu. — Só se você prometer usar penas. — Ele sorriu. — Prometo. — Onde vai ser o próximo powwow. Não tem um na reserva Cherokee? — Não existe reserva indígena em Oklahoma! O Estado inteiro é uma reserva! — ele retrucou, horrorizado. — Nancy, onde foi que você cresceu? — Em Tulsa. Ele balançou a cabeça, incrédulo. — Não posso acreditar. — Fez uma pausa e então acrescentou bemhumorado: — Nós não ficamos em reserva nenhuma; temos rodeado você em toda a volta e você nem sequer notou. — O que é que você quer dizer com "nós"? Lembre-se de que também sou índia! — Não até que tenha recebido a devida instrução. Sua ignorância é admirável. Nancy achou graça. — Bem — ele continuou. — Acho que sua primeira tarefa vai ser ir comigo até Tahlequah. Que tal amanhã à noite? — Você deve achar que o meu caso é urgente — ela retrucou com malícia, os lábios cheios movendo-se de maneira sensual. Jerome lutou para não ceder ao impulso de beijá-la. Não podia. Se o
fizesse, não poderia mais parar. E essa não seria uma atitude inteligente para quem já havia passado pelo que ele passara. Assim, controlando-se com firmeza, disse: — Não apenas urgente, quase terminal. No seu estado é muito embaraçoso sair por aí dizendo que é Cherokee. Mesmo que seja apenas um dezesseis avos — fez uma pausa. — E então, combinado para amanhã à noite? Ela teve de rir. — Combinado. Amanhã à noite. — Eu passo para te pegar por volta das cinco. É um bom pedaço de estrada. Ela assentiu em silêncio. Os dois ficaram se olhando, calados. Havia uma comunicação muda entre ambos que os impelia a se tocarem, como uma força invisível... Irresistível... — Preciso do seu endereço — ele disse afinal, a voz um pouco rouca, como se sua garganta estivesse seca. Nancy abriu a bolsa e retirou um de seus cartões comerciais e uma caneta. — No momento eu estou na casa de minha mãe. — murmurou, usando a pequena bolsa como apoio para o cartão enquanto escrevia o endereço no verso. — Este é o endereço dela — explicou. Quando foi dar o cartão a ele, seus dedos se tocaram. A sensação foi a de um choque elétrico. — Vejo você amanhã, Nancy — ele disse num tom macio e quente. E então, como que por encanto, desapareceu entre as sombras das árvores. Ela ainda ficou parada, olhando na direção em que Jerome havia sumido. Um vento suave soprou folhas secas pelo chão, provocando um ruído característico. Só então Nancy se deu conta de que havia escurecido. Estendendo o braço, ela se apoiou no tronco de um carvalho, tomada de súbita fraqueza nas pernas. As idéias se embaralhavam em seu cérebro. O que é que tinha feito? Acabara de marcar um encontro com um homem que nem mesmo sabia quem era! Pior, um homem muito diferente, em todos os sentidos, de qualquer outro que conhecia! À medida que foi se recuperando, percebeu a superfície rugosa e áspera do tronco da árvore em que se apoiava. Como um som que vem de muito longe, ouviu o troar dos tambores que recomeçavam a tocar o seu repique alucinado. O ritmo selvagem, primitivo, erótico... Penetrou 20 em seus ouvidos e invadiu seu ser. Sentiu o coração pulsar, acompanhando o mesmo ritmo louco que marcava a melodia. Todo seu espírito parecia se agitar seguindo aquelas batidas. Então, com um misto de euforia e espanto, Nancy compreendeu uma coisa: finalmente, quando já havia desistido de procurar, tinha encontrado o homem que era capaz de colocar em ebulição todas as emoções que trazia represada sob sua fria superfície. Um leve calafrio percorreu sua espinha. Teve medo. Talvez ela ainda não estivesse pronta para isso.
CAPÍTULO II A campainha soou instantes depois de Nancy ter entrado, carregando uma pesada sacola de livros. Largou-a no chão, de modo a poder consultar seu relógio, resmungando para si mesma: — Não pode ser Jerome... Ainda. Ele não disse cinco horas? — Voltou-se para ir atender a porta e, quando a abriu, deu de cara com seu irmão, Martin. — Você é a nova empregada? — ele brincou, sorrindo. — Não, não pode ser. O uniforme está muito elegante. — E desde quando você repara em elegância? — ela retorquiu no mesmo tom alegre, recuando um passo para deixá-lo entrar. — Você vem usando "o mesmo tipo de terno todos os dias desde que abandonou os shorts! — provocou. - Acha que variar a cor e o tecido dos mesmos modelos do seu vestuário é o que fazem todos os homens elegantes da sociedade! Ele deu risada. — Não é justo. Você não está sendo nem um pouco justa! — ele protestou. Quando viu que Nancy pegava a sacola, tomou-a de suas mãos, enquanto seguiam para a ampla sala de estar. — Minha nossa, mana, isto aqui está pesado! O que foi que você arranjou desta vez? — Livros. Eu tinha uns minutinhos livres e então resolvi ir até a livraria do Steve. Encontrei um da história de Oklahoma e outro sobre a nação Cherokee. Mas comprei algumas outras obras interessantes, também. — Abriu a sacola e espalhou os livros sobre uma grande mesa de leitura atrás do sofá. Martin leu cada um dos títulos e se afastou. Deu alguns passos nervosos pelo ambiente e deixou-se cair numa poltrona macia. — Você ainda está preocupada com essa baboseira de sangue índio? Pensei que tivesse deixado isso tudo de lado, depois que nós decidimos não ir até o bendito powwow — resmungou contrariado. — Você decidiu não ir. Eu fui. Ele a encarou, espantado. — Você foi? Bem, e então, eu não estava certo? — A princípio eu pensei que sim — ela começou, devagar. — Mas daí conversei com algumas pessoas, e elas me fizeram sentir bem-vinda. Depois disso nada foi entediante. E quando assisti ao show de danças típicas... Achei mesmo incrível. — Sentiu certa culpa por estar dizendo apenas meia verdade. Mas achou que não devia mencionar Jerome. — Bem, isso é muito bom — ele respondeu sem muito entusiasmo, olhando para fora pela janela, sua mente em outra coisa qualquer. Nancy contornou a mesa e se sentou no sofá, de frente para o irmão. — Sabe Martin, depois de ter visto os índios ontem, de ter falado com alguns deles, é interessante pensar que papai tinha um quarto de sangue Cherokee. O irmão voltou-se para encará-la. — E nós, um dezesseis avos — ela completou. — Talvez, mas ainda somos as mesmas pessoas que éramos antes de
descobrirmos sobre o nosso sangue índio. — Sim, mas eles parecem tão diferentes de nós, de algum modo. — Bem, papai não era uma pessoa muito preocupada com suas raízes. Ele vivia imerso no presente... Pelo menos, até onde sabemos. Os dois se calaram, e um pesado silêncio pairou na sala espaçosa. Nancy sentiu seus olhos marejarem. Ela e Martin nunca tinham sido muito chegados, sabia que estavam tendo os mesmos pensamentos, os mesmos arrependimentos. Com o peso da dor, ela baixou o rosto e cerrou os olhos. Fazia apenas uma semana que ambos tinham saído do funeral do pai e se posto a examinar seus papéis. No entanto lhe parecia que se passara mais de um mês. Naquela noite tinham compartilhado das mesmas emoções, também. Depois que os últimos amigos e parentes se haviam retirado, e sua mãe tinha ido para o quarto, os dois ficaram andando pela casa, agitados, com os mesmos sentimentos de solidão. Em sua aflição, acabaram indo até o velho estúdio do pai; onde ele costumava passar horas e horas absorto nos assuntos de negócios e em leituras. Ansiosos, reviraram os papéis e documentos guardados na escrivaninha, na esperança de encontrar uma derradeira mensagem. Nancy se lembrava de terem revirado gaveta por gaveta, até encontrarem uma caixa de madeira com a inscrição: "Particular". A sensação tinha sido a de um tapa no rosto. Aquela era a palavra exata para Simon Dante. Algum tempo depois, ela ergueu os olhos brilhantes e vermelhos para o irmão. — Sabe esses registros de seu sangue Cherokee, que encontramos entre os outros papéis... — fez uma pausa para firmar a voz trêmula. — O registro tribal da mãe dele e os recibos pelas contribuições feitas para a tribo Kee Too Wah... Martin, esse é provavelmente um entre tantos segredos que ele guardou de nós. Nós nunca chegamos de fato a conhecer papai. — Eu sei. — Sua voz estava cheia de sofrimento. — E isso me deixa louco de raiva. Por que isso, Nancy? Por quê? Por que ele nunca permitiu que nos aproximássemos? Ela apertou os lábios para conter o choro, enquanto se ocupava em recolher um fiapo de linha do forro do sofá. Enfim, disse, bem devagar: — Porque ele era ocupado demais. Estava sempre tentando provar que era tão bem-sucedido em ganhar dinheiro quanto qualquer outro membro da família de mamãe. Estava o tempo todo tentando esquecer que tinha sido pobre um dia, e lutando para que nunca mais voltasse a ser — ela parou um momento, pensativa. Depois prosseguiu, no mesmo tom baixo e sofrido. — Acho que isso tomou tudo dele, Martin. Foi isso que provocou o "súbito" ataque do coração que o matou. Essa maldita tensão foi minando sua saúde ano após ano. Martin assentiu seus traços marcados de dor. — Você está certa. Mas ainda assim é duro imaginar que ele não chegou a ter uma chance de mudar suas prioridades... A tempo. — Eu sei. Trocaram um sorriso tremulo, mesclado de tristeza, confortados por poderem repartir aquele momento. Martin sempre fora o "grande irmão protetor", mas falar sobre seus sentimentos em igualdade de condições era
uma experiência nova para eles. Uma experiência boa, Nancy pensou. Dava a sensação de que não estava tão só, afinal de contas. Nos minutos que se seguiram, conversaram sobre suas infâncias e recordações das escassas ocasiões em que tinham partilhado da companhia dos pais. Num dado momento, Martin disse: — E onde está mamãe agora? Vim até aqui para saber se você e ela estariam dispostas a sair para jantar fora comigo. — Está descansando. Estou certa de que ela vai adorar sair, mas eu não vou poder. Faremos isso em outra noite, está bem? — Mas é que talvez eu não tenha outra noite livre tão cedo. Vou estar preso com jantares de negócios e encontros pelo resto da semana. E você vai voltar logo para São Francisco, não vai? — Não. — Nancy ouviu-se dizendo. — Acho que não. Estou pensando seriamente em ficar aqui em Tulsa. — As palavras pareceram ficar reverberando pelas paredes. Ela ficou parada, vendo a surpresa estampada no rosto do irmão. Uma surpresa que ela própria sentia. Desde quando estava avaliando as possibilidades de efetuar mudanças tão profundas em sua vida? Bem, de forma consciente ou não, o fato é que acabara de tomar uma decisão importante. E já no instante seguinte sentia como se aquilo fosse algo pensado e amadurecido durante muito tempo. Sim, ia permanecer em Tulsa. — Mas, Nancy, e quanto à sua carreira? E a sua promoção para vicepresidente? Você vem trabalhando para obter esse reconhecimento há seis anos! Ela se pôs de pé e andou até a larga porta de vidro que dava para o pátio com piscina. Ficou um longo tempo olhando para o extenso gramado que seguia mais adiante, onde árvores escolhidas a dedo formavam um bosque acolhedor. — Seis anos em que eu devia ter me dedicado a conseguir alguma outra coisa. — Como o quê? — Martin também se levantou e foi até ela, cheio de preocupação. — Como... Encontrar a mim mesma. Como... Encontrar alguém para amar. Martin tomou-lhe as mãos, consternado. Apesar do sincero interesse, a falta de hábito de conversas tão íntimas ainda se interpunha entre ambos. — Eu estou cansada, Martin. Cansada e sozinha e tenho de fazer alguma coisa. — Ergueu a cabeça, parecendo exausta. — Já faz um bom tempo que venho pensando nisso. — Mas não acha um tanto drástico destruir sua carreira e abrir mão dos seus amigos e de toda a vida que construiu? Mana, todos nós nos sentimos assim de vez em quando, mas você trabalhou tão duro. — Isso é diferente — ela objetou. — É uma coisa mais funda. O melhor que tenho a fazer é voltar para casa e reavaliar a minha vida. — Não pode fazer isso agora. Não pode tomar uma atitude dessas quando ainda está sob a tensão causada pela morte de papai. Dê algum tempo a si mesma, Nancy, e verá que vai chegar a uma solução. — Só se eu fizer alguma coisa! Martin, eu já senti isso antes, durante o colégio, e logo depois de terminar a faculdade. Preciso de algo novo, algo mais do que a vida tem me oferecido. Apesar de ainda preocupado, ele deu uma pequena risada e beliscou de
leve a bochecha da irmã, como costumava fazer quando ela era apenas uma garotinha que idolatrava seu irmão adolescente. — Você fala como se tivesse dezoito, e não vinte e oito anos — brincou para aliviar a tensão. — Se você topasse vir jantar comigo, teria uma noite inteira de bons conselhos: toda a sabedoria acumulada ao longo de trinta e sete anos. Ela conseguiu sorrir. — Vamos almoçar amanhã, está bem? Eu vou a uma apresentação Cherokee esta noite, em Tsa La Gi. E ainda nem tomei banho e me vesti. — Apresentação Cherokee? Com quem, se me permite perguntar? — Com Jerome Redfeather, um Cherokee. Não acha apropriado? Martin lançou-lhe um olhar preocupado. — Quem diabos é esse tal de Redfeather? Onde você o conheceu? — No powwow, ontem... — Mas é um estranho! — interrompeu-a, irritado. — Você nem conhece o sujeito e vai se meter no meio das colinas com ele, indo até Tahlequah para ver uma peça que dura metade da noite? Nancy, se você quer um encontro, ligue para um de seus velhos amigos; muitos ainda vivem aqui em Tulsa. Ela riu e colocou a mão em seu braço. — Você é um doce por se preocupar, Martin, e eu te amo por isso. Mas vai estar tudo bem. Lembre-se de que agora eu já não sou mais uma menininha irresponsável. — Pois eu não estou tão certo disso — ele insistiu ainda alterado. — Eu só estou tentando aprender alguma coisa sobre a minha ascendência... E a sua — ela respondeu num tom sereno. — Agora eu preciso me apressar para não me atrasar, mas prometo contar tudo o que acontecer amanhã, quando estivermos almoçando. Ele não respondeu. — Bem, nós temos ou não temos um almoço juntos amanhã? — insistiu. Ele não respondeu de imediato. — Sim, temos — disse, afinal. — E á que horas vai passar por aqui? — Onze. Por isso veja se não volta muito tarde e depois dorme o dia inteiro. — Sim, senhor — ela respondeu com uma continência marota. — Te vejo amanhã de manhã. — Dirigiu-se para seu quarto para se vestir. Mas Martin a chamou antes que pudesse subir as escadas: — Nancy, me desculpe — ele disse. — Eu não tinha o direito de tratá-la desse jeito. Apenas cuide-se, está bem? Ela parou e apoiou as duas mãos no corrimão. — Não se preocupe mano. Essa vai ser uma noite como outra qualquer. Não existe nenhum motivo para você perder o seu sono. Mas, enquanto tentava relaxar no banho, minutos mais tarde, Nancy se perguntava se sua última afirmação seria verdadeira. Jamais admitiria ao irmão, mas estava apreensiva com o encontro que tinha marcado com Jerome. Não que tivesse medo de alguma coisa, mas o mais provável era que teria de suportar uma longa e interminável noite com um homem estranho e sem nada em comum com ela. O flerte do powwow devia ter sido o máximo que um tinha a dizer ao outro, concluiu, suspirando.
Afinal, deu de ombros, saiu da banheira e se enrolou numa toalha macia. Passou para o quarto e foi até a sacada que dava para o vasto quintal da mansão, onde ficou curtindo o calor do sol que ainda brilhava no céu da tarde. Depois, voltou para dentro do quarto e foi terminar de se arrumar. Mais tarde, quando a campainha soou, ela desceu as escadas com um só pensamento: tornar a vê-lo. Tendo sido atendido por um dos criados, Jerome entrou e se pôs a esperála na luxuosa sala de visitas. Não podia acreditar, repetia a si próprio pela milésima vez, desde que abandonara a estrada para seguir pela alameda ladeada de carvalhos no ponto mais fino do bairro mais caro de Tulsa. Como podia ter sido tão estúpido a ponto de se deixar levar por mais uma mulher daquele mundo, uma mulher daquela vazia e fútil alta sociedade que ele tanto desprezava? Aguardava com impaciência mal-humorada. Sua vontade era dar meiavolta e sair correndo para nunca mais tornar a aparecer. Mas não podia agir de modo tão infantil. Ia fazer o prometido; levá-la para a apresentação do drama Cherokee e trazê-la de volta para casa o mais depressa possível. Depois disso, nunca mais a veria. Não havia nada no mundo que o fizesse bancar o tolo pela segunda vez. — Olá, Jerome! Ele se virou para vê-la descendo alegre a escadaria em curva. Pareceu-lhe encantadora. Como um lembrete a si mesmo, contraiu a face e pensou: "este é o último encontro que teremos." — Nancy — cumprimentou solene, revelando uma tensão que ela não havia notado na noite anterior. — Eu fiz você esperar? Desculpe-me. Ouvi a campainha, mas não encontrava o meu agasalho — explicou numa voz ofegante. — Tudo bem. Eu acabei de chegar — ele disse, ainda sem sorrir. "Ótimo", ela pensou, séria. "Vamos apenas terminar logo com esse equívoco. O que aconteceu ontem foi apenas uma ilusão passageira. Pelo jeito, esta noite vai ser tão chata quanto eu imaginava." Como que por encanto, Jackson, o mordomo, se materializou atrás de Jerome e logo os conduziu até a porta da frente, passando de novo pelo amplo e sofisticado hall. Uma vez lá fora, Jerome estacou e disse, indicando toda a área da mansão com um gesto amplo: — Eu não fazia a menor idéia que você vivesse assim. — O que você quer dizer? — ela perguntou intrigada. Ele fez um muxoxo e, colocando a mão em sua cintura, guiou-a na direção de sua pick-up, estacionada junto à calçada. — Quero dizer que isto é um bocado diferente dos lugares nas colinas de onde eu vim — explicou, enquanto atravessavam o longo jardim florido. — Esta casa? — Isto tudo — ele retrucou, num tom menos seco. — Bem diferente das coisas lá na "reserva" pela qual você andou me perguntando — ironizou. Andaram calados até o veículo. — Puxa — ele disse pensativo, dando partida no motor —, não sei como não reconheci o sobrenome Dante. O meu cunhado chegou a trabalhar para o Dante Oil.
— É mesmo? — ela sentiu que Jerome falava mais para si mesmo. — Sim — olhou para ela. — E também fiquei sabendo do seu pai. Eu sinto muito. — Obrigada. Conforme iam avançando pela estrada rumo a Tahlequah, um silêncio incômodo ia se impondo. Nancy desejou encontrar as palavras certas, palavras que anulassem a triste distância que sentia estar se criando entre eles. — Eu gosto da sua caminhonete — disse por fim, quando já rodavam pela auto-estrada. — Obrigado. Foi personalizada, de modo que seja bem confortável para quando eu preciso pegar a estrada. Mas, de certa maneira, é um desperdício. Na maioria das vezes eu vou de avião. — No seu trabalho? O que é que você faz? — Monto em rodeios. Sou um cowboy. Ele achou graça. — Isso não é um tanto contraditório? Ele a olhou de relance. — Você diz ser um cowboy e um índio ao mesmo tempo? Nancy viu-o sorrir, o mesmo sorriso irresistível do dia anterior. Talvez o episódio de vinte e quatro horas antes não tivesse sido uma ilusão passageira, afinal. — Não é fácil — ele respondeu após pensar um instante. — Mas consigo viver com isso. Não é algo que não se possa resolver. — Estou certa de que não há muita coisa que você não possa resolver — ela murmurou. — É o que dizem. Havia uma sensualidade e uma graça nele que aos poucos ia recriando o clima de encantamento da noite anterior no powwow; ela podia sentir isso com clareza. Mas havia outra coisa, não tão definida. Algo que vinha junto com seu modo de olhá-la, certa nota em sua voz... Como se a estivesse avaliando de um modo que ela não conseguia entender. — E o que é que você faz? — ouviu-o perguntar, trazendo-a de volta para a realidade. — O seu cartão dizia Harwell & Neeps, mas não o que você faz para eles. — Quase tudo. Tenho trabalhado para a rede de lojas há seis anos, e já passei por quase todos os departamentos, desde móveis e objetos de arte, até diretora da seção de roupas masculinas e femininas. Trabalho mais com roupas e artigos de vestuário em geral. É o que eu mais gosto. Ela a olhou, com um interesse sincero. — E é isso o que você está fazendo agora? — Sim — respondeu de imediato. Mas então se lembrou: — Bem, não. Jerome não resistiu a uma risada. — E você diz que eu sou contraditório! Ela também riu. — Era isso o que eu estava fazendo em São Francisco, até três semanas atrás. Mas eu decidi não voltar mais para lá. Ele alternou rapidamente sua atenção entre ela e a estrada. — E o que é que pretende fazer? — Bem... Acho que vou abrir uma pequena butique, ou algum outro negócio só meu. Esse tem sido um sonho há um bom tempo. E me sinto atraída pelo desafio de ver se consigo ser bem-sucedida numa coisa minha; seria o paraíso ter o controle de tudo, desde os estoques até as finanças.
Ele deu um riso seco. — Paraíso não é bem a palavra que eu escolheria. Nessas últimas semanas toda essa confusão do comércio tem sido um verdadeiro inferno para mim. — Como assim? O que é que você tem a ver com o comércio? — Estou tentando começar um negócio. Uma loja de roupas de vaqueiro, selas e esse tipo de coisa. — Em Tulsa? — É. Na região do Memorial. A reforma da loja está quase pronta, e parte da mercadoria já foi despachada. A inauguração está marcada para daqui um mês, mais ou menos. — Mas como é que você pretende administrar a loja e ir aos rodeios ao mesmo tempo? — Pois essa é a pergunta que venho fazendo a mim mesmo — ele riu com ironia. — Desde que o meu gerente resolveu cair fora, na semana passada. — Então você tinha um gerente? Quer dizer que não está planejando abandonar os rodeios? — Não ainda. Penso em continuar no mínimo até o fim dessa temporada. Trinta e quatro anos já é estar um tanto velho para ficar sacudindo o esqueleto em cima de um cavalo ou de um touro bravo, mas sou capaz de não resistir e participar de mais uma temporada depois desta. — E daí vai administrar a loja? — Espero que não! — respondeu, horrorizado. — Eu detestaria, e é provável que acabasse falindo. Isso é só um investimento, algo sobre o que não entendo muito. Quando eu parar de montar em competições, pretendo criar cavalos de corrida. — Você tem um rancho? Ele fez que sim. — Nessa região. Não muito longe da "reserva" — acrescentou em tom de brincadeira. — Vou lhe mostrar um dia desses. — Mal acabara de pronunciar aquelas palavras, e já se perguntava por que diabo tinha levantado tal possibilidade. Não tinha decidido que aquele ia ser o último encontro deles? Mas o som da voz dela chamou sua atenção, e a conversa prosseguiu alegre e descontraída. Quando chegaram ao grande complexo cultural Cherokee, numa área chamada Tsa La Gi, Nancy já havia esquecido por completo qualquer possibilidade de que aquela noite fosse algo menos do que maravilhosa. Juntos, passearam entre as construções que formavam o complexo cultural, admirando a rica vegetação que se infiltrava por todos os lados. Conversaram sobre a história dos Cherokee; ela comentando sobre os livros que tinha comprado, ele falando os costumes que sua família conservava. Num dado momento, Nancy contou como tinha vindo a descobrir a respeito do sangue indígena que possuía, investigando os papéis de seu falecido pai. Passado um bom tempo, Jerome sugeriu que fossem fazer um lanche na lanchonete colocada próxima de uma antiga aldeia conservada em sua forma original. — Vamos visitá-la — ela propôs assim que pegaram seus sanduíches e refrigerantes. — Já está muito tarde. Voltaremos aqui outro dia, em breve — ele se ouviu dizendo, incrédulo e consternado. — É preciso gastar no mínimo um dia
inteiro aí, para fazer justiça a essa aldeia-museu. Comeram a refeição leve quase em total silêncio. Quando terminaram, acompanharam o fluxo de pessoas que seguiam para o teatro ao ar livre onde aconteceria a representação. Jerome caminhava um pouco afastado dela, absorto em seus pensamentos. Pelo jeito tinha montado cavalos xucros demais. Estava agindo como um completo idiota! Num instante jurava que nunca mais pretendia vêla, no outro estava convidando-a para passeios e para conhecer seu rancho. Enquanto andavam, lembranças de outros tempos passavam por sua cabeça. Lembranças já distantes de seu envolvimento com certa Diana Medford, uma experiência que o havia ensinado a manter distância de todas aquelas moças ricas e mimadas, para quem ele não passava de uma curiosidade. Essa era uma lição que não devia esquecer. A peça começou com a explosão de um tiro de canhão e uma linha de atores vestidos de soldado descendo em desabalada carreira a encosta que formava o fundo do palco. A sensação era de que poderiam perder o equilíbrio e rolar pelo declive escarpado com trágicas conseqüências. Num impulso, aflita, Nancy agarrou a mão de Jerome. Ele se mantinha estranhamente imóvel. Ela se virou para ver sua fria expressão, e tentou retirar sua mão. Mas Jerome não deixou. Ao contrário, prendeu-a com ardor, um ardor que contradizia de modo franco a expressão que tinha no rosto. A partir desse momento, ela teve dificuldade em manter a atenção na peça. Quando a lua surgiu por trás do pajé, que conduzia seu ritual no topo da encosta, e Jerome entrelaçou seus dedos nos dela, todo o conflito de brancos contra Cherokees e Cherokees contra Cherokees perdeu o significado para Nancy. Tudo que ocupava seu espírito era a imagem, o calor, o toque e a sensualidade marcante daquele homem que parecia disposto a subverter toda a ordem de sua vida. Ao final da apresentação, com as luzes da platéia se acendendo, os dois, em silêncio, se levantaram e se afastaram da multidão. Suas mãos continuavam presas num aperto intenso. Na volta para a pick-up, decidiram, num acordo mudo, abandonarem o caminho iluminado, seguindo pelo meio das árvores, respirando a fragrância da vegetação na noite que se aprofundava. Uma brisa fresca soprou os cabelos dela, e Jerome tocou-os com a ponta dos dedos, numa carícia delicada. Pararam para se olharem de frente, e o que se seguiu foi apenas a obediência a uma força cósmica superior, um desígnio do destino. Seus rostos se aproximaram lentamente. Na escuridão da noite, seus lábios se encontraram por instinto. Primeiro, um toque sutil, leve, hesitante. Então, devagar, Nancy apartou os seus, convidando, esperando que ele a penetrasse com sua língua, explorando, sua boca, matando sua sede, afogando seu desejo... Jerome era incapaz de resistir àqueles olhos azuis tão doces, aqueles lábios macios, cheios, quentes. Pressionou os seus contra os dela, devassoulhe a boca com sua língua ansiosa, inquieta, quase desesperada. Seus braços longos e musculosos moveram-se incertos, as mãos largas tateando, experimentando... Encontrando a cintura delgada e suave, quadris de uma sensualidade selvagem em suas formas arredondadas e macias...
Nancy sentiu-se um tanto hesitante, no início, mas depois se deixou levar para junto daquele corpo grande e atlético. Sentiu os seios comprimidos contra um peito forte, quente... Uma onda de calor assaltou-a, afogueando-lhe, o rosto, o ventre... O corpo todo. Já não pensava mais em resistir, em lutar. Já não pensava, simplesmente. Com infinita relutância, Jerome afastou-a de si, interrompendo o beijo apenas para olhá-la bem nos olhos. Parecia querer se certificar de alguma coisa. Como se o que estava acontecendo não lhe parecesse real. Mas a curta distância entre eles logo deixou de existir. Entregaram-se a mais um beijo longo e apaixonado. E depois outro. E outro. Até que ambos sentiram os corpos em brasa, até que nada mais sentiram além das chamas da paixão...
CAPÍTULO III Mesmo separados pelo console entre os bancos individuais da pick-up, Jerome e Nancy não conseguiam parar de se tocar e acariciar, depois dos longos beijos ardentes que haviam trocado. Ele mantinha os olhos negros nas curvas sinuosas da estrada escura, mas ela não cessava de admirar seu rosto de uma beleza forte, iluminado pela luz azulada da lua cheia que brilhava no céu. De repente, após mais uma curva, ele reduziu a velocidade. Nancy olhou para frente e logo percebeu uma estrada secundária, de cascalho, que saía da autopista asfaltada. — A minha cabana fica a menos de dois quilômetros seguindo por ali. Quer parar para um drinque e dar uma olhada na minha coleção de tangas e penas? Atraída pelo tom alegre de sua voz, Nancy tornou a olhar para ele. Teve uma vaga noção de que deveria dizer não, mas a visão dos lábios dele só faziam despertar um desejo louco de beijá-lo. Sentia uma imensa dificuldade para pensar com alguma lógica. — Você não tem uma coleção de gravuras indígenas? — Não — ele admitiu com gravidade, mas ainda com uma nota de jovialidade na voz. — Duas tangas de couro e um espanador de penas de peru vão ter de bastar. Seguiram pelo caminho de cascalho, até que pararam diante de uma porteira de metal. Ele apertou um botão no painel da pick-up e o portão se abriu. Atravessaram e prosseguiram por uma estradinha de terra que cruzava uma planície banhada pela luz do luar. — Oh, Jerome, este lugar é lindo! — ela exclamou fascinada pela beleza irreal do cenário natural. Ele assentiu e tomou-lhe a mão num aperto carinhoso. — A terra de Deus. Eu jamais viveria em qualquer outro lugar. Continuaram pela planície até atingirem a base de um morro coberto de árvores. Dali começaram a subir e subir, sempre contornando a encosta. Por fim o caminho voltou a ficar plano, e logo chegaram a uma cabana feita de troncos de madeira, no centro de uma clareira. Jerome avançou devagar até parar a pick-up debaixo da copa larga e acolhedora de uma figueira. Então desligou o motor. Antes mesmo que o veículo ficasse completamente silencioso, os dois já estavam um nos braços do outro, beijando-se e acariciando-se com um fogo de velhos amantes que se encontram após uma longa separação. Por um momento, Nancy se sentiu desnorteada, quando o viu desvencilhar-se de forma um tanto brusca, deixando-a sozinha e abrindo a porta para saltar. Mas o susto passou quando ela o viu contornar a caminhonete e abrir-lhe a porta, tomando-a nos braços para levá-la até a entrada da cabana como um conquistador mouro carregando sua amada. Sem soltá-la por completo, Jerome a pôs no chão. Dali de onde estavam à vista era espetacular. Centelhas de prata dançavam, refletindo a enorme e clara lua cheia na superfície levemente encrespada pela brisa de uma lagoa
serena lá em baixo. Ali, a noite de verão era pontuada pelo coro dos grilos e pelo canto das aves noturnas. O cheiro da relva e dos pinheiros pairava no ar como um perfume natural. Entre o som das batidas do coração de Jerome, ela ouviu o discreto relincho de cavalos sonolentos, vindo de algum lugar por perto. De repente Nancy se sentiu outra pessoa. Mal se lembrava da mulher preocupada com seus negócios, realizações, encontros, orçamentos... Coisas que até então pareciam tão importantes em sua vida. De repente, tudo o que importava era ser e estar; ser uma mulher jovem em sua plenitude, estar nos braços daquele homem mágico, sentindo o sabor de seus lábios, o toque de suas mãos em seus seios por cima do tecido fino da blusa... Entraram na cabana sem dizer uma única palavra. O que se seguiu foi um delírio apaixonado, um fervor sensual, uma entrega sem limites. Nenhuma luz foi acesa. De algum modo chegaram ao quarto de dormir, onde a vidraça nua de uma janela filtrava a claridade tênue do luar e das estrelas. Nancy se sentia feliz como nunca fora antes. Tudo era tão acolhedor, simples, direto. A cabana de madeira, o espetáculo ao mesmo tempo singelo e espetacular da natureza que os rodeava, a volúpia de sentir mãos rudes tocando-a com uma delicadeza infinita... Dominada por essas sensações, ela pensou que aquilo tudo, aquele indescritível prazer, era o que ela tinha estado procurando a vida toda. Tal conclusão trouxe-a de volta para a realidade. Não, a vida não era tão simples assim. Não era um sonho encantado onde só existe o prazer e a preguiça. A vida pensou entristecida, não era um mundo de fantasia. Na cama, seu corpo sob o dele, Nancy se contorceu para se soltar. Jerome ainda continuou o beijo, demorando-se a perceber sua resistência repentina. — Nancy? O que foi? — sussurrou espantado. Ela se esforçou para ficar sentada. — Jerome. Eu... Eu não posso. É muito cedo. — Afastou-se um pouco, lutando para abandonar o aconchego daquele corpo tão desejado. — É... É que nós mal nos conhecemos, e... — teve vontade de dizer que ele a assustava, com seu jeito simples de encarar a vida, com sua coragem, sua rudeza amável, com sua morada que mais parecia um refúgio do "mundo real". Teve vontade de dizer tudo isso, pois era o que sentia. Mas não teve coragem. Apenas calouse e ficou observando-o se tornar cada vez mais frio e inatingível. Ela sabia que era por sua culpa, mas não podia evitar. Estava insegura demais, incerta demais. Tudo já andava tão confuso, como é que poderia se envolver de maneira tão íntima com um homem a quem mal conhecia, e a quem parecia ansiosa por se deixar subjugar toda vez que se tocavam? Desviou o olhar, incapaz de encará-lo. — Me desculpe — ouviu-o dizer num tom seco. Jerome se levantou e deu alguns passos pelo quarto. — Eu devo ter me deixado levar pelo ímpeto selvagem que atribuem aos índios — disse pouco depois, num tom carregado de ironia. A lâmpada de um abajur foi acesa, dando uma tonalidade alaranjada ao interior da cabana. Nancy virou-se e viu o semblante dele sem irritação, mas inexpressivo. — Acho que eu me esqueci de que você tem apenas um dezesseis avos —
ele retomou, no mesmo tom irônico. Ela continuou a encará-lo, incapaz de sorrir. Sentiu os lábios tremerem, num desejo de chorar. Tinha usado de todas as suas forças para repeli-lo, e agora não conseguia suportar a sua frieza. Levantou-se, trêmula. Precisava sair dali. Era necessário encerrar aquela noite antes que fosse tarde demais. — Preciso ir, agora — disse num sopro quase inaudível. — Já está bem tarde, e eu preciso mesmo ir para casa — insistiu, tentando imprimir alguma firmeza à voz. Ele não respondeu de imediato. Apenas a observava com seus profundos olhos negros, agora mais impenetráveis do que nunca. — Você está cansada — disse, por fim. Consultou o relógio de pulso. — Já são quase duas da madrugada. Por que não esperamos até de manhã para voltarmos à cidade? — Mas, Jerome... — Você fica com a cama — ele a interrompeu, indicando o móvel com um gesto. — E eu posso dormir no sofá — completou num tom desapaixonado, como se ele fosse um criado de hotel mostrando as acomodações do quarto a uma nova hóspede. Nancy hesitou. Mas ele estava certo. Sentia-se realmente exausta e, naquelas condições, uma longa volta de carro seria uma tortura. Significaria mais duas horas presa junto a Jerome, enquanto suas emoções continuariam entrando em parafuso. Sim, pelo jeito não havia melhor alternativa do que se deitar logo e tentar dormir. — Minha mãe vai ficar me esperando — ainda resistiu. — Ligue para ela — disse, apontando para o telefone. Nancy consultou o próprio relógio, pensativa. — Já é tão tarde... Estou certa de que ela já foi se deitar. E há essa hora não há mais criados acordados. Eu acordaria a casa toda a troco de nada — concluiu. Ele balançou a cabeça, concordando. — Prometo entregá-la de manhã bem cedinho. Ninguém vai nem saber que passou a noite fora. Jerome certificou-se de que ela estava bem acomodada, e depois se retirou para a sala, fechando a porta atrás de si. Debaixo das cobertas, Nancy pôde ouvi-lo andando agitado no outro cômodo. Teve remorso, mas não sentia ânimo bastante para continuar pensando. Queria apenas dormir. Os últimos dias tinham sido uma seqüência de situações tensas; o sofrimento pela perda do pai, a preocupação com a mãe, a decisão de largar tudo e tentar recomeçar em Tulsa, a excitação sexual desde o encontro com Jerome... Tudo isso junto a haviam levado a um ponto em que ela sentia todas as suas forças drenadas. Não, não poderia continuar pensando em mais nada. Nem mesmo se quisesse. A única coisa que lhe parecia razoável fazer naquele instante era entregar-se às profundezas escuras do sono. Nancy despertou aos poucos na manhã seguinte. Empurrou para o lado a fina coberta, sentindo-se ainda zonza e sonolenta. Já com os olhos mais abertos, percebeu a parede oposta à cama, repleta de adornos e utensílios indígenas, como cocares, um arco e flechas de aspecto ameaçador, além de alguns colares de contas e ossos e pulseiras de penas
coloridas. No chão, havia um rolo de corda grossa. Levou alguns segundos tentando entender o significado de todos aqueles objetos estranhos. Mas logo se lembrou: Jerome! Estava na casa dele. Na cama dele. Lembranças da noite anterior passaram por sua mente como um turbilhão. Lembrou-se de beijos e carícias; da estranha sensação de ser bemvinda. Céus! Como pudera chegar tão perto de fazer amor com um estranho? Balançou a cabeça, desolada. Tudo naquele quarto lhe era desconhecido. Como podia ter se sentido à vontade ali? Com pressa, começou a se vestir. O que tinha acontecido era resultado de sua carência e necessidade de consolo. Nada mais. E agora que sabia disso, não ia permitir que nada daquilo se repetisse. Incrível, pensou como é possível se deixar levar por qualquer um quando se está só e magoado! Seus dedos trabalharam rápido, fechando a longa fileira de pequenos botões de sua blusa. Aos poucos, sentia que ia recuperando o autocontrole. Eles eram muito diferentes entre si, continuou raciocinando, sentindo a cabeça cada vez mais lúcida. Jamais poderiam ter um relacionamento amoroso. As perspectivas de vida de cada um eram muito distintas. Inconciliáveis, mesmo. Passou a mão pelos cabelos negros e sedosos, notando que estavam embaraçados. "Vou pedir para ele me levar imediatamente para casa e encerrarei toda esta confusão de uma vez", pensou cada vez mais decidida. Nunca mais tornaria a vê-lo. Aliás, talvez fosse bom passar algum tempo sem ver ninguém, já que sua capacidade de discernimento não parecia lá muito boa, desde seu regresso a Tulsa, para os funerais de seu pai. Com tal resolução em mente, ela abriu a porta e entrou na sala. Deu com o sofá vazio, coberto de lençóis amarrotados e um par de botas caídas ao lado. Apenas isso já foi o bastante para que sentisse voltar o desejo de tocar o corpo bonito, cujo calor ainda estava nas almofadas quentes. — Nancy? Ela se voltou e viu a silhueta dele no vão da porta da cozinha seu vulto recortado contra a primeira luz da manhã. — Bom dia, Jerome. — Bom dia. Achei que você acordaria quando eu terminasse de dar ração aos cavalos. — Atravessou a sala em direção a ela, fazendo sua pulsação se acelerar. Mas passou reto e sentou-se no sofá, pegando as botas para calçá-las no lugar das botinas velhas que tinha usado para ir até a cocheira. —. Quem alimenta os cavalos quando você não está? — ela se interessou, satisfeita não apenas por sentir a voz firme, como por ver que seu cérebro já começava a funcionar com clareza. — Meu sobrinho. — Olhou-a de relance. — É o irmão de Angie — esclareceu. Ergueu-se e foi até o quarto, guardar as botinas. — O que é que você acharia de um bom desjejum antes de começarmos a nossa longa jornada de volta? — perguntou de longe. — Você vai cozinhar? Ele riu, e Nancy sentiu a gostosa proximidade e camaradagem que haviam partilhado antes. — Não — ele respondeu, voltando para a sala. — Há uma espécie de lanchonete de caminhoneiros um pouco antes da estrada interestadual.
Servem um café da manhã excelente. Topa? — Está bem. Mas, antes de irmos, preciso ligar para a minha mãe. — Fique à vontade. Ela foi até o telefone e discou. Enquanto aguardava que atendessem, não resistiu e ficou observando-o com o rabo do olho. Achou-o tão confiante e relaxado quanto da primeira vez que o vira. Invejou-o. Ele, sem dúvida, sabia o que queria e o que faria naquele dia. Jerome terminou de dobrar a roupa de cama que tinha usado e sentou-se no sofá. Ficou olhando para ela. "Não", pensou, "ela não vai se safar assim tão fácil. Por mais tranqüila que pareça agora de manhã, não vai me beijar como beijou ontem à noite e depois sair como se nada tivesse acontecido. As coisas não são assim tão simples." Ninguém entrava e saía de sua vida assim, sem mais nem menos. Ele tinha ficado horas deitado, sem dormir, pensando nela. Em sua mente, revivera cada segundo, cada detalhe das horas em que haviam estado juntos. Recordou o sentimento de perda quando ela havia se desvencilhado do seu abraço. Assim, por volta das quatro da madrugada, ele chegou a uma decisão: estava enganado quanto à lição aprendida com Diana Medford. Não ia se afastar de Nancy. Ia apenas certificar-se de que estava com o controle da situação. Jackson finalmente atendeu, e Nancy pôde deixar um recado para sua mãe. Disse que estava bem, e que estaria de volta antes do almoço. Com isso desligou. — Está tudo bem? — Tudo. Acho que minha mãe nem notou a minha ausência. Quando Jerome deu a partida no motor da pick-up e começou a acelerar, ela deu uma última olhada na cabana. — É um lindo lugar — disse. — Todo ajeitado entre as árvores... Parece um esconderijo secreto. Um retiro tranqüilo que está aí há muitos e muitos anos. Jerome concordou com um aceno de cabeça. — Só existe há cinco ou seis anos, mas é o meu esconderijo secreto. É o lugar para onde venho quando sinto a minha serenidade ameaçada. A conversa não prosseguiu, e logo ela estava imersa em seus próprios pensamentos. Telefonaria para São Francisco naquela tarde mesmo, e pediria mais um tempo de afastamento. E então sairia pela cidade procurando um bom local para sua futura loja. Esperava manter-se muito, muito ocupada; visitaria velhas amigas, e em breve teria restabelecido seu costumeiro equilíbrio. Jerome relanceou um olhar para ela assim que retomaram o asfalto. — Bem, como está a sua agenda para hoje? Em que pé estão seus planos para sua futura loja? Ela se sobressaltou, como se ele tivesse lido seus pensamentos. — Oh, eu... Eu estava justamente começando a pensar no assunto. Nem sei ainda onde quero montá-la. — Abriu a bolsa, procurando pelos óculos de sol. — Você disse que a sua loja fica no Memorial? — Sim. Ao sul da rua quarenta e um. Talvez já a tenha visto; frente pintada de branco com pilares marrons unidos por arcadas redondas. A fachada já está pronta. Ela sacudiu a cabeça.
— Eu não passei por aqueles lados. — Eu só espero que a decoração fique pronta, e que as mercadorias para o estoque cheguem a tempo para que a inauguração possa acontecer na data prevista. — Vai dar tudo certo. Assim que arranjar outro gerente, verá que tudo retornará aos eixos em três tempos — animou-o. Ele a olhou e tornou a prestar atenção na estrada. — E quanto a você? Aceitaria ser a minha gerente? — ele perguntou de repente. Nancy reagiu atônita. Levou alguns segundos para compreender o significado daquelas palavras. Era uma proposta totalmente inesperada. Olhou para Jerome e viu um homem tranqüilo, concentrado na estrada, as mãos relaxadas na direção. Mas de algum modo sentiu a expectativa que o consumia. Sim, ela sabia, e ele também, que a resposta àquela pergunta determinaria muito mais do que o destino tanto de sua carreira quanto da loja dele. Determinaria se iriam se encontrar outra vez ou não. Ela tentou argumentar: — Mas, Jerome, eu... Eu não entendo nada de roupas para vaqueiros e essas coisas. E ainda é muito cedo para uma decisão tão definitiva de mudança na minha carreira. Minha resolução de voltar a Tulsa ainda nem amadureceu! Preciso de tempo para pensar antes de fazer qualquer coisa! Mas, mesmo enquanto dizia aquilo, ela se perguntava por que estava sendo tão vaga. Tinha de dizer um não, definitivo e seguro. Não havia nenhuma possibilidade de estabelecer uma relação profissional com ele sem que um envolvimento pessoal viesse junto. — Imagino que trabalhar com roupas de vaqueiros não seja muito diferente do que trabalhar com qualquer outro tipo de vestuário — ele ponderou, reduzindo a velocidade para entrar no estacionamento do pequeno restaurante de beira de estrada. — Você teria de aprender a lidar com artigos de selaria, mas eu poderia ajudá-la com essa parte. E também sei de algumas outras pessoas que dariam uma mãozinha nisso. — Estacionou e desligou a pick-up. De repente tudo ficou muito quieto. Após um tempo, ela disse: — Seria um monte de coisas para lidar de uma vez. Provavelmente, coisas demais. — Não para você — ele afirmou com segurança, como se tivesse acabado de tomar a decisão por ela. Saltou para fora, deu a volta e ajudou-a a descer. Mas o que é que estava fazendo? Era o que ela se perguntava enquanto seguiam para a entrada da lanchonete. Era óbvio que não podia trabalhar para ele! — Jerome, escute, não vejo como eu possa... — Não vejo como você possa recusar — interrompeu-a, usando de todo seu charme e de seu sorriso especial de menina encantador. A garçonete não demorou em ir até a mesa deles e anotar o pedido. Tão logo ela se afastou, Jerome retomou sua linha de argumento: — Ouça', Nancy, essa é a situação perfeita. Você acabou de decidir permanecer em Tulsa, e não tem emprego. Eu preciso de um novo gerente, rápido, e não tenho idéia de onde arranjar um — fez uma pausa e deu aquele sorriso que a fazia derreter por dentro. — Se você disser não, eu não sei o que
vou fazer. Perderei milhares de dólares porque não conseguirei abrir a loja em tempo. Acabarei contratando empregados preguiçosos e incapazes que vão me roubar o tempo todo. Vou estocar as mercadorias erradas, e os fregueses jamais voltarão pela segunda vez... Ela desatou a rir. — Você vai se sair muito bem — contrapôs. — Vá até uma agência de empregos, lá eles lhe arranjarão um bom gerente, e você não vai precisar se preocupar mais com coisa alguma. Ele abanou a cabeça em discordância. — Não creio — disse com ar grave. — Nancy, tente ver a situação do meu modo. Se você não gostar, ninguém vai obrigá-la a permanecer para sempre. Poderemos fazer um contrato temporário, se você quiser. Poderá trabalhar para mim por seis meses, um ano, e depois sair para montar seu próprio negócio. Não precisa abrir mão dos seus sonhos por causa disso. Mas "isso" poderia gerar todo um novo conjunto de sonhos. Sonhos dos quais seria infinitamente mais difícil abrir mão, ela pensava consigo mesma. — Apenas pense — ele prosseguiu. — Você poderia aprender, cometendo todos os erros na minha loja, e então, quando tivesse a sua, não nos incorreria mesmos enganos. Ela olhou para Jerome com enorme desânimo. Precisava dizer-lhe um claro e definitivo "não". Como é que podia se imaginar trabalhando junto com ele? Se estivessem juntos, cedo ou tarde acabariam se tocando. E isso levaria a um beijo. E ela já sabia muito bem como era difícil se conter a partir dali. No final, fariam amor... E isso seria a coisa mais insana de todas. A comida foi servida: ovos fritos com bacon, bolachas, batatas fritas, torradas, manteiga, café e leite. — Minha nossa, Jerome! Eu nunca vou conseguir comer isso tudo! — Pois é melhor comer. Vai precisar de todas as suas forças. A minha loja a espera com um ano de trabalho para fazer em poucas semanas. Ela riu. — Você é impossível! Eu não me lembro de ter dito que aceitava o emprego. — Oh! — exclamou com fingido arrependimento. — Pensei que seu silêncio significasse que tinha concordado. Bem, então — ele fez uma pausa para "atacar" a comida —, vou lhe dar o tempo até chegarmos a Tulsa como prazo para se decidir. Pense com cuidado até chegarmos à porta de sua casa. Daí vai poder me dizer sim ou não. Estarei partindo amanhã para participar de mais uma etapa do circuito de rodeios e preciso ter um gerente antes de ir. Ela não conteve o riso. — Eu não posso acreditar numa coisa dessas! Você está conduzindo seus negócios da maneira mais descontrolada que eu já vi. Jerome, esse é um grande investimento que está fazendo! Não pode sair por aí contratando para seu gerente pessoas que você nem conhece direito... Ele usou sua expressão mais sedutora. — Pois é justamente por isso que eu preciso tanto de você — disse, com ar inocente. — Não percebe? Sou um vaqueiro e um cavaleiro. Mas não sou homem de negócios. Não tenho a mínima idéia de como conduzir uma loja. Nancy se pôs a comer, pensativa. Tudo o que ele estava dizendo parecia muito lógico e razoável. Mas bastava considerar com um pouco mais de
cuidado todas aquelas palavras para se perceber que eram pura enrolação. Mentalmente, pronunciou a frase: "Não, Jerome, não posso aceitar a sua oferta". Assim, até que parecia fácil de dizer. Alguém colocou uma moeda na vitrola automática, e uma melodia sertaneja começou a tocar. O volume estava alto, e ela decidiu esperar até que a música terminasse, para, então, anunciar sua decisão de recusar a oferta. "Isso mesmo" pensou "tudo o que tenho a fazer é ficar calma e decidida". Não havia a menor necessidade de esperar que chegassem a Tulsa, concluiu consigo mesma. Jerome pôs suas mãos rudes sobre as dela. — Em que é que está pensando? — perguntou. — Você vai aceitar? Ela ergueu os olhos azuis direto para os dele. A recusa estava na ponta de sua língua. Mas alguma força misteriosa não a deixou falar. Por mais que se esforçasse, não conseguia separar os lábios para dizer o que era preciso. Sem palavras, desolada, fez que sim com a cabeça.
CAPÍTULO IV Nancy abriu a porta da pick-up assim que Jerome estacionou. — Não se incomode em me acompanhar até a entrada. Eu estarei bem. — Está certo — ele concordou, interrompendo o gesto de girar a chave na ignição. — Não acha que devíamos nos encontrar na loja? Que tal às nove e meia, amanhã de manhã? Apesar da voz dele soar tão calma e casual quanto sua postura relaxada diante do volante, Nancy sentiu uma nota de tensão flutuando no ar. O que seria? Estaria temendo que ela ainda mudasse de idéia? Ou seria ele quem começava a se arrepender da oferta? Tinham passado todo o caminho de volta a Tulsa depois do desjejum fazendo planos para a loja e discutindo os termos do contrato de trabalho. Agora a situação já estava ficando mais séria, sem o clima impulsivo do primeiro momento. A única coisa que não tinham discutido ao longo do trajeto era como se comportariam, sabendo que passariam a trabalhar lado a lado. Mas isso não era tão simples de ser colocado em termos objetivos. Bem, já era tarde demais para recuar, ela pensou. Tinha dado sua palavra. Por seis meses. Se até o fim desse prazo tudo corresse bem, ela estaria livre. — Nove e meia, então — concordou. Saltou da pick-up e acenou um adeus. Então fechou a porta, deu meia-volta e se afastou sem olhar para trás. Antes que tocasse na porta de madeira maciça do hall de entrada, alguém a abriu para ela. Jackson a estava esperando. — Bom dia, Jackson. A minha mãe já desceu? — Ainda não, Srta. Nancy. Mas o seu irmão a está esperando no terraço. Intrigada, ela consultou o relógio. — Ele está adiantado. Nós vamos almoçar juntos, mas ficamos de nos encontrar só por volta das onze e meia. Martin andava de um lado para outro no terraço, com uma xícara de café nas mãos. Uma mesa com toalha de renda branca estava na outra extremidade, com o desjejum. A mãe deles adorava tomar o café da manhã ao ar livre nos dias de verão. De repente, como se pressentisse a presença dela, Martin se virou para a ampla porta de vidro. — Nancy! — Oi, Martin. Você não está adiantado? — Não seria você quem está atrasada? Ela se surpreendeu com seu tom irritado. Estudou-o com maior atenção. Não havia dúvida, ele estava furioso. — Não... Eu telefonei — começou dizendo, na defensiva. — Eu falei com Jackson hoje cedo, e deixei um recado para mamãe. — Bem, pois você podia ter feito isso ontem à noite. Teria economizado várias horas em claro para todo mundo. — Martin, do que é que você está falando? Quer por favor, parar de falar através de charadas? — Pôs a bolsa e o agasalho sobre um banco de ferro e tentou afastar Jerome e sua loja da cabeça. — Eu estou falando da noite em claro que mamãe passou, preocupada com você. Ela mal tem conseguido dormir desde a morte de papai, e a sua
noitada não foi de muita ajuda. — Oh, eu sinto muito — murmurou pesarosa. — Não me ocorreu que fosse acontecer uma coisa dessas. Eu jamais faria qualquer coisa para deixar mamãe preocupada. — Foi até a mesa e se serviu de um copo de suco de laranja gelado. Hesitou e decidiu sentar-se. Martin se aproximou, mas permaneceu de pé. — Eu não tinha decidido passar a noite fora até que já eram quase duas da manhã. Pensei em ligar, mas imaginei que todo mundo já estaria dormindo, e não quis incomodar. — Mamãe não estava. Ligou-me às três da manhã, ansiosa, imaginando que você tivesse sofrido um acidente ou coisa pior. — Oh, Martin, sinto de verdade — repetiu com sinceridade. Sentiu a garganta seca e tomou um gole do suco. — Eu devia ter telefonado. Fiquei pensando o tempo todo que estaria de volta no mais tardar as duas, mas... Ele relaxou um pouco e resolveu sentar-se também, passando a mão pelos cabelos penteados com perfeição. — Ouça mana, o que é que você pretende percorrendo o Estado inteiro com um homem que nem conhece? — perguntou num tom mais calmo. — Ele é um cowboy — ela respondeu num tom leve, procurando eliminar a tensão. — Não vejo graça nenhuma. Ela também perdeu a paciência. — Mas, afinal, onde é que você quer chegar? — perguntou, irritada. — Que atitude mais provinciana! Não acha que é meio tarde para começar a me tratar como uma colegial irresponsável? — Nancy, me escute. Só estou tentando ser razoável. — Inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos sobre a mesa. — Você está atravessando um período de grande tensão, e sabe disso. Não concorda que esta é a hora errada para ficar se envolvendo com um sujeito que não tem nada a ver com você nem com seu modo de vida? Ela sossegou e procurou argumentar com calma. — Martin, eu sei que você está preocupado comigo, que acha que não devo tomar decisões radicais enquanto não superar o trauma da morte de papai. Mas eu sei o que estou fazendo — ponderou. — Eu fui assistir a uma peça indígena com um homem que se comportou o tempo todo como um perfeito cavalheiro. O programa durou mais que o esperado e acabou ficando tarde demais para voltar para casa. Agora sei que devia ter ligado, mas tudo não passou de um programa inocente. Ele resmungou algo ininteligível, não dando a impressão de estar muito convencido de que as coisas fossem assim tão simples. — Escute — ela continuou com suavidade —, você precisa conhecer Jerome. Então vai ver que ele é uma ótima pessoa. — Não, obrigado. Duvido muito que tivéssemos o que dizer um para o outro. — Fez uma pausa e então retomou o seu ponto. — Nancy, eu estou mesmo preocupado com você. Primeiro, a sua decisão repentina de abandonar um emprego de seis anos justo às portas de uma promoção. Depois, voltar a Tulsa, deixando para trás toda uma vida já montada em São Francisco. E agora, esse absurdo índio cowboy... Ela pegou na mão do irmão, procurando reconquistar a intimidade que haviam partilhado no dia anterior.
— Martin, meu querido. Por favor, não se preocupe. Eu venho tomando as minhas próprias decisões sozinha já há uns bons anos, lembra-se? — Sim, eu sei. Não quero que me entenda mal. Não estou querendo dizer que você seja alguma irresponsável, mas é que de repente você começou a tomar decisões tão depressa... E admito que tenha receio de ver você saindo tanto com alguém com uma formação tão distinta da nossa... Ela deu uma risadinha. — Bem, então eu prometo que, se de alguma forma a minha honra for manchada, você será o primeiro, a saber — disse com fingida seriedade. Não resistindo à brincadeira, ele deu o braço a torcer e sorriu. — Desculpe mana, não vim até aqui para lhe passar nenhum sermão. Sei que você é uma adulta responsável agora... Eu acho. Os dois deram risada juntos. — Eu sei — ela disse. — Você veio aqui para me levar para almoçar. Ele pareceu chateado. — Sinto muito, maninha. Vamos ter de cancelar esse almoço de hoje. É esta a verdadeira razão de eu estar aqui. Os representantes daquela companhia de Houston que eu te falei vão chegar ao aeroporto ao meio-dia, e eu tenho de ir recebê-los. — Retirou a mão da dela e se recostou na cadeira'. — Mas pelo menos tem uma coisa boa. Vão partir amanhã cedo, o que nos dá a oportunidade de transferir nosso almoço para amanhã, no mesmo horário — fez uma pausa e reforçou: — E então? Pode ser? Nervosa, Nancy se levantou, pensando rápido numa boa desculpa para recusar. Aquele não era o melhor momento para anunciar o seu novo emprego. Martin também se levantou, e ela o tomou pelo braço, conduzindo-o para o interior da casa. — Não vou poder almoçar com você amanhã — disse, procurando parecer tranqüila. — Mas podemos marcar para outro dia. Ele se deteve e forçou-a a olhá-lo de frente. — Por que não vai poder? Não me diga que vai sair de novo com esse Jerome. — Esse Jerome — ela frisou. — Você continua a tratá-lo como esse Jerome. O nome dele não é "esse". É apenas Jerome Redfeather. A tentativa de desviar o assunto não funcionou. Ele insistiu: — Você tem ou não tem outro encontro marcado com ele? Nancy suspirou, desistindo. — Eu vou trabalhar para ele. Tenho de encontrá-lo na loja amanhã de manhã e estou certa de que vamos atravessar a hora do almoço trabalhando. Não vou ter mais do que umas poucas horas para me pôr a par de tudo antes que ele parta para o circuito de rodeios outra vez. Martin encarou-a, aturdido. — Mas do que é que você está falando? O que é que um cowboy tem a ver com uma loja? — Ele está investindo no negócio de roupas de vaqueiros e artigos de selaria — ela explicou. — E eu concordei em gerenciar a loja para ele. Martin permaneceu mudo, olhando-a como se ela tivesse falado num dialeto desconhecido. De repente explodiu: — Nancy, esse sujeito a enfeitiçou? Você o conheceu faz... Quanto? Dois dias? Quarenta e oito horas? Um powwow e uma peça de teatro e já estão
trabalhando juntos? É por esse tipo de oportunidade que você decidiu largar uma bem-sucedida carreira? — Eu sei o que estou fazendo — ela replicou, tentando escapar. — Martin, não se preocupe, já disse. — Olhou no relógio de pulso dele. — Está ficando tarde, você precisa ir para o aeroporto. Ele continuou parado no mesmo lugar, atônito, vendo-a se afastar para a escada. Nancy parou e se voltou. Precisava fazê-lo ir embora, ou então não conseguiria pensar com calma. — Martin podemos conversar com mais calma amanhã à noite. Eu ligo para você, prometo. Quem sabe não damos um pulinho no clube, está bem? Assim que conseguiu convencê-lo a sair, voltou para o terraço, pegou suas coisas de cima do banco e subiu para o quarto, pensativa. Tinha usado de todos os argumentos para defender seu direito de tomar as próprias decisões. Mas no fundo sentia que seu irmão tinha uma boa dose de razão. Estava agindo impulsivamente, e de fato sentia que Jerome a enfeitiçara. Quando atingiu o topo da escada, correu para seu quarto e se fechou lá dentro. Antes de tudo, necessitava de um pouco de paz para se reencontrar. Jerome se levantou mais cedo ainda do que de hábito e pegou a pick-up para dar umas voltas pelas ruas. Optou por um percurso movimentado, de modo que toda sua concentração ficou voltada para o trânsito e o já intenso vaivém, de pedestres. Era uma ótima maneira de não ter de pensar em nada. Quando retornou à loja, praticou yoga e depois fez um pouco de exercício com alteres, para gastar toda a energia acumulada. Ocupou-se assim até que seu relógio apontasse nove e vinte e cinco. Então foi tomar um bom banho de chuveiro. Deixando de lado o fato de estar em cima da hora para o encontro com Nancy, abandonou-se sob a água morna que jorrava e aproveitou para relaxar. Por fim, sentindo o corpo tranqüilo e a mente vazia fechou a torneira e se enrolou numa toalha. Ainda sem pressa, vestiu-se. E então, já pronto, resolveu enfrentar o momento que havia tentado protelar ao máximo; entraria no escritório e Nancy estaria lá, ou não. Ela parecia o tipo de mulher que mantém a palavra empenhada, mas nunca se pode dizer com certeza. Ainda não tinham assinado nenhum compromisso, e a posição que ele lhe havia oferecido não podia se comparar com a de vice-presidente da rede de lojas de departamentos para a qual ela trabalhava. Considerou que, se ela tivesse mudado de idéia, teria dado um telefonema, mas sempre havia a possibilidade de optar pelo meio mais fácil, simplesmente não aparecendo e deixando-o esperar. Muita gente fazia isso para não ter de assumir o rompimento de um compromisso. Diana tinha lhe ensinado essa lição muito tempo atrás. Nancy caminhou pelo amplo saguão da loja, tomando notas em sua prancheta, enquanto tentava visualizar como ficaria o local quando tudo estivesse pronto. Era melhor pôr a cabeça para funcionar do que ficar parada num canto esperando que Jerome aparecesse. Além do mais, tinha saído de casa naquela manhã decidida a se concentrar no trabalho que teria pela frente. Estudou-se no espelho do lugar onde ficaria a seção de chapéus. Com suas roupas discretas e os cabelos presos num coque, certamente parecia pronta para falar de negócios. Acabou se tranqüilizando, convencendo-se de que estava mesmo ali para um encontro profissional. Tirou os óculos de aro de
tartaruga que usava para leitura e limpou-os com um lenço. Vários trabalhadores circulavam pelo interior da loja, posicionando os balcões, pintando as paredes, instalando vitrines e mostruários e terminando o piso. Ela não via como poderiam abrir em três semanas. O mais provável era que demorasse pelo menos mais uma. Olhando em volta, ocorreu-lhe que teria bastante trabalho, o que a ajudaria a manter a mente longe de Jerome. Isso não seria difícil, já que haveria uma pilha de detalhes com que se preocupar. Assim poderia esquecer o desejo de se aninhar em seus braços aconchegantes. Ao menos, essa era a sua esperança. Estava falando com um dos trabalhadores quando Jerome apareceu. — Acredita que posso ter alguma esperança? Virou-se, já empolgada com o som grave e gostoso daquela voz. Mas logo se lembrou do por que estava ali. — Não estou muito certa — respondeu num tom um pouco mais incisivo do que pretendia. — Eu estava justamente perguntando se esses azulejos poderiam ficar prontos até amanhã, mas está claro que isso não vai ser possível. Ele não respondeu. Apenas olhou para o homem que colocava os azulejos. — Bom dia, Sam. Como está indo a coisa? Os dois homens trocaram algumas impressões rápidas, e então Jerome começou a se afastar, fazendo sinal para ela o seguir. — Você não está perdendo tempo, não é? De algum modo Nancy sentiu aquilo como uma acusação, e respondeu na defensiva: — EU estava fazendo algumas anotações enquanto esperava por você. — Bem, continue com as anotações e não perturbe os trabalhadores. Ela parou para encará-lo. — Sou a administradora e não devo me dirigir aos trabalhadores? — Eu cuido da parte das obras — ele respondeu lacônico. — Você deve se preocupar com os estoques e o pessoal. A ordem fazia sentido, mas deixou-a irritada. — Escute Jerome, tudo o que eu fiz foi... — Eu ouvi — ele cortou, mas num tom mais conciliador. — Acontece que eu conheço todo esse pessoal, Nancy. Foram escolhidos por mim pessoalmente. Você cuida da loja, e eu me entendo com eles, está bem? — Sorriu de modo amistoso. Ela tornou a colocar os óculos e fez força para controlar a irritação. Afinal, pensou, ele estava dando uma explicação razoável para sua decisão. — Seria mais fácil para eu cuidar da loja se você aparecesse na hora marcada. No caso de ainda não haver notado, você está atrasado. Aquela repreensão o aborreceu. E aqueles óculos, embora ainda a fizessem mais charmosa, transformavam-na em outra mulher, mais prática, mais agressiva. Teve um repentino impulso de arrancar aqueles óculos e beijála com paixão. Em vez disso, no entanto, sorriu. — Eu saí para me exercitar de manhã cedinho e tive de tomar um banho. Você não queria que eu viesse todo suado, não é? Nancy sentiu sua irritação arrefecer. — Não — riu —, creio que não. Mas estou preocupada em verificar se vou ter tempo para ficar a par de tudo que for essencial antes de você partir.
— As informações que eu posso lhe dar não ocuparão muito tempo — ele disse. — E, depois disso, vai ficar por sua conta. Lembra-se? Foi por isso que a contratei; você é a especialista. Começaram a discutir qual o espaço disponível para cada artigo e que tipo de mercadorias ele havia encomendado, além de outros itens que pretendia expor mais tarde. Nancy fez uma série de perguntas que ele não soube responder, confirmando a previsão de que não seria uma grande fonte de informações. Aos poucos ela foi formando uma primeira idéia do que ele estava planejando, mas era óbvio que precisaria fazer um bocado de pesquisas sobre o ramo para descobrir como iria transformar aquilo em realidade. Passado um tempo, terminaram a discussão sobre os detalhes da seção reservada para a venda de chapéus. Nancy deu uma olhada geral na loja do ângulo em que se achava. — Vou chamar Madge Howard amanhã — disse, fazendo uma anotação na prancheta. — Ela precisa dar um pulo até aqui e começar a decoração tão logo os homens terminem com as paredes. — Tamborilou a caneta sobre a prancheta, pensativa. — Espero que ela não cisme de querer cores diferentes. Jerome fez cara de quem não tinha escutado direito. — Cores diferentes? Do que é que você está falando? — De contratar uma decoradora de interiores. Conheço Madge há anos. Ela cobra caro, mas vale o que cobra. Faz sempre um grande trabalho. — Esqueça. Não temos dinheiro para pagar nenhuma decoradora, muito menos uma que cobra caro. Não há nenhuma reserva no orçamento para uma coisa tão frívola. — Mas, Jerome! Isso não tem nada de frívolo! É absolutamente essencial! Com o decorador certo, podemos criar na loja a atmosfera perfeita para que os fregueses se sintam à vontade. Como em casa. Eu pretendo fazer dessa loja algo muito especial, e não poderei fazer isso sem um profissional competente. — Vai ser especial o bastante sem tudo isso. Eu não tenho nenhuma intenção de alterar o orçamento a essa altura das coisas — dizendo isso, ele fez um gesto para encerrar o assunto. — Esqueça a decoradora. Nancy respirou fundo, segurando a raiva. — Você não tem o direito de fazer isso. — Lembrou-o. — Não, de acordo com os termos de trabalho que estabelecemos ontem. Lembre-se: nós dissemos que eu poderia remanejar o uso dos fundos existentes, sujeito à sua aprovação. Você tem de me dar uma chance de ver se não é possível transferir verba de algum outro setor para o item decoração. Ele fez uma careta, aborrecido. — Não pode. Não há um centavo sobrando no orçamento do ano inteiro. — Bem, ao menos me deixe tentar. — Estou lhe dizendo, Nancy, você não precisa contratar ninguém para decorar este lugar. É só pendurar por aí algumas pinturas de Angie... E isso vai ser o suficiente como decoração. Nancy não respondeu. Parou um instante, sentindo uma luzinha querendo brilhar na escuridão. Então, esquecendo-se de decoradores e orçamentos, viu a coisa bem clara diante dos olhos: — Jerome! — exclamou. — Que grande idéia! Nós podíamos não apenas pendurar as pinturas de Angie por aí. Nós podíamos pô-las à venda! Angie é uma boa artista, e merece ter seu trabalho divulgado.
O mau humor dele desapareceu. — Agora você está falando algo interessante! Seria um pequeno rendimento para ela, e também um impulso para outros trabalhos indígenas. — Começou a andar de um lado para outro, cada vez mais animado com a idéia. — Podíamos vender as cestas de Sarah Talley, e o marido de minha irmã Darlene faz arcos e flechas... Nancy pegou uma folha de papel nova e se pôs a escrever. — Jerome, em vez de espalharmos todo esse artesanato pela loja, por que não abrirmos uma seção nova? Uma seção de arte e artesanato indígena. Podemos fazer uma loja de artigos para vaqueiros e índios! — Mostrou o que tinha desenhado, esperando aprovação. — Vê? Poderíamos organizar assim, ali, naquele canto. — Ótimo! Isso vai ficar ótimo! — Jerome pegou a prancheta e a caneta. — Deixe-me escrever mais alguns nomes conforme vou me lembrando. Não quero esquecer ninguém. — Foi logo anotando nomes com uma caligrafia grande e forte. — Eu não sei o número do telefone destas pessoas, mas você pode procurar. Melhor ainda, ligue para Angie e peça para ela descobrir. Poderão ser encontrados na lista de Tahlequah e Stilwell... É claro que alguns não têm telefone, e... — Ei, espere só um minuto — ela protestou. — Eu acharei os artistas. Sou eu a gerente, está lembrado? Ele parou de escrever e olhou para Nancy, surpreso. — Sim, você é a gerente — disse devagar. — Alguém disse o contrário? — Você acabou de dizer. — Nada disso. Só estava fazendo uma lista... — Eu não quero uma lista — interrompeu-o. — Não quero me sentir na obrigação de comprar alguma coisa de todo mundo que estiver com o nome na lista só porque essa pessoa é um amigo ou parente seu. Meu Deus, eu posso nem gostar dos trabalhos! — Eu não estou dizendo que vai ter de fazer negócio com todos eles — ele rebateu. — Só estou dizendo que, se vamos comprar os trabalhos de Angie, então temos de levar em consideração essas pessoas, também — disse com frieza. — E, meu Deus! — imitou-a. — Você pode até gostar de algumas coisas que eles fazem. Enfrentaram-se com o olhar, por um breve e intenso momento. — Não se pode sair magoando os sentimentos das pessoas assim, Nancy — ele disse, enfatizando cada palavra. — Relacionamentos humanos são muito mais importantes do que julgamentos artísticos. — Não quando estamos falando do sucesso ou fracasso comercial desta loja — ela retorquiu. Jerome largou bruscamente a prancheta num balcão atrás dela. — Sucesso! — disse com desprezo. — Até parece que esta é a coisa mais importante do mundo! — Talvez não seja. Mas que outra razão existe para se abrir um negócio? Por que está investindo tanto nisso se não é pelo dinheiro? Por certo não é pelo seu amor ao comércio... Ou porque você entenda muito do assunto. — Bem, você não sabe receber ordens — ele rebateu. — É bom que se lembre Nancy, eu a estou contratando para... — Talvez esteja — corrigiu-o. — Talvez, não. Não, se eu não puder fazer
nada além de receber ordens de você. O contrato que discutimos ontem diz que você é o proprietário, mas não que detém todo o controle. Se vou ser sua gerente-geral, então pretendo mesmo ser a gerente-geral. Esses são os meus termos, e você pode decidir neste instante se me quer ou não. Se não quer, é melhor eu já ficar sabendo, antes que assine papéis e invista mais tempo nisso. Ele a encarava mudo, seus olhos negros parecendo os de uma fera selvagem. Num tom mais controlado, mas com a mesma determinação, ela prosseguiu: — Ouça Jerome, se você vai ficar tão inflexível numa coisinha como esta então, o que é que eu estou fazendo aqui? Você me disse que não era um homem de negócios. Que me queria por eu ser uma especialista. Bem, então me deixe usar os meus conhecimentos. Não me diga o que fazer. Ele ainda permaneceu alguns segundos encarando-a com um olhar gelado. — Está bem, então — disse por fim. — Encontre os seus próprios artistas. Mas use um pouco de bom senso quando for escolhê-los — fez uma pausa e completou: — Não vá a Tahlequah e anuncie nos jornais, ou coisa parecida, para depois rejeitar o trabalho das pessoas. — E por acaso acha que eu sou alguma retardada mental? — ela perguntou furiosa. — Retardada o bastante para pensar que eu fui criado numa reserva — ele disparou. Nancy cerrou os dentes. Um dia ainda lhe devolveria aquele comentário. Mas, no momento, não queria lhe dar a satisfação de mostrar que tinha ficado com raiva. Assim, quando tornou a falar, seu tom foi frio e profissional. — Eu preciso mesmo entrar em contato com Angie enquanto você estiver viajando — disse. — E não tenho idéia de como fazer isso. Ele assentiu e pegou de volta a prancheta, anotando o endereço e o telefone da sobrinha. — Se Angie não estiver aí, Darlene fará com que ela ligue para você mais tarde. — Deixou a prancheta nas mãos dela e se retirou, dirigindo-se para o setor do prédio onde ficavam o escritório e sua residência. Ela o observou se afastar, dando-lhe as costas sem mais nem menos. Como é que podiam ter se sentido tão próximos horas antes, e tão distantes agora? Será que jamais chegariam a um acordo? Nancy não estava certa de que isso um dia pudesse acontecer. Era mais provável que nunca se entendessem. E então, por que durante a discussão não tinham terminado com tudo aquilo? Tinham ficado zangados o bastante para tal. Além disso, a maneira deles de encarar um projeto comercial também era distinta o suficiente para não insistirem em trabalhar juntos. Então, afinal, por que é que continuavam juntos? Com a prancheta entre as mãos ligeiramente trêmulas, Nancy ficou pensando, tentando compreender sua própria atitude frente àquele homem tão diferente dela. Jerome vinha de um mundo tão oposto, mas, ao mesmo tempo, era capaz de exercer uma atração irresistível sobre ela. Sua divagação foi interrompida pelas batidas das botas de Jerome, ecoando pelo amplo saguão ainda vazio. Ergueu os olhos para vê-lo surgir de chapéu de vaqueiro e com uma sacola de couro na mão.
— Estarei de volta em poucos dias — foi dizendo, sem diminuir o passo em direção à saída. — Poderemos assinar o contrato, então. — Está bem. — Até logo — disse de modo abrupto. E então desapareceu. Nancy andou a esmo pelo saguão em reformas. O que é que estava fazendo ali? Por que é que estava arriscando sua carreira se envolvendo com um homem que não possuía o menor tino comercial? Como era mesmo que ele havia falado? "Não se pode sair magoando as pessoas assim". Esse era o homem de negócios que a tinha contratado! Sem querer, Nancy sorriu. Bem, pensou, ele era de fato diferente de qualquer outro homem que tinha conhecido antes. Nunca havia ouvido ou visto uma manifestação de sentimento real de seus colegas da Harwell & Neel's. Irritada consigo mesma, de repente percebeu o quanto tinha sido tola. Jerome era o seu oposto em todo e qualquer sentido. E começava a desconfiar que ele tinha sido seu mais forte motivo para decidir permanecer em Tulsa. Com um riso seco de ironia para si mesma, pensou em ligar para o irmão. Ele estivera com a razão o tempo todo; a idéia de um relacionamento pessoal com Jerome era um completo absurdo. De fato, Martin tinha razão em mais um ponto: ela não estava sendo lá muito responsável. Para ser totalmente honesta, devia admitir que precisava mesmo do irmão mais velho como conselheiro. Se continuasse com esse tipo de comportamento, talvez viesse a precisar de um vigia!
CAPÍTULO V Naquela noite Nancy foi jantar com Martin no clube, e, mesmo tendo
ainda conversado com ele mais tarde ao telefone, nada lhe disse sobre suas últimas conclusões a respeito de Jerome. A justificativa que se deu para esse silêncio foi o desejo de não estragar uma noite tão agradável em companhia do irmão. Por outro lado, bem lá no fundo, nem ela mesma sabia que tipo de relacionamento poderia ter com Jerome, uma vez que seus sentimentos em relação a ele estavam extremamente confusos. Assim que o tinha visto sair da loja com uma despedida seca e grosseira, ela teve vontade de nunca mais lhe falar a não ser em termos profissionais. Mas nem mesmo havia se passado um dia desde que ele partira, e Nancy já não sabia mais o que fazer com seu desejo de revê-lo. Essa confusão de emoções ela combateu com muito trabalho, procurando se concentrar no que estava fazendo. Tão logo visitou todas as lojas do ramo em Tulsa e começou uma pesquisa pelos catálogos de artigos de selaria, percebeu que uma série de fatores determinariam se a loja de Jerome abriria ou não em três semanas. Havia uma linha incrível e exótica de roupas de couro que ela queria incluir nos estoques, mas levaria algum tempo até que pudessem ser despachadas e entregues. E a inauguração não aconteceria sem essas peças. Nancy estava decidida a não abrir a loja enquanto não pudesse oferecer cada detalhe do atendimento especial que estava planejando. Durante horas tinha falado com Madge sobre a atmosfera que queria criar, e depois, gasto mais outro tanto de tempo estudando o orçamento, remanejando-o de modo a criar uma sobra de dinheiro para pagar os serviços da decoradora. Por fim, após queimar as pestanas, deu o novo orçamento para Zelda, a recepcionistasecretária que tinha contratado, para rebatê-lo. Cruzou os dedos torcendo para que a despesa de manutenção para o ano não fosse tão alta quanto Jerome havia previsto, pois era dali que estava tirando a maior parte do dinheiro. De volta ao escritório, com o orçamento modificado nas mãos, imaginou que ele ficaria furioso com as alterações. Mas, se houvesse algum tipo de emergência, simplesmente resolveria o caso sacando do seu próprio dinheiro A campainha tocou, e ela guardou o papel, apertando o botão do interfone em seguida. — Seu irmão, senhorita Dante — anunciou a voz de Zelda. — Mande-o entrar. Martin surgiu na porta. Vestia sua usual calça paletó e colete, e levava sua inseparável pasta na mão. Ela sorriu ao vê-lo, divertida com sua eterna imagem de homem de negócios tradicional. — Ei, isso é o que eu chamo de rapidez — ela brincou. — Eu liguei de manhã, e você já está aqui logo depois da hora do almoço! — É claro! Eu corri porque não podia esperar para lhe mostrar o software que criei para a sua contabilidade — Martin respondeu com entusiasmo, sentando-se na cadeira de visitas. — Quero que fique satisfeita com o serviço que prestamos. — Estou certa de que ficarei — ela retrucou no mesmo tom brincalhão. — Sem dúvida é melhor do que o serviço que estou recebendo de algumas fábricas de botas e chapéus, que oferecem prazos de entrega que vão até o Natal e a Páscoa. Os dois trocaram um sorriso divertido. Então Nancy começou a limpar sua
mesa das pilhas e pilhas de papéis que a atulhavam. — Você devia ir logo inventando um software para artesanato indígena e do meio oeste. Com um programa desses eu poderia me livrar de toda esta bagunça — ela disse. — Agora acho que não tenho espaço nem para colocar o seu manual de instruções — olhou-o, fingindo pânico. — Você trouxe um manual de instruções, não trouxe? Martin deu risada. — Para a minha irmã, a pessoa menos entendida em computadores que eu conheço? Claro que sim. E explica todo o sistema com tanta simplicidade que até um bebê poderia usá-lo. Ela manteve uma expressão preocupada. — Isso ainda não garante que eu possa usá-lo! — Não se preocupe — ele respondeu num tom tranqüilizador. Levantou-se e colocou as pilhas de livros em cima do aparador acoplado à escrivaninha. — Você leu tudo isto? — perguntou incrédulo. — Eu não apenas li. Tenho tentado aplicar essas informações, também — disse. — Comecei uma caça aos talentos; preciso de novos artistas promissores, que ainda sejam pouco conhecidos, para que eu possa oferecer na loja peças de arte com qualidade e que não sejam muito caras. — Está tendo sorte, até aqui? — Alguma. Mas ainda preciso falar com a sobrinha de Jerome para conseguir mais umas indicações. Por um breve e tenso instante o nome de Jerome pairou no ar, criando um sutil constrangimento. Mas logo Martin pôs sua pasta sobre a escrivaninha e tratou de abri-la. — Vamos começar pelo manual — propôs. — E então vamos pôr o disquete no seu computador e ver o que acontece. Mal ele havia começado suas explicações, o telefone tocou, com Zelda anunciando Angie Fourkiller. Nancy tratou logo de atender. — Angie? Como vai? — Bem — a jovem respondeu com voz suave. Então, após uma pausa, acrescentou: — Minha mãe disse que você ligou. — Sim. O seu tio Jerome e eu decidimos colocar artesanatos e peças artísticas indígenas à venda aqui na loja; gostaríamos de começar com algumas das suas pinturas. Você não gostaria de vender alguns de seus trabalhos para nós? Houve uma pausa mais longa. — Para vender para outras pessoas? — Sim. Nós ficaríamos com uma porcentagem, como qualquer galeria, mas a maior parte do dinheiro ficaria para você. — Oh! — Poderemos discutir os preços quando você trouxer os seus quadros para mim. Talvez Jerome queira fazer um cálculo diferente na porcentagem para você. — Quando ele vai voltar para casa? — Eu não sei ao certo. Quando partiu, ele disse que estaria de volta em poucos dias. A garota não respondeu. — Assim está bem para você? — Nancy quis saber, em dúvida. — Vender
as suas pinturas, quero dizer. — Acho que sim. — Ótimo. Eu gostaria que você trouxesse várias, se tiver; umas telas pequenas, daquelas que eu vi no powwow, uma ou duas de tamanho médio, e especialmente a "Marcha Triunfal". A outra ficou em silêncio. — Angie? — Sim? — Você ainda a tem, ou já vendeu para outra pessoa? — Não... Ainda está comigo. — Maravilhoso! Depois desse acerto, Nancy pediu que ela indicasse os nomes de outros artistas índios. Em seguida tentou marcar uma data para a entrega dos quadros, mas Angie respondeu de forma vaga e imprecisa. Por fim, Nancy disse que tinha um compromisso em Tahlequah na quarta-feira, e que então passaria para vê-la. Desligou com uma expressão intrigada. — Que coisa estranha — comentou mais para si mesma do que para Martin. — Eu pensei que Angie fosse ficar surpresa e entusiasmada em ter seus trabalhos expostos numa loja para venda. Mas parece que não foi bem assim. — Quem sabe se ela já não está expondo em dúzias de galerias? — Martin brincou. — Provavelmente você é a décima da lista. — É quem sabe? — ela concordou com ar distraído, rodando uma caneta entre os dedos. — E estou desapontada com as referências. Precisaria mesmo que ela me indicasse nomes que pudessem me agradar. — Lamento — ele disse, partilhando da decepção. Esperou um pouco e então tornou a pegar o manual. — Não que eu queira apressá-la, irmãzinha, mas nós temos mesmo bastante coisa para ver... — É claro! Desculpe. Vamos voltar de uma vez ao trabalho. Quando já tinham discutido todo o sistema, e Martin havia respondido a todas as perguntas, ela se levantou e foi fazer um café fresco. — Por que não paramos um pouco para um descanso — sugeriu. — Estou tão cansada que não suportaria ver mais um número ou analisar mais um estoque. — Parece ótimo. Daqui eu vou direto para uma ex-posição de computadores no Centro Cívico. Depois, tenho um jantar marcado com um representante de uma companhia de Dálias. Não vou nem ter a chance de fazer a minha corrida diária. — Neste caso, tudo isso terá valido a pena — ela brincou. — Eu trabalharia o dia e a noite inteira para não ter de correr. Ele balançou a cabeça com fingida preocupação. — É... Dá para perceber — disse olhando para ela, como se estivesse diante de um monte de flacidez. — Escute mana, um dos meus companheiros de corrida vai dar uma festa na casa dele no fim de semana. Eu mencionei que você estava na cidade, e ele me pediu para convidá-la. É Ron Sheldon. Eu disse que era provável que você topasse. — Mas acho que não vai dar — fez um gesto de desamparo com as mãos. — Olhe Martin, você sabe como estou soterrada de trabalho. Nesse momento, no meu estado de espírito, uma festa seria puro desperdício. — Mas você não pode ficar só trabalhando. Tem de parar de vez em
quando para se distrair. — Bem, mesmo que eu arranje tempo para sair, uma festa de praticantes de corrida não seria a minha escolha — insistiu. — Não tenho nada em comum com esses doidos que se levantam nas horas mais incríveis e sob as temperaturas mais absurdas, só para correr pelas ruas de Tulsa até seus corações quase saltarem pela boca. Eles vão ficar discutindo tempos e distâncias, e eu vou me entediar até ter vontade de gritar por socorro! — Terminou quase sem fôlego aquele discurso, e ambos caíram na risada. — Você não acha que está estereotipando um pouquinho? — ele perguntou, ainda rindo. E então, mais sério, continuou: — Mas você devia vir comigo, Nancy. Precisa começar a voltar a circular. Voltar a freqüentar seus próprios círculos sociais — disse. Ela lhe lançou um olhar desconfiado. Então ele ainda estava preocupado em relação a Jerome! E, pelo jeito, só estava esperando pelo momento certo de dar a sua indireta. — Obrigada, Martin, mas eu sou capaz de escolher os meus próprios amigos — sorriu. — Posso mesmo. Não se preocupe. — Como quer que eu não fique preocupado? Você fica saindo com um sujeito que mal conhece que, é óbvio, não tem nada em comum com você. Aceita trabalhar para ele, abandonando um emprego muitas vezes melhor... Daqui a pouco vai estar com toda a sua vida presa a ele. — Martin foi dizendo no seu tom de grande irmão protetor. Nancy suspirou. Estava cansada e ocupada demais para ficar ouvindo mais um sermão. — Martin, eu estou trabalhando para Jerome, mas é só. Resolvi que não seria uma atitude muito esperta tentar um relacionamento pessoal com ele. O irmão se mostrou tão aliviado que ela hão pôde evitar um sentimento de culpa. Afinal, o que acabara de dizer não era mais do que meia-verdade. De fato, não tinha a menor idéia de como ia se sentir quando tornas-; se a ver Jerome. — Ah, sim — procurou mudar de assunto — eu fui ver uns apartamentos por aí, esta semana. Acho que vou comprar um em Utica Oaks. Ele a encarou, aturdido. — Oh, Martin, você acha que é cedo demais para eu deixar a mamãe sozinha? — quis saber, preocupada. — Eu receava que isso... — Não — ele se apressou em responder. — Não era isso o que eu estava pensando. Só estava imaginando como é que você consegue sair atrás de imobiliárias com todo esse serviço consumindo o seu tempo. — Ora, é muito simples quando se é uma fonte inesgotável de energia — ela disse em tom alegre. — Eu nunca como, nem durmo — então ficou mais séria. — Não me tomou muito tempo; eu já tinha uma idéia bastante precisa do que estava querendo. Inclusive a localização. Os dois permaneceram em silêncio por um momento. — Acho que tomei a decisão de me mudar para o meu próprio canto quando liguei para São Francisco, na segunda-feira — ela disse pensativa. — Acabei pedindo demissão, em vez de uma licença, como tinha planejado, e isso me deu a estranha sensação de estar rompendo todos os elos de ligação — fez uma pausa. — De repente senti uma necessidade forte de ter uma coisa minha algo mais permanente, que me fizesse sentir presa a algum lugar.
Ele assentiu. — Eu entendo. E não se preocupe com mamãe. Acredito que vai ser mais fácil para ela ver você partir agora, do que mais tarde. — Eu também acho. — Ela o encarou. — Obrigada, Martin. Fico aliviada em saber que você concorda. — E eu fico aliviado em saber que você concorda comigo a respeito de Jerome Redfeather — ele replicou. — Agora, tudo o que preciso é convencê-la a ir à festa de Ron e apresentá-la a uns rapazes legais... Assim o meu papel de irmão mais velho estará cumprido. — Nem pensar — ela disse, rindo. — Isso você nunca vai conseguir. — Consultou o relógio e se levantou. — Não quero apressá-lo mano, mas a hora do café acabou. Eu preciso voltar ao trabalho. Foi só depois que Martin foi embora que Nancy se permitiu pensar no que ele tinha dito sobre Jerome. E mais uma vez sentiu a cabeça rodar com a confusão de seus sentimentos. Se a primeira semana de trabalho de Nancy foi dura, a segunda foi se revelando pior ainda. Ela começou a se levantar ainda mais cedo para as entrevistas com os candidatos às vagas na loja, e acabava ficando até mais tarde para verificar suas referências e iniciar seu treinamento. Além dela, Jerome só havia contratado mais um funcionário, um amigo chamado Lawrence Walkingstick, que era uma espécie de pau para toda obra. Todo o resto ela mesma tinha tido que contratar, desde Zelda, sua recepcionistasecretária, até Dorothy, sua assistente. E isso incluía vinte e cinco balconistas, uma decoradora de vitrines e dois vigias. Na quinta-feira a farde, num momento tão ocupado quanto qualquer outro, Nancy ouviu Zelda anunciar pelo interfone: — É o Sr. Redfeather. Ele está no aeroporto, e quer saber onde Lawrence está. A senhorita sabe onde ele se encontra? Ela sentiu sua pulsação acelerar. — Sim. Deixe-me falar com ele, Zelda. — Certo. Pode falar. — Alô? Nancy? — soou a voz grave e cheia já tão familiar. Ela engoliu em seco. — Alô, Jerome. — Eu deixei a minha pick-up aqui no estacionamento do aeroporto, para quando voltasse, mas o maldito motor não quer dar a partida. Você não poderia mandar Lawrence até aqui para me buscar? — Ele não está aqui. Teve de ir até Tahlequah — ela respondeu sem se dar conta da força com que estava agarrando o fone. — Mas eu posso ir. Estava mesmo me aprontando para ir resolver uns assuntos fora. — Ótimo. Vou esperá-la no andar térreo, junto do balcão da American Airlines. — Já estou saindo. Nancy não tardou a encontrá-lo, andando de um lado para outro, parando de quando em quando para olhar em volta e ver se a avistava. A visão daquela grande figura fez com que ela sentisse um aperto no coração. Aproximou-se, e quando ele a descobriu abriu um largo sorriso e afastou os braços para recebêla.
Nancy não esperou duas vezes para se aninhar naqueles braços grandes e protetores. Assim como estava, com o corpo dele junto ao seu, ela sentiu desaparecer todo o cansaço e a tensão acumulada ao longo dos dias de incessante trabalho. Suas diferenças se dissolveram no aperto quente e carinhoso que os envolvia, mandando para longe todo e qualquer pensamento racional. Ela o queria, e queria que ele a beijasse. Mas os lábios dele apenas roçaram seus cabelos. — Como tem andado, minha linda Nancy? — Tudo bem — respondeu enquanto se sentia derreter com o tom carinhoso da voz dele. Sem se afastar, encarou-o. — E quanto a você? — Batido e arranhado — respondeu com secura, pondo um braço ao redor dos ombros dela e seguindo na direção do carro. — Tive uma semana de péssimas cavalgadas e não quero falar a respeito — explicou enquanto guardava a bagagem no porta-malas. Entraram no carro, Nancy ligou o motor. — Não precisamos tomar nenhuma providência em relação a pick-up antes de ir? — ela quis saber. — Não. Liguei para o posto de gasolina perto da loja, e eles vão mandar alguém para vir buscá-la. Depois eu passo lá para pegá-la e acertar o pagamento. — Jogou o chapéu no banco de trás e começou a massagear o ombro. — Eu só não queria ter de ficar aqui esperando que eles fizessem o conserto. Tudo o que quero é chegar logo em casa para um bom banho quente que lave um pouco essas dores no corpo. Ela lhe lançou um olhar preocupado, enquanto entrava numa avenida movimentada. — Oh, neste caso acho que é melhor levá-lo direto para a loja — disse. — É que eu fiquei de me encontrar com um agente imobiliário às três horas, para assinar os papéis da compra do meu apartamento. Tinha pensado em levar você junto para dar uma olhada, antes de deixá-lo em casa. — Você comprou um apartamento? E no meio de tanta coisa para fazer? Mocinha esperta. Ela sorriu. — Você fala igual ao meu irmão. "Preciso dizer isso a Martin” pensou com ironia. Ele vai adorar saber que tem algo em comum com Jerome. Ele fez um gesto de pouco caso. — O chuveiro pode esperar — disse. — Eu vou com você. Não quero que faça duas viagens por minha causa. Enquanto atravessavam a cidade, ela foi fazendo um relato das contratações que tinha feito e das mercadorias que encomendara. Ele relaxou no banco, ouvindo com atenção e fazendo uma ou outra pergunta de vez em quando. — Ninguém de Tahlequah além de Lawrence? — perguntou. — Eu disse a várias pessoas para virem e tentarem, se quisessem... — interromperam-se quando Nancy diminuiu a marcha diante de um sofisticado condomínio fechado. Logo ela se identificava para o segurança, e o enorme portão de ferro se abria automaticamente. — É aqui que você vai morar? — É. Eu queria um lugar só meu, mas não queria me afastar demais da minha antiga vizinhança. Ele sacudiu a cabeça e sorriu com secura.
— Devia ter me dito que entre tantas atividades nesta semana, você se deu um aumento. Por alguma razão eu sinto que o que eu estou lhe pagando não vai dar para cobrir as prestações deste imóvel. Havia algo no jeito dele falar que Nancy não sabia como identificar. Era o mesmo tom que havia usado nos comentários sobre a casa da mãe dela. Não era inveja. Era alguma coisa mais complicada, algo que ela tentou, mas não conseguiu entender. Jerome não disse mais nada. O agente imobiliário e o síndico os conduziram até o apartamento do último andar. Nancy convidou Jerome a dar uma olhada em volta enquanto ela assinava os papéis. Ele voltou para a sala justo quando Nancy tinha terminado com a papelada, e então foram todos até a cozinha. — A maior parte das mudanças que eu quero fazer vão ser aqui — ela disse ao administrador do condomínio, indicando os lugares enquanto caminhavam. — Quero portas de vidro dividindo aqui, e vou substituir toda a cerejeira do estúdio por carvalho. Aqui na cozinha, quero tudo creme em vez de branco, inclusive os azulejos. — Não tem problema, Srta. Dante. — Mesmo que demore a fazer todas essas mudanças, acho que vale a pena quando é para ficar do jeito que queremos. Afinal, a gente precisa se sentir bem no lugar onde mora, não é? — perguntou com graça e olhou sorrindo para Jerome. Mas ele não lhe devolveu o sorriso. Sua expressão estava séria e compenetrada. Olhava tudo ao redor, transmitindo uma sensação de mal-estar. Nancy tentou descobrir o que estava se passando por trás daquele par de olhos negros, mas estes permaneciam impenetráveis. O que estaria pensando? E por que sua atitude a punha tão constrangida? A voz do síndico veio trazê-la de volta à realidade. — E quem vai ser o responsável por essas reformas, Srta. Dante? — Madge Howard. Eu e ela já discutimos as linhas gerais, e os detalhes vão ficar por conta dela. Madge me disse que vai estar com os trabalhadores na terça de manhã. — Muito bem. Estarei esperando por eles. Quando o síndico e o agente imobiliário foram embora, ela se virou para Jerome e perguntou: — Bem? O que você achou? — Acho que está bom — disse de modo forçado. — Acho luxuoso. E bonito. E extravagante. — Andou devagar por toda a extensão da espaçosa cozinha, indo parar diante da divisória dentro da copa. — Extravagante? — Pode apostar que é. Mesmo sem as mudanças que pretende fazer. Antes de trocar os azulejos, colocar portas de vidro, ou trocar a cerejeira por carvalho e todas essas bobagens. — Ele se virou para encará-la. — Nancy este lugar é bom o bastante para qualquer pessoa — afirmou. — Do jeito que está. Ela não respondeu de imediato. — Bem, eu não vejo nada de errado em deixá-lo do jeito que eu gosto — disse na defensiva. — Afinal, estou disposta a pagar por isso. — Pode ser — ele retorquiu pouco convencido. — Mas não vejo necessidade de se desperdiçar dinheiro de forma tão fútil. — Isso é uma questão de opinião. Você não tem o direito de me julgar.
— Você me perguntou o que eu achava, e eu disse. — Virou-se zangado, rumo à sala de estar. Ela o seguiu furiosa. — É melhor voltarmos ao trabalho — disse com frieza. — Me desculpe se tomei o seu tempo com os meus pequenos detalhes domésticos. Esperaram o elevador calados, mas Nancy ainda sentia o sangue ferver por dentro. Qual era o problema, afinal? Por que lhe interessava o estilo de vida que ela levava? Desde quando era de sua conta quanto ela gastava? Primeiro, a casa da mãe dela, que era muito... Diferente. Agora, seu apartamento, que era extravagante. Lembrou-se da comparação que ele havia feito entre a opulência dela e de sua família e a maneira simples como seus amigos índios viviam. Mas e daí? Qual era a sua culpa nisso? Voltaram para o carro ainda em silêncio. Quando se sentaram, ela resolveu encará-lo. — Pelo menos eu estou dando trabalho para outras pessoas — argumentou com raiva. — Ao menos isso você tem de admitir. Jerome olhou-a com espanto. Um sorriso involuntário assomou aos seus lábios. — Verdade — disse com secura. — Tenho de admitir isso. — Seus olhos continuaram fixos nela, embora seu sorriso fosse morrendo até quase desaparecer. Nancy sentiu que a irritação entre eles começava a desaparecer. Por fim, ele deu de ombros. — Gaste o seu dinheiro como quiser — afirmou. — Não é mesmo da minha conta. Mas cuidado com esse tipo de extravagância na loja, viu? Ela sentiu um frio na barriga, pensando no dinheiro já separado para as despesas com a decoração. Deu a partida e tentou afastar o medo da hora em que teria de fazer a prestação de contas do novo orçamento. Bem, pensou enquanto dirigia até o portão de saída, ele a tinha contratado. Que vivesse com isso. O percurso até a loja foi preenchido com uma conversa casual sobre assuntos neutros o bastante para não gerar novos confrontos. Mesmo assim, Nancy sentia que nos silêncios que ele guardava, estava avaliando-a de um modo que lhe dera incompreensível. E quando chegaram, ao estacionar, sua vontade era de perguntar se tinha passado no teste. Desceram, e quando Jerome pegou a bagagem no porta-malas, seu ombro parecia ainda mais encurvado. — Olhe, eu gostaria de ir direto para o banheiro, para uma ducha bem quente — ela disse. — Vamos deixar para falar de negócios depois, enquanto jantamos, está bem? Ela hesitou surpresa. Num minuto ele a estava acusando de ser fútil; no seguinte, a matinha sob uma espécie de exame secreto; e agora falava sobre jantarem juntos como se fosse a coisa mais corriqueira entre eles. — Oh, eu não sei — vacilou. — Ir a um restaurante poderia ser muita extravagância — provocou-o. — Por outro lado, não estou com vontade de cozinhar, e você parece cansado demais para isso também. Ele a estudou por um longo momento. Então sorriu. — Não é justo — disse. — Eu me desculpei. — Eu não me lembro de ouvi-lo dizer "me desculpe".
— Eu disse que não era da minha conta — ele replicou, colocando a mão nas costas dela para conduzi-la ao prédio. — Não é a mesma coisa? Mas Nancy já não escutava direito. Tudo o que fazia era se deixar levar pela onda crescente de desejo que aquela mão provocava ao tocar suas costas. — Quero me lavar e tirar um cochilo — ouviu-o dizendo. — Que tal se eu fosse buscá-la por volta das oito? — Não — ela se apressou em dizer, numa desesperada tentativa de se agarrar à fantasia de que nada, além de uma relação profissional, os unia. Mas não era fácil resistir. — Nos encontramos no local. Aonde você quer ir? — Que tal o Chi Chi's? — Está bem. Estarei lá às oito. — Virou-se e foi para o escritório, fechando a porta atrás de si. Longe dele, procurou recuperar a autoconfiança. Tinha de admitir que seu comportamento junto dele houvesse sido o de uma colegial apaixonada. Uma crítica vinda de Jerome, e ela se enfurecia como se tivesse sido rejeitada como a pior das criaturas; um simples toque acompanhado de palavras mais ternas, e quase atingia as nuvens. De que adiantava fingir? De que adiantava dizer a Martin que era impossível se envolver com alguém tão diferente dela? O fato é que não havia mais jeito de manter apenas uma relação profissional. Na verdade já era tarde demais.
CAPÍTULO VI Jerome a esperava do lado de dentro, junto ao balcão. Quando a viu chegar, afastou o copo e se levantou da banqueta, obedecendo ao mesmo impulso que o havia feito abraçá-la naquela tarde, no aeroporto. Achou-a tão pequena e frágil no meio das pessoas que entravam e saíam do restaurante;
delicada e meio perdida. Deveria estar em seus braços, que era o lugar a que pertencia. Mas de que adiantava nutrir tais desejos? Nancy ia morar num apartamento luxuoso e não em sua cabana simples, enfiada numa clareira selvagem em Cokson Hills. Caminhou na direção dela, com aquele seu andar de cowboy, misturado com sua imponência natural de índio. — Oi, Nancy. — Faz tempo que está me esperando? — Não mais de vinte minutos. — Oh, eu sinto muito. — Não por isso. Por um momento ficaram se olhando, sem palavras, mas trocando uma série intensa de sinais sutis. O menor estímulo e se atirariam um nos braços do outro. A dona do restaurante veio atendê-los e conduziu-os ao salão principal, interrompendo aquele momento especial. Tão logo ocuparam uma mesa, dois garçons apareceram para servir a entrada e uma sangria. Jerome procurou impor os negócios como tema da conversa. Trataram da previsão do dia da inauguração e discutiram em detalhes cada peça que iria constituir os estoques de selas, baixeiros e arreios. Decidiram quantos balconistas mais seria necessário contratar, e chegaram juntos à conclusão de que Lawrence Walkingstick podia assumir muito mais responsabilidades do que lhe haviam reservado originalmente. O tempo todo Nancy não tirou os olhos dele, desejando que a conversa fosse menos profissional, e muito mais pessoal. Mas quando os pratos principais, de comida típica mexicana, chegaram, ela ainda estava contando sobre as visitas que tinha feito às outras lojas do ramo. A partir das informações que havia recolhido nessa pesquisa, puseramse a fazer a lista dos itens que fariam da loja de Jerome à única na região. Já saboreavam a sobremesa de sorvete com café quando ela criou coragem e perguntou: — Você não vai me contar como foi que machucou o ombro? O banho quente parece que ajudou, mas ainda dá para notar que está doendo. Ele fez um ar de pouco-caso, mas em seguida seu rosto se contraiu pela pontada de dor que o atingiu no ombro. — Bem, acho que devo admitir que banquei o estúpido — acabou dizendo com um meio sorriso. — Eu montei um touro bravo chamado Asteca... O sorriso dela ficou congelado nos lábios de repente. Por cima do ombro dele, o que viu parecia impossível. Três homens seguiam a dona do restaurante em direção ao salão principal. Não podia ser! Mas era. Martin e dois amigos iam passar justo pela mesa onde estavam. Depressa, ela tratou de desviar o rosto, torcendo para não ter sido vista. Não havia nada pior do que ter de explicar ao irmão na manhã seguinte por que estava jantando fora com Jerome, depois de tão categórica declaração de independência. — O que foi? — Jerome perguntou. — O quê? Oh... Nada. — Ela moveu a cadeira um pouco de lado. — Por favor, continue a sua história — pediu, inclinando-se sobre a mesa. Agora Martin e seus amigos estavam quase junto da mesa. Se ela ao
menos pudesse se transformar numa peça qualquer do restaurante só enquanto eles passavam... — Nancy! Ela se endireitou. Não havia mais como escapar. Seguiu-se um coro desordenado de cumprimentos e apresentações; um dos homens era Ron Sheldon, o colega de corridas de Martin, o outro, James Anderson, um velho amigo da família. Aproveitando um instante em que Jerome dava a mão aos outros dois, Martin lançou um olhar de desânimo para a irmã. Em seguida, foi Ron que começou a falar com ela: — Martin me disse que a convidou para a festa, mas será que ele se lembrou de dizer que vai ser no Arrowhead? A lista de convidados cresceu demais, e eu achei que o clube seria mais confortável do que a minha casa. — Deu um sorriso encantador e se virou a fim de incluir Jerome. — Por favor, venha também, se puder. É amanhã à noite. — Obrigado — ele disse meio seco. — Eu vou estar ocupado. A conversa ainda durou alguns minutos, com comentários divertidos e amigáveis a respeito do retorno de Nancy a Tulsâ. Mas para ela não estava fácil manter a conversação. De um lado, Jerome guardava um silêncio sepulcral. De outro, seu irmão não cessava de lhe lançar olhares. Após o que pareceu uma eternidade, os três homens se dirigiram para outra mesa. Assim que eles se afastaram, Jerome jogou o guardanapo sobre a mesa e fez um sinal pedindo a conta. — Eu preciso ir, agora. — Mas você nem terminou o seu sorvete — ela protestou. — Nem a sua história. Eu quero ouvir o fim da... — Mais tarde — ele cortou de uma vez. — Eu ainda quero correr alguns quilômetros esta noite. Não pude me exercitar hoje de manhã. Já na calçada, do lado de fora, Jerome parou e perguntou: — Onde deixou o seu carro? — Logo ali. — Eu a acompanho até lá. — Obrigada. — Nancy olhou para ele e decidiu tentar derreter o muro de gelo que se interpunha entre eles. — A festa do amigo de Martin me pareceu uma coisa divertida — comentou em tom leve, dizendo a primeira coisa que lhe veio à mente. — Você se divertiria; o assunto vai ser forma física e exercícios físicos. Não gostaria de ir? — Droga, não! — ele respondeu com fúria. — Eu nunca fui de freqüentar clubes de campo, e acho que é um pouco tarde para começar. — Jerome! — O quê? — O que foi que aconteceu de repente? Qual é o problema? Por que está agindo assim? — Meu comportamento não tem nada de excepcional — resmungou com teimosia. — O que você está vendo é o verdadeiro Jerome Redfeather. — Tomou as chaves da mão dela, abriu a porta do carro e se despediu de forma abrupta: — Boa noite, Nancy. Vejo você amanhã, na loja. — Devolveu-lhe as chaves e se virou para ir para a pick-up. Nancy ligou o carro e saiu acelerando forte. Estava furiosa... E perdida. Dormiu pouco naquela noite, rolando na cama pela madrugada adentro.
Mas, por mais que desperdiçasse horas de sono pensando, não conseguia chegar a nenhuma conclusão sobre aquele índio maluco e seu comportamento incompreensível. Despertou antes de o sol nascer, depois de umas poucas horas de sono agitado. Levou ainda algum tempo para se desvencilhar dos restos de sonhos ruins e nervosos que a haviam perturbado no curto espaço de tempo que tinha conseguido dormir. Apesar de verificar que ainda era cedo, não viu outro remédio a não ser se levantar de uma vez. Como consolo, decidiu tomar um banho de banheira, longo o bastante para dissolver a tensão que a dominava. Enquanto relaxava na água tépida e perfumada da banheira, tentou pensar no dia que teria pela frente. Sairia para a loja assim que terminasse o banho e se vestisse, decidiu. Então talvez pudesse começar a seleção do último grupo de candidatos, separando os melhores da imensa pilha de entrevistas que lotavam sua escrivaninha. Com isso já teria como ocupar a mente. Ainda teria de ir até Tahlequah, por isso era bom aproveitar cada minuto no escritório. Continuou pensando no trabalho até que estacionou seu carro no lugar de sempre, junto à ala oeste da loja. Viu a pick-up de Jerome, próxima ao automóvel de Lawrence. Foi assaltada por lembranças do fim do encontro no Chi Chi's, e suspirou com desânimo. Não queria vê-lo naquele dia. Não se sentia com forças para ter suas emoções jogadas de um lado para outro como se ela fosse um fantoche nas mãos de Jerome. Entretanto na agradável penumbra do prédio, ela foi direto para o escritório. Era óbvio que Jerome ainda não tinha se levantado, e Lawrence devia estar no restaurante ao lado, tomando seu café da manhã. Depois de fazer um café, atirou-se com vontade às pilhas de entrevistas que abarrotavam sua mesa. Pretendia examiná-las sem demora, para que estivesse com tudo pronto quando Zelda chegasse. Mal tinha terminado sua xícara de café e selecionado dois candidatos, cujas fichas lhe pareceram muito boas, quando ouviu baterem à porta. Meio assustada, consultou o relógio. Só podia ser Lawrence, voltando do café da manhã para fazer o relatório das mercadorias recebidas no dia anterior. — Entre. Era Jerome. — Bom dia — ele disse um tanto brusco. — Bom dia. Sem esperar ser convidado, foi entrando e se servindo de uma xícara de café. Então puxou uma cadeira para junto da mesa dela e se sentou. Ela esperou que bebesse um gole de café e pusesse a xícara em cima da escrivaninha. — Por que não se serve de uma boa xícara de café? — Nancy perguntou. Seu leve sarcasmo o fez sorrir. — Obrigado. A simples presença dele provocou tremores em suas mãos, e ela ficou furiosa consigo mesma por isso. Mas não conseguiu parar de olhá-lo. — Preferiu fazer o seu jogging hoje de manhã, em vez de ontem à noite? — perguntou para interromper o transe hipnótico a que estava se submetendo. — As duas coisas. — Jerome fez uma pausa para mais um gole de café. Na minha volta para casa agora de manhã me lembrei de que não discutimos a questão dos trabalhos indígenas, ontem.
Ela o encarou. Estava indignada com tanto cinismo. Passado um gélido instante, acabou dizendo, com uma calculada frieza: — Bem, eu realmente não tenho tempo para entrar nesse assunto agora. Eu estava terminando de selecionar o último grupo de fichas para a próxima rodada de entrevistas com os candidatos ao emprego. Em seguida vou sair para Tahquelah. Devo ficar por lá o resto do dia; tenho um encontro com uma mulher que fez colares, chamada Molly Bear; depois vou passar pela casa de Angie, para pegar umas pinturas. — Como foi que marcou o encontro com Molly? — ele perguntou com curiosidade. — Como assim? Pelo telefone, é claro. Por acaso ela não costuma atender, ou coisa assim? — Você falou com ela? — Não... — Nancy respondeu devagar, procurando se lembrar de como tinha sido o telefonema. — Falei com a irmã dela. Ela disse que Molly estava trabalhando. Mas falou com ela, e depois voltou para dizer que eu podia aparecer hoje, por volta das onze. Ele deu de ombros. — É bem capaz de você ter um pequeno problema, quando chegar lá. — Do que é que você está falando? — ela quis saber. — Quando Molly atende ao telefone, fala em Cherokee. Ela nunca se expressa em inglês. — Oh, não! — Nancy exclamou perdida. Mas logo seu rosto se iluminou. — Talvez a irmã dela possa traduzir. Elas não moram juntas? — Mais ou menos. A irmã trabalha em Tulsa. Só fica com Molly nos fins de semana. Ela assentiu pensativa. — É verdade, eu liguei num sábado. — Nervosa, empurrou a pilha de fichas para longe. — Mas isso é terrível! — constatou. — Por que ela não me disse? E eu preciso vê-la hoje, porque gostaria que ela fizesse alguns dos seus tão famosos vestidos com contas de vidro entrelaçadas para a nossa inauguração. Deve levar algum tempo para terminá-los, e eu quero pelo menos um para mostrar no dia da abertura. Jerome fez um muxoxo e pegou a xícara para outro gole de café. — Todo mundo sabe que ela não fala inglês. Provavelmente Molly pensou que você levaria seu próprio intérprete. Vai precisar de um antes de ir até lá. — Eu sei! — ela balbuciou. — Mas onde vou arranjar um intérprete de Cherokee agora? Ele deu mais um gole de café com movimentos estudados, antes de responder: — Bem aqui. — Você? — Claro, por que não? Eu preciso mesmo ter uma conversa com Ridge. A primeira reação foi de alívio e gratidão. Mas no segundo seguinte desanimou. Não podia passar o dia inteiro com ele! Seria pior do que tortura chinesa. Tentou pensar rápido num modo delicado de recusar a oferta, mas tudo o que conseguiu foi perceber que não estava em condições de atender aos seus caprichos sentimentais. Jerome era sua única possibilidade de conversar com Molly.
Às nove horas ele já tinha tomado um banho e se vestido, e ela já havia acabado de verificar a papelada. Partiram com as janelas da pick-up abertas, aproveitando o calor agradável daquela bonita manhã de verão, enquanto curtiam a bela paisagem que circundava a estrada. Conversavam de forma amigável e tranqüila, em sintonia com a beleza harmoniosa do dia. — Você conhece Molly há muito tempo? — Desde quando a minha memória alcança. — Acho fascinante pensar que ela nunca aprendeu inglês. Ela nunca foi à escola? — Isso não sei. Mas eu não disse que Molly nunca aprendeu inglês. Nancy deu um pulo, espantada, pressentindo que tinha sido enganada. — Como não? Você disse... — Eu disse que ela não falava nada além do Cherokee. O meu palpite é que ela entende um bocado de inglês. Tranqüilizada, Nancy se tornou pensativa e manteve-se calada por alguns minutos. — Ela parece ser um tipo e tanto — disse, como se chegasse a uma conclusão. — Até que esta pequena viagem pode ser bem mais interessante do que eu estava esperando — concluiu, sem se importar com o duplo sentido de sua frase. Mais adiante passaram pela estradinha de cascalho que levava à cabana de Jerome, o que despertou uma onda de recordações. Nancy não ousou fazer qualquer menção à noite da representação do drama indígena. Seguiram mais alguns quilômetros, e outra saída também ciscalhada surgiu. Jerome reduziu a velocidade e abandonou a estrada principal. Agora iam por um caminho de pedras soltas e muitos buracos. A sensação que ela teve foi a de estar montada num cavalo selvagem, de modo que, quando chegaram ao topo de uma colina de onde se descortinava um vale cheio de árvores, estava certa de que todos os seus órgãos internos haviam trocado de lugar. A descida para o vale não foi muito melhor, mas a visão de uma casinha solitária perdida entre as árvores foi um sinal animador de que estavam chegando ao seu destino. — Parece tão isolado do mundo! —ela exclamou. — Não me admira que Molly não fale inglês. A essa altura ela talvez não esteja falando nem mesmo Cherokee. Não deve passar ninguém por aqui com quem ela possa conversar, em qualquer língua! Ele achou graça. — Isso aqui não está a mais de sete ou oito quilômetros da minha cabana, em linha reta. É quase o núcleo da civilização. — Isso depende da sua definição de civilização — ela replicou enquanto Jerome parava o carro num jardim de terra batida. — Eu diria até que considero um milagre que tenham conseguido trazer tijolos suficientes para construir esta casa! — Confie na Secretaria de Assuntos Indígenas — ele disse quando atravessavam um trecho de terra batida. — O pessoal de lá tem construído casas assim, que estão espalhadas por todas essas colinas. — Bateu na porta semi-aberta e chamou em Cherokee. Pouco depois surgia uma mulher rechonchuda e de meia-idade. Acolheu Jerome com um sorriso aberto e uma entonação tão amistosa em suas
palavras em Cherokee que Nancy lamentou profundamente não conhecer a língua. A mulher, então, convidou-os a entrar com um gesto. Lá dentro, Nancy não conteve uma exclamação de surpresa. Contrastando com o exterior de alvenaria da casa, seu interior era um mundo em miniatura da cultura índia. Havia por todo canto ornamentos de couro, cocares de penas coloridas, cestos, peneiras de palha trançada, colares de contas silvestres e artesanatos em vários estágios de acabamento. A um canto estava o que tinham vindo buscar: um vestido de camurça, com seu decote franjado de contas, quase terminado. Não havia dúvida; era um trabalho que merecia a fama que tinha. Fascinada, Nancy ia passando de item a item, sem conter elogios à qualidade e à delicadeza das peças. Jerome e Molly conversavam felizes no sofá. Passados alguns minutos, ele insinuou que a troca de amenidades estava encerrada, e perguntou o que Nancy queria que ele dissesse. Ela então explicou sobre a loja e de como desejava ter alguns daqueles vestidos para expor e colocar à venda na inauguração. A primeira resposta de Molly foi um inequívoco não. Mas Nancy se recusou a aceitar isso. Pediu para Jerome dizer que ela não queria um, mas dois vestidos, porque um ela mesma iria usar na festa de inauguração. O segundo ficaria em exposição no centro da loja. A índia não pôde disfarçar sua satisfação com tamanho elogio. Ainda levantou mais algumas objeções menores-, mas no final concordou em vender o vestido quase pronto que estava fazendo, e entregar o outro tão logo fosse possível. A esta altura, era Jerome quem olhava para sua gerente com sincera surpresa e admiração. Aliás, a admiração se transformou em verdadeiro assombro quando a viu convencer Molly a tentar entregar não dois, mas três vestidos. Apenas na hora de tentar marcar uma data mais ou menos precisa para o fim do serviço foi que a situação não se resolveu. Por fim, foi necessário ficar satisfeita com a promessa imprecisa de que os vestidos ficariam prontos "quando as árvores mostrassem suas cores. Essa parte acertada, Nancy pediu a Jerome que perguntasse o preço dos artigos menores que já estavam prontos. Mais uma vez a índia se recusou a vender. Não queria vender tanto que não sobrasse quase nada para levar à feira de artesanato que acontecia todos os sábados no gramado em frente ao tribunal de Tahlequah. — Os Cherokee se reúnem no quarteirão do prédio do tribunal de Tahlequah toda semana para uma feira de trocas — Jerome explicou. — É uma tradição que vem desde os tempos em que nosso povo foi transferido para cá. — Neste caso — Nancy replicou —, você precisa tirar umas férias. Venda tudo para mim e não vai precisar carregar todo esse peso até a cidade e depois ficar sentada esperando. Poderá passear pela feira e conversar com todos os seus amigos. Nesse ritmo, não só ela foi ganhando a confiança de Molly e adquirindo o direito de comprar seus artigos como também foi vendo o mau humor disfarçado de Jerome se transformar num sincero entusiasmo. Quando chegou a hora de partir, e tudo estava resolvido para todas as partes, Nancy sentiu que aquele era o homem encantador e imprevisível a quem era incapaz de resistir. Sentia-se outra vez junto do Jerome cheio de
mistérios, que havia dançado ao seu redor numa noite de powwow. — Bem, eu confiaria o meu dinheiro a você a qualquer hora e sob pena de qualquer risco — ele disse quando já se preparavam para entrar no carro. — Você tem um verdadeiro talento natural para os negócios. Ela riu cheia de felicidade. — Ora, acho que você ajudou um bocadinho. Afinal, um intérprete honesto é a chave para qualquer negociação bem-sucedida. — Até que formamos uma boa dupla, não acha? Ao ouvir aquilo, ela chegou a sentir vergonha por se deixar levar por uma alegria tão infantil. Subiu na caminhonete como quem pisa nas nuvens. — Bem, acho que agora só resta passar para pegar as pinturas de Angie e voltar para Tulsa — ela disse, acenando um último adeus para Molly através do vidro da janela. — Seria bom se pudéssemos voltar para a loja antes do dia terminar. — Oh, não sei — ele disse, acelerando a pick-up. — Está um dia lindo demais para desperdiçar se dedicando apenas aos negócios. Em minha opinião devíamos ir à busca de alguma lagoa onde pudéssemos nos refrescar. Ela deu risada. — Isso é o que eu chamo de ironia. Aqui estou eu, leal funcionária, tentando dar o máximo de mim para voltar ao trabalho, e o meu preguiçoso patrão me encorajando a faltar ao serviço. — Você merece. A sua eficiência é digna de um prêmio. E assim foram trocando elogios e fazendo brincadeiras, até que pouco depois ele pegou um desvio, em vez de prosseguir no caminho da estrada principal. Ela ainda levou um minuto antes de perceber. — Ei, onde é que estamos indo? — perguntou. — Estava mesmo falando sério sobre esquecer as responsabilidades? — Mas eu não estou esquecendo nenhuma responsabilidade — ele protestou. — Estou indo ver o meu avô e dar uma olhada nos meus cavalos. Você não diria que ambas são coisas de responsabilidades? — Você não tem jeito! — ela exclamou, rindo. — Estou começando a perceber que não há possibilidade de eu vencer essa discussão. — Acertou em cheio! Portanto, por que não relaxa e trata de se divertir? E era isso o que ela mais queria, na verdade. Aliás, com ele descontraído daquele jeito e uma paisagem tão verde à sua volta, estava ficando cada vez mais difícil se lembrar por que tinha saído com tanta pressa de Tulsa. Acabaram parando numa casinha isolada, no vale seguinte, mas Ridge não estava em casa. — Deve ter acabado de sair — Jerome especulou. — Ele costuma seguir pela mata até a casa de Molly; quase todos os dias se encontram para conversar e fumar um cachimbo juntos. — Então é por isso que Molly não quis estabelecer um prazo para a entrega dos vestidos: ela não sabe quanto tempo vai perder com Ridge! Ele riu. — Molly não aceitou estabelecer um prazo porque não pretende se ver presa a datas — Jerome corrigiu. — Nosso povo sempre encarou o tempo como uma coisa muito mais flexível e relativa do que a civilização branca. — Ah, é? Pois acho que a minha parte Cherokee está resolvendo vir à tona, porque estou começando a não ficar mais preocupada em voltar para o
trabalho. — Assim é que se fala! Você vai estar usando penas e roupas de couro antes que se dê conta. — Eu vou, se o seu avô ajudar Molly, em vez de ficar atrasando-a! — ela retrucou. — E eu acho que você devia dizer isso a ele. Estavam rindo da imagem do velho Ridge ajudando a fazer vestidos de camurça quando chegaram à cabana de Jerome. Sob a luz do dia, aquilo mais parecia o próprio paraíso. Encravada na encosta, entre as árvores, a cabana toda feita de grossos troncos, como faziam os pioneiros, tinha sua varanda voltada para o rio logo abaixo, onde o sol brilhava em mil fagulhas de ouro. Sim, ali devia ser o paraíso, onde nada mais era preciso para ser feliz. — Adoro este lugar — Nancy declarou num impulso incontido e genuíno. — Quem construiu esta cabana aqui tem um bom gosto a toda prova! — Eu também tenho uma boa capacidade de previsão — ele emendou sem falsa modéstia. — Escolhi um ponto em que não é necessário andar muito para se chegar ao rio. Num dia quente como hoje, é só descer o morro e pronto, para dentro da água! — Tomou-a pela mão. — Venha comigo. — O que é que você está fazendo? — ela se surpreendeu. Com a cara mais inocente do mundo, ele passou o braço por sua cintura e disse: — Nós vamos nadar, não vamos? — Não podemos. Não estamos vestidos para isso — protestou, rindo. Ele a atraiu para mais perto da inclinação do terreno que terminava no riacho. — Talvez você seja Butch Cassidy — Nancy disse, tentando resistir. — Mas eu não sou exatamente Sundance Kid — completou, referindo-se à cena do filme em que os dois pistoleiros pulam num rio de um penhasco, para se salvarem de seus perseguidores. — Esse tombo vai quebrar os nossos pescoços — ainda relutou, rindo. Ignorando sua resistência, Jerome a arrastava cada vez mais para perto da beirada. — Mas olhe e diga se a água não parece estar uma delícia — ele provocou. Enquanto riam e agiam como perfeitas crianças, Nancy deu um jeito de se virar e, com um movimento rápido, pegou-o de surpresa e derrubou-o dentro da água fresca do rio. — Minhas botas novas! — ele gritou. — Você vai me pagar por isso! Ela não conseguiu correr mais do que quinze ou vinte metros antes de ser alcançada e tomada nos braços. — Agora você vai descobrir o que é um banho Cherokee — ele ameaçou, enquanto a carregava de volta para o rio. Nancy mal teve chance de protestar. Quando deu conta de si, estava dentro d'água, o rosto junto do dele, seus corpos se tocando com um calor que fazia esquecer o frio das roupas molhadas. O desejo que vinha se acumulando desde o começo do dia explodiu num beijo longo, quente, apaixonado. Durante quanto tempo ficaram assim, trocando beijos e carícias, sentindo a correnteza até a cintura, fria, contrastando com o gostoso calo do sol ainda alto... Não saberiam dizer. Mas não estavam preocupados com isso. Apenas queriam continuar um nos braços do outro, se tocando, experimentando,
dando vazão a um desejo que só fazia crescer. Só bem mais tarde, quando as roupas que vestiam começaram a funcionar como um empecilho, é que pensaram em sair dali e entrar na cabana. No interior aconchegante do quarto, despiram-se um ao outro, devagar, peça por peça... Mãos suaves e macias percorrendo um dorso musculoso e flexível... Mãos grandes e poderosas acariciando seios cálidos e delicados, toques perfeitos eriçando os mamilos, apalpando a carne quente... Sentindo-a arfar sob as palmas rudes e hábeis. Entregaram-se a um jogo de busca e fuga, ora provocando, excitando... Ora escapando, fazendo-se desejar num vaivém de toques capazes de enlouquecer. Confissões de amor e paixão sussurradas, línguas úmidas e quentes procurando pontos exatos; lábios tocando cada extremidade do corpo do outro, numa brincadeira de prazer insano. Uma eternidade se passou, numa demora calculada, fazendo o prazer crescer milímetros a milímetros, toque a toque, beijo a beijo. Ambos gemiam e rolavam sob doce tortura... Mútua... Lenta... Até que o corpo grande e esguio de Jerome cobriu o de Nancy, suave... Macio... Quente... Num entendimento perfeito, acertaram seus ritmos... Num louco balanço... Indescritível movimento... Um calor tomando conta de tudo... Todos os sentidos se fundindo... Os dois se fundindo... Nessa loucura crescente... Até o pico... O clímax... Numa entrega total, completa, sem volta... Depois, saciados, permaneceram abraçados. Ficaram assim relaxados, meio desmaiados de prazer, felizes, até adormecerem.
CAPÍTULO VII Quando Nancy acordou, havia uma penumbra suave no quarto, e um silêncio apenas quebrado pelo coro estridente de milhares de grilos do lado de fora das janelas abertas e pela respiração compassada de Jerome ao seu lado. Ela se aconchegou com intimidade naquele corpo forte. Ao ser tocado, ele se moveu para o outro lado. Mas, mesmo dormindo,
pareceu sentir o vazio e voltou para envolvê-la de novo; um longo braço pousando sobre o corpo dela. Nancy sorriu. Estava feliz, uma sensação gostosa percorrendo toda sua pele. Acariciou-o com extrema suavidade* sentindo sob a palma da mão a firmeza dos músculos poderosos de seu tronco. Nunca havia se sentido tão bem, tão certa do que fazia. Distraiu-se o acariciando, os pensamentos correndo longe. — Nancy — Seu nome foi pronunciado num sussurro preguiçoso e terno, trazendo-a de volta do mundo dos sonhos por onde viajava. — Sim? Ele tomou sua mão e levou-a aos lábios, beijando com infinita ternura cada um dos dedos. — Oi! — sussurrou. — Oi! Jerome — disse sorrindo, adorando ouvir seu nome pronunciado por ele enquanto a beijava com tal delicadeza. Sua mão contornou-lhe os lábios, o queixo, descendo pelo pescoço, até encontrar uma cicatriz longa e fina que ia da base do pescoço até perto do ombro. — Onde você arranjou isso? — Foi um novilho — respondeu com moleza. — Deu pulo muito grande. Demorei em saltar e caí sobre o chifre. Ela considerou aquilo por um momento, e então disse: — Acho que você vai ter de explicar melhor. Ouvi você, mas acho que não peguei bem o sentido da coisa. Ele riu. — Perseguição ao novilho. O danado estava muito longe de mim e do meu cavalo, e o meu tempo já estava ficando ruim. Eu me apressei e, em vez de cair com as mãos nos chifres, caí com o ombro. Um calafrio percorreu-lhe a espinha quando ela procurou formar aquela imagem na cabeça. E a maneira objetiva e desapaixonada com que ele falava tornava tudo ainda pior. Ele saía a galope perseguindo touros e novilhos bravos, saltando sobre chifres mortais, era desse tipo de jogo violento que ele falava como fosse uma coisa tão simples e banal quanto decidir o local para a seção de chapéus ou a cor de uma parede. E era disso que ele tirava seu sustento! Sua vida estava em risco quase todos os dias. Ela o apertou num abraço. — Não consigo nem pensar nessas coisas — disse. — Jerome, é muito perigoso. Ele fez um gesto de pouco-caso. — Você pode atravessar uma rua e ser atropelada por um caminhão. — Mas não se sai por aí pedindo para ser atropelado — ela objetou. — Eu não pedi para ser chifrado! Rindo, ela se curvou e descansou a cabeça em cima da cicatriz. — Você sabe o que eu quero dizer. Eu gostaria que você não participasse mais de rodeios, foi isso o que eu quis dizer. Jerome não respondeu, e mais uma vez ela se perdeu em pensamentos. Onde estava à firme determinação de não se envolver emocionalmente? Como podia ter mudado de postura em questão de horas apenas? Não sabia a resposta. Chegava mesmo a temer a pergunta, como se a busca do auto-
entendimento pudesse destruir aquele sonho. Espreguiçou-se e abriu os olhos devagar. — Está ficando escuro — disse. — Eu sei. Precisa ligar para a sua mãe? — perguntou, acariciando-lhe os cabelos negros e sedosos. Nancy virou o rosto para encará-lo, pensando que ele estivesse brincando. — Estou falando sério. Da última vez que esteve aqui, você precisou ligar para fazer uma notificação. — Tarde demais — retrucou com um riso seco, recordando a recepção que Martin havia lhe preparado naquela ocasião. — O meu irmão me encheu a paciência por não ter telefonado mais cedo. Ele interrompeu a carícia. — Aquele que encontramos no Chi Chi's? Nancy percebeu que o tom dele era duro, irritado. O que havia em Martin para deixá-lo tão ressentido? Por que os dois se detestavam tanto, se mal se conheciam? — Sim. É o único irmão que tenho — resolveu tentar mudar de assunto. — Quanto a minha mãe, ela está fora da cidade. Ninguém vai estar esperando por mim esta noite. — Ótimo. Porque, neste caso, tenho alguns planos para você... — Foi movendo a mão em círculos cada vez mais amplos sobre as costas dela. — Por acaso está dizendo que não pretende voltar para a loja antes do encerramento do expediente? — perguntou, fingindo indignação. — Nós não vamos voltar. Os meus planos para esta noite não incluem a loja de nenhum jeito. — Então nós estamos mesmo fugindo às responsabilidades! — Moveu-se para poder olhar nos olhos dele e fez uma careta maliciosa. — E que história foi aquela de vir dar uma olhada nos cavalos? — Depois. Vamos vê-los depois. — Rolou na cama de modo a inverter as posições e ficar deitado sobre ela. — É uma questão de prioridades — murmurou, roçando-lhe a boca com seus lábios. — Como mulher de negócios, você devia saber disso, mocinha... Nancy despertou com a voz dele vindo do outro cômodo. Abriu os olhos e sentiu-os ofuscados pela luz clara do sol. —... Sábado à noite — Jerome dizia ao telefone. — Estou com o "Ousado". Preciso estar pousando em Houston por volta das cinco... Ela fechou os olhos, desejando poder fechar os ouvidos também. Sábado à noite... Procurou fazer os cálculos. Estavam... Na quinta-feira. Dali a dois dias ele iria embora. Mas não podia! Após uma vida inteira de frustrações, ela havia encontrado nos braços dele todo o calor que queria. Ele podia se machucar. Quem era o "Ousado"? Teria... Chifres? Sentiu medo. Não podia deixá-lo ir. Talvez, com jeito, conseguisse persuadi-lo a desistir. A voz de Jerome continuava vindo do outro cômodo, em sua conversa telefônica. Nancy se levantou e enrolou o lençol e em volta de si, disposta a tentar demovê-lo da idéia de ir ao rodeio. Quando ia passar pela porta, parou, observando-o. Seu rosto estava compenetrado, revelando uma profunda concentração nos planos e arranjos que ele estava fazendo para a viagem. Ela vacilou. Não tinha nenhum direito de se meter naquilo. Por que estava agindo assim? O que teria acontecido? Estaria apaixonada de verdade? O
pensamento fê-la sentir uma súbita fraqueza nas pernas, obrigando-a a procurar o batente da porta para se apoiar. Foi quando ele desligou o telefone e se virou em sua direção. Ela era total e completamente irresistível, ele pensou. O dia anterior havia revelado uma Nancy de vários matizes; uma eficiente mulher de negócios, uma barganhadora instintiva com Molly Bear, além de surpreendentemente travessa e uma amante deliciosa. Possuía algo de menina abandonada, o que a dotava de certo ar de desamparo que o fazia querer protegê-la do mundo. E, como se tudo isso não bastasse, era uma mulher muito bonita, com o contraste criado por seus cabelos negros e olhos de um inacreditável azulescuro. — Bom dia, dorminhoca — disse enquanto se aproximava dela. Nancy ajeitou o lençol acima do busto. Sentiu que precisava pensar. E, quando ele a tocava, era impossível raciocinar. — Bom dia — respondeu sorrindo, mas recuando um passo. — Você já se vestiu — observou. — É melhor eu me vestir também, para a gente poder pegar logo a estrada. Jerome a seguiu para dentro do quarto, vendo-a procurar suas roupas de modo vago. — Tenho aquele último grupo de entrevistas para hoje — informou-o. Estremeceu ao sentir-lhe a mão sobre o ombro nu. Como é que podia pensar em trabalho daquele jeito? — Você precisa passar pela casa de Angie também, lembra-se? — Eu sei, mas... — Falei com Darlene mais cedo hoje, e ela disse para darmos um pulo lá de tarde. Quer que fiquemos para jantar — ele disse. — A família toda vai estar reunida. — Oh, nós não podemos ficar por aqui tanto tempo! Temos uma loja para ficar pronta para a inauguração, já se esqueceu? Ele correu um dedo ao longo de seu pescoço, num toque leve e provocante. — Nós também não temos muito tempo para nós mesmos — argumentou com voz rouca. — Eu parto de novo no sábado e, desta vez, posso ficar longe por um mês. Ela suspirou. — Oh, Jerome, eu sei. Ouvi você ao telefone. Não posso acreditar que já vai viajar de novo, tão cedo. — Pois, então, não acha que somos mais importantes do que a loja? E ainda há o Lawrence, a Dorothy e um bando de pessoas para ir tocando as coisas sem a sua presença. Mas aquilo não foi uma boa tática. Ela se ofendeu com o modo tão leviano com que ele se referiu ao seu trabalho, ignorando a loucura que tinha sido aquela última semana na loja. Um tanto fria, desvencilhou-se. — Deixe eu me vestir, e vamos passar pela casa de Angie — disse meio irritada. — Pode parecer inacreditável para você, mas há uma série de coisas a serem resolvidas na loja que exigem a minha presença. Ele a segurou pelos ombros e forçou-a a encará-lo. — Pode parecer inacreditável para você, mas há uma série de coisas a serem resolvidas com Jerome Redfeather que exigem a sua presença — disse.
Nancy o enfrentou com o olhar, sentindo uma onda de calor crescer a partir dos ombros, onde ele a segurava. — Eu não vou levá-la de volta a Tulsa hoje — ele anunciou. — Aquela loja não vai abrir falência só porque você não foi trabalhar durante dois dias. — Se eu quiser você vai me levar! Jerome olhou-a com dureza, mas aos poucos sua expressão foi mudando para aquela sua expressão de moleque travesso. — Mas você quer? — perguntou com suavidade. — Você quer voltar? Ela lutou para conservar a raiva, mas sentiu que os cantos dos lábios começavam a se curvar num sorriso. Ele também percebeu. — Eu quero você, Nancy. Quero muito. E nesses próximos dois dias, quero me saciar de você. Quero amá-la tanto que possa agüentar um mês inteiro sem vê-la. Quero guardar o seu calor para poder enfrentar as longas noites frias que vou ter pela frente... Seus lábios se uniram num beijo quente e demorado, enquanto o lençol se desprendia e escorregava lentamente pelo corpo dela. O dia todo se passou como um sonho. Depois de muito rolarem sobre o colchão, abandonaram a cama para irem preparar uma omelete e sair para dar uma olhada nos cavalos. Mais tarde, deram um pulo até Tahlequah, para comprar um vestido para Nancy usar na casa de Darlene. Ela não pensava em nada. Apenas se permitia sentir o prazer de estar ali com Jerome, mantendo a realidade a uma distância bem segura. Pareciam estar no paraíso, e não viam razão para acreditar que pudesse ser diferente. Mas a sensação de que ambos eram as únicas pessoas no universo desapareceu quando chegaram à casa de Darlene. Mal desceram da pick-up e um bando de crianças de todas as idades e tamanhos os rodearam chamando por Jerome com suas vozinhas infantis. O mais novo, um garotinho moreno de cabelos bem pretos e lisos, levantou os bracinhos exigindo ser carregado. Outro, um pouco maior, também se agarrou a Jerome, esperando pela vez de ser erguido no alto. Com infinita paciência, ele pegou os dois, pondo um sentado em cada ombro. — A mamãe, tia Darlene e vovó estão cozinhando — uma menininha anunciou. — Estão fazendo pão frito. — E connuche também — outra criança acrescentou. Olhavam para Nancy de modo tímido, mantendo certa distância enquanto caminhavam. Rodearam Jerome de tal maneira que, quando chegaram perto da casa, ela se viu forçada a parar para lhes dar passagem. Foram para a parte de trás e entraram pela porta dos fundos, direto na cozinha simples de Darlene. Foram recebidos pelas mulheres com um coro desordenado de gritinhos alegres. A essa altura, Jerome estava tão rodeado de gente que quase desapareceu por completo, apesar do seu tamanho. Perdida, Nancy não conseguiu guardar os nomes das pessoas, e acabou ficando zonza enquanto assistia a novos grupos de pessoas surgirem assim que ficavam sabendo da presença de Jerome. Observou que enquanto as crianças formavam uma única multidão em miniatura, os adultos pareciam se dividir em grupos distintos de homens e mulheres. Assim, quando deu pela coisa, estava só com as mulheres na cozinha, tendo Jerome desaparecido para a sala com os outros homens. — Não quer se sentar aqui? — ofereceu com timidez uma moça mais ou
menos da sua idade. — Pode ficar só olhando; nós não vamos fazer você trabalhar logo na sua primeira visita. — Oh, obrigada. Mas eu adoraria ajudar se alguém me dissesse o que fazer. Mas várias vozes femininas se opuseram ao mesmo tempo, indicando que ela se sentasse, fazendo-a desejar como nunca ter algo para ocupar as mãos. Na outra ponta da mesa junto à qual tinha se sentado, viu uma velha amassando nozes e transformando a pasta final em bolas do tamanho de brigadeiros. — Será que posso ajudar? — ofereceu-se. — O que é que está fazendo? — Sopa. Connuche. Como a mulher não dissesse mais nada e voltasse ao trabalho, passados um ou dois minutos Nancy concluiu que a resposta à sua oferta de ajuda tinha sido negativa. Por um bom tempo ainda ficou olhando a velha mover os dedos com habilidade, imaginando se não poderia sair e procurar por Jerome. Ele tinha estado tão próximo nas últimas horas... Não, dias! Agora, estarem separados era como o mundo perder o sentido. Ergueu os olhos e correu a vista em volta. Reparou numa grande índia, de aspecto matronal, colocando triângulos de massa de pão para fritar num tacho onde a banha quente borbulhava. A moça que lhe havia oferecido a cadeira estava tirando tortas do forno, outras levavam e secavam louça junto da pia. Todas ali conversavam e riam, mas nenhuma parecia ter tempo para dispensar um pouco de atenção à visitante. Numa tentativa de vencer o tédio, Nancy puxou uma tigela com nozes, escolheu uma e prendeu-a com um quebrador. Mas acabou fazendo força demais e, em vez de romper apenas a casca dura, reduziu todo o fruto a vários pedaços. Bem, assim acaba o mundo da fantasia, pensou enquanto recolhia os pedaços, distraída. De repente lhe veio à mente que aquele era o "lar" de Jerome. Enquanto ela achava aquilo tudo tão estranho, ele com certeza devia estar se divertindo muito. E logo procurou fazer um quadro mental dele na casa de sua mãe. Como é mesmo que ele tinha falado? Que era um tanto... Diferente de onde ele vinha. Em associação, lembrou-se de como Jerome tinha reagido aos seus caprichos na reforma do apartamento. Terminou de recolher os pedaços da noz esmagada e afastou a tigela. Seriam essas diferenças tão importantes assim? Não podiam ser. Não depois de tudo que tinham acabado de compartilhar. Martin não podia estar tão certo sobre o valor dessas diferenças sociais, ou estaria? Angie, entrando pela porta dos fundos, interrompeu suas divagações. — Acabei de ver Jerome, e ele me disse que você estava aqui — ela disse com uma expressão tímida no rosto. — Estamos contentes que tenha vindo. Nancy se levantou feliz por ter com quem falar. — Obrigada, Angie. É bom rever você também — disse com sinceridade. — Quando voltarmos para Tulsa, esta noite, quero já levar algumas das suas pinturas para a loja. A jovem índia baixou os olhos. — Eu já tenho algumas separadas para você — disse. — Não está feliz com a idéia de pôr o seu trabalho à venda? — Nancy perguntou entusiasmada. — Fiquei tão contente por Jerome ter pensado nisso.
Seus quadros são bons e merecem ser vistos pelas pessoas. — Obrigada. — Vamos ver quais você escolheu para mim... — Mas foi interrompida quando a mulher que mexia com o forno, e que Nancy achava ter lhe sido apresentada como Darlene, a irmã de Jerome, disse: — Angie, vamos pôr o chá na mesa. Já está tudo pronto para o lanche dos homens e das crianças. As mulheres começaram então a levar copos e chá gelado e travessas com comida quente para a pequena sala de jantar, onde os homens estavam reunidos conversando. Também prepararam o lugar para as crianças na cozinha. Nancy tentou ajudar, mas tudo o que conseguiu foi ficar no meio do caminho, atrapalhando. Jerome acariciou-lhe os cabelos quando passou por ela para ocupar seu lugar na mesa, e ambos trocaram um sorriso, mas não houve chance de se falarem; ele estava concentrado numa conversa sobre cavalos com dois outros homens. Assim, só lhe restou ficar admirando-o a distância da porta da cozinha, sentindo-se solitária como nunca. Acabou andando de um lado para outro na cozinha, enquanto as crianças comiam e as mulheres ficavam de prontidão, servindo as duas mesas. Num dado momento Angie veio se postar junto dela, o que lhe deu a chance de matar o tempo perguntando e tentando guardar o nome de cada uma das crianças. Afinal os homens terminaram de comer. Darlene e Angie recolheram a mesa e tornaram a arrumá-la. Era a vez das mulheres se sentarem para a refeição. Nancy foi colocada entre a irmã e a sobrinha de Jerome, que lhe explicaram a preparação de cada um dos pratos, além de outros que constituíam a tradicional cozinha Cherokee. Mas, isso feito, ela mais uma vez se viu isolada. Não que as outras mulheres não tentassem incluí-la na conversa, mas eram todas muito tímidas com estranhos, e o assunto acabou se virando para as questões de família, sobre o que ela não sabia nada a respeito. O tempo foi passando e Nancy foi se sentindo cada vez mais desconfortável. Provava um pouco de cada comida, achando-as de sabor esquisito. Sem ter com quem conversar, continuou divagando, e assim descobriu o quanto precisava da presença de Jerome. Mas a situação prosseguia a mesma e, além do desconforto, começou a crescer dentro dela um sentimento de frustração. O que Jerome tinha dito naquela manhã, quando ela quis voltar para a loja? Era algo como "quero estar com Você esses dois dias que ainda temos antes de eu viajar", ou coisa parecida. Bem, para quem queria passar o tempo juntos, até que eles estavam bem separados. E, se não era para estar com ele, então ela precisava voltar ao trabalho. Já não estava fácil cumprir o cronograma original e, com dois dias a menos, as chances ficavam ainda mais reduzidas. Consultou o relógio. Se pretendiam chegar a Tulsa em tempo dela poder falar com Dorothy, então teriam de partir no máximo dali à uma hora. Procurou disfarçar sua impaciência até Angie terminar a sobremesa. — Angie, eu não quero apressá-la, mas será que eu não poderia ver as pinturas agora e embalá-las para a viagem? — sorriu para Darlene a guisa de desculpas. — Me desculpem, mas eu preciso mesmo chegar à loja hoje, antes
que feche se puder. — Oh, tudo bem. Foram para o quarto de Angie, o qual era obviamente dividido com alguém mais jovem. Num canto se podia ver uma série de telas prontas, e outra no cavalete, ainda inacabada. — Eu gosto desta aqui — Nancy disse, indicando a pintura sobre o cavalete. — Será que posso tê-la quando terminar? — Talvez — Angie retrucou. — É a lenda do primeiro fogo. — Abriu o guarda-roupa e tirou dois quadros de tamanho médio e um pequeno. Um dos dois maiores retratava uma paisagem natural, enquanto os outros mostravam cenas tradicionais da vida indígena. — São estes que eu separei para você. Nancy estudou-os com cuidado. — São bons — declarou. — Gosto deles. — Virou-se para a jovem pintora. — Mas onde está o meu favorito. "Marcha Triunfal"? Pensei que ia poder levá-lo também. A pobre moça desviou o olhar. — Eu... Eu preciso dele, ainda. — Oh! — Nancy exclamou perplexa. — Eu pensei que tínhamos combinado pelo telefone que você iria vendê-lo. A outra se pôs a embrulhar as telas que estavam em cima da cama. — Preciso trabalhar ainda nele — disse. — Decidi que ainda não está pronto — explicou, sem tirar os olhos das pinturas que estava embalando. — Está certo. E que tal se eu viesse pegá-lo quando for buscar o primeiro vestido de Molly? A outra assentiu com um pequeno aceno, e então as duas pegaram os embrulhos e levaram até a sala. — Vamos levar isto até caminhonete — Nancy sugeriu. — Daí eu vou procurar Jerome para nos despedirmos. Precisamos partir logo para Tulsa. — Acho que ele está lá fora — Angie disse, mantendo aberta a porta da frente para ela passar. Encontraram-no sob a sombra de uma grande árvore que dominava o jardim, apoiado em seu tronco sinuoso. Ridge estava perto, sentado numa rústica cadeira de balanço. Formando uma roda, havia outros homens, uns de pé, outros sentados sobre a grama. Estavam todos tão absorvidos pela conversa, que ninguém chegou a perceber o barulho da porta quando esta se fechou. — Viu? Ali está ele, com papai e o vovô Ridge — Angie apontou. — Sim. No caminho até a pick-up, as duas passaram a não mais do que poucos metros do grupo. Nancy olhou para Jerome, na esperança de poder lhe fazer um sinal avisando de que ela já estava pronta para ir embora. Mas ele estava com o rosto voltado para o outro lado, de modo que não podia vê-la acenando de modo discreto. A luz do sol de fim de tarde coloria seus cabelos e sua pele, dotando-os de uma cor marrom avermelhada. Em sua postura imóvel e; serena, ele parecia fazer parte da árvore, cujo tronco lhe servia de suporte. Nancy ainda parou um instante para admirar o quadro que aquele grupo de homens de sangue índio compunham, num entardecer suave. Concentrou sua atenção em Jerome. Parecia ter-se definitivamente fundido na paisagem.
Estava imóvel.
CAPÍTULO VIII Jerome observou Nancy caminhar até a pick-up. Gostava do jeito dela andar, do seu porte. Tinha reparado nisso desde a primeira vez que a vira. À primeira vista ela dava a impressão de uma mulher fria. Mas, examinando com atenção aqueles olhos azuis, qualquer homem sensível perceberia a chama que
ardia por trás deles. E ele se considerava um homem sensível. — É mesmo uma bela mulher — seu cunhado, Billy Fourkiuer comentou, como se estivesse respondendo a alguma coisa dita por Jerome antes. Jerome olhou para ele. Com toda a calma do mundo, Billy tirou do bolso da camisa um pacotinho de fumo de mascar e colocou um pedaço na boca. Depois tornou a falar: — É... Ela é mesmo uma coisa. Lembro-me de tê-la visto uma vez, quando eu estava trabalhando para o Dante Oil. — Guardou o pequeno embrulho no bolso da camisa e continuou: — Mas fico surpreso que você esteja interessado nela. — Lançou um olhar de lado, com visível preocupação. — Achei que você já tinha tido a sua cota do tipo "moça fina da alta sociedade", o suficiente para não se meter mais com elas para o resto da vida. A resposta de Jerome não passou de um grunhido ininteligível, mas não deixou de sentir certa tensão por dentro. Não estava dando muita importância às diferenças de formação e sociais que os separavam. Pelo menos, desde a noite anterior nada disso tinha sido importante. Desviando o olhar do cunhado, voltou o rosto na direção de Nancy e da sobrinha. As duas já estavam a meio caminho, morro acima. Não estavam conversando muito, notou. Pouco depois, em vez de voltar direto para dentro da casa, Nancy fez um desvio e parou diante dele. — Jerome, detesto interromper, mas não acha que devíamos começar a nos despedir? Eu tinha planejado dar um pulo ainda na loja, antes que todo mundo fosse embora. No mesmo instante Jerome foi tomado de profunda irritação. O que é que ela estava querendo, preocupando-se com a loja numa hora com aquela? Era provável que ele não voltasse a ver todas aquelas pessoas, amigos e parentes, antes de um mês. Endireitou-se sem pressa, pondo-se de pé e esticando o corpo em toda sua enorme estrutura. — É mesmo? — disse. — Por que não passam a noite aqui? — Billy ofereceu. — Não faz sentido voltar a Tulsa esta noite, para amanhã de manhã vir de novo para cá. Ela parou de tentar decifrar a expressão de Jerome e se voltou para-Billy. — Como assim, voltar aqui amanhã? Então ele se ergueu também, os olhos escuros brilhando. — Jerome prometeu nos deixar exibi-lo como atração no rodeio de amanhã à noite — disse. — Vai ser muito mais competitivo do que ele imagina. — Vai ser engraçado ver vocês tentando superar as minhas marcas — ele comentou. — Apareça mais cedo, e podemos deixar você praticar um pouco; vai precisar de toda a ajuda que puder conseguir — Billy provocou. — Não pode ficar em Tulsa até o último minuto e depois esperar grande coisa. — Eu não pretendo voltar a Tulsa até que tenha mostrado a vocês, bando de amadores, o que é montar e laçar — ele devolveu. Mas do que é que ele estava falando? Sentindo a raiva crescer, Nancy se esforçou para manter um tom normal de voz: — Bem, você talvez não precise voltar ao trabalho — disse, encarando-o com firmeza. — Mas eu tenho. Já perdi dois dias inteiros... Jerome devolveu o olhar, agora com raiva de verdade. Não estava na casa
dela, para decidir quando deveriam partir. Mais parecia estar querendo dizer o que ele tinha de fazer. E bem na frente de sua família. Avançou um passo até olhá-la bem de cima. — Eu decido quando você tem de voltar ao trabalho: — disse em tom ameaçador, pondo a mão forte no braço dela. — Neste momento estou trabalhando naquela educação que eu lhe prometi. Já é tempo de você assistir a um rodeio; qualquer filho de Oklahoma com um dezesseis avos de sangue índio nas veias tem de ver ao menos um. — Mas eu... Ele aumentou a pressão no braço. — É melhor irmos nos despedir de Darlene e das meninas. Você não deve dormir muito tarde hoje, para estar em forma para o rodeio de amanhã. — É às vezes o show vai madrugada adentro, antes que esteja tudo terminado — Billy acrescentou. Os dois caminharam num silêncio de pedra para se despedirem das mulheres. Na volta, Jerome ainda a fez esperar, enquanto tecia os últimos comentários com os homens sobre o rodeio. Quando finalmente subiram na pick-up, ela explodiu: — Eu não posso acreditar numa coisa dessas! Eu estava contando voltar a Tulsa esta noite! Nós temos de voltar. Nunca vamos abrir aquela bendita loja se ficarmos aqui o tempo todo! Ele manobrou em silêncio, dando marcha-ré bem rápido, até chegar à estrada. Com gestos nervosos, mudou a marcha e acelerou. — Eu não me levantei e dei o fora no meio de uma visita para discutir sobre essa porcaria de loja — disse num tom controlado, que contrastava com a fúria de seu rosto. — Pois é melhor discutirmos essa droga de loja — ela rebateu. — É a questão mais importante sobre a qual poderíamos estar discutindo: como pô-la para funcionar e fazê-la render dinheiro! — Fazer dinheiro — ele repetiu, pensativo. — Essa é a coisa mais importante do mundo, hein? — Certo! — ela respondeu de modo apaixonado. — Talvez você não tenha notado Jerome, mas lucro é a primeira razão para alguém abrir um negócio. — Já percebi — ele retrucou com um sarcasmo que a pôs ainda mais brava. — Bem, se é assim que se sente, por que entrou nisso? — E, antes que ele respondesse, continuou: — Quaisquer que sejam as suas razões, as minhas são fazer da loja um sucesso. Tem de ser. Eu estou investindo toda a minha carreira nela. — Eu tenho vários anos de sangue e ossos quebrados investidos nela — ele disse, irritado. — Mas nem por isso pretendo deixar que um negócio tome conta de toda a minha vida. — Neste caso, não vejo nenhum problema. — Nancy rebateu sarcástica. — Já que até agora não tomou mais do que cinco minutos do seu tempo. Jerome pareceu respirar fundo antes de dizer: — Existem coisas mais importantes do que o sucesso. Muito mais — frisou. — Eu preciso estar com minha família e meus amigos. — Você acaba de estar com eles, pelo amor de Deus! — ela explodiu. — E não vejo razão para ficar enrolando o dia inteiro aí, só para vê-los de novo
nesse tal de rodeio. Afinal, Jerome, você não precisa se mudar para cá! — Preciso, sim — ele replicou naquele tom lacônico que ela tanto detestava. — É aqui que eu pertenço. — Bem, pois eu não! — Isso é fácil de perceber. Você foi ensinada a vida inteira que o dinheiro é o objetivo mais importante que se possa ter, e precisa estar num lugar onde possa pôr essa lição em prática. Pensando bem, você é a própria teoria do lucro personificada. — Eu não sou! — É sim. Arruinou um bom momento lá atrás. E a troco de quê? — Para tentar fazer a sua loja funcionar — disse, quase chorando de tanta raiva. — Eu só estava tentando fazer o meu trabalho, não tentando provar a importância do dinheiro. Quando saímos de Tulsa, eu não tinha a menor idéia de que ficaria fora por uma semana. — Bem, você pode ficar mais um dia. Amanhã eu pretendo me divertir com os meus amigos. — E eu quero voltar a Tulsa esta noite. Se não quer me levar, então me deixe num ponto de ônibus. Jerome não respondeu. — Tahlequah tem uma estação rodoviária, não tem? Ou um táxi? Eu vou pegar um táxi. Já estavam quase chegando ao ponto onde se abria a estradinha que levava para a cabana. — Jerome! Dê a volta! Ele reduziu e apertou o botão do controle remoto que abria o portão. — Me leve para a cidade nesse instante! — ordenou com a voz trêmula de raiva. Ele passou o portão, fechou-o e tornou a acelerar. — Não há nada que pudesse me fazer mais feliz — respondeu com pesada ironia. — Mas eu não viveria em paz sabendo que a abandonei para passar a noite toda sentada num banco de praça. — Não tem ônibus à noite? — Um ônibus. Acho que ele circula uma vez por dia, quando aparece. Assim que ele abriu a porta da cabana, Nancy entrou e foi direto para o telefone. Esticou o braço para pegar a lista telefônica na estante ao lado do aparelho, mas, com a raiva que estava, puxou com força demais, derrubando não apenas a lista, mas o que parecia uma quantidade infinita de papeizinhos e cartões de endereços. — Oh, não! — gemeu, desanimada. Curvou-se para recolher a bagunça e soltou o fone do ganho, completa-mente atrapalhada. Jerome foi ajudá-la, tomando a pesada lista de suas mãos. De repente, no meio de toda a confusão, uma voz forte e dominadora de mulher se fez ouvir, saindo do telefone. — Mas, ora querida, ela deve ter se casado quatro ou cinco vezes neste último ano — dizia a voz. — Linha cruzada — ele explicou, diante do olhar intrigado dela. E levantou-se para repor o fone no gancho. Mas, antes que pudesse fazê-lo, a mesma voz continuou impassível. — Aliás, eu falei para ela uma vez, bem na cara. Eu disse Mary Lou, pra
mim parece que não lhe importa quem seja o homem, contanto que respire e se mexa. Nancy olhou para o aparelho, aturdida, depois olhou para Jerome, que olhou para ela. E então, no meio da bagunça de papéis espalhados pelo chão, os dois explodiram numa gostosa gargalhada. Toda a raiva de instantes atrás desapareceu em meio às lágrimas que vertiam de tanto rir. —... Quem está aí? — a voz do telefone quis saber. — Eu perguntei... Sem sequer olhar para o aparelho, ele esticou o braço e desligou-o. O riso morrendo, e eles ficaram se olhando na casa silenciosa. — Você desligou justo na parte mais interessante — Nancy disse, rompendo o súbito silêncio. — Eu não sei como é que vou lhe dizer isso. — Jerome foi aproximando os lábios dos dela. — Mas eu não dou a menor importância para a vida sexual de Mary Lou. Só estou pensando na minha. Não havia mais raiva nem ressentimento, apenas duas bocas unidas num beijo que começou suave, hesitante, e foi ficando quente, apaixonado, sedento. Movidos por um desejo que não cessava de crescer, suas línguas se tocaram as mãos acariciando, seus corpos procurando o contato em casa milímetro de pele. Tentaram ir até o quarto, mas não foram além do sofá. Despiram-se com pressa e amaram-se com fúria. Levaram muito tempo inventando jogos e truques de amor. Conforme a noite foi avançando, foram percorrendo cada cômodo da casa. Equilibraram-se no sofá da sala, rolaram sobre a grande cama de casal do quarto de dormir, tomaram banho juntos, se esfregando com carícias lentas, brincando com a espuma e o sabonete escorregadio sobre a pele. Foram até a cozinha preparar um lanche, para saciar a fome causada por tanta loucura, e voltaram para o quarto, para comerem e beberem na cama, num festim que fazia lembrar o império romano em seu apogeu. Só muito mais tarde, já dentro da madrugada, exaustos e satisfeitos, abandonaram-se ao sono e adormeceram como crianças felizes, com um sorriso nos lábios.
CAPÍTULO IX Jerome parou mais ou menos no meio da minúscula arquibancada de madeira e se voltou para a arena de terra batida no centro. Conduziu Nancy a uma fileira de bancos. — Este aqui é um bom lugar; vai poder ver toda a ação — disse num tom
tão distraído e jovial que ela teve vontade de gritar. — Neste caso é melhor eu me mudar. Eu não quero ver toda a ação. Ele achou graça. — Lembra-se do que eu disse sobre atravessar a rua e ser atropelado? Pois estivemos em maior perigo dirigindo de casa até aqui do que vou estar nesta arena, daqui a pouco — afirmou. — Duvido! Ele balançou a cabeça e sorriu, estendendo a mão para acariciar-lhe os cabelos. Afastou uma mecha de seu rosto com terna preocupação. — Nancy, o perigo faz parte do jogo. A gente se acostuma com isso. — Talvez você, sim. O rosto dele se iluminou. — Eu até gosto. E isso era bem verdade, ela ponderou. Tinha sentido como ele foi ficando diferente a partir da hora do almoço, parecendo uma criança esperando a hora de abrir os presentes de Natal. — Só não vá se ferir — ela sussurrou enquanto Jerome lhe acariciava a face com o dorso da mão. — Eu não vou — reafirmou. — Você fique aqui e se acomode. Darlene e Angie devem aparecer por aqui logo; vão lhe fazer companhia. — Fez um último afago e foi embora. Nancy ficou calada, vendo-o afastar-se sem olhar para trás, até desaparecer por trás da murada de madeira. Depois, sentou-se e olhou a multidão em volta: crianças correndo para cima e para baixo, adultos escolhendo seus lugares, forrando os bancos com pedaços de pano e flanelas. Não avistou uma única pessoa conhecida. Mas, pensando bem, era melhor assim. Ela não estava mesmo com vontade de puxar conversa com ninguém, nem mesmo Darlene ou Angie. O dia anterior já tinha sido suficiente. A sombra da solidão desceu sobre ela mais uma vez. Jerome não era seu, afinal. Fazer amor, estar com ele por dois dias tinham-lhe dado essa sensação, como se Jerome lhe pertencesse. Mas um rodeio podia arrancá-lo dela do mesmo modo que sua família. E o pior é que essa solidão era muito maior e mais profunda do que a que sentia antes de tê-lo conhecido. Sim, a ausência da pessoa amada podia ser mil vezes pior do que apenas não amar a ninguém... — Oi! Nancy se virou para ver Darlene de pé ao seu lado, com Jesse, o garotinho que tinha pedido colo a Jerome no dia anterior, agarrando a sua perna. — Jerome disse que você estava aqui. — Oi, Darlene. — Afastou-se para lhe dar lugar. — Sente-se aqui. Eu estou um tanto ansiosa para ver a hora em que alguém vai despencar do cavalo ou ser chifrado por um touro. A irmã de Jerome se sentou e pôs o menino no colo, com quem Nancy brincou, fazendo festa. — Olá, Jesse. — Ao que ele respondeu com um baixar de olhos e um sorriso pouco entusiasmado. — Normalmente ninguém se machuca muito — Darlene disse consoladora. — Billy vem montando anos a fio e não foi parar no hospital mais do que duas
vezes. Nancy sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. — Mas Jerome foi chifrado uma vez... A outra assentiu com um gesto significativo. — Mas ele já montou muitos touros bravos depois desse acidente — disse com um sorriso tímido. — Ele vai estar bem. A conversa foi interrompida pelo início da música e pela entrada dos cavaleiros para a grande abertura. As duas mulheres voltaram sua atenção para a arena, mas Nancy mal via os cavalos amestrados galopando, nem as bandeiras coloridas levadas pelos cavaleiros. Jerome tinha avisado que a competição com os touros seria a última parte. Portanto, ela ia ter de ficar ali sentada naquele circo de horrores por duas longas horas antes de poder respirar aliviada sabendo que tudo tinha corrido bem. Olhou na direção das cocheiras, mas não o viu em lugar nenhum. Suspirou fundo. Devia ter voltado a Tulsa na noite anterior. Nem que tivesse tido de ir a pé. — Ei, Jerome! Você viu Darlene? A voz de Billy quebrou sua concentração. Parou os exercícios de alongamento e se endireitou. Viu o cunhado e p primo deste, Ray Pigeon, vindo em sua direção. Billy trazia um saco de pipocas, Ray, duas cervejas. Ofereceu uma a Jerome, quando chegaram mais perto. Ele recusou, balançando a cabeça. — Eu vou montar. — Preciso encontrar Darlene — Billy repetiu. — Esqueci de dar algum dinheiro a ela. E, a essa altura, Jesse já deve estar exigindo alguma coisa para comer. — Eu falei para ela ir ficar com Nancy — Jerome respondeu, indicando as arquibancadas com a cabeça. — Ela estava precisando de companhia. — Nancy? É esse o nome dela? — Ray quis saber. — Daquela mulher bonita que veio com você? É ela que está precisando de companhia? Jerome notou que ele já estava um tanto bêbado, e se virou para pegar às luvas de montar dentro da bolsa de couro. Não achou que valesse a pena discutir. — Não seja por isso — o outro continuou. — Eu ficarei muito feliz em me sentar com ela. Vi quando vocês chegaram, e acho que ela é a mulher mais bonita que apareceu por estas bandas nos últimos anos. — Bebeu um grande gole de cerveja. — E como é o sobrenome dela? — perguntou em voz alta. — Dante — Billy informou esperançoso de intimidá-lo. — Lembra-se de quando a gente trabalhava para o Dante Oil? Ela é gente daqueles Dante. — Uau! Você agora está jogando alto, hein, velho? — Ray insistiu. — Não se preocupe com isso — Jerome respondeu seco. Procurou ignorálo, cuidando de prosseguir com sua preparação. — Mas eu tenho de me preocupar — o bêbado continuou. — Você pode acabar se metendo em confusão numa situação dessas. Jerome lançou-lhe um olhar duro, mas Ray não percebeu, sorvendo outro gole da lata de cerveja. — É isso mesmo — prosseguiu em sua lengalenga irritante. — Melhor eu o ajudar. Nós, velhos rapazes do campo, temos de nos dar as mãos. Essas meninas mimadas da cidade são demais para um só agüentar. Elas vêm
procurando uma novidade para alegrar um pouco a vidinha chata que levam... A gente precisa dar mais do que elas vêm procurar... — Cale a boca! — Jerome disparou, fulminando Billy com o olhar. — Tire esse cretino daqui! O cunhado achou melhor obedecer, tomando o primo pelo braço. — Venha. Vai conversar com os laçadores de novilhos enquanto eu levo um dinheiro para Darlene. — Foi se afastando com o outro. — A gente se vê depois, Jerome. Boa sorte. — É, boa sorte — Ray ecoou embriagado. Olhou por cima do ombro. — Você vai precisar. Já está meio superado, agora. Jerome não respondeu. Procurou se concentrar, apagando aquele monte de besteiras da cabeça. Mas não conseguiu. Ray podia estar meio bêbado e roxo de inveja, mas não era estúpido. Procurou se lembrar de Nancy quando a tinha deixado na arquibancada, com o sol brilhando em seus cabelos cor de ébano. Parecia a mesma de sempre, mas havia alguma coisa diferente... uma certa tensão, como na casa de Darlene, na noite anterior. Acertou as luvas apertando-as bem nos pulsos. Ray estava certo; Nancy não pertencia àquele lugar. As palavras de Ray ecoavam em seus ouvidos. Diabos, ele não estava meio superado, como o outro havia dito. Estava, isso sim, completamente fora de si! Nancy alternava sua atenção entre o público em volta e a arena, onde novilhos eram derrubados, laçados e imobilizados, para delírio da multidão. Tomava pequenos goles da soda gelada que Billy tinha lhe comprado, mas mesmo sob um sol tão forte não era fácil engolir o líquido refrescante; seu estômago parecia ter um nó, e o medo mal a deixava respirar. O cunhado de Jerome já tinha ido embora, e Darlene permanecia sentada, embalando o pequeno Jesse, que dormia com a cabecinha apoiada em seu ombro. A índia não dissera mais uma palavra desde que chegara. Nancy se achava uma completa estranha no meio de tudo aquilo... Do mesmo modo como ficara deslocada no meio da família de Jerome. Ouviu-se de repente um baque surdo, seguido de um grande alarido. Quase engasgando de susto, Nancy se inclinou para frente para ver o que estava acontecendo. Um touro Brahma escoiceava a amurada de madeira que o continha, provocando sons e ruídos arrepiantes. Vários vaqueiros se ocupavam em manter a porteira fechada; o touro investiu contra um deles, colidindo com a porteira, causando furor na platéia. Nancy engoliu em seco, não querendo acreditar que aquele era o animal que Jerome ia montar. Não, não podia ser. Mas era. Ali estava ele, subindo por um dos lados do cercado. Sentiu o coração parar ao vê-lo chegar ao topo, com um pé de cada lado da cerca; um deles, a menos de um palmo dos chifres mortais do animal. Aquilo não podia ser verdade. Não podia estar mesmo acontecendo. Tinha de se levantar e sair dali. Não suportaria ficar sentada assistindo a tudo até o fim. Só que não conseguiu tirar os olhos da cena, o touro cinza-claro parecia-lhe um demônio. E não desviou o olhar nem mesmo quando Jerome pulou para dentro do cercado. De algum modo milagroso ele estava passando uma corda em volta do animal enfurecido, e então, de modo abrupto, subiu em cima de seu lombo, orientando outros dois homens que pareciam fazer os ajustes finais na corda. O touro saltava para todos os lados, colidindo contra o cercado,
ameaçando esmagar as pernas de Jerome contra as tábuas. Ela se levantou para tentar enxergar seu rosto. Mas o chapéu encobria quase toda a cabeça. Viu que ele se concentrava em ajustar a corda na palma das mãos... Nada mais no mundo parecia existir para ele naquele momento. A sensação que se tinha era a de que Jerome estava preso naquele cercado, condenado a permanecer em cima daquela massa fantástica de músculos e ossos. O locutor anunciou seu nome. Então ele enrolou a mão direita com toda a força na corda, ergueu o braço esquerdo... E de repente abaixou-o. À porteira se abriu e homem e animal voaram para dentro da arena. O touro avançou aos pulos, chegando perto do ponto da arquibancada onde Nancy se achava. Podia-se ouvir seus urros, ver a fúria assassina em seus olhos injetados. Ela mordeu o lábio inferior até quase feri-lo. Se Jerome caísse... Mas as grossas pernas dele se colaram ao dorso do animal, os joelhos aferrados às suas ancas, a cintura acompanhando os saltos bruscos, os baques causados pela batida dos cascos no chão de terra, a mão direita agarrada à corda como uma terena, o braço esquerdo voando alucinado acima do chapéu. Seu rosto refletia uma concentração total. Os oito segundos que durou o embate pareceram oito horas. Enquanto o animal ensandecido saltava com toda sua fúria, o tempo pareceu congelar-se para Nancy. Jerome soltou a última volta da corda em sua mão. Esperou pelo momento exato, e, então, flexionando o corpo contra o dorso do touro, projetou-se para o mais longe possível do animal. Caiu sentado e, antes que tivesse a chance de se pôr de pé, seu terrível adversário voltou-se e avançou os olhos flamejando ódio, a cabeça poderosa abaixada. Instintivamente Nancy gritou, rezando para que ao menos um dos palhaços de rodeio se colocasse entre os dois. Não houve tempo para isso, mas Jerome escapou rolando para o lado. Uma segunda investida parecia que ia atingi-lo antes que pudesse escapar. Cada fibra do corpo de Nancy congelou de terror, novo, mas, quando tudo parecia perdido, um dos palhaços conseguiu passar sua bandeira colorida na frente dos olhos do animal, distraindo-o. Jerome levantou-se, já senhor de si outra vez, bateu a poeira da calça protetora de couro, curvou-se para pegar o chapéu do chão, e voltou calmamente para a proteção do alambrado. O único sinal de que não se achava completamente alienado do resto do mundo era sua mão acenando em resposta à ovação do público. Nancy, no meio da massa eufórica, mantinha-se calada, mal ouvindo a gritaria toda. Também não percebia Dar Iene do mesmo modo silenciosa ao seu lado. Só pensava nele. Como podia fazer aquilo? E como é que ela suportava ficar ali, vendo-o brincar com a morte de uma maneira tão estúpida? Poderia suportar isso para o resto da vida? Lá embaixo, na arena, ele retornava para receber nova onda de aplausos. O touro já fora recolhido. Sua figura imponente se destacava em meio à poeira erguida. Ela tornou a olhá-lo. Poderia ser assim para sempre, pensou com um arrepio na espinha. Lágrimas quentes obscureceram sua visão. Sim, lá estava ele, acenando para o público como um rei, a seus súditos, com toda a nobreza do porte de um chefe Cherokee. Ela sentia agora o que havia sentido desde a primeira vez;
uma atração irresistível. Não, agora já era muito mais do que uma simples atração, agora ela o amava. À volta para Tulsa foi silenciosa. Jerome não estava com muita vontade de conversar; parecia ainda preso a um mundo distante e particular. Ela também não estava inclinada a falar. Apenas tentava silenciar a campainha que não cessava de soar dentro de sua cabeça. Procurava de todas as formas tirar algum sentido de toda a confusão criada pela avalanche de emoções conflitantes e assustadoras daqueles últimos dias. Não podia de modo algum ter se apaixonado por ele, disse a si mesma em desespero. Simplesmente não podia. Não havia nada em comum em seus modos de vida. Ela era uma estranha para a família dele, sempre seria. E não suportava essa sua profissão doida, onde a linha entre a vida e a morte parecia não existir. Que possibilidade havia de levarem adiante uma relação duradoura? Imersa em tais pensamentos, Nancy não teve mais do que uma vaga percepção do que ocorria lá fora quando abandonaram a estrada e entraram nos arrabaldes da cidade. Só percebeu com clareza onde estavam quando o viu virar na rua da loja. Ele ia levá-la ao seu apartamento. Sentiu um nó na garganta. Não agora. Não naquela noite. Ela precisava ir embora, afastar-se dele para que pudesse pensar em paz. Sim, amava-o, já não tinha mais dúvidas. Mas isso era ainda motivo mais forte para querer ficar sozinha. Precisava de espaço. Precisava de tempo. — Acho que me esqueci de dizer, mas eu preciso ir para casa agora — disse, procurando falar com naturalidade. — Afinal, já é quase uma da manhã. — Então não quer ir trabalhar? O que foi então toda essa confusão dos últimos dois dias sobre o quanto precisava voltar para a loja? — Seu tom era leve, mas seus olhos negros não estavam serenos. Ela tentou sorrir, mas seus lábios tremeram. Droga! Não queria aquele tipo de conversa. Não queria ouvir nada que recordasse os dois dias em que tinham se amado tanto... Amado? Ele realmente a amava? Não, ela não queria falar de nada que lembrasse qualquer acontecimento dos últimos dias. — Vou trabalhar amanhã — disse com voz trêmula. Jerome olhou-a em silêncio. Ela procurou alguma coisa para dizer, mas não encontrou nada. — Nancy... Por que ele fazia aquilo? Por que pronunciava seu nome de um jeito que só aumentava seu desejo de se atirar em seus braços? Bastaria tocá-la de leve e logo estariam se beijando, se acariciando; passariam a noite fazendo amor... E, quando o dia nascesse, ele iria embora. Partiria para arriscar a vida duas vezes ao dia, iria mergulhar naquele seu mundo particular e distante, onde não havia lugar para ela, nem ninguém. Iria para deixá-la só, mais só do que jamais estivera. Sentindo um imenso cansaço, ela fixou o olhar na fachada da loja, através do pára-brisa. — Jerome, eu realmente quero ir para casa sozinha esta noite — disse quase como um apelo. — Tem tantas coisas em que preciso pensar... Sinto-me tão confusa... — Ergueu os olhos para ele. — Você entende... Ele a observava, com a surpresa refletida em seus olhos. — Eu vou partir amanhã. Desta vez vou passar pelo menos um mês fora.
Ela não conseguiu responder. Queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas estava em pânico. Viu que ele a pressionava para dar uma resposta, e isso só fazia piorar sua situação. Então ele se aprumou, erguendo os ombros numa atitude orgulhosa. — Bem, certamente eu não pretendo implorar. — Engatou a marcha-ré e recuou a pick-up para dar meia-volta. — Eu não quero que me implore — ela gemeu. — Não é isso o que eu... — Não precisa se dar ao trabalho de explicar — interrompeu-a irritado. Pisou no acelerador e arrancou pela rua deserta. — Jerome, por favor, me ouça! Eu estou mesmo muito confusa neste momento, e preciso de um tempo para pensar. — As palavras agora brotavam soltas, numa desordem que espelhava o conflito de emoções que a atormentavam. Eu não estou segura nem mesmo sobre se devíamos continuar nos vendo depois que você... — Ah, é? Pois esta é mesmo uma ótima hora para tomar uma decisão dessas! — Fechou a cara de uma vez. — Agora você está de novo no seu mundo civilizado, e quer voltar para casa sozinha — disse com um profundo sarcasmo. — Você estava querendo isso desde ontem à noite, não é? Desde que teve de passar aquelas malditas horas com a minha família. Não estou certo? — Não! Isso não é verdade! — Não minta para mim, Nancy. — As palavras saíram devagar, num tom conto, como uma ameaça. — Eu vi como você ficou muda na casa de minha irmã. E hoje, no rodeio, você estava imóvel como uma estátua. — Eu estava assustada! Estava apavorada com a idéia de que você pudesse se machucar! Eu não podia nem respirar enquanto você ficava pulando que nem um louco em cima daquele animal selvagem. — Bem, para quem estava apavorada, com medo de que eu me ferisse, até que você não está tão preocupada comigo agora, afinal. Imagino que, assim que eu coloquei os meus pés no chão firme de novo, toda a excitação terminou, não é? Ela ficou vermelha de raiva e frustração. — A excitação não terminou! É muita, demais. É por isso que preciso de uma chance para... Ele sacudiu a cabeça, dando um sorriso curto de desprezo. — Como tenho sido estúpido! Eu já devia saber. — Já devia saber o quê? — Eu já devia ter aprendido a lição bem o bastante para não me fazer de idiota duas vezes. Já faz tempo que tive a chance de aprender que mulheres como você acreditam que são boas demais para o meu tipo de vida. Você está acostumada a grandes mansões, como a de sua mãe, a freqüentar clubes e festas elegantes. Está acostumada a desmontar um apartamento de luxo inteirinho só porque não gostou da cor da cozinha, ou sei lá o que mais. — Jerome! — ela exclamou atônita. — Isso não tem nada a ver com o problema. Ele fez uma curva fechada e entrou na viela que cruzava o amplo jardim até a entrada da mansão. Então parou e desligou o motor. Virou-se para ela com um olhar frio e impenetrável. — Acho que o que me enganou desta vez foi a sua bela e inocente
conversa sobre querer brincar de índio — fuzilou. — Muito bem, agora eu aprendi. Nunca mais vou cair numa conversa dessas outra vez. — Mas, Jerome, você não sabe... Sem deixá-la concluir, deu-lhe as costas e saltou. Contornou a pick-up e foi abrir a porta para ela descer. — Eu sei que a minha família não é boa o bastante para você, e que eu não sou bom o suficiente para os seus. Você não me enganou nem um minuto naquela noite no Chi Chi's. Fez de tudo para que o seu irmão não a visse junto comigo. Ela estava perplexa. — Meu Deus, você confundiu tudo! Eu não queria que você encontrasse Martin... — Eu sei que não queria — interrompeu-a incisivo, gesticulando para ela sair do carro. — Eu acabei de lhe dizer isso, lembra-se? Ela obedeceu, descendo como um zumbi, e foi subindo os degraus até a porta da frente, seguida por ele. Ainda tentou desfazer a confusão: — Jerome, por favor, ouça. Eu disse... — Você disse que nós não devíamos continuar nos encontrando — completou com frieza. — Não há nada que se possa fazer agora em relação ao nosso contrato na loja. Mas no que diz respeito às nossas vidas privadas, posso certamente passar sem você. Nancy chegou para o trabalho no dia seguinte junto com o nascer do sol. Mas, ao entrar na loja, em vez de ir para o escritório, seguiu em direção ao apartamento de Jerome. Tinha de falar com ele. E, desta vez, ia obrigá-lo a ouvir. Diante da porta, ergueu a mão para bater, mas a lembrança das duras palavras dele poucas horas antes a fizeram vacilar. Jerome tinha tirado suas próprias conclusões, e nem havia tentado compreendê-la... Mas tinha de entendê-la, pensou com firmeza. Era fundamental que chegassem a um acordo antes que ficassem um mês sem poder se falar. Ficar rolando na cama depois da briga tinha sido um verdadeiro inferno. Não havia como suportar quatro semanas longe dele, sabendo que estavam brigados. Um longo silêncio se passou depois que ela bateu. O som dos nós de seus dedos contra a madeira da porta ecoou pelo prédio vazio. Por um momento pensou que ele não estivesse em casa, mas então ouviu sua voz grave e sonora: — Está aberta. Girou a maçaneta e entrou. Ele estava deitado no sofá, à cabeça apoiada num braço, seu rosto moreno contrastando com a brancura dos lençóis. Não se moveu ao vê-la. — Eu preciso falar com você — ela disse. Ele continuou imóvel. Nancy avançou uns passos. Mais perto, pôde ver que ele também não tinha dormido; seus cabelos estavam despenteados, e seu aspecto não era dos melhores. — Jerome, não podemos passar um mês deste jeito. Precisamos chegar a um acordo qualquer antes que você vá embora. Ele pegou uma xícara de café quente que estava no chão, junto do sofá, e deu um gole, sem pressa.
— Já chegamos a um acordo. Por um instante ela teve sua visão presa àquele peito nu, surgindo com seus músculos bem delineados pela camisa entreaberta. Então voltou à realidade. — Não, não chegamos. Você fugiu. — Pode apostar que sim. Como você mesma lembrou, nós temos um muro de diferenças culturais nos separando. E já está mais do que na hora de reconhecermos isso. — Eu não disse nada disso. Você... — Você nem precisou abrir a boca para dizê-lo, Srta. Dante — ele zombou, sem piedade. — As expressões em seu rosto e o modo como agiu durante a nossa visita à "reserva" foram mais significativos do que um milhão de palavras. Ela se virou, determinada a não deixar que ele visse suas lágrimas. Caminhou para a porta, sabendo que a teimosia dele era uma barreira espessa demais para ser rompida. Porém, no último momento, quando já tinha a mão na maçaneta, voltou-se para dizer: — Você está errado. Não me importo com o que você acredita, eu te amo, Jerome Redfeather. Eu te amo! — disse isso e saiu, fechando a porta atrás de si, deixando um impassível Jerome vendo-a desaparecer. Nancy não seria capaz de dizer como tinha chegado até o escritório, mas lá passou a manhã inteira revirando a papelada, sentindo o sangue correr como gelo em suas veias. Orientou Dorothy e Zelda para que trabalhassem como se ela não estivesse lá. Trancou-se dentro de sua sala, procurando entender o que havia acontecido, enquanto folheava papéis que nem mesmo estava vendo. Procurou repassar o que havia se passado desde sua chegada a Tulsa. De repente, numa fração de segundo, tendo ela apenas pedido para ser deixada em casa, Jerome desabou com acusações sem nexo, chamando-a de esnobe, decidindo que as diferenças entre eles eram intransponíveis. E eram mesmo. Não havia uma única chance para ambos. Não enquanto Jerome se recusasse a falar com ela, e dizer-lhe o que tinha feito de tão horroroso para ser tratada assim. Uma buzina muito alta sobressaltou-a. Intrigada, foi olhar pela janela, e viu um táxi amarelo esperando em frente à entrada da loja. Pouco depois Jerome saía muito arrumado e calçando um par de botas que chegavam a brilhar de tão novas. Ele jogo sua bagagem no banco de trás e entrou em seguida, abaixandose com cuidado para não bater a cabeça no teto do carro. Parecia um cowboy frio e profissional, com lugares determinados a ir e compromissos importantes a cumprir. Certamente ele não estava andando de um lado para outro, perdido e angustiado por causa dela. Segundos depois o táxi partia, sumindo pela rua. Nancy afastou-se da janela, lutando contra as lágrimas que insistiam em marejar seus tristes olhos azuis. Bem, se ele era capaz de se comportar de modo tão despreocupado então ela também seria. A primeira coisa a fazer era parar de choramingar como uma menininha de quem roubaram um doce. Ia parar de uma vez por todas de chorar por esse tal de Jerome Redfeather, que, afinal, não estava fazendo nada mesmo para merecer sequer uma lágrima.
Voltou para sua escrivaninha, decidida a não prolongar aquela bobagem. Tinha de admitir que seu envolvimento temporário com ele houvesse sido uma experiência rica e interessante em sua vida, mas isso era tudo. Todo mundo sabia que não era muito inteligente levar adiante um envolvimento amoroso junto com uma relação profissional. De fato, era uma bênção que tudo tivesse terminado. Dali para frente poderia se dedicar à carreira e ser uma gerente por tempo integral. O telefone tocou, mas ela não atendeu, sentindo o pranto entalado na garganta. Após vinte e oito anos tinha encontrado o homem que podia fazê-la feliz. E ele havia partido.
CAPÍTULO X Nancy ocupou sua vaga no estacionamento, desligou o motor e retirou a chave da ignição. Mas, em vez de descer e se dirigir para o escritório, como vinha fazendo todos os dias nas últimas três semanas, apenas permaneceu sentada, sem se mover.
Olhou para a tabuleta de madeira onde estava o nome de "Jerome Redfeather", que balançava suavemente embalada pela brisa leve da manhã. Leu o nome várias vezes, tentando associá-lo à loja, e não ao homem. Tinha de esquecer que um dia tinham tido uma ligação pessoal. Jerome era dono do estabelecimento em que ela trabalhava e onde deveria se comportar apenas como funcionária, nada mais. Desviou o olhar para um ponto qualquer, forçando-se a pensar no dia que começava. Deixou um pouco aberto o vidro da janela, para que o carro não se transformasse mais tarde numa sauna. O ar já estava morno e pesado. Pela hora do almoço, quando o sol estivesse a pino, o asfalto derreteria sob o calor sufocante. Imaginou se isso afugentaria os fregueses mais tarde, quando já estivessem funcionando. Correu os olhos para uma placa onde se lia: "Abertura Hoje. Grande Festa Oficial de Inauguração Sexta-Feira, 16 de agosto. Venha ver o grupo de dança folclórica. Tome uma bebida gelada e... divirta-se montando o touro mecânico!" Droga. Precisava ligar de novo para confirmar o acordo com o touro mecânico. Por alguma razão ela vinha protelando isso. Mas, lá no fundo, sabia que a verdadeira razão era a de que não queria ter de pensar na festa de abertura. Jerome estaria lá e, no momento, ela era a última coisa com que Nancy queria se preocupar. Mal tinha sido capaz de falar com ele ao telefone, para combinar os detalhes da animada festa que ele desejava! Com certeza Jerome esperava que a inauguração fosse mesmo uma grande festa, com todos os seus amigos e parentes aparecendo de toda parte. E isso criaria um clima que ela não estava muito disposta a enfrentar. Afinal, sem tudo isso já não ia ser nada fácil agir como se nada houvesse existido entre eles. Nancy abriu a porta do carro e saiu. Havia um milhão de coisas a serem resolvidas naquele dia, e era melhor começar cedo. Estaria funcionando durante dez dias como este, antes da grande inauguração, e estes provavelmente seriam os dias mais ocupados de todos. A recepção de Zelda confirmou sua previsão. Após um rápido bom-dia, pôs-se a despejar uma lista interminável de recados e lembretes urgentes: — Dois dos novos balconistas telefonaram para dizer que mudaram de idéia e não querem mais o emprego, e Dorothy pediu para dizer que outro também não apareceu. Lawrence apareceu aqui há um minuto querendo saber se não temos mais prateleiras para expor chapéus. Não há espaço suficiente para fazer o arranjo que você tinha em mente. Nancy fez um esforço para que sua cabeça começasse a funcionar. — Há mais algumas no depósito. Lawrence devia saber disso. — Ele deve ter se esquecido — Zelda minimizou. — Todo mundo está tão excitado com a perspectiva de atender clientes que estão correndo como loucos para todos os lados. — Parou para fazer uma anotação no seu bloco já cheio. — Direi a ele. — É bom lembrá-lo também de que os fregueses vão começar a aparecer em uma hora e meia — Nancy disse com certo veneno. — Ele devia ter montado esse mostruário ontem à noite. A secretária assentiu e voltou à lista. — A Sra. Howard acabou de ligar. Vai estar aqui antes das nove para acertar o arranjo de plantas. Não vai poder pendurar os tapetes Navajos
porque ainda não foram entregues. Mas pediu para garantir a você de que vai tê-los antes da grande abertura. — Bem, é o que eu espero — ela murmurou. Zelda lhe lançou um rápido olhar divertido e voltou à carga: — Seu irmão ligou ontem à tarde, logo depois que você saiu. Vai vir mais para p fim do dia, hoje, com o suplemento para o seu programa de software. — Peça a ele para nos trazer um programa que faça vender botas — Nancy resmungou. — Se tivermos muitos fregueses hoje, estamos perdidos. — Eu já entrei em contato com a agência de empregos temporários — procurou acalmá-la. — Vai dar tudo certo. Não se preocupe. Nancy se repreendeu mentalmente. Se ela, que era a chefe, continuasse naquele estado de nervos, logo os funcionários estariam brigando com os fregueses. Dando a Zelda um sorriso mecânico, despediu-se e foi para sua sala. Tinha pela frente dez dias para esquecer Jerome e se concentrar no trabalho. — E a Sra. Kelly — Zelda prosseguiu antes que alcançasse a porta —, não consegui encontrá-la em casa ontem á noite, mas vou tentar de novo agora de manhã. — Não ligue muito cedo — Nancy preveniu. — Ela nunca se levanta antes do meio-dia. Se quisermos que ela compre o quadro, então não devemos acordá-la para falar de negócios. — Serviu-se de uma xícara de café e afundou na cadeira atrás da escrivaninha. — Que quadro é esse? É um dos que você trouxe? — A secretária sentouse na outra cadeira, aliviada ao ver que sua chefe já estava readquirindo o autocontrole. — Não. Embora também pertença à sob... — viu-se evitando pronunciar o nome de Jerome —... Angie Fourkiller. É um estudo de uma mãe com uma criança na Trilha das Lágrimas. Lucille Kelly possui uma coleção incrível de retratos de mães e filhos, reunindo pinturas do mundo tudo, e essa seria uma aquisição perfeita para seu acervo. — Vamos colocá-lo em exposição mesmo se a Sra. Kelly o comprar? — Espero que sim. Vou ligar para Angie hoje, depois que tiver falado com Lucille. Quero a pintura aqui pelo menos para a festa da inauguração. Se eu conseguir fazer com que Lucille se interesse e comente o quadro, a carreira de Angie ganhará um enorme impulso, além do que, atrairá muita gente para a loja. Enquanto fazia uma breve pausa para beber mais um pouco de café, pensava que assim viriam pessoas que ela conhecia gente com quem pudesse conversar, ajudando-a a não pensar em Jerome. Colocou a xícara vazia sobre a mesa e endireitou-se, resoluta. — Traga-me as cartas que datilografou ontem, Zelda — pediu. — E depois que assiná-las, vou estar na linha de frente. Quando a Sra. Howard chegar, me procure no departamento de artes. O dia foi tão agitado quanto ela havia previsto. E era bom estar com a mente ocupada com problemas práticos. Só parou de trabalhar diretamente com seu pessoal para resolver alguns problemas com Madge Howard e para ligar para Lucille e Angie. Lucille animou-se com a descrição que ela fez do quadro. Praticamente se comprometendo a adquiri-lo. Prometeu aparecer na grande abertura para vê-lo
e conhecer a artista. Ao desligar, Nancy sentiu que a carreira de Angie estava prestes a decolar. Afinal, Lucille e sua filha, Brenda Tate, eram ativas militantes de vários comitês envolvendo artes plásticas, e nunca hesitavam em indicar seus artistas favoritos. Foi animada e com isso em mente que discou o número da jovem artista. Mas Angie não se revelou tão feliz quanto ela esperava. Parecia mais... Contida, Nancy pensou, intrigada. Não, era quase como se sentisse ofendida. Ou assustada. — Você vendeu? — Bem, ainda não é uma coisa definitiva, mas a Sra. Kelly confia no meu julgamento, e o tema da pintura se encaixa na maravilhosa coleção que ela montou. Não tenho dúvidas de que, assim que vir a "Marcha Triunfal", vai querer fechar o negócio. A outra permaneceu calada. Nancy franziu o cenho. O que é que estava havendo com aquela moça? Dá primeira vez tinha ficado maravilhada em ver que ela tinha gostado do seu trabalho. Mas desde então vinha se mostrando bem pouco cooperativa. — Angie, essa pode ser a sua grande chance — disse com impaciência. — A Sra. Kelly pode atrair muitos outros colecionadores de porte... — Ela está colecionando quadros sobre a Trilha das Lágrimas? — Angie perguntou num tom mais fraco. — Não, Mães e crianças. A "Marcha Triunfal" é perfeita para ela. Zelda surgiu na porta e fez sinal de que tinha gente querendo vê-la. Ela assentiu. — Angie, preciso desligar agora. Preciso da pintura o mais cedo possível, no máximo até a próxima sexta-feira, para a grande inauguração; pode trazêla quando vier. Você virá para a festa, não é? Novo silêncio. — Angie, você vem? — Sim. — Ótimo. Vejo você lá, então! Zelda reapareceu antes que ela tivesse recolocado o fone no gancho. — Quem é Zelda? — É Lawrence. Ele disse que o aparelho do ar-condicionado acabou de pifar. Uma penosa maratona se seguiu, na tentativa de conseguir com que a assistência técnica dos aparelhos de ar condicionado pusessem o sistema de novo para funcionar. Quando tudo se acertou, não havia sobrado um número muito grande de fregueses. Os nervos da equipe estavam em frangalhos. Nancy andou pela loja, dizendo que tudo estava sob controle, procurando recuperar o ânimo de todos os funcionários, distribuindo elogios, comentários encorajadores e sorrisos. Tudo isso enquanto sentia que se tivesse de enfrentar mais um só problema, ou ignorar mais uma só recomendação de Jerome, sairia correndo e berrando pela rua. E, de fato, saiu para respirar por um minuto. — Bem, acho que é um ótimo dia para se tomar sol, mas com roupa e tudo não deve ser muito confortável. Ela se virou para dar com um sorridente e tranqüilo Martin. Tão impecável que dava a impressão de que os termômetros estavam marcando vinte e cinco, e não trinta e cinco graus. Estava tão absorta que não tinha reparado na
chegada de seu carro. — Mas o que há, afinal? — ele continuou brincando. — Primeiro dia da loja e você fica meditando do lado de fora, em vez de estar lá dentro vendendo? Ela tentou sorrir, sem muito sucesso. — Me pareceu uma boa idéia, na hora. Ele a tomou pelo braço. — Agora sei que o sol afetou você. Jamais a minha dedicada e profissional irmãzinha faria um comentário desses! Melhor me deixar levá-la de volta para o trabalho. O tom amigo do irmão fez com que sentisse vontade de abraçá-lo e chorar. — Você pode me levar para qualquer lugar, menos de volta para o trabalho — disse, numa tentativa de ser bem-humorada. Mas na última palavra sua voz se partiu num soluço infeliz. — Nancy? — segurou-a pelos ombros, forçando-a a encará-lo. Ela não teve coragem para sustentar o olhar do irmão. Toda a força e a alegria que a haviam sustentado nas últimas três semanas pareciam ter desaparecido. Era como se uma corda tensa a tivesse impulsionado ao trabalho desde a partida de Jerome. Enquanto se sobrecarregava de serviço, não tivera tempo de pensar. Bem, agora a loja estava funcionando. Seu irmão estava próximo, amigo e preocupado. A corda tensa tinha desaparecido. A solidão voltara para reclamar o seu lugar. Mas não podia desabafar com Martin. Não a respeito de Jerome. Naquele exato instante, sentia-se frágil demais para entrar numa discussão, ou ter de escutar o eterno "bem que eu te avisei". — Nancy. Mana. O que houve? O que aconteceu? Ela respirou fundo e ergueu os olhos para ele. — Oh, quase nada — disse com voz fraca. — Nós apenas começamos o dia com três vendedores faltando e duas prateleiras de chapéus a menos, e, a partir daí, tudo foi dando errado. O ar condicionado pifou e lá dentro ficou mais quente do que o Saara, o que fez com que os fregueses fossem embora. Os que iam passando viram as portas escancaradas e simplesmente continuaram andando. — Engoliu em seco. — Eu chamei a assistência técnica e... Ele a fez parar, fazendo-lhe uma careta bem-humorada. — Nunca, em meus trinta e sete anos de vida, eu vi alguém ficar tão perturbado por causa de um ar condicionado — disse num tom alegre, embora se pudesse perceber uma nota de preocupação. — Maninha, sinto que há alguma coisa que você não está querendo me dizer. Você está a ponto de se partir no meio. Ela fez menção de recuar. — Não. Eu estou bem. Só preciso sair um pouco. — Afastou um fio de cabelo do rosto, num gesto nervoso. — Acho que vou para casa. Por que não vem atrás com o seu carro e lá conversamos sobre o software, tomando uma limonada. — Tenho uma idéia melhor. Vamos até a minha casa e lhe darei um bom vinho branco gelado e um jantar. — Puxou-a para si num abraço. — Você vai adorar — prometeu. — O ar condicionado está funcionando em perfeitas condições e posso regulá-lo para quinze graus, se você quiser. Ela deu uma risada nervosa.
— Você me convenceu. Foi a melhor proposta que me fizeram hoje. Sentada à mesa da copa com um copo de vinho branco gelado nas mãos, ela ficou observando o irmão pôr ovos para ferver, retirar presunto e verduras da geladeira, além de várias frutas diferentes. Pensou em se oferecer para ajudar, mas mal tinha energia para continuar ali sentada. Martin pareceu ler seus pensamentos, e tratou de se adiantar, antes que ela dissesse qualquer coisa: — Não adianta nem tentar. Não há nada para você fazer — brincou, fingindo que ela tinha se oferecido. — Só fique sentadinha aí e organize suas idéias — disse por cima do ombro enquanto separava folhas de alface. — E, quando estiverem todas organizadinhas, ficarei feliz Em ouvi-las. Martin fez um ou outro comentário sobre o seu dia de trabalho ou seu jogging enquanto preparava a comida, mas na maior parte do tempo os dois mantiveram um silêncio tranqüilo e agradável. Sua companhia descontraída, mais o efeito relaxante do vinho fizeram com que Nancy tivesse suas resistências em falar de Jerome minadas lentamente. De tal modo ela foi se soltando, que só depois de começar a falar que se deu conta do que estava se passando. Contando o que a afligia, foi tentando encontrar a chave do mistério, a pista que explicasse por que Jerome tinha se voltado com tanta raiva contra ela, afastando-se completamente. Ao mesmo tempo, era confortador saber que seu irmão estava ali ao lado, ouvindo, com atenção e carinho, cada palavra dita. Quando chegou ao fim da narrativa, levantou a cabeça e viu que Martin a observava atento, imóvel ao lado do balcão onde as verduras permaneciam esquecidas. — Agora — ela concluiu com um suspiro —, você pode falar que me avisou. Você tinha toda a razão quando procurou me alertar no começo. Ele continuou quieto por um longo tempo, observando-a. Então balançou a cabeça devagar. — Agora sei o que estava errado. Ela arregalou os olhos sem entender mais nada. — Martin! Do que é que você está falando? — Estou falando de uma coisa que vai contra tudo o que eu disse antes. Na verdade, estou me oferecendo para dar um conselho melhor do que tudo o que eu disse antes. Quer ouvi-lo? Ela fez que sim. — Pare de ficar se lamuriando por aí e vá pegá-lo. Não deixe esse cara escapar. — Ir pegar... Jerome? — Isso mesmo! Não permita que tudo acabe do jeito que está. De repente, Nancy não sabia se sentia raiva, desespero, ou esperança. Afastou a esperança, revoltada contra a maneira volúvel com que Martin estava tratando seus sentimentos. — O que foi que aconteceu com aquela linda conversa sobre procurar alguém do meu próprio meio? — Bem, eu continuo pensando do mesmo modo. Acredito que é sempre melhor procurarmos alguém que tenha mais chances de nos compreender, compartilhar das nossas idéias e experiências. E no estado emocional em que você se encontrava, achei que não seria muito boa idéia se envolver com uma
pessoa tão diferente, com tantas possibilidades de complicação — ele fez uma pausa e pensou um segundo. — Mas acontece que a situação agora é outra. Não importa o que havia antes; o importante agora é que você o ama. E, quando isso acontece, maninha, o resto que vá para o diabo. Você já não tem mais escolha. — Ah, tenho sim. Tenho a escolha de esquecê-lo. Vou pôr a loja de pé, ficar o tempo necessário para que ela seja um sucesso e dar condições dela continuar sem mim. Farei isso contar no meu currículo, e depois partirei para o que quer que apareça a seguir na minha vida. Ele balançou a cabeça, seguro. — Você nunca vai esquecê-lo. — Contornou o balcão que separava a copa da cozinha e foi até ela. — Nancy, eu já tive casos com muitas mulheres. Mas nunca senti por nenhuma delas o que é óbvio que você está sentindo. — Tomou-lhe a mão, afetuoso. — Bem que eu gostaria de poder. Mana, o amor não é algo que aparece a todo o momento. Não desista agora. Talvez nunca mais tenha outra chance. — Mas nós somos tão diferentes. Parece que não conseguimos nos comunicar. Você me preveniu no começo, e agora vejo que estava certo. — Vamos, vamos, onde está a minha irmã tão forte e decidida? Vocês dois vão acabar conseguindo se entender. É só não desistir. Ela ficou avaliando em silêncio as palavras do irmão. Duas grossas lágrimas rolaram de seus olhos azuis. — Não, não, Martin. Ele é diferente. É um índio: nunca revela seus sentimentos. Guarda tudo trancado dentro de si. Martin fez uma cara de fingido horror. — Não! Quer dizer que ele é o próprio estereótipo dos Cherokee? — Eu não estou estereotipando, é a verdade. Ele se recusa a falar sobre o que sente. Nunca me diz por que de repente fica frio e distante comigo. Esse desprezo pelo meu esnobismo, ou sei lá como quer que o chame, é o primeiro sentimento que me revela. Aliás, é a única emoção que ele demonstrou para mim até agora! Ele a olhou incrédulo, fazendo-a corar. — Bem, em palavras, eu quero dizer. Ele nunca disse que me ama. — Bem, isso às vezes leva algum tempo. Ela deu de ombros, sem esperança. — É, ou às vezes não acontece nunca — Talvez você tenha de lhe dizer primeiro que o ama. — Eu já disse — ela confessou. — Mas estava escrito na cara dele que não acreditava. — Diga de novo. Faça-o acreditar. Nancy olhou para o irmão numa interrogação muda, como poderia fazê-lo crer? — Tudo o que sei é que, se um dia eu visse no olhar de uma mulher o que vejo no seu quando fala dele, eu estaria fisgado. Ele também vai ser. Ela se endireitou na cadeira, pondo-se atenta. A minúscula e teimosa esperança do começo estava crescendo. Martin foi até o balcão e puxou um tamborete para a mesa, junto dela. — Tente ver a coisa assim, mana. Você o deixou bem para baixo, quando
pediu para ele deixá-la em casa. Sei que você só estava precisando de um tempo para pôr as idéias em ordem, mas para Jerome soou como uma clara e definitiva rejeição. — Mas eu não quis dizer... — Ele não sabe o que você quis dizer — interrompeu-a segurando-lhe a mão. — Afinal, você disse que estava pensando em não tornar a vê-lo de novo. Ela assentiu, desanimada. — Eu devia cortar fora a minha língua. Martin sorriu. — Por que não a usa para se explicar? Você é quem vai ter de dar o primeiro passo, agora. — Eu não posso. Não posso mesmo. Ele girou na banqueta e alcançou a garrafa de vinho. — O que você não pode é continuar neste estado — declarou com simplicidade. — E você sabe disso. Agora, beba mais um copo de vinho e escute, porque eu vou lhe dizer exatamente o que deve fazer. Ela ouviu o irmão com toda a atenção, sentindo a esperança crescer mais um pouco. Quatro semanas já haviam se passado, e a raiva devia estar amenizada. Mas, mais tarde, já em casa, de banho tomado e pronta para ir se deitar, ela ainda não tinha a menor idéia de como realmente iria reconquistá-lo. O dia da véspera da grande inauguração foi muito mais tranqüilo do que ela esperava. De fato, tudo estava sob controle. No fundo, Nancy detestava isso. Sentia falta de atividade, de alguma ocupação para aliviar a ansiedade da espera pelo retorno de Jerome. Ele chegaria a uma hora qualquer daquela noite. Teria coragem de falar com ele como tinha dito a Martin que ia fazer? Decidida a ir até o fim, passeou pela loja, vistoriando cada departamento. Aproveitou para bater um papo com Madge, que estava lá fixando as tapeçarias Navajo, que finalmente tinham chegado. Depois, voltou para o escritório. Cinco minutos mais tarde, Jerome entrou como um furacão. — Que diabos está acontecendo aqui? Ela olhou-o, o coração apertado só de vê-lo ali, bloqueando o vão da porta com o corpo. Ainda trazia a bagagem pendurada no ombro. — Eu acabo de falar com uma mulher que está pendurando nas paredes tapeçarias no valor de cinqüenta mil dólares — disse, quase fora de si. — Ela se apresentou como Madge Howard, nossa decoradora de interiores. — Então, sem dúvida, é isso exatamente o que ela é — Nancy respondeu sarcástica. Ele fulminou-a com o olhar avançado pela sala como um general à frente de suas tropas. — O que eu quero saber é como ela foi contratada para trabalhar aqui. Nós concordamos, faz muito tempo, que não havia dinheiro no orçamento para um decorador de interiores. — Não, não concordamos. Você disse isso. Eu disse que ia examinar o orçamento para ver se conseguia descobrir uma sobra, e descobri. — Não é possível. Não havia nada. Ela respirou fundo e se preparou. Já podia dizer, agora. O problema no aparelho de ar-condicionado já tinha sido superado sem nenhum estrago no orçamento, e a quantia reservada para a manutenção deveria durar um ano. — Eu tirei da manutenção.
— Da manutenção?! — Ele largou a bagagem no chão e afundou na cadeira para visitas, apalermado. — De todas as idéias cretinas e sem sentido... Não pode tirar da manutenção! E se houver uma emergência? — Já tivemos uma. O sistema de ar-condicionado pifou, mas a garantia cobriu quase tudo. Praticamente todos os outros equipamentos estão cobertos pela garantia, já que são todos novos. — E se quebrar alguma coisa que não está na garantia? O que pretende fazer? — quis saber com uma arrogância que acabou por destruir o autocontrole que ela vinha mantendo. — Vou pagar do meu próprio bolso! — disse com impaciência. Ele ficou pálido. — Deixe o seu dinheiro fora disto — disse. — Eu devia saber que contratar para gerente uma mocinha mimada que nunca soube o que é um orçamento limitado só poderia acabar dando nisto. — Nervoso, levantou-se e foi até a janela. — Não consigo entender como foi que progrediu tanto em sua carreira em São Francisco. — Eu progredi tanto porque sou boa no que faço e porque trabalhei como uma escrava — ela respondeu, irritada. — Você chegou onde chegou porque seu sobrenome é Dante. E a influência da sua família se espalha por todo o país. Pessoas como você estão sempre protegidas. —: Virou-se e caminhou até ela. — E gente como você acha que tudo pode ser resolvido com dinheiro. Aprendi isso quando me formei no colégio e entrei para a faculdade com a garota que eu amava. Eu achava que íamos nos casar. Mas os pais dela não queriam um índio como genro. Consertaram esse pequeno problema dando a ela um Jaguar e uma viagem para a Europa, também se ofereceram para cobrir todas as despesas do meu curso universitário. Ela aceitou; eu não. Passado um silêncio mortal, ele deu dois largos passos que o levaram até a bagagem. — Com você é a mesma coisa, Nancy. Você e Diana Medford poderiam ser gêmeas. — Encarou-a, a raiva transparecendo nos olhos negros. — Jamais pague qualquer coisa desta loja com o seu dinheiro — preveniu. — Eu não pretendo ficar em dívida com você de jeito nenhum. Ela viu a porta bater, e Jerome desapareceu. Sentia-se tão machucada como se tivesse apanhado. Não, Martin estava enganado. Jerome já não podia ser reconquistado. Pensou em suas palavras: "Gente como você..." Passou os dedos pelos cabelos, sentindo que a cabeça poderia explodir. Nunca, desde o começo, ela tinha tido uma chance de reconquistá-lo. CAPÍTULO XI — Estão esperando por você lá na frente — Zelda anunciou animada, procurando transmitir um pouco de entusiasmo a Nancy. — O Sr. Redfeather pediu para lhe dizer que a equipe que vai fazer a gravação do vídeo está aqui. Ela sentiu apertar o nó no estômago. Não queria sair dali. Não queria conversar com ninguém, muito menos bancar a gerente charmosa e competente de uma grande loja diante das lentes de uma câmera. E, acima de tudo, não se sentia em condições de encarar Jerome.
— Srta. Dante? — não obtendo resposta, Zelda resolveu tentar com mais intimidade: — Nancy? Ela suspirou. — Estarei lá num minuto, Zelda. Quase já terminei por aqui. — Recuou dois passos e examinou o arranjo de uma sela colocada sobre um tapete Navajo, com cestos indígenas ao redor. Completavam o mostruário potes de barro e artesanatos com penas coloridas, de feitura Cherokee. — Nossa, ficou lindo! — a secretária exclamou em aprovação. — E você também. Sua idéia de usar esse vestido índio foi maravilhosa; não tem jeito melhor de exibi-lo. — Obrigada. Só não sei se estou me sentindo tão bem assim. — Você devia se sentir a modelo do ano — Zelda afirmou. Aproximou-se para olhar de perto o enfeite de contas que Molly havia bordado no decote do vestido. — É uma maravilha! Quantos mais conseguiu? — Só este, até agora. Molly ainda não terminou os outros. — Bem, neste caso, se alguém quiser comprá-lo hoje, não venda. Diga que não está à venda até eu economizar dinheiro bastante para comprá-lo. Apesar de tensa, Nancy não pôde deixar de achar graça. — Zelda, estamos tentando vender coisas, e não guardá-las. — Voltou sua atenção novamente para o arranjo, procurando uma melhor posição para um cesto. A secretária consultou o relógio. — Odeio dizer isso, mas... — Eu sei. Já estou indo — pegou a prancheta e passou os olhos no que estava anotado. — Zelda, poderia ligar para Angie Fourkiller e perguntar a que horas ela está pensando em aparecer? Quero estar segura de que a pintura estará aqui quando Lucille chegar para vê-la. — Está certo. — E venha me avisar quando trouxerem o touro mecânico, sim? — Pode deixar — Zelda assegurou, saindo na direção do escritório. Nancy examinou o arranjo mais uma vez, querendo ter certeza de que estava perfeito. Ela mesma o havia idealizado de manhã a despeito dos inúmeros detalhes que tinham surgido para acertar. Sabia que Madge e a excelente vitrinista da loja iriam odiá-la por isso, mas ela não tinha podido resistir ao desejo de fazer o seu próprio arranjo. Na verdade, admitiu para si, queria fazer algo que provasse para aquele homem estúpido e arrogante, como tinha conseguido conceito em sua carreira. Partiu para a porta da frente, mas no último instante tomou o caminho do toalete. Precisava dar uma ajeitada à roupa e dar uma olhada no rosto. Afinal, ia ser filmada antes que a manhã terminasse. Além disso, tinha de se recompor por dentro. Usara de todos os artifícios possíveis para evitar Jerome, desde a discussão no escritório, mas agora não poderia mais escapar, e queria estar inteira quando se encontrassem. Logo, ambos iam ter de representar o papel de alegres anfitriões para os fregueses e amigos que apareceriam para a festa da inauguração oficial. Nancy se olhou no espelho. Parecia uma índia perfeita. Tinha ficado muito bonita usando o vestido de Molly, e um par de mocassins de camurça combinando. Achou que o aspecto externo até que não estava mal; o problema era a raiva que fervia por dentro. Suspirou. Ia dar tudo certo, tratou de se
convencer. Por fim, com uma última olhada no espelho, criou coragem e saiu. Já havia feito todo o possível, e estava pronta para a equipe de gravação. E para Jerome. Apesar de todo o exercício de concentração feito instantes atrás, a visão dele, andando inquieto na frente da loja, fez seu pulso acelerar. Estava bonito e elegante, como sempre, com sua roupa nova de cowboy, com chapéu e botas. Quando ela apareceu, Jerome examinou de alto a baixo suas roupas, mas não fez nenhum comentário. — Bom dia — foi tudo o que disse, num tom formal. Apesar de magoada, Nancy deu um jeito de responder no mesmo tom: — Bom dia — e tratou de se dirigir ao diretor de propaganda, Virgil Fox: — Oi! Como tem passado? — Muito bem! — ele respondeu com a alegria exagerada que era sua marca registrada. — Hoje é um dia fabuloso! Agora, queremos algumas tomadas de vocês dois abrindo as portas da frente — explicou. — E talvez mais tarde, você em cima de uma das charretes — disse, referindo-se às charretes alugadas para os convidados darem uma volta, se quisessem. — Com a quantidade de gente que vai aparecer aqui hoje, vamos conseguir material para excelentes comerciais. Nancy teve de lutar para não permitir que o desânimo se apoderasse dela, enquanto o diretor ia dando os detalhes do que estava planejando. Depois de tomada, ela seria forçada a se aproximar cada vez mais de Jerome. Não ia ser nada fácil escapar. O único consolo, se é que havia algum, era que toda vez que estivessem juntos haveria um monte de pessoas em volta. Sob hipótese alguma desejava estar a sós com ele. Mas, para desespero do seu amor próprio, no minuto seguinte já estava desejando poder ficar junto de Jerome em algum lugar solitário. Poderia ser em sua cabana, ou qualquer outro lugar onde pudessem se afastar do mundo e, onde ela tivesse a chance de fazê-lo esquecer Diana Medford e pensar apenas em Nancy Dante. Estavam de pé, bem juntos, sob o comando de Virgil. Chegava a ser insuportável a ânsia de tocá-lo, de pedir que a tomasse nos braços e a beijasse como em tantas outras vezes. Então o simpático diretor pediu a Jerome que olhasse para ela. Ele obedeceu; um discreto sorriso curvando os cantos dos lábios. — Está mesmo se empenhando nesse teatro, hein? — disse entre dentes, indicando seu vestido com um gesto rápido. — Nada de salto alto ou maquilagem pesada, não é? Parece apenas uma simples mulher do povo participando desta alegre ocasião, não é? O desejo de Nancy foi num segundo substituído por uma raiva intensa. — Tive uma nova idéia para fazer desta loja um sucesso, — ela disse com sarcasmo. — Agora resolvi explorar a parte índia do meu sangue, em vez do meu sobrenome. É só para acrescentar algo diferente à minha carreira. Fica entediante, às vezes. — Contradizer as ordens do patrão também é um método para quebrar o tédio? — Eu não contradisse as suas ordens. Fizemos um acordo. Se ao menos parar e pensar...
— Olhem-se e sorriam — o diretor os interrompeu, alegre. — Grande! Agora, Nancy, se nos der a honra de cortar a fita inaugural... Ela cumpriu o resto das formalidades ao lado de Jerome, mas não houve outra oportunidade para conversarem. Alguns dos convidados especiais já haviam chegado inclusive o repórter responsável pela página de economia do jornal vespertino da cidade, e todos entraram para conhecer a loja, tomar café com canela e saborear canapés. Já estavam terminando de responder a última pergunta da entrevista, quando Martin chegou. — Eu quase não reconheci você — disse, tomando a irmã pela mão e fazendo-a dar uma volta. — Por um momento estive certo de que era uma Sacajawea ou uma Pocahontas. — Nenhum dos dois nomes é Cherokee — Jerome disse, despedindo-se do repórter e dando a mão a Martin. — Como vai? — Bem — Martin sorriu de modo amistoso. — Está lembrado de Martin, meu irmão? — Nancy perguntou. — É claro — Jerome confirmou, procurando não revelar que se recordava bem de como ela tentara evitar que se conhecessem. — Nancy disse que você pratica corrida — disse com cordialidade. — Qual é o seu tempo? Aquela pergunta deu início a uma acalorada discussão sobre tempos, lugares para correr, métodos de treinamento, dietas e sapatos de corrida. Ela ficou parada, escutando, mal podendo acreditar com os dois estavam se entendendo. Quando Jerome mencionou que muitos cowboys de rodeio que conhecia praticavam ioga como preparação para atuarem, Martin se mostrou fascinado e logo estavam especulando se não traria vantagens para a prática da corrida também. Teriam continuado o dia todo, ela pensou se Virgil não aparecesse e requisitasse a presença de Jerome. — Acho que foi bom termos sido interrompidos — Martin comentou, consultando o relógio. Já ia quase me esquecendo de que preciso estar do outro lado da cidade daqui a meia hora. — Oh, eu gostaria que você não precisasse ir. Ainda nem tivemos uma chance de conversar — Nancy disse decepcionada. — Logo vamos poder bater um bom papo. — Tomou-a pelo braço. — Venha, acompanhe-me até a saída e eu lhe direi que sujeito legal é esse seu homem. Ela acompanhou o irmão através da multidão que já se formava sem se sentir muito animada. "Meu homem" pensou com ironia. Se ao menos ele soubesse! — Ele é um grande sujeito — Martin disse, segurando-lhe as duas mãos, quando saíram para a rua. — Gostei dele. Agora estou entendendo por que você o ama. Ela sentiu a garganta seca. Fez um enorme esforço para conseguir dizer: — Eu gostaria de não amá-lo tanto assim. — Vocês ainda não tiveram uma chance de ficar sozinhos? — Não. — Nancy queria contar toda a discussão que tinha com Jerome, mas não havia tempo. Seu irmão tinha um compromisso, e ela precisava se controlar para agüentar o resto do dia. E um rosto manchado de lágrimas não seria a melhor maneira de conseguir isso.
— Bem, tenho certeza de que se entenderão — assegurou confiante, apertando-lhe as mãos como encorajamento, antes de entrar no carro e fechar a porta. — Veja as coisas desse modo, mana: comigo como seu irmão e Jerome como seu favorito, você não pode se dar mal. Qualquer um pode ver que tem bom gosto. Apesar do desânimo, ela conseguiu sorrir. — Não sei não, pelo que vi você se entendeu com ele muito melhor do que eu. Não quer me ensinar o seu segredo? — Você não precisa de que lhe ensine nada — ele afirmou. — É só esperar o momento certo e não desistir. — Deu a partida, e ela chegou mais perto. — Martin, ele sequer me deu uma chance para tentar... — A voz lhe faltou, e a frase morreu na garganta. O sorriso dele sumiu, substituído por uma expressão de pena. — Nancy, lembre-se do que eu lhe disse e não desanime — disse com ênfase. — Você o ama, e ele tem de ficar sabendo disso. Sei que você vai conseguir convencê-lo. A minha irmãzinha sempre consegue o que quer. — Espero que sim — ela suspirou. — Você consegue — ele repetiu. — Tenho fé absoluta em você. Emocionada, ela lhe apertou a mão, como se quisesse absorver um pouco daquela certeza. — É melhor você ir, senão vai se atrasar — disse. — Obrigada pelas palavras de incentivo. — Não tem de quê — Martin sorriu. — Estarei esperando pelas notícias de progresso. Já quase fora do estacionamento, antes de seguir pela rua, ele ainda acenou um adeus. Depois desapareceu no meio do trânsito. Jerome estava lá dentro, segurando uma xícara de café nas mãos enquanto conversava com um homem trajado com finas roupas do oeste, a quem Nancy reconheceu como um proeminente rancheiro local, o Sr. Web Talliaferro. Alguns passos atrás, aceitando um café do garçom, estava uma loira, que, ao se virar, ela reconheceu como Brenda Tate. — Nancy! — Brenda exclamou com sua voz aguda, sobressaltando Jerome e o Sr. Web. Correu para cumprimentá-la. — Mamãe vai aparecer mais tarde. Eu queria vir com ela, mas tenho uma reunião do Comitê de Artes depois, e não houve jeito de acertarmos os horários. — Estou feliz que tenha vindo não importa que hora seja — Nancy disse. — É muito bom ver você de novo. — Eu digo o mesmo! Recuou um passo para examiná-la de alto a baixo, reparando em cada detalhe. — Devo dizer que você anda um tanto diferente hoje em dia — comentou. — Imagino que sim. Não me visto assim todos os dias, mas posso vir a fazê-lo se conseguir um desses vestidos para mim. É a roupa mais bonita e confortável que já usei. — Quer dizer que esse aí não é seu? Também estão vendendo essas roupas aqui? — Isso mesmo. Mas vamos contar com um estoque muito limitado. O trabalho é feito a mão, assim como o bordado, por isso, a mulher que os faz não pode fabricá-los muito depressa. Brenda deu uma risada.
— Sim, imagino, e ela provavelmente não se apressa demais, também. Todos nós já ouvimos as piadas sobre o conceito Navajo de tempo. — Ela é Cherokee. — Está bem, então sobre o conceito Cherokee de tempo. Nancy sentiu Jerome aproximar-se com discrição, sem parar de conversar com o rancheiro. A palavra Cherokee devia ter atraído sua atenção. O marchand bebeu mais um pouco de café, ainda avaliando o vestido. — Bem, quem sabe? O estilo índio pode estar voltando. Você talvez esteja justo na vanguarda de uma nova moda — disse em tom de brincadeira. — Talvez eu esteja — Nancy retrucou seca. Pensou numa mudança de assunto. — Não gostaria que eu a levasse para conhecer a loja? A decoração ficou a cargo de Madge Howard, e ela fez um trabalho incrível. — Oh, eu adoraria, mas não estou com tempo para olhar botas, selas, jeans e cordas e sei lá mais o quê — esquivou-se. — Eu só vim até aqui para dar uma olhada nessa pintura que você andou comentando com mamãe. Ela está tão animada com a possibilidade de descobrir um novo talento índio bem debaixo dos nossos narizes! — Oh, Brenda, lamento. Mas a pintura ainda não chegou. Estamos esperando que seja entregue por volta da hora do almoço — Nancy se desculpou, repreendendo-se por não ter ligado outra vez, à noite, pedindo para Angie vir mais cedo. Se Brenda gostasse do quadro, falaria a respeito do trabalho naquele mesmo dia, na reunião do Comitê de Artes. A outra não conseguiu esconder o desapontamento. Consultou o relógio. — Oh, eu não posso mesmo esperar até tão tarde — disse. — Depois do Comitê, vou me encontrar com Margareth para começar a organizar o Baile da Ópera. Você se lembra de Margareth Blake, não? — Sim. Como ela está? — Está ótima! — Pôs a xícara vazia em cima de um balcão. — Gostaríamos que viesse almoçar conosco um dia desses. E precisamos envolver você com os comitês e outras atividades também — afirmou pensativa. — Mamãe me disse que você voltou para ficar. Por que não me deixa indicar o seu nome para... — Oh, Brenda, não posso. Hoje é um exemplo perfeito. Todas vocês vão se reunir de tarde, e eu vou ter de ficar cuidando da loja. — Vai ter de ficar? — a amiga perguntou, incrédula. Desconfortável, Nancy tentou se afastar um pouco de Jerome. Ele não precisava de mais nenhuma demonstração de que era a "mocinha mimada" que imaginava. — Eu gosto de trabalhar, Brenda — disse com naturalidade. — Minha carreira... — Mas estou falando de vida social! — a outra exclamou com sua voz aguda. — Você sempre colocou sua carreira à frente de todo o resto, e isso não é bom para você! Tem sido uma reclusa desde que voltou a Tulsa. Nunca foi vista no clube... Um grupo de fregueses esbarrou em Brenda, interrompendo-as. Nancy agradeceu aos céus a chance de dar uma olhada na direção de Jerome. Ele estava mais perto do que ela suspeitara, ainda com o Sr. Web. E pareciam estar mais observando que conversando. Para seu alívio, viu Zelda surgir apressada com um recado, para ele. De
onde estava Nancy só conseguiu ouvir a expressão "lá fora". Ótimo, pensou, isso vai manter seus ouvidos longe do alcance da língua afiada de Brenda. Em seguida deu um jeito de escutar os bem-intencionados conselhos da amiga, concordando em almoçar com ela e Margareth numa data qualquer, não muito bem definida. Depois a conduziu até a saída e respirou aliviada quando a viu desaparecer. Livre das inconveniências de Brenda gastou um tempo andando pela loja, verificando se nenhum dos empregados estava precisando de ajuda. Descobriu que tudo ia bem. Quando se achava no departamento de arte, torcendo para que Angie chegasse com a pintura antes que Lucille Kelly aparecesse, foi encontrada por Zelda. — O homem das charretes chegou. Está lá na frente — anunciou. Nancy agradeceu o recado e apressou-se em sair. Queria se certificar de que o charreteiro havia compreendido direito o que ela queria. Também ia procurar Virgil para fazer algumas tomadas de crianças e fregueses dando umas voltas e acariciando os cavalos. Isso daria material para uma propaganda excelente. Aliás, se a idéia das charretes fizesse sucesso, pretendia providenciar para que ficassem à disposição da loja todos os dias. Falou com o charreteiro, e acertaram os detalhes, como o número de passageiros e a distância de cada passeio. Ele se mostrou ansioso para começar a trabalhar, então ela foi ajudar Dorothy a organizar uma fila com a multidão de crianças já loucas para dar uma volta. As duas charretes contratadas mal haviam saído para o primeiro passeio, quando Jerome apareceu. — Preciso falar com você — disse com rispidez. — Venha até aqui. Ela o encarou. — O que há com você? Não está vendo que Dorothy precisa de ajuda? — Ela que chame outra pessoa para ajudá-la — Jerome insistiu com impaciência. — Esqueça-a e me escute: quando vir Angie, não diga uma palavra sobre a "Marcha Triunfal". Nancy encarou-o sem entender nada. — Por que não? Do que é que está falando? Ela está aqui? Trouxe a pintura? — Ela está aqui, mas não trouxe o quadro. Está no carro, chorando porque não tem coragem de encarar você. — Eu? — perguntou atônita. — Mas por quê? — Ela disse que você pediu a Zelda para ligar de manhã para lembrá-la de trazer a pintura. E que já havia ligado várias vezes antes. Nancy, a menina não quer vender o quadro, portanto, pare de aborrecê-la com o assunto! Ela não conseguia acreditar no que tinha acabado de ouvir. — Eu não tenho estado aborrecendo ninguém! Ela concordou em vendê-lo. Jerome, ela nunca disse uma palavra quanto a querer ficar com o quadro! — Pois ela quer. E tem todo o direito de ficar. Não toque no assunto de novo. — Mas por quê? Por que me enrolou desse jeito se nunca teve a intenção de vendê-lo? — Por que... Um grupo de homens surgiu aos brados, fazendo uma algazarra que superava os instrumentos da banda de música contratada para o evento.
— Eu explico depois — Jerome disse um tanto brusco. — Vem vindo um pessoal que preciso ver. — Deu meia-volta e já ia se afastando quando virou e disse: —. Não pergunte nada a Angie. Eu explico mais tarde. Ela ficou observando-o recepcionar quatro ou cinco jovens cowboys, distribuindo vigorosos apertos de mão. — Ei, Redfeather! — um deles gritou. — Que tipo de lugar é este, afinal? Você dá crédito para vaqueiros fracassados e em fim de carreira como o velho Kevin, aqui? — Pode apostar — Jerome respondeu com entusiasmo. — Tudo o que ele precisa fazer é assinar um papel me dando direito à metade dos prêmios que ganhar. Uma gargalhada generalizada acompanhou a piada. — Então você vai falir em três tempos — outro gritou. — Porque metade de nada é nada! De longe, Nancy observava, sentindo uma enorme onda de desânimo. Como ele havia se transformado! Como a voz fria e o olhar duro tinham desaparecido tão logo ele lhe dera as costas! Não, nunca mais Jerome estaria aberto para ela, para ouvi-la de verdade. Mas teria de falar com ela, pensou. E ia ter de explicar direitinho, detalhe por detalhe, o que estava acontecendo com Angie e a pintura. Essa mudança de decisão ia colocá-la numa posição bastante desconfortável com Lucille Kelly, portanto, ela queria saber o porquê daquilo tudo. O resto do dia se arrastou como um martírio interminável. O tempo todo Jerome parecia estar por perto, independente do que ela estivesse fazendo. E, ao mesmo tempo, parecia mais distante do que nunca. Uma hora eram seus amigos cowboys a rodeá-lo, na outra eram Darlene, Angie e mais um mundo de parentes que o cercavam, tornando-o inacessível. Darlene se aproximou para uma rápida troca de amabilidades, e a filha ensaiou um sorriso tímido a distância. A jovem artista parecia tão desconsolada, que Nancy teve vontade de assegurar-lhe de que a decisão de não vender a pintura não era o fim do mundo. Mas Angie escapou, enfiando-se no meio da multidão de parentes. Então Lucille apareceu. — Nancy! — exclamou com uma voz apenas um pouco mais grave do que a de Brenda. — Como vai querida? Você está à própria princesa índia! Mas que idéia mais interessante! Nancy conduziu sua convidada por entre a multidão que atulhava a loja, esperando ter uma chance de conseguir convencer Lucille de que não agira de má-fé para com ela. — Eu mal posso esperar para ver a pintura! — Lucille exclamou. — E estou louca para conhecer a artista! Nancy precisou tomar coragem para responder: — Lucille, receio que tenhamos um pequeno problema — disse com calma. — A pintura não está mais disponível. — O quê! Você não deixou Robbie Spears ficar com ela! Nancy, você a prometeu para mim! — Não, não — ela disse ainda tentando manter a calma, levou a marchand para a mesa de salgadinhos e bebidas, afastando-se de Jerome e sua família. — Robbie e sua coleção não têm nada a ver com isso. O problema foi que a artista simplesmente desistiu de vender o quadro de que lhe falei. —Explicou
enquanto Lucille Kelly se distraía escolhendo docinhos e uma bebida gelada. Nancy não resistiu e procurou por Jerome. Ele ia conduzindo o interminável grupo de parentes para o seu apartamento acoplado à loja. Decidiu que ia se livrar o mais depressa possível do marchand e escaparia para casa em seguida. Mais uma hora naquele tormento e sofreria um colapso, sem dúvida. — Lucille, eu tenho alguns outros trabalhos da mesma jovem — disse, retomando o assunto. — Se você gostar creio que posso lhe conseguir um ou dois a mais. A colecionadora bebeu um gole de ponche para ajudar a engolir um doce. Eu comprarei qualquer coisa que tiver. — Seria melhor se desse uma olhada antes — Nancy sugeriu. — Até agora você não tem nada além da minha palavra quanto à qualidade do trabalho e pode nem mesmo gostar do estilo dessas pinturas. — Eu pretendo ser a primeira a possuir um Angie Fourkiller — a outra anunciou com firmeza. — Eu já mencionei a artista para Robbie e outras pessoas. — Sorveu mais um gole de ponche e escolheu mais um doce nas travessas. — Foi isso que me assustou. Pensei que Robbie tivesse corrido até aqui na minha frente e dado um jeito de convencê-la a vender-lhe a "minha" pintura. — Oh, não. Posso garantir que esse não foi o problema. — Nancy ficou pensativa por um instante. — Mas não sei como vai funcionar. Nenhum dos quadros que tenho se encaixa no tema da sua coleção de Madonas. — Está tudo bem. É só pendurá-los em algum outro lugar. — A outra suspirou, satisfeita. — Isso vai dar um fim à tortura de um ano inteiro suportando a conversa de Robbie, só porque ela descobriu as esculturas de J. L. Harjo. — Descansou a taça de ponche sobre a mesa. — E, agora, onde estão essas obras de arte? Eu quero ver o que acabei de comprar. Com um sorriso de alívio, Nancy convidou-a com um gesto a acompanhála até o departamento de arte. No final, tudo estava bem, e a carreira de Angie ganharia afinal o impulso que ela merecia. A despeito de todos os esforços, ela não conseguia se ver livre da amiga. Lucille primeiro discorreu longamente sobre as qualidades de cada pintura e elogiou o talento da artista. Depois, gastou um bom tempo comentando sobre Robbie, com óbvia satisfação por estar passando a colega e competidora para trás. Por fim, repetiu de modo cansativo todos os convites feitos por Brenda, com a mesma ladainha da importância de se ter uma vida social ativa. Quando decidiu ir embora, Nancy se achava extenuada. Vendo-se livre, ela aproveitou e foi apanhar a bolsa no escritório, não se esquecendo de dizer a Zelda que estaria em casa pelas próximas uma ou duas horas. Então, foi até o carro e saiu dirigindo sob um calor insuportável. Tentou manter a mente vazia, procurando não se lembrar de que a loja ia ficar aberta até às nove da noite, e que ela teria de voltar para lá antes de tudo terminasse. Quando chegou ao seu apartamento, entrou, fechou a porta e escorou as costas contra a madeira maciça, mal acreditando que estava sozinha e segura. Ali não precisaria se entender com Virgil, ou tentar falar com Angie, ou fazer de tudo para se livrar de Lucille de forma discreta. Ali, estava livre da constante visão de Jerome. Correndo os olhos pelo apartamento, conferiu a perfeição das reformas,
confirmando que tudo se achava no seu devido lugar. Era um apartamento lindo, fino e confortável. Mas, de algum modo, pareceu-lhe frio e grande demais. Decidiu ir se deitar no quarto, mas, de tão exausta, não conseguiu ir além do sofá. Abandonou o corpo sobre as almofadas macias, tentando reanimar-se com a idéia de que quando voltasse para a loja, Jerome talvez já não estivesse mais lá, e, assim, não precisaria encontrá-lo outra vez naquele dia. Sem se levantar do sofá, olhou para a cidade, pela janela. Sim, Jerome com certeza iria sair para comemorar aquele dia com as pessoas que lhe eram próximas e queridas. Era óbvio que não a incluiria nesse rol.
CAPÍTULO XII Jerome abriu a porta do Cowboy's com um tranco, esperando que Billy passasse, para então segui-lo. Aquele era um popular ponto de encontro noturno de cowboys e gente que apreciava rodeios e música country. — Olhe, Jerome — Billy disse por cima do ombro, conforme seguia era direção a uma mesa vazia —, se você não queria vir, devia ter dito alguma coisa. — A idéia foi minha, lembra-se? — ele resmungou... Percebeu o olhar inquiridor do cunhado e fez um esforço consciente para relaxar. Durante o percurso até ali, mal havia respondido às tentativas do outro de puxar conversa, mantendo o tempo todo uma cara fechada e mal-humorada. E agora
se irritava com a demora em serem atendidos. Como surgida do nada, uma simpática garçonete apareceu. Tão logo anotou o pedido e saiu, Jerome se acalmou o bastante para pedir desculpas. — Eu sinto muito, Billy. Meu humor não está lá essas coisas. Acho que não sou muito chegado a esse negócio de grandes inaugurações. — Não foi o que pareceu — o outro discordou. — Você tinha cara de quem estava se divertindo muito, lá na festa da loja. — Bem... É que sou um grande ator — desconversou já se sentindo malhumorado de novo. Mas aquilo não era mentira. Se ele não fosse mesmo um bom ator, teria agarrado Nancy no instante em que a vira vestindo o traje Cherokee, com seus cabelos negros descendo em duas longas tranças sobre os ombros. A teria beijado com ardor... Billy seguiu o olhar do amigo, que se fixou na banda de seis elementos que se preparava para um honkey-tonkyn, estilo alegre de música que costumava ser tocado naqueles estabelecimentos. — Estão todos loucos para dançar — Billy comentou. — É... A garçonete apareceu, tentando abrir caminho pelos vãos deixados entre as mesas e os casais que já ocupavam a pista, dançando ao ritmo bem marcado da canção tradicional executada por um violão, um bandolim, um tambor, um banjo e o baixo. O conjunto acompanhava um jovial vocalista. Jerome olhou em volta, amuado. A garçonete chegou até eles e serviu as bebidas com um largo sorriso nos lábios. Todos estavam felizes naquela noite. E ele se sentia com vontade de atirar uma cadeira nas janelas. Inquieto, pegou seu copo e sorveu um grande gole, pensando que ao menos podiam estar tocando uma canção triste. — Isso me lembra das velhas danças, lá em Park Hill — Billy comentou, tamborilando sobre a mesa, acompanhando a batida da música. — Não se lembra? — sorriu. Jerome assentiu em silêncio. Aquilo acontecera há um século... Antes mesmo de conhecer Diana Medford, ou Nancy. Naquele exato momento tinha os músculos tão tensos que duvidava que pudesse sequer tentar uns simples passos de dança. Pôs o copo sobre a mesa e ficou olhando o líquido vibrar em minúsculas ondas concêntricas. Sentiu Billy observando-o, mas não ergueu a cabeça. — Bom você está com a sua loja aberta e funcionando — ele disse ainda numa sincera tentativa de puxar conversa. — Parece que tudo vai bem; os fregueses não param de entrar, e o comentarista esportivo do Canal Dois disse ontem que estava apostando em você para vencer o grande circuito outra vez. Que mais se poderia querer, hein? Em resposta, Jerome apenas deu de ombros. — Quem sabe uma mulher, hã? — Billy disse tranqüilo. — Uma determinada mulher? Jerome ergueu os olhos, e encontrou no rosto do cunhado uma expressão compreensiva, amiga. Sentiu a boca seca e fez menção de beber mais um gole, mas interrompeu o gesto antes de completá-lo. — Esta é uma coisa que não vai tão bem — disse, com seca ironia. O outro tomou alguns pequenos goles de cerveja, sem pressa. E, quando falou, foi num tom completamente casual: — É mesmo?
— É uma coisa sem esperança — Jerome declarou, precisando colocar em palavras toda a sua angústia. — É só mais uma das minhas obsessões sem sentido, Billy. Não se preocupe com isso. — Por que sem sentido? — Você mesmo disse, quando eu a levei para a sua casa — explicou com impaciência. — Eu já devia saber o que acontece com esse tipo de mulher. — Brincou com o copo entre os dedos. — E Ray sabia o que estava dizendo, lá no rodeio. Com ela, estou fora do meu terreno. — Certas pessoas falam demais. — Não daquela vez. Ele disse a verdade. — Você a ama — Billy afirmou com convicção. — Sim. — E ela o ama? — Ela diz que sim. Houve um curto silêncio. — Então, o que está esperando? — Billy perguntou. Ele olhou para o cunhado e amigo. — Esperando que ela se decida a viver numa cabana enfiada no meio das colinas. Que se esqueça de clubes de campo e grandes bailes. Que aceite viver com um homem cujo trabalho a deixa em pânico. — Fez uma careta de desgosto. — É isso o que estou esperando. Isso e uma tempestade de neve no verão! — E essas coisas todas, clubes, festas, são muito importantes para ela? Ela disse isso? — Não. Mas uma de suas amigas estava na inauguração hoje, e era disto que falava o tempo todo. Almoços, reuniões, o clube. — Deu um longo gole e recolocou o copo em cima da mesa. — É preciso encarar a realidade. Em pouco tempo ela acabaria sentindo falta de todas essas coisas, desse mundo. E não há lugar para mim nesse mundo. — Como não havia lugar para você no mundo de Diana quando ela foi para a Europa? — Exato. — Quanto mais a vejo, menos a acho parecida com Diana. — Bem, pois ela é — Jerome afirmou. Billy balançou a cabeça devagar, em discordância. — Sou mais velho e mais experiente — disse. — Conheço você como se fosse um filho. Estive observando vocês dois lá na loja, e era claro como a água que o que sente por ela é muito mais profundo do que aquilo que sentia por Diana. — Sorveu um gole de cerveja, saboreando a bebida sem pressa. — Melhor lhe pedir que se case com você. — Não! — A música parou nesse mesmo instante, fazendo a palavra parecer alta demais. — Se ela disse que ama você duvido que recuse o pedido. — Não é esse o problema. Tenho medo é de que ela diga sim. Uma nova canção ecoou pelo salão, esta mais tranqüila e romântica. Billy ficou pensativo e em silêncio. — Eu não quero ser o culpado pela infelicidade dela. — Você não pode prever que ela vai ser infeliz. — Ela será — insistiu. — Não se pode dizer que tenha se encaixado muito bem no clã da nossa família, não é? Ela não entende... Não consegue nem se
comunicar com Angie; fez a menina ficar tão perturbada. E... — Isso não foi culpa de Nancy, e você sabe disso muito bem. Ele ignorou o comentário e prosseguiu: — E ela teria de desistir de muita coisa para ser minha esposa. Coisas demais. O outro não respondeu, limitando-se a manter uma expressão imperturbável, como se nada daquilo o tivesse convencido. — Eu vou falar com ela — Jerome disse de modo defensivo. — Mas não sobre casamento. Vou explicar o que houve com a Angie e a pintura. — Acho melhor falar de ficarem juntos, também. Pelo que estou vendo, isso está corroendo você por dentro. — Não. — De repente se levantou, empurrando a cadeira sobre o chão de madeira. — Vamos embora — disse de modo rude. — Vamos para algum lugar onde toquem alguma coisa além dessa maldita música romântica. Billy também se levantou, mas ficou onde estava olhando bem nos olhos dele. — Você não pode viver assim. Vocês dois vão ter de tentar, Jerome. Você sabe disso. Ele tirou a carteira do bolso de trás do jeans e atirou algumas notas na mesa. — Nesse caso, ela é quem vai ter de dar o primeiro passo. Na manhã seguinte, Nancy esperou por duas horas na loja, antes de admitir que Jerome não fosse aparecer. Tinha passado a noite pensando nele, e seguira para o trabalho decidida a dar um fim àquela agonia. Iria obrigá-lo a explicar a questão da pintura de Angie, e depois trataria de encará-lo com a maior indiferença e frieza possíveis. De que adiantava insistir? Ambos eram duas pessoas vindas de mundos diferentes, sem nada em comum, que haviam compartilhado um sonho por alguns dias. Mas os sonhos desaparecem quando acordamos... Enquanto esperava, ia sendo assaltada pelas lembranças, momentos doces e alegres em companhia de Jerome. Agitada, começou a andar de um lado para outro no escritório, incapaz de conter as recordações. Uma triste sensação de perda crescia mais e mais em seu íntimo. Cansada de ficar se desgastando daquele jeito, pegou a bolsa de cima da escrivaninha. Precisava sair dali. Não ia suportar passar o dia todo perambulando de uma seção a outra da loja, tentando escapar das lembranças de cada incidente do dia anterior. Foi até a sala da secretária. — Zelda, eu vou sair um pouco. — Pois espero que esteja indo ver Molly Bear para pegar outro daqueles vestidos — disse com firmeza. — O que desfilou ontem já está vendido... — É mesmo? — É. O telefonema de agora a pouco foi de certo Sr. Talliaférro. Ele disse que reparou no vestido que você estava usando ontem, e que desejava comprá-lo para sua esposa. — Que maravilha! — Não vejo maravilha nenhuma — a secretária discordou, com ar ofendido. — Eu nem tive uma chance. Fui muito tola em pensar que teria tempo para economizar o suficiente para comprá-lo! Nancy sorriu.
— Prometo lhe dar uma chance com o próximo — assegurou. — Vou direto até a casa de Molly para ver se ela já terminou os outros dois encomendados. — Mas ela não sabe que você vai — Zelda objetou. — Como vai fazer sem um intérprete? — Oh, não! Eu tinha me esquecido disso! — Da outra vez o entendimento tinha sido tão natural que ela nem se lembrava da diferença de línguas. Mas o fato é que Jerome havia sido o tradutor. Parou um pouco para pensar, procurando raciocinar com clareza. Então se lembrou: — Hoje é sábado! — E daí? — A irmã dela passa todos os fins de semana lá. Foi com ela que eu marquei o encontro da outra vez. Ela pode servir de intérprete. — Bem, não me importa quem traduza desde que Molly compreenda que precisa se apressar com mais alguns desses vestidos — Zelda brincou. — Vou me assegurar de que sim — Nancy disse, rindo. Deu algumas instruções à secretária e deixou a loja. Assim que pôs os pés na calçada, notou nuvens escuras que ameaçavam ocultar o sol. Era um alívio pensar que, após os dias de calor implacável que vinha assolando toda a região de Tulsa, poderiam ter o alívio da chuva. Pouco depois, com o vento soprando seus cabelos pela janela aberta, ela seguiu pela estrada que levava à casa de Molly. A despeito de suas esperanças de que o passeio trouxesse alívio e distração, cada trecho da estrada só servia para trazer mais e mais lembranças, de modo que, quando fez a última curva da estradinha de terra e avistou a índia sentada na frente da casa, sentiu que já estava a ponto de chorar. Molly a recebeu com algumas palavras em Cherokee, que sua irmã Dalah traduziu: — Ela diz que está feliz que tenha resolvido aparecer. Disse que é bom que já tenha chegado; é perigoso dirigir com esse tempo. Espantada, Nancy olhou para o alto, examinando o céu que cobria a pequena clareira. Tinha estado tão absorta com os próprios pensamentos que nem havia reparado que as nuvens tinham ficado mais escuras, e o vento soprava cada vez mais forte. Mas não via nenhum perigo em dirigir em tais condições. Então, agradeceu a preocupação e retribuiu a saudação. Dalah começou a fazer a apresentação do velho Ridge, mas ele a interrompeu com aceno e cumprimentou Nancy com um discreto movimento de cabeça, voltando em seguida a observar o céu. — Sente-se — Molly convidou-a através de Dalah. — Sente-se e vamos conversar. Nancy aceitou a velha e rústica cadeira de balanço enquanto as duas mulheres se acomodavam num longo banco de madeira. — Fez uma boa viagem até aqui? — Dalah se interessou. — Muito boa obrigada. — Estava chovendo em Tulsa? — Não. Estava nublado, mas só isso. — Começou a se balançar na cadeira com certa impaciência. Não tinha vindo de tão longe para conversar sobre o tempo, mas não podia ir direto aos negócios, sabia que para os Cherokee isso
era uma grande indelicadeza. — Sentimos a falta de vocês na festa de ontem — disse. — Gostaria que tivessem podido ir. Molly balançou a cabeça e fez um comentário. — Muito longe — Dalah traduziu e sorriu. — Molly não gosta de Tulsa — explicou. — Só esteve lá duas vezes em toda a vida. — E você trabalha lá! — Sim. E adoro. Molly começou o que era obviamente uma resposta àquilo, mesmo sem a irmã ter traduzido do inglês. Mas foi interrompida por Ridge, que disse algo em Cherokee e apontou para o céu. O vento soprou com um assobio, levantando pequenos redemoinhos de poeira. Nancy notou um súbito esfriamento do ar. Compreendeu que uma tempestade podia estar se formando. Indelicado ou não, tinha de falar sobre os vestidos e sair antes que a chuva chegasse perto demais. Mas Dalah já estava se levantando. — Vou ver o que o homem da televisão está dizendo. Nancy, não quer entrar e dar uma olhada nos desenhos que Molly está fazendo? Dentro da sala, ela descobriu diversas peles curtidas, estendidas em uma mesa, sobre os quais se destacavam desenhos de plantas, com contornos simples e cores vivas retratando de modo singelo a natureza. Interrompeu a admiração das peças de arte quando a tevê foi ligada e o meteorologista encheu o cômodo com sua voz: —... Furacões avistados sobre Coweta e Fort Gibson — ele ia dizendo. — O mais forte encontra-se a doze quilômetros de Tahlequah, movendo-se no sentido norte - noroeste a quarenta quilômetros por hora. Se você for pego a descoberto, não tente fugir do furacão. Procure um buraco ou depressão para se abrigar... Um tremendo raio, seguido de barulhento trovão o interrompeu. Nancy prestou atenção à imagem, que não tinha desaparecido com o som. O meteorologista apontava num mapa na parede um ponto que parecia muito próximo de onde se encontravam. — É onde estamos — Dalah confirmou. — Está vindo direto para cá. — Desligou o aparelho e voltou para a varanda. — É melhor irmos para o abrigo — anunciou lá fora. — O furacão mais forte está vindo direto para cima de nós. Molly e Ridge se levantaram com agilidade e desceram os degraus da varanda. Nancy hesitou, esperando Dalah, que trancava a porta da frente. Era óbvio que já não havia mais tempo para tentar voltar para casa. Estaria dirigindo direto para a tempestade. Dalah cerrou o ferrolho, e então as duas seguiram os outros, contornando a casa. Um relâmpago iluminou o céu com sua luz fantástica. Nesse minuto, como se aquilo fosse um sinal, a chuva despencou. Primeiro em gotas esparsas, e então, em pingos grossos, formando um lençol d'água espesso. Todos começaram a correr. Sentindo a chuva gelada castigando-lhe as costas, Nancy avistou uma porta de metal incrustada na encosta da colina. Ela e Dalah a alcançaram no instante em que Ridge conseguia destrancá-la. Molly entrou primeiro, descendo as escadas. Em seguida foi Dalah, que iluminou os degraus com uma lanterna enquanto descia. Tudo estava bem, mas Nancy viu que Ridge se, esforçava em vão para fechar a porta, lutando
contra a fúria do vento. Sem pensar, correu para ajudá-lo. Por alguns segundos os dois permaneceram apoiados de encontro à folha de metal, imóveis. Ela podia sentir as